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O “Individualismo e os Intelectuais” de Durkheim
Autor: W. Watts Miller
Tradutora: Raquel Weiss
O ensaio o individualismo e os intelectuais é importante em múltiplos sentidos.
Durkheim o redigiu em um momento de tensão na França, para manifestar seu apoio a
valores que estavam sob ataque, e o resultado disso é uma expressão apaixonada e pública
de seus compromissos éticos mais fundamentais. Ao mesmo tempo, isso aconteceu em
um estágio crucial de sua própria carreira e de seu projeto para uma ciência social, de
modo que esse ensaio é um elemento chave para uma compreensão histórica das
mudanças e continuidades de sua obra como um todo. Essas continuidades incluem
também sua preocupação com a crise moderna, o que torna esse ensaio fundamental para
explorar a relevância de suas ideias para o momento presente, possibilitando o
desenvolvimento de uma explicação para a crise que está em curso1.
O Texto em Contexto
Este ensaio começa fazendo referência a uma controvérsia que havia abalado a
França no decorrer dos últimos seis meses, mas logo depois passa a enfatizar uma questão
de princípio que vai muito mais além do que as circunstâncias imediatas, e que pode ser
desvinculada destas2. Contudo, essa não é uma desculpa para ler o texto de forma
descontextualizada e desvinculada do universo sócio-histórico no âmbito do qual
Durkheim foi impelido a escrevê-lo. Muito pelo contrário, a principal mensagem com a
qual conclui o texto fala sobre a necessidade, em um momento de crise, de manifestar seu
apoio e reunir-se em torno de um ideal moderno fundamental3 (13/277-278). Uma tarefa
essencial para que se possa entender plenamente o significado desse ensaio consiste em
combinar uma análise dos elementos históricos do texto com uma atenção a suas
preocupações éticas fundamentais.
1 DURKHEIM, Émile, Lettres à Marcel Mauss, Paris: Presses Universitaires de France,
1998, p. 110. 2 DURKHEIM, Émile, L’Individualisme et les Intellectuels, Revue Bleue, v. 10e tome,
35 année, p. 7–13, 1898, p. 7. 3 Ibid., p. 13.
Uma Defesa do Individualismo
Esse ensaio é, ao mesmo tempo, uma vigorosa defesa de uma forma particular de
individualismo e uma crítica fulminante a uma outra forma4. O individualismo que ele
defende tem sido frequentemente discutido por comentadores como sendo um
“individualismo moral”, mas uma abordagem mais acurada e mais desafiadora seria
considera-lo como uma ética da pessoa. Não se trata, de modo algum, de uma questão
que se refere a indivíduos, mas envolve todo um conjunto de preocupações que
incorporam dimensões coletivas fundamentais. Ele é baseado em uma longa luta histórica
e em um movimento coletivo, que engendrou aspirações a uma sociedade na qual cada
indivíduo diferente possui o mesmo estatuto moral, liberdade e direitos enquanto pessoa.
De fato, se focarmos apenas em seu conteúdo, o individualismo moral pode ser descrito
como sendo essencialmente um ideal igualitário de uma “sociedade de pessoas” – um
termo que fora usado pelo herói de Durkheim, o filósofo de esquerda Charles Renouvier.
Mas há ainda outras coisas em jogo. Trata-se de saber de que modo, graças a
atitudes que visam glorificar seu conteúdo, essa ética moderna constitui-se como uma
religião moderna. Embora o ensaio mobilize uma variedade de formas de expressar como
um comprometimento genuinamente moral está acima dos interesses materiais, é preciso
entender de que modo esse ideal está situado num mundo à parte que é transcendente,
assim como “deus” e o “divino”, e o termo central para compreender isso é o conceito de
sagrado5. O individualismo que Durkheim defende é, a um só tempo, uma ética e uma
religião, na medida em que estabelece uma linha demarcatória e propõe um compromisso,
mediante o estabelecimento da crença de que a pessoa humana é “sagrada”. É também
por isso que o individualismo que ele ataca é aquele apresentado pelos economistas, como
aquele que faz cálculos utilitários de seu interesse e para o qual tudo é negociável – ou,
resumidamente, é um comercialismo “sórdido” no âmbito do qual nada é sagrado6.
A Emergência do Intelectual
Para compreender o texto em seu contexto, podemos tomar como ponto de partida
duas referências. Uma delas é a Revolução Francesa e todo seu legado, que diz respeito
4 DURKHEIM, Lettres à Marcel Mauss, p. 110. 5 DURKHEIM, L’Individualisme et les Intellectuels, p. 8. 6 Ibid., p. 7 No original, “commercialisme mesquin”. Entretanto, “sordide” é um termo
sinônimo em francês, e no contexto to referido ensaio representa um sugestivo contraste com a
ideia de sagrado, conforme será mencionado mais adiante. .
“às transformações morais do século passado”7. A outra diz respeito à emergência da
Terceira República, que é o que está implicado na menção aos eventos de “trinta anos
atrás”8.
