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R. COSTAC

O CÍRCULO DE PEDRA 01

As LENDAS VIVEMNovo Século

2012

Dedico essa obraA Margareth pela inspiração e apoio em todos os momentos. Aos meus filhos, Flavio e Rafael, por um dia terem ouvido minhas histórias.A Gabriela, por viajar comigo em um mundo de fantasia. Aos amigos Kenya Sato e Wanderley Machado, por seguirem comigo nessa fascinante jornada que é a literatura.

Prólogo

A caminhonete vermelha rodava pelas ruas quase desertas da região portuária. O lugar era cercado por enormes armazéns abarrotados de mercadorias que, em algum momento, seriam

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embarcadas em grandes navios cargueiros. O veículo reduziu a velocidade até estacionar próximo ao único bar-restaurante das redondezas.Era véspera de um feriado prolongado e nuvens escuras prenunciavam um dia chuvoso.Após descer da antiga pickup reformada, era um modelo Chevy fabricado em 1954, o motorista teve problemas para travar a porta, era sempre assim, correr para escapar das primeiras gotas de chuva e se esconder no bar que acabara de abrir.O estabelecimento tinha janelas largas envidraçadas que expunham a rua vazia. O movimento seria fraco naquele dia com os trabalhadores do porto fugindo para o lazer e o descanso de três dias.O homem escolheu uma mesa junto a maior janela até que alguém resolvesse vir atendê-lo. O bar estava quieto, sem pressa e sem clientes. O único freqüentador olhou para as garrafas enfileiradas na prateleira atrás do balcão. Decidiu não beber nada que o deixasse tonto naquela manhã. Pediria um café bem forte a fim de espantar o tédio e rever algumas anotações para o seu próximo livro.Seus olhos escuros avaliavam o ambiente, nunca havia estado ali, todavia, era um local que oferecia o que ele mais queria naquele instante: sossego para relaxar.A chuva apertou e os pingos repicavam muitas vezes na lataria do robusto Chevy 1954.

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O escritor solitário não tinha pressa. Pouco se importava se demoravam a vir à sua mesa para fazer o pedido. O seu maior comprometimento era em repensar sobre o que havia se passado com ele uma hora atrás: a discussão que teve com o seu editor, e que o deixara colérico. As insistentes propostas de inventar histórias para fazer seu livro vender mais eram uma grande afronta à seriedade do seu trabalho e um desrespeito à sua dignidade. Nunca antes havia usado de artimanhas para que suas obras tivessem aceitação do público e da crítica, e não seria agora que lançaria mão de ardis para enganar seus leitores com o intuito de vender seus livros. Estava convencido de que a ganância havia transformado o bom e honesto editor em um maníaco inconseqüente que agora só pensava em ganhar dinheiro com o mercado literário.A sua última publicação Fábulas e Mitos, o que há de verdade neles, havia atingido mais de quinhentos mil exemplares vendidos pelo mundo afora. Desse modo, ele havia conquistado respeito e admiração.Era um pesquisador ferrenho e dedicado, todas as suas teorias tinham um cunho científico e estavam bem amarradas e embasadas. Quando não havia respaldo para levar em frente a sua investigação, decidia, então, abandonar meses de estudos e sacrifício com a mesma facilidade que se amassa uma folha de papel rasurada e a joga em um cesto de lixo.

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A chuva se avolumava lá fora e as calhas do armazém em frente ao bar expulsavam jorros de água na calçada.As sarjetas formavam pequenos rios que desciam a rua na direção do porto.Ele cerrou os olhos para reposicionar as idéias e pensar sobre o que deveria fazer a partir dali. Estava preso a um maldito contrato que exigia dele mais quatro publicações; caso contrário, a multa rescisória o arruinaria. Obviamente, nada o obrigava a fraudar o conteúdo de sua obra ainda inédita. Contudo, a pressão exercida pelo seu algoz editorial abalava a sua serenidade.Quando seus olhos voltaram a se abrir, o aborrecido escritor se deparou com a presença de uma pessoa de pé ao seu lado. Num primeiro momento imaginou ser o empregado do bar que, finalmente, achou por bem vir atender a única mesa ocupada. Não era.Junto dele estava um homem muito idoso que o observava com algum interesse.- Me permite desfrutar de sua companhia? - pediu o sujeito de idade bastante avançada.Não obstante o dia chuvoso e calorento, o velho vestia uma camisa cáqui de mangas compridas abotoadas no punho. Seu olhar era jovial, embora o seu rosto trouxesse as marcas rugosas de muitas décadas vividas.O escritor resistiu em aceitar dividir sua mesa com alguém, principalmente um estranho. Preferia ficar sozinho e decidir o que fazer a respeito da questão incômoda entre ele e seu inescrupuloso editor. Deu-se por vencido e sua

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educação falou por ele, gesticulando meio a contragosto para que o ancião puxasse uma cadeira e se sentasse.- Não há muito que fazer por aqui a não ser observar, entre um e outro gole de café, a chuva caindo na rua. - O velhote puxou assunto, desejando mostrar-se afável.O escritor esfregou as mãos com declarada impaciência e comentou.- Ouvi dizer que chove durante todo o feriado. — E viu um cão do outro lado da rua encolhendo-se na enxurrada, o pelo encharcado, a expressão triste e assustada.— Eu o conheço — afirmou o velho. - Você escreve sobre lendas e coisas do tipo. Li toda a sua obra e, obviamente, aprecio o que faz. Desde bem pequeno me interessei por histórias fora do comum. - E acrescentou, demonstrando conhecer bem sobre o seu interlocutor: — Você assina como L. A. S. Dypes...— É o meu nome: Lucad Anacleto Sidromus Dypes. Ficaria muito extenso na capa de um livro - explicou, daí olhou pela janela, o cão havia desaparecido.— Você deve ter vivido experiências emocionantes em suas viagens pelo mundo. Testemunhado coisas que a maioria das pessoas nem sonharia em ver.Lucad apenas assentiu com a cabeça. Estava impaciente com a intromissão educada do homem diante dele. Pensou em arranjar uma desculpa, se levantar e ir embora. Mas não houve

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tempo, pois o velho o interpelou com uma pergunta aparentemente óbvia.— Gosta de ouvir histórias, senhor Dypes?— Eu vivo delas - respondeu secamente.Lucad notou pela expressão do velhote que a resposta não foi exatamente a que ele esperava ouvir. Havia algo nos olhos daquele indivíduo, um segredo, um enigma aguardando para ser desvelado. Lucad sabia disso. Tinha muita experiência em entrevistar pessoas e conseguia identificar uma história verdadeira dentre cen-tenas de outras contadas por mentirosos ávidos por fama. Imediatamente corrigiu o que havia dito.— Me interesso por boas histórias, desde que sejam verdadeiras. E acho que o senhor tem algo muito interessante guardado em suas lembranças. O que me diz?— Você é um rapaz muito esperto, Lucad. Mas não consigo falar por muito tempo sem tomar algo. E o que tenho para lhe revelar é uma história muito, mas muito longa. Está mesmo disposto a escutar um velho carcomido pelos anos?Pediram a mesma coisa: grandes xícaras de café preto e sanduíches de queijo e presunto.A chuva que persistia fustigando, inclemente, não dava sinais de cessar.O ancião prendeu a xícara com as suas mãos enrugadas, bebericou o café quente, e começou a narrar a sua surpreendente história.

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Divina Providência

Foi numa tarde de maio de 1539.A Nau Divina Providência já navegava há quarenta e dois dias cruzando o imenso oceano Atlântico rumo ao novo continente conhecido como América do Sul.O mar se mostrava calmo naquele dia. O vento que soprava de nordeste para sudoeste estufava as velas distendidas como o tórax de gigantes, fazendo com que a embarcação de mais de setecentas toneladas atingisse a velocidade de onze nós com facilidade, cortando o oceano impetuosamente rumo ao seu destino. A nau por-tuguesa não tinha a mesma navegabilidade das ágeis caravelas, mas era ideal para o fim a que se destinava: transportar grande quantidade de carga e passageiros que deveriam desembarcar no auspicioso e misteriosamente fascinante Novo Mundo.O entardecer conferiu um tom dourado às velas abertas e as primeiras estrelas despontavam timidamente no leste, anunciando a chegada de outra noite que tudo levava a crer ser marcada pela quietude.Alguns tripulantes, esparramados pelo convés, descansavam preguiçosamente sem se darem conta do que estava para acontecer naquele dia fatídico.Uma figura baixa e atarracada usando longas costeletas grisalhas dirigia-se rapidamente em direção ao castelo da popa, seu andar era

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cambaleante por ter as pernas arqueadas, o convés de tábuas grossas rangia sob seus pés.A cabine do capitão Gaspar Manuel dos Reis era pequena, mas de extremo bom gosto para os padrões e as condições dos navios onde a falta de higiene era comum; ratos e baratas infestavam os porões, dividindo o espaço e a comida com a tripulação. Muitos adoeciam e até morriam durante as viagens que, de tão longas, pareciam intermináveis.Uma mesa e cadeiras de carvalho compunham o ambiente sóbrio da cabine de comando. Duas lamparinas pendiam do teto e dançavam ritmadas ao balanço provocado pelas ondas do mar, e uma janelinha deixava entrar os últimos raios de sol iluminando fracamente o interior da cabine.O capitão Gaspar Manuel já passava dos quarenta anos, sua barba bem aparada e suas vestes cobertas por um gibão que ia até a altura dos joelhos lhe conferiam uma aparência digna de sua posição de liderança.- Com sua licença, caro senhor - disse o Mestre Pedro Martins quando adentrou o aposento e fechou a porta atrás de si, suas costeletas pareciam se afastar para cima quando ele fez menção de continuar falando, no entanto, foi interrompido.-Algum problema, marujo? - perguntou o comandante ao erguer os olhos semi- cerrados para o seu comandado, deixando de lado suas anotações no diário de bordo.

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- Ao contrário, capitão — respondeu animadamente, a voz dísfona. — As notícias são favoráveis. Devemos avistar a terra daqui a três dias, se não enfrentarmos nenhuma calmaria.A boa informação satisfez o capitão, pois sendo ele um homem de confiança da Coroa Portuguesa, teve a importante incumbência de conduzir com segurança os fidalgos, os artífices e os demais passageiros que deveriam compor a administração e exploração das terras descobertas há quatro décadas. Portugal iniciava um difícil desafio de colonização dos seus territórios além-mar recobertos por léguas e mais léguas de florestas desconhecidas e habitadas por gente de pele morena e animais exóticos. Um imenso continente a desbravar.- Libere um pouco de vinho e biscoitos para a tripulação - ordenou o capitão, voltando o olhar através da pequena janela para a esteira de espuma formada pela passagem do Divina Providência. — Preciso de todos os homens bem-dispostos nos próximos dias.Pedro fez um aceno com a cabeça concordando e seguiu rumo ao depósito de mantimentos. A chegada da noite escurecia o horizonte.Era tema corriqueiro das conversas a bordo, as lendas fantásticas contadas como verdadeiras entre os homens que passavam a maior parte de suas vidas no mar ou nos portos, em tavernas mal iluminadas freqüentadas por gente de todo tipo. Afinal, as superstições eram bastante comuns aos homens do mar que invariavelmente navegavam por lugares desconhecidos. Essas

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histórias eram regadas à cerveja e música, por vezes rompendo a madrugada e indo até o raiar do dia. Sempre havia alguém que conheceu um pobre diabo que por pouco não escapou de ser devorado por algum monstro marinho surgido repentinamente no meio de uma tempestade. Relatos de ruídos estranhos no casco anunciavam o aparecimento de serpentes gigantescas que, ao se enroscarem na embarcação, arrastavam-na e a todos a bordo para o fundo, deixando apenas destroços como vestígio, ou nem isso. Outras histórias descreviam polvos descomunais com tentáculos tão longos como grandes mastros e que, desferindo um abraço fatal, destroçavam qualquer navio em mil pedaços. O fato é que muitos juravam ter visto criaturas grotescas, demônios e bestas de todas as formas e tamanhos ameaçando suas vidas miseráveis a cada viagem. Viam, ou imaginavam ter visto, olhos cintilando no meio do oceano escuro, espreitando e aguardando o melhor momento para arrastar os pobres infelizes para as profundezas do inferno. Essas e muitas outras lendas povoavam as mentes e as conversas daqueles que passavam meses ou mesmo anos entre céu e mar.No convés, três dos marinheiros que descansavam de seu turno depois de um árduo dia de trabalho, entretinham-se falando sobre um dos assuntos preferidos.Apoiado na amurada estava Diogo, um experiente marinheiro, que apesar dos seus

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cinqüenta e tantos anos, ainda possuía o vigor e a agilidade de um jovem grumete. Seu rosto coberto por uma barba espessa aumentava ainda mais a severidade de suas palavras. Profundas cicatrizes nos braços curtidos pelo sol eram testemunhas de uma vida rude que levava desde os treze anos de idade. Comentava-se que ele era um homem de mau agouro como um corvo que surge pela janela em meio a um temporal. Falava de um jeito como se as desgraças flutuassem sobre a cabeça dos incautos. Um profeta do infortúnio.- Essas águas são amaldiçoadas - afirmou ele com dramaticidade. — Essa calma aparente pode ser traiçoeira. Acreditem!- Estamos quase chegando, mais alguns dias e pisaremos em solo firme. — Tentou tranquilizá-lo seu companheiro Antonio, um jovem marinheiro alto e magricelo, com pouca experiência na arte da navegação e que não tinha muita convicção em suas próprias palavras.- Além disso, o céu está limpo e duvido que tenhamos alguma mudança no tempo antes de atracarmos - completou Felício, um terceiro marujo de rosto redondo e ar bonachão, apontando para o céu negro e estrelado.- Pois aí é que vocês se enganam, amigos — persistiu Diogo, olhando enigmaticamente um a um, Antonio e depois Felício. - As desgraças também acontecem em dias como esse. O tempo muda de repente, o vento deixa de soprar e algo terrível acaba com nossos sonhos e nossas vidas.

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Todos foram interrompidos pela voz disfônica de mestre Pedro.- Comemorem! - gritou ele. - O capitão mandou distribuir vinho e biscoitos para festejar o fim de nossa viagem que se aproxima. Comam e bebam, mas mantenham-se sóbrios ou serão pendurados no mastro grande até o fim da viagem.Disse isso e ergueu o primeiro copo de vinho, deixando escorrer pelos cantos da boca a bebida preciosa. A aprovação foi geral e a marinhagem se aproximou do tonei, disputando, com algum rebuliço, a sua parte.- Viu?! - disse Antonio, o marujo magricelo a Diogo. - Nossa sorte está mesmo mudando, para melhor.- Eu diria que para muito melhor - acrescentou Felício deliciando-se com a visão das canecas sendo enchidas.— O diabo é astucioso e enganador — retrucou Diogo, seu olhar se apertou ainda mais. — Primeiro ele nos dá migalhas e nos deixa felizes e desatentos, mas logo se aproveita de nossa ingenuidade e suga nossas almas para que padeçam no seu mundo infernal por toda a eternidade.Uma hora após o modesto banquete, o silêncio voltou a reinar quebrado apenas pelo ranger dos cabos do velame ao roçarem nas malaguetas e ferros e pelas ondas que batiam incessantemente no casco. A noite, já absoluta, cobria com seu escuro véu a tudo e a todos.

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O cansaço fez com que a maioria dos tripulantes aqui e ali fosse mergulhando em um sono pesado, improvisando rolos de cordas como travesseiros e panos imundos como aconchegantes cobertores que os protegiam da fria brisa do mar.Antonio, o jovem marujo magricelo, deitou-se próximo ao castelo de popa e pôs-se a observar o céu perfurado de estrelas. Ele notou que a lua que acabara de nascer lançava o seu brilho de mármore projetando compridas sombras e formando imagens indefinidas pelo convés. As palavras de Diogo arranhavam a sua mente, mas aos poucos, vencido pela preguiça, adormeceu embalado pelo suave balanço do mar como um bebê sob o olhar materno.O enigmático marujo Diogo, debruçado na amurada, tentava sem sucesso enxergar através da escuridão que enegrecia totalmente o horizonte. Ele sabia que estavam navegando numa área onde se registravam vários naufrágios sem uma explicação satisfatória. O sono não vinha e Diogo tentou se distrair fixando o olhar na estrada de luz que o reflexo da Lua formava no oceano. Estava quase se convencendo de que naquela noite teria um pouco de paz e sossego, contrariando as suas mais sombrias expectativas.Do interior de sua cabine o capitão Gaspar Manuel revisava, juntamente com o seu piloto, Fernando de Souza Bento, os últimos cálculos realizados com o auxílio da bússola e dos instrumentos de navegação, concluindo que a rota que haviam traçado estava correta.

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O piloto Fernando, de cabelos louros e pele clara ruborizada pelo sol, aparentava não ter mais do que trinta e cinco anos, acumulava um forte conhecimento técnico marítimo que conquistou a confiança de seu capitão e de toda a tripulação. Porém, sua maior experiência era as rotas do oriente onde havia passado os últimos oito anos costeando a África quando rumava para os entrepostos comerciais na Índia.- Perfeito, capitão! - afirmou Fernando com veemência. - Há muito não fazíamos uma viagem tão bem-sucedida, pelo que me recordo, nem mesmo em nossas empreitadas pela costa africana.— Fora as calmarias, as correções de traçado no percurso e as brigas a bordo, os resultados foram positivos — acrescentou o capitão com palavras bem-humoradas. - Mas só me darei por satisfeito quando deixarmos essa gente da comitiva da Coroa em terra firme. As recomendações foram muitas para que eles tenham o melhor tratamento ao longo dessa viagem — concluiu apoiando os cotovelos sobre a mesa e acarinhando com as pontas dos dedos a barba que quase lhe escondia o rosto.Lá fora, Diogo o marinheiro, inclinou-se sobre a amurada ao perceber que algo estranho estava ocorrendo. Sem que houvesse algum motivo aparente, alguma coisa sacudiu o barco e as águas se tornaram mais encrespadas. Voltando-se e percorrendo rapidamente o velame com o olhar, não notou nenhuma mudança na direção ou velocidade dos ventos.

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— Droga, está acontecendo! — praguejou Diogo disparando em direção à cabine do capitão.Diogo abriu a porta com violência e gritou com nervosismo.— Os malditos demônios vieram buscar nossas almas, senhores!— O que deu em você, marujo? — disse exaltado o piloto Fernando em tom de repreensão, imaginando que uns goles a mais do vinho tinham afetado o seu juízo.— As águas, venham ver as águas — insistiu Diogo voltando para o convés.O capitão e o piloto seguiram-no ainda sem entender o que acontecia. Mas ao olharem o mar a sua volta compreenderam que algo estava muito errado.— Estamos fora de rota, senhor — disse o piloto ao observar a posição das estrelas, em seguida subiu as escadas que davam na parte superior do castelo de popa onde se localizava a roda do leme.— O diabo nos aguarda para dar o seu abraço mortal! - dramatizou Diogo com voz profética e os olhos fixos no mar cada vez mais agitado.— Todo o leme a bombordo — ordenou o piloto ao timoneiro.— Já virei todo o timão, senhor, mas estamos sendo arrastados para oeste.Fernando verificou as velas sem se dar conta de por que o Divina Providêncianão se deslocava para o sudoeste.

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— Mantenha o leme todo a bombordo - disse o piloto enquanto descia as escadas e procurava o capitão no meio da escuridão.Alguns passageiros que perceberam a agitação e a gritaria saíram de suas cabines exigindo explicações sobre o que ocorria. O capitão procurou tranquilizá-los pedindo que voltassem aos seus aposentos. Disse que estavam atravessando um encontro de correntes marinhas e que logo tudo estaria bem. Ele mesmo não acreditava no que estava dizendo.— O leme não responde, capitão — disse ofegante o piloto enquanto olhava as águas ainda mais encrespadas a sua volta. — Estamos sendo arrastados por uma força invisível.Pela cabeça do capitão rodopiavam mil pensamentos. Aquilo não devia estar acon-tecendo. Havia mulheres e crianças a bordo. Ele precisava fazer alguma coisa. Mas o quê?— Baixem a âncora! — gritou o capitão numa atitude desesperada. — Tentaremos roçar o fundo para diminuir a velocidade. Se houver fundo — pensou.A âncora foi lançada, mas a velocidade só parecia aumentar. A luta travada pelos ventos contra as velas e a forte corrente já começava a tombar a Nau, fazendo com que os tripulantes e os passageiros corressem para o convés, aumentando a confusão que já se instalara.Um dos líderes da comitiva que iria desembarcar no Novo Mundo agarrou o capitão pelo braço e sem ter noção do que estava se passando perguntou com voz trêmula:

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— O que se passa? Os passageiros estão apavorados. - O capitão notou que o homem atracado ao seu braço era o vigário que fora designado para dirigir uma paróquia em um dos povoados da novíssima colônia portuguesa.— Eu não sei — respondeu friamente com os olhos fixos na escuridão da noite. - Só nos resta esperar. — Então as palavras saíram lúgubres de sua boca. — Rogue por nossas vidas, vigário, se não for o bastante, implore a Deus pelas almas dessa pobre gente.Nenhum dos trezentos e vinte e dois tripulantes e passageiros do Divina Providência haviam passado por algo semelhante. A velocidade ultrapassara os vinte nós naquele momento, ameaçando romper a estrutura da nau de grande tonelagem.— Senhor, temos que alinhar o curso do navio ao arrasto ou iremos a pique — avisou o piloto Fernando como sendo um ultimato.— Então faça rápido, piloto - concordou refletindo sobre o que devia ter feito de errado para se encontrar naquela situação.O breu da noite, pouco iluminado pelas estrelas e pela Lua que aos poucos ganhava altura, dificultava as ações dos tripulantes que se apinhavam no convés aguardando uma ordem milagrosa do capitão como se ele pudesse salvá-los. Mas a ordem nunca vinha.— Terra, terra à vista! - berrou a todos pulmões um marinheiro que se postava no cesto da gávea localizado no mastro principal, e que observava

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de uma privilegiada perspectiva o tumulto lá embaixo.— Onde você vê terra, marujo? — gritou o capitão postando as mãos junto a boca para melhor se fazer ouvir.— Bem à frente, senhor!— Descreva o que consegue avistar.- Ainda não está bem visí... - ele interrompeu o que ia dizendo com uma breve pausa, procurando identificar melhor, e emendou: - Rochedos! Agora posso ver as ondas se quebrando neles! — e enchendo os pulmões novamente, disparou: - Vamos bater! Vamos bater!Do convés era possível avistar a muralha de rochas que se erguia pela frente. Os gritos desesperados do marinheiro levaram pânico a todos; alguns se jogavam nas águas revoltas tentando evitar o choque inevitável; famílias inteiras se abraçavam sem saber o que fazer; outros se agarravam ao comandante do Divina Providência implorando para que suas vidas fossem salvas. Pela primeira vez o capitão Gaspar Manuel dos Reis sentiu que a situação fugira completamente de seu controle.Àquela altura, se tornava bem nítida a visão da fúria do mar se arrebentando contra os rochedos que eram mais altos do que o cesto da gávea, agora abandonado pelo marinheiro que presenciou tudo desde o começo.O capitão se esforçava para localizar, naquela muralha inexpugnável, um ponto onde pudessem se agarrar e assim tentar salvar o maior número

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de vidas, mas era um paredão muito íngreme e que parecia crescer a cada segundo à medida que a nau se aproximava atingindo perigosamente a velocidade de trinta nós. A estrutura de madeira do navio começava a se desmantelar produzindo estalos por toda parte e que só aumentavam o pavor generalizado.Por um breve momento, o capitão observou toda a desordem como se esta passasse lentamente diante dos seus olhos: as pessoas correndo de um lado para outro, uns caindo nà sua frente... e os gritos, muitos gritos. Os sons lhe eram quase imperceptíveis e toda a sua vida foi lembrada numa pequena fração de tempo.O impacto violento interrompeu seus pensamentos, despertando-o de seu transe e arremessando-o a longa distância. Os estampidos de madeiras se quebrando se misturavam aos gritos agonizantes e ao estrondo ensurdecedor das ondas explodindo nos rochedos.O capitão já não sabia direito onde estava, procurava agarrar-se com todas as suas forças a um pedaço da amurada que se partiu, enquanto via o mastro principal tombar trazendo na sua queda vários cabos e amarras que iam sendo tragados pelas ondas.A violência das águas atirava pessoas e pedaços da embarcação contra os rochedos. Não restava mais nada a fazer. Ele mesmo foi jogado violentamente contra o paredão, ferindo o ombro e o joelho esquerdos. Precisava sair dali ou morreria despedaçado.

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Tenho que fugir desse inferno. Talvez se nadar para o outro lado eu encontre uma saída - pensou.Numa última olhada, ainda pôde ver o que fora o Divina Providência, agora transformado em um monte de destroços atirados repetidamente contra o gigantesco paredão.Seu raciocínio era confuso. Ele nadou e lutou contra a morte por muito tempo. O cansaço tomava conta do seu corpo e todos os seus músculos doíam. O ar parecia não querer entrar mais em seu peito. Quando pensava em desistir, avistou uma faixa de areia que reavivou as suas forças.Preciso conseguir — continuou com aquele pensamento obstinado, lutando e tentando assim não desistir.Então nadou com maior ímpeto mesmo que as águas enfurecidas continuassem batendo no rosto, dificultando muito mais a sua respiração ofegante. Com muito esforço conseguiu sair da água arrastando-se pela areia de uma pequena praia, os dedos enterrando-se na areia úmida e o joelho ardendo com o ferimento. Procurou, com muita dificuldade, levantar-se, mas foi superado pela exaustão e caiu desfalecido. O vaivém das ondas ainda molhava os seus pés, entretanto, ele já não respondia mais a nenhum estímulo.Horas haviam transcorrido quando o capitão abriu os olhos lentamente e a primeira coisa que viu foi a Lua que ia alta no céu tomado de estrelas. Ele sentou-se e olhou ao seu redor, conseguindo discernir apenas umas poucas

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dezenas de metros, até onde sua visão alcançava, os restos do naufrágio espalhados pela praia. Alguns corpos inertes despertavam sua dúvida se jaziam mortos ou somente permaneciam desacordados pelo extremo esforço na tentativa de sobreviverem.O capitão Gaspar Manuel levantou-se claudicante buscando se orientar melhor, e caminhou para o interior do terreno desconhecido, e que tudo indicava ser uma ilha não identificada em suas cartas náuticas. Havia pouca esperança de conseguir ajuda naquele fim de mundo, mas ele não tinha outra alternativa e resolveu prosseguir. O luar clareava com palidez o caminho à sua frente confundindo a sua visão embaçada pelo castigo que lhe foi imposto. O marulhar das ondas rosnava atrás dele, e se distanciava, abafado pela sinistra quietude do interior daquela terra estranha.O silêncio foi quebrado por um grito apavorante que deveria vir de onde o seu nariz apontava. Ele correu e viu mais adiante uma intensa luz emanando do que poderia ser a entrada de uma caverna. Seu impulso de aventureiro íez com que ele ali entrasse, apoiando-se nas paredes rochosas, sentindo estranhamente uma forte pressão nos ouvidos, que reduziu sensivelmente sua audição. Passo a passo, prosseguiu na direção da luz que lhe era mais e mais brilhante. Foi naquele instante que o capitão ficou estarrecido ao deparar-se com aquela coisa. Seus olhos se arregalaram diante da vtsão aterradora.

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Algo que ele jamais esqueceria enquanto vivesse.

Capítulo IO Envelope Pardo

Daniel Crowley pedalava sua bicicleta pelas ruas da luxuosa e agradável vila de Marylebone ao sul do Regent's Park, na capital londrina. Ele inclinava o corpo para frente a fim de atingir maior velocidade e logo chegar a sua casa localizada na rua Portland Place, depois de uma manhã repleta de cálculos na enfadonha aula de matemática. O vento frio do início de dezembro batia no seu rosto obrigando-o a enrolar o cachecol para proteger o nariz e as orelhas que congelavam até doer.Daniel era o melhor aluno da escola, só ameaçado por sua irmã Margaret que o atormentava com troças cada vez que o superava nas notas das provas periódicas. Seus olhos azuis e cabelos bem ruivos eram parcialmente ocultados pelo boné cinza dado pelo seu avô na última vez que veio a Londres visitar a família. O menino Daniel tinha uma grande paixão pelos truques de ilusionismo e gostava de se exibir para seus amigos, deixando-os boquiabertos com a sua mágica. Certa vez, Daniel deixou uma pequena platéia de colegas de sua escola intrigada ao transformar um ás de espadas em um rei de copas e depois fazer desaparecer no ar com um simples movimento

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de mãos, bem debaixo dos olhares arregalados e dos murmúrios perplexos de curiosidade.Ao chegar em casa, Daniel encostou a bicicleta na grade de ferro que separava a entrada e o jardim e subiu rapidamente depositando os livros e os cadernos em um balcão ao lado da porta.A sala da residência era espaçosa e bem arrumada, um grande candelabro dourado de cinco braços pendia do teto, quando aceso, devia emitir luzes encantadoras sobre os móveis lustrosos.- Mãe! — gritou, procurando nos cômodos amplos que se distribuíam no térreo do luxuoso sobrado.Ele ouviu os passos de sua mãe vindo da escadaria que dava acesso ao segundo pavimento.A Sra. Dorothy Crowley possuía lindos olhos azuis como os de Daniel, seus cabelos claros quase louros ficavam presos o que a fazia aparentar mais do que os seus trinta e quatro anos. Ela era a pessoa mais equânime da casa, o pilar que equilibrava e sustentava a família nas freqüentes ausências do marido.- Parece que o seu presente chegou um pouco atrasado — disse ela.A Sra. Dorothy se referia ao pedido que Daniel havia feito quando perguntado o que gostaria de ganhar no seu último aniversário, quando completara quatorze anos. Ele entendeu as palavras de sua mãe no instante em que ela lhe entregou um envelope pardo com um símbolo impresso, e que lhe era familiar. Seu coração disparou quando ele pegou aquele envelope e,

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olhando-o contra a luz, procurou a melhor maneira de abri-lo sem danificar o conteúdo. Sua mãe olhava-o com uma expressão incógnita analisando cada movimento seu. Daniel rasgou cuidadosamente a borda do envelope e retirou de dentro uma folha de papel que tinha o mesmo timbre do invólucro, o conteúdo datilografado continha a seguinte mensagem:

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Congratulações

Prezado, Daniel CrowleyÉ com satisfação que comunicamos a sua admissão na escola internacional do Atlântico.A partir de agora, você faz parte de um seleto grupo de alunos que terá a oportunidade de desenvolver um alto grau de produção intelectual nas mais diversas áreas do conhecimento humano.Junto com este comunicado, segue um cartão de identificação com um código personalizado que deverá ser apresentado no momento da sua matrícula.Você terá até o dia 15 de dezembro de 1932 (ano corrente) para confirmar a sua matrícula na embaixada da República Federativa do Brasil localizada em seu país. A confirmação deverá ser feita por um responsável legal devidamente identificado.Importante: o não comparecimento até a data limite para a realização da referida matrícula será interpretado como desistência de sua vaga em caráter inapelável.

Ilha da Coroa, 14 de novembro de 1932.

Helmut NeckelDiretor

Daniel voltou a vasculhar o envelope encontrando o cartão mencionado com o mesmo

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timbre da instituição impresso no centro e o seu nome completo seguido por um código: 21BCFH.- Fui aceito, mãe! - exclamou Daniel com um largo sorriso, não conseguindo conter a emoção.Naquele instante, Margaret, sua irmã, também entrou em casa e se deparou com a cena sem perceber direito o que se passava. A garota usava longos cabelos ruivos quase vermelhos que emolduravam o seu belo rosto pontilhado de sardas. Ela era um ano mais jovem que Daniel, havia completado treze dois meses atrás.- Passei, Meg, fui aprovado na Escola Internacional do Atlântico — disse ele, agitando os papéis e explodindo de felicidade.Margaret sinceramente ficou feliz pelo irmão, mas não conseguiu evitar uma pontinha de inveja, pois também havia se esforçado para ser aprovada submetendo-se a difíceis testes de conhecimento realizados seis meses antes. Daniel notou a frustração da irmã e procurou se conter para não causar um constrangimento em família.A Sra. Dorothy intercedeu:- Também tenho algo para você, querida.Os olhos da menina brilharam quando viram sua mãe exibir outro envelope igual ao de Daniel. Tanta felicidade contrastava com o sorriso tímido da Sra. Dorothy, ciente que seus dois únicos filhos estariam tão distantes, a milhares de quilômetros nos próximos oito anos.Há anos, o pai de Daniel e Margaret, um respeitado oficial da Real Marinha Inglesa, o capitão John Crowley, incentivava sutilmente os

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dois a tentarem a aprovação naquela inusitada escola, apesar da resistência da mãe deles. Ele dizia que, se concluíssem o curso, estariam aptos a seguirem carreiras brilhantes em praticamente qualquer profissão. Ele mesmo havia se formado na mesma instituição que lhe deu condições para exercer uma das mais cobiçadas carreiras do Reino Unido.Daniel não via a hora de poder falar para seu pai da sua felicidade e de poder abraçá-lo antes de partir.Devolvendo os papéis novamente ao envelope, perguntou a sua mãe que ainda esboçava aquela expressão melancólica:- Será que papai chegará a tempo de se despedir de nós dois, mamãe?- Não sei ainda, Daniel — respondeu com uma suave voz maternal. - Talvez seu pai só retorne no final de janeiro.- Provavelmente não estejamos mais aqui - disse Daniel, imaginando qual a data em que deveriam partir.O capitão John Crowley permanecia há mais de dois meses em missão no Oriente, e quando fazia tais viagens nunca tinha um dia certo para voltar para casa. As cartas que escrevia para sua família eram enviadas sempre relatando fatos incomuns vividos em terras estranhas e distantes que despertavam a imaginação de Daniel. O orgulho e a admiração que o filho tinha pelo pai eram tão grandes que ele sonhava em seguir toda a sua trajetória. A admissão na Escola Internacional seria o seu primeiro passo.

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O almoço estava na mesa e a Sra. Dorothy chamou Daniel e Margaret que desceram aos saltos ocupando seus lugares como de costume. Os três almoçaram e o assunto girou em torno dos preparativos para a longa viagem.— Preciso dizer algo a vocês dois — interrompeu a Sra. Dorothy pondo o guardanapo de lado, ela estava mesmo sem muito apetite. - Sei o quanto é importante para vocês e para o seu pai tudo isso que está acontecendo, mas quero que saibam que eu não concordo que tenham de ir tão longe para estudar. Existem ótimas escolas aqui mesmo em Londres. Na verdade, eu nunca entendi essa insistência de seu pai em querer que vocês se afastem por tanto tempo de nós.Os dois sentiram nas palavras amarguradas a insatisfação da mãe e ficaram desconcertados sem saber ao certo o que dizer. Daniel e Margaret se entreolharam.- Estaremos bem, mamãe - arriscou Margaret procurando consolá-la. - Além do mais, voltaremos para casa duas vezes por ano - concluiu tocando carinhosamente a mão da Sra. Crowley.- Escreveremos todas as semanas contando tudo - disse Daniel repetindo o gesto da irmã.— Não sei. — As palavras da Sra. Dorothy pesaram. — Algo me diz que não deveriam ir, mas se é a vontade de vocês e de seu pai, só me resta desejar-lhes boa sorte e torcer para que dê tudo certo — encerrou olhando ternamente os filhos.

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Daquele momento até o dia do embarque eles teriam vários detalhes a cumprir desde a confirmação das matrículas até os preparativos finais, arrumando as malas e verificando os pormenores da viagem que seriam orientados convenientemente pela embaixada brasileira.Daniel tinha um outro motivo para querer tanto estudar naquela escola. Ele era fascinado pela aventura. Ouvia histórias sobre aquele lugar encoberto por mistérios que o faziam sonhar, e o momento tão esperado finalmente havia chegado.

Do outro lado do vasto oceano Atlântico, na encalorada cidade do Rio de Janeiro, Rafael Fab havia acabado de fazer o seu desjejum antes de sair para ir à escola; um simples café com leite e pão lambuzado com manteiga. Seria mais um dia agitado, já que após cada aula, ele ajudava a sua família, trabalhando em uma pequena oficina no bairro, na dedicada atividade de chaveiro. O pouco dinheiro que recebia, dava-o todo para a sua mãe. Ele possuía olhos e cabelos castanhos e a pele bronzeada típica de um habitante dos trópicos. Rafael que acabara de completar quatorze anos, trabalhava desde os oito aprendendo a consertar fechaduras, fazer cópias de chaves e até a descobrir segredos complicados de pesados cofres. Aprendia tudo com extrema facilidade. Seu ótimo desempenho na escola fazia com que seus pais vissem um futuro melhor para ele que não o de passar o

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resto da vida numa profissão sem grandes expectativas.Ao retornar no final da tarde para casa, cansado e ainda tendo que fazer os deveres escolares, recebeu a notícia que o encheu de alegria. O envelope com a insígnia característica era o prenúncio de um futuro muito promissor. A alegria de Rafael contagiou os seus pais que tinham consciência do esforço do garoto que passou as noites e finais de semana estudando por meses a fio sem reclamar.— E você pai, como fará para se virar sozinho? — indagou Rafael, consciente que o trabalho de chaveiro ajudava no sustento da casa.- Não se preocupe, filho — tranquilizou-o Sr. Lino. O dedicado pai de mãos grandes e grossas calejadas pelo trabalho de tantos anos como carregador de caixas pesadas no mercado municipal. Por trás dos pequenos óculos ovais ele olhava o filho com satisfação e carinhosamente o abraçou como a um amigo que não via há muito tempo. - Posso muito bem me virar como fazia antes de você crescer. Além disso, seus irmãos já estão crescendo e muito em breve também estarão em condições de nos ajudar.Lino se referia aos seus outros dois filhos, a pequena Duane de sete anos e Vitor de cinco, ambos muito apegados a Rafael.A Sra. Odete, mãe de Rafael, muito magra, de olhos negros e fundos, cabelos castanhos e voz gentil, aproximou-se do filho pondo algo na palma de sua mão, uma diminuta imagem de Nossa Senhora. Disse-lhe que a pequena

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miniatura da santa católica iria protegê-lo e que o menino sempre deveria levá-la com ele.Rafael assentiu dando um forte abraço em sua mãe. A imagem da santa indo direto para o seu bolso.As conversas se estenderam até tarde da noite quando o cansaço tomou por completo o garoto. Ainda meio confuso com toda aquela revolução que estava acontecendo em tão pouco tempo na sua vida. Rafael se retirou para o quarto que dividia com os irmãos e, mesmo esgotado, não conseguiu dormir de tanta excitação. Os pensamentos conturbavam a sua cabeça juvenil. Nunca havia se separado dos pais e isso lhe causava um certo vazio que intensificava a sua ansiedade. Ele olhava para os irmãos menores que dormiam profundamente sem saberem o que estava acontecendo e que logo mudaria por completo a sua vida. Seu irmão, Vitor dormia abraçado com um elefante de pano de orelhas grandes e cara engraçada que sua mãe havia feito para ele. Aquela noite estava particularmente agradável apesar da proximidade do verão. Rafael olhava pela janela do quarto a rua já deserta, somente iluminada pelas luzes amareladas dos postes parcialmente encobertos pelas copas das árvores.Da porta do quarto, entreaberta, ele conseguia ouvir resquícios da conversa de seus pais.- Dizem que essa escola é muito rigorosa — comentava Odete. — Muitos alunos não conseguem terminar sequer o primeiro ano.

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- Estou confiante de que ele vai conseguir concluir o curso - dizia Lino, esperançoso. - Do sucesso dele depende o futuro dos irmãos.Rafael sentiu o peso da responsabilidade e estava disposto a tudo, para um dia voltar e mostrar aos pais o resultado do seu esforço. Naquele instante ele assumiu um compromisso consigo mesmo de um dia regressar para casa formado e com condições de prover seus dois irmãozinhos que tanto amava.Os dias se transformaram em semanas e a ansiedade aumentava com a aproximação do momento em que Rafael partiria finalmente.

- Não esqueça de escrever! - gritou tia Mary despedindo-se de Chester da soleira de casa.- Cuide do Coronel! - respondeu ele, referindo-se ao seu cavalo Quarto-de-Milha que havia recebido de presente dos tios quando completou dez anos.Chester Thompson, agora com quatorze anos, de cabelos louros bem aparados e olhos azuis-claros acinzentados, havia passado quase toda a sua vida morando no rancho dos tios, a quarenta quilômetros da cidade de Houston no Estado americano do Texas, depois que seus pais haviam perdido a vida em algum lugar a sudo-este de Oklahoma, vítimas de um tornado devastador quando ele ainda tinha cinco anos. Chester sobreviveu por milagre quando foi jogado em um buraco e ficou ali até tudo terminar. As autoridades tiveram dificuldade para localizar alguém que fosse responsável pelo

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garotinho ferido e assustado, pois não havia nada que revelasse a sua identidade, e os seus pais haviam desaparecido e seus corpos só foram encontrados dois dias depois no meio de uma pilha de destroços.Seus tios o amavam como a um filho, e a separação deixaria o rancho menos alegre sem as cavalgadas que Chester fazia todas as tardes.- Não se esqueceu de nada? - perguntou o tio Fred ao mesmo tempo em que acomodava as bagagens na caminhonete. O tio Fred era alto como um urso e gostava de se vestir com seu velho macacão surrado, ele sempre usava um farto bigode que quase lhe cobria a boca.- Creio que não, tio — disse o garoto empurrando a última mala de viagem para dentro da carroceria.O tio Fred deu a partida e o veículo foi saindo lentamente dando tempo de Chester acenar pela última vez para a tia.A caminhonete passou pela porteira do rancho Neblina virando à esquerda em direção à cidade.- Você não precisa ir se não quiser - disse Fred mesmo assim, embora estivesse consciente que seu sobrinho não voltaria atrás.- Eu sei disso, tio - respondeu, registrando na memória as últimas imagens daquele lugar aprazível em que conhecia cada arbusto, árvore ou riacho. — Mas não posso perder essa oportunidade que tanto lutei para conseguir.— Bem, se você não se ajeitar por lá poderá desistir - insistiu.

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— Está bem, prometo fazer isso — riu Chester da última tentativa do tio.Chester permaneceu em silêncio por vários minutos enquanto Fred alternava o olhar entre a estrada e o calado sobrinho que mantinha os olhos voltados para fora do veículo.Tio Fred quebrou a breve pausa.— O que você está pensando, Chester?- Meus pais... o que eles achariam se estivessem vivos? — respondeu com outra pergunta e com a expressão ainda pensativa.— Certamente estariam orgulhosos de você — disse Fred trocando a marcha e acelerando mais. - Qualquer um ficaria feliz e orgulhoso ao saber do sucesso de um filho.- Gostaria que eles estivessem aqui agora. Gostaria de me lembrar deles... mas não me lembro de nada - respondeu com a voz embargada e olhando novamente para fora.— Você não tem culpa, filho — disse o tio para confortá-lo. — Quando eles se foram você ainda era muito pequeno.- É... eu sei — disse Chester com o olhar perdido nos vãos das árvores que separavam a estrada de uma pastagem ressecada pela falta de chuva dos últimos meses.A caminhonete seguiu seu caminho levantando uma leve nuvem de poeira e depois sumiu entre as curvas da estrada de terra.A sala era ampla e acomodava no seu centro um piano de cauda que sempre era tocado magistralmente por um menino de apenas quatorze anos. Seu nome era Marc Fournier, um

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jovem de altura acima da média, olhos claros e cabelos negros que emolduravam o seu rosto de expressão desafiadora. Marc era assim, enfrentava as pessoas, mesmo os adultos.Seus pais tentavam dissuadi-lo da idéia de morar em uma ilha que nem sabiam ao certo onde ficava no mapa. O certo é que o rapaz tinha muito talento para a música e não entendiam como ele estava disposto a interromper uma carreira de sucesso para estudar em uma escola no meio do oceano que nem oferecia em suas disciplinas um mísero curso de música.Marc era uma daquelas pessoas privilegiadas que tinha o ouvido absoluto. Ele identificava facilmente a nota musical de um talher caindo no chão, uma porta batendo ou um cão latindo. Marc também tocava flauta e violino com refinada desenvoltura e costumava passar horas seguidas das frias noites do inverno parisiense acompanhado por seus pais que também eram músicos como ele, todos embalados pelo que havia de melhor da música clássica.Marc dedilhou as últimas notas de um noturno de Chopin e sorriu para os pais satisfeito do seu próprio desempenho ao piano o qual tocava sem o menor esforço. Em seguida tirou do bolso o envelope que era o seu passaporte para um outro mundo totalmente diferente daquele que desfrutara até o momento.Leu mais uma vez o que dizia a mensagem e, voltando-se para seus pais, disse muito seguro de si:

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— Não se preocupem, prometo que darei seqüência aos meus estudos, e quando eu voltar nas próximas férias mostrarei que o meu talento está mais afiado do que nunca.Jean Paul ouvia atentamente as explicações do filho. Jean Paul Fournier, podia se dizer que era um desses homens que gostava de se vestir bem, mesmo dentro de casa, ele tinha a constituição magra e estatura alta, cabelos escuros penteados para trás com brilhantina. Amava o seu único filho como um pai dedicado que era, mas respeitava sua decisão por considerar que o rapaz era suficientemente maduro para fazer escolhas. Foi então que ele argumentou.— Filho - disse, debruçando-se sobre o piano de cauda. - A música está no seu sangue e você sabe que indo para esse fim de mundo não aprenderá nada de novo. Porém, se é isso mesmo o que deseja, estaremos do seu lado. Quer mesmo levar isso adiante?Marc fez que sim, inabalável e determinado.Sua mãe, a Sra. Monique Fournier, uma serena senhora de quase quarenta anos, cabelos e pele clara e marcas de expressão nos cantos da boca, prosseguiu de onde Jean Paul havia parado.— Gosto da sua ousadia em querer enfrentar o mundo sem nossa presença, mas sua carreira poderá ser prejudicada pelo tempo que você ficará fora — disse ela, e juntou as mãos quase num gesto de oração. — Essa interrupção pode interferir negativamente no seu desenvolvimento. O que diz disso?

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Marc propôs um acordo.- Vejam. — Se ajeitou no banquinho em frente ao piano negro e tão polido que refletia o brilho da sala como se fosse um espelho. - Se nas próximas férias, quando voltar pra casa, o meu desempenho estiver a desejar, prometo desistir da idéia e ficar em Paris.Os pais de Marc se olharam e com alguma resistência acabaram consentindo.Marc sabia do seu potencial e podia mostrar muito mais para os pais que, embora fossem bons músicos, não possuíam nem de perto o mesmo talento do filho que, naquela fase de sua vida, poderia ser considerado um gênio musical. Ele era cobiçado por mestres que lecionavam música na França e em toda a Europa e que enviavam cartas oferecendo seus préstimos como orientadores do jovem que era, sem dúvida, uma joia a ser lapidada.Tendo em vista que Marc não poderia levar o piano na bagagem, ao menos levaria a sua flauta transversal que seria a sua fiel companheira naquele mundo tão diferente do seu, um mundo estranho... e fascinante.Ao seu modo, alunos previamente selecionados estariam vindo de todas as partes do mundo para estudar em uma das escolas mais eficientes de todos os tempos, e seguramente, a mais estranha. Alguns desses alunos iriam passar por uma experiência tão fantástica que se tornaria a maior aventura que eles jamais imaginariam ter.

Capítulo 2

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Uma Escola no Meio do Oceano

O estridente apito do navio acordou Daniel que olhou para a cama ao lado da sua e viu que sua irmã não estava mais na cabine. Ele levantou ainda meio zonzo e bocejou longamente especulando onde ela teria ido tão cedo. Depois olhou pela escotilha e verificou que o dia mal acabara de nascer lançando os primeiros raios de sol sobre o navio e o mar aberto. Daniel poderia voltar a dormir mais um pouco, mas achou por bem ir a procura da irmã, então trocou de roupa e deixou a cabine atravessando um corredor com várias portas em ambos os lados. Eram as portas de outras cabines que certamente abrigavam os outros passageiros que ainda insistiam em dormir profundamente naquele início de manhã.Margaret se debruçava na amurada observando os primeiros sinais de terra. A brisa do verão do hemisfério sul esvoaçava seus cabelos passando uma sensação agradável que amenizou um pouco a sua ansiedade da chegada ao Brasil, e que se daria dentro em pouco.— Bom dia, Meg — disse Daniel com cara de sono.— Olhe, já dá para ver a cidade de Recife - disse ela apontando.— Por que levantou tão cedo?— Estava ansiosa pela chegada o que me fez perder o sono quando ainda estava escuro — voltou-se para Daniel, se esforçando inutilmente para arrumar os cabelos que teimavam em cobrir seu rosto. — Ouvi um tripulante dizer que

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deveríamos chegar às primeiras horas dessa manhã, ele acertou em cheio.— Já que estou acordado, vou voltar a cabine e terminar de arrumar minhas malas - disse Daniel enquanto dava uma espiada no continente que se aproximava muito lentamente.— É melhor você se apressar, dentro de uma hora deveremos desembarcar — alertou Margaret. — Ainda temos que fazer um desjejum e quero ser a primeira a pisar em terra.— Como sabe que chegaremos em uma hora?— Informei-me com a tripulação e olhe pra você, parece que não acordou ainda — disse zombando.Meg gostava de saber de tudo, mas principalmente se a informação era conseguida antes do irmão. Daniel, por sua vez, considerava tais provocações como sendo novos desafios para superá-la em seus confrontos particulares, mas nem sempre ele conseguia e isso chegava a irritá-lo. O escárnio da irmã o aborrecia.Daniel acomodou rapidamente os seus pertences em uma das malas e foi encontrar-se com Margaret, fazendo em igual velocidade o desjejum no restaurante. Ao retornarem, notaram que o movimento de passageiros no convés já era intenso com sons de vozes por todos os lados. A viagem transoceânica estava chegando ao fim.A embarcação se aproximava lateralmente do cais empurrada agora por dois rebocadores que lentamente faziam os últimos procedimentos de atracação. Minutos depois uma rampa lateral

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permitiu o desembarque dos passageiros. Margaret era a primeira da fila seguida por Daniel.— Pra que tanta pressa? — disse Daniel com ar de censura.— Eu disse que seria a primeira a desembarcar, não foi? - respondeu orgulhosamente com uma expressão de ter vencido mais uma contenda. Daniel deu de ombros e desviou a atenção para o porto que acordava com a chegada dos estivadores para seus postos de trabalho.Logo adiante, numa área livre do cais movimentado, havia um homem de pele morena e cabelos lisos e negros vestindo um amarrotado terno branco. Ele segurava acima da cabeça um cartaz grande no qual estava escrito: ALUNOS DA ESCOLA INTERNACIONAL DO ATLÂNTICO. O tal homem que não parecia ser afetado pelo calor dos trópicos, apesar de trajar seu abafado terno de linho, foi rodeado imediatamente por um grupo de rapazes e moças com idades que variavam entre os treze e os vinte anos. Aguardou mais alguns minutos até que todos desembarcassem e se juntassem a ele num grande círculo. Em seguida, pegou uma prancheta com uma extensa relação de nomes. Daniel e Margaret, rodeados pela multidão de jovens, olhavam à sua volta reparando nos rostos e vestimentas que confirmavam que os seus novos colegas eram oriundos de todas as partes do mundo. Alguns, provavelmente, também calouros, mostravam expressões apreensivas e aguardavam receber novas orientações.

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O homem de terno branco, com a lista na mão deu início a chamada e a cada nome pronunciado, alguém levantava a mão confirmando a sua presença. Ao final da verificação dos nomes ele mesmo se identificou:— Para aqueles que ainda não me conhecem, meu nome é Ramón Almendra. Sou o vice-diretor da Escola Internacional e o responsável em conduzir todos vocês até a Ilha da Coroa. — Ramón fez um aceno para que fizessem silêncio mediante o burburinho ocasionado pelas conversas paralelas dos alunos agitados, e prosseguiu: — Ouçam, e não vou repetir. Uma equipe de funcionários vai acompanhá-los até um navio no extremo sul do cais, que irá transportá-los à ilha. Subam e aguardem a partida. Os que já conhecem as regras sabem muito bem o que fazer.O vice-diretor Ramón Almendra, nascido e criado na capital mexicana, abriu caminho entre os alunos e seguiu em direção a uma fila de caminhões que levaria os alunos e as bagagens até o próximo embarque. O grupo em procissão ultrapassava o número de duzentos alunos que iriam se juntar a outros cem que já estavam aguardando a bordo da embarcação. Os caminhões que os levariam até o outro navio não eram muito confortáveis, mas o trajeto seria rápido, encurtando o transtorno dos solavancos. Do alto dos caminhões os alunos admiravam o porto apinhado de marinheiros, estivadores e cargas de todos os tipos e tamanhos sendo embarcadas e desembarcadas de outros navios que se encontravam atracados ao longo do cais.

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A maresia se misturava ao cheiro de óleo de navio e produzia um odor típico dos grandes portos com enorme movimentação de mercadorias.Os veículos pararam ao lado de um navio de nome Divina Providência III, que se encontrava atracado no final do cais onde o movimento de pessoas era bem menor. Era um navio de casco pintado de preto, escrito com letras brancas na popa, com pequenos sinais de ferrugem devido ao seu uso ininterrupto e sem o tempo necessário para se fazer as devidas manutenções. O embarque se fez de imediato, entretanto, os alunos foram obrigados a esperar por várias horas por mais alunos que ainda chegariam naquele dia.- Quanto tempo levaremos para chegar até a ilha? - perguntou Meg, impaciente com a demora.- Você não é a sabe-tudo? - provocou Daniel com ar de gozação e desafio. - Deveria saber a resposta.- Pois eu vou descobrir - ela saiu com o nariz empinado em busca da informação.Margaret percorreu o convés e depois de algum tempo encontrou Ramón dando ordens aos seus auxiliares para a acomodação das bagagens que não paravam de subir a bordo.- Com licença, senhor. — Ela interrompeu o homem que cuidava pessoalmente para que toda a operação de embarcar as centenas de alunos não registrassem nenhum erro.- O que deseja? - disse Ramón continuando a fazer algumas anotações em sua prancheta, ele

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não dava muita importância à garota, não havia muito tempo para conversas inúteis.- Desejo saber o tempo que levaremos até a Ilha da Coroa.Ramón parou de escrever e enxugou a testa suada com a manga do paletó, finalmente olhando para Margaret.Se o tempo nos ajudar, estaremos lá em quinze horas. Isso é um transtorno para você, novata?Quinze horas ? - pensou ela, cansada de tanta viagem.- Não, realmente não é - disse, evitando deixar transparecer a sua insatisfação, ela agradeceu e não ousou fazer mais nenhuma pergunta por ora, intimidada com a cara sisuda de Ramón.Daniel que se achava logo atrás dela, cuidava de seus movimentos como se fosse incumbido como seu tutor, sabia que a bisbilhotice de Meg poderia arranjar problemas a qualquer momento. Por isso sugeriu.- Vamos conseguir um canto para que possamos nos esticar um pouco.Sentaram-se próximo à popa e aguardaram inquietos a hora da partida que parecia não ter definição.O alto-falante do navio convocou os passageiros para o almoço que seria servido no refeitório. Por não haver lugares suficientes, cada um se ajeitou como pôde sentando no chão e apoiando a bandeja no colo. Com o sol a pino, o calor e a longa espera tornaram-se cada vez mais desconfortáveis. Um calouro reclamou em voz alta do tratamento que estava recebendo sem se

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dar conta que Ramón ouvira o protesto. Ramón aproximou-se e se agachou olhando o rapaz diretamente nos olhos. O garoto o olhou assustado como se visse um fantasma.- Isso também faz parte do aprendizado, calouro. — Aguardou por alguns segundos se o garoto diria algo em sua defesa, então se levantou e falou dirigindo-se a todos que pudessem ouvir: — A disciplina é algo que decide quem permanece e quem volta pra casa — fez outra pausa. — Jamais esqueçam disso!Os que presenciaram tal cena, permaneceram em silêncio por alguns instantes até o vice-diretor se afastar.- Primeira lição - disse Meg com um sorriso discreto. — A disciplina é matéria que reprova.- Segunda lição — completou Daniel. — Evitar certos comentários em voz alta é uma virtude. Portanto, controle a sua boca.Outro calouro que procurava um lugar para se sentar se aproximou interessado em fazer amizade.- Olá, meu nome é Chester Thompson, se importam se eu me sentar com vocês?- Oi, Chester - disse Daniel, largando o garfo e estendendo a mão para cumprimentá-lo. - Sou Daniel Crowley e essa é minha irmã Margaret. Somos de Londres, Inglaterra.— Sou do Texas, Estados Unidos da América — continuou Chester olhando a comida em sua bandeja que lhe parecia apetitosa, qualquer gororoba lhe pareceria apetitosa, pois ele não comia nada há horas.

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Em pouco tempo os três já se conheciam melhor e também os motivos que os empurraram para tão longe de casa. Margaret é a que fazia o maior número de perguntas à Chester, sem se preocupar se o seu novo amigo estaria disposto a responder àquele interrogatório. Chester, por sua vez, não se importava, pois estava mais interessado em fazer novas amizades com pessoas que se encontravam em situação parecida com a dele.Marc Fournier retirou sua flauta e depois colocou sua mochila, em que trazia os seus pertences, no chão do convés; em seguida se sentou fazendo-a de encosto e começou a tocar uma suave música com o propósito de se distrair e fazer o tempo passar mais rápido. Belas músicas atraem as pessoas, e aquela atraiu a atenção de Rafael Fab que vagava pelo convés, ele arrumou um lugar perto de Marc a fim de apreciar a sua habilidade com a música. Ao final da despretensiosa apresentação, Rafael deu um sorriso de aprovação e se apresentou a Marc, que respondeu cordialmente.— Pelo seu sotaque você deve ser francês.— Sim, de Paris - assentiu Marc. - E você, é latino, estou certo?— Sou, daqui mesmo, do Brasil.— Você deve saber muita coisa da misteriosa Ilha da Coroa, estou certo? - aproveitou Marc para tentar obter algumas informações extras sobre o seu destino.— Acho que não muito mais do que você — disse Rafael dando de ombros. — Já ouvi muitas

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histórias estranhas daquela ilha, mas acho que é mais invenção de gente que não tem o que fazer e também pelo fato da Ilha da Coroa ser tão afastada da civilização. Essas coisas fazem as pessoas ficarem felizes inventando todo tipo de história.— E aquelas águas sempre agitadas?— Até hoje ninguém deu uma explicação convincente — Rafael encolheu as pernas abraçando-as e olhou para Marc. - Dizem que é algum tipo de magnetismo que faz as águas ao redor da ilha se comportarem daquele jeito.— Arrisco pensar que tem mais coisa por trás disso. Espero não me decepcionar ao chegar lá — Marc levou a flauta até a altura da boca. - Quer ouvir outra música?— Sim, claro - incentivou-o Rafael ajeitando-se para uma melhor audição.Já era quase três horas da tarde quando Margaret, entediada, reparou que a escada de acesso ao navio estava sendo erguida. Ouviu-se um sonoro apito e todos sentiram um leve balanço anunciando que a embarcação estava sendo afastada do cais. Alguns jovens passageiros correram para ver as manobras realizadas pelos rebocadores que acionavam seus motores a toda força deslocando o Divina Providência III lateralmente até um local onde houvesse condições para que a poderosa hélice fosse colocada em funcionamento. Os rebocadores se afastaram e com outro apito o navio começou a ganhar velocidade rumando em direção ao mar aberto.

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Marc passou a tocar uma música mais alegre e Rafael, também animado com a partida, percebeu o contentamento dos passageiros que estampavam em seus rostos imensos sorrisos.Daniel continuava sentado ao lado de Margaret que conversava animadamente com seu novo amigo Chester, ele desligou-se momentaneamente da conversa e voltou a sua atenção para o passadiço que ficava na parte mais alta do navio. Levantou-se e caminhou pelo convés, ziguezagueando entre os passageiros e tripulantes e parou em frente a escada que levava à ponte de comando. Apoiando-se no corrimão, começou a subir lentamente com passos retumbantes sobre a escada de metal, degrau por degrau, curioso por saber quem comandava o navio que os levaria até o seu destino. Quando enfim pisou o último degrau, foi interceptado por um marinheiro com cara de poucos amigos que se colocou entre ele e a cabine de comando.- O que deseja, menino? - indagou com voz rouca. - Não é permitida a presença de passageiros por aqui.- Eu não tinha... a intenção de incomodar - disse justificando-se. - Só queria conhecer o lugar de onde se comanda esse navio.Do interior da ponte ouviu-se uma voz grave.- Deixe-o passar, marinheiro!Era a voz do comandante. O marinheiro abriu passagem e Daniel pôde ver um homem que deveria ter algo em torno de setenta anos, vestido com uma impecável farda branca. O

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oficial lembrava um personagem dos livros de aventura no mar: os cabelos, a barba e as sobrancelhas igualmente brancos, como um capitão de navio deveria se parecer. Sua pele se destacava, pois, de tantos anos exposta ao sol equatorial, era bastante bronzeada.- Aproxime-se, vamos! - insistiu ele de maneira rude e ao mesmo tempo amigável. - Sou o comandante Hugo Lemos - ele esperou que Daniel dissesse alguma coisa.- Meu nome é Daniel...- Crowley, eu suponho.- Como sabe meu nome? - perguntou surpreso, seus olhos se arregalando para o oficial.- Conheço seu pai há muitos anos e fiquei sabendo que vocês estariam no meu navio. - Olhou para o convés lá em baixo e apontou para Margaret que havia se levantado e parecia estar procurando o irmão. — Você, Daniel, e sua irmã.- E quem lhe disse que nós viríamos? - perguntou ainda mais intrigado.- Ah, o seu pai mesmo - respondeu serenamente enquanto olhava para o horizonte, e continuou: - Quando John pisou pela primeira vez nesse barco, era ainda um garoto como você. Subiu aquelas escadas como você fez há pouco e passou quase a viagem toda querendo saber de tudo, me enchendo de perguntas.O comandante Hugo colocou gentilmente a mão sobre o ombro de Daniel trazendo-o para o interior da ponte de comando e prosseguiu:- Já transportei muitos alunos ao longo desses anos para a Ilha da Coroa - esfregou o queixo

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peludo com a mão e levantou uma sobrancelha. - Alguns desistiram e voltaram para casa, outros resolveram ficar e se tornaram pessoas de sucesso em suas carreiras.- O senhor deve conhecer bem a ilha - comentou Daniel, curioso.O comandante pegou um bule e encheu duas xícaras com café, oferecendo uma a Daniel que aceitou de bom grado.- Eu também estudei lá. - Fez uma pausa, saboreando o café ainda quente. - Foram oito longos anos de muito estudo e disciplina. Os dias eram repletos de atividades e quando o sol se punha, estávamos tão cansados que só nos restava irmos para o quarto e cairmos na cama.Daniel quase não piscava enquanto ouvia o depoimento do comandante. Aquele relato lhe era familiar, pois seu pai havia contado por diversas vezes a mesma história, alimentando sua curiosidade e fazendo-o imaginar que lugar fascinante devia ser a tão afamada Ilha da Coroa.- E as histórias que contam sobre a ilha? — aproveitou Daniel para investigar mais com alguém que realmente conhecia muito bem tudo aquilo.- A que histórias você se refere? — Se fez de desentendido o comandante Hugo, pousando a xícara vazia em uma mesinha e sendo imitado por Daniel.- O senhor sabe... as águas em torno da ilha estranhamente agitadas, os vários naufrágios e as lendas sobre criaturas monstruosas que surgem das profundezas — coçando a cabeça,

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completou: - O que há de verdade nessas histórias?O comandante riu meneando a cabeça e recostando-se em uma parede, por fim cruzou os braços:- Lendas... lendas tão antigas criadas por gente ignorante e supersticiosa. — Voltou o olhar para o mar azul-turquesa. - As pessoas adoram acreditar na veracidade dessas bobagens para tornarem suas vidas menos monótonas.O rosto de Daniel expressava dúvidas quanto aquelas palavras. O comandante percebeu.- Você nunca perguntou essas coisas ao seu pai? — questionou com um tom desafiador. - Ele na certa teria visto algo fora do comum durante esses anos todos que permaneceu na ilha.- Sim... claro - titubeou Daniel concordando. - Ele nunca me disse nada.- Ouça bem, meu jovem - continuou, tocando o ombro de Daniel com o dedo indicador. - Não há nada lá além de uma escola que vai exigir muito estudo e disciplina de vocês — concluiu com uma expressão severa.O mesmo marinheiro que tinha impedido a passagem de Daniel interrompeu com sua voz rouca e um ar de insatisfação:-Tem mais dois garotos aqui fora, comandante. Devo expulsá-los?Com um gesto breve de mão o comandante Hugo chamou Daniel, que o acompanhou para fora da cabine. Os dois garotos que o marinheiro se referia eram Chester e Margaret que haviam avistado Daniel do convés.

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- Deixe-os comigo - disse o comandante ao marinheiro de olhar grave.Depois das apresentações, o comandante Hugo fez um convite aos três.- Sigam-me, vou lhes mostrar uma coisa grandiosa.Daniel, Margaret e Chester, bastante curiosos, desceram as escadas seguindo o comandante que caminhava a passos rápidos, e entraram por um corredor indo até o final, onde havia uma pesada porta de ferro. Ouviam um som ritmado de máquinas trabalhando que lembrava uma locomotiva. Quando a porta se abriu, o barulho produzido pelas máquinas se tornou muito mais alto, dificultando o diálogo entre eles. O comandante foi o primeiro a entrar na casa de máquinas e começou a descer uma estreita escada de metal, novamente seguido pelos seus convidados que olhavam atentos para toda aquela parafernália barulhenta. Canos, grades, mostradores de temperatura, placas de ferro, tudo preso por grossos parafusos, compondo um cenário que mais lembrava uma cidadela. Só que toda de metal.Lá em baixo o comandante gritou.- Esse é o meu orgulho! — Erguendo o braço, mostrou tudo à sua volta. - Um poderoso motor capaz de enfrentar qualquer mar bravio.- Até o que circunda a Ilha da Coroa? - perguntou Chester, incrédulo.- Até ele! — exclamou convicto e orgulhoso.Eles passaram algum tempo observando a movimentação da tripulação que trabalhava

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incessantemente para manter o enorme motor em funcionamento, quando o comandante Hugo fez um sinal para subirem novamente. De volta ao convés viram que o pôr do sol encerrava mais um dia, porém o calor, mais tolerável naquele momento, ainda se fazia presente, o que não diminuía o ânimo dos jovens passageiros.Quando a noite finalmente chegou, todos os jovens passageiros se recolheram em seus aposentos provisórios nos quais repousariam até o amanhecer. Tais aposentos eram dois grandes salões, masculino e feminino, onde se enfileiravam muitas camas como o dormitório de um quartel. Daniel se despediu de Meg e os dois se separaram seguindo cada um para a sua ala. Margaret foi a primeira do seu grupo a encontrar uma cama onde pôs sua bagagem de mão. Próximas a ela, outras meninas acomodavam seus pertences e procuravam, da melhor maneira, tornarem o ambiente o mais aconchegante possível. Embora tivessem um aspecto de limpas, as camas eram bem simples e os colchões um tanto duros e encaroçados.Espero que a cama da escola seja mais macia — pensou, um pouco desanimada. Apertou o travesseiro e se deitou.Na outra ala, Rafael depositou sua mala no chão e sentou-se na beira da cama, inclinando-se para frente e apoiando os cotovelos sobre as pernas onde ficou pensativo por alguns minutos. Ele tentou imaginar como estaria a sua família agora e o que deveriam estar falando, provavelmente sobre ele, trocando palavras orgulhosas e

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fazendo projetos para quando ele voltasse um dia. A saudade de casa só era abafada pela expectativa de chegar na ilha e começar logo seus estudos. Rafael notou que a três camas à esquerda da sua estava sentado Marc Fournier, o francês que havia conhecido naquela tarde. Marc girava sua flauta entre os dedos e seus pensamentos pareciam distantes, talvez sua mente viajasse ao encontro de seus familiares. O jovem francês posicionou-se e passou a tirar as primeiras notas de uma melodia, mas foi contido pelo Sr. Ramón, que levando o dedo indicador aos lábios exigiu silêncio. Marc, a contragosto, acatou a ordem, guardou a flauta em sua mochila e esticou-se na cama, mantendo o olhar fixo no teto. Será que minha decisão foi correta? Será que meus pais não estavam certos em tentar impedir a minha vinda para este fim de mundo?Tudo estava acontecendo muito rápido e isso confundia a jovem mente de Marc, o que poderia levá-lo a desistir de tudo e fazê-lo decidir voltar à Paris.Ramón, encarregado de manter a ordem durante a viagem, puxou uma corrente que estava presa ao seu cinto e retirou do bolso da calça um relógio dourado para confirmar a hora; constatou que já passava das nove da noite e isso fez com que apontasse para as luminárias do teto, determinando que fossem desligadas, só permanecendo acesas umas poucas luzes auxiliares, o que deixou todo o ambiente mergulhado numa suave penumbra. Os sons de

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gente cochichando ou se ajeitando nas ruidosas camas de estrado de arame e molas foram dando lugar a uma profunda quietude. Era o cansaço que vencia, obrigando a todos adormecerem, um a um, enquanto o Divina Providência III prosseguia a sua imperturbável travessia.Daniel acordou de repente e, com olhos perdidos na tênue escuridão, reparou que todos dormiam um sono pesado. Certamente percebeu que ainda era noite quando olhou por uma escotilha do alojamento e viu tudo escuro lá fora. Ele tentou voltar a dormir, mas não conseguiu, pois o silêncio era discretamente quebrado pelo barulho quase imperceptível do potente motor do navio, um som distante e repetitivo. Sua mente acompanhava o ritmo das máquinas e os seus pensamentos divagavam impedindo-o de pegar no sono mais uma vez. Ele concluiu em pensamento: Não adianta, perdi o sono.Daniel levantou-se tomando cuidado para não despertar os alunos ou chamar a atenção de um dos tripulantes, ciente de que a sua cama era por demais barulhenta. Ele caminhou cautelosamente saindo do alojamento e ganhando o convés totalmente deserto. A brisa do mar soprava no seu rosto, mas Daniel não sentia frio. Estava uma noite agradável em que todas as estrelas pareciam olhá-lo como se quisessem saber o que ele faria em seguida. Daniel resolveu aproveitar ao máximo aquele momento. Deu alguns passos e debruçou-se na amurada, pondo-se a observar o casco do navio cortar as águas, produzindo uma sinuosa estrada

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de espuma branca. Esse lugar deve estar infestado de navios afundados. Talvez, bem aqui em baixo, haja uma caravela ou um galeão... Daniel imaginou.Seus pensamentos foram desmanchados por uma voz.- Lindo, não?Daniel virou-se rapidamente e se deparou com a figura branca, fantasmagórica, do comandante Hugo que contrastava na escuridão.- O que o senhor disse? - perguntou, surpreendido.- O mar, não é lindo? - Então dando alguns passos à frente, se colocou ao lado de Daniel e contemplou o oceano que parecia se ligar ao céu estrelado, ele revelou por fim. - Faço esse caminho há mais de cinqüenta anos e cada viagem parece ser diferente das outras.Daniel desconcertado com a presença do comandante temeu ser repreendido por estar acordado àquela hora e achou prudente ficar calado. O comandante Hugo notando o seu constrangimento tranquilizou-o.-Aproveite esse momento, Daniel - e de forma enigmática continuou: - Um dia essas lembranças estarão enevoadas em sua mente como um sonho distante, mas nunca se apagarão.Daniel imaginou a avançada idade do comandante, ganhou confiança e manifestou outra vez a sua curiosidade.- O senhor não pensa em se aposentar? O que quero dizer é, gosta tanto de viver desse modo o tempo todo dentro de um navio?

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— Esse navio é a minha casa, a tripulação a minha família... — respirou com profundidade e prosseguiu: - O mar é a minha vida. Preciso disso para viver - o capitão fez outra pausa e confessou: - Espero um dia viver com as lendas... as lendas vivem para sempre... em algum lugar.Daniel não entendeu as últimas palavras do comandante e quando ia falar algo foi interrompido.- É melhor você ir dormir mais um pouco, Daniel Crowley - e virando-se, convidou Daniel a voltar para o alojamento. - Logo vai amanhecer e vocês terão um dia bem movimentado.O comandante Hugo tomou o caminho para a ponte e Daniel entrou deitando-se novamente. Ele passou alguns instantes refletindo sobre a conversa que teve há pouco, mas principalmente nas palavras que mexeram com ele: Viver com as lendas... as lendas vivem para sempre... em algum lugar. Depois adormeceu.A luz da manhã que se erguia no leste foi empalidecendo, pouco a pouco, o brilho das estrelas, até escondê-las totalmente.Daniel despertou, dessa vez não pelo estrondoso apito do navio, mas pelo agito causado por alguns alunos que já arrumavam as suas tralhas nas malas. Outros calçavam os sapatos ou penteavam os cabelos se preparando para o desjejum. Ramón entrou a passos rápidos no alojamento e com gestos largos ordenou.— Não esqueçam de arrumar as camas — disse, apontando para algumas ainda desarrumadas. - Aliás, isso deverá ser um hábito daqui por diante.

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Daniel pulou da cama e, recuperando o tempo perdido, vestiu-se rapidamente e acompanhou um pequeno grupo de alunos que saía do alojamento. Margaret o aguardava impaciente, e a primeira coisa que fez ao ver o irmão foi reclamar.— Por que demorou? O dia já raiou faz uma hora.- Não dormi muito bem - se justificou esticando-se para enxergar melhor por cima da pequena multidão que se aglomerava na entrada do refeitório. - Você já comeu algo?— Fui a primeira a entrar no refeitório — proferiu com altivez. — Minhas malas já estão prontas e colocadas próximas ao desembarque. Não vejo a hora de chegarmos.Daniel e Margaret viram um braço levantado e acenando na direção deles. Era Chester que com alguma dificuldade foi se desviando das pessoas e conseguiu se unir aos irmãos.- Que confusão, será que é sempre assim para se comer alguma coisa?- Tomara que não — disse Daniel enquanto entrava na fila que estava sendo organizada por um marinheiro que parecia saber exatamente o que deveria fazer.O marujo tratava a multidão inquieta como se fosse um bando de garotos na porta do cinema que está prestes a estrear um filme muito esperado.Daniel e Chester pegaram as bandejas que continham pão, queijo, um copo de leite e frutas, e procuraram um lugar no convés menos concorrido para se sentarem. Margaret os seguiu:

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- Encontrei o comandante essa manhã - disse ela se sentando ao lado deles. - Ele comentou que o apito seria acionado ao avistarem a Ilha da Coroa.- Esse comandante, parece que não dorme nunca - criticou Daniel tomando um gole do leite branco.- Por que você diz isso? — perguntou Chester quando não compreendeu o comentário do colega.Daniel então contou o que ocorrera horas antes, quando teve o encontro inesperado com o comandante Hugo durante a madrugada, no seu momento de insônia.- Talvez ele seja um fantasma — brincou Margaret roubando uma migalha de pão da bandeja do irmão.- É... um fantasma de carne e osso — ironizou Daniel, deixando a bandeja vazia de lado.- É melhor vocês pegarem suas coisas e as deixarem perto das minhas - alertou Margaret. - Vai facilitar a nossa descida quando o navio atracar.- Pra que a pressa? — perguntou Daniel em tom de protesto. — Vamos desembarcar do mesmo jeito.- Daniel Crowley! — exclamou indignada, levantando-se. — Eu não entendo você. Só quis ajudar!Margaret empertigou-se e, pisando duro, misturou-se aos passageiros, sumindo de vista. Chester, que presenciava a cena de desavença entre os irmãos, disse, procurando descontrair.

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- Ela é um pouco temperamental, não é?- Você ainda não viu nada - avisou Daniel balançando a cabeça num sinal de desaprovação. - Mas vai ver... pode ter certeza.Marc não viu mais Rafael desde o dia anterior. Correu o olhar pelo convés e não conseguiu encontrá-lo, então voltou ao alojamento para pegar a sua bagagem de mão. Ele caminhou pelo amplo salão que estava praticamente vazio, passando pelas camas enfileiradas, lado a lado, até chegar à sua, encontrando sua bolsa e a pequena maleta de couro onde guardava algumas mudas de roupa. Marc sentou-se e tirou do fundo da tal maleta, o cartão de identificação com o código: 21CFRT, fixando o olhar naquela combinação de números e letras sem entender do que se tratava. Não chegando a nenhuma conclusão, terminou de arrumar seus pertences e apoiando a alça de sua bolsa no ombro, pegou a maleta e caminhou de volta em direção à saída. Ramón entrou no alojamento, passou por Marc e, de repente, deteve o passo, girando nos calcanhares:- Por obséquio - fez uma pausa aguardando Marc se virar —, você é o flautista, estou certo?- Sim, sou eu... — respondeu Marc, ajeitando novamente a bolsa que teimava em escorregar-lhe do ombro.- Por favor, me procure amanhã em meu gabinete. Caso não se lembre, sou o vice-diretor Ramón Almendra.- Sei quem o Sr. é. Não se preocupe, vou procurá-lo sem falta - concordou titubeante sem entender

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direito e retomou lentamente o caminho da saída.Lá fora o acúmulo de pessoas já era igual ao do dia anterior e Marc finalmente localizou Rafael que vagava como se estivesse perdido:- Rafael! — gritou.Ele respondeu com um aceno e se aproximou mostrando um sorriso de satisfação.- Onde você estava? — indagou Rafael descansando sua mala no chão. — Procurei-o por todo o navio.- Eu também estive a sua procura. Acabamos nos desencontrando.Marc esfregou a mão no queixo e confidenciou:- Aconteceu algo estranho minutos atrás. Lembra-se do Sr. Ramón?- O vice-diretor? — emendou imediatamente.- Ele mesmo!Marc contou o que havia acontecido levando Rafael a especular.- Possivelmente ele tem algum grupo musical e quer que você participe.- Acho que ele quer me proibir de tocar. Se for assim eu embarco de volta no primeiro navio - disse resoluto. - Não me desfaço da minha música por motivo algum.- Isso você só saberá amanhã. Até lá procure aproveitar a resto da viagem — disse amenizando as dúvidas do amigo.- Vamos para a proa - sugeriu Marc. — A qualquer momento deveremos avistar a Ilha da Coroa - Rafael agarrou a sua mala e seguiu o companheiro.

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Daniel estava na companhia de Chester e espiava o mar, tentando avistar algum sinal de terra. Ele exagerou.- Estamos a tanto tempo navegando que tenho a sensação de que daqui a pouco avistaremos a costa da Inglaterra.Chester riu.- Já estamos chegando. Em pouco tempo estaremos na ilha.

Daniel olhou para a ponte de comando e viu o comandante Hugo com a atenção voltada para o horizonte. O comandante inclinou a cabeça, fitando o convés tomado de passageiros e então fez um discreto aceno com a mão. Daniel entendeu que era com ele e respondeu da mesma forma. Depois se voltou para Chester e sussurrou:- Meu pai nunca me falou dele. De uma pessoa assim ele deveria ter comentado comigo ao menos uma vez.- Pode ser que ele tenha esquecido ou mesmo não tenha dado tanta importância - argumentou Chester dirigindo o olhar para a ponte e não localizando mais o comandante.- Você não tem a impressão que a Ilha da Coroa esconde algum grande mistério? — questionou Daniel mordendo o lábio.- Talvez essas coisas sejam fruto da imaginação das pessoas — argumentou erguendo os ombros. — Ou quem sabe seja o nosso desejo de que aquela ilha abrigue mesmo algo estranho, mas olhe só, tanta gente já esteve lá e ninguém

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comprovou nada — Chester fez uma pausa. - Mas você tem razão, eu também carrego essa impressão.

Marc tirou da bolsa o cartão de identificação e o mostrou a Rafael:- Olhe isso aqui, você sabe o que significam esses números e letras?- Não... não sei — disse examinando atentamente o cartão de Marc. - O meu também tem um desse, mas não me recordo agora a combinação correta de números e letras. Eu o deixei aqui dentro da minha mala, mas espere que vou achar...- Esqueça! — interrompeu Marc. — Perguntaremos depois a algum aluno mais antigo, certamente alguém saberá dizer o que significa.

De repente, o estrondoso apito chamou a atenção. Era o sinal que Margaret tanto aguardava. Ela então correu à procura de Daniel que se espremia disputando um lugar na amurada com outros alunos.A visão era impressionante! Onde o navio deslizava, o mar tinha uma aparência normal apresentando ondulações suaves, mas a uns duzentos metros a bombordo, as águas pareciam ferver; um círculo gigante de águas crepitantes envolvia a ilha que despontava como um pontinho no horizonte. O Divina Providência III seguia contornando o imenso círculo, mantendo uma distância segura para evitar romper o limite

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entre o navio e o desastre. Era um momento de tensão para toda a tripulação que não podia correr o risco de cometer nenhum erro.Os novatos contemplavam a cena, extasiados. Por mais que imaginassem, jamais esperavam ver algo parecido. Como podia o mar mudar de comportamento abruptamente? Por um instante, o navio se aproximou tanto das águas enfurecidas que os alunos, assustados, gritaram em coro como se estivessem em queda livre numa montanha-russa.Rafael manifestou a sua emoção:- É mágico! Eu nunca experimentei nada igual- Só por esse momento já valeu a pena ter vindo! - disse Marc, maravilhado.Daniel, Chester e Margaret estavam encantados com aquela manifestação única da natureza. O sorriso deles era o retrato da felicidade que estava se concretizando com a chegada sonhada há tanto tempo. Uma chegada triunfal!Daniel olhou novamente para a ponte de comando e viu o comandante Hugo com a sua costumeira postura imponente. O comandante levantou o polegar fazendo um sinal de positivo para ele que respondeu prontamente.O senhor Ramón percorria o convés alertando:- Não se debrucem muito na amurada! Não queremos que aconteça nenhum acidente. — E puxando educadamente para trás alguns alunos mais imprudentes, continuava: — Não se debrucem muito na amurada!Numa guinada para boreste o Divina Providência III começou a se afastar do gigantesco círculo de

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águas enlouquecidas e, mais à frente, retomou a bombordo. Agora o navio seguia diretamente com a proa apontada para o mar revolto, causando apreensão maior aos calouros. Mesmo os mais experientes prendiam o fôlego, pois sabiam que a manobra que estava prestes a se realizar merecia uma boa dose de cautela. Outro espetáculo estava começando: uma larga faixa de águas calmas se abria como uma estrada longa e reta até a ilha, permitindo que a embar-cação penetrasse no círculo sem ser tragada pelo forte turbilhão. Aquela passagem levava diretamente à ilha que se tornava, aos poucos, mais perceptível aos olhos admirados dos jovens passageiros. Alguns, não querendo de maneira alguma perder os detalhes do show deslumbrante, corriam de um bordo ao outro como crianças em um parque de diversões repleto de sonhos e fantasias.- É como na Bíblia, com Moisés: As águas foram separadas — disse Marc de maneira solene.- Não foram separadas — consertou Rafael. — Tem muita água embaixo do navio.- Ora, é apenas um modo de dizer. Você não tem imaginação?Os olhos de Rafael e Marc brilhavam apreciando com admiração a aproximação da Ilha da Coroa que se materializava diante deles. Rafael exclamou.- As ondas, Marc, olhe como elas quebram nos rochedos!- Agora entendo por que a ilha tem esse nome! - deduziu Marc, concentrando o olhar na inusitada

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formação que emergia do oceano. — Veja as pedras pontudas! Elas parecem contornar toda a ilha, só deixando uma pequena parte livre. As pontas da coroa de um rei que cercam a ilha como se quisessem protegê-la contra o ataque furioso do mar.Marc estava certo. A formação rochosa, escura, quase negra, cercava toda a ilha e só permitia o acesso a ela por uma faixa de areia de uns oitenta metros de largura. Por uma coincidência inexplicável, essa era a mesma largura da passagem no mar que permitia o navio chegar com segurança até a areia da praia. As ondas explodiam com tanta violência contra a muralha de rochas que chegavam a atingir alturas vertiginosas, tornando a paisagem ainda mais dramática.Com a aproximação lenta e cautelosa do navio, já era possível distinguir dois longos atracadouros que avançavam paralelos, mar adentro, como duas pontes interrompidas bruscamente nos seus percursos. Um rebocador que saíra em auxílio do Divina Providência III, se preparava para iniciar os procedimentos de atracação. As potentes máquinas foram desligadas e somente o rebocador trabalhava com o motor a todo giro trazendo a embarcação lotada para o seu repouso. O Divina Providência III atracou perfeitamente entre os píers com extrema desenvoltura, os marinheiros mostravam suas habilidades jogando grossas cordas para a amarração do navio que cumpriu satisfatoriamente a sua missão.

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- Chegamos! - manifestou-se Margaret, posicionando-se, como de costume, no primeiro lugar da fila.Chester e Daniel, bem mais atrás, dessa vez não conseguiram acompanhá-la, superados que estavam pelo batalhão de gente que se apinhava aguardando para descer em terra.Marc e Rafael preferiram evitar o tumulto e, ainda inclinados sobre a amurada, se encantavam com a vista de parte da ilha. Em primeiro plano se erguia uma grande edificação de três andares ocupando extensa área do setor visível de toda a porção de terra. Uma dupla de torres de vigia se elevava nas duas extremidades oeste da imponente construção. O objetivo das torres parecia ser o de observar o que se passava na densa floresta que cobria o lado oeste da ilha. Mais a oeste ainda, sobre um monte escuro e rochoso, despontava um farol branco listrado de vermelho e que contrastava com o límpido azul do céu. O farol se erguia no topo do monte como uma gigantesca vela sobre um bolo. Outras construções menores rodeavam a principal, fazendo com que o conjunto arquitetônico se assemelhasse a uma pequena cidade interiorana. Aves marinhas faziam voos rasantes sobre o mar em busca da primeira refeição da manhã. Atobás, mergulhões e fragatas cortavam o céu num harmonioso balé aéreo. Rafael comentou quase sem sentir as palavras saírem de seus lábios.- Essa será nossa casa nos próximos anos.

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- Espero que seja agradável — desejou Marc se afastando da amurada. — Oito anos é um longo tempo.- Você está arrependido de ter vindo? - perguntou curioso, percebendo no tom de voz de Marc a possibilidade de que ele desistisse e fosse embora. Em seguida tentou animá-lo. - Com o tempo você vai gostar daqui.- O que você está dizendo? Não estou arrependido! - afirmou incisivo, tomando o caminho para a escada de acesso ao píer. - Quero fazer desse lugar algo interessante pra mim. Mas por ora, o que eu vi já é o suficiente para me convencer a ficar. Vamos descer?Rafael fez um aceno com a cabeça concordando em desembarcar logo e os dois seguiram juntos para o final da fila.

Capítulo 3Um Quarto para Quatro

Quando os seus pés tocaram em terra firme, Meg aguardou Daniel e Chester que se juntaram a ela e seguiram até o final do píer que sacolejava como uma enorme serpente de madeira sobre o mar. Eles nem chegaram a pisar a areia da praia, pois um caminho de pedras de tamanhos irregulares ligava o atracadouro até o pátio da escola que ficava em frente ao grande prédio principal. O sinuoso caminho era ladeado por vários mastros que sustentavam as bandeiras tremulantes de diversos países. Os calouros

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podiam identificar as bandeiras de Portugal, França, Espanha, Inglaterra, México, Estados Unidos, Brasil, Itália, Argentina e tantos outros que estavam ali representados. Todos aqueles países contribuíam por meio de doações em dinheiro e equipamentos para manter a instituição funcionando há mais de cinqüenta anos, formando intelectuais de renome. O valor da Escola Internacional do Atlântico era reconhecido no mundo todo. A instituição abasteceu o mundo com mentes brilhantes e muito bem preparadas nos campos da Matemática, Filosofia, Geografia, Biologia, Física, Química, Geologia dentre outros que consolidaram a boa fama da escola, fazendo frente às melhores organizações de ensino do planeta.A área livre da escola era ampla e bem cuidada. Inúmeras mesas com guarda-sóis de palha, para protegerem os alunos do sol forte, se distribuíam de maneira uniforme pelo enorme pátio. Ali, os alunos costumavam se reunir para darem seqüência aos seus estudos e também conversarem sobre outros assuntos, sempre vigiados pelos monitores atentos a qualquer ato de indisciplina.A frente, com andar ligeiro, o senhor Ramón conduzia o numeroso grupo de alunos que se aproximava da grande entrada em arco do prédio escolar com fileiras de janelas que contornavam a construção pelos três andares. Do lado oeste das edificações, a uns trezentos metros de distância, era possível vislumbrar uma espessa

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barreira de mata fechada que se estendia atravessando a ilha de norte a sul.Ramón deteve o passo e fez um gesto levantando o braço direito para que todos parassem. Ele esperou um momento até que os últimos retardatários se aproximassem e discorreu:— Bem-vindos à Ilha da Coroa! — apertou as mãos uma na outra e continuou falando. - Dentro de alguns instantes vocês ouvirão o pronunciamento de boas- vindas do nosso diretor, o Sr. Helmut Neckel. Sei que estão bastante cansados da longa viagem, mas logo serão liberados para descansarem um pouco antes do almoço.Com a chegada dos últimos alunos, foi formado um compacto semicírculo com mais de quinhentas pessoas que esperavam atentamente ouvir as palavras do diretor. Do fundo da entrada em arco foi aberta uma grande porta de madeira maciça marrom-escuro e surgiu um homem que devia ter uns sessenta anos ou mais. Seus olhos claros e cabelos brancos como os do comandante Hugo e seus óculos de aro fino e um paletó comprido cinza, não adequado ao calor tropical, lhe conferia uma aparência de alguém que ainda vivia no século XIX. Ele trazia algumas folhas que conferia rapidamente enquanto andava e ao chegar na beira da escada de cinco degraus que descia ao pátio, parou. Por um breve instante observou a massa de alunos que se postava à sua frente, e pronunciou:

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- Creio estar perante as mais privilegiadas mentes que habitam este planeta. Caso algum de vocês não concorde, o navio ainda está atracado e o momento de desistir é agora. - Fez uma pausa fitando alguns alunos que estavam mais próximos, como um sargento que desafia os seus soldados. - Eu espero e exijo duas coisas de vocês - disse provocando expectativa: — Dedicação e disciplina! - exclamou descendo os degraus e se aproximando dos alunos que mostravam a mesma expressão séria e intimidada. Caminhou a passos lentos olhando duramente nos olhos daqueles que formavam o primeiro pelotão. Helmut parou em frente a Meg e olhou diretamente para ela. — Para nós não importa o sexo, a cor da pele, a religião ou a origem dos que aqui estão, mas se vieram para essa ilha é porque devem ser os melhores. - Margaret quase não piscava e sequer movia um músculo. O diretor prosseguiu: — E vou exigir o melhor de cada um! Como sempre acontece todos os anos, alguns de vocês não resistirão e seguirão por aquele caminho até o navio e contarão aos amigos e parentes como essa escola é rígida e desumana. Melhor assim. Essa ilha não é lugar para derrotados. Só os melhores permanecem.Chester cochichou no ouvido de Daniel:- Bem-vindo a Legião Estrangeira!Helmut moveu a cabeça parecendo estar procurando o autor do gracejo. Ele passou a primeira folha que estava em suas mãos para o final e seguiu o seu discurso:

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- Nós queremos oito anos das suas vidas e em troca podemos oferecer uma vida de sucesso profissional e pessoal. Acho que não é novidade para ninguém que todo aluno aqui formado tem assegurada uma carreira com um futuro promissor. Nós temos a melhor escola e vocês as mais prodigiosas mentes — disse enrolando as folhas e fazendo um canudo com elas. — A união dessas forças será recompensada no final.Ramón já conhecendo o desfecho da fala retomou a palavra:— Atenção! Os veteranos já sabem qual o procedimento a tomar a partir de agora - e tirando uma caderneta do bolso do paletó, completou: - Os calouros devem me seguir imediatamente! - ordenou, e erguendo mais uma vez o braço chamou a atenção dos calouros. - Outra coisa, não se preocupem com as bagagens mais pesadas, pois elas serão levadas até os seus dormitórios pelos nossos ajudantes.Os veteranos já haviam se dispersado, restando apenas oitenta e três novatos que aguardavam as próximas orientações a serem passadas.Helmut e Ramón trocaram algumas palavras sem que ninguém mais ouvisse o que estavam conversando. E em seguida, o diretor sumiu atrás da grande porta de onde havia surgido. Ramón anotou algo em sua caderneta e se dirigiu novamente aos calouros:— Estão prontos? Então, sigam-me!Ele tomou o mesmo caminho do diretor e foi seguido pelos jovens iniciantes que procuravam acompanhar o seu passo apressado. Ao cruzarem

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a grande porta de entrada, penetraram em um saguão enorme com a parede ao fundo ocupada por inúmeros retratos que deveriam ser de pessoas importantes na história da escola. O ambiente era mais apresentável do que eles esperavam e os móveis e tapetes que decoravam o salão eram de um estilo bastante refinado. Os passos dos calouros provocavam estalidos como se estivessem no interior de uma catedral e por mais que diminuíssem o tom de suas conversas não conseguiam evitar o eco que se propagava por todo lado. Ao atravessarem o saguão, entraram por outra porta igualmente imponente e seguiram por um largo corredor que parecia não acabar mais. Candelabros de bronze e escudos de todas as cores e formas cruzados por belíssimas espadas, eram fixados nas paredes, dando um aspecto medieval ao local e despertando a imaginação dos novos moradores que por ali passavam.Rafael, que tentava não perder nenhum detalhe, comentou admirado:— Esse lugar é bem maior do que eu havia imaginado! Parece que estamos voltando no tempo.— Estou começando a gostar daqui - confidenciou Marc com um sorriso de encantamento ajeitando a teimosa alça da mochila em seu ombro.Antes que chegassem ao final do longo corredor, Ramón estacou em frente a uma porta larga e sinalizou com um movimento contínuo de mãos para que todos adentrassem.

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— Vamos, entrem! Acomodem-se nas cadeiras para que possamos dar seqüência ao programa e finalizarmos logo a admissão de vocês.Todos os alunos então invadiram um auditório de cadeiras enfileiradas que se elevavam cada vez mais à medida que se afastavam do tablado central. Marc e Rafael se sentaram na última fileira, e assim, podiam visualizar tudo bem de cima. Marc, apoiando seu cotovelo no braço da cadeira, aproximou-se de Rafael e comparou:— Isso aqui me lembra um pequeno teatro em que eu me apresentei no ano passado. A acústica daqui parece ser boa para uma audição de piano.- Você também toca piano? — perguntou curioso, descobrindo aos poucos as aptidões do amigo francês.- E violino também - concluiu como se tocar três instrumentos de forma magistral fosse a coisa mais corriqueira do mundo.— Violino?! - Espantou-se Rafael, percebendo que tinha conhecido alguém que era uma verdadeira orquestra ambulante.Os calouros se ajeitaram ao mesmo tempo em suas cadeiras ao notarem que estava adentrando no auditório o diretor Helmut, trazendo embaixo do braço uma volumosa pasta de cartolina preta. O diretor abriu a tal pasta sobre uma mesa de aparência sólida e contornos roliços e voltou-se para a platéia empurrando os óculos com o dedo indicador para mais perto dos olhos. Então começou a discursar:— Essa escola prima pela excelência na formação de seus alunos, como deve ter ficado bem claro.

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E para que isso aconteça efetivamente, é preciso que todos, sem exceção, cumpram determinadas regras de conduta — explicou retornando à mesa para pegar uma pilha de folhas datilografadas e depois continuou: — Esse é o regulamento que vocês deverão seguir enquanto estiverem nesta ilha — disse exibindo o regulamento e prosseguiu: — Estou falando com pessoas que têm a inteligência acima da média e que certamente entendem muito bem o que estou dizendo.O diretor passou a pilha de folhas para Ramón que imediatamente começou a entregar para os calouros desejosos de saber dos pormenores que constavam naquela lista. Enquanto a distribuição era realizada, Helmut adicionou outras recomendações:- Quero destacar algumas regras fundamentais para a boa estada de todos por aqui. - Preparou-se com uma breve pausa e elevando a voz, enfatizou: — O cumprimento dos horários como: levantar, entrar na sala de aula ou se recolher aos dormitórios é regra básica, passível de punição caso não sejam obedecidos. Os deveres depois da aula deverão ser apresentados dentro do tempo solicitado. Não aceitaremos justificativas de última hora para os possíveis atrasos - alertou, e aproximando-se ainda mais da platéia, correu um olhar severo de lado a lado, então disparou: - E finalmente! Ninguém!- articulou cada sílaba vagarosamente. - Em nenhuma circunstância está autorizado a entrar na floresta sem permissão.

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A inusitada regra deixou a todos intrigados. Por que não se podia entrar na floresta? O que havia lá que impedia os alunos de terem acesso àquela parte da ilha? Rafael olhou atônito para Marc que respondeu com ar de quem havia matado uma charada.Margaret não se segurou e levantou o braço pedindo permissão para falar. Helmut consentiu estendendo a mão na direção dela:— Qual o motivo da proibição de entrar na floresta?O questionamento de Margaret foi provocativo recebendo a aprovação silenciosa dos colegas que adoraram o seu atrevimento e também gostariam de saber a mesma coisa. Helmut se aproximou da aluna ousada e respondeu:— Foi oportuna a sua pergunta, Srta...— Margaret Crowley! — se identificou com segurança.— Crowley... — repetiu minuciosamente o sobrenome da menina buscando na memória alguma lembrança oportuna. Meg logo compreendeu que seu sobrenome era familiar ao diretor. Helmut deu prosseguimento à sua resposta:— O exercício da disciplina é essencial ao aprimoramento dos nossos alunos e o cumprimento das regras estabelecidas serve para acompanharmos o estágio de desenvolvimento em que se encontra cada um. Mas não é só isso - percorreu novamente os presentes com o olhar, e em tom professoral revelou: — Na floresta vivem animais

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peçonhentos e plantas tóxicas que poderiam matar com um simples e descuidado toque qualquer ser humano. - Olhou de novo para Margaret e provocou: — De que outra forma você acha que conseguiríamos manter centenas de alunos por ano nessa escola durante décadas sem ter havido sequer um caso de morte entre os internos?Meg ficou sem palavras e achou prudente não prolongar o assunto. Ela só estava começando e evitar confrontos seria a melhor estratégia a tomar.Helmut não hesitou em completar sua argumentação.— Mas não se preocupem, uma parte da área sudeste da floresta está livre para que os alunos possam fazer seus estudos e pesquisas, desde que supervisionados pelos nossos professores - disse pegando a pasta preta, já vazia, em cima da mesa, e finalizou: - Mais alguma pergunta?Mediante o silêncio que se seguiu, ele se despediu e retirou-se do auditório, tão inesperadamente quanto entrou.Daniel inclinou o corpo para o lado de Chester e perguntou murmurando:— Você ficou convencido com as justificativas desse... Helmut?— Nem um pouco e você?— Claro que não! Tem algo esquisito nessa história toda e eu gostaria muito de descobrir o que é - disse inconformado, tamborilando os dedos no braço da cadeira. - Também acho

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estranho o meu pai nunca ter falado nada sobre essa proibição.Ramón interrompeu novamente assumindo o comando da turma.- Muito bem, pessoal, para encerrarmos e podermos descansar um pouco antes da refeição ser servida, quero passar algumas informações complementares: caso alguns de vocês queiram se candidatar para trabalhar em algum departamento da escola, aproveitando suas habilidades, estamos aceitando voluntários. Tal atitude poderá melhorar seus conceitos no final do ano - afirmou riscando em sua caderneta o recado que acabara de passar e usando o lápis como uma batuta. — Se houver interessados me procurem na secretaria a partir de hoje à tarde - disse virando algumas páginas e achando outro recado que imediatamente foi passado.- Todos aqui receberam um cartão cada um com um código alfanumérico, confirmam? - Os alunos concordaram entre murmúrios e acenos. — Pois bem, esse código se refere ao número do dormitório que vocês irão ficar, seguido da primeira letra do sobrenome de cada um dos quatro companheiros de cada quarto.Marc puxou o seu cartão, e agora sabendo o que significava o misterioso código, conferiu em voz baixa:- Vinte e um CLFT... Veja Rafael, a terceira letra é "F" de Fournier.- E o dormitório é o 21 - completou Rafael tirando da maleta o seu cartão.

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- No meu está 16AFMR. Ficaremos em quartos diferentes - lamentou coçando a cabeça.Daniel e Chester já comemoravam, pois seus cartões tinham o mesmo código que indicava que ficariam juntos: 21 CLFT. O mesmo de Marc.- Só mais um momento, por favor! — exclamou Ramón pedindo outra vez a atenção da platéia e examinando sua caderneta, correu o dedo sobre uma página parando em uma anotação. — Tivemos algumas desistências e para um melhor aproveitamento dos dormitórios, faremos o remanejamento de alguns alunos — disse erguendo a caderneta para uma leitura mais clara. — O dormitório 16 será desativado por que dois dos alunos que ali estavam lotados não vieram e perderam suas vagas. O aluno Kamal Rached ficará no dormitório 14 e o aluno Rafael Fab no dormitório 21, substituindo outro desistente.Rafael vibrou:- Estamos juntos, Marc!- Seja bem-vindo, Rafael! - comemorou desferindo um tapinha no novo companheiro de quarto.Ramón encerrou a reunião com os calouros e conduziu-os, dessa vez até o final do amplo corredor que dava para outro salão, tendo ao fundo uma escadaria. Ele orientou:- Subam as escadas e procurem seus quartos. A direita fica a ala feminina e à esquerda a masculina. Os números estão fixados nas portas. - Puxou o relógio de bolso e verificou a hora. — O almoço será servido às 12 horas. Fiquem atentos

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e desçam imediatamente quando ouvirem o toque do sino.Os alunos subiram e a turma dividiu-se em dois grupos, o masculino e o feminino. Depois seguiram outro corredor olhando cada porta, procurando o número do dormitório em que deveriam se instalar:- Número 18! É mais para frente - disse Chester quando olhou a porta seguinte.- Quarto 19... 20... 21! E aqui! Chegamos! - disse Daniel parando em frente ao quarto e esperando Chester que vinha logo atrás.Daniel entrou primeiro e fez o reconhecimento do local. O dormitório náo era muito grande, mas havia espaço suficiente para acomodar com folga dois beliches, um armário de quatro portas que ia até o teto e uma mesa com quatro cadeiras, o bastante para os quatro alunos cumprirem as suas tarefas escolares ao mesmo tempo. Uma janela de duas folhas se abria para o lado oeste da ilha, sendo possível avistar uma grande área dedicada às práticas esportivas contornada por uma longa pista de corrida. Ao fundo se via a misteriosa floresta fechada que tomava mais da metade da ilha. Do meio da floresta se erguia um monte rochoso de formas arredondas que atingia uns trinta metros de altura, e no topo deste, se levantava o majestoso farol branco com faixas horizontais vermelhas, que era usado para orientar as embarcações durante as noites sombrias. Ao se depararem com a luz intermitente do farol, os navegantes sabiam que

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deveriam se afastar com urgência, pois estavam muito próximos de uma tragédia.Chester depositou suas coisas em um canto e comentou:- Já deixaram nossas malas maiores no quarto. O serviço de hotelaria é eficiente.- Esqueça o serviço de hotelaria - disse Daniel enquanto avaliava as condições do quarto que lhes fora destinado. - Teremos algum trabalho hoje para arrumarmos tudo nesses armários - comentou enquanto abria as portas e verificava o espaço disponível.A porta do quarto se abriu vagarosamente e os dois outros moradores do número 21 se mostraram aos seus novos colegas. Eram Rafael e Marc.- Olá, pessoal! — disse Rafael sorridente apertando a mão de Daniel e depois a de Chester.Marc fez o mesmo e retirou do ombro a sua mochila, deixando-a em cima de uma das camas. O quarteto se apresentou e o constrangimento inicial foi aos poucos se dissipando e dando lugar a um clima de confraternização. Eles conversaram sobre a viagem e também sobre o que havia acontecido há pouco no auditório.Marc, cansado da viagem, resolveu se esticar em uma cama enquanto Chester arrumava algumas peças de roupa, colocando-as empilhadas em uma prateleira do armário. Daniel sofria tentando abrir sua mala que havia sido trazida pelos carre-gadores e desabafou:

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- Droga! Parece que o fecho quebrou - constatou tentando virar a chave sem ter sucesso.- Posso tentar? - ofereceu-se gentilmente Rafael se agachando ao lado dele.- Tudo bem - concordou Daniel dando de ombros, descrente do êxito de seu novo companheiro de quarto.Rafael avaliou o fecho que resistia em não abrir, depois, levantou-se e foi até a sua pequena maleta de mão, pegando um pedaço de arame. Daniel olhava curioso aos movimentos do garoto, o que despertou também a atenção de Chester e Marc. Com destreza, Rafael introduziu o arame na diminuta fechadura e em questão de segundos ouviu-se um clique:— Pronto! — disse apontando para a mala com a ponta do arame. — Está aberta!— Ei! Você é bom nisso! — exclamou Daniel agradecido.— Faço essas coisas há anos. Abrir uma dessas é muito simples.— Você não me falou dessa sua habilidade — protestou Marc um tanto indignado por ser, dos três, o que mais deveria conhecer sobre Rafael.— Você não perguntou — disse rindo e se debruçando no parapeito da janela. — Uau! Olhem essa vista! Dá pra ver toda a mata daqui.- O que vocês acharam da explicação do Sr. Helmut proibindo de visitarmos a floresta? — perguntou Daniel dirigindo-se a Marc e Rafael.— Não acreditei em nada do que ele disse - respondeu Marc decidido. — Está escondendo alguma coisa.

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— Em minha opinião essa escola está envolta em mistérios - emendou Rafael igualmente desconfiado.- Ouçam bem o que vou dizer - preparou Marc sentando-se na cama. - Se eles estiverem escondendo algo nesse fim de mundo e se facilitarem... eu vou descobrir.Daniel e Chester se olharam com a firme sensação de que tinham encontrado um aliado.Rafael precisava concluir o curso e não queria arrumar complicações. Então mudou o tema do diálogo.- Vocês sabem qual o nome daquele monte que se eleva do meio da floresta? - indagou olhando para fora.- Eu sei! - respondeu Daniel com convicção. - Cabeça do Rei!— E sabe por que recebe esse nome? — questionou novamente testando os conhecimentos do novo colega.— Não — respondeu Daniel olhando de maneira interrogativa para os outros que também desconheciam.Rafael ficou de costas para a janela e, após apoiar os cotovelos no parapeito, explicou:— Durante séculos essa ilha tinha outro nome - disse fazendo uma pequena pausa. — Ela se chamava Garganta do Diabo.— Nome sugestivo — interferiu Chester apoiando o queixo no punho.— Só o nome já causava terror aos marinheiros que evitavam essa parte do oceano, temendo serem puxados pelas conhecidas águas

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diabólicas. Quando o Brasil conquistou a sua independência em 1822, mudaram o nome da ilha para homenagear Dom Pedro que foi coroado como o primeiro imperador do Brasil e também para apagar de vez aquele nome agourento — discorreu aos olhos atentos dos amigos, e concluiu: — Portanto, já que a ilha é uma imensa coroa, o monte que se ergue no seu centro seria parte da cabeça do rei. Daí o nome.De repente a conversa foi quebrada pelo ribombar do sino.— É a chamada para o almoço! — avisou Chester animado.— Estou morrendo de fome! — confessou Daniel. — Vamos descobrir onde se come por aqui.Eles escaparam imediatamente do quarto e se uniram aos demais alunos descendo as escadas, indo em direção ao refeitório. Eles acompanharam aquele mundo de gente aproveitando a experiência dos mais antigos e seguindo o caminho que levava até outro corredor que desembocava em um grande salão com várias mesas compridas que comportavam seguramente todos os alunos da escola. As filas foram formadas e lentamente os alunos foram se servindo e buscando algum lugar para almoçarem em meio ao barulho de talheres batendo nas bandejas de latão e das conversas animadas das centenas de jovens irrequietos. O almoço foi encerrado e outro momento livre foi dado aos alunos para que aproveitassem da melhor maneira que lhes conviesse.

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Os quatro companheiros resolveram conhecer melhor a parte externa da escola, contornando o gigantesco prédio e tendo uma melhor noção de todo o complexo. Eles decidiram conhecer primeiro a área destinada aos esportes e para-ram bem no centro para observarem melhor todo o cenário. Escolheram primeiro aquela parte não por acaso, era a que ficava mais próxima da floresta; homens vigilantes caminhavam nos limites entre a área aberta e o início da vegetação fechada, cuidando para que ninguém chegasse perto.- Isso está mais para um campo militar que para uma escola - comparou Marc cruzando os braços e olhando a sua volta.- Estão ouvindo o quebrar das ondas?Vamos até os rochedos - sugeriu Rafael apoiado pelos outros.Conforme se aproximavam, os estrondos se tornavam mais fortes. Ao estourarem, as ondas subiam acima das rochas aguçadas, se transformando em uma névoa que era carregada pelo vento. Aquele foi o momento em que eles puderam sentir a violência do mar contra as pedras. Não era de se admirar que nenhuma embarcação ficou inteira depois que caiu naquela armadilha da natureza.- Ei! Vocês! Saiam já daí! - gritou um homem de cabeça raspada e usando um bigode que mais se parecia as asas de um pássaro abertas. - Não podem ficar por aqui, é muito perigoso.

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- Desculpe, senhor - justificou-se Rafael, sentindo-se culpado por ter tido a idéia. — Não sabíamos que era proibido...- Mas agora já sabem! Dêem o fora!Marc não gostou nada da maneira grosseira com que o homem falou com eles, mas achou prudente não revidar e junto com os outros se afastou dali. Depois da bronca eles preferiram, por ora, não se meterem mais em encrencas. Era o suficiente para o primeiro dia. Marc lembrou-se de algo:- Preciso ir até ao gabinete do Sr. Ramón! - exclamou, levando as mãos à cabeça, manifestando seu esquecimento. — Ele quer falar comigo. Depois eu encontro vocês.Chester, por não saber o que havia ocorrido no navio, indagou:- Do que ele está falando?- O Sr. Ramón disse que precisava falar com ele, mas não mencionou qual o assunto - respondeu Rafael, desconhecendo também do que se tratava.Daniel, Rafael e Chester continuaram o passeio de reconhecimento e após contornarem os fundos do prédio central, viram um grupo de casas dispostas lado a lado com floreiras nas janelas e aparência bucólica.O trio continuou caminhando e parou diante da entrada do que parecia ser uma vila. Um homem gordo usando um macacão sujo de tinta parou de pintar um muro e veio até eles.- Olá, rapazes, posso ajudá-los? - perguntou, abrindo um largo sorriso enquanto limpava as

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mãos em um trapo, daí apresentou-se: - Meu nome é Júlio, trabalho no departamento de manutenção. Conserto coisas que os outros que-bram. Bem, às vezes também quebro alguma coisa.Os garotos riram entre eles e consideraram o amistoso Júlio a primeira cara simpática morando naquela ilha. Eles também se apresentaram e viram naquele comportamento amigável uma boa oportunidade para bisbilhotarem mais um pouco.- Quem mora nessas casas? — arriscou Chester fazendo a primeira pergunta.- Alguns professores e funcionários - respondeu apoiando as mãos na cintura. - Outros funcionários e o próprio diretor moram no prédio grande.- Você trabalha aqui há muito tempo, Júlio? - perguntou Rafael procurando ganhar confiança.- Quase dez anos. Mas me envolvi tão intensamente com a ilha que tenho a impressão de ter vivido aqui toda a minha vida.— Então você deve conhecer essa ilha como a palma de sua mão?— emendou Daniel com outra pergunta.— Nem tanto, existem lugares que não temos permissão para freqüentar - respondeu enxugando com o trapo o suor que lhe escorria da nuca.— Que lugares são esses? — insistiu Daniel.— A floresta é um deles — disse apontando. — Nenhum empregado como eu pode entrar lá.

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A fisionomia de Júlio ficou séria de repente e ele preveniu:— É melhor vocês irem andando... vão logo - murmurou e virou-se retornando ao trabalho.- O que deu nele? - perguntou Rafael intrigado.- Olhe para trás... ali está a sua resposta - alertou Chester acenando com a cabeça para saírem dali.Rafael virou-se e viu um homem alto de óculos escuros que os encarava com ar de reprovação, provavelmente por estarem conversando com Júlio.— Acho melhor irmos embora daqui - aconselhou Rafael intimidado.Eles se afastaram da entrada da vila e dirigiram-se até o pátio onde não seriam tão vigiados. Escolheram uma mesa longe dos olhares desconfiados dos monitores e se sentaram debaixo dos guarda-sóis para se protegerem do sol que queimava forte.

Marc parou em frente a porta onde havia uma placa que identificava que aquela era a sala do vice-diretor. Ele deu três batidas e aguardou. Quando já ia desistir mediante a demora, a porta se abriu e surgiu Ramón que olhou para ele e demorou um pouco para reconhecê-lo.-Ah, é você... o flautista! Vamos, entre!- O Sr. tinha me dito no navio para procurá-lo — justificou sua presença entrando na sala, reparando nos grandes armários e prateleiras repletas de documentos.

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- Claro, sente-se - disse remexendo um armário que guardava inúmeras pastas cuidadosamente organizadas. Ele correu os dedos passando por várias delas e puxou uma com um gesto rápido, daí sentou-se em frente a Marc.- Temos ótimas referencias suas — elogiou, abrindo a pasta e tirando algumas folhas que deveriam ser um relatório da vida de Marc. - Deixe-me ver... ah, aqui está! Um notável músico com um talento invejável - balançou a cabeça em sinal positivo e prosseguiu: - Toca piano, flauta e violino com ótima desenvoltura - disse fechando a pasta e entrelaçando os dedos. - Realmente, parece que estou diante de um gênio da música.- É... eu toco bem - concordou simplesmente, sem ainda entender onde aquela conversa iria chegar. Marc recordou-se que mencionou coisas de sua vida particular quando preencheu a ficha de inscrição meses atrás. As outras centenas de pastas arquivadas deveriam conter dados de todos os alunos como um eficiente serviço de espionagem.Ramón recostou-se na cadeira e, apontando para Marc, foi direto.- Você gostaria de ensinar a sua arte aos seus colegas?- Não sei... talvez... — respondeu Marc hesitante. — O que o Sr. pretende?- Como eu havia comentado antes, incentivamos o trabalho voluntário e a sua contribuição seria muito útil para nós e... esse nós inclui você, Marc Fournier — explicou procurando sensibilizá-lo.

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Ramón parou de falar e esperou por algum tempo a resposta de Marc que se fazia pensativo. Por fim respondeu decididamente.- Aceito!- Ótimo! Vou providenciar o local e os horários para as suas aulas.Marc gostou da idéia e deixou o gabinete satisfeito com a sua nova função. Ao sair para o pátio, Marc procurou os colegas no meio de outros alunos que se espalhavam por todos os lados.Rafael, vendo o amigo, acenou.- Ei, Marc! Aqui!Marc apertou o passo e se aproximou.- O que ele queria? - indagou Rafael, tão curioso como os demais.- Vocês estão olhando para o mais novo professor da escola - disse empinando o nariz.- Que história é essa? - quis saber Daniel considerando por demais absurda aquela conversa.- É isso mesmo, o Sr. Ramón me convidou para ensinar música aos alunos — explicou sentando com seus companheiros.- Marc é um músico de mão cheia - elogiou Rafael batendo com o seu ombro no ombro de Marc. - Vocês ainda vão ver, ou melhor, ouvir do que ele é capaz.A reunião descontraída foi interrompida por Meg que já chegou falando.- Oi, rapazes, posso me juntar a vocês? - perguntou acomodando-se entre Daniel e Chester.

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- Essa é minha irmã - disse Daniel apresentando-a sem entusiasmo. - Esses são Rafael e Marc.- Prazer, meninos! - disse apertando a mão dos novos colegas. - Tenho novidades para vocês, na entrada de cada ala foi colocado um quadro com o número da sala de cada aluno. Estou na sala IA — e olhando para Daniel avisou: — E você, Daniel, está comigo.Aquela foi uma péssima notícia para Daniel, pois a irmã não ia largar tão fácil do seu pé. Ele sabia muito bem que Margaret iria controlar os seus passos o tempo todo, só tendo um pouco de paz na ala masculina onde Margaret não podia entrar. Daniel também tinha plena consciência que a irmã vinha com o firme propósito de infernizar a sua vida tentando a todo custo superá-lo nas notas de todas as matérias, e se isso acontecesse, é claro que ela escreveria contando tudo com detalhes aos pais.Sem perder o fôlego Meg continuou.- Ah, sim! Você também está na nossa turma, Chester, fiquei muito feliz por isso. Aliás, as aulas já terão início amanhã cedo.Chester tinha gostado de ficar na mesma sala que eles, pois Daniel era um cara legal e também porque tinha simpatizado com a colega tagarela.Rafael levantou-se.- Vou indo, amigos, estou curioso para saber qual a sala que irei estudar durante esse ano. Mais uma vez, gostei de conhecê-la, Margaret.- Me chame de Su. É assim que gosto de ser chamada pelos meus amigos.Rafael se despediu mostrando um sorriso tímido.

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- Vou com você Rafael, quero descansar um pouco - disse Daniel se esgueirando da irmã.Chester e Marc decidiram ficar mais um pouco e fazer companhia a Margaret.- Já sabe quem são suas colegas de quarto? - perguntou Marc puxando conversa.- Só duas, uma delas é portuguesa, sorridente e falante, e também tem uma chinesa de olhar enigmático como uma gata observadora, a outra eu nem vi ainda - respondeu dando de ombros.Rafael chegou até o quadro de avisos e passou a procurar cuidadosamente o seu nome e viu que havia ficado na sala 1B. Em seguida passou a procurar o nome de Marc que para sua decepção também estava na sala 1A. Daniel que estava logo atrás dele, notando o descontentamento do colega, procurou confortá-lo.— Só estaremos separados pela manhã, Rafael, depois estaremos juntos o resto do dia.— É, você tem razão - aceitou sem muita firmeza na voz.

Os dois foram para o dormitório, e enquanto Rafael terminava de arrumar suas coisas no armário, Daniel se recostou na cama e o sono foi pesando suas pálpebras. Num leve cochilo ele se viu tentando a todo custo se embrenhar pela mata, mas era impedido por um emaranhado de galhos retorcidos, grossos cipós e raízes altas que dificultavam o seu avanço. Quanto mais ele tentava ir adiante, mais difícil se tornava a sua caminhada. De repente, Daniel sentiu os galhos se enroscarem nos seus braços e pernas e um

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cipó enrolou-se no seu pescoço como uma serpente determinada a enforcá-lo. Ele tentou gritar, mas a voz não saía. O ar começou a faltar e o desespero se apoderou dele. Por mais que se debatesse era inútil lutar. Daniel estava só. As árvores a sua volta tinham rostos disformes que lhe eram familiares. Mas quem? Claro! Eram os rostos de Ramón e do diretor Helmut!Um apito longo arrancou Daniel do seu pesadelo que saltou da cama e passou em disparada quase atropelando Rafael.— Daniel! Aonde você vai? — perguntou, achando esquisita a atitude dele.Rafael hesitou por um momento e saiu correndo atrás. Daniel descia as escadassaltando dois ou três degraus a cada passada. No seu encalço vinha Rafael gritando.— Daniel, espere! O que deu em você?Daniel correu para fora atravessando o pátio e indo em direção ao atracadouro. Rafael, sem compreender o que estava se passando, continuava perseguindo o amigo a certa distância. Daniel desacelerou o passo e finalmente parou e pode observar o Divina Providência III se afastando da ilha. Ele deu mais alguns passos e viu o comandante Hugo como costumava ficar, na mesma posição no seu posto de comando. Daniel agitou repetidamente os braços esperando que Hugo notasse o seu aceno. Nada aconteceu. Mas então houve a resposta. O comandante Hugo começou a acenar de volta e logo em seguida se ouviu um longo apito. O

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menino sorriu e lembrou-se: Talvez eu viva uma outra vida...— O que houve, Daniel? - perguntou Rafael ofegante.- Talvez ele viva uma outra vida... — sussurrou sem desviar a atenção do navio que se afastava.Rafael deu de ombros sem fazer idéia de nada e os dois voltaram calados.O sol tinha quase se posto no horizonte quando os alunos começaram a se retirar deixando o pátio quase vazio. Os estrondos provocados pelas ondas eram ouvidos com maior clareza e já se conseguia ver as primeiras luzes vindo das janelas dos pavimentos superiores. A pequena vila se encontrava toda iluminada compensando o breu da noite que caía pesadamente sobre a ilha. Foi então que os calouros presenciaram algo deslumbrante: um forte jato de luz vindo do farol começou a girar ininterruptamente, clareando alternadamente o mar a sua volta. Um espetá-culo que se tornaria corriqueiro todas as noites para os novatos.Após o jantar, Rafael entrou no quarto e acionou o interruptor.- A luz é fraca, não vai dar para estudar à noite.- Vocês leram o regulamento? — indagou Chester enquanto escalava o beliche pela escadinha lateral e sentava-se na beirada da cama, com os pés balançando no ar. - A luz é cortada às nove horas em ponto — informou e ergueu os olhos para o brilho fraco emitido pela única lâmpada no teto. - Isso é feito porque a luz é alimentada por um gerador que abastece toda a ilha e a

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prioridade é o fornecimento de energia elétrica para o farol que não pode deixar de funcionar e os refrigeradores de alimento que guardam toneladas de comida perecível.A cada dez segundos o clarão produzido pelo farol batia na parede oposta do quarto causando preocupação.- Como vamos dormir com essa luz ofuscando a nossa cara? - indagou Daniel indignado.- E se fecharmos a janela vamos morrer torrados de tanto calor - manifestou-se Marc tirando a flauta de dentro da mochila.- O jeito é nos acostumarmos e pronto - completou Chester abrindo a porta do quarto. — Vou ao banheiro coletivo e já volto.- Olhem lá fora! - exclamou Rafael dando uma espiada pela janela. - A floresta agora é só um borrão escuro depois que o farol passa pelas copas das árvores.- Os monitores continuam lá — disse Daniel forçando a vista para ver melhor.— Pelo jeito, ficam ali a noite toda.- Estou convencido que tem alguma coisa misteriosa no meio daquela floresta - alertou Marc empunhando a flauta. — E deve ser muito importante para que eles queiram nos manter longe a qualquer custo.Marc começou a tocar uma música, mas tomando o cuidado de não soprar forte, pois àquela hora qualquer ruído poderia ser escutado a distância. Daniel, que ainda não tinha ouvido Marc executar sua bela melodia, ficou apreciando em silêncio.

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Quando Marc terminou, Daniel enfatizou o seu talento.- Você é muito bom mesmo! Faz parecer muito fácil tocar flauta.Marc riu.Chester retornou para o quarto e depois de fechar a porta cuidadosamente, murmurou.-Tem outro monitor vigiando aí fora no corredor. Ele ficou parado me olhando enquanto eu ia do quarto até o banheiro e fez a mesma coisa quando voltei.— A situação está ficando séria — salientou Rafael enquanto vestia o pijama. — Pelo visto seremos vigiados o tempo todo, mesmo quando estivermos dormindo.- Sabe de uma coisa? — questionou Daniel respondendo ele mesmo. - Estou começando a gostar de tudo isso.— Para um primeiro dia já dá para perceber que alguma coisa obscura existe lá fora... ou mesmo aqui dentro - refletiu Marc deitado e cruzando as mãos por trás da cabeça. - Só precisamos saber o quê!A conversa prosseguiu por mais um tempo quando tudo ficou em total escuridão só quebrada de vez em quando pela luz do farol. Eram nove horas, as luzes foram desligadas. Rafael aconselhou.- Acho melhor dormirmos logo para que possamos ter disposição no nosso primeiro dia de aula.Aos poucos eles foram adormecendo, só restando Marc acordado que prestava atenção cada vez que o farol tornava a clarear brevemente a

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parede do quarto. Ele ouviu passos no corredor que se aproximaram e depois cessaram parecendo que niguém estava parado bem em frente ao quarto deles. Marc prendeu a respiração ficando atento. Deve ser o monitor ouvindo detrás da porta. Os passos recomeçaram, se afastando, e Marc não ouviu mais nada lá fora. Ele imaginou se a luz que o farol lançava dentro do dormitório não era uma outra forma de espionarem os alunos. Pura bobagem, concluiu balançando a cabeça em reprovação às suas próprias idéias. Cansado ele não resistiu e também caiu no sono.

Capítulo 4Perguntas Inconvenientes

O toque do sino anunciou o momento de despertar. Eram seis horas e os quatro companheiros levantaram vestindo-se sem perder um segundo, cientes de que o atraso não era tolerado. Correram para o banheiro coletivo para fazerem a higiene matinal e daí foram direto para o refeitório para o desjejum. Chester, segurando a caneca com uma mão e um pedaço de pão com a outra, comentou após um longo gole de café:- Ainda temos pouco mais de vinte minutos para sairmos e procurarmos nossas salas.— Não deve ser difícil a localização - disse Daniel com a boca cheia. - É só seguirmos os veteranos e acharemos com facilidade.

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Rafael ao perceber que o refeitório se esvaziava rapidamente, alertou:- Vamos logo ou ficaremos para trás, não quero ser o último a entrar na sala de aula.Os garotos se levantaram ao mesmo tempo deixando suas bandejas em um local apropriado. Eles seguiram por outro corredor que era ladeado por janelas em forma de arco que dava para um formoso jardim e ao final daquele belo caminho chegaram à área acadêmica propriamente dita. As salas 1A e 1B eram as primeiras da ala de estudos. Rafael despediu-se dos colegas enquanto conferia o número de sua sala.— Nos vemos mais tarde, boa sorte, amigos.Os outros retribuíram e entraram logo.Cada sala comportava pouco mais de quarenta alunos e os materiais escolares como lápis, borracha e cadernos já estavam aguardando em cada carteira. Os alunos que iam chegando se acomodavam nos lugares que mais lhe agradassem e em pouco tempo a sala estava totalmente ocupada. Rafael olhava para os lados e sentia aquele desconforto natural do primeiro dia de aula. Na outra sala, Daniel, Marc e Chester acabaram sentando na última fila, pois os outros lugares já se achavam tomados. Margaret ocupava a carteira central da primeira fila e examinava atentamente o material novinho que acabara de receber.O sino voltou a tocar anunciando o início da aula. Em poucos segundos entrou na sala 1B, a de Rafael, um homem de fisionomia tipicamente

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oriental, e depois de se ajeitar, apoiou as duas mãos sobre a mesa e se apresentou:- Sejam bem-vindos — cumprimentou em tom de simpatia —, meu nome é Mitsuro Takahashi. Sou o professor de Biologia.O professor Mitsuro, um japonês de rosto redondo e fala mansa, parecia ser uma boa pessoa e em poucos minutos iniciava os primeiros conceitos de sua disciplina. Ficou célebre pela quantidade de espécies de animais e plantas que identificou e catalogou quando passou quase um ano na misteriosa floresta amazônica. Referia-se àquela floresta como sendo um planeta dentro de outro planeta, tal a diversidade biológica que havia por lá. Com isso, tornou-se um especialista em sobrevivência na selva. Inúmeros livros e artigos sobre biologia citavam o seu nome e as suas descobertas. Mas agora estava ali, ensinando aos calouros os primeiros passos da sua doutrina.Na sala 1A o ano letivo começou com a aula de Geologia ministrada pelo professor Brian Hamilton. O professor Hamilton, inglês de origem, alto, magro de olhos aguçados, cativou logo a turma ilustrando a sua aula com as histórias de suas viagens que fez pelos quatro cantos da Terra. Ele narrava as suas aventuras de tal maneira que quem as ouvisse tinha a impressão de estar assistindo a um filme. Certa vez, no Himalaia, se deparou com uma avalanche e se não se protegesse atrás de uma enorme rocha, teria sido soterrado por toneladas de neve. Em outro episódio, quase foi chamuscado

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pela lava de um vulcão no Hawai. Margaret, entu-siasmada, erguia o braço constantemente e fazia perguntas e mais perguntas. O professor respondia a todas pacientemente.Marc aproveitou a oportunidade e levantou uma questão.- O que o senhor pode nos dizer sobre a Ilha da Coroa? Como se explica do ponto de vista geológico?- Essa pergunta vem sendo feita há séculos — respondeu o professor Brian circulando entre os alunos, ele gostava de ministrar suas aulas andando a esmo pela sala como os filósofos da antigüidade costumavam fazer ao ar livre, seguido pelos seus alunos. - E embora muitos estudos tenham sido realizados, esse continua sendo um dos maiores mistérios da natureza. Se não o maior.- Provavelmente alguma coisa no interior da ilha seja responsável por esse comportamento estranho - propôs Chester. - Já foram feitas escavações? Quem sabe talvez encontrem a resposta no subsolo.- Tudo isso já foi feito, caro rapaz - respondeu neutralizando todas as suposições. - E posso assegurar que a sociedade científica internacional trabalha com incontáveis possibilidades. As pesquisas prosseguem e qualquer novidade eu serei o primeiro a informá-los.— Faremos pesquisas de campo? — indagou Daniel tirando proveito da receptividade do professor.

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— Sem dúvida alguma. Todas supervisionadas por mim ou pelos meus colegas.A aula transcorreu satisfatoriamente produtiva, quando foi encerrada pelo sino que voltou a badalar. Um intervalo de quinze minutos foi feito e os alunos retornaram às suas salas para continuarem os estudos.Enquanto Rafael fazia algumas anotações no seu caderno cheirando a novo, entrou na sala um professor de pele morena e cabelos negros. Ele tinha covinhas nas bochechas e jogava com as pontas dos dedos os cabelos para trás que voltavam a lhe cair na testa.— É um prazer tê-los aqui — disse mostrando um sorriso amável. - Me chamo Guillermo de Leonar Santana. Sou o professor de Química e é meu dever avisá-los que teremos um ano intenso de atividades. Portanto, deem o máximo de vocês e esperem a mesma coisa de mim - dizia, ao mesmo tempo em que analisava os rostos estáticos de seus espectadores. - Nas quintas-feiras teremos aulas práticas no laboratório e a cada duas semanas serão aplicados testes antes das provas mensais.A turma prontamente entendeu que Guillermo não estava para brincadeira apesar do seu rosto simpático e da sua voz agradável. Guillermo era um químico brilhante, ganhador de diversos prêmios importantes no meio científico, entretanto, não se preocupava em ir recebê-los pessoalmente. Justificava as suas freqüentes ausências dizendo que não tinha tempo para ficar viajando, pois a ilha era a sua prioridade. O

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laboratório era o local onde passava a maior parte do seu tempo, combinando fórmulas e fazendo anotações sem parar. A direção da escola lhe supria com todo o material que ele requisitasse, sem pestanejar, pois sabia que os resultados das suas experiências sempre trariam novidades. Vez ou outra recebia uma carta vinda da Espanha, sua terra natal, eram seus pais que cobravam uma visita que já não acontecia há quase três anos. Guillermo tinha por hábito responder que estava afundado no trabalho, mas que na sua primeira chance cruzaria o oceano para reencontrá-los.Em poucos minutos ele preencheu quase toda a lousa com fórmulas e elementos químicos, traçando flechas com o giz e explicando cada detalhe apaixonadamente como estivesse declamando um poema.Quando o professor Rajev Shekar se apresentou, imediatamente compreenderam que estavam diante de um dos maiores nomes da Física de todos os tempos. Ele se distinguia por ter a pele mais morena que a do professor Guillermo, cabelos negros como as penas de um corvo e usava um anel com uma pedra azulada na mão esquerda. O seu nome rodava o mundo e todas as conferências de que ele participava eram certeza de lotação esgotada. Tinha diversos livros publicados e o próprio Albert Einstein, o gênio da física, assinava o prefácio de alguns deles. Nos últimos cinco anos, Rajev passou a maior parte do seu tempo dedicando-se a lecionar para os alunos da Escola Internacional

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do Atlântico, o que era uma honra para a Instituição. Os convites choviam para Rajev dar aula nos Estados Unidos e na Europa, mas ele permanecia irredutível. Afirmava que a sua missão na Ilha da Coroa ainda não havia terminado e isso bastava.Margaret não perdeu tempo.- Existe alguma explicação para os fenômenos que acontecem nessa ilha, professor Rajev?- Sempre há uma explicação — respondeu enquanto apagava a lousa. — Só que iinda não a temos. Teorias nesse caso existem dezenas, talvez centenas, mas um pesquisador sério não pode jogar aleatoriamente suas idéias sem um embasamento científico criterioso, pois corre o risco de ser ridicularizado - esclareceu enquanto regava um giz numa pequena caixa de madeira, então voltou-se para a aluna. - Cautela e muito trabalho são dois fortes aliados dos cientistas.- E o senhor, tem uma teoria? - perguntou Marc do fundo da sala.O professor Rajev parou por um instante torcendo a boca e depois respondeu.- Muitas pessoas levantam as suas próprias hipóteses. Eu tenho a minha. Mas linda existem pontos obscuros na teoria que defendo — ele franziu a testa e concluiu — Por enquanto a mantenho em total sigilo.A resposta de Rajev Shekar elevou a curiosidade dos alunos, mas não ousaram insistir com mais perguntas.

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As aulas tiveram seqüência até o final da manhã quando a batida do sino encerrou o primeiro dia de aula.Rafael se encontrou na saída com os seus três amigos de quarto e cercado por um monte de alunos que saíam numa confusão de vozes, quis saber de tudo.- O que vocês acharam das aulas?- Tivemos geologia e física — respondeu Marc procurando uma brecha entre os alunos. — Os professores são muito competentes. E você, o que achou?- Tive aulas de biologia e química. De fato, os dois professores são ótimos — avaliou cheio de contentamento. - Agora tenho certeza de que vou gostar muito le estudar nessa escola.- Conseguiu arrancar alguma coisa dos professores? — perguntou Daniel alcançando Rafael.- Nem abri a boca. Não me senti à vontade em perguntar, e vocês, tiveram algum sucesso?— Nenhum - respondeu Daniel olhando para os lados. - Eles sempre dizem a mesma coisa. Não sabem de nada... Não viram nada...Os garotos voltaram para o quarto com tempo suficiente até a hora do almoço. Marc comentou enquanto folheava o que tinha escrito nas aulas.— Viram a grade disciplinar que veio com o material? Teremos atividades esportivas três vezes por semana na parte da tarde.— E perceberam como nos encheram de tarefas? — atentou Daniel conferindo os cadernos. — Mal teremos tempo para respirar.

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— E isso é só o primeiro dia — emendou Rafael. — Se deixarmos acumular os deveres estaremos em maus lençóis.— Nunca tive notas baixas em toda a minha vida - revelou Chester. - E não vai ser agora que isso vai acontecer. Vou tratar de me organizar para evitar surpresas desagradáveis.A tarde correu bem tranqüila dando tempo para que todos pudessem pegar os uniformes de ginástica no almoxarifado que ficava próximo a área destinada aos esportes. Consistia em camisetas brancas e calções azul-marinho que iam até os joelhos para os meninos. As meninas usariam camisetas igualmente brancas fechadas até o pescoço e bermudões que chegariam na altura das canelas não muito adequados ao calor reinante naquelas latitudes.O grupo dos iniciantes se reuniu no centro esportivo conforme fora determinado por um dos monitores para aguardarem a chegada do professor de educação física. O professor chegou em seguida despertando a atenção dos alunos, pois tinha mais de um metro e noventa de altura e uma constituição física que exibia sua forte estrutura muscular ao menor movimento. Era possuidor de cabelos castanho-claros e os olhos que não definiam a cor, ora verde, ora azuis, dependendo da luz que lhes incidia. De ar extremamente sério, em nenhum momento expressou algo que lembrasse um sorriso. Usava uma camiseta de malha cinza e calça preta de um tecido grosso e sapatos com solas feitas de pneus velhos revestidos com lona de caminhão

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que ele mesmo manufaturava. Os tais sapatos tinham uma aparência grosseira, mas eram bastante resistentes e flexíveis, adaptados aos exercícios físicos de grande impacto. Na mão esquerda carregava uma prancheta com uma lista de chamada que usaria logo em seguida. Norte-americano de nascença, passou alguns anos servindo a marinha dos Estados Unidos onde era respeitado por ser um homem determinado e com uma disposição física de causar inveja. Ainda na marinha, por dois anos consecutivos, foi campeão do torneio de boxe da costa leste quando recebeu o apelido de marinheiro-de-aço.- Sou Roger Seffel Burke, o professor de Educação Física. Durante uma hora e meia, três vezes por semana, vocês estarão sob minha responsabilidade.Em seguida, posicionou a prancheta e iniciou a chamada, olhando cada aluno que respondia estar presente, como se quisesse gravar cada fisionomia na memória. Depois ordenou:- Quero que vocês dêem três voltas na pista. Corram! Agora!Os jovens atletas se dirigiram para a pista de corrida e iniciaram a carga de exercícios.Marc emparelhou com Chester que corria junto a Rafael, o garoto francês ironizou:- Simpático, vocês não acham?- Para um professor ele foi bem mais áspero do que os outros que conhecemos hoje - opinou Chester acelerando o ritmo.Margaret encostou em Daniel e instigou:

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- Você está muito mole, caro irmão, acho que não consegue completar as voltas.- Nessa matéria você não chega nem aos meus pés, irmãzinha - respondeu subestimando-a com um sorriso de provocação.- Isso eu quero ver — disse em tom de desafio.Os dois arrancaram em disparada deixando Chester, Rafael e Marc para trás.- Mas até aqui eles competem? — comentou Chester que estava começando a conhecer bem a rivalidade entre os irmãos.- Principalmente aqui - disse Marc ofegante.Os garotos passaram a percorrer o lado da pista mais próximo da floresta quando Marc observou:- Vocês notaram aquela trilha que se embrenha pela mata?- Não — responderam Chester e Rafael ao mesmo tempo.- Na parte mais ao norte, há um caminho que eu só notei agora quando fizemos a última curva. Prestem atenção na próxima volta.Quase dando uma volta nos três vinha Daniel já com alguma vantagem sobre Margaret que não se entregava.- Mais rápido, Daniel, ela está alcançando você! - envenenou Chester só para irritar o amigo.Pouco depois vinha Margaret com o cansaço estampado no rosto, mas sem apresentar nenhum sinal de que iria desistir.- Vamos, Margaret, Daniel acabou de dizer que você estava comendo poeira! - incendiou Chester novamente acirrando ainda mais a disputa.