A Revolução, datada convencionalmente como tendo sido iniciada em 1789,
acabou por gerar sucessivos regimes. O próprio Durkheim nasceu durante o Segundo
Império9, mas era ainda um menino de doze anos quando esse regime colapsou com a
derrota para os alemães, em 1870. No decorrer de sua vida adulta, ele foi um cidadão e
defensor da Terceira República, estabelecida alguns anos após um período de conflitos e
incertezas. Um filho de rabino da pequena cidade provinciana de Épinal, no leste da
França, ele foi criado num ambiente bastante modesto. De fato, sua carreira seguiu um
padrão de assimilação e de mobilidade sócio-geográfica que era típico dentre os jovens
homens judeus de sua geração e que possuíam um histórico familiar semelhante, que
buscavam trilhar seu caminho valendo-se da educação oferecida pelo estado, seguindo
profissões liberais e migrando para a capital ou para outras grandes cidades. Em 1876 ele
deixou sua casa e seguiu para Paris, e foi um estudante durante os eventos que
confirmaram a chegada da nova República, que se afirmava com a retomada do lema
oriundo da Revolução, Liberdade, Igualdade, Fraternidade. Vinte anos mais tarde, seu
ensaio lembrou o “entusiasmo” daqueles evento, que ele havia compartilhado com outros
jovens, mas também mencionou como àquelas elevadas esperanças por reformas seguiu-
se um “desencantamento”10 (12/276). No entanto, de sua parte, Durkheim conseguiu
manter a fé nas possibilidades de realizar mudanças, e isso influenciou em sua decisão de
mudar o foco de seus esforços acadêmicos, seguindo caminho da sociologia em vez de
continuar com a filosofia. Ao desenvolver sua visão sobre a sociologia, ele a vinculou
continuamente com análises sobre a crise e com aquilo a que ele chamou de ação voltada
para reformas, como no caso de sua aula inaugural para a cadeira de ciência social na
Universidade de Bordeaux (1887), em sua tese de doutorado sobre a divisão do trabalho
(1893) e na conclusão ao livro O Suicídio (1897). Contudo, aquilo que se passou em 1898
o envolveu em uma situação de colisão entre diferentes tipos de pressão e de
comprometimentos – para dar continuidade à sociologia como uma ciência, e para atuar
7 Ibid., p. 13. 8 Ibid., p. 12. 9 Para a biografia de Durkheim, veja-se: LUKES, Steven, Émile Durkheim, his life and
work : a historical and critical study, London: Allen Lane, 1973; FOURNIER, Marcel, Émile
Durkheim : 1858-1917, [Paris ]: Fayard, 2007. 10 DURKHEIM, L’Individualisme et les Intellectuels, p. 12.
como cidadão. Foi quando, após um longo esforço, ele conseguiu publicar o primeiro
volume de sua nova revista, L`Anné Sociologique, ao mesmo tempo em que se ocupava
em deixar pronto o volume para o ano seguinte. Mas também foi nesse período que
explodiu de forma espetacular aquilo que ficou conhecido como o Caso Dreyfus, gerando
os tumultos políticos dos “últimos seis meses”, que o impeliram a escrever seu ensaio, e
aos quais ele se refere em sua frase de abertura11.
O caso teve início em 1894, com o julgamento e a condenação de Alfred Dreyfus,
judeu, capitão do exército, acusado de traição por espionagem para os alemães; durante o
transcorrer dos fatos, o processo foi marcado por um virulento antissemitismo. Em 1898
passou a existir uma cisão entre dreyfusards e anti-dreyfusards, mas, de forma ainda mais
fundamental, consolidou-se uma batalhe entre defensores da República e forças anti-
democráticas. Portanto, houve uma campanha em defesa de Dreyfus, durante a qual ficou
aparente que seu julgamento havia sido uma farsa, pois o verdadeiro espião era Ferdinand
Esterhazy, que vendia segredos aos alemães porque precisava de dinheiro. As
autoridades, preocupadas em questionar sua competência e sua integridade, com o intuito
de manter as alegações iniciais, orquestraram um julgamento de Esterhazy, declarando-o
inocente em 11 de Janeiro de 1898. Em 13 de Janeiro o escritor Émile Zola reagiu a isso
denunciando toda essa conspiração oficial, o acobertamento e a rede de mentiras, com um
artigo de jornal que tinha como título “Eu Acuso”, que obteve um impacto sensacional e
de longo alcance. Surgiram então várias petições em apoio a Dreyfus, reunindo um
enorme contingente de assinaturas; foram feitos planos para criar uma liga de defesa dos
direitos humanos, e a campanha adquiriu um novo fôlego e ainda mais publicidade com
o drama do julgamento do próprio Zola. Em uma série de outros desenvolvimentos
ocorridos naquele mesmo ano, a opinião pública ficou chocada quando o novo presidente,
eleito democraticamente, foi agredido por um aristocrata, quando um oficial do exército
cometeu suicídio após confessar ter forjado uma evidência central na incriminação de
Dreyfus, quando a Corte de Apelação negou a anulação do julgamento de 1894, e quando
o alto comando do exército conseguiu marcar uma nova corte marcial para 1899. Mas,
mais uma vez os militares o acusaram novamente, e como parte do esforço para acalmar
os ânimos, o Presidente da República concedeu o perdão a Dreyfus. Entretanto, foi um
11 Ibid., p. 7. Para uma detalhada exposição sobre o Caso, veja-se CAHM, Eric, The
Dreyfus Affair in French Society and Politics, New York: Longmans, 1996. Sobre a atuação de
Durkheim no caso, veja-se LUKES, Émile Durkheim, his life and work : a historical and critical
study, p. 332–349; FOURNIER, Émile Durkheim : 1858-1917, p. 365–384.
perdão para um crime que ele não cometeu, e somente em 1906 que a Corte de Apelação
declarou sua inocência e exonerou-o completamente.
Durkheim rapidamente adicionou seu nome às petições em defesa de Dreyfus, a
primeira das quais é datada de 14 de Janeiro de 1898 – o dia seguinte ao artigo de Zola –
e foi intitulada “Manifesto dos Intelectuais”. Mas uma ideia bastante interessante sobre
como Durkheim via aqueles eventos pode ser obtida a partir de suas cartas daquele
período. Em uma carta escrita em Fevereiro de 1898 para seu sobrinho, Marcel Mauss,
ele afirma que o antissemitismo é apenas a expressão mais superficial de uma profunda
crise moral, na qual princípios fundamentais, aparentemente bem estabelecido, estavam
sob ataque pelas forças reacionárias. Seria necessário, portanto, manifestar-se em defesa
desses princípios, e ele defende a organização de uma “liga permanente” como uma forma
de fazer isso12. Em uma carta posterior, mas escrita naquele mesmo mês, ele relata ter
acabado de se filiar à recém formada Liga para a Defesa dos Direitos Humanos, e que
estava trabalhando para recrutar membros e fundar uma divisão em Bordeaux. Contudo,
as pessoas estavam relutantes em comprometer-se. “Precisamos fazer tudo o que
pudermos”, mas, “é de partir o coração ver a covardia com que estamos lidando”13.
Pouco depois, ele se viu diante de outra dificuldade. Em 15 de Março, um artigo
publicado por Ferdinand Brunetière – uma voz ativa do catolicismo anti-dreyfusard –
pronunciou-se contra os assim chamados intelectuais, contra sua presunção em questionar
a autoridade e sua defesa do individualismo, “a maior doença do tempo presente”14. Em
18 de Março, em uma carta na qual discute seu trabalho no Anné com Celestin Bouglé,
um jovem membro de seu grupo, ele afirma estar com um “comichão” para escrever uma
resposta a Brunetière, mas “infelizmente, não tenho tempo para isso”15. No dia seguinte,
em uma carta a seu sobrinho, ele fala sobre o “dever” de assumir uma posição e afirma
que “eu farei tudo o que puder para controlar esse movimento de reacionarismo moral e
intelectual que está muito claramente tomando forma”16. Em 22 de Março, em outra carta
a Bouglé, ele reclama sobre a labuta e a fadiga de preparar o próprio número da Année,
mas também lamenta o “mais triste inverno” que viveu em função dos “lamentáveis
12 DURKHEIM, Lettres à Marcel Mauss, p. 110. 13 Ibid., p. 113. 14 BRUNETIÈRE, Ferdinand, Après le procès, Revue des deux mondes, v. 146, p. 428–
446, 1898, p. 445(Página XXX no presente volume). 15 DURKHEIM, Émile, Textes 2. Religion, Morale, Anomie., Paris: Les Editions de
Minuit, 1975, p. 418. 16 DURKHEIM, Lettres à Marcel Mauss, p. 115.
eventos” do Caso, o seu “isolamento moral” em Bourdeaux, lutando por princípios
básicos e o repugnante espetáculo de covardia a seu redor. Está bastante claro que, em
algum momento, ele decide a respeito da efetiva necessidade de responder a Brunetière.
De fato, dentro de apenas alguns dias houve tanto progresso em seu artigo que sua carta
não apenas destaca os argumentos centrais que pretende mobilizar, mas também apresenta
um título que, a seu ver, ataca o núcleo da questão, nomeadamente, “O Individualismo
dos Intelectuais”17. Em Abril, escrevendo para seu sobrinho, ele diz estar terminando seu
artigo, cujo título agora seria “O Individualismo e os Intelectuais”18. Em Julho, quando
foi publicado na Revue Bleue, outra carta a seu sobrinho afirma que o editor suprimiu
algumas referências ao Caso Dreyfus e as menciona isso como um exemplo de como
escrever e publicar um artigo era algo complexo e tortuoso19. Em todo caso, com sua
publicação em uma revista semanal que tinha como um público um leitor relativamente
elitizado, mas não especializado, esse texto sobre o papel dos intelectuais na vida pública
causou bastante estardalhaço, e acabou por fazer de Durkheim um desses intelectuais.