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Na segunda volta, Marc voltou a chamar a atenção para o que tinha visto anteriormente:- Olhem, lá está!- É sem dúvida uma trilha - concordou Rafael. - Mas a vista daqui não é muito boa. Existem outras duas, uma mais ao sul próxima aos rochedos e outra que entra reto pela mata, mas essas têm os caminhos bem definidos escoltados pelos guardas.- Quem sabe da janela do nosso quarto a gente consiga enxergar melhor - sugeriu Marc enxugando umas gotas de suor que lhe escorriam pelo queixo.- E aquelas vigias que mais parecem torres em um castelo medieval - observou Rafael. - Há um homem em cada uma delas. Garanto que devem estar armados e atiram no primeiro que se aproximar da floresta.Marc e Chester riram da observação exagerada.Ao se aproximarem do professor Roger ouviram a reprimenda:- O que há com vocês? Parecem velhas com reumatismo. Mais rápido! Mais rápido!Instantaneamente, dispararam obedecendo a ordem dada. A última volta foi concluída em menor tempo, mas o calor que era muito forte esgotou as suas forças e secou a garganta deles.Na linha de chegada estava Daniel inclinado com as mãos apoiadas nos joelhos e respirando fortemente pela boca, o peito inflando e esvaziando desesperadamente por mais ar. Próxima a ele, Meg, agachada e ofegante, balbuciava entre uma respiração e outra:

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- Ainda... vou... vencer você...O professor Roger, não satisfeito, mandou que os alunos se agrupassem em uma cancha de terra batida e determinou sem dar chance para o descanso.- Agora quero que vocês deitem e façam cinqüenta exercícios abdominais e ao terminarem, mais dez flexões. Vamos ver até onde agüentam.A teimosia e a vontade de superação fizeram com que Margaret completasse todos os exercícios exigidos, o que causou admiração por parte do professor.- A menina foi melhor que alguns garotos - disse apontando para ela.Era tudo o que Meg queria ouvir. Ela olhou para Daniel estampando um risinho cínico.- Pronto... agora agüente - desabafou Daniel sussurrando no ouvido de Rafael.- Vão para o vestiário e vistam os trajes de banho. Quero ver como vocês nadam.Pouco tempo depois os alunos retornaram. O professor Roger puxou a fila indo direto para o ginásio. Aquela era uma ala ainda desconhecida pelos novatos.O ginásio tinha uma variedade de equipamentos para ginástica: barras, pranchas, argolas, cordas e no centro, uma piscina de vinte e cinco metros com um trampolim em uma das extremidades que se erguia a uma altura de cinco metros.— Os que sabem nadar façam três filas na borda — convocou o professor expondo a mesma expressão desprovida de sentimentos.

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Meg pulou na frente e ponteou uma fila. Daniel não querendo ficar em desvantagem liderou a outra e Rafael ficou com a terceira. Ao sinal os três saltaram na água e deram o máximo para chegar ao outro lado. O professor que os esperava na outra borda rosnou.— Vocês chamam isso de nadar? Se caírem no mar vão acabar no fundo. Uma bigorna se sairia melhor.Aos poucos, todos tentavam atravessar a piscina à sua maneira, mas nenhum foi aprovado. Meg torcia os cabelos úmidos decepcionada, pois esperava receber um elogio ao mostrar seus dotes como nadadora, o que não aconteceu. Roger então tirou os sapatos e de roupa e tudo mergulhou, nadando como um peixe para espanto e admiração da platéia ao redor. Com poucas braçadas tocou do outro lado, tomou impulso com as duas mãos apoiadas pulou para fora da água e sentou na borda.— É isso que eu quero de vocês... determinação e disciplina!— Já ouvi algo parecido — lembrou Marc cruzando os braços sobre o peito molhado.— Se eu conseguir nadar assim, já me dou por feliz - disse Chester, admitindo a excelente performance do professor atleta.Roger deu mais algumas orientações sobre o jeito certo de se bater braços e pernas na água e por fim liberou os alunos.Após tomarem banho e se trocarem, foram para o refeitório e comeram como nunca. O excesso de atividades do primeiro dia tinha consumido

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todas as suas energias e quando finalmente retornaram para o quarto, estavam tão cansados que só queriam relaxar. Necessitavam mesmo é de um sono restaurador.Rafael chegou até a janela e olhou lá fora.— O professor Roger ainda está lá na pista, correndo. Parece incansável.— Pois estou esgotado — confessou Daniel, desabando na cama. - Tenho que estar bem-disposto ou amanhã não acordo.Marc também se aproximou da janela, esticou-se todo e comentou.— Não dá para ver aquela trilha direito agora. O sol já foi embora e o ângulo de visão não favorece muito, mas talvez amanhã, com o dia claro, dê para ver melhor.O farol foi ligado e iniciou a sua rotação iluminando o mar e a ilha alternadamente. Marc permaneceu na janela para ver até onde ia a disposição do professor que continuava no mesmo pique.Chester que acabara de ir ao banheiro, retornou avisando.- O nosso amigo monitor está aí fora farejando os nossos passos.- Ei! Cheguem aqui na janela! - chamou Marc olhando atentamente para fora.Os outros se juntaram a ele para ver o que era.- Olhem bem, quando o farol ilumina a entrada da trilha - alertou Marc apontando para o local. - Vocês viram? Aquele homem que está indo naquela direção?

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- O que tem ele? - perguntou Rafael se esforçando para ver dentro da escuridão que a noite despejava sobre a ilha.- É o professor Roger... perceberam? Acaba de entrar lá!- Você tem certeza? - indagou Daniel titubeante. - Não deu para ver se foi na tal trilha que ele entrou.- Só pode ter sido! - insistiu Marc. — Se não tivesse ido por aquele caminho, ainda o veríamos contra as árvores.- Acho que ele tem razão, Daniel - admitiu Chester. — Ainda posso ver o vigia caminhando ali perto, mas o professor, não o vejo mais.- Vou ficar aqui e esperar até que ele retorne — disse Marc decidido. — Precisamos saber onde vai dar aquele caminho.Marc permaneceu a postos pouco mais de vinte minutos até que sua persistência foi recompensada:- Pessoal! Vejam! Ele está voltando.- Alguém apague a luz do quarto - solicitou Marc se debruçando ainda mais no parapeito.- É ele mesmo! - admitiu Daniel se esticando todo.- Deve estar indo para a vila - imaginou Rafael. - Talvez more em uma daquelas casas.O escuro da noite tomou conta da ilha e na impossibilidade de continuarem bisbilhotando deixaram o assunto esmorecer. Aproveitaram então o tempo que ainda dispunham antes que a luz fosse cortada e repassaram a matéria dada. O último a se entregar ao cansaço foi Marc, como de costume. Ele ainda abriu os olhos mais uma

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vez achando ter ouvido passos ou algum outro ruído suspeito, porém só conseguiu ouvir as ondas que se chocavam ao longe contra os rochedos e o farfalhar das folhagens de alguma árvore mais próxima ao prédio, agitadas pela fresca brisa do mar. O dia havia acabado.

Capítulo 5Nuvens Negras

No segundo dia de aula, os quatro companheiros, em acordo com Margaret, decidiram não encher mais os professores com aquelas perguntas impertinentes. Em vez disso, resolveram ir fundo nos estudos que eram o real motivo de eles estarem ali. A cada nova aula era despejada uma bateria de tarefas tão grande que a curiosidade que sentiam quanto aos mistérios que circundavam a Ilha da Coroa foi aos poucos sendo colocada em segundo plano.No fim da manhã, quando os alunos já se retiravam da sala, um monitor de olhos saltados e bigodinho fino aproximou-se de Marc passando-lhe um recado:- O senhor Ramón deseja falar-lhe agora.- O que ele quer comigo? - perguntou fazendo um sinal com a mão para os amigos esperarem.

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- Não me disse, só mandou avisá-lo. Ele o aguarda no seu gabinete - completou e desapareceu no meio da multidão de alunos.— Vão indo - disse Marc —, eu encontro vocês depois.Marc foi direto à sala de Ramón, encontrando a porta aberta e o professor afundado em tarefas burocráticas.— Com licença, senhor...- Entre, Marc - disse voltando a ler um papel sobre a mesa e de novo olhando para o garoto músico. — Tenho boas notícias, sente-se.Ramón cruzou as mãos sobre a mesa e explicou:— Consegui um local apropriado para as suas aulas de música, fica próximo ao ginásio e tem uma boa acústica. Temos alguém da manutenção trabalhando para aprontá-lo até a próxima quinta-feira. A propósito, eu escolhi as quintas-feiras para as suas aulas, tudo bem?— Por mim está bom.- Venha, vou lhe mostrar para ver se gosta.Ao chegarem no salão se depararam com um piano que Marc prontificou-se a testar. Seus dedos correram habilmente sobre as teclas e entre um dedilhar e outro suas feições se contorciam como se uma agulha estivesse sendo enfiada nos seus ouvidos.— Está um pouco desafinado, mas se vocês tiverem os equipamentos necessários eu dou um jeito.— Não se preocupe — disse Ramón apoiando o cotovelo no piano. — Tudo estará pronto até amanhã.

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— E os alunos, com que instrumentos irão tocar?— Alguns trouxeram os seus de casa. Receio serem músicos amadores - explicou, dando o seu parecer. - E temos outros instrumentos que fazem parte do acervo da escola. Há mais de dez anos tivemos um professor de história que tocava piano, e muito bem por sinal. Ele tirava algumas horas de folga para ensinar música a quem se interessasse.— O que aconteceu com ele? — indagou Marc verificando o espaço disponível a sua volta.— Foi embora e as aulas foram canceladas.Ramón passou a dedilhar uma música ao piano, o que deixou Marc surpreso.— Não sabia que o senhor também tocava.— Aprendo o que sei aqui mesmo neste piano há muitos anos - revelou tirando uma última nota e depois ao fechar a tampa prosseguiu. — Sou mais um curioso que um pianista como você pode notar. O acúmulo de trabalho como vice-diretor aos poucos foi me afastando da música. Espero que você possa reviver isso tudo e passar um pouco do que sabe aos seus colegas. Quem sabe formemos até uma orquestra — disse sorrindo.— Conte comigo, senhor Ramón! — exclamou contente por descobrir um lado mais amistoso daquele homem.A hora do almoço havia chegado e Marc dirigiu-se ao refeitório. Chegando lá, seus colegas devoravam a comida. Marc colocou a bandeja sobre a mesa e sentou-se.

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— Pensamos que não vinha mais — disse Daniel gesticulando com o garfo.— Fui conhecer o local onde darei aula.— E gostou? - perguntou Rafael cortando um pedaço de carne.— Ainda está um pouco empoeirado, mas quando estiver pronto vai servir bem.Meg se aproximou trazendo uma colega que os meninos ainda não conheciam.— Oi, rapazes, essa é Ângela Bertassello, a minha colega de quarto.Ângela era italiana, olhava os rapazes com seus olhos grandes e castanhos, cabelos um pouco mais escuros que o olhar e compridos que iam até o meio das costas. Tinha um sorriso tão simpático que conquistou os garotos em segundos. Seu pai era diplomata e por causa disso, apesar da pouca idade, ela já havia morado em países como Argentina, Portugal e Austrália.A inspetora Elvira, responsável pelo bom andamento da ala feminina, passou próxima a eles com um olhar inquisidor. Não aprovava o contato contínuo entremeninos e meninas, embora não pudesse evitar, afinal todos ali eram colegas. Chester inclinou-se procurando ser discreto e perguntou:— Como é a inspetora de vocês?— Muito sisuda - respondeu Margaret. — Controla com rigor cada uma de nós e exige que estejamos em nossos aposentos logo após o jantar.

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— Não se sintam tão controladas - disse Rafael, depositando os talheres na bandeja vazia. - Não é muito diferente na nossa ala.- Até quando estamos dormindo eles nos vigiam - completou Marc mordendo uma maçã bem vermelha.A tarde foi livre, o que ajudou consideravelmente para que os estudantes adiantassem os trabalhos escolares. Os meninos, juntamente com Margaret e Ângela, se reuniram no pátio debaixo de uma sombra e, refrescados pela brisa que não parava de soprar, trocaram idéias sobre as lições e se ajudaram mutuamente esclarecendo as dúvidas que por ventura surgissem. Quando o sol se pôs no horizonte, eles se despediram e depois do jantar foram para as suas alas. Daniel, de prontidão na ianela e com tempo de folga, pois havia deixado em dia as suas obrigações estu-dantis, admirava a paisagem e aproveitava a leve brisa que entrava agitando os seus cabelos. Ele observou.— O professor Roger segue a sua maratona. Já é a quinta volta que ele dá na pista desde que comecei a contar.- Está quase escuro - disse Rafael, empurrando os sapatos para debaixo da cama. — Daqui a pouco ele para.O acionamento do farol era a senha para que Roger encerrasse os exercícios e tomasse o caminho da floresta. Daniel, atento a cada movimento do professor, comentou:- Lá vai ele, aposto que se embrenha pela mata.

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Tudo se deu como no dia anterior, parecendo um ritual que se repetiria sempre. O que eles ainda não sabiam era aonde o professor ia todo o início da noite e para fazer o quê.

Marc entrou no salão que lhe fora destinado para o seu primeiro dia de aula como professor e se deparou com uma dezena de colegas que o aguardavam com seus respectivos instrumentos. Ao lado deles estava Ramón que procurou quebrar o gelo entre Marc e os demais.- Boa tarde, professor. Estávamos à sua espera.Marc sentiu um friozinho na barriga igual a de quando se apresentou ao ar livre para um público de milhares de pessoas pela comemoração dos cento e quarenta anos da Revolução Francesa. Mas aquela situação era ridícula. Um bando de garotos que não possuíam nem de perto o seu talento e que estavam ali para aprender, não deveriam deixar Marc tão constrangido. Afinal, era ele o professor. E era exatamente por isso que ele estava nervoso.- Vou deixá-los à vontade - disse Ramón percebendo que Marc se sentia deslocado. — Aproveitem ao máximo, vocês têm aqui um dos melhores músicos da atualidade.A última declaração fez Marc corar, o que era também estranho, pois a vida inteira recebeu elogios. Já estava acostumado com todo tipo de paparicação.Enfim, quando ficou sozinho com os alunos, Marc sentiu-se aliviado. Aos poucos foi falando sobre notas musicais, compassos, pausas, harmonias e

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logo estava ensinando com desenvoltura um pouco das técnicas que dominava. Por outro lado, a capacidade e o empenho dos alunos facilitavam o trabalho do mestre francês que foi pegando gosto pela arte de ensinar e continuou vendo a cada dia o progresso de cada um dos seus aprendizes. Parecia que as palavras de Ramón iriam se tornar realidade. Estava nascendo uma orquestra.Os dias se passaram e a quantidade de afazeres imposta pelos professores não era suficiente para diminuir a energia dos estudantes. Os primeiros testes realizados comprovaram a alta capacidade dos alunos do primeiro ano, tendo muitos deles atingido notas máximas, e é claro, agradando profundamente o comando da escola.Chester queria preencher o seu tempo vago fazendo algo de útil. Daí ter procurado, em companhia de Daniel, a secretaria da escola em busca de alguma coisa que estivesse de acordo com as suas aptidões. Ele passou os olhos por uma lista que trazia algumas sugestões e nada encontrou:- Não há nada que me interesse - disse estendendo a lista a Daniel.- Talvez eu possa ajudá-lo - ofereceu-se prestativa a secretária Laura Escollera, pondo os óculos que estavam pendurados em seu pescoço por uma correntinha, e dessa forma disfarçando os belos olhos azuis.Laura era a faz-tudo da administração do grupo escolar. Usava os cabelos louros penteados para trás e presos em um coque trançado. Marcava

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reuniões, organizava os horários das aulas, requisitava materiais didáticos e ainda tinha tempo para resolver alguns probleminhas que surgiam fora de seu departamento. Só deixava de atender a secretaria quando viajava uma vez por ano até o norte da Argentina para rever a família.- O que você gosta de fazer? — perguntou ela a Chester, mostrando dentes perfeitos ao sorrir.- Cavalgar. Adoro cavalos.- Maravilhoso! Acho que tenho um trabalho perfeito para você. O que acha de trabalhar no estábulo cuidando dos cavalos.- Ótimo! - aceitou Chester sem hesitar. - Quando começo?- Agora mesmo. Ache o senhor Nestor no estábulo e diga que eu o estou mandando como voluntário. Ele está precisando mesmo de alguém que o ajude.- Achou algo, Daniel? - indagou Chester, feliz porque voltaria a ter contato com os seus amigos eqüinos.- Sempre gostei de consertar coisas. Quem sabe na manutenção eu possa ser útil?- Uma boa escolha - disse Laura, animada. - Vou encaminhá-lo agora mesmo para falar com Júlio.Laura preencheu alguns formulários e entregou-os aos meninos que saíram na mesma hora tomando direções diferentes.Chester não teve dificuldades para encontrar Nestor, um senhor simplório que deveria ter mais de oitenta anos. Ele ostentava uma barba desgrenhada e cabelos compridos escondidos em

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parte por um largo chapéu de palha. Nestor avaliou Chester de alto a baixo para se certificar que o seu novo ajudante seria mesmo idequado para a função de tratador de animais.- Sinta-se em casa, meu bom rapaz — cumprimentou mostrando duas fileiras de dentes tortos. — Sabe lidar com quadrúpedes? Conhece mesmo esses animais? Pois temos muito trabalho pela frente.Chester viu um cavalo baio atrelado a uma carroça e mais outros dois que estavam reclusos, somente deixando à mostra suas cabeças que balançavam irrequietas pelas aberturas da cocheira.- Estou acostumado a cuidar de animais como esses, senhor - disse passando a mão pelo pescoço de um dos animais que aceitou docilmente o agrado.- É, parece que você tem jeito mesmo... — disse apertando os olhos e lendo o formulário que o seu novo ajudante havia lhe apresentado há pouco. — ...Chester Thompson. Espero que você cuide bem das minhas belezinhas, garoto Chester.- Conte comigo Sr. Nestor, será um prazer.- Não me chame de senhor ou de qualquer outra coisa que me faça sentir mais velho do que já sou. Se dirija a mim simplesmente como Nestor. Gostaria que eu o chamasse de garotinho Chester ou menininho Chester?- Não, não gostaria... Nestor. Será Nestor de agora em diante. — O modo informal de se relacionar com uma pessoa idosa saiu de Chester com

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alguma dificuldade, mas ele logo se acostumaria a se dirigir ao velho tratador de cavalos sub-traindo o tratamento formal.Chester prontamente tomou a iniciativa e naquela mesma tarde alimentou e escovou os animais surpreendendo o ancião com a sua habilidade no trato com cavalos.

Depois de muito procurar, Daniel encontrou Júlio escorando uma escada comprida em uma parede. Júlio se preparava para subir e arrumar uma calha que havia se desprendido do suporte que a sustentava.- Olá, Júlio, lembra de mim?- Sim, você é o calouro que eu havia conversado faz alguns dias.- Isso mesmo, meu nome é Daniel e agora sou o seu ajudante voluntário - comunicou firmando a escada para Júlio subir.- Ótimo, é bom ter gente bem-disposta na manutenção, mas previno-o que temos muita coisa para arrumar por aqui — alertou pegando algumas ferramentas em uma caixa de metal. — Sabe como é... conserta-se uma coisa e já estraga outra.- Pra mim está bem, gosto de fazer esse tipo de trabalho.A tarde de Daniel foi realmente movimentada como Júlio havia dito. No entanto, Júlio a tornava interessante explicando todo o funcionamento da escola, desde o sistema hidráulico até a parte elétrica. Por sua vez, Daniel metralhava Júlio com as mais variadas perguntas querendo saber do

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mais simples ao mais complexo detalhe. Nas poucas horas que trabalharam juntos, Júlio reconheceu que Daniel aprendia muito rápido e fazia um serviço de primeira qualidade. Os dois acabaram se tornando bons amigos no término do primeiro dia.No final da tarde, Daniel e Chester estavam exaustos, mas satisfeitos com as suas novas atribuições. Sentiam-se úteis e o tempo passava mais depressa, além de não terem que ficar pensando só em estudar. Ao saírem do banho frio e reconfortante, os dois se enfiaram no quarto e encontraram Rafael mergulhado nos livros.- Onde vocês estiveram a tarde toda? - perguntou Rafael, interrompendo a revisão de um cálculo de geometria.Os meninos contaram o que havia se passado e aproveitaram para dar a mesma sugestão a Rafael: a de se envolver com alguma atividade que não apenas aquelas que habitavam os livros.- Por enquanto não, prefiro me dedicar mais aos estudos e me esforçar para garantir a minha permanência por aqui - justificou, deitando o lápis sobre a mesa e jogando o corpo para trás contra o encosto da cadeira para se espreguiçar. — Eu e minha família dependemos muito do meu desempenho nessa escola.- Você é quem sabe - disse Daniel dando de ombros. - Mas não sei se vai agüentar oito anos sem arrumar algo para matar o tempo.-Você pode ter razão, Daniel, mas... por ora, acho melhor deixar como está.

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Completando a turma, Marc acabara de chegar carregando a flauta, sua companheira inseparável, e algumas partituras que ele mesmo escreveu para auxiliar cuando estivesse ensinando.- As aulas de música estão fazendo um grande sucesso - comemorou com um sorriso incontido. — A cada dia recebo um novo interessado em aprender e já não há instrumentos para todos.- Você não é o único por aqui, Marc - disse Chester ajeitando a gola da camisa e fazendo-se de importante. - Daniel e eu aderimos ao trabalho voluntário e já estamos na ativa.Marc então ficou sabendo das novidades, apoiando a iniciativa dos companheiros.O dia estava quase terminando e o sol se pondo projetava nas nuvens uma cor alaranjada. Lá fora, o professor Roger corria com passadas largas como sempre: abdominais, flexões, saltos e corridas se alternavam em sua ginástica solitária. O ritual terminava com o clarão repentino do farol sobre as árvores revelando a figura do professor que caminhava a passos firmes na direção da entrada da floresta densa.

A manhã seguinte nascia bem mais quente que o normal, impondo aos alunos bastante sofrimento com o calor sufocante nas salas de aula. O raciocínio era lento, tornando-se difícil a concentração. Rafael passava constantemente o lenço na testa e no pescoço tentando estancar o suor que voltava a brotar-lhe na pele. A brisa do mar que entrava pelas janelas era morna e não

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dava conta de minimizar o desconforto causado pelo calor extremo. A aula se arrastou até próximo ao meio-dia quando a temperatura ficou quase insuportável. Percebendo a angústia dos alunos, o diretor Helmut decidiu encerrar as aulas matinais vinte minutos mais cedo. O dia se arrastou pesado e ao final da tarde os alunos tiveram a má notícia de que não seriam dispensados dos exercícios físicos. Lá estava o professor Roger que os esperava determinado a exigir o mesmo esforço que os garotos já estavam começando a se acostumar.- Hoje realizaremos as atividades esportivas no ginásio - avisou e girando nos pesados sapatos foi seguido pelos alunos que se abanavam incessantemente.O ginásio se achava mais abafado que lá fora, mas livre do sol escaldante. O professor, consciente que estaria sacrificando em demasia os seus alunos, passou-lhes uma série de exercícios mais leves enquanto socava violentamente um saco de areia que oscilava a cada golpe desferido, provocando estampidos que ecoavam pelo salão. Após vinte minutos todos transpiravam tanto que suas roupas estavam praticamente grudadas no corpo.— Está bem, chega por hoje! — exclamou interrompendo os exercícios. - Troquem de roupa e caiam na piscina.Nunca uma ordem foi tão bem recebida e em minutos a piscina já estava cheia.— Aproveitem a água, hoje é só recreação — anunciou voltando-se para o saco de areia e

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reiniciando os socos com o mesmo vigor de antes.Margaret ficou olhando de dentro da piscina a primeira atitude humana do professor solitário.— O que houve, Meg? - perguntou sua amiga Ângela tentando evitar os respingos no rosto ocasionados pela algazarra formada dentro d'água.— O professor Roger, ele não deve ser de todo mau.— Eu também senti isso — concordou Ângela compreendendo os pensamentos da amiga.O ginásio tinha duas saídas, uma para o interior do prédio principal e outra para fora que saía em frente à área esportiva tendo a floresta no lado oposto. Os quatro garotos, em companhia de Meg e Ângela, decidiram ir por fora e viram que o tempo mudava, marcado pelo vento forte.Após o jantar, Margaret e Ângela se despediram e foram para o seu dormitório passando pela senhora Elvira que fiscalizava cada aluna que regressava, dando a impressão que contava uma a uma, como um pastor confere as suas ovelhas.Quando se aproximou da janela, Chester verificou que a força do vento havia aumentado e grossas nuvens escuras estavam se formando do sul para o norte o que não demoraria muito para atingir a Ilha da Coroa.— Parece que vamos enfrentar uma forte tempestade — comentou observando as copas das árvores que balançavam de um lado para outro, farfalhando como se desejassem se esconder do mau tempo.

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— Não é de se admirar - disse Rafael, perseguindo uma folha de papel que rodopiava pelo quarto, transportada pelo vento. - Com o calor que fez hoje só podia dar nisso.O sol havia sido totalmente encoberto pela enorme nuvem que já engolira metade do céu e continuava avançando em direção a ilha. Do interior da nuvem sombria, saturada eletricamente, era possível ver diversos clarões produzidos pelos relâmpagos que cintilavam repentinamente num contraste fabuloso com o negrume que havia transformado a atmosfera ao redor da ilha.- Vai ser uma tremenda tempestade elétrica — disse Marc percorrendo com o olhar todo o céu que escurecia mais e mais.Ouvia-se o som de janelas e portas batendo descontroladamente e os prendedores que seguravam as duas bandas da janela rente à parede externa, vibravam freneticamente, fazendo parecer que tudo iria pelos ares.- Nunca tinha visto algo assim - disse Daniel esforçando-se para fechar uma banda da janela que estava grudada pela ventania e sendo ajudado por Chester que puxava a outra.- Eu também não - completou Marc, atônito. — Não fechem tudo, quero ver o que vai acontecer.Atendendo ao pedido de Marc, Daniel decidiu fechar apenas a janela interna feita de uma grossa grade de madeira e vidros retangulares. Era possível assistir os monitores que abandonavam seus postos deixando livre toda a barreira de floresta.

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- Agora seria uma boa hora de penetrarmos naquele matagal e descobrirmos o que eles escondem - brincou Marc ao mesmo tempo em que forçava para baixo o trinco que prendia a outra banda totalmente lacrada.- Não saio daqui nem que me paguem — enfatizou Rafael, desestimulando a idéia absurda do companheiro.O número de raios que caíam no mar intensificou-se criando um espetáculo jamais visto pelos novatos. Não havia se precipitado ainda uma gota de chuva sequer. No espaço de apenas um minuto, dezenas de descargas luminosas riscavam o céu, caindo no enorme círculo de águas que se tornavam ainda mais agitadas como se o mar fosse engolir a terra, os raios também passaram a atingir fragorosamente várias partes da Ilha da Coroa. O fenômeno impressionante resultou em uma seqüência de trovões ensurdecedores, dando a tenebrosa sensação de que roda a ilha seria apagada do mapa. Raios e mais raios caíam ao mesmo tempo rormando fileiras luminosas no céu negro e tomando a paisagem de lado a lado, deixando a ilha quase tão iluminada como se fosse dia. Um deles acabara de cair estrondosamente no alto do monte Cabeça do Rei, bem no topo do farol; outros acertavam os rochedos pontiagudos que cercavam a ilha. O farol seria atingido naquela noite por, pelo menos, mais uma dúzia dos violentos raios que atacavam impetuosamente todo o mar e a ilha. Toda a fúria da natureza se concentrara de ama vez naquele ponto perdido

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no mar. De repente, veio a chuva varrendo pri-meiro a floresta e logo em seguida alcançando os prédios do complexo escolar. A anela trepidava com a ventania parecendo que seria arrancada de suas dobradiças com os vidros estilhaçando numa explosão. Era uma estupenda enxurrada digna de fazer inveja ao dilúvio bíblico. Os companheiros, bastante impressionados em seu refúgio, nem conversavam, embasbacados que estavam diante daquilo tudo; até que a luz se apagou antes do horário previsto. Inesperadamente o farol ficou igualmente às escuras.- Um desses raios provavelmente atingiu o gerador - especulou Daniel, enxergando por uma fração de segundos as fisionomias dos amigos clareadas por mais um relâmpago.

No outro quarto, Margaret e suas colegas sentadas lado a lado na mesma cama e sem enxergarem um palmo adiante do nariz, torciam para que a tempestade apavorante acabasse logo, quando ouviram alguém bater na porta. Margaret levantou-se da sua trincheira doméstica para atender. Do lado de fora, no corredor, Elvira segurava um lampião que o seu rosto de baixo para cima e lhe conferindo um aspecto fantasmagórico.— Vocês estão bem?— Sim... não... não sabemos — respondeu Meg um tanto confusa.— Fiquem calmas, tempestades dessas proporções são totalmente normais nessa ilha.

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- Quer dizer que sempre que chove é assim? - perguntou Angela assustada.— Quase sempre — respondeu com a voz sendo abafada por um trovão que estremeceu o prédio.- Ficaremos bem, não se preocupe - disse Margaret, apoiada na maçaneta da porta.- Se é assim, procurem ter uma boa-noite. - Se despediu afastando-se pelo corredor comprido, acompanhada pela fraca luz do lampião à medida que caminhava, até desaparecer completamente na escuridão.A tempestade alucinante persistiu por mais de uma hora e, aos poucos, foi se dissipando. Por fim, era só a chuva que ainda caía forte com os trovões sendo ouvidos ao longe; o vento também enfraqueceu, restando uma leve brisa úmida que permitiu Chester arriscar a abrir a janela sem o perigo de receber uma rajada de água pela frente. Os trovões se faziam ouvir cada vez mais distantes e a intervalos mais espaçados, até desaparecerem definitivamente, mas a chuva ainda se mantinha consistente e dava a impressão que iria atravessar a noite sem diminuir.As meninas, mais calmas, resolveram ir cada uma para sua cama. Tinha sido uma experiência incrível para elas, retardando o horário de dormirem. A tempestade que antes fora um tormento para todas, agora transformada em chuva, embalaria o seu sono com o som das gotas batendo seguidamente no telhado e na terra encharcada.

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Uma luz solitária iluminou as trevas do alto do monte, o farol finalmente estava funcionando. Pelo visto as coisas tinham se normalizado.- Vamos dormir, já está tarde - recomendou Rafael, socando levemente o travesseiro para deixá-lo mais confortável.Da posição em que estava deitado em sua cama, Daniel ficou olhando o céu escuro e as gotas de chuva que escorriam pela vidraça da janela em caminhos sinuosos. Por um breve instante, ele pensou em Margaret e se ela estaria bem. O ruído contínuo da chuva pesou seus olhos extenuados, fazendo Daniel adormecer pro-fundamente.O dia amanheceu cinzento e um pouco abafado, apesar de todo o aguaceiro que havia caído a noite toda, contudo, bem menos calorento que o dia anterior.A turma 1A iniciou a aula no laboratório de química do professor Guillermo. Os alunos tiveram contato com tubos de ensaio, pipetas, líquidos das mais variadas cores e que misturados com outras substâncias apresentavam reações diversas, sendo tudo detalhadamente anotado pelos jovens pesquisadores que ouviam atentos às explicações do professor. Toda vez que Guillermo pedia um voluntário, Meg se oferecia levantando o dedo e dando um passo à frente.- Ela não toma jeito — comentava Daniel balançando a cabeça.

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Os colegas apoiavam a atitude de Margaret, tendo em vista que alguns ficavam constrangidos quando expostos ao público.Marc, acomodado em uma bancada olhando por um microscópio, dialogava com Chester ao seu lado:- Você não achou muito esquisito o que aconteceu ontem?- É, tenho que concordar com você, aquilo não era normal — admitiu, consultando uma tabela de elementos químicos e fazendo anotações em seu caderno.- Parecia que toda a energia contida na natureza estava desabando sobre a ilha.- Eu cheguei a pensar na possibilidade de estarmos em cima de algo muito poderoso.- Como assim? - perguntou Marc, deixando de lado o microscópio e encarando Chester.Chester reduziu a voz para não ser ouvido por mais ninguém.- Pra mim está claro que deve haver algo aí embaixo que provoca todos esses renômenos — disse olhando em volta para ver se não estavam sendo observados. — Um mar que se agita constantemente em um círculo perfeito, somente deixando uma passagem livre por onde se entra e sai da ilha e que coincide com a única parte onde não há os imensos rochedos escuros e dentados. Além disso...Chester foi cutucado por Marc que notou o professor Guillermo se aproximando.- Já terminaram os trabalhos? - perguntou o professor, apoiando uma mão na bancada.

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- Estamos quase terminando, senhor - respondeu Marc puxando para perto o caderno de anotações, sendo acompanhado por Chester que tratou de concluir os seus resultados.- Vou deixar bem claro uma coisa, os assuntos que não tenham a ver com a minha disciplina deverão ser tratados em outra ocasião, entenderam?- Sim, senhor! - Chester acatou a ordem dada sem discutir.Quando deixaram o laboratório, Margaret foi ao encontro de Chester:- O que aconteceu lá dentro?- Fomos chamados à atenção - respondeu caminhando rápido.- Por quê? - insistiu a jovem Meg interessada em saber de tudo.- Estávamos falando demais.- Sobre o quê?Chester parou e ficou olhando sério para Margaret e depois sorriu achando engraçada a sua persistência.- Falávamos sobre essas esquisitices que rondam a Ilha da Coroa, você sabe a que me refiro, Meg.- E o professor, ouviu o que vocês conversavam?- Acho que não, e se tivesse ouvido, o que teria demais? - irritou-se Chester elevando a voz. — Todo mundo fala sobre isso. Nós não somos os únicos a desconfiar que tem algo errado nisso tudo.- Fale baixo, Chester! — intercedeu Marc que os acompanhava logo atrás. - Quer que nos ouçam?

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- Desculpe, Marc, tenho que tomar mais cuidado com o que digo.A precaução de Marc fazia sentido, pois, sempre havia monitores à espreita cuidando dos alunos em cada canto da escola, e falar o que não devia podia ser muito perigoso.A tarde seria especial devido à reabertura da biblioteca aos alunos. Desde o final do ano anterior ela havia sido fechada por conta de uma praga de cupins ter destruído algumas estantes e arquivos causando considerável prejuízo à escola. Um número considerável de livros foi danificado, sendo que alguns deles, totalmente perdidos, o que deixou o diretor Helmut muito desgostoso.A ampla biblioteca era uma das maiores dependências da escola e logo depois da porta de acesso, à esquerda, havia um balcão de mogno que servia para controlar a entrada e saída dos livros. A Sra. Maria Monteiro, a bibliotecária lusitana, conhecida por usar grandes brincos de argola e óculos com lentes fundo de garrafa, registrava cuidadosamente cada obra nas fichas de cartolina quadriculada, tomando o cuidado de anotar o prazo de devolução dos exemplares tomados por empréstimo. Atrás daquele balcão, fixado na parede, havia um enorme retrato de um homem severo que apa-rentava ter algo em torno dos cinqüenta anos; usava costeletas que se uniam ao farto bigode, mas o que chamava mais a atenção era o tapa-olho que lhe cobria a vista direita e uma grande cicatriz vertical que cortava o seu rosto taciturno

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da testa até o queixo numa linha profunda que atravessava exatamente na altura do olho oculto.Da entrada se abria um vasto salão de leitura onde se distribuíam umas vinte mesas de tampos escuros com capacidade para seis cadeiras cada uma. A partir dali, à esquerda e à direita, era possível avistar um labirinto de estantes que tocavam o teto de quatro metros de altura, ocupadas por milhares de livros sobre os mais variados assuntos, sendo necessário utilizar compridas escadas corrediças para alcançar as prateleiras mais altas. No final de cada corredor havia uma janela estreita e alta com vidros em mosaico colorido de desenhos variados e que clareava o interior, projetando luzes multicores. No lado oposto à entrada, passando pelo salão de leitura, bem ao fundo, havia uma sala envidraçada que o diretor Helmut costumava usar com freqüência para ler e escrever por horas a fio.Os alunos percorriam a biblioteca, se perdendo entre as enormes estantes, e tirando um ou outro livro para uma consulta rápida. A senhora Maria recomendava num tom de voz apreensivo como se os livros fossem peças de delicado cristal que a falta de cuidado faria com que se espatifassem no chão.— Não recoloquem os livros nas estantes, deixem-nos sobre as mesas, por favor.Era uma orientação desnecessária, sabendo-se que os usuários acostumados a freqüentarem bibliotecas estavam a par de seus mais comuns

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regulamentos, mas o esmero da bibliotecária não lhe permitia relaxar.Marc escolheu uma mesa e foi seguido por Rafael e Chester que também se acomodaram ao redor do sólido mobiliário. Daniel surgiu do fundo de um corredor trazendo com ele um livro de capa cinza.- Olhem aqui rapazes, HISTÓRIA DA ILHA DA COROA - disse enfatizando o sugestivo título.Daniel abriu o livro de páginas amareladas pelo tempo e passou a folheá-lo, determinado a descobrir algo interessante, até que seus dedos pararam em uma página onde havia impressa uma curiosa gravura antiga.- Essa figura, vejam só isso! Mostra um esboço da ilha sem a cobertura da mata como é hoje — descreveu correndo o dedo indicador pelo desenho. — E o monte Cabeça do Rei está totalmente exposto até a sua base.- Quando foi editado o livro? - perguntou Marc, puxando a sua cadeira para perto de Daniel.- Aqui está, 1892!- A gravura deve ser bem mais antiga, nem as instalações da escola estão representadas - observou Rafael girando um pouco o livro para ver melhor.- Bem, pelo menos uma coisa já podemos deduzir... - disse Daniel, apoiando os cotovelos na mesa e entrelaçando os dedos. - A vegetação foi colocada depois e com algum propósito.- Provavelmente para deixar o lugar mais habitável — supôs Rafael, cauteloso.

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- Ou para ocultar alguma coisa — supôs Marc, fitando cada colega com um ar misterioso e provocativo.Daniel continuou procurando no velho livro outras pistas que trouxessem alguma luz às suas teorias e comentou desapontado:- Não tem mais nada nesse livro que nos dê algo de novo. Só datas, eventos e as biografias de pessoas importantes na história da escola — concluiu, fechando-o e pousando as mãos em cima.- É melhor que seja assim — disse Rafael abrindo uma outra obra sobre botânica. — Pelo menos não vamos perder tempo com essas coisas e nem correr o risco de sermos envolvidos em confusões.Marc esfregou os olhos concordando com a cabeça, e também se pôs a ler um livro que abordava a filosofia na antigüidade.Chester, tamborilando os dedos na mesa, corria os olhos, reparando os pormenores da biblioteca, o entra e sai dos alunos e os caminhos escuros formados por estantes que se perdiam por todos os lados. De repente concentrou a atenção no retrato na parede, atrás do balcão em que trabalhava Maria, a agitada bibliotecária.- Aquele homem... parece que já o vi antes — disse, apoiando o queixo sobre o punho. - Mas não lembro onde foi.- Que homem? — perguntou Marc erguendo os olhos de sua leitura.- O do retrato - respondeu, indicando com um movimento de cabeça.

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- Não me recordo de tê-lo visto - disse Marc forçando a memória.Rafael e Daniel também olharam e a princípio não conseguiram reconhecer a enigmática pessoa que fazia uso do tapa-olho.A porta da biblioteca se abriu e por ela cruzou o diretor Helmut revistando os alunos que ocupavam as mesas mais próximas, causando um certo constrangimento devido à sua expressão carrancuda. Ele se debruçou sobre o balcão e disse alguma coisa para Maria que respondeu fazendo que sim com a cabeça. Ao passar pela mesa dos meninos ele parou como se algo estivesse errado.- Aprecia história? - perguntou ele, agarrando o livro de capa cinza.- Ah, sim... - respondeu Daniel meio sem jeito. — Queria saber um pouco mais sobre a escola - explicou, inclinando-se para trás.Helmut devolveu o livro para Daniel e se afastou entrando na sala envidraçada.- Vocês notaram? - indagou Rafael, sem desviar os olhos do livro que estava novamente em seu poder. - Somos controlados até no que lemos.- Você está com mania de perseguição - disse Marc, censurando o excesso de cautela de Rafael. - Ele só fez um comentário inocente.Rafael só ergueu as sobrancelhas e não respondeu à crítica de Marc, preferindo o silêncio.Helmut ocupou a cadeira de forro verde-escuro e braços de madeira nobre em formato de garras de leão e abriu uma gaveta, remexendo e tirando

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alguns papéis, colocando-se a examiná-los. De vez em quando parava o que estava fazendo e olhava para fora da sala, atento ao comportamento dos freqüentadores que por ventura viessem a cometer pequenos deslizes.As horas passavam envoltas em leituras e cochichos e os livros iam se acumulando em pilhas cada vez maiores sobre as mesas. Maria sabia que teria um bocado de trabalho após o fechamento da biblioteca, mas não se incomodava em ter de recolocar todos os livros de volta nas estantes desde que estivessem intactos. A biblioteca foi se esvaziando e só restaram Daniel, Marc, Chester e Rafael, além de um ou outro aluno que se levantava abandonando o grande salão.- Pra mim chega, estou cansado — disse Chester, pressionando os olhos com as pontas dos dedos.- Vamos, ainda temos que jantar e subir — disse Marc, levantando e sendo imitado por Rafael e Daniel.Só restou um aluno na biblioteca que, logo que eles saíram, levantou-se e foi até a mesa que haviam estado os meninos. O garoto tocou o livro de capa cinza e ficou parado mostrando uma expressão pensativa, até se dar conta que Helmut o olhava de dentro de sua sala com ar de severa desaprovação. Sem aparentar intimidação o estranho aluno também deixou a biblioteca, cumprimentando gentilmente a senhora Maria ao sair, que respondeu educadamente lançando um olhar ao professor Helmut como se estivesse passando alguma mensagem mental.

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Capítulo 6Pistas na Biblioteca

O sábado não era tão diferente dos outros dias da semana; atividades físicas pela manhã e uma quantidade enorme de lições para se fazer à tarde, que se prolongaria até o domingo.O céu azul era cortado por finas nuvens brancas que não conseguiam encobrir o brilho do sol matinal que logo cedo ardia forte.Os exercícios não foram tão puxados, mas continuaram até as dez horas culminando com um agradável banho de piscina.Quando o almoço foi encerrado, os alunos estavam livres para aproveitarem o fim de semana da melhor maneira que lhes conviesse.Daniel entrou no quarto e se deparou com Rafael recostado na cama.— O que está fazendo? - perguntou, fechando a porta.— Estou escrevendo uma carta para meus pais - respondeu apoiando um bloco de papéis sobre as pernas dobradas. - Ouvi dizer que em três dias o Divina Providência III retornar à ilha.— Você me deu uma boa idéia! — exclamou Daniel pegando caneta e papel e sentando-se à mesa. — Quero escrever uma longa carta contando tudo o que aconteceu até agora.— Tudo mesmo? — perguntou Rafael, parando de escrever.— Como assim?

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— Não sei não, Daniel. Algo me diz que, pelo menos, por enquanto, é melhor não falarmos e nem escrevermos sobre essas nossas conversas.— Mas estou escrevendo para os meus pais! — salientou Daniel, batendo com as pontas dos dedos no papel.— Mas será mesmo que só os seus pais lerão essa carta?— O que você quer dizer, que alguém vai abrir e bisbilhotar as cartas antes de enviarem aos destinatários? - questionou Daniel, indignado.— Quer saber mesmo o que eu penso? - indagou, deixando o bloco de lado e inclinando-se para o amigo. — Acho que é melhor não nos arriscarmos tanto nessa escola. Pouco ou nada sabemos sobre esse lugar e as pessoas que vivem aqui. Ninguém é bobo de achar que essa ilha não esconde um grande segredo. Mas olhe os outros alunos, não abrem a boca, pois sabem que se causarem problemas, serão imediatamente expulsos. A maioria se preparou a vida inteira para poder estudar nessa pequena ilha no meio do oceano. Só vejo nosso grupo e sua irmã fuçando por aí como se tudo fosse uma brincadeira de gato e rato - desabafou Rafael, esperando alguma reação de Daniel que não aconteceu. - Eu tenho um pressentimento que alguma coisa de ruim pode acontecer conosco se continuarmos insistindo em bancar os detetives.As palavras de Rafael sacudiram Daniel fazendo-o repensar a questão.- É, talvez o que você diz faça algum sentido - admitiu, empunhando a caneta sobre o papel. -

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Não vou escrever nada que possa nos causar problemas.Rafael aprovou balançando a cabeça e voltou a escrever vigorosamente; e não tocaram mais no assunto.

Lá embaixo, sozinho na sala de música, Marc manuseava um violino aproveitando o silêncio para deixá-lo afinado. O seu sossego durou pouco, porque Chester que estava a sua procura, finalmente o encontrou.- Eu sabia que você estava aí, que tal revermos as questões de Física?- Mais tarde, agora estou preparando alguma coisa para a aula de música da semana que vem. Quer me ajudar?- Você sabe que não entendo nada de instrumentos musicais - disse, sentando-se em um banquinho ao lado de Marc, os olhos dele correram pelo espaço utilizado como sala de música. — Só entendo de cavalos.- Vê as cordas desse violino? São feitas de tripas de carneiro — disse, oferecendo o instrumento para Chester examinar.Curioso, Chester passou os dedos sobre as cordas surpreso ao saber de quê eram feitas.- Agora veja a corda deste arco, sabe do que é feita?- Parecem fios enfileirados, mas não consigo identificar.- É crina de cavalo.- Está falando sério? — duvidou, olhando com mais atenção.

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- Acredite, é verdade! - confirmou, pegando o violino de volta e tirando uma longa nota com o arco.- Então, com os cabelos do meu cavalo, o Coronel, eu posso fazer música? - indagou encantado, aumentando ainda mais sua admiração pelos eqüinos.- E isso mesmo, Chester. São animais fantásticos, não é mesmo?Marc ofereceu novamente o violino a Chester que tentou tocar alguma coisa, mas o resultado foi um desastre.- Chester... meu amigo.Você é péssimo! — sentenciou, não conseguindo se segurar e caindo na gargalhada.Chester não deu muita importância ao fato de não saber tocar nada. O seu mundo estava ligado aos cavalos e era naqueles animais de portes majestosos e crinas melodiosas que ele adorava cavalgar.Marc preparou e revisou os preparativos para a sua próxima aula, e deu uma última olhada para ver se estava tudo em ordem, daí fechou a sala de música.— Vamos. Temos que repassar as questões de Física ainda hoje. Não pretendo deixar nada para o domingo.— Daniel e Rafael já devem estar no quarto, estudando — disse Chester, apressando o passo pelas dependências da escola.— É a única coisa que Rafael sabe fazer com o seu tempo livre — comentou Marc enquanto cortavam caminho pelo saguão central.

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— Não o censuro - disse Chester, compreendendo a situação de Rafael. - Essa é a grande oportunidade da vida dele e se falhar não vai se perdoar.— Eu sei, Chester, mas ele precisa se distrair um pouco fazendo outras coisas. Olhe só você: cuida dos cavalos e ainda tem tempo para desafinar no violino — disse em tom de gozação.— Gostaria de ver você em cima de um cavalo.— Pois saiba que cavalgo bem.— Você deve cavalgar pior que a minha bisavó.— Qualquer dia eu o desafio numa corrida — provocou Marc enquanto cruzavam o corredor extenso que ia até os dormitórios.— Fechado! - aceitou Chester, apertando a mão de Marc e selando o duelo.Quando subiam as escadas que dava acesso ao segundo pavimento, encontraram Meg que descia vindo da ala feminina.— Vocês viram meu irmão?— Deve estar no quarto, estudando — respondeu Marc, apoiando-se no corrimão.— Preciso falar com ele, vocês poderiam avisá-lo?— Claro, Meg! - prontificou-se Chester, voltando a subir os degraus.Os garotos se arremessaram direto para o quarto e transmitiram o recado sobre Margaret. Daniel resistiu à convocação feita pela irmã.— O que ela quer?— Não nos disse — respondeu Chester, pegando seus cadernos e abrindo-os sobre a cama. - Ela está te esperando na escadaria.

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Sem ânimo, Daniel pulou da cama e foi ao encontro de Margaret que o aguardava sentada na escada de pedra fria. Ela levantou imediatamente ao ouvir a voz do irmão.— O que houve, Meg?- Venha comigo, quero lhe mostrar uma coisa.- Aonde vamos?- A biblioteca, achei algo que pode nos interessar.- O que é?- Você já vai saber, vamos rápido antes que fechem.Os irmãos se apressaram e em pouco tempo estavam dobrando o corredor que se ligava à biblioteca.- Sinto muito, meninos, estamos fechando por hoje - disse Maria, a bibliotecária, verificando se a porta estava realmente trancada. - Aos sábados fechamos mais cedo, eu também preciso descansar — disse, pondo as mãos sobre os ombros dos irmãos e fazendo-os voltarem por onde vieram.Margaret e Daniel se despediram de Maria, retornando lentamente pelo caminho que conduzia aos dormitórios. Daniel segurou a irmã pelo braço e, antes de subirem, perguntou:- O que você queria me mostrar?- Uma coisa que talvez nos ajude a achar o que procuramos.Daniel girou os olhos, impaciente.- Deixe de rodeios e fale logo. O que você encontrou na biblioteca?- Um desenho, uma antiga planta desse prédio.

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Pensativo por uns instantes, Daniel mordiscou o lábio.- Isso pode ser realmente importante. Alguém viu você com esse documento?- Acho que não — presumiu Margaret, disfarçando ao notar que um aluno passava por eles, indo em direção às escadas. — Eu encontrei o tal desenho em uma estante no fim de um corredor e fiquei por lá mesmo examinando-o, até que ouvi passos e resolvi guardá-lo de volta no lugar. Em seguida me afastei dali e não vi ninguém, daí resolvi ir a sua procura pra te contar.- O que você descobriu?- Não muita coisa. Consegui identificar o saguão, o refeitório, alguns corredores. Nada mais do que isso.- Pode ser que não nos sirva pra nada, mas talvez nos dê alguma pista.Daniel olhou por cima do ombro de Margaret e viu a inspetora Elvira observando-os do alto da escada como uma águia à procura da próxima vítima.- É melhor você subir. Estamos sendo vigiados.Margaret olhou para trás e, percebendo a situação adversa, se despediu do irmão, passando reto por Elvira que a olhava com um semblante acusador. Daniel fez que não era com ele, meteu as mãos nos bolsos da calça e subiu assoviando.— Tenho novidades! — exclamou quando se sentiu seguro no quarto. — Meg achou uma coisa que pode ser útil pra nós.

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Daniel então contou com detalhes sobre a planta da escola, aos olhos atentos dos colegas.- A biblioteca só reabre na segunda-feira — lembrou Chester do alto de sua cama, ele encostava os joelhos no peito e abraçava as pernas. - Teremos de esperar até lá.Marc se recordou de algo.- Daniel, você se lembra quando vimos Júlio pela primeira vez?- Sim, lembro. Ele estava pintando um muro na entrada da Vila de casas.— Isso mesmo! E ele havia falado que havia alguns lugares na Ilha que o acesso não lhe era permitido.— É... parece que ele comentou isso mesmo — disse Daniel, lembrando-se do dia em que chegaram à ilha.— Um desses lugares que Júlio mencionou era a floresta — observou Marc, batendo com a flauta na palma da mão. — Mas quando ele ia continuar, desistiu, constrangido por causa daquele monitor que nos espiava.— Daniel, você precisa conseguir essa informação o quanto antes — salientou Chester, descendo do beliche para se fazer mais enfático para com o amigo. — Quem sabe existe algo escondido dentro da escola bem debaixo do nosso nariz.Rafael permanecia calado, ouvindo o desenrolar da conversa; ele folheava um livro fazendo de conta que estava alheio ao diálogo explosivo que se desenrolava naquele quarto. Tentava se concentrar na leitura, mas não conseguia entender uma linha sequer. Se lhe perguntassem

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o que estava escrito ele não saberia responder. Rafael optou por não falar nada, evitando assim inflamar ainda mais a discussão. Toda vez que o assunto era aquele, ele sentia um frio na barriga; tinha a sensação de que mais cedo ou mais tarde estaria metido em uma grande confusão que resultaria em sua expulsão.— Vou conversar com ele sobre isso na próxima vez que trabalharmos juntos - disse Daniel, se referindo a Júlio.- Ótimo! — exclamou Marc, esfregando as mãos. — Se fizermos da forma correta talvez desvendemos um grande mistério que se esconde aqui.Rafael não conseguiu se conter.- Só tem uma coisa... — advertiu, quebrando o silêncio. - Se nos pegarem, estaremos perdidos e daí, vocês podem dizer adeus às suas investigações.- E você tem alguma sugestão? - perguntou Marc, apontando para Rafael com a flauta.- Vocês têm duas opções, ou desistem dessa idéia maluca ou vão em frente e aí... tudo pode acontecer. Como eu sei que não vão desistir, ao menos tomem bastante cuidado. - Rafael fez uma pausa, olhando para fora em direção à floresta que naquele momento estava sendo encoberta pelo crepúsculo, e em seguida arrematou: - E, por favor, não me metam nessa história.As horas corriam para dentro da noite, e Daniel, esticado em sua cama, buscava o sono que demorava a chegar. Seus colegas já dormiam há um bom tempo, derrotados pelo cansaço. Ele

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fechava os olhos e desviava o pensamento até que um longo bocejo prenunciou o sono que se aproximava. Três batidas na porta voltaram a despertá-lo e lentamente ele levantou-se para ver quem era. Chester se mexeu na cama, mas não chegou a despertar. Quem deveria ser àquela hora da noite? Daniel se espantou quando, ao abrir a porta, deu de cara com o diretor Helmut que com uma das mãos agarrou-o pelo pescoço e com a outra tapou a sua boca. Ele tentou gritar em vão, sendo quase sufocado pela mão que apertava forte a sua mandíbula.- Você quer descobrir o nosso segredo, Daniel? - perguntou Helmut, mostrando os dentes cerrados. — Então vou satisfazer a sua curiosidade.Então Daniel foi arrastado com violência pelas escadas e na passagem pode ver a Lnspetora Elvira exibindo uma expressão aterradora. Os olhos dela luziam um vermelho vivo, como se seu interior ardesse em chamas. Ele se debatia, mas não conseguia se soltar e continuou sendo arrastado pelos corredores escuros da escola até ser levado para fora. A floresta seria o seu destino final. Labaredas saíam dos olhos, narinas e boca do diretor. O desespero se apossou de Daniel que nada podia fazer.- Aqui está garoto, esse é o lugar que você vai morar... por toda a eternidade.Podendo mover apenas os olhos, Daniel pode ver centenas de gaiolas que pendiam das árvores e em cada uma delas havia um aluno vestido com o uniforme escolar. Eles não tinham mais os

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olhos e das suas órbitas saíam insetos e vermes repugnantes. O garoto estava horrorizado. Uma gaiola ainda vazia foi aberta por Ramón que também mostrava os olhos chamejantes. Daniel foi empurrado para dentro e a gaiola fechada.- Parabéns, menino curioso - disse Helmut cuspindo labaredas. - Você agora já conhece o nosso... segredinho.

Daniel acordou sobressaltado; estava suando e tremendo. A luz do farol iluminou bruscamente a parede do quarto ajudando-o a se localizar. Ele colocou a mão contra o peito e sentiu seu coração disparado. Então pensou aliviado: Era só um pesadelo.Ele levantou devagarzinho e foi até a janela, tudo estava calmo.- Eu não vou desistir - murmurou decidido.

O domingo começou claro e preguiçoso; não havia o toque do sino, a correria para o desjejum e nem a tumultuada aglomeração em frente às salas de aula. A claridade penetrou no quarto despertando Daniel que acabou não tendo um sono tranqüilo. A mesa de estudos já estava ocupada por Rafael que consultava os livros e rabiscava uma equação num caderno, aproveitando todo o tempo disponível para aprender.— Onde estão Marc e Chester? — perguntou Daniel, esfregando os olhos ainda inchados de dormir.

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— Desceram até o refeitório — respondeu Rafael, parando de escrever. - Eles desistiram de esperar você acordar.— Que horas são?— Quase nove, vamos descer um pouco? - sugeriu Rafael, se espreguiçando na cadeira. - Estou estudando há quase duas horas.- Puxa, dormi tanto que perdi a hora!- Sentados em um amontoado de pedras em frente a praia, Marc e Chester admiravam o voo rasante de uma gaivota antes de planar e pousar na areia.Daniel se aproximou e sentou ao lado deles.- Onde está Rafael, seu dorminhoco? - brincou Chester, fazendo desenhos na areia com um galho seco.- Voltou para o quarto, deve estar estudando agora.— Pois eu quero aproveitar o domingo, descansando muito e estudando pouco - disse Marc, recostando-se sobre a pedra e cruzando os braços atrás da cabeça. - Já basta o que eu faço durante a semana.— Preciso encontrar Júlio - disse Daniel, levantando-se. - Ele deve ter informações valiosas.- Espere até amanhã - aconselhou Marc. - Alguém pode desconfiar vendo você conversando com ele num dia de folga. Você pode fazer isso enquanto trabalha com ele.Persuadido, Daniel voltou a se sentar, mas estava obcecado com as novas possibilidades que surgiram para resolverem o mistério da Ilha

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da Coroa. A semana seguinte prometia ser cheia de respostas que provavelmente levantariam outras dúvidas e perguntas a serem respondidas.O Sol se escondeu atrás do horizonte e os alunos se recolheram aos seus aposentos como de costume. Rafael organizava os livros em uma pilha sobre a mesa; deveria devolvê-los à biblioteca no dia seguinte e certamente pegaria outros emprestados. Ele estava obstinado a estudar em tempo quase integral e isso, aos poucos, roi afastando-o do convívio com seus colegas de quarto. Marc, Chester e Daniel acharam por bem aceitarem a sua escolha e não mais incomodá-lo com a idéia de fazer com que ele viesse a estudar por menos tempo. Afinal, Rafael estava ali com um objetivo bem definido e respeitar a sua vontade seria o mais sensato a fazerem.

Capítulo 7A Excursão pela Floresta

Mitsuro, o comedido e simpático professor de Biologia, anunciou que os alunos das turmas 1A e 1B teriam finalmente a sua atividade de campo naquela manhã.— Deixem os seus materiais sobre as carteiras. Em minutos entraremos na parte sul da floresta para uma aula ao ar livre - disse ele aguardando que os estudantes saíssem em fila.

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Sorrisos de satisfação surgiram na face dos jovens alunos. Eles iriam finalmente conhecer o interior da tão decantada floresta misteriosa.Do lado de fora do ambiente escolar a turma 1B aguardava impaciente e os dois grupos, liderados pelo professor Mitsuro e acompanhados por dois monitores, seguiram em frente e entraram numa trilha estreita que não permitia passar mais do que dois alunos por vez. A vegetação espessa se erguia por muitos metros em ambos os lados do caminho, formando um grande desfiladeiro verde que impossibilitava a visualização do interior da mata.Marc, que andava lado a lado com Daniel, comentou instigado.— A vegetação é muito densa. Não dá para enxergar muita coisa além desse matagal.— E também é úmida - completou Daniel, afastando um galho que roçava o seu rosto. — Olhe só como a floresta retém a água, provavelmente vinda daquele temporal, apesar do calor que faz agora.Pássaros de vários tipos e cores voavam de um galho para outro num festival de trinados que davam um tom mais alegre ao ambiente selvagem. O cheiro de mato era agradável e se misturava com a maresia sentida constantemente no lado leste da ilha.Após caminharem por uns oitenta metros, chegaram a uma clareira rodeada por árvores grossas entrelaçadas por plantas de folhas largas, formando uma barreira natural, praticamente intransponível.

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No centro da clareira havia uma mesa comprida feita de tábuas rústicas, e sobre ela, uma infinidade de pequenos vasos que comportavam plantas de espécimes diferentes.— Aqui estamos — disse o professor Mitsuro, pegando um vaso e girando-o na mão, observando-o com cuidado. - Nessa floresta existem inúmeras espécies de animais e vegetais vindas de diversas partes do globo. Ao longo do tempo muitos deles conseguiram se adaptar e hoje formam um ecossistema único, sem igual.— Pelo que o senhor está nos dizendo, esse ambiente foi produzido pela mão humana - deduziu Rafael, saindo de trás dos colegas.— É isso mesmo, rapaz. Tudo isso começou a ser plantado há mais de trezentos anos para dar um aspecto mais habitável à ilha. Antes disso só havia uma vegetação rasteira tornando o lugar árido e inóspito à vida humana - explicou, suspendendo um vaso em cada uma das mãos. - Esses espécimes são apenas alguns dos vários que existem por aqui e nos permitem fazer uma pequena viagem de conhecimento pela flora ao redor do mundo. Provavelmente este é o maior jardim botânico do planeta, o que nos dá muito orgulho.A curiosa platéia foi aos poucos se aproximando da bancada e recebendo valiosas informações sobre cada exemplar que examinava.— E os animais? - perguntou Daniel, mostrando um besouro que perambulava sobre a mesa.— Boa pergunta! — exclamou Mitsuro, com um sorriso afável. — Assim como a vegetação, os

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animais daqui são oriundos de muitos lugares. Alguns não se adaptaram e desapareceram, mas outros conseguiram sobreviver e estão aí até hoje. Alegro-me em dizer que conseguimos criar um mundo maravilhoso sobre uma enorme pedra quase estéril.— O que há mais adiante? — perguntou Daniel, apontando para além da clareira.— Mais mato, mais animais, e depois disso, o Monte Cabeça do Rei — respondeu, espantando um mosquito que o incomodava. — Além dele, mais mato, mais animais e por último o oceano sem-fim.— Grande novidade, isso nós já sabemos — cochichou Daniel no ouvido de Marc.— Teremos permissão para fazer incursões mais para o interior dessa selva? - perguntou Margaret; seu olhar desafiava a boa vontade do professor.— Infelizmente não. O interior da Floresta é perigoso e traiçoeiro — disse mostrando uma enorme cobra enrolada em um galho grosso de uma árvore próxima a eles. - Mesmo para mim, com bastante experiência em viver na selva, o risco é elevado. Eu me recusaria a passear por esses lados depois do pôr do sol.Da clareira dava para avistar o topo do único monte que não ficava tão distante e era um dos suspeitos de esconder algo que estaria guardado com tanto cuidado. Talvez tudo não passasse de um grande equívoco, e as cabeças juvenis e fantasiosas dos alunos fizessem com que eles imaginassem histórias que na realidade nunca

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existiram, a não ser na mente dos mais sonhadores. Mas eram muitas suspeitas para serem deixadas de lado e novas descobertas estavam para acontecer à medida que eles procurassem as respostas.Duas horas depois a aula havia terminado e os alunos retornaram pela trilha que deixava passar uma leve brisa vinda do mar, refrescada pelas folhagens e perfumada por flores silvestres.Assim que abandonaram a floresta, os alunos voltaram a sentir o forte vento marítimo e o calor do sol que lhes ardia a pele. Os últimos a saírem foram os monitores que se certificaram em não deixar ninguém para trás no meio da mata.Logo que o almoço foi servido, os meninos trataram de comer e se reuniram no pátio com Margaret que havia ficado encantada com a exuberância do bosque.— O que vocês acharam da nossa excursão? — perguntou ela, extasiada.— Vimos muito pouco — disse Chester, apoiando os cotovelos sobre a mesa, o rosto bem encaixado entre as mãos. - Mas o que ouvimos confirmou a nossa teoria. Parece que estamos no caminho certo.— Qual teoria? — quis saber Marc, intrigado.— A de que nem sempre houve uma imensa floresta bem aí ao nosso lado — disse convicto. - Lembram-se do desenho no livro que vimos na biblioteca? Ele deve ter sido feito antes do século XVII e depois copiado naquela edição de 1892.— Portanto, todo esse trabalho que tiveram de plantar uma floresta inteira deve ter servido para

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ocultarem alguma coisa fora do comum - refletiu Daniel, olhando a cada um na mesa. — E a proibição enérgica imposta aos possíveis intrusos ratifica essa idéia.— Só que vocês não estão levando em conta um detalhe importante - interrompeu Rafael, debruçando-se para frente para fazer valer a sua opinião. - A justificativa de terem plantado todas aquelas árvores para tornarem a Ilha habitável é razoável; e o fato de proibirem os alunos de terem acesso à floresta também faz sentido. Se eles permitissem que as centenas de alunos circulassem livremente sem restrições, em pouco tempo teríamos colegas despencando dos rochedos e caindo no mar ou sendo envenenados por animais peçonhentos. Todos aqui viram aquela serpente na clareira. Imaginem um animal daquele enrolado no pescoço de um de vocês.— Pode ser que você esteja certo — disse Daniel, admitindo as hipóteses de Rafael. - Mas creio que nos próximos dias teremos algumas respostas que vão derrubar as suas teorias. Você mesmo havia me dito que esse lugar esconde algum segredo. O que você quer agora, nos fazer acreditar no contrário?Rafael suspirou fundo e não respondeu a Daniel. Ele sabia que era minoria e que não adiantaria forçar a mudar o modo de pensar dos seus colegas. Além do mais, o grupo havia aumentado com a participação mais efetiva de Margaret xeretando a biblioteca.

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Insatisfeito com a relutância de Rafael em aceitar a decisão de continuarem investigando, Daniel levantou-se.- Vou procurar Júlio. Mais tarde eu devo trazer alguma novidade. Não poderei ir com você à biblioteca, Meg, veja se descobre mais alguma coisa.- Eu vou com ela - avisou Marc. - É bom mesmo não irmos todos juntos para não despertarmos suspeitas, e todo cuidado é pouco agora.-Também tenho que visitar o estábulo, o senhor Nestor já deve estar sentindo a minha falta - disse Chester, justificando a sua retirada.Rafael ficou sozinho na mesa vendo todos se afastarem. Seu coração estava apertado, pois tinha a sensação de estar perdendo os amigos que havia conquistado. Ele estava se sentindo um traidor. Então, respirou fundo e organizou os pensamentos.- Não devo voltar atrás. Não posso me envolver nesse plano, mesmo que me custe perder a amizade deles - murmurou resoluto. - Se eles quiserem a minha amizade, terão que aceitar a minha decisão de ficar fora dessa trama.Naquele momento de solidão, Rafael retirou do bolso da calça a imagem da pequena santa de metal que sua mãe havia lhe dado. Aquela pequena estatueta de rerro fundido significava a ligação entre ele e sua família. Rafael lembrou com ternura dos seus pais e irmãos que deveriam comentar sobre ele todos os dias. Aquilo o revitalizou, fazendo-o apertar forte a imagem e guardá-la novamente. Naquele

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instante ele levantou-se e foi para o quarto pegar os livros que havia emprestado e tratar de devolvê-los à biblioteca para imediatamente emprestar mais livros, e assim, prosseguir com seus estudos. Nada iria detê-lo.A biblioteca estava movimentada quando Meg e Marc chegaram. Só havia a bibliotecária, a senhora Maria, cuidando de tudo.- Perfeito! O diretor não está - disse a garota, olhando a sua volta. - Assim poderemos pesquisar mais sossegados.- Você se recorda onde está guardada a planta? — sussurrou Marc, seguindo-a de perto.- Sim, está no final daquele corredor próximo aos arquivos, está espremida no canto de uma das estantes, bem no fundo daquele corredor - ela sussurrou enquanto se embrenhava pelos vãos da biblioteca.A dupla caminhou discretamente, parando para olhar um livro ou outro nas estantes de maneira desinteressada. Era um cuidado exagerado, levando-se em conta que naquele corredor havia apenas alunos, somente voltados para as suas próprias pesquisas. Meg e Marc chegaram até a estante onde repousava o documento que procuravam. Ela, com um rápido movimento de mão, agarrou uma pasta de cartolina preta com elásticos que mantinham as suas pontas presas. Uma etiqueta revelava o seu conteúdo: PROJETO ESTRUTURAL DA ESCOLA INTERNACIONAL DO ATLÂNTICO. A menina segurou firme o documento contra o peito e, retornando pelo corredor, dirigiu-se a Marc:

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— Vamos encontrar uma mesa distante das atenções.Eles se acomodaram em uma mesa isolada, parcialmente escondida por um armário de portas envidraçadas utilizado para acondicionar livros raros.Margaret abriu a pasta e espalhou sobre a mesa três plantas de aspecto envelhecido e com as bordas danificadas pelo manuseio através do tempo.A primeira planta que eles decidiram analisar se referia ao terceiro pavimento da Escola que estava dividido em setenta e dois quartos e seis banheiros, sendo ocupados pelos alunos das séries mais adiantadas. Retas e ângulos se cruzavam formando os cômodos da parte mais alta do imenso prédio. Meg e Marc rastreavam o desenho com o olhar, procurando qualquer coisa que lhes indicasse uma passagem ou câmara escondida; após uma minuciosa varredura não encontraram nada que lhes chamasse a atenção. Sem obterem nenhum resultado, eles deixaram de lado aquela planta e passaram para a próxima que retratava o andar logo abaixo, o do segundo pavimento, que era idêntico ao anterior em número de quartos e banheiros. Aquele eles conheciam bem, pois era onde se localizavam os seus dormitórios, mas também não chegaram a conclusão alguma, mesmo que atentassem para os detalhes mais discretos. A última opção era o andar térreo. Margaret respirou fundo e debruçou-se sobre a terceira e última planta.

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— Estamos bem aqui — disse Margaret, localizando a biblioteca com a ponta de um lápis. - Aqui fica o refeitório e em todo esse setor estão as salas de aula.— Se não me engano, essa é a sala onde ensino música - disse Marc, mostrando com o dedo indicador.Depois de muito examinarem a planta sobre diversos ângulos, não conseguiram nenhuma informação consistente.— Acho que fomos ingênuos em pensar que deixariam alguma pista em um pedaço de papel que qualquer um pode consultar — disse ela, desanimada, apoiando a cabeça entre as mãos. — O que poderíamos esperar? Que eles marcariam um X como se fosse um mapa do tesouro?Marc riu da comparação feita por Meg, e disse ao notar Rafael sair do grande salão.— É melhor irmos embora, creio que não vamos achar nada procurando por aqui. Estou começando a desconfiar que ele está aproveitando melhor o seu tempo — refletiu, referindo-se a Rafael que acabara de deixar a biblioteca com uma nova remessa de livros.Com braçadas firmes, Daniel puxava a corrente de uma talha para erguer um dos pequenos motores da casa de força que forneciam eletricidade à vila em caso de emergência.- Agora vá baixando devagar, Daniel — orientava cuidadosamente Júlio enquanto encaixava o motor em sua base.A manobra foi concluída com êxito.

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- Bom trabalho, garoto! Você está se saindo muito bem, já posso deixá-lo no meu lugar e tirar umas férias — brincou o homem bonachão, limpando as mãos sujas de graxa com uma estopa embebida em querosene.Daniel se sentou ao lado dele e olhando para o chão, se preparou para falar.- Uma vez você disse que alguns setores não podem ser visitados por qualquer pessoa, lembra?- Ahn... Eu disse isso? - perguntou Júlio, hesitante.- Disse sim, e só não falou mais porque estava sendo vigiado.- Preste atenção, Daniel, meu amigo: você é um rapaz legal e se quer um conselho, esqueça essa história. Eu já soube de alunos e empregados que tiveram de deixar essa ilha por se meterem aonde não foram chamados. Não queira ter a mesma sorte deles.- Vou levar em conta o seu conselho, mas eu apenas quero saber que lugares são esses, só isso. Não vou sair por aí bisbilhotando e nem falando pra todo mundo.- Está bem, eu vou te contar... Mas depois não diga que eu não avisei — Julio fez uma pausa, procurando as palavras certas que iria usar. - A floresta você já sabe... Ninguém pode dar um passo mata adentro sem ter autorização. Muito esquisito, não é?- Sim, sim e que mais? - apressou-o com medo que alguém chegasse e interrompesse.- O outro fica no interior do prédio da escola e acredite, deve esconder algo muito valioso, pois

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é guardado como uma caixa-forte de um banco - revelou, apoiando os cotovelos sobre as pernas e enrolando a estopa em uma das mãos. - Há uns dois anos eu fui até lá para realizar um serviço.- E que lugar é esse? Onde fica exatamente? — insistiu Daniel, tomado pela ansiedade.Júlio olhou para os lados e cuidou para que ninguém mais ouvisse o que ele estava prestes a contar.— Existe um corredor no fundo do saguão de entrada...— O grande salão com aqueles retratos na parede! — completou Daniel, tentando visualizar mentalmente.— Fale baixo! Não sabe ser discreto? — ele deu mais uma olhada em volta e continuou. — Esse mesmo. Ele segue por uns quinze metros e dobra para a direita, depois se prolonga por mais cinco metros e termina em uma porta não muito grande, mas com dez centímetros de espessura, uma porta bem pesada. Tenho certeza disso, pois tive que tirar a medida para fazer um furo e aquilo me chamou a atenção. Um absurdo para uma porta daquele tamanho — disse, abrindo uma garrafa com água para molhar a garganta, logo depois contou mais coisas. — Fui lá para colocar um reforço naquela porta; uma argola de ferro que me deu muito trabalho, pois como havia dito, precisei furar a madeira grossa para conseguir fixá-la. Uma segunda argola foi presa na parede do corredor bem junto à porta. Depois do trabalho terminado, uniram as duas com um cadeado do tamanho da minha mão. - Júlio fez

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outra pausa quando lembrou de um detalhe que ele considerou importante. — Além disso, a porta possuía uma fechadura com duas linguetas que entravam fundo na parede. Portanto, as argolas eram um reforço a mais. Daniel, meu caro - e ele olhou fixamente para o garoto —, aquele compartimento guarda alguma coisa muito valiosa e que ninguém mais pode saber o que é.— Para fixar a argola na porta você precisou abri-la, estou certo?— Exatamente, daí constatei como ela era espessa.— E o que havia depois?— Apenas um cômodo escuro - disse, cerrando os olhos e tentando aguçar a memória. - Lembro bem que não havia janelas e a única coisa que pude ver foi um animal estranho em pedra encostado na parede oposta, uma mistura de ave e felino, acho eu.— E você não entrou para satisfazer a sua curiosidade?— De que jeito? Durante todo o tempo que fiquei trabalhando ali, dois monitores ficaram comigo sem arredarem o pé um só minuto — disse, levantando e pegando uma chave-inglesa na caixa de ferramentas. — Depois desse dia não retornei mais lá.— Por que eles teriam tanto trabalho para impedir que alguém possa entrar em um cômodo vazio e escuro?— Não sei, Daniel. E é melhor que você também não queira saber... para o seu próprio bem.

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Eles foram interrompidos pelo trote de um cavalo se aproximando. Era uma carroça conduzida por Chester que trazia um carregamento de madeira cortada em :ibuas largas. Chester saltou parando na entrada da casa de força.- Onde deixo essas madeiras?- Pode deixar aí mesmo, vou descarregá-las agora mesmo - disse Júlio, calçando luvas grossas para não ferir as mãos com as farpas.- Conhece o Lucrécio, Daniel? — perguntou Chester, apresentando o cavalo e indo para trás da carroça ajudar a puxar as longas ripas.O turno de trabalho estava terminando quando a carroça foi esvaziada.- Estou recolhendo, querem uma carona? — ofereceu Chester, subindo na carroça e pegando as rédeas.- Eu vou com você — disse Daniel, também subindo e sentando-se ao lado de Chester. - Você não vem, Júlio?- Vou ficar mais um pouco — respondeu, dando a volta na carroça e parando junto a Daniel. - Tome cuidado, garoto, meça as palavras antes de usá-las - sussurrou.A carroça se afastou ao som de rangidos de madeira e cascos batendo no cascalho, em direção ao estábulo. Chester desatrelou o cavalo e, juntamente com Daniel, retornaram a pé até o prédio central.Pelo caminho, Daniel que havia aguardado o melhor momento para contar a novidade, começou a falar ao ouvido do companheiro.

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- Descobri coisas que vão deixar vocês boquiabertos.- O que você descobriu?- Espere até chegarmos ao dormitório, quero que todos saibam ao mesmo tempo.Quando a noite caiu sobre a ilha, e o quarteto já se encontrava reunido, Daniel começou a falar tudo o que havia ouvido da boca de Júlio. Ele se preocupou em relatar os pormenores para deixar os amigos a par de cada detalhe e juntos começarem a montar o misterioso quebra-cabeça. Eles tinham consciência que ainda faltavam muitas peças para se encaixar e precisavam se empenhar muito para conseguirem as que estavam faltando.Ao encerrar o que tinha a dizer, Daniel aproveitou a oportunidade de provocar Rafael trazendo-o para a discussão.- O que você acha disso tudo?- Está bem, admito que fiquei curioso - disse, massageando a nuca enquanto pensava em cada palavra proferida por Daniel. — Até aonde vocês pretendem ir?- É muito cedo para responder a essa pergunta — disse Marc, cauteloso. - Mas me sinto encorajado em seguir adiante e tentar descobrir mais coisas.— Pra que serve uma sala vazia, sem janela e totalmente lacrada? — refletiu Chester, olhando no vazio.— E a tal estátua de pedra... será que possui algum poder mágico? — perguntou Marc, testando as possibilidades.

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— Talvez seja um objeto de adoração - sugeriu Chester. - Um ídolo de alguma sociedade secreta.— Um grifo! — deduziu Rafael aos olhos espantados dos amigos. — Não foi isso que Júlio havia dito? Um híbrido de ave e felino? Ele só pode ter visto um grifo, um ser mitológico com cabeça e asas de águia e corpo de leão.— Você deve estar certo — concordou Daniel, exultante. — A imagem do grifo é a que mais se assemelha a da descrição de Júlio.— Mas ainda assim, o que um grifo estaria fazendo naquela sala? - questionou Chester, intrigado.— Ainda não estou conseguindo ligar as coisas - disse Daniel, sentando ao contrário na cadeira e abraçando o encosto. - A sala deve ter alguma relação com a floresta, mas o quê? - Daniel pensou mais um pouco. - Com relação à planta deste prédio, vocês conseguiram alguma coisa?— Nada. Eu e sua irmã passamos um bom tempo estudando os três pavimentos da edificação e não vimos nada de anormal - informou Marc, levantando-se e seguindo até a janela para tomar um pouco de ar fresco. O feixe de luz lançado pelo farol girava ininterruptamente na noite escura. — Também pudera, nós nem sabíamos o que estávamos procurando.— Mas agora já sabemos, ou quase — disse Daniel, resoluto. — Temos que voltar lá e verificar o desenho do primeiro pavimento, ali pode estar a nossa resposta. Eu mesmo quero ver isso de perto.

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— Amanhã, após a aula, iremos todos juntos à biblioteca - Marc convocou os colegas. — Você vem conosco, Rafael?— Não me levem a mal, mas eu prefiro ficar.— Você é quem sabe, mas não vejo nada demais em nos acompanhar.— Mesmo assim, acho melhor eu não ir com vocês.Ao se deitar, Marc começou a anotar as informações obtidas até aquele momento e tentou combiná-las com o propósito de chegar a um denominador comum, mas era notório que faltavam dados importantes.

A mesa escolhida foi a mais escondida da biblioteca, a mesma que Marc e Margaret usaram no dia anterior. Marc foi o primeiro a se sentar e tomar a iniciativa de abrir a pasta; ele desdobrou somente a planta que lhes interessava: a do primeiro pavimento. O que eles viram os deixou surpresos. O corredor e a câmara que procuravam não constavam no documento.— Não está aqui — disse Daniel, com os olhos fixos no papel. — O que isso pode significar?— Que eles queriam, de alguma maneira, ocultar esse lugar secreto - especulou Marc, porém sem estar muito seguro.— Mas também, pode ser que na época em que o desenho foi feito aquela sala não fazia parte do projeto inicial - disse Chester, apoiando o queixo no punho fechado. — Ela poderia muito bem ter sido construída depois.

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— Parece que chegamos numa encruzilhada. Temos algumas informações e não sabemos o que fazer com elas - disse Daniel, desorientado.Com muitas perguntas e poucas respostas, eles desistiram temporariamente do projeto arquitetônico e pensaram em buscar um outro caminho, caso contrário, voltariam a estaca zero.O diretor Helmut entrou na biblioteca como um vendaval e passou por eles sem notá-los, refugiando-se no pequeno escritório envidraçado.— Acho bom darmos o fora daqui — disse Marc enquanto levantava-se.Em pouco tempo eles estavam no pátio, andando a esmo quando Chester lembrou-os de alguma coisa realmente importante.— Os próximos testes são na semana que vem e até agora não estudei o suficiente. O que acham de deixarmos de lado as investigações por enquanto? Após as provas a gente retoma de onde parou, pode até ser que surja alguma idéia nova que nos dê uma luz.— O que você acha, Marc? — quis saber Daniel, buscando um consenso.— Eu concordo, mas depois continuamos de onde paramos. Não podemos descartar o que conseguimos até agora.A estratégia dos garotos era coerente. Eles não podiam se arriscar a ficar abaixo da média exigida se atirando num plano maluco e inconseqüente ou seriam reprovados, e se isso acontecesse, era arrumar as malas e embarcar para casa.

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Uma semana depois os testes foram realizados e os resultados saíram dias depois. As notas foram bastante satisfatórias e todos os residentes do quarto 21 conseguiram se manter acima da média exigida. Assim, o primeiro semestre estava se fechando com saldo favorável a eles.Numa manhã de sol forte, Daniel foi acordado por um som familiar, um apito estridente que fez com que ele pulasse dentro das calças e se agachasse para procurar os sapatos debaixo da cama.— O Divina Providência III! - exclamou ele se vestindo em segundos.Marc olhou no relógio: ainda faltavam trinta minutos para que o sino avisasse da hora de despertar, ao que ele falou com voz sonolenta.— Ainda é cedo, Daniel. Podemos dormir mais um pouco.— Pra mim chega de dormir, quero ver o navio antes da aula.— Não precisa se apressar amigo —"disse Rafael sem abrir os olhos. - Ele deve ficar atracado o dia todo.Agitado e com a atenção voltada para o atracadouro, Daniel fez que não ouviu e deixou o quarto sem dizer mais nada.O dia ainda estava clareando e Daniel ignorou que não havia nenhum monitor no corredor e nem no primeiro pavimento quando o atravessou rumo à saída. Somente quando passou pelo saguão é que se deu conta que estava sozinho e relativamente próximo do corredor que se ligava à misteriosa sala lacrada. A entrada do corredor

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ficava meio escondida por uma curva em L que o saguão fazia e para se aproximar dela era necessário que Daniel atravessasse o enorme salão se distanciando da porta de saída. Quando esse pensamento passou pela sua cabeça, ele ouviu vozes se aproximando, o que o fez abandonar a idéia e deixar o prédio para não ser pego em atitude suspeita.A brisa que vinha do mar era fresca e bastante agradável. Daniel viu de longe as manobras de atracação do navio e quando deu os primeiros passos em direção ao atracadouro, foi interceptado pelo diretor Helmut que havia acabado de sair do prédio, logo atrás dele.— O que está fazendo, rapaz?— Quero ver o Divina Providência III, eu adoro navios.— Assim como o seu pai. Os navios sempre foram a paixão dele. Por isso ele se tornou um homem do mar.— Sim, meu pai... Não o vejo há muito tempo - disse, saudoso.— John foi um aluno exemplar — disse Helmut sem deixar de fiscalizar de longe a movimentação próxima a embarcação. - Ele foi um aluno extremamente confiável.A última sentença proferida pelo diretor acertou Daniel em cheio, pois uma coisa que o menino inglês não estava sendo era confiável. Buscava a todo custo se meter nos assuntos da escola que não lhe eram pertinentes: os segredos que nunca foram da sua conta e que Helmut conhecia muito bem. Astucioso e enganador, Daniel conspirava

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com seus colegas durante o dia e na calada da noite traindo a confiança da instituição que o acolheu.- Posso me aproximar do navio? - pediu, na esperança de rever o comandante Hugo.- Vá, mas não se demore. Não quero que se atrase para a aula.- Não vou demorar, senhor. Prometo.Seguindo pelo caminho de pedras, Daniel atravessou a praia e pisou no atracadouro, se desviando dos homens que empilhavam as primeiras levas de suprimento. Ele tentou avistar o comandante, mas viu que a ponte de comando da embarcação parecia estar vazia.Volto mais tarde — pensou.Quando ia retomar o caminho de volta ele ouviu uma voz vinda do alto.- Procurando alguém, jovem Crowley?Daniel se virou e lá estava ele: o comandante Hugo debruçado sobre a amurada do convés.- Suba. Ainda tenho um pouco de chocolate quente.Daniel não esperou um segundo convite e correu para a escada que levava ao convés do navio e os dois foram juntos até a cozinha.Um cozinheiro gordo de pele negra e sorriso radiante que descarnava um enorme peixe que estava sendo preparado para o almoço, largou a faca de lâmina afiada sobre o balcão e limpou as mãos no avental para cumprimentar Daniel.- Esse é Ivan - disse o comandante. - O melhor cozinheiro que já subiu em um navio. Nunca erra a mão.

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- Não ligue pra ele - desdenhou o cozinheiro. - Sempre acha que a sua tripulação é a melhor dos sete mares. Nos mima como crianças.O comandante e o garoto se alojaram no fundo da cozinha onde estava a bebida quente, motivo deles estarem ali. Ele encheu a caneca de Daniel e a sua, esperando o menino tomar o primeiro gole. Depois bebeu da própria caneca e indagou:- O que achou?- Está delicioso, comandante.- É muito bom começar o dia saboreando uma bebida quente, mesmo nesse clima tropical — disse Hugo, apreciando outro gole.Segurando a caneca pela asa e sacudindo-a levemente para ver o conteúdo girar, Daniel relembrou:- Desde que conversamos naquela madrugada fiquei pensando o que o senhor quis dizer quando falou algo como viver com as lendas.O comandante se surpreendeu com a abordagem de Daniel. Ele não fazia idéia que seu comentário fosse causar tanto impacto no menino.— Quer saber de uma coisa, rapaz? Eu sempre fui um sonhador... Quando eu ainda era bem pequeno, meu pai costumava embalar o meu sono contando histórias que faziam a minha mente viajar por terras encantadas e habitadas por seres fabulosos - disse levando as duas mãos para trás e apoiando-as na mesa que ficava o chocolate quente. - Quando cresci conservei essas histórias na memória e prometi a mim mesmo que iria percorrer o mundo a procura dos meus sonhos de infância. Enfim eu me tornei um

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rapaz, aí comecei a achar que esse mundo mágico só existia na minha cabeça .— Voltando-se para a mesa ele fez uma pausa para encher novamente a sua caneca e a de Daniel com mais chocolate fumegante. — Os anos se passaram e hoje eu me arrependo de não ter acreditado mais nas histórias que meu pai me contava antes de dormir. Mas nunca é tarde, pois os nossos sonhos nunca morrem, eles vivem em algum lugar eternamente. Por isso, Daniel, eu disse que gostaria de viver com as lendas, pois só as lendas vivem para sempre.A concentração do menino foi quebrada pelo longínquo toque do sino da escola.— Vá, Daniel Crowley, está na hora.Daniel se despediu do comandante e de Ivan, o cozinheiro, e desceu do navio mais intrigado do que quando havia chegado. A imagem que Hugo criou na sua cabeça era um enigma e teria de ser decifrado. Os sonhos de Hugo eram muito parecidos com os do pequeno inglês, o que os uniu de alguma maneira. Ao ir para cama quando criança, Daniel ouvia histórias semelhantes contadas pelo seu pai, o oficial John Crowley. Daniel decidiu que Hugo, o velho marujo, mantinha um grande segredo que certamente tinha ligação com aquela estranha ilha.A manhã daquele dia havia decorrido rapidamente devido ao excesso de atividades passadas pelos exigentes professores.A tarde, os alunos foram informados sobre as cartas e encomendas trazidas pelo Divina Providência III e que estariam à disposição para

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serem retiradas nas caixas de correspondência que ficavam próximas à secretaria. Rafael havia recebido apenas um simples envelope de carta e se isolou em uma mesa no pátio para ler a correspondência com cuidado, valorizando cada linha traçada. Algumas frases lidas voltavam à sua lembrança repetidas vezes: Nós te amamos; Vá em frente; Estamos orgulhosos de você. Era o estímulo que ele precisava para manter o seu empenho nos estudos.As mãos de Daniel rasgaram cuidadosamente a lateral do envelope, e ele sentiu um nó na garganta ao ler uma mensagem escrita pelo seu pai: Senti muito não poder ter estado ao seu lado e de Meg quando partiram. Em outro trecho estava escrito: Cuide bem da sua irmã. Em breve nos veremos novamente. Estamos ansiosos, contando os dias que faltam.Sentado na escada que levava aos dormitórios, Marc sorria e balançava a cabeça quando lia: Gostaríamos de tê-lo aqui conosco. O piano está em silêncio aguardando a sua volta. Mais adiante havia um recado: Continuam chovendo convites para suas apresentações. Muitos não sabem que você não está em Paris.A carta que Chester recebeu dos seus tios não era muito diferente. Eles falavam da falta que estavam sentindo do sobrinho querido e davam notícias do seu cavalo, Coronel e da saborosa torta de maçã que a tia Mary havia acabado de preparar. Só de lembrar veio água na boca do menino texano que recordou como se deliciava

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sentado na varanda da casa, olhando a relva verdinha se espalhando até o horizonte.Pouco tempo depois, os quatro amigos já se encontravam reunidos em torno de uma mesa ao ar livre e envolvidos numa conversa animada, entremeada de risadas e exclamações.Uma menina de cabelos louros, carregando uma maleta verde com motivos florais, passou por eles de cabeça baixa e expressão abatida a caminho do atracadouro.— Lá vai mais uma desistente - comentou Marc, sentindo como se a garota fosse enfrentar um pelotão de fuzilamento.— Quantos mais não agüentarão a pressão e vão acabar desistindo? - refletiu Chester, especulando.— Espero que um dia eu não venha a fazer parte dessa lista — disse Rafael, olhando a menina se afastar.Naquela tarde, outros dois alunos fizeram o mesmo caminho, aumentando as estatísticas de que pouco mais da metade dos que desembarcavam na Ilha da Coroa completavam os oito anos do curso.

Os dias em que os testes eram aplicados, se tornavam invariavelmente tensos. Rafael foi o primeiro a entregar a prova; estava bem preparado, o que o deixava mais seguro. Meia hora depois, o pesado teste havia terminado e dali para frente o jeito era aguardar as notas que sairiam em edital.

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As semanas corriam e o quarteto acumulava boas notas que lhe garantiam a média suficiente para assegurar a permanência no segundo semestre.O alvo de Margaret deixou de ser seu irmão. Ao menos temporariamente. O confronto passou a ser com Rafael, mas a tenacidade do menino era tão grande nos estudos que sobrepujá-lo passou a ser uma tarefa árdua. Embora o garoto ignorasse a disputa, pois, na verdade, a luta de Rafael era com os seus próprios medos.Com o término do primeiro semestre, os alunos teriam o direito de aproveitar dez merecidos dias de férias. Esse tempo não era suficiente para os alunos viajarem para tão longe e reverem os seus familiares. A solução era permanecerem na ilha, descansando e aguardando o reinicio das atividades escolares.Numa daquelas tardes em que não há muita coisa para se fazer, Marc, Daniel e Chester se envolveram numa conversa daquelas em que era prudente manterem segredo, e que o mais certo seria o de se enfiarem em seus aposentos para falarem com mais liberdade. Discutiam, pensavam, trocavam sugestões, porém, não chegavam a um entendimento de como deveriam dar prosseguimento à bisbilhotagem que iniciaram há meses. Não sabiam que rumo seguir.— Deve haver um local exato, preciso, na Ilha, que seja responsável pelas alterações que deixam o mar em permanente perturbação - disse Chester, espreguiçando-se.

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— Pode ser que não haja um ponto exato como você diz — retrucou Marc. — Quem sabe a ilha toda ocasione isso.Os três fizeram um breve silêncio buscando alternativas, quando Rafael decidiu se intrometer.— Acho que o raciocínio de Marc pode estar certo. Se as águas revoltas formam uma circunferência perfeita, então deve existir um ponto central.Todos olharam admirados para ele, pois há muito tempo Rafael evitava tocar no assunto, ainda mais sem ser chamado.— Mas como podemos identificar onde fica esse provável ponto central? - indagou Marc, aproveitando a solicitude de Rafael. - Mesmo a Ilha pode estar deslocada com relação ao centro da circunferência e esse ponto que você supõe pode até estar localizado no fundo do mar. Não temos como saber.— Não acredito nisso - retrucou Rafael. — Como vocês sabem, as ondas castigam a Ilha por todos os lados, atraídas violentamente por algo desconhecido. Portanto, o que provoca esse fenômeno pode muito bem estar em um ponto qualquer em terra.— Tem coerência o que você está defendendo - concordou Marc, abrindo um sorriso de satisfação.A hipótese de Rafael começou a fervilhar nas mentes dos seus colegas que esperavam que ele tivesse mais coisas para dizer, o que aconteceu. Ele pegou um dos livros que estavam sobre a mesa e arrastou a sua cadeira se posicionando

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mais próximo dos companheiros. Em seguida, Rafael abriu a obra numa página previamente marcada por uma tira de papel e exibiu um desenho que os deixou atônitos. O desenho que eles viram era o de um círculo envolvendo os contornos da Ilha da Coroa e que representava o gigantesco anel de águas bravias. Rafael então continuou com o seu raciocínio:— Caso a posição que a Ilha esteja com relação ao círculo estiver correta nesse desenho, e parece que está pelo que é informado no pé da página, podemos fácilmente determinar o centro da circunferência e finalmente vocês terão o que tanto procuram.Sem perder tempo, Rafael entrou em ação colocando o livro aberto sobre a mesa, e fazendo uso de uma régua, traçou levemente com um lápis duas retas formando um grande X de borda a borda dentro do círculo, e por fim anunciou:— Aí está o meio da nossa circunferência!— Mesmo assim, ainda não podemos localizar com certeza que lugar é esse - observou Daniel, tocando com a ponta do dedo indicador no local marcado. - O desenho só mostra os contornos da Ilha da Coroa e não especifica os pormenores do terreno.— Mas podemos deduzir a localização com uma boa margem de precisão — garantiu Rafael, desdobrando uma folha de papel que havia guardado para aquela ocasião. - Elaborei detalhadamente um mapa da Ilha obedecendo as escalas utilizadas e cheguei a esse resultado.

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Os olhos de Daniel, Chester e Marc se arregalaram. A marca que Rafael havia feito apontava exatamente para o centro do monte Cabeça do Rei.— Fascinante! Mas ainda me resta uma dúvida - ponderou Chester, examinando detidamente o mapa que Rafael havia construído. - Que credibilidade esse livro pode ter?— Isso você mesmo pode responder — disse Rafael, mostrando a capa e revelando o autor.O livro era de autoria do professor Rajev Shekar, o físico indiano que dava aula para eles todas as semanas.— O professor Rajev vem estudando há vários anos os fenômenos que ocorrem por aqui e certamente ele deve saber de outras coisas que não constam nessa obra, que por sinal, foi publicada em 1929. Este livro é recente.— E por que razão ele forneceria pistas de uma coisa que ele mesmo teria interesse em ocultar? - questionou Daniel, não convencido dos argumentos de Rafael.— Porque até onde eu li não há pista nenhuma. Este é apenas mais um livro que discute o extraordinário comportamento do mar nesta região, procurando estabelecer uma relação com um possível desequilíbrio magnético - disse Rafael, passando a mão por sobre a capa do livro. — Acho que é mais uma satisfação à comunidade científica por parte dos cientistas que estão envolvidos nessa trama para desviarem a atenção de algo muito maior,

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daquilo que realmente escondem. O professor Rajev pode muito bem ser um deles.Bastante pensativo, Daniel caminhou até a janela e passou um tempo em silêncio fitando a pequena montanha sendo obscurecida pelo lento cair da noite.- Então está lá! — disse como se estivesse enfeitiçado pelo misterioso monte.- Não se pode afirmar com certeza — disse Rafael com prudência. - Em todo caso, não há como se chegar até ela. A menos que vocês desejem ser expulsos.- Por que nos disse essas coisas? — perguntou Chester, sem compreender a paradoxal atitude do garoto. - Poderia ter guardado essas informações só pra você.- Não nego que também estou fascinado com as histórias que soubemos desde que desembarcamos. Por isso passei parte do tempo fazendo minhas próprias pesquisas, mas também tenho que admitir que estou inseguro e amedrontado - confessou, mordendo o lábio inferior. — Quanto a ter revelado à vocês o que descobri, acho que era o melhor a fazer - ele fez uma pausa, abaixando os olhos. - Estava me sentindo como um traidor entre vocês. É muito difícil ficar longe da família num lugar sem amigos.- Mas nunca deixamos de ser seus amigos - protestou Marc, tocando no ombro de Rafael. — Só estávamos divergindo em nossos pontos de vista. Continuamos a ser uma equipe, certo?

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Buscando apoio no que dizia, Marc olhou para Chester e Daniel, e insistiu:- Certo?- Claro! Continuamos juntos nisso — respondeu Chester, apoiado por Daniel.Aliviado pelo apoio dos companheiros, Rafael se sentiu como se tivesse tirado um enorme fardo dos ombros.O quarteto passou o tempo que lhes restava, enquanto as luzes não fossem apagadas, para discutirem mais sobre as idéias que Rafael havia exposto.Na manhã seguinte, logo após o desjejum, os meninos se encontraram com Margaret e a deixaram a par de tudo o que havia acontecido no dia anterior. Curiosa, ela quis saber.- E o que vocês vão fazer agora?- Não sabemos ainda — respondeu Daniel enquanto andavam a esmo pelo pátio procurando uma mesa bem afastada dos monitores. — Mas sinto que a cada dia estamos mais perto de resolvermos esse mistério.- Não deixem de me contar nada - recomendou Meg, preocupada em ser deixada de lado. - Começamos isso juntos e eu quero ir ato o fim.- Mas não foi isso que fizemos até agora? — questionou Daniel, indignado. - Você á a única que sabe de tudo além de nós quatro. Só não vá abrir o bico para as suas amigas, caso contrário, toda a escola vai ficar sabendo em pouco tempo.- Não se preocupem, sei muito bem guardar segredo e se alguém descobrir não vai ser pela minha boca.

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- Ótimo! Selamos assim um pacto de silêncio - completou Marc, pondo um fim nas diferenças.

Capítulo 8O Aluno Misterioso

Ainda restavam nove dias das curtas férias e os alunos procuravam preencher o tempo achando o que fazer. Muitos deles se enfiavam nas páginas dos livros para reativar a memória com fórmulas químicas e complicadas equações matemáticas.Daniel e Meg iam freqüentemente à piscina para, além de se refrescarem, aprimorarem suas técnicas de nadadores, obviamente competindo entre si. Chester, por sua vez, passava mais horas com os eqüinos e usava as proximidades do estábulo para realizar suas cavalgadas sob o olhar reverente de Nestor, o velho tratador de cavalos que havia se afeiçoado ao menino. Entrincheirado na biblioteca, Rafael permanecia rodeado de livros e só parava de estudar quando percebia a presença do diretor às suas costas fiscalizando o que o garoto lia. Pela manhã Biologia; à tarde Química; no dia seguinte Física e Matemática. Assim era a sua rotina. As suas visitas àquele local se tornaram tão constantes que Rafael já conhecia de cor boa parte de cada seção da imensa biblioteca.Do outro lado do grande prédio escolar, Marc decidiu ministrar suas aulas todas as tardes durante o período das curtíssimas férias. O

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contentamento do garoto francês se elevou quando ele recebeu instrumentos musicais novinhos trazidos do continente conforme havia prometido Ramón. A orquestra já havia ultrapassado os quarenta componentes e a sala de música tinha atingido a sua lotação limite.— Temos que nos mudar para uma sala maior — admitiu Ramón, porém satisfeito com o sucesso alcançado. — Provavelmente usaremos o auditório.- A acústica de lá é muito boa — comentou Marc com entusiasmo. - E com a chegada dos novos instrumentos temos condições de atender mais alunos ao mesmo tempo.Ramón se despediu e antes de sair, voltou-se para Marc:— Ah, sim, o diretor virá aqui amanhã para ver como vocês estão evoluindo. Estou muito orgulhoso de você, garoto.- Obrigado, senhor - agradeceu, mostrando um sorriso no canto da boca.Os ensaios continuaram por quase duas horas. Exigente em alcançar a perfeição,Marc interrompia sempre que os seus ouvidos afiados percebiam alguma nota errada no meio de tantas outras. Ele notava qualquer imperfeição vinda de algum instrumento por menor que fosse.- Esperem um instante — dizia ele, parando mais uma vez a execução de uma música. — Um dos violinos está um pouco desafinado.

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Ele pediu para que um a um, todos os seis violinistas tocassem até que pudesse localizar onde estava a falha.- Parece que está afinado agora - disse Marc, depois de ajustar as cravelhas e devolver o violino ao seu dono. Já podemos continuar.Quando o sol começou a deitar-se sobre o horizonte, Marc deu por encerrada a aula daquele dia. A sala que há pouco estava tomada pela melodia conduzida pelo mestre francês, foi sendo subjugada pelo silêncio reinante.Tão compenetrado que estava relendo uma partitura que não se deu conta de um dos alunos ainda estar no fundo da sala. O tal aluno era o mesmo que há algum tempo os observava de longe, na biblioteca, no pátio ou no refeitório. O enigmático garoto de olhos verdes e cabelos escuros encaracolados e cobrindo-se com um boné preto, aproximou-se de Marc que só notou a sua presença quando o menino se colocou bem à sua frente.- Olá, Marc, posso falar um pouco com você?- Sim, sente-se - disse, puxando uma banqueta e oferecendo-a ao visitante. - Meu nome é Bruno Cassini, eu estava apreciando o trabalho que você está realizando — disse, tirando o boné e usando um dos joelhos para pendurá-lo. — Está excelente.- Com esse nome e esse sotaque você só pode ser italiano.- Acertou em cheio — confirmou Bruno, mostrando-se amigável. - Você vem fazendo uma verdadeira revolução musical nesse colégio.

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Todos estão comentando sobre como você é bom quando o assunto é a música, sem falar no magnífico resultado que conseguiu em tão pouco tempo montando a orquestra. Vou confessar uma coisa: gostaria de ter somente um pouco do seu dom e já me daria por satisfeito, mas não tenho muito jeito para a música. — Bruno fez uma pausa e logo retomou o discurso: — Mas você nasceu pra isso, nunca vi tocar tão bem, você parece tirar mais de cada instrumento do que ele pode oferecer. Definitivamente, estou diante de um gênio.- Você não veio aqui só pra me cobrir de elogios - disse Marc desconfiado, erguendo uma sobrancelha.O rosto de Bruno se fechou numa expressão séria.- Você tem razão, Marc, não vim aqui pra isso, embora concorde que você é um grande músico - disse dando um grande suspiro preparando-se para revelar o motivo pelo qual ele estava ali naquela hora.- Permita apresentar-me melhor. Sou do segundo ano, portanto, estou nessa ilha desde o início do ano passado. De lá pra cá vi muitas coisas acontecerem de estranho, e desde então, procurei as respostas por conta própria, em conseqüência acabei fazendo descobertas que me deixaram cada vez mais curioso.Marc ficou estático ao ouvir Bruno falar aquelas coisas, então se levantou.

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- Espere um pouco - disse indo ité a porta se certificar se ninguém estava escutando, ele retornou em seguida. - Continue, por favor.- Como eu estava dizendo, desde que cheguei tive a sensação de que algo não estava certo. A minha curiosidade crescia cada vez mais à medida que eu tropeçava em um novo mistério, e como você já deve ter percebido, um enigma leva à outro enigma que aponta para um terceiro, formando um grande quebra-cabeça.- Foi exatamente esse termo que eu e meus amigos havíamos usado para definir esses fatos inexplicáveis: um enorme quebra-cabeça — disse Marc, ajeitando-se na banqueta e voltando mais uma vez a atenção para a porta.- Pois bem, a história é um pouco longa. Você deseja que eu prossiga?- Sim, quero saber de tudo!- Me parece óbvio que a chave do mistério está nas entranhas da floresta fechada e que ela foi introduzida ali para servir de barreira aos possíveis intrusos.Marc concordou fazendo que sim com a cabeça e com os olhos estalados, quase sem piscar aguardou ansiosamente pelo que lhe seria relatado. Bruno continuou:- Quando cheguei aqui, comecei a fazer um monte de perguntas aos colegas, professores e funcionários. Perguntas que vieram comigo desde a Itália, mas reparei que todos se esquivavam toda vez que eu mencionava qualquer coisa que envolvesse a floresta ou o mar diabólico que rodeia a Ilha da Coroa. Isso

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não foi o suficiente para me intimidar, pelo contrário, só reforçou o meu ímpeto de ir mais fundo na questão. — Bruno parou de falar por um momento, passando a mão no rosto enquanto pensava e depois prosseguiu contando: - Cheguei a descobertas e conclusões interessantes, mas aí notei que os monitores, os professores e até o diretor Helmut sempre estavam a espreita, aguardando que eu desse qualquer motivo para me mandarem embora. Certa vez, fui chamado de surpresa à sala do diretor e tive que enfrentar uma prova oral com mais de cinqüenta questões de Química e depois de Física. Como acertei quase todas, eles não puderam fazer nada comigo, e quando questionei o por quê do teste surpresa, eles me disseram que era comum aquele procedimento com os alunos. Depois disso, eu andava pela escola perguntando aos colegas, inclusive aos das séries mais adiantadas que a minha, se eles haviam passado por situação semelhante, e adivinhe o que eles me diziam:- Nenhum deles fez algo parecido. Nada de provas orais ou coisas do tipo - deduziu Marc, acompanhando atentamente o raciocínio de Bruno.- Exatamente! Não só não haviam feito nenhum tipo de teste como jamais tinham ouvido falar deles. O diretor queria arrumar um pretexto para me colocar pra fora, mas quanto mais o cerco se fechava, melhores eram as minhas notas.- Mas você deve ter sido bastante inconveniente para eles te tratarem daquele jeito - observou

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Marc enquanto acondicionava um violino em seu estojo.- De fato eu era muito enxerido e pouco discreto, mas, de qualquer modo, aqueles acontecimentos só aumentaram as minhas suspeitas. Mas veja a que ponto chegou a pressão que eles fizeram contra mim: os meus colegas de quarto praticamente recusaram a minha companhia, falando comigo somente o essencial, até que um dia, fui comunicado pelo senhor Ramón que eu mudaria de quarto, assim, sem mais nem menos, e tive que tirar os meus pertences do meu antigo aposento no mesmo dia. Mas ainda não acabou - Bruno deu um sorriso irônico e prosseguiu narrando sua história: - Quando cheguei na minha nova moradia, que se localizava no fim do corredor do terceiro pavimento, constatei que ficaria sozinho, sem dividir o quarto com nenhum colega. Aí entendi que eles queriam mesmo era me isolar a todo custo.- E você não questionou por que estavam fazendo aquilo?- Num primeiro momento eu fiquei muito irritado com aquele abuso, mas depois esfriei a cabeça e pensei melhor. Por fim, eu já estava até achando bom, um quarto todinho só pra mim sem ninguém para me importunar - Bruno riu e depois parou o olhar no vazio. — Quando me ausentava do meu dormitório à noite para ir ao banheiro, dava de cara com um monitor me cuidando. Era o recado implícito deles pra mim: "Estamos de olho em você, garoto, náo cometa nenhum erro ou te mandamos pra casa". Se pensavam que eu

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cairia na armadilha deles, estavam totalmente enganados, pois ainda estou aqui e contando tudo pra você. Com o tempo eu deixei de dar motivos e eles foram esmorecendo até que me deixaram em paz. Mas eu sei que eles ainda seguem os meus passos de vez em quando.- E como você sabe que eu não vou sair daqui direto para a sala do diretor e te entregar pra ele?- Eu tenho certeza que não. Vocês e seus amigos são tão curiosos quanto eu - afirmou com segurança, encarando Marc. - Venho observando vocês há meses e duvido que isso aconteça. Além do mais, sei de coisas que vocês não sabem e se me entregarem para a diretoria, essas informações voltariam comigo para a Itália. Mas é melhor pararmos por aqui, já está escurecendo e logo vão dar falta de nós dois.- Continuamos amanhã? - perguntou Marc, compromissando o italiano.- Pode ser, mas sejam um pouco mais cuidadosos e não cometam os mesmos erros que eu. Vocês já estão começando a chamar a atenção.- Pode confiar, saberemos guardar segredo.Bruno despediu-se e deixou a sala discretamente como havia entrado. Quando ficou sozinho, Marc permaneceu pensativo por alguns minutos tentando colocar as idéias em ordem.Bruno disse que sabia de coisas que nós não sabemos - pensou ele.

Marc pegou a sua sacola e enfiou apressadamente algumas partituras, depois

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agarrou a sua flauta inseparável e se evadiu, cruzando os salões e corredores que já não apresentavam a mesma claridade da luz diurna; o interior da escola assumiu uma cor monótona cinza-azulada. Quando ele estava atingindo o topo da escada ouviu chamarem o seu nome.- Ei, Marc, espere!Era o seu amigo Chester que começava a subir as escadas acompanhado de Daniel e Rafael.Com um aceno de mão Marc sinalizou para subirem mais rápido os degraus.- Onde você estava? - perguntou Daniel franzindo a testa. - Estivemos agora a pouco na sala de música te procurando.- Acabei de sair de lá, acho que nos desencontramos pelo caminho. Preciso falar com vocês, já jantaram?- Ainda não - respondeu Rafael. — Mas temos que ir logo se quisermos comer. Está quase na hora de fecharem o refeitório.Em questão de instantes os quatro parceiros já estavam se refestelando com um delicioso peixe servido com arroz e batatas coradas.Marc resolveu aguardar o momento certo para falar, e o refeitório não era o local mais apropriado.- Já terminaram? — perguntou Marc, recebendo uma resposta afirmativa dos colegas. — Então vamos subir que eu tenho uma boa notícia que pode nos ajudar muito.Dentro do quarto, Rafael fez um comentário dirigindo-se a Marc:- Você parece ansioso. O que houve?

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- E estou. Sentem-se, pois vocês vão gostar muito do que tenho pra falar.- Por isso você demorou tanto? — perguntou Chester, agarrando a cadeira mais próxima.- Isso mesmo.Quando Marc viu que todos estavam acomodados, passou a relatar o seu encontro com Bruno. O brilho nos olhos dos meninos irradiava perplexidade enquanto Marc discorria de maneira eloqüente.Ao terminar, Marc quis saber:- O que vocês acham?- Não podemos perder o contato com esse... Bruno — antecipou-se Chester, ávido por conseguir mais informações do garoto italiano.- Acertamos de nos encontrarmos amanhã à tarde. Ele disse que vai me contar tudo o que sabe.- Eu vou junto - prontificou-se Daniel, imaginando quantas perguntas poderia fazer.- Acho melhor eu ir sozinho - retrucou Marc. - Devemos evitar chamar a atenção. Quanto menos gente, mais seguro estaremos.- Não é que eu duvide de sua capacidade — disse Daniel sem querer ofender. — Mas essa pode ser a oportunidade que precisamos para avançarmos definitivamente nesse caso.- Eu concordo com você e entendo a sua apreensão - disse Marc, cauteloso, porém sem esconder a ansiedade. — Confiem em mim e amanhã à essa hora teremos tanto para conversar que atravessaremos a madrugada. Pelo menos assim espero.

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Sem fazer nenhum comentário, Rafael passava quase despercebido roendo a unha do polegar direito. A sua omissão já era por demais conhecida, mas ao menos não interferiu nenhuma vez desaprovando os planos que estavam sendo arquitetados.Como se estivessem preparando uma estratégia de guerrilha, Chester e Daniel sugeriam várias perguntas que Marc deveria fazer, e na possibilidade de certas respostas, emendavam outras em seguida averiguando as muitas alternativas que por ventura surgissem.Um momento de lucidez se apossou de Chester, que prontamente alertou:- Um momento, pessoal. Temos que ir com calma, pois se dermos um passo em falso, corremos o risco enorme que nos colocará na mesma situação do italiano. Há aposentos vazios nesse prédio suficientes para nos separarem, e se assim acontecer, as coisas ficarão bem mais difíceis pra nós.Rafael não se manifestou e se limitou a continuar roendo as unhas. Espiava a conversa como um esquilo curioso de cima de uma árvore.

O alvorecer de mais um dia de férias havia chegado. Caía uma chuva fininha, daquelas que não dão nenhum sinal de quando irão parar. Da janela era possível ver os riscos das gotículas que se precipitavam impulsionadas pelo vento que as jogava ora para um lado, ora para outro. O clima se tornou agradável e se manteve assim o dia todo. Um frescor incomum para os padrões das

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baixas latitudes equatoriais. O cheiro de terra e mato molhados se espalhou pelo ar.- Sete horas, rapazes - disse Chester enxergando os ponteiros do relógio com dificuldade devido à vista embaçada pela longa noite de sono. - Hora de levantar!Marc só virou de lado e continuou dormindo.Pulando da cama e fazendo um baque no chão com os pés descalços, Chester foi até a janela e vislumbrou a selva parcialmente tomada por uma neblina branca que perpassava pelas copas das árvores orvalhadas. Acima da ilha e se estendendo por todos os lados, dominava um gigantesco teto de nuvens escuras que quase tocavam o topo do monte Cabeça do Rei. Desviando o olhar para baixo, Chester viu a figura do incansável professor Roger, correndo como de hábito e ignorando os chuviscos que lhe umedeciam a roupa e os cabelos.Um prolongado bocejo dado por Rafael quebrou novamente o silêncio da manhã chuvosa. Ele olhou para fora e não se sentiu muito animado em levantar da cama; voltou o olhar para a mesa no fundo do quarto e viu a pilha de livros que se acumulava, resultado dos estudos do dia anterior.- Há muito pra estudar hoje - resmungou em voz baixa.O dia prometia muita agitação para Marc. Seus dedicados alunos, regidos pela sua batuta, fariam uma apresentação especial para o diretor e logo em seguida o jovem maestro estaria prestes a

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realizar o tão esperado encontro com Bruno, o italiano.A chuva miúda impediu que os alunos utilizassem o pátio deixando o lado externo da ilha praticamente vazio. Somente uns poucos monitores rondavam os limites da floresta úmida, protegidos por longas capas de chuva negras.Chester preferiu passar o dia em companhia de Nestor. Era um excelente dia para conversar com o velho tratador que tinha a mesma paixão que ele. Os encantadores cavalos.- Você nunca me disse como veio parar aqui — observou Chester, enquanto pendurava algumas ferraduras em um suporte na parede do estábulo.- Eu estudei nessa escola há muitos anos — disse Nestor, alisando a barba branca que chegava a altura do peito. — Com o tempo fui perdendo o contato com a minha família que se resumia a um irmão mais velho e uma tia solteirona que vivia sempre de mau humor.Chester não ousou perguntar o que tinha acontecido com seus pais. Nestor não parou de falar.— Meu irmão entrou para o Exército e nunca mais tive notícias dele. Já a minha tia, bem, eu soube anos depois que ela tinha morrido de tuberculose. Daí em diante eu resolvi que o meu lugar era nessa ilha. Acho que o antigo diretor ficou com pena de mim e fui ficando. O resto você já sabe, eu comecei a cuidar dos cavalos e estou aqui até hoje.

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- O que há nessa ilha que a torna tão estranha? - perguntou Chester, acreditando que poderia arrancar mais do velho.- Todos aqui são estranhos, eu também me tornei assim com o passar do tempo. Estamos isolados do mundo. Olhe à sua volta... Não há ruas rodeadas de lojas com vitrines elegantes, nem praças para se passear aos domingos com a família; não existem cafés para sentarmos ao final da tarde e conversarmos despreocupadamente com os amigos após um dia estafante de trabalho. É só céu e mar - Nestor olhou profundamente nos olhos de Chester e declarou: - Mas é o melhor lugar do mundo, rapaz, quem sabe um dia você entenda o que estou falando? - Nestor voltou a olhar a chuva fina que caía lá fora e se calou.

Júlio seguia rapidamente para fazer um reparo de emergência em um cano de cobre que abastecia de água a cozinha do enorme refeitório. Daniel o acompanhava e recebia as últimas instruções antes de iniciar os trabalhos hidráulicos.— Calce estas galochas, vamos descer no porão da escola, o vazamento já deve ter alagado tudo lá embaixo.Eles levavam um lampião cada um, pois o subterrâneo não possuía luz elétrica e nem janelas, o ar era úmido e abafado, e ao chegarem ao fundo do porão inundado, Daniel teve uma surpresa. A água que havia vazado do cano furado formava marolas se chocando constantemente contra a parede. O menino

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refletiu sobre a posição em que se encontravam e deduziu logo que a água sofria um movimento de atração que parecia vir da floresta. Algo muito parecido com as ondas fortes que se arremessavam violentamente contra a ilha.— O que está acontecendo aqui? — perguntou Daniel, tocando com as pontas dos dedos as pequenas ondas que se formavam aos seus pés.- Ah... Essa água maluca? Sempre acontece isso aqui embaixo. Você se acostuma logo.Daniel pegou uma caneca de latão que costumava usar para matar a sede e pôs um pouco da água que não parava de se agitar; a água confinada na caneca se chocava com as bordas do recipiente lembrando novamente as ondas arrebentando contra os imponentes rochedos pontiagudos que contornavam a ilha.- Beba um pouco dessa água - disse Júlio, incentivando com a mão. - Vamos, não tenha medo. É limpa.Daniel olhou hesitante para Júlio e depois para dentro da caneca. Em seguida, ainda inseguro, tomou um gole.- Então, o que está sentindo? — perguntou Júlio, erguendo as sobrancelhas e exibindo um sorriso maroto.- É estranho. Sinto como se a água estivesse viva... É meio desconfortável.- Isso logo vai passar - tranquilizou-o Júlio, dando um tapinha com as costas da mão na barriga de Daniel. - Uma vez o professor Rajev me disse que a água só se comporta dessa maneira quando não há uma grande quantidade de elementos

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orgânicos misturados à ela. Quando a água for absorvida pelo seu organismo você não sentirá mais nada — explicou pegando uma chave de grifo. — Observe o mar em volta da ilha. Ele não apresenta esse mesmo percentual de substâncias orgânicas, por isso continua se movendo ininterruptamente. Bem, pelo menos foi assim que o professor Rajev me ensinou.Mas por que isso está acontecendo aqui embaixo? — pensou ele enquanto olhava Júlio lutando para conter o vazamento que insistia em não parar. - Por que a água não se comporta dessa maneira lá em cima, nas torneiras e chuveiros? — continuou o seu raciocínio silencioso sem chegar a qualquer conclusão.Então ele teve uma idéia: segurando com uma das mãos a caneca com água, ele começou a subir lentamente a escada e constatou o que havia imaginado. A água do recipiente de repente ficou inerte. Daniel voltou a trazer a caneca para um nível mais baixo e novamente o líquido voltou a sacudir freneticamente como antes. Ele repetiu a operação outras vezes e obteve o mesmo resultado.- O que provoca esse fenômeno deve estar abaixo do nível do solo — cogitou ele num sussurro.- O que disse? — perguntou Júlio, terminando de consertar o vazamento e com a água na altura das canelas.- Nada... Só pensei alto.- Vamos ter que bombear toda essa água. Se demorássemos mais um pouco teríamos uma piscina para refrescar os ratos - brincou Júlio

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enquanto recolhia as ferramentas e se preparava para subir de volta.A empreitada só foi concluída quando uma bomba manual sugou toda a água do porão. Júlio desabafou.- Essas construções são antigas e a maresia corrói tudo o que aparece pela frente. Se não fizermos manutenção permanente teremos sérios problemas. Vamos, Daniel, depois do almoço teremos mais trabalho a fazer.Os alunos já começavam a chegar. Marc, nitidamente nervoso, acompanhava a afinação de cada instrumento e também passava algumas instruções antes da apresentação que estava para acontecer. O posicionamento de cada músico na orquestra era imprescindível para se atingir a melhor sonoridade.— Isso não é um ensaio, portanto não podemos errar — avisou Marc, se dirigindo a todos em voz alta, recomendando empenho.A porta se abriu e Helmut entrou a passos lentos percorrendo com olhos altivos os alunos preparados como soldados, cada um em sua posição, ostentando os seus respectivos instrumentos. Atrás dele vinha Ramón e o seu olhar cruzou momentaneamente com o de Marc. A aparente frieza de Helmut deixou o pequeno maestro ainda mais apreensivo. O diretor se sentou em uma cadeira reservada para ele bem em frente a jovem orquestra e entrelaçou os dedos sobre o colo sem proferir palavra. Com um gesto discreto Ramón sugeriu que Marc iniciasse a apresentação. Com movimentos de mãos

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firmes e precisos, o jovem maestro conduziu cada nota tocada com rara beleza, principalmente se levada em conta a inexperiência do grupo. Apenas dez minutos de audição foram suficientes para que Helmut tirasse as suas conclusões sobre o que acabara de ouvir. Quando se encerrou a breve sinfonia a sala experimentou um silêncio sufocante provocado pela expressão indiferente do sisudo diretor. Ele olhou para Marc e revelou um sorriso de aprovação.— Muito bom. Estão todos de parabéns! — disse ele, levantando-se.A manifestação de alegria se apoderou dos alunos que se cumprimentavam mutuamente. Marc suspirou aliviado.— Quero pedir um favor a você e sua orquestra, rapaz, prepare um excelente conserto por esses dias — disse Helmut. — Estaremos recebendo algumas autoridades internacionais daqui a três semanas e pretendo recepcioná-los em grande estilo.A sensação do dever cumprido se apossou de Marc contagiando todos os elementos da orquestra. Eles estavam ficando importantes.Alguns minutos depois, Marc tratou de se livrar dos alunos para aguardar sozinho a visita do italiano.Cinco, dez, quinze minutos e nada.Será que ele desistiu? - pensou ele, aflito.Marc notou a maçaneta da porta girando. Só podia ser Bruno àquela hora da tarde. Bruno seria repreendido pelo atraso. Náo, isso seria um

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erro que poderia afastar definitivamente o valioso informante. Para a decepção do garoto francês, quem surgiu por detrás da porta foi Daniel.- O que você está fazendo aqui? - perguntou Daniel, deixando transparecer a sua irritação. — Não havíamos combinado que eu faria isso sozinho?- Eu sei, mas achei que juntos conseguiríamos extrair mais informações - justificou-se Daniel, a porta fechando-se atrás dele.- Essa sua atitude pode pôr tudo a perder — disse Marc, pegando Daniel pelo braço e afastando-o da entrada da sala.- Ele não está atrasado? — perguntou Daniel, olhando para um grande relógio na parede, nem um pouco preocupado com a bronca que acabara de levar.- Acho que sim. Talvez tenha se arrependido e acabou desistindo.A maçaneta girou novamente e dessa vez quem apareceu foi Bruno.- Finalmente! - exclamou Marc, aliviado.- Só estão vocês dois aí? — disse o italiano, vasculhando a sala com um olhar meticuloso. - Pensei que viessem todos.-Viu só? - disse Daniel, com um sorriso convencido. - Ele esperava que todos nós estivéssemos reunidos.- Isso não é uma conferência — advertiu Marc. — Se Ramón aparecer não teremos como explicar a presença de Bruno.

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- Está bem, concordo, mas já que estou aqui vou ficar — disse Daniel, procurando encerrar a contenda.- Sente-se, Bruno, não vamos perder mais tempo — disse Marc, impaciente. — Você me disse ontem que tinha coisas interessantes para revelar. Pois bem, estamos aqui.Bruno inclinou-se para frente e então iniciou.- Vou começar pela biblioteca. Vocês vivem indo lá, mas acho que ainda não perceberam uma coisa.- Do que você está falando? O que há na biblioteca? — perguntou Daniel, depois voltando o olhar para Marc que deu de ombros sem entender.- Estou falando de um livro que está bem guardado em um armário na saleta envidraçada de Helmut.- O que tem esse livro? - quis saber Marc, girando sua batuta nervosamente entre os dedos.- Eu também não sei ao certo, mas desconfio que ele pode ser a chave de todos os segredos que procuramos desvendar.- Mas o que o leva a pensar que esse tal livro pode nos trazer algo importante? - perguntou Daniel atento a cada palavra de Bruno.- Eu explico. Desde o início do ano passado eu ia a biblioteca com bastante freqüência. Havia dias em que eu passava a tarde toda entre as estantes, maravilhado com tantos livros de meu interesse. A conseqüência disso eram as minhas notas. Excelentes. Comecei então a reparar através do vidro que o Sr. Helmut lia e relia o

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mesmo livro todos os dias, fechado em sua sala e, ao final, após ler algumas páginas, o trancava à chave em um armário atrás de sua mesa.— E o que tem isso demais? — adiantou-se Daniel, interferindo no relato do italiano. Marc o olhou com ar de censura pela sua interrupção.— Vocês já vão saber — disse Bruno, prosseguindo. - Um dia me apresentei como voluntário para trabalhar na biblioteca e fui logo aceito por estar tão familiarizado com o seu funcionamento. Naquela época não havia nenhuma suspeita sobre mim e eu era visto como qualquer aluno. Eu passava horas lá dentro recolocando nas estantes os livros deixados nas mesas pelos outros estudantes. Acabei descobrindo obras de valor inestimável que usei para aperfeiçoar ainda mais o meu desenvolvimento acadêmico. — Bruno fez uma pausa e tirou o seu boné preto para jogar o cabelo para trás e depois recolocou o boné. — Numa tarde, logo após o almoço quando a biblioteca estava praticamente deserta, aproveitei para percorrer as mesas recolhendo os livros e reorganizá-los. Notei que Helmut tinha ido para o interior da biblioteca, entre o labirinto de estantes, talvez para procurar algum livro. Sua sala estava aberta e o enigmático livro inesperadamente jogado sobre a mesa. Aquilo foi demais pra mim. Num ímpeto entrei na sala e peguei-o juntando com outros que já havia recolhido. Olhei em volta e, não vendo ninguém, não resisti e passei a folheá-lo rapidamente, a impressão que tive naqueles poucos segundos

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que o segurei nas mãos era de que se tratava de um diário, um relato de uma viagem. Todas as páginas que pude examinar naquele curto espaço de tempo eram manuscritas, e não impressas com letras de máquina como eu havia imaginado. Não tinha nada escrito em sua capa de couro preta, não havia título e nem o nome do seu autor.— E o diretor? — perguntou Daniel, quase sem respirar.— Aí é que vem a pior parte. Ele me viu examinando o livro e explodiu aos berros: "Solte esse livro! Quem autorizou você a entrar na minha sala e pegar algo sem minha permissão?". Nunca tinha visto aquele homem tão irritado. Tentei explicar que só estava guardando os livros do acervo que foram utilizados e pensei que aquele era um deles. Duvido que ele tenha acreditado em mim, tendo em vista a violência com que o arrancou da minha mão. A partir daquele momento começaram os meus problemas.— Mas pode ser que o motivo que ele queira esconder o conteúdo do tal livro seja outro que não esses segredos que investigamos - ponderou Marc, apontando outra possibilidade. - Você foi mesmo ousado entrando na sala dele sem ser convidado e talvez somente isso pode ter despertado a ira dele.— Eu também pensava assim a princípio, mas li uma frase na primeira página que me fez mudar de idéia — argumentou Bruno, franzindo a testa. - Me lembro exatamente de cada palavra: "O que

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aqui está escrito legitima a razão de nossa Ordem secular. Todos os seus membros deverão tomar conhecimento da grande jornada".— E o que essa frase quer dizer? - perguntou Daniel, agora profundamente intrigado.— Passei muitas noites solitárias tentando dar um sentido lógico a ela — disse Bruno, esfregando os olhos. — Imagino que alguém fez uma viagem muito longa e retornou para contar.— E essa viagem se tornou fundamental para a existência de uma sociedade secreta, pelo que entendi — disse Marc, estalando os dedos como se desvendasse uma charada. — Mas quem teria feito uma viagem assim?— Eu também acho que sei essa resposta — revelou Bruno, mostrando um astuto sorriso. — Vocês já notaram um retrato na biblioteca de um homem usando um tapa-olho?— Claro! - confirmou Daniel. - Quem não notaria o retrato na parede atrás do balcão onde atende a Sra. Maria, a bibliotecária?— Pois bem - prosseguiu Bruno. — O homem do retrato foi o diretor dessa escola antes do Sr. Helmut. Ele se chamava Alexei Martov, o russo que contribuiu muito para o desenvolvimento do ensino, ampliando as dependências da biblioteca e adquirindo milhares de obras que enriqueceram o seu acervo. A frase que eu li sobre "a grande jornada" é atribuída a ele. Tenho quase certeza que foi Alexei quem fez essa suposta viagem. Quem me contou foi um aluno que se formou no ano passado, ele chegou a conhecer Alexei e me disse que ele sumiu de

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repente e só veio a reaparecer quase um ano mais tarde. Esse aluno também me contou algo que pode ter alguma relevância: antes de sumir, o antigo diretor não usava tapa-olho, seus dois olhos eram saudáveis. Ele acabou falecendo em 1929, se tornando uma lenda por aqui.— Mas você não tem certeza absoluta que foi ele quem fez a suposta viagem e sequer foi o autor do livro - contestou Marc.— Isso mesmo, e só conheço um jeito de tirarmos essa dúvida: pegando o livro e conhecendo e seu conteúdo! — propôs Bruno, a idéia absurda.Daniel e Marc se entreolharam e voltaram-se para o italiano.— Não olhem pra mim, não sei como fazer isso e além do mais todos os meus passos são controlados — esquivou-se Bruno de qualquer responsabilidade.- Você conhece alguma maneira de entrar na floresta sem ser notado? - perguntou Daniel, dirigindo-se a Bruno.- Não. Aquela floresta é constantemente vigiada pelos monitores e o professor Roger está sempre circulando pelas redondezas, mas tudo o que acontece de esquisito nessa ilha aponta pra lá.- O que você sabe sobre o professor Roger? Por que ele é tão fechado? - perguntou Marc, cruzando os braços.- Nem sempre ele foi assim, sisudo. Aconteceu no ano passado - Bruno suspirou profundamente se preparando para contar a triste história: - Quem lecionava Biologia para nós era a professora Helen Drosópoulos, uma inglesa de origem grega

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muito competente; suas aulas eram sempre divertidas, tal era a sua alegria em ensinar, o que combinava muito bem com a sua beleza. Ela era lindíssima. O professor Roger e ela já estavam casados quando eu cheguei aqui. Eles moravam em uma simpática casa na vila que fica no fundo da escola e, fora do horário das aulas os dois sempre eram vistos juntos, abraçados. A felicidade dos dois aumentou ainda mais quando eles souberam que estavam esperando um bebê. Mas um dia algo começou a dar errado. Estávamos tendo aula com a professora Helen e de repente ela desmaiou na nossa frente, foi uma correria para acudi-la; ela foi rapidamente levada até a enfermaria e logo se recuperou. Deduziram que o repentino desmaio era relacionado à gravidez. No dia seguinte lá estava a nossa linda professora nos falando animadamente sobre coleópteros, xerófilas ou gimnospermas - a expressão de Bruno ficou sombria. - Com o passar do tempo os desmaios se repetiram tornando-se cada vez mais freqüentes; o professor Mitsuro foi chamado para substituir temporariamente a nossa querida professora Helen, que acabou se afastando definitivamente das aulas. Pensaram em levá-la até um hospital no continente, mas ela resistiu dizendo que era tudo um mal-estar passageiro. A vida do professor Roger se transformou num pesadelo; soubemos que ele passava o dia todo ao lado do leito da professora que já não reconhecia mais ninguém que entrasse no quarto. Disseram que ela devia estar com algum tipo de tumor no

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cérebro quando não mais resistiu e veio a falecer. As aulas foram suspensas e todos os alunos e funcionários compareceram ao enterro, tal era a admiração que ela despertava em todo mundo. O professor Roger chorava igual a uma criança, debruçado sobre o caixão, e depois daquele dia nunca mais eu o vi expressar um sorriso. Até hoje ele vai diariamente ao cemitério visitar o túmulo da professora e pelo que sei, ele não se conforma com a morte dela e do seu primeiro filho.- Onde fica o cemitério? - perguntou Daniel, totalmente entretido.- Dentro da floresta. Chega-se nele através de uma trilha após a curva da pista de corrida.- Então era lá que ele ia quando estava anoitecendo... - Compreendeu finalmente Marc. - O que você viu quando esteve naquele cemitério?-Túmulos, lápides... Nada que me chamasse à atenção. Não é um cemitério muito grande, acho que é porque a maioria dos que morrem na ilha é levada para ser enterrada perto da família. Ah... já ia me esquecendo, Alexei, o antigo diretor, também está enterrado lá.Naquele momento os três assistiram perplexos a maçaneta novamente se mexendo. Se fossem descobertos, eles se encontrariam numa enorme encrenca.Para surpresa e alívio, era Margaret que, curiosa, estava à procura do-irmão.- O que vocês estão fazendo aí? — perguntou ela.

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- Você é que tem que responder o que está fazendo aqui — disse Daniel, bastante irritado. — Ninguém convidou você pra vir aqui. Quer nos matar de susto?- Você também não foi convidado, Daniel — sussurrou Marc, entre os dentes.- Isso é outra coisa, sou bem mais discreto que ela — respondeu Daniel, devolvendo a provocação com uma resposta ardida.- É melhor fechar logo a porta, Meg — aconselhou Marc. — Ou vai acabar denunciando a nossa presença.- Quem é ele? — perguntou Margaret, se referindo ao italiano.- Meu nome é Bruno - apresentou-se estendendo a mão. - E você é a irmã de Daniel. Só faltam Chester e Rafael para completar o grupo.- Você nos conhece? - perguntou Margaret com cara de espanto.- Há um bom tempo. Depois eles te explicam o que estou fazendo por aqui. Bem, tenho que ir agora, outra hora conversaremos com mais calma.- Esperaremos você ganhar uma boa distância e depois sairemos - disse Marc, cauteloso.Mal Bruno saiu, Margaret começou a tagarelar.- Daniel Crowley, quero que você me diga direitinho o que está acontecendo.-Tá...Tá bom. Eu te explico amanhã.Alguns minutos se passaram.- Acho que já podemos ir embora — disse Marc, pegando suas coisas. — Rafael e Chester devem

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estar ansiosos para tomar conhecimento do que aconteceu.- Eu também quero saber o que vocês estão tramando — persistiu Margaret, para que contassem logo sobre o acorrido.- Vou te contar tudo só amanhã - disse Daniel, olhando para os lados, preocupado se alguém estivesse por perto. - Tenha um pouco de paciência ou vai acabar estragando tudo.O céu já estava trocando a tonalidade alaranjada de final de tarde pelo cinza- azulado do crepúsculo. As primeiras estrelas já apontavam timidamente no leste surgindo em brechas deixadas pelas nuvens.Mal Daniel e Marc chegaram aos seus aposentos e colocaram os companheiros de quarto a par das novidades. Chester ouvia atentamente as minúcias das revelações que Bruno havia feito, mesmo Rafael que não gostava de se envolver muito se mostrou concentrado enquanto seus colegas falavam.- Portanto, naquele livro podem estar as respostas que procuramos - conjeturou Chester, tentando imaginar o que estaria ali contido.- Amigos, precisamos conhecer o seu conteúdo — proclamou Daniel com voz firme. Rafael que estava bem à sua frente estremeceu, mas continuou mudo.Um profundo silêncio se abateu sobre o grupo enquanto eles pensavam no que fazer mediante às circunstâncias que se apresentavam.- Vocês são tão inteligentes e não têm nenhuma idéia? — Daniel incitou uma reação dos colegas.

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- E você, senhor esperto, por que não sugere algum plano? — disse Marc, desafiando a astúcia do companheiro inglês.- Eu tenho um — disse Daniel, arqueando uma sobrancelha. - Para chegar ao livro, precisamos de alguém que tenha habilidade em abrir fechaduras.Vocês conhecem alguém? - Todos voltaram os olhos para Rafael.- Vocês enlouqueceram?! - disse Rafael, rechaçando a insensata proposta de Daniel. - Eu não vou fazer isso! E suicídio!- Espere um pouco, me deixe esclarecer melhor - disse Daniel, empenhando-se em tranqüilizar o colega. - Você já vai entender o que eu quero dizer.- Eu não quero saber, não contem comigo - disse Rafael, irredutível.- Deixe ao menos ele expor a sua idéia - argumentou Chester, procurando equilibrar os ânimos. — Você não é obrigado a fazer nada se não quiser.- Tudo bem, eu vou ouvir, mas não esperem que eu aceite tomar parte nisso e acabar tendo o meu futuro prejudicado por causa de um ato insano — alertou Rafael, inflexível.- A minha proposta é muito simples - disse Daniel, inclinando-se para frente, querendo se fazer entender claramente. — Quando estivemos na secretaria em busca de um trabalho voluntário, lembro-me de ter lido sobre uma vaga na biblioteca e pelo visto aquela vaga ainda náo foi preenchida, pois não me recordo de nenhum aluno trabalhando naquele departamento.

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- E daí? — perguntou Rafael com semblante carrancudo.- Vocês já vão entender — disse Daniel sem se apressar. — Você só tem que estar lá e esperar uma oportunidade de pegar o livro e verificar do que se trata, Rafael. Conquiste a confiança da Sra. Maria e do diretor, e aí quando eles não estiverem por perto, você abre aquele armário e dá uma boa olhada no que está escrito e então é só colocá-lo de volta no lugar.— Não é tão fácil assim — intercedeu Chester. - A sala parece estar sempre trancada quando o professor não está lá. Além disso, ainda tem a bibliotecária que não se ausenta sem a presença de Helmut.— Em algum momento a biblioteca vai ficar vazia e Rafael só precisa estar atento a uma ocasião favorável. Não precisa ser hoje ou amanhã, mas eu tenho certeza que o momento vai acontecer e aí ele ataca - disse Daniel, com enorme entusiasmo nos olhos.— Eu acho a idéia razoável — ponderou Marc, avaliando o perigo em que o amigo pudesse se expor. — E também você estará mais perto dos livros e terá mais tempo para estudar.Rafael achou a observação de Marc interessante, mas mesmo assim ainda preferiu não se manifestar. Marc continuou serenamente.— Você pode tentar ficar até mais tarde, simulando a realização de alguma tarefa inadiável, mas lembre-se, pra isso precisa conquistar a confiança deles.