Um desafio prático durante toda sua vida foi descobrir como desenvolver a
sociologia enquanto um campo erudito e científico de estudo e pesquisa, e ao mesmo
tempo mobilizá-la como base para reforma e crítica social esclarecidas. Uma abordagem
essencial para compreender isso pressupõe compreender a articulação entre um interesse
em avançar no campo da produção intelectual e na realização de pesquisas com seu
extensivo e persistente comprometimento com o papel de professor e educador. Mas outro
aspecto igualmente essencial é como o moderno papel público do intelectual transcende
a sala de aula, do mesmo modo que avança para além da pesquisa acadêmica, embora
esteja vinculado a esta.
No texto “O Individualismo e os Intelectuais” estão presentes diversos elementos
que Durkheim desenvolveu no decorrer de sua carreira na educação. Um exemplo disso
concerne às referências a Kant. Estas são como a ponta de um iceberg. Elas estão baseadas
no profundo conhecimento que ele tinha desse filósofo, bem como de uma vasto número
de autores clássicos e moderno, presentes nos cursos em que concentrava-se na análise
de um texto em particular, e no esforço mobilizado para preparar esses cursos. Ainda que
na maior parte dos casos, inclusive no caso de Kant, suas anotações para esses cursos
tenham sido perdidas, uma preciosa luz tem sido lançada pelas recentes descobertas dos
17 DURKHEIM, Textes 2. Religion, Morale, Anomie., p. 423. 18 DURKHEIM, Lettres à Marcel Mauss, p. 131. 19 Ibid., p. 153.
registros dos livros que ele emprestava da biblioteca da Universidade de Bourdeaux20.
Agora já é evidente que sua prática comum era a de examinar um texto não apenas
considerando a obra de seu autor como um todo, mas também a partir do uso de edições
no idioma original, seja em francês, inglês, alemão, grego ou latino. Outro exemplo
envolve algo relativo a apenas uma linha. Uma das obras favoritas de Kant, Sátiras, de
Juvenal, é citada em latim, mas é traduzida como: “E por amor à vida, perde-se o sentido
de viver” 21. Essa foi uma via eficiente e polida para evitar os cortes do editor e ainda
assim conseguir atacar a covardia daqueles que mantiveram suas cabeças baixas durante
o caso, esperando apenas sobreviver mediante o abandono de um princípio.
Há também numerosas maneiras com que esse artigo se vincula com suas
principais publicações sociológicas. Sua tese sobre a Divisão do Trabalho é a fonte de
uma longa passagem que explica a emergência histórica e a base social do individualismo
22. Ao mesmo tempo, é a fonte de seu interesse pelo moderno culto ao indivíduo/pessoa.
Mas isso ficou ainda mais claro em O Suicídio, com suas reiteradas menções ao caráter
sagrado da pessoa humana23, que estão diretamente vinculadas a seu argumento no ensaio
em questão24. Ou ainda, chega a isso a partir do inúmeros desenvolvimento de sua obra
para L’Année, envolvendo a emergência da concepção dualista sobre o sagrado e o
profano. De fato, essa é um argumento que fundamenta sua descrever os dois tipos de
individualismo de forma contrastada, um como sagrado, o outro como sórdido. Em todo
caso, ele inaugurou L’ Année com um artigo que traz de forma implícita uma ideia muito
próxima à da dualidade entre sagrado e profano25. Depois tornou-se explícito em um
artigo publicado em L’Année no ano seguinte26, aquele preparado em 1898, durante um
momento de stress, fadiga e pressão de diferentes tipos de compromissos. Sem dúvida,
em suas cartas transparece um sentimento de conflito entre as demandas da vida pública
20 A descoberta foi feita por Nicolas Sembel e Matthieu Béra, e seus achados serão
publicados na Durkheimian Studies/Etudes durkheimiennes. 21 “Et propter vitam vivendi perdere causas!” Citado em DURKHEIM, L’Individualisme
et les Intellectuels, p. 12. 22 Ibid., p. 10–11(Páginas 10-11 do presente volume). 23 DURKHEIM, Émile, Le suicide étude de sociologie, Paris: F. Alcan, 1897, p. 378–9,
383. 24 DURKHEIM, L’Individualisme et les Intellectuels, p. 10. 25 DURKHEIM, Émile, La Prohibition de l’inceste et ses origines, L’Année sociologique,
v. 1, p. 1–70, 1898b, p. 40, 61. 26 DURKHEIM, Émile, De la définition des phénomènes religieux, L’Année
Sociologique, v. 2, p. 1–28, 1899, p. 19.
e seu desejo de continuar com suas atividades acadêmicas e suas pesquisas para L`Anée.
Entretanto, eles eram também complementares.
Durkheim não foi o único colaborador de L’Année que se tornou um dreyfusard
ativo e que publicou textos sobre o Caso. Seus principais colaboradores também eram
dreyfusard, incluindo, além de Mauss e Bouglé, Paul Fauconnet, Maurice Halbwach,
Henri Hubert, Paul Lapie e François Simiand27. O texto “O Individualismo e os
Intelectuais” nunca foi pensado para ser publicado em L’Année, mas tendo sido escrito
por seu editor e fundador, ajudou a consolidar a autoridade moral e intelectual de
Durkheim dentro de seu grupo enquanto um líder inspirador. Mas, acima de tudo, isso
contribuiu para espalhar sua reputação junto a um público mais amplo, o que impulsionou
sua carreira como intelectual, desenhando seu perfil como um acadêmico eminente e
inovador, que passou a fazer intervenções regulares em jornais, periódicos, coleções e
conferências a respeito de questões contemporâneas de interesse público.
Depois disso Durkheim continuou a fazer outras intervenções desse tipo28, por
exemplo, sobre o militarismo (1899), sobre o antissemitismo (1899), sobre a elite
intelectual e a democracia (1904), o internacionalismo (1905), a separação entre a igreja
e o estado (1905), a religião hoje (1907, 1914), a igualdade social (1909) ou, mais ao final
de sua vida, sobre a política do futuro (1917). Seria bastante instrutivo reunir todos esses
textos para comparação, para compreendê-los como parte de um gênero específico, mas
até onde tenho conhecimento isso ainda não foi feito. Entretanto, uma preocupação
recorrente é com a crise moderna, uma preocupação que é chave também para suas ideias
a respeito do Caso Dreyfus e para a devida apreciação da continuidade de sua importância.
Uma Crise Moderna em Curso
Já faz mais de um século da publicação de “O Individualismo e os Intelectuais”.
Durante algum tempo, talvez inevitavelmente, ele caiu no esquecimento. Entretanto, uma
mudança de sorte ocorreu nas décadas de 1960 e 1970, acompanhada de um renovado
interesse, graças ao trabalho de Jean-Claude Filloux e Steven Lukes29. Em contrapartida,
27 Veja-se Filloux (2007: 376-384). 28 Veja-se as referencias completas a essa bibliografia em LUKES, Émile Durkheim, his
life and work : a historical and critical study; DURKHEIM, Émile; KARÁDY, Viktor, Textes,
Paris: Éditions de Minuit, 1975. 29 Filloux, além de discutir esse ensaio em numerosas publicações, tornou-o amplamente
disponível a partir de sua reimpressão em sua influente coleção, DURKHEIM, Émile, La Science
Sociale et l’Action, Paris: Presses Universitaires de France, 1970. O primeiro comentário em inglês voltado diretamente para esse texto foi feito por LUKES, Steven, Durkheim’s
’individualism and the Intelectuals, Political Studies, v. 17, n. 1, p. 14–30, 1969.
com o auxílio desse trabalho, esse ensaio ganhou um estatuto mais sólido, sendo
constantemente mencionado como parte do cânone durkheimiano. É importante
investigar essa trajetória centenária de tal texto, bem como mencionar sua discussão
contemporânea. Mas aqui focarei simplesmente no ensaio, em um esforço de trazer à tona
os problemas fundamentais que estão em jogo ali.
Uma forma de começar é com a última seção 30. É ali que Durkheim recorda o
entusiasmo que emergiu com a chegada na nova Republica, ainda que logo tenha dado
lugar a um desencantamento. Realmente, ele segue descrevendo os vinte anos que se
sucederam como um tempo de crescente “tristeza e desencorajamento”, mas também
como um tempo de “inação estéril” e “torpor”. O que está subjacente aqui é sua
preocupação com a alienação generalizada com relação ao sistema político, em virtude
da falência e da estagnação do próprio sistema. Portanto, ele enfatiza a necessidade de
mover-se para além dos horizontes limitados do século XVIII, que garantia apenas os
direitos às liberdades fundamentais, e critica o fracasso em levar adiante as reformas que
tratam de “completar, de ampliar, de organizar o individualismo”. Mais especificamente,
ele fala sobre a necessidade de “organizar” a vida social e econômica mediante esforços
que visem remover os obstáculos, alcançar “maior justiça” e dar a cada um os meios de
desenvolver suas habilidades “sem obstáculo”. Por sua vez, está claro que esse argumento
é enraizado no terreno mais geral de sua tese, segundo a qual a solidariedade moderna
depende daquilo a que ele chama de divisão do trabalho “espontânea”. Trata-se de aspirar
a um mundo no qual cada um pode desenvolver-se segundo seu próprio potencial –
aspirações bloqueadas pela injustiça, pela exploração e pela vasta desigualdade entre
pobres e ricos desde o nascimento, que são características de uma divisão do trabalho
“forçada”. É parte do mesmo cenário no qual a justiça e as reformas morais e sociais se
dão mediante uma organização que envolve e empodera os indivíduos no próprio trabalho
de reforma – uma mensagem fundamental de sua longa campanha pelo desenvolvimento
de uma rede completamente nova de grupos intermediários ocupacionais31.