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— Eles não me deixariam ficar sozinho na biblioteca — retrucou Rafael, defendendo-se do massacre. — E eu acho que não teria coragem de abrir uma sala, um armário e ainda ler um livro, sabendo que poderia ser flagrado a qualquer momento.— Então traga-o escondido para o nosso quarto — sugeriu Daniel, abrindo os braços. — Aí poderemos todos ler com calma e você o devolve pela manhã.— Vocês ficaram loucos mesmo — sentenciou Rafael, balançando a cabeça de um lado para o outro. - Se o Sr. Helmut resolvesse, nesse meio tempo, pegar o tal livro, vocês acham que ele iria desconfiar de quem? E ainda que isso não viesse a acontecer, eu teria de devolvê-lo no outro dia antes do início do expediente. Eu acabaria sendo pego.— Nada disso precisa acontecer se você não quiser - disse Chester, com voz calma. - Mas pelo menos pense no assunto e depois você decide.Rafael permaneceu com os olhos parados, imerso em pensamentos e hesitações.— A propósito... - disse Daniel, mudando de assunto. - Aconteceu algo que me chamou a atenção quando consertávamos um cano furado no porão do prédio — ele contou sobre o surpreendente comportamento da água subterrânea, adicionando mais aquele dado ao mosaico de coisas estranhas que povoavam a Ilha da Coroa.Rafael levantou em silêncio e foi mais uma vez consultar o livro do professor Rajev, procurando

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no índice algo de seu interesse.- Esse fenômeno que você acabou de descrever, está mencionado com termos bastante técnicos em um capítulo que fala sobre "As influências centrípetas seletivas sobre os corpos líquidos". O professor explica que o foco emissor irradia suas ondas de influência para, no caso, a água, alterando o seu comportamento em uma linha bem delimitada, que se ultrapassada, se torna inoperante. - Rafael era assim, náo gostava de se envolver, mas adorava mostrar que tinha conhecimento sobre os fatos.- Em outras palavras - continuou Chester, tentando esclarecer. — A força que está agindo sobre a água irradia seu poder para os lados e o que estiver acima da sua posição não sofre seu efeito. Portanto, o objeto que procuramos deve estar em um nível um pouco abaixo da superfície da ilha. E conforme Daniel nos contou, tudo aponta para a floresta.A chuva que caíra o dia todo resolveu dar uma trégua. Marc aproximou-se da janela e viu uma cena bastante familiar: o professor Roger corria pela pista espirrando a água que havia se acumulado em poças espalhadas pelo terreno. Ele já havia se exercitado por um bom tempo e aos poucos foi reduzindo as passadas até finalmente parar, aí inclinou-se para frente apoiando as mãos nos joelhos, e enquanto retomava o fôlego, olhava o seu próprio reflexo na pista molhada. Após um breve momento de descanso, o professor deu meia volta e caminhou para a entrada na floresta como fazia

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habitualmente. Marc logo o perdeu de vista quando ele penetrou na mata.- Agora as coisas estão começando a fazer sentido - murmurou Marc, se referindo ao que Bruno havia lhe contado sobre Roger naquela tarde.A trilha estava ficando escura dificultando a visão; os passos de Roger produziam um som peculiar nas folhas molhadas que se acumulavam pelo chão. Conforme avançava, um pesar se abatia sobre ele, era impossível não lembrar daqueles dias fatídicos que antecederam a morte de sua adorada esposa. Finalmente ele atra-vessou um velho portão de ferro e estacou diante de uma lápide, o local onde havia sido sepultada a sua amada Helen. O único som que ele podia ouvir era o vento que perpassava as folhagens produzindo um uivo triste como se fosse seu próprio lamento. Roger permaneceu ali por alguns instantes diante da pedra que trazia a inscrição:MEU AMOR, O PASSADO NOS APROXIMOU, O PRESENTE NOS SEPARA, MAS O FUTURO NOS UNIRÁ ETERNAMENTE - HELEN DROSÓPOULOS - ☼ 1906 † 1932.Depois de contemplar em silêncio, ele puxou uma medalha feita de um metal dourado que ficava presa a uma corrente de ouro atada ao seu pescoço; a medalha possuía uma tonalidade de brilho amarelo metálico se intensificava no escuro se tornando quase fosforescente. Ele passou a usá-la a pedido de Helen no seu leito de morte e prometeu a ela que nunca passaria um

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dia sequer sem portar a bela joia. Anos atrás, no tempo em que ainda eram namorados, os dois estavam sentados na areia da praia sob uma linda noite estrelada, quando ela lhe contou que aquele pingente que trazia gravado o desenho de uma flor exótica, era uma herança de família tão antiga que ninguém sabia informar a sua origem e o seu significado. Roger o apertou na mão direita como se aquele ato trouxesse um pouco da sua querida Helen de volta, depois o colocou por sob a camisa e por fim deixou o cemitério. Já era noite.

Capítulo 9A Distração de Daniel

No dia seguinte, as nuvens espaçadas permitiam que o sol despejasse alegremente seus raios, dando um belo colorido àquela manhã.Rafael debruçou-se sobre o balcão que o separava da solícita Sra. Laura, a secretária.- Quero me inscrever para a vaga na biblioteca — disse, com a voz saindo da garganta com dificuldade. — A vaga ainda não foi preenchida? - perguntou, na última esperança de escapar daquela função como se desejasse ardentemente fugir da guilhotina.- Ainda não - informou Laura, com um sorriso suave. - Se for realmente do seu interesse, você precisa estar ciente que esse trabalho irá tomar boa parte do seu tempo livre e que de maneira

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alguma os seus estudos deverão ficar em segundo plano... Está bem assim?- Sim, estou sabendo das regras, não haverá problemas.- Não quer aproveitar o restante das férias para descansar mais um pouco? - perguntou Laura, estendendo o formulário de adesão.- Prefiro começar logo. Estou muito ocioso e é melhor que seja agora, assim tenho algum tempo para me adaptar - respondeu, dispensando a oferta enquanto começava a preencher o documento sem olhar no rosto gentil da secretária.Em poucos minutos todos os quesitos estavam devidamente preenchidos.Após uma rápida verificação dos dados do aluno, Laura orientou:- Vá até a biblioteca e apresente-se a Sra. Maria. Ela vai recebê-lo com muita satisfação e o encaminhará ao seu novo trabalho.O fato de ter aceitado aquela incumbência causava uma sensação desconfortável a Rafael. Nem ele sabia direito porque havia concordado em tomar tal atitude.Naquela mesma manhã ele já estava trabalhando, colocando em ordem uma série de fichas e arrumando os livros nas estantes como havia imaginado. O austero Helmut não havia aparecido até aquele momento. Restava a Rafael montar uma estratégia para conseguir o livro ou simplesmente esperar que alguma chance caísse do céu; a opção escolhida era simples: nada a fazer. Rafael simplesmente diria aos seus amigos

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de alojamento que a tal chance não apareceu e pronto. Ele é que não iria se atirar numa tarefa maluca e agüentar sozinho as suas terríveis conseqüências.Helmut cruzou o grande salão da biblioteca e foi contido pela atenciosa Maria.- Quero apresentar-lhe o meu novo ajudante - disse ela sorridente, colocando a mão sobre o ombro do menino.- Como é mesmo o seu nome, rapaz? — perguntou Helmut, com parte dos olhos ocultados pelas grossas sobrancelhas.- Rafael, senhor — respondeu, acanhado.- Então... seja bem-vindo, Rafael. Nos veremos muitas vezes por aqui — disse, depois retomando o caminho até a sua sala e se fechando lá dentro.- Não ligue — disse Maria, olhando Rafael por cima dos óculos. - Ele aparenta ser indiferente, mas é um bom homem.- Ele deve gostar muito de estar aqui na biblioteca - presumiu Rafael. - Ao que me consta ele tem um gabinete só pra ele e mesmo assim parece preferir usar aquela salinha em que mal cabem os móveis.- O velho Helmut é um apaixonado pelos livros e gosta de ficar perto deles. Volta e meia se perde entre as estantes e quando retorna traz pelo menos um exemplar para uma leitura rápida - disse ela, deixando transparecer um profundo respeito pelo respeitado diretor. - Mas tem mais uma coisa, através daquelas vidraças ele controla quais os estudantes que vem aqui com maior freqüência, é o seu jeito de distinguir os

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alunos que melhor se preparam e geralmente são os que apresentam as melhores notas. Garanto que ele gostou de você ter vindo trabalhar conosco, eu vi isso em seus olhos.A última declaração de Maria trouxe algum alento ao garoto.Rafael voltou-se às suas tarefas e passou a observar discretamente cada movimento de Helmut. O enigmático diretor, encerrado em sua pequena sala, assinava papéis, lia documentos, revirava gavetas, e durante quase uma hora não fez nada que pudesse chamar a atenção. Quando por fim Rafael estava mais entretido com seus afazeres do que preocupado em saber o que se passava no interior daquela sala, ele ouviu o arrastar de uma cadeira e pôde ver Helmut se levantando, abrindo com uma pequena chave o armário que se encontrava atrás de si e pegar o afamado livro, motivo da cobiça de seus curiosos colegas, e por que não dizer dele mesmo. Helmut deitou o livro cuidadosamente sobre a mesa e pôs-se a examiná-lo, se fixando momentaneamente em uma página e depois, inclinando-se para trás, ele apoiou a cabeça no encosto alto, mantendo-se assim pensativo como se a sua mente viajasse secretamente por pensamentos que Rafael realmente desejava conhecer. Helmut repetiu esse gesto algumas vezes durante o tempo em que passou entretido com o livro. Rafael daria alguns pontos de suas excelentes notas para poder penetrar nos pensamentos obscuros daquele homem. A

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curiosidade começava a tomar conta do garoto e isso não era nada bom.Helmut retomou o movimento de se levantar, trancou novamente o livro no armário e saiu de sua pequena sala, passando por Rafael e inclinando a cabeça num leve cumprimento que foi imediatamente respondido. Rafael apoiou o queixo na mão direita e mirou os olhos no armário até ser interrompido pela dedicada Maria.- Está na hora do almoço, você não vem?- Ah... sim... me distraí e não vi o tempo passar - disse ele tirado de concentração e acompanhando a bibliotecária.O refeitório não estava tão cheio e localizar os colegas não foi algo difícil para Rafael. Margaret se encostou em um canto permitindo que ele se sentasse entre ela e Chester. A essa altura a menina já estava sabendo dos fatos e mal deixou Rafael se acomodar para começar o interrogatório.- Como foi na biblioteca?- Gostei, o trabalho é interessante.- Que bom que gostou, mas não é isso que queremos saber. Descobriu alguma coisa? - insistiu ela, parecendo estar mais curiosa que os meninos. Marc adiantou-se.- Dê um tempo para o rapaz. Não vê que ele ainda nem começou a almoçar?- Só estava querendo puxar conversa - disse ela, sem graça e ao mesmo tempo indignada. — E não venham me dizer que vocês também não estão querendo ouvir alguma novidade.

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- Deixe ela, Daniel. Eu não me importo. - Rafael enxugou a boca com um guardanapo e começou a falar: — Aconteceu o que era previsto, Helmut entrou em sua sala, pegou o livro e o leu por um tempo, depois guardou-o de volta, exatamente como Bruno havia descrito, e é só isso.- Você teria como abrir a porta da saleta e o armário? - perguntou Marc, sendo direto.Rafael deixou de mastigar e engoliu o que estava em sua boca com um certo esforço. Ele ficou por alguns instantes com o olhar fixo em Marc, e depois respondeu:- É uma tarefa muito fácil abrir aquelas fechaduras, mas se você quer saber se eu pretendo abri-las, a resposta é não!A brusca resposta incisiva causou um certo desconforto na turma, principalmente em Daniel e Marc, os mais interessados. Rafael inclinou-se sobre sua bandeja e continuou comendo como se quisesse ser ignorado.Após a refeição, Daniel foi atender ao chamado de Júlio que, de tanto serviço não conseguia dar conta de tudo. Os outros funcionários da manutenção igualmente se encontravam bastante atarefados, pois era naquela época das curtas férias que eles aproveitavam para realizarem o trabalho mais pesado, evitando ao máximo atrapalharem o período de aula, e qualquer ajuda adicional era muito bem-vinda.- Chegou bem na hora, Daniel — disse Júlio, separando algumas ferramentas em uma maleta. — Tenho um trabalho demorado e cansativo pra

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você, mas o seu auxílio será de grande valia para todos nós.- Conte comigo, Júlio!- Muito bom, garoto, é assim que se fala! Venha comigo e eu já explico o que tem de ser feito.Os dois seguiram até um galpão que servia de depósito, armado com prateleiras de tábuas grossas sustentadas por estrados e colunas de ferro que chegavam até o teto alto. A luz que penetrava pelas pequenas janelas localizadas no topo, não era suficiente para iluminar todo o depósito, então Júlio foi até o canto ao lado da porta e acionou uma chave de contato que encheu de luz todo o ambiente.- Todo aquele lado está com goteiras — disse Júlio, apontando. — Precisamos transferir temporariamente todo o material estocado ali para esse lado do depósito para que possamos executar os reparos necessários - disse Júlio, tirando o boné e enxugando o suor que lhe escorria da testa franzida. - Mas para isso ser possível, as prateleiras que receberão a carga extra deverão ser reforçadas com essas hastes de metal fixadas com aqueles parafusos que estão na caixa bem ali no chão. Os pontos nas prateleiras onde você deve fixar as barras de sustentação já foram marcados com giz — explicou, mostrando todo o material. Júlio fixou uma haste para mostrar como deveria ser. — Acha que pode fazer isso?- Até amanhã pela manhã tudo deverá estar pronto — calculou Daniel, avaliando a dimensão da tarefa.

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- Muito bem — disse Júlio, batendo com seu boné no ombro de Daniel. — Qualquer dúvida, me chame.Da porta Júlio ainda alertou.- Nenhum ponto deverá ficar vulnerável ou tudo pode desabar.Depois que Júlio saiu, Daniel deu uma boa olhada à sua volta. Seria uma grande empreitada, mas o garoto inglês era determinado e tinha condições de concluir o serviço no tempo estipulado. Ele não perdeu mais tempo e entrou logo em ação.Marc saiu do banho e transitou pelo corredor do segundo pavimento com a toalha jogada sobre os ombros. Ele entrou no quarto e deparou-se com Rafael sentado à mesa em frente a uma pilha de livros maior que a de costume.- Pelo visto a biblioteca lhe fez bem — brincou o francês, puxando conversa.- Tem razão - concordou, colocando as mãos atrás da nuca e espreguiçando-se. — Descobri uns livros interessantes perdidos naquelas estantes.Marc aproveitou o momento em que estavam sozinhos para tocar de novo no mesmo assunto.- Não pretendia pressioná-lo hoje no refeitório. Só queria saber até onde poderíamos ir nessa história.- Tudo bem, não gosto de ser coagido, principalmente se me sinto ameaçado. Vamos deixar como está e ver o que acontece. Vou tomar um banho e já volto.Quando deixou o alojamento, Rafael cruzou com Chester e Daniel que haviam acabado de subir. O

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dia para eles tinha sido movimentado como sempre.- Soube de alguma coisa? - perguntou Daniel a Marc, se referindo a Rafael.- Não vamos forçá-lo por enquanto, certamente ele vai descobrir algo - afirmou Marc, com surpreendente segurança.- Como você pode ter tanta certeza? - perguntou Chester, se jogando na cama, seus pés se livraram dos sapatos.- Ele não me disse nada, mas de um jeito ou de outro ele vai descobrir.- Espero que você esteja certo - disse Daniel, esperançoso. - Não quero voltar para a Inglaterra carregando essa dúvida pelo resto da vida.O dia amanheceu sem uma nuvem no céu prometendo fazer um calor de rachar, não muito comum naquela época do ano, pois a brisa estava fraca e a temperatura já era notadamente mais alta que a da manhã anterior.Daniel deixou o quarto antes dos outros colegas, tinha que terminar o serviço de reforço das prateleiras até o almoço. O depósito estava quente e abafado fazendo Daniel beber litros de água para repor o líquido perdido devido à transpiração excessiva.Júlio apareceu no meio da manhã para fazer uma vistoria.- Como está indo? - perguntou, forçando as hastes com as mãos para testar-lhes a resistência.- Até agora tudo bem. Estarei apertando o último parafuso até o final da manhã - comprometeu-se,

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sentando um pouco em um caixote para descansar.- Parabéns! - elogiou Júlio. - Está ficando um serviço de primeira. Hoje à tarde estarão passando todo o suprimento para o lado que recebeu o reforço. O conserto do telhado terá de ser rápido, pois com o calor que está fazendo hoje, provavelmente teremos outra chuva daquelas. Bom, também tenho que voltar ao trabalho, se você achar que não vai conseguir terminar a tempo, me avise - disse Júlio, indo em direção à saída.- Não se preocupe, está tudo sob controle — disse Daniel, levantando-se após o breve intervalo e batendo a poeira que havia ficado em sua calça.- Sabe de uma coisa? — disse Júlio, cobrindo-se de novo com o boné surrado. - Eu preferiria estar no seu lugar. Desde cedo estou limpando uma fossa enorme que exala um cheiro horrível, e o pior é que os dejetos não param de se mexer - confessou, fazendo uma cara feia e saiu.Daniel imediatamente relacionou os dejetos que só poderiam estar se movendo pela ação da água no subsolo. Júlio deve estar passando por maus bocados — pensou.

O jardim da escola ficava localizado bem no centro do prédio; era um jardim bem cuidado, fornecendo claridade, harmonia e um colorido alegre aos aposentos que tinham suas janelas voltadas para o interior da gigantesca edificação. O mesmo acontecia aos corredores que ladeavam o jardim, recebendo lateralmente os

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raios do sol e tornando-os um dos recantos mais agradáveis para se transitar. Marc percorria um desses corredores, dirigindo-se a sala de Ramón. Ele iria acertar alguns detalhes da próxima apresentação que a orquestra estava preparando para os visitantes que chegariam nos próximos dias. Uma mão agarrou o seu braço e inter-rompeu bruscamente seus passos. Era Bruno que, atrás de uma coluna, se escondia para não chamar a atenção.- Quero mostrar uma coisa para vocês, me encontrem daqui a vinte minutos na sala de música — Bruno olhou para os lados, cuidando se ninguém os tinha visto e desapareceu da mesma maneira que surgiu.Marc hesitou por um instante e rapidamente tomou a decisão de avisar Daniel. O que Bruno tinha para falar deveria ser muito importante para ele ter agido daquela forma. Então, aproveitando os vinte minutos que lhe restavam, tempo mais que suficiente para ir ao encontro do italiano, ele mudou a sua trajetória e foi à procura do companheiro inglês.- Temos que ir à sala de música agora - disse Marc, verificando se não havia mais ninguém no depósito. - Bruno estará lá em poucos minutos e tem algo importante para nos mostrar.Daniel não pensou duas vezes, e logo que atirou as ferramentas de volta na maleta, os dois seguiram apressadamente ao encontro de Bruno.A sala estava trancada e Marc era um dos poucos que possuíam uma cópia da chave. Quando o salão foi aberto, eles tiveram que aguardar mais

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alguns momentos até que o garoto italiano chegasse. Bruno entrou em seguida, a porta batendo delicadamente atrás dele.- Sabia que você traria o seu amigo inglês — disse ele, desdobrando um pequeno pedaço de papel e passando-o para Marc. Daniel se aproximou, tam-bém interessado em saber do que se tratava. Bruno explicou: — Eu copiei esse trecho, que guardei de memória, de uma espécie de relatório que estava sobre a mesa do professor Rajev. Estive na sala dele ontem à tarde para pedir ajuda sobre uma questão de Física. Ele, sempre muito preocupado em ajudar, prontamente me atendeu. - Bruno fez uma pequena pausa e logo continuou: — Enquanto o professor me orientava, um documento parcialmente encoberto por uma pilha de pastas e outros papéis que se acumulavam em sua mesa, despertou o meu interesse. Quando o professor se deu conta do que eu estava fazendo, pegou tudo que havia sobre a mesa e colocou fora do meu alcance. Só consegui ler uma parte e logo que deixei a sala, tratei de transcrever o que eu havia memorizado para esse papel antes que me esquecesse de alguma palavra.No pequeno papel amarrotado estava escrito:

O material, aparentemente indestrutível, só se torna instável quando sofre a ação humana ou de um animal de grande porte. Nada que conheço se parece com aquilo. Dediquei vários anos da minha vida a examiná-lo e não consegui avançar muito, apesar do tempo em que eu o venho

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estudando. É impossível não ficar fascinado por ele. Talvez nunca saibamos qual a sua verdadeira composição e origem.

- O que acham? - perguntou Bruno, encarando os rapazes.- Não faço idéia - disse Marc, coçando a cabeça, tentando dar um sentido ao que estava escrito. - Mas é evidente que o professor Rajev está se referindo a algo espetacular.Daniel estava particularmente excitado.- Acredito que seja isso que procuramos. Chester e Rafael precisam saber dessa novidade.- Escondam esse com vocês — disse Bruno, fazendo referência ao pedaço de papel com a enigmática mensagem. — Tenho uma cópia muito bem escondida, espero que vocês procedam da mesma forma e não fiquem mostrando essa coisa pra qualquer um. Agora eu tenho que ir, outra hora nos falamos.- Bruno! - exclamou Marc. O italiano se voltou para ele. — Obrigado pela informação. - Bruno fez um leve aceno de cabeça, ajeitou o boné preto e fechou a porta.- Vamos logo! Essa os rapazes têm de saber - convocou Daniel, dirigindo-se à porta. - Talvez esse texto encoraje Rafael a fazer alguma coisa.Marc tratou de esconder o papel no bolso da calça antes de trancar a sala.O sol do meio-dia castigava quem ousasse desafiá-lo caminhando pelo pátio. O ar parado aumentava a sensação de calor, fazendo com que todos ficassem sonolentos e indispostos.

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Rafael sentou-se numa confortável cadeira de vime em frente a uma ampla janela para aproveitar a leve brisa que soprava bem na sua direção, proporcionando-lhe uma sensação bastante agradável. Seu deleite durou pouco, pois logo apareceu Chester para acabar com o seu momento de lazer.- Daniel e Marc estão te procurando. Eles disseram que tem uma novidade que vai nos interessar muito e a sua presença é importante.- Eles falaram do que se trata?- Não, mas vindo deles você pode imaginar o que é.Rafael fez um esforço extra para se levantar, lamentando-se em ter que abandonar o seu pequeno paraíso.O quarto estava demasiadamente quente, embora a janela permanecesse escancarada. As árvores não se mexiam e a temperatura havia se elevado ainda mais. Os monitores que resguardavam os limites da floresta se enfiavam entre as folhagens, fugindo do sol tórrido.Rafael entrou escoltado por Chester. Daniel e Marc já os aguardavam. A reunião então teve seu início.- Sentem-se - disse Daniel. - Não vamos demorar muito. Aqui dentro está um forno e se não sairmos logo vamos derreter.- Vamos direto ao que interessa - adiantou-se Marc, expondo o papel que havia recebido de Bruno. - Leiam isso e depois falem o que vocês entenderam.

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Rafael leu duas vezes o texto e passou-o em seguida às mãos de Chester.- Como vocês conseguiram isso? — perguntou Rafael franzindo a testa.- Bruno obteve da mesa do professor Rajev — contou Daniel após tomar as últimas gotas de água da sua caneca. — Havia mais coisas escritas, mas ele não conseguiu ler.- Mas só isso já basta para concluirmos que todas as nossas suspeitas são bem fundamentadas — completou Chester sem desviar os olhos do papel. — O que Bruno acha que significa essa mensagem?- Ele também não sabe - disse Marc enquanto se abanava com um caderno. - Mas também não tivemos muito tempo para conversar, ele foi logo embora. Bruno é assim: vive vagando pelas sombras da escola.Enquanto os outros confabulavam, Rafael se mantinha compenetrado, pesando cada palavra no texto. Então se manifestou:— Ouçam isso: "se torna instável", "composição e origem". Ele parece estar se referindo a um objeto, e não a um ser vivo, que se altera quando é tocado ou quando alguém se aproxima dele.- E por que guardariam segredo sobre a existência de um objeto assim? - perguntou Marc, envolvendo a todos.— Porque ele é... - Chester passou novamente os olhos pela folha de papel — "instável". Isso deve significar que essa coisa se transforma em algo incomum ou que age de maneira incomum.

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— Pode ser qualquer coisa além da nossa compreensão — foi mais longe Daniel, pegando o pequeno papel com os dizeres misteriosos. - Escutem essa frase: "Nada que conheço se parece com aquilo". Nem o professor Rajev, com todo o seu conhecimento e experiência, conseguiu descobrir muita coisa, conforme ele mesmo escreveu.Rafael começou a roer as unhas. Era o sinal de que algo o incomodava, mas ele não quis dizer o que era. Para o rapaz era mais importante se manter a salvo das ameaças.Vou à biblioteca. Tenho trabalho a fazer — disse levantando-se e abrindo e se esgueirando pela porta. - Alguém vem junto?— Eu vou com você — disse Chester. — Vou ver os cavalos. Devem estar sofrendo com esse calor.E eu vou procurar Bruno - anunciou Marc. — Quem sabe ele consegue o texto na íntegra. Isso nos ajudaria muito. Você vem comigo, Daniel?Daniel não vacilou e num instante os dois já percorriam os salões, corredores e becos do enorme prédio, no encalço do italiano.Nestor havia recolhido os cavalos para a cocheira a fim de protegê-los do sol escaldante. Eles já estavam bem alimentados e com água a vontade para saciar-lhes a sede.- O que você vai fazer agora, Nestor? - perguntou Chester procurando algo com que se ocupar.Nada, meu rapaz. Vou ficar aqui mesmo, sem fazer nenhum esforço, pois daqui a algum tempo alguém vem me trazer algum trabalho e eu quero aproveitar para dar um pouco de descanso

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a mim e aos meus bichinhos. Por que você não faz o mesmo?- Não consigo ficar parado — respondeu aflito. O menino olhou para o chão. — Nestor, se eu quisesse ficar aqui, morando para sempre, será que me aceitariam?O velho olhou para Chester e disse amistosamente.- Para sempre é um longo tempo, meu jovem. E sua família?Chester pensou nos tios queridos, no rancho, no cavalo Coronel... A lembrança deles lhe trouxe uma sensação agradável. Pareciam tão distantes como se fizessem parte de um sonho. Por outro lado, o rapaz cavaleiro tinha um espírito arredio. Sonhava em viver aventuras iguais aos dos livros que costumava ler à sombra de um frondoso carvalho de galhos longos e sombras generosas. Estava crescendo nele a dúvida se gostaria de voltar para a monotonia bucólica do rancho de seus parentes. O desconhecido o atraía de um jeito como Chester nunca experimentara.- Já procuramos por tudo, ele sumiu como fumaça — disse Marc, desanimado.- Bruno deve ter ido para o seu quarto — supôs Daniel. - Ele havia dito que se localizava no final do corredor do terceiro pavimento.Vamos tentar lá?- Eu não me atrevo - descartou Marc. - Se nos virem batendo na porta dele, nós também vamos ficar estigmatizados.- Ainda não vimos na praia, talvez ele esteja por lá — sugeriu Daniel, inconformado.

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- Debaixo desse sol? Eu é que não vou!- O que houve com você, está desistindo, francês?A provocação de Daniel foi demais para Marc, fazendo-o aceitar a contragosto.

Rafael conferia a última relação dos novos livros recebidos e preparava o cadastramento para que pudessem ser colocados ordenadamente nas prateleiras. Maria havia dado uma saída para ir ao dentista, tratar um molar que a estava incomodando há dias.A biblioteca continuava com a freqüência de alunos muita baixa, que optaram por aproveitar as férias com outras atividades mais voltadas para o lazer. Apenas um aluno dividia o amplo espaço com Rafael e o Diretor, este enclausurado em sua sala, debruçado sobre o obscuro livro de capa negra.O aluno foi até a mesa em que Rafael se encontrava trabalhando e solicitou o empréstimo de um livro de filosofia. O rapaz foi prontamente atendido, e após assinar uma ficha-controle, deixou a biblioteca por conta de Rafael, e o salão ficou vazio. O silêncio era quase absoluto. Rafael cumpria a sua função com esmero, colando as etiquetas de identificação em cada livro e a cada lote terminado, ele se levantava para levar uma nova remessa acondicionando os livros em seus lugares específicos, numa ordem perfeita.A porta da sala se abriu. Helmut deslocou-se com passos lentos e chegou até o menino, que parou imediatamente o que estava fazendo para voltar a sua atenção ao diretor.

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— Como está se saindo, meu jovem?— Estou indo bem. O serviço aqui é muito fácil. Mais fácil que as provas mensais — brincou ele, fazendo-se simpático.O diretor deu um discreto sorriso e continuou querendo conversa.— Soube que as suas notas são muito boas. Fico feliz por você.— Eu preciso que minhas notas sejam as melhores, senhor. Investi minha vida e meu futuro nessa escola. Eu e a minha família um dia acreditamos que eu chegaria até aqui para estudar e me formar, e se depender de mim, concluirei esse curso atingindo os melhores conceitos.— Gostei de ouvir isso - Helmut puxou uma cadeira e sentou-se. - Aqui não investimos apenas em conhecimento, mas para uns poucos, em algo muito mais nobre. Infinitamente além do que se pode imaginar.— Acho que não entendi, senhor? — perguntou, trêmulo de curiosidade.Helmut ajeitou os óculos e prosseguiu.— Olhe essa biblioteca! — disse ele, fazendo um amplo movimento com o braço esquerdo. — Milhares de livros em suas prateleiras e muitos outros chegando a cada ano. Mas todo esse conhecimento é nada se comparado ao que desconhecemos. Outros mundos existem, quem sabe outros universos, com leis naturais próprias. Tudo está aí para ser desvendado. — Ele reduziu o tom de voz e voltou-se para Rafael que àquela altura o fitava, extasiado. — Só depende de

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pessoas como eu ou você, ávidas por conhecer o que nunca foi visto antes, pessoas talhadas e que decidem empenhar-se nessa busca.

Marc e Daniel chegaram até a praia. A areia ardia, subindo a temperatura, fazendo a pele queimar.— Ele também não está na praia. Vamos embora daqui - disse Marc, querendo se livrar do forte calor.O problema não era o sol forte, mas a falta de vento que fazia da ilha um lugar insuportável. A sorte dos seus moradores era que a ausência da brisa refrescante era um acontecimento raro.De repente veio à mente de Daniel uma desagradável lembrança. Ele gritou.— O depósito!— Que depósito? Do que você está falando, Daniel?— As prateleiras do depósito — explicou, nervoso. — Eu tinha que reforçá-las até o meio-dia. Que horas são?— Eu estou sem relógio, mas deve ser umas quatro e meia — calculou Marc. — O que está acontecendo?— Eu não terminei um serviço que deveria ser feito, e se não for concluído, pode acontecer uma tragédia. - O semblante de Daniel expressava nítida preocupação. — Tenho que correr!Restou a Marc seguir correndo atrás, pois ainda não tinha entendido com detalhes o que Daniel havia feito, ou deixado de fazer.

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A grande distância e o calor exagerado, somado ao nervosismo de Daniel, faziam suas pernas bambearem. Daniel estava ficando cada vez mais aflito, parecia que não iria chegar nunca ao depósito. Ele necessitava avisar urgente aos trabalhadores para não sobrecarregarem as prateleiras. Daniel então se lembrou de outra coisa que o colocou em desespero. As oito hastes que faltavam ser fixadas foram guardadas por ele debaixo de uma lona sob as colunas de sustentação. Se Júlio entrou no depósito e não achou as hastes, pode ter deduzido que o seu ajudante havia terminado todo o serviço e autorizado a transferência da carga.O depósito já podia ser visto por Daniel. Só faltavam uns cem metros para ele chegar. Um trabalhador saiu do armazém sem demonstrar nenhuma anormalidade. Faltava mais um pouco para Daniel, quase sem fôlego, poder avisar, impedindo que continuassem a transferir os suprimentos. Mas então, aconteceu.Um enorme estrondo, vindo de dentro do depósito, deixou Daniel paralisado e boquiaberto. Marc, que parou ao lado do amigo, logo entendeu que era aquilo a que Daniel se referia. Uma tragédia! Pessoas vinham correndo de todos os lados sem ainda conhecerem a razão de tão violento barulho. Só Daniel sabia o real motivo que ocasionou o desabamento. Ele ainda pôde ver quando Júlio chegou apressado. Os pontos vulneráveis das colunas, quando receberam o sobrepeso, se contorceram, iniciando o desabamento e provocando uma reação em

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cadeia, pois todas as prateleiras e colunas estavam unidas por parafusos e rebites.Júlio correu para fora, gritando:— Tragam as maças! Chamem o médico!A cabeça de Daniel parecia que iria explodir. Ele não teve coragem de chegar perto. Ele havia sido o causador de toda aquela confusão. Júlio havia confiado nele e tinha avisado do perigo de desabamento. Talvez até houvesse pessoas mortas, debaixo dos escombros. Marc pousou a mão em seu ombro e estava tão perdido quanto o seu colega. Daniel não se conteve. Precisava ver de perto a catástrofe que tinha provocado. Lentamente, ele foi caminhando em direção a grande porta do depósito. Várias pessoas se aglomeravam na entrada.— Abram espaço! Deixem-nos trabalhar! Há vidas em jogo.Cada exclamação que ouvia entrava como um punhal, rasgando o estômago de Daniel.Duas carroças: uma conduzida por Chester e outra por Nestor, encostaram próximas ao local, reforçando o socorro.Na biblioteca, Helmut, que ainda não tomara conhecimento do que estava acontecendo, continuava o seu diálogo com Rafael, recheado de conselhos e frases enigmáticas, deixando o rapaz mais intrigado ainda.A porta da biblioteca foi aberta com violência. Um dos monitores, ofegante, veio trazer a péssima notícia.— Senhor, aconteceu um acidente no depósito. Temos feridos e parece que um deles é grave. É

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um aluno, senhor.Helmut pulou da cadeira. Parecia descontrolado. Um aluno em estado grave. Aquilo nunca havia acontecido em toda a história da escola. Segurança para com o corpo discente era motivo de orgulho da instituição.Helmut saiu em disparada com o monitor logo atrás.Agora Rafael estava sozinho na biblioteca. A porta da sala de Helmut aberta e o livro... bem em cima da mesa. Rafael hesitou. Provavelmente Helmut iria demorar um bom tempo para regressar. Mas e se ele retornasse antes do previsto? Tudo estaria perdido. E a Sra. Maria? E se ela entrasse e o flagrasse com o livro? Mas os tratamentos dentários demoram. Talvez ele nunca mais teria outra chance igual. O livro estava ali, a poucos metros dele. Rafael imaginou-se retornando para sua cidade, para a sua casa, derrotado por um ato inconseqüente. Mas essa seria a sua grande oportunidade de conhecer o conteúdo do livro. Nem Bruno teve uma chance como a que estava sorrindo para ele. O que fazer? Então Rafael respirou fundo e decidiu.— Seja o que Deus quiser — murmurou.Ele invadiu a sala e pegou o livro, suas mãos tremiam, o livro era mais pesado do que ele havia imaginado. Rafael abriu na primeira página e confirmou o que Bruno havia contado sobre quem o escreveu. As letras graúdas impressas em preto na primeira página denunciavam o seu autor: Alexei Martov, o homem do retrato. As

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páginas seguintes corriam pelos seus dedos velozmente e assim, ele pôde confirmar outra observação de Bruno: o livro foi todo escrito a mão. Na verdade era um diário como se supunha. Rafael parou por um instante; pensou ter ouvido algum ruído e, receoso, olhou para a porta, temendo que ela se abrisse. Foi só impressão. Ele voltou-se para o diário, abrindo-o em uma página aleatoriamente. As frases diziam coisas sem nexo. Então, ele buscou uma das primeiras páginas, deslizando o olhar pelas linhas de caligrafia bem elaborada, quando os seus olhos cravaram em um parágrafo:

A sensação foi estranha. Senti todo o meu corpo desintegrar. Só a minha mente permaneceu intacta no meio do caos. Depois, por alguns instantes, me senti confuso após a travessia. Nesse momento, portanto, inicio o relato da experiência mais fantástica da minha vida.

Rafael não teve tempo de continuar a leitura, pois sua audição percebeu passos apressados, no assoalho de madeira, se aproximando da biblioteca. Ele largou o diário e saiu correndo da sala do diretor, com tempo suficiente apenas para chegar à sua mesa e abraçar um punhado de livros, como se estivesse levando-os para organizá-los nas estantes. A porta se abriu bruscamente. Era ele mesmo, Helmut que, ainda segurando a maçaneta, olhou para a sua sala e depois procurou Rafael pelo grande salão de

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leitura. Helmut suspirou profundamente numa visível sensação de alívio.— O que aconteceu lá fora? - Rafael procurou disfarçar.Se Helmut tivesse prestado mais atenção, teria reparado que Rafael se mostrava tão tenso quanto ele.— Uma coisa muito ruim - disse, sua voz estava embargada. - Tenho que sair de novo - avisou enquanto guardava o diário no armário e trancava a sala. — Por favor, fique aqui até que Maria retorne. Ela não deve demorar muito.— Sim, senhor — assentiu Rafael, demonstrando sua intenção de colaborar.Foi fácil para ele notar que Helmut estava transtornado e teria que resolver um grande problema. Só não fazia idéia que um colega de quarto estava envolvido até o pescoço.Novamente o menino se encontrava sozinho na sala, mas dessa vez não queria mais correr o perigo de ser flagrado. Bem melhor assim. Já era o bastante para aquele dia e do jeito que Helmut estava, se o pegasse, seria capaz de torcer o seu pescoço e atirá-lo no mar.Rafael se deu conta de que não poderia esquecer o que lera minutos antes.O enigmático parágrafo era, sem dúvida, o prenúncio de uma incrível aventura. Ele pegou lápis e papel e tratou de anotar tudo o que sua memória havia registrado. Sem perder tempo, pôs-se a estudar cada palavra, cada frase, buscando um significado satisfatório. Mas ainda era insuficiente para ele

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compreender naquelas frases curtas sobre exatamente a que o Diário se referia.Lá fora, no local do acidente, a situação ainda era muito tumultuada. O resultado da tragédia foi cinco funcionários e um aluno feridos. O aluno, que trabalhava voluntariamente no controle dos estoques foi o mais atingido, tendo a perna e o braço direito quebrados e também um ferimento profundo na cabeça de onde perdeu uma preocupante quantidade sangue. Os primeiros exames detectaram traumatismo craniano, e pelas avaliações do médico ele ainda náo estava fora de perigo. Os funcionários atingidos tiveram escoriações mais leves. Apenas um havia fraturado um braço, mas estava bem. Este seria liberado do atendimento médico logo que o gesso em seu braço secasse.Daniel ficara inconsolável. Nunca, em sua vida, ele poderia imaginar que um erro seu culminaria com um acidente daquelas proporções.Marc ainda tentou ajudar consolando o amigo.- Vamos sair daqui, não podemos fazer nada.- Eu quero ficar mais um pouco - disse Daniel que não parava de tremer, e a respiração alterada.Daniel não queria arredar o pé dali. Não sabia direito o porquê, mas sentia que se abandonasse o local estaria fugindo da responsabilidade e ele não era um covarde. Teria que enfrentar as conseqüências do seu erro brutal, quaisquer que fossem.- Venha, amigo - insistiu Marc. — Você não vai conseguir resolver nada agora. O melhor a fazer é sair daqui e esfriar a cabeça.

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O chamado de Marc era inútil. Daniel permanecia ali no meio da desordem, olhando o que havia causado, se penitenciando com aquela visão. Gente correndo como formigas desorientadas, as manchas de sangue no chão, as enormes quantidades de arroz, açúcar, farinha, caídos das sacas destruídas, mantimentos espalhados por todos os lados. No depósito não ficava estocado só aquele tipo de produto. Ali também eram classificados e armazenados os materiais de limpeza, peças de máquinas de diversos tipos e tamanhos para serem distribuídos aos vários departamentos de acordo com a necessidade. Quase tudo ficava sob um grande amontoado que tomaria muito tempo e trabalho até estar como antes.Por debaixo das prateleiras caídas, Daniel localizou o pedaço da lona em que havia enrolado as oito hastes que faltava fixar. Ele interpretou que Júlio nem percebeu o seu desleixo.Chester se aproximou dos dois. Evidentemente ele ainda não tinha conhecimento da culpa de Daniel no desabamento.- Que estrago! — exclamou o jovem cavaleiro. — Estão dizendo que Júlio está bastante encrencado depois dessa. Que a responsabilidade era dele e que ele não poderia ter autorizado a execução da transferência dos suprimentos.Daniel pôs as mãos na cabeça e saiu de perto.- O que houve com ele? - perguntou Chester, que relacionou a reação de Daniel a sua franca amizade por Júlio.

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- Você não imagina o que ele está passando — resumiu Marc lançando um olhar piedoso para Daniel.Marc aproveitou que Daniel se afastara para colocar Chester a par do triste acontecimento.Daniel estava impotente, assistindo os operários andando para todos os lados e improvisando uma operação imediata de reparos. Nos próximos dias eles teriam que priorizar o conserto do depósito e separar os suprimentos que não haviam sido danificados. Uma batalha começou a ser travada na mente do garoto. Ele poderia ter evitado aquele triste episódio se agisse como um aluno normal, sem querer se meter nos assuntos secretos da escola. Aqueles segredos não eram problema seu. Por um momento lembrou do seu pai; queria que ele estivesse ali para lhe dizer o que devia fazer naquela hora. Olhou para todos os lados. Queria encontrar sua irmã para lhe falar que desistisse de meter o nariz onde não era chamada. Desejou que todo aquele sofrimento não passasse de um dos seus macabros pesadelos.Daniel avistou Júlio e num breve momento seus olhares se cruzaram. O menino se perguntou o que passava pela cabeça do seu companheiro da tarefas de manutenção. O que seria feito dele. "Júlio está bastante encrencado", havia dito Chester antecipando algo muito ruim.Chester e Marc se aproximaram novamente para dar apoio.- Chega por hoje, Daniel - disse Marc, a voz soava branda. — Você não vai ajudar em nada, só está

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se torturando.- É, Daniel, se afastar daqui vai ser melhor pra você — aconselhou Chester, dando um tapinha em suas costas.Daniel soltou um suspiro entristecido e se afastou vagarosamente na companhia de Marc.Chester voltou ao local arruinado para conduzir a carroça carregada com a primeira leva de ferros retorcidos. Ele estava disposto a ajudar no que fosse possível para compensar de alguma maneira o sofrimento do amigo.

Maria havia acabado de retornar do dentista. Rafael a aguardava, conforme o pedido de Helmut. Ele já não tinha mais nada para fazer ali.- Você soube o que aconteceu? - perguntou ela, guardando sua bolsa em uma gaveta no balcão de entrada. Rapidamente ela conferiu o trabalho do dentista, sorrindo diante de um espelhinho de maquiagem.- O Sr. Helmut só havia me dito que foi algo ruim.Maria resumiu o ocorrido e liberou o rapaz. Ela havia se encontrado com Helmut que determinou o fechamento da biblioteca mais cedo naquele dia. Não havia mesmo nenhum aluno interessado em passear entre estantes abarrotadas de livros naquele dia. O diretor convocou a bibliotecária para auxiliar a pôr a escola em ordem.— Será que eu poderia ajudar em algo? — Se ofereceu Rafael, querendo ser útil de alguma forma.— Por enquanto não - respondeu ela sorrindo amigavelmente. - Se precisarmos eu peço para

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alguém te chamar.A curiosidade falou mais alto e como é da natureza humana, Rafael quis dar uma passada no lugar onde se deu o acidente depois do expediente na biblioteca. Ele ficou impressionado com o tamanho da avaria. Pensou que naquela altura, seus companheiros já sabiam bem mais do que ele. Mas Rafael tinha visto algo que eles não sabiam: o Diário. A dúvida dele era se contava aos amigos ou se guardava a informação só para si. Por enquanto ele não iria falar nada. Melhor deixar assim.Daniel resolveu ir ao ambulatório que ficava na parte leste do grande prédio da escola.O ambulatório tinha todas as características de um pronto-socorro comum, a diferença era que quase nunca havia um movimento como aquele de gente entrando e saindo para dar atendimento ao número anormal de pacientes. Marc manteve o seu apoio e acompanhou-o sem emitir um som. O francês decidiu deixar Daniel esgotar todas as suas dúvidas com relação ao quadro de saúde do aluno ferido, pois só assim o menino inglês deveria se sentir melhor. O atendimento médico possuía dois acessos: um voltado para o interior da escola e outro que se ligava à área externa viabilizando um atendimento rápido nos casos de emergência. As paredes pintadas de branco e o cheiro de éter espalhado pelo ar passavam uma impressão de desconforto a Daniel. Ele queria alguma informação do estado de saúde dos feridos, mas

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principalmente do aluno que se encontrava em piores condições.A movimentação dentro do ambulatório era grande. Um enfermeiro que trazia uma pilha de toalhas foi interceptado por Daniel.— Como está o aluno que se feriu no acidente?— Não sabemos ainda. O Dr. Adama está cuidando dele. Ele é um ótimo médico e fará tudo para salvá-lo. Você é amigo do garoto?— S-Sim! - respondeu, achando melhor esconder a verdadeira razão da sua presença no pronto-socorro. — Ele é meu amigo.É melhor você não ficar aqui - aconselhou o enfermeiro. — Aguarde lá fora e qualquer novidade eu te aviso.A palavra "salvá-lo" não foi muito bem recebida pelo menino. Dava a impressão de que o rapaz ferido estava entre a vida e a morte.Daniel encostou-se na parede ao lado da entrada do ambulatório e foi escorregando até sentar-se no chão. Marc fez o mesmo.-Você não quer ir embora? — perguntou Daniel, com o semblante cansado. - Não sabemos quanto tempo vai demorar.- Vou ficar com você até isso acabar, mas me prometa uma coisa: quando o aluno estiver fora de perigo você vem comigo, está bem?Daniel concordou com a cabeça e permaneceu prestando atenção em cada movimento naquele tumultuado entra e sai.Não demorou muito, o enfermeiro que havia conversado rapidamente com Daniel veio até ele

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seguido pelo Dr. Adama. Daniel e Marc se puseram de pé num salto.- São esses os garotos — disse o enfermeiro.- Fiquem calmos, ele está fora de perigo - tranquilizou-os o médico, mostrando os dentes brancos e perfeitos num sorriso confiável.- Podemos vê-lo? — pediu Marc, agora bem mais aliviado.- Infelizmente, não — disse o Dr. Adama. - O que mais o nosso paciente precisa agora é de muito repouso. E, além disso, já está escurecendo e vocês sabem que não podem ficar aqui em baixo. Voltem amanhã e consentirei que o visitem.Adama Diop era o nome completo do médico. Um negro de cabelos cortados rente à cabeça. Senegalês de origem, Adama Diop tinha idéias adiante do seu tempo no complexo campo da medicina. Ele era o responsável por toda a área médica da Ilha da Coroa. Como outros membros importantes da instituição, ele também tinha ido para a ilha ainda garoto estudar durante oito anos e se tornar uma referência na medicina moderna. Dentro do possível, freqüentava os principais congressos que aconteciam pelo mundo, e quando isso não era viável, enviava os seus artigos que invariavelmente eram divulgados, atraindo singular interesse da comunidade médica. Desenvolvia novas técnicas cirúrgicas, tanto ortopédicas, quanto torácicas, algumas delas acabavam sendo praticadas nos mais importantes centros médicos do mundo. O Dr. Adama era conhecido como mãos-mágicas, tal era a agilidade e destreza com que conduzia

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seus procedimentos cirúrgicos. Gostava de ouvir e contar piadas, e quando isso acontecia, as suas gargalhadas eram ouvidas à distância.Daniel e Marc acataram o pedido do médico e prontamente se retiraram subindo para o quarto.Chester já havia deixado Rafael a par sobre Daniel e o acidente. Em minutos o quarteto estava novamente reunido e com importantes assuntos a tratar. O ambiente no quarto deles estava pesado. Daniel era constantemente confortado pelos seus colegas, mas de pouco adiantava. Daniel não estava preocupado com ele mesmo, pois a função voluntária que realizava era de responsabilidade maior do seu tutor. Ele não corria nenhum risco de sofrer uma punição maior. A dúvida que o importunava era, do que seria feito de seu amigo Júlio.- Temos que aguardar os acontecimentos — ponderou Marc, balançando as pernas do alto do beliche. - Até lá nada podemos fazer.- E também, Júlio sempre foi respeitado pela sua eficiência e a disposição com que trabalha. Dificilmente alguém estaria disposto de se desfazer de um funcionário com essas qualidades - disse Chester com uma boa dose de razão.- Gostaria de ter toda essa certeza... — disse Daniel, apreensivo. - Mas estou com um mau pressentimento.Rafael devorava as unhas. Um claro sinal que havia algo que o inquietava. Os seus colegas já sabiam que havia uma coisa errada com ele. Devia ser a triste situação de Daniel, deduziram. Então ele resolveu falar.

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- Eu peguei o livro! — disse enquanto reparava nas unhas roídas.Todos pararam o que estavam fazendo e voltaram-se para ele.- Como é que é? — perguntou Marc, escorregando do beliche para encarar Rafael bem nos olhos.- É isso mesmo que vocês ouviram. Eu peguei o livro e olhei rapidamente o que estava escrito.- Conte melhor essa história — exigiu Daniel, esquecendo temporariamente os seus problemas.Rafael passou os próximos dez minutos contando como havia chegado ao livro. Depois enfiou a mão no bolso e tirou o pedaço de papel em que havia escrito do que se lembrou da sua breve leitura.- Então o livro é mesmo um diário que relata uma grande aventura - concluiu Chester, debruçando-se para frente e focando o seu interesse em mais alguma coisa que Rafael pudesse revelar.- Uma "experiência fantástica". Estava escrito isso mesmo? Você tem certeza? — insistiu Marc, lendo vorazmente cada palavra.- E você não leu mais nada? Não procurou saber que "experiência fantástica" seria essa? — perguntou Chester, querendo obter outras respostas.- Eu não tive muito tempo e, além do mais, eu estava muito nervoso. Não conseguia raciocinar direito - justificou-se Rafael. - Agora eu estaria em maus lençóis, bem pior do que Daniel. Aliás, se esse acidente náo tivesse ocorrido, eu não

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teria conseguido chegar ao livro e essa nossa conversa não estaria acontecendo.— Desculpe, Daniel, mas eu tenho que concordar com Rafael — disse Marc, explicando-se melhor. - Se bem que, de uma forma trágica, avançamos um pouco mais na nossa busca. Pena que pra isso quase tivemos uma morte. Ainda bem que foi só um grande susto.- Mas estou tendo que pagar um preço muito alto por isso - disse Daniel com desconforto em seu coração. — Sinto uma forte sensação de que os meus problemas ainda não terminaram.

Capítulo 10O Diário de Alexei Martov

Daniel não conseguiu dormir direito durante toda a noite. Pela manhã, bem cedo, ele já estava a caminho do ambulatório. As chuvas não vieram, mas o vento voltou a soprar deixando a temperatura menos severa. Daniel não quis acordar ninguém e quando os outros despertaram, ele já não estava mais no quarto. Passados cinqüenta minutos ele retornou com a fisionomia um pouco menos abatida, contando as boas novas para os companheiros. Tinha visitado o aluno ferido e aproveitou para ver também mais três funcionários que haviam se machucado. Outros dois já tinham recebido alta e se recuperavam em seus alojamentos. O Dr. Adama explicou que o rapaz ferido iria poder assistir as aulas, desde que tomasse certas

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precauções. A sorte é que ele era canhoto, se é que se pode chamar isso de sorte. Os prejuízos materiais em poucos dias deveriam estar reparados. Só faltava então ser definida a situação de Júlio.- Eu vou procurá-lo. Preciso esclarecer o acidente. Ele também deve estar confuso. Não posso deixá-lo sozinho nessa - disse desabafando quando encontrou novamente os companheiros.- Eu também tenho que sair para ajudar na organização do depósito - disse Chester enquanto se arrumava para sair. — Ainda há muito entulho para ser retirado.— Eu tenho que ir à biblioteca - disse Rafael. - Não posso me atrasar no meu segundo dia.- Eu ainda não conversei com o Sr. Ramón sobre a apresentação que faremos - informou Marc, pegando a sua inseparável mochila e prendendo-a no ombro. - Quer que eu vá com você?— Não, obrigado, Marc, eu quero ir só, pra falar em particular com ele — agradeceu Daniel, pensando no que diria a Júlio, como se explicaria, e como formularia o pedido de desculpas.Daniel desceu. Cada um tinha tomado o seu rumo.Júlio não havia sido visto pelos colegas naquela manhã.— Você viu Júlio? — continuou Daniel na sua busca por toda a ilha. As respostas eram sempre negativas.Após várias tentativas frustradas, um homem de óculos com lentes pequenas, que assumira o comando da equipe de trabalho na restauração

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do depósito, disse que Júlio se encontrava na sala de Helmut. Daniel não esperou o homem terminar e partiu em disparada, os piores pensamentos sendo construídos em sua mente. Pouco tempo depois, estava ele em uma pequena sala que antecedia o gabinete do diretor. A sala de espera era adornada com sancas no teto, paredes pintadas em um tom de pêssego e mobiliada com confortáveis poltronas de couro marrom, uma mesinha de tampo oval ao centro. A pesada porta de cedro que dava acesso à sala do diretor era ricamente adornada no melhor estilo barroco. Permanecia lacrada como a entrada monumental de um templo muito antigo.Quinze asfixiantes minutos se passaram quando a porta se abriu.O primeiro a sair foi Ramón. Logo atrás vinha Júlio, seus ombros estavam arqueados e o seu rosto expressava um enorme abatimento. Quando notou a presença de Daniel, Júlio foi até ele abrindo um sorriso amarelo.- Estou indo embora, meu amigo.- O quê?! Indo embora, como? Você foi... demitido? — questionou Daniel, perplexo. Ele não estava acreditando no que acabara de ouvir.- Eu cometi uma falha grave e não devo mais ficar trabalhando na ilha.- Mas a culpa foi minha, eu é que mereço ser expulso - argumentou Daniel, chamando para si toda a responsabilidade. — Vocês ouviram isso? — ele fez questão deixar bem claro para Ramón

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e Helmut que o olhavam com seriedade. - O erro foi meu! Júlio não teve culpa!Ramón assistia a certa distância, porém calado.- Não se culpe, garoto — disse Júlio, confortando o menino. — Eu deveria ter feito uma vistoria completa antes de liberar a excessiva sobrecarga das prateleiras e estou pagando pelo meu erro. — Júlio deixou de falar por uns instantes. Estava tentando entender o que havia sucedido. — O que aconteceu, Daniel? Por que você deixou de fixar as últimas hastes?A boca do garoto se abriu, mas ele não conseguiu falar. Não queria mentir para o seu amigo que tanto lhe ensinou, mas não podia falar a verdade. Daniel pensou em contar o motivo de não ter terminado a fixação das hastes, mas se ele revelasse a verdadeira razão do seu ato, não iria salvar a pele de Júlio e ainda comprometeria a si e aos seus colegas. Ele nada pôde fazer. Júlio colocou a sua mão no ombro de Daniel e depois respirou fundo, parecendo querer arranjar forças para se despedir.- Boa sorte, Daniel. Nos vemos algum dia.A angústia se apoderou de Daniel ao ver o seu companheiro Júlio deixar o gabinete. Em seguida, o menino foi tomado por uma raiva crescente. A raiva se materializava nas figuras de Helmut e Ramón. Eles sabiam quem havia cometido o erro e náo tinham o direito de sacrificar um homem tão bom. Daniel subiu correndo para o seu quarto e começou a maquinar como poderia dar o troco. Ele estava sozinho com a sua raiva. Desviou os olhos enfurecidos para a janela como se

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esperasse encontrar as respostas lá fora. O sacrifício de Júlio não poderia ser em vão. Ele passou a mão em um papel e começou a rabiscar alguma coisa, depois riscava tudo e começava de novo. Combinou diversas possibilidades; esboçou outros planos. Parava. Pensava. Refazia tudo novamente. De repente, ele levantou a cabeça. Seus olhos brilhavam.- Acho que o nosso momento está chegando - profetizou num murmúrio perspicaz.Daniel nem quis saber de almoçar. Havia perdido completamente o apetite e aproveitou cada minuto para arquitetar um plano muito arriscado que envolveria outras pessoas. A demissão sumária de Júlio desencadeou nele um desejo incontrolado de desvendar todo e qualquer segredo que Helmut e os seus seguidores ocul-tavam. Ele esperou pacientemente que cada amigo seu retornasse após o almoço e anunciou com a voz dura.- Não sei se vocês já foram informados, mas Júlio foi demitido.- Eu já estava sabendo - disse Chester, balançando a cabeça em sinal de desaprovação. — E o que mais se comenta por aí.- Eu pretendo fazer uma coisa muito arriscada - avisou Daniel, com ar severo. — E pra isso, eu vou precisar muita de sua ajuda, Rafael. - Daniel arrastou uma cadeira, sentando-se de frente para os três companheiros e começou a discorrer acerca de seu plano.- Desde que começamos a investigar os mistérios da ilha, descobrimos coisas interessantes, mas

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que aparentemente não se conectam — disse, apertando uma mão na outra. Os três ouviam atentamente. — Senão, vejamos: a floresta vigiada permanentemente, que quase a torna impenetrável; a sala secreta que guarda uma figura de pedra, provavelmente um grifo; um livro que descreve uma aventura fantástica e que é mantido a todo custo fora do alcance das pessoas; um homem que desaparece por quase um ano e quando volta, está cego de um olho; professores que pouco ou nada sabem, sempre se portando de maneira evasiva, optando por viver num lugar isolado a usufruir dos melhores centros educacionais do mundo — Daniel fez toda aquele preâmbulo para colocar a sua idéia. — Não há outra maneira de desvendarmos esses segredos, ou pelo menos descobrirmos um jeito de chegarmos a eles, sem conhecer a fundo o que está mencionado no tal diário.- E o que você está pensando em fazer? - perguntou Marc, deixando-se levar pela curiosidade.Daniel entrelaçou os dedos e expôs a sua idéia.- Eu pretendo entrar na biblioteca e passar uma noite lá dentro, lendo o diário, para tirar a limpo essa história toda - disse, deixando todos pasmos.- Você não tem como fazer isso - duvidou Chester, torcendo o nariz.- Tenho sim! — confirmou Daniel, inabalável.- E eu posso saber como você pretende fazer essa loucura? — perguntou Rafael, totalmente dominado pela curiosidade.

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- Isso é você quem vai me dizer, ou melhor, me mostrar - respondeu, apontando para Rafael que aquela altura já estava mesmo querendo saber que idéia louca passava pela cabeça de Daniel.- Eu vou dizer? Do que você está falando?- Para pegar o diário, eu necessito abrir as portas da biblioteca, da sala do Helmut e, finalmente, a porta do armário. Você, Rafael, pode me mostrar como devo fazer. Depois disso, eu passo lá uma noite, leio o que for possível, e depois conto o que descobrir pra vocês - disse Daniel, explicando com cuidado.- Você não iria conseguir - rejeitou Rafael sobre a proposta insensata do amigo inglês.- E por que não? - indignou-se Daniel, levantando-se. — Acha que eu não posso aprender?- Deixe-me explicar com calma — ponderou Rafael. — Existem vários tipos de fechaduras. Alguns mecanismos se diferem bastante de outros. Além disso, cada fechadura se apresenta em um determinado estado; umas podem estar parcialmente enferrujadas; outras podem não estar devidamente lubrificadas. — Rafael gesticulava bastante com as mãos. — Existe também a questão do tato. Para se abrir rapidamente uma fechadura, a sensibilidade na ponta dos dedos tem que ser muito apurada. Às vezes é preciso combinar dois, até três arames ou outro instrumento, manejados de maneira apropriada, para se desmontar um mecanismo. E tem mais uma coisa, você tem que estar muito bem familiarizado com os ruídos que saem do interior de uma fechadura. Muitas vezes, é pelo

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som que conseguimos destravar as mais complicadas. E finalmente, isso tudo que eu lhe falei não se aprende de um dia para o outro. Se você não se mantiver calmo na hora, não vai conseguiu perceber essas minúcias e isso pode deixar você em apuros.- Mas você pode ao menos se empenhar para me ensinar - insistiu Daniel, inconformado.- Eu não posso fazer isso — recusou-se Rafael. - Se algo desse errado, eu não me perdoaria.- É a sua última palavra? — pressionou-o Daniel.- É. Prefiro que seja assim. Náo quero passar o resto da minha vida carregando uma sensação desagradável de culpa.A palavra "culpa" fez Daniel lembrar-se de Júlio. E ele tinha a exata dimensão do que era esse sentimento.Bastante desanimado, Daniel voltou a sentar-se apoiando os cotovelos sobre as pernas.- E agora, vamos desistir? - questionou ele, olhando os companheiros um a um, como se todos fossem traidores.Por um momento o quarto ficou em silêncio. Marc, Rafael e Chester se olharam reciprocamente. Parecia não haver uma resposta conclusiva para a pergunta de Daniel. Rafael tomou a frente para responder.- Eu vou pegar o diário no seu lugar - disse de forma surpreendente.- Você não pode fazer isso! - protestou Daniel. - Eu tive a idéia. Eu me prontifiquei a ir. E você sempre foi contra corrermos tantos riscos. Não posso deixar acontecer com você o mesmo que

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houve com Júlio. Se alguém tiver que entrar na biblioteca e apanhar aquele diário, que seja eu.- Você não teria nenhuma chance — disse Rafael, em tom de reprovação. — Além disso, eu estou em melhores condições de executar essa operação do que qualquer um nesse quarto. Você se esqueceu quem é que auxilia na biblioteca? — Rafael tinha fortes motivos para se candidatar como voluntário. Ele prosseguiu com a sua argumentação: — Em tempo recorde eu tive o diário nas mãos. Se a estratégia que você montou der certo, antes mesmo das aulas reiniciarem, nós estaremos de posse das informações que estão preservadas no diário.- Pelo que eu entendi, a idéia é fazer tudo na calada da noite - manifestou-se Chester. - Mas como, se os corredores escuros do prédio ficam apinhados de sentinelas espreitando cada movimento dos alunos, mesmo quando vamos apenas ao banheiro?-Ainda não pensei nessa questão - disse Rafael, olhando para fora da janela, os olhos contra o céu muito azul e sem nuvens. - Mas deve haver um meio de se chegar até a biblioteca sem ser descoberto pelos monitores.- É muito perigoso - alertou Marc, manifestando cautela. - A distância entre o nosso quarto e a biblioteca é muito longa e nenhum de nós fez esse trajeto à noite. Ninguém aqui sabe o que você poderia encontrar pelo caminho.- Eu não estou dizendo que deverá ser feito dessa forma - explicou Rafael, justificando-se. - Mas por enquanto, foi a única que me ocorreu.

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- É um tiro no escuro - disse Daniel, rejeitando completamente a proposta de Rafael. - Se te pegarem você não vai conseguir alegar nada em sua defesa.— Posso alegar que sou sonâmbulo — brincou Rafael, fazendo o possível para suavizar sua própria inquietação.— Eu sugiro pensarmos melhor em outra alternativa mais coerente e segura - ponderou Chester, preparando-se para sair. — Eu não concordo que um de nós tenha que se arriscar tanto assim. Lembrem-se de Bruno. Por muito menos ele quase foi colocado pra fora. Bem, tenho que ir agora, se eu pensar em algo, aviso vocês.Rafael voltou à biblioteca inspecionando atentamente todo o percurso que deveria fazer e constatou que durante a noite, com todas as luzes apagadas e os monitores rondando, as chances de ele ser descoberto eram grandes. A biblioteca estava mais uma vez, praticamente deserta. Somente Maria, a bibliotecária, fazia algumas anotações aproveitando o pouco movimento dos estudantes. Rafael sentou e ficou meditando sobre a sua tomada de posição. Não sabia exatamente porque havia se oferecido precipitadamente para tentar pegar o diário no lugar de Daniel. Provavelmente achou que o amigo já havia extrapolado a sua parcela de problemas com o acidente e a demissão de Júlio. O certo é que o contato com o diário despertou nele um desejo de saber mais sobre o seu conteúdo. Rafael achava que lendo o que se

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escondia naquelas páginas talvez encerrasse de uma vez por todas aquela situação que os atormentava há tanto tempo. Mas havia mais: depois que o teve nas mãos, parecia que havia sido enfeitiçado e agora ele estava tão curioso quanto seus amigos. O seu receio era se aquilo que ele descobrisse acabasse empurrando-o para um caminho sem volta. Mas como chegar até o livro sem ser descoberto? Os olhos de Rafael percorriam a imensa biblioteca e nenhuma inspiração parecia lhe ocorrer naquele momento. As horas passavam e ele não conseguia pensar em nenhuma solução para o problema. A biblioteca era tão grande, fácil de se esconder no labirinto de estantes que se ramificavam para o seu interior.— Mas é claro! Como não pensei nessa possibilidade? — murmurou ele, exibindo um reservado sorriso de satisfação.A porta se abriu e Helmut caminhou desferindo passos duros sobre o assoalho, mostrando-se carrancudo, passando por Maria e Rafael sem proferir uma palavra sequer. Era um comportamento típico quando ele estava preocupado ou irritado com alguma coisa. Naquele estado, Helmut não hesitaria em expulsar Rafael se o garoto fosse pego em circunstâncias tão embaraçosas como a que ele estava disposto a se meter. Uma sensação desconfortável e ameaçadora se abateu sobre o menino só de ver a imagem sombria e enigmática do diretor.

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Mas Rafael já tinha uma estratégia e estava disposto a colocá-la em prática a qualquer custo. Ele tratou de controlar seu entusiasmo para não dar na vista. A tarde foi chegando ao fim e Rafael decidiu fazer um teste para confirmar suas suposições. Ele aguardou o quanto pôde e constatou que se ficasse um pouco além do horário a Sra. Maria sairia antes dele.— Já estou indo, Rafael, você não vem? — disse ela, dando a volta no balcão, a inseparável bolsa em sua mão.— Ficarei mais um pouco — respondeu ele, fingindo estar cercado de trabalho. - Não gosto de deixar nada por fazer.— Então até amanhã. - Despediu-se ela, deixando-o sozinho mais uma vez com Helmut. O diretor continuava em sua sala envidraçada, inclinado sobre o cobiçado diário.Rafael esperou uns poucos minutos e se dirigiu até Helmut, dando umas batidinhas no vidro.— Estou indo, senhor, precisa de alguma coisa?— Não, obrigado rapaz — respondeu sem levantar os olhos.Rafael notou que, até o instante em que saiu da biblioteca, Helmut permanecia de cabeça baixa, totalmente absorvido pelo teor do livro. O garoto agora sabia como poderia chegar ao seu objetivo sem se arriscar tanto. Sem desperdiçar tempo, ele precisava colocar os seus companheiros a par do seu estratagema.O último a chegar foi Marc, que havia passado a tarde toda às voltas com os preparativos da apresentação especial da semana seguinte. Os

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seus amigos já se encontravam no quarto posicionados para uma nova reunião que definiria os passos a serem dados e que mudaria para sempre as suas vidas.— Acomode-se — disse Daniel, indicando um lugar. - Rafael tem algo muito importante para nos dizer.Marc sentou-se ao lado de Chester e sentiu que alguma coisa de grande importância estava para se definir.— Eu sei como entrar na biblioteca sem ter que percorrer todo o caminho escuro - anunciou Rafael com voz firme. - Eu só preciso não sair de lá.— Como planeja isso? — indagou Chester com desconfiança.— É simples. No final do expediente, após as seis da tarde, a Sra. Maria normalmente vai embora e só ficamos eu e o diretor na biblioteca. Isso vem se repetindo sempre que eu estendo o meu horário.— E aí... - incitou Daniel, querendo saber mais.— Quando me despeço do Sr. Helmut, geralmente ele só ergue a cabeça para responder o cumprimento e logo volta a ficar compenetrado no diário. Hoje, nem se deu ao trabalho de olhar para mim.— Acho que estou começando a entender... mas, continue - disse Chester, seguindo o raciocínio de Rafael.— Hoje, observei quando estava quase fechando a porta, ao sair, que ele continuava curvado sobre a mesa, com a atenção toda voltada para o diário

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e não verificou se eu realmente havia saído da biblioteca. Quando ele não estiver olhando, eu simulo estar deixando a biblioteca, mas na verdade, continuo lá dentro e depois, é só esperar o diretor sair. Essa é a oportunidade que eu preciso para permanecer lá a noite toda. Só eu e o diário.— E amanhã? - questionou Marc, ávido por saber de todo o plano.— Eu saio bem cedo, antes da biblioteca abrir, e mesmo se me pegarem nos corredores, eu posso dizer que acordei mais cedo e estava indo para o pátio pegar um pouco de ar ou coisa assim.— A idéia parece boa, mas ainda é arriscada - observou Chester, coçando a cabeça. — Mas não consigo pensar em uma melhor.— E como você pretende enxergar lá dentro depois que as luzes forem apagadas? — perguntou Daniel, não querendo deixar escapar nenhum detalhe.— Bem, nisso talvez você mesmo possa me ajudar, Daniel — disse Rafael, esticando as pernas sobre uma cadeira vazia. — Como você tem acesso à manutenção, poderia conseguir uma vela de tamanho suficiente para durar algumas horas, ou quem sabe, várias velas menores, e não se esqueça dos fósforos. Imagino que se eu estiver de posse do diário por umas três ou quatro horas, já será o bastante para conhecer boa parte do seu conteúdo. Um lampião ou mesmo uma lanterna chamariam a atenção pelo grande volume. Velas são mais discretas.

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— Isso eu posso conseguir - confirmou Daniel.— E se te pegarem? - provocou Chester. - O que você vai fazer?— Pra mim estará tudo acabado. Vou negar a participação de vocês até o fim e vocês farão o mesmo. A propósito, não podemos deixar nenhuma pista se alguma coisa falhar. O mais sensato é destruir aqueles papéis com as anotações do diário.A posição segura de sacrifício a que Rafael estaria disposto a se submeter, se algo desse errado, doeu em Daniel e àquela altura ele nada poderia fazer. Bastava a ele confiar na inteligência e habilidade do amigo, e desejar-lhe boa sorte. As coisas estavam indo muito rápidas e eles estavam perdendo a capacidade de medir as perigosas conseqüências que estavam por vir.— Quando você pretende executar o plano? - perguntou Daniel, apreensivo.— Amanhã mesmo - disse Rafael, dando um grande suspiro. - E que Deus não me abandone...— Talvez você precise de um pouco mais de tempo para se preparar - sugeriu Daniel, ansioso.— Não há tempo, tem que ser amanhã! - sentenciou Rafael. - Depois que as aulas recomeçarem, a biblioteca vai estar apinhada de alunos até o fim do expediente e se tornará bem mais difícil eu arrumar um lugar para me esconder - ele fez uma pausa. - Mas se tudo correr conforme foi planejado, muito em breve, provavelmente, estaremos conhecendo algo de extraordinário.

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Embora todos estivessem aflitos com o que estava por acontecer, não foi o suficiente para tirar o sono de Chester e Marc. Já Rafael e Daniel, não conseguiram pegar no sono tão rápido. Rafael procurava repassar mentalmente cada particularidade do que tinha que ser feito. Não poderia haver nenhuma falha. Ele foi invadido por um forte sentimento de insegurança e não parava de roer as unhas para compensar a sua ansiedade. Daniel se sentia responsável por ter tido a idéia original de passar a noite na biblioteca. Ele refletiu sobre todas as vezes que pressionou Rafael e até o criticou por não ser mais participativo nas investigações. Lembrou-se das vezes em que Rafael se metia nas conversas, trazendo novas informações que contribuíram substancialmente para eles terem chegado até ali.Da posição em que Daniel estava dava para ver o Armamento cristalino. Um filete de nuvem cruzava o céu noturno, ora ocultando uma estrela, ora escondendo outra. A cena era quase hipnótica. Uma brisa fresca entrava pelo quarto, diminuindo um pouco o clima pesado que se abatia sobre eles.O sol levantou-se, irradiando o seu brilho por toda a ilha num espetáculo magnífico. Daniel abriu os olhos e não viu mais Rafael na cama. Ele já havia saído. A manhã e a tarde também voaram, e Daniel, obviamente, não conseguia se concentrar em nada que fizesse. Tentou ocupar a cabeça com alguma atividade, mas o nervosismo ia aumentando a medida que a noite se

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aproximava. O anoitecer chegou mais uma vez e Daniel, que mal havia almoçado, nem queria saber do jantar, indo direto para o seu quarto. Chester e Marc já haviam chegado e mantinham o olhar distante, aparentemente não notando a presença de Daniel. Uma batida na porta desconcentrou Daniel que, ao abri-la, teve a perturbadora surpresa da visita de Bruno.— Pegaram Rafael! - avisou ele, ofegante e com os olhos arregalados.— Não é possível! - exclamou Daniel, incrédulo. - Como descobriram nosso plano?— O quê? Vocês também participaram dessa tolice? - perguntou Bruno, perplexo. — O meu exemplo não serviu pra nada?— Onde ele está? — quis saber Daniel, apavorado.— Está sendo levado para a floresta, e de lá nunca mais poderá sair... E logo você também será levado, garoto idiota.Os olhos de Bruno se incendiaram e labaredas infernais saíram de suas narinas e de sua boca. Daniel se afastou daquele ser grotesco, e ao olhar para Chester e Marc, como que para pedir ajuda, viu que os dois também despejavam línguas de fogo, numa cena dantesca.Daniel acordou sobressaltado. Era outro de seus pesadelos. Será um aviso? — pensou ele.Imediatamente, Daniel olhou para a cama de Rafael. Ele estava lá, com o braço direito sobre os olhos. Náo havia como saber se estava dormindo ou não. Daniel fez de tudo para pegar no sono novamente; demorou, mas ele conseguiu.

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Na manhã seguinte, Daniel despertou de um sono turbulento e a primeira coisa que fez foi procurar Rafael em sua cama. Rafael não estava lá. Dois pesadelos numa mesma noite já era demais. Daniel ergueu o tronco, apoiando-se em um cotovelo e viu seu amigo sentado à mesa, apoiando a cabeça com as mãos. Rafael lia o livro do professor Rajev para aprimorar seus conhecimentos. Talvez isso o auxiliasse de alguma forma.— Conseguiu dormir? — perguntou Daniel, com voz arranhada.— Sinceramente... Muito pouco — confessou Rafael, virando uma página.— Está querendo desistir? — indagou Daniel, desejando penetrar nos pensamentos de Rafael - Se você mudar de idéia, nós estaremos do seu lado.— Não, isso está totalmente fora de questão - respondeu, determinado. Ele esfregou os olhos e depois continuou: — Eu vou dizer uma coisa e espero que sirva de conforto para você e para eles — disse, se referindo a Chester e Marc que ainda dormiam. - Estou fazendo isso porque eu quero. Minha vontade de desvendar esse mistério todo superou o meu medo. Espero que eu não venha a me arrepender depois. De qualquer modo, preciso passar por isso. Não sei bem por que, mas eu não volto mais atrás.Estava criada entre eles uma espécie de aliança. O que acontecesse a um, afetaria aos demais. O respeito e a admiração entre eles haviam crescido em proporção exponencial.

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Rafael se levantou.— Não esqueça da vela e dos fósforos. Você tem como consegui-los até a hora do almoço?— Sim, deixe isso comigo — assegurou Daniel, pulando da cama. — À tarde nos encontramos e combinamos os detalhes finais.Marc e Chester acordaram com a conversa e acompanharam Daniel para o desjejum.A grande vantagem de Rafael era que ele podia ficar horas na biblioteca sem chamar a atenção. Andava por cada corredor, escolhendo o melhor local onde pudesse se instalar, longe das poucas janelas, que por sinal, permaneciam fechadas durante a noite toda. Ele vasculhou cada canto, cada fresta, pois quando acendesse a vela, a sua luminosidade não poderia, por razão alguma, passar para o lado de fora ou chamaria a atenção dos monitores noturnos.Quando os meninos se encontraram novamente, sabiam que aquela seria a última vez que estariam os quatro juntos, e que Rafael só voltaria a falar com eles no dia seguinte. Se tudo corresse bem...— Trouxe o que lhe pedi? - perguntou Rafael, que já havia guardado em uma pasta de couro marrom o restante do material que precisaria para cumprir a sua missão.— Está aqui — confirmou Daniel, entregando-lhe um pacote fechado. — Uma vela grossa de uns vinte centímetros e uma caixa de fósforos com uns dez palitos. Deve ser o suficiente. - Rafael assentiu com a cabeça.

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— Se eu não voltar amanhã cedo, comuniquem aos monitores o meu desaparecimento e finjam que não sabem de nada — disse, escondendo o pacote em sua pasta de couro. — Se perguntarem por que não avisaram na noite anterior, falem que eu havia dito que iria trabalhar até mais tarde e que não me esperassem. Daí, vocês podem dizer que acabaram dormindo e só deram pela minha falta de manhã.— Muito bem, agora temos que nos comportar da maneira mais normal possível — recomendou Daniel. — Ao retornarmos para o alojamento no final do dia, não devemos mais sair do quarto. Qualquer movimento anormal de nossa parte levantará suspeitas.— Como você vai se sair sem comida nem água, Rafael? - perguntou Chester, com a sua peculiar prudência.— Eu tenho alguns biscoitos que peguei no refeitório hoje de manhã e a água eu me viro na torneira do lavabo da própria biblioteca.— Você tem que sair de lá logo que começar a clarear o dia, o Sr. Ramón costuma levantar bem cedo - avisou Marc, que conhecia muito bem os hábitos de seu tutor.Rafael acomodou a pasta debaixo do braço pronto para se despedir.— Tenho de ir agora, pessoal - disse, levantando-se como se tivesse uma montanha pesando nos seus ombros.— Você tem mesmo certeza que quer levar isso adiante? - insistiu Daniel, pela última vez,

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considerando aquela pergunta como se fosse parte de um ritual.— É como eu falei, Daniel, não posso mais recuar - disse resoluto, abrindo a porta para sair.— Você vai conseguir — disse Chester, incentivando-o.— Espero que sim, Chester... Espero que sim... — suspirou Rafael.Depois que Rafael deixou o quarto, os outros três ficaram estáticos sem saber o que dizer. Daniel quebrou o silêncio.— Vai ser a noite mais estressante da minha vida — desabafou, massageando a nuca que estava tensa como aço.— Se o apanharem eu não fico mais nessa escola — disse Daniel, solidarizando- se com Rafael. - Não seria justo eu continuar estudando aqui, enquanto ele abandona os seus sonhos por nós.— Eu estou com você - acompanhou-o Marc.— Então vamos fazer um pacto - completou Chester. - Se o pior acontecer, todos saímos.Os três juntaram as mãos selando o compromisso.Quando atravessava o belíssimo jardim interno da escola, rumo à biblioteca, Rafael foi abordado por Margaret que não aparecia fazia algum tempo.— Oi, Rafael, você esteve com meu irmão?— Olá, Margaret, ele estava no quarto... agora a pouco, se você o aguardar no pé da escada, deve topar com ele. Daniel e os outros rapazes já estavam de saída - disse com a voz arrastada e o semblante nitidamente aturdido.

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Margaret conhecia Rafael o suficiente para desconfiar que algo ia errado. O menino estava sem aquele aspecto afável que costumava olhar para ela.— Você está bem? Parece estranho — ela comentou de forma analítica.— Não é nada - tentou esconder. Ele forçou um sorriso que não conseguiu disfarçar a sua preocupação.— Não... Você não me engana. Tem alguma coisa te afligindo — insistiu ela, querendo descobrir o motivo. A percepção de Margaret era muito aguçada nessas questões e ela sabia que a única coisa que alterava o comportamento de Rafael era a insistência de seu irmão, Daniel, em querer envolvê-lo nos assuntos misteriosos da Ilha da Coroa. — Meu irmão continua te pressionando?— Não! — negou ele com veemência. — Só estou um pouco ansioso com a proximidade das aulas. Depois de amanhã começamos tudo de novo e você sabe como eu sou com essas coisas de nota.— Está bem, se você está dizendo... - disse, dando de ombros. - Se precisar de ajuda, me procure — avisou, se afastando.Será que está dando tanto na vista? — pensou ele, vendo Margaret se distanciar e desaparecer nas sombras de uma coluna.Margaret esperava impacientemente, tamborilando no corrimão da escada de acesso às duas alas, a masculina e a feminina. Enfim, Daniel, Chester e Marc apontaram no alto da escada. Mal desceram e ela atacou:

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— Vocês descobriram mais alguma coisa sobre o livro?— Não! - antecipou-se Daniel, esforçando-se para evitar que Marc e Chester revelassem os novos planos.Margaret encarou um por um e não se deu por convencida.— Acho que estão me escondendo alguma coisa - ela fez uma pausa esperando que a reação deles os entregassem. — É o livro, não é?— Que livro? - perguntou Chester, se fazendo de desentendido. — Ah... o livro do Sr. Helmut?... - Daniel arregalou os olhos para Chester.— Falem baixo! — repreendeu-os Marc, olhando para os lados. - Querem que sejamos descobertos?— Bruno me contou detalhes daquele livro - disse ela, baixando o tom de voz. - E estou desconfiada que vocês estão tramando alguma para chegarem até ele.— Vamos andando - disse Daniel, pegando a irmã pelo braço. — No caminho eu te explico.Eles pararam próximos ao jardim interno, o mesmo lugar que Margaret havia conversado com Rafael minutos antes.— Na verdade estamos tentando bolar um jeito de chegarmos até esse tal livro, mas estamos tendo dificuldades. Você teria alguma sugestão? — disse Daniel, procurando desviar a atenção da irmã.— Eu nem pensei sobre isso — disse ela, com o olhar fixo no irmão. — Conheço muito bem você

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Daniel e tenho certeza que vocês sabem algo que eu não sei.— Você está imaginando coisas — comentou, rindo para os companheiros. — Por que iríamos esconder logo de você que está conosco desde o início?— Talvez, para me proteger — disse ela, inclinando a cabeça para o lado. — E se for assim, o motivo deve ser muito sério. Ou será que é para ficar com toda a glória para vocês?— Ora Margaret, não seja boba. Você está fantasiando essas coisas, e o pior, está acreditando nelas - disse Daniel, firme, resistindo aos ataques da irmã.Margaret não acreditou muito nas explicações dadas. Ela achou por bem dar uma trégua, mas sua personalidade obstinada não deixaria ficar assim, e Daniel sabia muito bem disso. Então mudou o foco da conversa.— O que está acontecendo com Rafael? — perguntou ela, voltando ao ataque.— C-Como assim? — gaguejou Daniel. Ele sabia que quando sua irmã começava a xeretar, nada a segurava enquanto náo conseguia o que queria.— Encontrei-o aqui mesmo no jardim faz pouco tempo, estava visivelmente apreensivo.— Deve ser impressão sua. Não há nada com ele. Não é verdade, rapazes? — disse trocando o peso de uma perna para outra.Margaret ficou olhando por algum tempo para os três. Para eles parecia uma espinhosa eternidade.

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— Sinto decepcioná-los, mas vocês não me convenceram. E saibam que não é só o Rafael que anda estranho, vocês também estão bem esquisitos. — O tom de sua voz mudou para algo ameaçador. - Ouça bem, meu caro irmão. Eu vou descobrir o que vocês estão escondendo de mim e quando isso acontecer, você me paga, Daniel, seu traidor - esbravejou, virando as costas e saindo. Não chegou a dar cinco passos e voltou-se para eles, ainda com uma enorme indignação estampada no rosto. - Aliás, todos vocês são uns traidores — desabafou, indo embora pisando duro.— Mais essa agora - disse Daniel, desanimado.— E ainda nos chamou de traidores! - disse, Chester surpreso, olhando para Marc que coçava o queixo ainda assimilando a repreensão que acabara de receber de uma garota.— Ela ainda vai nos trazer problemas — profetizou Daniel. - Podem esperar...— Por que você está querendo deixar Margaret fora do nosso plano? - perguntou Chester, não aprovando muito a decisão de Daniel.— Exatamente por isso - reforçou Daniel, olhando Chester pelo canto dos olhos. - Porque ela ainda vai nos causar algum problema. Vocês não conhecem bem a minha irmã. Ela é ainda mais impulsiva do que tem se mostrado e essa demonstração de irracionalidade foi só o começo. Ela vai aprontar, disso eu não tenho nenhuma dúvida. E tem outra coisa, ela tem razão. Eu quero sim... protegê-la.

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A biblioteca continuava com a freqüência baixa de alunos. Rafael havia colocado a sua pasta de couro em cima de sua mesa de trabalho.— Trouxe tarefa para a biblioteca, Rafael? — perguntou Maria, sorridente, se referindo à sua pasta.— Ah... é só uma pesquisa que quero fazer mais tarde — explicou meio sem graça. — Nada de importante.Conforme o tempo passava, um frio na barriga de Rafael se tornava mais intenso. Ele tinha perdido a conta de quantas vezes conferiu as horas no relógio pendurado na parede à sua frente. Suas unhas já estavam destruídas pela voracidade de seu nervosismo.— Quatro e meia! - murmurou ele, entre os dentes.A hora estava se aproximando, e cada vez mais, Rafael não conseguia disfarçar a sua ansiedade.— Você está se sentindo bem? - perguntou Maria, cochichando ao pé do ouvido do menino, reparando a sua inquietação.— Estou, sim senhora, acho que alguma coisa que comi não me caiu bem - respondeu, justificando o seu comportamento nada natural.— Se você quiser ir embora, sinta-se bem à vontade.— Obrigado, senhora, mas estou perfeitamente em condições de prosseguir com os meus afazeres — disse, dispensando a generosa oferta.— Cinco e meia! Preciso tomar um pouco de ar ou vou explodir - Rafael saiu e foi até o jardim que ficava no fim de um dos corredores que

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passavam pela biblioteca. Ele procurou equilibrar o raciocínio. Por um momento pensou ter visto alguém entre as folhagens de um arbusto mais alto. Um pássaro levantou voo. Deve ser isso — pensou, acompanhando com o olhar a ave pousar em uma janela do segundo pavimento. Uma ponta de arrependimento espetou o seu coração. A figura de seus pais era mais presente na sua mente. - Não posso fraquejar. Não agora. - Lutou contra os seus medos, e após respirar fundo, voltou e sentou-se novamente. Maria, silenciosamente, o observava por cima dos óculos.— Faltam dez minutos para as seis horas! — resmungou. O tempo estava se esgotando, se Helmut não aparecesse de uma vez Rafael teria que sair da biblioteca junto com a bibliotecária e o plano teria fracassado.— Faltam cinco minutos! — O menino já estava entrando em desespero. Toda aquela ansiedade estaria sendo em vão e aí ele teria que passar por tudo de novo no dia seguinte.— Só tenho três minutos! — O seu batimento cardíaco acelerou ao máximo. Maria já havia retirado sua bolsa de dentro do armário, ajeitando-se para ir embora.— Um minuto!A porta fez um barulho brusco ao ser escancarada e Rafael ouviu Helmut cumprimentar Maria. Os dedos do diretor deslizaram sobre a mesa de Rafael quando ele passou. Era uma maneira bastante particular de cumprimentá-lo. Como de hábito, Helmut

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enclausurou-se em sua sala e mergulhou nas páginas do diário de capa preta.Rafael não sabia mais se estava aliviado ou apavorado.— Você fica, Rafael? — O menino foi arrebatado dos seus pensamentos secretos pela voz carinhosa de Maria.— Sim, fico, mais um pouco. Ainda tenho que fazer algumas anotações.— Bem, nesse caso, boa sorte e boa noite — disse ela, despedindo-se e deixando Rafael outra vez a sós com o diretor.Rafael, como um felino, esperava o melhor momento para dar o bote. Se Helmut saísse logo, ele também teria que ir embora. Portanto, o menino não sabia quanto tempo teria para decidir, mas provavelmente não seria muito. Ele engoliu em seco e se levantou. Helmut estava na mesma posição: debruçado sobre o diário e de vez em quando virava uma página.— Sr. Helmut! — chamou, batendo com as pontas dos dedos no vidro. — Estou indo embora, vai precisar de mim?— Não rapaz, obrigado - agradeceu, tirando os óculos e apertando os olhos. — Daqui a pouco eu também irei, estou particularmente cansado hoje - disse, inclinando-se para trás e forçando as costas contra o encosto da cadeira.— Então... boa noite, senhor — virou-se, foi até a porta e saiu, fingindo fechá-la.Rafael vasculhou o corredor que estava vazio e quase escuro. A noite chegava

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depressa. Pela fresta da porta entreaberta dava para ver Helmut pensativo como se sua mente não estivesse mais ali. Naquela posição, Rafael seria visto se entrasse novamente na biblioteca. Ele ouviu vozes vindo do fundo do corredor, eram monitores assumindo seus postos. O momento era aquele, ou Rafael entrava ou desistia. As vozes aumentavam, logo o menino seria visto se permanecesse ali parado e indeciso. Helmut voltou a ler o diário. Era agora ou nunca. Rafael prendeu o fôlego e abriu a porta com cuidado, fazendo uma careta, torcendo para não cometer nenhum ruído. Seus olhos estavam pregados em Helmut que se voltava para a leitura. O garoto deslizou sorrateiramente para o corredor de estantes mais próximo, sumindo do campo de visão do diretor. Ele esvaziou os pulmões e se esgueirou cautelosamente para o final do corredor banhado de penumbra, sentando-se no chão de tábuas corridas. Mal acreditava que tinha conseguido. Só lhe restava esperar o diretor sair para colocar em prática a segunda fase do plano: pegar e ler o diário.A porta da sala envidraçada se abriu num rangido agudo que assustou Rafael. Passos lentos caminhavam pela biblioteca. Uma cadeira foi arrastada abrindo caminho no grande salão. Rafael fechou os olhos para aguçar a audição. Os passos se direcionaram para o corredor em que o menino se escondia, logo aquele que era o mais afastado da sala de Helmut. O som dos sapatos batendo no assoalho de madeira bombavam nos ouvidos de Rafael. Ele, na tentativa de se

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esconder, encolheu-se o quanto pôde, se apertando contra a última estante que encerrava o corredor. Helmut se aproximava lentamente e estava a uma curva do garoto assustado. O menino podia até ouvir o roçar da roupa do diretor quando ele se movimentava. Rafael prendeu a respiração tentando não produzir nenhum barulho, por menor que fosse, que pudesse chamar a atenção. Um livro foi encaixado na estante. Ele conhecia muito bem aquele som, pois fazia aquilo o dia todo. Os passos começaram a se afastar, deixando Rafael um pouco menos tenso. Agora ele podia ao menos respirar. As janelas de madeira também foram fechadas com trincos de ferro que entravam no batente produzindo um baque seco. Helmut trancou sua sala e desligou um a um os três interruptores deixando o lugar às escuras. Rafael ainda ouviu o girar da chave que confirmou que ele estava finalmente sozinho na imensa biblioteca. O garoto ainda precisava esperar algum tempo, caso Helmut resolvesse voltar.Marc encontrou Chester subindo as escadas de acesso aos dormitórios.— Soube de alguma coisa? - perguntou o francês, ávido por novidades sobre Rafael.— Nada, não vi Rafael depois de hoje à tarde - disse Chester, apressando o passo para chegar mais rápido ao quarto. - A essa hora ele já deve estar com o plano em andamento.A dupla entrou no quarto e encontrou Daniel, sentado, batendo nervosamente um lápis na

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mesa. O inglês se ajeitou na cadeira.— Ele não apareceu até agora, o plano deve ter dado certo — presumiu Daniel.— Ou ele foi descoberto e está na diretoria respondendo a uma série de perguntas — arriscou Marc, sarcasticamente.— Nem brinque com isso — protestou Chester em tom de repreensão.— Rafael é esperto, ele não se deixaria agarrar tão facilmente — disse Daniel, confiando na astúcia do colega.— Não adianta ficarmos fazendo suposições agora - disse Chester, desamarrando os sapatos e os empurrando para debaixo da cama. - Eu acredito na competência de Rafael e amanhã ele vai ter tantas coisas para nos contar que teremos assunto pelo resto de nossas vidas — concluiu com otimismo.— Acho que ele não volta mais — sussurrou Rafael para si mesmo, enxergando somente as silhuetas escuras dos móveis.Era hora de agir. Ele rastejou tateando cuidadosamente até a porta de saída, depois retirou de sua pasta uma toalha de banho e enrolou-a em formato de canudo, usando-a para tampar a fina fresta horizontal que se formava entre o pé da porta e o chão. Em seguida, percorreu pelas sombras em direção ao lavabo e pegou uma pequena toalha de rosto e a pendurou na maçaneta. Ele fez uso das toalhas para impedir que a luz da vela fosse vista por quem estivesse do lado de fora. A vela e os fósforos foram tiradas da pasta e em segundos o

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ambiente tinha luz própria. A tampa de uma lata serviu de suporte para a vela que começava a derramar as primeiras lágrimas de cera quente. A sombra de Rafael rodava pelo salão à medida que ele se movimentava até o gabinete do diretor. Três pequenos arames surgiram do bolso de sua calça; eram os instrumentos necessários para suas mãos habilidosas destravarem qualquer fechadura. Ele escolheu um que melhor se adequasse à primeira fechadura, a da sala de Helmut, introduzindo habilmente a diminuta haste metálica e, pronto: um clic se ouviu. A porta estava aberta. O próximo passo era o armário que ficava logo atrás da mesa de Helmut. Nesse, Rafael teve de lançar mão de um segundo arame, que combinado ao primeiro, desarmou o sistema de duas linguetas que cerravam a porta do armário; o sistema de travas mais parecia a de um cofre. Rafael se sentiu recompensado pelo seu esforço. Um êxtase fez suas mãos tremerem quando seus olhos encontraram o livro negro. O diário estava a poucos centímetros de suas mãos; ele o pegou, colocando-o sobre a mesa e aproximando a vela das páginas amareladas. O lume da vela bruxuleava, dando um aspecto medieval ao ambiente obscuro. Os vidros que envolviam a sala devolviam a pálida chama em reflexos. A fisionomia de Rafael mudava de espanto para admiração numa fração de segundos. Ele mal podia crer no que estava escrito. Não rodia ser verdade, e se fosse, Alexei Martov, o autor do diário, estava certo quando falou que aquela era

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a experiência mais fantástica de sua vida. Ainda havia muita coisa para ler, para conhecer, e a vela estava diminuindo muito rapidamente.Tudo que Rafael lia era fascinante, cada linha merecia a sua total atenção.— Isso não pode ser verdade! — exclamava, perplexo, enquanto umedecia os dedos com a ponta da língua.Rafael apressou a leitura, pulando alguns trechos e se fixando em outros de maior interesse. Dois terços da vela já haviam derretido e ele não havia lido muita coisa. A noite avançava e a cada página ele se deparava com uma nova surpresa. Antes que o último brilho da chama iluminasse o diário, ele se lançou para as últimas páginas, queria saber o desfecho daquela história alucinante. A luz se apagou, não havia mais nada a fazer. O diário retornou ao seu lugar. O rapaz teve que se esforçar dentro da escuridão da biblioteca para deixar tudo como estava, sem vestígios da sua visita. A única prova da sua presença era o cheiro de cera queimada que deveria desaparecer pela manhã. Pelo menos era isso que ele imaginava. Auxiliado mais uma vez pelo tato, ele voltou ao fundo da biblioteca e se deitou no assoalho duro e frio, fazendo de travesseiro a sua pasta de couro. Rafael procurou dormir, mas sua excitação era muito grande, fazendo os seus pensamentos rodopiarem, tentando digerir o que acabara de ler.Começo a compreender porque o Sr. Helmut lê tantas vezes esse diário — pensou ele, dando

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sentido às coisas. Os rapazes não vão acreditar quando eu lhes contar o que descobri.

Capítulo 11Segredos Revelados

A algazarra dos pássaros prenunciando a alvorada despertou Rafael de seu breve sono. Ele só conseguiu dormir umas poucas horas quando finalmente o cansaço o venceu de tanto esperar clarear o dia. A biblioteca ainda se encontrava na penumbra quando ele se levantou, passou a mão em sua pasta e foi até a saída, grudando o ouvido na porta e procurando detectar a presença de um possível monitor indesejável. Não ouviu nada.- Tenho que sair daqui logo — disse para ninguém, num tom quase inaudível.Rafael pegou do bolso um de seus pequenos arames e, mordendo o lábio, forçou o mecanismo interno da fechadura da biblioteca até destravá-lo por completo, depois girou a maçaneta lentamente, enfiou a cabeça para fora se certificando se a passagem estava livre. Ninguém. Ele fechou a porta cuidadosamente quando saiu e fez o processo inverso, travando o mecanismo. Pé ante pé se esgueirou pelo cor-redor, passando pelo lado do jardim que já revelava seu colorido, ainda tênue pela ausência plena da luminosidade matinal. O cheiro da manhã era bom e suave. Passos apressados vinham em sua direção, obrigando-o a se

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esconder atrás de uma das colunas que margeavam o florido pátio interno. As passadas ligeiras cruzaram por ele e se distanciaram até sumirem por completo. Ele só conseguiu identificar quem era quando se esticou e viu um monitor apressado sumir nas sombras. Olhou uma última vez as altas paredes de janelas que cercavam o jardim interior da escola, não deveria haver nenhum aluno acordado. Rafael dobrou outro corredor e se arrastou junto às paredes, fazendo de tudo para evitar ser um alvo fácil aos olhos dos monitores da noite. Quando chegou ao saguão de acesso às escadarias do segundo pavimento, se assustou com outro homem, vigilante, que estava em pé, de costas para ele. O coração de Rafael quase saltou do peito. Ele recuou de costas e se espremeu em um espaço côncavo na parede, ocupado por um vaso grande e pesado que acomodava uma planta de folhas largas. A chegada da manhã clareava cada vez mais as formas dos objetos, tornando a presença do menino naquele lugar muito perigosa. Finalmente o monitor saiu dali para realizar sua vigia em outras paragens. Aquela era a oportunidade de Rafael abandonar seu parco esconderijo e ganhar as escadas. Ele escapou cuidadosamente como uma serpente que desliza pelas frestas. Mal começou a subir os degraus e novamente ouviu alguém se aproximando, agora vindo do andar que ele tentava chegar a todo custo. Não havia mais condições de se esconder, seria inevitavelmente descoberto. Numa

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manobra rápida, ao invés de subir, Rafael fez meia-volta e fingiu estar descendo.— Aonde vai tão cedo, rapaz? — interpelou-o o monitor que fazia a ronda na ala masculina, a voz severamente inquiridora vinha do alto da escada.— P-Pensei em ir à biblioteca - respondeu Rafael, com voz tremida. - Perdi o sono e gostaria de achar algo para ler.— Ainda está muito cedo, garoto - disse o monitor, os braços cruzados sobre o peito e as pernas afastadas. — A biblioteca só abre daqui a duas horas e você não pode ficar circulando por aí fora do horário, sem permissão.— Sim, senhor - obedeceu sem resistir, voltando a subir e passando pelo monitor sem encará-lo.— Como você saiu do seu quarto sem ser notado? - perguntou o homem num tom severo, segurando Rafael pelo ombro.— Não sei... Acho que o senhor estava de costas, caminhando para o fundo da ala e por isso não me viu sair.O monitor, de queixo largo, cerrou os olhos, pensando se acreditaria na versão do menino.— É... Pode ser... - disse, aceitando a explicação meio a contragosto. Depois, ficou aguardando até Rafael abrir a porta de seu quarto para dar continuidade à ronda.Era tudo o que Rafael queria: ser mandado para o seu quarto pelo próprio monitor, sem ter que inventar estratégias mirabolantes para despistá-lo.Quando a porta se abriu, Marc, Chester e Daniel, acordaram ao mesmo tempo, tomando um susto

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ao verem seu amigo de volta. Os três pularam de suas camas.— Você está parecendo um urso-panda — comparou Chester, se referindo às enormes olheiras que Rafael ganhou em apenas uma noite que passara praticamente em claro.— Falem baixo - preveniu Rafael. - Agora mesmo me livrei de um monitor que pode muito bem estar, nesse momento, com a orelha pregada na nossa porta, ouvindo a nossa conversa.— Como se saiu? — indagou Daniel, preparando um arsenal de perguntas para fazer.Rafael espreguiçou o corpo doído do chão duro da biblioteca, antes de falar.— Se preparem - anunciou, causando expectativa. - Pois o que vou revelar, vai deixá-los embasbacados.— Então diga logo - apressou-o Marc, perdendo a paciência. — Não temos o dia todo.Rafael sentou-se e da beirada de sua cama passou a contar o que descobriu.— Li o máximo que pude, até a vela se apagar. O diário fala mesmo de uma grande jornada realizada pelo antigo diretor dessa escola, Alexei Martov, o homem do retrato. Até aí nada demais, mas o que torna a viagem impressionante é onde e de que forma ela acontece.— Você poderia ser mais claro? — protestou Chester, com objetividade.— Náo se preocupem — disse Rafael com tranqüilidade. - Não vou deixar escapar nenhum detalhe — seus olhos brilhavam. — Em algum lugar nessa ilha se esconde uma passagem, uma

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espécie de portal, que permite que as pessoas se transportem para um outro mundo, muito diferente do nosso. Há alguns anos, Alexei Martov atravessou esse portal por acidente, pelo que eu entendi, indo parar numa terra habitada por povos estranhos e seres extraordinários. Ele atravessou desertos e vales; cruzou rios e transpôs enormes montanhas, e de alguma forma conseguiu voltar ao nosso mundo depois de quase um ano de sua penosa jornada. O saldo dessa extraordinária viagem foi a perda de um olho, vários ferimentos que quase o mataram e uma fantástica história que ele transcreveu para aquele diário e que, aparentemente, é o único registro da existência desse mundo fabuloso.— Isso explica o comportamento esquisito de várias pessoas por aqui, a começar pelo diretor - refletiu Chester, esfregando as mãos nervosamente.— O que mais você leu? — indagou Marc, querendo que Rafael retomasse imediatamente a narrativa.— Alexei descreveu seres que só existem na nossa imaginação. Uma coisa me chamou a atenção — disse, contraindo o cenho. — Foi um animal alado com garras afiadíssimas que o deixou cego. Ele fala desse animal estranho, como uma fera com enormes asas e cabeça de ave de rapina e um majestoso corpo de leão.— O grifo! — maravilhou-se Daniel, boquiaberto.— Ele também relata que apesar do ferimento que lhe custou uma vista, o respeito que aprendeu a ter por aquele belo animal era enorme.

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— De um outro animal ele fala com especial admiração — continuou Rafael, voltando-se para Chester: — Um cavalo... Um imponente e maravilhoso cavalo com asas.— Um cavalo alado! - exclamou Chester, estupefato.— Isso mesmo, Chester! Ele descreve em suas memórias, que viu um animal desses apenas uma vez, planando majestosamente sobre sua cabeça. Depois, bateu vigorosamente as asas e desapareceu entre as nuvens.Chester acompanhava extasiado o relato de Rafael. Ele daria tudo para ter um momento assim. A veneração que tinha pelos eqüinos merecia ser coroada com uma cena daquela magnitude.— Que outras coisas ele viu? — quis saber Marc, com olhos atentos.— Alexei mencionou lugares de uma beleza impressionante, como ele nunca havia visto antes. Cidades magníficas em meio a uma natureza exuberante. - Descrevia Rafael, procurando usar as palavras de Alexei e tentando lembrar-se de mais coisas. - Algumas dessas cidades eram, ou são habitadas, por seres com características físicas e culturas diferentes de qualquer povo que habita o nosso planeta.— Então, talvez esse portal seja uma passagem para um outro planeta - especulou Chester.— Ou quem sabe, para um outro universo — Daniel foi ainda mais longe.— Não sei - posicionou-se Rafael. - Pode ser que essa história nem seja verdadeira. Talvez seja

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tudo uma grande mentira criada para algum fim que desconhecemos.— Você acha mesmo isso, Rafael? - perguntou Marc, duvidando.— Sinceramente, não. Alexei escreveu com tanta convicção e riqueza de detalhes que dava a impressão de que eu estava lá, vivendo o que ele viveu.— Como é esse... portal a que Alexei se refere? - perguntou Chester, apoiando-se com um cotovelo sobre a cama.— Alexei quase não fala sobre isso. Está claro que ele não escreveu o diário para ressoas como nós, mas sim para um grupo de iniciados que sabiam muito bem co portal, como ele, e que trabalham para manter essa incrível história e a entrada para esse fabuloso mundo em total segredo - deduziu Rafael, fazendo uma pausa, depois continuou: — No final de sua grande aventura, que quase tirou a sua vida, Alexei fez menção a um outro portal por onde ele conseguiu retornar.— E ele não poderia voltar pelo mesmo? — perguntou Daniel, se dando conta de um pormenor que considerou importante.— Alexei também não esclareceu essa parte, mas tudo indica que a passagem que está escondida na Ilha da Coroa só permite a viagem de ida.— Então, podemos deduzir que existe uma segunda passagem por onde ele voltou, que pode estar em qualquer lugar no nosso mundo - avaliou Marc, pondo o dedo em riste.— Provavelmente, sim — concordou Rafael, esfregando o rosto cansado. — Mas cisso, ele não

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falou no diário. Se bem que muitas páginas do livro ficaram sem ser lidas. Não havia tempo.— E agora, o que faremos? - disse Marc, jogando a pergunta no ar.— Vocês não acham que já fomos longe demais? - perguntou Rafael, dando graças por ter retornado de sua pequena aventura, ileso.— Se quisermos prosseguir com isso, o próximo passo seria descobrir o local onde está o portal - disse Chester, começando a se vestir.— Tudo leva a crer que a tal passagem fica, ou na sala proibida em que Júlio viu o grifo de pedra, ou em qualquer lugar dentro da floresta — refletiu Daniel, digerindo todas as informações que Rafael havia passado.Rafael ficou pensativo, olhando para o nada. Depois comentou em conclusão:— A jornada de Alexei foi marcada por muitas dificuldades. Por diversas vezes ele achou que não conseguiria voltar, e só não desistiu porque desejava que todos os membros dessa... sociedade secreta soubessem o que há do lado de lá - disse, depois deu um longo bocejo mostrando o seu cansaço. - Da forma que ele escreveu, é claro que nunca, nenhum outro homem retornou depois de ter atravessado o portal. Ele foi o primeiro.— Vou sair um pouco — disse Daniel, indo até a porta. - Quero ver se me vem alguma inspiração. Algum de vocês me acompanha?— Eu vou! — disse Chester, terminando de calçar os sapatos.

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— É melhor você dormir um pouco, Rafael - disse Marc enquanto acompanhava Daniel e Chester.— Vou aceitar o seu conselho - concordou, sorrindo e se ajeitando na cama.O trio desceu cochichando, atravessou os corredores, tomando todo o cuidado para que ninguém mais ouvisse a conversa sigilosa. Quando andavam pelo jardim interno, Daniel olhou rapidamente para trás.— O que foi? - perguntou Chester para Daniel, e também olhou para trás.— Tive a sensação de estar sendo observado — disse, desconfiado.Os três esquadrinharam o lugar, mas não viram nada.— Deve ser só impressão — disse Marc, ainda olhando em volta.— É... talvez seja isso mesmo — disse Daniel, mas seu olhar contrariava suas palavras. — Vamos para o pátio da praia, me sinto mais seguro em lugar aberto.Não havia ninguém lá. Poderiam elevar a voz que não seriam ouvidos.— Pois bem, já perdemos muito tempo com isso — disse Chester, indo direto ao que interessava. — Qual o próximo passo agora?— Só vejo uma possibilidade — disse Daniel com os olhos azuis vidrados. — Já que não sabemos como penetrar na floresta sem sermos vistos, só nos resta entrar na sala do grifo.— E como poderemos fazer isso? — perguntou Marc, exibindo um sorriso incrédulo.

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— Da mesma maneira que fizemos com a biblioteca — disse Daniel olhando firme para Chester e Marc. - Com a ajuda de Rafael!— É arriscado demais — retrucou Chester, balançando a cabeça negativamente. - Ele não vai aceitar mais essa missão. Isso só poderia ser feito durante a madrugada e a distância entre o nosso quarto e aquela sala misteriosa é muito grande, principalmente sem a claridade para nos guiar.— Chester tem razão, Daniel - interveio Marc, cauteloso dessa vez, ciente do perigo da missão que Daniel havia proposto. — A probabilidade de alguém ser visto numa situação dessas é enorme e, além disso, não sabemos ao certo o que acontece no piso inferior durante a noite. Mesmo Rafael só conseguiu permanecer lá embaixo trancado na biblioteca.Daniel respirou fundo, preparando-se para apresentar seus argumentos.— Faz algum tempo que venho reparando que a sala do grifo não recebe nenhuma proteção especial. Nunca vi nenhum monitor de sentinela por lá. - Daniel passava a mão pelo tampo de madeira bruta da mesa redonda. - Tenho a impressão de que eles estão tão seguros que aquela sala é inviolável e que nenhum aluno seria louco de tentar chegar perto, que a atenção deles se volta toda para a floresta muito mais vulnerável a ser invadida, pela sua enorme extensão e por não possuir trancas, por causa disso eles acabam deixando a sala totalmente desguarnecida.

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— Você sabe que não tem como dar seqüência a esses planos sem envolver Rafael - disse Chester, inclinando-se para frente e desse modo fazer valer o seu ponto de vista. — Como pretende fazer se ele não concordar em participar de mais esse plano arriscado?— Então eu não vejo outra alternativa a não ser desistir. Não consigo enxergar outra maneira de levar isso tudo adiante. Mas antes quero falar com ele — disse Daniel, observando as gaivotas que sobrevoavam a praia. — Querem saber? Rafael já está tão envolvido quanto nós. Eu vejo isso em seus olhos. Depois que ele experimentou o perigo na pele, duvido que não esteja nessa conosco.— Daniel — disse Marc, tirando o seu amigo dos pensamentos —, se Rafael aceitar, eu vou com vocês. — Chester não disse nada, se limitando a suspirar profundamente. Não sabia que posição tomar àquela altura.Os três amigos subiram para o quarto e encontraram Rafael dormindo pesadamente. Sua respiração era forte, quase um ronco.— Ele está mesmo cansado - constatou Chester, torcendo a boca.— Mas temos que falar com ele agora, não há mais nenhum tempo a perder — disse Daniel resoluto. - Rafael! Vamos, acorde!— Ahn... — Rafael abriu os olhos com dificuldade. Estava zonzo de sono. - O que houve?— Decidimos fazer uma coisa e queremos sua opinião - disse Daniel, recostando-se no beliche em frente. Quase numa atitude de intimidação.

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— Mas tem que ser agora? — disse Rafael relutante enquanto esfregava os olhos.— Depois você dorme mais — insistiu Daniel, decidido a resolver aquilo de uma vez por todas.— Tá bom — disse Rafael, apoiando-se nos cotovelos, os olhos semicerrados, a luz do dia o incomodava. — Sei que vocês não vão me deixar dormir mesmo. O que querem?Daniel contou por alto o que pretendia fazer. Ainda faltavam os detalhes que seriam pensados se Rafael aceitasse tomar parte da aventura. Marc e Chester prestavam atenção nas reações do amigo sonolento que ouvia com um ar de desconfiança.— Então... O que você acha? — perguntou Daniel, ansioso por uma resposta, de preferência, positiva.— Esperem um pouco - disse Rafael, procurando pôr ordem nas idéias. — Eu estive lá embaixo e vi monitores por todos os lados - Rafael sentou-se na beirada de sua cama, o sono tinha ido embora. — A distância até a sala é o dobro da distância que separa esse quarto da biblioteca.Talvez eu não tenha tanta sorte em uma segunda vez.— Se você concordar eu irei junto - disse Daniel, prontificando-se. - Dessa vez não deixarei você ir sozinho.— E de que adianta alguém ir comigo? Se nos pegarem estamos fritos. E quanto mais gente andando por aqueles corredores escuros, mais chance de dar tudo errado. Além disso, as aulas começam amanhã, Daniel - lembrou Rafael,

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coçando o ombro. — Tenho de voltar a estudar no mesmo ritmo de antes.— Então entraremos na sala do grifo essa noite! — disse Daniel, entusiasmado. — Posso providenciar todo o material necessário. O dia está claro e a noite vai ser de lua cheia, provavelmente sem nuvens. Isso facilitará os nossos movimentos pelos corredores.— E também vai possibilitar que nos vejam mais facilmente — provocou Marc, seu olhar ia de Daniel para Rafael.— O que está havendo com você, Marc? — disse Daniel, surpreso. — Está desistindo?— Claro que não estou desistindo! - exclamou Marc, rindo. — Só pensei alto.O francês apreciava avaliar todas as alternativas, e isso o fazia parecer contundente.Daniel voltou-se para Rafael.— Então, o que você me diz?— Sabe de uma coisa - disse Rafael, olhando fixamente para Daniel. - Acho que vou me arrepender pelo resto da minha vida, mas... estou com vocês.— Ótimo! — Daniel vibrou intensamente. - Tenho bastante tempo para conseguir algumas coisas que nos serão úteis. Antes do almoço eu me encontro com vocês.O quarto voltou a ter apenas a presença de Rafael. Uma sensação confusa de arrependimento, excitação e medo esmagou seu coração.— Vai começar tudo de novo — resmungou Rafael. Sua curiosidade e fascinação pelo desconhecido

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falaram mais alto.Rafael foi até o armário e pegou a santinha que sua mãe havia lhe dado, depois colocou-a sobre a mesa e ficou olhando para ela, lembrando de sua família.— Hoje eu vou precisar de muita proteção - sussurrou ele, correndo o dedo indicador pela pequena imagem de metal.Daniel entrou de forma sorrateira no depósito da manutenção. Ele ainda tinha acesso livre, apesar da saída de Júlio. Em poucos dias deveriam arranjar-lhe outro tutor. Enquanto isso, ele estaria livre para circular por toda a área reservada aos funcionários que mantinham a escola funcionando, desde que não levantasse nenhuma suspeita ou fizesse algo errado.— Deixe-me ver - murmurou ele remexendo nas bancadas e estantes. - Lampião... fósforos... bússola... também vou precisar de uma corda - disse baixinho vasculhando o depósito repleto de quinquilharias. - Aqui está, essa deve servir - sussurrou, guardando tudo em uma sacola.Quando se preparava para sair, Daniel ouviu um ruído vindo do lado de fora. Ele se apressou, mas não viu ninguém.Essa pressão toda está me fazendo ouvir coisas — pensou ele, abandonando o depósito, torcendo para não ser visto.Uma hora e meia depois, os quatro companheiros de aventura se encontraram novamente, dessa vez no refeitório.— Guardei tudo o que vamos utilizar, bem debaixo da cama - avisou Daniel, enrolando alguns fios de

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espaguete no garfo. — Após o almoço, voltamos a nos reunir e acertar os detalhes para hoje à noite.Rafael sentiu um frio na barriga. Ele estava aprendendo a viver sob tensão.Em seguida, se viam reunidos no pátio da praia, debaixo de um sombreiro de copa muito larga, que estendia sua sombra por vários metros.— Não temos muitas horas para colocar o plano em prática — disse Marc, excitado com a nova aventura que estava por vir.— Minha sugestão é a seguinte — preparou-se Daniel, animado em expor o que havia arquitetado durante toda a manhã. — Esperaremos até a primeira hora da madrugada e aí desceremos. Eu percebi, todas as vezes que fui ao banheiro após esse horário, que o segundo pavimento fica vazio. Imagino que o monitor do andar se recolha por uns tempos após verificar que está tudo sob controle.- Pode ser — concordou Chester. — O número de monitores não é muito grande, e só alguns permanecem à noite dentro do prédio. A maioria deve ficar cuidando dos limites da floresta, enquanto os demais dormem.- Uns poucos assumem seus postos bem cedo, antes que os alunos acordem - completou Rafael. — E o que deve ter acontecido quando eu estava saindo da biblioteca hoje pela manhã.- Será uma jornada pelo desconhecido — disse Chester, brincando com o lóbulo da orelha. - Temos que estar bem preparados para eventuais surpresas.

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- Você também vai? - perguntou Daniel, espantado.- E por que não? - retrucou Chester, indignado. - Não somos uma equipe?- É claro que somos — concordou Daniel. - É que você ainda não tinha se manifestado se iria ou não com a gente.- Pois dessa vez eu vou junto. Quero ver com meus próprios olhos o que existe por trás daquela porta. Chega de ficar sabendo das coisas pelos outros — desabafou Chester, os olhos estreitados.- Muito bem — disse Daniel, o corpo empertigado. — O que acontecer de bom ou de ruim, vai atingir a todos. A equipe do quarto 21 vai entrar em ação! - concluiu em tom solene.- Eu tenho que ir agora - disse Marc, passando as pernas por cima do comprido banco de madeira. - Os membros da orquestra estão me aguardando para um ensaio. A nossa apresentação está se aproximando e não quero que ela seja um fiasco.- Nos encontramos à noite para os últimos preparativos — disse Daniel, elevando um pouco a voz para que Marc, que já estava se afastando, pudesse ouvir.- O que você tem, Chester? - perguntou Rafael, notando a fisionomia preocupada do amigo cavaleiro.- Não sei por que tive a sensação de que Marc não vai participar dessa apresentação — comentou com voz melancólica.

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- Vire essa boca pra lá - protestou Daniel. - Vai dar tudo certo, você vai ver.Aquela tarde pareceu mais silenciosa do que todas as outras, como se fosse umpresságio de algo avassalador que transformaria a vida dos quatro garotos.

Capítulo 12A Sala Proibida

O último dia das curtas férias estava acabando. A noite se aproximava e as rrimeiras estrelas, brilhantes como nunca, despontavam em um céu limpíssimo,- Teremos um lindo céu estrelado essa noite — comentou Chester, olhando pela anela e vendo a enorme lua surgir por trás do oceano.- Onde será que se meteu o Marc? — questionou Daniel com aflição na voz. — Já era para ele estar aqui.Rafael se mantinha calado, roendo as unhas, como era comum nessas horas.A porta se abriu discretamente. Marc havia chegado.- Onde você esteve? - perguntou Daniel com rispidez.- Não pude escapar de uma reunião com o Sr. Ramón - justificou-se Marc, jogando sua sacola

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sobre a cama. — Ele me encheu de recomendações novamente.Está apreensivo com a apresentação.- Tudo bem. Então vamos logo definir as coisas - disse Daniel, impaciente. - Alguém quer desistir?Rafael ameaçou falar alguma coisa. Daniel interrompeu:- Você não, Rafael!- Não é isso - explicou-se então. - Eu só ia perguntar se alguém tem um curativo. Acabei de ferir o dedo de tanto roer as unhas.- Poupe seus dedos - preveniu Marc, pegando uma atadura no armário e atirando para o companheiro. - Precisaremos de cada um deles para abrir aquela porta.- Acho melhor usarmos roupas escuras - sugeriu Chester. - Elas serão úteis para que não sejamos notados com facilidade.- Boa idéia! — exclamou Daniel. — Eu consegui alguns apetrechos, indispensáveis para o sucesso da operação — Daniel se agachou e pegou o material que havia guardado debaixo da cama. — Um lampião, fósforos, bússola e uma corda.- Será que isso é suficiente? — perguntou Marc, desenrolando a corda e verificando o seu comprimento.- Acho que sim - disse Daniel, remexendo no material. - Mas o mais importante é que as ferramentas de Rafael estejam bem afiadas.- Quanto a isso não há problema — disse Rafael, com segurança. — A minha dúvida, é se conseguiremos chegar até a entrada da sala sem

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que ninguém nos veja. O resto deixem por minha conta.Os meninos separaram as roupas mais escuras de que dispunham...- Eu não tenho uma camisa escura — disse Rafael, vasculhando o interior do guarda-roupa.- Eu te empresto uma - disse Marc, estendendo-lhe uma de mangas compridas.- Pronto! — disse Daniel, satisfeito. — Agora é só esperar.Por um tempo, todos ficaram em silêncio como se estivessem aguardando a sua vez para caminharem até à forca.- Tentarei dormir um pouco - disse Rafael, se recostando em sua cama, ele ainda não tinha recuperado totalmente a noite mal-dormida. As luzes se apagaram. Eram nove horas da noite. - Me acordem quando chegar a hora.- Não sei como ele vai conseguir dormir — comentou Chester, sussurrando para Marc. — Eu não conseguiria num momento como esse.- O cansaço o derrubou - disse Marc, batendo a ponta do pé no chão. O francês tentava diminuir seu nervosismo respirando fundo.As horas passavam. De vez em quando, ouvia-se os passos do monitor fazendo a sua ronda.Ele logo vai embora — pensou Daniel, torcendo para que sua previsão estivesse correta.- Vou ao banheiro — disse Chester, se levantando.- Não com essas roupas escuras — disse Daniel. — Quer nos denunciar?Chester vestiu o seu velho pijama e saiu do quarto, nem deu o primeiro passo e viu o monitor

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em seus calcanhares; num aceno sem graça, cumprimentou o homem que respondeu com um movimento discreto de cabeça. Chester, já dentro do banheiro, ficou se olhando no espelho, esperando o tempo passar, depois abriu a torneira e jogou um pouco de água no rosto. Quando retornou, o monitor o aguardava ao lado da porta do banheiro. Chester fez outro aceno e retornou ao quarto.- Ele ainda está lá - disse irritado.- Calma! - disse Daniel para tranquilizá-lo. - Ainda está cedo. Não são nem onze horas.- É melhor ninguém sair de novo - aconselhou Marc. - Ou aquele abutre ficará desconfiado com tanto movimento.A lua cheia ganhava altura e iluminava a noite.Meia-noite e os passos lá fora ainda eram ouvidos. Daniel esfregava a testa concentrando-se nos ruídos que vinham do corredor. A cada dez minutos, passadas denunciavam a presença do indesejado vigia. Faltavam cinco minutos para a primeira hora da madrugada. Não se notava mais nenhum sinal do inconveniente vigia.- Vou dar uma olhada - murmurou Daniel. - Acho que ele já foi embora.Cinco minutos depois Daniel voltou apressado.- Chegou a hora, a ala está livre. Acordem o Rafael.Marc sacudiu Rafael, que acordou sobressaltado. Ser despertado em tais circunstâncias era praticamente um choque.- Apresse-se. Vamos descer agora — disse Marc, com sua roupa preta quase invisível na

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escuridão.O primeiro a sair, carregando as ferramentas foi Daniel, seguido de Chester. Em iiguida vinha Marc e finalmente Rafael que fechou a porta tomando todo o cuidado rara não fazer nenhum barulho. Eles caminharam rapidamente até as escadas e, pelos vãos do corrimão, do alto, averiguaram o saguão no primeiro pavimento.- Também não há ninguém. Depressa, antes que alguém apareça - disse Daniel sibilando as palavras, sua mão direita gesticulando sem parar, chamando os companheiros para que descessem.Uma última olhada foi arriscada por Rafael para o corredor escuro da ala reminina. Ele não percebeu a presença de ninguém. Temia a perigosa Elvira, aparecendo e estragando tudo.Do saguão eles se esgueiraram pelo corredor comprido que margeava o jardim interno. O luar projetava sombras indefinidas por entre os arbustos, fazendo parecer figuras humanas espreitando o deslocamento furtivo dos garotos. Duas armaduras medievais, empunhando espadas com as pontas apoiadas no chão, fizeram os meninos gelarem por um segundo. Felizmente era alarme falso. Parecia que todos r.o prédio estavam dormindo. Eles tomaram outro corredor e passaram em frente à biblioteca. O próximo corredor era tão extenso como o primeiro, mas muito mais escuro. Uma luz tênue iluminou o final do corredor em que eles estavam. Alguém se aproximava. O quarteto

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ficou sem ação. Estavam no meio do caminho, e se começassem a correr, seriam descobertos.- Vamos, se metam debaixo daquele balcão - disse Chester, apontando para um aparador, um desses móveis compridos que servem para se colocar louças, candelabros e outras peças decorativas.Eles se enfiaram debaixo do móvel, ocultados por uma toalha verde oliva que cobria toda a extensão do móvel. Só conseguiram ver os sapatos quando o homem cassou e parou na frente deles. Os olhos dos meninos se arregalaram. O vigia arrumou a toalha que estava dobrada e voltou a caminhar.Essa passou perto — pensou Daniel, aliviado.-Andem logo, pessoal! - sussurrou Marc, agora liderando a fila. - Falta pouco. Cuidado para não derrubarem nada. Isso tudo aqui é de metal. - Mal acabara de falar e o francês esbarrou em um castiçal de prata que foi direto para o chão. Marc cerrou os dentes, esperando ouvir o barulho que os denunciaria. Nada se ouviu. Ele olhou para baixo e viu Chester agachado, segurando a peça metálica com as duas mãos. - Boa, amigo! Te devo essa!Quando finalmente cruzaram o corredor, eles chegaram ao salão principal, imenso e ameaçador. Os retratos, mal iluminados pela luz da lua que penetrava pelas estreitas janelas de vidros em mosaico, pareciam olhá-los de maneira acusadora, como que condenando-os por profanarem o sossego daquele lugar. Eles contornaram o saguão, evitando atravessá-lo

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pelo seu centro, onde seriam alvos mais fáceis. Todos estavam nervosos. Só faltava o último corredor que antecedia a sala misteriosa. O corredor tinha poucos metros e terminava numa curva seca para a direita.- A porta! - exclamou Daniel, olhando-a como se admirasse um quadro famoso. - É exatamente como Júlio descreveu.Rafael se aproximou, examinando a pesada fechadura, depois pegou o volumoso cadeado nas mãos e passou a girá-lo de um lado para o outro, querendo conhecer o seu mecanismo.- Mãos à obra - disse ele, tirando as pequenas hastes de metal do bolso. - Primeiro a fechadura da porta.Chester permaneceu na curva do corredor, atento a uma possível surpresa.Rafael se esforçava para destravar a fechadura, mas a tensão e o dedo enfaixado dificultavam o seu trabalho.- Abre logo isso! - pressionou-o Daniel, impaciente com a demora.- Não me apresse! — exclamou Rafael, nervoso, gotas de suor escorriam das suas têmporas.- Preciso de luz aqui — disse ele com voz trêmula. - Está muito escuro, não consigo ver nada.- Não podemos ligar o lampião agora - protestou Daniel, tinha o rosto carrancudo. - Seria mais discreto se eu soprasse um apito.- Só um fósforo - insistiu Rafael. - Por uns míseros segundos.- Chester, vá até o início do corredor e veja se não há ninguém no saguão - disse Daniel,

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prontamente atendido pelo americano.O fósforo foi riscado e o clarão momentâneo foi suficiente para Rafael se orientar melhor. Um clique grave anunciou a abertura da porta.- Agora só falta o cadeado — disse Rafael, avaliando melhor a peça de aparência grosseira. Dessa vez ele fechou os olhos e introduziu dois pequenos arames e em segundos o arco de metal se soltou da trava.Marc e Daniel retiraram cuidadosamente a corrente dos dois elos de ferro. A porta estava aberta. Marc chamou Chester que logo se uniu ao grupo.A porta foi aberta apenas o suficiente para que os meninos entrassem e tornassem a fechá-la, mas mesmo assim, não foi possível evitar um áspero som de porta rangendo. A escuridão dentro da sala era total e o cheiro úmido e abafado deveria ser parecido com uma tumba sendo aberta após mil anos.- Acenda logo esse lampião — exigiu Rafael, cobrindo a fresta inferior da porta com uma toalha que ele mesmo havia trazido. Um outro pano foi pendurado na maçaneta, cobrindo o buraco da fechadura.Quando Daniel acendeu outro fósforo, revelou-se uma sala vazia, com paredes descascadas pelo tempo e no fundo, lá estava, o grifo de pedra. Júlio provara ser um bom observador.O lampião foi aceso deixando as formas mais nítidas. O grifo devia ter um metro e vinte centímetros de altura por um metro de largura e mais um metro de comprimento. Ele parecia ter

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sido esculpido em granito ou outra pedra resistente. Daniel se aproximou da figura de pedra e se agachou, pousando o lampião ao seu lado. Marc também se aproximou, tocando a estátua de pedra fria que exibia a rabeca baixa e um olhar penetrante e inabalável. O animal lendário estava sentado sobre as patas traseiras e a pata dianteira direita se encontrava erguida, como que apoiada em algo inexistente.Daniel se pôs a examinar o grifo mais detalhadamente, procurando alguma alavanca ou dispositivo que pudesse ser acionado. Ele forçou a pata erguida, empurrando-a para baixo, mas ela não cedeu nem um milímetro.Chester se aproximou um pouco mais para ver melhor.- Parece haver uma fresta na altura do pescoço — disse ele, observando de um angulo diferente, por cima da criatura mitológica.- Pode ser um sistema duplo de alavancas - opinou Rafael à distância.- Acho que entendi o que você quer dizer - concluiu Marc, agarrando com firmeza a cabeça da estátua.- Deve ser isso mesmo. — Manifestou-se Daniel, segurando novamente a pata suspensa. — Quando eu der o sinal, vamos fazer o movimento inverso, você tenta erguer a cabeça e eu empurro a pata do bicho para baixo. Está pronto? Agora!Eles acertaram em cheio. Quando terminaram o movimento, o grifo começou a recuar para dentro da parede atrás dele, deixando à mostra uma

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passagem subterrânea onde segundos antes ele repousava.- Onde será que vai dar isso? - especulou Rafael, se esticando todo sobre Daniel e Marc.- Só saberemos quando entrarmos - deduziu Chester, olhando com curiosidade o sombrio túnel vertical.Daniel pegou o lampião pela alça e o introduziu no buraco.- Tem uma escada aqui, vamos descer — disse ele, com metade do corpo já dentro do túnel.Chester foi o último a descer e não evitou um comentário.- O ar está pesado, acho que esse túnel não é usado há anos.Daniel ergueu o lampião, mas não conseguia ver o fim do corredor mergulhado na escuridão. O túnel não tinha mais do que um metro e oitenta de altura por um e meio de largura. Uma pessoa mais alta teria dificuldade de andar por ali. Marc estimou que eles haviam descido uns cinco metros abaixo do solo.- Vamos em frente — disse Daniel, começando a caminhar - quero ver onde isso acaba.Daniel passou o lampião para Chester e retirou uma bússola do bolso da calça.- A bússola aponta para o oeste - anunciou ele com um sorriso de satisfação.- Estamos indo para a floresta.A respiração era difícil. O túnel parecia não receber muita ventilação.-Acho que já percorremos uns cem metros - calculou Marc, passando as mãos pelas paredes e

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pelo teto de pedras retangulares com mais de um metro cada uma e unidas, aparentemente, apenas por encaixes, sem nenhum tipo de argamassa.A caminhada continuava, o túnel parecia interminável.- Pelos meus cálculos, já devemos ter percorrido mais de quatrocentos metros - disse Marc, atento para não perder a contagem.Andaram mais trezentos metros e nem sinal do fim do túnel. Mais uns cem metros e o caminho deixou de ser constituído de pedras regulares e passou a ser formado por rocha sólida, escura como chumbo. Daniel parou por um instante, interrompendo a marcha dos demais, e olhou para o teto, pondo-se a examinar a formação rochosa.- Estamos debaixo do monte Cabeça do Rei - disse ele. — Acho que estamos chegando perto do nosso objetivo.- Vamos seguir em frente - disse Chester, reiniciando a caminhada. — Já são duas e quarenta da manhã — avisou, depois de consultar o relógio. — Não podemos perder mais tempo.O grupo prosseguiu atravessando o interior do monte rochoso, a escuridão ainda se estendia à sua frente. A bússola continuava indicando o sentido oeste. O túnel era mesmo uma grande reta, atravessando a praça de esportes, passando por sob a floresta e penetrando o Cabeça do Rei. Algumas dezenas de passos depois, Chester viu alguma coisa adiante, seus

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olhos ainda não conseguiam definir o que era. Ele se aproximou mais e pôde ver finalmente o término do imenso túnel.- Uma escada! - constatou Marc. - Igual a que descemos lá atrás.A escada parecia levar de volta à superfície.-Vamos subir - disse Chester, passando o lampião para Rafael. - Eu vou primeiro.Ao atingir o topo da escada, Chester se deparou com uma espécie de alçapão de pedra. Ele empurrou-o para cima usando as duas mãos e a cabeça como apoio e o tampo cedeu. Não havia dobradiças e a cobertura de pedra teve que ser deslizada para o lado, produzindo um som áspero de pedra contra pedra. Chester apoiou-se nas bordas da saída e subiu. Estava tudo escuro, mas o ar era bem mais leve e fresco.- Me passem o lampião - disse Chester, apertando os olhos, tentando enxergar alguma coisa.A mão de Rafael surgiu do buraco, portando o lampião que espalhou uma luz amarelada, fazendo surgir diante dos olhos deles uma caverna mais ou menos circular. A caverna tinha cerca de cinqüenta metros de diâmetro por uns oito metros de altura. Uma passagem estreita se abria em um dos lados, para um corredor que parecia estar lacrado; provavelmente era a saída do interior do monte Cabeça do Rei direto para a floresta.O último a subir foi Daniel, que juntou-se aos outros e também passou a percorrer com o olhar, averiguando minuciosamente cada canto, cada detalhe. Mas o que mais lhes chamou a atenção,

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foi um disco, aparentemente feito de uma rocha estranha, tão negra como eles nunca tinham visto antes. O disco que ficava rente ao chão tinha uns quinze metros de diâmetro e era perfeitamente circular. Suas formas se destacavam do restante do piso irregular, pois era tão liso como um espelho de cristal. Chester se aproximou da beirada da enorme circunferência negra cravada no chão de rocha bruta e tocou-a com as pontas dos dedos que deslizaram com facilidade sobre a superfície plana.- Algum de vocês já viu algo assim? — perguntou ele, chegando o rosto mais perto para ver melhor.- Muito provavelmente é esse o portal que Alexei Martov descreveu no diário — disse Rafael, igualmente se aproximando da beirada. - Não há mais nada nessa caverna que se pareça com uma passagem para outro mundo.Marc pisou com cautela, testando a consistência do disco.- Parece ser seguro - disse ele, pondo o outro pé.- Cuidado, Marc! — advertiu Rafael, erguendo a mão direita para que o amigo não prosseguisse. - Não sabemos o que liga essa coisa.- Acho que está desligado - supôs Marc, dando mais uma meia dúzia de passos em direção ao centro do disco. — Daqui se tem a impressão de estar flutuando no meio de um buraco sem fundo. É muito legal.Chester também tomou coragem e foi até Marc, depois começou a dar pulinhos para sentir a

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resistência do material. Marc se afastou, indo até a beirada oposta que ficava bem próxima à parede de rocha escura.Daniel olhava em volta, procurando alguma alavanca ou coisa parecida que pudesse acionar o portal. Não havia nada que se parecesse com um dispositivo de ignição.- É melhor irmos embora - disse ele, um tanto decepcionado. — já passa das três e meia e temos que voltar antes do dia clarear. Daqui a algumas horas nossas aulas vão recomeçar e precisamos dormir um pouco ou passaremos o dia todo cochilando pelos cantos.Então algo aconteceu. Chester sentiu uma leve vibração. Marc ao sentir a mesma coisa só teve tempo de pular para uma estreita faixa de pedra que separava a outra extremidade do disco da parede da caverna. Chester não teve a mesma chance e sentiu seus pés afundarem no disco que começou a girar lentamente. Ele estava preso. Não tinha como sair. O disco não oferecia mais a rigidez de uma rocha, mas se tornara instável, como lava vulcânica, ou coisa parecida. Seus pés afundaram ainda mais, deixando-o enterrado até os joelhos. Um zumbido tomou conta da caverna, causando uma pressão nos ouvidos dos meninos e reduzindo sensivelmente sua audição. Estranha e gradativamente, a cor do disco passou de negro para vermelho vivo, girando sem parar. Chester não parava de gritar. Sua expressão era de terror. Marc se equilibrava como podia no pequeno pedaço de solo rochoso que lhe restara e não havia como se agarrar na

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parede da caverna. O disco girava a poucos centímetros dele, como um redemoinho, prestes a devorá-lo.Num pensamento rápido, Daniel pegou a corda que havia trazido e a atirou para Chester. A corda nem chegou até ele, pois ao tocar na superfície do disco em movimento, foi arrancada violentamente das mãos de Daniel e sugada para dentro do redemoinho como um fio de macarrão. O disco giratório começou a passar de vermelho vivo para um alaranjado brilhante e a essa altura, Chester já estava enterrado até a cintura. Rafael também não sabia o que fazer. Ele estava desorientado, se arrependendo do momento em que havia aceitado participar daquela aventura inconseqüente. Gritava desesperadamente para Marc.- Fique aí! Se agarre como puder! — Suas palavras não eram ouvidas nem por ele mesmo.Marc virava o rosto e fechava os olhos. Estava tentando não perder o equilíbrio. Se continuasse a olhar para baixo, acabaria caindo dentro do disco vertiginoso. Marc não tinha como sair dali. Estava totalmente encurralado.Eles não podiam ver, mas, o mar em torno da Ilha da Coroa havia enlouquecido tal a sua violência. Esse comportamento atípico chamou a atenção dos vigias.A coloração do disco havia passado para um amarelo faiscante e Chester já havia sido engolido até a altura do peito. Daniel estava paralisado. Aquela situação fugira completamente de seu controle. A luz do disco já

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se tornara azulada. Seria maravilhosa se não fosse aterrorizante. O corpo de Chester já havia sido engolfado até o pescoço. Rafael e Daniel se recusavam a acreditar que estavam perdendo seu amigo. E ainda tinha Marc que corria enorme perigo.Mas o mais impressionante estava por vir. O disco assumiu uma tonalidade branca de um brilho tão intenso que ofuscou os olhos dos garotos e depois começou a afundar; primeiro lentamente e aos poucos foi se aprofundando cada vez mais rápido para o interior do planeta. Chester não podia mais ser visto. O buraco causado pelo fenômeno era tão profundo que Daniel tinha a impressão de poder ver o centro da Terra. Com aquele abismo à sua frente, Marc não resistiu e também despencou, desaparecendo nas profundezas. Rafael gritou, tomado pela agonia.- Não adianta mais ficarmos aqui! — gritou Daniel, transtornado. Ele pegou a sacola e foi em direção ao túnel.Numa última olhada, os dois puderam ver que o teto da caverna, exatamente acima do círculo, se tornara transparente como cristal, permitindo que eles vislumbrassem o céu noturno estrelado e a Lua alta. O farol, no topo do monte, estava transparente como se fosse feito de vidro.Ao desceram novamente as escadas, Rafael ainda teve a frieza de recolocar o alçapão no lugar. Eles dispararam pelo túnel, de volta, correndo alucinadamente pela escuridão. Não sabiam o que dizer; o que pensar. O grifo foi

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colocado novamente na mesma posição e quando abriram a porta da sala secreta que dava para o salão principal, perceberam uma agitação do lado de fora. Passos e vozes conturbadas se espalhavam, indo para a saída do prédio. Em segundos tudo ficou quieto.- Devem ter saído por causa da burrada que fizemos — disse Daniel, esticando- se todo para ver se o caminho estava livre. - Já descobriram tudo. Vamos embora daqui enquanto é tempo.No quarto, Daniel e Rafael andavam de um lado para o outro tentando por ordem nos pensamentos. Lá fora a movimentação era grande. O monitor do andar havia desaparecido.- Eu vou deitar um pouco - disse Daniel, massageando a nuca.- É isso mesmo — concordou Rafael. — Não adianta ficarmos aqui nos envenenando de preocupações.Ainda estava escuro, os dois deitados, obviamente o sono não vinha.- Rafael! — sussurrou Daniel.- O que foi?- Conseguiu dormir um pouco?- De que jeito? As imagens de Marc caindo e Chester sumindo naquele buraco não me saem da cabeça.- Tem que haver uma maneira de consertarmos o que fizemos — disse Daniel, inconformado.- Está tudo acabado, Daniel - disse Rafael, desolado. - Em poucas horas eles vão chegar até nós. Não temos como escapar.