De um lado, outra mensagem igualmente fundamental desse ensaio é a de que é
necessário ir além e ampliar o limitado individualismo anterior, sem deixar de preservar
30 DURKHEIM, L’Individualisme et les Intellectuels, p. 12–13. 31 Para uma análise detalhada da ideia de divisão do trabalho espontânea versus divisão
do trabalho forçada, e sobre sua campanha por novos grupos intermediários ocupacionais, veja-
se MILLER, William Watts, A Durkheimian Quest: Solidarity and the Sacred, New York ;
Oxford: Berghahn Books, 2012, p. 37–73, 215–228.
o que já foi conquistado32. Por outro, ele então insiste que naquela conjuntura tal reforma
é um trabalho para o futuro; por enquanto, “a tarefa mais urgente e que deve passar à
frente de todas as outras, é salvar o nosso patrimônio moral”33. Uma explicação para essa
ambivalência é que ela consiste em uma expressão da problemática subjacente de uma
crise dual – um período de alienação graças a uma política sórdida e estéril e o fracasso
em realizar reformas significativas e, em decorrência disso, um inevitável
enfraquecimento do núcleo dos ideais modernos que faz com que estes sejam alvo de
ataques racistas e reacionários. Isso também pode ser uma explicação para a observação
de que “nossos adversários só são fortes em virtude de nossa fraqueza” 34. De todo modo,
uma improvável interpretação sobre o “patrimônio moral” que é preciso defender é a de
que este consiste simplesmente em uns poucos e limitados direitos dos indivíduos que
foram conquistados no passado. Na verdade, o alvo das forças reacionárias é precisamente
a ideia da igualdade de todos enquanto pessoas. Ou melhor, o que está no cerne dessa
ética – e o que está em jogo tanto na luta por sua ampliação no longo prazo, quanto em
sua defesa no contexto mais imediato de crise – é a ideia de que todos possuem o mesmo
estatuto moral e a mesma sacralidade enquanto pessoa.
Afinal, Durkheim insiste que a ética da pessoa constitui uma religião. E ainda,
trata-se de uma ética que se põe de modo secular, racionalista e anti-místico. De fato, ele
caracteriza essa nova religião de modo paradoxal, afirmando que seu primeiro “dogma”
é a autonomia da razão e seu primeiro “rito” é o livre exame35. Isso estabelece o cenário
geral para a discussão na qual, de modo mais prosaico, ele caracteriza a religião como um
conjunto de crenças e práticas coletivas “com uma autoridade especial”36. Portanto, o
argumento geral diz respeito ao desenvolvimento coletivo e sócio-histórico mediante o
qual o núcleo moderno do sagrado passa a ser o livre pensamento e transforma a
autonomia e a aceitação esclarecida como base da autoridade. Ao mesmo tempo – em
uma abordagem que é racionalista e, de certo modo, protestante – o ritual e o simbolismo
são considerados “superficiais”, um mero “aparato externo” da religião. Isso é diferente
de sua abordagem com caráter mais católico que emerge no decorrer de sua jornada em
direção às Formas Elementares. Mas não é completamente diferente. Na conclusão
32 DURKHEIM, L’Individualisme et les Intellectuels, p. 13(Página 13 do presente
volume). 33 Ibid. 34 Ibid. 35 Ibid., p. 10. 36 Ibid.
daquele trabalho, não há ritual ou simbolismo capazes de superar a crise – assim como
no presente – de um profundo mal-estar moral. O que é exigido para essa renovação moral
é uma nova onda de idealismo acompanhada de um novo momento de efervescência, tal
qual ocorreu na Revolução37. Portanto, e bastante instrutivo pensar sobre a efervescência
ao retornar para um ensaio primordialmente preocupada com o sagrado moderno, e escrito
em meio a um extraordinário turbilhão coletivo.
É um equívoco apresentar Durkheim como um completo ingênuo no que se refere
à efervescência, como se ignorasse seus perigos. Isso releva a história dessa ideia em sua
obra e os diferentes usos que faz dela38. Em suma, no contexto que até aqui aquilo que
apareceu como o primeiro uso registrado não apenas dessa ideia, mas do próprio termo,
figura sem dúvida com um caráter negativo. Em uma aula ministrada em 1896, na qual
ele critica um difundido mal-estar social, ele rejeita o retorno à religião como uma cura
pra isso e em vez disso concebe os novos grupos ocupacionais como a porta de entrada
para “um estado de efervescência desregulado e de agitação maníaca”39. No ano seguinte,
em sua conclusão a O Suicídio, ele mais uma vez rejeita o retorno à religião e mais uma
vez se refere aos grupos ocupacionais para enfrentar o que em sua tese ele chamou de
estado de anomia, mas que agora ele descreve em termos de “forças superexcitadas” de
uma “efervescência pouco saudável”40. Não obstante, uma nota no capítulo sobre o
altruísmo implica uma ideia diferente sobre a efervescência, ao descrever a Revolução
como uma época de “lutas internas e de entusiasmo coletivo”41. Essa não é uma referência
puramente negativa, mas é ambivalente e causa perplexidade, sobretudo em virtude do
fato de que o surgimento da ética humanista liberal demandou um banho de sangue. Além
disso, é uma versão anterior de uma passagem d’As Formas sobre “as muitas cenas,
sublimes ou selvagens, da Revolução Francesa” e como “sob a influência da exaltação
geral, o mais medíocre ou o mais inofensivo burguês pode ser transformado, ou em herói
ou em assassino” 42. O ensaio sobre o Caso Dreyfus pressupõe uma ideia diferente, ainda
que não completamente divorciada daquela, em uma observação a respeito da “profunda
37 DURKHEIM, Émile, Les formes élémentaires de la vie religieuse le système totémique
en Australie, Paris: F. Alcan, 1912, p. 610–11. 38 Sobre a trajetória do conceito de efervescência em Durkheim, veja-se MILLER, A
Durkheimian Quest: Solidarity and the Sacred, p. 75–79. 39 DURKHEIM, Émile; MAUSS, Marcel, Le socialisme; sa définition, ses débuts, la
doctrine saint-simonienne,, Paris,: F. Alcan, 1928, p. 297. 40 DURKHEIM, Le suicide étude de sociologie, p. 408, 422. 41 Ibid., p. 247 nota 1. 42 DURKHEIM, Les formes élémentaires de la vie religieuse le système totémique en
Australie, p. 301.
fé” ou aos “generosos entusiasmos” que moveram as pessoas de forma irresistível às
“grandes reações” ou às “grandes revoluções”43. Mas sua principal e mais óbvia
referência à efervescência pressupõe sua preocupação com os perigos da perda de ilusões
e com a degenerescência do entusiasmo em desencantamento – uma preocupação já
explicitada em um artigo no ano anterior, em que manifestava sua preocupação de que as
elevadas esperanças de uma onda de “entusiasmo” fosse logo seguida por um amargo
desencantamento44. Um eco ulterior dessa preocupação é o reconhecimento, n’As
Formas, de que as esperanças da Revolução foram esvaziadas. Mas ele é vago a respeito
da explicação, e sobre porque a história poderia não repetir-se em outro ciclo que iria de
um breve momento visionário, colapsando em um prolongado desespero. Entretanto, uma
explicação pode ser encontrada nas aulas ministradas por volta de 1905 e na época em
que estava redigindo a primeira versão d’As Formas: “a efervescência revolucionária foi
imensamente criativa para produzir novas ideias, mas a Revolução não soube criar órgão
que pudessem dar vida e atualizar essas ideias”45.
Não há muita dúvida de que aquilo que ele tinha em mente envolvia a necessidade
de uma nova organização de grupos intermediários ocupacionais. Sua campanha em
defesa disso começou muito cedo em sua carreira, foi desenvolvida de várias formas e
exerceu um impacto público quando de sua defesa no prefácio da nova edição de sua tese,
de 1902. Mas durante todo o tempo seu objetivo fundamental era atacar, enquanto
principal fonte de mal-estar e principal obstáculo para reformas, um individualismo
economicista e auto-interessado. Consequentemente, quando em seu ensaio sobre o Caso
Dreyfus ele se refere a “nossos adversários”, é importante perguntar quem ele identifica
como tal, mas também quais nós identificaríamos atualmente como sendo as principais
forças que bloqueiam nosso caminho para uma sociedade de pessoas. Considerando toda
a história do Século XX, é compreensível que esse ensaio tenha se preocupado
especialmente com a emergência de ideologias radicalmente anti-igualitárias, anti-
racionalistas e autoritárias. Mas à luz dessa mesma história, e voltando a sua crítica ao
economicismo sórdido, podemos considerar que ele subestimou a resistência e a
durabilidade dessa força, descrita como “um inimigo que está morrendo tranquilamente
43 DURKHEIM, L’Individualisme et les Intellectuels, p. 13. 44 DURKHEIM, Émile, Sur l’œuvre de Taine, Revue blanche, v. 13/1, p. 287–291/171–
177, 1897, p. 289. (Reproduzido em DURKHEIM, Émile; KARADY, Victor, Textes, Paris: les
Éditions de Minuit, 1975. 45 DURKHEIM, Émile, L’Évolution pédagogique en France : de la renaissance à nos
jours, Paris: Felix Alcan, 1938, p. 169.
de morte natural”46. Pelo contrário, sob a égide do “neo-liberalismo”, nos últimos trinta
anos ela adquiriu um novo sopro de vida. De fato, ainda que as ameaças das ideologias
autoritárias, reacionárias e racistas ainda não tenham desaparecido, a atenção ao papel do
neoliberalismo é essencial para tentar, nos dias de hoje, atualizar esse ensaio sobre o Caso
Dreyfus e desenvolver uma abordagem durkheimiana a respeito da moderna crise que
está em curso.
Algumas Considerações Finais
Até mesmo, ou especialmente, levando em consideração algumas diferenças entre
os diferentes locais, é possível identificar uma crise com ramificações globais, e descrever
sua natureza do seguinte modo. Uma característica central daquilo que normalmente é
chamado de período “neoliberal” consiste em uma tendência em sempre ampliar a
desigualdade e em uma massiva concentração de riqueza e poder nas mãos de poucos.