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- Mas Chester e Marc ainda estão vivos - argumentou o inglês, voltando-se para Rafael que só era visto como um vulto na escuridão da noite. - Eles ainda podem ser trazidos de volta.- O que você pretende fazer? - questionou Rafael, desanimado. - Atravessar aquele portal atrás deles?- Talvez... Não sei... — desabafou, sua voz diminuindo. — Eu só queria que não tivesse sido assim. Eu fui culpado. Não deveria ter jogado vocês nessa confusão. Me desculpe, amigo, eu estraguei a sua vida.- Nós quatro assumimos os riscos, Daniel. Se há culpados, fomos todos nós.Um novo dia estava nascendo. Rafael sentia como se o seu estômago fosse dar um nó de tanta aflição.O sino tocou. O período letivo estava recomeçando.Na ala acadêmica, em meio a uma multidão de alunos tagarelando sem parar, Rafael e Daniel se despediram e foi cada um para a sua sala.De dentro da classe, Daniel notou uma movimentação incomum de professores e monitores pelo corredor. Margaret se sentou do lado dele e perguntou.- Onde estão Chester e Marc?- N-Não sei, já devem estar descendo. - Daniel não conseguiu pensar em nada melhor para dizer.- Estranho - comentou ela, sem perder tempo. - Vocês vêm sempre juntos.

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Daniel nem olhou para os lados, se limitando a tamborilar na carteira. Ele estavatão distante que nem percebeu quando Brian Hamilton, o professor de Geologia, sentou-se e abriu o livro de presença. A chamada havia começado. A cada nome proferido era como uma estocada no ouvido de Daniel.- Cemin Naduar! - pronunciou o professor. O aluno respondeu imediatamente.É agora — pensou Daniel, apertando as mãos.- Chester Thompson! - chamou o professor. Não houve resposta.- Onde está ele? — voltou a perguntar Margaret pelo canto dos lábios.- Cala essa boca! - rosnou Daniel, entre os dentes. Margaret assustou-se com a resposta ríspida dada pelo irmão. O tom grosseiro de Daniel dizia tudo. Alguma coisa estava errada, ela não tinha mais nenhuma dúvida.- Chester Thompson! - repetiu o professor, dessa vez correndo o olhar pela ala. Como não teve resposta, ele fez uma anotação no canto da página e prosseguiu a chamada.Nome a nome, a chamada se aproximava de Marc.- Marc Fournier! - chamou o professor em alto e bom tom. Ninguém respondeu. O professor Brian ergueu a cabeça e novamente chamou o nome de Marc. O professor contraiu o cenho demonstrando preocupação e novamente anotou algo na lista de chamada.O professor Brian se levantou e voltou-se para a turma.

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- Esperem uns minutos, eu volto logo.A breve ausência do professor Hamilton provocou um burburinho na sala. Dez minutos depois ele retornou e deu início à aula.Daniel e Rafael voltaram a se encontrar na hora do recreio. Daniel contou o ocorrido. Para Rafael a aula tinha passado dentro de uma desconfortável normalidade. Os dois conversavam num canto, quando Margaret se aproximou.- Dá pra notar de longe a cara preocupada de vocês dois. Onde estão Chester e Marc? - perguntou ela, intimando-os a dizer a verdade. Daniel se rendeu.- Escute, mana, estamos encrencados, mas não podemos dizer o que é... pelo menos por enquanto. Só não conte pra ninguém dessa nossa conversa. Você promete?- S-Sim, prometo - disse ela, curiosa, mas ao mesmo tempo preocupada. A coisa devia ter sido muito séria. Ela nunca tinha visto Daniel naquele estado. - Vocês me contam tudo depois?- Claro, claro, você vai saber de tudo — disse Daniel, concordando, a sineta havia tocado, estava na hora de voltar para a aula.Rafael e Daniel não conseguiam se concentrar nas disciplinas, tal o estado de ansiedade que se apossara deles. As palavras pronunciadas pelos professores pareçam vagas e sem sentido. O primeiro dia de aula estava encerrado. O professor Rajev Shekhar que havia ministrado a última aula daquele dia na turma de Daniel e Margaret, recomendou:

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- Leiam da página 245 até a 249 para a próxima aula.Os alunos começaram a esvaziar a sala.- Você fica, Daniel. Preciso falar com você - ordenou o professor Rajev, acenando com a mão para que voltasse. Margaret também ficou. - Você não, querida. O assunto é só com ele. - O professor voltou a sentar-se e fez um gesto para que Daniel fizesse o mesmo em uma das carteiras. Daniel não sabia para onde olhar e não ousava fazer nenhuma pergunta. Rajev apoiou o queixo em uma das mãos e esperou o suficiente para que o corredor ficasse vazio. Ele tornou a se levantar.- Agora venha comigo — ordenou o professor, saindo da sala.Os dois caminhavam rápido, Daniel logo atrás, indo direto para o gabinete do diretor, o mesmo em que Júlio havia recebido a aviso de sua demissão. O coração de Daniel estava acelerado. O professor abriu a porta e mandou Daniel entrar primeiro. Lá dentro estavam, o diretor Helmut sentado atrás de uma mesa opulenta de jacarandá, o Sr. Ramón, os professores Guillermo de Leonar, Brian Hamilton e Roger Burke e, afundado em um sofá, Rafael, com semblante extremamente abatido.- Sente-se — determinou Ramón, os olhos severos, apontando para o mesmo sofá em que encontrava-se Rafael.O rosto do diretor estava contraído como eles nunca haviam visto. Dava a impressão de que ele iria saltar sobre a mesa e agarrar os meninos

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pelo pescoço. Ramón buscou uma cadeira e sentou-se próximo aos dois alunos. Então começou o interrogatório.- Serei direto e claro e quero respostas diretas e claras. Onde estão os seus colegas Chester Thompson e Marc Fournier?Os meninos se entreolharam assustados. Daniel fez uma última tentativa de se safar.- Não sabemos, eles desapareceram e...Ramón, num movimento brusco, se levantou e abriu um pequeno baú, retirando alguma coisa e mostrando aos dois. Era a sacola com o lampião, os fósforos e a bússola.- O que é isso? - perguntou Ramón agitando a sacola, impaciente. - Encontrei essas coisas no quarto de vocês, escondidas debaixo da cama.- Não adianta, Daniel. É melhor contarmos toda a verdade - disse Rafael, consciente de que não adiantava mais mentir.Rafael contou tudo: da noite que passou na biblioteca; do diário; da passagem pelo túnel e o triste episódio quando viram Marc e Chester atravessarem o portal.- Vocês traíram nossa confiança — explodiu Helmut, esmurrando a mesa e se levantando, depois se aproximou, inclinando-se para frente, bem de cara com os meninos. - Quebraram as regras, descumpriram as ordens, invadiram a minha sala, pegaram o diário sem autorização e ainda ajudaram a condenar seus dois colegas de quarto a nunca mais voltarem para as suas famílias. - Os olhos do diretor faiscavam de raiva.

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Daniel se lembrou dos pesadelos que de vez em quando tinha com ele.- Sua irmã, Margaret, sabe de alguma coisa? — perguntou o professor Brian, em tom calmo.- Não! — apressou-se Daniel. — Ela bem que tentou descobrir o que estava acontecendo, mas eu juro que ela não sabe de nada.Helmut esfregava os olhos, depois balançava a cabeça olhando os garotos com ar de enérgica repreensão. Era capaz de administrar uma escola tão complexa e não sabia o que fazer naquele momento.- Quem são vocês? - perguntou Daniel, sua expressão era inquieta.Ramón o encarou por alguns sufocantes segundos, mas resolveu responder.- Uma sociedade secreta, uma irmandade ou coisa assim — contou, olhando-os fixamente. Em seguida começou a andar pela sala. — Nos denominamos a Sociedade do Círculo de Pedra. Acho que não temos mais nada a esconder de vocês. Nossa sociedade nasceu séculos atrás, quando os sobreviventes de vários naufrágios que se deram por aqui descobriram o que vocês viram nessa madrugada: o portal que une o nosso mundo a um outro, que por sinal, sabemos muito pouco. No início era só um grupo de pessoas fascinadas com o espetáculo fantástico que o portal proporcionava. Alguns acreditavam que aquilo era a porta para o inferno, pois os "desafortunados" que caíam nele sumiam nas profundezas da Terra. Em pouco tempo descobriram como sair dessa ilha, através da

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faixa de mar que não sofre a atração do disco. Então, o grupo decidiu fazer um pacto de silêncio para manter o segredo longe dos aventureiros e mercenários — Ramón, suspirou ganhando fôlego, depois prosseguiu: — A sociedade ganhou corpo e se tornou, talvez, o segredo mais bem guardado da história da humanidade, até vocês aparecerem — disse ele com ares de censura.- E Alexei Martov? — perguntou Daniel, esquecendo um pouco da sua situação embaraçosa.- Ele foi o primeiro a transpor o portal e conseguir voltar para contar o que viu do outro lado. Tudo o que sabemos sobre o outro mundo devemos a ele — respondeu Helmut, ajeitando o colete cinza que estava usando. - Sua memória é muito respeitada entre nós.- O que vocês vão fazer conosco? - perguntou Rafael, com medo da resposta.- Se o que vocês fizeram tivesse acontecido há cem anos, certamente seriam mortos - disse Helmut friamente. - Por séculos, nosso segredo foi mantido a um custo muito alto. Quem nos traísse e saísse por aí contando o nosso segredo, pagava com a própria vida. Geralmente eram marujos bêbados que abriam a boca em algum bar de quinta categoria. Para nossa sorte e azar deles, normalmente, ninguém acreditava em tais histórias pelo fato de elas serem fantásticas demais para serem verdadeiras. Essas histórias se misturavam a tantas outras que acabavam caindo no esquecimento. Mas mesmo assim, os membros mais radicais da Sociedade caçavam

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esses traidores pelo mundo todo e não descansavam enquanto não estivessem mortos e enterrados ou tragados pelo mar. — Helmut parecia mais calmo ao se abrir para Rafael e Daniel. - Com o tempo, a alta cúpula do Círculo de Pedra achou por bem acabar com os assassinatos e encontrar uma solução mais inteligente e menos violenta para manter o segredo protegido. Então surgiu a idéia da escola.- Não seria mais fácil transformar a ilha numa reserva particular ou coisa parecida ao invés de lotar esse lugar com um monte de alunos bisbilhoteiros? - questionou Rafael, menos nervoso e até simpatizando com os ideais da Sociedade.- Aparentemente sim — continuou Helmut, considerando oportuna a pergunta. — Mas a escola nos trouxe dois excelentes benefícios, que foram previstos mesmo antes de ela nascer: o primeiro foi o dinheiro doado pelos governos de vários países, que nos permitiu reinvestí-lo para manter a própria estrutura da escola; o segundo, e esse o mais importante, foi a formação de homens extremamente capacitados, intelectual e profissionalmente, que depois de formados, estariam em condições de defender os interesses da Sociedade. Pouco depois da inauguração da Escola Internacional do Atlântico, foi instituída uma série de testes de lealdade e sigilo, imperceptíveis aos alunos, para verificarmos quais aqueles que seriam dignos, depois de oito anos, de receberem o segredo do portal.

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Infelizmente vocês já foram reprovados de cara - a sofisticação daquela organização deixou Rafael e Daniel estupefatos.Envolvido na própria narração, Helmut seguiu adiante: - Todo ano, dez a quinze alunos que se formam, são incorporados à Sociedade do Círculo de Pedra. Hoje temos espalhados pelo mundo afora: presidentes, cientistas, intelectuais, grandes empresários, políticos e até membros da nobreza, que são fundamentais, usando suas influências e defendendo os nossos interesses. Muitos dos ex-alunos, que não conheceram o nosso segredo, costumam colaborar com a nossa instituição, mesmo muitos anos depois de terem ido embora. - Helmut demonstrava cansaço, estava exausto de tanto quebrar a cabeça para tentar resolver aquele terrível problema. - Mas respondendo à sua pergunta, Rafael. Eu não sei ainda o que fazer com vocês. Mesmo que prometam, eu não posso confiar que você Rafael, e você Daniel, guardem o nosso segredo para o resto de suas vidas.- Por que o túnel foi construído? - perguntou Rafael. - Não é bem mais fácil se chegar à caverna pela superfície, atravessando a floresta?- Atualmente sim - disse Ramón. - Mas, nem sempre houve a floresta que pudesse esconder a entrada para o interior da montanha, então tivemos que abrir o túnel para chegar ao portal sem despertarmos a atenção dos curiosos que visitavam a Ilha da Coroa. Um dia, alguém teve a idéia de cercar o monte Cabeça do Rei com uma densa vegetação. Foram várias décadas de

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intenso trabalho. Tiveram que trazer toneladas e mais toneladas de terras férteis do continente, para deixar o terreno propício para o plantio de milhares de árvores ao longo dos anos. A floresta desceu e se tornou exuberante, abrigando uma infinidade de espécies animais e vegetais, sendo hoje considerada um dos mais importantes complexos biológicos dessa parte do planeta. Quando finalmente a Ilha passou definitivamente para o nosso controle, sem a inconveniente interferência dos administradores do império, o túnel ficou obsoleto e foi lacrado, pois era muito mais fácil transitarmos pelas trilhas no meio da mata do que pelo túnel estreito e abafado.- E o meu pai - disse Daniel, se acomodando no sofá. — Ele sabe de alguma coisa da Sociedade?- O valoroso John Crowley - disse Helmut, um sorriso de satisfação brotou dos seus lábios. — Você quer saber se ele conhece o nosso segredo? Sim, meu caro Daniel, seu pai é membro da Sociedade do Círculo de Pedra.Daniel olhou para Rafael com o peito estufado de orgulho pelo pai, que respondeu cutucando as costelas do amigo inglês, compartilhando a alegria da boa notícia.- Mas agora temos outro problema mais urgente para resolver - disse Helmut, -repensando a dimensão da encrenca que teria de enfrentar. — Marc e Chester.- Poderíamos dá-los como mortos - aventou Ramón, cruzando os braços e coçando a ponta do queixo numa atitude de reflexão. - Poderíamos

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dizer que eles caíram no mar revolto e desapareceram.- E se um dia eles retornarem pelo outro portal, como aconteceu com Martov, e revelarem o nosso segredo? — questionou Rajev, contrapondo-se. Ramón acenou com a cabeça considerando coerente o argumento do colega.- Temos que achar um outro jeito de solucionar esse problema — desabafou Helmut, tirando os óculos e esfregando os olhos, depois os recolocando.- Eu tenho uma sugestão — disse o calado professor Roger, que estava um pouco afastado num canto da sala, pronunciando-se pela primeira vez. Todos voltaram os olhares para ele. - Vamos buscá-los! Vamos atravessar o portal e trazer os garotos de volta para o nosso mundo.- É muito arriscado! — disse Helmut, discordando num primeiro momento. - E nada garante que essa aventura resulte em sucesso. Poderíamos ter mais gente perdida para sempre.- Mas podemos tentar — insistiu Roger, sua fisionomia era serena, mas ao mesmo tempo severa. — Eu me ofereço para ir resgatá-los.Helmut olhava para os outros membros da Sociedade, buscando alguma manifestação. Ninguém arriscava dizer algo. A proposta de Roger era válida.- Alguém tem alguma idéia melhor? — indagou Helmut. Ramón fez que não com a cabeça.- Eu também sou voluntário. - Se ofereceu Guillermo, o professor espanhol, de química, dando um passo à frente. — Em dois, teríamos

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mais chance e os meus conhecimentos de química poderão ser úteis de alguma forma nessa empreitada.Helmut pensou mais um pouco. Esfregou intensamente a testa. Estava num dilema. Finalmente decidiu.- Está bem - concordou, embora ainda inseguro. - Mas vocês têm de ir logo para alcançá-los a tempo de retornarem antes do final do ano quando as aulas se encerram. Se não voltarem a tempo, teremos que considerar os dois garotos como mortos e justificarmos o desaparecimento para as suas famílias. Também preciso convocar, com urgência, outros dois professores substitutos enquanto vocês estiverem ausentes.- Eu vou me preparar - disse Roger, tomando o caminho da porta. — Dentro de uma hora estarei no portal. - Guillermo o seguiu para fazer o mesmo.Os outros professores também saíram. O momento era tenso.- Eu tenho um monte de coisas para ver — disse Helmut, olhando de um lado para o outro. — Quero que vocês fiquem aqui e me aguardem — ordenou ele com o dedo em riste apontando para Daniel e Rafael, a cara fechada. - Cumpram uma ordem, ao menos essa vez. — Ele saiu e fechou a porta. Rafael notou com seu ouvido treinado quando a chave girou na fechadura trancando-os lá dentro.- E agora, esperamos? — perguntou Rafael, as mãos entre as pernas, os pés batendo no assoalho nervosamente.

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- E o que você acha que podemos fazer? — perguntou Daniel, correndo os olhos pela sala. — Fugir?- É uma possibilidade.Daniel voltou-se lentamente para seu amigo.- O que você tem em mente?- Lembra-se de quando fizemos um pacto? - disse Rafael, procurando conduzir os pensamentos de Daniel. - Entramos nessa juntos e vamos sair juntos.- Aonde você quer chegar, Rafael? - perguntou Daniel, intrigado. Rafael olhava em silêncio para o amigo na esperança que os seus pensamentos pudessem ser lidos. - Você está pensando em atravessar aquele portal? - perguntou. Suas sobrancelhas se contraíram.- De que outra maneira podemos salvá-los? Nossa carreira nessa escola acabou nem sabemos o que o Sr. Helmut reserva para nós. Rafael não parecia estar parabrincadeira.- E como você acha que chegaríamos até o portal? Todas as passagens até lá devem estar bloqueadas — ponderou Daniel.- Talvez não — supôs Rafael. — Com um pouco de sorte ainda podemos usar o túnel e alcançar a caverna sem sermos vistos. Se você não quiser vir eu vou sozinho. - Daniel empalideceu com o que ouvia do amigo. — Não tenho mais como encarar os meus pais, eu não agüentaria a decepção que vou causar a eles. - O que seu pai havia dito há meses, numa conversa com a sua

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mãe, latejava em sua cabeça. "Estou confiante de que ele vai conseguir concluir o curso."- Estou com você! — exclamou Daniel, resoluto, não dando qualquer chance para Rafael se arrepender. - Não temos tempo a perder.Rafael foi até a porta e olhou pelo buraco da fechadura.—Tem alguém aí fora de sentinela - disse ele. Daniel fez uma cara de insatisfação.- A janela! — exclamou Daniel. — Podemos sair por ela.A janela da sala de Helmut dava para o jardim interno e era cercada por arbustos compactos. Do outro lado do jardim, junto às colunas, outro monitor ia e vinha, atento a um ou outro aluno que passava por ali.- Tem que ser por aqui - disse Rafael enquanto vigiava pela janela, já entreaberta. — Não temos outro caminho.Rafael saltou e desapareceu entre as folhagens, enquanto o monitor estava de costas. Depois foi a vez de Daniel. Em minutos, eles deslizavam pelos corredores, esforçando-se como podiam para não serem flagrados. Rafael e Daniel tentavam se misturar entre os alunos, desviando-se de um monitor ou outro. O prédio estava visivelmente agitado. A claridade do dia ajudou Rafael a abrir com mais rapidez a porta da sala do grifo e logo já estavam a caminho pelo imenso túnel, só que dessa vez, sem enxergarem um palmo adiante de seus narizes. Nem se preocuparam em fechar de novo a porta que haviam aberto. O tempo estava se escoando.

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- Você não está ouvindo outros passos, além dos nossos? — perguntou Daniel, apressado, tateando as paredes para evitar um tombo.- Deve ser o eco — disse Rafael, sem dar importância. — Vamos depressa, eles logo vão acionar o portal.Devido à total escuridão, o percurso pelo túnel demorou o dobro do tempo.- Você não está sentindo algo estranho? — perguntou Rafael, diminuindo o passo.Os dois pararam por um tempo, em silêncio.- O portal! — exclamou Daniel. — O portal foi acionado! Vamos! Rápido!Eles percorreram o túnel por mais alguns metros, tropeçando e se arrastando como podiam. Por fim, tocaram de maneira atabalhoada a escada no final do túnel e começaram a subir, escorregando pelos degraus. Empurraram com força o alçapão para o lado. O barulho que produziam não podia ser ouvido tal era o zumbido que deixava a todos quase surdos. Quando saíram do buraco, os meninos se depa-raram com alguns homens de costas para eles e voltados ao incrível espetáculo do disco girando e afundando na crosta terrestre. O portal havia sido aberto. Entre os observadores estavam Helmut, Brian e Rajev. Os professores Roger e Guillermo já não estavam mais lá. O abismo reluzente provocado pela abertura do portal já era profundo. Os dois garotos se prepararam para correr e saltar, mas por um instante hesitaram.

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- É agora ou nunca! - gritou Daniel, tomando coragem. Ele finalmente correu e pulou.Os homens que estavam na beirada se assustaram. Quando Rafael passou correndo, foi segurado pelo professor Brian, que quase se desequilibrou. Atrás dele, surgiu então, Margaret, que os havia seguido todo o tempo pelo túnel escuro. Ela deu um encontrão em Brian, e os três: Rafael, Brian e Margaret também caíram, desaparecendo no abismo de luz branca.Helmut, desesperado, levou as mãos à cabeça. O portal havia engolido mais três alunos.

PARTE DOIS

Capítulo 13Pedras Insólitas

Daniel só conseguia distinguir a luz pálida que o envolvia. Os seus sentidos se resumiam apenas à sua visão monocromática do branco intenso. Ele não ouvia nada; não sentia calor nem frio. Tentava puxar o ar para dentro dos pulmões; não havia ar e provavelmente nem seus pulmões existissem naquele instante. Aliás, não conseguia sentir nenhuma parte de seu corpo. Era só a sua mente no meio do vazio infinito. Daniel não conseguia estimar por quanto tempo vivenciou aquela experiência. Talvez alguns segundos tivessem se passado, ou algumas horas, quem sabe, até mesmo anos. O tempo e o espaço deixaram de ter algum significado para ele. Aos

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poucos, tudo começou a tomar forma. Por detrás da luz iam surgindo nuances que quebravam a monotonia, e a agradável sensação de calma parecia esmorecer. Daniel, então percebeu que todos os seus sentidos haviam retornado. Quando ele forçou os olhos, se viu deitado sobre um disco, semelhante àquele por onde havia atravessado momentos antes, só que era totalmente branco. Daniel esfregou os olhos embaçados, sua cabeça ainda girava um pouco. Próximos a ele, Guillermo e Roger se levantavam com alguma dificuldade. Numa outra parte do imenso disco, Daniel identificou o seu amigo Rafael, e o professor Brian que acabara vindo por acidente. Mas havia mais uma pessoa deitada; os seus longos cabelos lhe cobriam o rosto. Era uma menina! Daniel foi até ela, mas seu coração começou a bater mais rápido, temendo o pior. Ele afastou aqueles cabelos e viu.-Meg!Ela abriu um olho, exibindo uma expressão triunfante.- Eu avisei que iria descobrir o que vocês estavam tramando — disse, sentando- -se e arrumando os cabelos.Daniel estendeu-lhe a mão para ajudá-la a se levantar. Depois ensaiou dar-lhe uma bronca.- Você não deveria ter vindo. Já estávamos bastante encrencados sem você. Papai vai nos matar quando voltarmos.- Mas primeiro... precisamos voltar — disse ela, inspecionando o lugar a sua volta. — Onde estamos? Que lugar é esse?

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- Se eu te disser você não vai acreditar — afirmou Daniel, igualmente correndo o olhar pelo local.Os recém-chegados ainda se ambientavam com a nova paisagem. Eles estavam soore outro disco, só que este era de um branco imaculado, mas de dimensões aénticas ao outro, totalmente negro, por onde eles tinham viajado há poucos instantes. Em torno do disco, algumas rochas disformes se erguiam e além delas, de um lado, um paredão natural se estendia pelo lado oeste, cobrindo-lhes a visão do que poderia haver mais adiante. Pelo lado leste, uma floresta, onde se iniciava uma pequena estrada de terra completavam o cenário. O céu claro tinha algumas poucas nuvens brancas como algodão e um vento se infiltrava pelas rochas, deixando a temperatura bastante amena.Rafael se aproximou estranhando a presença de Margaret.- Como é que você veio parar aqui?- Quem você acha que te livrou das mãos de Brian? — disse ela, apertando os olhos. - Se não fosse por eu dar um empurrãozinho na hora certa, você estaria na sala do Sr. Helmut a essa hora - disse, e então alertou Daniel e Rafael, com um aceno de cabeça, da aproximação do professor Brian que vinha bufando.- O que vocês fizeram?! - esbravejou ele. - Já não bastava terem provocado a criação dessa expedição? Agora teremos que salvar não dois, mas cinco garotos irresponsáveis numa aventura que nem sabemos como vai terminar.

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Brian teve que explicar a Roger e Guillermo como havia atravessado o portal por acidente. Os professores aventureiros olhavam com desaprovação para os meninos.- Temos de nos preparar e fazer de tudo para voltarmos dentro do prazo — disse Brian, procurando se acalmar, passando a mão pelos cabelos.- Vamos por ali — disse Guillermo, mostrando a trilha que entrava pelo bosque. Deve ser o caminho que Martov disse que levaria à civilização.De repente, de trás de uma das pedras saiu uma figura vestida com um traje comprido e coberta por um capuz que lhe escondia o rosto. O estranho correu e se embrenhou pela floresta, desaparecendo de vista. Roger fez menção de ir atrás, quando Guillermo o segurou pelo braço.- Deixe-o ir Roger, deve ser algum nativo assustado.O grupo iniciou a caminhada. Roger ia à frente, seguido por Guillermo e pelos garotos e, fechando a fila, estava Brian. Eles caminharam por quase um quilômetro dentro da mata e saíram em um terreno aberto de onde puderam vislumbrar pequenas colinas por onde a trilha continuava.- Vamos - disse Roger, iniciando a subida pelo flanco de uma colina de inclinação suave. - O nosso primeiro destino deve estar logo atrás dessa elevação.A marcha foi sem muita dificuldade pelo caminho tranqüilo de vegetação rasteira. Quando

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atingiram o ponto mais alto, eles puderam avistar lá em baixo, uma cidade que parecia ter sido tirada dos livros de história medieval. Além da cidade, até onde a visão alcançava, e por toda a região do lado leste, se estendia um imenso deserto de solo duro e seco. A pequena cidade se localizava nos limites onde ainda era possível abrigar qualquer tipo de vida.- Lá está — disse Guillermo, ajeitando a mochila nas costas. - É a povoação que Alexei Martov fez sua primeira parada. Vamos para lá.Roger tirou uma pequena luneta de sua mochila e rastreou rapidamente a cidade, podendo ver com mais detalhes as construções e os habitantes que se deslocavam tranqüilamente na sua rotina.- Se Marc e Chester usaram o bom-senso, eles devem estar lá embaixo — comentou Brian, retomando o passo.Em pouco tempo eles estavam se aproximando dos limites da cidade que tinha uma aparência bucólica e organizada. Um homem de avançada idade, que transportava um feixe de gravetos, percebendo a chegada dos forasteiros, parou o que estava fazendo e encarou-os com curiosidade.- Quem são vocês? — perguntou ele, depositando a carga de gravetos no chão e exibindo a boca que lhe faltavam alguns dentes. — Vieram do disco branco, não é?- Bom dia, senhor — cumprimentou-o Guillermo, aproximando-se. - Tem razão, acabamos de chegar ao seu mundo.

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O homem de rosto enrugado fitou-os com ar severo e, depois de alguns segundos, sorriu, mostrando novamente a boca desdentada.- Se é assim, sejam bem-vindos, estrangeiros — disse o velho, estendendo a mão. — Fazia tempo que não recebíamos uma turma tão grande por aqui. Ah, meu nome é Giuseppe Jourdain Smith. O Jourdain é francês e o Smith é inglês e para não dar briga meus pais me deram um nome italiano, seja isto o que for — riu ele.Um outro grupo maior, de umas vinte pessoas, se aproximou vindo da cidade, rodeando os recém-chegados. Um homem de uns cinqüenta anos, nariz largo, barba farta e usando uma bengala, mais por vaidade que por necessidade, puxava a comitiva.- Meu nome é Raul... Raul Livio Court. — Apresentou-se ele, um jeito de líder, os polegares enfiados no cinturão enquanto falava. - Sou o governador dessa cidade. Bem-vindos à Nova Europa! - disse num sorriso cheio de satisfação.- Agradeço a sua hospitalidade, senhor - disse Brian.- Pode me chamar pelo primeiro nome - antecipou-se Raul.- Pois bem, senhor Raul - continuou Brian. - Estamos procurando dois garotos que vieram parar aqui por acidente, seus nomes são Chester e Marc.-Ah sim, os garotos. Eles estão bem - disse, abrindo caminho entre a pequena multidão. - Venham, vou levá-los até eles. Precisamos saber o que vocês pretendem fazer. Se decidirem ficar

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em Nova Europa ou Nova América, serão bem acolhidos.- Nova América? — perguntou Rafael achando engraçado os nomes tão familiares.- É uma pequena cidade que fica a dezesseis quilômetros a noroeste - explicou Raul ao mesmo tempo em que afagava a cabeça de uma criança nativa que observava os visitantes com olhos atentos. — Nova América abastece nossa cidade com a criação de gado e a produção de legumes e frutas e nós retribuímos com nossos manufatu-rados. As terras por esses lados não são muito boas para o plantio e a criação - confidenciou, falando mais próximo de Brian como se fizesse uma confidência.Eles começaram a caminhar pelas ruas estreitas. Algumas ruas e ruelas da cidade iram calçadas com pedras arredondadas, e outras, aparentemente de menor importância, com terra batida. Guillermo, Roger, Brian e os meninos, ciceronados por Raul, recebiam informações diversas sobre o lugar enquanto andavam. O tempo havia parado naquele lugar. A primeira impressão que tiveram era de que os moradores de Nova Europa adoravam receber visitas, e recebiam muito bem. Nos parapeitos das janelas havia estranhas pedras azuladas com diversos tamanhos e formas.- O que são aquelas pedras? - reparou Daniel.- Aquilo? Ora, são luminitas — disse Raul, ensaiando uma explicação. — São elas que nos fornecem luz à noite.

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- Alexei descreveu essas pedras no seu diário — lembrou Brian.- Não me lembro de ter lido sobre elas — comentou Rafael, levando em conta que havia pulado várias páginas do diário naquela noite, na biblioteca.- Essas pedras absorvem a luz solar e, durante a noite, iluminam as casas, ruas e praças — explicou Raul, pegando emprestada uma pedra que estava exposta em uma janela. - Observem os postes, cada um deles sustenta no seu topo uma luminita que clareia a cidade até o amanhecer. Mas para que elas forneçam a luz de que necessitamos, precisam ser recarregadas assim, ao ar livre.- E quando o tempo está nublado ou chuvoso? - perguntou Rafael, impressionado.- Ainda assim elas funcionam - respondeu Raul, passando a pedra de uma mão para a outra. - Entretanto, a luz se torna mais difusa.- Por quanto tempo elas permanecem brilhando? — perguntou Margaret, roçando a pedra.- Pelo mesmo tempo que ficam absorvendo a luz do sol — respondeu Raul, contente por poder explicar algo que era tão corriqueiro, mesmo para as crianças de Nova Europa. - Por exemplo, se uma pedra absorver luz durante cinco horas, ela brilhará durante as mesmas cinco horas; se o tempo de exposição for de dez horas, então a sua luz se conservará pelo mesmo período.- De onde elas vêm? - perguntou Brian, imaginando como seriam úteis em seu mundo.

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- Existem três grandes veios, todos bem longe daqui. Dois deles são verdadeiras montanhas de luminita que servem de farol para aqueles que se aventuram a viajar à noite. Eu tive a felicidade de ver um deles brilhando, próximo a Faogard, numa noite nublada. As nuvens baixas cintilavam, refletindo a montanha de luminita. Fiquei ali, admirando o belo espetáculo por horas. Infelizmente, nosso solo não tem nem um mísero grão dessa pedra preciosa e quando necessitamos de alguma, temos que pagar caro por ela.Eles chegaram até uma pequena praça pouco arborizada e rodeada por alguns prédios baixos, sendo o mais alto o da igreja matriz que ostentava bem no alto, no topo do campanário, uma cruz cravejada de pedras de luminita. Devia ser um lindo espetáculo quando as pedras faziam à cruz brilhar durante à noite. No centro da praça havia o busto em pedra cinzenta de alguém importante. A direita da praça, se localizava a estalagem Javali Roncador.- Ali estão hospedados seus amigos — apontou Raul. - E onde servem o melhor porco assado e a melhor cerveja de toda a região.- E os garotos? - perguntou Daniel, não satisfeito em ainda não tê-los visto.- Ora, devem estar por aí. Eles não sossegaram desde que chegaram por aqui. Não se preocupem, os dois estarão bem enquanto estiverem dentro dos nossos limites.- Como assim, dentro dos nossos limites? - perguntou Guillermo, sua expressão

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interrogativa.- O nosso território está bem distante das terras perigosas à leste - disse Raul franzindo o cenho, protegendo-se do sol que lhe batia diretamente no rosto. - Por isso, não necessitamos de muralhas ou qualquer outro meio de fortificação para proteger a nossa comunidade. Porém, além do deserto, as coisas mudam. Mas guardem o seu fôlego, responderei à todas as perguntas que vocês quiserem. Se forem tão ávidos por informações como Martov ou Fawcett que nos visitaram há alguns anos, passaremos dias conversando sobre o assunto.- Fawcett? - murmurou Margaret, olhando intrigada para Daniel e Rafael.— Essa é outra história que eu quero saber direitinho — disse Daniel, devolvendo o olhar para a irmã.— Não temos tempo para passar dias conversando — disse Roger secamente. — é urgente que comecemos a nossa jornada de retorno o mais rápido que pudermos ou não voltaremos a tempo.— Não quero desiludi-los, amigos, mas... talvez vocês nunca consigam voltar — advertiu Raul com uma expressão mais séria.— Caso você não saiba, senhor Raul, Alexei Martov conseguiu, apesar de enfrentar enormes dificuldades - informou Brian, discordando da opinião do anfitrião.— Eu já soube dessa proeza do amigo Alexei. Seus amiguinhos, Marc e Chester haviam me contado. Ele era muito esperto. Também sinto pela morte

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dele — disse Raul, sinceramente. - Entretanto, ainda sustento o que eu disse. Uma viagem de volta é muito perigosa, ainda mais quando cinco dos viajantes são crianças.— Não somos crianças! - protestou Margaret, contorcendo os lábios. - Sabemos muito bem nos cuidar.— Ora, ora... A princesinha parece ter bastante fibra - observou Raul, movendo a cabeça em sinal de aprovação.— E também não sou princesinha — disse ela, com ares de indignação. - Meu nome é Margaret Crowley.— Peço desculpas — retratou-se Raul, erguendo as sobrancelhas querendo parecer verdadeiramente arrependido. - Isso não se repetirá mais, Srta. Margaret Crowley. Posso chamá-la de Margaret, não é?— Pode — concordou, aceitando as desculpas.— Ótimo! Agora é hora de conhecerem os seus aposentos. Considerem-se hóspedes de Nova Europa pelo tempo que acharem necessário — anunciou Bartolomeu, guiando o grupo até a entrada da estalagem Javali Roncador. — Em tempo, hoje à noite teremos uma festa de boas-vindas que já estávamos preparando para Chester e Marc. A confraternização será na taverna da própria estalagem, vocês só precisarão descer e se divertir — disse, chamando com um aceno de mão um homem bem magro e careca, que usava um colete curto sobre uma camisa azul desbotada pelo excesso de uso. — Esse é Denis, o responsável pela

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estalagem, ele vai atendê-los no que for possível. Bem, tenho que deixá-los agora. No início da noite eu encontro vocês - disse, despedindo-se.— Venham por aqui, por favor - disse Denis, educadamente.O salão da estalagem era amplo. Rústico, mas organizado. No fundo, um balcão para servir bebidas estava sendo limpo por um homem grande e gordo que vestia um avental de tecido grosso.- Aquele é Rudolph, nosso taberneiro. Vocês podem xingar a mãe dele, mas se falarem mal de sua cerveja - disse Denis, em tom de advertência. — Os aposentos ficam lá em cima,- Espere um pouco, Denis — disse Roger, fazendo meia-volta. — Quero ver se Chester e Marc estão bem.- Sossegue, amigo, eles estão bem - disse Denis, com expressão calma. Denis fez um sinal para esperarem e foi até Rudolph, o taberneiro. Depois de falar rapidamente, Denis voltou com notícias.- Rudolph disse que os garotos foram para o cercado dos cavalos.- E onde fica? — perguntou Roger, interessado em encontrá-los de uma vez.- À leste daqui passando pela rua do grande mercado, não tem como errar.- Eu vou buscá-los - disse Roger, tomando o caminho da saída. - Vocês vão se ajeitando, eu não devo demorar.- Nós vamos com você! - disse Daniel, seguindo Roger. Rafael e Margaret o seguiram.

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A rua do grande mercado era bastante movimentada. Era lá que se realizavam as maiores transações comerciais da cidade. O entra e sai de gente interessada em comprar e vender não parava o dia todo. A rua acabava em uma porteira aberta que dava para o campo. Mais um pouco e eles já avistavam o cercado dos cavalos que Denis havia mencionado. Um ajuntamento de pessoas escandalosas em volta do cercado assistia e torcia pelos melhores cavaleiros da região que punham à prova as suas habilidades de domar cavalos selvagens capturados nas pradarias ao sul de Nova Europa. Aplausos e gritos aconteciam à medida que um cavaleiro conseguia domesticar um dos eqüinos. Para alívio de Roger, os dois garotos estavam bem, sentados sobre a cerca, à vontade, como se fossem do lugar, eles conversavam ani-madamente com dois homens.- Marc! Chester! - gritou Margaret, correndo em direção a eles.- O que vocês estão fazendo aqui? — disse Marc, entre surpreso e feliz por ver novamente os amigos.- Viemos levá-los de volta - disse Daniel, que vinha logo atrás. Ele não se conteve e agarrou os companheiros num abraço desajeitado. A sensação de culpa que ele carregava até aquele instante praticamente havia se evaporado.- Estamos juntos outra vez! - comemorou Rafael, juntando-se também ao caloroso abraço coletivo. - A equipe do quarto 21 está unida novamente. - Os dois homens que pouco antes falavam com

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Marc e Chester não entenderam nada do que estava acontecendo.— Esses são Leonard e Hans, os encarregados de cuidar das montarias — apresentou-os Chester, como já os conhecesse há anos. — E esses são meus amigos que também vieram pelo disco no chão.— Está tudo bem com vocês? - perguntou Roger, olhando Marc e Chester de cima em baixo.— Estamos ótimos, tirando o susto que tomamos quando aquela coisa nos puxou - disse Marc, satisfeito com a chegada inesperada. Ele imaginou o que os proressores e o diretor Helmut deviam ter pensado quando descobriram o que aconteceu.-Temos uma longa jornada pela frente - avisou Roger, preparando os ânimos dos garotos.A conversa foi interrompida quando a platéia explodiu, promovendo uma grande balbúrdia; quatro homens fortes traziam, puxado por cordas, um cavalo negro, de músculos vigorosos e comportamento enraivecido; as cordas eram compridas para evitar que um dos violentos coices que o animal desferia pudesse acertar alguém. Leonard saltou da cerca e correu para o centro do terreiro, pedindo silêncio com as mãos.— Quem se arrisca a tentar domar o Pesadelo? — gritou ele em tom de desafio, citando o nome da fera.— Por que você não tenta, Chester? - Marc acabara de mexer com os brios do imigo cavaleiro.

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— Ninguém conseguiu até hoje montar naquele cavalo sem levar um belo tombo ou um coice — alertou Hans, desencorajando um possível voluntário.Um homem de aparência agreste pulou para dentro do cercado, disposto a enfrentar a fúria de quatro patas. O desafiante se aproximou e num movimento ágil, remonstrando grande habilidade na arte de montar, conseguiu subir nas costas de Pesadelo; as cordas foram afrouxadas e o animal, querendo a todo custo desvencilhar-se, começou a pular de maneira alucinada, e em poucos segundos o cavaleiro foi atirado no ar e desabou no chão, rolando como um boneco de pano. Os auxiliares puxaram-no rapidamente para longe dos cascos furiosos que batiam no chão com toda força. O cavaleiro frustrado e mancando, afastou-se, apoiado por dois amigos. Pesadelo ziguezagueava e saltava, como se quisesse avisar que não estava disposto a se submeter a nenhum outro homem que se aventurasse a montá-lo.— Eu sei que posso domá-lo! Já fiz isso muitas vezes com outros cavalos tão arredios quanto esse - garantiu Chester, confiante.— Escute aqui, garoto - disse Roger, perdendo a paciência. — Eu não vim de tão longe para deixar um menino teimoso se quebrar montando um animal enfurecido. Tenho que levar você e seus amigos sãos e salvos, portanto, não me cause mais problemas. — Roger ficou observando Chester por uns instantes e continuou - Vamos rapaz, você não precisa bancar o herói.

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Os olhos de Chester acompanhavam cada movimento do cavalo que parecia fazer jus ao nome que lhe deram: Pesadelo.- Eu só quero tentar uma vez - teimou Chester, pulando para dentro do cercado.— Saia já daí ou eu vou tirá-lo à força! — ordenou Roger, irritado com a desobediência de Chester.Chester fez que não ouviu e aos poucos foi chegando perto do animal que erguia as patas dianteiras e depois as batia violentamente contra o chão. Em seguida, escoiceava no ar, como que dando um recado que a próxima patada seria endereçada ao primeiro que se aproximasse. Muitos gritavam para ele se afastar do cavalo. Chester tinha um dom especial para controlar animais daquele porte. Ele parecia saber o que estava fazendo.Enquanto isso, Leonard agitava os braços e gritava.- Se afaste, rapaz! Esse cavalo é perigoso! Ele vai acabar com você!Chester não dava ouvidos aos apelos. Parecia estar hipnotizado e se aproximava cada vez mais. Ele levantou a mão direita e começou a estalar os dedos, dando a impressão de estar se comunicando com o animal. Aquela situação perdurou por uns dois minutos. Perplexa, a platéia se calou. Chester murmurava alguma coisa que os outros não conseguiam entender. Pesadelo pulava e relinchava ameaçador. O garoto não se intimidava e olhava fixamente para os olhos do cavalo furioso. Mas então, alguma coisa aconteceu. Aos poucos, Pesadelo foi se

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acalmando até parar de se agitar. Chester foi chegando lentamente perto do quadrúpede até tocá-lo carinhosamente. Pesadelo, ainda um pouco resistente, aceitou o afago. Todos ficaram pasmos com o que viram. Chester pegou uma das cordas e conduziu Pesadelo com cuidado até próximo a cerca, depois, apoiando-se, montou no cavalo que aceitou passivamente o seu condutor. A multidão foi ao delírio.— Esse menino é um feiticeiro! - deduziu Hans, boquiaberto.- Não... ele é só meu amigo — disse Daniel, altivo, como se ele próprio tivesse realizado a proeza.— Não acredito no que meus olhos estão vendo - disse Leonard, perplexo. - Esse animal nunca aceitou ser montado.Cavaleiro e montaria davam voltas pelo cercado, como se fizessem isso juntos há muito tempo. Depois de demonstrar do que era capaz, Chester desmontou e, afagando mais uma vez Pesadelo, foi até aos espectadores admirados.- Sugiro que não tentem montá-lo ainda - disse, pulando a cerca de volta. - Ele ainda está bem selvagem.- Ótimo! - disse Roger, aborrecido. - Você já deu a sua exibição particular, agora vamos embora. Temos muito que conversar.- Como você conseguiu fazer aquilo? - perguntou Marc, ainda sem se recuperar do que vira. - Quero dizer, domar uma fera daquele tamanho?- Como você consegue tocar tão bem? - retrucou Chester, e trocou empurrões de camaradagem com seus amigos.

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No caminho de volta para a pousada, os meninos passaram perto de uma roda de jovens que jogavam um estranho jogo de cartas. Daniel ficou interessado nas figuras coloridas e brilhantes estampadas em cada uma das cartas. Era um baralho diferente de tudo o que ele vira antes. Um dos rapazes que jogavam, e que deveria ser o mais velho de todos, puxou assunto.- Conhecem esse jogo?- Não — respondeu Daniel, inclinando-se para ver mais de perto, muito interessado.- Se chama Dakenkal Lunfe, que quer dizer: Continente em Guerra. É a simulação de uma guerra que envolve os povos do continente: exércitos, criaturas, magos e feiticeiras se confrontam num jogo que pode levar muitas horas até se conhecer o vencedor. Ganha quem tiver a melhor estratégia e uma boa dose de sorte — explicou o rapaz, com boa vontade.- Onde consigo um desses? - perguntou Daniel, apreciando algumas cartas que o rapaz emprestou para manusear.- Não é muito fácil encontrar um baralho como esse - respondeu o jovem jogador pegando as cartas de volta, cuidando para que os seus adversários não vissem quais eram. - Esse foi do meu avô e ainda parece novo - disse, lustrando uma das cartas na própria camisa.Daniel e seus companheiros observaram por mais algum tempo, tirando proveito para conhecerem algumas regras básicas ensinadas pelos jogadores em tom professoral. Daniel estava mais interessado em saber o significado

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dos personagens representados nas cartas do que nas regras daquela competição. Eles descobriram que o baralho era composto de setenta e nove cartas com a possibilidade de inúmeras combinações que deixariam o jogo muito disputado e emocionante. O menino inglês despediu-se dos jogadores e afastou-se, desejoso de ter um baralho igual. Seria ótimo fazer alguns truques de mágica com cartas tão bonitas.Os três professores e os meninos se reuniram em uma saleta no andar de cima da estalagem para, pela primeira vez, todos juntos, conseguirem se organizar num plano que os tirasse dali. Depois que Marc e Chester receberam as reprimendas de Guillermo, Brian e Roger, por terem causado tantos transtornos, foram colocados rapidamente a par dos planos que deveriam participar para chegarem o mais breve possível ao portal de retorno. O sol começava a se pôr. Estranha e maravilhosamente, as pedras de luminita começaram a brilhar, nos lustres dentro das casas e nos postes lá fora. Quanto mais escurecia, mais luz as pedras emitiam.- Esse mundo é repleto de magia - encantou-se Daniel.Nem a indiferença de Roger resistiu à tanta beleza. Ele ensaiou um discreto sorriso. Em seguida, consciente das suas responsabilidades, trouxe todos novamente à discussão.- A minha intenção é sairmos dessa cidade em no máximo dois dias — disse com grande seriedade, cuidando se todos estavam atentos ao que ele dizia.

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- Alexei Martov levou quase um ano para conseguir voltar — ponderou Marc, duvidando do sucesso da expedição em tão curto tempo. - Como vamos fazer o mesmo caminho em menos de quatro meses?- Ainda não sabemos exatamente — considerou Brian, avaliando as condições que teriam de enfrentar. - Mas é certo de que precisaremos de ajuda.- Quem vai nos ajudar? - questionou Roger, incrédulo. - Esses camponeses? Não vi muita disposição por parte do prefeito.- Ele só quer nos proteger, deve conhecer muito bem o que está além do deserto e o que se esconde por trás daquelas montanhas longínquas — argumentou Guillermo, enquanto examinava uma exótica estatueta esculpida em madeira que estava sobre um altar, uma bocarra com dentes pontiagudos e olhos saltados, davam um aspecto horripilante à figura. — Vocês já viram uma criatura assim?- Prepare o seu coração e o seu estômago — profetizou Brian, os cotovelos apoiados sobre uma mesa. — Pois se Martov não exagerou, vamos nos deparar com situações que ficarão marcadas para sempre em nossas vidas. Se é que vamos viver para escrever nossas memórias, como fez o nosso amigo russo.- Não assuste as crianças - censurou Guillermo, olhando energicamente para Brian. — Isso só vai deixá-las amedrontadas.- Se são crianças, então está na hora de crescerem bem depressa - preveniu Roger,

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afastando uma cortina e olhando pela janela algumas pessoas que chegavam à estalagem, com toda certeza para a recepção.- E eu já disse que não somos crianças — advertiu mais uma vez Margaret, os dentes cerrados. — Vocês nos subestimam, mas viram do que somos capazes.— É... por isso mesmo é que estamos aqui, pensando numa maneira para resolver o enorme problema que causaram — instigou Guillermo, esticando os pés sobre uma cadeira.O som de música tocando e pessoas rindo e conversando no andar de baixo já se fazia alto.— O prefeito Raul os aguarda — avisou uma moça com cara de adolescente, cabelos louros em trança, um vestido longo rodado com diferentes tonalidades de rosa.— Acho que chegou a hora de conferirmos a recepção que nos prepararam - disse Guillermo, levantando-se e se pondo a descer.No salão, vários membros importantes da cidade se acomodavam pelas mesas. Rudolph, o taberneiro, enchia o balcão de canecas e mais canecas de cerveja espumante que eram logo levadas aos fregueses sedentos por uma boa bebida.— O povo daqui parece gostar de uma festa — observou Guillermo, exibindo um sorriso gaiato.Os freqüentadores da estalagem os olhavam com indiscrição.— Pelo visto, eles devem achar motivos para comemorarem qualquer coisa - completou Brian, procurando Raul em meio a tantas cabeças. - Lá

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está ele! - avisou, notando um aceno largo do prefeito que os aguardava sentado em uma mesa comprida.— Sentem-se! - disse Raul, oferecendo as cadeiras vazias reservadas aos visitantes. - Esse é Sebastian Soares, o prefeito de Nova América - disse apontando para um homem com mais de sessenta anos, de barbas longas, que usava óculos de lentes redondas e pequenas, apoiados na ponta do nariz. — E essa é minha esposa, Katherine - apresentou, a mulher elegante de leves rugas sob os olhos castanhos, um colar ornado de pedrarias lhe pendia do pescoço. Ela deu um sorriso discreto, mas receptivo - Rudolph, cerveja para os adultos! E para vocês... — disse, olhando para os meninos. — Acho que vão gostar de um bom suco de bantagena. — Raul voltou-se para o atendente que aguardava os pedidos e que não perdeu tempo em anotar prontamente os cinco sucos de nome estranho. — E então, o que estão achando da nossa cidade?— É bem simpática e acolhedora — disse Guillermo, sendo agradável.— Eu fiquei sabendo da sua façanha com o Pesadelo - disse virando-se para Chester. — Todos estão comentando sobre o que fez — Chester ficou vermelho e sorriu encabulado. — Se resolverem ficar eu tenho um emprego perfeito pra você nas cocheiras. Poderá montar quantos cavalos quiser.— Obrigado — disse Chester, agradecido. — Mas tem um lugar no meu mundo onde posso fazer isso sempre, no rancho do meu tio.

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— Em todo caso, se você mudar de idéia, o convite está de pé — posicionou-se Raul, e virou um grande gole de cerveja.— Em primeiro lugar, gostaríamos muito de agradecer essa recepção toda — disse Brian, chamando a atenção de Raul para si. Raul respondeu com uma reverência com a cabeça. — Em segundo lugar — continuou Brian. - Queremos pedir a sua ajuda para voltarmos ao nosso mundo o quanto antes.— Vocês já conhecem o que eu penso sobre essa aventura, mas não vou tentar impedi-los — disse Raul franzindo a testa. — Posso fornecer todo o material e víveres que necessitarem. Porém, a jornada é muito longa e por demais perigosa, mesmo para aqueles que conhecem bem os difíceis caminhos a serem percorridos.— Não temos alternativas — disse Roger, intervindo na conversa. - As conseqüências deverão ser graves caso não regressemos dentro de quatro meses. A ausência desses cinco garotos poderá revelar um segredo de séculos. Os responsáveis por esses jovens nem sabem que eles sumiram e se isso acontecer, as autoridades internacionais farão de tudo para investigar por que tanta gente desapareceu ao mesmo tempo e aí, a Ilha da Coroa ficará infestada de agentes dos governos que acabarão localizando o Portal.— E caso isso aconteça - prosseguiu Guillermo -, Miríades de aventureiros desembarcarão por aqui, pondo fim ao sossego e a segurança de sua gente. - Guillermo se inclinou para frente para

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ser mais convincente, olhando firmemente para Raul. - Acredite meu amigo, o meu mundo foi tomado por gente que, pela cobiça e a sede de poder, faz qualquer coisa para alcançar seus objetivos mesquinhos. Se não voltarmos logo, a sua cidade e o seu mundo estarão seriamente ameaçados.A declaração incisiva de Guillermo deixou Raul apreensivo.— A cerveja chegou! — alertou Brian, interferindo para que a conversa assumisse um tom mais ameno.As canecas foram distribuídas aos seus donos. Rafael olhou a bebida de coloração violeta e correu o olhar entre os meninos que também faziam o mesmo.— Hum... isso é bom! — disse, saboreando a bebida. — O sabor é parecido com pêssego.— Pêssego com mais alguma coisa — opinou Margaret, deliciando-se com a bebida. — É como se fosse pêssego com... morango.— Não sei - disse Chester, virando o último gole. — Só sei que é muito gostoso.— O exercício de hoje deixou o nosso cavaleiro com bastante sede — observou Raul, sorrindo, contente por terem gostado do suco de cor atraente.— A cerveja também está ótima — comentou Guillermo depois de provar mais um pouco. - Só que um tanto... forte, eu diria.-A água dessa região deixa a cerveja assim — explicou Katherine, entrando na conversa. - Mas eu garanto que é uma excelente cerveja.

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-Katherine também é uma cervejeira de mão cheia - elogiou Raul, pegando na mão da esposa. - Nós só não dizemos que ela é a melhor para não provocarmos a ira de Rudolph... Que ele não nos ouça - terminou a última frase sussurrando.-O que você pode nos contar sobre o que enfrentaremos na viagem? — perguntou Roger a Raul, retornando ao que de fato interessava.O falatório aumentava com a chegada de mais gente no salão. Raul teve que elevar um pouco a voz.-Muitas coisas que podem ou não ser úteis - disse Raul, pensando por onde poderia começar. - Mas acho que devo iniciar pelo melhor caminho que vocês devem ir, mas mesmo assim, até esse estará cheio de surpresas e vocês, meus amigos, devem estar preparados para tudo. - Raul olhou para Sebastian, dando-lhe a oportunidade de falar alguma coisa. O prefeito de Nova América continuou:-Primeiramente, para uma expedição dessa importância, é preciso ter um mapa detalhado, e os nossos mapas não são muito confiáveis a partir de um determinado ponto. Esses mapas a que me refiro, foram feitos por desbravadores sem muito conhecimento técnico, ou copiados de outros documentos muito antigos - Sebastian puxou, de baixo da mesa, uma espécie de pergaminho feito em couro e, afastando um pouco as canecas mais próximas a ele para conseguir espaço, desenrolou-o, revelando um minucioso mapa que mostrava uma vasta área desenhada com grande riqueza de detalhes. -

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Aqui estamos — disse ele, localizando o espaço onde ficavam as duas cidades, Nova Europa e Nova América. — A oeste, fica o mar Inóspito. Todos que se aventuraram a navegar por ele não voltaram. Disso, ninguém sabe porquê. As nossas terras estão cercadas, ao norte, a leste e ao sul, pelo deserto do Kundruir - disse, correndo toda área do deserto com a ponta do dedo indicador. — Depois dele, temos a cordilheira de Malthar; por ali a jornada se torna muito difícil, ainda mais quando há crianças no grupo - Margaret fitou Sebastian com irritação, soltando a caneca na mesa, mas não se pronunciou. Raul olhou-a pelo canto dos olhos, certo de que a observação de Sebastian, quando falou em "crianças", a deixaria indignada. O governador de Nova América não percebeu e continuou sua explanação. - Indo mais para leste, após transpor a cordilheira, fica a imensa e magnífica cidade de Paleandrus. Se conseguirem chegar até ela, ficarão maravilhados. Eu mesmo tentei ir até lá, há muitos anos quando ainda era jovem e mantinha comércio com o leste, mas infelizmente não aconteceu.-Qual a distância até Paleandrus? - perguntou Guillermo, para estimar aproximadamente quanto tempo levariam para alcançá-la.-Cerca de... novecentos e quarenta quilômetros, algo assim - respondeu Sebastian, inclinando-se para trás e erguendo os olhos para o teto enquanto fazia algum cálculo mental da distância.

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-É muito longe - cochichou Daniel para Rafael ao seu lado.-E isso não é nem a metade do caminho - disse Raul, se utilizando de um bom argumento para tentar desestimular mais uma vez os visitantes.-Mas esperem — alertou Sebastian, lembrando de um detalhe importante. - Entre o Kundruir e Paleandrus, vocês passarão pelo território de Faogard - disse Sebastian, apontando para uma parte intermediária do mapa. - Cuidado, pois é preciso ter muito tato ao lidar com seus habitantes. São guerreiros ferozes. Eles nos toleram, mas não confiam muito em nós. Os faogardianos ou faogards como eles mesmos se denominam, são uma das barreiras que nos protegem dos nossos inimigos declarados, os crassênidas. E é na terra deste povo que se encontra muito bem guardado o destino de vocês. O disco negro.-E o que há depois de Paleandrus? - perguntou Brian, percebendo que a empreitada seria muito mais árdua do que ele imaginava.-Não está muito claro pra mim - respondeu Sebastian, alisando a espessa barba. — Eu nunca fui além de Faogard, mas alguns humanos foram, e os poucos que tiveram a sorte de retornar não trouxeram boas notícias. Aliás, as informações são bastante desencontradas quanto às localizações de estradas e rios, por exemplo.-E tem alguém nessa cidade que explorou mais além? - perguntou Roger, específico.-Nesse momento não — disse Raul, pedindo, com um gesto de mão, outra rodada de cerveja, e a

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comida. — Estão todos fora. Esses viajantes fazem comércio com os outros povos, e às vezes, passam meses ausentes, só voltando quando a saudade aperta ou os bolsos estão recheados — explicou, entrelaçando os dedos, incomodado com a demora da refeição. - Muitos desses homens foram embora um dia para nunca mais voltarem. O coronel Percy Fawcett foi um deles.Novamente um comentário sobre Fawcett. Daniel não se conteve e se intrometeu na conversa dos adultos.-Desculpem, mas o coronel Percy Fawcett, o britânico, não desapareceu na Floresta Amazônica?-Não, Daniel - respondeu Guillermo, diretamente. Ele respirou fundo antes de contar toda a história. - Percy Harrison Fawcett era um grande desbravador, um apaixonado pelo desconhecido. Ele costumava viajar pelos lugares mais insólitos à procura de novos conhecimentos.— Fawcett era membro da Sociedade do Círculo de Pedra? — perguntou Rafael, deixando Marc, Chester e Margaret sem entender direito do que eles falavam.— Sim, um dos mais apaixonados - disse Brian com total conhecimento pelo fato de Fawcett também ser britânico como ele. - Ele e seu filho, Jack.— Mas, após explorar tantos lugares, restava uma coisa que ele queria fazer, mais do que tudo na vida - disse Guillermo como quem conta uma história à beira da lareira em uma noite de inverno.

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— Atravessar o Círculo de Pedra — adiantou-se Margaret, os olhos brilhando.— Exatamente isso - concordou Guillermo, o olhar vidrado para ela. Depois mudou para uma feição mais natural. — Fawcett era um homem conhecido por muita gente em todo o mundo. Se essas pessoas relacionassem o seu desaparecimento à Ilha da Coroa, não teríamos paz por muito tempo.— Foi então, que se decidiu falar oficialmente sobre o seu desaparecimento, e de seu filho, em uma expedição científica na maior floresta tropical do mundo - emendou Brian, apontando para Daniel.— Então essa história do desaparecimento na floresta... - reforçou Daniel, achando tudo muito interessante.— Foi plantada, para desviar para bem longe as atenções — esclareceu Roger. - A notícia foi amplamente divulgada entre os meios de comunicação de todos os contigentes. Para tornar a história mais real, o coronel Fawcett se embrenhou pela floresta, sendo visto por diversas pessoas que depois se tornaram testemunhas oculares de sua passagem, e após algum tempo, ajudado por membros de nossa sociedade secreta, ele retornou incógnito à Ilha da Coroa. Daí, o resto vocês já sabem, o coronel Fawcett atravessou o Portal e aqui chegou. Mesmo Alexei Martov, que andou por aqui, não teve nenhum encontro com ele. Essa é a história do famoso aventureiro.

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Uma possibilidade que parecia bastante viável ocorreu a Rafael.— Porque não vamos pelo mar? Vocês devem ter um barco, não é mesmo?— Temos sim — respondeu Raul, voltando-se para o menino. — E essa seria a melhor opção se não houvesse um enorme problema: os crassênidas são a maior força naval dentre todos os povos; suas embarcações chegam a contornar boa parte da Cadecália, e qualquer barco que invadisse o litoral daquele povo seria abordado ou, provavelmente, afundado antes que os tripulantes conseguissem dar qualquer explicação. Eles não gostam nem um pouco de nossa gente. Agora, imagine um barco com nove humanos sendo apanhado costeando Crassen. Qualquer embarcação, por menor que seja, pode ser notada a quilômetros no meio do oceano.Raul fez uma breve interrupção e voltou a explanar.-Os faogards vigiam constantemente a costa do seu território e também mantêm postos avançados em nossas praias, pois se acautelam de uma possível invasão pelo mar. Já foram avistados navios de guerra crassênidas nessa ponta do continente. O que eles estariam fazendo em nossas águas? Portanto, a melhor opção ainda é a travessia pelo interior da Cadecália, onde temos florestas e montanhas para nos esconder.Sebastian, que percebeu a tão esperada refeição chegando, enrolou rapidamente o mapa para dar espaço aos pratos. As bandejas com a comida

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começaram a ocupar a mesa. Uma delas estava repleta de pedaços de carne de porco, e rodelas de cebola assada aguçavam o aroma do pernil. Em outra bandeja, batatas e cenouras, misturadas com finas fatias de carneiro regadas a molho de laranja completavam a refeição. O cheiro era convidativo.-Acho que eu não vou querer mais ir embora - disse Guillermo, faminto, abocanhando um apetitoso naco de pernil.A conversa sofreu uma pequena pausa para o deleite dos convidados. A música animava o salão, chamando a atenção de Rafael.-Veja, Marc — disse, cutucando de leve o braço do amigo. — O flautista até que toca bem, mas que tal você mostrar o que pode fazer?-Eu não quero me mostrar como fez Chester quando domou o cavalo - respondeu, determinado em livrar-se da responsabilidade.-Eu não quis me mostrar coisa nenhuma - protestou Chester, a boca cheia de comida. — Mas confesso que o gosto da fama é muito bom — confessou rindo.-O senhor conhece o talento de Marc para a música? - perguntou Rafael a Raul, ignorando a vontade de se esconder do amigo músico. Marc fez uma cara feia, desaprovando Rafael. - Ele toca flauta como ninguém. É um gênio nessa arte.-Ora, mas que boa notícia! - alegrou-se Raul. - Parem a música! - gritou ele, todos no salão olharam com cara de espanto. - Tem um artista entre os nossos convidados e peço a atenção de

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todos vocês para uma apresentação do jovem Marc...-Marc Fournier — ajudou Rafael, soprando para o prefeito.-Isso mesmo - consertou Raul. - Marc Fournier! Por favor, caro amigo, Marc, vá até ao nosso humilde palco e nos dê uma demonstração do seu enorme talento.Marc se levantou, fuzilando Rafael com os olhos.-Vai logo! - disse Rafael, sorridente, ajeitando-se na cadeira para a audição.Marc tomou emprestada a flauta e começou a tocar uma melodia suave, encantadora. A platéia ouvia com atenção, tal era a desenvoltura do menino. Após a primeira apresentação, Marc quis incendiar o salão com uma música mais agitada. Os componentes da banda o seguiram, entusiasmados. O ritmo da música era acompanhado por palmas animadas e pés sendo batidos no assoalho tosco. Ao final da curta apresentação, Marc se levantou agradecendo e foi ovacionado de pé. Foi, talvez, a apresentação mais emocionante da sua vida. Ao sentar-se novamente perto de Rafael, ele reconheceu:-Te agradeço por ter feito aquilo.-Não há de quê — disse Rafael, piscando um olho.No meio do salão, em uma das mesas, estavam Hans e Leonard, os tratadores de cavalos. Hans comentou novamente:-O menino é um feiticeiro. Nenhum ser normal consegue tocar dessa maneira.

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O dono da flauta que Marc havia usado se aproximou da mesa dos convidados.-Tome, quero que aceite essa flauta.-Mas, eu não devo, ela é sua — disse Marc, constrangido.-Eu insisto - disse o flautista. - É um presente.-Vamos, Marc, pegue a flauta - recomendou Raul, fazendo um gesto com a mão. - É um ótimo instrumento, você vai gostar.-Tenho certeza disso - afirmou Marc, ainda meio sem jeito, pegando a flauta solenemente. - Ela tem um som maravilhoso.O rapaz que presenteou Marc fez uma reverência e se afastou.Depois da agitação causada por Marc, com uma pequena ajuda de Rafael, a festa voltou ao nível de antes.-Quando vocês pretendem partir? - perguntou Raul, empurrando o prato, satisfeito com tanta comilança. — Não que eu queira que vocês vão embora — disse, com todo cuidado.-Logo que tenhamos todo o material disponível — disse Roger, soltando a caneca de cerveja vazia na mesa. — Não temos opção, teremos que partir sem um guia.-Acho que tem um homem que pode ajudá-los — disse Sebastian, erguendo uma sobrancelha. — Só não sei se ele está disposto a fazer isso. — Até Raul estranhou as palavras do governador de Nova América.-Do que você está falando? - perguntou Roger, bastante interessado.

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-Raul ainda não sabe, no entanto, um dos mais experientes desbravadores das terras longínquas retornou faz menos de duas semanas e está em Nova América. O seu nome é Bartolomeu Funchwooc.-Bartolomeu voltou? - surpreendeu-se Raul. - Precisamos falar com aquele fujão. Vocês não poderiam arranjar um guia melhor.-Espere um pouco, Raul - disse Sebastian, com reserva. - Você conhece bem Bartolomeu e sabe como ele é temperamental. Pelo que sei, ele não está nem um pouco propenso a pôr o pé na estrada tão cedo e, além disso, ele só viaja sozinho.-Mas essa é uma situação especial — ponderou Raul, com a intenção de meramente ajudar os novos amigos e prevendo que mesmo com ajuda, o risco das coisas darem errado seria muito grande.— Podemos ao menos falar com ele - sugeriu Guillermo.-Ele não gosta de estranhos — retrucou Sebastian, inexpressivo. - Acho mesmo que ele não gosta de ninguém. Por isso costuma se isolar no deserto ou nas montanhas.— Vocês acham que temos alguma chance de ele ir com a gente? — indagou Brian, desejoso de ter alguém que possa mostrar-lhes o caminho mais curto e seguro até o Portal.-É difícil dizer - observou Sebastian, tirando os óculos e descansando-os em cima da mesa. Ele esfregou os olhos. - Mas posso arranjar um encontro com ele. Eu tenho um relacionamento

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amistoso com Funchwooc. Porém, isso não garante que ele vá com vocês.-Não custa tentar - disse Guillermo, inclinado a ir até Nova América conhecer e convencer Bartolomeu Funchwooc.-Então está acertado — decidiu Sebastian, olhando a todos à mesa. - Partiremos amanhã bem cedo. Quero que um de vocês me acompanhe para expormos a Bartolomeu toda a situação. Outra coisa, se bem conheço aquele homem, ele é rude, mas tem um bom coração quando se trata de crianças. Quando ele souber que existem menores correndo algum perigo, pode ser que se comova e aceite ajudá-los.— Eu vou — comprometeu-se Guillermo. — Vocês precisarão de alguém que saiba negociar — disse, seguro de suas habilidades de convencimento.— Eu quero ir — ofereceu-se Margaret, sem hesitar.— Alguém vê alguma objeção? - quis saber Sebastian. Ninguém se opôs. — Se é assim, estejam prontos quando o sol sair.— Os cavalos estarão selados aguardando na praça — avisou Raul, os pratos e as bandejas vazias começaram a ser recolhidos.Aos poucos, as pessoas foram se retirando para suas casas. A banda parou de tocar e a festa foi substituída pelo sossego.Raul colocou sobre a mesa um pequeno volume envolto em um pano marrom, empurrando-o na direção de Daniel.

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- É pra você - disse, esperando que o menino abrisse o presente. Daniel desembrulhou desconfiado.-O baralho! - exclamou surpreso. - O baralho de... Como é mesmo o nome?— Dakenkal Lunfe — lembrou Raul, contente pela alegria de Daniel. — Uns amigos me contaram sobre hoje à tarde e esse é um presente que eu quero que leve e guarde pra sempre como um sinal de nossa amizade por vocês.— Como soube das cartas? Apenas falei por alguns instantes com um grupo de garotos quando voltava do cercado dos cavalos. - Daniel estava encantado com o presente.— Sei de muitas coisas que acontecem nessa cidade. Afinal, eu sou a autoridade -máxima por aqui, não é mesmo? — E sorriu satisfeito como um bom anfitrião.— Vamos nos recolher - recomendou Brian. - Todos têm que descansar bem essa noite. Principalmente vocês, garotos.

Raul e Denis já estavam posicionados ao lado dos cavalos quando Sebastian, Guillermo e Margaret deixaram a estalagem, após o desjejum. O movimento nas ruas, de tão cedo, ainda era pequeno. O frescor da alvorada prometia uma viagem tranquila. Roger, Brian e os meninos se juntaram a eles.— Chegaremos à Nova América ainda pela manhã — estimou Sebastian, verificando o arreio de sua montaria. Num impulso e ele estava montado.

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— Boa sorte! - desejou Raul, exibindo um semblante amistoso.Margaret, Guillermo e Sebastian se despediram e afastaram-se em trote lento, - seguindo por uma das ruas no sentido de Nova América.O trajeto não foi difícil. A estrada era arborizada dos dois lados em muitos pontos. A presença de pássaros e pequenos animais, como roedores, era constante. Em pouco mais de três horas eles já avistavam a pequena Nova América, pouco menor que Nova Europa, mas com o mesmo estilo arquitetônico de cidade antiga. Um rapazola de uns dezesseis anos e uma linda moça um pouco mais velha vieram recebê-los na entrada da cidade: Jean e Sylvia. Eles eram os dois filhos mais novos de Sebastian, num total de seis. As apresentações foram feitas e os dois jovens ficaram sabendo resumidamente o propósito da presença dos visitantes.— Vimos Bartolomeu cruzando a avenida principal agora há pouco - informou Sylvia, seus olhos de um azul-claro resplandeciam com a luz do dia. Seus cabelos louros caíam em mechas sobre os ombros.Guillermo se encantou com a beleza da jovem. Sebastian percebeu e não gostou nem um pouco; afinal, Guillermo estava ali de passagem e não havia qualquer possibilidade de um relacionamento mais afetivo. Sebastian pigarreou.— Devemos ir logo — determinou ele com ar mais sério. — Quero resolver esse assunto antes do almoço.

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O grupo cruzou a cidade, sendo observado por diversos olhares curiosos. Náo era comum se ver duas caras novas de uma só vez por aquelas bandas. Ainda por cima na companhia do governante da cidadezinha.-Estamos quase na extremidade de todo o continente — comentou Sebastian enquanto cavalgava ao lado de Guillermo e Margaret. Um galho mais baixo de uma árvore de tronco grosso, quase roçou no rosto dela. Margaret afastou com a mão. — Essa nossa condição nos deixa totalmente fora das rotas de comércio - lamentou, seu olhar se perdia lá na frente. - Mas devemos dar graças por nos deixarem ficar com esse pedaço de terra e podermos tocar nossas vidas sossegadarnente.-O que aconteceu quando os humanos começaram a chegar, atravessando o Portal? — perguntou Guillermo, interessado em conhecer um pouco da história dos ancestrais de Sebastian.-No início foi muito difícil - contou ele, sua memória buscou fatos antigos, passados de geração a geração. - Os habitantes da Cadecália, é assim que chamamos esse continente, não foram muito hospitaleiros com nossos antepassados. Quando os povos das terras ao redor viram que nós humanos não oferecíamos qualquer ameaça, permitiram, com algumas restrições, que nos estabelecêssemos nesse fim de mundo.-Que restrições são essas? - perguntou Margaret, acariciando o pescoço do seu cavalo.

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-Que não ampliássemos os nossos domínios, não causássemos problemas para os povos dó oeste e, acima de tudo, não mantivéssemos qualquer relação com a grande civilização do extremo leste, os crassênidas, que já tive a oportunidade de mencionar. Por tudo isso, o nosso território ficou, para sempre, limitado entre o mar Insólito e o deserto de Kundruir. E se querem saber, a maioria de nós acha isso muito bom. Essas terras nos dão quase tudo o que precisamos para viver e ninguém nos incomoda, já que somos inofensivos para causar qualquer tipo de preocupação a quem quer que seja.Os três já haviam atravessado a cidade e penetrado em uma trilha sem nenhum vestígio de civilização. Ao transporem um córrego de águas límpidas, avistaram uma cabana simples entre árvores e arbustos. À frente da cabana, havia um poço redondo cercado com tijolos e um jardim mal cuidado, tomado pelo mato, que exibia algumas flores amarelas.-É ali que mora Bartolomeu - disse Sebastian enquanto se aproximava. - Pelo menos é aqui que ele fica quando não some por meses.-A casa parece vazia — observou Margaret. — Acho que ele não está.-Deve estar - disse Sebastian, apeando. - Sinto cheiro de carne de caça assando. Vejam a fumaça saindo da chaminé.-Aquele não é o cavalo dele? - perguntou Guillermo, avistando o animal de cor negra e com apenas uma mancha branca na testa, amarrado

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que estava ao lado da casa de madeira. — Sebastian confirmou com a cabeça.Sebastian foi até o poço e tomou um pouco de água de uma jarra de cerâmica.A porta da cabana se abriu com um rangido seco e, de dentro da casa, surgiu um homem alto, de cabelos compridos e barba por fazer, sua cara de poucos amigos parecia não ter gostado nem um pouco da visita inesperada.-A sua vinda aqui deve ter um motivo muito forte, governador - disse ele, saindo na soleira da porta.-Realmente tem - confirmou Sebastian, se aproximando do homem de olhar duro. - Esses são meus amigos, Guillermo e Margaret.-Estrangeiros - deduziu Bartolomeu. Guillermo reparou uma enorme faca que pendia de sua cintura. Ela seria capaz de decepar a perna de um adulto de um só golpe.-Vieram pelo disco branco - disse Sebastian, trocando olhares com Guillermo.-Ótimo, sejam felizes - disse Bartolomeu, e virou-se para entrar.-Espere! — exclamou Margaret. — Precisamos de sua ajuda.Bartolomeu parou e voltou-se lentamente, seu olhar frio e desconfiado foi direto para a menina. Ele a fitou por um tempo que para ela parecia ser interminável.-Entrem, tenho chá quente e carne de coelho assando - disse, arrumando a faca de lâmina comprida e afiada na cintura. Sebastian fez um sinal para Margaret e Guillermo entrarem e não

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desperdiçarem o convite, pois provavelmente não teriam um segundo.O interior da cabana era simples e desarrumado; o cheiro de coisa velha, causado pelo tempo que o lugar esteve fechado foi disfarçado pelo odor da comida que vinha de uma lareira funda que também era usada como fogão. Uma mesa pequena no canto da sala foi oferecida aos convidados não tão bem-vindos que trataram logo de se sentar para não contrariarem a aparente boa vontade do homem.-O que vocês querem? — perguntou Bartolomeu, arrumando a lenha no fogareiro improvisado.-Os meus amigos desejam muito retornar ao mundo deles e terão dificuldades de conseguir se um guia experiente como você não ajudá-los — disse Sebastian, expondo a situação sem desperdiçar nenhum tempo.-Eles encontrarão dificuldades mesmo com um guia - respondeu Bartolomeu, rapidamente, girando a carne no fogo. - Duvido mesmo que consigam - ele olhou diretamente para Sebastian. - Serão todos mortos antes.— Olhe, Sr. Bartolomeu, somos em oito pessoas, três adultos e cinco garotos, Margaret é uma delas - explicou Guillermo, pondo a mão no ombro da menina que examinava com os olhos os cantos do casebre. - Se você não for com a gente, as nossas chances serão bem menores, mas teremos que partir logo, com ou sem ajuda. Caso não saiba, há alguns anos um homem, Alexei Martov, conseguiu regressar.

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Bartolomeu contraiu a face. O nome de Alexei lhe era familiar. Ele parou de mexer na fogueira por alguns instantes, parecia estar refletindo sobre o apelo de Guillermo. Bartolomeu tirou um espeto grande com dois coelhos atravessados, a carne estava tostada e pronta para ser servida. Então, destrinchou a carne assada em um prato grande sobre a mesa e indicou com a mão para que Margaret, Sebastian e Guillermo se servissem. Uma jarra com chá quente e canecas de barro foram postas sobre a mesa, sem muita cerimônia. A refeição estava pronta. Bartolomeu sentou-se junto com os outros e começou a comer sem se importar muito se seus convidados faziam o mesmo. Guillermo não sabia que decisão Bartolomeu havia tomado, então, resolveu recorrer aos possíveis bons sentimentos que pudessem ainda existir no coração daquele homem.— Você tem a fama de um homem que gosta de solidão — disse, apoiando um cotovelo na mesa e se pondo de frente, encarando Bartolomeu que continuava comendo, indiferente. — Se não voltarmos, em muito pouco tempo outros virão; milhares, talvez milhões de pessoas como nós atravessarão por aquele buraco e irão transformar esse lugar num verdadeiro pandemônio. Você e sua gente nunca mais terão paz; eles se espalharão pelos desertos, montanhas e florestas. Acredite, meu amigo, os humanos são a pior praga que pode existir.— Como se eu não soubesse — murmurou Bartolomeu enquanto olhava a fumaça saindo da

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caneca de chá.— Então, o que me diz? - cobrou Guillermo, beliscando um pedaço de carne, o gosto estava bom.Bartolomeu olhou para Margaret. Por um momento, ela teve a impressão de que por trás daquele rosto carrancudo estava um homem de boa índole. Os olhos dele transmitiam uma espécie de ternura embrutecida.— Eu vou, mas com uma condição - disse Bartolomeu, com a face endurecida. Guillermo suspirou relaxando. Margaret sorriu agradecida. - Enquanto servir de guia eu dou as ordens. As decisões serão tomadas por mim sem questionamentos, é pegar ou largar.Guillermo aceitou as condições sem retrucar.— Ótimo! - exclamou Sebastian, apoiando as duas mãos sobre a mesa e se levantando. - Eu e meus convidados voltaremos agora para a cidade. Tenho que resolver algumas coisas e aproveitar o tempo que nos resta para mostrar-lhes um pouco da nossa acolhedora Nova América. Dentro de duas horas Guillermo e Margaret estarão esperando por você próximos a capela, na saída da cidade. O prefeito Raul estará esperando por vocês com provisões e boas montarias.-Você não volta conosco? - perguntou Guillermo a Sebastian.-Não, minha missão termina aqui - respondeu, com a sensação do dever cumprido. - É imprescindível que eu fique. Administrar uma cidade não é fácil e meus filhos não gostam que eu me ausente por muito tempo. Na verdade, eu

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também não gosto de ficar tanto tempo longe deles - confidenciou.Guillermo e Margaret aguardavam a chegada de Bartolomeu em frente à capela da cidade. O guia taciturno surgiu no final da rua trotando lentamente; sua única bagagem era um alforje preso no lombo de seu cavalo negro e seu facão que pendia da cintura, oscilava com o balanço cadenciado do quadrúpede. Ao avistarem Bartolomeu, os dois montaram e se uniram a ele. Uns poucos habitantes que caminhavam por ali naquele momento, especulavam o que dois estranhos faziam na companhia daquele homem arredio. Bartolomeu jogou os cabelos compridos para trás, mostrando melhor seus olhos sombrios. Ele avisou:-Se galoparmos em bom ritmo chegaremos antes do anoitecer.

A viagem de volta foi marcada pelo silêncio. Sem conhecerem direito Bartolomeu, Guillermo e Margaret se limitavam a falar o estritamente essencial. Eles não queriam dizer nada que fizesse Bartolomeu se arrepender e fazer meia-volta.O sol já escondia parte do seu disco por trás das colinas quando os viajantes entraram em Nova Europa.Apesar da viagem extenuante, Margaret ainda mantinha o vigor de sua juventude. Ela saltou de seu cavalo e se pôs a correr entrando esbaforida pela hospedaria e chamando a atenção dos seus

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amigos que se encontravam aguardando os amigos para o jantar.-Conseguimos um guia! - anunciou ela, fazendo questão de trazer a novidade. - Ele é um homem estranho e conversa pouco, mas acho que no fundo é uma boa pessoa - metralhou a menina antes que Bartolomeu aparecesse.Guillermo e Bartolomeu entraram em seguida. Roger não gostou do aspecto de Bartolomeu quando o viu. Guillermo fez as apresentações.-Amigos, esse é Bartolomeu. Bartolomeu, essas são as pessoas que você vai guiar de volta pra casa.A mesa do jantar ainda estava sendo preparada por Rudolph, o taberneiro.-Acho que dá tempo de nos lavarmos - disse Guillermo, passando a mão no pescoço, tirando uma camada grossa de poeira e suor.-Não demore - alertou Rudolph. - Ou a carne estará tão gelada quanto a cerveja quando você voltar.Momentos depois, em torno da mesa do jantar, se reunia todo o grupo de visitantes, mais Bartolomeu e o governador Raul que fez questão de se fazer presente.- Já decidiram quando pretendem ir? — perguntou Raul, molhando um pedaço de pão no caldo da carne de carneiro ensopado.-Amanhã, logo que o sol sair - comunicou Brian, segurando a caneca enquanto Rudolph despejava uma generosa dose de cerveja.-E qual caminho planeja usar? - voltou a perguntar Raul, dessa vez dirigindo- se a

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Bartolomeu.Bartolomeu continuava mastigando, parecia querer evitar qualquer tipo de diálogo. Ele não desviou os olhos de sua comida. Sua voz era pausada.-Depois de atravessarmos o deserto do Kundruir, passaremos pelos campos baixos e entraremos no desfiladeiro Blarbuk. - A menção do nome do desfiladeiro transformou a fisionomia do governador. Raul sabia de algo. Bartolomeu continuou a expor o seu plano. - O próximo passo é atravessar as colinas e então chegaremos ao território dos faogards. A partir daí, não tenho nada planejado. Vai depender mais de sorte do que de estratégia. Nem sei se todos chegarão vivos até o final — disse secamente, enchendo de cerveja sua caneca. — Outra coisa, a partir de agora, eu dou as ordens e quero que vocês todos acatem as minhas decisões sem perguntas.-Como você não tem nada planejado? - perguntou Roger, em tom de protesto.-Estamos prestes a enfrentar uma jornada dessas proporções e você não planejou toda a rota? Que diabo de guia é você?-Do tipo que não pediu para fazer isso - respondeu Bartolomeu, irritado. Ele bebeu de uma só vez a metade da cerveja de sua caneca e largou na mesa a faca que estava usando para cortar a carne. Seu olhar voltou-se para Roger. — Escute aqui, senhor forasteiro, nenhum de vocês conhece este mundo. Aliás, ninguém que esteja nesse momento em Nova Europa ou Nova América saberia conduzir os seus amigos até o

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outro lado do continente escolhendo o caminho mais curto e seguro. Se não está satisfeito procure outra pessoa — concluiu ele, tomou o resto da cerveja e voltou a encher sua caneca até a boca. Raul preocupou-se, Bartolomeu não era dado a bebedeiras.-Por mim, vamos sozinhos — rebateu Roger, rejeitando Bartolomeu como guia.— Não estou disposto a seguir as ordens de alguém em que eu não possa confiar.Bartolomeu se levantou, decidido a desistir da expedição.— Então, está feito. Se virem sem mim!— Ei! Ei! Espere um pouco! - intercedeu Guillermo, procurando amenizar os ânimos - Necessitamos de toda a ajuda que pudermos dispor. Desculpe, Bartolomeu, mas a nossa obrigação em conduzir os meninos a salvo de volta está abalando os nervos de todos nós.Os meninos, confusos, assistiam o desentendimento dos adultos.Raul também se meteu, esforçando-se para restabelecer a paz entre Roger e Bartolomeu. Era numa hora dessas que sua experiência em administrar conflitos falava mais alto.— Ouçam-me um pouco! Você primeiro, Roger. Bartolomeu é um perito que já desbravou grande parte do continente cadecaliano. Ele conhece bem desde o Kundruir até o território crassênida, Sem ele, a tarefa a ser realizada se tornará dificílima, talvez impossível. — Roger se segurava, mas o comportamento rude de Bartolomeu o incomodava. Roger estava

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acostumado à severa disciplina e ele não aceitava muito bem o fato de um homem incrédulo, arrogante e sem um plano para cumprir uma missão tão importante, se auto-elegesse para comandá-los, incondicionalmente. Raul prosseguiu. — E você, Bartolomeu, nossos amigos estão numa situação complicada. Eles não conhecem esse imenso continente. Imagine se você atravessasse o Portal e chegasse a uma terra totalmente estranha. Como se sentiria? Se coloque no lugar deles. Você tem a oportunidade de ajudá-los e eu sei que pode — Raul suavizou a voz. — Nós o conhecemos há muito tempo e eu sei que você é um homem bom. Ajude-os.Bartolomeu olhou os garotos, olhou para Margaret. Ele voltou a se sentar.Brian quis dar sua contribuição para que tudo voltasse ao normal e ele mesmo encheu a caneca de Bartolomeu.Raul ergueu sua caneca, propondo um brinde.— Um feliz retorno ao mundo de nossos ancestrais!Eles comeram e beberam à vontade. Bartolomeu continuou bebendo acima da conta sob o olhar vigilante de Raul. Foram muitas canecas, uma após a outra.Guillermo, cansado, quis se recolher ao seu quarto.— Se eu não acordar amanhã cedo, me chutem - ele recomendou em tom de brincadeira.Bartolomeu aproveitou para sair da mesa, cambaleando e se apoiando nos encostos das

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cadeiras, ele foi se desviando entre as mesas em direção à saída.— Não estou com sono — disse Brian, também se levantando. — Vou caminhar um pouco pela cidade. Alguém vem comigo?-Eu vou - disse Raul, agarrando sua bengala. - Você nos acompanha, Roger? — Roger aceitou o convite. Precisava de um pouco de ar puro depois daquela conversa nada amigável com Bartolomeu.-Também quero ir! - exclamou Daniel, se dirigindo para a porta da saída.-Você vai é pra cama! - ordenou Brian, apontando para a escada que levava aos quartos. Sua expressão era severa. — Não quero ninguém morrendo de sono quando partirmos.Gritos vindo de fora da pousada chamaram a atenção. Raul fez uma cara como quem já soubesse o que estava havendo. Ele foi o primeiro a sair batendo forte com a sua bengala no assoalho. Todos correram para fora, curiosos. Na entrada da pousada, lá estava ele: Bartolomeu, bêbado e descontrolado, berrando para quem quisesse ouvir.-Olhem pra isto! — gritou ele, segurando uma pá de cabo curto acima da cabeça. - Enterraremos nossos mortos com ela!Roger aproximou-se de Bartolomeu para repreendê-lo.-Pare com isso, não vê que está assustando os meninos?-Quem é você pra me dar ordens, forasteiro? — disse apertando o dedo indicador no peito de

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Roger.Bartolomeu era um homem grande e forte, mas naquelas condições, não seria páreo para o lutador de boxe. Roger preferiu não revidar as provocações.Os passos de Bartolomeu oscilaram e ele parou em frente a Rafael, olhando o garoto com interesse. Depois discorreu com certo cinismo.-Que curioso, alguns dos nossos amigos são crianças, não teremos muito trabalho quando cavarmos suas... covas.-Cale essa boca! - exasperou-se Roger, agarrando-o pelo braço.Raul interveio enfiando-se no meio de Roger e Bartolomeu, fazendo de tudo para evitar algo pior entre os dois.-Chega! Venha comigo, Bartolomeu. Vou com você até seu quarto.Bartolomeu livrou-se da mão de Roger com um puxão forte. Raul era uma das poucas pessoas que ele ouvia, mesmo quando fora de si.Os ânimos se acalmaram e Raul, depois de dialogar serenamente com Bartolomeu e mandá-lo para o quarto, voltou a ter com os convidados.-Desculpem o que ele fez, amigos. A sua atitude impensada foi o jeito de ele pedir para vocês desistirem de uma vez por todas, mas acho que não adiantou muito, não é?-Precisamos mesmo ir - confirmou Brian, impassível.Raul torceu a boca, no entanto deu-se por vencido.

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As pessoas que ainda se aglomeravam na frente da pousada foram, aos poucos, se dispersando, indo para suas casas.Brian, Roger e Raul deixaram a Pousada do Javali Roncador e passaram a atravessar a praça principal da cidade. O céu estava estrelado. Somente algumas nuvens despontavam a leste, ocultando as montanhas distantes.Eles pararam em frente ao busto no centro da praça.— Quem é ele? - perguntou Brian, observando a estátua de pedra escura que deveria ser muito antiga.— Gaspar Manuel - informou Raul. - O fundador de Nova Europa. Ele foi um dos primeiros a atravessar o portal. Manuel trabalhou muito para erguer a cidade, mas morreu infeliz, pois conta a história que no seu mundo ele era um valoroso capitão dos mares, mas não conseguiu evitar a perda de centenas de vidas, quando o navio que estava sob o seu comando afundou. Mesmo após tantos anos, quando ele já estava velho e doente, ainda se cobrava por não ter conseguido fazer nada para salvar mulheres e crianças da morte. Mas isso não faz a menor diferença, pois para o meu povo, ele é um verdadeiro herói.Os três continuaram caminhando e alcançaram uma rua larga, iluminada com brilhantes pedras de luminita. Um ou outro transeunte, voltando para casa, era prontamente cumprimentado pelo governador.— Fale um pouco mais de Percy Fawcett — pediu Roger, disposto a saber mais do explorador

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desaparecido.— Era um homem interessante e muito inteligente. Perguntava sobre tudo o tempo todo. Depois de várias semanas, quando finalmente conseguiu se munir de um número considerável de informações sobre o continente, ele resolveu seguirviagem com o seu filho e seu amigo.— Fawcett disse para onde iria ou o que pretendia fazer? - indagou Brian, colocando as mãos nos bolsos enquanto caminhava, os olhos voltados para o chão.— Ele me disse, pouco antes de ganhar o deserto, que havia um continente inteiro para desbravar, e que isso o deixava extasiado. - Raul cadenciava os passos com o apoio de sua bengala. - Um viajante, Cornélio Zoperone é o seu nome, seguiu com ele até Faogard. Meses depois, Cornélio retornou contando que não o viu mais.— Alguém mais soube do paradeiro de Fawcett depois disso? - quis saber Roger, os olhos voltados para uma janela que era fechada, os moradores se preparando para dormir.Só um aventureiro, Lughy, o mestiço, falou que o viu na parte nordeste do continente, próximo ao território dos Anuabis, uma raça perigosa de seres com corpo de gente e cabeça de chacal - Raul girou a bengala e voltou a tocá-la no chão, dando seqüência a batida cadenciada. - Mas Lughy é um mentiroso e suas histórias não são dignas de crédito. Ele inventa essas coisas para conseguir alguma bebida fácil dos tolos que gostam de ouvir histórias, mesmo que não sejam

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verídicas. Essa notícia dada por Lughy, verdadeira ou não, foi a última vez que se ouviu falar sobre Percy Fawcett.O fim da rua por onde andavam Roger, Brian e Raul, desembocava numa área de vegetação rasteira e dali para frente era somente o deserto pedregoso do Kundruir. Sem as luzes da cidade, só havia a escuridão misteriosa e o fascinante deserto adentro. O vento que vinha da escuridão levantava algumas folhas secas... e era o único som que se ouvia, além das vozes dos aventureiros e seu anfitrião.Roger cruzou os braços sobre o peito, parado diante da imensidão do deserto. Uma lembrança de algo que havia acontecido no momento em que chegaram na Cadecália voltou a sua mente.- Logo que chegamos aqui, ainda no círculo branco, vimos alguém sair detrás de uma das rochas que contornam o Portal e sumir dentro do bosque. Agora, pensando melhor, não entendo por que um habitante desse lugar faria aquilo.— Como ele era? — perguntou Raul, intrigado.— Não conseguimos ver o rosto dele — disse Roger, enrugando a testa. — Ele estava coberto com uma veste comprida e um capuz que deixava o seu rosto escondido pela sombra.Raul raspou a ponta de sua bengala no chão duro do deserto seco, refletindo sobre o que Roger acabara de lhe dizer. Depois comentou preocupado:— Espero estar equivocado, mas acho que estamos sendo espionados. Desde a chegada de Fawcett e depois Martov, o povo comenta sobre

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esses encapuzados. Alguns até falavam que poderiam ser fantasmas. E agora você me conta que também viram a mesma coisa.- Você desconfia quem pode estar andando por aí vestido como uma assombração e fugindo quando é descoberto? - perguntou Brian, interessando-se pelo caso.- Desconfio sim, e agora mais do que antes - disse Raul, um tanto apreensivo. - Crassênidas, ou alguém a mando deles. Se for assim, aves mensageiras estão cruzando o céu nesse momento rumando para o leste, do outro lado do continente, para avisar da chegada de vocês.- Não entendo - disse Brian, muito intrigado. - Se a espécie humana é tão inofensiva, por que deveriam existir espiões infiltrados por aqui?— Isso tem uma explicação - disse Raul, sentando-se numa pedra grande. Ele descansou a bengala atravessada no colo. - Existe uma lenda muito antiga que fala dos demônios do oeste que viriam um dia do inferno para trazer a desgraça e a destruição aos povos do leste de Cadecália.- E esses demônios... seríamos nós — deduziu Roger, agachando-se ao lado de Raul e pegando uma pedra porosa.- Isso mesmo — concordou Raul. — Essa lenda é muito antiga. Dizem que existe há milhares de anos. A nossa sorte é que os povos do oeste não gostam dos crassênidas e por isso, resolveram nos proteger por nos considerarem seus aliados. Parte do povo anuabi, os de cabeça de fera, também acredita na lenda, e isso não é muito bom para nós.

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- Por que não é bom? — quis saber Brian, a história estava se tornando atraente para ele.- Existe um equilíbrio de forças entre os crassênidas, que têm um enorme poderio militar, distribuído em um vasto território, e os povos do oeste. Os anuabis se mantém mais ou menos neutros nessa questão, pendendo um pouco para o lado dos crassênidas, eu diria. - Raul ergueu a cabeça, admirando a noite; fora da cidade, as estrelas eram muito mais brilhantes. - Essa discreta preferência dos anuabis em apoiar os crassênidas tem certa lógica. Ambos cultivam uma sólida relação de comércio que envolve metais, luminita e alimentos. Se numa guerra, os anuabis apoiarem os crassênidas contra o oeste, os aliados poderão ser totalmente dizimados.- Então estamos indo direto para os braços do inimigo - disse Roger, atirando a pedra porosa que se perdeu na noite do deserto.- Infelizmente, essa é a realidade - admitiu Raul. - Temo por vocês, meus amigos. Por isso, a ajuda de Bartolomeu é tão importante. Ele é um dos poucos do nosso povo que tem alguma chance de guiá-los pelas terras do leste sem que vocês sejam descobertos.- O que há com Bartolomeu? - perguntou Brian, um vento mais frio começava a soprar vindo do deserto. — Quero dizer, por que ele é assim...- Mal-humorado? - completou Raul. - Bartolomeu nunca foi um homem muito sociável — Raul apoiou-se em sua bengala para se levantar. — Vivia para a família, sua mulher e sua única filha de onze anos. O amor que ele sentia pelas duas

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era digno de um conto de fadas. Mas, terrivelmente, num espaço de menos de um ano ele perdeu mulher e filha. Até hoje ele se culpa pela morte de ambas.A trágica história de Bartolomeu deixou Roger pensativo. Ele havia passado por situação semelhante.Brian imediatamente percebeu porque Bartolomeu e Roger tinham comportamentos parecidos. O ressentimento da perda de quem se ama pode deixar uma pessoa amarga para o resto da vida. No caso de Bartolomeu ainda era pior. Ele havia perdido, além da mulher, a sua única filha.- Estou um pouco velho para apoiar essas andanças, se lhes interessa saber - disse Raul. - Nasci em Nova Europa e, por certo, darei meu último suspiro e serei enterrado por aqui mesmo. Durante muitos anos venho nesse lugar sozinho e me sento nessa mesma pedra, de preferência quando a noite sopra a brisa morna do Kundruir e o céu deixa transparecer as suas mais brilhantes estrelas. É quase como um rito de agradecimento a minha comunhão com o silencioso deserto. Conheço cada som que ele emite: os pequenos animais escarafunchando as fendas do solo enrijecido em busca de comida e a vegetação num arrastar quase imperceptível pelo chão. O Kundruir é nosso amigo e aliado que preserva essas terras suficientemente distantes do mundo lá fora, desconhecido e hostil. Essas imensas distâncias garantem a sobrevivência feliz e pacata do meu povo. Entretanto, o mesmo não

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posso dizer sobre os territórios em que vocês, meus amigos, se embrenharão logo mais, quando o dia amanhecer. É melhor descansarem um pouco — aconselhou Raul. - Terão um dia cheio amanhã.Roger e Brian se despediram de Raul em frente ao simpático prédio do governo e seguiram para a estalagem.- Seria bom viver aqui - disse Brian enquanto apreciava as construções que rodeavam a praça central, iluminadas suavemente pelos postes de luminita. - Durante o dia eu teria a alegria dessa gente acolhedora, e a noite, o sossego típico de uma cidadezinha pacata do interior.- Você já tem isso na Ilha da Coroa — disse Roger, temendo que passasse pela cabeça de Brian a inoportuna idéia de ficar. - E tem outra coisa, você não ouviu o governador dizer que esse continente é um barril de pólvora a ponto de explodir?- Não sei se é bem assim — duvidou Brian. — Os humanos estão aqui há quatrocentos anos e nunca tiveram problemas.- As coisas mudam — provocou Roger. - E pelo jeito, nós seremos os responsáveis se elas piorarem.- Se você está pensando que a nossa presença vai iniciar uma guerra, eu digo que você está sendo um pouco exagerado.- Tenho minhas dúvidas, Brian - disse Roger, balançando a cabeça, discordando da opinião do amigo. - Tenho minhas dúvidas.

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Capítulo 14A Lua Vermelha

Pela manhã, logo que o dia clareou, os cavalos já estavam prontos, carregados de mantimentos e apetrechos para a viagem. Um cavalo extra transportaria o excedente da carga. Uma multidão de habitantes, sabendo da partida do grupo, reuniu-se na praça para a despedida. Era um acontecimento que quebrava um pouco a quietude da antiga cidade. Raul tratava pessoalmente de se certificar se as celas estavam bem firmes.- Tomei a liberdade de abastecer a bagagem com alguns casacos bem grossos - disse ele, apertando um pouco mais uma correia. - A temperatura cai muito durante a noite no Kundruir. Também tem bastante água nos odres, deve bastar até vocês alcançarem o rio Lusa. Ah, sim! Outra coisa! - Raul pegou um fardo grande e o desenrolou. - Pedi para que preparassem esses quatro cajados com pedras de luminita para que vocês tenham luz à noite.Guillermo pegou um dos cajados e avaliou o seu peso. A luminita, que tinha o tamanho de uma laranja era finamente lapidada como uma jóia.- Não tenho palavras para agradecer tanta hospitalidade - disse ele, ansioso pela aventura que os aguardava.- Hei! Olhem! É o Pesadelo! - exclamou Daniel, surpreso, identificando dentre as montarias o

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cavalo que havia domado. — Ele também vai conosco?- Ele é seu, Daniel - revelou Raul, presenteando o garoto inglês com o belo corcel. - Você fez por merecer o animal.Daniel não se conteve e montou logo, antes que Raul mudasse de idéia quanto ao belo presente.- Vamos logo! - disse Bartolomeu, impaciente, sendo o segundo a montar. - Temos que aproveitar ao máximo antes que o sol fique a pino. O calor do deserto não é muito agradável nessa época.A caravana finalmente estava a caminho. Bartolomeu puxou a rédea de seu cavalo negro, colocando-o em direção ao deserto. Algum tempo depois, a cidade que ficara para trás, ia sumindo de vista. Só as construções mais altas, como a torre da igreja, ainda podiam ser avistadas. A vegetação pobre se tornava cada vez mais escassa. O terreno duro e quebradiço dava um aspecto desolador à paisagem, e o alia se tornando mais seco à medida que eles avançavam pelo deserto árido.Após algumas horas o sol pairava sobre suas cabeças.- Estou com sede - disse Marc, passando a língua no lábio seco.Bartolomeu conferiu o número de odres que pendiam dos cavalos, e fez uma expressão como se estivesse calculando quanta água teria disponível até chegarem ao local de reabastecimento, o rio Lusa.

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- Pegue o seu odre, garoto — disse ele, ajeitando um pano marrom em volta da cabeça e amarrando atrás, ao estilo dos piratas. — Essa é a sua cota de água. Não desperdice, pois só conseguiremos mais daqui a dois dias.- E os cavalos? - preocupou-se Brian, ciente que os animais estavam sendo bastante exigidos.- Eles terão que agüentar até lá - disse Bartolomeu, olhando para frente, sacolejando com o trote do seu cavalo. - Após atravessarmos o Lusa, encontraremos outras fontes de água nas proximidades dos campos baixos e dali em diante, o percurso é mais suave.De vez em quando, Bartolomeu descia de seu cavalo, recolhendo um ou outro graveto que ele achava pelo chão.- Peguem o que puderem! - recomendou ele, amarrando com uma tira de couro os poucos gravetos que havia achado. - Precisaremos de lenha para fazer uma fogueira essa noite.Dos garotos, Chester era o que se achava em melhores condições, por ser acostumado a ficar tanto tempo em cima de um cavalo. A primeira parada foi perto do meio-dia para descansarem os animais e esticarem um pouco as pernas.- Meu traseiro dói — reclamou Rafael, mostrando uma cara de sofrimento. Ele aproveitou o momento para tomar vários goles de água e despejou um pouco sobre o rosto suado.- Não faça isso, seu tolo! - rosnou Bartolomeu, puxando o odre das mãos de Rafael. O menino se assustou. - Se algo der errado e não chegarmos a tempo no rio, essa sua atitude pode condená-lo a

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morte. — Rafael ficou assustado, olhando para Bartolomeu sem saber o que dizer. Bartolomeu devolveu a água com um movimento brusco e se afastou. Brian e Roger se entreolharam, mas preferiram náo se meterem. Infelizmente, Bartolomeu estava certo, e economizar água é uma das primeiras lições a aprender quando se vai atravessar um deserto.Guillermo aproveitou a parada para verificar os mantimentos transportados pelo animal de carga: sal, carnes defumadas, biscoitos e um tipo de macarrão escuro, foi o que ele encontrou no meio das coisas.- Voltaremos a seguir viagem quando tiver escurecido, assim pouparemos os cavalos — determinou Bartolomeu, aliviando a carga do seu animal. — As luzes dos cajados mostrarão o caminho.O período de descanso até o final da tarde foi providencial para recuperar a disposição dos membros da expedição. A temperatura caíra rapidamente no início da noite e os casacos deixaram de ser um peso morto nos lombos dos cavalos e passaram a aquecer os viajantes.A caminhada prosseguiu durante parte da noite, as pedras de luminita eram pontinhos brilhantes na vastidão do Kundruir, norteando os viajantes. Já passava das dez da noite quando Bartolomeu resolveu parar e levantar acampamento.- Ficamos por aqui essa noite - disse ele, saltando de seu cavalo.Os garotos eram os mais fatigados e aquela parada lhes deu um enorme alívio.

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- Essa jornada vai ser mais difícil do que pensei - comentou Rafael, espreguiçando os braços para cima.- Você se acostuma com o tempo - disse Chester, retirando a sela de Pesadelo. - apoie mais os pés nos estribos evitando ficar muito tempo sentado na sela. Você se sentirá mais confortável nas longas cavalgadas.- Vou tentar isso - disse Rafael, aceitando o conselho do experiente cavaleiro.Todos os ramos secos, pedaços de lenha e tudo o mais que eles recolheram pelo caminho, foram amontoados no chão. Bartolomeu acendeu uma bela e aconchegante fogueira e encheu uma panela com água, adicionando ervas que ele trazia. O resultado foi um chá quente que ajudou a aquecer todo o grupo na noite fria. Depois de aquecido, Bartolomeu buscou um canto isolado e se deitou, puxando o seu cobertor até o pescoço.Brian se recostou numa pedra e passou a olhar as estrelas, ainda mais cintilantes, vistas do meio do deserto.- Não reconheço esse céu.- O que disse? — perguntou Daniel, pego distraído.- As posições das estrelas são diferentes daquelas vistas da Terra. Não identifico as constelações de Órion, Cocheiro, Cassiopeia, Perseu ou Escorpião. Talvez estejamos em outro ponto distante no universo.- Ou em outro universo - sugeriu Marc, que acompanhava a conversa, então sentou-se ao lado de Brian.

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- Também pode ser - disse Brian, aceitando tal possibilidade. - Mas o certo é que estamos muito longe de casa.Margaret, acomodada do outro lado da fogueira, esfregava as mãos, aquecendo- as perto do fogo. Próximo a ela, Roger consultava uma bússola, verificando se estavam na direção certa. A experiência de Bartolomeu deveria bastar para seguirem o caminho correto até o Portal de retorno, mas para Roger, nunca seria demais uma precaução extra.- Você reparou naquela lua bem acima de nossas cabeças? — perguntou ela, puxando conversa com o professor Roger. - Parece que está sempre na mesma posição. Ela não gira no céu. Ontem a noite estava ali mesmo sobre nós e não mudou mesmo depois de horas.A observação de Margaret tinha fundamento. Naquele mundo, tudo era novo e estranho. Havia duas luas: uma girava normalmente como os satélites devem girar ao redor dos planetas, mas a lua a que Margaret se referia ficava sempre parada, distante, exatamente no zênite. Não nascia e nem se punha no horizonte, contra-riando as leis naturais da astronomia conhecida.Roger passou também a observar o corpo celeste de comportamento anormal.- Você tem certeza que ela está na mesma posição de ontem? - perguntou ele, curioso, com os olhos fixos no satélite avermelhado.- Tenho - respondeu convicta. - E não se moveu desde então.

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Roger cruzou os braços atrás da cabeça e se recostou. Ele ficou lá, contemplando a enigmática lua que parecia mesmo não se mover. Depois os seus pensamentos se desviaram. Ele puxou o objeto metálico que guardava preso ao pescoço por uma corrente sob a camisa e o olhou mais uma vez. Um sorriso discreto brotou do seu rosto; deviam ser lembranças felizes que ele viveu com a sua querida Helen. Roger suspirou e seu semblante voltou a perder o brilho quando ele escondeu novamente o objeto brilhante debaixo da roupa.Margaret se ajeitou como pôde perto da fogueira e se cobriu até a cabeça; suas orelhas estavam geladas e ela não conseguia dormir com frio. Mais um pouco e ela sentiu-se bem aquecida. O sono veio logo.

Marc acordou com o barulho que Bartolomeu fazia selando o cavalo. O acampamento ia sendo desfeito enquanto o sol iniciava sua trajetória, erguendo-se por trás das montanhas longínquas do leste.- Comeremos durante a viagem - estabeleceu Bartolomeu, colocando o pé esquerdo no estribo e tomando impulso para montar. - Temos de chegar na margem do Lusa até o fim da tarde. O dia de hoje deve ser ainda mais quente que o de ontem e os animais não agüentarão por muito tempo sem água.A marcha foi retomada. Daniel avançou e emparelhou com Bartolomeu que seguia à frente.

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- Quanto falta para alcançarmos as grandes montanhas além do deserto? - perguntou o garoto, que ainda não havia trocado sequer uma palavra com Bartolomeu.Bartolomeu fez uma pausa dando a impressão que não iria responder, mas falou.- Nesse ritmo, levaremos uns dezoito dias - disse, fazendo uma rápida estimativa, pela grande experiência que acumulou com muitos anos de aventura.- Tanto tempo assim? - perguntou Daniel, considerando muita coisa. — Qual a altura daquelas montanhas?- São muito altas - explicou Bartolomeu, disposto pela primeira vez a conversar com um dos jovens. - As maiores atingem mais de seis mil metros. Na verdade, elas formam uma cordilheira com quase três mil quilômetros de extensão. É a cordilheira de Malthar - disse, apontando de lado a lado. - Ela quase divide o continente em dois.Não era possível para Margaret que Daniel conseguira quebrar a barreira do diálogo com aquele homem tão fechado e ela não. Ela tratou de igualar sua montaria com os dois que estavam logo à sua frente.- O que encontraremos depois da cordilheira? - perguntou ela.Bartolomeu olhou para o lado. Margaret achou que a fisionomia dele não estava tão sisuda como quando o conhecera em Nova América. Ele voltou a responder:- Uma bela e misteriosa cidade. Acredito que não haja nada igual no mundo de onde vocês vieram

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— disse ele, seus pensamentos pareciam viajar por outras terras. De repente ele ficou sério, atento no horizonte. — Cavalguem! O mais rápido que puderem para leste! — gritou, batendo no cavalo com os calcanhares para que o animal corresse.Ninguém entendeu sua inusitada atitude, mas obedeceram sem questionar. Os cavalos puseram-se em disparada.- O que aconteceu? - gritou Brian, ainda confuso, agarrado a rédea do cavalo de carga e fazendo-o correr junto.- Olhem à direita! — exclamou Bartolomeu, forçando a sua montaria a correr ainda mais depressa.Foi quando todos viram milhares de insetos, cada um tão grande como a mão de um homem, correndo pelo deserto em grande velocidade, varrendo tudo o que havia pela frente. Suas carapaças eram de um marrom brilhante e possuíam mandíbulas em pinça que poderiam dilacerar a carne humana como se fosse papel. Os cavaleiros seriam atacados pelo flanco direito se não fossem velozes o bastante. A distância entre o enorme tapete de insetos corredores e os cavaleiros diminuía rapidamente.- Mais rápido! Mais rápido! - gritava Bartolomeu, desesperado com os retardatários, Rafael e Brian que vinham por último.- Bata mais forte! - gritou Brian para Rafael, vendo que o menino estava ficando para trás.Rafael batia os calcanhares no seu cavalo, mas parecia que os seus golpes não surtiam muito

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efeito. Ele não tinha a habilidade de um cavaleiro, ainda mais numa situação tensa como a que estava enfrentando naquele momento.Os insetos asquerosos se aproximavam mais e mais pela direita deles. Os cavalos, cansados e sem água, não conseguiriam manter a mesma velocidade por muito mais tempo.Bartolomeu olhava de vez em quando para trás, torcendo para que nenhum dos cavalos tropeçasse, ou seria o fim do animal e de quem o estivesse montando.Marc nunca tinha visto algo parecido, estava horrorizado com as centenas de milhares ou mesmo milhões de criaturinhas horríveis que vinham de forma ameaçadora de encontro a eles. Seria um choque devastador caso os cavalos fossem alcançados.Ninguém mais tinha certeza se Rafael conseguiria escapar a tempo do ataque feroz dos insetos que se aproximavam perigosamente, produzindo um som apavorante de milhões de perninhas batendo no chão rígido do deserto.Quando os insetos quase alcançavam Rafael, seu cavalo pareceu perceber o perigo e, num último esforço, saltou, seus cascos chegando a bater nas carapaças duras de alguns dos temíveis insetos corredores sem afetá-los. Uma das criaturas ainda chegou a subir pela perna traseira do eqüino e desferir uma mordida que lhe rasgou o couro, penetrando fundo na carne. O animal, sentindo a forte dor, escoiceou, atirando o inseto para longe.

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Bartolomeu, percebendo que estavam todos salvos, reduziu a corrida até cessar o galope.Os incontáveis insetos, em sua corrida desesperada, passavam indiferentes a poucas dezenas de metros do grupo que ainda se encontrava atordoado pelo enorme susto que havia passado. Rafael temeu que eles mudassem repentinamente de direção e fossem novamente para cima deles; caso isso acontecesse, os viajantes não teriam nenhuma possibilidade de reação, pois seus cavalos, exaustos, já haviam parado e ofegavam ruidosamente querendo se recuperar do extenuante esforço físico.Quando a última leva de insetos corredores acabou de passar, todos sentiram que o perigo havia terminado.- O que foi aquilo? — perguntou Rafael, trêmulo, os olhos arregalados.- Keklins — disse Bartolomeu, desmontando e examinando o estado do seu animal, suado e ofegante. - São insetos corredores que comem tudo o que cruza o seu caminho. Já foram vistos blocos de cerca de um quilômetro de largura por outro de comprimento desses animais vagando pelo Kundruir. Eles sáo capazes de devorar um cavalo e deixar apenas os ossos em menos de dois minutos. - Bartolomeu aproximou-se do cavalo de Rafael e buscou o ferimento provocado por um dos horrorosos keklins. — Vejam o que apenas um deles foi capaz de fazer. - O corte era profundo e um fio de sangue escorria pela perna do quadrúpede.

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- Eu já vi estouro de boiada, mas estouro de insetos, é ridículo! - exclamou Chester, comparando.- Lembro-me que Alexei Martov fez um breve comentário sobre esses monstrinhos - disse Brian, Roger concordou com a cabeça, recordando que também havia lido alguma coisa no diário.- Por que eles não nos atacaram depois que paramos? - quis saber Guillermo, observando a massa de insetos indo longe.- Eles não estavam nos caçando - esclareceu Bartolomeu, ele foi até seu alforje e pegou um bastão amanteigado e passou no ferimento do animal que resistiu ao sentir dor. - Pronto - disse ele, cobrindo a ferida com uma espécie de pasta amarelada transparente. — Agora não há mais risco de infecção. Como eu disse, os keklins não estavam atrás de nós, eles corriam daquele jeito provavelmente porque tinham detectado uma grande quantidade de vermes do deserto. Os keklins são os predadores naturais desses vermes. Nós só tivemos o azar de estarmos bem no caminho deles.- Vermes? — admirou-se Daniel.Os vermes do deserto vivem nas rachaduras do terreno seco e costumam fazer tantos buracos debaixo da terra que acabam deixando o subsolo totalmente oco. O que impressiona é que a superfície permanece intacta e não dá pra perceber que existe um vão que foi escavado por essas criaturas logo abaixo. Eu já soube de via-

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jantes que foram tragados pelos tais buracos de vermes.- E esses... keklins... não poderiam ter passado bem em cima do nosso acampamento ontem a noite, enquanto estávamos dormindo? - Preocupou-se Margaret, amedrontada.- Não se preocupe — tranquilizou-a Bartolomeu, seu olhar para ela era quase paternal. - Esses bichos não são de hábitos noturnos e só oferecem perigo durante o dia. Dizem que eles precisam do calor do sol para correrem daquele jeito. Os keklins são um mal necessário, pois sem eles, os vermes do deserto deixariam o Kundruir tão esburacado quanto uma esponja, transformando tudo numa gigantesca armadilha para quem passasse por ele. Bem, vamos em frente. É melhor seguirmos a pé, os cavalos estão esgotados depois dessa correria.- Então não chegaremos mais ao rio Lusa até o anoitecer - supôs Brian, puxando a sua montaria e o cavalo de carga pelas rédeas.— Se apressarmos o passo, amanhã até o meio-dia estaremos nos banhando no Lusa — previu Bartolomeu com algum otimismo.A preocupação maior não era quanto ainda faltava para alcançarem o rio, mas as condições debilitadas dos cavalos que não bebiam desde que saíram de Nova Europa.— De onde vem a água que alimenta o rio Lusa? - perguntou Guillermo a Bartolomeu.— Elas nascem nas montanhas do Malthar, passam pelo território Faogard, quando o rio muda de nome, depois desviam para o norte,

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sendo novamente alimentadas pelas chuvas que caem nas florestas daquela região, posteriormente atravessam o Kundruir, indo diretamente para o sul.Chester seguia os dois de perto, acompanhando as explicações de Bartolomeu, mas sua atenção estava mais voltada para Pesadelo que já não mostrava o vigor que tinha quando foi montado pela primeira vez.A caravana avançou o máximo que pode naquele dia e decidiu parar quando já era noite.A exaustão derrubou os meninos num sono profundo. Eles deveriam se adaptar logo à nova realidade das caminhadas cansativas, pois elas seriam uma constante na vida deles dali por diante.No dia seguinte, Bartolomeu imprimiu ao grupo um ritmo forte, e como ele havia previsto, o rio Lusa se destacou à frente deles pouco depois do meio-dia. O rio não era muito largo, mas a sua água era fresca e cristalina, lavada pelas pedras que ficavam no fundo do leito, convidando os viajantes a beberem e se banharem com prazer.Os cavalos se deleitaram bebendo grandes quantidades e em pouco tempo, recuperaram a energia que foram perdendo durante a travessia pelo deserto. Pesadelo se refez e o seu trote voltou a ter a imponência e a vitalidade de antes. Chester gostou do que viu.— Venha pesadelo, quero ver se você se recuperou de verdade — disse ele, montando orgulhosamente o garanhão.

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Ao comando de Chester, Pesadelo disparou para longe onde o terreno era mais nivelado.Bartolomeu, que enchia o seu odre no rio, levantou-se quando viu Chester e Pesadelo se afastarem para dentro do deserto.— Chester, não! — gritou ele, correndo para o seu cavalo e indo atrás do garoto americano.Roger percebeu que havia algum perigo e também montou, seguindo Bartolomeu, adentrando o deserto.Chester, que cavalgava, arrancando e freando, girando Pesadelo de um lado para o outro, não percebia que Bartolomeu e Roger vinham ao encontro dele. Bartolomeu acenava e gritava.- Chester! Chester! Volte!Chester então notou a presença deles e devolveu o aceno.- Duvido que eles nos alcancem, amigo — disse ele a Pesadelo, fugindo para mais longe ainda.- Garoto imbecil! - descarregou Bartolomeu, pressentindo o perigo iminente.Chester reparou que o terreno à sua frente era estranhamente mais claro; algumacoisa devia estar errada. Ele puxou a rédea, mas não houve mais jeito. O chão se abriu e os dois despencaram caindo num buraco de quase cinco metros de profundidade. Pesadelo relinchou alto de susto e dor. A queda de Chester foi amenizada pelo corpo do cavalo, e mesmo assim, o menino sofreu escoriações nas mãos e nos braços quando tentou evitar bater a cabeça. Chester e Pesadelo foram enganados pelo terreno que era somente uma casquinha, escondendo uma

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armadilha natural. Zonzo e dolorido, Chester se levantou e viu que dos inúmeros furinhos nas paredes da cavidade em que eles haviam caído, brotavam vermes brancos esverdeados; era uma cena pavorosa e repugnante. O coração do menino se apertou de preocupação quando ele notou que Pesadelo não se levantava. Chester gritou por ajuda.Roger e Bartolomeu apareceram na borda do buraco. Roger desenrolou uma corda amarrando uma ponta na sela de seu cavalo e jogando a outra para Chester.Você consegue subir? — perguntou Roger, olhando os milhares de vermes que se apinhavam nas paredes, como que aguardando um banquete.Brian, Guillermo e os outros garotos também chegaram ao local do acidente. Brian balançou a cabeça quando viu os dois no fundo, rodeados pelos vermes nojentos.- Chester está bem? - perguntou Margaret, nervosa.- Parece que sim — disse Roger. — Acho que o problema é com o cavalo — ele murmurou a última frase.Chester passou a corda em volta do peito e deu um nó forte. Bartolomeu e Roger o puxaram sem muita dificuldade. O seu rosto passava a centímetros daqueles bichos gosmentos e repulsivos.- E Pesadelo? — perguntou Chester, atemorizado. Ele temia já saber a resposta.

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- Não sei. Vou descer - disse Bartolomeu, desvencilhando a corda de Chester e enrolando-a em seus braços.— Me segurem! Eu não sou tão leve quanto o garoto — disse Bartolomeu, se jogando para baixo. Seus pés se apoiavam na parede, esmagando alguns vermes, com raiva.Quando ele chegou no fundo, examinou sem muita esperança o cavalo que continuava deitado.— Estão quebradas! As duas patas dianteiras — anunciou ele, desanimado. — Não tem mais jeito.— Não! - gritou Chester, seus olhos marejaram.Chester sabia muito bem o que significava aquilo.— Tirem os garotos daqui! — ordenou Bartolomeu. - Voltem para o rio, pelo mesmo caminho. Terei que sacrificar o animal.— Não! Não! Pesadelo, me perdoe! A culpa foi minha! — Chester não reteve as lágrimas. O sentimento de culpa pesava sobre ele.— Ninguém teve culpa, Chester - disse Guillermo com a intenção de consolá-lo. — Poderia ter acontecido com qualquer um. Vamos, monte no meu cavalo.Chester cavalgou de volta, inconsolável. Ele olhava para trás, Brian e Roger na beirada do buraco, olhando para baixo. Ele tinha consciência do que estava acontecendo naquele momento.Chester parou às margens do Lusa e ficou olhando para o seu reflexo na água. Margaret se aproximou dele.— Não fique assim, Chester, foi um acidente - ela pôs a mão em seu ombro, querendo confortá-lo.

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Rafael e Marc igualmente se aproximaram. Não tinham muito o que dizer.— Você conduz o meu cavalo, amigo — disse Rafael, comovido. — Não sou mesmo muito bom em cavalgadas.Chester mostrou um sorriso de agradecimento. As lágrimas ainda rolavam pelo seu rosto.— Mas eu deixo você ir na garupa — brincou Chester, tentando se recuperar do choque.Bartolomeu, Brian e Roger retornaram e Chester ainda viu a lâmina do facão de Bartolomeu suja de sangue antes que ele a lavasse no rio. Ele imaginou que fim doloroso Pesadelo havia tido.— Ele sofreu muito? - perguntou Chester timidamente a Bartolomeu que secava a lâmina molhada na calça.— Nem um pouco - disse ele, prendendo o facão na cintura. Bartolomeu fez uma pausa e olhou seriamente para Daniel. — Foi melhor assim, rapaz.— Eu sei - concordou Chester respirando fundo.— Deem mais água aos cavalos — disse Bartolomeu, enquanto organizava suas coisas. - Vamos sair daqui depressa. Esse lugar vai ficar infestado de keklins.— Como você sabe que os keklins irão voltar? — perguntou Guillermo, ele jogou um pouco de água na cabeça para se refrescar.— Quando os vermes começam a se alimentar, emitem algum tipo de sinal que é percebido a quilômetros pelos insetos corredores que partem em grande velocidade como vocês viram há pouco. Enquanto comem, os vermes do deserto

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perdem a noção do perigo, e é nessa hora que os keklins aproveitam para investir sobre eles. É a lei da sobrevivência.Quando Bartolomeu viu que todos estavam prontos para partir, indicou o rumo a tomar.— Bem naquele ponto entre aquelas pedras o rio fica bem mais raso — disse Bartolomeu, indicando rio acima, uns sessenta metros adiante. — Por ali os cavalos têm condições de atravessar.Logo que o Luza foi transposto, a caravana retomou para o leste.— Olhem! Lá vêm eles! - avisou Guillermo, os keklins famintos chegaram num piscar de olhos e cobriram o buraco, formando rapidamente um monte fervilhante que produzia um som grotesco, capaz de ser ouvido do outro lado do rio.Chester imaginou do que estaria sendo feito de Pesadelo naquele minuto. Era melhor nem pensar.— Como você soube que havia um buraco camuflado onde Chester caiu? — perguntou Roger a Bartolomeu enquanto se afastavam da margem do Luza.— Eu não sabia — disse ele semicerrando os olhos, olhando em frente. - Quando os vermes removem o subsolo, a fina casca que fica por cima, dando a impressão que é terra firme, assume uma tonalidade mais clara, quase imperceptível - Bartolomeu reapertou o nó do pano em sua cabeça. — Da distância em que nós estávamos de Chester, não dava para saber se o

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terreno era firme ou não. Eu só tive certeza quando o chão cedeu.Do outro lado do rio ainda havia uma larga faixa de deserto que eles teriam de cruzar sob o sol escaldante daquela tarde.Ao final do dia, começaram a surgir os primeiros sinais de vegetação rala, anunciando que estavam a ponto de completar a travessia pelo deserto do Kundruir. A primeira etapa estava prestes a ser concluída. Mas era apenas o começo. Eles nem imaginavam o que ainda iriam enfrentar.Chester cavalgava calado, e por um bom tempo ainda iria carregar o peso da culpa pelo que aconteceu com Pesadelo. Rafael, que viajava na garupa do cavalo conduzido por Chester, procurava amenizar a tristeza do amigo desviando a sua atenção com perguntas.— Como você faz para que o cavalo corra mais?— É tudo uma questão de habilidade — respondeu Chester, se esforçando, tentado superar a dor da perda. — Mas você aprenderá rápido quando entender que cavalo e cavaleiro são um só quando estão juntos.— Devem existir muitos cavalos no rancho de onde você veio.— Não muitos — disse Chester, o olhar perdido. - Mas lembro com saudade de cada um deles, principalmente do Coronel.— Coronel? — Rafael fez uma expressão interrogativa.— É o nome que dei ao cavalo que ganhei de presente do meu tio Fred - explicou Chester,

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enrolando a rédea na mão. — Foi uma homenagem ao meu avô que foi coronel do exército dos Estados Unidos da América. Ele era da cavalaria e quando deixou o exército, comprou o rancho onde moram meus tios. Um dia ele soube que estava com uma grave doença e teve que se aposentar mais cedo, mesmo contra sua vontade. Eu não cheguei a conhecê-lo a não ser por umas fotos desbotadas que meu tio Fred guarda como lembrança. Por isso, resolvi batizar o meu cavalo com o nome de Coronel.— É um nome pomposo - elogiou Rafael.A paisagem continuava se modificando com o aparecimento de vegetação mais densa, fazendo com que o ar ficasse mais fresco e agradável.Bartolomeu deteve o trote de seu cavalo antes de penetrar em uma trilha que seguia por um bosque de árvores com galhos desprovidos de folhas. Para o interior a vegetação se tornaria mais encorpada, mas nada que se comparasse à floresta fechada da Ilha da Coroa.— Aqui começa o bosque das terras baixas - disse o guia, quebrando um comprido galho seco e espinhoso que se atravessava nà sua frente. — A partir daqui encontraremos todo tipo de gente e criaturas estranhas que poderão nos trazer problemas. Procurem ficar juntos e atentos a qualquer anormalidade.Daniel respirou fundo de ansiedade e vasculhou com o olhar por entre as árvores. Ele achou esquisito não avistar nenhum animal por ali. Ele mesmo comentou.— O bosque parece não ter vida.

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— É assim mesmo - explicou Bartolomeu, olhando em volta. — Mais pra frente os animais aparecem, onde existem árvores frutíferas e regatos com água boa para se beber. Venham, vamos avançar mais um pouco e encontrar uma clareira para levantarmos acampamento.A viagem continuou e a tarde deu lugar ao crepúsculo que trouxe o brilho das primeiras estrelas que surgiam por entre os galhos mais altos das árvores. Bartolomeu estava certo quando disse que a vegetação era mais espessa para o interior do bosque. Sons estranhos como pios e chiados discretos tomaram conta do lugar, anunciando que a vida animal ali estava presente.Margaret olhou para cima e viu a imensa lua mais uma vez sobre sua cabeça. Ela chamou a atenção de Roger, que também confirmou o astro fixo no céu. Roger deu um sorriso com o canto da boca para a menina.Alguma coisa esvoaçou quase batendo no rosto de Marc. Ele não conseguiu saber se era algum tipo de pássaro ou um inseto grande. As imagens do bosque já se faziam indefinidas com a chegada da noite.Bartolomeu empunhou seu cajado fosforescente de luminita clareando o caminho.-Acho que esse lugar está bom para passarmos a noite - disse ele, apontando seu cajado de ponta brilhante na direção de uma clareira.O espaço não era muito grande, mas o suficiente para acomodar os nove viajantes e as montarias com algum conforto. As árvores que cercavam o

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terreno aberto eram altas e imponentes parecendo oferecer alguma segurança. Seus galhos se esticavam sobre a clareira como braços ameaçadores confundidos pela pouca visibilidade existente na mata.Bartolomeu limpou o terreno onde iria preparar uma nova fogueira. Os meninos, já acostumados a rotina do acampamento, começaram a recolher galhos e pedaços de tronco secos sem que Bartolomeu tivesse que pedir ajuda. Em pouco tempo a fogueira estava ardendo.— Eu preparo o jantar — ofereceu-se Guillermo, trazendo algumas panelas e aco- modando-as perto da fogueira. — Hoje vocês vão provar o sabor da comida espanhola.Estava claro que Guillermo falava em tom de brincadeira, pois não havia muitas opções para se variar o cardápio. O máximo que ele conseguiria fazer era um macarrão sem muito tempero e carne defumada. Em seguida, ele foi até um pequeno riacho que existia próximo dali e encheu um odre com água até a boca, suficiente para o cozimento.Brian se deitou após o jantar; sua visão era um céu rodeado de árvores escuras, estrelas brilhantes como tochas azuladas e a grande lua inerte bem no alto. Ele fechou um dos olhos e passou a comparar a posição do astro com as estrelas mais próximas e, depois de algum tempo observando, percebeu que, ao contrário de todas as estrelas, a lua realmente parecia estar fixa, como se estivesse grudada na escuridão noturna. Margaret, observadora como sempre, falou:

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— Ela sempre fica naquela posição.— Ah! Você também percebeu, Margaret?— Eu e o professor Roger já havíamos notado.— E você sabe o por quê? — indagou Brian, se ajeitando para poder conversar melhor.— Ainda não, mas ele deve saber — disse ela, apontando discretamente na direção de Bartolomeu, usando a ponta do queixo.Daniel pegou o baralho que havia recebido de presente e se pôs a admirar cada carta, imaginando se todas aquelas criaturas existiriam de verdade.Bartolomeu amolava a lâmina de seu facão com uma pedra de afiar, depois passava uma folha, verificando se o corte estava bom. Margaret se agachou ao lado dele e expôs a questão que a perseguia há dias. O homem olhou para o alto. A luz da lua se refletiu nos seus olhos. Ele testou mais uma vez e constatou que o corte da lâmina estava perfeito.— Você está disposta a ouvir uma longa história?— Claro! Adoro saber as coisas! - exclamou ela entusiasmada, seu rosto iluminado pela fogueira vacilante.— Pode me emprestar um pouco esse baralho, rapaz? - pediu Bartolomeu a Daniel, o menino organizou as cartas e se aproximou do guia, sentando-se com as pernas cruzadas como um índio.Os ouvidos atentos de Marc, Rafael e Chester não deixariam passar uma história interessante diante da luz de uma fogueira. Eles se aproximaram e sentaram-se ao redor de

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Bartolomeu que os olhava como um velho contador de histórias encara a sua platéia. Pela primeira vez, depois de muito tempo, ele gostou de estar cercado de gente. Então começou.— Foi há muitos e muitos anos. Tanto tempo que ninguém sabe exatamente quando aconteceu. Provavelmente uns oito mil anos tenham se passado desde então. Magos poderosos e criaturas fantásticas povoavam este mundo. Os poderes que eles possuíam eram imensos, quase infinitos. Também naquela época, e mesmo muito tempo antes, havia quatro deuses irmãos e uma irmã: Arkopromis, Niabardhian, Zanqeon, Sargaleu e Ninqa, todos deuses filhos de Paetum e Friankea, o casal de deuses que deu origem a todas as raças que existem ou existiram. - A história contada por Bartolomeu atraiu até a atenção de Roger, Brian e Guillermo. Bartolomeu mantinha os olhos fixos no baralho como que lembrando um tempo em que não viveu. Ele achou duas cartas e colocou-as no chão. A primeira era a imagem do deus Paetum, sua face e suas mãos brilhando, as vestes em azul e dourado dignos de sua grandeza. Friankea estava totalmente envolta em luz e sua face expressava uma serenidade inabalável. A história continuou: - O mais poderoso dos irmãos deuses era Arkopromis, e também o de pior índole - Bartolomeu desceu outra carta, dessa vez a do deus maligno, os cabelos esvoaçantes e olhos furiosos, uma paisagem tempestuosa se formava por detrás dele. - Ele desejava ardentemente governar todas as terras desse mundo. Primeiro

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tentou convencer seus irmãos que ele era o mais indicado para liderá-los como rei de todos os povos, mas nenhum de seus irmãos, obviamente, aceitou seus argumentos, pois sabiam que sua mente estava contaminada pela maldade e pela perfídia. Sem obter sucesso, ele voltou-se para seus pais, os grandes deuses, buscando apoio para que o nomeassem o senhor das terras e das águas. Paetum e Friankea, conhecendo bem o filho traiçoeiro, negaram tão infame pedido. Arkopromis não se deu por vencido e já tomado pela loucura, aproveitou enquanto seus pais dormiam no jardim de Rohvenell, em Kalipria, sua morada celestial, e matou-os, devorando seus corações e absorvendo parte de seus imensos poderes - Margaret fez uma careta de decepção ao ouvir o trágico desfecho.- E o que aconteceu depois? — apressou-o Rafael, com declarado interesse.- Shh! Deixe ele contar o resto! — reclamou Marc, inclinando-se para ouvir melhor a história contada pelo guia.Bartolomeu estava bem à vontade, pois conhecia as lendas locais desde criança. Após fazer um pouco de suspense, prosseguiu:- Quando seus irmãos souberam o que havia acontecido, amaldiçoaram Arkopromis e resolveram vingar a morte dos pais. Mas derrotar Arkopromis não era tarefa nada fácil. O deus da maldade se tornara mais forte que seus irmãos e só os poderes combinados de Sargaleu, Niabardhian, Zanqeon e Ninqa poderiam resistir à fúria do perverso irmão.