Com efeito, trata-se de um retorno às desigualdades do antigo regime e é algo que está
em contradição com os ideais da era moderna.
Ao explorar as formas de desenvolver as possíveis contribuições de Durkheim
para compreender a crise, é importante investigar em volta do cenário sociológico de sua
tese. Isso ajuda a identificar como processos neoliberais reproduzem uma divisão do
trabalho anômica/forçada e engendra novas formas de abismos estruturais que eram
características do Antigo Regime, dando origem a um mundo de senhores e servos,
minando as sociedades de pessoas moralmente iguais. Todavia, isso se passa em lugares
em que há, ao menos do ponto de vista formal, direitos e um aparato simbólico-ritual da
democracia. Por isso também é importante retornar ao ensaio sobre o Caso Dreyfus, com
sua preocupação com as consequências daqueles vinte anos de uma alienante estagnação
da vida da República. Há uma similaridade com o que se passou nos últimos trinta anos
e que pode ser descrito como o resultado das sórdidas politicas de um economicismo
sórdido. O negócio do neoliberalismo é privatizar o estado em proveito da ampliação dos
lucros dos mais ricos, quebrar o movimento trabalhista, desempoderar os cidadãos e
dissolver as reformas sociais construídas pela luta, sacrifícios e experiência de gerações.
Como consequência desse processo inicial – tal como Durkheim temia pelo núcleo da
ética da pessoa, sem que houvesse todo um desenvolvimento progressivo – tem ocorrido
uma reação destrutiva, em que o desmantelamento daquelas reformas é acompanhado
46 DURKHEIM, L’Individualisme et les Intellectuels, p. 8.
pela subversão aos direitos básicos. Ainda que isso seja feito por baixo dos panos, sem
que se abrace abertamente ideologias anti-democráticas e autoritárias, todo esse processo
prepara o terreno para isso, na medida em que ele envolve o abuso e a desumanização de
todo um grupo de categorias de pessoas, sem falar do abuso e desumanização de toda a
“classe baixa”. Entretanto, o que poderia oferecer alguma esperança, enquanto uma saída
durkheimiana para essa crise?
Uma razão pela qual Durkheim sentiu-se chocado pelo Caso foi sua crença de que
a ética da pessoa já teria sido suficientemente incorporada na sociedade e na cultura
francesas, e é por isso que ele se refere a isso como “nosso patrimônio moral”. Contudo,
por um lado sua visão também era a de que aquela ética possuía suas raízes em todo o
processo de longo prazo de constituição do mundo moderno. Por outro, ele sentia-se
cético em relação à possibilidade de emergência de um estado global e, em vez disso,
contemplava a ideia de que poderiam existir diferentes sociedades de pessoas, que
desenvolveriam, no contexto de suas especificidades históricas e culturais, com seus
desafios e circunstância, suas próprias versos de um ideal humano universalizável. Isso é
algo bastante presente em sua campanha pela organização de novos grupos
intermediários, com a finalidade de voltar a empoderar os cidadãos e das continuidade
com as reformas que possibilitassem traduzir o ideal em realidade. É algo pouco realista
simplesmente apelar a uma ética do indivíduo globalizante como uma forma de defesa
contra as injustiças e desumanidades de economias neoliberais globalizantes. O que é
necessário é uma organização e um desenvolvimento de uma ética que pressuponha sua
tradução concreta em sociedades de pessoas com um caráter local, e que possuam força.
Mas um problema geral para Durkheim, em sua campanha para promover essa nova
forma de organização, seria definir de que modo isso poderia realmente se forma, e
provavelmente esse foi um fator determinante para sua mudança de atitude para com a
efervescência. Entretanto, uma importante observação a ser feita diz respeito à
necessidade de uma combinação entre organização e efervescência. As visões sobre a boa
sociedade não irão a lugar algum sem alguma forma de organização que promova
reformas, mas o ímpeto para realizar essas reformas depende da pressões geradas por uma
efervescente onda de idealismo – uma agitação enlouquecida, um banho de sangue, uma
arma de reacionismo e não simplesmente uma revolução, uma receita para perder ilusões
e para o desespero – a aposta durkheimiana, no fim das contas, é a de que os obstáculos
à transformação social só podem ser superados pelas energias coletivas extraordinárias
daquilo que ele passou a enfatizar cada vez mais como uma efervescência criativa.
Uma última ideia diz respeito a como isso afeta o argumento deste ensaio a
respeito de adiar a reforma e concentrar-se, naquele momento de crise, em defender
valores básicos. Ao contrário de sua recomendação, se algum novo surto de efervescência
vier para desobstruir os atuais entraves no caminho para a constituição de uma sociedade
de pessoas é necessário preparar o terreno ao menos com alguma reflexão sobre como
organizar a reforma. Mas também, e não menos importante, é preciso manter vivo o
gérmen de idealismo, seja pela arte, pela religião ou por qualquer outro meio que se
preocupe em pensar a boa sociedade.