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- E o que isso tudo tem a ver com a lua aí em cima? - questionou Margaret, impaciente, apontando para o alto.- Não interrompa! - protestou Daniel, que estava viajando nas palavras de Bartolomeu.- Eu disse que era uma longa história - lembrou Bartolomeu, franzindo a testa. — Mas você vai entender logo.- Viu o que deu atrapalhar? - disse Daniel, espezinhando a irmã. — Veja se agora fica de boca fechada!Margaret ficou vermelha de raiva, seus lábios se contorceram.- Ei, o que deu em vocês? - interveio Brian, chamando a atenção dos dois.- Até parecem os irmãos da história! - aproveitou Chester para espetar.Bartolomeu arqueou as sobrancelhas para baixo fazendo uma cara de quem não estava gostando nada daquilo.— Posso continuar? - disse ele, olhando para Margaret e depois para Daniel. Os dois consentiram.— E você, não se meta! - recomendou Guillermo a Chester, cutucando-o nas costelas.Bartolomeu abriu mais uma vez o baralho de cartas e continuou:— Os poderes dos deuses foram postos a prova numa violenta disputa de forças que se iniciou e perdurou por muitos anos. Raios cruzavam os céus para todos os lados causando histeria nas populações. Milhões de pessoas inocentes morreram vítimas do maior confronto de todos os

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tempos. As noites tornavam-se tão claras como o dia, iluminadas que eram pelos clarões ininterruptos das explosões ensurdecedoras.Rafael enrolou-se em um cobertor. A temperatura havia caído e ele não era muito acostumado com o frio.— Agora você vai entender porque eu contei toda essa epopeia, Margaret — preparou-se Bartolomeu para concluir a narrativa. — Quando o perverso Arkopromis convenceu-se de que não conseguiria vencer seus irmãos, voltou todo o seu poder ensandecido para desestabilizar a órbita da maior das duas luas, Wengarel, e precipitá-la sobre o planeta. O choque iria dizimar todo e qualquer tipo de vida. Mas havia uma chance da catástrofe não acontecer: Sargaleu, o deus das forças da luz, mandou construir uma gigantesca torre, com mais de um quilômetro de altura, e no seu topo colocar a pedra Kalizoel, criada pela deusa Ninqa — o guia mostrou a carta que retratava Ninqa, ela segurava um cristal em uma das mãos e na outra, uma flor de pétalas brancas; uma outra carta era a representação de Sargaleu, que sustentava uma tocha que ao invés de fogo, emitia pura luz. Bartolomeu deu seqüência na narrativa: — A pedra Kalizoel deveria concentrar todas as forças dos três irmãos: Sargaleu, Zanqeon e Niabardhian. Eles deveriam entrar na base da torre e se fechar lá dentro, isolando-se de tudo que pudesse distraí-los de sua sagrada missão. A porta da base da torre deveria ser lacrada e eles teriam que se sacrificar fechando-

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se, enquanto fosse necessário, no interior da torre, em benefício de todas as raças, animais e plantas existentes. O jogo de forças tornou-se titânico entre Arkopromis e os outros três irmãos confinados na torre. Somente Ninqa permaneceu livre com a difícil tarefa de pegar Arkopromis de surpresa e matá-lo. Não foi nada fácil, pois o maligno deus escondeu-se em uma ilha ao sul do continente cadecaliano e isso fez com que a feroz contenda perdurasse por muitos anos. Como conseqüência do desvio da órbita de Wengarel, maremotos destruíram muitas cidades litorâneas, outras cidades foram devastadas por terremotos, vulcões e vendavais. A cada dia, os corpos de homens e animais se amontoavam e tinham que ser queimados às pressas para evitar a proliferação de graves doenças por causa da rápida decomposição. Muitos diziam, e com razão, que o fim do mundo havia chegado. Por sua vez, Ninqa, incansável, passou muito tempo procurando pelo detestável irmão, vasculhando cada montanha, caverna ou qualquer outro lugar que ele pudesse estar escondido. Até que um dia, ela aportou na ilha que até hoje leva o nome de Nattifia. A ilha perdida no oceano entre enormes ondas era uma das últimas esperanças da deusa. Foi ali que numa sombria caverna na encosta de uma montanha, ela encontrou Arkopromis e, aproveitando de sua distração na sórdida intenção em usar sua poderosa magia para derrubar Wengarel, a bela deusa atravessou sua espada no peito do seu nefasto irmão, matando-o e interrompendo a catástrofe que

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destruiria todo o planeta. No exato momento da morte de Arkopromis, parte da ilha começou a desmoronar, se perdendo nas profundezas do oceano. Só uma pequena parte dela ainda existe como lembrança das maldades de Arkopromis e do heroísmo de Ninqa, que nunca mais foi vista. Costumam dizer até hoje que o que restou da ilha ainda guarda algo de maligno — Bartolomeu então olhou diretamente para Margaret, o fim da história estava para acontecer. — Mesmo com Arkopromis morto, Wengarel ficou perigosamente fora de sua órbita e se os heróicos irmãos abandonassem a torre, as previsões do povo se confirmariam com a destruição do mundo finalmente acontecendo. A solução foi que a torre deveria continuar lacrada para sempre com o total consentimento de Sargaleu, Zanqeon e Niabardhian. E aí está a sua explicação, garota - finalizou Bartolomeu.- Isso é apenas uma lenda, não é mesmo? - perguntou Brian a Bartolomeu, pondo em dúvida o seu teor.- Se é apenas uma lenda eu não posso confirmar — disse Bartolomeu, com ar de desdém, ele juntou todas as cartas e devolveu o baralho a Daniel. — Mas a torre existe. Eu já estive diante dela algumas vezes, e tem mesmo todo aquele tamanho. E magnífica. Em muitos momentos me perguntei: como pode uma estrutura gigantesca como aquela se manter de pé por tanto tempo?- Um quilômetro de altura? - perguntou Daniel, perplexo.

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- Talvez mais — arriscou Bartolomeu, esticando uma perna e dobrando a outra, cansado de ficar na mesma posição.- E a tal entrada localizada na base da torre... - disse Roger, especulando.- Lacrada! — confirmou Bartolomeu, sem dar tempo da frase ser completada. — E como se a porta e toda a estrutura da torre de pedra se tornassem uma coisa só... pela força da magia. Não há frestas que indiquem onde termina a porta e começa o corpo da torre.- Então, os tais deuses irmãos podem ainda estar lá dentro até hoje, após incontáveis anos - disse Roger, pensando como alguém poderia viver tanto tempo. Mas, afinal, eram deuses.- É o que a maioria das pessoas por aqui acredita - disse Bartolomeu dando de ombros. - Senão, qual a explicação para Wengarel se manter presa a esse planeta como se um cordão invisível unisse os dois astros?- Essa torre... Cenoteorus, não deve estar muito distante daqui - supôs Rafael, pois Wengarel dava sempre a impressão de pairar sobre eles.- Wengarel é muito grande e por isso mesmo passa essa ilusão de que a torre fica bem perto - explicou Bartolomeu enquanto se levantava para pegar um pouco de chá quente. - Mas não se enganem, pois a Cenoteorus se localiza a mais de mil quilômetros a leste, na planície de Loreuvena.No meio da conversa, uma ave de cor parda e bico pontudo voou sobre a clareira atacando os cajados fincados na terra.

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Guillermo se desviou num reflexo para não ser atingido.- O que houve com esse bicho? — indagou ele, quase caindo por cima de Marc.- É um Mugaurin — disse Bartolomeu, correndo para pegar os cajados, escondendo-os embaixo de um cobertor. — Ele não quer concorrência. As luzes dos cajados dispersam a sua comida.- Como assim? — quis saber Margaret, seu braço por cima da cabeça para evitar um possível ataque da ave.- Vocês já vão ver - disse Bartolomeu, parado no meio da clareira, tentando ver aonde o Mugaurin iria pousar. A ave, pouco maior que uma coruja, escolheu um galho grosso para realizar seu pouso. — Fiquem olhando o que vai acontecer.O bico do Mugaurin começou a se iluminar e atrair diversos insetos voadores que gostam de luz. O Mugaurin não tinha nem o trabalho de caçá-los, bastando apenas abrir o bico e engoli-los um a um.- Mas desse jeito é muito fácil! — protestou Chester, surpreso. — Ele não faz nenhum esforço para conseguir seu alimento!- A natureza é sábia - disse Bartolomeu enquanto aguardava o Mugaurin terminar de comer para, enfim, descobrir os cajados. - Essa ave só tem um filhote por ano. Se não tivesse alguma vantagem sobre as outras, poderia estar extinta.Depois de se fartar de devorar insetos, o Mugaurin voou se embrenhando entre as árvores e desapareceu. Margaret ainda tentou avistar

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novamente o inusitado pássaro, mas o Mugaurin não retornou.- A partir dessa noite e por todas as outras, devemos ter sempre uma sentinela — anunciou Bartolomeu, recolocando os cajados em suas posições. - Toda essa região até Faogard pode se tornar hostil a qualquer instante. Faremos turnos de duas horas até pela manhã.- Eu faço o primeiro turno! - pulou na frente Marc, com espírito aventureiro.- Esse trabalho é para os adultos - disse Roger, olhando sério para Marc. - Você vai dormir que nem os seus amigos.- Mas eu posso...- Sem nenhum "mas" e está decidido - determinou Roger, cortando qualquer possibilidade de argumentação do menino francês.Marc balançou a cabeça em reprovação, mas achou por bem não insistir com Roger. O garoto sairia perdendo. Isso fez com que os outros meninos desistissem de qualquer condição semelhante e o jeito foi se prepararem para dormir. Roger assumiu as primeiras duas horas; a alvorada chegou quando Guillermo terminava o seu turno.Ao final daquele dia eles venceram o bosque e chegaram a uma região de campo aberto, com poucas árvores, mas abundante vegetação arbustiva. Aquela paisagem perdurou pelos próximos dois dias. O calor diurno trouxe nuvens de chuva que se precipitaram, forçando-os a se

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abrigarem em barracas improvisadas de tecido grosso e impermeável.No outro dia o céu voltou a ficar limpo, com poucas nuvens que se moviam sopradas por uma agradável brisa vinda do sudoeste.Bartolomeu parou a marcha e inclinou a cabeça para cima. Seus olhos semicerrados buscavam alguma coisa que os outros não haviam percebido. Em seguida, ele puxou sua luneta e a direcionou para um ponto no céu azul.- O que foi? — perguntou Brian, olhando para o céu a esmo. Ele não via nada lá em cima.- Um dragão! - revelou Bartolomeu, um dos olhos fechados e o outro enterrado na luneta.- O quê? Onde? — perguntou Daniel, desesperadamente.Roger e Guillermo sacaram seus binóculos, mas só conseguiram ver um pequeno pontinho se deslocando nos vãos das nuvens. Dava para distinguir uma figura lon- gilínea com asas de grande envergadura que se movimentavam constantemente para vencerem o ar rarefeito. Os meninos se esforçavam para ver, mas a distância dificultava a observação.- Estou vendo! - gritou Rafael, pondo a mão acima dos olhos para se proteger dos raios solares, aguçando assim a visão.- Ele deve estar muito alto - presumiu Guillermo, passando o binóculo para Brian.- Uns seis quilômetros — calculou Bartolomeu, emprestando sua luneta a Daniel que se achava ao seu lado. Ele não conseguiu localizar o fantástico animal que já havia cruzado uma

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grande distância. Não era tão fácil utilizar uma luneta daquelas com destreza.- Um dragão! - murmurou Margaret, maravilhada, lembrando-se dos contos de fadas que lia nos livros ilustrados quando ainda era criança.- Não é comum vê-los por essas bandas — disse Bartolomeu, quase não conseguindo mais avistar o ser mitológico. - Pela altitude que voa, ele vai cruzar a cordilheira de Malthar.- Qual o tamanho daquela coisa? — perguntou Brian, se empenhando para não perder a criatura de vista.- E dos grandes - respondeu Bartolomeu, com segurança. - Pelo menos uns vinte metros do focinho até a ponta da cauda.- E existem maiores? - interessou-se Chester.- Os grandões podem atingir os vinte e cinco metros, mas não são muitos. Os menores não passam dos oito metros de comprimento.- E eles cospem fogo como nas histórias? — indagou Daniel, imaginando como poderia ser.- Eu não ficaria na frente deles — disse Bartolomeu, desaconselhando. — A menos que quisesse ser transformado em carvão.- Nossa! Eu vi um dragão! - disse Rafael, com um brilho de encantamento nos olhos, embora o que vira fosse quase imperceptível.- Isso é apenas o começo — avisou Bartolomeu, encolhendo a luneta e guardando-a em uma presilha na sela. — Preparem os seus corações para o que ainda está por vir — pela primeira vez, Bartolomeu exibiu um sorriso afável.

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Por todo o resto do dia, Margaret e os meninos comentavam entre si sobre o primeiro dragão que tiveram a oportunidade de ver, mesmo que não pudessem descrevê-lo em seus detalhes.

Capítulo 15Lendas à Luz da Fogueira

Mais dois dias de jornada e a paisagem voltou a ser de mata fechada, mas com um caminho que permitia cavalgar tranqüilamente entre a vegetação espessa...Bartolomeu saltou de seu cavalo e foi até a margem da estrada. Ele se agachou e, examinando com cuidado o solo coberto por gramíneas, concluiu:- Não estamos sozinhos nessa floresta.- O que você quer dizer? - perguntou Roger, apreensivo.- Ainda não sei, mas quem andou por aqui evitou usar a estrada intencionalmente. Obviamente não quer ser visto - informou Bartolomeu, intrigado.- Vamos dobrar a atenção - aconselhou Brian, temendo pelo bem estar dos garotos.- Há como cruzarmos essa floresta até o final do dia? - perguntou Roger, olhando em volta.- Impossível! - definiu Bartolomeu. - Necessitamos de, no mínimo, mais dois dias de caminhada forte. Vamos continuar até onde

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agüentarmos e só pararemos em local aberto, onde possamos ter uma boa chance de defesa.- Você não pode estar enganado? — questionou Guillermo a Bartolomeu, de cima do seu cavalo. Guillermo gostava de ver as coisas pelo lado positivo, mas a expressão preocupada de Bartolomeu disse tudo.- Receio que não - respondeu Bartolomeu, examinando um ramo quebrado. - Minha experiência me diz que alguém ou alguma coisa está nos preparando uma emboscada.- E por que alguém faria isso? — indagou Daniel, verificando que se fossem atacados, não teriam muitos lugares seguros para se esconderem.- Ladrões — especulou Bartolomeu. - Esses belos cavalos seriam motivo suficiente para nos emboscarem e não hesitariam em nos matar para conseguirem seu objetivo. Mas pode ser outra coisa.A expressão do guia ficou ainda mais séria. Ele explicou:- Vocês já sabem que os humanos não são muito bem aceitos nesse mundo. Sempre fomos tratados como estrangeiros, mesmo vivendo por aqui há séculos. Os crassênidas, o povo do leste, não gostam nem um pouco de nós, e se dependesse deles, seríamos todos exterminados. A nossa sorte é que estamos no extremo oposto do continente, bem longe deles — Bartolomeu ergueu as sobrancelhas, olhou para Daniel e depois para Brian. - O nosso azar é que estamos indo direto para o território do inimigo, direto para a boca do nosso predador - por fim,

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Bartolomeu revelou as suas suspeitas: - É praticamente certo que a cúpula crassênida já está sabendo da presença de vocês e de nosso deslocamento para o leste. Eles já devem ter enviado uma ordem para deter-nos, pois sabem exatamente aonde este grupo pretende chegar.- E o que devemos fazer agora? - perguntou Roger, deixando a decisão para o mais experiente.- Ainda acho que o risco é muito alto para esses meninos - disse Bartolomeu com sinceridade. - A decisão mais sensata é a de retornarmos a Nova Europa, mas se mesmo assim, vocês acharem melhor prosseguirmos, eu estarei com vocês.Brian, Roger e Guillermo se entreolharam. Guillermo coçou o queixo num típico gesto de dúvida. Eles estavam ali para levarem os meninos de volta, mas temiam pelo pior. A situação era diferente em relação à Alexei Martov que estava sozinho e teve um ano inteiro para voltar. Agora o grupo era maior e havia cinco menores que deveriam regressar sãos e salvos a qualquer custo.- Eu posso falar? - manifestou-se Rafael, erguendo timidamente o braço.- Fale — consentiu Brian, aceitando qualquer idéia que os tirasse daquele impasse.- A culpa é nossa por estarmos nessa situação.Temos que enfrentar o problema e está claro pra mim que vocês estão com medo de seguir a viagem por nossa causa. Se desistirmos e retornarmos a Nova Europa ou se prosseguirmos e algo de ruim nos acontecer, de

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qualquer maneira, nossos responsáveis darão por nossa falta dentro de alguns meses. Então, já que estamos aqui... vamos em frente!- Eu estou com Rafael! - disse Margaret, decidida. — Não posso perder a oportunidade de ver a enorme torre da qual falou Bartolomeu.- E eu quero ver um dragão, mas dessa vez bem de perto! - intrometeu-se Daniel, determinado.- Tem uma orquestra me esperando do outro lado! - anunciou Marc em tom gaiato. - Eu não posso desapontá-los.- De onde vocês tiraram esses garotos? - perguntou Bartolomeu, impressionado com a coragem deles. - Acho que eles já decidiram por nós, não é mesmo? - ele voltou a montar retomando a trilha pela floresta.Naquele dia eles percorreram o caminho até pouco depois do anoitecer. Os cajados com a luminita não iluminavam o suficiente, forçando-os a redobrarem a atenção durante a noite, e os sons vindos do interior da mata se tornavam estranhos e indefinidos para quem não estava habituado a tais ruídos. Eles só decidiram acampar, quando encontraram uma clareira espaçosa. A prática permitia que, com a colaboração de todos, o acampamento ficasse pronto em poucos minutos.A fogueira ardia, clareando com luzes titubeantes as árvores em volta. Os cajados, fincados no chão, formando um quadrado, completavam a iluminação do acampamento; para dentro da floresta, era só a escuridão.

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Naquela noite, nenhum Mugaurin de bico fosforescente apareceu e a floresta parecia mais silenciosa do que nas noites anteriores. Só alguns insetos esvoaçavam ao redor das luminitas, produzindo um discreto som com o bater das suas minúsculas asas.Os meninos gostavam de sentar-se perto de Bartolomeu para ouvir as suas histórias. Tudo que ele contava os maravilhava, mas Bartolomeu estava mais interessado em montar guarda do que se distrair em meio a longas narrativas. Mesmo assim, Marc puxou conversa.— Estive pensando na lenda que você nos contou outra noite. Como um deus supremo pode morrer. Como Arkopromis matou seus pais, Paetum e Fri... Fri...— Friankea! Friankea era o nome dela — disse Margaret, confiante.— Isso mesmo — aprovou Bartolomeu. - Na verdade eles não morreram totalmente; seus corações vivem no corpo de Arkopromis, dando-lhe mais poder — Bartolomeu parou por um momento e ficou prestando atenção na floresta.— Quer dizer que Arkopromis não foi destruído pela espada de Ninqa, a semi- deusa? — interpelou Daniel, confuso.— Os deuses não morrem definitivamente — esclareceu Bartolomeu. — Só mudam de plano ou de forma. Mas os seus poderes estão aí para provarem que eles estão vivos. E tem mais uma coisa, Marc: Paetum e Friankea não eram os deuses supremos na hierarquia divina. Existe um

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outro que eu ainda não falei. O nome dele é Vagtajonus, o Deus que dorme.— O Deus que dorme? - indagou Margaret, achando engraçado.— O Deus que dorme — confirmou Bartolomeu. - Essa lenda é aceita por todos os povos, sem distinção. Conta ela que, quando adormece, Vagtajonus sonha, e de seu sonho divino nasce tudo o que existe no universo: as estrelas, os planetas, os animais, as plantas, os seres pensantes e até mesmo os deuses.— Então somos parte do sonho desse Deus? - perguntou Rafael, interessado em mais uma das histórias do aventureiro.— E o que todos creem - disse Bartolomeu, cortando um pedaço de carne defumada recém-esquentada na fogueira. Ele mastigou a carne com gosto e continuou: - A lenda também fala que, de tempos em tempos, Vagtajonus desperta de seu sono profundo, mas isso demora muito, muito, muito tempo; o tempo de quase uma eternidade - enfatizou ele. - O suficiente para a criação e o fim de todo o universo. Depois de acordar, Vagtajonus sente uma profunda monotonia diante do nada e novamente ele volta a dormir para, em seu novo sonho, fazer surgir um novo universo.- E isso vai acontecer para sempre - deduziu Chester, os olhos irritados de sono. Ele já se preparava para dormir enrolando-se em seu aconchegante cobertor.- Os contadores de histórias juram que Vagtajonus esteve a ponto de despertar quando

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houve o grande embate entre Arkopromis e seus irmãos. Se isso realmente tivesse se concretizado, seria o fim de tudo. Mas como vocês estão vendo, não aconteceu.Daniel procurou rapidamente a carta de Vagtajonus em seu baralho, e encontrou: o deus supremo era representado por, somente, dois olhos fechados em meio às trevas. O menino teve a sensação que aqueles olhos iriam se abrir a qualquer momento... mas era apenas uma simples carta.Bartolomeu percebeu que estava na hora de parar por ali. No dia seguinte eles deveriam vencer uma grande distância em sua longa jornada.- A partir dessa noite faremos vigílias em duplas — ele determinou.- Podemos ajudar, dividindo com um adulto — sugeriu Daniel. Os outros garotos concordaram em participar.- Vocês precisam dormir — disse Guillermo, admitindo em silêncio que a carga seria pesada para ele e os outros três adultos.- Se estamos nessa juntos, somos capazes de dar a nossa parcela de contribuição - insistiu Daniel, apoiado pelos colegas. - Algumas horas a menos de sono não vão nos prejudicar — argumentou com segurança.- O que vocês acham? - perguntou Bartolomeu, dirigindo-se a Brian, Guillermo e Roger.- Por mim tudo bem - aceitou Roger, admitindo que já estava na hora das responsabilidades serem divididas com mais igualdade ou os jovens

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aventureiros não saberiam se defender quando fossem exigidos.- Brian e Daniel iniciarão o primeiro turno, tudo bem? - propôs Bartolomeu, já que Daniel havia dado a idéia.Os dois concordaram e os demais se acomodaram em seus cantos, adormecendo rapidamente. Brian e Daniel permaneceram firmes, atentos, com os olhos varrendo as profundezas, sombrias da floresta durante as primeiras duas horas; não ocorreu nada de anormal no turno deles.O segundo turno pertenceu a Guillermo e a Margaret, que montaram guarda tomando o cuidado de não cochilarem em nenhum momento. A certa altura, as pálpebras de Margaret começaram a vacilar. Ela estava de costas para Guillermo, ocupando-se em vigiar uma das metades da floresta fechada. Em um dado momento, apenas por uma fração de segundos, ela notou um brilho por entre as árvores; aquilo fez com que ela voltasse a ficar alerta.- Acho que vi algo — ela avisou a Guillermo.- O que foi? - perguntou ele, virando-se bruscamente.- Não tenho certeza, mas acho que vi um brilho se movendo naquela direção — disse, apontando.Os dois olharam atentos por algum tempo e não observaram nada, a não ser a enorme escuridão.Naquela noite, a não ser pelo fato isolado, tudo correu dentro da normalidade.

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O amanhecer passava uma sensação maior de segurança permitindo que todos ficassem mais relaxados.Enquanto Bartolomeu concluía os preparativos para a partida, Guillermo se dirigiu a ele e contou o que Margaret havia visto naquela noite. Bartolomeu foi até a menina que arrumava seus pertences e se preparava para seguir viagem; encarando-a severamente ele disse com voz serena:- Conte exatamente o que você viu.- Vi um brilho... como se as luzes do acampamento refletissem em uma espécie de metal em movimento — contou ela, esforçando-se em descrever os detalhes.- O que mais? - exigiu Bartolomeu, atento ao depoimento. Roger e Brian aproximaram-se percebendo que alguma coisa de diferente tinha acontecido.- Foi só isso - ela garantiu. — Depois não vi mais nada que me chamasse a atenção.Bartolomeu levantou-se, pensativo, tirando conclusões. Guillermo quis explorar a experiência do guia.- O que você acha?Bartolomeu afastou-se da garota e com voz arrastada revelou:- Seremos atacados. Não sei quando nem como, mas vai acontecer.Guillermo esfregou a nuca, receoso.- Você faz idéia de quem seja?- Não são ladrões, posso apostar nisso - disse Bartolomeu, as sobrancelhas arqueadas para

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baixo. Dava para notar em seu semblante contraído que o momento era sério. — A melhor coisa a fazer agora é deixarmos os meninos cientes do perigo.- E quando nos atacarem estaremos preparados? — perguntou Brian, sem saber o que fazer.- Nesse caso... minha lâmina estará afiada para eles — disse Bartolomeu, sem outra alternativa.Uma reunião foi feita às pressas para que todos tomassem conhecimento do que estaria por vir. Bartolomeu sentiu-se um pouco aliviado em poder dividir o peso da responsabilidade com os demais.O grupo montou e tomou a estrada em trote rápido sob os olhos atentos de cada um. Antes de qualquer curva, Bartolomeu, prudentemente, reduzia a velocidade para certificar-se de que não teria nenhuma desagradável surpresa. Mas não bastava. A ameaça poderia saltar das margens da estrada, de dentro da mata. Qual-quer som, uma simples brisa balançando as folhagens, era merecedor de precaução.Os dias se sucederam e a floresta foi transposta. A paisagem mudou novamente para um cenário de vegetação baixa e pedras grandes, fendidas, que se espalhavam pelo terreno.— Um local perfeito para uma tocaia — disse Brian, quando passava ao lado de uma das pedras monolíticas.Bartolomeu agora andava mais tempo com a mão pousada no cabo do seu facão. Uma coisa o preocupava: além de algumas facas, eles não possuíam mais nenhuma arma que permitisse a

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sua defesa, como arcos e flechas. Isso os deixava vulneráveis a ataques à distância. Outro problema era a falta de coletes protetores; alguma flecha ou lança atirada de forma certeira seria capaz de atravessar um adulto com facilidade e sem oferecer nenhuma chance de reação. A expedição havia começado errada e Bartolomeu sentia-se responsável por isso, pois não se preocupou em tomar o mínimo de cuidado na preparação da jornada; despretensioso e desinteressado no início, envolveu-se emocionalmente e agora sentia um peso enorme sobre suas costas. O aventureiro sempre andava solitário, pouco se importando se a próxima aventura fosse a última. Raras eram às vezes em que ele levava companhia. Viajar em grupo dificultava o seu raciocínio, principalmente quando precisava tomar uma decisão rápida.Bartolomeu fez um sinal para que parassem e exigiu silêncio, levando o dedo indicador aos lábios. Ele desmontou sem fazer barulho e começou a subir por uma pedra oval; uma ponte natural levava aquela pedra à outra ainda maior. Bartolomeu arrastou-se sorrateiramente sobre o vão entre os dois monólitos e chegou ao topo da segunda formação rochosa. Suas suspeitas se confirmaram: dois homens sentados juntos à pedra maior assavam um animal em uma fogueira. O cheiro que vinha lá de baixo era bom. Bartolomeu desceu a pedra, furtivamente como um gato, e se atirou sobre eles forçando o metal de seu facão contra as suas gargantas. Na queda, a fogueira e o que estava assando se

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despedaçaram, fazendo voar comida e fagulhas para todos os lados. Os dois homens, aterrorizados, olhavam para Bartolomeu com os olhos arregalados. Suas aparências estavam longe de serem uma ameaça; um deles era gordinho e de pouca estatura, e fazia tanto barulho ao falar que seria ouvido a quilômetros; o seu companheiro, um magricelo desajeitado com olhos grandes como os de uma coruja, mostrava tanta coragem quanto um coelho assustado. Bartolomeu conhecia bem aquele tipo de gente que gostava de perambular bem longe da civilização, e com isso fugir de qualquer tipo de coisa que estivesse ligada a palavra trabalho.- O que fazem aqui? — inquiriu Bartolomeu, pressionando mais ainda o facão.- Na... Nada! — disse o gordinho, com dificuldade.- Não temos nada para ser roubado — disse o segundo, quase sem voz. — Mas leve o que quiser, só nos deixe vivos, por piedade!- Tem mais alguém com vocês? Não mintam, ou asso suas cabeças depois de separá-las dos seus corpos.- Não, senhor - informou o gordinho com cara de sofrimento. - Viajamos sozinhos pelas terras baixas.Não era possível para Bartolomeu que aqueles dois fossem perigosos. A aparência deles era tão ridícula e inofensiva que Bartolomeu começou a duvidar do seu poder de avaliação. O guia se levantou, afastando-se; o facão ainda em posição para ser usado.

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Roger surgiu por detrás da enorme pedra e viu aquela cena com curiosidade. Os outros vinham logo depois.- O que está havendo por aqui? - perguntou Guillermo, se os estranhos fossem os mesmos que os estavam seguindo há dias, o receio do espanhol por um possível ataque provocado por assassinos então deveria ser infundado.- Quem são vocês? - perguntou Bartolomeu sem mostrar-se amigável. Isso ele sabia fazer muito bem.- Meu nome é Nef - se apresentou o gordinho, esfregando o pescoço ainda dolorido, um sulco avermelhado marcava a sua garganta. - E esse é meu amigo Lamdi. Somos eutanos, da vila Eutan.- É um povoado que fica a pouco mais de cem quilômetros daqui — explicou Bartolomeu sem desgrudar os olhos de Nef e Lamdi.- Veja o que você fez — protestou o magricelo, mostrando a bagunça. — Acabou com o nosso almoço.Bartolomeu espetou um naco de carne com a ponta de seu facão e provou.- Ainda está bom — disse ele, saboreando. — Mesmo que com um leve gosto de... cinzas.- Se você não é um ladrão, por que nos atacou? — questionou Lamdi, aborrecido.- Não somos ladrões e, desculpem a maneira um pouco... impetuosa que o meu amigo abordou vocês — esclareceu Brian, esticando a mão para cumprimentá-los. Nef e Lamdi aceitaram o pedido de desculpas.

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- Além do nosso grupo, vocês viram mais alguém pelas redondezas? — perguntou Roger objetivamente.- Antes de vocês chegarem não havíamos visto ninguém há mais de uma semana — disse Nef, um pouco mais tranqüilo.- Para onde estão indo? — voltou a questionar Bartolomeu, achando quase impossível que eles fossem capazes de algum tipo de hostilidade.- Vamos atravessar a cordilheira de Malthar — disse Lamdi, orgulhoso. Sua feição se suavizou como a de uma criança. — É nosso sonho desde que éramos garotos.- Também vamos atravessar a cordilheira — disse Margaret, apreciando a coincidência. - Gostariam de viajar conosco?Bartolomeu não gostou da idéia. A expedição já era muito numerosa e aceitar outros membros só iria causar mais problemas. E além do mais, eles não conheciam Lamdi e Nef para aceitá-los como se estivessem indo a uma excursão turística.- Não, obrigado - disse Nef, rejeitando o convite. - Preferimos viajar sozinhos, no nosso ritmo, sem pressa.- Onde estão os seus cavalos? — questionou Guillermo, não vendo nenhum animal.- Não temos cavalos - disse Lamdi, despreocupado. - Andamos a pé e chegaremos quando tivermos que chegar.Bartolomeu dirigiu-se até o cavalo de carga e pegou um generoso pedaço de carne defumada e um pouco de farinha.- Isso é para pagar o prejuízo que lhes causei.

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Nef não hesitou em aceitar e guardou logo a carne em seu alforje, antes que Bartolomeu se arrependesse.Bartolomeu retomou a liderança e a expedição seguiu o seu destino.- Nos encontramos depois da cordilheira! — gritou Lamdi, acenando.Daniel emparelhou com Bartolomeu.- Quem são esses eutanos?- Como eu disse, eles são habitantes de um povoado ao sul de onde estamos. É a civilização humana mais a leste desde Nova Europa. Eutan sofre forte influência dos outros povos e sua origem humana está um pouco descaracterizada. Vivem de pequenos negócios entre Nova Europa e Faogard. Não visito aquela cidadezinha há muitos anos, talvez nem a reconheça se um dia eu voltar por lá.— Foram as primeiras pessoas que encontramos depois de dezesseis dias - informou Rafael do meio da fila.— O garoto tem razão - assentiu Bartolomeu, apontando com o polegar para trás. - Toda essa região é praticamente despovoada. Apenas andarilhos, aventureiros e ladrões costumam freqüentar as terras baixas.

Capítulo 16A Angústia de Bartolomeu

Os próximos sessenta quilômetros eram constituídos de terrenos irregulares com sobes e

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desces que tornavam a caminhada mais vagarosa. Quando alcançavam o topo de uma elevação, se deparavam com outra depressão que terminava em mais um aclive. A vantagem era que o campo de visão ficou bem maior dando a possibilidade de reação em caso de um ataque.Certa tarde eles chegaram a um campo repleto de árvores frutíferas. Cada uma dessas árvores estava apinhada de frutas desde o alto das copas até os galhos mais baixos. As frutas possuíam a forma de pêssegos, mas eram vermelhas como maçã madura, e eram cobertas de listras amarelas dando-lhes uma aparência inusitada. Pássaros de plumagem dourada investiam contra as frutas, enterrando seus bicos finíssimos para lhes extrair o licor. Margaret passou bem perto de uma dessas frutas que pendia da ponta de um galho, ficando tentada em pegá-la.- Pode comer - disse Bartolomeu, colhendo uma e esfregando na camisa. — Não vai lhe fazer mal — ele deu uma mordida que fez um líquido escorrer dos cantos da sua boca, depois fez um gesto para a menina fazer o mesmo.Margaret abocanhou e sentiu o seu gosto doce como mel.- Huumm! — exclamou ela, lambendo o suco que gotejava em seus dedos. — É uma delícia, experimentem!Os meninos seguiram o conselho e fizeram o mesmo, se lambuzando no doce néctar.- Como chamam essa maravilha? - perguntou Marc, colhendo outras três para comer mais tarde.

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- Suavi - ensinou Bartolomeu, limpando o rosto com as costas da mão. — As suavizeiras ficam carregadas nessa época do ano até a chegada do outono.Um belíssimo pássaro dourado atacou a suavi que Chester acabara de colher. Ele se assustou, achando interessante a persistência da ave em tentar bicar a fruta na sua mão. Daniel sorria, satisfeito, achando muito divertida a batalha entre a ave e seu amigo.- É um dunin-de-ouro — antecipou-se Bartolomeu, admirando Chester lutando para desvencilhar-se do pequeno pássaro teimoso. - Uma das mais belas aves que habitam o continente. Existem dunins de outras cores, mas esse é de longe o mais bonito.Os pássaros, agitados pela chegada dos visitantes, eram realmente belíssimos; quando o sol batia em suas penas douradas, fazia o pequeno animal cintilar, parecendo mesmo que era todo feito de ouro, uma pequena joia viva, livre no espaço. Por isso, seu nome ser tão apropriado. Era possível admirar vinte, trinta ou mais deles voando ao mesmo tempo e promovendo um espetáculo deslumbrante pelos ares. Os pios estridentes dos dunins passavam uma alegria contagiante de rara beleza.Quando um desses dunins-de-ouro fazia um voo rasteiro, sem um motivo aparente precipitou-se, indo impetuosamente ao chão. Bartolomeu segurou a rédea do cavalo de Margaret puxando para trás.- Um lincouro! - alertou ele, olhando adiante.

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- O que houve? - perguntou Roger, colocando-se imediatamente de sobreaviso.- Olhem para o tronco daquela suavizeira — disse Bartolomeu, indicando. — O que vêem?- Agora estou vendo! — disse Brian, os olhos atentos.Brian se referia a uma espécie de lagarto com pouco mais de um metro de comprimento e que se agarrava ao longo do tronco, cravando suas unhas negras na casca escura. Sua pele se confundia som a suavizeira formando uma perfeita camuflagem para enganar os dunins-de-ouro. O grotesco animal, coberto de pequenos espinhos das costas até a ponta da cauda saltou do seu esconderijo e se lançou sobre a ave abatida, engolindo-a de uma só vez.- Foi esse... lagarto que derrubou o pássaro? — quis saber Rafael, ainda confuso com o que se desenrolava bem diante dele.- Foi ele, sim — confirmou Bartolomeu, de olho no lincouro que rastejava de volta ao tronco para preparar, talvez, um novo ataque. - Sua arma é um veneno letal que ele dispara pela boca e que pode acertar com precisão a uma distância de dez metros. Se o veneno atingir os olhos ou a boca, penetra rapidamente na corrente sangüínea e pode matar um adulto em menos de uma hora. Um animal do tamanho de um pomo-de-ouro morre quase que imediatamente, como vocês viram agora.- Afaste-se daí, Meg — recomendou Guillermo, depois do que soube sobre o bicho peçonhento e altamente mortal.

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- O lincouro não ataca seres humanos se não se sentir ameaçado — esclareceu o guia. — Basta não provocá-lo e não teremos problemas.- Bicho nojento! — revoltou-se Margaret, lamentando a morte da pequena ave dourada.- É a lei da sobrevivência - disse Brian, justificando a atitude predadora do terrível lagarto.O bosque de suavizeiras foi um dos lugares mais bonitos que eles percorreram desde o início da jornada; isso diminuiu um pouco a tensão, mas a paisagem mudou novamente. As árvores deram lugar aos morros escarpados, impossibilitando a travessia com cavalos.— Desviaremos para o sul e passaremos pelo desfiladeiro de Blarbuk - disse Bartolomeu, mudando a rota para uma trilha menor. — Esse desvio nos custará uns dois dias de cavalgada.— Por que não fomos em linha reta para sudeste, até o desfiladeiro? - perguntou Roger, circunspeto, acostumado a caminhadas daquele tipo desde os tempos de soldado na marinha. - Dando essa volta perderemos tempo.— Se não desviássemos, chegaríamos a uma região de pântanos intransponíveis - disse o guia, pacientemente. Ele percebeu que Roger sabia do que estava falando e que possuía um ótimo senso de direção, mas o conhecimento de Bartolomeu ainda falava mais alto.Margaret gostava de andar junto ao guia; enchia-o de perguntas e, invariavelmente, tinha alguma história diferente para contar aos outros meninos; isso a deixava assoberbada, fustigando

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a paciência de seu irmão. Mas alguma coisa mudou o comportamento de Bartolomeu, deixando-o quieto, usando muito pouco as palavras. Os outros membros da expedição também notaram a mudança. Naquela noite, Bartolomeu se recolheu em um canto afastado, longe da fogueira, e nem tocou na comida. Quando perguntado se iria jantar, simplesmente respondeu que estava sem fome e só desejava estar só. Margaret sentou-se perto de Guillermo, Brian e Rafael, que dividiam um pedaço de carne defumada tirada da fogueira.— Bartolomeu não quer conversa — disse ela, abraçando os joelhos junto ao peito. — Será que fizemos alguma coisa que o chateou?— Deixe-o em paz - aconselhou Guillermo, oferecendo um pouco de comida. Ela aceitou. — Ele deve ter os seus motivos.— Passaremos por um desfiladeiro em um ou dois dias - comentou Rafael. - Desfiladeiros são traiçoeiros, não é mesmo?-Tudo por aqui é traiçoeiro - desabafou Brian. - Mas também se mostra belo e grandioso, pelo pouco que vimos.Marc mexeu em suas coisas e pegou sua flauta. Há muito tempo não tocava sua bela música; os primeiros sons encheram o ar com uma melodia sublime e relaxante. Bartolomeu ouvia de olhos fechados e sua fisionomia era triste e reservada. A música de Marc trouxe um pouco de paz aos viajantes, mas pareceu avivar lembranças infelizes que Bartolomeu preferia esquecer.

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A noite estava muito escura, com o céu totalmente encoberto por nuvens baixas que ocultavam Wengarel, a lua que não se movia no espaço. Brian escolheu um lugar estratégico para se acomodar e então iniciar o primeiro turno da vigília.- Fico com o senhor — disse Rafael, posicionando-se de modo a cuidar da retaguarda do professor inglês.A madrugada se arrastava com dificuldade para Bartolomeu. Brian o observava, os olhos do guia ainda abertos, que quase não pestanejavam, o olhar perdido nas nuvens obscuras. Os turnos iam sendo trocados e Bartolomeu mantinha-se acordado. Guillermo, que assumira o novo período, foi até ele.- Por que não dorme um pouco? Em algumas horas teremos de partir.Bartolomeu balançou a cabeça recusando o pedido. Guillermo achou por bem não incomodá-lo mais e se afastou dele.Uma outra manhã chegou, o céu continuava nublado deixando o dia cinzento, mas não eram nuvens de chuva que poderiam atrapalhar a caminhada.Bartolomeu seguiu em silêncio aos olhos vigilantes de Margaret que acompanhava cada reação dele. A respiração do guia ficou mais curta e acelerada e suas mãos fortes não eram mais firmes, e sim trêmulas ao conduzir a montaria.A entrada do desfiladeiro surgiu longe no meio da tarde. Agora era o queixo de Bartolomeu que

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tremia descontrolado e então veio a explicação de seu estranho comportamento: após uma curva, eles viram uma árvore de tronco muito grosso e copa larga ornada com milhares de flores amarelas que exalavam um delicioso per-fume. Era uma argnazeira, árvore majestosa que floresce o ano todo cobrindo o chão com um tapete amarelo e perfumado. Debaixo dos galhos estendidos como braços protetores via-se um túmulo raso coberto com pedras arredondadas e uma cruz de madeira inclinada pelo tempo e em que ainda era possível ler um nome "LOUISE".Bartolomeu desmontou de seu cavalo e andou lentamente até o sepulcro. O homem, que sempre pareceu uma muralha, caiu de joelhos, os ombros arqueados como se sustentassem todo o sofrimento do mundo. Aos poucos os companheiros desmontaram e aproximaram-se bastante constrangidos pelas circunstâncias.- É a minha filha, a minha filhinha — disse ele, a voz fraca e as lágrimas se derramando pelo rosto.Margaret aproximou-se timidamente e ficou ao lado dele.O que estaria fazendo a filha de Bartolomeu sepultada distante de casa em um lugar tão ermo? Bartolomeu prosseguiu falando:- Minha mulher morreu há dois anos quando Louise estava com onze anos de idade - ele pegou um pouco de ar e continuou: - Desde então, eu passei a ser toda a família dela; deixei de viajar e vivia de pequenos trabalhos para sustentá-la e vê-la crescer. A falta da mãe foi

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sendo superada pelo excesso de cuidados e atenção que eu lhe dedicava — Bartolomeu fez uma pausa lutando para falar. — Todas as noites, antes de dormir, eu contava histórias e as que ela mais gostava eram as das minhas muitas viagens; Louise nunca conheceu nada além de Nova América e Nova Europa. Uma noite falei sobre a montanha de luminita de Faogard que ilumina o céu durante a noite e ela me fez prometer levá-la para ver a tal montanha de luz, seria o seu presente de aniversário — Bartolomeu passava a mão sobre uma pedra do túmulo como se acariciasse Louise. - Certo dia partimos, foram os dias mais felizes de sua vida. Eu nunca havia visto Louise sorrir tantas vezes desde a morte de sua mãe. Lembro quando ela viu pela primeira vez um dunin-de-ouro, seu rostinho brilhava mais do que as penas do passarinho - as lágrimas se acumulavam no seu queixo e pingavam na terra. Bartolomeu insistiu em desabafar: — No dia do seu aniversário ela acordou antes de mim, queria ver a montanha começar a brilhar, e como havíamos combinado, aquele seria o seu presente, só dela. Viajamos sem descanso e quando passamos bem diante dessa argnazeira naquela tarde, Louise encheu os cabelos de flores dizendo que precisava chegar bonita e perfumada na montanha — a voz dele passou a falhar, estava muito emocionado, mas precisava contar, dividir a sua aflição. - O dia estava como hoje, nublado, e quando começou a escurecer, Louise viu o brilho do gigante de luminita projetado nas nuvens, mas o

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desfiladeiro alto encobria a fonte de tanta luz e ela não conseguia ver o verdadeiro espetáculo, uma montanha enorme toda acesa. As crianças são muito impulsivas e Louise pediu para subir a encosta do desfiladeiro que era muito íngreme. Foi esse o meu trágico erro - culpou-se severamente, os punhos apertados. - As pedras não eram muito firmes, mas ela se agarrou como pôde e foi subindo, subindo. "Cuidado!", eu gritei, não imaginando o que estaria para acontecer. Quando ela se ergueu na beirada, lá no alto do desfiladeiro, a pedra em que ela pisava se des-prendeu e ela caiu — Bartolomeu fechou os olhos como se não quisesse ver tudo de novo. - Não consigo esquecer o som da sua cabeça batendo em uma rocha. Quando abracei-a junto ao peito, consegui ouvir o que ela disse num sussurro: "Eu vi a montanha, papai, ela é linda, como você sempre me falou!". O sangue da sua cabeça se misturou com as flores amarelas e eu... não pude fazer mais nada — os olhos de Margaret marejaram, Bartolomeu contou mais: - Enterrei-a debaixo dessa árvore para que seu túmulo receba essas lindas flores, pra sempre.Roger pousou sua mão no ombro de Bartolomeu; ele não sabia muito bem o que se deve dizer nessas horas, não tinha o hábito de consolar, mas sabia o que era perder alguém que se ama muito e a partir daquele momento. Roger passou a entender melhor quem era aquele homem de fala áspera e modos rudes, e a ter respeito e alguma admiração por ele.

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Bartolomeu ajeitou a cruz em posição ereta e, por um breve instante, fechou os olhos como se estivesse falando em pensamento com a sua amada filha, Louise. Talvez estivesse falando mesmo, pois naquele mundo tão diferente tudo era possível.- Vamos enquanto ainda está claro! - disse o guia, arrancando ânimo com dificuldade para prosseguir e deixar a sua Louise, ali, sozinha. - Logo entraremos no desfiladeiro que dá para o território Faogard.Não demorou muito tempo para que os viajantes encontrassem a entrada do desfiladeiro. Os paredões eram muito íngremes e relativamente altos como a portada de um castelo rudimentar, e o vento que atravessava a sua garganta uivava misteriosamente. A vegetação ou qualquer outra forma de vida parecia ter abandonado definitivamente aquele pedaço de terra e quando um ou outro cascalho rolava pela encosta, gerava um eco melancólico que, assim como os cascos dos cavalos batendo no solo, era um dos poucos sons que se podia ouvir. Guillermo olhava de um lado para o outro entre desconfiado e admirado. Ele quis esclarecer com Bartolomeu uma dúvida que surgira naquele instante.- Por que simplesmente não seguimos pelo alto, acompanhando o desfiladeiro? Assim poderíamos reduzir as chances de sofrermos alguma emboscada. Daqui de baixo não temos nenhuma visão do que acontece lá em cima.- Os cavalos não teriam como subir — explicou o guia, convicto da sua estratégia. - E mesmo que

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isso fosse possível, eles não teriam como caminhar sem se arriscarem a quebrar uma perna, afinal, o relevo é muito irregular e cheio de buracos traiçoeiros, e com labirintos que nos deixariam mais vulneráveis.- Não deveríamos então enviar um batedor? — perguntou Brian, diante da fragilidade em que se encontravam.- Prefiro deixar o grupo unido — disse Bartolomeu, inflexível. — E um batedor não conseguiria acompanhar a velocidade de nossa marcha. Lembrem-se, há muita dificuldade de se locomover pelo alto, ainda que seja alguém bem preparado.Roger pensou que se Bartolomeu conseguiu levá-los até aquele ponto sem que nada de ruim lhes acontecesse, então o guia deveria estar correto. E se não fosse por ali? Qual caminho seria o mais seguro? Essas perguntas conflitantes mexiam com Roger que era acostumado a tomar decisões.A próxima curva, em ângulo suave, deu passagem a uma reta de vereda amuralhada que aumentou o campo de visão à frente.Uns cem metros adiante havia alguém parado no meio da estrada. Bartolomeu contraiu os músculos da face. Os corações dispararam. Guillermo inclinou a cabeça para frente e piscou duas vezes para enxergar com nitidez.— Aquilo ali é o que eu estou achando que é? - perguntou o espanhol, os olhos arregalados.— Não, você não está vendo coisas — disse Bartolomeu, dando um sinal discreto com o braço

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para que todos reduzissem o trote. - É um fauno! Caminhem bem devagar e não façam nenhum gesto brusco para não assustá-lo.Mesmo de longe era inconfundível: as orelhas pontudas, um par de pequenos chifres retorcidos brotando em meio aos cabelos cacheados, pelos cobrindo o corpo da cintura para baixo e em lugar de pés, dois cascos fendidos.— Aproximem-se bem devagar - recomendou Bartolomeu, sem elevar a voz. - Vocês são uns privilegiados. Eu só tive a sorte de colocar os olhos em cima de um fauno outras duas vezes em minha vida. Nunca soube que perambulavam por essa região.— Eles são agressivos? - perguntou Rafael, da garupa, olhando por cima do ombro de Chester.— Nem um pouco, mas são muito ágeis e podem sumir da sua vista num piscar de olhos. São seres muito interessantes — observou Bartolomeu. — Comenta-se que são capazes de se comunicar com os animais e as árvores de forma tão natural como estamos conversando agora. Entendem a língua dos ventos e das chuvas. São as criaturas que mais interagem com a natureza. Costuma-se dizer que uma floresta não vive sem um fauno e este não sobrevive muito tempo fora dela.A medida que chegavam mais perto, podiam apreciar com mais detalhes a aparência fantástica do ser mitológico, estático, bem na frente deles.Marc reparou que do pescoço do fauno pendia um objeto bastante familiar.

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— É uma flauta de Pan! — ele reconheceu logo que a viu.Marc sabia do que estava falando. A flauta mítica era constituída de tubos de comprimentos diferentes presos uns aos outros, lado a lado, do maior para o menor.O fauno olhava cada viajante com expressiva atenção, seus olhos movimentando-se rápido como os de um animal selvagem.Quando a distância deixou de ser segura, a criatura, meio homem meio animal, disparou para uma das margens e subiu a encosta do desfiladeiro com uma destreza de causar inveja ao mais hábil alpinista. Seus cascos cravaram firmes no terreno íngreme e pedregoso, enquanto ele observava do alto com a mesma curiosidade de antes.— Façam algo antes que fuja e se embrenhe na floresta! — exclamou Margaret, fascinada.A única coisa que ocorreu a Brian poderia ser loucura, mas não custava nada tentar.— Toque a sua flauta! - pediu ele a Marc.— O quê? — questionou o menino francês, hesitante. — Tocar o quê? Qual música?— Qualquer uma! — insistiu Brian sem perder tempo. — Uma que seja bem bonita!Marc puxou sua flauta que repousava com a ponta para fora do alforje e logo o ar foi invadido por uma belíssima música suave e inspiradora: a Alvorada em Peer Gynt de Edvard Grieg. O fauno foi tomado de surpresa e sucumbiu perante o som harmonioso de Marc, as orelhas pontudas do

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ser se moviam para captar melhor a agradável sonoridade.— Vamos, garoto... - sussurrou Guillermo, sem desviar os olhos do fauno. - Mostre todo o seu talento...A criatura de curiosos chifres parecia encantada com a melodia. Então, numa atitude surpreendente, o fauno também levou à boca a sua flauta de muitos tubos fazendo Marc parar de tocar. Agora era a vez do ser lendário mostrar do que era capaz, e ele respondeu com outra música tão doce quanto a de Marc. O garoto francês apeou e andou solenemente para a base da encosta, aproximando-se um pouco mais do fauno, que fez um gesto como que pedindo para Marc tocar outra música. O menino prontamente pôs-se a executar mais uma composição, dessa vez mais animada, quase dançante. O fauno sorriu e, acompanhando a alegre toada, fez um inusitado dueto com Marc. Cautelosamente, o fauno, parecendo ter saído milagrosamente de um livro de mitologia, descia o declive provocando o deslocamento de algumas pedras. Marc não parava de tocar vendo o fauno aproximando-se, cada vez mais para perto dele. Uma combinação de medo e fascínio se apro-priou do garoto e a mesma coisa deveria estar acontecendo com o folclórico fauno de anatomia animalesca, sua altura era a de um homem adulto.O extraordinário fauno estacou a apenas um passo de Marc que sentia o seu coração querer saltar do peito. Marc, extasiado, contemplava os

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grandes olhos castanhos, muito claros a fitá-lo com igual encantamento. O fauno estendeu a mão como a pedir algo, articulando algumas palavras incompreensíveis.— Ele quer a sua flauta! - gritou Bartolomeu.— A minha flauta?! Mas eu ganhei de presente, e como vou conseguir outra?— Dê pra ele, Marc! — encorajou-o Chester, curioso em ver o que iria acontecer a seguir. — Depois você consegue uma nova.Marc olhou para a flauta, olhou para o fauno.— Tome, é sua — disse, oferecendo o instrumento meio a contragosto.O fauno exibiu uma expressão interessada e tomou para si o presente, examinando-o com especial atenção, seus dedos deslizavam pelos buraquinhos ao longo da flauta. Em seguida, para espanto de Marc, ele desvencilhou-se de sua flauta de tubos de tamanhos variados e a ofertou em retribuição.— Pra mim? - disse Marc, duvidando se era mesmo aquilo que o seu novo amigo desejava fazer. - Está dando a sua flauta pra mim? - o fauno insistiu que o menino pegasse o presente. Marc aceitou enlaçando-o em seu pescoço.O fauno olhou mais uma vez a todos e subiu em rápida carreira, sumindo por trás da encosta.Marc voltou-se para os companheiros, ainda não havia digerido o que acabara de acontecer.— Venha agora, Marc, monte e vamos embora, você ainda terá muito tempo para pensar sobre isso — disse Brian, ele mesmo pasmo com tudo o que vira.

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— Inacreditável! - exclamou Daniel, seus olhos corriam pelo alto do desfiladeiro. Quem sabe o que poderia surgir dessa vez. - Vou guardar pra sempre esse momento na memória.Marc virava a sua nova flauta de um lado para o outro como se suas mãos segurassem o Santo Gral, o cálice de Cristo. Seus olhos prendiam-se nos pormenores, a madeira caprichosamente polida realçando a riqueza dos detalhes.— Os tubos são presos com fios dourados — observou, embevecido.— É ouro! — informou Bartolomeu. — O mais puro ouro que a natureza pode produzir.— Ainda não me recuperei da emoção - declarou Margaret, um sorriso de incredulidade estampado.— Depois do desfiladeiro as coisas começam a acontecer, meus amigos - avisou o guia, causando grande expectativa. Ele acelerou a cavalgada. — Preparem os seus corações.

Capítulo 17Os Punhais de Arkopromis

O desfiladeiro expandiu-se em um pátio arredondado como se fosse um pequeno coliseu.— Acamparemos aqui esta noite — disse Bartolomeu, sua voz retumbou pelos paredões altos.As nuvens se dissiparam e o firmamento revelou as estrelas faiscantes que completaram o cenário esplendoroso, quase místico, de uma catedral a

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céu aberto. Wengarel, como sempre, vigilante no topo das cabeças dos aventureiros.Daniel saltou de seu cavalo e esticou os braços para cima, espreguiçando-se, o seu rosto estampava o cansaço dos muitos quilômetros de árdua caminhada. Era sempre assim quando o dia terminava: as expressões desconfortáveis reclamando dos corpos doloridos.— Já era hora de pararmos - disse ele, enquanto friccionava as mãos para aquecê-las. - Puxa! Está esfriando muito rápido!O vento corria o tempo todo, cruzando o desfiladeiro como um rio transpondo o seu curso. Durante o dia isso era um grande benefício, tendo em vista o intenso calor gerado no solo e encosta pedregosos e áridos. Nos primeiros instantes, logo após o pôr do sol, a situação se invertia e forçava os agasalhos a entrarem em ação.— Já vou cuidar disso - disse Bartolomeu, inspecionando o estado dos cascos do seu animal. Depois agarrou um feixe de lenha suficiente para a fogueira daquela noite.O acampamento foi montado ao pé da muralha norte do desfiladeiro. O grande paredão em ângulo reto serviria perfeitamente como defesa de retaguarda, permitindo que as sentinelas se preocupassem apenas em vigiar a encosta oposta.O brilho da fogueira, combinado com o lume branco-azulado dos cajados de luminita, causava um efeito multicolorido que se refletia pelo amplo salão semi-oval.

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O cardápio pouco ou nada mudava de um dia para o outro, a não ser por alguma raiz colhida pelo caminho e que era assada sob a lenha em brasa. No fim de cada dia extenuante a fome transformava uma simples refeição em um banquete digno dos reis.— Amanhã entraremos nas terras do povo faogard — anunciou Bartolomeu, sentando-se bem próximo ao fogo. Sua faca afiada estava bem ao seu lado, pronta para ser usada.— Como são esses... faogards? — quis saber Brian, ele marcava num papel amassado os dias decorridos desde que chegaram a Nova Europa. A marcação do tempo era necessária se quisessem alcançar o portal de retorno a tempo de voltarem a Ilha da Coroa antes do encerramento do período escolar em quatro meses. Isso evitaria que a ausência dos meninos fosse sentida pelos seus familiares. Afinal, ao término das aulas, no final de cada ano, todos os alunos deveriam regressar para as suas casas e aproveitarem os dois meses de merecidas férias. Se alguém não retornasse, nesse caso, algo deveria estar errado.Chester deitou-se e cruzou os braços atrás da cabeça. As poucas nuvens que restaram desfilavam no firmamento como barcos à deriva, ora ocultando algumas estrelas, ora revelando outras; ao seu lado, Brian vestia seu casaco para enfrentar melhor o frio noturno.Sem que se desse conta, o menino texano teve seus pensamentos transportados até a Ilha da Coroa, no interior da biblioteca.

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— Professor - disse ele, chamando por Brian. — O que houve com o olho de Alexei Martov? Quero dizer, por que ele passou a usar aquele tapa-olho? Lembro que certa vez comentamos sobre outro retrato dele, o do grande hall de entrada, em que Martov não aparece usando nada parecido. Seus olhos não aparentavam nenhum problema.Assuntos como esse logo despertavam o interesse dos garotos que arranjavam um jeito de se acomodarem o mais próximos da conversa. A fogueira crepitava arremessando fagulhas que eram levadas pelo vento frio. Brian fez uma breve pausa dando chance para que os ouvintes se ajeitassem em seus cantos. Então, passou a falar:— O retrato de Martov com um dos olhos tampado foi feito, mais ou menos, um ano após a sua volta. Ele foi ferido gravemente no rosto e veio a perder uma vista. Por isso ele passou a usar o tapa-olho.— Como ele se feriu? — indagou Rafael, exigindo os detalhes.— Ele foi atacado por um grifo que lhe desferiu um duro golpe no rosto com sua garra afiada.— O grifo! — exclamou Marc, ligando as coisas. — A estátua da sala que dá acesso ao túnel pelo qual passamos para chegarmos ao portal...— Foi Alexei Martov quem projetou e mandou construir a figura de pedra — informou Brian. — Apesar de ter sido mutilado, ele tinha uma grande admiração e respeito pelo incrível animal. Martov dizia que um grifo defende o seu território

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e a sua prole com rara dedicação, assim como a Ordem do Círculo de Pedra faz com o seu segredo. Por isso ele achou adequado colocar o grifo como um dos nossos símbolos.— Será que teremos de atravessar as terras por onde habita esse bicho? - quis saber Margaret, temerosa.— Isso eu já não sei. Certamente, o nosso amigo deve saber responder — disse Brian, olhando na direção de Bartolomeu que se encolhia numa dobra do paredão, estrategicamente acomodado para a vigília.Daniel se ajeitou para dormir. "Wengarel, posicionada sobre ele, entrava em sua fase minguante. Sua mente estava povoada por grifos, faunos e dragões voadores de mais de vinte metros. Quantas outras criaturas fantásticas ele iria encontrar pelo caminho até cruzar o portal de retorno? A sua paixão pelo desconhecido quase superava a preocupação que deveria ter pelo perigo sempre a espreita. Daniel se questionava se não estaria sonhando com tudo aquilo como fazia Vagtajonus: o supremo deus que dorme.A noite que passariam no desfiladeiro seria a última antes de penetrarem no território aberto Faogard. Provavelmente o povo guerreiro os protegesse das ameaças veladas pelas quais passavam desde que cruzaram o rio Luza que havia ficado para trás na aridez do deserto do Kundruir.A noite foi longa e enfadonha cortada pelo vento amargurado e frio.

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A manhã trouxe um dia nublado com mais nuvens de um cinza monótono. O vento ainda soprava ininterrupto.A tropa retomou o passo e, quatro horas depois, venceu o desfiladeiro chegando às florestas fronteiriças de Faogard com a estrada voltando a ser ladeada por árvores altas. Os ventos reduziram-se a uma leve brisa com agradável fragrância que lembrava lavanda.Bartolomeu decidiu por uma parada rápida para o descanso e também para o abastecimento de água que estava quase no fim. Um lago próximo permitiu que os cavalos se fartassem molhando as gargantas secas e sedentas. Os odres foram sendo cheios até a boca. Os meninos se atiraram no chão, aproveitando o exíguo momento para relaxarem.Margaret foi a única a notar quando Bartolomeu embrenhou-se pela mata e desapareceu entre as folhagens verdejantes e viçosas. Ela o seguiu discretamente até alcançar uma pequena clareira onde, no centro, despontava uma enorme pedra que vertia água do seu topo como um chafariz natural. O borbulhar da água e o canto faceiro de alguns pássaros eram os únicos sons que a menina conseguia perceber naquele ambiente selvagem e solitário. Fora ela, não havia mais ninguém na clareira. Onde teria se enfiado Bartolomeu? O temor se apoderou de Margaret que decidiu voltar imediatamente à estrada, para junto da proteção de seus amigos.

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Repentinamente, ela foi agarrada pelos ombros e virada quase com violência.— O que você está fazendo aqui? - vociferou Bartolomeu, sacudia Margaret com um furor contido.Margaret assustou-se com a atitude colérica de Bartolomeu. Como os olhos de alguém poderiam transmitir fúria e candura ao mesmo tempo?— Só queria saber onde estava indo - explicou-se ela, sua voz vacilava, seus cabelos caindo sobre os olhos. - O senhor mesmo disse que deveríamos ficar juntos, o tempo todo.— Isso não justifica o que você fez! E muito perigoso! - sua voz assumiu uma inflexão mais branda.— O que veio fazer nessa clareira? - insistiu Margaret, aproveitando-se da paciência de Bartolomeu.— Eu queria me isolar um pouco — disse, largando a menina. As mãos de Bartolomeu se fecharam como que se arrependendo de tê-la sacudido com tanta força.Ela reparou que o guia segurava uma folha de papel. Logo viu que deveria ser uma carta ou algo assim. Algumas dobras rasgadas denunciavam que a carta fora lida e relida um sem-número de vezes.Bartolomeu percebeu que Margaret olhava com curiosidade para o papel em sua mão.— E de Louise - disse, meio sem jeito. - Ela escreveu essa cartinha para que eu depositasse no túmulo da mãe dela. Queria que a mãe soubesse de nossa viagem. Quando li, não sei

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por que, não quis me desfazer da carta e guardei-a comigo sem que Louise soubesse.Bartolomeu hesitou. Olhou para a carta e depois para Margaret.— Pegue, pode ler.— Posso? Não sei se devo - disse ela, entre o desejo de saber o conteúdo e o constrangimento.Bartolomeu assentiu com a cabeça, autorizando.Timidamente ela pegou a carta e pôs-se a examinar a caligrafia. Louise não era muito hábil na escrita, as vírgulas e parágrafos foram ignorados, mas desenhou cada letra com muito capricho, como um pintor pincela um quadro com profundo esmero. As palavras estavam borradas pelo constante manuseio, todavia, ainda era possível ler e sentir a emoção com que cada frase havia sido registrada naquele simples pedaço de papel quase em frangalhos.Margaret leu:

Querida mamãeEstou te escrevendo essa carta porque quero que você saiba que amanhã bem cedo eu e papai estaremos fazendo aquela viagem que eu tanto sonhei fazer. Lembra mamãe? Irei conhecer a montanha de luz de que papai me falou. Ele me disse que planejou chegarmos lá bem no dia do meu aniversário. Desejo muito que você também esteja lá nesse dia para festejarmos juntos olhando a montanha começar a brilhar quando a noite chegar. Papai sempre fala de você e de como ele gostaria que você estivesse aqui com a gente mas eu sei que você está no céu

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conversando com os anjinhos. Um dia eu e papai vamos morar com você num lugar bem bonito mamãe e aí estaremos todos juntos novamente.Te amo muito minha querida mamãezinhaLouise

Margaret dobrou a carta com cuidado para que não se despedaçasse e devolveu-a ao seu dono. Bartolomeu experimentou um profundo alívio por poder dividir com alguém um sentimento tão puro; em seguida guardou a cartinha de Louise com cuidado em uma bolsinha de couro presa ao cinto.A água que escorria pela pedra era límpida. Bartolomeu juntou as mãos em concha para beber alguns goles.— Dizem que os faunos vêm aqui para beber dessa fonte — ele comentou tão naturalmente como se falasse de coelhos. Então, enxugou o queixo com o dorso da mão.Margaret também experimentou da água e teve a sensação de estar, de alguma forma, em comunhão com seres sobrenaturais.Num gesto inesperado, Bartolomeu segurou o braço da menina, com a outra mão desembainhou seu facão.— Fique atrás de mim! - ordenou ele, pressentindo algo de muito ruim.— O que houve? — perguntou ela, seu coração disparou.Cinco figuras encapuzadas, armadas com punhais de pontas duplas, surgiram como lobos famintos do interior da mata e cercaram

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Bartolomeu e Margaret, sem dar-lhes alguma chance de fuga.— Quem são eles? - perguntou Margaret, aterrorizada, temendo pela resposta.— Não tenho certeza! Haja o que houver, não saia de trás de mim - disse o guia, girando sua arma, oferecendo a lâmina afiada ao primeiro que ousasse atacar.Os encapuzados posicionavam-se procurando o melhor momento de usarem suas facas pontiagudas. Seus rostos não podiam ser vistos, escondidos nas sombras dos capuzes.Bartolomeu olhava de um lado para o outro, como um tigre acuado, esperando a primeira investida. Margaret se protegia, amedrontada, entre ele e a fonte monolítica de água.Por fim, o ataque aconteceu. Os cinco agressores, de uma só vez, arremeteram furiosamente contra Bartolomeu. Seus punhais cortavam o ar tentando atingi-los sem piedade. Bartolomeu acertou o ombro do primeiro, mas também foi atingido no antebraço esquerdo.Margaret fez a única coisa que estava ao seu alcance: começou a gritar deses- peradamente.Os punhais zuniam, buscando a carne de Bartolomeu que já sangrava mas sem perder a ferocidade na luta.Um segundo golpe atingiu seu ombro direito fazendo o sangue espirrar, escorrendo pelo seu braço. Seu maior medo era que algum golpe acertasse a menina. Na mente dele passava em flashes a queda de Louise, a cabeça vertendo sangue, e ele sem poder fazer nada para salvá-

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la. Não poderia acontecer a mesma coisa com Margaret. Não dessa vez. Outro golpe perfurou sua mão esquerda, cortando-a profundamente. Bartolomeu respondeu com um ataque certeiro no pescoço de um encapuzado que guinchou e caiu de lado: estava morto.Margaret gritava e se espremia contra a pedra que, indiferente a tudo, continuava derramando serenamente a sua água. Apavorada, a menina berrava, tentado escapar das lâminas que por vezes passavam a centímetros dela. Bartolomeu lutava como podia, protegendo a garota. Ele começou a sentir que estava perdendo as forças, seus movimentos mais lentos, sem a mesma precisão. Mais um ataque, esse acertou-lhe o pescoço. Ele sabia que estava seriamente ferido e contragolpeou atravessando o peito de outro inimigo que caiu despejando um jorro de sangue pela boca. Quase sem forças, mas num ataque preciso, decepou a mão do terceiro homem que gritou inconformado e, pegando com a mão esquerda o punhal agarrado a mão decepada, voltou ao ataque. Nada adiantou, pois Bartolomeu rasgou a garganta do atacante, agora maneta, que desabou como um boneco de pano.O chão estava empapuçado de sangue causando horror a Margaret que se esquivava de todo jeito para se livrar dos punhais afiados que a acossavam.Bartolomeu havia perdido muito sangue e suas forças estavam se esvaindo quase que totalmente; mas ele ainda arrancou, sabe-se lá

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de onde, alguma energia para abater o quarto encapuzado, destroçando suas costelas e perfurando em um só golpe o seu coração.Bartolomeu caiu de joelhos, exaurido, sem forças para lutar. Seus olhos embaçaram e ele só conseguia pensar em Margaret. O guia já não sabia mais se o que ocorrera seria alucinação ou uma terrível realidade. Viu, ou imaginou ter visto, Louise à sua frente, os braços estendidos, chamando: "Papai! Papai!".O único encapuzado que sobreviveu, aproximou-se para desferir-lhe o último golpe. Margaret ficou olhando petrificada sem poder agir em defesa do seu amigo. A próxima seria ela mesma a provar do corte frio daquele punhal.A cabeça do encapuzado foi girada com violência e o seu pescoço quebrado, produzindo um estalo macabro. Roger havia chegado por trás e atacado com raiva, deixando o corpo do agressor cair pesadamente no solo.Bartolomeu pendeu para frente e foi amparado por Roger que deitou-o cuidadosamente na grama encharcada de vermelho.Os outros chegaram logo depois trazidos pelos gritos agudos de Margaret. Atônitos, eles se colocaram em torno de Bartolomeu.O guia respirava com muita dificuldade, sua cabeça sustentada por Roger.Margaret correu e abraçou Guillermo, procurando fazer proteção. A experiência por qual passou ficaria marcada na sua memória pelo resto de sua vida.

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— Eles queriam me esfaquear — desabafou, não contendo o choro. - Vi Bartolomeu sendo atacado e o sangue escorrendo e não pude fazer nada. A culpa foi minha, eu não devia ter vindo atrás dele.— Não, não foi sua culpa, querida — disse Guillermo, procurando consolá-la. — Isso iria acabar acontecendo mais cedo ou mais tarde.A sensação de impotência do grupo era evidente dada a gravidade dos ferimentos de Bartolomeu. Ele balbuciou algumas palavras.— Vão embora... Salvem suas vidas... — suplicava, os olhos distantes.Brian observava o estado deplorável de Bartolomeu. A perda de sangue era muito grande. Ninguém sabia o que fazer para tentar ajudá-lo.Margaret, penalizada, desprendeu-se dos braços de Guillermo e aproximou-se ajoelhando ao lado do homem que lutou para salvá-la. Guillermo tentou afastá-la para evitar que se torturasse com a visão de um homem prestes a enfrentar a morte; ela resistiu e pegou gentilmente a mão ensangüentada de Bartolomeu.Os olhos do guia encontraram a menina.— Louise... - falava com voz fraca, o delírio fazia com que visse a imagem da filha no rosto de Margaret. — Louise... que bom que você voltou... Louise... - o nome da filha foi a última palavra que ele proferiu, os olhos agora parados, semi-abertos.Margaret sentiu a mão forte de Bartolomeu relaxar soltando a sua.

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Guillermo baixou a cabeça, lamentando a perda do companheiro.Os garotos olhavam confusos e as expressões deles estavam contraídas.A única experiência com morte em que Rafael havia passado foi a de acompanhar os pais a noite toda no velório de um tio que havia morrido de um infarto fulminante. A lembrança que ficou não foi a das gargalhadas espalhafatosas aos domingos, mas o rosto dele emergindo em meio as flores dentro de um caixão de madeira barata e os algodões enfiados nas narinas. Rafael, então torcia para que se lembrasse de Bartolomeu como um aventureiro forte e destemido e não como um cadáver coberto de sangue.Brian caminhou até um dos assassinos de Bartolomeu, descobrindo-lhe a cabeça. Eram humanos! Mas por que seus semelhantes atacariam um homem e uma menina como feras selvagens caçam para comer?Depois de revistar as vestes dos agressores procurando por algo que os identificasse, Brian constatou que todos eles usavam cabelos compridos e tinham tatuagens em forma de "V" invertido nos lóbulos das orelhas esquerdas. Certamente não eram os tais crassênidas, mas talvez, assassinos de aluguel. Brian recolheu um punhal, as duas pontas paralelas despertaram a sua curiosidade.— Alguém deve saber que tipo de pessoa utiliza armas desse tipo — disse, exami- nando-a com mais cuidado. Então, lavou-o na água corrente se livrando do sangue que começava a coagular.

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Roger pousou cuidadosamente a cabeça de Bartolomeu no solo. Uma coisa o deixou intrigado.— Por que esses "animais" não usaram flechas ou outro tipo de arma que pudessem disparar à distância? Não entendo por que preferiram o confronto corpo a corpo com um homem experiente como Bartolomeu.— E se o propósito deles era o de matar a todos nós, por que não o fizeram de uma só vez? O desfiladeiro seria um bom lugar - sugeriu Daniel, tentando montar uma hipótese plausível.— Talvez pretendessem nos eliminar aos poucos, um a um — aventou Chester, olhando com repugnância as faces gélidas e inexpressivas dos assassinos.— Muito bem — disse Brian. — Perdemos o nosso guia e ficou muito claro que estão dispostos a nos matar. Não pensei que passaríamos por isso - ele fez uma curta pausa e completou: — Pois bem, seguimos em frente ou voltamos para Nova Europa?— Não podemos voltar - disse Roger, descartando a idéia de Brian. — Nossa missão é a de levar os meninos sãos e salvos. Temos uma missão, lembram-se?— Eu já não sei de mais nada — desabafou Brian, temeroso pela vida dos jovens. — Assassinos que se expõem sem necessidade usando capuzes e com marcas nas orelhas.— Alguma coisa não se encaixa nessa história - refletiu Guillermo. - Bem, não podemos deixar Bartolomeu assim, sem um enterro descente.

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— Se temos de enterrá-lo, vamos fazê-lo bem rápido - disse Brian, impaciente. - Já perdemos muito tempo e não sabemos se existem outros encapuzados escondidos por entre essas árvores.— Brian tem razão - admitiu Guillermo. - O próprio Bartolomeu pediu para que fôssemos logo embora. Ele sabia muito bem pelo perigo que estamos passando. Vou pegar a pá e terminar logo com isso.— Espere um pouco - interrompeu Roger. - Ele não pode ficar aqui. Temos uma dívida com ele.— O que você quer dizer? - indagou Brian, seus olhos expressavam que ele sabia muito bem o que se passava na mente de Roger.— Vou enterrá-lo junto à filha - decidiu, ele se agachou para pegar o facão de Bartolomeu; poderia ser muito útil em outra ocasião.— E aconselhável ficarmos juntos, Roger. Você nos é muito importante em cada minuto nessa jornada - argumentou Guillermo, sua voz era serena. - Mas se é o que realmente quer, não poderemos atravessar todo o desfiladeiro de volta com você. Perderemos um tempo precioso e estaremos nos expondo a mais perigos.— Eu sei, mas... preciso fazer assim mesmo — disse, irredutível.O corpo de Bartolomeu foi levado até a estrada com alguma dificuldade devido ao seu tamanho e peso. Roger enrolou Bartolomeu em um cobertor e com o auxílio de Brian e Guillermo, prendeu o corpo no lombo da montaria do guia.— Alcanço vocês em três ou quatro dias — disse, enquanto montava no mesmo cavalo que pendia

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o corpo de Bartolomeu.Roger retornara para o desfiladeiro enquanto, finalmente, os seus amigos penetravam o território faogard.

Capítulo 18A Montanha de Luz

As terras faogards eram vastas, e a paisagem se mesclava entre colinas e planícies circundadas por rios de águas calmas. Um lugar interessante para se viver algum dia.No meio da imensidão destacava-se um monte de base larga e com o pico arranhando os oitocentos metros de altitude. Era uma formação rochosa de coloração azulada. Ali, diante deles, a gigantesca jazida de luminita. A afamada montanha de luz.— Continuamos para leste - avisou Brian, assumindo a liderança.Os meninos, evidentemente, estavam cabisbaixos, atingidos pela morte do líder. Bartolomeu, ao seu modo, ganhara a confiança e o respeito, principalmente dos jovens aventureiros. Margaret era a que havia ficado mais abatida; afinal, ela presenciou como Bartolomeu tragicamente perdera a vida e como ela mesma esteve à beira de também perder a sua.O terreno aberto facilitava antecipar qualquer aproximação. Por isso, a tensão diminuíra um pouco.

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Ao final daquele dia, quando o sol tocava o horizonte, os viajantes acharam por bem assentarem acampamento na beira de um rio fervilhando de peixes. Alguns chegavam tão próximos da margem como que pedindo para serem pescados.— Teremos peixe no jantar - anunciou Guillermo, satisfeito com tanta fartura.— Como é possível que não haja nenhuma aldeia ou pelo menos uma casa nesse paraíso? — interrogou Daniel, as mãos apoiadas na cintura, olhando à volta e respirando o ar aromático de frutas silvestres.— Melhor assim — comentou Rafael, apreciando a beleza bucólica dos enormes campos.Aparentemente, apenas pássaros trinadores e pequenos roedores eram os únicos moradores locais.O sol, esmaecido de nuvens, foi se pondo e as primeiras estrelas desvanecidas ocuparam o céu, e do laranja vivo a abóbada celeste cedeu espaço para um azul cada vez mais escuro até ficar totalmente negro, contrastando com as estrelas cada vez mais brilhantes.Um espetáculo grandioso, nunca antes visto por eles, começou a se descortinar.— Olhem! A montanha! — exclamou Marc, maravilhado.A montanha de luminita, então vestida de um azulado opaco, iniciou o seu brilho cada vez mais resplandecente, até iluminar com todo o seu esplendor a planície e as nuvens acima dela. Os rios se transformaram em veios luminosos refle-

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tindo a montanha que quase convertia a noite em dia. Grande parte das estrelas foi ofuscada pela claridade intensa que a montanha emitia; somente o brilho fraco de algumas mais próximas do horizonte ainda insistia em sobreviver.Todos assistiam boquiabertos a mais uma magnífica surpresa que se revelava para eles.— Agora entendo porque Louise sonhava tanto em vir aqui — comentou Guillermo, na sua voz percebia-se encantamento e melancolia.— Uma montanha que brilha como mil faróis de Alexandria... O que mais veremos? — especulou Rafael, o queixo apoiado nos punhos.— Acho que é por isso que ninguém mora por aqui - deduziu Daniel. - Como poderiam dormir à noite com toda essa claridade?— Para isso existem cortinas, espertinho? - disse Margaret, sua língua continuava afiada.— Cortinas escuras e bem grossas — acrescentou Chester, sua barriga roncou. - Estou com fome. Será que essas raízes já estão assadas?— Experimente essa - ofereceu Brian, puxando uma do fogo e empurrando-a para o lado do rapaz. - Pela cor já deve estar boa. Cuidado para não queimar os dedos.— Como o professor Roger deve estar se saindo? — perguntou Daniel, imaginando-o sozinho naquele desfiladeiro frio.— Ele sabe se virar. — Tranquilizou-o Brian, mexia vigorosamente a fogueira com um galho seco, ajeitando as raízes para assarem por igual e revitalizando o fogo. - Roger está acostumado a

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sobreviver em ambientes hostis. Em poucos dias ele estará conosco.No seu íntimo, Brian não tinha tanta certeza, mas confiava nas habilidades de Roger. Precisava acreditar.

Amanhecia e Roger já atravessava o desfiladeiro, determinado a cumprir a sua missão e regressar o quanto antes para se integrar novamente ao seu grupo.Foi necessário tirar o corpo de Bartolomeu, aliviando a carga para o descanso do cavalo durante a noite. Recolocá-lo de novo sobre o animal foi mais difícil, mas Roger era um homem muito forte e esforço físico não era algo incomum para ele.Roger exigia um pouco mais de seu cavalo para que a velocidade não diminuísse, sabia que a cada passo se distanciava mais de seus amigos. Estava mais preocupado com o bem-estar deles do que com o seu. Sozinho e conhecendo agora o caminho, ele tentava ir mais rápido, mas o peso extra dificultava o galope.Uma segunda noite no desfiladeiro foi inevitável e só no fim da manhã do outro dia é que Roger atingiu o seu objetivo: a argnazeira florida de amarelo.Sem perder mais tempo, Roger serviu-se da pá de cabo curto e passou a cavar uma cova ao lado da sepultura de Louise. Ele só parou quando, finalmente, ajeitou a última pedra para marcar o local de repouso de Bartolomeu, o fiel guia agora

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abrigado sob a árvore de extensos galhos protetores.Por fim, Roger agarrou com força um grande galho que se estendia sobre os dois sepulcros e o agitou até que as flores amarelas começassem a cair. Estava feito: pai e filha juntos para sempre em seus leitos de morte, adornados pelas perfumadas flores amarelas.Roger estufou o seu peitoral avantajado, respirando fundo. O seu trabalho estava terminado.Incansável, ele girou as rédeas e cavalgou de volta entrando mais uma vez no desfiladeiro.Sentindo-se mais leve, o cavalo aumentou a velocidade penetrando o imenso corredor de pedra, mais e mais.Roger puxou as rédeas, detendo o cavalo que relinchou como que reclamando do movimento brusco. Três encapuzados o aguardavam impedindo sua passagem; dois deles se posicionavam, um em cada lado das encostas segurando uma corda. Roger imediatamente compreendeu que se avançasse, tentariam derrubá-lo de sua montaria e daí ele seria um alvo fácil para as intenções dos criminosos. Ele achou prudente desmontar e enfrentar os homens. Puxou o mesmo facão tão longo como uma espada, o mesmo que havia pertencido a Bartolomeu, e pôs-se a caminhar lentamente em direção aos seus perseguidores que abandonaram a corda e puxaram os seus punhais bifurcados, ameaçadores.

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Roger sentiu que a empunhadura do facão era perfeita para a sua mão e a lâmina, embora de tamanho exagerado, era leve, permitindo movimentos mais ágeis.Os três encapuzados atacaram de uma só vez, procurando anular qualquer possibilidade de reação de Roger. Este girava o facão com velocidade, impedindo a aproximação dos algozes. Experimentaram cercá-lo, e então, atacá-lo por trás e pelos lados. Um deles investiu com fúria e foi rechaçado com violência, sua mão enluvada atingida, tendo dois dedos decepados. O inimigo parecia não estar ferido, pois sequer se importou com o sangue que escorria e pingava pelo local da batalha.Um outro, aproveitando-se de um momento de descuido de Roger, cortou-lhe superficialmente o antebraço esquerdo. O ferimento de Roger instigou os seus agressores a voltarem ao ataque com maior ímpeto. O facão, que antes defendera a Bartolomeu e Margaret, cortava novamente o ar como se fosse a sina daquela arma defender os que estivessem em desvantagem numérica.A luta interminável foi cansando Roger que não se entregava e rangia os dentes com furor.Inesperadamente, uma flecha cruzou o ar atravessando a garganta de um encapuzado, que sufocado pelo ferimento em sua traqueia, soltou ganidos de dor e desespero, caindo ao chão, seu corpo estremecia de forma involuntária; uma segunda flecha se alojou no peito de outro que só teve tempo de esbugalhar os olhos antes de cair

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morto. O terceiro tentou fugir, mas foi alcançado por outra flecha cravada em suas costas.Roger procurou com o olhar o autor dos disparos. Lá estava ele. No alto do desfiladeiro. O fauno, portando um belo arco cor de bronze; a flauta, presente de Marc, pendurada em seu pescoço por um fio dourado. Roger o olhou com respeito e gratidão. O fauno fixou o arco no ombro e desapareceu por detrás da encosta.- Ei! Espere! - gritou em vão, sem ter tempo de agradecer.As mesmas marcas em "V" invertido nas orelhas, os mesmos punhais de duas pontas, identificou Roger, num breve exame feito nos corpos.Deve haver outros como esses — pensou ele, e enviou um olhar intrigado aos cadáveres espalhados pelo desfiladeiro.Duas emboscadas com nove mortes contabilizadas; dentre elas, a do bravo e saudoso Bartolomeu.Enquanto cavalgava, Roger se esmerava para compreender quem poderiam ser os misteriosos homens de rostos encobertos, estranhos símbolos nas orelhas e punhais exóticos, sua atenção era redobrada esperando outro possível ataque.O sol surgiu forte na manhã seguinte em Faogard. O território era um dos menores dos que compunham o lado ocidental do continente, embora ocupasse uma enorme área a oeste da cordilheira. A planície por onde o grupo se deslocava, antecipava os campos abertos onde

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se localizava a capital, conforme acertadamente havia informado Bartolomeu.Brian, o último da fila, olhava constantemente para trás buscando algum sinal de Roger. Ainda era muito cedo para achar que o professor os tivesse alcançando, mas a apreensão maior era se Roger não aparecesse, pois eles não teriam tempo suficiente para organizarem uma busca.Guillermo seguia à frente acompanhado de perto por Margaret e Rafael, e ao cruzarem um riacho de pedras limosas, eles percorreram o último trecho de vegetação mais compacta de árvores altas e grandiosas antes de atingirem as pradarias.Ao pararem para um breve descanso e ao mesmo tempo com a intenção de se abastecerem de água e víveres, Guillermo consultou sua bússola, reviu as provisões e equipamentos se certificando das reais condições para seguirem em frente; a viagem prosseguiu e a paisagem se abriu em um vasto campo verdejante.O vento quente ondulava a vegetação de gramíneas que se espalhava em profusão. Os aventureiros e suas montarias se enfiaram numa faixa de capim alto e algum tempo depois já caminhavam na relva fina, ganhando velocidade.— Se meus cálculos estiverem certos, e eu acredito que estão, devemos seguir naquela direção - disse Guillermo, apontando para sudeste. - Depois de amanhã deveremos estar batendo nos portões da cidadela Faogard.

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— Será que teremos uma boa recepção por parte do povo Faogard? - perguntou Chester a Guillermo que trotava ao seu lado.— Acho que sim. Apesar de não nos conhecerem, eles tinham um bom relacionamento com Bartolomeu - Guillermo arrancou um capim fino e longo que passava do seu lado e analisou sua textura. — Mas o que mais me preocupa agora é Roger — confessou.— Espero que eles tenham camas quentes e macias — disse Rafael com um sorriso leve. — Seria ótimo variar um pouco.— O que você está achando, que vamos de férias para um hotel? — brincou Marc, se intrometendo, provocando. — Pra mim basta uma boa refeição. Não agüento mais comer raízes e carne defumada.— Nesse caso, procure um bom restaurante francês, com luz de velas e tudo - disse Rafael, devolvendo imediatamente a provocação. Marc riu da brincadeira do amigo.Uma ou outra árvore, de tronco fino e pouca folhagem, surgia à frente entre os montes baixos conforme os cavaleiros seguiam, mas nada de Faogard. A floresta espessa já havia ficado há um bom tempo para trás e agora eles se encontravam caminhando num mar imenso de campos. Isso era bom, já que a possibilidade de uma investida feita de surpresa estava totalmente afastada.— Ei! Olhem! - gritou Rafael, o tronco torcido na sela, sua atenção voltava-se para a retaguarda. - Acho que vi alguma coisa.

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— Parece o professor Roger - disse Margaret com cautela. Ela olhou com mais cuidado, semicerrando os olhos azuis. — É ele! É o professor! - afirmou com certeza, seu rosto irradiando alegria.O professor Roger reduziu o galope e passou a cavalgar de maneira mais compassada.Quando se juntou aos companheiros, Roger contou tudo o que acontecera durante aqueles poucos dias: falou do enterro de Bartolomeu e de como ficou satisfeito em unir pai e filha; contou do ataque que sofreu dos encapuzados e de como foi ajudado pelo fauno com três flechadas certeiras.— O fauno fez aquilo? — espantou-se Rafael, os olhos fixos em Roger. - Então temos um ótimo aliado, não é mesmo?— Tomara que existam outros como ele e que sempre apareçam nesses momentos de perigo - desejou Marc, agarrando a flauta que fora dada pelo fauno, pendurada orgulhosamente em seu pescoço.— Certo - disse Brian com decisão. - Estamos todos juntos novamente. Agora é hora de irmos andando antes que escureça. Não podemos ser confundidos com bandidos pelos faogards. São guerreiros violentos e podem se tornar extremamente agressivos se provocados.Marc ficou lado a lado com Roger. O garoto queria saber mais sobre o fauno e o seu talento para atirar flechas, além de tocar flauta, é claro. Afinal, ninguém havia chegado tão perto da impressionante criatura como ele.

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Uma outra parada foi realizada para fornecer água aos cavalos em um rio próximo e também se esticarem um pouco a fim de amenizar o cansaço.Brian fazia cálculos e anotações em sua caderneta. O tempo era precioso e um erro de avaliação poderia ser desastroso.Margaret jogava um pouco de água na nuca. O sol, muito ardido, e alguns mosquitos não deixavam de importuná-la desde que começaram a atravessar o capinzal.Daniel sorriu para Chester, Marc e Rafael com escárnio.— Está sentindo muito calor, mana? — perguntou, induzindo a resposta.— Claro que estou! — disse ela, com alguma irritação. - Não tem nenhuma sombra a quilômetros daqui. — Sua mão em concha derramava mais água sobre os cabelos molhados.Daniel chegou o mais perto que pôde de Margaret e chutou um jorro de água molhando toda a roupa da irmã. Depois a empurrou fazendo-a perder o equilíbrio e precipitar-se na parte mais funda do rio, ficando definitivamente encharcada. O cabelo, ensopado, cobria o seu rosto impedindo que enxergassem sua face irada.— Daniel! — vociferou, colérica, sentada com a água até a altura do peito.Marc, cheio de dó, estendeu a mão para ajudá-la a levantar-se; ela o agarrou e puxou com força,

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fazendo o francês tomar um banho contra a sua vontade.— Por que você fez isso? — perguntou ele com cara de espanto, agora sentado ao lado da menina.— Se tornou amigo dele! — justificou possessa a atitude irracional.Margaret, então se levantou num pulo, a água escorria pelas suas roupas como uma cachoeira, ela avançou com raiva sobre o irmão que disparou e se protegeu correndo em volta de um cavalo que pastava indiferente. Ela tentava agarrá-lo e sua raiva aumentava ainda mais.— Você me paga, Daniel! — ela rosnou entre os dentes.— Mas não era o que você queria? - disse Daniel, rindo, usando frágeis argumentos para se defender. - Agora não vai mais sentir calor.A ironia de Daniel foi a gota d'água para Margaret.— Espere o troco, Daniel. Vou fazer você se arrepender do que fez - disse, em tom de ameaça, decretando uma vingança a altura de sua ira.— Você está condenado, Daniel - observou Rafael, tendo como certo a vingança da irmã que chegaria mais cedo ou mais tarde.— Eu sei - disse ele, aceitando com resignação, o sorriso zombeteiro não abandonava o seu rosto. — Mas ela não vai me pegar tão fácil assim.Guillermo deu um fim à toda aquela confusão.— Andem logo, montem e vamos embora.

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— Olhem só como estou. A minha roupa, toda molhada — disse ela, quase choramingando, suas botas, de tão molhadas, chiavam quando ela andava.— Com esse calor a sua roupa secará logo - disse Chester, fazendo o possível para acalmá-la.O rio foi atravessado e, mais à frente, eles se depararam com uma grande extensão de capim totalmente queimado; uma área de uns cinco metros de largura por uns oitenta metros de comprimento de terreno calcinado. O que deveria ter sido uma pequena árvore havia sido transformada em carvão. O cheiro do mato reduzido a cinzas ainda era forte.— Certamente não foi esse sol abrasador que fez isso - concluiu Brian, examinando a vegetação em volta que era verde e viçosa pela proximidade do rio.— É um claro sinal da ação humana, devemos estar bem perto de Faogard - calculou Rafael.A tarde mostrou um imenso sol vermelho se escondendo vagarosamente por detrás das colinas distantes.A noite foi uma das mais sossegadas que eles tiveram nos últimos dias. Há muito tempo que Roger não tinha um sono tão tranqüilo desde quer saiu de Nova Europa.A manhã seguinte começou com outro sol forte colocando o grupo, totalmente revitalizado, em marcha para a cidade dos guerreiros.Guillermo firmou a vista para enxergar melhor um movimento incomum vindo de sudeste.

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— Cavaleiros! - disse ele, avistando um grupo numeroso que se aproximava.Eram os tais faogards, finalmente o primeiro contato dos viajantes com uma civilização não humana.A aparência daquele povo era fora do comum: homens de porte atlético e estatura acima da média, no entanto, o que chamava mais a atenção eram os cabelos e os olhos de um vermelho incandescente que contrastava com a pele clara, levemente ruborizada. Vestiam-se com trajes pesados de couro e detalhes em ferro nos ombros, tórax e joelhos; botas, de couro grosso, projetadas para longas caminhadas ou mesmo para se escalar encostas, se assim precisassem. Alguns usavam os cabelos compridos amarrados para trás em uma única trança e fixados com quatro ou cinco anéis de metal até a extremidade, outros deixavam-nos soltos, caídos sobre os ombros. Os guerreiros estavam fortemente armados com espadas, arcos e um outro curioso armamento: martelos de aspectos robustos, capazes de despedaçar crânios com um só golpe; mas não deveriam ser de manuseio muito fácil para os que não possuíssem braços consideravelmente fortes. Os cavalos eram maiores do que o normal e tinham listras cinzas, marrons ou mesmo pretas como as zebras, porém, o porte dos tais animais era de aspecto forte e elegante. Eram os velozes e resistentes gifenontes.— Quero ter um desses — murmurou Chester, impressionado com a beleza dos quadrúpedes.

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Os guerreiros, num total de vinte, cercaram o grupo, e o que deveria ser o líder, um dos mais fortes, mostrava uma face bastante hostil. Ele identificou o facão de Bartolomeu na cintura de Roger, resíduos de sangue seco espalhados pela lâmina. O líder proferiu algumas palavras incompreensíveis e depois desceu de seu robusto quadrúpede, sacando o facão da cintura de Roger que reagiu num reflexo segurando vigorosamente a mão do faogard.Dois dos guerreiros apontaram seus arcos para ele, prontos para atirar.— Não reaja - alertou Guillermo, cauteloso e temendo a fama dos guerreiros conhecida como de exagerada violência.O pavio curto de Roger poderia colocá-los em uma grande encrenca. Roger soltou a mão do guerreiro que o olhou com um misto de raiva e desprezo.O líder tornou a montar e ordenou algo em voz alta aos outros cavaleiros que não era possível entender. Com um gesto firme ele acenou para que os forasteiros os seguissem. Brian, achando melhor cooperar e evitar problemas, pôs-se em movimento.— Acho que não entenderam que somos amigos - disse Marc, vindo logo atrás de Brian.— Vamos torcer para que esse mal-entendido se esclareça logo. Não quero nem pensar o que esses feiosos mal-humorados podem fazer com a gente - comentou Chester, olhando com alguma apreensão os estranhos cavaleiros.

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— O que pensam esses brutamontes agindo com tanta grosseria? — questionou Margaret muito indignada. — Que perigo três homens desarmados e cinco jovens são para eles? - Ainda especulou, com intolerância.Roger trocava olhares agressivos com os guerreiros, alimentando uma aversão mútua.— Tente controlar-se, Roger — aconselhou Guillermo, fazia o possível para se mostrar agradável, sorrindo timidamente e acenando com a cabeça para um ou outro perigoso anfitrião.Roger bufava como um touro bravio, não aceitava que lhe tirassem algo que lhe era importante: o facão comprido e afiado que pertenceu ao homem que morreu tentando ajudá-los e ainda salvou a sua vida e a de Margaret. Mas o mais prudente naquela hora era mesmo calar-se e esperar até chegarem em Faogard, na certa ele reivindicaria de volta a posse da arma.Quando passaram a última barreira de colinas, eles finalmente avistaram a esperada Faogard, a capital dos guerreiros de olhos escarlates.

Capítulo 19Luta Feroz

Faogard, localizada na parte mais elevada da região, era protegida por uma surpreendente muralha formada por enormes hastes de pedras pontiagudas dispostas paralelamente e inclinadas para fora assemelhando-se a uma

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coroa cheia de pontas, a muralha foi erigida dessa forma para malograr qualquer tentativa de invasão, verdadeiros espetos gigantes que apontavam sempre para o inimigo; a inclinação para o exterior impedia que os invasores, que por ventura utilizassem cordas, escalassem apoiando-se nos paredões, já que não havia no que se apoiar, pois acabariam ficando pendurados no ar, como maçãs nas pontas dos galhos, a mercê das flechas dos habilidosos arqueiros.O portão principal estava completamente aberto e o movimento de entra e sai de cavaleiros e pedestres era ininterrupto.Quando cruzaram a grande entrada é que tiveram a real dimensão da cidade que parecia ser muito maior do que quando era vista pelo lado de fora. Faogard poderia abrigar com folga duas centenas de milhares de habitantes.Os habitantes da cidade, homens, mulheres e crianças, paravam para olhar a passagem dos inesperados visitantes escoltados pelos guerreiros que abriam caminho através da multidão curiosa. Uma carroça, abastecida de luminita em estado bruto, passou por eles rumo ao exterior, era o comércio pujante da principal riqueza faogard.Eles cavalgaram por ruas largas e outras mais estreitas onde havia casas de um, dois e até três pavimentos, uma velha gritou de uma janela algumas palavras que os visitantes não conseguiram entender, depois acenou com um sorriso enrugado, Rafael acenou de volta meio

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sem graça. Por fim, alcançaram uma área aberta que era usada para treinamentos de guerra e onde havia centenas de guerreiros naquele momento; sons metálicos de espadas e martelos chocando-se contra os escudos amassados enchiam o ar.O guerreiro líder pulou do seu cavalo tigrado de cinza, e com um movimento brusco de braço ordenou que todos os recém-chegados desmontassem.Um dos soldados aproximou-se de Marc, seus olhos vermelhos atentos a flauta feita com fios de ouro. O guerreiro agarrou o belo instrumento e arrancou-o do pescoço do rapaz.— Devolva isso! É meu! Eu ganhei de presente do fauno — esbravejou, inconformado. Era inútil reclamar, o homem não entendia nenhuma palavra que Marc dizia.As bagagens foram revistadas sob os protestos de Roger que já não suportava tanto abuso sem um motivo aparente. Qualquer coisa que pudesse ser considerada uma arma, como facas, foi recolhida e entregue a um dos soldados.— Devolvam nossas coisas bando de selvagens! - gritou Roger, perdendo a cabeça, partindo para cima do guerreiro que segurava os pertences confiscados.Roger foi contido por uma dupla de guerreiros e um terceiro colocou a ponta de uma espada em baixo de seu queixo, ameaçando enterrar toda a lâmina em sua cabeça.— Dernat es fassem magrac em droavi! - bradou uma voz grave entre a multidão.

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Surgiu então outro faogard, grande, maior que todos os outros, seu cabelo comprido vermelho vivo preso em uma única trança, sua barba espessa, também vermelha, fazia de sua imagem uma coisa ameaçadora. Ele se vestia com roupas grossas apesar do calor reinante dentro da cidadela; tiras de couro se cruzavam atando as placas de metal de seus ombros e peito, formando uma armadura flexível, mas resistente o suficiente para enfrentar qualquer terrível batalha. Sua imponência indicava que ele devia ser um alto oficial, um líder supremo de todos os guerreiros que se encontravam ali reunidos.Quando teve oportunidade, Roger escondeu a medalha de Helen em um dos bolsos da calça. Não queria perdê-la em hipótese alguma para aqueles ladrões covardes.O soldado que até aquele momento comandava as ações se colocou em uma posição subalterna e passou a falar em voz baixa, provavelmente relatando o que aconteceu desde que encontraram os intrusos em suas terras. O guerreiro apontava com rigor para Roger, insatisfeito com seu comportamento. Mostrou o facão de Bartolomeu, o que fez o grandalhão de barba vermelha baixar as sobrancelhas com severidade. Quando terminou de falar, o soldado se pôs de lado abrindo caminho para que o faogard mais corpulento passasse. Ele parou na frente de Roger que já não parecia tão grande perto do homenzarrão. Os olhos do faogard, muito vermelhos, se fixaram em Roger com uma frieza que fez Margaret estremecer.

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— Vocês invadiram o território faogard, estrangeiro - disse, insensível, falando algo que eles compreendessem, mas com forte sotaque. - E quem faz esse tipo de coisa conhece a morte.— Espere um pouco, senhor - interveio Guillermo, educadamente. - Não invadimos...O oficial faogard levantou a mão fazendo Guillermo se calar.— Onde está Bartolomeu? - perguntou o chefe dos guerreiros.— Morto — informou Roger, sem entrar em detalhes.Uma ordem foi dada no idioma faogard e um círculo humano se abriu em torno dos dois.- Meu nome é Rhuror, sou o oficial da guarda e do treinamento dos guerreiros faogards — apresentou-se, armando-se de um martelo negro e um escudo redondo. — Eu e você lutaremos com as armas faogards — disse, fazendo sinal para que outro martelo e escudo fossem passados a Roger.Roger recebeu as armas e sentiu que o martelo de massa quadrada como um tijolo grande, só que de ferro fundido, era pesado e desajeitado e, além do mais, ele não estava acostumado com armas medievais, era bom com as mãos livres.Rhuror falou alguma coisa se dirigindo aos seus soldados e se ouviu uma gritaria de aprovação em resposta. Em seguida se voltou para Roger.- Lute da melhor maneira que puder - aconselhou, empunhando o martelo com a mesma facilidade que podia segurar uma

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espada. - Se você morrer, os seus amigos também morrem — decretou.O coração de Roger disparou. Aquilo não poderia estar acontecendo. Os faogards eram amigos, deveriam ser.- Meus amigos não tem nada a ver com... - Roger nem teve tempo de terminar a frase e já sofreu o primeiro ataque.Rhuror girou o martelo sobre a cabeça e atingiu em cheio e escudo de Roger que por pouco não teve tempo de se defender. Roger, do seu jeito, procurava golpear o seu adversário, mas todas as tentativas morriam no escudo circular de seu adversário. A luta continuou por alguns instantes com trocas de marteladas, parando sempre nos escudos que começavam a apresentar algumas ondulações das tantas pancadas recebidas.- Agora chega de brincadeira — cansou-se Rhuror, erguendo seu martelo e preparando um ataque mais violento. — Você teve a sua chance.O guerreiro de olhos vermelhos investiu violentamente sobre Roger desferindo sucessivos golpes em seu escudo que começava a se deformar.Rhuror era maior e mais pesado, embora aparentasse ser um homem de seus cinqüenta anos, todavia, estava acostumado a lutar desde criança e de ter uma anatomia privilegiada que ainda lhe proporcionava velocidade e muita, muita força.O último golpe sofrido por Roger foi tão brutal que a borda de seu escudo voltou-se atingindo a sua boca que imediatamente começou a sangrar.

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Foi a deixa para que Rhuror aumentasse ainda mais a carga de golpes contra o seu oponente. O peso do martelo caiu com força sobre a coxa esquerda de Roger que passou a temer ainda mais pela a possibilidade da derrota.Brian e Guillermo tentaram invadir o local da disputa, mas foram contidos pelos outros guerreiros que rosnaram palavras duras lançando olhares ferozes para eles.Não posso perder, não posso perder — pensava Roger enquanto se defendia.Outros golpes atingiram o marinheiro-de-aço, culminando com uma poderosa martelada que acertou seu braço direito fazendo-o largar o martelo.O ódio se apoderou de Roger, suas narinas dilataram de raiva, os dentes cerrados faziam os músculos dos maxilares se contraírem, avolumando o rosto molhado de suor e sangue. Com a mão direita livre e percebendo a guarda baixa de Rhuror, Roger usou a única arma que dispunha e sabia usar muito bem: um mortífero direto de direita na ponta do queixo de seu adversário que, mesmo amortecido pela barba, fez o guerreiro dar quatro passos para trás. Um burburinho brotou entre os espectadores, surpresos com a reação inesperada do estranho que se saía melhor com as mãos que com o martelo.Rhuror se refez e sua raiva aumentou, fazendo as marteladas crescerem de intensidade. O faogard não deu uma segunda chance a Roger, não baixando mais o seu escudo. O escudo de Roger

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estava afundado de tanto castigo, seu braço esquerdo dolorido; mais outro golpe e o escudo bateu novamente no seu rosto coberto de hematomas. Roger, em desespero e não querendo deixar que seus amigos morressem, avançou contra Rhuror como uma locomotiva descontrolada; batia o seu escudo contra o de Rhuror, procurava uma brecha para um soco salvador, mas não houve jeito e o guerreiro de olhos vermelhos aproveitou a pouca experiência em armas do adversário e despejou outra série de duros golpes que fez Roger cair de joelhos, sem defesa. O sangue que escorria de sua boca formava um fio que se unia à terra.Guillermo e Brian se esforçavam em vão para se libertarem, os meninos não entendiam o motivo de tanta brutalidade.Roger, prostrado, ergueu os olhos cheios de fúria para Rhuror; quase sem forças, tornou a levantar-se. Cambaleante, ele atacou Rhuror mais uma vez, e sem piedade o guerreiro acertou seu ombro com o martelo derrubando-o uma segunda vez.- Desista e morra em paz - disse Rhuror, observando Roger com altivez.Roger não se entregou e, deixando todos perplexos, pôs-se de pé com teimosia.- Vou matar você - disse, ofegante e babando sangue.- Não vai, não - disse Rhuror, irritado com o desafio.Outro golpe, desta feita no pescoço e Roger foi novamente ao chão.

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A platéia de guerreiros parou de gritar e os sorrisos sumiram. Uma atmosfera de admiração se espalhou como a fumaça de um incêndio na floresta.A cabeça de Roger latejava, ele respirava com dificuldade, pois suas costelas estavam muito doloridas, algumas talvez até estivessem quebradas, mas ele, jogado no chão, olhava para os meninos, inconformado e como uma máquina que não quer quebrar, apoiou as mãos espalmadas no chão e iniciou um movimento para erguer-se. Rhuror colocou mais uma vez seu martelo em posição de uso.- Covarde! - gritou Margaret, correndo e se pondo entre Rhuror e Roger.Um guerreiro fez menção para agarrá-la, Rhuror impediu com um sinal breve.- Muito cuidado com certas palavras, menina — avisou Rhuror, olhando-a de cima. - Elas podem custar a sua vida.Rhuror deu as costas à Margaret e se afastou, depois parou e voltou-se para ela.- Eu não sou um covarde - disse, falou algo para um soldado e desapareceu na multidão de soldados.Brian e Guillermo correram para Roger.- Nem vou perguntar se você está bem - disse Guillermo, sem saber onde pegar sem machucá-lo.Alguns soldados afastaram os amigos que tentavam ajudar Roger. Outros o levantaram e o levaram embora.

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- O que vão fazer com ele? — perguntou Brian, esticando-se para ver aonde iam.Guillermo, Brian e os meninos foram empurrados para outra parte da cidade, uma ruela dava para uma edificação de paredes brancas, porta e janelas estreitas e altas, todas fechadas. Eles foram forçados a entrar e esperar dentro de um salão onde havia bancos compridos de madeira e uma mesa rústica de madeira negra; numa parede de alvenaria, bem no alto, uma abertura quadrada deixava entrar um facho de luz que pouco iluminava o interior do salão. A porta foi trancada com um som familiar para Rafael que deduziu logo que estavam presos. Os prisioneiros se entreolharam sem saber o que estava havendo; aliás, as coisas estavam acontecendo de maneira muito rápida. Brian arriscou uma olhada pela fresta de uma janela. Ele viu uma dupla de sentinelas guardar a única saída, deveria haver outros fora do seu campo de visão, e nem adiantava tentar escapar com um exército daqueles em torno deles.Rafael sentou-se, cansado e apreensivo.- Alguém arrisca um palpite? — disse ele, perguntando ao acaso.- Estou confuso — disse Chester. - Não consigo entender por que agiram daquele jeito.- E eu não consigo deixar de pensar no professor - suspirou Margaret, compadecida. - Como será que ele está?Guillermo esfregava os olhos cansados. Voltou à sua mente as palavras ameaçadoras de Rhuror:

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"Se você morrer, os seus amigos também morrem".Ele devia estar blefando, só queria nos assustar. Se quisesse nos matar já teria feito - pensou.Uma hora se passou, mais lenta do que de costume.O movimento lá fora era menos intenso. Brian olhou novamente pela fresta, os soldados ainda montavam guarda, dava para se ver três deles agora.A tranca foi destravada e a porta se abriu com um rangido seco. O guerreiro que havia tirado o facão de Roger surgiu acompanhado de outros soldados. Ele ordenou, apontando, que Brian e Guillermo os acompanhassem. A porta se fechou mais uma vez com o barulho da tranca e lá dentro só restaram os meninos. Um silêncio mórbido abafou o ambiente.Chester se distraía observando as partículas de poeira que flutuavam iluminadas quando atravessavam a luz que vinha das frestas das janelas fechadas.- Essa indefinição vai acabar me deixando louco - desabafou Daniel, apertando as mãos nervosamente. - E se você abrisse essa porta ou uma das janelas? - sugeriu, olhando direto para Rafael.- Esqueça — respondeu, desaprovando de uma vez por todas. — Acho que você já ficou louco.- Você tem razão, não é mesmo uma boa idéia — admitiu Daniel, desanimado, o cotovelo apoiado na mesa, a mão segurando o queixo.Outra hora correu e nada.

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- Estou com fome e sede, será que eles não sabem que precisamos comer e beber? — disse Rafael, tamborilando na mesa.- Acho que pra onde nós vamos não precisaremos de comida e nem de água - comentou Daniel com humor negro.- Se não pode dizer nada de bom, pelo menos fique com a boca fechada — disse Margaret, censurando o irmão. - Não pense que eu esqueci do que você me fez naquele rio.- Parem de brigar - encheu-se Chester. - Já temos problemas suficientes.Marc cruzou os braços sobre a mesa e deitou a cabeça, pensativo. Ele reclamou.- Minha flauta - murmurou. — Eles terão que devolver a minha flauta... aqueles ladrões...Muitos passos foram ouvidos do lado de fora. A porta se abriu de novo e os meninos foram obrigados a deixar a sala. Eles foram conduzidos pelo guerreiro imediato de Rhuror e mais cinco soldados armados com espadas, seguiram por uma rua larga até chegarem a uma praça onde o movimento e o barulho de pessoas eram bem maiores. Ao fundo, havia uma construção que abrangia toda a extensão da praça. Devia ser um prédio importante tal o entra e sai de gente. Os meninos, rodeados de soldados, subiram um lance de escadas e entraram olhando de um lado para outro.Uma outra sala os aguardava; esta, mais bem cuidada, deveria pertencer a alguém importante.Rhuror, o grandalhão que havia lutado com Roger, estava de pé ao lado de uma mesa larga

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com o tampo repleto de perfurações, uma das mãos apoiada no cabo da espada presa na cintura. Ele olhava os garotos com algum interesse como se quisesse descobrir o que passava em suas mentes. Cinco cadeiras de encosto baixo colocadas lado a lado em frente à grande mesa esperavam serem ocupadas.Os soldados que trouxeram os meninos permaneceram no fundo da sala.- Sentem-se - ordenou Rhuror, indicando as cadeiras, depois cruzou os braços para aguardar alguma coisa acontecer.Os meninos se entreolharam sem saber o que fazer como se esperassem o início de uma missa dominical.De uma porta lateral saíram dois homens e uma mulher. Todos os três tinham idades avançadas, mas os seus cabelos conservavam a mesma tonalidade vermelha dos jovens guerreiros. Não eram como os dos humanos que branqueavam ao envelhecerem. Eles não se sentaram, não havia mais nenhuma cadeira para se sentar, apenas se posicionaram atrás da extensa mesa e depositaram sobre ela um punhal de lâmina longa e curta cada um.- Por que vocês mataram Bartolomeu Funchwooc? - perguntou a mulher, os olhos tinham um peso acusador.- Não fomos nós que matamos ele - respondeu Marc, sua expressão era de surpresa.- Ele era nosso amigo — disse Rafael, levantando-se. Rhuror fez um movimento ríspido

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com a mão para que ele se sentasse. O menino obedeceu a contragosto.- Seus amigos já confessaram tudo — disse um dos anciãos que parecia ser o mais velho dos três. — Por que vocês não dizem logo por que fizeram isso e talvez nós deixemos vocês viverem?- Eles não disseram isso — exasperou-se Margaret, se segurando na cadeira para não explodir de indignação. — Bartolomeu foi morto quando me defendia de uns homens que tentavam nos matar.- Tudo mentira! — contestou o terceiro ancião que usava uma barba comprida até a cintura, mostrando-se encolerizado. - Vocês assassinaram Bartolomeu Funchwooc para que ele não revelasse suas reais intenções. Vocês queriam nos espionar e passar informações aos crassênidas. Não adianta negarem. Seus amigos Brian e Guillermo já nos contaram todo o plano — ele pegou o seu punhal e cravou na mesa com furor. — Meu voto é para que todos sejam executados ainda hoje.- Isso é loucura! — levantou-se Margaret, indo até junto da mesa onde estavam os anciãos. - Não fizemos nada disso. Bartolomeu era nosso amigo e não faríamos nenhum mal a ele.- Sente-se! - gritou Rhuror, elevando a voz com impaciência. - Sente-se agora, menina, ou eu...- Você vai é me ouvir, seu brutamontes — disse ela, desafiando o oficial. - Viemos aqui pedir ajuda e o que vocês fazem: nos aprisionam; batem no professor Roger; nos acusam

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injustamente de assassinato e ainda querem nos matar. Bela recepção a de vocês!- Margaret está certa - interferiu Chester, logo pondo-se de pé. - Não vamos morrer carregando uma culpa de algo que não fizemos.- E ainda por cima, roubam as nossas coisas — ajudou Marc, olhando firme para o guerreiro que havia confiscado a sua flauta.- Vocês tomaram isso de algum fauno descuidado - disse Rhuror, ele esticou a mão para que um dos soldados lhe entregasse algo embrulhado em um tecido de fios grossos trançados, e desenrolando cuidadosamente mostrou a flauta para Marc. — Só eles são capazes de construir uma flauta que produza um som tão belo. Provavelmente o infeliz está morto, apodrecendo em algum bosque.- Isso não é verdade — defendeu-se Marc, esperançoso em ter a sua flauta de volta. — O fauno me deu a flauta de presente quando cruzávamos o desfiladeiro.- Você quer que nós acreditemos que um fauno deu a sua flauta de presente para você? — perguntou o ancião mais velho, com um sorriso de descrença.- Para ser mais exato, ele trocou essa flauta pela minha... Mas eu não forcei nada. Foi ele quem tomou a iniciativa.- Basta! — exclamou a anciã. — Todos serão executados! Esse será o meu voto — ela enfiou com força seu punhal na madeira.- Esperem um pouco — manifestou-se Daniel, olhando os anciãos, um a um. — Isso tudo que

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está acontecendo aqui não passa de uma encenação. Nossos professores nunca diriam isso que vocês estão afirmando que eles confessaram. - Daniel fez uma pausa, olhou para Rhuror e voltou a encarar os três anciãos do outro lado da mesa. — Vocês devem ter feito esse mesmo teatro com eles e como não conseguiram as respostas que queriam, recorreram a nós, não é mesmo?- Você é esperto garoto dos olhos azuis. — Observou o ancião de barbas longas, ele desencravou o seu punhal do tampo da mesa e o guardou dentro das vestes, depois prosseguiu: - Os garotos demonstraram sinceridade e suas palavras me convenceram. Minha decisão é que eles são inocentes e devem viver.A anciã repetiu o gesto e retirou o seu punhal. A mesa vazia, agora livre dos punhais, absolvia os jovens réus.Rhuror fez uma cara de satisfação e aguardou os anciãos se retirarem pela mesma porta que haviam entrado e aproximou-se dos meninos agora aliviados.- Vocês devem vir comigo — disse com sua voz grave, porém, havia algo de amistoso nela.Marc não desgrudava os olhos de sua flauta, ainda em poder de Rhuror.Eles abandonaram o prédio de seu julgamento e atravessaram outra vez a grande praça que ainda fervilhava de gente. O cheiro de comida sendo preparada nas barracas próximas fazia os meninos ficarem com água na boca.

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- Quando vamos comer? - perguntou Rafael a Rhuror. Sua barriga roncava sem parar. Sua fome aumentou depois que o susto e o medo de morrerem passaram.- A partir daqui vocês irão com Parminiaf - disse Rhuror, se referindo ao seu oficial imediato, sem dar importância ao que Rafael lhe perguntara.Rhuror se afastou sem dizer mais nenhuma palavra.- E a minha flauta?! - berrou Marc, vendo o oficial afastar-se a passos largos. O tamanho agigantado de Rhuror fazia sua cabeça vermelha ainda se destacar sobre a multidão enquanto ele se distanciava.Com um movimento de cabeça, Parminiaf mandou que os garotos o seguissem. Entraram por uma outra rua e chegaram a uma espécie de galpão enorme com diversas mesas e bancos compridos. Rafael lembrou-se logo do refeitório da Ilha da Coroa. E era mesmo um refeitório. Uma das mesas estava forrada de carnes assadas, pães e frutas. Parminiaf fez um gesto para que se servissem. Sem perderem tempo, eles ocuparam os bancos e avançaram sobre a comida.- Estou esfomeado! — desabafou Rafael enquanto torcia a coxa de uma ave assada, algo parecido com uma galinha, com a outra mão enchia uma caneca com algum tipo de suco refrescante.- Como será que se encontram os professores agora? - perguntou Chester enquanto mastigava,

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a boca cheia quase não o deixava se fazer entender.- Estou mais preocupado com o professor Roger - disse Daniel, escolhendo com curiosidade uma fruta amarela como gema de ovo, apertando-a, testando entre os dedos sua maciez. — Será que tem um gosto bom?- Espero que se recupere bem. Ele estava muito ferido — comentou Margaret; as mãos entrelaçadas escorando o queixo denunciavam sua preocupação. Ela não estava tão esfomeada quanto os outros.Com a fome e a sede saciadas, os jovens foram levados para outra parte da cidade, mais tranqüila, as ruas bucólicas sugeriam sossego.A próxima parada foi em uma espécie de quartel, pátios e locais de treinamento faziam parte do complexo.- Os professores! - exclamou Margaret com alegria quando viu Guillermo e Brian. Aparentavam estar muito bem de saúde, sem nenhum sinal de tortura ou coisa parecida.- Como estão? — quis saber Guillermo, segurando Daniel pelos ombros. — Eles os trataram com dignidade?- Não nos fizeram nenhum mal — disse Chester, feliz por ver os companheiros.- A não ser por uns sustos, quando nos fizeram enfrentar um interrogatório e um julgamento de uma só vez e quase acabaram nos condenando à morte.- Também passamos por isso — disse Brian, contando como se saíram enfrentando um

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tribunal sem direito a um advogado.- E o professor Roger? - perguntou Marc. - Tiveram notícias dele?- Não estamos sabendo de nada - disse Guillermo com certa inquietação.- Os soldados que nos vigiam não falam nossa língua. Prefiro pensar que estão cuidando bem dele.Para os prisioneiros foi reservada uma ala isolada por um grande portão de ferro. De certa forma ainda eram prisioneiros, contudo desfrutavam de controlada liberdade. Parecia que os faogards queriam dar-lhes algum conforto, no entanto não abriam mão de mantê-los sob vigilância.Um dormitório amplo com duas dezenas de camas serviu de acomodação.- Camas! - exclamou Daniel com um enorme prazer estampado no rosto. - Nem sei mais como se dorme em cima de uma dessas.- Deitado, de preferência - brincou Rafael enquanto experimentava o conforto de uma, atirando-se nela.Apesar da preocupação com o estado de Roger, não tardaram em adormecer, embalados pelas camas fofas e a temperatura amena do quarto de teto alto, livres dos mosquitos e das emboscadas.

Capítulo 20O Guerreiro Amistoso

O sol que penetrou pela janela fez os olhos de Daniel se apertarem. O garoto acordou cedo,

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refeito do cansaço do dia anterior.Aos poucos um ou outro foi deixando a cama e procurando algo para o desjejum.O portão que os separava da base militar permanecia fechado. Tudo parecia vazio do outro lado das grades de ferro escuro. Passos ecoaram e um soldado destrancou o pesado portão. Apenas um soldado, sem escolta. O tratamento para com eles estava ficando bem diferente, mais ameno, as coisas pareciam estar se ajeitando.Uma refeição reforçada foi servida dentro do alojamento gradeado.Descansados e alimentados, só restava saberem o que seria feito deles e descobrirem como Roger estava se saindo na sua recuperação, caso não estivesse morto.Rhuror apareceu logo depois que o grupo terminou a refeição matinal.- Vocês devem seguir-me — disse o chefe militar com seriedade.- E Roger? Ele está bem? - perguntou Guillermo, seguindo Rhuror de perto.- Logo terão notícias do seu amigo.A resposta de Rhuror foi inconclusiva, fazendo pensarem no pior.Parminiaf encarregou-se de conduzi-los para fora do cativeiro.Seguiram até uma edificação de grandes dimensões onde havia sinais acima de uma porta alta. Era a escrita faogard que lembrava, de algum modo, a escrita cuneiforme da região mesopotâmica, acrescentada de traços simples,

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paralelos ou cruzando-se em vários ângulos com alguns círculos concêntricos e triângulos, for-mando desenhos interessantes.- É um hospital - identificou Chester rapidamente quando viu maças vazias apoiadas em uma parede.Uma criança mancava com certa dificuldade, trazida pela mão da mãe, sua perna direita enfaixada na altura do joelho. Devia ter conseguido o machucado durante alguma brincadeira, andando por sobre muros ou, quem sabe, subindo em alguma árvore para roubar-lhe um fruto suculento.Faogard era assim: a vida cotidiana não diferia muito de qualquer outra cidade do século XVII. No entanto, não fedia como era comum aos centros urbanos daquela época pela precariedade dos sistemas de esgotos e dos serviços de saneamento. Faogard funcionava, do seu jeito, de maneira bastante satisfatória. Havia água com certa abundância e o desperdício era evitado a todo custo. O plantio e a criação de animais eram cuidadosamente organizados e a mendicância simplesmente não existia. Não havia lugar para o desocupado. Todos deveriam ter uma função, uma utilidade, ou a sociedade local se encarregaria de excluir aqueles que se desviassem dos padrões de conduta. O mau exemplo não era tolerado. Roger havia provado desses padrões rígidos ao enfrentar as autoridades. Margaret, por sua vez, atravessou limites quando sua língua afiada provocou a

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paciência de Rhuror. Todavia, sua coragem a salvou.Eles percorreram um corredor longo onde quartos e enfermarias eram distribuídos dos dois lados. As janelas largas permitiam que o ambiente estivesse sempre claro e arejado. No fim do corredor, viraram à esquerda e, logo em seguida, Parminiaf apontou o quarto onde deveriam entrar.Um cobertor cinza envolvia o corpo do homem deitado em uma cama de pés altos no meio do quarto de paredes claras. Um grande curativo protegia a sua testa e outro, sobre a maçã esquerda do rosto, escondia um pouco o olho inchado, praticamente fechado, das tantas bordoadas que sofreu; o lábio inferior estava inchado como um balão. Roger estava vivo, e apesar de tudo o que havia passado no dia ante-rior e as dores físicas que dificultaram o seu sono naquela noite, parecia bem.Ao lado da cama se encontrava uma jovem faogard que cuidava de Roger, administrando alguns medicamentos acondicionados em frascos pequenos e verificando os curativos que tinham sido trocados recentemente. Uma touca cinza escondia parte dos cabelos vermelhos da jovem, mas destacavam o lindo rosto de olhos vermelhos amendoados e penetrantes. Ela usava um vestido de tecido leve como seda, quase branco, amarrado na cintura com uma faixa de algum tipo de couro finamente trabalhado. Sua beleza era exótica e harmoniosa.

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- Ele parece estar sendo bem cuidado - disse Brian a Guillermo.- O que disse? - perguntou Guillermo, meio distraído.- Roger, ele está bem... você não acha?- Mas é claro. Não está vendo? Sua aparência está melhor do que eu esperava encontrar - concordou Guillermo, por fim.- Você fala o meu idioma? - perguntou Margaret à mulher faogard que demonstrava grande habilidade em cuidar de doentes.- Melhor do que imagina - respondeu a moça, olhando com alguma curiosidade para os visitantes. — Meu nome é Talemine - ela se apresentou com simpatia. — E se querem saber, seu amigo vai ficar bem em poucos dias. Ele só precisa de algum cuidado e repouso.Com o olho bom, Roger espiava os amigos, feliz em vê-los bem.- Como estão? - falou vagarosamente, sua respiração era lenta.- Melhores do que você - disse Guillermo, em tom de brincadeira, com a intenção de distrair o amigo enfermo.- Eles nos trataram bem, dentro do possível - informou Brian, tocando o ombro de Roger com solidariedade.Roger fez uma expressão de dor, depois se ajeitou na cama buscando uma posição melhor.- Ele é muito forte - disse Talemine, recolhendo os frascos numa bandeja, preparando-se para sair do quarto, seus gestos eram delicados e graciosos. — Quando os curativos forem retirados

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e os hematomas desaparecerem, ninguém vai acreditar que ele se feriu tanto em uma luta.Naquele momento, Rhuror apareceu, seus cabelos compridos estavam soltos, jogados aos ombros.- Como vai o paciente? — perguntou, seus olhos avaliavam os estragos que ele havia feito no rosto de Roger.- Ele está bem melhor, papai — disse Talemine, um sorriso singelo brotou dos seus lábios.- Papai? — Espantou-se Guillermo, dirigindo-se a Brian num sussurro. — Ela chamou o grandalhão de cabelo vermelho de papai?- E, parece que foi isso que ela disse - concordou Brian, seus olhos iam de Talemine a Rhuror buscando alguma semelhança.- Ele está em boas mãos - afiançou Rhuror, um lampejo de orgulho das habilidades médicas da filha emergiu em sua voz.Rhuror se aproximou do leito, bem próximo de Roger, seus olhos se cruzaram.- Ainda vou dar uma grande surra em você, cabelo vermelho - garantiu Roger, os dentes cerrados.Rhuror respondeu a ameaça com uma forte gargalhada.- Você não está em condições de desafiar ninguém, estrangeiro. Principalmente a mim. — Rhuror mostrou um sorriso confiante emoldurado pela barba espessa. - Espero que você sustente esse seu convite quando se recuperar total-mente, rapaz.

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- Não é um convite - disse o americano com olhar desafiador - É um aviso.- O senhor está incomodando o meu paciente, papai - interrompeu Talemine a troca de farpas entre os dois. - Devemos sair e deixar ele e seus amigos conversarem um pouco.A moça, de olhos vermelhos como rubis, demonstrava ter uma grande interação com o pai. Rhuror se comportava de maneira afável com a filha, bem diferente do militar truculento e feroz no manejo com as armas.Ao passar pelos visitantes, Talemine deixou um agradável rastro de perfume pelo caminho.— Volto amanhã para renovar as ataduras - disse a jovem faogard, pegando o pai pela mão e arrastando-o do quarto.— Acho que não somos mais prisioneiros, somos? - questionou Rafael, dirigindo-se a Guillermo e a Brian.— Creio que não - respondeu Brian, sentindo-se mais à vontade. - Parece que eles se convenceram que não somos seus inimigos.— E que não fomos os causadores da morte de Bartolomeu — acrescentou Marc.Permaneceram na companhia de Roger por mais uns minutos quando foramexpulsos do quarto por uma enfermeira idosa e bastante carrancuda...— Tar em senkames breliofas! — disse ela com ar autoritário.Chegaram à rua e buscaram a grande praça no centro de Faogard. Estavam livres pela primeira vez desde a sua chegada. Os transeuntes que

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passavam por eles os olhavam com indisfarçada curiosidade. Isso deveria mudar com o tempo.— O que faremos agora? — quis saber Daniel, caminhando entre as barracas que vendiam de tudo.— Conhecer um pouco da cultura local - sugeriu Margaret, se enfiando no meio da multidão. Chester deu de ombros e foi atrás dela.Conforme caminhavam pelas tendas movimentadas, os visitantes conheciam os mais diversos tipos de comidas, requintados vasos de faiança pintados à mão, peças de vestuário, filhotes de animais que se assemelhavam a cães com patas um tanto desproporcionais aos corpos ainda pequenos e desajeitados, inúmeras pedras de luminita que deveriam ser comercializadas a preços módicos tal era a abundância de suas minas. Uma barraca chamou-lhes a atenção pelas magníficas fragrâncias que exalava, dignas dos melhores perfumistas europeus. Uma comerciante de olhar simpático ofereceu um bolinho a Chester que hesitou em aceitar. Ela insistiu com um gesto até que o menino aceitasse a guloseima.— E muito bom - disse com satisfação. — Não sei identificar o gosto do recheio, mas eu poderia comer mais alguns desses.A comerciante ofereceu mais um bolinho a cada um dos forasteiros que comprovaram o que Chester havia afirmado.Pombos espiralavam pelo ar e pousavam entre os pés apressados das pessoas, bicando

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migalhas de comida despejadas pela multidão de compradores.— Pombos! — sussurrou Marc, reconhecendo as aves que sempre fizeram parte da paisagem européia. — Mesmo aqui estão por toda parte.Um soldado achou-os no meio da grande aglomeração da feira e os guiou até a presença de Rhuror, numa casa que deveria ser o seu gabinete. A sala comportava poucos móveis e uma coleção de armas decorava uma das paredes. Um enorme mapa do continente ocupava toda a extensão da parede do lado oposto, onde se podia ver, destacados, cidades, rios, montanhas, desertos e os limites de cada território.— Espero que já tenham se familiarizado com a nossa cidade — disse o oficial faogard indicando os lugares para se sentarem. — Ordenei que fossem trazidos até a minha presença para saber mais detalhes sobre a sua jornada antes de os apresentarem ao nosso comandante maior, ou como vocês costumam dizer: o rei.O grupo contou a Rhuror tudo o que passaram desde o momento em que atravessaram o portal; a travessia do Kundruir; o desfiladeiro de Blarbuk onde se encontraram com o fauno e a triste morte de Bartolomeu já dentro do território faogard. Guillermo descreveu como eram os assassinos de Bartolomeu, os punhais de ponta dupla e as estranhas marcas nas orelhas.— Seguidores de Arkopromis - disse Rhuror, baixando as grossas sobrancelhas numa expressão pensativa e preocupada. - São

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membros de uma seita que acredita que Arkopromis é o verdadeiro deus, merecedor do trono que dominará todo o nosso mundo. Eles habitam as florestas e montanhas mais ermas, e se entraram em nossas terras, foi por um bom motivo.— O que são aquelas marcas nas orelhas? - perguntou Chester, considerando muito interessante o que Rhuror relatava.-Ea marca que os identifica — explicou Rhuror. - O símbolo do mal. Assim também é o formato de suas armas e suas línguas.— Línguas? - perguntou Marc, olhando em seguida para Daniel que estava ao seu lado. Depois voltou-se para Rhuror: — O que têm elas?— Todos eles têm suas línguas cortadas ao meio como serpentes, como as marcas nas orelhas e as armas de duas pontas, como os punhais e as pontas de suas flechas — esclareceu o chefe faogard, mostrando dois dedos abertos voltados para baixo. Brian lembrou-se de não ter examinado o interior da boca dos assassinos de Bartolomeu. E por que o faria?— Você falou em flechas — lembrou Daniel. — Por que eles não as usaram contra nós? Seríamos alvos mais fáceis, eles teriam muitas oportunidades para acabarem com a gente.— Isso eu não sei responder — disse Rhuror, intrigado. — E também não sei por que os seguiram e atacaram Bartolomeu e a menina com tanta brutalidade. Eles não costumam fazer esse tipo de coisa sem uma boa razão. Às vezes

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passam meses sem serem vistos, preferindo o isolamento.Rhuror via honestidade no comportamento daquelas pessoas e entendeu que estavam praticamente indefesos para seguirem a sua longa jornada. Ele continuou a falar:— Se querem a minha opinião, desistam dessa viagem suicida até o território crassênida - aconselhou Rhuror com extrema seriedade. - Se decidirem retornar à Nova Europa, posso enviar um grupo de soldados bem armados para escoltá-los em total segurança.— A situação não é tão simples assim - ponderou Brian, preparando-se para apresentar uma forte argumentação. - Existe a questão do segredo do portal.Brian explicou com cuidado que se desistissem de tentar o regresso ao mundo deles, o segredo do portal que se guardara havia séculos, correria um grande perigo de ser descoberto e o mundo de Rhuror poderia ser invadido por gente de toda espécie, quebrando o equilíbrio estabelecido.— Sinto ter que dizer isso - acrescentou Guillermo com tristeza -, mas nossa civilização traz a guerra, polui os rios, destrói florestas e faz todo o tipo de coisas ruins por onde quer que passe.— O professor Guillermo está certo - ajudou Marc. - Desde que chegamos aqui, só vimos beleza e harmonia por onde andamos. O nosso segredo precisa ser preservado a qualquer preço para que o seu reino continue exatamente como está.— Mesmo que isso possa custar as nossas vidas - completou Rafael, suas palavras saíram sofridas

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de sua boca.Rhuror entrelaçou os dedos, meditou algum tempo sobre as explicações que lhe foram dadas. Não podia deixar que uma horda de estrangeiros mal intencionados se espalhasse por Faogard.— Se é assim — disse ele sem pensar em nada melhor. - Não vejo outra possibilidade que não seja a de vê-los partir em busca dos seus destinos. Mas posso tentar ajudá-los para que não fiquem tão vulneráveis em sua grande jornada.— O que pretende fazer? — perguntou Brian, recostando-se confortavelmente para ouvir com mais atenção.— Quero que fiquem em Faogard por algum tempo para que possam ser treinados no manejo de armas e em táticas de guerra.— E quanto tempo levaria esse treinamento? — perguntou Guillermo.— Trinta dias, pelo menos.— Impossível - descartou imediatamente Brian. - Não temos todo esse tempo.— Nesse caso, vocês teriam que fazer um treinamento intensivo. Várias horas por dia, sem descanso. E mesmo assim, não seria uma garantia de que chegassem todos vivos até o Portal do leste. Eu mesmo não acredito nessa possibilidade - Rhuror fez uma pausa, procurando colocá-los a par da real situação de perigo. — Os crassênidas são um povo frio que detesta intrusos em suas terras.— Assim como vocês detestam intrusos nas suas - provocou Margaret. Rhuror olhou-a firme

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censurando o seu comentário.Guillermo a repreendeu com um discreto pigarro e passou a perguntar.— Mas quantos dias passaríamos nos preparando nesse... supertreinamento?— Menos de dez dias seria impossível ensiná-los alguma coisa na arte de lutar — previu Rhuror. — Ofereço meus soldados e minha hospitalidade enquanto estiverem conosco, mas quando cruzarem os portões de Faogard rumo ao desconhecido, então será por conta de vocês.Brian e Guillermo se entreolharam buscando um no outro o apoio necessário para decidirem o que fazer. Guillermo balançou a cabeça positivamente.— Aceitaremos sua ajuda — disse Brian, finalmente.— Então está feito — definiu Rhuror, levantando-se. - Os treinamentos começam amanhã, logo que o sol surja no horizonte.— Eu e Brian estaremos prontos, bem cedo.Rhuror franziu a testa com certa surpresa.— Parece que vocês não entenderam o que eu quis dizer. Os garotos também farão parte do treinamento.— Com armas e tudo? — perguntou Guillermo, apontando para as poderosas armas suspensas na parede.— Cada uma delas será usada. Estejam prontos, todos, sem falta - Rhuror indicou a saída.Margaret e os meninos inflaram sorrisos triunfantes para Rhuror. Este, por sua vez, entendeu a enorme disposição juvenil para as

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atividades físicas ligadas a aventura, como era comum nos jovens de sua gente.Antes de sair, Brian fez uma última observação.— Quando vínhamos em direção a Faogard, nos deparamos com uma extensa faixa de vegetação calcinada. O mato em volta era verdejante e isso nos fez concluir que alguém provocou aquilo.— Um dragão - disse Rhuror, de maneira espontânea. - Provavelmente estava caçando um animal grande como um boi de Nova Europa ou algo ainda maior. Vocês viram alguma carcaça por perto.— Não observamos nada além da queimada - antecipou-se Chester, interessado quando o assunto envolvia animais.— Então, levantou voo com a presa. Não devia ser dos menores para voar com um animal de grande porte entre as garras.— Essa não! Outra vez um dragão! - exclamou Daniel, os olhos brilhando.O grupo, a mando de Rhuror, foi transferido para uma estalagem mais aconchegante próxima a uma das muralhas da cidade-fortaleza.O prédio possuía dois andares e era destinado aos comerciantes que se hospedavam na cidade durante os dias destinados ao comércio com outros povos: três dias a cada trinta, era a regra para se entrar em Faogard. Nesse curto período, Faogard fervilhava de estrangeiros oriundos de toda parte, como formigas em torno de um doce jogado ao chão.No interior de um dos quartos, Daniel, calçando as botas, se preparava para sair um pouco.

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— Quem me acompanha? Não quero ficar a noite toda enclausurado nesse quarto.— Vamos todos juntos, apresentou-se Marc abrindo a porta para sair.— E Margaret? — indagou Rafael. — Ela está no quarto aqui ao lado.— Vamos chamá-la também — propôs Chester, abrindo a porta e se lançando ao corredor.Chester bateu levemente na porta de Margaret.— Não respondeu - disse ele, encostando o ouvido na porta.— Será que ela está dormindo? - perguntou Marc, esperando a porta abrir a qualquer momento.Chester voltou a bater e não obteve resposta.— Vamos logo. Ela deve ter ido dormir cedo — disse Daniel, louco para sair da estalagem e explorar a cidade à noite.— Não devemos nos demorar muito. Não esqueçam do que teremos pela frente amanhã cedinho - lembrou Rafael, apressando-os para saírem de uma vez.A noite havia chegado e uma aragem fresca corria por toda Faogard.As ruas, bem iluminadas, estavam quase desertas o que significava que os habitantes se recolhiam cedo durante a semana, deixando as festas e os encontros sociais para os dias de descanso.— Não há muita coisa para se fazer a essa hora da noite por essas ruas - disse Marc, querendo desistir e voltar para o quarto. Ele ainda estava chateado com a perda de sua bela flauta.

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— Sempre há algo para se descobrir em uma cidade como essa - disse Chester, apreciando a arquitetura envolvida em sombras.— O que vocês estão fazendo aí embaixo? — perguntou uma voz bastante familiar. Era Margaret chamando do alto da muralha.— Como chegou aí em cima? — quis saber Daniel, olhando a irmã lá no alto. Margaret, mais uma vez, havia saído na frente dos meninos.— Subam por aquela escada que acompanha o muro. Foi por ela que eu cheguei até aqui — disse a menina, mostrando uma escada de armação sólida de ferro e madeira que chegava até o topo e por onde os soldados poderiam se movimentar com agilidade para os trabalhos de vigília e defesa.Os meninos iniciaram imediatamente a subida com passos apressados que produziram sons desordenados, quebrando o silêncio das ruas sonolentas.— Venham logo - apressou-os Margaret. - Quero que vejam uma coisa.— Estamos chegando, estamos chegando - disse Chester, completando os últimos degraus.Margaret se debruçou sobre a larga muralha e estendeu o braço, exibindo orgulhosamente o seu achado. Centenas de luminitas estavam distribuídas geometricamente por toda a área externa, além dos limites da cidade. Ficavam cravadas no chão e seus brilhos se projetavam para o céu estrelado. O efeito de luz era des-lumbrante, formando estradas cintilantes que se estendiam até o horizonte. Parecia o reflexo das

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estrelas em um gigantesco espelho deitado na terra.— Pra que serve tudo isso? — perguntou Rafael com seu olhar prático, mas sem deixar de admirar tanta beleza.— A utilidade dessa maravilha é clarear os arredores da cidade e assim prevenir qualquer invasão de surpresa - explicou Margaret, envaidecida por saber mais uma vez de algo que os outros desconheciam.— Como você conseguiu essa informação? Não me diga que aprendeu a língua desse lugar — disse Marc, verificando que o único soldado que prestava sentinela não devia falar nada que eles pudessem compreender.— Não, não foi o soldado que me falou - esclareceu ela, rodeada pelos garotos. — Rhuror me trouxe até aqui em cima, e quando viu que eu fiquei maravilhada com as luzes no chão, me contou o que vocês já sabem agora.O portão mais próximo abaixo de onde eles se encontravam se abriu lentamente e um grupo de quinze cavaleiros deixou a fortaleza rumo à escuridão do campo aberto.— Outra patrulha - disse ela. — Já vi duas dessas saírem faz pouco tempo. Eles fazem rondas constantes à noite para conservarem suas terras livres de visitantes inoportunos. Foi por uma dessas patrulhas que fomos capturados.Eles ficaram mais um tempo apreciando aquela visão fascinante, até que o soldado que estava de guarda ordenou, do seu jeito, com sinais, que

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eles descessem e retornassem aos seus aposentos.

Capítulo 21Os Ensinamentos da Guerreira

As primeiras luzes da manhã que se derramaram sobre Faogard converteram lentamente o azul pálido matinal em um laranja radiante.O campo de treinamento, onde houvera a luta entre Rhuror e Roger, estava quase vazio; um outro campo, ainda desconhecido pelos novatos, bem maior, era o que estava sendo utilizado pelos guerreiros experientes naquela manhã.Guillermo, Brian e os jovens aprendizes tiveram a primeira surpresa do dia. Sobre um gifenonte negro, inquieto, coberto de listas cinzentas, e que mudava de posição constantemente, estava Talemine, a doce filha de Rhuror, ela se apresentava com trajes de guerreira: um grande arco na mão esquerda e uma aljava às costas repleta de flechas, na cintura uma espada de lâmina curta que brilhava ao sol que ainda nascia. A guerreira havia passado bem cedo no hospital para cuidar dos ferimentos de Roger. Ao lado da bela Talemine, também sobre uma montaria dessa vez branca como leite e cortada com listas longitudinais vermelhas, uma outra guerreira ainda mais jovem que a primeira, aparentando ter quinze anos, vestia roupas

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militares de couro e metal, e como Talemine, estava fortemente armada com arco e espada.- Onde está aquela mulher delicada que havíamos conhecido ontem? - perguntou Brian a Guillermo que a olhava perplexo.- Vamos ver como se saem quando atacados — disse Talemine sacando uma flecha e prendendo-a em seu arco.A flecha disparada zuniu no ar desfiando o cabelo de Guillermo; uma segunda veio do mesmo arco e quase atingiu a orelha do espanhol; a terceira e última flecha rasgou-lhe a camisa no lado do tórax.- O que você está fazendo? Ficou louca? - gritou Guillermo, agitando os braços sobre a cabeça, tentando inutilmente se esquivar do ataque.As setas pararam de voar contra Guillermo que protestou irritado.- Por que fez isso, Talemine? Quase me mata com essa sua... brincadeira irresponsável.- Você já estaria morto se eu assim o quisesse — disse ela, sorridente. Seu fogoso cavalo negro e cinza não parava de se agitar.- Eu também quero ser alvo — ofereceu-se Margaret, ficando na frente de Guillermo.- Você não quer nada - proibiu Guillermo, puxando-a pelo braço. - Se ela errar eu não quero nem pensar no que pode acontecer.- Eu acho que já chega de demonstrações — disse a voz grave de Rhuror que se aproximava. — Pelo que pude ver, vocês entram em pânico por causa de algumas flechas.

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- O que você acha? — questionou Guillermo, inconformado. — Que no meu mundo passeamos pelas ruas nos desviando de flechas voadoras e golpes de martelo?- Bem, foram vocês mesmos que me disseram que o seu povo tem um instinto destruidor e que devemos evitá-lo — disparou Rhuror com um certo sarcasmo.O comentário do guerreiro tapou a boca de Guillermo que se limitou a avaliar o rasgo feito em sua camisa.- Ah, sim. Quero lhes apresentar a minha outra filha, a caçula. Seu nome é Camine.A menina cumprimentou-os com um aceno de mão e deu um sorriso amigável.Rhuror apontou para uma mesa de madeira comprida apinhada com um amontoado de apetrechos como espadas, lanças, arcos, escudos e martelos.- Naquele balcão estão as armas que irão usar nos próximos dias. Minhas filhas estarão com vocês o tempo todo para treiná-los e auxiliá-los em qualquer coisa - Rhuror fez uma pausa e olhou diretamente para Guillermo: - E não pen-sem que elas são duas pobres indefesas, pois não são.- E, dá pra sentir que não - murmurou Rafael, abrindo um sorriso gaiato para Guillermo.Rhuror deixou os novos alunos por conta de Camine e Talemine. O dia estava apenas começando.- Vamos começar com o arco — disse Talemine, dando um sinal para que cada um se armasse

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com aquele tipo de armamento. - Começaremos com os alvos fixos e quando estiverem aptos, passaremos para os alvos em movimento.O começo foi difícil. Quando o arco era vergado, começava a tremer e as flechas se desviavam sem direção, mas o treinamento intenso foi aperfeiçoando suas habilidades, e no final da manhã todos já apresentavam uma grande evolução.- Uma parada para o almoço — anunciou Talemine. A refeição foi servida ali mesmo, com os recipientes com comida tendo que ser apoiados na própria mão ou colocados no chão.Margaret sentou-se ao lado de Camine que comia com as mãos como uma selvagem.- Estou gostando de aprender essas coisas — disse Margaret, puxando conversa, torcendo para que a menina falasse com ela.— Você vai gostar mais quando experimentar todas as armas - disse Camine, rasgando um pedaço de carne com os dentes.Camine era parecida com a irmã. Os cabelos rubros lhe caíam sobre o rosto, escondendo os olhos vivos. A vestimenta que usava a deixava com uma aparência agressiva.— O que você faz quando não está lutando? - perguntou Margaret, desejosa por saber um pouco da menina que um dia pudesse vir a ser sua amiga.Camine olhou a esmo buscando a resposta enquanto mastigava.— Estudo, ajudo minha mãe nas tarefas de casa, converso com minhas amigas e cavalgo sempre

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que posso.— Suas amigas... são assim como você? Quero dizer, utilizam arcos e flechas e tudo o mais?— Todas elas - confirmou, pegando um punhado de comida com a mão. - Fazemos isso desde crianças. Você não sabe quando vai precisar cortar a garganta de um inimigo ou quebrar seu crânio com uma boa martelada. Somos um povo de guerreiros e não há distinção entre homens e mulheres. Se for preciso, todos lutamos e todos morremos.Tudo aquilo se colocava fora da realidade de Margaret. Uma menina tão bonita, mas com pensamentos de guerreira. Conversava sobre matança com a mesma simplicidade de quem fala em escovar os cabelos. Por outro lado, as duas garotas tinham muito em comum, como a determinação e a personalidade aventureira. Conversavam sobre tudo e trocavam experiências contando coisas sobre seus diferentes modos de vida.À tarde, as flechas acertavam seus objetivos com maior precisão e o grau de dificuldade aumentou quando engrenagens colocaram os alvos em movimento.Cansados, os recrutas encerraram os exercícios, mais capazes e confiantes, e os próximos dias deveriam lhes dar as condições necessárias para os duros desafios que certamente enfrentariam além dos muros de Faogard.Um revigorante banho, boa comida e descanso eram o que precisavam para se encontrar em forma na etapa do dia seguinte.

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— Podemos ver como está Roger? — perguntou Guillermo a Talemine que acumulava as funções de instrutora de luta e enfermeira.— Acho que não há problema - consentiu, enquanto se livrava das luvas reforçadas e das peças de metal que serviam de armadura.— Você é uma excelente arqueira - comentou, tentando ser gentil.— Eu sei — concordou, sem se sensibilizar com o elogio. - E agora você tambémsabe.Guillermo franziu a testa, desconcertado com a insolente resposta de Talemine.No hospital, os amigos de Roger constataram a sua ótima recuperação num espaço de tempo tão curto. Seu rosto já se mostrava quase sem nenhum inchaço e os hematomas quase tinham sumido. Ele estava vestido com uma roupa larga de tecido leve e branco, semelhante àquelas usadas pelos pacientes internados em hospitais. Roger reclamou.— Estou cansado de usar esse pijama engraçado. Quero minhas roupas... e quero sair desse lugar. Não estou doente. Não me sinto fraco. Se essa mulher não me der alta, vou embora assim mesmo.— O que você fez com ele? — perguntou Brian a Talemine, impressionado com a rápida recuperação de Roger, que já mostrava, ao falar, toda a sua tenacidade.— A nossa medicina é muito boa - disse ela, conferindo mais uma vez o estado dos curativos que fizera naquela manhã. Roger afastou a

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cabeça do toque de Talemine, fazendo questão de passar-lhe toda a sua insatisfação. — Precisa ser assim, para que os nossos soldados se restabeleçam logo e voltem à batalha.Chester fez um resumo a Roger, que por sua vez tentava conter a sua impaciência sobre as atividades daquele dia. Brian explicou a decisão de ficarem alguns dias e receberem os treinamentos de luta necessários para seguirem viagem. Roger considerou a decisão apropriada sem fazer nenhuma ressalva.— Quero ver como se sai com o arco e a flecha, professor - disse Daniel a Roger, feliz por ter mostrado bom desempenho na pontaria.Roger sorriu, agradecido pela visita de seus companheiros.— O tempo acabou — disse Talemine, movimentando os braços para que saíssem. — Deixem o meu paciente repousar agora. Meu conselho é que vocês descansem também e acordem bem dispostos para os exercícios.— Eu já estou bem melhor - protestou Roger, abominando ser tratado como um pobre coitado.— Isso quem decide sou eu - sentenciou a faogard com firmeza.Atirar flechas o tempo todo não era um exercício tão leve quanto parecia no começo. O ato de firmar o arco e vergá-lo ininterruptamente deixava os braços e os ombros doloridos. A cama macia era o melhor remédio para tal desconforto.A noite, portanto, era dedicada ao descanso, visto que, num povo de guerreiros, a condição

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física podia ser a diferença entre a derrota e a vitória.Na varanda do quarto dos meninos se achava Daniel, jogado em um assento forrado com retalhos de tecidos diversos, massageando os próprios braços ainda doloridos pelo esforço do primeiro dia. Ao seu lado, Chester esticava as pernas sobre um banquinho e contemplava as luzes generosas que Faogard oferecia. Num outro canto da varanda, Marc e Rafael comentavam efusivamente sobre a estimulante experiência com o arco e a flecha. Marc estava particularmente satisfeito com a sua pontaria nos alvos móveis e dizia, zombeteiro, que a sua habilidade no violino facilitou muito o manejo de arma tão sutil.Uma batida na porta interrompeu a conversa descontraída. Rafael se levantou para atender.— Estão todos bem? - perguntou Brian, olhando para dentro, averiguando as acomodações aparentemente em ordem.— Sim, tudo bem - respondeu Rafael, abrindo um simpático sorriso de boas-vindas. - Entre, professor, estamos relembrando o dia de hoje.— E o que acharam? - quis saber Brian, atravessando o quarto relativamente arrumado para os padrões masculinos.— Parece que estamos indo melhor do que nossas instrutoras esperavam — disse Daniel com confiança.— Só os nossos braços estão um pouco doídos, mas amanhã já estaremos em condições

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novamente — completou Chester, empunhando um arco imaginário pronto a disparar um flecha.— E Margaret? Pensei que estivesse com vocês - disse o professor dirigindo-se a Daniel.— Nesse instante ela já deve estar no outro lado da cidade descobrindo um lugar novo, e que ela vai nos revelar amanhã como se tivesse achado os tesouros do rei Salomão - deduziu o irmão com desdém.— E o professor Guillermo? - indagou Rafael a Brian.-Também não o vejo faz mais de uma hora. Sumiu quando eu estava tomando banho. Deduzi que pudesse estar aqui com vocês.— Professor, tenho curiosidade em saber de uma coisa — disse Chester, aproveitando a propícia ocasião de descontração.— Prossiga — estimulou Brian, estimulando o menino com um gesto.— Por que Alexei Martov atravessou o Portal? Como se deu a vinda dele para esse mundo fascinante.Brian sentou-se em um banquinho próximo e retraiu um canto da boca ensaiando um sorriso que não veio.— É uma história interessante, Chester. Martov era um homem cativante e um dos maiores incentivadores da preservação do segredo da Sociedade do Círculo de Pedra. Para que vocês entendam melhor o que aconteceu, é necessário que saibam do ritual dos Iniciados que, aliás, foi criado pelo próprio Martov quando um novo

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grupo passaria então a fazer parte de nossa Ordem Secreta.Brian fez uma pausa e lançou um olhar aos garotos como se quisesse lhes dizer alguma coisa a mais, mas se conteve e prosseguiu:— Como eu estava dizendo, ao ser aceito, cada novo membro passava por um cerimonial que consistia em ir até a caverna e observar o grande espetáculo da abertura do Portal que seria realizado pelo próprio Martov; e era ele a única pessoa da Sociedade que tinha o dom de perceber, algumas frações de segundo antes, quando o grande disco negro começaria a girar. - Os olhos dos garotos permaneciam pregados em Brian. - Martov punha os pés no disco e aguardava o momento certo para pular fora antes que fosse tragado definitivamente. Havia um certo nervosismo entre os jovens que estavam prestes a ingressar na Sociedade do Círculo de Pedra. Essa reaçáo era muito comum com os novatos: a caverna semi-iluminada, os sons das vozes sussurradas ecoando nas paredes graníticas, a expectativa pelo desconhecido. Tudo isso era motivo de grande excitação. Eu também me senti assim na primeira vez. — Brian inclinou-se, apoiou os cotovelos nas pernas, entrelaçou as mãos e continuou a falar: - Mas um dia algo deu errado. Eu e Guillermo também estávamos lá e vimos tudo. Martov, como de costume, proferiu algumas palavras sobre o que iria acontecer e pisou no portal inerte; ele continuou falando e de alguma maneira se distraiu não pressentindo que o disco começaria

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a girar. Quando se deu conta já era tarde demais. Os Iniciados depois nos disseram que no início acharam que tudo aquilo fazia parte do show e que só descobriram que algo havia saído errado quando viram os veteranos desesperados, sem saber o que fazer, no momento que Martov estava sendo sugado em meio as luzes que se perdiam nas profundezas. Nós, os mais experientes, nos sentimos como órfãos sem o nosso diretor. Helmut, o segundo na hierarquia da Escola, procurou acalmar os ânimos e foi figura importante para evitar que a Sociedade fosse desfeita. Passávamos horas, fechados em reuniões, tentando reorganizar o futuro da Instituição. Mas o tempo foi o nosso aliado e após algumas semanas já havíamos escolhido o sucessor de Alexei Martov que, naturalmente, deveria ser o professor Helmut Neckel, naquela época exercendo o cargo de vice-diretor. Mas mesmo assim, o episódio com Martov não abandonou nossas mentes. Foram dois anos de dúvidas durante os quais cogitamos seriamente sobre o fechamento da Escola e aventamos a possibilidade de revelar às autoridades o segredo que estava em nossas mãos há séculos.Daniel ergueu a mão pedindo a palavra.— Por que houve tanto alvoroço pelo sumiço de Alexei Martov? Por que esse fato abalou a Sociedade do Círculo de Pedra?— Você se esqueceu de um detalhe importante, Daniel - explicou Brian com paciência. — Antes desse acontecimento e o retorno de Martov, não sabíamos da existência desse outro mundo e do

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que seria feito das pessoas que atravessassem o misterioso Portal. Só a partir do retorno dele nos relatando tudo pelo que passou é que a Sociedade se fortaleceu ainda mais e, aí sim, conseguimos encontrar definitivamente uma utilidade concreta para ela.— E outros não desejaram realizar a mesma aventura de Martov depois da sua volta? - questionou Rafael, brincando com as folhas de um galho que avançava pela varanda.— Sim — afirmou Brian com veemência. - Muito se falou sobre essa questão, mas sempre ela emperrava nos riscos e como seria o retorno. Não queríamos que houvesse falhas, e para isso, consultávamos Martov freqüentemente. Os preparativos de uma grande expedição estavam em fase de conclusão quando vocês apareceram...— E quase estragamos tudo — antecipou-se Marc, acanhado.— É, foi isso mesmo que aconteceu — assentiu Brian, devolvendo um olhar de repreensão para Marc. - Mas agora o dano está feito e não adianta perdermos tempo nos lamentando pelo que não podemos mudar - disse, levantando-se e admirando brevemente a vista privilegiada que os garotos tinham para seu deleite.— Pois bem, rapazes, irei direto para meu descanso agora, e sugiro que vocês não demorem muito para dormir, levando em conta de que teremos outro dia muito agitado amanhã. Ah, e mais uma coisa — lembrou-se Brian antes de sair não deixem Margaret ficar andando

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sozinha por aí durante a noite. Procurem convencê-la a ficar mais tempo com vocês - disse ele e logo depois deixou o quarto.— Até parece que ela aceitaria ficar colada na gente - murmurou Daniel para Chester.— Acho melhor aceitarmos o conselho do professor e descobrirmos onde ela está - disse Rafael mais cauteloso. - Vou atrás dela.— Eu vou junto - disse Daniel, seguindo o amigo.Ao cruzarem a porta do dormitório se depararam com Margaret vindo tranqüilamente pelo corredor.— Onde você andava? O professor Brian esteve aqui e não achou muito bom você sumir desse jeito sem nos avisar - disse Daniel, advertindo-a.— Eu estava em muito boa companhia - disse ela com bastante independência.— Fui conhecer as amigas de Camine e já fiz uma boa roda de amizade.— Não pense que ficarei correndo atrás de você toda vez que desaparecer - disse o irmão com aspereza. - Da próxima vez mando o professor se virar para encontrá-la.— Então se é assim, está bem — respondeu com menosprezo. — Boa-noite pra vocês, meninos. E não se atrasem muito amanhã — despediu-se e fechou-se em seu quarto.Daniel ficou com o dedo em riste parado no ar, sem ter tido tempo de responder a impertinência.— Sua irmã é assim, Rafael? - perguntou com irritação, lançando um olhar cheio de ferocidade para o amigo.

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— Não, ela ainda é muito pequena — respondeu sem conseguir encobrir um risinho.— Então, espere ela crescer e essa sua cara alegre vai desaparecer de uma vez por todas - profetizou, voltando para o dormitório, indignado.As batidas ribombantes na porta fizeram os meninos pularem da cama como se houvesse brasas nos colchões. A porta se abriu num ranger desagradável.— Ainda estão dormindo? - surpreendeu-se Guillermo. - Já terminamos de comer e estamos quase saindo para o campo de treinamento.— Essa não! Perdemos a hora! - desesperou-se Marc, procurando suas roupas. - As instrutoras não nos deixarão em paz.— Margaret já acordou? — perguntou Daniel a Guillermo, tendo quase certeza de qual seria a resposta.— A essa hora ela já deve estar fazendo os primeiros exercícios de treinamento lá no campo. Quando ela saiu ainda estávamos nos preparando para o desjejum. Eu e Brian estamos indo, não demorem muito.Daniel quase teve um ataque do coração.— Agora é que eu não vou ter sossego. Droga! Droga!Os quatro aprendizes correram aos tropeções, apertando cintos, enfiando as camisas por dentro das calças e calçando as botas.Margaret, Brian e Guillermo se postavam diante de Camine e Talemine, recebendo as primeiras lições do dia. Eles empunhavam espadas que

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brilhavam de longe, refletindo os primeiros raios matinais.Os garotos se aproximaram ofegantes e envergonhados pelo atraso. Margaret os olhou com superioridade; um sorriso de escárnio nasceu dos seus lábios, mas ela logo se colocou novamente na posição que Talemine ordenara, retomando a atenção.— Peguem as espadas menores sobre o balcão e voltem aqui depressa - ordenou Talemine com frieza nos olhos. - Não temos o dia todo.Os meninos trataram de se agilizar e em segundos se postavam lado a lado com Margaret, tentando imitar os movimentos com a espada.— Como eu ia dizendo — explicou Talemine, bastante dedicada. — A espada deve ser a extensão de seus braços. Sempre que um golpe for desferido, evitem dar as costas para o inimigo. O adversário sempre deverá estar ao alcance de seus olhos... e de sua espada.Talemine mudou sua postura e segurou a espada com maior vigor, a ponta da lâmina para cima. Ela continuou a falar.— Vocês têm que sentir a empunhadura de modo que a lâmina possa ser girada, tanto para defender como para atacar.Talemine olhou cada um dos aprendizes com critério.— Preciso de um voluntário — disse ela. - Você - completou, apontando para Guillermo com a mão desarmada.Ela recuou e dirigiu-se para longe dos demais, Guillermo a acompanhou, experimentando mover

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sua arma, sem grande habilidade.— Agora prestem muita atenção nos erros do meu agressor - disse Talemine olhando nos olhos de Guillermo. — Ataque! — determinou a guerreira.Guillermo hesitou por uns instantes.— O que está esperando? Venha me atacar! - exigiu Talemine com impaciência.— Mas eu posso machucar você - justificou-se, segurando a espada como se esta fosse um inofensivo cabo de vassoura.Talemine revirou os olhos, intolerante.— Você não vai me machucar. Use a sua espada e tente me acertar bem aqui - disse, apontando para o próprio peito.Guillermo olhou para os companheiros e não vendo alternativa, atacou.Talemine evitou o golpe e, numa fração de segundos, encostou o fio de sua espada na garganta de Guillermo que mal entendia como tudo acontecera.— Viram? — chamou a atenção a faogard, apertando o aço mais fundo no pescoço do seu oponente. Guillermo não ousou reagir e lhe devolveu um sorriso sem graça. — Se esse confronto fosse pra valer, seu amigo estaria morto antes mesmo de cair no chão, decapitado.Rafael e Marc se entreolharam com perplexidade.Camine, com seu olhar jovial, observava à distância, a mão sempre apoiada no cabo da espada, preparada para a batalha.— Arqueira e espadachim. O que mais ela sabe fazer? - perguntou Brian a Margaret. A menina

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olhava com satisfação a guerreira que esbanjava destreza.— Sabe acabar com a soberba dos homens - respondeu, vaidosa. Brian ficou surpreso com a resposta aguçada.Talemine prosseguiu com o treinamento.— A maneira desajeitada com que ele avançou e usou a sua arma, facilitou muito o meu contra ataque rápido e fulminante.— Maneira desajeitada? — protestou Guillermo, mas sem razão.Talemine encarou seu adversário e o libertou com rispidez. Depois, voltou-se aos outros alunos.— Como eu havia dito no início, se vocês derem as costas ou mesmo os flancos ao seus opositores, a morte será quase inevitável. Portanto, a investida deve ser ágil e certeira, com movimentos circulares e recuos rápidos seguidos de um novo ataque. Em poucas palavras, é assim que funciona. E é isso que vocês deverão aprender hoje. Mas não se preocupem, as armas que estamos usando não são afiadas... por enquanto.— Grande consolo - murmurou Guillermo enquanto esfregava a garganta.Todos, um a um, tiveram que enfrentar as irmãs guerreiras. Brian e Guillermo se revezavam confrontando Talemine e os jovens aprendizes testaram as habilidades de Camine. Como era de se esperar, todos fracassaram nas disputas com as faogards.A pausa para o almoço era também o momento aguardado para o descanso. A disposição de

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Camine e Talemine para as lutas era notável.— Essas garotas parecem que nunca se cansam — observou Guillermo enquanto destrinchava com os dentes a coxa de uma ave assada; o gosto era parecido com carne de peru.Margaret escolheu, como de costume, um canto ao lado de Camine e enquanto estavam juntas, as duas conversavam despreocupadas e as risadas apareciam uma vez ou outra.Os olhos de rubi de Talemine se encontravam sempre atentos, como se ela estivesse constantemente esperando que um inimigo surgisse de algum lugar ameaçando o seu povo, muito diferente da Talemine de expressão meiga quando agia como enfermeira cuidando dos enfermos.Brian terminou de comer e deixou a vasilha de lado, esticando as pernas para relaxar.— Acho que a faogard gosta de você, espanhol; ela sempre te escolhe para as suas demonstrações.— Ela quer é meu pescoço — retorquiu Guillermo, lançando um olhar mal- humorado para Talemine que estava alheia à conversa. — Provavelmente vai esmagar a minha cabeça quando treinarmos com martelos.— Ela não é tão má assim. Viu como os cuidados dela estão fazendo Roger se recuperar em pouco tempo?— É, parece ser um costume dessa gente nos atacar com seus martelos e espadas e então tratar os nossos ferimentos com toda dedicação — disse Guillermo em tom de reprovação.

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Os treinamentos continuaram na parte da tarde e o calor não diminuiu o ânimo das jovens guerreiras. Talemine convocou mais uma vez Guillermo para uma demonstração que não teve como se recusar servir de cobaia.— Quase sempre, a parte do corpo do inimigo que mais se aproxima num combate corpo a corpo, são suas mãos - instruiu a guerreira, erguendo o braço esquerdo e agitando os dedos. - Em vista disso, pode ser a partir delas que começamos a destruir o adversário — Talemine posicionou-se aguardando um ataque e ordenou: — Ataque-me novamente, senhor Guillermo.Mais experiente no trato com a espada, o espanhol foi mais cauteloso, girando em volta de sua oponente e procurando o melhor momento para atacar. A investida foi bem rápida, mas não o suficiente para impressionar a bela Talemine; ela evitou o golpe de Guillermo e o atingiu com o lado da lâmina bem na altura do pulso, obrigando-o a soltar a espada no chão poeirento.— Ei! O que há com você, cabelos vermelhos? - reclamou, apertando o pulso dolorido. - Desse jeito, quando os treinamentos acabarem, partes do meu corpo estarão espalhadas por toda a Faogard.Talemine quis rir, mas se conteve.— Quando se decepa a mão do inimigo, a contenda está praticamente encerrada. Mas cuidado, a luta só termina quando se tem o opositor a seus pés totalmente imobilizado, ou se preferirem que eu seja mais clara... morto.

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Os ensinamentos de Talemine auxiliados pela sua dedicada irmã só pararam quando o sol quase desapareceu por completo atrás dos muros da cidade-fortaleza.Os recrutas retornaram para seus aposentos e cruzaram com um grande grupo de soldados, mais ou menos uns quinhentos guerreiros, que aparentemente deviam estar se recolhendo após um desgastante treinamento; não demonstravam cansaço, pois marchavam num ritmo forte e confabulavam no seu idioma tranqüilamente como se estivessem indo a um piquenique no campo em uma manhã de domingo.— Pois eu desejo mesmo é um banho relaxante e muito descanso até o próximo dia - disse Guillermo com franqueza, arrastando os pés. - Não consigo entender como aquelas duas não perdem a energia.— Treinamento, meu amigo - disse Brian com um grande sorriso, batendo nas costas de Guillermo amistosamente. — Treine bastante e logo ficará como elas e não assim, fora de forma, como um velho gordo.— Velho gordo? Eu? - questionou, apalpando o próprio corpo. - Estou mais em forma que você, seu inglês decrépito e com artrite. Seus ossos estalam quando você anda.— Mas Talemine não reclama da minha maneira de lutar como reclama da sua - defendeu-se Brian, esquentando o bate-boca.— É porque você já é um caso perdido - devolveu, meneando a cabeça como se estivesse lamentando o rendimento de Brian.

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— Os senhores, professores, pretendem chegar aonde com essa discussão? - quis saber Margaret, dirigindo-se a eles como uma mãe ralha com seus filhos.— Velho gordo... essa é boa - resmungou Guillermo antes de se calar.— Depois de me lavar e comer alguma coisa, quero ver como está o professor Roger — anunciou Chester, apressando-se para chegar de uma vez aos aposentos.

Capítulo 22Garotos Apavorados

Roger estava entediado em ter que ficar tanto tempo recluso. Ele entendia que não havia mais motivo para tantos cuidados com a sua saúde, pois já não sentia mais nenhuma dor ou desconforto, a não ser a cama. Achava que estavam perdendo muito tempo em Faogard e que logo teriam de partir rumo ao longínquo reino dos crassênidas.Os passos aumentaram e logo a enfermaria, ocupada por Roger, foi invadida pelos seus amigos de jornada. Já está com uma cara bem melhor, professor — comentou Daniel, fazendo questão de expor a sua alegria em ver Roger recuperado. E vocês, como estão se saindo com as armas? — indagou Roger, afastando-se da janela por onde recebia, durante o dia, a vista de um pequeno pátio em que havia uma portentosa

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árvore de casca escura habitada por alguns pássaros que vinham uma vez ou outra bicar as frutinhas vermelhas que se agarravam nas pontas dos galhos. Uma leve brisa ondulava as cortinas quase transparentes penduradas nos cantos da única janela que havia no quarto. Naquele momento, o que ele conseguia enxergar, eram apenas as luzes de luminita que clareavam a noite além daquele minúsculo pomar. Estamos aprendendo aos poucos — disse Brian em resposta, sem entrar em detalhes. — Nosso amigo é que está tendo alguma dificuldade com a bela instrutora, a delicada Talemine - apontou Guillermo com um gesto de cabeça, incitando-o com ares de galhofa.Guillermo fuzilou Brian com os olhos, mas achou por bem não recomeçar a troca de provocações. Anime-se, meu amigo — disse Guillermo, mudando de humor, enquanto se atirava a uma cadeira ao lado da cama. — Em breve você estará livre dessa prisão de luxo. A propósito, a sua carcereira já passou por aqui hoje? Esteve aqui a menos de uma hora me enchendo de recomendações desnecessárias como se eu fosse um menininho recém-saído das fraldas que não sabe se cuidar direito. Ela me disse que eu estarei livre amanhã, desde que eu me comporte direitinho. Essa é boa - protestou.— Então o senhor precisa ver como ela age no campo de batalha — alertou Margaret, muito orgulhosa. - Não se parece nem um pouco com a

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Talemine que o senhor está acostumado a enfrentar no hospital.— Acho que vou preferir a versão guerreira dela. Combina mais com meu estado de espírito — optou Roger, dando um grande suspiro, portando-se como uma fera acorrentada.

O dia seguinte amanheceu escuro, coberto de nuvens cinzentas e pesadas prontas para derramarem uma enorme quantidade de chuva.— Pensei que o professor Roger estaria aqui conosco, nessa manhã — disse Rafael a Chester, um pouco desapontado, aguardando as primeiras instruções de Talemine que escolhia os armamentos a serem utilizados.— Martelos! - disse ela, voltando-se para os candidatos a guerreiros, exibindo as armas em punho. — Somos o único povo que usa este tipo de instrumento de combate. Parecem pesados e desajeitados, e de fato o são, mas se manejados com força e habilidade, se tornam excelentes para, em um só golpe, desequilibrar o oponente e jogá-lo ao chão.Talemine girou o martelo e fez a arma parecer mais leve e graciosa do que realmente era. Ela então ordenou:— Equipem-se e voltem logo para retomarmos o treinamento.Havia martelos de vários tipos e tamanhos; os jovens escolheram os menores que estavam de acordo com a sua compleição física. Guillermo, por sua vez, optou por um maior de cabo mais

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fino e longo; Brian preferiu um tradicional de proporções equilibradas.Todos devidamente armados, Talemine escolheu o seu voluntário preferido, se é que podia chamar Guillermo de voluntário.— Pegue também aquele escudo — disse ela, indicando um, decorado com o desenho de uma grande mão aberta que parecia servir para defender todos os golpes desferidos contra ele, e que estava apoiado em uma grossa estaca de madeira.Guillermo atravessou o antebraço esquerdo em uma alça na face interna do escudo e agarrou firme uma segunda alça. O escudo havia ficado bem preso.— Agora ataque rapidamente e mantenha o escudo na altura do seu tronco - orientou a faogard, enquanto mudava o seu martelo de mãos, sem parar. Depois ela passou a girar a pesada arma como se fosse arremessá-la contra a cabeça de sua cobaia humana. E você, não vai usar um escudo para se defender? - perguntou Guillermo, imaginando que daquela vez não havia como Talemine atingi-lo. Não se preocupe - disse ela com desdém. - Daqui a pouco você vai perder o seu martelo. Vamos lá, me ataque com raiva.— Pode ter certeza disso, madame - afirmou Guillermo, apertando mais forte o cabo de seu martelo e partindo determinado para cima de Talemine.

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Guillermo tentava acertar a guerreira, mas todas as suas marteladas encontravam o ar. A faogard respondia com golpes certeiros no escudo do espanhol, produzindo um som abafado a cada baque desferido. Ela orientava a medida que lutava.— Conserve o escudo mais próximo ao corpo e não fique tão estático; assim você se torna um alvo muito fácil. Vou te mostrar o alvo fácil, garota — rosnou Guillermo entre os dentes. — Você vai precisar de muletas para dar aula amanhã. Já estou começando a entender melhor como se usa esse brinquedinho.Mal Guillermo completou a frase e teve que absorver um fortíssimo impacto do martelo da guerreira e que o desequilibrou; um segundo golpe, bem mais leve o atingiu no pé, causando-lhe uma forte dor que o fez soltar o martelo e o mesmo só não aconteceu com o escudo porque estava entalado em seu braço.— Meu pé! Você quebrou meu pé! — bradava, pulando com uma perna em situação constrangedora.Brian olhava aquilo tudo sem saber se ria ou ficava penalizado pela condição em que seu amigo se encontrava.Os meninos demonstravam alguma preocupação e Daniel, bastante observador, prestava atenção nas reações de Talemine para avaliar a real gravidade do estado do professor. Talemine não se abalava; sabia muito bem a força que o seu martelo havia caído sobre o pé de Guillermo.

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Depois de mais um vexame, Guillermo caminhou com passadas duras em direção a Talemine e se colocou bem diante dela, esquecendo-se que a guerreira ainda sustentava a sua perigosa arma de espancar.— Afinal, o que você quer? Ensinar-me a lutar ou me humilhar, senhora brutamontes?Os cantos dos lábios de Talemine se contorceram e ela lutou para não rir, esforçando-se para manter, de qualquer maneira, o equilíbrio apropriado que o momento exigia. Esse é o seu treinamento, senhor Guillermo. Como espera enfrentar seus inimigos se qualquer pancadinha o coloca fora de combate? Pancadinha, você diz. O meu pé está latejando até agora. Me darei por feliz se sair com vida de Faogard. - Guillermo ameaçou afastar-se de Talemine, mas voltou a encará-la bem de perto: - Você fez de propósito. Está me provocando, mocinha. Não é muito educado desrespeitar uma dama, espanhol - avisou Brian, espetando ainda mais. Dama, ele diz - resmungou Guillermo enquanto caminhava depositando o peso do corpo na perna saudável, para logo se sentar em um canto e começar a massagear o pé que ainda doía muito. — Ela é um animal selvagem; e o que é pior, não vai com a minha cara.Guillermo, inconformado, não se refreou, levantou-se em seguida e sem deixar de mancar, foi mais uma vez ter com Talemine para despejar mais desaforos.

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E tem outra coisa: no meu mundo sou conhecido como um homem que está sempre de bem com a vida, e você está acabando com uma das coisas que possuo de mais valor: o meu bom humor. Isso é verdade — concordou plenamente Brian, com ar de quem tem uma auréola sobre a cabeça.Após desabafar, Guillermo outra vez foi para o seu refúgio, aquietando-se, as sobrancelhas contraídas em um semblante carregado.Camine, a jovem irmã de Talemine, convocou os meninos e deu prosseguimento às práticas de treinamento.Recuperado, porém com o orgulho um pouco abalado, Guillermo empunhou seu martelo e pôs-se a movimentá-lo com a intenção de familiarizar-se de uma vez com a inusitada arma de combate.Um cheiro de terra molhada se espalhou pelo ar quando as primeiras gotas de chuva começaram a cair. Acho que os exercícios serão interrompidos — supôs Marc falando para Daniel, contemplando o céu escuro de tempestade.A chuva apertou e os pingos se tornaram grossos e em pouco tempo encharcaram a terra e os corpos dos lutadores. Não parem! - gritou Talemine para que todos ouvissem. - Trabalharemos na chuva. Será um bom exercício para o aprimoramento das técnicas aprendidas até agora.

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Os contendores formavam duplas para darem mais realidade às simulações de luta. Brian enfrentava Guillermo; Marc lutava com Chester; Rafael se defrontava com Daniel e, finalmente, Margaret recebia lições de sua nova amiga, Camine.Ninguém desanimou, principalmente os jovens que encaravam tudo como uma grande e descontraída brincadeira. Os pés chapinhavam espirrando lama para todo lado. A chuva engrossava ainda mais e formava poças, que quando pisadas, esguichavam água lamacenta em todas as direções. O dia escureceu tanto que as pedras de luminita presas aos postes e na frente das casas iniciaram a emissão de luzes fracas e difusas. Continuem! Continuem! - estimulava Talemine com disposição inabalável. — Martelo! Escudo! Martelo! Escudo! - gritava a faogard sem desanimar o ritmo. As armas se chocavam ininterruptamente, gerando diferentes sons metálicos molhados. Não percam essa oportunidade! — gritava Talemine, vigorosamente. — Vocês podem experimentar uma situação de terem que combater em terreno chuvoso como agora.De vez em quando, Talemine tomava a vez de Brian ou Guillermo, mostrando como se devia fazer. Ataquem e se fechem rapidamente com seus escudos — instruía Talemine, atenta a todos os movimentos. — Um golpe desse na cabeça pode ser mortífero a qualquer um.

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A chuva forte não parou e ainda se prolongou além do intervalo para o almoço. As poças do campo de treinamento uniram-se em uma só, formando praticamente um lago onde a água acumulada alcançava a altura dos tornozelos.Talemine esquadrinhou o céu de nuvens negras que desabava todo o seu aguaceiro sobre Faogard, sem dar nenhum sinal que pararia em algum momento. Vou interromper as atividades da tarde. Aproveitem para descansar e memorizar o que aprenderam hoje — comunicou a guerreira enquanto afrouxava as fivelas e presilhas que prendiam seu traje de couro e metal, antes de tomar o caminho de casa. Camine se despediu de Margaret e seguiu a irmã.Os recrutas se recolheram aos seus aposentos e tomaram banhos quentes para relaxarem.Contrariando as previsões, bem no meio da tarde, o sol surgiu entre as nuvens que, aos poucos, foram se afastando dando vez a brechas de céu azul. As nuvens assumiram um tom cinza-claro e a ameaça de voltar a chover foi praticamente desconsiderada.Marc e Rafael entraram no quarto e encontraram Daniel e Chester dormindo em plena tarde. Vão passar o dia todo jogados nessa cama? — criticou Marc, depois sacudiu Chester para despertá-lo do seu sono. Rafael fazia a mesma coisa com Daniel. O que há de interessante pra se fazer lá fora? — perguntou Chester enquanto se espreguiçava,

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pensando em um bom motivo para não se levantar. Um mundo inteiro pra se descobrir - respondeu Marc olhando o céu pela janela do dormitório, as nuvens brancas se afastavam cada vez mais e o céu, muito azul, convidava para um passeio pelas avenidas de Faogard.Daniel sentou-se na cama e coçou a cabeça. Por fim, se rendeu: Está bem, está bem. Eu me dou por vencido - disse, calçando as botas ainda sujas de terra.Chester, da janela, contemplou a extraordinária Faogard retomar suas atividades após a chuvarada. Uma brisa gostosa obrigou o texano a dar razão aos amigos e querer sair daquele quarto sossegado demais, o oposto da personalidade deles.-Aposto que a minha irmã não está no quarto dela - arriscou Daniel enquanto percorriam o corredor em direção à saída do prédio. Adivinhou — respondeu prontamente Rafael. - Faz tempo que ela saiu e imagino com quem esteja. A garota guerreira, Camine — presumiu Daniel descendo a escada de madeira que gemia ruidosamente com as pisadas apressadas dos quatro amigos.Uma grande amizade havia nascido entre Camine e Margaret. As duas meninas quase da mesma idade andavam sempre juntas, e os meninos nunca sabiam o que elas tanto conversavam.Eles ganharam a rua e vagaram por algum tempo pelas passagens e avenidas do lado norte da

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cidade.Os habitantes já estavam começando a se habituar com os estranhos hóspedes, e alguns até arriscavam sorrisos desejando se mostrar um povo hospitaleiro. Olhem, rapazes, quem está vindo em nossa direção — alertou Rafael, os olhos fixos em duas figuras bem conhecidas.Eram Margaret e Camine subindo a rua numa passada firme e cheias de si. Eles se encontraram e Margaret prontamente se pronunciou:-Temos boas notícias! - exclamou com um sorriso de grande satisfação. - O professor Roger está fazendo os últimos exames e daqui a alguns instantes receberá alta. Então vamos até ele - disse Marc com decisão. Esperem. O professor não está mais no hospital - avisou Margaret com autoridade. - Ele foi transferido para uma unidade de reabilitação. E onde fica isso? — quis saber Daniel. Descendo essa mesma avenida, vocês encontrarão à sua esquerda, um beco ladeado de muros altos. No final existe um prédio com uma grande porta cinza. E lá que ele está — explicou Camine indicando com acenos largos por onde deveriam seguir. Vamos de uma vez — animou-se Chester. — Precisamos dar-lhe as boas-vindas.Os meninos passaram a descer a rua, Camine e Margaret seguiram para o lado oposto.- Vocês não vêm com a gente? — indagou Rafael voltando-se para elas que se afastavam.

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- Já vimos o professor, mas agora iremos nos encontrar com outras meninas — disse Margaret se despedindo.Foi fácil encontrar a rua estreita seguindo as orientações de Camine.- Deve ser essa mesma - deduziu Daniel, indo na frente. - Lá no fundo está o prédio com a porta cinza.O beco, com cerca de oitenta metros de comprimento, era estreito e não havia circulação de gente como era de se supor. Eles chegaram até a porta, quando Daniel tentou abri-la.- Está trancada - ele constatou, forçando mais uma vez.- Isso aqui parece mais um depósito que um centro de reabilitação - observou Rafael, esmiuçando a fachada do prédio com o olhar, duas janelas gradeadas, uma para cada lado da porta, também permaneciam trancadas, dando a impressão que o lugar estava abandonado.- Será que não erramos a rua? - duvidou Chester, procurando em vão uma outra entrada.- Acho que não - disse Daniel sem muita convicção. - O local bate com a descrição feita por Camine. Só pode ser aqui.- Pessoal, o que é aquilo? — perguntou Chester, surpreso ao direcionar os olhos para o início da rua.Os garotos se voltaram de uma só vez atendendo ao chamado de Chester. Os olhos deles ficaram vidrados de espanto e um arrepio correu instantaneamente pelos seus corpos.Algo os deixou aterrorizados.

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Eles estavam tendo a visão de um animal negro de olhos cinzas; assemelhava-se a um lobo com pelo menos uma vez e meia o seu tamanho; três listras acinzentadas percorriam o seu dorso no sentido do pescoço até a cauda; suas patas eram tão grandes como raquetes de tênis. O animal caminhava lentamente em direção aos garotos, obstruindo a única passagem que havia entre eles e a avenida.Os quatro amigos se apavoraram quando a fera arreganhou a bocarra exibindo presas enormes capazes de dilacerar facilmente um ser humano.Daniel tentou encontrar uma passagem, alguma saída que os tirasse dali, mas logo percebeu que estavam encurralados; a fera se aproximando mais e mais dos rapazes, e a cada passo que dava, seu corpo enorme oscilava ao caminhar num movimento sinuoso, comum aos terríveis predadores. O carniceiro crescia na frente deles.Chester teve uma idéia desesperada.- Alguém suba aqui, depressa! — gritou, entrelaçando as mãos, oferecendo um apoio para que um de seus amigos tentasse alcançar o alto do muro.Marc pulou na escadinha de dedos improvisada e se esticou como pôde, porém o muro era muito alto, uns quatro metros no mínimo; Marc pulou de volta para o chão, desistindo.O animal baixou a cabeça, as orelhas pontudas voltadas para trás rentes a cabeça, selecionando a sua vítima; seus olhos ameaçadores encontraram Daniel, que entendeu imediatamente que era ele a presa escolhida.

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Chester olhou em volta, procurando uma pedra ou outra coisa que pudesse jogar para afugentar o monstro que se tornava muito mais aterrador à medida que se aproximava. Não havia nada no chão que ele pudesse atirar.Rafael correu para a porta e ainda conseguiu destravar a fechadura com seus grampos de bolso, mas não conseguiu abrir.- Está bloqueada por dentro! — apavorou-se, atirando-se contra a porta que mal se mexeu com as investidas do menino.O animal feroz ia lentamente em perseguição a Daniel.- Ele quer você, Daniel. Fuja! - berrou Marc se apertando contra a parede.- De que jeito? - balbuciava Daniel, querendo se esquivar. - Essa coisa está me cercando.Daniel estava certo. Não havia mais muito espaço para onde correr.Marc conseguiu escapar, ou foi a fera de olhos cinzas como nuvens de tempestade que o desprezou; ela já tinha feito sua escolha: Daniel.- Vou pedir ajuda! - disse Marc, mas ele sabia que não daria tempo, então voltou sem saber ao certo o que fazer para ajudar o amigo.O lobo corpulento lançava olhares ferozes para que os outros meninos não se atrevessem a atrapalhar o seu objetivo.O enorme animal, por fim, encurralou Daniel obrigando-o a cambalear para trás; o garoto inglês desequilibrou-se e caiu de costas. Seus amigos gritavam desesperados ao verem Daniel a ponto de ser devorado, ali, na frente deles.

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O gigantesco lobo negro pôs a sua enorme pata de unhas afiadas sobre o peito de Daniel já estirado no chão, sentindo a potência daqueles músculos e dentes afiados; o animal de pelagem negra poderia matá-lo apenas pressionando seu peso sobre o rapaz.A fera aproximou o seu focinho do rosto de Daniel e um cheiro repugnante invadiu suas narinas: o animal rosnou anunciando que o fim havia chegado. O bicho parecia estar atrasando a morte de Daniel por puro prazer.Uma dolorosa sensação de angústia se abateu sobre Marc, Chester e Rafael ao se sentirem impotentes quando mais precisavam ajudar o companheiro.A fera negra escancarou a enorme mandíbula, exibindo toda a variedade de dentes cortantes, dilacerantes e trituradores; Daniel virou o rosto para o lado e ainda pôde ver Chester levar as mãos à cabeça em profunda aflição.Daniel havia perdido todas as esperanças de sobreviver.- Já chega, Kranalk! — gritou uma voz feminina da entrada do beco.Era Camine acompanhada de Margaret.O gigantesco monstro deu uma grande lambida no rosto de Daniel e se afastou, pondo-se ao lado da menina guerreira, como um cão comportado.- M-Mas o que está acontecendo aqui? — gaguejou Rafael, estupefato.- Desculpem o pequeno susto, rapazes - disse Margaret toda orgulhosa de si. - Mas essa foi a maneira que eu encontrei de me vingar daquele

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banho forçado que tomei há alguns dias naquele rio.Daniel, boquiaberto e perplexo, sentado no chão, todo sujo de terra e com o rosto impregnado de baba, não acreditava no que estava ouvindo.- Vocês jogaram essa monstruosidade contra mim por causa de uma desforra boba? Eu poderia estar morto a essa hora! — desabafou aos berros, socando o chão.Kranalk inclinava a cabeça para o lado, observando, curioso, a reação desatinada de Daniel.Marc não sabia se ria da brincadeira ou se ficava do lado de Daniel para protestar contra o grande susto pelo qual também passou sem ter nada com as desavenças dos irmãos.Rafael e Chester ainda ofegavam enquanto se restabeleciam da peça pela qual foram surpreendidos.- Se Kranalk quisesse acabar mesmo com você, garoto Daniel, já o teria feito, não é mesmo Kron? — avisou Camine enquanto acariciava o pelo espesso da fera que não parecia tão hostil como antes. Ela continuou a discursar: — Ele é muito inteligente e mais confiável do que muitos que se dizem racionais — elogiou, agora dando um grande abraço no pescoço peludo de Kranalk que respondeu o afago com outra lambida. — Além disso, Kranalk é um ótimo guarda-costas e também um excelente companheiro para caçadas e combates. Ele é mais eficaz do que cinco soldados armados e se não for parado, é capaz de deixar um rastro de sangue e morte em

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um campo de batalha. Vamos, Daniel, venha acariciá-lo. Ele não vai morder você — disse a garota faogard voltando a falar com voz doce.Daniel ergueu-se batendo a roupa para livrar-se da poeira, mas não conseguiu encobrir o orgulho ferido. Margaret o olhava com a nítida sensação do dever cumprido.— Que troco que ela deu no Daniel — comentou Marc com Chester, comprovando mais uma vez o poder de fogo de Margaret.— Foi muito perigoso o que vocês fizeram — reclamou Daniel ainda um pouco assustado, limpando o rosto grudento da saliva de Kranalk.— Não foi, não - disse Camine, indo em defesa de Margaret. — Eu sei muito bem controlar Kranalk e ele não faria nenhum mal a você... a não ser que eu quisesse — completou com sarcasmo. — Margaret me perguntou diversas vezes se era seguro pregarmos essa peça em você, Daniel. Ela estava realmente preocupada com o seu bem-estar, e só aceitou definitivamente quando conheceu bem Kranalk e depois que eu assegurei que o meu Kron apenas encheria o seu rosto de saliva com um suculento beijo.Daniel fez uma cara de asco e terminou de se limpar com a manga da camisa.— Mas acho que vocês tiraram uma lição com essa história toda — disse Camine causando expectativa.— Que lição? — perguntou Rafael, arriscando tocar em Kranalk que se fez indiferente aos excessivos afagos vindos de todos os lados por parte dos garotos.

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— A de que vocês não devem andar por aí sem nada que possam se proteger. Se fosse uma situação real, todos os quatro seriam mortos, sem nenhuma possibilidade de defesa ou fuga. Um animal como esse é capaz de atingir grandes velocidades e saltar obstáculos maiores que esse muro. Vocês estariam indefesos e condenados a morrer - disse com severidade.Camine encarou seriamente um a um e nem Margaret escapou do seu olhar. Ela prosseguiu.— Quando forem embora de Faogard, portem as armas como se fossem suas roupas. Em quaisquer circunstâncias elas devem ser usadas.A dureza do discurso da pequena guerreira era contundente e contrastava com aquela menina que, quando não estava envolta em trajes de batalha, era igual a qualquer garota dos bancos escolares da Ilha da Coroa ou de qualquer outra escola comum.— O que ele é, um lobo? — quis saber Chester, olhando Kranalk com curiosidade.— Não sei o que é um lobo — respondeu Camine. — Mas ele não é isso. Kranalk é um nevolort, um exímio caçador. Os nevolorts são os melhores amigos que alguém pode ter. São corajosos e leais e se você cria um desde filhote, nunca mais ele te abandona. E pra toda a vida.O magnífico animal causou sensação e logo se tornou alvo de admiração.— Como ele sabia que deveria atacar o Daniel e não a um de nós? - quis saber Rafael.— Os Nevolorts são especiais — disse Camine olhando com carinho para Kranalk que retribuiu

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lambendo a sua mão. — Eu falo com ele e ele me entende, mas para que isso aconteça, tenho que me aproximar bastante dele e sussurrar no seu ouvido o que eu quero que seja feito. Assim, Kron consegue compreender perfeitamente cada palavra, pois cada uma delas exprime um sentimento diferente. Eu já havia mostrado o Daniel, de longe, para ele, e o resto vocês viram como aconteceu.— Só isso? — admirou-se Marc com a capacidade de interação da faogard com o seu bicho de estimação.— Tem algo mais - completou ela -, todas as vezes que falo ao seu ouvido, transmito minhas vontades para a sua mente. Somente quando é feito dessa forma, é que a nossa comunicação dá certo. Por isso nos entendemos tão bem, não é mesmo Kron?Kranalk respondeu com um estrondoso rosnado, demonstrando compreender a sua dona.— Você devia ter visto a sua cara - disse Chester a Daniel, em tom de gozação.— E a sua? Parecia que tinha visto um fantasma - respondeu Daniel, fazendo uma careta assustadora.— E o Marc, pulando como um louco nas mãos de Chester, querendo subir pela parede como uma lagartixa - lembrou Rafael, movendo os braços como se escalasse uma parede imaginária.— Olhe quem fala - devolveu Marc, desdenhando. — Você esmurrou tanto aquela porta tentando fugir que deve estar com as mãos doendo até agora.

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— Meninos, meninos, não precisam se atacar — intercedeu Margaret. - Nós vimos muito bem como vocês são corajosos — concluiu com ironia.— Gostaria de ver se você ficaria tão segura de si se estivesse em nosso lugar — disse Daniel defendendo a abatida honra masculina.— Sem dúvida alguma eu estaria bem! Kranalk é tão bonzinho — disse ela enquanto dava tapinhas gentis na cabeça do nevolort negro que piscava os olhos a cada pancadinha.Ela correu os olhos, avaliando a sujeira em que Daniel se encontrava.— Parece que você vai precisar de um banho, querido irmão. Talvez um banho de rio resolva.— Margaret, isso náo vai ficar assim! — tornou a irritar-se Daniel, lembrando-se do vexame armado pelas duas garotas.— Acho que já basta — ponderou Rafael em tom bastante equilibrado. - Se vocês dois continuarem com a idéia maluca de ir à forra para devolver o insulto anterior, isso não vai acabar tão cedo — ele fez uma pausa para dar tempo que os dois refletissem sobre o assunto. — E o pior, isso pode não terminar bem.Daniel olhou de Rafael para Margaret, pensativo.— Está bem, eu concordo em parar por aqui - ele admitiu, aceitando os argumentos de Rafael.Margaret respondeu com um olhar amistoso para o irmão.— Aceito as condições - disse ela, como se estivesse a ponto de assinar um acordo de paz entre dois países beligerantes.

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O professor Roger havia mesmo recebido alta e já se encontrava em seu novo aposento junto com Guillermo e Brian, interando-se dos detalhes dos treinamentos e quais os novos planos para seguirem jornada. Sentia-se bem melhor, princi-palmente porque havia se livrado da cama do hospital e dos cuidados exagerados - ele considerava assim — de Talemine.— Em breve teremos de deixar a hospitalidade e o conforto de Faogard — avisou Guillermo em tom de lamento, levando em conta que cada dia de atraso poderia resultar em grandes problemas no futuro.— Eles vão mesmo nos deixar partir? — perguntou Roger, ainda um pouco desconfiado das intenções dos anfitriões. Ele experimentava a maciez da sua cama, pressionando o colchão com as mãos. — Essa cama é mais confortável que a do hospital.— Mas é obvio que nos deixarão partir — respondeu Brian, surpreso com o questionamento de Roger. - Não somos prisioneiros, quer dizer, ao menos não somos mais. Desde o mal entendido da nossa chegada, estamos sendo bem tratados e isso não inclui Guillermo.Brian contou a Roger como seu amigo espanhol estava passando por maus bocados nas mãos de Talemine; como quase foi flechado por ela; como quase teve a garganta e a mão cortadas e o pé esmagado a marteladas. Guillermo indignou-se ao ser lembrado pelo inglês de todas aquelas situações embaraçosas.

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— Ele está apaixonado - declarou Roger, friamente, enquanto tirava as botas e as empurrava para debaixo de sua cama.— O que disse? - surpreendeu-se Brian, lançando um olhar de espanto para Guillermo.- Você não notou, Brian? Guillermo está louco pela mulher faogard, e ela por ele — sustentou Roger, enquanto ajeitava suas coisas em algumas prateleiras ao lado de sua cama. - Percebi da primeira vez que os vi juntos na enfermaria - Roger voltou-se para Brian e Guillermo e se abriu para os dois. - Eu sei muito bem do que estou falando: uma vez me senti assim, e depois de anos havia me casado. — Ele fez uma expressão triste e suspirou profundamente ao relembrar a sua Helen. - Bem, o resto vocês já conhecem.- Isso é verdade, espanhol? Você está mesmo interessado em Talemine? - provocou Brian um tanto incrédulo.Guillermo estava desconcertado, não sabia o que dizer.- Não é possível acontecer nada entre nós - disse, procurando desviar o ataque desferido por Brian. - Ela é diferente, parece um... ser de outro planeta.- Ela é um ser de outro planeta - afirmou Brian, não dando chance de defesa.- Lembra? Estamos em outro mundo.- Não foi bem isso que eu quis dizer - expressou-se Guillermo, buscando se defender, comportando-se como um adolescente. - Ela

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parece uma loba... uma leoa... um animal selvagem com olhos encarnados.- Sabe, meu amigo, se as leoas fossem como Talemine, eu viajaria até a África e voltaria casado com uma - disse Brian, admitindo a beleza atraente da guerreira.— Onde você deixou seu caliente sangue espanhol?- Acho que esqueci tudo isso quando conheci aquela garota - admitiu Guillermo, acanhado.- Ora, vá até lá e diga o que você sente por ela — encorajou Brian com voz firme. — Não ouviu o que Roger falou? Ela também está interessada em você, e se comportou com tanta agressividade; deve ser o jeito dela de demonstrar que está apaixonada, ou algo assim.- E se Roger estiver equivocado? E se isso que vocês estão supondo for um enorme engano? - retrucou o espanhol, inseguro dos sentimentos de Talemine.- Eu não estou equivocado — garantiu Roger com bastante segurança. — A guerreira gosta mesmo de você.- Só há um problema - disse Brian, levantando uma questão. - Ouvi dizer que para conquistar uma garota faogard o pretendente tem que lutar com o pai dela.- O que você está dizendo? — perguntou Guillermo, num misto de revolta e desânimo.- É brincadeira, Guillermo - redimiu-se Brian, mas sem conter um sorriso de escárnio. — Entretanto, não sei se Rhuror vai concordar com a aproximação de você dois.

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Guillermo parou um pouco para pensar.— O que estou fazendo? — disse ele para si mesmo. — Em pouco tempo iremos embora e nunca mais verei Talemine. O mais sensato é não levar essa idéia adiante e esquecê-la de uma vez.- Não sei se eu desistiria de Talemine caso estivesse no seu lugar, Guillermo - disse Roger, em tom muito sério; seus olhos expressavam uma sinceridade angustiante. — Nunca contei isso pra vocês, mas quando eu ainda estava cursando o terceiro ano da Escola Internacional, pus os olhos pela primeira vez na mulher que me casaria onze anos depois. - Roger olhou no vazio, seus pensamentos viajaram no tempo. - Helen se destacava das outras meninas do colégio tal era a sua beleza; seus olhos eram grandes e expressivos e quando se cruzavam, por uma fração de segundos, com os meus, aquele momento parecia uma eternidade para mim, uma deliciosa eternidade. Eu era um jovem tímido e orgulhoso de meus sentimentos, e não me dava nenhuma oportunidade de aproximação com ela. Todos os dias, quando a sirene tocava, eu saía da sala de aula e aguardava, olhando de longe, Helen também sair da sua, abraçada aos livros e cadernos, rodeada pelas suas colegas e conversando efusivamente sobre a matéria da última aula ou coisa parecida. - Roger sustentou uma das mãos no parapeito da janela que dava para a rua e viu dois guerreiros, montados em seus cavalos listrados, os gifenontes, galoparem sem pressa em direção a um dos portões da

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cidade-fortaleza, a claridade da tarde que entrava pela janela assumia uma tonalidade amarelada quando tocava no assoalho do dormi-tório. Roger fazia questão de desabafar a sua melancolia com os companheiros. — Helen sorria fácil e cativava muita gente com sua simpatia. — Roger, então, sorriu ao se recordar de algo. — Às vezes, eu pegava um papel e uma caneta e me isolava em meu quarto ou debaixo de uma árvore e escrevia longas cartas declarando o meu amor por ela, depois rasgava tudo em pedacinhos e me certificava de que ninguém iria juntar e ler aquele monte de idiotices que eu havia escrito. Naquele instante eu me achava o garoto mais estúpido da escola, mas no dia seguinte, lá estava eu escrevendo tudo novamente. Eu era um tolo apaixonado, e nunca tive coragem de contar pra ninguém do que sentia pela minha Helen. - Guillermo e Brian ouviam em silêncio o depoimento do amigo. — Numa tarde de intenso calor, eu estava voltando da biblioteca e quando atravessei o jardim interno da escola, vi Helen conversando com um rapaz do quinto ano; os dois riam e pareciam ser muito íntimos, pelo menos foi dessa maneira que eu entendi; senti meu rosto ferver e a vontade que tive foi pegar aquele aluno e atirá-lo do penhasco para que as ondas enfurecidas acabassem com ele - ele apertava os punhos com força enquanto falava. - Mas sabem o que eu fiz? Nada. Segui o meu caminho e fui remoer o meu ciúme na beira da praia. Aquela raiva perdurou por muito tempo e toda a vez que eu

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cruzava com aquele aluno do quinto ano, sentia uma enorme vontade de surrá-lo no meio de todo mundo, e gritar bem alto, para que todos ouvissem, que nunca mais ele sorrisse ou sequer olhasse para ela. Mas qualquer ato de agressão, como vocês bem sabem, era sumariamente punido com a expulsão do infrator.Roger fez uma pausa e quando se deu conta que seus amigos estavam tão interessados em sua história, prosseguiu:- O tempo passava e eu não fazia idéia de que durante todos aqueles anos estava sendo observado e testado em segredo pelos membros da Sociedade do Círculo. Meus interesses se dividiam nos estudos e na adolescente que havia então se transformado na bela mulher que se tornaria a razão da minha felicidade.— E você, é claro, não se aproximou dela - deduziu Brian que havia acompanhado parte do drama que envolvia Roger e Helen. Brian e Roger, por pertencerem a turmas diferentes, só se tornaram amigos quando ficaram unidos pela Sociedade do Círculo de Pedra, quando concluíram o curso aos vinte e um anos.— Tentei algumas vezes, mas sempre havia alguma coisa que atrapalhava. Uma dessas vezes chegamos a conversar um pouco no intervalo de uma manhã de aula, mas era um daqueles dias de prova de final de semestre e não estávamos com cabeça para assuntos que interferissem com a nossa concentração. Numa outra ocasião, encontrei Helen sozinha entre as estantes da biblioteca, ela escolhia alguns livros sobre

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Biologia, sua matéria preferida; até ajudei-a a carregar os livros pesados até a mesa. Contei a ela da minha grande atração por Biologia, tudo mentira para impressioná-la, e no exato instante que senti que Helen estava preste a me convidar para sentar-me junto à ela, o sossego da biblioteca foi quebrado pelas suas colegas que ocuparam todas as cadeiras de nossa mesa. Acho até que Helen percebeu a minha decepção e perguntou se eu queria puxar uma cadeira e me juntar ao grupo; eu dei o sorriso mais amarelo do mundo e me desculpei dizendo que já tinha compromisso.Roger fez uma pequena pausa para avançar um pouco a sua narrativa:- Então veio o dia em que eu fui admitido pela Sociedade e tive a revelação do segredo do Portal. Achei aquela experiência fantástica e confesso que deixei a Helen um pouco de lado. Pouco depois, fui designado para uma missão junto aos membros da Sociedade incorporados na marinha do meu país para estabelecer estratégias de proteção à Ilha da Coroa em caso de guerra. Desde o grande conflito em 1914, na Europa, a situação passou a ser de cautela internacional, principalmente quando as tecnologias militares foram muito aprimoradas. A missão que deveria levar seis meses durou três anos, o que me afastou totalmente das coisas da Escola Internacional do Atlântico. Passei a me conformar de ter perdido Helen para sempre, sabem como é: um namorado firme ou algo assim - ele exemplificou enquanto virava uma

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jarra de água em um copo para molhar um pouco a garganta. - E se não fosse um namorado, o tempo também se esgotava para Helen que estava completando o último ano letivo na Ilha.- Sabia que o namoro de vocês foi um pouco conturbado — comentou Guillermo. — Mas não tinha noção de que havia tido tantos desencontros.Roger assentiu com a cabeça e continuou:- Um dia, fui chamado de volta, o meu trabalho na marinha havia terminado. A Sociedade queria que eu retornasse imediatamente à Ilha da Coroa.- Lembro bem dessa época - interrompeu novamente Guillermo. - Pois eu também havia sido introduzido um ano antes nos segredos do Portal.- E eu no ano anterior - completou Brian com saudosismo.- Era primavera quando o navio se aproximou da Ilha, de modo que eu podia avistar o prédio da Escola, a floresta e o monte Cabeça do Rei. Muitos sentimentos antigos despertaram em mim. Naquele exato momento passei a ver a Ilha da Coroa como a minha casa. Vaguei pelos lugares que não via há anos e encontrei muitos alunos novos que lotavam os espaços com a vitalidade típica da adolescência.Roger fez outra interrupção para admirar uma ave de asas muito brancas que planava enquanto escolhia um dos telhados de cerâmica cor de ferrugem de uma casa do outro lado da rua para,

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por fim, pousar. Ele então continuou a falar para os seus amigos.- A primavera deixava o jardim interno do prédio colorido de flores, e foi ali, num banco de finas tábuas corridas, que eu me sentei para lembrar-me da Helen. Ela costumava estudar as plantas do imenso jardim para preparar os seus estudos das aulas de botânica. Os perfumes das flores se misturavam e me devolviam as lembranças do meu tempo de estudante. Foi quando ouvi a voz dela. Roger, você voltou!Os olhos de Roger brilharam como se ele pudesse rever a cena.- Eu me levantei num susto de felicidade. Ela estava maravilhosa. Mais linda do que nunca. Os olhos grandes e expressivos, os cabelos menos compridos, mas igualmente harmoniosos em mechas suaves realçados por um pingente lindíssimo preso por uma corrente em seu pescoço — ele apertou, junto ao peito, a única lembrança que ainda possuía de Helen. — Evitei pronunciar qualquer palavra nos primeiros instantes, pois sabia que iria gaguejar e me comportar como um garotinho tolo. Em poucos minutos fiquei sabendo de tudo o que havia acontecido com ela durante os anos em que estive fora. Helen havia assumido a cadeira de Biologia e se tornara uma excelente professora, e fiquei ainda mais feliz quando ela me contou que, igual a nós, fazia parte da Sociedade do Círculo de Pedra. Bem, isso é claro que vocês sabiam - Roger sorria ao se recordar em detalhes daquele dia. — Decidi não perder mais tempo e ali

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mesmo, no meio das flores e plantas, me declarei pra ela, vigiado por dezenas de janelas do prédio que rodeava o jardim, como olhos curiosos a querer me intimidar. Helen ficou desorientada tal foi a minha ousadia, mas fui surpreendido quando ela disse que se apaixonou por mim na primeira vez que me viu, que teria muita vergonha se eu soubesse e que, vejam só, ela vivia escrevendo cartas de amor que nunca tinha coragem de me entregar. Rasgava todas.Roger fez uma expressão como um pai que dá um grande conselho ao filho e falou diretamente para Guillermo:- Levando em conta tudo que eu acabei de contar pra vocês, Guillermo, se você acha que vale à pena, não desista de Talemine. Eu perdi muito tempo e o destino quis me castigar me separando da Helen tão cedo. E agora - disse com amargura — não vejo como voltar no tempo e recuperar o que perdi. Dois anos, quatro meses e nove dias foi o tempo que levou entre a data do nosso casamento e o dia em que me despedi dela, em sua lápide.- Roger, desculpe a minha intromissão, mas... não acha que já está na hora de você voltar a viver? - aconselhou Brian, desejoso por ver o fim da agonia do companheiro.- Provavelmente você vai achar que eu estou louco, mas ainda, não sei como, alimento a esperança de trazer Helen de volta. Eu sei, eu sei que parece absurdo, mas se houver um meio de encontrá-la viva e poder tocá-la, eu farei qualquer coisa.

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Guillermo e Brian desconheciam esses sentimentos improváveis do amigo que sempre se mostrou frio e equilibrado.Roger sacudiu a cabeça como se quisesse atirar as tristes recordações para bem longe.- Chega! Quero sair um pouco, conhecer a cidade — disse, esfregando intensamente a testa.- Muito bem — aprovou Brian. — Prefiro vê-lo assim. Venha, vamos mostrar- lhe a agitação de Faogard: as avenidas, as construções exóticas, os carroções abarrotados de pedras de luminita que abastecem metade do continente e a grande feira na praça central. Sabia que os faogards veneram Sargaleu, o deus guerreiro? Nada mais apropriado, não é mesmo? — informou enquanto abria a porta do quarto, dando passagem para que Brian e Roger saíssem.A tarde deitava suas sombras preguiçosas sobre a cidade dos guerreiros e o dourado das nuvens anunciava o fim de outro dia em Faogard.

Capítulo 23Olhos de Prata

O grupo de aventureiros estava novamente completo.Roger mostrava a mesma expressão vigorosa anterior à surra sofrida para Rhuror, dias antes.Talemine, assumindo mais uma vez a função de instrutora, iniciou o dia com um comentário sobre Roger.

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- Dizem que você é um grande lutador, Roger. Só espero que seja mais dedicado com as armas do que como meu paciente.- Não tenho vocação para doente - retrucou ele no mesmo tom de disputa.- Vi quando lutou com meu pai e aprecio sua coragem, mas sem disciplina não vai aprender muita coisa sobre os modos de combate - provocou ela, procurando aflorar os brios de Roger.Chester cruzou os braços, confiante no compatriota; sabia que disciplina e determinação eram marcas fortes no caráter do professor.- É bom mesmo que pense assim — disse ele em resposta. - Quero ver se você é tão eficiente como guerreira como disseram meus amigos.- Vamos ver o que sabe fazer com a espada — disse Talemine, desembainhando a sua e mostrando outras para Roger no balcão de armas. - Pegue aquela que se sentir melhor, ela deverá defender a sua vida.Roger escolheu uma de lâmina espessa e empunhadura firme, de acordo com a sua compleição física robusta. Ele retornou e se pôs na frente da guerreira, a espada erguida.- Vai me atacar ou quer que eu o faça primeiro? - perguntou ele, sua mão movia a ponta da espada desenhando um "8" no ar.- Faremos assim, quem estiver em melhor posição faz o primeiro ataque — propôs ela, girando em volta de Roger que passou a movimentar-se oferecendo sempre a ponta da espada para a faogard.

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Talemine então atacou na velocidade do bote de uma serpente, mas encontrou Roger atento que a recebeu com um movimento rápido, suas lâminas se chocaram num estridente som metálico. A força do braço de Roger afastou a guerreira que voltou com mais cautela; ela havia percebido que não seria um combate fácil. O fato de Roger ter lutado com os encapuzados no desfiladeiro lhe deu a experiência de ter que ficar sempre alerta quando a luta envolvia armas cortantes. Além do mais, Roger era um boxeador experiente, acostumado a seqüências de ataques e defesas; mas também era um cavalheiro e não se sentia muito à vontade trocando golpes com uma mulher, mesmo sendo ela uma excelente guerreira.Talemine passou a provocá-lo com estocadas curtas para tentar distraí-lo e achar um jeito de acertar o seu peito ou, de preferência, a sua garganta, os pontos vitais. Roger não proporcionava nenhuma chance para as investidas da guerreira de cabelos vermelhos.Guillermo assistia com apreensão; de um lado seu amigo e do outro a sua amada; torcia que nenhum dos dois viesse a se machucar.Camine, agachada em um canto, buscava aprender, estudando em cada movimento, as falhas e os acertos.Roger testou uma estratégia, a de arrancar a espada da mão de Talemine com um golpe forte quando ela a esticasse, aproximando-a dele; porém, a idéia foi infrutífera, pois, espertamente, Talemine tirava o peso de sua espada a cada

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golpe mais violento de Roger e se colocava em guarda imediatamente.— Você é grande e forte - declarou ela, admitindo a dificuldade do embate. — Mas lhe falta técnica, e foi por isso que meu pai o venceu sem muito esforço.Roger manteve-se calado, aproveitou a distração de Talemine e, num giro rápido de sua lâmina, arrancou a espada da guerreira; a arma voou e caiu no solo ainda enlameado pela chuva do dia anterior.— Viu, moça faogard? Eu venci - disse Roger, baixando a sua espada, dando a luta por encerrada.Talemine saltou sobre Roger como uma leoa lança-se sobre uma zebra em fuga e pressionou sua faca contra o pescoço dele.— Eu venci - decretou ela. - Eu poderia separar a sua cabeça agora e expô-la como um troféu na minha parede.Talemine soltou-o e guardou sua faca. Ela ensinou.— Uma luta só acaba quando seu oponente está morto — disse ela a Roger. - Seus amigos já aprenderam essa lição.— Não vou esquecer disso - disse ele, reconhecendo que foi derrotado... pela segunda vez.— Tal pai, tal filha - comentou Guillermo com alguma provocação a Roger.Foi um dia intenso de treinamentos. Talemine passou a aplicar técnicas do uso da combinação de armas ao mesmo tempo: espada e martelo;

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faca e arco e flecha; martelo e faca. Ela ensinou a utilização do escudo como um dos últimos recursos em caso de uma batalha feroz.Os corpos dos contendores se entregavam de cansaço ao final de outro dia. O prazo estava para terminar; eles logo teriam que abandonar Faogard.- Como se sente, professor Roger? - quis saber Margaret enquanto depositava um martelo escuro e de cabo com tiras de couro trançadas, no balcão de armas.- Vivo! - disse ele, específico. — Eu estava, há muito, precisando de um dia como esse para afastar os meus fantasmas.- Fantasmas? — insistiu ela.- Fantasmas, mocinha, fantasmas - confirmou para ela com um olhar de docilidade e voz apagada.Guillermo não conseguia dormir direito à noite; o tempo estava se esgotando e ele ainda não sabia direito como se aproximar de Talemine. Lembrava de cada frase, cada palavra de Roger. Detestava a possibilidade de ir embora sem dizer o que sentia pela mulher dos seus sonhos. O fato de Guillermo ser um galanteador desde muito jovem, não o preparou para tal situação que estava enfrentando. Sentia que precisava fazer alguma coisa e muito, muito rapidamente.- Tenho que falar com ela amanhã mesmo - sussurrou ele para si mesmo, procurando não acordar os amigos; depois ficou parado olhando para o teto, os dedos tamborilando no colchão almofadado.

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- Não! Tem que ser hoje! Pensando bem, preciso fazer isso agora! — decidiu-se abruptamente, levantando-se da cama com cuidado para não acordar ninguém.Ele vestiu suas roupas e calçou as botas que entalaram um pouco antes que seus pés deslizassem até o fundo. Depois caminhou sorrateiramente em direção a porta.- Aonde você vai? - perguntou Brian erguendo a cabeça na penumbra do quarto. Somente um fio de luz penetrava obliquamente clareando com a sua luz azulada um canto da parede próximo a janela.- Vou falar com Talemine.- Mas agora? Sabe que horas são? - perguntou, apoiando-se em um cotovelo e esticando o relógio até a luz do luar que iluminara o mostrador. — Por Deus, homem, já entramos na madrugada.- Prefiro que seja desse jeito, amanhã não sei se terei coragem - argumentou Guillermo, fortemente determinado.- Isso é o que dá o Roger ficar colocando minhocas na sua cabeça — reclamou Brian, aceitando que o sono havia ido embora.- Deixe o espanhol fazer o que seu coração manda - disse Roger com voz sonolenta, os olhos cerrados. - Se ele for agora a garota vai aprovar a sua atitude audaciosa.Guillermo, se você precisar de ajuda me chame. Iremos juntos e faremos uma serenata debaixo da janela da moça - Roger ainda tinha esses raros lampejos de bom humor.

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- Como você pretende ir até a casa dela? Você nem sabe onde ela mora — alegou-se Brian, fazendo de tudo para desencorajá-lo.- Margaret deve saber. Ela vivia andando com Camine para todos os lados - lembrou-se Guillermo enquanto agarrava a maçaneta da porta e abrindo uma fresta, preparando-se para sair.- Não ouse envolver Margaret nesse seu desvario inconseqüente, ela é só uma menina - protestou Brian energicamente.Brian tinha toda a razão. Guillermo era impulsivo e emocional em certas ocasiões. E normalmente, as coisas não terminavam conforme fora planejado. Certa vez, de férias em Salamanca, na Espanha, Guillermo se engraçou com uma morena de olhos amendoados, descobrindo o endereço dela, e à noite, foi jogar pedrinhas em sua janela para entregar um bilhete com versos melosos. Só que ele não sabia que a linda morena era mulher de um policial mal-humorado, e muito ciumento. Até hoje, Guillermo não sabe como escapou das balas que zuniram em seu ouvido. A verdade é que ele somente se considerou a salvo quando pegou um navio de volta para a Ilha da Coroa. Passagens como essa eram bem comuns na vida do espanhol.- Margaret não é mais uma menininha — retorquiu Guillermo com veemência. - E acho que ela vai gostar de me ajudar a conquistar Talemine.- Então, vejamos — preparou-se Brian. — Você vai até a casa da guerreira de olhos rubros,

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acorda ela e a família dela, o pai da garota fica furioso e nos expulsa da cidade sem nos ajudar com armas e suprimentos - Brian se levantou e começou a se vestir, depois voltou-se para Guillermo: - E nos arriscamos de sofrermos alguma punição mais severa por termos ofendido a honra da moça. Não conhecemos muito bem os costumes desse povo.- Talemine é uma guerreira, Brian — defendeu-se Guillermo. — Luta melhor do que nós três juntos. Quase fui morto por ela nesses últimos dias. Até o Roger passou apuros com uma faca no pescoço.- É? E o que você tem em mente? — pressionou Brian. — Colocá-la na garupa do seu cavalo e cruzar o continente; e quem sabe, atravessar o portal levando um ser mitológico para o nosso mundo?- Não sei — respondeu, cheio de dúvidas. — Mas se não falar com ela nesse momento, nunca vou saber o que pode acontecer. E você? Por que está se vestindo?- perguntou a Brian que acabara de afivelar o cinto.- Ora, que pergunta. Vou com você. Caso se meta em confusão, alguém tem que ajudá-lo a se safar, você não acha?Os dois deixaram o dormitório e Roger só fez virar de lado e continuar dormindo.Margaret abriu a porta, sonolenta. Quando soube da história toda ela prontamente ofereceu-se para ajudar.

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Depois de minutos, os três estavam descendo a rua deserta iluminada fracamente pelos postes de luminita; Margaret como guia, Brian e Guillermo olhando à volta, torcendo para que nenhum soldado aparecesse. A sorte deles era que naquela hora a maioria dos guerreiros dormia; uma parte deles montava guarda nas muralhas e o último grupo, dividido em patrulhas, executava rondas pelo território distante.Eles entraram por uma rua de residências suntuosas que, até então, somente Margaret conhecia. Era um pequeno bairro habitado pela classe mais importante daquela estranha sociedade. Não que as outras moradias fossem casebres, pois todas ofereciam dignidade aos seus donos, entretanto, era notória a diferenciação do povo faogard naquela parte da cidade.— É aquela a casa dela — informou Margaret, apontando.A casa, de dois andares, era ampla e sofisticada. Deveria pertencer mesmo a alguém muito importante como um comandante de tropas. Duas árvores altas esticavam seus galhos emoldurando um arco natural na entrada que dava para o jardim. As paredes da casa eram levemente inclinadas para dentro, e pontos pequenos de luminita, cravejados nas paredes, circundavam a construção dando um toque de sofisticação à propriedade. Uma sacada formava um falso terceiro pavimento, como a servir de torre de vigia. Um jardim bem cuidado ornava a

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entrada que terminava em uma porta sólida de madeira clara de cor indefinida pelas sombras. Não havia muros em volta, o que facilitou a aproximação dos inesperados visitantes.— O que você vai fazer agora? — perguntou Brian, curioso. — Bater na porta e dizer: Sr. Rhuror, eu amo a sua querida Talemine e quero me casar com ela, e logo após a cerimônia vou partir com sua filha e atravessar o portal. É óbvio que o senhor nunca mais a verá, mas pode ter certeza que eu cuidarei bem dela — dramatizou, agitando os braços em gestos exagerados.— Cale essa boca! Você só está conseguindo me deixar mais nervoso - murmurou com visível irritação.— O senhor pode tentar a janela do quarto dela — sugeriu Margaret, indicando um lado da casa.Margaret, Guillermo e Brian contornaram a fachada da casa e passaram por uma trilha de arbustos cortados em forma de cúpulas num arranjo bastante interessante.Margaret estava adorando participar de tudo aquilo. Estava sendo mágico para ela. Gostava de Talemine, e também gostava do professor Guillermo, e seria ótimo vê-los juntos.- É ali que ela dorme — avisou a menina enquanto esticava o braço para uma janela do segundo pavimento.- Muito bem, estamos aqui. O que acontece agora? - procurou saber Brian.- Você sabe cantar? — perguntou Guillermo ao amigo inglês.

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- Você náo tem um plano? — indignou-se Brian, abrindo os braços.- Eu nunca disse que tinha um plano - justificou-se o espanhol.Os dois passaram a discutir tão alto que o resultado não poderia ser outro.- O que vocês estão fazendo aqui fora, na minha casa? - apresentou-se Rhuror com voz grave, saindo no jardim, sua espada pendia da cintura.- Bem, quero dizer... podemos explicar, senhor — atrapalhou-se Guillermo, vendo tudo ir por água abaixo.Uma das janelas do segundo andar se abriu. Camine e Talemine apareceram pelo retângulo escuro na parede; logicamente não compreendiam o que acontecia; uma terceira cabeça surgiu sobre as das duas irmãs, era a de uma mulher mais velha, os traços eram finos e atraentes; Brian e Guillermo concluíram que a mulher só podia ser a mãe das jovens guerreiras; Margaret já possuía essa informação. Era Feneliane, a mulher discreta e de poucas palavras, matriarca da família.- Falem logo! O que vieram fazer na minha casa sem serem chamados? - enfureceu-se Rhuror, avançando em tom de ameaça.Margaret tomou a iniciativa.- Sabe o que é, senhor Rhuror? O professor Guillermo está gostando muito da sua filha, Talemine — revelou a garota, sem rodeios. - Bem, ele quer casar com ela... eu acho.A reação de Rhuror foi de perplexidade. Camine e Talemine se entreolharam lá do alto e Feneliane

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manteve-se impassível.- Pronto — sussurrou Brian a Guillermo. — Agora está feito, não há mais como voltar atrás.Guillermo ainda pôde ouvir Feneliane falar com as filhas.- Fechem a janela e deixem seu pai resolver isso.Um enorme animal negro de olhos cinzas que refletiam as luzes da casa apareceu ao lado de Rhuror. Kranalk era ainda mais apavorante à noite e Guillermo e Brian se assustaram com o tamanho e o aspecto feroz do bicho.Margaret notou o sobressalto dos seus professores e tratou de acalmá-los.- Ah... não se preocupem. Ele não faz nada. E muito bonzinho - disse, afagando o focinho da fera negra.— Existem severas regras entre a minha gente — avisou Rhuror com austeridade, sua expressão era dura como o aço. - Voltem para os seus aposentos e amanhã trataremos disso.Guillermo desejou boa noite a Rhuror, mas as palavras quase não saíram de seus lábios. Brian pegou Margaret pela mão e a garota ainda teve tempo de acenar despretensiosamente para o guerreiro que permaneceu estacado, olhando-os se afastarem na noite.— Por que fui entrar nessa confusão? - lastimou-se Brian, correndo as mãos pela cabeça.— Agora está feito - disse Margaret, como se nada tivesse acontecido. — Pelo menos ela sabe dos seus sentimentos, professor.— Sabe, Margaret? Você fez bem em falar - aprovou Guillermo, aliviado como se a gigantesca

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montanha de luminita fosse tirada de seus ombros.— O melhor lugar do mundo agora é a minha cama - disse Brian, apertando os olhos, os três viraram a última esquina, fazendo o caminho de volta.Outro dia, mais treinamentos rigorosos, mais sons de armas se encontrando violentamente e flechas assobiando no ar.Talemine estava diferente; falava pouco e evitava olhar diretamente para Guillermo.Roger havia ficado a par de tudo pela boca de Brian e Margaret se encarregou de contar aos garotos, de maneira teatral, as desventuras de Guillermo.Margaret e Camine, afastadas para que ninguém ouvisse do que falavam, cuidavam das reações dos pretensos enamorados e trocavam informações como cupidos prontos a atacar. Camine contou a amiga que seu pai, o comandante Rhuror, fechou-se em uma sala com Feneliane e Talemine, e lá ficaram trancados por um tempo considerável até pouco antes das jovens guerreiras saírem para o campo de treinamento naquela manhã.— E sua irmã comentou com você alguma coisa sobre ontem? — quis saber Margaret com imensa curiosidade.— Não me disse nada - respondeu Camine, francamente. - Mas de uma coisa eu sei já faz alguns dias: minha irmã também está apaixonada pelo seu professor.— Como você tem tanta certeza?

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— Simples, ela me disse.— E por que você não me contou? — perguntou Margaret, surpresa, sentindo-se traída por Camine.- Ela me pediu para guardar segredo, mas agora o melhor que eu tenho a fazer é ajudá-la, espalhando para todo mundo que ela é louca por Guillermo.- Todo aquele constrangimento de ontem poderia ser evitado se eu soubesse antes dos sentimentos de Talemine pelo professor Guillermo — disse Margaret, como se fosse responsável pelo destino dos dois.Margaret fez uma pausa quando algo lhe ocorreu. Ela olhou diretamente para Camine.- E o seu pai, o que acha que ele vai fazer?- Não sei muito bem, vai depender se ele gosta ou não de Guillermo — disse, balançando a cabeça com uma grande expressão de dúvida.- E você acha que ele gosta?Camine encarou Margaret com incerteza no olhar.- Não sei como o meu pai vai reagir nesse caso. Ele é muito imprevisível quando existem situações que envolvem eu e minha irmã.- O que vocês duas estão fazendo aí, paradas? - gritou Talemine, com rigoroso tom militar na voz. — As armas! Lutem!Camine e Margaret se viraram uma para a outra e entraram em ação.No intervalo da manhã, pela hora do almoço, Margaret foi correndo contar para Guillermo a boa-nova.

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- Você tem certeza que Talemine está interessada em mim? — perguntou outra vez para se certificar.- Camine me garantiu. Ela não iria brincar com uma coisa tão séria — disse Margaret, as sobrancelhas contraídas, passando seriedade.- Bem, nesse caso eu vou falar com ela ainda hoje — disse, olhando para o vazio.- Camine está ajeitando tudo, convencendo Talemine para que vocês se encontrem. Deixe por nossa conta e eu o mantenho informado, professor.Guillermo sorriu para a jovem amiga.- Você está se saindo um excelente cupido.- Eu sei — concordou ela, toda convencida. — Adoro tramar essas coisas.Após os exercícios, Margaret voltou a se encontrar com Guillermo, o sol começava a querer se esconder nos telhados das casas.- Ela concordou em vê-lo - disse Margaret, radiante.- E onde eu a encontro? — perguntou com grande ansiedade, seu semblante tinha um ar juvenil.- Ela estará esperando o senhor em um pequeno bosque, nos fundos do templo de Sargaleu, o deus protetor dos faogards. Fica ao sul daqui. Eu sei bem como chegar até lá.- Deixe-me ver... como eu estou? — indagou Guillermo, preocupado com a aparência, arrumando os cabelos de maneira improvisada.- Está ótimo! Vamos logo, o senhor náo pode se demorar. Não é educado se atrasar no primeiro

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encontro.- Eu sei, mas... preciso levar alguma coisa para oferecer a ela.- Pegue algumas flores pelo caminho. A cidade tem muitas casas ajardinadas. Talemine certamente gostará. Não existe mulher que não adore flores.Guillermo seguiu o conselho da esperta garota e colheu todas as belas flores vermelhas do canteiro de uma janela. O dono não teria gostado nem um pouco, caso tivesse visto.Quando Guillermo e Margaret chegaram jia entrada do templo, ainda havia algum sol iluminando o final da tarde.O templo era majestoso. A construção mais imponente que Guillermo vira em Faogard. Duas colunas escuras ladeavam a entrada do prédio construído com lajotas de pedras de um amarelo esmaecido. No alto da fachada a imagem esculpida do deus guerreiro, o olhar lançado ao infinito. Sua cabeça era adornada por um elmo cravejado de luminitas que, brilhavam à noite. A mão direita sustentava um martelo, como para evidenciar o seu imenso poder, e a outra detinha um longo escudo grudado ao lado do tronco.- Dê a volta no templo e encontrará o bosque - instruiu Margaret. — Bem, eu fico por aqui. Desejo-lhe sorte, professor. Ahh... como eu gostaria de ver vocês dois se encontrando - suspirou ela, sonhadora.Guillermo agora estava sozinho.As poucas pessoas que restavam no lugar foram tomando o caminho de suas casas.

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A adoração ao deus guerreiro sempre devia ser feita durante o dia, pois a imagem de Sargaleu era ligada ao esplendor dos raios solares, por isso as áreas do templo estarem praticamente desertas àquela hora.Guillermo seguiu a orientação de Margaret e dirigiu-se para os fundos do templo.O bosque dedicado ao deus tinha uma vegetação luxuriante. Árvores frutíferas que os devotos visitavam para meditar e colher os frutos e levá-los em oferenda ao interior do templo. Pássaros recolhiam-se aos seus ninhos, promovendo ruídos estridentes que enchiam a floresta de vida e alegria.Em meio às árvores, sentada em um banco de pedra, se encontrava a jovem guerreira. Um vestido de seda branco amarrado pela cintura fazia Talemine parecer mais com uma deusa e nada lembrava que ela era um membro do exército faogard.Guillermo cuidou para manter as flores longe dos olhos de Talemine e deixou-as escondidas atrás das costas.- Pensei por um momento que não viesse - disse ela, erguendo os olhos escarlates para Guillermo. Os cabelos assumiram um vermelho ainda mais vivo ao contrastarem com o seu vestido imaculado.- Também tive receio que você não estivesse aqui - admitiu ele, encantado com a beleza da jovem.Guillermo olhou a sua volta, os últimos brilhos do sol viajavam por entre as folhas conferindo um

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aspecto de magia ao bosque.- Esse lugar é lindo - comentou Guillermo. - Combina com você.Talemine sorriu. Era outra pessoa, muito diferente da instrutora de armas severa e aguerrida.Então, Guillermo notou que alguma coisa estava acontecendo com Talemine. Os olhos dela estavam mudando a cor de vermelhos para prateados. Talemine agora possuía duas esferas de prata fitando o espanhol. Guillermo conseguia ver com clareza o seu próprio reflexo nos cintilantes olhos da moça.- O que está acontecendo? Você está bem, Talemine? — perguntou, impressionado diante da imagem sobrenatural em que se transformara a garota. Ele se curvou e olhou diretamente no rosto da faogard.Ela sorriu novamente e começou a falar.- Essas flores, essas nove lindas sarmissínias vermelhas, são para mim?Guillermo ficou ainda mais confuso, pois as flores continuavam ocultas atrás dele. Ela não poderia ter visto e menos ainda saber quantas eram. E eram realmente nove flores como Talemine havia mencionado.- O que você fez? Leu meus pensamentos?- Não - riu Talemine diante da perplexidade dele. — Mas eu conto se você me disser porque trouxe essas flores.- Ah... claro que sim. São pra você — disse, passando o ramalhete às mãos de Talemine.

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Os olhos dela tornaram-se vermelhos novamente.- Olhe para trás, o que está vendo? - perguntou ela.Guillermo olhou e só via árvores e arbustos.- Olhe melhor - insistiu ela.Guillermo tornou a olhar e só aí percebeu que, disfarçados entre os ramos de uma das árvores, havia algumas mechas de cabelos vermelhos.- Tudo bem, Camine, pode vir! — gritou Talemine.Camine apareceu e aproximou-se.- Oi, Guillermo! Gostou da brincadeira?- Como assim? Que brincadeira? O que vocês fizeram?- Você já vai entender - disse Talemine.Os olhos de Talemine mudaram de vermelho à prata reluzente mais uma vez. E dessa vez, os de Camine ficaram igualmente prateados.- Vou explicar — começou Talemine. — Quando eu e Camine entramos nesse estágio de percepção, temos a capacidade de vermos tudo o que a outra enxerga. Quando os meus olhos mudaram de tonalidade, como agora, eu estava vendo pela perspectiva de Camine.- E eu via o seu rosto apavorado - disse Camine a Guillermo, em tom de brincadeira.- Isso é fantástico! - disse ele, maravilhado, fazendo crescer ainda mais sua admiração por Talemine.- Mas não são todos que têm essa habilidade - explicou Talemine, os olhos das irmãs voltaram novamente ao normal. - Isso acontece apenas

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entre irmãs, os homens não desenvolvem essa aptidão. Nós chamamos esse fenômeno de Visão em Espelho.- E mesmo assim, não são todas as mulheres que possuem o poder de enxergar pelos olhos da irmã. Na verdade é muito raro isso vir a acontecer - contou Camine, orgulhosa, abraçando a cintura de Talemine.- E tem mais uma coisa - completou Talemine. - A Visão em Espelho só acontece quando as duas concordam em fazer. Isso evita que uma fique bisbilhotando a outra sem o consentimento — disse com ar de repreensão para Camine.- Vejo você em casa — disse Camine a Talemine. E saiu correndo.Guillermo ficou olhando por algum tempo a menina ir embora e voltou-se para Talemine.- Você vive me surpreendendo — disse ele em tom de elogio. — Luta como um homem, tem poderes como os de uma feiticeira e... a beleza de uma deusa.- Agora não eram só os olhos e os cabelos de Talemine que estavam vermelhos, mas sua pele enrubesceu nas palavras gentis do espanhol.Guillermo fez uma pausa e se preparou para dizer algo muito importante.- Quero ficar com você, Talemine. Tenho uma missão a cumprir, a de levar aqueles garotos a salvo até o meu mundo, mas se me aceitar, um dia eu volto pra viver ao seu lado, pra sempre.Talemine viu sinceridade na voz de Guillermo. Seus olhos negros transmitiam um enorme sentimento de carinho. E ela entendeu.

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Guillermo não se conteve e a puxou... o beijo aconteceu no meio do bosque, no exato momento em que os poucos postes se iluminavam com a chegada da noite.Guillermo acompanhou Talemine até a uma quadra de casa. Não queria arranjar mais confusão com Rhuror. Quando retornava aos seus aposentos foi interceptado por Parminiaf, o suboficial da guarda de Rhuror e mais dois soldados que o forçaram a mudar de caminho. A única coisa que passou pela cabeça de Guillermo foi a figura de Rhuror desafiando-o para um embate regado a martelos e espadas.O local já era um velho conhecido do espanhol. A sala de interrogatórios de Rhuror.Quando Guillermo entrou, viu Rhuror atrás de sua mesa; o comandante guerreiro fez um sinal para que ele se sentasse. Os soldados foram dispensados deixando os dois a sós.- Certamente você sabe porque eu o chamei aqui - disse Rhuror, os olhos ferozes sob as sobrancelhas espessas.- Sei muito bem, senhor - disse Guillermo, educadamente.- E é claro que sabe o quanto amo a minha filha.Guillermo assentiu com a cabeça.- E também sabe que fico furioso se alguém a magoa.Guillermo estava em seu limite e não suportou.- Senhor Rhuror, eu amo a sua filha. Amo, amo muito Talemine e quero me casar, me unir a ela, contrair núpcias, ou seja lá o que for que vocês chamam de casamento.

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Guillermo levantou-se, sua paciência havia se evaporado.- Sei que você é um guerreiro, um homem dado às armas, mas mesmo assim estou disposto a enfrentá-lo nesse seu maldito ritual de luta para que me aceite como pretendente de Talemine. Então diga logo quando lutaremos. Agora mesmo? Amanhã ao nascer do sol? Acabemos logo com isso.Rhuror ficou olhando, por um breve instante, a inusitada reação de Guillermo. Em seguida se pronunciou:- De que luta você está falando? — perguntou, uma das sobrancelhas se ergueu mostrando ainda mais seu olho cor de sangue.- Ora, não temos que lutar para que o senhor concorde que eu namore Talemine?- De onde você tirou essa idéia idiota? - perguntou, franzindo a testa.- Bem, eu pensei... como vocês são um povo guerreiro, eu achei que essas coisas fossem decididas dessa maneira... Não são?- Não, não são — disse Rhuror, resoluto. — Eu havia chamado você aqui para saber como pretende alguma coisa com Talemine se vocês vão embora dentro de poucos dias?Guillermo voltou a sentar-se.- Conversei com ela e expliquei que tenho o dever de conduzir os meninos de volta ao mundo deles, mas depois eu disse a sua filha que voltaria, e também disse a Talemine que quero muito me casar com ela e morar aqui pelo resto de minha vida.

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- Talemine é adulta e sabe o que faz - disse Rhuror, as duas mãos abertas sobre a mesa, parecendo patas de urso de tão grandes.Guillermo imaginou que não teria nenhuma chance em ficar vivo caso lutasse. Então, deu graças aos céus por não ter de enfrentar o guerreiro. Rhuror continuou explanando.- Hoje, pela manhã, eu conversei com ela sobre vocês dois e Talemine admitiu que gosta muito de você. E me disse mais: que tinha alguma esperança que você ficasse em Faogard. Eu duvidei dessa possibilidade. Ela me disse então que resolveria isso de algum jeito.Uma simpatia estava nascendo por parte de Guillermo. Rhuror, o guerreiro cruel, estava dando lugar ao homem ponderado e pai afetuoso.- Não quero e não vou desapontá-la e nem a você, Rhuror - posicionou-se com grande sinceridade.Os dois permaneceram em silêncio por pouco tempo.- Pode ir agora — Rhuror disse por fim.

Capítulo 24A Desforra

A praça central estava sendo toda ornamentada com bandeirolas e lamparinas coloridas. Um palanque circular recebia os últimos retoques para, provavelmente, receber as autoridades locais que deveriam se pronunciar como era

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comum às grandes festas nacionais. Os comerciantes enfeitavam suas barracas com fitas multicores. Flores de todas as espécies enchiam os cestos de vime que eram colocados sobre os balcões abarrotados de frutas, doces e outras guloseimas...- O que está havendo? — perguntou Daniel, desviando-se das caixas e outros objetos espalhados pelo chão.- É a festa anual de veneração a Sargaleu — disse Margaret, como sempre, muito bem informada. - Ela começa hoje quando o sol estiver a pino, e atravessa a noite, terminando amanhã no mesmo horário. Camine me disse que tem muita música, dança e comilança sem parar.- E poderemos participar? — perguntou Marc, inclinado a festas.- Camine nada falou sobre isso, mas acho que não haverá problema? — disse Margaret, dando um esbarrão em um homem que trazia uma pilha de pães decorados com pingos de caramelo; o cheiro da comida era estonteante.Os exercícios só duraram até o final daquela manhã. Mas uma coisa ficou bem clara:- Pronto, perdemos a nossa instrutora. Agora ela só quer treinar o espanhol - observou Brian enquanto trocava golpes com Roger.- Ponham as suas melhores roupas e vamos para a festa - proferiu Camine com grande ânimo.- Que roupa? Não temos melhores roupas — lembrou Chester. — No máximo vamos tomar um banho e trocar de camisa.

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- Não fale por mim, Camine me emprestou um vestido bem bonito — disse Margaret, toda pomposa.A festa já havia começado quando eles voltaram à praça. Fogos de artifício cruzavam o céu, lançando luzes de diversas cores para todos os lados; alguns deles terminavam explodindo em estampidos ensurdecedores...Uma grande multidão de cabeças vermelhas entupiu a praça. Mal se podia andar. Parecia que toda a população de Faogard se concentrava naquele espaço, mas seria um grande equívoco pensar assim. Os habitantes se organizavam em vastas concentrações; nas praças, nos templos e nas aldeias distribuídas por todo o território faogard.De repente a multidão silenciou. Um homem de vestes escuras e longas tomou lugar no palanque e começou a discursar na língua local.— É o sacerdote - avisou Camine, de pé entre Margaret, usando seu vestido novo com rendas nas mangas e na gola, e Rafael. — Ele vai dar início ao cerimonial.Em dados momentos o povo ovacionava e o sacerdote continuava seu discurso em tom de oração.Outro homem, bem mais velho, subiu no palanque escoltado por seis soldados em trajes de gala, sendo recebido entusiasticamente. Ele era bem mais velho e se trajava com maior requinte que o sacerdote. Uma pesada capa azul cobria as suas costas e uma fina liga de ouro

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contornava a sua cabeça afirmando sua condição de nobreza.— Quem é aquele? — perguntou Margaret a Camine.— Ora, é o rei — disse, se esticando nas pontas dos pés, buscando uma visão mais adequada.— Vocês têm um rei? — surpreendeu-se Rafael que também ouvira Camine.— É obvio que temos — confirmou a menina. — Todas essas terras fazem parte de um reino, Faogard. Vocês não sabiam?— Um rei? Um rei de verdade, como os ingleses? - perguntou Rafael sobre a novidade. Alguém olhou para trás fazendo uma cara de quem quer silêncio.Camine baixou a voz.— Quem são esses... ingleses? — perguntou Camine.— Eu sou inglesa! — ofendeu-se Margaret, pelo fato da amiga não saber esse detalhe.— Você nunca me disse isso - lembrou Camine, desconhecendo de verdade a origem de Margaret.— O rei de vocês, como se chama? - perguntou Rafael, sussurrando ao ouvido de Camine.— Tuldoror - disse ela. - Ele é um homem muito ocupado e quase não aparece em público. Nem minha mãe consegue falar com ele direito.— O que tem a sua mãe a ver com o rei? - indagou Rafael.— Ora, ela é a filha dele - disse com naturalidade.— Filha dele? - repetiu Margaret com grande espanto.

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— Espere um pouco - disse Rafael, pensando melhor. - Se a sua mãe é filha dele, então Talemine é uma princesa... e futura rainha, estou certo?— Naturalmente - respondeu Camine.— E você é filha de uma princesa, como nos contos de fada, Camine — descreveu Margaret, feliz da vida.A notícia foi sendo transmitida para aquele que estava à direita do anterior: de Margaret para Chester, que contou para Marc e este a Daniel, que tratou logo de avisar a Brian, que por sua vez disse a Roger que tinha Guillermo ao seu lado. Roger nada falou, por enquanto.Guillermo sentiu uma mão se entrelaçar na sua.— Não foi difícil encontrá-lo no meio de tanta gente, cabelos negros - disse Talemine.Guillermo sorriu apertando forte a mão da guerreira. Ela usava um vestido tão azul como o céu da manhã, e motivos prateados valorizavam as finas alças que pendiam dos ombros, combinando com uma elegante gargantilha de prata.— O rei - sussurrou Roger a Guillermo, inclinando a cabeça para que ele ouvisse, sem desviar o olhar do palanque.— O que tem ele? — perguntou o espanhol, inocentemente.— É o avô de Talemine.— Avô de Talemine?Roger balançou a cabeça positivamente para confirmar.

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— Isso é verdade, Olhos-de-rubi? — perguntou Guillermo voltando-se rapidamente para Talemine.Talemine confirmou tudo, o seu estreito grau de parentesco com a nobreza faogard e como aquilo náo alterava em nada a sua vida. O mais importante para ela era ser uma guerreira e, se necessário fosse, lutar até a morte para sempre garantir liberdade de seu povo. Ela havia aprendido esses valores desde criança com seus pais ou mesmo na escola, e esses ensinamentos eram comuns a todos em Faogard.As comemorações invadiram a noite e dos salões se ouviam música e os pés ritmados dos dançarinos faogards batendo forte no chão de tábuas corridas. Brian não pôde deixar de notar alguma semelhança com as rápidas e contagiantes danças irlandesas. Ele e o restante do seu grupo ocuparam uma mesa comprida próxima a uma das bandas que animavam a festança.— Acho que os dois estão mesmo se acertando - disse Brian a Margaret que sentava do outro lado da mesa, referindo-se a Guillermo e sua nova namorada, que não se largavam o tempo todo.Parminiaf surgiu do meio da confusão e foi até Marc, estendendo até o menino a flauta que havia tomado fazia dias. Marc hesitou em pegá-la de volta.— Ele está devolvendo a flauta pra você — disse Camine. — Pegue!Marc abriu um enorme sorriso.

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- Diga a ele que eu fiquei muito feliz em ter a flauta de volta e que estou agradecido por ele cuidar tão bem dela — tocou-a com cuidado, admirando os fios de ouro que mantinham presos os tubos do instrumento.Parminiaf não sorriu de volta quando Camine fez a tradução, mas estava claro que o soldado se sentiu bem em unir novamente o menino e a sua flauta.Marc pendurou novamente o seu tesouro no pescoço e murmurou carinhosamente para ela:- Você fica melhor aqui comigo. Não vou deixá-la mais se separar de mim.Margaret olhou de lado e viu Rhuror de costas para eles, um ombro apoiado a uma das colunas que rodeavam a varanda de um dos salões. O faogard, isolado dos outros, parecia envolto em pensamentos.- Eu já volto - disse ela aos que quisessem ouvir.A menina parou ao lado de Rhuror e puxou assunto.- O professor Guillermo é um homem muito bom.Rhuror olhou para baixo.- Eu sei. Caso contrário não deixaria ele se aproximar da minha filha.- Sentirei falta da sua Faogard, e da minha amiga Camine - entristeceu-se ela.Rhuror sentou-se no degrau da varanda e foi imitado por Margaret.- Percebo que vocês ficaram muito amigas.- Se eu lhe dissesse que ela foi a melhor amiga que eu tive em toda a minha vida, o senhor acreditaria?

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-Vejamos... — Fez ele uma exagerada expressão de quem está cheio de dúvidas, depois sorriu. — Acredito em você, Margaret. Humm, Margaret, o que significa o seu nome?- É o nome de uma flor que nasce em meu mundo, senhor.- Deve ser bonita que nem você, imagino.Margaret riu sem jeito.- E o seu, senhor Rhuror? É um nome forte de se pronunciar.- Rhuror, quer dizer furioso.- Bastante apropriado - julgou ela.Dessa vez foi Rhuror quem riu do comentário.- Faogard também é um nome muito bonito e expressivo - ela comentou.- Você tem toda razão. Faogard significa: Lugar do Guerreiro ou Caminho do Guerreiro. É o que nós somos.- A propósito — disse ela. — Faogard é só a cidade murada?- Não, claro que não. Existem as aldeias nas terras férteis a leste e ao sul daqui.— Margaret! Venha logo! — chamou Camine. — Eles vão dar outro espetáculo com os fogos-voadores.Rhuror ficou ali sentado, solitário, imaginando o que seria dos meninos, da amiguinha de sua filha, de uma noite em que sua filha Camine chegou até ele e comentou com tristeza: É MUITO PROVÁVEL QUE MARGARET E OS AMIGOS DELA MORRAM, NÃO É PAPAI? E ele disse que sim. Rhuror não escondia tais coisas nem de Camine, sua caçula. Não era do seu feitio. Criava as filhas mostrando

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o lado verdadeiro e prático da vida. No entanto, saber que um bando de crianças marcharia para a morte era algo que o estava incomodando. Lamentou ter se afeiçoado a eles. Teria sido melhor se os tivesse deixado ir embora no primeiro dia em que os viu. Talvez, se falasse com eles, poderia pensar em um jeito de ajudá-los de verdade.Os fogos brilharam e explodiram até o último se apagar em aplausos.Rhuror ergueu-se e foi até à mesa dos forasteiros.— Sente-se conosco - convidou Brian, educadafnente.Rhuror arrumou um lugar entre Camine e Daniel.— Recuperou-se muito bem, senhor Roger.Roger não respondeu e considerou o comentário uma provocação. Rhuror falou novamente.— Pelo que entendi, ainda existe uma ferida que não cicatrizou — ele encarou Roger com olhos frios. — A do seu orgulho.— Tenho muita dificuldade em aceitar uma derrota injusta - disparou Roger, a língua provocadora.— Não foi injusta, estrangeiro. Usávamos as mesmas armas quando quase acabei com a sua vida.— Admito que você é muito bom usando as suas armas, mas será que é igualmente bom sem elas?Guillermo, que até então permanecia quieto ao lado de Roger, intercedeu.— Senhores, a festa está linda e há crianças na mesa.

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— Professor, eu não sou criança — retrucou Margaret, gentilmente.A interferência de Guillermo foi inútil.— O que você sugere, forasteiro? Uma revanche?— Eu não diria isso - corrigiu Roger. - Mas, poderíamos testar um outro estilo de confronto. Apenas utilizando as mãos, sem nenhuma outra arma.Rhuror avaliou a proposta de Roger e disse:— Acho que vou gostar de ver o que você tem para nos mostrar. - E anunciou: — Quando o sol aparecer, nós dois estaremos nessa praça acertando todas as nossas diferenças e vença quem vencer...— Não haverá ressentimentos - completou Roger, satisfeito.Rhuror afastou-se com a intenção de avisar sobre a luta da manhã seguinte.Brian e Guillermo chamaram Roger a um canto.— Aquelas pancadas na sua cabeça acabaram com o seu juízo? - questionou Guillermo, revoltado. — Conseguir uma luta com aquele brutamontes às vésperas da nossa partida.— Eu sei o que estou fazendo - disse Roger, calmamente.— E se ele te der outra surra, como faremos para ir embora com você todo arrebentado? - perguntou Brian, querendo fazer Roger desistir.— Eu sei o que estou fazendo — repetiu Roger, a mesma expressão tranqüila.— Já ficamos muitos dias parados. Não podemos nos atrasar mais, e se algo lhe acontecer, a nossa missão poderá ficar totalmente

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comprometida. — Lembrou Guillermo, segurando Roger pelo braço.— Brian. Guillermo. Eu sei o que estou fazendo — disse outra vez no mesmo tom de voz.— Eu desisto — entregou-se Guillermo. — Vou procurar Talemine.As festividades não pararam um só minuto e avançaram pela madrugada.Roger, pela primeira vez desde que chegou a Faogard, não dormia um sono tão reparador.De manhãzinha, quando Roger voltou de seu descanso, teve dificuldade de chegar até o centro da praça central, tal a quantidade de gente que se acotovelava para assistir aos mesmos contendores se enfrentarem em menos de dez dias, em plenas comemorações ao deus guerreiro.Brian e os garotos o seguiam de perto.— Não deixe ele chegar muito perto - aconselhou Brian. - Você é mais rápido, pode vencer essa luta se bater com velocidade e sair.— Acerte o queixo dele, professor - sugeriu Daniel. - E ele vai cair como uma árvore cortada.— Um direto bem dado no estômago e ele dobra as pernas — disse Chester, mostrando no próprio estômago onde Rhuror deveria ser golpeado.Roger parou e olhou para os três.— Vocês já lutaram boxe alguma vez?— Eu, uma vez na escola - disse Brian, mostrando toda a sua experiência com o esporte.— Eu treinava no rancho com o meu tio - disse Chester.

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Daniel balançou a cabeça negando qualquer contato com as luvas.— Devo deduzir que sou um pouco mais experiente que vocês, não é mesmo?— Só estamos preocupados com o senhor, professor Roger — disse Rafael, bastante tenso.— Eu sei, rapaz. E agradeço o apoio de vocês - Roger abaixou a cabeça na direção de Rafael. - Diga assim pra mim: vá lá e vença, professor.— Como quiser: vá lá e vença, professor Roger!— Assim está bem melhor - disse Roger, entrando no espaço vazio destinado aos lutadores.Rhuror o aguardava do outro lado do círculo cercado pela aglomeração inquieta.— Sem camisa — orientou Roger despindo-se da sua, os músculos à mostra.Rhuror se desfez do colete de couro e placas que costumava usar. A musculatura do faogard era mais avantajada que a de Roger.— Lutaremos até que o primeiro caia ou desista, concorda com a regra? - propôs Roger a Rhuror que aceitou e transmitiu no seu idioma para que todos soubessem.Camine e Talemine, evidentemente, torciam pelo pai, e Guillermo só desejava que aquela luta não acontecesse.— Se precisa ser assim, só quero que acabe o mais rápido possível, de preferência, com um nocaute e que ninguém se machuque muito — desejou o espanhol, preferindo o caminho mais fácil.Rhuror e Roger se posicionaram e o combate começou.

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— Venha aqui, senhor comandante de guerreiros. Quero ver se sabe mesmo usar essa massa de músculos — desafiou Roger, ao seu melhor estilo.Roger girou em torno de Rhuror que tentava agarrá-lo ou mesmo acertar-lhe um bom soco, mas o boxeador pendulava o tronco, esquivando-se de todas as investidas do seu adversário.Rhuror tinha velocidade, no entanto, Roger era muito ágil e eficiente naquilo que sabia fazer bem: boxear.— Você vai perder, Rhuror. Vou grudar a sua cara no chão - provocou, destilando veneno nas palavras.— E se eu te agarrar, vou varrer o chão com a sua — avisou Rhuror rangendo os dentes.Então, Roger acertou o primeiro soco na altura do estômago do guerreiro. Rhuror não esperava que a mão de Roger fosse tão pesada e sentiu o golpe.— Tenho mais um monte desses guardados pra você, cabelos de fogo.Rhuror procurou manter o controle e não cair na armadilha de provocações de Roger. Era uma estratégia que já havia feito muitas vítimas para a coleção de vitórias do americano.— Você vai cansar, rapazote, e aí eu pego você.— Não antes de você mostrar a língua vermelha de tanto cansaço, vovô. Aliás, ela combina com os seus olhos.O repertório de provocações de Roger parecia inesgotável, e Rhuror estava começando a se irritar com os insultos recebidos na frente das filhas.

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Roger girava os punhos como hélices por pura bazófia. Era uma de suas artimanhas para incitar e desestabilizar o oponente.Rhuror era orgulhoso e se lançava ao combate com fúria, fazendo jus ao seu nome. Entretanto, Roger era liso como um peixe e não se deixava alcançar.O tempero certo para Roger começar a ganhar uma luta então começou a ser aplicado. O americano desferiu um bombardeio de SOCOS cruzados, diretos e ganchos que deixou Rhuror perdido no meio do massacre.A platéia, arrebatada, em gritos e agitação, não conhecia aquela forma de luta e foi apanhada de surpresa.Os olhos de Roger se incendiaram de cólera e os potentes socos se sucederam até que um cruzado vindo como um raio, acertou em cheio a ponta do queixo do guerreiro que caiu de uma só vez, sentado no chão de terra. Rhuror tentou se levantar, mas as suas pernas não obedeciam, os espectadores giravam a sua volta como um carrossel descontrolado.— Isso se chama nocaute! — ensinou Roger, a luta tinha acabado.Havia um certo ar de decepção no rosto dos que torciam para Rhuror.Roger estendeu a mão para Rhuror se levantar. O guerreiro levantou os olhos para Roger e disse, ainda um pouco zonzo:— Estamos quites — proferiu, aceitando a ajuda de Roger.

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Sacudiu a cabeça e respirou fundo para se recuperar e depois disse.— Você tem o olhar e a respiração de um autêntico guerreiro. Vi isso quando lutamos pela primeira vez — sua voz assumiu um tom de reverência. — Você é um homem de grande valor.Havia nascido respeito e amizade entre os dois.Com o término dos festejos, a tarde foi enfadonha e a vida em Faogard havia retomado o seu curso habitual.— Hoje será um dia diferente — disse Talemine na manhã do dia seguinte, enquanto se equipava com toda a espécie de armas. — Preparem-se agora e então iremos visitar um outro local de treinamento — ela mostrou as grossas vestimentas revestidas de pequenas chapas metálicas sobre o balcão de armas. - Vistam esses trajes, devem servir em vocês. E não se esqueçam dos elmos, eles terão muita importância nos exercícios de hoje.— De que local você está falando? — perguntou Marc, ajustando seus apetrechos, sendo auxiliado por Chester que abastecia de flechas a sua aljava.— Vocês logo saberão - respondeu, causando expectativa. - Necessitaremos dos cavalos para chegarmos até lá — disse, os eqüinos de acentuadas listras, perfilados à espera.— É mais leve do que parece - avaliou Daniel enquanto vestia sua nova roupa encouraçada, apertando as tiras para prender o colete. - Como estou?

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— Parece um anão preparado para a guerra — zombou Marc.Daniel repreendeu a opinião do amigo, fazendo uma cara de desprezo.— Montem, todos! - Determinou Talemine, subindo em seu gifenonte cinza com finas listras brancas, produzindo um som de metal quando sua armadura roçou na sela.Os cavaleiros seguiram em fila, liderados por Talemine que escolheu uma das avenidas que apontavam para o norte até alcançarem um dos grandes portões internos de muros altos de uma lado desconhecido da cidade.Ouviram um ressoar estranho como ondas explodindo em rochedos; mas não era um som de água batendo, não havia mar a milhares de quilômetros dali. Eles se encontravam praticamente no centro do continente.— Abram os portões! — ordenou Talemine com a autoridade suprema da neta de um rei.Os portões se dobraram para fora e por ali eles puderam contemplar a origem dos espantosos sons que rompiam por sobre os muros.O poderoso exército de Faogard executava manobras de batalha em uma gigantesca praça de guerra...Cavaleiros, carros de combate, soldados armados de diferentes maneiras; alguns com martelos, outros empunhando espadas, arqueiros prontos a disparar suas flechas e Rhuror, que montado em um imenso animal, dava instruções, corrigia falhas e orientava o avanço ou o recuo desse ou daquele agrupamento de guerreiros.

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— Que animal é aquele que seu pai está montando? - berrou Chester a Camine, para que pudesse ser ouvido.— É um drancto - respondeu a garota, enquanto entravam na praça de manobras. - Não é fabuloso?O drancto era um gigantesco animal herbívoro de pele grossa e cor acinzentada; o seu tamanho chegando até duas vezes e meia o de um elefante adulto. A cabeça era larga e achatada, obrigando os olhos a permanecerem bem separados um do outro. Seu pescoço mostrava-se volumoso em relação à cabeça e as patas tinham o formato de grossas colunas, sendo as dianteiras maiores que as traseiras. A criatura movia-se pesadamente ao comando de Rhuror, os passos erguiam-se lentos e calculados.— Assumam seus lugares na batalha! — ordenou Rhuror para os recém-chegados, do alto de seu estupendo drancto. — Não parem agora! — gritou ele para um grupo de guerreiros que avançavam com seus pesados martelos.— Sigam-me! - disse Talemine, saltando de seu cavalo e posicionando-se entre os soldados da infantaria do exército à direita, logo à frente na batalha.Ela ergueu o seu martelo e foi imitada por Guillermo, Brian, Roger e os meninos.Camine e Margaret, que não desmontaram, escolheram o exército à esquerda, e juntaram-se à cavalaria que se perfilava logo atrás da infantaria, puxando suas espadas.

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— Faremos a primeira ofensiva - instruiu Talemine rapidamente, enquanto avançavam a pé. - Os arqueiros se encarregarão de encontrar brechas na defesa inimiga.Naquele instante, flechas voaram e chocaram-se nos escudos dos soldados que iam à frente.— Estão atirando flechas! - surpreendeu-se Rafael.— Claro que estão — disse Talemine, atenta à batalha. - É para isso que você tem um escudo. Esconda-se atrás dele.— Mas isso não é um treinamento? - questionou Brian, em tom de reclamação. — Alguém pode sair ferido.— Os arqueiros não estão atirando pra matar - explicou ela. - E as flechas não têm pontas afiadas. O máximo que poderá nos acontecer é arranjarmos alguns hematomas.Brian então constatou a quantidade de jovens da idade de Daniel e Margaret participando daquela violenta simulação. Era uma coisa normal e constante na vida daquele povo.Os combatentes estreantes estavam perdidos no meio de tanto alvoroço.— Segurem bem firme seus escudos - aconselhou Talemine, apertando o passo. O choque entre os dois exércitos estava para acontecer em segundos. — E não os percam se querem continuar vivos.— Ela está falando sério? — perguntou Brian a Guillermo.— Acho que sim.O choque se deu com violência entre os dois lados.

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— Forcem a passagem! Forcem a passagem! - berrava Rhuror, segurando o gigantesco drancto por uma rédea grossa, seu braço fazia gestos expansivos para que os guerreiros avançassem.— Usem seus martelos e golpeiem os escudos dos inimigos! — orientava Talemine, enfrentando de igual os fortes soldados que vinham em sua direção..O barulho era ensurdecedor. O clangor das armas se fazia mais alto.Chester perdeu os amigos de vista na confusão do combate. Ele pensou que uma guerra de verdade deveria ser bem daquele jeito, caso precisasse lutar um dia. Em meio a tanta gente, ele se sentia só e então teria que contar com OS soldados que estivessem do seu lado. E foi isso que ele decidiu fazer.— Vamos, soldados, lutem! — gritou com raiva para os seus novos companheiros de cabelos vermelhos e ferozes expressões.Um guerreiro ouviu as palavras do menino sem compreender o que significavam exatamente, mas viu em seus olhos que ele também se sentia um verdadeiro guerreiro faogard.O soldado gritou de volta:— Tarm tand naar!Chester, pela primeira vez, sentiu-se como parte do invejável exército faogard.Um martelo atingiu de raspão o elmo que protegia a cabeça de Daniel, que se não o estivesse usando, estaria com o crânio feito em pedaços.

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Margaret e Camine tentavam furar o bloqueio imposto pelos soldados adversários, impelindo seus fogosos gifenontes contra a massa de escudos, martelos e espadas que dançavam à sua frente.Toda a manobra não durou mais de dez minutos.Com maior eficiência para executar o ataque, o exército de Talemine atingiu primeiro o seu objetivo.Foi então, que o drancto encheu os pulmões de ar e, sob o comando de Rhuror, emitiu um urro como se uma centena bois mugisse ao mesmo tempo.A simulação da batalha havia terminado.— Quem ganhou? - perguntou Marc.— Acho que fomos nós - respondeu Daniel com alguma dúvida.— Participamos pela primeira vez de uma batalha - animou-se Daniel, juntando-se aos seus amigos.— Ainda não - retorquiu Talemine. - Olhe em volta, o que vê?Daniel fez o que ela pediu. Talemine continuou:— Os soldados, todos vivos. E nenhum parece ferido, pelo que vejo. Numa batalha real, o chão estaria encharcado de sangue com gente morta e partes de corpos espalhados até onde seus olhos pudessem alcançar - disse com melancólico realismo.Camine e Margaret aproximaram-se cavalgando.Rhuror fez com que o drancto se agachasse e deslizou pelas costas do enorme quadrúpede até bater com os pés no chão.

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Chester não perdeu a oportunidade de tocar no inusitado animal, que mesmo deitado, era tão grande como uma casa de dois andares.— Levem os trajes de batalha com vocês, são seus - disse Rhuror, depois de comandar toda a movimentação de seus dois exércitos.-Todo o seu contingente está aqui? - perguntou Roger com percepção militar.Rhuror riu.— Isso é só uma pequena parte da nossa força de guerra - garantiu. - Não teríamos como reunir todos os guerreiros entre esses muros. Por isso, dividimos as operações militares em dias de treinamento. Vejam o drancto - disse orgulhoso, mostrando o herbívoro gigante. - Dois deles juntos são fortes o bastante para derrubarem o mais resistente portão da mais poderosa fortaleza do continente. E temos mais de quarenta desses no nosso arsenal.Chester sentiu admiração por Rhuror saber controlar um drancto com tanta facilidade quanto ele dominava um cavalo.Rhuror tinha algo a mais para falar:— O rei convocou a presença de vocês no salão do trono. Vou levá-los até ele. Camine e Talemine, vocês ficam. O rei quer ver somente a mim e os forasteiros.O palácio do rei era mais modesto do que o templo de Sargaleu, mas suntuoso o suficiente para dignificar a figura do soberano.O salão do trono era espaçoso, embora só acomodasse uma única peça ao fundo: o trono, obviamente. O rei encontrava-se

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cerimoniosamente sentado no móvel de aparência pesada e nobre, ladeado por seis soldados, três de cada lado, que eram a sua guarda pessoal.Os convidados postaram-se defronte ao rei e aguardaram o seu pronunciamento. Então ele disse:— A travessia de vocês por esse continente pode trazer conseqüências irreparáveis para todos os povos que o habitam. - Sua voz era vagarosa e entristecida pelos anos, mas trazia a sabedoria de quem governou durante muito tempo sob a pesada ameaça da guerra. Ele prosseguiu: — Mas eu soube que caso a missão que carregam não for concluída, o nosso reino corre um grande perigo de ser invadido pela gente nefasta que povoa o outro lado do Túnel de Vagtajonus - os viajantes nunca tinham ouvido alguém se referir ao portal daquele jeito.O rei Tuldoror baixou por uns instantes a cabeça, pensativo. Depois olhou os convidados com uma expressão que deixou seus olhos vermelhos mais enérgicos.— Faremos o que estiver ao nosso alcance para que vocês cumpram essa penosa tarefa da melhor maneira que puderem. No entanto, saibam que estarão se dirigindo a terras pouco amistosas, e que até mesmo a guerra entre os povos poderá ser deflagrada - ele olhou com grande tristeza. — E é até mesmo possível que a maldição de Arkopromis volte sobre todos os povos da Cadecália mais uma vez.

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O rei levantou-se e, sem mais nada declarar, se retirou.Era a última noite em Faogard.Roger, Brian e Guillermo arrumavam os seus poucos pertences em suas mochilas, preparando-se para darem prosseguimento à jornada.— Está pensando nela, espanhol? - indagou Brian, ele afivelava a última mochila.Guillermo parou o que estava fazendo e respirou fundo.— Estou sim, e muito, se quer saber.— Então procure chegar vivo até o portal se deseja vê-la de novo.Guillermo pensou por uns instantes e completou:— Eu voltarei para Talemine, Brian. Pode acreditar.

Capítulo 25Magia de Verdade

O portão leste de Faogard já estava aberto quando os viajantes se reuniram na saída para montarem seus gifenontes.Margaret correu para abraçar Camine e se conteve para não chorar.— Adeus, minha amiga, talvez eu não te veja nunca mais, mas mesmo muito distante, lembrarei de você por toda a minha vida.— Eu também vou sentir muita falta de você, Margaret - disse Camine com um nó na garganta que não combinava com ela. Kranalk ao seu lado

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com os olhos quase azulados pela bela manhã que fazia.Feneliane e Talemine também estavam presentes para acompanharem a partida do pequena expedição e Guillermo achou muito estranho quando a mãe abraçou a filha mais velha.— Ore no templo e peça a Sargaleu por nós, mamãe.— O que está acontecendo. Talemine? - Meteu-se Guillermo quando teve oportunidade de lhe falar.— Vou junto com vocês, Guillermo — disse a guerreira, mostrando todo o brilho dos seus olhos de rubi.Guillermo não sabia se explodia de felicidade ou se considerava a decisão de Talemine uma grande insensatez.— Mas e seu povo, sua família? Seu pai sabe disso?— Se ele sabe? Pergunte pra ele você mesmo - disse ela apontando na direção de uma das avenidas que terminavam no portão leste.Rhuror vinha montado em seu corpulento drancto que trazia uma considerável bagagem acondicionada nos alforjes que pendiam de cada lado do seu dorso largo. Prontos para a longa viagem.Os cavalos pareciam cachorrinhos de estimação quando comparados a grande criatura de movimentos vagarosos.— Agora sim, vocês têm alguma chance — disse Rhuror, enquanto acariciava o caloso pescoço do drancto.

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— Eles vão mesmo com a gente? — perguntou Brian, incrédulo, referindo-se a Talemine e Rhuror.— É, tudo indica que sim — deduziu Roger, apoiando-se no estribo e se jogando para cima do seu cavalo.As despedidas foram feitas e a tropa de aventureiros atravessou definitivamente os portões para reiniciar a difícil jornada. O drancto soltou outro fortíssimo urro, anunciando que eles estavam finalmente partindo.Chester seguia ao lado do drancto que se movia de maneira lenta e pesada, mas que compensava tal morosidade por ter as pernas excessivamente longas.- Não se iluda com a lentidão dele - disse Rhuror a Chester. - Ele sabe correr quando é preciso.Rafael se colocou ao lado de Chester e comentou:— Imagine o estouro de uma manada dessas coisas.— Certamente seria um terremoto ambulante — presumiu Chester, calculando as terríveis proporções.Cerca de duas horas depois, uma patrulha cruzou por eles. Rhuror trocou algumas palavras com o líder dos soldados e depois, cada grupo seguiu seu caminho.— O que eles conversaram? — perguntou Guillermo a Talemine.- Os soldados ofereceram-se para nos escoltar até os limites do nosso reino. Meu pai recusou - disse esticando-se sobre a sela para tentar

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enxergar mais além. - Não há mesmo necessidade, o território está cheio de patrulhas que andam de um lado para o outro dia e noite. Ainda encontraremos outros desses patrulheiros até sairmos do reino de Faogard.Mais três horas e eles avistaram um rio sinuoso que cruzava de sudoeste para nordeste.- Aquele é o rio Tronca — disse Rhuror, esticando o braço para mostrar. — Pararemos aqui para comermos e descansarmos por algum tempo. Não se preocupem em matar a sede dos animais. Essa região é rica em cursos d'água e a mais fértil do reino, caso se interessem em saber.Depois da breve parada, eles seguiram para leste, mas sem perder de vista o rio Tronca que dava voltas pelo relevo ondulado correndo sempre para nordeste.Na metade da tarde, com sol ainda forte, eles alcançaram a afluência do Tronca com o rio Dalevern. E do entroncamento dos dois, nascia outro rio, o Col. Daí era seguir margeando o Col mais doze dias para perfazerem os quatrocentos e oitenta quilômetros até o caudaloso rio Mevarnon que fazia a fronteira de Faogard com o deserto Canormut.Os dias transcorreram em total normalidade sob a segurança reinante em território amigo.Na tarde do décimo segundo dia, conforme o planejado, eles pararam às portas de uma cidadezinha. Os viajantes foram acolhidos no último povoado antes de penetrarem no Canormut. Por esse motivo, o povoado era

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também conhecido como O TRAMPOLIM DO DESERTO.Um extraordinário sol avermelhado se escondia vagarosamente por detrás das colinas rasas das já distanciadas terras do oeste.Fena, esse era o nome do povoado. Um pacato lugar com cerca de mil habitantes faogards e um dos poucos onde era tolerada a presença de estrangeiros que chegavam de todas as partes para estabelecerem comércio, trocando suas mercadorias por luminita e especiarias de qualidade. Por causa do intenso comércio, a população chegava a triplicar em número. Uma guarnição de sessenta homens era a sua única proteção armada. Mas diziam que o legítimo defensor da paz de Fena era o vasto e inóspito Canormut.— Vamos nos hospedar na Ferro em Brasa - disse Rhuror, mencionando a maior e melhor estalagem da cidade.As janelas abertas, deixando escapar o estrepitoso movimento de gente, mostravam que animação, boa comida e muita bebida eram as marcas da Ferro em Brasa.As paredes eram todas revestidas com madeira bruta; panelas de ferro que cozinhavam a comida aqueciam o ar e exalavam um cheiro adocicado de carne temperada.O estalajadeiro recebeu Rhuror de braços abertos.— Rhuror, seu velho preguiçoso! Pensei que nunca mais viria a Fena nos visitar.

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Seu nome era Tagodhar, ele foi soldado de armas, e quando se aposentou pela idade, abriu seu próprio negócio. Não era tão grande como Rhuror, mas forte o bastante para carregar dois grandes sacos de farinha nas costas de uma vez. Batizou a sua estalagem de Ferro em Brasa para relembrar a sua função de ferreiro; orgulhava-se em exagerar que havia forjado pessoalmente as ferraduras de toda a cavalaria faogard. Quando precisava pegar em armas, Tagodhar igualmente mostrava ser um grande soldado, mas a idade chegou para ele e estava na hora de descansar ou fazer outra coisa que o fizesse se sentir vivo. A estalagem foi a solução.— Não sou culpado se você foi se meter nesse fim de mundo. Por que não abriu seu negócio na cidade grande? - justificou-se Rhuror da ausência prolongada.— Optei pelo sossego da cidade pequena. Mas veja só. Fena não é tão pacata como eu havia imaginado - disse, exibindo a farra ruidosa que era o seu estabelecimento. - E quem são seus amigos? - perguntou, fazendo um gesto cortês para que ficassem à vontade.— Eu também queria falar com você sobre isso - disse o chefe guerreiro com discrição. - Se hoje estamos aqui, não é só para desfrutar da sua hospitalidade. Também temos uma tarefa muito importante a cumprir.- Do que se trata? — perguntou Tagodhar enquanto enchia uma bandeja com canecas de escuras cervejas espumantes para atender ao pedido de uma das mesas.

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Em seguida, rastreou rapidamente o salão, conferindo se havia satisfação nos rostos dos clientes.- Sentem-se - disse ele, oferecendo uma mesa extensa e larga destinada aos grandes banquetes dos freqüentadores mais importantes. — Vou mandar servir a melhor refeição da casa.Rhuror contou tudo o que se passara até então e pediu para o amigo ajudá-lo a abastecer os animais com água e comida. O rei se encarregaria de recompensá-lo abundantemente pelo favor prestado.- Sabe que faço isso pela nossa amizade - disse Tagodhar, respeitosamente. — Mas não recuso umas boas moedas vindas de nosso soberano - gracejou.O rosto de Tagodhar assumiu uma expressão mais compenetrada e ele continuou falando:- Meu martelo se erguerá ao seu lado, amigo Rhuror - disse, oferecendo seus préstimos.- Não é preciso tanto - Rhuror amenizou. - Bastam os alforjes cheios de comida, os odres abastecidos com água e o seu silêncio — disse Rhuror com eloqüência.- Quanto a isso, não é preciso se preocupar — Tagodhar ficou mudo por um instante, enquanto um negociante drallengiano passava do seu lado. O estalajadeiro diminuiu a voz. — No entanto, é difícil guardar segredos num lugar como esse, cheio de ouvidos bisbilhoteiros.- Quem é ele, ou o que é ele? — sussurrou Marc a Talemine ao seu lado, mencionando o homem de

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pele cinza que silenciou Tagodhar momentaneamente.- O drallengiano? Ele é do reino de Drallêngia do grande vulcão.- São boa gente - emendou Tagodhar. - Um povo de guerreiros, nossos aliados em caso de uma guerra continental, mas nunca se sabe com quem um negociante desgarrado de seu país costuma se relacionar em suas andanças.Os drallengianos eram seres de pele cinza e olhos amarelos como gema de ovo. Habitantes de Drallêngia, ao pé do vulcão Merasgor, o maior vulcão de todo o continente. Comentava-se que se o Merasgor entrasse em erupção, Drallêngia seria apagado do mapa, coberto para sempre de lava e cinza. Entretanto, os registros apontavam que a gigantesca montanha de fogo não apresentava nenhuma atividade havia mais de dois mil anos. Drallêngia também era fronteiriça a Crassen, o maior de todos os reinos em área e população e o tenebroso destino final dos viajantes.- O que está acontecendo por ali? — quis saber Daniel, tendo a sua atenção desviada para um ajuntamento de pessoas que se agitava no fundo do salão.— Ora, é o incorrigível do Luminus — disse Tagodhar, meneando a cabeça em desaprovação. — Está fazendo das suas.— Luminus está aqui? — duvidou Rhuror, demonstrando conhecê-lo bem.— Quem é esse Luminus? - indagou Chester, tendo a curiosidade avivada.

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— Luminus é um desenval, um feiticeiro, um mago como vocês humanos costumam dizer — informou Rhuror enquanto espiava o tumulto. — Aliás, o nome dele nem é esse pelo que sei.— Outros costumam referir-se a ele como o Desenval Inútil — disse Tagodhar, recostando-se e relaxando em sua cadeira.— Por que o chamam dessa forma tão depreciativa? — perguntou Rafael, achando o termo muito ofensivo.— E uma história um pouco incomum. Não sei se querem que eu conte - alertou Tagodhar olhando primeiro para Rhuror como que pedindo sua permissão. Rhuror já havia escutado aquele caso umas mil vezes, mas o guerreiro pouco se importou se ouvisse outra vez. - Vocês devem estar cansados...— Queremos sim — precipitou-se Margaret, acendendo um brilho de curiosidade nos olhos.— Bem, como queiram - pôs-se Tagodhar a contar. - Luminus nasceu humano, como vocês. O nome dele, deixe-me ver... ah, sim, Vincent alguma coisa. Seu pai era um explorador e comerciante, como quase todos nessa taverna, e carregava o filho por todos os lados. Um dia o pequeno Vincent e o pai dele foram bater no castelo dos desenvals em Edrendora que fica muito distante dessa vila. Os magos viram nele a possibilidade de tornar-se um grande desenval; parece que o menino tinha um dom mágico muito aguçado e se ofereceram para dar a educação e os cuidados que Vincent não tinha até aquele dia.

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Tagodhar fez uma breve pausa para se lembrar de mais coisas.— O pai dele concordou e Luminus ou Vincent progrediu muito entre os desenvals e morou no castelo até se tornar um adulto, mas chegou um dia em que ele se cansou do castelo e de tudo o que estivesse ligado à rígida disciplina imposta pelos magos. Então, Luminus foi embora e carregou com ele todos os ensinamentos que recebeu ao longo do tempo. Seus mestres ficaram furiosos com a sua ingratidão e todos os desenvals passaram a menosprezá-lo - Tagodhar apertou os olhos e prosseguiu: - Se pensam que Luminus se importou, estão enganados. Anda de cidade em cidade se exibindo para quem quiser ver. Agora mesmo ele está praticando a sua magia para entreter a multidão. Eu não me importo. Muitos visitam a minha estalagem só para verem um desenval de perto. Ficam maravilhados com o que ele pode fazer. Por outro lado, os desenvals e até as véussidas ficam indignados quando sabem que Luminus usou a magia para se promover.— Não poderiam castigá-lo? — Brian procurou saber. - Afinal, esses magos devem ser muito poderosos.- Não é da índole deles — explicou Rhuror. — Os desenvals preferem calar-se a terem que se expor perante o povo.- Mas o que Luminus faz é magia de verdade? Não se trata de um truque de ilusionista? — perguntou Daniel, muito interessado.

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- Vá lá e veja com seus próprios olhos e depois me diga se o que ele faz é truque — desafiou Tagodhar.- Posso mesmo?Tagodhar fez um gesto incentivando Daniel a assistir.- Também quero ver, posso? — pediu Margaret ameaçando levantar-se.— É lógico! - concordou Tagodhar. — Podem ir todos.Os meninos se levantaram quase ao mesmo tempo e se meteram no meio da platéia.— Não é de minha natureza perder uma boa apresentação de mágica - disse Guillermo, puxando Talemine pela mão.— Vão vocês também. - Estimulou Tagodhar, deixando temporariamente a mesa onde estavam. - Enquanto isso, eu verifico se os meus fregueses estão sendo bem atendidos.— Venha você também, Roger — Brian chamou. A mesa ficara vazia.Luminus estava rodeado de curiosos. Ele era um homem alto de olhos negros, aparentando pouco mais de trinta anos; usava uma túnica azul-escura comprida e aberta na frente, deixando à mostra roupas grossas de andarilho; seus cabelos mais negros que seus olhos chegavam até a cintura, e de maneira impressionante se mexiam como uma coisa viva ondulando a cada instante em volta de sua cabeça; ora tomavam a forma de duas garras assustadoras e em seguida mudavam para a figura de um par de asas angelicais. Os meninos ficaram paralisados como

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bonecos de cera enquanto presenciavam aquele autêntico número de magia.Luminus olhou de esguelha para Daniel ao mesmo tempo em que fazia materializar água do nada em um jarro vazio, depois suspendeu o recipiente e virou-o, entornando, aos poucos, todo o líquido que ao tocar o fundo de uma bacia de cerâmica, foi esculpindo gradativamente uma cabeça de água sólida bastante familiar, era a fisionomia de Daniel que sorriu e piscou um olho antes de desmanchar-se dentro da vasilha como água comum.— Nenhum mágico que eu conheço faz essas coisas - sussurrou Daniel, sem sentir as palavras saírem de sua boca de tão abismado que estava.— Talvez não sejam mágicos de verdade - declarou Luminus, lançando um olhar matreiro a Daniel.— Faça mais outra dessas, Luminus — pediu um velho de olhos estrábicos e sorriso ingênuo.— Certamente, nobre caixeiro - Luminus aceitou o pedido com amabilidade. - Senhoras e senhores, cuidem de suas cabeças, ou poderão ficar sem elas a partir de agora.Dois candelabros de latão presos ao teto ganharam vida instantaneamente a um simples movimento das mãos de Luminus. Os braços dos objetos de iluminação que antes eram arqueados para cima, sustentando pequenas luminitas brilhantes que clareavam a taverna de Tagodhar, começaram a se contorcer como serpentes e atacaram quem por ventura se achasse abaixo deles.

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— Ei! O meu cabelo! - gritou Margaret, quando teve as compridas mechas agarradas pela bizarra peça de metal.— Ele me pegou! — reclamou Marc, sendo suspenso até o teto pelo colarinho de sua roupa.Os braços dos lustres animados buscavam as suas vítimas que se agachavam e recuavam fugindo dos botes velozes que causavam toda aquela balburdia.Luminus, então, elevou a mão esquerda, e os candelabros retornaram às suas formas sólidas de antes.No entanto, o jovem Marc que havia sido abocanhado por uma das serpentes metálicas, permanecia dependurado e com as pernas se agitando quando o feitiço cessou.Bastou Luminus fazer um movimento discreto para que Marc se desenganchasse do lustre e flutuasse suavemente até o chão.Daniel ofegou com excitação e exclamou:— Espantoso! Como o senhor consegue fazer essas coisas?— É necessário ser especial, jovem estranho - disse Luminus com uma arrogância afável.Depois do susto, os espectadores juntaram-se novamente em torno de Luminus, arrumando as cadeiras e mesas que haviam sido derrubadas na confusão.Daniel e Margaret se entreolharam com alegria, como crianças assistindo a um maravilhoso espetáculo de circo.— Um último número, Luminus. - Quase implorou um sujeito que deveria conhecer muito bem cada

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apresentação que o mago fazia.- Então, afastem-se, amigos. Vou mostrar-lhes porque carrego esse nome - disse o desenval com dramaticidade.A multidão abriu o círculo, esperando o grande final da noite.Naquele instante, o corpo de Luminus passou a irradiar uma luz fria cada vez mais brilhante, a ponto de ninguém conseguir olhar para ele tal era a intensidade de sua luminescência. As luminitas do estabelecimento perderam importância, ofuscadas que estavam e os raios de luz extravasaram as janelas, quebrando a escuridão das ruas.O brilho de Luminus foi se desvanecendo, até que ele mostrasse outra vez as suas formas.O desenval foi envolvido por bajulações e elogios entusiasmados.- Esperem um pouco - disse Daniel aos seus.amigos, indo em direção a porta de saída da estalagem.- Aonde você vai? - perguntou sua irmã.- Eu já volto — disse ele, olhando por cima do ombro, decidido a ir pegar alguma coisa.Mal houve tempo para que seus amigos pudessem comentar a atitude de Daniel, quando o viram surgir de volta pela porta.- O que você vai fazer? — quis saber Margaret, grudada no irmão que se dirigia que nem uma flecha para Luminus.- Você já vai saber, cara irmã — respondeu, tirando do bolso um bolo de cartas de dakenkal,

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o baralho que havia conseguido em Nova Europa. — Vou dar uma lição nesse bruxo.- Você não vai nada — retrucou Margaret. — Ele faz magia de verdade, não é um ilusionista de fim de semana que nem você.- Isso eu já comprovei, mas quero saber se ele conhece o meu tipo de mágica.Subitamente, Daniel estacou na frente do desenval que fazia os últimos agradecimentos aos louvores dados pela sua apresentação.- Escolha uma carta - disse o menino inglês, no momento que abria o baralho em leque voltado para baixo, de modo que Luminus não tivesse condições de visualizar as figuras.O feiticeiro apontou uma qualquer sem tocá-la, dizendo com rapidez.- Um Zinun Lanceiro - um certo cinismo cresceu no seu olhar. - E essa também é um Zinun, e essa e esta outra.Luminus correu o dedo pelas cartas como se deslizasse sobre as teclas de um piano, e desferiu:- Todas são Zinuns Lanceiros!As coisas náo estavam se saindo como Daniel havia planejado e ele não teve outra alternativa a não ser desvirar as cartas em leque de uma vez. Daniel estalou os olhos ao verificar que todas as figuras do baralho eram exatamente iguais, Zinuns Lanceiros, os guerreiros de pele carmesim e pequenos chifres, que empunhavam lanças douradas cruzadas ao peito; os Zinuns habitavam a Calcávna, o outro grande continente a leste da Cadecália.

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- Como você fez esse truque? — perguntou o garoto, ainda inconformado pela superioridade das habilidades do mago.- Não faço truques, estimado rapaz. Sou um desenval — corrigiu.Luminus esfregou as mãos e virou uma das palmas para as cartas de Daniel, devolvendo ao baralho o seu aspecto original.- Está melhor assim? - perguntou, mostrando um sorriso mais simpático.Daniel não sabia o que comentar e deu-se por vencido, mas uma coisa era certa;ele daria tudo para ter a metade dos poderes de Luminus.- O que achou? — perguntou Tagodhar a Daniel, que havia assistido de longe a tentativa frustrada do menino em subjugar Luminus.- Humilhado — reconheceu, sentando-se de volta, juntando-se ao seu grupo.- Não se envergonhe, Daniel - disse Rhuror em tom de consolação. - O desenval é muito poderoso. Só outro desenval ou uma véussida poderiam fazer frente a ele.- Quero ser como Luminus - desejou Daniel, fascinado.- Por enquanto se contente com os seus truquezinhos de cartas e moedas - disse Margaret, apenas para espezinhar o irmão. Daniel estreitou os olhos com ferocidade para ela.Luminus chegou até à mesa onde se encontravam Tagodhar e seus convidados,

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trazendo sua própria caneca de cerveja e apresentou-se com distinção.- Boa noite aos simpáticos estrangeiros. Creio que a essa altura já me conheçam.- Depois do seu espetáculo circense acho difícil que haja alguém nessa taverna que não saiba quem é você, Luminus. — Espetou Tagodhar.- Noto que a sua casa está lotada, estimado estalajadeiro. Será que ela fica desse jeito quando não estou presente?- Não preciso da sua magia para preparar boa comida e servir as mesas com cerveja gelada. Mas admito que você atrai os tolos como abelhas no mel.- Onde foram parar as boas maneiras? - lamentou-se Luminus. - Ninguém até agora convidou-me para sentar.- Ora, por favor, sente-se conosco, Sr. Luminus — disse Brian com sua característica educação, indicando um lugar vazio.- Obrigado, vejo que é um cavalheiro, senhor...- Brian Hamilton, professor de Geologia.- Um estudioso das rochas, se não estou equivocado.- Pode-se dizer que sim — aceitou Brian, a resumida resposta como correta.- Mas antes tenho que fazer uma coisa para que nossa conversa tenha, digamos, mais privacidade — anunciou Luminus, acomodando-se entre Chester e Daniel.O desenval murmurou algumas palavras aparentemente sem sentido, os seus lábios quase não se mexendo, e surpreendentemente

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parte do tampo da mesa onde ele se debruçava se liqüefez. Sem perder tempo, Luminus introduziu a mão até a altura do ombro através da mesa fazendo com que a madeira ondulasse como água em um lago. Logo em seguida, o braço do mago retornou trazendo um indivíduo pelos cabelos. A cabeça do sujeito ficou acima do tampo e o resto do corpo ainda permanecia oculta por baixo do extenso móvel de tábuas grossas. O indivíduo tinha o rosto fino escaveirado; um olho azul e o outro vermelho fazendo lembrar um faogard deformado; o nariz aquilino quase tomava toda a frente do seu rosto e o seu cabelo era carmesim como a pele de um Zinun.Luminus moveu novamente os lábios em outro feitiço e a mesa endureceu outra vez, prendendo o intruso pelo pescoço.- Lughy, seu intrometido — esbravejou Tagodhar ao vê-lo. - O que você está fazendo embaixo da minha mesa?- Veja só que coisa interessante, Tagodhar. Eu me enfiei aqui para descansar um pouco e acabei dormindo — explicou-se meio sem graça. Sua resposta não foi nada satisfatória.- O que eu deveria fazer com você, seu espião da vida alheia? - disse Tagodhar, agarrando Lughy pelo queixo e virando sua cabeça para encará-lo bem nos olhos. Um estalo se ouviu quando Tagodhar quase deslocou o pescoço do impostor.- Corte a cabeça dele e atire aos nevolorts dos soldados — sugeriu Luminus com extrema naturalidade, os longos fios negros do seu cabelo

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formaram o desenho de uma adaga afiada que oscilava pelo ar.- Não, isso não — suplicou Lughy. - Sou inocente de tudo o que me acusarem.- O que você pretendia, Lughy? Conseguir informações para vender aos Crassênidas por umas poucas moedas? — supôs Rhuror.- Não, juro que não — respondeu com voz nervosa. — Só queria conhecer melhor esses simpáticos forasteiros.- E por que não veio até aqui de forma civilizada como eu fiz, em vez de causar essa má impressão aos nossos visitantes? - interrogou-o Luminus, sem dar crédito a uma só letra do que ele falava.- É essa minha maldita timidez que me leva a fazer essas tolices, senhor desenval.- Sua timidez. Espera que eu também acredite nisso? - disse Luminus, as duas mãos aproximando-se uma da outra lentamente.- Não quero ser indelicado, senhor Luminus, mas essa posição incômoda está deixando as juntas das minhas pernas doloridas, e acho que essa mesa está se fechando em torno da minha garganta — disse com a voz sufocada e o rosto contraindo-se em desespero.- Chega, Luminus! — interferiu Rhuror. — Liberte-o. Esse pobre coitado não ouviu nada de importante.Luminus despejou um olhar ameaçador sobre seu prisioneiro e restituiu a ele sua liberdade, recitando pela terceira vez os versos de sua impressionante magia.

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- Obrigado, benevolente comandante — agradeceu Lughy, esquivando-se rapidamente por debaixo da mesa antes que Luminus se arrependesse de fazê-lo livre. Em seguida, levou as mãos ao pescoço conferindo se estava tudo em ordem. - Sou eternamente grato pela sua piedade, poderoso mago.- Suma daqui ou o transformo em um javali assado. Meus novos amigos ainda não comeram — ameaçou, erguendo a mão esquerda como se apontasse uma arma para Lughy.Demasiadamente amedrontado, Lughy foi sentar-se em um canto da taverna, distante o suficiente para não poder ouvir nada do que fosse falado.- O maldito aproveitou a mesa vazia quando vocês foram assistir a magia de Luminus e se escondeu sob a mesa para escutar - disse Tagodhar, visivelmente irritado.Lughy não era muito mais alto do que os garotos, tinha dedos finos e tortos como galhos secos; vestia-se modestamente, mas trazia sempre moedas de ouro e prata, pedras preciosas e outras coisas de valor em sua pequena bolsa de couro curtido. Sem dúvida, o que chamava mais a atenção nele eram seus olhos de cores diferentes.- Ele é engraçado - disse Rafael, sem ver nada perigoso no comportamento de Lughy.- Não confiem nele — avisou Tagodhar enquanto olhava para Lughy que agora discutia com dois viajantes, provavelmente com uma conversa viscosa para conquistar novas vítimas. — Quanto a Luminus, podem confiar nesse fanfarrão. Eu o

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conheço desde que ele usava fraldas e o seu pai o carregava no colo por quase toda a Cadecália.- O que há com os olhos desse Lughy? O que ele é? — quis saber Marc.- É o triste resultado da união de um faogard com uma mulher humana — disse Tagodhar, referindo-se a Lughy como se ele fosse uma aberração.Um mal-estar surgiu dentro de Guillermo e Talemine. Tagodhar explicou melhor.— Nunca antes houve uma ligação amorosa entre faogards e humanos, pelo que se sabe. Havia, na verdade, uma certa repulsão entre as duas raças desde que os humanos chegaram por aqui. Dos dois lados havia quem desaconselhasse com veemência o casamento entre os membros dos dois lados por diversos motivos, mas com o tempo as diferenças foram amenizadas e a união dos povos passou a ser discutida e até aceita de certa forma.Tagodhar fez uma pausa e logo continuou:— Até que um dia, foi realizado o casamento dos pais de Lughy numa grande solenidade na maior igreja de Nova Europa. Os mais conservadores protestaram, advertindo que se as raças tinham sido criadas diferentes era porque os deuses assim as queriam. Não demorou muito para que nascesse a primeira criança híbrida e que para a infelicidade de todos os que acreditavam no surgimento de uma nova raça, a decepção ficou evidente com Lughy. Quem o viu nascer, dizia que ele tinha uma aparência horrível, um ser defeituoso de corpo e mente, um castigo dos

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deuses pela blasfêmia cometida. Ao ficarem sabendo, os crassênidas amaldiçoaram a criança fruto do cruzamento de uma raça nobre, como os faogards, com os enviados do inferno. Lughy cresceu com problemas de saúde e muitos dizem até hoje que o seu desvio moral é decorrente dessa mistura impensada.— Tem gente que discorda dessa história - retrucou Rhuror, percebendo o semblante abatido da filha. - Várias crianças nascem com problemas no meio de todos os povos. Algumas delas apresentam defeitos bem maiores e ninguém fala nada. Não há notícias de nenhuma outra união entre humanos e faogards e, sinceramente, não vejo como afirmar que é impossível nascer uma criança saudável baseando-se apenas em um caso.— Acho que demos muito espaço para falar desse rapaz e seus problemas — interveio Roger com aspereza. — Suponho que estamos aqui com o objetivo de buscarmos soluções para os nossos problemas. Não temos tanto tempo como pode parecer.— Roger tem razão — acolheu Rhuror. - Temos que ser mais práticos e diretos Tagodhar colocou Luminus a par do que estava acontecendo e Rhuror destacouque toda a ajuda dos amigos seria muito bem recebida.Roger via as coisas com mais praticidade e por isso perguntou.— Não poderia usar a sua magia para nos transportar agora mesmo até o portal?

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— Infelizmente, não - lamentou-se Luminus. — Nenhuma magia tem um alcance tão grande. A maior distância que um bom desenval é capaz de atingir, não passa de uns trezentos metros, se muito.— E quanto a nos acompanhar nessa jornada. Sua força poderia ser de grande utilidade - propôs Brian.— Sinto não poder atender o seu pedido, senhor Brian, mas sou um proscrito pelo povo de Crassen que proclama que eu ofendi a todos os seus deuses, quando aprendi a sua sagrada magia milenar e depois dei as costas aos meus benfeitores.— Os crassênidas não devem gostar muito de vocês - deduziu Brian, referindo-se aos faogards. — Primeiro promovem uma união carnal com os humanos e depois abrigam um proscrito em suas terras.— Se pudessem, os crassênidas nos aniquilariam - disse Tagodhar, desviando o olhar para a cozinha e autorizando que trouxessem a desejada comida. - Acredito que todos nessa mesa estejam famintos. Portanto, vamos ao repasto.— Outro motivo me impede de seguir com vocês - disse Luminus, os cabelos entrelaçando-se para formar serpentes que deslizavam sobre seus ombros, fazendo-o se parecer com uma górgona. Um dos feixes de cabelos voltou-se para Chester e enrodilhou-se como se fosse saltar para picá-lo. - É meu pai. Fui avisado por um andarilho que esteve em Nova Europa que ele não está nada

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bem. Sua saúde já não é lá essas coisas e ultimamente anda muito debilitada.As bandejas e as canecas estavam quase vazias e apenas alguns ossos repousavam nos fundos de alguns pratos.— Por isso não gosto de vir a Fena, Tagodhar — disse Rhuror se esticando na cadeira para dar espaço ao estômago enfastiado. — Sempre como mais do que o planejado.— O que estufa sua barriga é a minha cerveja, seu drancto velho — brincou Tagodhar, erguendo sua caneca como se fosse um troféu.Daniel esperou pacientemente a noite toda para abordar Luminus com uma pergunta.— Como o senhor faz magia, senhor Luminus? Ou melhor, de onde vem o seu poder?— Garoto Daniel, essa foi a pergunta mais inteligente que eu recebi desde há muito tempo — elogiou Luminus abertamente. — A maioria das pessoas só quer saber de assistir o que eu faço, mas pouquíssimos se interessam em saber como eu produzo magia e de onde vem essa força. Pois eu vou lhe dizer.Luminus preparou-se para falar não só a Daniel, mas a todos que estavam reunidos com ele.— Olhe a sua volta, o que consegue ver?— Muitas coisas - respondeu Daniel, sem saber direito a que coisas Luminus se referia. — Pessoas, móveis, paredes...— Perfeito! E lá fora, você pode me descrever o que consegue identificar? - prosseguiu Luminus, mostrando a paisagem que surgia por uma das janelas.

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- Ora, o que posso ver... as silhuetas escuras das árvores e um punhado de estrelas por sobre as copas - relatou, conciso.— Muito bem, caríssimo Daniel. Com esses pequenos exemplos você já poderá compreender a origem dos poderes de um desenval. Tudo no universo que chamamos comumente de matéria é meramente energia em um outro estado.— Isso nós sabemos muito bem, senhor Luminus - adiantou-se Margaret. - No nosso mundo essas idéias estão bem adiantadas.— Que bom - agradou-se o mago. - Isso facilita em muito o que vou lhes contar. Tudo no universo é energia pura: estrelas, planetas, cometas e tudo o mais que existe. As estrelas que vemos no céu estão, nesse momento, nos enviando parte de seu poder energético que constantemente atravessa os nossos corpos. Agora mesmo, estamos sendo invadidos por essas forças que viajaram por milhares ou até por inimagináveis milhões de anos antes de nos tocarem. O universo explode em energia pura o tempo todo, e as partículas circulam livremente para todos os lados, se amontoando em alguns casos, para em seguida serem atiradas como pedras quando são arremessadas de catapultas, até que um dia tudo isso acabará ao despertar de Vagtajonus, aquele que tudo resume: movimento e inércia; luz e escuro; princípio e fim.— O deus que dorme — completou Rafael.— Exato! - exclamou Luminus. — Mas isso não vem ao caso nesse momento. Agora prestem muita atenção no que vou falar. Cada indivíduo

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pode ser representado como se fosse um objeto: a grande maioria é como peneira é que não tem a capacidade de reter nada do que passe por elas. Outros, por sua vez, poderiam ser chamados de vasilhas que armazenam algum líquido, mas por estarem rachadas ou furadas, perdem continuamente o seu precioso fluido. No entanto, existe uma terceira classe de pessoas que denominamos de vasilhas de grande retenção ou armazenagem. Essas, que podem ter variados tamanhos, acumulam enormes porções de energia no seu mais alto grau de pureza, canalizando e transformando o seu conteúdo naquilo que chamamos corriqueiramente de magia. Tais recipientes vocês devem imaginar quem são: nós, os desenvals e as véussidas. E que são os deuses? - perguntou para si mesmo. - Gigantescos lagos de poder.— Quem são as véussidas? - perguntou Margaret, recordando-se que já ouvira aquela palavra.— Fico feliz por essa pergunta ter partido de uma garota - comentou Luminus, apontando para Margaret. - Elas são o lado feminino dos grandes acumuladores de energia, os feiticeiros.— Como ficamos sabendo se um sujeito pode vir a ser um desenval ou uma véussida? - perguntou Daniel, sonhando um dia tornar-se um.— Pressentimos que algumas raras pessoas têm esse dom, mas para se ter certeza, são necessários alguns testes - explicou o desenval, comportando-se por uns instantes como se estivesse ouvindo ou sentindo alguma coisa. - Entre vocês, sinto que existe uma vibração

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emanando constantemente. Entretanto, não consigo identificar de onde vem e qual a sua intensidade.— Está falando sério? - manifestou-se Margaret com entusiasmo.— Naturalmente. Vejamos, você rapaz, quer participar de uma pequena experiência? - o mago propôs a Chester, que aceitou de imediato.Luminus então pôs a mão no ombro de Chester e orientou.— Concentre-se nesse prato - disse, trazendo um para frente do menino. - Agora faça o seguinte: procure direcionar os filamentos energéticos que você está recebendo e enviá-los a uma linha imaginária que atravesse o prato bem no meio.— E como se faz? - pediu Chester, o queixo apoiado em uma das mãos.— Pense na linha criada na sua mente. Comece a pressioná-la contra o prato como se ela fosse uma lâmina bem afiada.Os olhos de Chester se comprimiram enquanto ele tentava...— Não aconteceu nada — disse ele, desistindo depois de quase um minuto. — Não devo ser um desenval.— Tem razão — concordou o mago. — Entretanto, você emana uma espécie de onda que eu ainda não conhecia. Mas é verdade, você certamente não tem o dom de um desenval.Luminus lançou um olhar para Marc que estava sentado à sua frente, do outro lado da mesa.— Quer tentar?

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— Quero sim — disse Marc, inclinando-se para frente, colocando-se a disposição.— Faça exatamente como ensinei ao seu amigo - disse o desenval, agarrando levemente o antebraço do rapaz.Marc tentou por algum tempo, mas também não teve êxito.— Sinto de verdade, meu amigo, você também não possui aptidão para a magia.Com Rafael aconteceu a mesma coisa. Contudo, Luminus ainda sentia um fluxo intenso bem próximo. Ele voltou-se para Daniel ao seu lado.— É com você agora, Daniel.Luminus tocou em seu ombro e antes que pudesse falar qualquer coisa, viu o prato sendo separado ao meio como uma faca que corta queijo macio.Daniel quase caiu da cadeira.— Eu fiz isso?— Claro que não, seu bobo. Não notou que ele segurava o seu ombro? — disse Margaret, observadora.— Está enganada, querida - retorquiu Luminus. - Eu somente organizei o fluxo de energia no corpo de Daniel, como fiz com os outros. Porém, quem executou a divisão do prato foi ele.— Você é um desenval, Daniel - disse Rafael, animado.— Não é bem assim - discordou Luminus, com prudência. - Esse é apenas um dos testes que costumamos fazer para identificar um futuro desenval. Todavia, para termos a certeza

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absoluta se estamos diante de um, necessitamos de mais comprovações, e isso leva algum tempo.— Então existe alguma chance de eu me tornar um de vocês? — perguntou Daniel, esperançoso.— Sim, há. Mas não se anime muito. Se você prestou bastante atenção no que eu disse, irá se lembrar que existem as VASILHAS que são rachadas ou furadas, ou seja, que não têm a capacidade de acumular grandes volumes de energia. Você pode ser uma dessas.— Eu também quero fazer o teste - pediu Margaret, resoluta.— Certamente - consentiu o desenval. — Vamos fazer um pouco diferente dessa vez.Luminus pegou as duas metades do prato e as juntou sobre a mesa, sem usar a magia para restaurar o objeto. Sua mão segurou o braço de Margaret quando ele determinou.— Tente unir novamente as duas partes usando sua vontade como uma cola poderosa.Margaret suspirou fundo e se concentrou na tênue fissura retilínea produzida pelo seu irmão. Luminus manteve-se calado para não desviar a atenção da menina. Ela se esforçou por mais de um minuto, quando falou com a voz desanimada e fraca.— Não estou conseguindo, talvez não seja como meu irmão.— Você não é como o seu irmão - disse Luminus com firmeza. — Tente de novo. Mas agora, procure visualizar apenas a rachadura no prato e esqueça tudo a sua volta.

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Margaret reanimou-se nos conselhos do desenval e fixou firmemente os olhos apenas na estreita fenda.Foi só depois de outro longo minuto que a ruptura começou a sumir, devolvendo ao prato a sua integridade.- Consegui! - exclamou ela, soltando uma risada nervosa.Luminus pegou o prato e o agitou como um leque para comprovar o poder de Margaret.— Lembram-se quando falei que partículas atravessam os nossos corpos? - disse ele. — Pois muito bem, vocês tomaram conhecimento dessa energia vibrando em nossas entranhas, e esse é o primeiro passo para aprenderem a controlá-la. Agora chega, vou me recolher - disse, enquanto se levantava. - Amanhã cedo estarei partindo para Nova Europa e sei que vocês têm também uma longa e difícil jornada. Desejo a todos vocês muita sorte.— Foi um prazer conhecê-lo, senhor Luminus — disse Margaret, com sinceridade.— Ora, ora, mas fui eu quem teve o maior prazer em conhecer tão bela mocinha e jovens tão simpáticos — disse o mago com exagerada delicadeza, seus cabelos entrelaçando-se no formato de uma flor oferecida a Margaret. — Se passarem por Edrendora, procurem os desenvals. Embora eles me abominem, são íntegros e confiáveis.Antes de subir para o seu quarto, Luminus aproximou-se de Tagodhar e Rhuror, e murmurou com o semblante retraído.

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— Não me agrada ver essas crianças a caminho de Crassen.— Não há outro jeito - respondeu-lhe Rhuror com a mesma seriedade. — Eles estão cientes das dificuldades que os esperam.— E mesmo assim arrasta a sua filha para o inferno com você? — reprovou o desenval.— Ela é uma guerreira, Luminus — respondeu o comandante faogard, endurecendo os próprios sentimentos.

Capítulo 26Nas Areias do Canormut

— O rio Mevarnon está a meia manhã daqui - informou Rhuror naquele límpido alvorecer, ao mesmo tempo em que puxava pelas rédeas o drancto para que ele se deitasse. — Será a última parada antes de avançarmos pelo Canormut. Como estamos de provisões, Tagodhar?— Muito bem abastecidos. Os seus animais carregam comida e água suficiente para cruzar com folga todo o deserto. E têm comida em seus estômagos para agüentarem por um longo período — disse ele, jogando um pano de cozinha sobre o ombro. — Mandarei a conta para o rei.— Cobre dele a minha comissão — brincou Rhuror, o drancto levantando-se com ele sobre as costas.— E Luminus? - quis saber Daniel.— Partiu antes que o sol saltasse do horizonte — disse Tagodhar, cobrindo os olhos com a mão para proteger-se do brilho da manhã. — Ele é

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assim mesmo, surge e desaparece como uma miragem.Uma dezena de cavaleiros faogards bem armados cercou a comitiva antes que se pusesse em marcha.— Oferecemos nossa escolta, senhor — disse o chefe dos soldados.— Não é necessário, oficial - recusou Rhuror mais uma vez, olhando para baixo. - Em terras estrangeiras a presença de soldados faogards pode significar uma declaração de guerra. Vocês serão muito mais úteis em Fena.Rhuror girou o drancto para a saída da cidadezinha e a caravana se pôs a caminho.No final da planície, naquela mesma manhã, despontou para eles o maior rio do continente; aquele que garantiria a fertilidade de toda a parte oriental do território faogard, o Mevarnon.As águas do Mevarnon eram preguiçosas e barrentas, embora espalhassem nutrientes e umidade por onde passassem, deixando faixas largas das margens densamente arbustivas e cercadas de árvores frutíferas. O rio nascia nas mais altas montanhas da cordilheira de Malthar e continuava sendo alimentado por dezenas de importantes afluentes.— Não se impressionem com essas águas turvas. Elas são de boa qualidade — disse Rhuror ao descer de seu incansável transporte. — Deixem os animais beberem à vontade.A parada foi muito curta e logo em seguida eles atravessaram o rio por uma ponte de madeira maciça que resistia a travessias há mais de um

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século. Rhuror e seu drancto foram os únicos obrigados a se molhar no Mevarnon. A ponte não resistiria a tanto peso concentrado.A vegetação foi tornando-se menos freqüente à medida que a marcha seguia mais para o leste, até que eles tiveram condições de avistar o esperado deserto.O Canormut estava encaixado uns duzentos metros abaixo em uma gigantesca depressão que se iniciava numa descida levemente íngreme, e que não ofereceria nenhuma dificuldade para que os gifenontes prosseguissem. O que era atualmente o deserto foi outrora um lago de água doce circundado por vilas e pequenas cidades que viviam da pesca e do comércio local; barcos de pequeno porte deslizavam pelo lago, contrastando suas velas brancas com a tranqüila água azul-diáfano; no entanto, segundo uma lenda, o lago havia secado a milhares de anos quando aconteceu a célebre guerra dos deuses irmãos. A lenda fala que toda a água evaporou-se em menos de um dia e formou uma gigantesca nuvem negra que foi levada para não se sabe onde. O que restou, foi apenas uma lembrança transformada em história incerta contada nas noites frias, durante milênios, por todos os que percorrem o malfadado deserto.Atualmente, a maior parte do Canormut ficou reduzida a um desolado mar de areia e dunas que podem atingir mais de cento e vinte metros de altura. Durante o dia, o calor torra o viajante ao ultrapassar os quarenta graus Celsius à

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sombra, se houvesse sombra; e à noite o frio despenca para menos de cinco graus positivos, forçando os desafortunados a lançarem mão de seus mais pesados casacos. Esse deserto era mais extenso e ainda mais seco que o Kundruir. Lagartos e alguns tipos de insetos eram as poucas espécies de vida que conseguiam resistir ao tratamento inóspito dado pelo Canormut; bem ao sul dele, era o longínquo oceano; do outro lado do deserto, mais ainda para leste, ficava a imponente cordilheira de Malthar que seria o próximo desafio, isso se eles conseguissem vencer o Canormut; ao norte, existiam as florestas de Sezvanell, misteriosas e quase inacessíveis; foi através delas que Alexei Martov fez boa parte de sua jornada, conforme teria registrado em seu livro de memórias.Nos primeiros quilômetros, o terreno ainda mantinha certa consistência provocada pela umidade das águas circulantes do Mevarnon; alguns arbustos encrespados e de pouco viço eram os últimos resquícios da vida vegetal, e o vento morno e contínuo avisava que este seria a voz reinante por todo o deserto. Logo a paisagem mudaria para um terreno arenoso que reduziria o ritmo dos cavalos, exigindo um esforço maior a cada movimento.Túnicas apropriadas protegiam os viajantes do sol e do vento seco, conservando a umidade e a saúde dos corpos.Névoas de areia se levantavam das cristas das dunas, sopradas pelo vento o que causava constantes mudanças na paisagem; um objeto

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esquecido talvez nunca mais fosse encontrado ao ser coberto pelas areias mutantes.O primeiro acampamento no Canormut foi erguido em terreno aberto o mais longe possível das dunas, pois o perigo das emboscadas voltou a ser um fator preocupante.A fogueira acesa atenuava o frio e iluminava com a sua luz trêmula os corpos cansados que se reuniam ao redor dela.— Aí está você, Wengarel - disse Margaret, deitada com o rosto voltado para o infinito como se todo o deserto fosse o seu leito e as estrelas o teto de seu quarto. - Nunca a tinha visto assim tão vermelha.— E parece que ficou maior — observou Chester —, como se fosse despencar sobre nós a qualquer momento.— Um efeito atmosférico — explicou Guillermo, cientificamente. - Porém, de imensa beleza... que não se compara aos olhos de rubi de uma linda moça — disse, lançando um olhar apaixonado para Talemine. Ela respondeu com um sorriso gentil nos lábios.Todo o deserto foi banhado por uma impressionante tonalidade rubra vinda de Wengarel, desde as ondulações das dunas até as infinitas faixas de areia que se estendiam até onde era possível ver.Rafael tirou a santinha de chumbo do bolso e buscou lembranças agradáveis de sua família... Ele segurava a imagem cinzenta contra a luz avermelhada da fogueira que proporcionava um

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efeito radiante nos contornos da pequena estatueta santificada.— E uma espécie de deusa? - perguntou Rhuror, sentando-se ao lado, a armadura produzindo uma sonoridade metálica.— Mais ou menos - respondeu Rafael, apreciando a luminosidade da chama em torno do seu minúsculo símbolo de fé. - Sinto muita falta dos meus pais, dos meus irmãos.Rafael parou de prestar atenção na santinha e olhou para o homenzarrão ao lado dele.— E o senhor, por que decidiu deixar a sua família? Pouco nos conhece e sabe que pode nunca mais voltar a ver a sua Faogard.Rhuror ouviu as palavras do garoto e depois ergueu os olhos para as estrelas.— Às vezes as nossas decisões são tomadas pelo que sentimos e não pela razão. Meu coração achou por bem eu estar com vocês até quando for necessário. Farei o melhor que puder enquanto estivermos juntos. Vê aquelas duas estrelas? - disse, apontando para duas das mais brilhantes do firmamento, a outra mão apoiada em um dos joelhos. - Fazem parte da constelação de Sargaleu, elas representam os olhos do deus que nos guia e nos protege. As estrelas, que chamamos de os olhos de Sargaleu, nos acompanharão sempre nas noites claras como essa, e mesmo durante o dia quando não conseguimos avistá-las e até pensamos que nos esqueceram, elas continuam lá, cuidando de cada um de nós. Acredito que seja desse jeito

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com a sua deusa, mesmo que não a veja, ela zela por você a cada instante.Os turnos de vigília tiveram início com Brian. Os dez cajados foram dispostos, enterrados na areia, de tal maneira que uma grande área do acampamento permanecesse iluminada e pudesse denunciar qualquer invasor a uma boa distância.Na profunda madrugada, quando quase todos dormiam à exceção de Roger, um ruído áspero cortou o silêncio; era quase imperceptível, mas foi o suficiente para que a sentinela armasse o seu arco e apontasse para um ponto na escuridão.— Viu alguma coisa, Roger? — sussurrou Rhuror, colocando-se em guarda com a espada em punho.— Vem daquele lado.— O que você viu?— Não consegui perceber nada, mas parecia que algo estava se arrastando além das luzes — disse, os olhos contraindo-se para enxergar mais longe.Rhuror guardou a espada e puxou o arco, engatando um flecha comprida capaz de atravessar o peito de um homem.— Me dê cobertura. Se qualquer coisa se mexer, atire sem hesitar.Àquela altura, todos já estavam de pé e munidos com as suas armas.Talemine agarrou um cajado luminoso e correu para junto do pai, armada com sua espada de lâmina reluzente.

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— Tenham cuidado! - alertou Margaret, tentando não gritar.— Tem certeza que o som veio desse lado? - perguntou Rhuror, dando mais uma olhada. - Parece que não há nada por aqui.Rhuror e Talemine recuaram com cautela, mantendo a guarda para a imensidão obscura do deserto.— Talvez não seja nada - supôs Rhuror, varrendo a penumbra com os olhos. - Mas você fez bem em considerar o ruído como uma ameaça.— Ainda temos muito tempo para dormir - disse Talemine, consultando a posição das estrelas. — O próximo turno é o meu, senhor Roger. A partir daqui eu assumo.— Eu fico com você - apresentou-se Guillermo.— Não pode ficar acordado - ela recusou. - Você vai me substituir no próximo turno. Precisa descansar.— Perdi o sono com essa agitação. E serão mais dois olhos atentos.— Duvido que seus olhos atentos desgrudarão de Talemine - disse Brian a Guillermo, em chacota, enrolando-se no cobertor até o pescoço.Daniel voltou a se deitar e buscou no céu, bem acima, a fascinante e misteriosa Wengarel; ele passou a observá-la minuciosamente, as manchas escuras indefiníveis, os contornos irregulares que deveriam ser montanhas altíssimas e vales imensos na superfície encarnada.— Interessante — comentou ele num murmúrio. — Wengarel parece maior.

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Daniel havia observado bem. A lua estava com o dobro do seu tamanho habitual.— Vocês notaram aquilo? — disse o menino inglês, elevando um pouco o tom da voz. - Olhem para Wengarel.— Quero dormir — reclamou Margaret.Daniel deu de ombros e preparou-se para pegar no sono, mas quando tornou a olhar para o céu, a circunferência de Wengarel estava ainda maior.— Tem alguma coisa errada com aquela lua — disse ele para Guillermo e Talemine enquanto se punha de pé novamente.— E só um efeito atmosférico. Pare de ser medroso, Daniel - caçoou Guillermo, balançando a cabeça em total menosprezo.Guillermo ergueu os olhos mais uma vez e Wengarel já ocupava um quarto de toda a abóbada celeste.Um vento estranho e forte penetrou por entre as dunas, levantando uma enorme quantidade de areia e jogando os cajados ao solo.Daniel tinha grande dificuldade de divisar o que estava a um metro à sua frente por causa do turbilhão de areia que se erguia furiosamente a centenas de metros do chão, fazendo-o entrar em pânico.A lua vermelha crescia ameaçadoramente sobre ele.— Wengarel! Wengarel vai cair sobre nós! Estamos perdidos! - berrava, esticando o braço para agarrar Margaret, mas viu sua irmã com os dedos fincados na areia, lutando para não ser

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levada, ela foi arrastada para longe, desaparecendo na poeira.— Margaret! Margaret! - gritou em desespero.O vento, agora fortíssimo, arrancou Daniel e seus amigos do chão e o rapaz só conseguiu, num lampejo, olhar através da poeira em desordem pelo ar, que Wengarel havia tomado metade do Armamento e pintado com o seu escarlate tudo o que existia. O drancto, tão pesado, passou girando nà sua frente como uma pena soprada.Ao ser atirado para cima, pela ventania, Daniel viu a areia do deserto escoar para dentro da terra como farinha em uma tigela furada. O terreno rochoso exposto começou a rachar e mostrar suas entranhas de magma vermelho incandescente.Daniel inspirou com força como se quisesse que todo o ar do planeta invadisse os seus pulmões.Olhou em volta. Quase todos estavam dormindo. Só conseguiu ouvir um risinho discreto de Talemine para Guillermo, um pouco abafado pela brisa do deserto.— Você está bem, Daniel? — perguntou Talemine.FOI SÓ MAIS UM PESADELO — pensou ele, e adormeceu.

A temperatura subia rapidamente no início da manhã.Água e alimento para os animais eram a maiores preocupações de Rhuror. Se ficassem sem transporte naquele lugar, estariam condenados à morte em poucos dias. Porém, eles estavam tão abastecidos que mesmo se houvesse atraso para

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completar o Canormut, ainda assim as reservas seriam mais do que suficientes.Rhuror examinou o terreno onde Roger tinha ouvido os sons estranhos na noite anterior.— Pegadas — disse ele. — Quatro homens estiveram aqui à noite, e usavam roupas compridas, vejam as marcas nesse lado onde o vento não apagou os vestígios.Rhuror olhou mais adiante.— Eles se aproximaram de nós a pé, deixando os cavalos distantes o suficiente para não fazerem barulho. Ali na frente estão os rastos dos seus animais, que se dirigem para o leste e logo adiante a pista se perde.— E quem você acha que são esses visitantes? — perguntou Roger.— Apostaria que são Seguidores de Arkopromis, ou alguém querendo se passar por eles — especulou o faogard. - Sinto-me mais seguro em movimento. Vamos embora daqui.Três dias se passaram e a caravana havia avançado mais de noventa quilômetros, o que era uma boa média naquelas circunstâncias.— A areia a partir daqui é mais compacta e assim poderemos ir mais rápido - avisou Rhuror, dando um comando para que o drancto aumentasse um pouco o ritmo.Quanto mais se aprofundavam pelo Canormut, o ar ficava mais sufocante. A necessidade de beber água aumentava e a fadiga tomava conta dos corpos.A única coisa que separava a cabeça dos viajantes do sol abrasador era um fino, mas

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eficaz capuz feito de pele de gangofal, um animal semelhante ao coiote, que vive em lugares áridos, alimentando-se da fauna local como lagartos e serpentes; o seu couro é excelente como isolante do calor e largamente utilizado por aqueles que costumam viajar pelos desertos. Sua pelagem é normalmente da cor da areia para facilitar a camuflagem. Alguns animais dessa espécie já foram vistos caçando muitos quilô-metros adentro do Canormut e do Kundruir, bem longe de qualquer fonte de água.A cordilheira crescia a leste, e apesar de estarem a grande distância, já era possível distinguir toda a grandeza das montanhas com os seus picos cobertos de neve.— Não é paradoxal? Nós aqui derretendo de calor no meio desse deserto e olhando para uma paisagem de gelo e temperaturas congelantes? - filosofou Marc, saudoso do frio europeu.— Você diria o contrário se estivesse congelando lá em cima - retorquiu Rafael, tirando a tampa do seu cantil e molhando a garganta com grandes goles de água.— Ainda prefiro os dias frios de final de ano em Paris. As noites são brilhantes e a minha casa fica aconchegante com a lareira crepitando.— Bem diferente dos natais onde nasci, com muito calor mesmo durante a noite — continuou Rafael. — Sempre achei estranho encontrar o Papai Noel de mangas compridas, touca e botas desfilando pelas ruas a uma temperatura de quase quarenta graus.

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— Não sei se todos concordam, mas tenho a sensação de que o dia está mais quente hoje - disse Margaret, fazendo uma expressão encalorada.— Você está certa, menina Margaret — concordou Rhuror. — Estamos passando pela faixa mais escaldante do Canormut. Aqui os ventos pouco fazem pelos pobres viajantes.Rhuror, por estar mais no alto, foi o primeiro a avistar uma coisa brilhante jogada na areia uns duzentos metros na frente. Eles se aproximaram e então viram que no caminho deles havia três adagas, cada uma delas disposta com a ponta voltada para as outras duas, formando um "Y". Eram as conhecidas adagas de lâminas bifurcadas.— Arkoprômidas, os Seguidores de Arkopromis - identificou Rhuror, ele desceu do drancto e se agachou tocando um dos joelhos na areia ardente, então pegou uma das adagas e examinou melhor constatando que estavam bem afiadas.— Por que eles abandonariam essas armas arrumadas desse jeito? — questionou Marc.— Não sei ao certo — respondeu Rhuror, as sobrancelhas vermelhas quase lhe cobrindo os olhos, ao se contraírem. - Mas acho que estão tentando mandar um recado. Esses sujeitos são cheios de simbolismos e a sua organização tem muitos segredos; quase nada se conhece sobre eles.— Posso ficar com uma dessas? - pediu Daniel, querendo uma adaga como se fosse um souvenir.

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— Receio que não seja apropriado — desaconselhou Brian. — Essas coisas podem ter tirado a vida de gente inocente e você não gostaria de carregar alguma coisa assim, não é mesmo?Daniel assentiu com a cabeça, um pouco desolado por não poder levar uma delas; as adagas eram bonitas e exóticas com seus cabos com estranhas figuras mitológicas trabalhadas em bronze.A jornada prosseguiu em velocidade constante naquele dia, de modo que ao cair da tarde, eles concluíram quarenta e dois quilômetros e ficaram um pouco mais próximos da inexpugnável cordilheira.— Os animais necessitarão de bastante água para se recobrarem do desgaste — disse Brian, desvencilhando um odre da anca carregada do drancto, afagando carinhosamente a queixada de seu gifenonte e lhe dizendo palavras encorajadoras. - Beba e descanse bastante meu corajoso amigo, você precisa estar bem disposto amanhã.— Aproveitaremos bem essa noite para o repouso e amanhã tentaremos superar a nossa melhor marca diária — disse Rhuror enquanto encaixava um dos cajados de luminita no chão arenoso.Daniel aconchegou-se próximo a fogueira e notou que sua irmã estava sentada em uma atitude que lhe causou demasiado interesse. Margaret, de olhos cerrados, segurava dois ramos secos unidos pelas extremidades; ela parecia estar em

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transe. Seu irmão esgueirou-se silenciosamente até ela e confirmou o que já havia suspeitado.— Você está querendo grudar esses gravetos? - perguntou ele em voz alta, mostrando um sorriso sarcástico. — Olhem só! A minha irmã pensa que tem poderes mágicos como o desenval.— Daniel Crowley, por que não me deixa em paz? Eu apenas exercitava o que Luminus me ensinou. Você é um ridículo estraga prazeres — ela desabafou, os gravetos foram atirados na fogueira erguendo fagulhas alaranjadas.— Alguém tem uma cola para emprestar pra ela? - perguntou Daniel, quase gritando com sua voz mordaz.— Não me provoque, Daniel Crowley! Você sabe muito bem do que sou capaz?— O que vai fazer? Atiçar o drancto em mim? — provocou em tom de troça.— E, pode ser. Quem sabe ele afunda você na areia para que eu nunca mais veja a sua cara idiota novamente? — gritou a menina com raiva.— Silêncio, vocês dois! — ordenou Brian com a voz alterada. - Não ouviram aquilo?— O que foi? - perguntou Daniel, interrompido de chofre.— Um som esquisito vindo de longe. Era algo parecido com um uivo ou um gemido, mas parecia ser humano - disse Brian, com uma expressão no rosto como se tentasse ouvir de novo aquele som.— Eu também ouvi - confirmou Talemine, estando mais distante do entrevero dos irmãos. — E de fato se assemelhava a voz humana.

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— Está satisfeito agora, senhor confusão? - murmurou Margaret a Daniel.— Eu? Você é que náo agüenta uma brincadeirinha inocente - defendeu-se com ar de vítima.— Vão começar de novo? — intrometeu-se Rafael, decidido a dar um fim ao desentendimento familiar.Com os estômagos cheios e a trégua que o calor havia dado durante a noite, não foi difícil que os extenuados peregrinos se recolhessem aos seus cantos no imenso areal.Brian tirava o primeiro turno de duas horas, sem que seus olhos cessassem um só minuto de vasculhar todos os recantos longínquos da escuridão. Guillermo o rendeu, e dessa vez não havia a companhia de sua Talemine, ela se deixou vencer pela exaustão que o Canormut lhe impusera.Daniel abriu os olhos no meio da noite, virou a cabeça e lá estava Guillermo de guarda, parcialmente iluminado pelo ondear da fogueira. O menino acomodava-se mais uma vez para o sono quando os seus olhos perceberam uma luz tênue, quase indistinta em um ponto distante na noite do deserto.— Oh, não! Outro pesadelo, não! - murmurou Daniel, sua voz quase não saiu.Ele beliscou com força o próprio braço para ter certeza se náo estava dormindo. Não estava. Então prestou mais atenção para garantir se a tal luz não era uma simples ilusão de ótica ou mesmo a criação enganosa de sua imaginação. A

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luz diminuta continuava desafiando a sua curiosidade.— Guillermo! - sussurrou com cautela para não despertar os outros.O espanhol virou-se para o rapaz que apontou para o ponto luminoso no deserto.— Consegue ver aquele brilho?Guillermo ajeitou-se melhor e firmou o olhar no negrume além das luzes do acampamento.— Aquela luz não estava ali meia hora atrás — comentou Guillermo. - Eu certamente a teria percebido.Rhuror ergueu a cabeça ao ser acordado pelo diálogo dos dois.— E luminita, e está a boa distância daqui — afirmou com a autoridade de quem sabe muito bem do que está falando.— Quem poderia ter colocado aquela luz? - perguntou Rafael, jogando o seu cobertor por cima do ombro para evitar o frio intenso.— Desconfio que todos imaginem a resposta — disse Talemine, encaixando uma flecha em seu arco, preparada para disparar ao menor perigo.— Os Assassinos de Arkopromis? - emendou Brian. - Foi a primeira coisa que pensei.— E se for um viajante solitário, temeroso em se aproximar? - aventou Margaret, os olhos inchados de sono.— Não acredito nisso - descartou Roger. - Se fosse um inofensivo viajante, viria até nós, demonstrando boas intenções. E se estivesse com medo, não exporia aquela luz como se fosse

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uma bandeira que pudesse ser vista a quilômetros.— Roger tem razão — concordou Rhuror. — Parece que quem fez aquilo quer ser notado, porém não deseja ser alcançado.— O que faremos? Iremos até lá e resolvemos logo essa questão? — quis saber Chester, impaciente.— Eu cheguei a pensar nisso - disse Rhuror, voltando-se para o garoto. - Mas acho que é isso mesmo que os nossos enigmáticos vizinhos querem que façamos. Acho mais prudente esperarmos até o dia clarear.Conforme o dia ia nascendo, a misteriosa luz esmaecia até desaparecer por completo.Rhuror ergueu-se no seu enorme animal e a caravana mais uma vez se colocou em marcha.Eles avançaram pouco mais que um quilômetro até se depararem com a fonte de luz que lhes causara preocupação durante a noite toda. Fincado na areia havia um cajado de quase dois metros de altura, e no seu topo, uma luminita detalhadamente esculpida em uma forma familiar.— O deus Arkopromis! - reconheceu Daniel, espantado com a visão do rosto assustador e cheio de ódio da escultura azulada. - Era isso que brilhava o tempo todo.— É um ritual - constatou Rhuror, sem descer do drancto, cruzando os dois braços e apoiando-os sobre um joelho. - Estão querendo transmitir uma mensagem que eu não consigo decifrar.— Primeiro, as adagas, e agora, a imagem do nefasto deus deles — analisou Brian, buscando

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uma compreensão dos fatos. - Você disse que é um ritual. Uma preparação para algo de maior importância: uma passagem, uma mudança ou uma comemoração.— Ou tudo isso junto - supôs Guillermo, observando os detalhes bem trabalhados enquanto passava os dedos nos entalhes do ídolo maligno. - Só não entendo por que os malditos não atacam de uma vez ao invés de nos rodearem como hienas em torno de um búfalo ferido.— Uma coisa é certa, Guillermo - disse Talemine com ponderação. — Cada gesto deles é calculado. Existe mais alguma coisa que ainda não sabemos.— Se abandonaram essa imagem pelo caminho, deve ser porque desejam que fiquemos com ela - deduziu Daniel, esperando que alguém lhe dissesse para levá-la junto.— Como um presente? - disse Roger. — Pode ser isso mesmo que eles querem. Uma pedra desse tamanho deve valer um bom dinheiro. Mas eu digo que devemos deixá-la exatamente aí, ignorando-a como fizemos com as adagas, frustrando os planos dos nossos inimigos.E assim foi feito. Arkopromis foi deixado para trás, servindo como um pequeno farol nas noites sombrias do Canormut.Era impressionante a capacidade que os Seguidores de Arkopromis tinham para desaparecer durante o dia como se fossem fantasmas e retornarem à noite fazendo das suas.

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Somente por um momento, Roger gostaria de ter o pescoço de um deles entre suas poderosas mãos e poder apertar até ver os olhos do desgraçado agonizante se esbugalharem e a língua asquerosa de duas pontas se contorcendo já totalmente roxa e saltando para fora da boca.Quando o sol se encontrava a pino, eles interromperam temporariamente a caminhada para dar uma boa dose de descanso aos cavalos. O drancto não tinha tal carência, mas, por via das dúvidas, o gigante cruzador do deserto aproveitava para repor as poucas energias perdidas.— Como é possível que um bicho dessas proporções não tenha tomado nenhuma gota d'água desde as margens do Mevarnon? - questionou Chester com natural admiração, tratando de saciar a sede do seu cavalo.— Ele praticamente não transpira e o seu imenso abdômen possui um reservatório com água suficiente para toda a nossa caravana, inclusive os gifenontes, até o fim da travessia do deserto - comentou Rhuror com satisfação estampada no rosto barbudo. - Mas aquela água é só pra ele. Nos contentemos com a que vai nos odres que ele carrega.Roger abriu o mapa conseguido em Nova Europa para verificar a rota.— Pelas coordenadas dessa carta, já vencemos sessenta por cento do Canormut.— Estamos dentro do prazo que foi estabelecido - disse Guillermo, enquanto fazia alguns cálculos mentais. — Podemos até reduzir o percurso a

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trinta e cinco quilômetros diários e assim mesmo chegaremos a tempo.As últimas gotas de água escorriam pelo bico de um dos odres atados ao drancto.— Essa bolsa esgotou - comunicou Chester a Rhuror enquanto fechava o seu cantil.— Abra um desse lado agora, para equilibrar o drancto - disse o faogard, mostrando um odre estufado de água, encoberto por um outro que já se encontrava vazio.Chester fez um esforço para deixar o odre cheio em posição de uso e puxou a ponteira para fora. Quando o lacre foi tirado a água jorrou com força, mas tinha alguma coisa errada.— Essa água está escura, senhor Rhuror - avisou, surpreso com a consistência e a cor do líquido.— Escura? Não pode ser. Tagodhar só abastece os viajantes com água potável dos seus poços - disse Rhuror, indo conferir.A água se tornava cada vez mais escura e, misturada a ela, era despejada uma grande quantidade de areia. O jato de água foi perdendo a força, até que restava apenas um creme de areia e água pingando da ponteira.Rhuror pulou em cima do drancto que estava deitado, e abriu a tampa superior do odre.— Só tem areia aqui dentro — disse ele, embasbacado com o que via.Então, Rhuror foi para o próximo odre que estava coberto pelos outros que já haviam sido utilizados. Estava abarrotado de areia molhada como o primeiro.— Verifiquem os outros! - gritou, consternado.

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Brian, Roger, Marc e Talemine foram abrindo os odres internos e a resposta foi idêntica.— Estão cheios de areia! — disse Roger. Talemine, Brian e Marc confirmaram a mesma coisa.— Sabotagem! — exclamou Rhuror, enraivecido.— Estivemos todo o tempo de olho no drancto, mesmo à noite — disse Rafael, imaginando uma explicação plausível. - A não ser que...— A areia foi colocada em Fena — completou Marc.— Você está certo, garoto Marc — apoiou Rhuror, ele pegou um punhado de areia de dentro do odre e o olhou com desprezo, depois deixou escorrer pela mão para o deserto. — E eu fico pensando quem poderia ter feito essa patifaria.— Acha que pode ter sido Tagodhar? — perguntou Brian, querendo acreditar que não seria aquele homem que se mostrou tão hospitaleiro e gentil.— Ponho a minha garganta no aço de uma espada por ele — disse Rhuror com firmeza. — Ele não faria isso — garantiu.— Luminus? Não, Luminus não nos trairia — analisou Daniel, torcendo com todas as suas forças que o desenval não fosse um mau caráter.— Provavelmente também não foi ele - rejeitou Rhuror tal hipótese, os olhos vagando pensativos pelo deserto.— Poderia ser qualquer um naquela estalagem, pai — considerou Talemine.—Fena recebe visitantes de todos os tipos, vindos de muitos lugares. A lista de suspeitos seria imensa.

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— Mas um nome não me sai da cabeça — disse Rhuror, o ódio crescendo nos seus olhos.— Você está pensando em Lughy? - indagou Guillermo, que acabava de colocar o mestiço de comportamento duvidoso como o primeiro suspeito.— Acho que não sou só eu quem desconfia dele - disse o comandante faogard, enquanto soltava as fortes presilhas que seguravam os odres no lombo do drancto.— Essa areia é peso morto. Vamos esvaziar os odres e recolocá-los nos suportes.— Uma única pessoa não teria condições de encher os odres com tal volume de areia — salientou Margaret. — Portanto, quem executou o trabalho sujo obteve ajuda de mais pessoas.— O que você diz é bastante provável — disse Brian em concordância.— Só nos restou uma bolsa com água pela metade — comunicou Talemine, após contabilizar o prejuízo causado pela sabotagem. — Não temos água o bastante para prosseguir e muito menos para voltar. Estamos presos no meio do Canormut.

Capítulo 27Um Sombrio Ponto no Mapa

Apreensivo, Rhuror ficou em silêncio, pensando em alguma coisa que os tirasse daquele inferno.Rafael olhou o seu cantil e se certificou que ele estivesse bem fechado; não era o momento de

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correr nenhum risco de desperdício. Ele confidenciou a Marc.— De repente fiquei com uma enorme sede.— Eu tive a mesma sensação — disse Marc, passando o dorso da mão no pescoço suado. — E tenho até a impressão de que estou transpirando mais que o de costume.— Tenho algumas alternativas e quero ouvir a opinião de vocês sobre elas - disse Rhuror, pulando para o chão. — Uma delas é cruzarmos o restante do deserto somente utilizando o drancto. Tenho certeza que ele suporta bem sem ter que reabastecer.— Sabemos disso, mas, e os cavalos? O que acontecerá com eles? - procurou saber Guillermo.— Nesse caso, serão abandonados a própria sorte. Não temos água para todos, e se querem saber, o que temos de reserva não chega nem mesmo para o nosso consumo. As chances de morrermos de sede pelo caminho são quase absolutas. Outro problema, é que mesmo se chegássemos vivos aos limites do Canormut, não teríamos como seguir sem os gifenontes através da cordilheira; o drancto é muito grande e sua constituição não serve para caminhar pelas gretas e escarpas que ainda estão por vir.— Não podemos deixá-los aqui - protestou Chester, temendo novamente a perda de mais cavalos.— São eles ou nós - disse Brian com desânimo.— O que mais você sugere? — perguntou Roger no mesmo instante em que abria outra vez o mapa

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da Cadecália, usando a sela de seu cavalo como apoio.— Uma outra possibilidade seria a de sacrificar o drancto e retirar a água de seus estômagos - sugeriu Rhuror com algum pesar, pois ele adorava o animal. - Mas o sangue poderia se misturar a ela, e a reação do sangue com o calor intenso talvez deixassem a água imprópria para o consumo.As largas narinas do drancto dilatavam e se contraíam com a sua forte respiração.— Isso é mórbido! — censurou Chester com veemência. — Prefiro morrer de sede.— Ele só está sendo prático — disse Talemine com a frieza que as circunstâncias exigiam.— E como se mata uma fortaleza desse tamanho? - perguntou Rafael, olhando o quadrúpede gigante de pele tão grossa como um muro de pedra.— Por que você náo fecha essa boca? — reclamou Chester, desferindo um olhar exasperado para o amigo.— Tá bem, tá bem. Foi só uma pergunta — defendeu-se Rafael, as mãos erguidas em sinal de paz.Ao esquadrinhar o mapa minuciosamente, Roger atentou para um detalhe quase sem importância.— O que é esse pequeno círculo quase imperceptível no meio do deserto?Rhuror tomou o mapa em suas mãos e o olhou com seriedade.— Essa é a última alternativa que me ocorreu, o Zsenesh.

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— O que disse? - pediu Brian, para que Rhuror explicasse melhor.— Meu pai se referiu ao Zsenesh, o quase desconhecido lago situado ao sul de onde estamos - disse Talemine enquanto se aproximava de Rhuror que detinha o mapa.Rhuror prosseguiu falando sobre o lago.— O Zsenesh fica fora de qualquer rota que cruza o Canormut, pois o seu nome está envolto em sombrias histórias que são contadas há séculos, por todos os recantos da Cadecália.— E do que falam essas histórias? - perguntou Margaret, os olhos brilhando de atenção.— São contraditórias - explicou Rhuror —, falam de magia poderosa que escraviza as almas dos desafortunados que ousam chegar na beira do lago; de monstros que habitam suas águas e devoram os incautos, e coisas do gênero. Quem passa pelo Canormut tem medo do Zsenesh, pois contam que existem maldições muito antigas que condenam os pobres infelizes a uma eternidade de terror. Por causa dessas lendas é que ninguém em seu juízo se atreve a ir até lá.— Pelo que entendi, vocês nunca visitaram o lago — disse Marc a Rhuror e Talemine.— Realmente não — respondeu o faogard. — Mas meu pai contava que esteve no Zsenesh quando ainda era garoto, mais ou menos com a sua idade. — Rhuror devolveu o mapa a Roger e continuou a falar: — Ele cruzava o Canormut numa expedição com uma tropa de guerreiros chefiada pelo meu avô. A curiosidade os levou

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até o lago e ele chegou a beber da água do Zsenesh.— O que ele viu lá? — indagou Daniel, se deliciando com a narrativa, deixando a imaginação voar.— Meu pai falava de uma mulher idosa que habitava uma casa simples rodeada de palmeiras e vegetação rala. O lago ficava um pouco mais distante. Ele dizia que era de uma beleza incomum e brilhava no sol forte.— E o que mais aconteceu? — perguntou Marc, ávido por saber do desfecho.— Ele não viu nada que o deixasse aterrorizado, mas mesmo depois de muitos anos, meu pai comentava que nunca se esqueceu da angústia que sentiu na beira daquelas águas, um sentimento ruim que vinha das profundezas do lago cristalino e que aquilo ficaria marcado na sua mente até o fim da sua vida.— Não me pareceu uma história tão assustadora - observou Margaret com certo desdém.-Assustadora ou não, acho que o lago Zsenesh é a opção mais viável - posicionou-se Brian, sabendo que quanto mais tempo ficassem ali discutindo, menores seriam as chances de sobreviverem ao Canormut. - Eu digo que devemos rumar para o lago.— Meu voto é pelo lago - disse Chester, pensando na sobrevivência dos animais.— Eu quero conhecer esse misterioso lago Zsenesh - pronunciou-se Daniel, que foi seguido por Margaret, Marc e Rafael.

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— Bem, já que meu voto não altera nada, vou com vocês - assentiu Guillermo. - Você sabe como chegar até ele? - direcionou a pergunta à Rhuror.— O mapa não define bem, mas pelas informações que eu tenho, não será muito difícil encontrá-lo.Rhuror olhou para o sol e avaliou a posição da cordilheira de Malthar.— Teremos que retroceder um pouco, apontando nossa rota para sudoeste. O Zsenesh deve estar a aproximadamente cento e dez a cento e vinte pharteions. — O faogard fez um breve cálculo de conversão. — Isso eqüivale a uns cento e setenta a cento e noventa dos seus quilômetros de distância. Chegaremos em quatro ou cinco dias. A água que restou no último odre será destinada aos gifenontes. Ávida de vocês depende do que estiver nos cantis, vocês entenderam?Um silêncio de aceitação foi a resposta.A jornada recomeçou.Os quatro ou cinco dias estimados por Rhuror causaram inquietação ao Chester.— E muito longe. Os cavalos não agüentarão o esforço com tão pouca água — murmurou o jovem americano para que Daniel ouvisse.— Não há outra saída, Chester. Os cavalos terão de resistir.Chester balançou a cabeça em negação. Sabia dos limites de um eqüino debaixo daquele sol escaldante sem quase ter o que beber, e ainda tendo que carregá-lo o tempo todo.A temperatura rompia a casa dos quarenta graus Celsius debaixo dos capuzes protetores feitos das isolantes peles de gangofal. Se não fossem essas

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membranas de proteção térmica, as cabeças dos aventureiros enfrentariam um calor que excederia os sessenta graus, podendo levá-los à morte em poucas horas.Sem ter o que fazer a não ser cavalgar, Rafael pôs-se a realizar uma coisa que lhe agradava: tentar decifrar enigmas.— Tem alguma coisa que não fecha nessa história toda - refletiu ao balanço de seu cavalo. — Quem sabotou a nossa água poderia muito bem ter colocado nela algum tipo de veneno. Estaríamos todos mortos agora.— E daí? - Marc estimulou que o amigo desse prosseguimento a sua teoria.— Daí, que eu acho que o propósito de quem está por trás disso não é o de provocar a nossa morte.— Se é assim, por que nos deixaram sem água no meio do deserto?— É essa a pergunta que eu também estou me fazendo - concluiu Rafael.A capacidade de cada cantil era de um litro e meio, o que daria uma média de trezentos mililitros diários para cada um dos viajantes.A desidratação seria a grande inimiga nos próximos dias, e era o que mais preocupava, não saindo da cabeça atormentada de Brian.— Fique de olho nos meninos — disse ele a Guillermo que seguia ao seu lado. - Receio que os piores sintomas da desidratação se manifestarão antes que alcancemos o lago.— Preocupe-se também com você, inglês - alertou Guillermo, de volta. - O seu rosto está brilhando de suor.

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O sol a pino era o momento mais crítico da viagem, exigindo muito mais dos cavalos; e quando a noite caiu sobre o Canormut, foi um grande alívio para todos que tinham as gargantas completamente ressequidas.Viajar durante o dia e quase sem água estava fazendo os integrantes da jornada desidratarem depressa demais. Alguma coisa deveria ser feita rapidamente.— E se caminhássemos à noite? - propôs Chester a Rhuror, aliviando o seu cavalo da penosa carga. - Passaríamos o dia descansando sob as tendas, poupando mais energia.— A visão se restringe muito na escuridão. Você sabe disso, Chester. Os arkoprômidas só estão aguardando uma oportunidade como essa para nos pegar.-Temo pelos cavalos, senhor Rhuror - insistiu o garoto -, a falta d'água pode matá-los.— Entendo a sua inquietação - solidarizou-se o faogard, apoiando a pesada mão no ombro de Chester. - Deixe-me ver o que podemos fazer.Rhuror pensou numa maneira de evitar as horas mais quentes do Canormut. Logo ele resolveu.— Faremos desse jeito - disse ele —, quando as temperaturas se apresentarem mais altas, daremos uma parada. E seguiremos em frente até o anoitecer. - Rhuror olhou para Chester com afeto: — Está melhor assim?— Creio que sim... Espero que sim - respondeu com simplicidade.No meio do seu sono conturbado, durante a madrugada, Daniel teve outro dos seus

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pesadelos: ele se viu sozinho no meio do deserto, cercado por nove cruzes fincadas na areia. Uma cova profunda estava bem ao seu lado como se esperasse pacientemente para sepultar o décimo viajante. Daniel, então leu os nomes gravados em cada cruz e seu coração bateu angustiado quando ele viu o nome de sua irmã escrito em uma delas. Ao acordar, com a respiração alterada, viu a luz da fogueira se materializando diante dos seus olhos azuis. Então, sentou-se levando as mãos à cabeça, e pensou: QUANDO ESSES MALDITOS PESADELOS ME DEIXARÃO EM PAZ?— Algum problema, Daniel? — perguntou Roger, que tirava o turno de vigia.— Não é nada. — Limitou-se a responder e deitou-se novamente, buscando o sono que havia sido interrompido.O sol ainda não havia nascido e Rhuror já dava o sinal para que o acampamento fosse desmanchado. A viagem tinha que ser reiniciada antes que o calor se acentuasse e fizesse a caravana sofrer com o drástico racionamento de água.Com o passar dos dias, e como um fantasma que anuncia uma grande desgraça, os sintomas da desidratação se manifestaram nos corpos enfraquecidos. Os cantis secaram e o calor era sufocante, e se o lago não fosse logo encontrado, não haveria mais nenhuma esperança; o pesadelo de Daniel se confirmaria e o deserto do Canormut faria o papel de túmulo, encerrando os corpos sem vida sob a fina e movediça areia, para sempre.

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A presença dos seguidores de Arkopromis não foi mais notada.Os jovens aventureiros foram os primeiros a serem afetados sentindo fortes tonturas, náuseas e latejantes dores de cabeça.Os cantis estavam totalmente secos no quarto dia.A visão de Margaret embaçava e a respiração tornava-se cada vez mais difícil, mas ela resistia e tentava com muito custo esconder o seu sofrimento.Àquela altura, o lago Zsenesh já deveria ter sido avistado e Guillermo queria saber por que isso não estava acontecendo.— O que está havendo, Rhuror? Estamos perdidos?— Não entendo. Pelos meus cálculos, o lago deveria estar bem a nossa frente - respondeu o faogard, apreensivo, empenhando-se para achar algum sinal de dunas no horizonte.Guillermo sentiu que Rhuror estava visivelmente preocupado e não resistiu em fazer uma outra pergunta.— Vamos sair dessa, guerreiro?— Iremos em frente — foi apenas o que ele respondeu.Enquanto a tarde se arrastava, a caravana era tomada pela incerteza, e sem água, os rins também começariam a falhar.Marc experimentava uma profunda letargia e suas pálpebras pesavam como chumbo.— Devo estar tendo alucinações - disse para Rafael, com voz arrastada, enquanto segurava

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sua flauta como se ela fosse um poderoso amuleto. - O relevo à nossa direita está estranho.Rafael virou a cabeça com dificuldade para o ponto em que Marc se referia. Ele firmou a vista e também percebeu algo diferente da brancura amarelada e monótona do deserto.— Mas tem alguma coisa lá — balbuciou com dificuldade, a boca seca como se mastigasse areia. — Senhor Rhuror! — esforçou-se ao máximo para ser ouvido. — O que é aquilo?— Por todos os bons deuses! — exclamou Rhuror, percebendo uma formação entre as ondulações do deserto. - São árvores. Encontramos o lago! — gritou, indicando a direção. — Estamos salvos, senhor Guillermo! - anunciou, dirigindo o drancto para a direita.Um sorriso de alívio nasceu no rosto de Guillermo que forçou seu gifenonte para uma cavalgada de uns dois quilômetros que valeria muito à pena. Era a salvação de toda a expedição.O Zsenesh ainda não podia ser visto. A vasta massa de árvores parecia querer esconder o lago, mas era sem dúvida um oásis fulgurante que brotava no meio do Canormut estéril. O terreno arenoso e instável cedia vez ao solo firme que recebia sombras frescas das folhas largas das palmeiras robustas.Foram, talvez, os dois quilômetros mais longos que eles percorreram até então. Ao se aproximarem da primeira barreira de palmeiras, sentiram uma brisa refrescante soprada do interior do oásis.

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— O paraíso deve ser assim - comentou Rafael com profundo alívio.Entretanto, as gargantas ainda estavam secas e arranhavam como se tivessem engolido arame farpado.Roger foi o primeiro a apear e trazer o seu cavalo para a sombra; os outros fizeram a mesma coisa e só o drancto ficou impossibilitado de continuar, pois não havia espaço entre as árvores para ele, mas para o animal de grande estatura não fazia muita diferença, já que a sua pele dura também tinha a função de refrigerar o seu corpo descomunal.Uma trilha levava para o interior do oásis e à medida que caminhavam, um perfume delicioso de frutas frescas foi tomando conta do ar.— Nada do lago por enquanto — disse Brian, enquanto tocava os troncos majestosos das palmeiras.— Nós o encontraremos a qualquer momento — disse Rhuror que seguia logo atrás. - E só uma questão de tempo.Alguns pássaros voavam e gorjeavam entre as palmeiras trazendo alegria com estardalhaço.Frutos secos e despedaçados, caídos das palmeiras, se espalhavam pelo chão; eram grandes como bolas de boliche e suas cascas possuíam um marrom achocolatado.— O que é isso? - perguntou Rafael a Talemine, apontando para os frutos que se encontravam próximo dele.— É uma pasca - explicou a faogard. — É boa de comer e tem muitos nutrientes que poderiam

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sustentar uma pessoa por toda vida, mas você não gostaria de comer só isso pra sempre, não é mesmo? Essa aí está velha e seca, mas aquelas penduradas lá em cima estão maduras, quer experimentar uma?— Quero, sim - disse o rapaz, curioso para saber como era o sabor de uma pasca.Com naturalidade, Talemine armou o seu arco e disparou uma flecha certeiraem uma pasca que pendia da palmeira mais carregada ao lado da trilha. O fruto despencou pesadamente e se esborrachou no solo despejando imediatamente um cheiro adocicado.— Prove — convidou Talemine, ela mesma pegando um pedaço e levando à boca.Confiando que devia ter um gosto agradável, Rafael experimentou a polpa carnuda da pasca e deu seu parecer depois de saborear por um momento.— É muito bom. Acho que deveríamos levar algumas dessas na viagem.— É uma boa idéia - disse Brian. — Mas agora, necessitamos de água, muita água.A cabeça de Margaret doía intensamente e ela não conseguia raciocinar direito.— Preciso de água, não estou me sentindo muito bem.Então, imediatamente depois de uma curva que a trilha fazia, eles puderam avistar uma cabana simples de paredes feitas de uma trama de raízes, estacas de madeira e o teto forrado com alguma espécie de palha grossa.

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À medida que chegavam mais perto da cabana, sentiam um aroma forte de comida assando. Alguém morava ali, sem dúvida.O alerta foi dado quando Rhuror sacou a espada e aproximou-se da entrada da casa de aparência rústica.— Ora, ora. Quem poderia imaginar. Pessoas tão nobres vieram visitar a minha humilde morada — disse uma voz esganiçada, fazendo Rhuror desviar a ponta de sua espada e Talemine vergar o seu arco e mirar rapidamente uma flecha para aquele lado.O que viram foi uma senhora idosa, uma faogard, certamente deveria ter mais de oitenta anos, atravessando a clareira arrastando os pés e não dando nenhuma importância para as armas que estavam sendo apontadas para ela. A agitada senhora, adiantada em anos, vestia-se de maneira modesta, e o material de que eram feitas as suas vestes deveria ter sido conseguido ali mesmo naquele oásis.Ela estacou e encarou a todos com ar sério.— O que estão olhando? Parece que viram um fantasma ou algum desses monstros das lendas.Imediatamente, todos se lembraram do que Rhuror havia contado dias atrás sobre uma mulher que habitava as proximidades do lago.A mulher idosa pôs-se mais uma vez em movimento e continuou falando.— Vamos, vamos, vocês devem estar com fome. A comida está quase pronta e acho que tenho o suficiente para todos - ela parou e pensou um pouco, voltou a falar como se conversasse com

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ela mesma. - Bem, talvez eu tenha que assar mais alguns peixes.— Na verdade, estamos à procura de água, senhora — disse Guillermo, apreensivo com o estado de Margaret.— Mas que bom ouvir outra voz que não seja a minha — disse ela com uma expressão feliz; as rugas em seu rosto se pronunciaram. — Por um momento pensei que vocês fossem alguma espécie de miragem. De vez em quando eu vejo alguma no meio desse deserto.Ela fez mais uma pausa para raciocinar; sua memória não devia ser muito boa.-Ah, sim, sobre a água. Receio que não disponho do bastante por aqui. Mas o lago tem água limpa e fresca e vocês podem ir até ele e pegar a quantidade que quiserem.— A garota que está conosco não passa bem — informou Brian, mostrando Margaret. - Pedimos apenas um pouco da sua água para ela.— Mas que velha desatenta eu sou - disse quando se deu conta da situação debilitada de Margaret. — Venha, minha querida, tenho uma jarra na cabana que vai saciar a sua sede. Uma jovem tão bonita como você não pode ficar desse jeito.A anciã ofereceu um banco tosco para Margaret sentar-se e encheu um copo de madeira até a boca.O interior da cabana era presumidamente muito modesto; alguns cestos e panelas pendiam do teto e das frágeis paredes, pendurados por ganchos. Ao lado de uma janela, dois peixes

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assavam sobre uma grelha. Tudo era muito simples e inofensivo.— Beba aos poucos, querida, ou você vai enjoar — disse com delicadeza. — Bebam vocês também - ela falou para os outros viajantes. - Não é muita coisa, mas dá para agüentar até que possam ir ao lago e se reabastecerem.A velha se dirigiu a um canto dentro da cabana e mergulhou a jarra num pequeno barril com água.— Está aqui - disse ela. - Peguem o quanto desejarem. Peguem tudo.A mulher arregalou os olhos e disse, deslocada.— Oh! Desculpem a minha falta de educação, devo estar ficando caduca. Não me apresentei ainda. Meu nome é Menagbel.Sem tirar os olhos da simpática velhinha faogard, Rhuror encostou em Brian e Roger, e fez uma observação.— Se essa mulher for a mesma que meu pai e meu avô viram quando aqui estiveram, deve ser muito mais velha do que eu suponho. Ela já seria bem velha naquele tempo.— E se for a mesma? — perguntou Brian.— Nesse caso, ela ainda está viva sob o efeito de magia.— Eu sei o que vocês devem estar se perguntando - disse Menagbel com sorriso malicioso - o que uma velha decrépita está fazendo sozinha num oásis perdido no Canormut? Pois eu lhes digo, é o melhor lugar que conheço para se viver. Tenho comida, água e sossego de sobra, a combinação perfeita para uma pessoa na minha idade.Aproveitando a deixa, Rhuror resolveu perguntar.

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— Faz muito tempo que meu pai esteve visitando o Zsenesh, e na época ele ainda era uma criança. Meu pai contava que havia uma mulher muito velha que morava aqui.Depois de uma risada descontraída, Menagbel respondeu:— E você acha que aquela velha e eu somos a mesma pessoa. Você está certo, honrado faogard. Estou viva a muito mais tempo do que você pode presumir. São os peixes.— O que têm os peixes? — quis saber Marc, fixando o olhar nos que ainda assavam na grelha.Com um semblante afável, Menagbel voltou-se para o garoto francês e explicou:— Acredito que esses peixes tenham propriedades mágicas que não permitem que eu deixe esse mundo. Mas pode ser a água do lago, também. Não sei direito o que acontece. Só sei que os peixes são deliciosos e a água sempre se conserva fresca mesmo nos dias mais quentes.Erguendo as sobrancelhas como num susto, Menagbel disse.— Falando em peixes, tenho que assar mais alguns. Como serei uma boa anfitriã se nem consigo oferecer uma modesta refeição aos meus convidados?Pegando alguns peixes pelo rabo, Menagbel os temperou com destreza e depositou-os sobre a grelha; em seguida ela colocou os outros dois peixes, já assados, em uma travessa sobre a mesa que ficava do lado de fora da cabana.— Sempre faço as minhas refeições ao ar livre - disse ela, chamando com um aceno os novos

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amigos para a mesa. — É bom ficar olhando as pascas caírem das árvores. Como essas frutas há tanto tempo e ainda não me cansei delas.Ela parou por um instante e voltou a tagarelar.— O que estão esperando? Avancem sobre a comida. Não está envenenada — ela mesma destrinchou um pedaço e comeu. — Há mais peixes no fogo, e se faltar, eu pesco mais no lago.— Eu vou provar um pouco - disse Margaret se sentindo melhor, os olhos cheios de vida novamente.O peixe estava delicioso. Após décadas, ou talvez muito mais tempo preparando aqueles petiscos, Menagbel provou, que de fato, sabia cozinhar muito bem.Mesmo quando comia, Roger perscrutava através das árvores até o fundo do oásis. Ele desconfiava de tudo, até de uma velhinha encantadora e indefesa. Por outro lado, estar sempre alerta às vezes se tornava estressante mesmo para um homem como ele.Talemine foi a única a não tocar na comida.Depois de cochichar com Daniel, Margaret voltou-se para Menagbel e foi direta.— Madame, quantos anos tem?— Náo é nada educado perguntar a idade de uma senhora, ainda mais quando ela é bem mais velha do que a soma das idades de todos vocês.— Verdade? — perguntou a menina, os olhos redondos de espanto.— Quem sabe? - respondeu Menagbel sorrindo de forma enigmática.

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— Se ela vive a tanto tempo como diz, quero comer muitos peixes e beber muita água do lago — sussurrou Chester para Rafael.— E ficar enrugado como ela? Não, obrigado - desvencilhou-se Rafael. - Se um dia o feitiço acabasse você viraria poeira.Menagbel lançou um olhar sinistro para os meninos.— Andei sobre esse deserto quando ele ainda era lama, logo depois que o lago deixou de existir. — Depois sorriu, zombeteira, os dentes amarelos e encavalados.— Ela náo pode ser tão velha assim - duvidou Marc, sussurrando para Daniel.— Rhuror não havia dito que o lago desapareceu há milhares de anos?— Foi o que ele disse - admitiu Daniel, sentindo-se como se estivesse olhando para Cleópatra ressuscitada.— Como veio parar aqui, madame Menagbel? - perguntou Daniel chegando mais perto.— Se vocês querem ouvir uma história sem graça, bem... então eu não me importo de contar.Menagbel fechou os olhos procurando lembranças bem antigas, e começou:— Meus pais eram comerciantes quando eu ainda era muito, muito pequena, e sempre me levavam em suas andanças. Um dia se cansaram e vieram para esse maravilhoso oásis. Eles se fixaram por aqui e nunca mais saíram. Eu, que não conhecia ninguém além do deserto, acabei ficando e estou até hoje.

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— E nunca teve curiosidade de conhecer outros lugares? - perguntou Chester.— Se um dia tive, o tempo se encarregou de apagar da minha mente. Hoje só penso em cuidar das minhas palmeiras e pescar no lago. É o suficiente para quem não espera mais nada da vida.Menagbel endireitou o corpo e falou contente:— Mas agora o que me interessa é tratar bem as visitas. Querem mais peixe?— A viagem até aqui nos deixou esgotados — disse Guillermo. — Só queremos recobrar as forças e seguir para o leste, senhora Menagbel.— Então descansem essa noite e amanhã vocês pegam a água no lago. Assim, todos estarão bem melhor para enfrentarem novamente o deserto — sugeriu Menagbel, generosamente. — Não demora muito e já vai escurecer e se forem no lago agora, não conseguirão ver o seu brilho prateado na luz da manhã. É deslumbrante!— Náo vejo outro jeito — disse Brian a Guillermo e Roger, abrindo os braços e se rendendo ao convite. — Uma noite no oásis será benéfico, principalmente para os garotos.— Ficamos por essa noite e amanhã seguimos bem cedo - concordou Rhuror.— Verei como está o drancto e limpar os odres para receberem a água.— Eu ajudo — disse Chester, seguindo o faogard por entre as palmeiras.Com passos ágeis para a sua idade, Menagbel dirigiu-se até Talemine, parando bem à sua frente.

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— Você não é muito de conversa, mocinha. O seu olhar está amargo.— Só quero a água e ir embora daqui rapidamente, senhora — respondeu ela com frieza.— Você é muito sisuda para uma moça tão linda. Isso pode se tornar um problema na sua vida. Um passeio no lago fará bem a você.— A minha vida e os meus problemas só competem a mim - respondeu com grosseria, encarando a mulher como se fosse agredi-la.— Oh! Perdoe-me, minha jovem. Só queria conversar um pouco e deixá-la à vontade — ergueu as mãos como se evitasse tocá-la.— Precisamos de mais peixe aqui — gritou Guillermo, como desculpa para interromper a discussão.O espanhol se intrometeu e pediu.— A senhora poderia assar mais um pouco?— Como quiser — disse ela com brandura, e se afastou para a grelha.— O que houve, Talemine? Por que está agindo assim com ela? Qual é o problema? — perguntou Guillermo, discretamente para que Menagbel não os escutasse.— Não gosto dela. Não gosto do modo como ela faz uso das palavras.Tem alguma coisa nessa mulher que me soa com falsidade.— Ela só quer ser gentil conosco - disse Guillermo, tentando esfriar os ânimos.— Acho que você ficou tanto tempo lidando com guerreiros e armas que se esqueceu que as pessoas podem ser amáveis de vez em quando.

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— Ela não é amável. É dissimulada. E por trás de cada palavra há uma outra intenção - disse com convicção, os olhos vermelhos como ferro em brasa, e saiu irritada.— Não vai comer o peixe? — perguntou numa última tentativa.— Prefiro as nossas raízes secas — respondeu decidida, sem olhar para trás. Sem saber como proceder, Guillermo deu de ombros e retornou ao peixe. Após tirarem o resto da areia dos odres, Rhuror e Chester voltaram à cabana.Rhuror decidiu passar a noite com o drancto para evitar uma nova sabotagem.A noite no oásis não era fria como no deserto, a ponto de não haver necessidade de usarem os cobertores para dormir.Dias frescos e noites aconchegantes. Sem dúvida, alguma espécie de magia poderosa envolvia o oásis.Passaram uma noite sossegada em frente à cabana e só acordaram quando os primeiros pássaros começaram a chilrear, iniciando uma nova manhã.Desejando um bom dia, Menagbel trouxe um creme de pasca para o desjejum.— Essa é outra de minhas especialidades culinárias — disse ela. — Aposto que vão querer repetir quando comerem essa iguaria.E mais uma vez, Menagbel náo desapontou. O creme de pasca estava realmente delicioso, mas foi recusado por Talemine que se limitou a comer o que havia nos alforjes.

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Terminada a refeição, Menagbel avisou enquanto recolhia as bandejas.— Esse é um bom momento para uma visita ao Zsenesh. O sol ainda não está alto e o efeito da luz da manhã sobre o lago é maravilhoso.— O drancto não passa pelo oásis sem derrubar muitas árvores... - tentou explicar Rhuror.— Contorne pelo lado leste e há uma passagem larga o bastante para o seu animalzinho - brincou ela.— A senhora vem com a gente? - perguntou Brian.— O lago não é novidade pra mim, e posso visitá-lo quando bem entender. Mas vocês se surpreenderão quando o virem - disse Menagbel, esfregando as mãos galhudas como uma árvore velha no outono.Margaret, movida pelo incontrolável desejo de conhecer o lago, pulou imediatamente no seu cavalo.— Não se apresse mana, a água do lago não vai evaporar - disse Daniel, ainda apertando a sela.— Você é muito mole, Daniel. Não ouviu o que Menagbel disse? A essa hora o Zsenesh está muito mais bonito e eu não quero perder essa oportunidade por nada.— Sigam por ali — disse Menagbel, apontando para um lado onde a trilha se perdia. — O Zsenesh fica a quase dois pharteions em linha reta.Isso dá cerca de três quilômetros — calculou Roger, de cabeça.Talemine e Guillermo não montaram em seus gifenontes.

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— O que vocês dois estão esperando? — perguntou Brian.— Vamos ficar e esperar vocês voltarem — avisou Guillermo. — Não temos vontade de ver nenhum lago.— Como pode ser isso? - protestou Menagbel. - O lago mais fascinante que existe e vocês não querem dar uma olhada?— Ficaremos aqui mesmo, senhora — disse Talemine, definitivamente.Rhuror puxou a filha a um canto e perguntou num sussurro com a sua voz grave.— O que vocês pretendem?— Ficar de olho nessa bruxa. Se ela tentar nos enganar, minha espada dará um fim à sua longevidade.— Filha, cuidado para não cometer um engano.— Ò mesmo digo pra você, pai - advertiu com gravidade.A caravana seguiu na trilha estreita até saírem numa zona de deserto circundada por milhares de palmeiras. Rhuror e seu drancto levariam mais tempo dando a volta por fora.Foi então que perceberam que o oásis formava um enorme círculo que rodeava o lago distante.Não havia calor e o sol não ardia na pele. Era como passear em um parque em plena primavera.Viram, ao longe, um brilho intenso vindo do solo. O lago, ainda longínquo, resplandecia quando refletia os raios da manhã. Menagbel acertou quando disse que era encantador admirar o Zsenesh ao nascer do sol.

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Quanto mais avançavam, encontravam pedrinhas cintilantes espalhadas por todos os lados, pedrinhas de todas as formas: esféricas, ovais, circulares e longilíneas. Apeando por um momento, Brian buscou uma e a examinou com cuidado, girando-a nas pontas dos dedos.— É vidro — disse ele, passando a amostra para Marc que a olhou contra a luz.Mais à frente, os pequenos fragmentos de vidro se tornavam cada vez maiores, do tamanho de pratos, até que, aos poucos, toda a superfície que circundava o lago era feita de uma peça inteiriça de vidro. O chão onde pisavam era todo de vidro espesso e compacto.— O que será que aconteceu aqui? - perguntou Daniel ao professor de geologia.— Não posso dizer com certeza, mas para se produzir vidro são necessárias algumas condições, como areia submetida a altas temperaturas, algo em torno de 1250 graus Celsius; provavelmente bem mais, para que toda essa área tenha sido transformada em vidro com tamanha espessura, como vocês podem ver. Eu acredito que, em épocas remotas, um calor avassalador se abateu sobre essa região.Uma gigantesca explosão, talvez. Quem sabe, foi isso que criou o Zsenesh? — teorizou Brian, incendiando a imaginação de Daniel e seus jovens amigos.De uma passagem larga por entre as palmeiras, Rhuror e seu drancto surgiam para se reunir ao grupo.

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Os cascos das montarias tocavam instáveis no solo de vidro escorregadio, quando Chester alertou.— Cavalguem com cautela ou teremos muitos tombos e ossos quebrados antes que cheguemos ao lago.Ele mesmo quase foi ao chão quando uma pata traseira de seu cavalo deslizou mais do que devia.Nem o peso excessivo do drancto abalava o duríssimo assoalho de vidro que oferecia aos visitantes belas cintilações ao sol matinal.Enfim, chegaram à beira do lago que brilhava como se uma forte luz saísse de suas profundezas para desafiar até o esplendor do próprio sol.Apenas uma torre, também feita de vidro, erguendo-se na margem oposta do lago e contornada por uma escada em espiral da base até o alto da estrutura, quebrava a monotonia da paisagem. No topo havia uma escultura transparente pouco maior que um cavalo tigrado das tropas faogards; lembrava um dragão de olhos saltados, as asas fechadas ao longo do dorso e o rabo estendido ao lado do corpo sólido. O movimento harmonioso da água refletido na estrutura à beira do Zsenesh dava a impressão de que o dragão se movia.— Sabe mais coisas sobre esse lago, Rhuror? - perguntou Brian, ainda muito curioso como um bom professor que era.— Existem muitas versões sobre a existência do Zsenesh. Quem sabe qual é a verdadeira? - O

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faogard fez uma pausa para pensar e logo prosseguiu enquanto descia do seu gigante de quatro patas. - Uma das mais famosas é a que narra a vingança que os deuses irmãos desferiram sobre Arkopromis quando ele evaporou o antigo lago que aqui existia. A lenda fala de uma gigantesca explosão, assistida com perplexidade por toda a Cadecália, que sepultou uma das mais fiéis criaturas do deus maligno. E o Zsenesh foi a promessa cumprida de que sempre existiria uma porção de água, por menor que fosse, para compensar o infortúnio que fez o mar descomunal transformar-se em deserto e lembrar que Arkopromis jamais seria perdoado pela morte dos próprios pais.Em movimentos sincronizados e contínuos, cardumes reluzentes de peixes prateados nadavam indiferentes na água tranqüila. Os viajantes ficaram imóveis por alguns instantes diante de tanta beleza.Com olhos atentos de geólogo, Brian tentou enxergar o fundo, porém, a grande quantidade de peixes atrapalhava a visão.— O leito do lago também parece ser feito de vidro. Todo o lago é uma extensa peça côncava de vidro puro como eu nunca havia visto em toda a minha vida — disse, impressionado.Rafael ajoelhou-se e tocou a água limpíssima, produzindo pequenas ondulações, espantando alguns peixes que nadavam por perto.— É fresca como disse Menagbel. Guillermo e Talemine deviam estar aqui - disse, a mão em concha levando um pouco de água à boca.

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Sem avisar, Daniel sentou-se no chão liso e tirou as botas, e antes que alguém tivesse a chance de perguntar o que ele estava fazendo, o rapaz se atirou no lago, espalhando água por toda parte. Um esguicho saiu de sua boca antes que começasse a falar.— Olhe, professor Roger! — disse ele, nadando de costas. — Não esqueci o que o senhor me ensinou nas aulas de natação.Com a audácia e a descontração de sua juventude, Daniel deslizava pela superfície do Zsenesh como se toda a felicidade do mundo estivesse nele.Então, Daniel interrompeu as braçadas descontraídas e provocou os companheiros.— O que estão esperando? Pulem logo. Nunca mais terão outra oportunidade.De uma só vez, Marc, Rafael e Chester se jogaram estrepitosamente.— Está com medo da água, mana? - disse Daniel em tom de desafio.— Eu já vou, seu bobo. Dê-me um minuto - disse ela, enquanto tentava se livrar das botas.No instante em que Margaret fez menção para pular, foi segurada pelo braço por Roger. As feições dele se alteraram de repente ao perceber um movimento estranho no lago. Os peixes dispersaram como se fugissem de algo assustador.— Saiam da água! - disse ele, erguendo a voz. - Saiam da água, depressa! - ordenou, gritando, ao pressentir o perigo.

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O que Roger viu foi algo disforme de coloração cinzenta emergindo do fundo do lago em direção aos garotos.Mesmo sem entenderem o que estava acontecendo, os quatro rapazes puseram- se a nadar com toda a força que os seus braços, pernas e fôlegos podiam agüentar.Os que estavam na margem do lago passaram a berrar para que nadassem mais e mais rápido.A mão de Brian se esticou para ajudar Marc a subir de volta. A margem lisa e molhada fez com que o menino francês escorregasse antes de ficar a salvo.Rhuror agarrou Rafael e Chester de uma só vez e os tirou da água com tanto ímpeto, que quase os dois meninos tiveram seus braços deslocados.No entanto, Daniel não conseguiu chegar a tempo; o espectro marinho já havia escolhido a sua presa, aquela que se encontrava mais afastada da margem. A criatura sombria envolveu primeiramente as pernas de Daniel, depois seu tronco e por último seu pescoço, para que ele não tivesse nenhuma possibilidade de escapar. Foi então que a criatura se revelou: tinha um rosto feminino coberto por escamas grosseiras; os cabelos longos e louros, que causavam um inusitado contraste com o ser de pele cinza, se espalhavam pela água ondulante; os olhos verdes brilhavam estranhamente como se películas transparentes os cobrissem; seus lábios tinham o formato circular igualmente a boca de um copo, com dezenas de pequenos dentes triangulares e afiados projetando-se para

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fora; nas laterais do pescoço, guelras do tamanho de orelhas se abriam e se fechavam constantemente; no lugar de braços, havia tentáculos com ventosas que aderiam ao corpo imobilizado de Daniel; as mãos da criatura terminavam em dedos tentaculares que se torciam, retorciam e enrodilhavam no pescoço e sobre o rosto do garoto que tinha os olhos arregalados de terror; mesmo submersos, era possível enxergar quatro tentáculos que o ser asqueroso serpenteava da cintura para baixo. Uma mistura irreal de peixe, polvo e gente.— Daniel! — sua irmã gritou, horrorizada.Num salto ágil, Roger se atirou no lago e antes que pudesse fazer alguma coisa, o ser bizarro ameaçou.— Não tentem socorrer o menino ou ele vai comigo para o fundo do lago — disse num aterrorizante tom de ameaça.Apesar da aparência repugnante, a voz feminina do monstro era suave aos ouvidos.— O que você quer? - perguntou Brian, optando por dialogar.— Só quero que a menina venha a mim. Prometo que não vou fazer nenhum mal a ela - disse com mansidão, os olhos verdes como esmeralda grudados em Margaret.— Não confio em você. Por que quer a garota? — insistiu Brian, ganhando tempo para pensar numa solução que aparentemente não existia.— Quero conversar um pouco com essa linda menina. Tenho um presente que ela vai adorar — a voz soava ardilosamente.

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— É óbvio que essa coisa está mentindo - sussurrou Rhuror para Chester que ofegava mais de nervoso do que de cansaço.— Solte o garoto e ela conversa com você — propôs Brian, pondo a mão sobre o ombro de Margaret.— Minha paciência está se esgotando, me deem a menina — irritou-se o ser aquático.— Não se você não soltar o garoto - retrucou Brian, sem saber mais o que fazer.— A menina! — exigiu, envolvendo Daniel, os poderosos tentáculos apertando o seu corpo trêmulo.A cabeça de Daniel foi empurrada para baixo e ele começou a se debater em seu desespero para respirar.— Se não entregarem a menina, o garoto vai morrer - disse serenamente, a água a sua volta agitada pelo sofrimento de Daniel se afogando.Roger desceu no lago e tentou nadar para perto sem que a aberração percebesse.— Não ouse se aproximar, você não é mais rápido do que eu - ela avisou, mantendo Daniel submerso.Desesperada e pegando todos de surpresa, Margaret correu e se jogou no lago, nadando para Daniel.Os pegajosos tentáculos libertaram Daniel e flutuaram em direção à Margaret.Nadando como nunca, Roger buscou Margaret; Rhuror e Brian também pularam no lago. Mas foi inútil. A coisa se apoderou da garota e mergulhou

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nas profundezas; os cabelos ruivos de Margaret foi a última coisa que viram dela.— Meg! Meg! - gritava Daniel, após recuperar o fôlego.Daniel não parava de se acusar pelo que aconteceu com a irmã.— A culpa foi minha — falava amargurado. - Minha irmãzinha foi levada. — Olhava para o lago, os peixes prateados de volta como se nada tivesse acontecido.Uma luz violácea explodiu na profundidade e desapareceu tão rapidamente como havia surgido.Segundos depois, no lado oposto do Zsenesh, alguém nadava velozmente buscando a margem.Roger e Brian correram para os cavalos, mas o piso de vidro dificultava o movimento dos animais em circundar o lago, dando tempo de quem quer que fosse que estivesse nadando, saísse da água e exibisse suas formas. Uma bela mulher nua de cabelos louros foi o que se viu correndo para a estátua do dragão de vidro. Ao toque da mão da mulher, a escultura ganhou vida e se encolheu para que ela pudesse subir em suas costas, as asas se abriram e o animal, soltando um grito como dois pedaços de vidro que se atritam, lançou-se aos céus, refletindo a luz do sol. Uma flecha de Rhuror foi atirada, mas perdeu o alvo que voava longe.— Escapou! A desgraçada escapou! - lamentou-se Roger com raiva.— Quem era ela, Rhuror? - perguntou Brian, observando o dragão brilhante quase sumindo no

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infinito.— Não tenho certeza. Mas ela usou a pequena Margaret para se livrar de um feitiço muito forte.Vários minutos se passaram e Daniel olhava aflito para a água.— Minha irmã, não voltou ainda. Ela se afogou? - perguntou a esmo, os olhos marejados e o forte sentimento de culpa.— Iremos encontrá-la, Daniel - disse Rafael para manter as esperanças.Os peixes fugiram novamente da superfície do Zsenesh. Era o prenúncio de que alguma coisa fora do comum estava para acontecer. O vulto cinza, os movimentos sinuosos por debaixo d'água, os cabelos ruivos brotando na superfície.— Meu... Deus! - exclamou Marc, quase sem fala. - É a Margaret?A pele cinza e escamosa, os tentáculos que não paravam de se mover; Margaret havia herdado a maldição que a transformara num monstro repugnante. Ela baixou os olhos, envergonhada da própria aparência.— Fique calma, Margaret — disse Brian para tranqüilizar a menina. - Vamos consertar tudo.O que faremos agora, professor? - perguntou Rafael a Brian. - Como ela vai voltar ao normal?— Deixe-me raciocinar um pouco. - Brian coçou a cabeça e lançou um olhar preocupado para Rhuror e Roger que devolveram olhares de quem não sabia o que fazer.— Menagbel! - exclamou Rafael, propondo uma solução. - Se uma maldição deixou Margaret

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assim, então essa mesma maldição talvez possa ser passada pra frente.— Muito bom, garoto! - disse Rhuror, imediatamente entendendo a idéia de Rafael, agarrando o menino pelos ombros, com grande aprovação. - Se aquela mulher fez aquilo para Margaret, a nossa menina terá que fazer o mesmo com a bruxa velha.— Menagbel! - vociferou Roger, pegando as rédeas do seu gifenonte. — Vou caçar uma impostora e já volto.-Traga-a viva! — gritou Brian, que conhecia perfeitamente o temperamento explosivo de Roger que era capaz de estrangular um estivador com as próprias mãos quando perdia a paciência. - O que estou fazendo aqui? - Brian caiu em si. - Vou atrás dele.Rhuror voltou-se para o lago, para Margaret. Os olhos azuis da menina o contemplavam com incalculável tristeza.— Chegue mais para perto, pequena Margaret — pediu o guerreiro como um pai que acolhe a filha.Inibida, Margaret flutuou lentamente até à margem. O guerreiro esticou o braço para ela.— Vamos, toque a minha mão - pediu, fazendo o que estava ao seu alcance para que Margaret não se sentisse rejeitada.A garota estendeu um dos tentáculos e as ventosas se prenderam a pele do guerreiro. Ela recuou enojada de si mesma e afastou-se para o meio do lago... e ficou ali.Quando andava de um lado para outro, Daniel deixava os amigos nervosos. Mas quem seria

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capaz de censurá-lo numa situação como aquela? Ele esfregava as mãos na cabeça, bufava e suspirava. Culpa, culpa, culpa, era só o que ele era capaz de sentir.-Ajudem-me a encher os odres para ganharmos tempo - disse Rhuror, levantando-se. - Quero sair desse maldito lugar logo que isso tudo terminar.Irem embora? E se não conseguirem desfazer a maldição do lago? Ese me deixarem aqui para sempre, sozinha e com esse aspecto horrível? Até estão pegando a água de que precisam. Eles podem muito bem ir embora sem mim. E por que ficariam? Somente para paparicar um monstro o qual me tornei? Será que meu irmão me abandonaria?Tais pensamentos despedaçavam o coração de Margaret, empurrando-a com força para a sua profunda depressão.Inesperadamente, ouviram um som de vidro dobrando e se quebrando. E no mesmo lugar onde havia o dragão de vidro, um outro igual nasceu e permaneceu ali, estático, com o olhar preso no vazio como se aguardasse o tempo que fosse necessário para servir ao seu propósito. Aquele fato aumentou as esperanças de Rhuror e dos meninos, pois era um sinal de que a maldição poderia ser passada de um corpo para outro e mais outro, indefinidamente.Os dois cavaleiros entraram na clareira, parando subitamente em frente à cabana.- O que deu errado? - questionou Talemine, correndo até eles, a sensibilidade aguçada da

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faogard viu a ansiedade nos olhos de Roger e Brian.- Onde está Menagbel? — perguntou Roger, girando o cavalo, olhando em todas as direções.- Estava aqui até a pouco, no interior da cabana — informou Guillermo. — Notamos que estava tudo muito quieto e quando fomos verificar, Menagbel havia sumido.- Ela não pode ter se evaporado no ar, ou pode? — perguntou Roger, entrando na cabana para conseguir, quem sabe, uma pista.- As coisas extraordinárias simplesmente acontecem nesse mundo fantástico. Esqueceu, Roger? — ressaltou Brian.Brian deu detalhes a Guillermo e Talemine do triste ocorrido com Margaret. E da urgência em localizar Menagbel.- Eu avisei! - despejou Talemine. - Não compreendo como vocês acreditaram na docilidade fingida daquela bruxa.- Fomos tolos em não levar a sério os seus sentimentos — manifestou-se Guillermo, arrependido. — Mas agora só nos resta acharmos rapidamente uma solução.- Venham ver isso aqui — chamou Roger, inconformado com o desaparecimento de Menagbel, ele havia vasculhado cada pedaço da casa de madeira.Uma das paredes no fundo da casa era falsa e se abria para fora; foi por ali que Menagbel fugiu. Com raciocínio rápido, Roger deduziu:- Todo esse tempo e estávamos sendo manipulados por Menagbel — disse, se

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enfurecendo por ter sido feito de idiota.Com um pontapé, Roger colocou a parede de madeira abaixo.- Se Menagbel não foi levada por um dragão de vidro ou coisa parecida, não deve estar longe - disse ele, saindo para a floresta de palmeiras.A caçada recomeçou.Galoparam por entre as árvores, rastreando alguma pista da pérfida Menagbel. Os vestígios levavam para dentro do oásis onde a vegetação se reduzia indo dar lugar novamente ao terreno arenoso. Dali por diante, pequenas pegadas afundavam na areia e seguiam na direção do lago Zsenesh.— Por que ela fugiria para o lago? - refletiu Guillermo. - Não conseguirá se esconder em terreno descampado.— Então vamos descobrir o motivo — disse Roger, determinado, incitando o seu cavalo a arrancar para iniciar a perseguição.Menagbel se reduzia a um pontinho no meio da área aberta. Os passos curtos, mas ligeiros, não eram páreo para as vigorosas patas dos gifenontes. Num espaço curto de tempo ela foi cercada pelos quatro cavaleiros.Antes mesmo de seu cavalo parar, Talemine pulou e sacou sua espada, pressionando-a contra o ventre da velha assustada, a mão da faogard apertava a garganta da foragida.— Sabe o que faço com animais como você? — rosnou, pronta para atravessar o aço da espada.— Espere, Talemine! — disse Guillermo, segurando a lâmina para evitar que a guerreira

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cometesse um ato impensado. — Não podemos matá-la... você sabe.A recomendação de Guillermo conteve o impulso da furiosa faogard.Roger agarrou o braço murcho e enrugado de Menagbel e a obrigou a montar em sua garupa.— Queremos que veja uma coisa no lago, velha traiçoeira.— Eu não sei de nada — defendeu-se ela, a voz vacilante e amedrontada. - Deixem-me pegar alguns peixes no lago. Desejo preparar a melhor ceia que vocês já tiveram em muitos anos.— Você terá todo o tempo que quiser para pegá-los - disse Roger com sarcasmo.O último odre cheio de água acabara de ser fixado ao drancto.Rhuror voltou-se para os cavaleiros que se aproximavam com prudente velocidade a fim de evitarem escorregões no piso de vidro.A respiração de Daniel se prendeu e ele relaxou um pouco quando viu que Menagbel estava com eles.Com uma brutalidade contida, Roger desceu Menagbel da montaria e a conduziu pelo braço à beira do Zsenesh.— Onde ela está? Onde ela está? — perguntou Menagbel com grande nervosismo.— Se refere a mulher que vivia no lago? Pois sua amiga voou na estátua de vidro antes que pudéssemos pegá-la - disse Brian. — A propósito, o bicho voltou?— Não, professor Brian, esse nasceu no lugar do anterior - informou Chester.

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— Está vendo aquilo? - disse Roger, se referindo a Margaret, desolada, flutuando no meio do lago. - Resolva!— Não sei do que está falando - disse ela, evasivamente. - O que é aquilo? Um monstro? Matem! Matem antes que essa coisa horrorosa nos ataque.— Se tem alguém que merece morrer é você, Menagbel - disse Talemine, sacando novamente a espada. - Vou melhorar sua memória, velha louca.— É melhor você colaborar - aconselhou Guillermo com voz calma e premeditada. - Eu não pretendo impedi-la novamente de usar essa lâmina afiada no seu pescoço.— Fale de uma vez, Menagbel - Rhuror ordenou, os olhos fixos como um tigre a espreitar a presa. - Quem é você, e quem é a mulher que deixou a pequena Meg com aquela aparência.Sem ver uma possibilidade de escapatória, Menagbel suspirou profundamente e começou a balbuciar a sua história.— Faz muito tempo, tempo demais para que a minha memória devolva tudo com nitidez. Eu era muito jovem quando o enorme lago se evaporou, quando a gigantesca nuvem negra levou a água para longe, e para sempre. Muitas famílias que habitavam as suas margens foram embora, ou de medo da ira dos deuses ou porque toda a região se tornara inabitável sem ter o que pescar para o seu sustento. Os barcos perderam sua utilidade e a imensidão de peixes mortos exalava uma podridão que se espalhou por tudo, trazendo

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doenças e morte. Meus pais resolveram ficar até decidirem para onde ir, e nesse meio tempo, durante as noites, eu ficava olhando para o lago extinto e ficava curiosa pela estranha luz avermelhada que jorrava lá bem longe, perdida no horizonte do leito seco. - Menagbel fez uma pausa e sorriu discretamente, como se gostasse de lembrar da sua juventude. — Então, tomei coragem e parti para desvendar a origem do clarão que brotava todas as noites do Canormut. Eu pisava na terra, ainda úmida, e bebia da água onde meus pés afundavam. O cheiro era quase insuportável, mas aos poucos, eu fui me acostumando a ele, e quando a comida que eu levava acabou, tive que me alimentar dos peixes decompostos que encontrava pela frente. Não sei como consegui sobreviver naquelas condições. Acho que a magia do Zsenesh não deixou que eu morresse, pois tinha planos para mim. Andei tantos dias, que até perdi a conta de quanto tempo vaguei pelo Canormut buscando a origem do halo avermelhado que resplandecia maravilhosamente. No entanto, em nenhum momento eu desisti de querer encontrar o que produzia luz tão fascinante. - Os olhos de Menagbel paralisaram como se ela visse nitidamente outra vez o que acontecera a milênios. — E finalmente, meu coração acelerou quando me deparei com as palmeiras altas do oásis e me emocionei ao vê-lo pela primeira vez: o Zsenesh.— Acho que ela está falando a verdade pela primeira vez desde a nossa chegada

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- disse Rafael a Marc.Ela prosseguiu com sua história.— Os peixes prateados eram lindos. Peixes e pascas para comer num paraíso só meu. Voltaria e pegaria minha família e nunca mais passaríamos fome. - O seu rosto mudou para uma expressão angustiante quando ela voltou a falar: — Mas algo inesperado e terrível aconteceu quando eu me debrucei na beira do lago para pegar o meu primeiro peixe fresco depois de comer carne podre por tantos e tantos dias. Um vulto cinzento surgiu do fundo do lago e tentáculos chicotearam no ar tentando agarrar meu braço, mas por sorte eu escapei. O paraíso havia se tornado o mais pavoroso dos infernos. Klovanira era o seu nome. Por muito tempo a feiticeira amaldiçoada tentou me convencer a trocar de lugar com ela. Eu sempre me recusava, até que fizemos um acordo. Klovanira me possibilitaria viver eternamente deixando comer os seus peixes mágicos, mas só me daria a juventude eterna se eu lhe entregasse uma mulher para assumir o seu monstruoso lugar no lago. Por coincidência ou vontade dos deuses, nenhuma mulher veio ao Zsenesh desde aquele dia, milhares de anos no passado.— De onde surgiu essa tal Klovanira? — quis saber Guillermo.— Ela era a criatura mais querida de Arkopromis, e foi um duro golpe para ele quando Klovanira caiu no poderoso encantamento do lago. Mas ela me enganou e fugiu sem me devolver a juventude — a expressão de Menagbel transformou-se em

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aflição. - Eu não quero morrer, me ajudem. Convençam a menina a me deixar jovem de novo. Ela consegue. A maldição lhe concede esse poder - ela passou a exibir um sorriso frenético. - E caso nenhum de vocês queira ficar com ela, eu prometo cuidar dela indefinidamente.— Se acalme, Menagbel — disse Roger, com a voz serena. - Você viverá por muitos milênios.— Obrigada. Sou muito agradecida, senhor. Eu sabia que vocês não eram rancorosos e entenderiam as minhas sinceras razões — disse, aliviada, as mãos ossudas, antes tensas, se descontraíram.-Você não entendeu, Menagbel — insistiu Roger, os olhos transmitindo ameaça.— Eu disse que você continuará vivendo, mas não como está achando que vai.Roger lançou um olhar decidido para Margaret enquanto segurava Menagbel firme pelo braço.— Meg! Preste bastante atenção no que vou dizer agora! — ele arrastou a velha até a borda do Zsenesh. — Você deve saber como reverter essa... magia. Acha que pode?Num acanhado balançar de cabeça, Margaret assentiu.— Então faça exatamente como a feiticeira fez com você - orientou o professor.Aproximando-se, Rhuror grudou suas mãos fortes em Menagbel.— Eu quero ter a honra de fazer isso - disse o guerreiro.— O que vai fazer? - perguntou Menagbel, quando finalmente entendeu a intenção do faogard. -

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Não! Não! Solte-me! Ponha-me no chão! Não pode fazer isso comigo! - Desesperou-se.Rhuror ergueu Menagbel acima da cabeça como se ela fosse um boneco de pano e a atirou no lago.-Agora, Meg! - estimulou Roger, gritando. - Vá até ela e puxe-a para o fundo. Você sabe o que fazer. Vai, menina!Entrando em um desespero convulsivo, Menagbel gritava e rogava por piedade.Margaret hesitou por um momento, mas o seu temperamento atirado falou mais alto. Os tentáculos enrolaram-se no corpo carcomido de Menagbel que afundou debatendo-se e implorando.Dois minutos que pareceram séculos, longos minutos em que ninguém sabia o que iria acontecer exatamente. Daniel torcia ansiosamente e fazia todo o tipo de promessas caso desse certo.— Vamos, garota - murmurou Guillermo —, faça alguma coisa.Então, aconteceu mais uma vez. O fundo do lago brilhou e ficou calmo novamente.Mais demora. Mais ansiedade.— Ela está vindo! - gritou Marc, inclinado sobre o lago, as mãos apoiadas nos joelhos, os olhos atentos. — Quero dizer, acho que é ela, tem que ser.E era mesmo. Margaret surgiu na superfície, os pulmões quase estourando. Ela parou um pouco para recobrar o fôlego.

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Todos os seus amigos gritavam incentivando para que ela nadasse logo até a margem.— Nade, Meg! Nade para nós! - gritava Brian, todos gritavam palavras de estímulo.Se Margaret não chegasse em tempo de evitar o abraço de Menagbel, tudo estaria perdido.Os olhos de Daniel se arregalaram quando ele viu que do fundo, uma indesejada imagem disforme se aproximava de sua irmã. Talemine também percebeu e empunhou seu arco para enterrar uma flecha na monstruosidade quando ela chegasse à tona. Por pouco tentáculos não tocaram Margaret, mas a mão de Guillermo foi mais rápida tirando-a da água.— Quase que a velhota te pegou — disse Guillermo, abraçado a Margaret, as roupas da menina em farrapos. Um cobertor foi jogado sobre ela.Depois de tanta tensão, Margaret começou a chorar e falar com a voz entrecortada.— Tive medo... que me deixassem aqui. — As lágrimas se misturavam ao rosto molhado. - Quando vi Rhuror... abastecendo os odres com água, pensei que... fossem embora sem mim — sua respiração era curta e rápida, no ritmo do seu coração acelerado.Talemine pensou ter visto os olhos de Rhuror marejarem. A guerreira piscou várias vezes como se quisesse conter uma lágrima, e ajoelhou-se ao lado de Margaret.— Jamais faríamos isso, pequena Meg. Não sairíamos daqui sem você. E foi isso que fizemos, não foi?

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Ela concordou, ainda soluçando.Menagbel, em sua nova forma repugnante, tentava desesperadamente convencer que atendessem as suas súplicas absurdas.— Devolvam a menina! Eu imploro! Não quero viver assim como um monstro solitário — ela deslizava freneticamente seus tentáculos na borda lisa do lago.— Você não está só, Menagbel — lembrou Rhuror com sarcasmo. - Tem os seus peixes para lhe fazer companhia.— Ela está na minha mira, pai — disse Talemine, o arco vergado ao máximo com uma flecha apontada para a cabeça da coisa em que Menagbel havia se metamorfoseado.— Não, filha. É melhor que a deixemos viver para cumprir o seu castigo. De qualquer modo, duvido que uma flecha seja suficiente para destruir uma maldição tão terrível imposta pelos deuses.— Mas ela pode fazer outra vítima, um dia... - disse Talemine, levantando uma hipótese plausível.— Me encarregarei de avisar toda a Cadecália sobre a verdadeira história do Zsenesh. As mulheres sentirão tamanho pavor que jamais se aproximarão desse lago maldito - previu o guerreiro, subindo no seu imponente drancto. — A grande cordilheira do Malthar nos aguarda! - bradou com voz firme, alinhando o drancto para nordeste.Sob o som aterrador dos urros enlouquecidos de Menagbel, o Zsenesh havia sido deixado para trás, e o que restaria seriam apenas as

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lembranças marcantes do monstro aquático e a maldição do lago.

Capítulo 28A Montanha Rachada

Com o passar dos dias, a cordilheira de Malthar se agigantava aos olhos dos viajantes.O Canormut náo era mais o deserto tórrido que quase pôs fim à expedição, recebendo as primeiras brisas que desciam pelas encostas cobertas de neve, e os sinais de vegetação rasteira que surgiam no meio da areia fina.O assunto das conversas, por muitas vezes, foi os maus bocados que Margaret havia enfrentado no Zsenesh.- Conte mais uma vez, Meg — pedia Rafael. — O que aconteceu no fundo do lago quando aquela feiticeira te agarrou?Ela suspirou como que enfastiada de falar sobre a mesma história tantas vezes. Por outro lado, adorava ser o centro das atenções. E descrevia.- Lembro que fui levada até uma entrada de uma caverna de vidro submersa, bem no fundo. No seu interior, senti meu corpo se contorcer como se todos os meus ossos se quebrassem - ela girava as mãos e os braços com dramaticidade. — A minha pele e os meus músculos pareciam virar do avesso, e aí, uma forte luz bloqueou minha visão. Acho que fiquei desacordada por alguns segundos, minutos talvez. Quando dei por

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mim, senti que podia respirar debaixo da água, e percebi o que havia acontecido.- Como conseguiu passar a maldição para Menagbel? — perguntou Marc. — Como você sabia o que deveria fazer?- Isso eu não sei responder, mas quando aconteceu, senti como se estivesse me livrando de uma apertada roupa de borracha. Quando a luz ofuscou novamente os meus olhos e não conseguia mais respirar lá embaixo, vi que era hora de subir.- Sabe, mana — disse Daniel em tom de comentário. - Sou obrigado a admitir que você estava mais bonitinha daquele jeito.Ela deu um risinho de desprezo e devolveu:- Pois você náo fica bonitinho de jeito nenhum, seu feioso. — A resposta mordaz arrancou uma forte gargalhada de Rhuror que já considerava Margaret como a sua terceira filha.Na penúltima manhã, antes que atingissem a base da cordilheira, a caravana acordou muito cedo; comeram pascas e beberam chá escuro como desjejum e as montarias pisaram, após muito tempo de caminhada sobre terreno movediço, a densa vegetação que antecedia o Malthar. Foram recebidos por pássaros multicoloridos e insetos estranhos que habitavam as folhas viçosas das árvores graúdas. O ar estava úmido e revigorante. Não havia trilhas naquele percurso, pois a floresta apagava rapidamente qualquer vestígio dos raros andarilhos que por ali transitavam. Outros caminhos eram mais utilizados para se transpor o

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Malthar, principalmente por serem menos perigosos.A sensação de se confrontar com uma cordilheira daquelas proporções era única, mesmo para experientes montanhistas. De frente para o Malthar, o observador que girasse a cabeça para a direita ou para a esquerda, teria a impressão de que a altíssima muralha de pedra contornava o planeta, dividindo aquele mundo em duas partes.O sol do final da tarde tingia com uma tonalidade rosada as extensas capas de neve que cobriam as montanhas.Enquanto cavalgava, Guillermo inspecionava atentamente as encostas íngremes da cordilheira e imaginava que Rhuror soubesse como eles poderiam chegar do outro lado do continente. Ele levantou uma questão.- Como você espera cruzar essas montanhas enormes?- Conheço duas formas de fazê-lo — disse o faogard, enquanto fazia o drancto cessar a marcha. Rhuror saltou do animal e passou a expor as suas idéias. — Ficaremos nesse descampado por hoje. Mas respondendo a sua pergunta, existem dois meios de se chegar até o outro lado do Malthar a partir daqui. Um deles é o mais óbvio: escalar os rochedos, subindo e descendo as encostas, enfrentando o frio, os perigos de avalanche e as quedas em fendas profundas ocultadas pela neve. — Ele fez o drancto se deitar para que os apetrechos de acampamento pudessem ser alcançados, então

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prosseguiu: — Se adotarmos esse caminho, retardaremos a nossa viagem, inevitavelmente. Mas existe uma outra opção. Prestem bem atenção naquela montanha bem a nossa frente.- O que tem ela demais? - perguntou Marc, que não via diferença entre as montanhas, como se todas fossem uma só.- Aquela é a montanha Vorengor. Se olharem com cuidado, vocês notarão uma fissura quase imperceptível que vai de sua base até o cume. No idioma gazivian, Vorengor quer dizer Montanha Rachada. O monte Vorengor é isso, uma montanha rachada ao meio, uma fenda que atravessa a cordilheira, a passagem que encurtará em tempo e distância a nossa travessia.Guillermo ergueu seu binóculo e conferiu que o Vorengor era uma montanha separada em dois enormes blocos maciços.— Ótimo — disse ele quando abaixou o binóculo. - Assim fica fácil decidir. Iremos pela montanha rachada - Guillermo lançou um olhar sagaz para Rhuror. - Mas não é tão fácil assim, estou certo, senhor Rhuror? A Vorengor esconde algum segredo. Uma compensação maléfica por ser uma opção tão atraente de se escolher.— Infelizmente, o seu raciocínio está correto, rapaz - disse Rhuror, concordando. - A história da Vorengor também é uma lenda que se perde no tempo. E mais uma vez, como em outras lendas, essa fala da luta titânica dos deuses. A tradição narra que em sua fúria, Arkopromis desferiu um único e avassalador golpe com a sua espada,

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fazendo surgir a cordilheira de Malthar, que quer dizer Cicatriz do Mundo, e no exato lugar onde a lâmina tocou, abriu-se uma enorme fenda que dividiu a montanha — disse, apontando para a fissura que agora passou a ter um forte significado.— E o que tem no interior da fenda? - quis saber Chester.— Ninguém saiu de lá para contar - disse Rhuror sem uma resposta conclusiva. — Os viajantes a evitam, e os poucos que se aventuraram pelas sendas sombrias jamais foram vistos novamente.— Só faltava essa - desanimou Brian, as mãos apoiadas na cintura e a cabeça balançando negativamente. — De que jeito passaremos entre dois paredões com quilômetros de altura sem saber o que nos espera. Existe uma terceira opção?— Bem, podemos criar asas e sair voando por cima do Malthar - gracejou Rhuror.Por alguns segundos, uns ficaram olhando para os outros sem saberem qual a decisão deveria ser tomada. Foi quando Roger falou:— Qual a distância que nos separa do outro lado?— Bem, vejamos — avaliou Rhuror. - Essa parte da cordilheira deve ter aproximadamente cinqüenta pharteions...— Uns... oitenta quilômetros. Indo pela fenda, concluiremos o percurso em dois dias se não houver nenhum imprevisto — disse Roger, e voltou a questionar Rhuror: - E se cruzarmos por cima?

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— Semanas, é difícil prever, e não teríamos como levar o drancto... provavelmente os gifenontes também seriam abandonados em algum momento. Receio que essa não seja uma boa escolha - opinou Rhuror.— Sei o que vocês estão pensando - disse Talemine. - A única possibilidade sensata agora é seguirmos pela fenda na Vorengor. Só assim saberemos o que há lá dentro.— Eu não me importo — disse Margaret, querendo demonstrar coragem. — Ficaria decepcionada se a escolha fosse outra.— O desconhecido merece esse nome até o instante em que revela os seus mistérios, mas ele pode ser amargo demais - filosofou Rhuror.A fogueira foi acesa a cinco quilômetros da entrada da fenda que subia, se perdendo nas altitudes do Vorengor.A água era abundante e descia por várias partes da encosta, alimentando os ribeiros que engrossariam os grandes rios do ocidente.A guerreira faogard armou-se com seu arco e desafiou Guillermo a mostrar como andava a sua pontaria. Amontoaram alguns troncos caídos para servirem de alvo e Talemine fez o primeiro disparo. Em seguida era a vez de Guillermo mostrar o que havia aprendido em Faogard.— Veja o quanto consegue aproximar a sua-flecha da minha - disse Talemine, arrumando a postura de Guillermo, um pouco relaxada.A pontaria foi acima do esperado e a flecha de Guillermo quase resvalou na flecha-alvo.

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— Sorte de principiante. Tente de novo - disse a guerreira com uma frieza militar.O segundo, o terceiro e o quarto tiros foram tão bons quanto o primeiro. Guillermo a convenceu que era hábil naquele tipo de arma. Sua namorada esforçou-se para esconder um sorriso de satisfação, mas era impossível não estar orgu-lhosa com o feito do seu namorado.Ao olharem para trás, uma fila de arqueiros havia se formado, aguardando ansiosamente a sua vez: Margaret, a primeira da fila, é claro, Daniel, Marc, Rafael e Chester, empunhavam seus arcos como se fossem as pessoas mais importantes do mundo.Quando a noite veio, o Malthar tornou-se uma descomunal mancha escura diante do acampamento, e seus picos, altíssimos, pareciam esbarrar nas estrelas.A história de Rhuror sobre as pessoas que sumiram no interior do Vorengor fez com que os integrantes da expedição ficassem um pouco apreensivos, mas não o suficiente para tirar-lhes o sono. Estavam começando a ficar calejados com as adversidades que enfrentavam. Roger, por sua vez, se preocupava mais com o tempo que lhes restava para chegarem ao portal de retorno. Com a sua face iluminada pela fogueira amarelada, ele refazia os cálculos das distâncias e estipulava qual a média de quilômetros que deveriam percorrer por dia para concluírem a jornada na data estipulada. Contudo, havia um inconveniente: era a imprecisão do mapa que eles portavam. Portanto, só restava a Roger

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traçar uma reta e torcer para que os seus números não estivessem muito distorcidos.— Cinqüenta e três quilômetros por dia — disse ele, olhando primeiro para Brian e depois para Rhuror. — E a média que precisamos fazer a partir de amanhã. O que me diz Rhuror?O faogard inclinou-se para frente e os seus cabelos vermelhos quase lhe cobriram o rosto quando ele pediu o mapa para conferir. Deu seu parecer após uma rápida avaliação.— Seus números parecem se aproximar bastante da realidade. A velocidade será uma preocupação maior daqui por diante.Roger suspirou fundo e desviou o olhar para a gigantesca massa de rochas escuras que enfrentariam em poucas horas.O céu no alvorecer projetava uma cor cinza-azulada sobre o Malthar e as florestas ao redor, quando Daniel despertou e não conseguiu mais pegar no sono. O rapaz fixou o olhar nas poucas chamas que insistiam em arder entre as madeiras carbonizadas da fogueira. Lembrou-se das palavras do desenval, que um dia ensinara como deveria manter a concentração para manipular as energias que fluíam pelo seu corpo. Sabe-se lá quanto tempo levou tentando extinguir, com a mente, o fogo que ondeava e crepitava ante seus olhos. A persistência e a concentração eram dois ingredientes essenciais para que a experiência resultasse em êxito.Repentinamente o fogo se apagou surpreendendo Daniel e trazendo-o ao mundo real. Guillermo havia jogado um punhado de

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terra a fim de extinguir a fogueira por completo. Restara apenas uma fumaça cinza que se dissipava no ar.— O que houve, Daniel, assustei você?— Não, claro que não — respondeu, decepcionado com o seu insucesso.Em pouco tempo penetrariam a fissura longilínea do monte Vorengor, que parecia aguardar impassível os aventureiros que arriscassem invadir seus obscuros domínios.Ao erguer o braço em menção para que suspendessem a marcha, Talemine notou sinais recentes da passagem de outro grupo. Ela nem precisou saltar para tirar suas conclusões.— Dois ou três indivíduos passaram nesse lugar vindos do norte, faz uns dois dias — disse, quando examinou com mais atenção um ramo quebrado. - Ou eles são descuidados, ou não estão nem um pouco preocupados se alguém nota a sua presença. Talemine adiantou o galope e continuou: - Aqui eles mudaram a rota e foram direto para... a fenda.— Mantenham suas armas ao alcance das mãos — aconselhou Rhuror. — Não é comum encontrar alguém nessas proximidades se não se pretende usar a passagem pelo interior do Vorengor.A mata, bem fechada, impedia a visão mais à frente, entretanto, as pistas deixadas pelo outro grupo, continuavam claras para os olhos experimentados de Talemine.Quando a espessa vegetação findou próxima a base da montanha, o que se viu foram duas figuras bem conhecidas dormindo no meio de

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uma espaçosa clareira que servia como salão de entrada para o coração do Vorengor. Uma fogueira apagada e restos de comida estavam espalhados pelo chão. O ronco de um deles era tão alto que Talemine contraiu a face, provocando risinhos dos garotos.— São Nef e Lamdi — disse Marc, reconhecendo os aventureiros da tribo de Eutan. — Como vieram tão longe?— Vocês os conhecem? — perguntou Talemine, surpresa por ainda dormirem pesadamente, apesar de tanto barulho.— Conhecemos sim - informou Guillermo. - Nos encontramos antes de atravessarmos o desfiladeiro Blarbuk.A jovem guerreira puxou a sua espada e usou a ponta da lâmina para cutucá-los. Eles despertaram de sobressalto.— Quem é você? O que está fazendo? - perguntou Nef, o gordinho, espremendo-se inutilmente para encolher a barriga e evitar o aço cortante.Seu companheiro, Lamdi, confuso ao enxergar ainda zonzo, os olhos vermelhos de Talemine, arrastava-se para trás apoiado nos cotovelos, desordenadamente.— Ei! Esperem, não vou machucá-los — a faogard afastou a arma numa atitude amistosa.Lamdi e Nef ergueram-se devagar e as expressões deles acalmaram-se quando viram rostos conhecidos.— Os estrangeiros que nos atacaram no Blarbuk! — apontou Lamdi, seu sorriso era demasiadamente inocente.

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— Acho que os estou reconhecendo — disse Rhuror, depois que os viu melhor, e deslizou pelo flanco do drancto até seus pés tocarem forte o chão. — Vocês não andaram pelas bandas de Fena?— Visitamos algumas vezes aquela cidadezinha acolhedora - disse Nef, estendendo a mão ao faogard. Não havia como não simpatizar com aquela dupla de bonachões. — É um lugar simpático, mas muito agitado para o nosso gosto.— Como conseguiram atravessar o Canormut a pé? — perguntou Brian.— Não viemos a pé — Lamdi franziu a testa, querendo explicar tudo. - Uma caravana cheia de comerciantes nos trouxe e depois seguiu para o sul, margeando o Malthar. Não quisemos ir com eles, a viagem já estava ficando sem graça.- Quando nos ofereceram trabalho, aí vimos que era hora de pularmos fora — completou Nef, encaixando a mão no ombro de seu amigo. - É como Lamdi falou, a viagem com os comerciantes estava ficando enfadonha, até o mestiço Lughy desistiu de tagarelar.- Você disse Lughy? - indagou Rhuror, semicerrando os olhos.- Sim, disse. Vocês devem conhecê-lo, o meio humano, meio faogard que vive aprontando das suas — respondeu Nef com alguma indiferença. - Ele abandonou a caravana logo depois do Canormut.Todos se entreolharam com suspeita.— O que foi? Falei alguma coisa errada? - quis saber Nef, quando notou as expressões se

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alterarem.— Não é nada — interferiu Brian. - Lughy tem algumas informações que nos interessam e gostaríamos de falar com ele.— E o que vocês estão fazendo por aqui? — interrogou Daniel, notando de perto que as vestes dos andarilhos estavam bem surradas desde a última vez que os viram.— Decidindo — disse Lamdi, simplesmente.- Decidindo o quê? — quis saber Rafael.Nef apontou para a entrada silenciosa do Vorengor, e completou.- Decidindo se vamos por ali ou contornamos o Malthar pelas longínquas florestas do norte.- É isso mesmo que Nef disse — continuou Lamdi com desenvoltura, o peito estufado. — Nem pensamos em subir por essas encostas sem fim. Detestamos o frio intenso lá de cima - agora ele direcionava o indicador para o alto.Brian explicou-lhes da escolha pela fenda, mesmo sabendo de todos os rumores que envolviam o monte Vorengor. Isso agilizou a decisão dos dois amigos.— Vamos com vocês - disse Nef, sem hesitar. - E claro, se vocês não se opuserem.- O que dizem? - Rhuror questionou os seus companheiros, querendo a aprovação da maioria.— Por mim não há problema. Alguém é contra de que eles viagem conosco? — disse Brian, correndo o olhar pelos companheiros.Enquanto discutiam a presença de Lamdi e Nef na comitiva, Marc se afastou alguns metros e se colocou de frente para a entrada da enorme

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fenda. A abertura no Vorengor tinha cerca de doze metros de largura e estava diante de Marc como uma sinistra bocarra escancarada, pronta para abocanhá-lo. O corte na pedra que separava a montanha era reto como queijo quando fatiado por uma faca, e regular desde a base até o pico que alcançava facilmente os quatro quilômetros de altura. Se as duas metades fossem unidas novamente, se encaixariam quase que perfeitamente uma na outra. Marc tentou enxergar o que havia dentro da montanha, porém a sua vista não alcançava mais do que uns oitenta metros de profundidade. E depois, era só a completa escuridão. O que haveria além, naquelas sombras, que provocava tanto medo e afastava os viajantes? Aquilo lhe causou calafrios. A voz de Rhuror arrancou Marc dos seus pensamentos.- Vocês vão com a gente, mas não nos causem nenhum tipo de problema — advertiu o guerreiro de cabelos vermelhos enquanto escalava a sua exótica montaria, dando entender que a viagem iria continuar imediatamente. — Viajarão comigo. Assim pouparão os gifenontes e poderei ficar de olho em vocês dois. Subam.Lamdi e Nef correram para o drancto e começaram a subir de maneira desastrada. Rhuror estendeu-lhes a mão quando viu tamanha dificuldade. Em seguida, comentou:- Espero que aquele corredor não seja muito estreito pra você, meu amigo - disse ele ao drancto que começou a se locomover pesadamente na direção da fenda.

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À medida que avançavam para o interior, os ruídos da mata iam sendo sufocados até desaparecem completamente, e só o que lhes restara eram os cascos dos cavalos tocando a rocha dura e uma corrente de ar constante que lhes soprava os ouvidos e agitava levemente os cabelos. A claridade vinda do exterior foi aos poucos se reduzindo, até que eles se viram envolvidos na penumbra. Era hora de usarem os cajados de luminita que, ao serem expostos, revelaram com a sua crescente luminescência, o caminho pedregoso e os paredões rochosos que se erguiam de ambos os lados. Tais paredões se perdiam na vertiginosa altitude escurecida e somente uma finíssima linha de claridade comprovava que a fenda se abria até o topo da montanha. Filetes de água escorriam e gotejavam pelas paredes, produzindo um repetitivo som de água caindo na pedra. Ao ver aquilo, Rafael comentou.- Dessa vez não teremos dificuldades com a falta de água — sua voz ecoou como se ele estivesse em um salão de teto alto.A entrada daquele extraordinário desfiladeiro já havia ficado uns dois quilômetros para trás. Apenas um fio tênue de luz avisava que o dia começava lá fora com um sol radiante cobrindo a cordilheira. Ainda era de manhã.Mais adiante, eles passaram por uma queda-d'água que despencava de uma nascente de uns vinte metros de altura. A água descia pela parede de granito e afundava em uma brecha,

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indo direto para o subsolo. Uma névoa úmida se levantava com o choque da água nas rochas.Daniel foi o primeiro a ver uma coisa estranha que lhe causou espanto.- Olhem aquilo na cachoeira!A parede de água formava rostos disformes com olhos agonizantes e bocas como se gritassem por socorro.- Não toquem na água — preveniu Roger. — Não sabemos o que pode acontecer.- O que são aqueles rostos? — perguntou Chester como quem quisesse tentar uma resposta.- Arrisco dizer que são as almas dos pobres desgraçados que um dia ousaram entrar na montanha e acabaram prisioneiros de mais uma maldição — imaginou Rhuror.- Tomara que não acabemos assim — torceu Marc, recuando o seu cavalo para que os respingos não o atingissem.- Ei, Lamdi! Eles são parecidos com você - caçoou Nef. - Feios e desengonçados.Rhuror lançou um olhar mal-humorado para Nef.- Cuidado com o que brinca. Está zombando de coisas que desconhece.- Desculpe, senhor. Só quis descontrair um pouco.A cachoeira enfeitiçada havia sido engolida pelas sombras quando os cavaleiros seguiram em frente, e só restou o barulho borbulhante da água caindo, até também desaparecer com a distância.Não havia curvas e nem sequer um pequeno desnível. Uma pessoa de olhos fechados poderia

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caminhar em linha reta durante horas sem esbarrar nas paredes da garganta.O brilho das luminitas começou a enfraquecer; a carga de luz que se armazenara nas primeiras horas da manhã estava se esgotando. A luz branca dos cajados foi cedendo lugar a um tom azulado, apagando-se lentamente.- Como vamos enxergar daqui pra frente? - inquietou-se Rafael, os olhos apertados com tanta dificuldade em ver.Rhuror abriu uma das bolsas na lateral do drancto e trouxe para baixo alguns pedaços compridos de lenha seca. De uma outra bolsa, tirou um pote de boca estreita que continha uma substância gordurosa de cor esverdeada. Ele introduziu um dos pedaços de madeira no pote e quando o retirou, o creme esverdeado havia grudado e se cristalizado rapidamente. Rhuror, então bateu com o artefato no chão rochoso, produzindo uma fagulha que se transformou em chama viva.- Uma tocha! - exclamou Rafael, suas pupilas se contraíram com o retorno da luz.- Peguem os outros pedaços e façam o mesmo — orientou Rhuror. — Há bastante combustível e madeira para iluminar nosso caminho por muito tempo.— O que é essa coisa verde? — indagou Margaret, olhando para aquilo que havia cristalizado na sua tocha ainda apagada. A coisa exalava um odor ardido se respirado com força.— É óleo de felbiana - ensinou Rhuror. - Esse foi extraído das minas de Dulghana em Drallêngia. E

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o melhor de todo o continente... e muito caro, portanto não desperdicem. Pode durar horas queimando antes de atingir a lenha. Vê como cristaliza? — disse, mostrando uma tocha que estava pronta para ser usada. Com um golpe ele acendeu a próxima tocha e observou a chama: - Isso só acontece quando a felbiana entra em contato com a madeira. Por isso deve ser mantida em potes como esse.Com a questão da iluminação solucionada, a jornada foi retomada.As luzes oscilantes das tochas que ondulavam sobre os paredões, criavam um efeito fantasmagórico.A fraca luminosidade externa que vinha do alto da montanha foi enfraquecendo até se extinguir totalmente.— Já é noite — disse Talemine, quando não viu mais nenhuma luz vindo de fora, ela olhou em volta. - É como se estivéssemos no fundo de uma caverna.Na parede do lado direito eles encontraram uma gruta de uns três metros de profundidade. Um adulto teria que se abaixar para penetrar em seu interior. No fundo da gruta havia uma fissura vertical com cerca de um palmo de largura. Nada mais havia no interior daquele buraco escavado na pedra. O curioso Lamdi ameaçou entrar, mas foi segurado pelas calças.— Que pretende fazer? - perguntou Guillermo, trazendo-o de volta.— O que pode haver ali dentro? — argumentou, justificando-se. — É só uma gruta vazia. Talvez

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eu durma lá dentro. Não quero ouvir essa corrente de ar assoviando a noite toda.— Deixe, Lamdi — pediu Nef. — Nós já dormimos em tantos lugares que uma noite com um ventinho à toa não será tão ruim.— Devemos estar quase a meio caminho da saída - estimou Roger. - Podemos ficar por aqui essa noite.A sugestão de Roger foi aceita e o acampamento foi erguido.Marc observava as profundezas escuras da fenda e imaginava que uma ameaça monstruosa poderia aparecer, atacando-os e devorando-os ou os prendendo como as imagens dos rostos atormentados que havia visto na queda d'água.Os paredões tinham rachaduras estreitas que subiam por dezenas de metros, e de dentro delas surgiram estranhas criaturas que deixaram os aventureiros estarrecidos. Eram homúnculos, seres pequenos de, no máximo, oitenta centímetros de altura; tinham a pele branca como leite e olhos grandes e negros a tal ponto que quando vagavam nas sombras, suas faces pareciam ter dois buracos profundos no lugar dos olhos; a boca era apenas uma linha atravessada e quando se abria, mostrava duas fileiras de dentes finos como agulhas; o nariz se reduzia a dois furinhos quase imperceptíveis e as orelhas, de abano, deviam ser assim para detectarem qualquer ruído por menor que fosse; os dedos, muito finos, tanto dos pés quanto das mãos, eram adaptados para se agarrarem nas pequenas ranhuras das paredes e com isso,

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conseguirem se locomover com facilidade pelos esconderijos verticais do Vorengor.- Lódrolls - disse Rhuror, lançando mão de uma tocha - são criaturas lendárias. Seres da noite, de apetite insaciável, que vagueiam à procura de tudo o que se possa mastigar. Meus ancestrais descreviam essas coisas como devoradores de carne humana. Segundo as descrições, os dentes deles inoculam uma droga paralisante, e com isso, as suas vítimas são devoradas ainda conscientes. Uma morte horrível - disse ele, avançando sobre alguns e ameaçando-os com a tocha. Os lódrolls se comprimiram para dentro das apertadas fendas. - Viram isso? Eles temem a luz e o fogo. As chamas nos manterão em segurança. Permaneçam perto delas o tempo todo.Entretanto, não era seguro passar a noite no meio daqueles monstrinhos brancos. Então, Roger se armou com uma tocha e galopou adiante para uma inspeção. Talvez, os esquisitos habitantes das frestas se concentrassem apenas naquele local. A luz se afastou com ele e ouviu-se uma gritaria histérica vinda de longe conforme Roger se aprofundava nas trevas. Ele retornou na mesma marcha lenta e cautelosa.- São milhares. As gretas onde os lódrolls se escondem se espalham por toda parte, como artérias na pedra. O mais prudente é ficarmos bem onde estamos.Formaram um círculo de tochas e o acampamento foi montado bem no meio como

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uma fortificação ardente. Por ora, estavam protegidos dos lódrolls.As criaturinhas horríveis esticavam as cabeças para fora das fissuras e se encolhiam, como se discutissem uma maneira de vencer a barreira em chamas e lançarem-se sobre o farto banquete de carne. De suas bocas saiam chiados longos que iriam atravessar a madrugada, dificultando o sono.- Não quero ser comida desses monstrinhos - sussurrou Margaret para Chester que se acomodara próximo a ela.- Não vai ser não, Meg. Amanhã estaremos fora desse buraco infernal - confortou-a o amigo.Foi resolvido que Talemine, Guillermo e Nef tirariam as três primeiras horas de sentinela, e que seriam sucedidos por Roger, Rhuror e Daniel. O último turno ficaria para Brian, Marc e Lamdi. Dessa vez, Margaret, Rafael e Chester se livraram da vigília e poderiam ter uma noite de sono sem interrupções. Dormir pouco havia se tornado uma rotina para eles. Margaret juntou as mãos ao lado do rosto e apagou logo, no entanto, o seu sono era inconstante e ela acordava para ver se tudo corria bem; olhava os grandes olhos negros dos lódrolls e seus dedos finos agitados como ratos famintos, e dormia de novo. Após horas, ela desistiu de tentar o sono. Olhou em volta. Contou os integrantes do grupo e notou a falta de um.- Onde está Lamdi?- Ficou do outro lado, perto do drancto - disse Brian, agora também percebendo a sua ausência.

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Brian procurou e viu que Lamdi havia desaparecido. - Ele não está em lugar nenhum.O falatório despertou todo mundo, e em instantes estavam andando de um lado para o outro, procurando por Lamdi. Seu amigo Nef, muito preocupado, apertava os punhos um contra o outro deixando transparecer o seu nervosismo. Os lódrolls se agitavam e guinchavam pelas paredes, como se aguardassem que um mais afoito cruzasse a proteção dos archotes, direto para as suas bocas vorazes.Uma lembrança desagradável veio à mente de Roger e ele vasculhou o local por onde haviam passado antes.- Venham até aqui! - gritou ele. - Acho que localizei Lamdi.Roger estava agachado e sua tocha iluminava o interior da gruta. Bem no fundo, havia uma poça enorme de sangue e fragmentos de alguma coisa que parecia ser carne.A conclusão a que Roger chegou era inevitável.- A abertura no final da gruta é muito estreita. Ele não teria condições de entrar nela. Foi levado, aos pedaços.O Vorengor havia feito uma vítima.- Arrumem tudo. Vamos dar o fora daqui - disse Rhuror, impaciente.Nef se arrependeu de ter caçoado dos rostos na cachoeira. Imaginou que a alma do seu companheiro de tantas aventuras estivesse lá agora, e se tornara prisioneira do Vorengor para toda a eternidade.

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A caravana investiu para dentro das trevas, onde os lódrolls se agitavam aos milhares; alguns se desentendiam no alvoroço, trocando mordidas e se empurrando mutuamente. Os lódrolls não temiam tanto o fogo como antes. O desespero por comida deixou-os enlouquecidos e desafiavam as tochas, chegando cada vez mais e mais perto. Utilizando o seu archote como uma espada, Guillermo tentou acertar alguns lódrolls, mas eles se desviaram a tempo. Muitos começaram a saltar sobre a pele dura do drancto, obrigando Rhuror e Nef a golpearem alguns com fogo e chutarem outros, fazendo-os despencar no solo. Mais lódrolls rastejavam pelo chão lutando para enterrar os seus dentes finos e pontudos como pregos nas patas dos cavalos.Rhuror puxou o pote de óleo de felbiana para si e untou a ponta de uma flecha. Ela cristalizou.— Animais demoníacos! Se vamos fazer uma visita a Arkopromis, levarei muitos de vocês conosco. Provem a fúria de um guerreiro faogard!A ponta da flecha ardeu e varou o ar, atravessando dois repulsivos lódrolls de uma só vez. Eles incendiaram como palha seca.— É por isso que eles temem o fogo! — berrou Rhuror, enquanto mergulhava mais flechas no óleo. — São inflamáveis! Peguem essas aí embaixo.Talemine passou a flecha cristalizada pela chama e mirou no paredão que fervilhava de lódrolls.— Se meu pai estiver correto - murmurou, a guerreira, curvando o arco o máximo que podia - teremos um espetáculo inesquecível.

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A flecha incendiária zuniu e cravou nas costas de um lódroll que virou uma bola de fogo como uma cabeça de fósforo quando é riscada. A chama se alastrou rapidamente pelos esbaforidos monstrinhos e se transformou em um incêndio, impedindo qualquer chance de fuga por parte dos demônios brancos. Muitas outras flechas chamejantes foram lançadas e em pouco tempo os paredões do Vorengor queimavam como a cortina do inferno. Os lódrolls caíam aos milhares, e pintavam de negro o chão do desfiladeiro com seus corpos carbonizados.O incêndio se extinguiu e só o que restou foi um cheiro desagradável que impregnou a atmosfera do lugar.A calma aparente voltou ao Vorengor.— Esse fedor está me sufocando - reclamou Nef, suas mãos abanavam a fumaça. — Quero ir embora de uma vez.O pedido de Nef foi prontamente atendido e o ar ficou mais respirável conforme eles se evadiam.— Se a maldição da fenda eram os lódrolls, acabamos com ela - comentou Nef, mais confiante. A lembrança do amigo Lamdi e a forma como ele havia morrido latejavam em sua cabeça.— O que pensa em fazer agora, Nef? - perguntou Rhuror. — Não tem mais o seu companheiro de aventuras para acompanhá-lo.— Não sei ainda — respondeu com desalento. - Quando ficarmos livres da fenda, eu decido o que farei. Pretendíamos conhecer o castelo dos

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desenvals nas montanhas do vale Edrendora. Provavelmente é pra lá que eu vou.De repente, a terra começou a tremer, desequilibrando os gifenontes e quase jogando-os ao solo.- Terremoto! Segurem-se! — alertou Brian, ele mesmo sacolejando em cima de sua montaria. Teve que descer e segurar o animal assustado pelas rédeas.Parecia que os dois lados da montanha iriam desmoronar sobre eles, todavia, o tremor não levou mais que dez segundos, mas deu a impressão de ter durado minutos.Depois que tudo se acalmou, foi a vez de um grande estrondo vir do topo do Vorengor e deixar os viajantes atentos para outra surpresa. O som forte era o prenúncio de uma avalanche de neve provocada pelo terremoto. A neve, ao cair pela fenda, condensou-se com o calor das baixas altitudes e se precipitou inofensiva.- Está chovendo aqui dentro — sorriu Margaret, as gotas geladas molhando o seu rosto, ao mesmo tempo em que imaginou ter ouvido pedidos de ajuda trazidos pela água. O clamor desesperado lembrava a voz de Lamdi.Dois terços da jornada haviam sido completados pelo interior da Vorengor.O fio de luz que cruzava a extensão da montanha, pelo alto, havia reaparecido. Era dia novamente. Isso alegrou um pouco o coração de Margaret.O semblante de Brian assumiu uma expressão interrogativa:

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- Vocês repararam? — atentou ele.- O quê? - indagou Guillermo.- As correntes de ar.- Não tem mais vento - entendeu Daniel, observando que as chamas dos archotes não estavam tremulando.- Não falta muito para sairmos desse beco diabólico. Fiquem mais atentos a partir de agora - disse Guillermo, como se previsse algo de muito ruim.Brian, que cavalgava na dianteira da expedição, foi o primeiro a avistar diversas ondulações no terreno à sua frente. Ele ergueu a mão direita avisando que parassem e olhou atentamente os contornos indefinidos que brotavam do chão. Não havia movimento. E a penumbra não permitia que identificassem o que se espalhava pelo caminho.- Só pode ser uma armadilha — disse Roger, enxergando a saída do desfiladeiro numa distância de uns dois quilômetros e meio. Restava muito pouco para completarem a travessia do desfiladeiro. — Vamos conferir o que são aquelas coisas. — Ele atirou a sua tocha entre as saliências no solo, e foi aí que puderam ver do que se tratavam aquelas imperfeições iluminadas pelas chamas.Rostos com expressões de agonia, mãos contraídas como se tentassem se libertar, ombros, pernas e pés. Corpos semienterrados, espalhados pela superfície, petrificados e imóveis como se fizessem parte da montanha. E realmente faziam.

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Rhuror e Nef desceram do drancto. Rhuror examinou a passagem e os paredões escorregadios.- Não há outro jeito de atravessarmos que não seja por entre os corpos — concluiu ele. — O que acham?- Estamos num impasse — disse Brian, após pensar numa alternativa.- O drancto - sugeriu Chester. - Ele esmaga aqueles corpos com as suas patas.- Não deve ser tão simples assim — disse Talemine. — Está tudo muito quieto, como se esperassem o momento certo para agir.Nef prestou mais atenção e identificou uma coisa.- Estão vendo uma coisa ali? Bem naquela direção? - ele andou um pouco, enquanto apontava. — É Lamdi! Eu conheço aquele rosto abobado. Tenho que ajudá-lo — e correu para uma formação que brotava do chão.- Não, Nef! — gritou Brian, ainda se esticando inutilmente para segurá-lo pelo braço, mas não conseguiu.- Saia daí, Nef! É uma armadilha - alertou Roger.- É só um monte de rochas com formas humanas — retrucou Nef, ele inspecionava a cabeça de pedra. — Lamdi deve estar aqui embaixo — ele olhou em volta. - Preciso de algo para bater. Vou tirar você daí de dentro, meu amigo.- Nef, seu doido, esse não é seu amigo Lamdi — disse Talemine, para convencê-lo.- Ele está louco? — indagou Rafael, espantado.

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- Deve estar - respondeu Rhuror com pressa. - Se afaste daí, seu idiota! — ordenou com energia.Marc firmou a vista e viu que algo muito grandioso estava para acontecer.- Tem alguma coisa errada. O chão... O chão está se mexendo! — berrou.A superfície de granito ondulava como um mar agitado. Nef compreendeu que tivera uma péssima idéia, mas aí já era muito tarde quando ele quis fugir. Nef desequilibrou nas dobras oscilantes do terreno e caiu. Tentou levantar-se apoiando as duas mãos que afundaram. Ele gritou desesperadamente, no entanto, ninguém podia fazer nada. Rhuror ainda correu para pegar uma corda e resgatá-lo, mas quando voltou, para perto de Nef, só conseguiram ver as costas que se transformaram em pedra, o resto do seu corpo sepultado para sempre.Estava tudo quieto mais uma vez, o terreno estável, os olhares atônitos e sem ação.- Não há como passar? - perguntou Margaret, depois do choque de presenciar outra morte.-Tem que haver — disse Roger, irredutível. - Não viemos até esse ponto para desistir.Calado e absorto em seus pensamentos, Rafael olhava a tocha ardendo entre os cadáveres rijos. Ele voltou-se para seus amigos com um plano que talvez desse certo.- O portal.- O que o portal tem a ver com isso, garoto? - perguntou Guillermo, disposto a ouvir qualquer sugestão que levasse a uma solução.

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- Lembram? O Círculo de Pedra leva algum tempo para funcionar. Acho que isso também acontece aqui — o menino fez uma pausa para achar as palavras corretas. — Existe um intervalo antes da coisa acontecer. Eu acredito que se corrermos muito, muito rápido, poderemos escapar.- Considero boa a sua idéia, Rafael, contudo, não sabemos exatamente qual é o tamanho desse cemitério que petrifica os seus mortos - retorquiu Brian. - Pode se estender até a saída do desfiladeiro. A escuridão impede que vejamos onde ele termina. E caso seja tão longo, não conseguiremos atravessar a tempo. Acabaremos todos como esses cadáveres petrificados - disse, os olhos vagando pelas centenas de corpos semienterrados.Com toda a força que tinha, Rhuror arremessou uma segunda tocha para bem longe. As suspeitas de Brian tinham fundamento. As desigualdades do solo indicavam que mais corpos jaziam adiante.- Os mortos tornam o caminho acidentado. A corrida seria bastante difícil - observou Guillermo.- Podemos conseguir - garantiu Chester, seguro das suas habilidades de cavaleiro. — O que me preocupa é o drancto. Ele não me parece ser muito veloz.- Você ainda não conhece bem essa fortaleza, garoto Chester. Quando ele pega impulso, corre tanto quanto qualquer cavalo - disse Rhuror com inegável orgulho de seu companheiro de quatro patas.

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- A proposta de Rafael é interessante. E não consigo pensar em nenhuma melhor. Estão de acordo? — quis saber Rhuror.- É a única que nós temos. Ora, esse mausoléu dos diabos está me dando nos nervos. Faço qualquer coisa pra sair daqui - disse Brian com a sua paciência esgotando-se.- Parece que é só o que nos resta, ou voltar — disse Marc, apontando o polegar para trás.- Não há mais tempo - retrucou Roger com toda seriedade que a situação exigia. — Agora é só ir em frente.A estratégia foi montada. Uma primeira bateria de sete cavalos se alinhariam como se estivessem prontos para a largada de um grande prêmio. Outra fila de dois cavalos largaria em seguida. Por fim, o drancto encerraria o plano de fuga. Seria feito dessa forma para que houvesse espaço suficiente e os cavaleiros não se atrapalhassem ao correrem lado a lado. Chester posicionou-se na segunda fila ao lado de Talemine e Guillermo. Ela por ser mais leve e querer estar ao lado do pai, e Guillermo por motivos evidentes.- Você vai na frente com os outros, Chester - ordenou Guillermo com voz firme.- Não vou, não - resistiu. — Sou mais leve e monto melhor que o senhor. E o alcançarei antes da metade da corrida.Guillermo desviou o olhar para Talemine e voltou a Chester. Ele sorriu pela determinação e a coragem que o rapaz demonstrava.

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- Vá com os outros — Talemine pediu a Guillermo. — Estaremos bem.Guillermo encarou Chester e o desafiou:- Vou chegar antes de você, cavaleiro - ele galopou e enfileirou-se na primeira bateria.Chester inclinou-se até a orelha do seu gifenonte e cochichou para ele.- Você já viu uma estrela cadente, bravo amigo? Pois agora eu quero que você seja tão rápido quanto uma.A orelha do animal tremeu. Será que Chester se fez entender? A verdade é que ele tinha uma relação com os cavalos que era quase sobrenatural.- Mirem na saída. A luz vinda de fora será o nosso guia — orientou Rhuror da retaguarda.- Todos prontos? - Brian conferiu as posições, olhando para os dois lados. - Agora! — gritou com intensidade.Bruscamente dispararam pelas trevas. Os archotes clareavam uns poucos metros o caminho irregular. Viam os corpos convertidos em pedra correndo sob eles. Seres que um dia foram humanos, caídos em diversas posições; um cão com a boca arreganhada e os caninos à mostra; um cavalo com a cabeça erguida para o lado num último gesto de vida.Os cascos das montarias resvalavam vez ou outra em alguma triste figura esculpida pela morte.O final da fenda se aproximava e a esperança revigorava os ânimos dos cavaleiros em fuga.

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Chester quase se deitava sobre o seu gifenonte e murmurava sem parar.- Corra, falta pouco agora. Só mais um pouco.Mas bem à sua frente, o que ele temia aconteceu. O cavalo de Margaret tropeçou em um dos corpos e desabou, jogando-a entre os dois braços de um cadáver com feição aterrorizada. O cavalo da menina levantou-se assustado e indeciso. Os outros interromperam a cavalgada para ajudá-la e Rhuror fez um enorme esforço para que o drancto não pisoteasse a todos, e sem conseguir parar, ele assumiu a liderança na corrida. Chester tratou de agir sem perder um segundo. Agarrou as rédeas do animal e as estendeu para Margaret.- Monte de uma vez — disse ele. — E vocês, o que estão esperando? Corram!Uma leve vibração no solo foi o aviso. Estava acontecendo. A superfície começou novamente a ondular, roubando a estabilidade dos cavalos e fazendo as suas patas fraquejarem. Chester agora cavalgava na última posição no encalço de Margaret como uma escolta implacável. A ondulação havia aumentado e os animais não conseguiriam se equilibrar por muito tempo.Os primeiros cavaleiros atingiram o solo seguro, e o gifenonte de Margaret chegou logo depois dando um longo salto para se salvar.Um grande tranco atirou Chester da sua sela, fazendo-o rolar no chão em segurança, mas o seu animal ficou preso pelos cascos que afundaram como que em areia movediça. Havia se transformado em uma estátua de pedra,

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paralisado, como se pretendesse dar um derradeiro salto. Não conseguiu.Chester desesperou-se, esticando a mão como se pudesse fazer algo para ajudar, ele gritava implorando por socorro, mas era muito tarde. Como uma praga que o perseguisse por amar tanto os animais, o jovem cavaleiro havia perdido, em pouco tempo, dois cavalos de maneira trágica. Roger ajudou-o a se levantar do chão. Chester se esticou, e com as pontas dos dedos ainda conseguiu tocar no focinho inerte do seu companheiro. O toque era frio e áspero.- A culpa foi minha — incriminou-se Margaret. — Se eu não tivesse caído, nada disso teria acontecido.- Não houve culpados, Meg — defendeu-a Guillermo de si mesma. — Se Chester não tivesse feito aquilo para ajudá-la, talvez você não estivesse viva agora. Não se torture à toa.Um estrondo cortou o ar e ecoou na fenda, pegando-os de surpresa.- A saída! - exclamou Talemine. - Está se fechando!Cristais negros se reproduziam em ambos os lados da saída e cresciam, edificando uma muralha que se elevava por muitos metros. O barulho era como pedra se destroçando e em poucos segundos tudo estava bloqueado. Faltavam cerca de cem metros e eles se encontravam presos. O bloqueio crescia ainda mais e já atingia quase trezentos metros de altura. Comportava-se como um organismo vivo que não parava de aumentar de tamanho...

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- Afastem-se para os lados! Para os lados! — ordenou Rhuror, os braços agitando-se exageradamente. - Encostem-se nas paredes!— O que ele tem em mente? — perguntou Guillermo a Talemine.— Você já vai ver, mas prepare-se pra correr como um louco.O drancto abaixou a cabeça, feito um touro furioso, as patas dianteiras dobradas, e arrancou com toda a intensidade que seus músculos retesados poderiam agüentar. Os outros cavaleiros o seguiram de perto ao comando de Talemine. Roger e Chester unidos na mesma montaria. O animal descomunal ganhou velocidade sem temer a muralha que se punha à sua frente em obstáculo. O rosto de Marc se contraiu prevendo a maior trombada que seus olhos teriam a oportunidade de registrar. O impacto foi tão violento que todo o lugar estremeceu. Volumosos estilhaços de cristal negro se espalharam numa chuva brutal. O drancto atravessou a sólida barreira e tombou, levantando uma considerável quantidade de poeira. Foi a vez de Rhuror ser arremessado longe, deslizando pela grama. Imediatamente, ao ser rompida, a abertura começou a se fechar novamente e por pouco não prendeu um dos cascos da montaria de Marc.Com a mesma rapidez que havia surgido, a muralha negra se retraiu e desintegrou diante de olhos atônitos. A fenda estava mais uma vez preparada para receber outros visitantes

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incautos como uma ratoeira espera os ratos descuidados.Com sua raiva descontrolada, Rhuror berrou para a montanha, enaltecendo o nome do seu deus e afrontando o Vorengor, as veias dos braços e pescoço saltadas como se fossem estourar. Rhuror queria extravasar toda a sua ira.A montanha sacudiu, e das suas entranhas ouviram um som tão pavoroso que fez a nuca de Rafael se arrepiar.Com a espada em punho, Rhuror incitava.— A vitória é nossa, Arkopromis! Vencemos a sua maldita montanha!Guillermo trotou até o guerreiro e pigarreou antes de falar.— Não é que seja da minha conta, Rhuror, mas você não acha meio perigoso provocar um deus?— Está visto que Sargaleu nos guiou e amparou até agora. Com o auxílio dele triunfamos sobre o Vorengor. Superaremos todas as dificuldades com a proteção do deus guerreiro.Rhuror voltou-se para o drancto que se erguia com lentidão. A testa do animal apresentava um corte profundo e o sangue escorria-lhe pelo largo focinho. O faogard ordenou que o drancto se deitasse, e pediu que Chester lhe trouxesse um fardo que guardava bálsamos com extraordinários efeitos medicinais. Então, aplicou com cuidado o curativo no ferimento. Rhuror elogiou o drancto e se orgulhou dele por ter enfrentado com bravura a resistente muralha. Era espantoso ver o possante animal de pé em

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tão pouco tempo. A medicina faogard provou novamente a sua eficiência.— Para onde agora, senhor Rhuror? — perguntou Marc. Diante dele, toda uma imensidão de gramíneas, colinas suaves pouco elevadas ao fundo e um belíssimo céu azul.— Não muito distante, está o vale de Edrendora, a terra dos desenvals. E lá o nosso próximo destino, garoto Marc.

Capítulo 29Sonhos Mágicos

Um dia e meio de marcha nos suaves campos de gramas e arbustos, e finalmente entraram nas terras mágicas do Edrendora. Do alto da colina, avistaram o rio Edrendora que dava o seu nome ao vale. O rio nascia na parte oriental da cordilheira do Malthar e descia de noroeste em diagonal para sudeste, rasgando todo o vale com suas águas piscosas. Um vento morno e emanando um agradável cheiro de plantas frutíferas soprava nos rostos deliciados pela beleza natural do vale. A paz e o sossego deveriam morar naquelas terras mágicas.O grupo tomou a única estrada de terra que seguia para leste até atingirem uma pequena fazenda onde um homem se preparava para semear a terra. O fazendeiro usava um chapéu de aba muito larga que lhe cobria o rosto, e assentava no chão uma saca de sementes, preparando-se para começar a semeadura. Ao

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seu lado, um cavalo atrelado a uma carroça velha, pastava com indiferença. O homem parou o que fazia para dar atenção aos forasteiros. Ele caminhou sem pressa até bem perto dos visitantes sobre suas montarias e descobriu a cabeça do enorme chapéu, mostrando o rosto. Cabelos curtos e vermelhos, como também eram os seus olhos. Era um camponês faogard. Preferia cortar os cabelos bem rentes a cabeça para diminuir a sensação de calor que sempre fazia no Edrendora naquela época do ano. Na verdade, durante três quartos do ano fazia temperaturas amenas e elevadas por toda a região. O camponês cumprimentou primeiramente em gazivian e mudou para o idioma humano ao perceber que só Rhuror o entendia. Apresentou-se com o nome de Coldanur.— Para onde estão indo? — ele quis saber.Rhuror contou que viajavam para o leste até o território crassênida, mas achou por bem não revelar o verdadeiro objetivo da missão.— Suponho que estão cientes dos perigos da jornada — disse o fazendeiro, em tom de aviso. — Se querem ajuda, procurem os desenvals no castelo do monte Ganvagor. Acho que eles oferecerão pouso apropriado e bons conselhos para vocês. Só posso lhes oferecer comida simples e a minha humilde casa.— Agradecemos, bondoso Coldanur, mas temos que ir. Necessitamos mesmo falar com os desenvals e a nossa pressa nos empurra para longe — disse Rhuror, e despediu-se.

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O camponês recolocou o chapéu e retornou aos seus afazeres. Quando se afastavam, Daniel resolveu dar uma última olhada para trás e viu que o fazendeiro deslizava o braço pelo ar num gesto típico dos magos. O menino viu a terra arada abrir centenas de pequenos buracos. Em seguida, o homem pegou um punhado de sementes de dentro da saca e as atirou no ar, cada semente escolheu uma cova e caiu com precisão mágica. Ele é um desenval! - exclamou Daniel, impressionado, um sorriso de surpresa e alegria em seu rosto.Todos se viraram e ainda puderam testemunhar com admiração quando as pequenas covas se fecharam ao comando mágico de Coldanur. Todos os que vivem nesse vale são desenvals - informou Rhuror. Puxa, se eu pudesse fazer essas coisas seria o mágico mais famoso em nosso mundo - disse Daniel com olhos sonhadores. Passaram a noite às margens do Edrendora e pela primeira vez não recorreram aos cobertores e nem ao calor da fogueira. Rafael imaginou que o bíblico Jardim do Éden deveria ser algo parecido.Acordaram com o céu repleto de nuvens estufadas como se elas fossem de algodão. Após o desjejum retomaram a velha estrada de terra e continuaram na direção do leste; caminharam todo o dia e quando a noite chegou, distinguiram o monte Ganvagor. Era uma montanha de encostas muito íngremes e o castelo se erguia

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quase no topo em uma base firme num de seus lados rochosos. A arquitetura severa, mais espantava do que atraía os visitantes. Suas torres eram compridas e desafiavam a gravidade, equilibrando-se nos paredões pendurados nos penhascos. Algumas janelas derramavam tímidas luzes pela noite. O dia quente trouxera nuvens escuras que prometiam chuva, o vento ficou mais forte com a mudança do tempo e fez com que a caravana se apressasse se não quisesse se molhar.A estrada bifurcou-se em um caminho que continuava mais para leste em uma estradinha que era a passagem para a montanha. A subida contornava uma parte do Ganvagor e culminava nas portas maciças do castelo. Ventava fragorosamente e o vale, lá embaixo, se transformara apenas em contornos escuros e indiscerníveis.Os ribombos dos trovões prenunciavam a tempestade, e um ou outro pingo grosso já se precipitava sobre os declives do Ganvagor.Sem que batessem, a porta se abriu puxada por um rapaz que aparentava algo em torno dos dezoito anos de idade. Os olhos amarelos e a pele cinza o identificavam como um típico drallengiano das distantes terras de Drallêngia. O rapaz era educado e sua voz, branda, tentava passar a intenção de hospitalidade.— Entrem e sejam bem-vindos, senhores. Já estavam sendo esperados desde que pisaram em Edrendora.

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O rapaz fez algum esforço para fechar a pesada porta, pois o vento a forçava de volta. A porta se fechou com um baque que fez eco pelo salão de entrada. O saguão era espaçoso e iluminado precariamente por archotes presos nas paredes, lembrando os antigos castelos medievais, mas o teto alto e as cinco escadas que se distribuíam em várias direções como um leque aberto, dava uma singularidade a arquitetura. Tudo era simples, mas também exótico e misterioso. Entre a segunda e a terceira escada, da direita para a esquerda, havia uma porta alta que o drallengiano indicou para que os viajantes o acompanhassem até o outro cômodo. Enquanto caminhava, Marc reparava em tudo, os desenhos nas paredes, os cantos escuros, as chamas débeis dos archotes projetando luzes amareladas que mal clareavam o ambiente antigo.O outro cômodo era mais claro e a decoração aplicada com mais esmero que no saguão anterior. Uma mesa muito comprida com onze lugares ficava bem no centro do espaçoso salão; acima da mesa pendia um candelabro de luminita que irradiava luzes limpas e equilibradas. Não havia outros móveis, apesar do excesso de espaço existente.O drallengiano fez um gesto discreto para que todos se acomodassem nas cadeiras e se retirou sem dizer mais nada. Todos ficaram se olhando durante algum tempo, e como nada aconteceu, Margaret se manifestou:— O que faremos agora?

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— Esperamos — disse Rhuror, os cotovelos apoiados na mesa, as mãos se esfregando como se ali fizesse frio.— Senti-me assim quando éramos prisioneiros em uma sala em Faogard — lembrou Marc, ele inclinava o corpo de lado para ver o que havia debaixo da mesa.— Vocês não eram prisioneiros - indignou-se Rhuror, olhando feio para o francês. - Eram nossos hóspedes... forçados, eu admito - o faogard desviou o olhar rapidamente para a filha, buscando apoio. — Mas foram bem tratados - Talemine assentiu com a cabeça e riu quando viu a expressão de Roger, em desacordo.O drallengiano retornou acompanhado de um homem alto que devia ter algo em torno de sessenta e poucos anos, mas o vigor do seu andar era o de um jovem. Suas vestes compridas, confeccionadas em um tecido em tom marrom bem escuro, transmitiam a austeridade da posição que ocupava. Novamente era um desenval, mas dessa vez, de cabelos compridos como era o costume, e barba bem aparada. Seus movimentos eram rápidos e assertivos. Ele acomodou-se na extremidade da extensa mesa e olhou a todos com curiosidade como se estudasse cada um antes de pronunciar a primeira palavra. Surpreende-me estarem aqui depois de atravessarem pela fenda. Tenho que admitir que fizeram uma proeza tão extraordinária, que será lembrada tantas vezes pelos próximos séculos que muitos dirão tratar-se apenas de uma lenda.

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O poder maligno que vive no Vorengor é tão imenso que todos os desenvals que desafiaram a fenda foram subjugados e pagaram com a vida. — Depois de algum tempo ele continuou: — Permitam me apresentar. Meu nome é Nomaktus e sou eu o eleito que dirige esse castelo.Nomaktus olhou-os por mais um instante e questionou. Por que vieram até o castelo dos desenvals? O que querem de nós? Ajuda - respondeu Roger, diretamente. Que tipo de ajuda desejam? - Nomaktus foi mais minucioso. - Comida, remédios... talvez necessitem de animais de transporte em melhores condições. Agradecemos sinceramente a sua oferta, senhor Nomaktus - disse Brian. - Mas a ajuda a que nos referimos é para chegarmos ao portal que nos levará de volta ao nosso mundo. O Portal que se encontra em Crassen — disse o desenval. Exato — concordou Guillermo. — O tempo que nos resta está se escoando e se não voltarmos logo... A Cadecália correrá o risco de ser invadida pela sua gente — completou Nomaktus, demonstrando que estava a par de toda aquela história. Se já sabe o que está acontecendo, concorda que os nossos motivos são relevantes - disse Roger. - Quanto mais cedo puder nos ajudar, tanto mais rápido iremos embora e tudo voltará ao normal.

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A situação não se resolve de maneira tão simples — retrucou Nomaktus, e olhou para o drallengiano de pé ao seu lado, o rapaz assistente entendeu e se retirou da sala. - Se os ajudarmos deliberadamente, entraremos em conflito com os crassênidas e seus aliados. A liderança de Crassen se declarou contra a entrada de vocês em seu território. Acreditam que os que vieram pelo portal são representantes do mal, filhos de Arkopromis, como reza uma lenda muito antiga — Nomaktus levantou-se e passou a caminhar lentamente ao lado da mesa, e falou mais sobre a tal lenda: - Pela tradição popular, um dia os filhos de Arkopromis virão de um outro mundo e instalarão a desgraça e a destruição entre os povos, e os crassênidas serão os primeiros a sucumbir. Eles acreditam que essa lenda é verdadeira e tiveram a certeza quando um de vocês chegou até nós há alguns anos; depois vieram mais três e agora vocês estão aqui.Nomaktus se referia a Alexei Martov e Percy Harrison Fawcett que desbravaram a Cadecália. Fawcett, pelo que se sabia, ainda perambulava com o filho Jack e seu amigo pelas florestas do norte.Margaret interferiu com uma boa argumentação. Mas basta um desenval nos acompanhar e estaremos protegidos de qualquer ataque. Vimos, em Fena, do que vocês são capazes. O que foi que viram em Fena? - perguntou Nomaktus.

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Um desenval chamado Luminus mostrar como vocês podem ser poderosos - disse Margaret com convicção. — O que ele fez causou admiração em toda a platéia. Espetáculos, exibicionismo, aplausos, são palavras como essas que ele valoriza - disse Nomaktus com irritação. — Não pensem que todos os desenvals são como Luminus. Ele jogou fora tudo de bom que aprendeu nesse castelo, e o que sobrou? Um homem superficial que só pensa em si. Um irresponsável que denigre a boa imagem da nossa ordem.Nomaktus suspirou fundo e quis esquecer por um momento o que pensava sobre o seu antigo aluno. Então se voltou para Margaret e prosseguiu: É tolice pensar que um desenval seria a solução de todos os problemas que os acompanham. Temos grandes poderes, isso é verdade, mas talvez o que vocês não saibam é que entre os crassênidas vivem outros desenvals e véussidas que os apoiam, pois acreditam na lenda que acabei de contar. E tem mais uma coisa: existem rumores que os exércitos de Crassen se preparam para a guerra. Fomos informados que muitas de suas tropas se movimentam nas proximidades de suas fronteiras. Isso é um mau sinal. Qual o motivo das tropas crassênidas adotarem esse comportamento? - perguntou Brian. Estou olhando para o motivo agora - respondeu Nomaktus, correndo o olhar por todos à mesa.

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Um relâmpago da tempestade que castigava lá fora clareou ainda mais a sala. Nós? - surpreendeu-se Rafael. - Estão se preparando para uma guerra por nossa causa? Receio que esta seja a verdade, rapaz - disse o desenval. — Entenderam agora a razão da nossa resistência em ajudá-los? Seria o estopim para a declaração de uma guerra. E tem mais outra coisa, a força militar crassênida é extremamente poderosa. Um choque entre os dois lados do continente poderia devastar, em poucos meses, todos os aliados do oeste. Uma guerra - suspirou Brian. - É tudo o que não precisamos agora. E ainda existem os arkoprômidas — lembrou Chester. — Eles já nos trouxeram grandes dores de cabeça. Os seguidores de arkopromis náo se atrevem em andar por Edrendora - afirmou Nomaktus. - Quanto a isso vocês estão seguros. E se aqueles fanáticos puserem um pé em nosso vale, serão punidos com a morte. Como estava dizendo, o que nos causa inquietação fica dentro dos limites de Crassen: o poderoso exército reforçado por magos treinados e comandado por um líder desenval obstinado chamado Gosferac. Gosferac? - repetiu Margaret. Já lemos alguma coisa sobre ele - disse Brian, referindo-se aos registros no livro de Martov. O senhor disse que esse... Gosferac é um desenval - retomou Daniel. Um dos mais fortes que já surgiram - acrescentou Nomaktus. — Se aperfeiçoou por

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mais de vinte anos no conhecimento desenval e um dia foi embora dizendo que faria uma gigantesca revolução em Crassen. Seduziu outros desenvals crassênidas com suas idéias, e construiu outra escola que se rivalizaria com a nossa, e depois disso, nunca mais um crassênida pôs os pés em Edrendora. Gosferac não mentiu. Todas as suas promessas foram cumpridas, e agora ele jura que lutará com todas as suas forças para destruir uma profecia.Nomaktus meditou brevemente sobre a história recente de Crassen e sentenciou. O seu fanatismo contaminou os crassênidas que creem cegamente em seu líder, e ele corresponde preparando e mobilizando o seu enorme exército para, um dia, quem sabe, lutar por aquilo que acredita. Mas então não há nada que vocês possam fazer para nos ajudar? — indagou Talemine. Diretamente, não. Mas posso conseguir algumas informações que tornem a sua jornada menos árdua. Também tenho alguns presentes que poderão ser úteis um dia. No entanto, presumo que estejam com fome e queiram descansar.Nomaktus estalou os dedos que soaram como um enorme sino para chamar os serviços de cozinha. O drallengiano adentrou o salão, seguido por um séquito de bandejas, pratos, talheres, vasilhas de louça, jarras de bebidas, que flutuaram como se fossem carregados por mãos invisíveis; com um gesto comedido do

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drallengiano, a comida pousou com delicadeza sobre a mesa. Um típico banquete de reis. O rapaz drallengiano também é um desenval - sussurrou Rafael a Daniel, uma bandeja de prata contendo carne branca e cenouras rochas, acabava de aterrissar bem nà sua frente.Não comiam tão bem desde Fena e não se preocupavam em ter que olhar para os lados, temendo um ataque mortal. Estavam convencidos que Edrendora era bem guardada, e o castelo, uma fortaleza inatacável. Pela segunda noite, eles teriam o direito de dormirem despreocupados.Quando a fome foi saciada, Nomaktus voltou a falar. Compreendo que a jornada dos amigos se mostra mais difícil com o passar dos dias, contudo, desejo que passem uma noite agradável enquanto estiverem hospedados em nosso castelo — disse Nomaktus com generosidade. — Portanto, serão encaminhados aos seus quartos e a magia do sonho poderá estar em vocês. O que ele quis dizer com isso? - cochichou Guillermo para Talemine, a faogard não teve tempo de responder. Nomaktus explicou. Provavelmente a maioria de vocês não sabe do que estou falando. A magia do sonho lhes dá a oportunidade de sonhar como se vivessem algo real. Concentrem-se em um pensamento e o viverão como se fosse verdadeiro. A diferença entre o sonho e a realidade está na sua intensidade, na vontade em transformar o sonho em alguma coisa muito próxima da realidade.

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Qualquer um é capaz de fazer isso, nós apenas daremos uma pequena ajuda esta noite. Sonho em realidade? Esse eu quero experimentar - disse Marc, ainda em dúvida sobre o que iria acontecer. Pois se me oferecerem uma cama quente e macia, me dou por satisfeito — gracejou Guillermo.Quando deixaram a sala, foram conduzidos pela escadaria central por Nomaktus até o pavimento superior onde começava um corredor longo e obscuro, o drallengiano foi dispensado e desapareceu nos corredores sombrios. A maioria das muitas portas permanecia fechada, porém, alguns cômodos expunham o seu interior para os curiosos transeuntes. Num desses cômodos dava para ver um desenval flutuar a dois palmos de sua cama; num outro, um rapaz meditava em meio às labaredas que devoravam as paredes de seu quarto. O quarto está pegando fogo! - alarmou-se Margaret. Não há perigo - disse Nomaktus com voz sossegada, sem ao menos olhar o que acontecia. - Estão em treinamento profundo. Já avisei tantas vezes para manterem as portas fechadas. Esse desleixo estraga a concentração. O drallengiano que nos atendeu, não é de falar muito - comentou Daniel ao mestre desenval. - Ele é seu assistente? Seu nome é Gaompovus. É um aluno muito dedicado, está conosco somente há três meses.

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Três meses?! - admirou-se Daniel. - E já faz os pratos voarem?! O que ele fará em dois ou três anos, transmutar chumbo em ouro?- Mais uns seis meses e ele estará fazendo isso também — respondeu o grande mestre desenval.O queixo de Daniel caiu. Era magia verdadeira, tudo o que ele sonhara por toda a sua vida.O desenval parou diante da primeira porta e falou.- Esse é o quarto dos homens, aquele ao lado será destinado aos garotos e o último do corredor ficará para as jovens hóspedes. — Nomaktus assumiu um tom mais sério e instruiu: — Em cada quarto encontrarão uma ânfora. Aqueles que tiverem interesse ou curiosidade de provar da magia dos sonhos deverão beber do seu conteúdo. A poção não os fará dormir, entretanto, quando entrarem em sono profundo, estarão submetidos aos seus efeitos.. Contudo, previno-os que afastem todos os sentimentos que envolvam medo ou raiva, pois se isso acontecer, os seus sonhos se transformarão em pesadelo.Dito isso, os viajantes ocuparam imediatamente os quartos que lhes foram destinados.Guillermo se jogou na primeira cama que viu e experimentou a consistência do colchão que não era tão dura como ele imaginara.- Está bom, mas pensei que encontraríamos nuvens no lugar das camas. — O comentário de Guillermo causou olhares de repreensão por parte de Rhuror, Roger e Brian. — O que estão

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olhando? Afinal, estamos no castelo dos desenvals, não é mesmo?O quarto ficava mergulhado em uma leve penumbra sob a luz de um único archote que ardia num canto, e duas janelas estreitas, envidraçadas com mosaicos, se comunicavam com a escuridão da noite chuvosa, de vez em quando um relâmpago enchia o ambiente com sua luz forte e fugaz. Em outro canto, uma ânfora repousava sobre um pedestal de mármore branco. Lá estava a poção dos sonhos.Guillermo virou-se de lado sem se importar com mais nada.- Não vai experimentar a bebida, Guillermo? - perguntou Brian, examinando dentro da ânfora sem tocá-la. A bebida tinha a aparência de chá rosado.- Não, obrigado - respondeu com voz sonolenta. - Ficarei com meus próprios sonhos...Foram suas últimas e cansadas palavras antes de adormecer.-Já bebeu essa coisa, Rhuror? - indagou Brian.- Não, mas ouvi comentários de quem tomou que é uma experiência inesquecível.Rhuror e Brian engoliram a poção em um só gole.- Não quer provar, Roger? - disse Brian, oferecendo o copo de cerâmica.— Ainda não, acho que vou esperar um pouco — disse com nervosismo.No outro aposento, os quatro garotos discutiam quem seria o primeiro a beber da poção. A iniciativa ficou com Daniel.- Que gosto tem? — perguntou Rafael.

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Parece um chá de ervas fortes, mas não é ruim.Rafael tomou o copo da mão de Daniel e bebericou, depois foi a vez de Chester e Marc. Agora era só esperar o resultado.No terceiro quarto, Talemine e Margaret beberam e se deitaram logo para aguardarem o sono chegar. De vez em quando, Margaret ainda abria os olhos depois de ouvir um trovão. O próximo estrondo não foi ouvido. Ela havia adormecido.Deitado de costas, Rafael olhava para o teto, estava tenso. Ficou assim por muitos minutos e o sono não vinha. Olhou de lado para conferir se os seus amigos ainda estavam acordados, mas levou um susto, pois nas camas ao lado quem dormia eram seus queridos irmãos, Vitor e Duane. O seu irmãozinho dormia tranqüilo abraçado ao elefantinho de pano. Rafael levantou-se e sentiu a respiração serena de sua irmã; seu coração apertou de saudade e ele segurou um nó na garganta; estava em seu quarto, na casa de seus pais, e estendeu a mão para tocar os cabelos de Duane e depois os dedinhos de Vitor com cuidado para não acordá-los. Foi até a cômoda e pegou o porta-retratos com uma foto dos três juntos e apertou contra o peito. Caminhou até a janela e olhou a rua, a luz do poste um pouco encoberta pela copa de uma árvore. Recordou que a sua última noite em casa foi daquele jeito. Andou até a porta do quarto e ouviu os pais conversando. Falavam sobre toda a esperança que depositavam no filho para, quem sabe, um dia, poder ajudar os irmãos. Seus olhos se encheram de lágrimas e ele teve que piscar

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muitas vezes para não chorar. A culpa invadiu a sua mente, no seu sonho. Rafael olhou mais uma vez os irmãos, e agora eles dormiam no chão, maltrapilhos e enrolados em panos velhos no lugar de colchões; a sua casa havia se transformado em um casebre de madeira apodrecida. Rafael fechou os olhos com força para apagar a triste imagem que o atormentava.No outro aposento, Roger fixava os olhos no conteúdo do copo, não sabia ainda se deveria fazê-lo, mas era a sua chance de voltar a vê-la; olhava para a sua mão que oscilava fazendo o líquido balançar; Roger não era homem de tremer, mas naquele instante ele tremia. Ele bebeu, tomou tudo e não deixou nenhuma gota, em seguida andou até a janela e apreciou a chuva que caía no parapeito fazendo um som gostoso de se ouvir. Era bom dormir ouvindo o barulho da chuva, mas Roger nunca mais teve essa sensação depois que Helen morreu. Seus amigos dormiam inertes como uma pintura em um quadro. Se dormisse e sonhasse poderia ver a Helen, falar com ela, quem sabe ouvir a sua voz novamente, uma última vez. Ele deitou-se e deixou as pálpebras cederem e quando as abriu, estava em uma praia, a praia da Ilha da Coroa, sentiu a areia fofa nos seus pés, o barulho das ondas indo e voltando e o grasnar distante das aves marinhas, sentiu o frescor da maresia e o sol aquecendo o seu rosto. Olhou por toda a praia e não viu ninguém, procurou de novo e seu coração disparou. Um bela mulher andava pela areia perto dos rochedos pontiagudos e usava

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um lindo vestido azul-claro que se agitava com o vento. Roger não se conteve e foi até ela. Não é possível... - ele balbuciava - é a Helen.Ela exibiu o sorriso mais bonito que tinha para Roger. Ele se aproximou. Helen, é você mesma, Helen? Não pode ser um sonho, você é tão... real.Ele a tocou, sentiu a sua mão macia apertando a dele. Passaram a caminhar juntos pela praia. Roger estava feliz como antes e Helen o abraçava como se quisesse compensar todos os anos que ficaram separados. Ela também estava radiante de tanta felicidade. Permaneceram por algum tempo se lembrando do passado e rindo juntos dos episódios engraçados que viveram. Ele dizia que nunca tinha deixado de amá-la e ela respondia que sabia e o abraçava outra, e outra e mais outra vez. Ele notou que o pingente pendia no pescoço dela e não mais no dele. Quero ficar com você agora e pra sempre, Helen. Não quero perdê-la, nunca mais - disse ele aflito, olhando no fundo dos olhos dela. Isso é impossível, Roger — respondeu com amargura. Por que não? Podemos ficar juntos eternamente. Não agora, não nesse momento. E quando, Helen? Como posso ter você de volta? Venha até a mim - pediu, os olhos angustiados. Mas como? — perguntou, segurando fortemente as mãos da mulher que amava.

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Siga o seu destino e não volte atrás. Se fizer isso você vai me encontrar. Siga o seu destino, Roger, não desista dele - a voz foi se distanciando e sua imagem desvanecendo até desaparecer. Roger se viu sozinho na praia. Ele viu que só restara o pingente em sua mão, a única recordação de Helen. O pingente incendiou e também desapareceu. Helen! Helen! Volte! Não pode terminar assim - Roger gritava inconformado. - Helen! Helen! Acorde, Roger — Guillermo o sacudiu, a face do espanhol se materializando em seu olhos. — Você está bem agora?Roger estava de volta no quarto. Teve que limpar o suor frio que lhe umedecia a testa. Tive um trabalhão para acordá-lo. Desculpe tê-lo feito, mas você parecia estar sofrendo muito. Estou bem — disse Roger com voz amargurada. Não estava. Aqueles dois devem estar tendo sonhos maravilhosos. Nem acordaram com a sua gritaria - observou Guillermo, referindo-se a Brian e Rhuror jogados pesadamente em suas camas macias. Ainda estão sob o efeito da poção - Roger. esfregava a nuca e se comportava como se tivesse sido atropelado por um caminhão. Diga, Roger, o que você sonhou? Esquece. Tá bom — Guillermo deu de ombros e foi se deitar, outro relâmpago fez o quarto brilhar.Margaret e Daniel tiveram sonhos muito parecidos; viram o pai deles gritando seus nomes

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no meio do Canormut; Rhuror e Talemine viveram batalhas grandiosas contra os crassênidas; Brian sonhou que corria para o portal sem nunca conseguir chegar até ele; Marc teve um segundo encontro musical com o fauno, e Chester, esse quase conseguiu salvar os dois cavalos que haviam morrido tragicamente... quase.Na manhã seguinte, enquanto Brian descia as escadas, prestava atenção nas paredes e na engenharia do castelo. Um detalhe o deixou tomado pela curiosidade a qual iria esclarecer mais tarde.No mesmo salão de jantar seria servido o desjejum; o local estava cheio de mesas compridas, algumas com mais de vinte lugares, ocupadas por aprendizes de diversas idades e que degustavam pães, bolos e bebidas doces. De onde surgiram tantas mesas? — espantou-se Marc, comparando, ao lembrar-se que na noite anterior só havia uma única mesa na qual se serviram das iguarias oferecidas pelos anfitriões. Ora, seu bobo, da mágica dos desenvals - respondeu Margaret que por pouco não foi atropelada por um garotinho de uns oito anos que corria para o seu lugar.Nomaktus os aguardava em uma mesa reservada e convidou-os para unirem-se a ele. São todos moradores do castelo? - perguntou Guillermo que puxava gentilmente a cadeira para Talemine. Sim, aprendizes que um dia se tornarão verdadeiros desenvals — respondeu Nomaktus,

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dessa vez o drallengiano Gaompovus os acompanhava no desjejum.O alvoroço que os aprendizes faziam não condizia com o silêncio encontrado na noite anterior. Achei que os alunos fizessem menos barulho para comer — disse Daniel, reparando a falação e os talheres batendo sem parar. Não posso controlá-los o tempo todo — disse Nomaktus que segurava um pedaço de pão, pronto a levá-lo à boca. — O castelo desenval não é um templo onde sussurram orações. Notei que o quarto onde passamos a noite ficava em uma ala no miolo do castelo — disse Brian. — A lógica diz que ele deveria estar cercado por paredes e cômodos além da porta para o corredor, mas havia duas janelas que mostravam o vale. De que lógica o senhor fala? — questionou Nomaktus, desafiando a inteligência do professor inglês. — Todos os cômodos desse castelo têm janelas para fora. Creio que nenhum dos meus hóspedes gostaria de dormir em um quarto abafado e bolorento.Nomaktus fez uma pausa para saborear uma fina fatia de queijo e continuou. Não levem muito a sério a lógica que aprenderam na escola, aqui ela não tem tanto valor. Senhor Nomaktus, fale-me mais a respeito da magia dos sonhos — pediu Roger. O que exatamente quer saber? Sobre um sonho que tive ontem à noite.

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Nada sei sobre sonhos. O que você sonha é seu e só seu. Mas esse sonho é muito importante pra mim — explicou Roger, esperando por ajuda. Então vou dizer algo que talvez lhe sirva para alguma coisa: preste muita atenção nos detalhes do que sonha. Eles são respostas às suas dúvidas. Cada objeto, cheiro ou palavra pode significar bem mais do que imagina. Pense nisso.Roger procurou guardar na memória todos os pormenores do seu encontro com Helen. Talvez um dia aquela lembrança lhe fosse útil.Com um sussurro, Nomaktus disse alguma coisa a Gaompovus que fez o aprendiz drallengiano se levantar e sair do salão de refeições por um breve instante. Gaompovus retornou trazendo um fardo de tecido semelhante a veludo e colocou sobre a mesa, em frente ao seu mestre que de imediato desatou o nó que mantinha o objeto lacrado. Havia um pote redondo de um palmo de altura e de igual largura, feito de madeira e fechado por uma tampa de couro; também havia uma espécie de pergaminho enrolado e preso por um cordel feito de sisal. Nomaktus passou a discorrer sobre eles.- Esses humildes presentes são mais valiosos do que parecem - ele puxou as duas pontas do laço que prendia o pergaminho, desenrolando-o e abrindo-o sobre a mesa, e se revelou um mapa não mais detalhado do que aquele que os viajantes vinham usando com imprecisão. - Parece bem simples, no entanto, existe magia

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refinada nessas linhas que demarcam a Cadecália.- É pequeno, como pode ser melhor do que o que temos? - perguntou Roger, não vendo nada de extraordinário naquela carta. O mapa tinha cerca de cinqüenta por trinta e cinco centímetros.Nomaktus estendeu o mapa até Roger.- Pegue-o e coloque um dedo sobre a bússola desenhada. Agora pronuncie o nome de uma localidade, qualquer uma da Cadecália.Roger fez o que Nomaktus lhe disse.- Zsenesh — ele aguardou por alguns segundos. — Não aconteceu nada.- Seu sotaque é horrível — criticou Nomaktus. — Carregue mais nos "esses" e tente novamente.- Pois bem - preparou-se Roger, então pronunciou: — Zsenesh.As linhas se misturaram e formaram um novo desenho; dunas num mar de areia amarelada cresceram no mapa, e no centro, um círculo de árvores envolvia o lago.- Espantoso! - exclamou Guillermo.-Agora atente para essas inscrições no lado esquerdo - disse o desenval. - São coordenadas precisas que conduzem o detentor do mapa para qualquer lugar que deseje ir: altitudes, distâncias, obstáculos...- Não sei ler o que está escrito - confessou Roger.- Mas eu sei - informou Rhuror. - E Talemine também sabe. É gazivian usual, esse mapa deve ter pelo menos uns mil anos.Nomaktus admitiu a antigüidade do mapa com um gesto de cabeça.

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- O mapa perfeito - Brian elogiou o presente.- Gostaram? - indagou Nomaktus. - Mas as qualidades desse mapa não acabam aí. Vejam o desenho da bússola, notaram que agora aponta para outra direção? A agulha aponta exatamente para o Zsenesh.Roger sorriu como se mexesse com um brinquedo novo. Depois olhou para Nomaktus com uma expressão interrogativa.- Esse instrumento é uma relíquia, está disposto a desfazer-se dele por nossa causa?— No momento ele é mais útil e necessário pra vocês do que pra mim. Se um dia puderem trazê-lo de volta, eu o aceito.Nomaktus alcançou o outro objeto que havia no fardo.— Bem, se tiverem um pouco de curiosidade, devem estar se perguntando o que tem dentro deste pote - ele segurou o recipiente arredondado com as duas mãos e olhou para os convidados como se aguardasse um palpite.O silêncio foi absoluto. Nomaktus continuou.— O pote guarda uma droga curativa que pode salvar as suas vidas se tiverem um ferimento grave. É chamada de handácea, na Cadecália.— Handácea! - disse Rhuror, um brilho surgiu em seus olhos. — E o medicamento mais raro já elaborado. É raríssimo! Um pote desse tamanho deve conter uma fortuna.— E sabe como usá-lo? — quis saber Nomaktus.— Claro que sei — respondeu Rhuror com um ar de indignação. — E Talemine sabe ainda melhor. Ela é uma experiente médica em Faogard. Não

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faz muito tempo tratou exemplarmente dos ferimentos de Roger quando eu o surrei.— Pai! — exclamou Talemine, repreendendo Rhuror com energia.— O que foi? Ora, foi só uma pequena desavença, mas agora somos amigos.Talemine ainda olhava sisuda para Rhuror.— Está bem, Roger depois deu o troco me derrubando no chão com seus socos. Está satisfeita agora? - Rhuror voltou-se para Nomaktus: — Se um dia houver necessidade, saberemos como preparar a handácea.— Mais uma coisa antes de irem - prosseguiu Nomaktus, entregando o mapa e o pote para que Gaompovus os devolvesse ao fardo. - Como eu já havia dito, não posso enviar uma tropa de desenvals com vocês. Seria uma declaração de guerra. Mas dou um conselho: procurem as véussidas em Loreuvena, e falem com Tríssia, a líder delas. Ela é mais sábia que qualquer véussida ou desenval vivos. Temos as nossas diferenças, mas reconheço o valor daquela mulher — disse o desenval, depois fez uma pausa para estimar a distância. — Loreuvena não vai desviá-los muito do seu caminho, em três dias de trote manso estarão batendo às portas do palácio véussida.Os desenvals abasteceram generosamente os alforjes com alimentos e cederam cobertores novos para as noites frias. Uma carga extra de óleo de felbiana garantiu outras tochas e setas incendiárias, caso precisassem delas.

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O Ganvagor e seu castelo de torres altas ficariam marcados para sempre como uma boa lembrança, e um dia, alguém escreveria sobre eles em um livro de memórias.

Capítulo 30A Sala do Espelho

O rio Nekreagos era o limite entre Edrendora e Loreuvena. Era um curso d'água calmo e de pouca profundidade, possibilitando a sua travessia com o nível da água na altura da barriga das montarias. O Nekreagos corria tranqüilamente para alimentar as terras do sul, e depois de muitos quilômetros, desaguava sem pressa no mar.Com o novo mapa, presente dos desenvals, aberto sobre a sela do seu cavalo em movimento, Guillermo pronunciava, com a ajuda de Rhuror, os nomes dos lugares que desejava ver surgirem como por encanto. O espanhol tentava falar Palácio das Véussidas em gazivian.- Repita com calma, agora — Rhuror ensinava.- Huzvenag Véussidas - dizia Guillermo, lentamente.O mapa não tinha reação.- Os "esses" precisam ser ditos com mais intensidade. Sibilados - explicou o faogard. E falava do jeito correto.Guillermo tentou mais uma vez.- Estou vendo o palácio! - gritou Margaret.

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- Que conversa é essa, Meg? O mapa está do mesmo jeito — contestou Guillermo.- Não! Ali na nossa frente, uma torre alta — disse Margaret, ela distinguia de longe uma estrutura grande em que se destacava sobre o corpo principal uma só torre com cerca de cento e vinte metros.O que Margaret via era uma parte do Palácio Véussida, a torre resguardada por cinco cúpulas ladrilhadas, duas delas ladeando a torre frontal, e as outras três compondo o fundo, formando o imponente teto do palácio. O brilho do sol nos ladrilhos dava a impressão de que o Palácio Véussida era todo incrustado de pedras preciosas, um belíssimo efeito para os olhos.Quando se aproximaram mais, puderam perceber que o Palácio ficava isolado numa ilhota no meio de um lago.- É o lago Vokferon - disse Rhuror. - Pensei que nunca iria conhecê-lo. O seu nome significa espelho... Lago de Espelho.O nome do lago era bem apropriado. Suas águas eram calmas e cristalinas como um imenso espelho voltado para o céu. Refletia com perfeição o azul celeste e as poucas nuvens que flutuavam acima dele. Não havia nenhuma ponte ou outro meio para atravessá-lo e nenhuma embarcação foi avistada.Margaret olhou de repente para cima, quando viu Wengarel refletida no lago.- Olhem que coisa mais estranha! Wengarel está toda dourada.

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A lua imóvel cintilava como uma esfera de ouro puro e formava um efeito magnífico contrastando com o céu azul.- Como é possível? - indagou Rafael, admirado. — Há poucas horas eu mesmo a vi avermelhada.- Um efeito atmosférico — arriscou Brian, mas não havia nada no ar que sustentasse a sua hipótese.- Como vamos chegar ao Palácio? - questionou Marc. - Será que teremos de nadar até aquela ilha?- Se aceitarem nos receber, vão nos enviar um barco ou coisa assim - supôs Guillermo. - Certamente quem mora naquele palácio já sabe que estamos aqui.Minutos se passaram e nada.Daniel havia desmontado e sentou-se bem próximo da margem, aguardando com impaciência. Ele jogou uma pedrinha que ricocheteou por duas vezes no lago e afundou. Ele olhou para Guillermo ao seu lado, declarando.- Não acontece nada. Vamos ficar aqui o dia todo?- Paciência é a palavra adequada, garoto Daniel - antecipou-se Rhuror.E Daniel, somente para passar o tempo, jogou outra pedra no lago, a pedra deslizou e parou na superfície, sem afundar dessa vez. Os seus olhos se fixaram com interesse na água e ele a tocou com cuidado. O lago havia ficado duro como vidro cristalino.- A água... está sólida! — ele avisou com surpresa, e se levantou: — Todo o lago virou um enorme espelho!

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- Vokferon... O Lago de Espelho. Muito significativo - sorriu Rhuror. - É hora de andarmos. Em frente, amigos, as véussidas querem nos ver!- Caminharemos pelo lago? — perguntou Rafael, fazendo uma cara de espanto e desconfiança. - E se o feitiço for interrompido?- Aí você vai tomar o maior banho da sua vida - disse Chester, olhando com assombro as águas profundas abaixo dos cascos do seu cavalo.O lago era liso, mas não escorregadio, e isso fez com que ganhassem mais confiança conforme avançavam na direção do palácio.Algumas aves sobrevoavam o Vokferon, emitindo seus cantos melodiosos, alegrando os viajantes.Viam os peixes que nadavam por debaixo deles, ignorando-os, como se caminhar sobre as águas do lago fosse uma coisa corriqueira que não assustava mais os habitantes aquáticos do Vokferon.Chester empunhou firme a rédea e fez o seu cavalo correr, não poderia perder a chance de cavalgar sobre um lago mágico; Margaret e Marc se entreolharam e fizeram o mesmo e foram perseguidos por Rafael e Daniel, entusiasmados com o divertimento.- Cuidado para não tropeçarem em uma tainha! — gritou Guillermo em tom de gozação.Um cardume de uma centena de peixes nadava velozmente por debaixo de Chester, como se quisesse desafiá-lo em uma disputa. O garoto forçou seu cavalo a correr ainda mais rápido, um sorriso de prazer nasceu nele.

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Os meninos chegaram até a ilhota e esperaram um pouco pela chegada dos seus companheiros.O Vokferon voltou a ondular suavemente com a brisa depois que todos os viajantes tocaram o solo firme da pequena ilha.Uma escadaria de degraus largos levava aos portões do palácio. Tudo era muito limpo e organizado como se tivesse sido construído naquela manhã. As paredes eram brancas e cobertas com desenhos de animais mitológicos e plantas exóticas, entalhados e pintados em tonalidades que passavam pelo azul, bege e púrpura.A imensa porta abriu suavemente sem produzir nenhum ruído, como se suas dobradiças fossem feitas com o material mais liso e macio que pudesse existir.A exemplo de Edrendora, a recepção no Palácio das Véussidas foi feita por uma pessoa jovem que deveria ser a aprendiz das artes mágicas das mulheres que dominavam as grandes magias. Era uma moça de delicados e vivos olhos amendoados azulados; não devia ter mais que dezessete anos, e o seu corpo parecia ser mais esguio, pois usava um vestido longo verde-claro preso na cintura por um cordão brilhante de um material desconhecido; seu cabelo estava preso num arranjo com fios brancos que o mantinham firme atrás da cabeça. A bela jovem tinha os pés descalços e parecia não se incomodar ao pisar o chão de mármore frio. Ela sorriu antes de falar.- Sintam-se confortáveis em Loreuvena, a terra das véussidas. Meu nome é Demnisia.

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Acompanhem-me para a recepção.Os meninos ficaram boquiabertos com a sua beleza.- Ela... é linda - declarou Rafael, bem baixinho para Chester.A jovem atravessou o saguão circular, que tinha as paredes decoradas com figuras de sacerdotisas em posições de reverência, alguns animais estilizados desconhecidos para os humanos, e deuses sentados em seus tronos ou ostentando suas poderosas armas. O teto do saguão, que fazia parte de uma das enormes cúpulas, era transparente, permitindo entrar a luz do dia, e os desenhos nas paredes pareciam ganhar movimento conforme a posição do sol. Margaret imaginou como deveria ser deslumbrante aquele lugar durante a noite, quando milhares de estrelas cobririam o salão com o seu brilho cósmico. O palácio guardava a mesma quietude do castelo dos desenvals, e ninguém fora observado além da bela jovem.- Para onde vai nos levar? — quis saber Roger, alcançando a moça.- Vieram até nós com um propósito, não é mesmo? Então devem falar com Tríssia. Ela os aguarda na Sala do Espelho.- Tríssia... a sua líder... — prosseguiu Roger.- E a representante máxima das véussidas. A Primeva de Loreuvena, é como costumamos chamá-la. Ela É mais bela do que vocês imaginam e muito mais antiga do que aparenta.- Dizem que dentre as véussidas e desenvals ela é a mais antiga sobre o planeta - sussurrou

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Talemine para Guillermo e Marc. - Provavelmente tem mais de mil anos.- Deve ser um bom negócio ser feiticeiro - observou Daniel, cochichando com Rafael. - Eles parecem ser eternos.- Nem todos, rapaz - retrucou a véussida. - Alguns vivem muito pouco quando não sabem lidar com a magia.- Ela não deveria ter ouvido o que eu falei - comentou novamente Daniel, sussurrando tão baixo que nem seus companheiros conseguiram ouvi-lo direito.- Mas ouvi muito bem - disse Demnisia sem olhar para trás. - Quase posso ouvir os seus pensamentos.- Cuidado com o que tem em mente, Daniel — alertou Rafael em tom de brincadeira.- Você é que tem que se cuidar - avisou Chester, cotovelando Rafael. - Lembra o que disse sobre Demnisia quando chegamos?- Eu ouvi aquilo também — disse ela. — Mas agradeço por ser gentil — e sorriu com simpatia.Todos notaram quando Rafael ruborizou como um pimentão.Demnisia os levou até a sala do lado norte, a Sala do Espelho; foi quando viram outras duas véussidas deixando o ambiente, as duas cumprimentaram o grupo com acenos de cabeça sem nada proferirem. Eram igualmente belas.- Beleza deve ser exigência básica para se tornar uma véussida - comentou Guillermo; os olhos de rubi de Talemine voltaram-se para ele com uma chama de ciúmes.

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- Bem, certamente você seria a mais linda no meio de todas — consertou o espanhol.- Lá está ela — disse Demnisia, estendendo o braço, mostrando uma mulher no fundo da sala. Demnisia retirou-se do aposento.Era Tríssia.A mais importante das véussidas era também a mais alta; tinha a mesma estatura de Roger, os cabelos longos e muito negros até a cintura, que se destacavam ainda mais pela véussida ter a pele tão alva. Os olhos, cor-de-rosa e expressivos, observavam os visitantes com muita atenção e interesse. Tríssia usava uma veste de tecido drapeado que ia até os tornozelos, ondeando quando ela se movimentava; os pés descalços, como também fazia Demnisia, evidentemente um hábito comum entre as véussidas.Um espelho alto e largo se estendia por toda a parede ao fundo. Os reflexos daqueles que se encontravam na sala assumiam colorações diferentes.- Estou feliz por estarem conosco - disse Tríssia, sorrindo sinceramente, convidando-os com um gesto para se sentarem em bancos de mármore, de frente para ela que ocupava uma cadeira de encosto alto, igualmente em mármore branco-esverdeado, posicionada em um nível um pouco mais elevado, fazendo-a parecer ainda mais alta.- Nomaktus nos aconselhou a procurá-la, senhora - disse Roger com objetividade.- Ele fez bem — Tríssia aprovou. - A vinda de vocês até nós poderá tornar a sua jornada menos

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árdua, embora não haja garantia de que consigam cumprir tão intrincada missão.- Como pode nos ajudar? — perguntou Brian, sua maior preocupação no momento era o tempo que se esvaía.- A aventura do seu grupo já é conhecida em grande parte da Cadecália.Tríssia fez uma pausa, pensativa, buscando maneiras de orientá-los corretamente.- As portas se fecham para vocês e os caminhos serão cada vez mais tortuosos. Minha sugestão é que desistam agora — o rosto da véussida se contraiu em preocupação. — Crassen está turbulenta e vocês são o motivo dessa inquietação.- Se não retornarmos, os nossos mundos correm o risco de se confrontarem no futuro.- Sei disso, também - disse Tríssia. — E é só por isso que não tentarei impedi-los.Os reflexos no espelho mudavam de cor como um prisma enlouquecido.- Acho que o seu espelho está com defeito - disse Marc, incomodado com o comportamento incomum das imagens refletidas.Tríssia riu e olhou para trás, para o espelho.Ao contrário dos reflexos multicoloridos dos visitantes, o reflexo do rosto de Tríssia era de uma luminosidade intensa.- Acharam interessante? — disse Tríssia. - Esse espelho foi encontrado em Gazívia, um presente de Zanqeon, o deus das imagens, das cores e da luz.

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Tríssia levantou-se e se pôs de lado, suas mãos e seus pés também refletiam radiantes como o seu rosto.- Parece uma deusa, um ser sobrenatural — comparou Rhuror, em contemplação. Tríssia era uma mulher a qual ele ouvia histórias contadas desde que era criança, uma lenda antiga para ele.- Vocês dois apresentam tonalidades muito semelhantes — Tríssia analisou os reflexos de Guillermo e Talemine onde predominava o brilho violeta. - Estão apaixonados um pelo outro.Guillermo sorriu encabulado e apertou a mão de Talemine.- Os garotos tem cores muito parecidas entre si, azul-claro quase branco, o que é natural para essa idade, mas... você, algo o perturba há muito tempo, talvez desde o início dessa viagem, e é muito significativo — Tríssia dessa vez olhava para Rafael. - Está indeciso. Não sabe se quer voltar ou ficar nesse mundo, estou certa?O diagnóstico de Tríssia emudeceu Rafael. Ela continuou.- Vocês dois são irmãos, isso é inquestionável, e têm um dom especial para a magia — Daniel e Margaret se endireitaram no banco, cheios de orgulho, como se tivessem recebido uma medalha.- O rapaz é um exímio músico, disso eu não tenho dúvida - declarou Tríssia, os olhos de Marc exibiam admiração.- Nós também não temos nenhuma dúvida — apressou-se Chester. — Ele até ganhou essa

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flauta de um fauno.- Que maravilha! - exclamou a véussida. - E raro os faunos procederem assim.O olhar de Tríssia voltou-se para o Espelho e imediatamente para Chester.- Você também é muito especial. Uma habilidade singular com certos animais.- Cavalos - disse Chester. — Adoro eles.Tríssia voltou-se para Brian.- Você é a âncora dessa expedição. Sem você o fracasso é definitivo. Mantenha-se vivo... é o que posso dizer.Tríssia olhou finalmente para Roger e Rhuror.- São os guerreiros, conheço seu valor e sua fama, Rhuror, mas... você...A véussida viu que o reflexo de Roger era diferente.- Há algo em sua alma, em seu coração que o atormenta tanto...O reflexo do peito de Roger não irradiava nenhum brilho. Era negro.- Uma coisa muito importante tem que ser resolvida por você antes que volte - Tríssia prestou mais atenção e estudou a sombra no peito de Roger com cuidado, o rosto da véussida se transformou e os pelos de seus braços se arrepiaram. — A sua angústia tem raízes em meu mundo.- O que está querendo dizer? — Roger levantou-se bruscamente. — O que há nesse mundo que me atormenta.- Eu... sinceramente não sei — disse ela desorientada. — Mas as respostas estão aqui, em

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algum lugar.Roger levou a mão à cabeça como se sentisse uma grande dor.- Não entendo! — disse irritado, depois olhou para Tríssia como suplicasse por uma resposta. — Me ajude...Tríssia se compadeceu, mas não sabia o que fazer. Também era confuso para ela.- Só sei lhe dizer que seu tormento pode ser resolvido de algum jeito, em alguma parte na Cadecália. Gostaria de ajudá-lo, mas sinto que só você é capaz.UMA ESPERANÇA SURGIU EM ROGER, CONTUDO, ELA SE MISTURAVA A SENSAÇÃO DE VAZIO E IMPOTÊNCIA. Primeiro o sonho com Helen... e agora acontece isso — PENSOU ROGER. O que devo fazer? A resposta está aqui... a resposta está aqui... Que resposta? Onde encontro? TEVE PENSAMENTOS CONFLITANTES.A véussida tornou a sentar-se.- Vieram a nós para pedirem ajuda - disse ela. - No entanto, darei um conselho: vão até Paleandrus, a grande cidade a sudeste, e procurem as Armas da deusa Ninqa que serviu ao herói Andrus, quem as encontrar possuirá um enorme poder para lutar.- Paleandrus? Armas pertencentes a uma deusa? — perguntou Brian, pedindo mais clareza.- Rhuror deve conhecer muito bem toda a história que é um pouco longa — disse Tríssia.- Conto pra eles no caminho - comprometeu-se Rhuror, e ainda acrescentou:

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- As armas ninqanas serão um grande trunfo para quem usar: a Espada, o Elmo e o Escudo.- E sabe exatamente onde estão essas armas? — perguntou Roger dirigindo-se a Tríssia.- Ninguém sabe - respondeu a véussida. — Apenas que estão dentro das muralhas da cidade. Paleandrus está vazia, mas não indefesa. Muitos aventureiros reviraram a cidade na intenção de encontrarem tesouros, assim como o maior deles, as armas ninqanas... e pelo que se sabe... todos encontraram mortes horríveis.- Está querendo nos dizer que devemos roubar as tais armas? — indagou Guillermo com certa indignação.- Não - retrucou a véussida. — Apenas que as tomem emprestadas.- E morrermos tentando, não obrigado — desistiu Guillermo. — Prefiro os nossos métodos.- Não conseguirão sem as armas — assegurou Tríssia, os olhos fixos no espanhol. - Eu sei do que falo.- Faremos uma visita a Paleandrus — decidiu Rhuror. — Se concluirmos que o risco é muito grande, seguiremos sem as armas.- Há quanto tempo essas armas estão perdidas? - quis saber Brian.- Mais de três mil anos, pelo menos - disse Tríssia.- Se ninguém as encontrou até agora, isso quer dizer que elas estão bem escondidas - deduziu Brian. - Não temos tempo para vasculhar uma cidade inteira em busca de uma coisa que nem sabemos se está lá.

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- As poderosas armas estão em Paleandrus — garantiu a véussida.- Iremos e pronto - disse Rhuror. - O que temos a perder? Paleandrus não fica muito distante do nosso caminho. Não seremos prejudicados se passarmos pela misteriosa cidade. A maioria concorda?Quando Brian e Guillermo, os mais resistentes, aceitaram, foi fácil a adesão dos demais. Estava feito: Paleandrus foi definitivamente incluída no trajeto.Em outros momentos, Roger seria contra um novo atraso, mas agora tudo havia mudado, a começar por ele.Uma pergunta arranhava a língua de Marc.- Que idade tem, senhora?- Marc! - exclamou Margaret, censurando-o.A véussida não conteve o riso e baixou a cabeça, depois lançou um olhar desafiador para o francês.- Quantos anos acha que tenho?- A senhora me parece bem jovem, mas ouvi dizer que tem mil anos, talvez mais.- Um pouco menos, mas você quase acertou — disse ela sem dar muita importância.- Então ela já existia bem antes da América ser descoberta - disse Chester a Daniel, com olhos de espanto.- Esta noite vocês ficam conosco e amanhã partem para Paleandrus - anunciou Tríssia. - Demnisia! - ela chamou, sua voz amplificou como se saísse de dentro de um grande sino de bronze.

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Demnisia tornou a aparecer e informou que tudo fora providenciado.- Precisam de banho e comida - disse a auxiliar de Tríssia. — O aspecto de vocês não é dos mais agradáveis.- Experimente andar por milhares de quilômetros debaixo de sol e chuva, enfrentando um monte de perigos e depois me diga se a sua pele continuará macia — as palavras afiadas de Talemine espetaram a véussida.Demnisia limitou-se a sorrir indiferente.O garoto francês não se conteve novamente quando passou por Demnisia.- Qual a sua idade?- Adivinhe - disse a véussida.- Duzentos... trezentos anos?Demnisia sorriu, os olhos azuis brilharam como pedras preciosas.- Tenho somente dezoito anos.- Foi o que eu pensei — disse Marc, e voltou-se para Rafael: — Ela é muito velha pra você, amigo.- Ora, cale a boca, Marc. Você hoje está terrível.Margaret saiu do seu aposento e encontrou-se com os meninos.- Quero ver aquele salão iluminado pelas estrelas — disse ela. - Vi a noite pela janela do meu quarto, está maravilhosa.Eles desceram e se encantaram com a grandiosidade da noite estrelada, vista através da cúpula tão transparente como se nada separasse o céu dos observadores, salpicando de luz o chão e as paredes de desenhos magníficos.

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Wengarel resplandecia como uma imensa bola de ouro maciço.- Como é possível? - encantou-se Margaret com a cor dourada de Wengarel, o dedo apontado para a lua.- Em Loreuvena, Wengarel nunca mostra a sua cor verdadeira — disse Tríssia que descia uma escadaria. - O sangue de Arkopromis nunca será bem-vindo na terra das véussidas.- E Wengarel sempre se mostra dourada? — perguntou Daniel. — Como a senhora muda a cor de um corpo celeste que se encontra tão distante?- É só uma ilusão, só é vista assim em nosso vale, mas isso nos faz sentir melhor - disse a véussida, os olhos perdidos em Wengarel. — Amanhã ela terá outra cor, quem sabe surja prateada... e depois de amanhã, um verde resplandecente ou um azul cristalino... mas jamais o vermelho-sangue de Arkopromis.Depois de algum tempo, os outros do grupo se reuniram no salão.- O que sabe de Klovanira? - perguntou Brian num dado momento.— A feiticeira perdida? — disse Tríssia, o rosto apreensivo. - Por que me pergunta sobre ela?— Vimos a feiticeira no lago Zsenesh, mas ela escapou.Brian contou tudo a Tríssia e como Margaret quase se tornou prisioneira da maldição para sempre.— O que me contou é muito grave — disse a véussida transtornada. - Klovanira voltou e

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trouxe com ela o ódio de seu pai.— Sabe como achá-la? - perguntou Rhuror.— Não, nem sabia que ela vivia no Zsenesh por todos esses séculos — Tríssia lançou um olhar angustiado para Brian. — Ela vai reunir forças e pode nos causar um grande mal. Vocês comentaram sobre isso com Nomaktus?— Não - respondeu Brian. - Não nos pareceu tão importante. Só me ocorreu falar agora porque soubemos que Klovanira é uma feiticeira como você.— Nomaktus precisa saber. Tem que estar preparado. - Um ar sombrio pairou na fisionomia da véussida. - As forças no continente se desequilibram.A maior das véussidas tinha razão de estar em aflição. O continente começava a entrar em ebulição por toda parte. Primeiro as investidas insanas dos arkoprômidas que tenderiam a se intensificar com a volta de Klovanira; depois o movimento cada vez maior do exército crassênida nas fronteiras a oeste do país, em pura demonstração de força e intimidação; e por último, a própria Klovanira se reorganizaria desencadeando o poder malévolo de sua estirpe.Os arkoprômidas sempre temeram os territórios de Edrendora e Loreuvena, e esse fato dava uma trégua aos constantes receios de emboscadas, mas agora, e cada vez mais, os assassinos de Arkopromis ficariam fortalecidos com o regresso da criatura preferida do deus do mal.Um sentimento de culpa se abateu sobre Margaret.

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— Desde que chegamos, só causamos transtorno numa terra que até então era relativamente pacífica, e tudo fica claro se fizermos uma reflexão do que aconteceu: despertamos a ira desses arkoprômidas que nem sabemos direito por que nos odeiam e estamos prestes a deixar um continente em guerra, e se não bastasse, libertamos a malvada Klovanira. O que falta acontecer?— Quanto mais nos atrasamos, pior fica - disse Brian com pessimismo. - Estamos andando em ziguezague quando deveríamos seguir numa linha reta.— Ainda estamos no prazo - tranqüilizou Roger. - E o mapa que recebemos de Nomaktus deve melhorar bastante a precisão dos cálculos dos rumos e distâncias.Naquela noite, Margaret foi acordada num susto. Sua nuca se arrepiou quando ela viu, na penumbra do seu quarto, sua companheira Talemine sentada na beira da cama. O que a assustou foi a maneira em que encontrou a faogard. Os olhos de Talemine brilhavam como prata. A menina já sabia que Talemine ficava assim quando se comunicava com a irmã, mas vê-la com os olhos alterados, bem no meio da noite, era diferente. Um fantasma não seria tão assustador.- Talemine! — chamou com cuidado. — Está tudo bem?A faogard permanecia sem responder e murmurava alguma coisa que Margaret não entendia. A menina decidiu esperar até que

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Talemine encerrasse seu transe. Pouco tempo depois a guerreira respondeu.- Meu coração está triste. Uma enfermidade grave definha meu querido avô, o rei de Faogard. Li nos escritos diante dos olhos de Camine. Nunca imaginei que pudéssemos nos comunicar de tão longe - disse, os olhos novamente escarlates.- E a medicina de seu povo?- Tentam de tudo, mas praticamente não há esperança - disse com a voz carregada. - O conselho toma providências para uma iminente sucessão. Meu pai deveria estar em Faogard nesse momento.- Você vai falar com ele agora?- É melhor que ele durma um sono tranqüilo essa noite. Pela manhã saberá o que fazer - disse, deitando-se de lado, voltada para Margaret. - E é bom que você descanse também, desculpe tê-la acordado.Margaret se despediu e antes que adormecesse, muitas coisas passaram pelos seus pensamentos, até da possibilidade de Rhuror e Talemine retornarem ao seu reino.O sol ainda não havia nascido quando Margaret abriu os olhos e viu Talemine calçando as botas de cano longo.- Acordou cedo — observou Margaret enquanto esfregava os olhos sonolentos.- Não preguei os olhos — respondeu, habilmente ajustava o cinturão que prendia a espada. — A situação de meu avô e os assuntos de Faogard me preocupam — ela foi até a porta e girou o

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trinco com cuidado. — Continue a dormir, ainda resta uma hora antes da alvorada.- O que vai fazer?- Falar com meu pai. Já está na hora de ele saber o que se passa em Faogard. Durma, Meg.Quando a porta se fechou completamente, Margaret passou a correr o olhar pelas paredes do quarto até a janela que expunha a madrugada escura; seu corpo não aceitava mais a cama, o sono havia escapado.Margaret pulou da cama e viu, de sua janela, o lado ocidental do grande lago Vokferon que ainda refletia as últimas estrelas da noite que se extinguia. Um vulto escuro, quase imperceptível, na margem distante do lago, fez a garota apertar o nariz contra a vidraça. Quem poderia vagar sozinho naquela hora da madrugada?Os passos se dirigiam ao aposento de Rhuror. Talemine hesitou antes de dar a primeira batida na porta, então bateu três vezes antes que a porta se abrisse. O rosto de Brian surgiu do escuro.— Talemine, o que houve?— Quero falar com meu pai.— Claro... vou acordá-lo.O vão da entrada do quarto se encheu com a presença do guerreiro de cabelos vermelhos.— Filha, por que me procura a essa ho...Assustadoramente, um grande estrondo engoliu o silêncio e a sossego do Palácio.— O que foi isso?! — disse Brian, saltando para o corredor.

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— Uma explosão — disse Talemine. — E veio do outro corredor... Meg!Os três correram pelos corredores iluminados por luzes fracas de luminita até alcançarem o quarto onde se achava Margaret. A porta do aposento estava deslocada, presa apenas por uma dobradiça. O coração de Talemine disparou quando ela imaginou o pior. Quando afastaram a porta, o quarto estava destroçado, os móveis chamuscados e alguns pedaços de madeira espalhados pelo chão ainda sustentavam pequenas labaredas. Um grande buraco negro, na parede oposta à janela, exibindo pedras de alvenaria calcinadas, denunciava que bem ali tinha sido o local do impacto; Margaret, jogada a um canto perto da janela, estava imóvel, seu corpo e cabelos chamuscados e cobertos de poeira da explosão.A guerreira correu até ela e a apoiou nos abraços.— Meg! Meg! Responda!Margaret respirava com dificuldade. Estava viva, mas ainda era difícil de se saber a gravidade do seu estado.Brian correu para a abertura da janela, onde não havia mais vidraça.— O que causou isso deve ter entrado por aqui — ele voltou-se para a cavidade na parede do outro lado do quarto. — E explodiu bem ali. Foi uma tentativa de assassinato.-Arkoprômidas - disse Rhuror, avaliando a forma como foi realizado o atentado.

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A líder das véussidas entrou no aposento e depois de uma rápida avaliação dos estragos, transmitiu uma ordem a outras duas véussidas.— Façam uma busca minuciosa em todo o vale e capturem quem fez isso - os olhos dela assumiram uma expressão de furor. - Cacem o autor com determinação implacável, e não voltem sem ele.As duas véussidas desapareceram pelo Palácio e em pouco tempo toda a Loreuvena era esquadrinhada por dezenas de feiticeiras em seus cavalos de pelagem zebrada.Os meninos, Roger e Guillermo entraram no quarto devastado e se chocaram ao verem como se encontrava a pequena Margaret.— Minha irmã! - gritou Daniel.Tríssia agachou-se junto a Margaret desacordada e tocou-a delicadamente no pulso fraco.— Levem-na até a Sala de Cura - ordenou. - Ela precisa receber atendimento rápido.A Sala de Cura era uma mistura de enfermaria e laboratório de alquimia, saído da Idade Média com todas as paredes ocupadas por prateleiras cheias de potes, vasilhames e utensílios, alguns desconhecidos; armários com gavetões guardavam todo tipo de coisas como ervas e pós estranhos. Uma luz branda clareava o ambiente envolto em sombras.A menina foi deitada em uma cama comprida demais para o. seu tamanho e sua cabeça pendeu de lado ao tocar suavemente o travesseiro.

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Tríssia deu ordens específicas a uma véussida de olhos compenetrados e dedos ágeis, que parecia conhecer perfeitamente onde se achava cada uma das centenas de substâncias guardadas naquele cômodo.— Esperem lá fora - recomendou a véussida incumbida de tratar Margaret. - Preciso de espaço para trabalhar. — Na Sala de Cura só permaneceu a véussida e sua paciente.Um pano, fino como seda, foi embebido num preparado cor de terra e passado delicadamente sobre os ferimentos no rosto, e em seguida nos braços e pernas. A véussida ergueu cuidadosamente a cabeça da menina seriamente enferma e tocou seus lábios com uma bebida de gosto amargo; Margaret recusou num primeiro momento, mas depois aceitou quando a véussida disse com voz aconchegante.— Beba isso, querida, vai lhe fazer bem... beba mais - ela engoliu o líquido com dificuldade.Foi a primeira reação da garota, e sua respiração voltou ao normal em pouco tempo.- Agora descanse — recomendou sussurrando. — Em breve estará bem. — Margaret contraiu as sobrancelhas ao estímulo da voz hipnótica da dedicada véussida.- Não vou tolerar esse atrevimento - disse Tríssia com grande indignação, do lado de fora da Sala de Cura. — Os Seguidores do Mal provarão o sabor amargo da fúria das véussidas. Vou apurar como esse invasor penetrou em Loreuvena sem ser notado.

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O temperamento de Tríssia se mostrava inconstante, ora meigo ao tratar as pessoas, ora impaciente e irritado a ponto de cometer um ato violento.- O que mais desejo agora é o restabelecimento de Meg — disse Talemine.Daniel apertava nervosamente as mãos. Acontecera de novo com sua irmã; apesar das briguinhas tolas, estava mais apegado a ela.As atenções preocupadas se voltaram quando a porta se abriu, a véussida dirigiu-se primeiramente a sua primaz.- A garotinha é forte - disse ela com voz tranquilizadora. - Estará recuperada em algumas horas.Daniel soltou a respiração com grande alívio.- Posso vê-la?- Ainda não, rapazinho - recomendou a curandeira. - Mas assim que puder, você será autorizado.Quando Margaret abriu os olhos perto do meio-dia, todos estavam olhando para ela.- E então, está me reconhecendo? — perguntou Daniel, aproximando o rosto.- Com essa cara de bobo, só pode ser o meu irmão - disse ela com voz fraca, porém venenosa.- Está nova em folha — deduziu Marc, inclinado para Margaret, a flauta balançando em seu pescoço.- Você parece uma gata, Meg - comparou Chester. - Com tantas vidas assim, vai viver uns mil anos, como a nossa anfitriã, a senhora Tríssia.

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- O que aconteceu? — ela perguntou ainda confusa. — Náo me lembro direito das coisas.Brian pôs Margaret a par de tudo. Ela então contou que vira um vulto de roupas escuras na margem distante do lago, diante de sua janela.- A última coisa de que me recordo é uma luz azulada vindo rapidamente na minha direção - disse ela, o cenho contraído como se sofresse para lembrar.- Como se algo fosse disparado pelo espectro? — indagou Rhuror, conduzindo os pensamentos de Margaret.- Isso mesmo — disse, o olhar se movendo em busca de recordações. - Me joguei para o lado, para o cháo, procurando desviar do que quer que fosse, e aí acordei aqui. Tive sonhos desordenados, com muita gente falando e grande inquietação. Eram vocês tentando me ajudar, não era?- Era, sim — disse Talemine, sentando-se na beira do leito e segurando a mão de sua jovem amiga, a menina trazia um pouco de sua irmã, Camine, que estava tão longe.— Você disse que era uma luz azulada que foi atirada na sua direção? - insistiu Rhuror, o seu conhecimento em armas se manifestou.— É assim que me lembro dela - disse Margaret.— Como eu suspeitei, usaram dranadiken, um composto explosivo que quando ativado emite uma luz azulada, e tem médio poder de destruição dependendo da quantidade que se utiliza. Pode ter sido atirado na ponta de uma flecha que cruzou o lago, estilhaçando a janela

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com precisão e explodindo contra a parede do quarto.— Mas uma flecha voa tanto assim? - perguntou Daniel.— Essa voou... se foi uma flecha, no entanto ainda não dá pra saber - disse Rhuror com cautela em sua hipótese.- Então, quem fez aquilo não estava para brincadeira - disse Guillermo.- Não, não estava — disse Rhuror em concordância. - Só não consigo entender por que escolheriam justamente a pequena Meg.— Pode ser que o alvo não fosse exatamente ela - teorizou Rafael. - A margem do lago fica relativamente longe, uns trezentos metros, não daria para identificar uma pessoa na janela fechada com vidro, ainda mais sem a luz do sol.— É possível que você tenha razão - admitiu Rhuror. - Mas mesmo assim, existiu o ataque e quase perdemos a nossa Meg — o comandante faogard sorriu expressivamente para Margaret.Por toda manhã, Tríssia havia se ausentado de todos. Ninguém sabia onde ela havia se metido, nem as véussidas mais próximas a ela.Demnisia retornou no início da tarde com outras véussidas e relatou que as buscas haviam fracassado. Reviraram cada canto de Loreuvena e o máximo que encontraram foram pequenos animais escondidos nos arbustos, mas nenhum suspeito que se pudesse atribuir a autoria do ataque.- Não achamos nada — disse ela sem esperança, aos viajantes. — O criminoso deve estar bem

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longe das terras véussidas nesse momento. Onde está a menina?- Protegida por um séquito de véussidas bem atentas — informou Guillermo. — Encontraram alguma coisa que identificasse a pessoa que fez aquilo?- Nenhum vestígio — respondeu Demnisia. — Como uma lufada de vento ele veio e se foi.Outra véussida trouxe um recado de Tríssia.— Vocês, visitantes, estão convocados pelo chamado da Primaz, na Sala do Espelho — a véussida voltou-se para Demnisia antes que essa se afastasse - Você também foi chamada.-Já irei ter com vocês, mas antes tenho que resolver alguns imprevistos - disse Demnisia.— Ela quer você na Sala do Espelho... agora - reforçou a véussida.— Certamente estarei lá - assegurou Demnisia.A Sala do Espelho estava ocupada por diversas véussidas, cerca de trinta delas, além de Tríssia, sentada em sua cadeira alta como uma rainha que aguarda os seus súditos.— Acho que pegaram o criminoso — sussurrou Rafael para Chester. - Vê as expressões delas?— E olhe o reflexo de Tríssia — alertou Chester. - Irradia uma luz que oscila sem parar como se ela estivesse a ponto de incendiar num fogo azul.A Primaz véussida fez uma expressão como se procurasse alguém dentre os recém-chegados.— Onde está Demnisia?— Demnisia disse que estaria entre nós em pouco tempo — disse a véussida que havia transmitido a convocação.

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— Tragam-na a essa sala, agora! — ordenou Tríssia a outras três véussidas de aparência poderosa, o semblante da Primeva exibia perceptível impaciência.— Por que ela faz tanta questão da presença de Demnisia? — perguntou Chester a Brian.— Temo só de pensar, Chester — respondeu Brian que quase não articulou as palavras, olhando com interesse toda a movimentação na Sala do Espelho.Os minutos que se passaram arrastavam-se como lesmas que sobem em um muro alto, e foi quando Demnisia foi trazida na presença de Tríssia.— Por que não obedeceu ao meu chamado, cara Demnisia? - quis saber Tríssia, a voz saía serenamente.— Muitas coisas para se resolver, Primeira das véussidas - Demnisia justificou- se, o tom de sua voz não era o mesmo, demonstrava insegurança.— E não tem mais nada para me dizer? - provocou Tríssia.— O que eu deveria ter para lhe dizer que a senhora não saiba?Tríssia olhou friamente nos olhos de Demnisia e prosseguiu:- Poderia me dizer por que o seu reflexo brilha daquele jeito? — Tríssia apontou para o espelho e mostrou Demnisia brilhando um vermelho vivo como sangue quando jorra de uma garganta degolada.A jovem véussida náo soube como se explicar, mas a sua evidente hesitação parecia prever

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tudo o que estava acontecendo. Ela olhou de Tríssia para as outras véussidas, e delas para os viajantes. Então disse com raiva.- Foi ela! A culpa é toda dela! — os olhos de Demnisia despejavam ódio pela sala, o seu reflexo ficou tão intensamente vermelho que impressionou até as véussidas mais experientes.- De quem ela está falando? - perguntou Rafael para si mesmo, e mesmo antes que alguém respondesse, ele rapidamente entendeu a quem Demnisia se referia.- Continue, Demnisia, mostre para mim o que fere o seu coração - exigiu Tríssia com brandura, os olhos fitavam a jovem véussida como uma leoa que espreita o antílope antes de dar o bote derradeiro.- Não há mais nada para esconder — disse Demnisia, a mágoa era vivida em sua voz. - Devem saber de tudo.Mas antes de começar o seu relato, Demnisia fez uma pergunta a Tríssia:- Como descobriu o que fiz?A Primeira das feiticeiras da Era de Loreuvena fez um gesto para que uma das véussidas mostrasse algo até então longe dos olhos de Demnisia.- Reconhece aquilo, Demnisia? — perguntou Tríssia indicando algo.Das mãos da véussida pendia uma túnica escura que fez a jovem véussida tremer. Tríssia prosseguiu.- Foi isso que você usou como disfarce, não é mesmo, véussida tola?

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- Foi - disse Demnisia, se empertigando, demonstrando que não estava envergonhada nem arrependida de seus atos obscuros. - Tentei acabar com ela, mas fracassei... e tentarei novamente se tiver oportunidade.- Mas por que fez isso, Demnisia? - interrogou Guillermo, atônito com o que via. - Não fizemos nada a você.- Fizeram, sim — disse duramente. — Ela fez... Meg ou Margaret, como quer que a chamem. Ela é o demônio que veio para nos desgraçar.Cada palavra de Demnisia causava mais perplexidade e confusão. Um burburinho se espalhou pela Sala do Espelho. Só lhes restava ouvir.- Ela é o espírito encarnado do Mal. Por causa dela, meu irmão e meu pai morreram. A Cadecália está em grande agitação desde que vocês aqui chegaram... e vai piorar.— É certo que provocamos desentendimentos, disso estamos cientes - assentiu Brian. — Mas que conversa é essa? Meg não é um ser do mal como você diz, e ela não causou a morte de ninguém.— Não? Os arkoprômidas que mataram seu amigo nas proximidades do desfiladeiro Blarbuk só queriam resolver um problema que vocês, invasores, criaram para nosso mundo. Procurei dar um fim ao nosso infortúnio e arquitetei um plano para eliminar a garota. Eu podia matá-la rapidamente quando ela pôs os pés no Palácio... poderia destruir a todos os que a protegem, mas levantaria muitas suspeitas, e Tríssia descobriria

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o meu ardil, como finalmente terminou por descobrir.— É o bastante! - determinou Tríssia, fazendo Demnisia se calar. — Sei que muitos estão sem compreender o que acontece. — A maior das véussidas fez uma pausa e observou Demnisia de maneira enigmática. Não havia nenhuma necessidade de imobilizar a véussida transgressora; nada em Loreuvena se comparava ao poder incontestável de Tríssia. A revelação contundente se iniciou. - Não foi difícil concluir o envolvimento de Demnisia com o atentado. É impossível que alguém cruze Loreuvena sem o meu conhecimento, então deduzi que o responsável pela agressão a paz das terras véussidas só poderia estar entre nós, com o meu total consentimento. Por um golpe de sorte ou por vontade dos deuses, vi Demnisia durante a madrugada, atravessar em passadas apressadas os corredores do Palácio, seus movimentos, estranhamente, eram sorrateiros, e ela transportava algo escuro em seus braços. Quando Meg descreveu as vestes da figura misteriosa, tratei de vasculhar o aposento de Demnisia e lá encontrei a prova que procurava. Um erro tolo que a denunciou. Seria prudente livrar-se da túnica, mas mesmo assim eu desvendaria o nome do culpado, obrigando um a um a ficar diante do Espelho de Gazívia... e você sabia que o seu ódio se refletiria nele, por isso tentou evitar a Sala do Espelho.Tríssia havia revelado apenas parte do mistério, uma outra parte que daria sentido a tudo, ainda

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estava por vir.— Desde sua chegada em Loreuvena, para se tornar uma véussida, Demnisia lia e relia o volumoso Livro das Histórias Místicas, passando horas entre as suas páginas, e eu sabia exatamente o que mais a atraía: as histórias e profecias relacionadas ao deus Arkopromis.— De que livro ela está falando? - perguntou Guillermo a Talemine, sem desviar a atenção do que a véussida expunha.A guerreira faogard contou em breves palavras sobre o livro que narrava histórias, que de tão antigas, se confundiam com as lendas mais improváveis.— Por algumas horas, me ausentei e debrucei-me sobre o livro, examinando-o com cuidado - prosseguiu Tríssia: - Me ative aos contos dedicados a Arkopromis e, finalmente, encontrei o que procurava. Por uma curiosa coincidência, uma página estava marcada por uma delgada fita negra. Naquela parte do livro estava escrito o seguinte:Tríssia passou a recitar o texto como se o livro estivesse bem na frente de seus olhos.— "Num dia longínquo, não se sabe quando, os cinco deuses reencarnarão em mortais comuns vindos de um reino distante, tão distante que não pertence às terras conhecidas. Com a chegada dos deuses de aparência estranha, ninguém os reconhecerá, e nem mesmo eles em sua imensa sabedoria divina, terão consciência das suas verdadeiras identidades. O retorno dos deuses irmãos não se dará em vão. Uma nova guerra se

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travará e os povos do leste serão varridos como folhas secas sopradas pelo vento forte em meio a grande destruição comandada pelas civilizações que dominam o oeste, pois estas, receberão a ajuda de quatro dos deuses. A deusa Ninqa triunfará mais uma vez... e Arkopromis sucumbirá para sempre, mas antes que o mais poderoso dos deuses dê seu último suspiro, conseguirá cumprir a sua mais terrível vingança: o mar cobrirá os continentes e reinos inteiros desaparecerão como se nunca tivessem existido, e finalmente, Wengarel será arremessada reduzindo o planeta a poeira que se perderá no infinito. Como fumaça que se dissipa no ar, o grande estrondo despertará Vagtajonus, o deus que dorme, e uma nova Era se iniciará."- Tudo fica claro agora — Marc compreendeu perfeitamente.- Que bom que entendeu a mensagem, rapaz — Tríssia elogiou. — Você e seus jovens amigos foram confundidos com os deuses irmãos, e essa incrível coincidência provocou a desconfiança e a ira de muita gente.- Como a dos arkoprômidas - disse Rafael, montando o quebra-cabeça em sua mente.— Certamente — aprovou Tríssia, e explicou melhor: - Não havia como não estabelecer uma relação entre vocês e os deuses que são quatro homens e uma mulher; Meg seria a reencarnação da deusa Ninqa, e por isso é perseguida pelos seguidores de Arkopromis; Marc foi associado a Niabardhian, o deus da música e protetor dos faunos, seus filhos queridos; o garoto Chester se

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identifica perfeitamente com Zanqeon, o deus da luz e protetor dos animais. - A véussida andou pela sala e seguiu esclarecendo as curiosas semelhanças que existiam. - Sargaleu é o deus guerreiro e o responsável por unir o mundo divino com o terreno, abrindo as esplêndidas passagens existentes, essa vaga fica para você, Rafael... porque o deus maligno só pode ser atribuído a ele - o dedo longo de Tríssia apontava para Daniel.— Eu?! Isso deve ser alguma brincadeira - indignou-se o menino inglês.— Infelizmente essa é uma triste constatação — afirmou Tríssia. — Os arkoprômidas estão tentando matar Meg e separar Daniel para protegê-lo do seu suposto fim trágico. Eles acreditam que em algum momento Arkopromis ressurgirá de suas entranhas, Daniel.— Que história mais doida! — exclamou Rafael, achando como alguém poderia pensar tanta bobagem. Entretanto, tudo era possível nas terras mágicas da Cadecália.— As coisas começam a fazer sentido - refletiu Roger, recordando alguns acontecimentos antes incompreensíveis. - Uma emboscada bem feita poderia aniquilar o nosso grupo de uma vez, mas os arkoprômidas receavam ferir Daniel acidentalmente...— Por isso atacaram Meg quando ela estava sozinha com Bartolomeu — disse Brian, como um detetive que acabara de solucionar um caso policial.

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— E as mensagens enigmáticas deixadas pelas areias do Canormut. A pequena imagem de Arkopromis esculpida em luminita que brilhou numa daquelas noites. Havia uma intenção naquilo também — argumentou Talemine com excitação.— Lembro bem que numa das noites no deserto ouvi um uivo ou gemido quando me desentendi com minha irmã - disse Daniel. - Eles nos observavam e nossas brigas alimentavam ainda mais as suas crenças.Daniel parou por um instante quando veio a sua mente o sonho que teve no Canormut, onde viu Wengarel despencar do céu num grande cataclismo. Não, não poderia ser um presságio. Era somente outro sonho mau que ele teve por estar sob forte pressão. Ele não queria pensar que poderia ser a encarnação de Arkopromis. Seria a idéia mais idiota e estapafúrdia que Daniel conseguiria ter.— Tragam a menina Meg a nossa presença! - ordenou Tríssia estrepitosamente, sua voz elevou-se como o de um coral de igreja.— O que está fazendo? - quis saber Guillermo, apreensivo. - Não pode deixar Meg perto de Demnisia. Você viu o que ela fez.— Não se preocupe, senhor Guillermo - a voz de Tríssia agora era leve como uma pluma que voa ao vento. — Nada de ruim acontecerá à menina enquanto eu estiver por perto. Um segundo descuido não acontecerá em Loreuvena.Muito antes de ser trazida para a Sala do Espelho, Margaret já havia sido colocada a par de

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tudo pelas véussidas que a assistiam. O rosto de Demnisia se contorceu em revolta quando ela surgiu no grande salão místico. Demnisia esbravejou.— Maldita Ninqa, a mim você não ilude com esse seu rostinho inocente - os dentes da véussida rangiam enquanto ela desabafava. - Seu sangue será derramado pela Cadecália em honra a Arkopromis e sua carne apodrecerá tanto que nem os animais devoradores de carniça suportarão o seu cheiro.Uma tocha de haste pontiaguda que ardia no salão se desprendeu de seu suporte e voou violentamente na direção de Margaret, a cabeça da menina doeu como se fosse explodir, a tocha parou a centímetros de seu rosto, neutralizada pela fortíssima magia de Tríssia. Demnisia caiu de joelhos e se dobrou com dores lancinantes. Ela voltou-se para Tríssia e suplicou:— Ela causou todo esse mal — disse ela referindo-se a Margaret. — Eu só queria ser uma véussida e poder servir a Senhora. Acabe com ela enquanto pode, veja o que está escrito no Livro. A Senhora não pode estar cega para a verdade - Demnisia implorava como se estivesse louca, mas suas palavras eram verdadeiramente since-ras, ela acreditava no que saía de sua boca. - As profecias já começaram a se realizar.— Se é verdade o que diz, porei a menina à prova — disse Tríssia, gesticulando para que Margaret se aproximasse do Espelho. A garota caminhou timidamente, a expressão de seu rosto confusa. - Diga, Meg, quem é você?

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— Só Meg, ou melhor... Margaret é o meu nome de batismo.— Você é a deusa Ninqa?— Claro que não sou Ninqa. Meu nome é Margaret Crowley.Tríssia examinou cada tonalidade da imagem refletida de Margaret.— O Espelho mostra que ela diz a verdade — Tríssia encarou Demnisia, desafiando-a a provar o contrário. A aura de Margaret se mostrava clara e macia como era comum entre as adolescentes de sua idade.— Ela engana o Espelho — disse Demnisia em desespero. — Assim como enganou a todos vocês. Ainda há tempo. Matem a garota e salvem-se enquanto têm chance. Ela é o início do fim do mundo. O destino de toda a existência está em suas mãos... Senhora - o desânimo tomou conta da jovem feiticeira, sua cabeça pendeu para frente, parecia não ter mais forças para contra-argumentar.— Iremos embora agora mesmo - disse Brian. - Meg, você está em condições?Margaret assentiu com um leve balançar de cabeça.Demnisia ergueu os olhos para Talemine e Rhuror.— E vocês, faogards, como podem trair seu povo? Seu mundo? Malditos sejam! Prometo que encontrarão a morte ao lado deles.— Não tenho medo de você, véussida - Talemine chegou bem perto e a olhou de frente com ar desafiador. — Se você conseguir se safar dessa,

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cuidado ao andar por aí. Minhas flechas não costumam errar o alvo.— Fala assim porque estou incapaz de reagir - disse Demnisia encarando de volta, seu corpo parecia estar acorrentado por forças invisíveis vindas de Tríssia.— Ainda nos encontraremos, feiticeira, e aí veremos até onde sua magia vai ajudar você.— Deixe-a, filha — recomendou Rhuror pegando Talemine pelo braço e a afastando. - Não é hora para confrontos.Ainda faltavam três horas para o pôr do sol quando os viajantes iniciaram a travessia das águas sólidas do lago Vokferon, rumo ao leste.As véussidas haviam cedido túnicas semelhantes às usadas pelos monges franciscanos na Idade Média para que todos usassem; os trajes tinham longos capuzes que escondiam providencialmente os rostos e dificultavam o reconhecimento de Daniel e Margaret; desse modo, os arkoprômidas hesitariam em atacar por correrem o risco de ferir ou mesmo matar por engano o menino que acreditavam ser o seu deus encarnado.Quando Margaret olhou para o alto, contemplou uma enorme Wengarel verde-esmeralda contra o céu azul. Era o belo presente de partida que Tríssia havia preparado como um sinal de sua amizade. A encantadora lua os acompanharia com todo o seu esplendor até os limites de Loreuvena, onde voltaria a ser a Wengarel tingida de sangue.

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Capítulo 31A Espada, O Elmo e o Escudo

AS colinas Cocdais, de ondulações suaves, distavam uns quarenta quilômetros do Palácio Véussida. As Cocdais eram a primeira barreira entre Loreuvena e Paleandrus, e ficavam encravadas no território das mulheres véussidas. Depois dessas colinas, corria o rio Odael, esse sim, a fronteira natural que separava as duas terras uma da outra.Rhuror planejava passar a noite no topo de uma das Cocdais, de onde a elevação privilegiada dava condições de vigília e defesa mesmo durante a noite.Do alto, enxergava-se o caudaloso rio Odael que deslizava sinuosamente vindo do norte e fertilizava todo o vale por onde se deitava; da sua bifurcação nascia o rio Mondasiel que corria para Paleandrus. Árvores de copas fechadas se estendiam para além e até a base de outro agrupamento de montes sinuosos, cerca de setenta quilômetros adiante: eram os extensos montes Gavaorum, por onde o rio Mondasiel se afunilava, estreitando e chocando-se velozmente contra os seus paredões que serpenteavam até que as águas do rio fluíssem calmamente do outro lado para derramar-se e alimentar a lendária cidade. As colinas do Gavaorum eram o local perfeito de onde se podia ter a primeira visão da impressionante Paleandrus.

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O acampamento estava montado e a fogueira luzia nas faces cansadas quando Talemine sentou-se ao lado do pai.— Tudo aconteceu tão rápido hoje, que não tive tempo de lhe falar - disse a faogard.— Falar do quê? - perguntou Rhuror dedicando mais atenção à filha.— Durante a madrugada, Camine se comunicou comigo... li os escritos diante dos seus olhos... meu avô está morrendo.— Tuldoror... — ele murmurou, os olhos se movendo, os pensamentos acelerados.— Acha que devemos voltar? — indagou a guerreira querendo dividir com o pai sua indecisão.Rhuror pensou mais um pouco antes de responder, o olhar perdido no horizonte engolido pela escuridão.— Ainda não. Entraremos em Paleandrus. Quero conhecer os mistérios que aquela cidade esconde e ainda ajudar nossos amigos. Depois decido o que faremos.As Cocdais foram vencidas e eles beberam e se refrescaram nas águas do Odael; dali, acompanharam as margens do Mondasiel até encontrarem uma estrada antiga que levava aos montes Gavaorum. A estrada, pavimentada com placas de pedras resistentes até mesmo à tonelagem descomunal do drancto, era o primeiro contato com algo construído pelo povo de Paleandrus. Floreiras ladeavam o caminho e dunins-de-ouro, os formosos passarinhos

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dourados, apareceram em bandos, esvoaçando com o seu canto alegre."Wengarel pairava vermelha no céu como antes.A curiosidade de Rafael se acendeu quando ele se deu conta que uma terra tão maravilhosa era totalmente desabitada.— O que sabe sobre Paleandrus, senhor Rhuror? Ninguém mora aqui?— Dessas terras se originou uma das histórias mais fascinantes da Cadecália - disse o faogard. — O lugar é mesmo desabitado, mas nem sempre foi assim.Tudo começou com um povo pobre e faminto que vagava pelo continente a procura de um lugar onde pudesse viver em paz. Esse povo de que estou falando, sobrevivia nas piores condições que se possa imaginar, resistindo a fome, doenças, frio e todo tipo de desgraça. Muitas de suas crianças morriam antes mesmo de aprenderem a andar, e a força deles persistia na esperança de um dia encontrarem um paraíso com água abundante e terras tão férteis que dariam três colheitas por ano.Enquanto Rhuror prosseguia falando, o Gavaorum, com suas encostas acessíveis, crescia na frente dos aventureiros.— De suas andanças errantes pelo continente, aquela gente miserável se arrastou até as terras que hoje chamamos de Paleandrus. Ao se depararem com lugar tão surpreendente, acreditaram que haviam finalmente chegado ao paraíso, mas não contavam que encontrariam o terror em terras tão aprazíveis. O vale era habitado por uma das criaturas mais terríveis que

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já existiram: um monstro, um ser criado por Arkopromis, nascido para trazer o infortúnio e a morte a quem colocasse os pés nas terras férteis do vale. Seu nome era Yasthaur, o demônio enorme de pele negra e azul, dentes negros feitos de ferro e asas pontudas e espinhentas, e que possuía um insaciável desejo de devorar carne humana. Os primeiros infelizes que penetraram no vale dominado por Vasthaur, tiveram morte imediata. Até crianças encontraram um triste fim na garganta do perverso animal.O interesse dos garotos foi magnetizado pela lenda que Rhuror narrava, os olhos de Daniel sequer piscavam. E Rhuror prosseguiu mais uma vez contando a lenda.— Depois disso, a cada três ou quatro dias, Vasthaur, em seu aspecto horrível, planava sobre o decrépito acampamento e capturava os que não tinham tempo de se esconder... e não havia muito onde se esconder, e assim foi por um longo tempo. Os coitados estavam em estado lastimável, não conseguiam entrar no vale sem que muitos dos seus perdessem a vida; por outro lado, também não sabiam mais para onde ir; uns diziam para irem embora e procurarem outras terras, porém, outros acreditavam na fé de um jovem escultor: seu nome era Andrus - Rhuror deteve o drancto, queria enfatizar o restante da história. Ele avaliou a encosta e a estrada que seguia por ela. - Andrus defendia que se quisessem realmente o vale, então deviam lutar por ele. Mas como se luta com uma coisa

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indestrutível que recebeu os seus poderes de um deus? Não faziam idéia de como destruí-lo. Andrus estava desolado com todas as mortes e sofrimento, ele mesmo perdera os pais para a fera do vale e só lhe restava a mulher e a filha pequena. Então houve uma noite - Rhuror desceu do seu animal para descansar antes de iniciarem a subida pela colina e avistarem Paleandrus — que exausto e cheio de incertezas, ele adormeceu e sonhou... o sonho mais bonito e real que teve em toda a sua vida. No seu sonho, a deusa Ninqa falava com ele e os raios de luz que emanavam da deusa subjugaram Andrus fazendo-o prostrar-se. Ela proferiu palavras que possuíam a grandeza do mar e a sutileza do vento. E dizia que o vale estava destinado ao seu povo e que deveriam lutar com perseverança pelo seu domínio. A deusa prenunciou que do céu viriam as armas que livrariam o povo de Andrus da temível besta e que o jovem escultor deveria conduzir a sua nação à vitória: "Enviarei três pedras, e delas, você fará um elmo, um escudo e uma espada para desafiar o filho de Arkopromis". Disse a deusa profetizando. E ela disse outra coisa que ele deveria fazer se quisesse vencer a dificílima batalha. "É impossível destruir Vasthaur ferindo-lhe o corpo, pois o seu maldoso coração bate no interior de uma árvore na floresta que repousa no topo de uma montanha obscura no meio do vale. Escale a montanha onde vive Vasthaur, ache a árvore e penetre sua espada no tronco, na altura de seu próprio ombro, amado Andrus, e se assim o fizer, Vasthaur morrerá e

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sua gente será um grande povo, respeitado e admirado por todos os reinos que agora existem e que virão um dia". Andrus arguiu Ninqa sobre como reconheceria a árvore ao que ela disse que ele saberia quando a visse.Parte do sol foi encoberto por Wengarel e o brilho do meio-dia se esmaeceu como num fim de tarde. Uma brisa fresca que desceu da colina aliviou o calor por um breve instante. Rhuror deu seqüência ao relato após saciar a sede em seu cantil.- Todavia, Ninqa advertiu que somente Andrus poderia guerrear com Vasthaur, caso contrário, sem a proteção das armas celestes, muitos pereceriam no acirrado combate. E Ninqa também avisou que Andrus não voltaria vivo da batalha, mas após a sua morte carnal, ele viveria para sempre, glorificado nos grandiosos jardins de Rohvenell, em Kalípria, uma das moradas dos deuses, e lá ele encontraria todos os seus que pereceram pelas garras do impiedoso Vasthaur. Por fim, o jovem escultor ouviu um grande estrondo que causou perturbação ao seu sono. Contudo, Andrus sentia-se tão bem que não queria mais despertar... nunca mais.— Isso é só uma lenda ou aconteceu mesmo? - perguntou Daniel.— Ora, Daniel, você e as suas interrupções são irritantes — esbravejou Margaret.— Esperem um pouco os dois, já estou terminando... e quando alcançarmos o alto da colina, vocês mesmos poderão tirar as suas conclusões se o que falo não passa de lenda ou

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se é a mais pura verdade - intercedeu Rhuror em tom apaziguador.O sol superou Wengarel e passou a correr para o oeste, devolvendo a claridade do dia. E Rhuror continuou relatando a lenda de Paleandrus.— A mão de alguém sacudiu o ombro de Andrus despertando-o do seu sonho extraordinário. Era a amada mulher do herói, Drijnayla, que o acordou e contou, com nervosismo, que perto dali aconteceu uma grande explosão abrindo um buraco na terra. Andrus levantou sobressaltado e correu para o local com grande pressa. No lugar do impacto, ele viu uma cratera profunda e quando se aproximou da beira, distinguiu três pedras negras que ainda fumegavam como lenha em fogueira apagada. Uma das pedras era mais comprida que um braço esticado, a outra tinha o formato quase circular como a roda de uma carroça, e a terceira era redonda como um grande seixo que rola da montanha. As pessoas se amedrontaram, mas Andrus contou o que havia sonhado e isso lhes renovou as esperanças quase perdidas. No entanto, da sua triste sina, Andrus nada pronunciou. As pedras foram recolhidas e o escultor se esmerou durante dias a fio para transformar aqueles três objetos sem forma definida nas armas que Ninqa havia falado no sonho. Andrus era talentoso, e ao final, as pedras brutas deram lugar ao mais belo conjunto de instrumentos de ataque e defesa que jamais haviam visto. Após a conclusão do trabalho, as armas não aceitaram mais nenhum tipo de

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retoque e se tornaram indestrutíveis pela vontade da deusa.O faogard fez outra pausa antes de começar a concluir a lenda de Andrus. O seu peito se estufou antes que ele voltasse a narrar.— Era chegado o momento - disse ele. - O Elmo se adequou perfeitamente a cabeça de Andrus, o Escudo se encaixou firmemente no seu antebraço e a sua mão empunhou a Espada afiada com irreparável tenacidade. O escultor abraçou forte sua esposa e em seguida se agachou para despedir-se de sua filhinha de cinco anos chamada Vega. A menina perguntou, na sua inocência, sem entender direito o que acontecia, se o pai voltaria logo, ao que Andrus prometeu com forte aperto em seu coração que venceria e retornaria para ela. Sob aplausos e gritos de incentivo, ele adentrou o território resguardado pela terrível besta e seguiu em direção a uma montanha distante e isolada no meio do vale; a montanha servia de morada ao Vasthaur, e era de lá que o monstro divisava toda a região até as encostas mais afastadas. Ninguém entrava no vale sem que Vasthaur soubesse e agisse implacavelmente, atacando e destruindo com crueldade. Entretanto, com Andrus foi bem diferente, pois o temido filho de Arkopromis não ousou atacar de imediato e se manteve inabalável em sua base de observação, camuflado em uma floresta densa no topo da montanha que, curiosamente, tinha suas encostas graníticas expostas, totalmente livres de qualquer espécie de vegetação.

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Naquela altura, os garotos já rodeavam o faogard que falava como um exímio contador de histórias.- O herói manteve o passo determinado e estacou por um instante antes de começar a subir a montanha onde teria o seu encontro final com o monstrengo. No momento em que Andrus atingiu a metade do caminho, a fera voadora desdobrou suas longas asas e se lançou no ar para enfrentá-lo. A encosta íngreme dificultava os movimentos de Andrus que passou a receber os primeiros golpes vindos de cima. A poderosa magia da deusa Ninqa começou a funcionar: o Elmo, o Escudo e a Espada tornaram-se transparentes e brilharam como luz que atravessa o cristal mais puro. O monstro voador atacava e se afastava, preparando-se para uma nova investida, e atacava novamente ainda com maior ferocidade. Os gritos da fera ressoavam pelo vale e chegavam aos ouvidos temerosos do povo de Andrus. As garras azuis e os dentes metálicos de Vasthaur encontravam constantemente a Espada e o Escudo do guerreiro, estrondando como raios que caem sobre o rochedo, mas as forças do herói eram sempre revitalizadas pelo poder de Ninqa. E assim foi, por um dia e uma noite, que a mais feroz das batalhas entre um homem e um ser monstruoso se seguiu. Tantas foram às vezes que os golpes se sucederam, que as muitas faíscas produziram uma fumaça espessa que se espalhou como neblina impedindo que o povo aflito assistisse o furioso embate. Mesmo

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protegido pela deusa, Andrus acumulava muitos ferimentos e o seu sangue respingava pela encosta rochosa. Confiante pela aparente desvantagem de Andrus, o diabólico Vasthaur desferiu outro violento ataque e se projetou com todas as suas garras e dentes sobre o protegido de Ninqa que se fechou em seu escudo luminoso cegando a fera por uma pequena fração de tempo; foi quando Andrus afastou o escudo e contra-atacou amputando uma das garras pontiagudas do monstrengo. Mesmo ferida, a fera forçava Andrus para baixo, pois Vasthaur tinha total conhecimento da intenção do herói. Andrus, por sua vez, empregava suas forças para alcançar o alto do monte, e aos poucos, com todo sacrifício que lhe foi imposto, ele foi levando a melhor. O bravo lutador se embrenhou na floresta do alto da montanha enquanto Vasthaur sobrevoava furiosamente, destruindo as copas das árvores e tentando impedir o valente Andrus de continuar indo em frente. Finalmente, em uma devastada clareira, lá estava ela, solitária: a árvore de tronco negro e galhos esfiapados como longos cabelos reinava sozinha e sugava a vida de qualquer outra planta que ousasse brotar em suas imediações. Não seria tão fácil para o escolhido da deusa cumprir o seu objetivo, pois, ao avançar pela clareira, a árvore o atacou com seus galhos movediços como se fossem mil serpentes tomadas de fúria, chicoteando-o com tanta violência que a sua carne abriu em cortes profundos; o suor que escorria para dentro das feridas ardia e atrapalhava o incansável

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combatente. O guerreiro defendeu-se como podia e a cada passo dado, ele era devorado por impiedosa dor. "A espada deve penetrar na altura equivalente ao do seu próprio ombro". Assim ele recordou as recomendações de Ninqa. Um líquido negro como sangue coagulado escorreu das entranhas do tronco quando a lâmina entrou profundamente. A árvore parou de lutar e seus galhos caíram pelo chão como os cabelos de uma mulher medonha. O último grito de Vasthaur foi ensurdecedor e dizem que pôde ser ouvido além das montanhas do vale. O monstro despencou sobre a floresta e nunca mais se moveu. Para se certificar que Vasthaur morrera, Andrus cortou-lhe a cabeça e deixou seu horrendo corpo lá em cima para apodrecer. Os mais velhos contam que o corpo de Vasthaur depois foi separado em milhares de pedaços e espalhado, a mando de Ninqa, por toda a Paleandrus; dos pedaços do terrível bicho nasceram árvores que deram frutos negros e muito saborosos. Ansiosamente o povo aguardava o desfecho quando finalmente Andrus surgiu da neblina e ergueu sua espada em sinal de vitória; a poderosa arma caiu de sua mão e ele foi ao solo, ensangüentado e fraco. Vega, sua adorada filha, correu e derramou suas lágrimas sobre o rosto do pai mortalmente ferido. Andrus sussurrou para a menina que voltara como havia prometido. E foram suas últimas palavras. Vega tornou-se a primeira ceiféride no templo erigido em Paleandrus, dedicado à deusa Ninqa... e essa é a história, amigos.

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— Ceiféride? - quis saber Rafael.- Uma respeitada sacerdotisa, como se diz na sua língua — explicou Rhuror. — Foi isso que Vega se tornou, uma sacerdotisa de Ninqa — o faogard agarrou as correias grossas e escalou o drancto com rapidez. - Pulem nos seus cavalos, atrás dessas colinas veremos coisas que jamais se apagarão de nossas memórias.A estrada pelo Gavaorum começou suave e ziguezagueou pelo lado mais acessível num caminho longo e seguro.Ao alcançarem o topo do monte, os viajantes finalmente puderam se extasiar com a magnificência que era a visão de Paleandrus. Mesmo a entrada mais próxima da cidade se distanciava cerca de dois quilômetros lá embaixo. Os altos muros que contornavam Paleandrus formavam um gigantesco desenho octangular que se perdia de vista, e cada um dos oito lados possuía sua própria entrada, possibilitando que, no passado remoto, os habitantes e comerciantes vindos de todas as partes da Cadecália tivessem acesso facilitado ao interior da majestosa cidade. Vista do alto, Paleandrus exibia ruas e avenidas perfeitamente organizadas e simetricamente dispostas como uma cidade bem planejada com seus prédios importantes e ricamente ornamentados. O sol dourava os telhados das casas e os templos se diferenciavam pela suntuosidade inigualável. O rio Mondasiel seguia seu curso vindo do oeste e passava pelo interior da cidade, ramificando-se em canais que forneciam água em abundância a

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todos os pontos da metrópole; o rio também servia como meio de navegação para outras terras do leste, e daí se propagava para todos os cantos onde houvesse civilização. Um porto suntuoso ainda agrupava navios que nunca mais navegaram, como se estivessem permanentemente à espera de sua tripulação.A rica Paleandrus, em tempos áureos, chegou a comportar mais de um milhão de habitantes entre as suas muralhas, e essa população aumentava ainda mais nos dias que os seus portões se abriam ao comércio estrangeiro. Mas toda aquela prosperidade se perdeu no passado.Comparada a Paleandrus, a grandiosa Faogard pareceria um mero vilarejo.Tamanha grandeza não se igualava ao maior ícone da cidade: uma gigantesca estátua de puro granito e com mais de seiscentos metros de altura erguia-se no centro de Paleandrus: a fabulosa estátua de Andrus, conhecida pelo nome de Kelatandrus em gazivian, ou - O Inexpugnável Andrus.- Inacreditável! — foi a única palavra que Guillermo conseguiu expressar ao contemplar a admirável Paleandrus e o seu espetacular monumento.Nem mesmo o comandante de guerreiros, o experiente Rhuror, conteve a emoção ao vislumbrar a cidade e o seu símbolo maior que povoavam sua mente desde os tempos de criança.— Nem em meus sonhos mais fantasiosos imaginei que fossem tão belos - disse ele,

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embevecido.E o impressionante gigante de granito, ao centro, eternizado como o símbolo maior da grandeza, poder e independência dos paleandreses, era simplesmente de tirar o fôlego. O colossal Kelatzandrus, a magnífica obra de escultura que durou séculos para ser concluída, foi entalhado por inteiro na montanha onde se deu a legendária batalha entre Andrus e Vasthaur. As poderosas pernas semi-abertas e bem equilibradas; o tronco reto e imponente com a espada pendendo da cintura e o escudo preso às costas; a cabeça dignamente encouraçada pelo formoso elmo; os braços erguidos acima da nobre cabeça e as mãos abertas para sustentar o imenso disco côncavo que guardava a floresta milenar suspensa a seiscentos metros do chão. Um estupendo trabalho de engenharia artística que consumiu o esforço de toda uma população durante várias gerações.A cidade de Paleandrus espalhava-se aos pés do gigantesco Kelatzandrus em oito largas avenidas principais que se prolongavam até os portões de entrada. Uma boa parte da cidade foi construída com as pedras retiradas da montanha. E era para lá que os aventureiros estavam indo.Os viajantes, desconcertados com a fabulosa visão da cidade, iniciaram a descida pela encosta oposta do Gavaorum até a sua base.Os pássaros reapareceram com seus belos cantos e coloridos variados nas proximidades de um bosque e as árvores se encarregavam de

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ocultar a continuidade da estrada após uma curva.Um andarilho encapuzado seguia mais à frente e isso acionou o sentido de alerta de Talemine que armou seu arco, pondo o estranho indivíduo em sua mira.— Conheço aquele jeito de andar - desconfiou Rhuror quando o sujeito se virou para trás e mostrou o rosto bem conhecido. - Ora se não é o bastardo do... Lughy!Talemine esporeou o cavalo antes que Lughy saltasse para a mata e tentasse fugir, mas a única reação de Lughy foi sorrir e acenar amigavelmente.A faogard manteve o mestiço na mira o que fez ele se espantar e mudar para uma expressão de quem não sabia o que estava se passando.O enraivecido guerreiro Rhuror deslizou pelo drancto e veio em seguida sacando de sua espada, sua mão forte prendeu Lughy pelo pescoço como se estivesse a ponto de estrangulá-lo.— Vá com calma, Rhuror - recomendou Brian. - Podemos resolver isso de outra maneira.— Só conheço um jeito de tratar essa escória - retrucou o faogard, a mão se fechando no pescoço de Lughy que já esbugalhava os olhos.— Você não acha melhor interrogá-lo antes de fazer o que está pensando em fazer? - ponderou Guillermo com diplomacia.Rhuror respirou fundo e parecia estar contando até dez, então afrouxou os dedos e deixou Lughy voltar a respirar.

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— O que está fazendo? - desesperou-se Lughy, a voz desafinada, e tossiu engasgado antes de continuar. — Ficou louco? A viagem cozinhou o seu cérebro?— Provavelmente sim, no sol do Canormut onde deveríamos ter morrido, mas estamos aqui, bem vivos, o que você não ficará por muito tempo, seu miserável — disse Rhuror quase espumando de raiva.-Alguém poderia traduzir o que o senhor dos guerreiros está dizendo? - pediu Lughy, parecendo ou tentando demonstrar que de nada sabia.— E ainda por cima é cínico - encolerizou-se Rhuror, sua paciência por um triz. — Quero ver se a sua fala continua macia quando eu quebrar todos os seus ossos.— Dê-me um minuto, Rhuror - pediu Brian, e contou tudo pelo que passaram no deserto com a sabotagem nas bolsas de água.- Então simplesmente concluíram que fui eu o responsável. Não tive nada a ver com isso - defendeu-se Lughy com uma firmeza incomum ao seu caráter. - Nunca matei ninguém e nem conspirei para que tal acontecesse. Se me matarem, o culpado continuará solto e certamente tentará outra vez.- Desconfia de alguém, Lughy? - perguntou Roger.- De ninguém e de todos — respondeu com imprecisão. - Ora, qualquer um pode ter feito aquilo... e seria necessária mais de uma pessoa para colocar tanta areia nos odres. Me admira

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que ninguém tenha visto alguma coisa para denunciar.- Pessoas como você entram e saem dos lugares sem serem vistos — insinuou Rhuror ainda em tom de acusação.- Sou tão suspeito quanto Tagodhar, o estalajadeiro seu amigo. Ele não ficou responsável pela carga? E Luminus, o desenval? Ele poderia abarrotar os sacos com toda a areia do deserto num piscar de olhos.- Ainda quer se comparar a eles, seu inescrupuloso? — esbravejou Rhuror. - Nunca roubaram ou passaram alguém pra trás. Já, você...- Pois fique sabendo que nunca pratiquei nenhum roubo, senhor faogard. Nenhuma pessoa das que negociei fez algo contra a própria vontade.- E, isso não faz dele um ladrão — observou Rafael como se fosse o advogado de defesa de Lughy.- Espere um pouco — foi a vez de Brian. - Como você chegou até aqui tão depressa? Não daria tempo se escolhesse ter ido por cima da cordilheira e certamente morreria se usasse a fenda no Vorengor.- Usei um atalho bem mais seguro.Vim por um estreito túnel que passa por dentro do Malthar e mal cabe uma pessoa semi-agachada. Está infestado de insetos e outros bichos pegajosos - ele fez uma cara feia de repugnância. — É claustrofóbico, mas eficiente.Rhuror e Talemine já tinham ouvido falar do túnel, entretanto, poucos sabiam a sua

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localização exata e de nada adiantaria se não pudessem passar com os animais.O guerreiro faogard não havia esquecido de suas suspeitas com relação a Lughy, e deixou claro.- Não ficarei tranqüilo com ele solto por aí.- O que vai fazer, amarrá-lo ou matá-lo, pai? — perguntou Talemine com a frieza de uma guerreira e voltou a apontar sua flecha para Lughy.- Não pretendo matá-lo, mas pensando bem... — Rhuror fitou Lughy com um olhar sinistro.- Não quero ficar amarrado aqui — protestou Lughy. — Esse lugar não é muito visitado atualmente. Poderia levar semanas ou meses para alguém aparecer e me soltar.— Então você vem conosco — decidiu Rhuror, e apontou para o drancto. — Lá em cima, comigo.— Que seja - aceitou Lughy dando de ombros. - Andar sozinho às vezes se faz aborrecido.O arco de entrada da cidade era alto, duas vezes a estatura do drancto.A muralha que protegia Paleandrus era tão espessa que comportava torres de vigia do tamanho de uma casa. E era isso mesmo. Uma guarnição inteira ocuparia cada torre de observação. Isso, obviamente, quando Paleandrus era habitada.As avenidas eram bem cuidadas e as construções não apresentavam rachaduras ou desgastes. Estavam intactas.— Já esteve aqui antes, senhor Lughy? - perguntou Guillermo apreciando o conjunto arquitetônico de rara beleza.

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— Duas outras vezes — respondeu. — Sabiam que uma maldição proíbe perambular mais de três dias entre esses muros?— Três dias? Por que isso? - interessou-se Marc.— Era um costume local, há muito tempo quando essa cidade fervia de gente — explicou o mestiço dos olhos de duas cores —, a grandiosa Paleandrus permitia que seus portões se abrissem aos estrangeiros apenas três dias em cada mês. Negociantes e curiosos invadiam a gigantesca praça principal aos pés do admirável Kelatzandrus. Porém, ao término do terceiro dia, todos os visitantes deveriam sair incondicionalmente. Não havia exceção. Só os descendentes diretos dos paleandre- ses estavam autorizados a morar nesse paraíso. Tudo aqui não é fabuloso? — disse, abrindo os braços para justificar a sua afirmativa.— E o que acontece a quem não respeita essa... resolução? — indagou Roger.— Pergunte ao faogard. Ele conhece muito bem cada magia de Paleandrus.Rhuror olhava de um lado para o outro como se estivesse a procura de algo muito importante.— Ainda não o achou, Rhuror? — provocou Lughy. — Mas ele está por aí, em qualquer lugar, observando cada movimento que fazemos.— De quem você está falando, Lughy? — perguntou Brian, intrigado com a conversa enigmática entre os dois.— Lughy está falando dele - respondeu Rhuror, mostrando discretamente uma escultura em forma de ave pousada no alto de uma grande

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edificação, as garras fincadas firmemente sobre o umbral da fachada.- A cabeça daquela estátua está se movendo ou é impressão minha? — perguntou Margaret, observadora.- Não é impressão sua, Meg — disse Talemine numa mistura de temor e encantamento. —Aquele é o Cnandauro. Seu olhar nos acompanha. Ele é o guardião da cidade.O Cnandauro era a mitológica ave de pedra, muito semelhante a Harpia sul- americana, bico curvado comum aos pássaros de rapina, olhos grandes atentos e ameaçadores feitos de pedras vermelhas como os olhos de um faogard; toda a sua constituição, da ponta do bico até a cauda, incluindo as poderosas asas de penas cintilantes, era cravejada com pedras de matizes que coloriam a ave de azul, vermelho e dourado. Uma escultura viva de quatro metros de altura que mantinha os ladrões bem distantes de Paleandrus.- E o que ela faz além de ficar espiando como uma coruja crescida? - perguntou Chester.- Vê aqueles cristais jogados? - disse Lughy mostrando um punhado de pedras parecido com cristais de rocha, espalhado pelo solo. — Já foi um intruso que tentou roubar ou esqueceu-se de ir embora depois do prazo dos três dias. O resultado é sempre esse: o Cnandauro ataca e quando toca o infeliz com suas garras, o desgra-çado cristaliza e se despedaça como um vaso quando cai no chão duro.

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- Aquilo era um ser humano? - questionou Margaret impressionada, achando que viu a parte de um rosto em um dos pedaços de cristal que brilhava ao sol. — Não quero terminar assim.- Já tentou pegar uma lembrancinha de Paleandrus, Lughy? — perguntou Rhuror com sarcasmo.- Eu estou vivo, não estou? — disse Lughy, como se desafiasse com o olhar o guerreiro para uma luta, e voltou-se para o Cnandauro. — Se o deixarmos em paz e não transgredirmos as regras ele não nos incomodará.O sol explodia em luzes sobre o Cnandauro que permaneceu inerte quando eles seguiram em frente.O caminho prolongou-se entre jardins exuberantes pontilhados por flores que exalavam perfumes inundando o ar quente da tarde. Bancos de pedra artisticamente lapidados se distribuíam entre os canteiros, ofertando ao transeunte uma eterna sensação de paz.Havia estátuas por toda parte. Uma delas tinha a feição melancólica, outra parecia querer enxergar além do horizonte com seus vividos olhos pétreos, uma terceira estendia a mão parecendo esperar um presente dos deuses. Aliás, a sofisticada escultura era uma das especialidades dos paleandreses. O incalculável trabalho que tiveram para dar forma a Kelatzandrus fez deles especialistas na arte em esculpir. Suas obras estavam espalhadas por todo o mundo.

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- O que foi feito da população de Paleandrus? - perguntou Marc.- Sumiram da noite pro dia - disse Talemine, simplesmente. — Isso aconteceu há muito tempo, quando houve a guerra dos deuses contra Arkopromis. Certamente uma grande vingança do deus do mal.- E ninguém suspeita do paradeiro de toda aquela gente? — indagou Margaret.- Existem hipóteses apenas. Uma delas fala que os paleandreses estão presos em uma fenda no tempo e no espaço e se um dia retornarem, quando o encanto for quebrado, não se lembrarão de nada, como se todo esse tempo não representasse nem um segundo pra eles.Mais à frente, os viajantes tiveram outro encontro surpreendente: um ser de pedra com formas humanas e quase dois metros e meio de altura cuidava de um canteiro, utilizando ferramentas em que ele alternava de um cinturão de metal. Tesouras, alicates e outros utensílios eram habilmente manuseados pela estranha criatura que parecia ignorar a presença dos visitantes. Uma estátua que se movia sem quebrar as articulações era algo fora do comum.- É um fenófero — ensinou Lughy. — Os fenóferos são criações da deusa Ninqa, que zelam pela cidade. São nove ao todo, e cada um deles cuida de uma fatia de Paleandrus, trabalhando sem parar dia e noite.- Então é por isso que Paleandrus está sempre limpa e arrumada — deduziu Marc.

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- Júlio gostaria de ter um desses como ajudante - disse Daniel lembrando do amigo que ajudava nos reparos na Ilha da Coroa.- Posso chegar perto? - perguntou Rafael dividido entre o receio e a curiosidade.- Vá em frente — estimulou Lughy.Rafael ficou impressionado quando o fenófero virou a cabeça e o fitou por alguns segundos com seu rosto inexpressivo, antes de voltar ao trabalho; as mãos desproporcionalmente grandes demonstravam leveza ao podar os galhos e preservar as delicadas flores.- Você disse que são nove fenóferos - disse Guillermo. — Mas a cidade é dividida em oito partes. Onde está o nono?- Dizem que cuida da floresta suspensa nos braços do colosso. Ninguém o vê, mas ele está lá há muitos séculos — informou Lughy como grande conhecedor de Paleandrus.Deixaram o fenófero entretido em sua atividade solitária e prosseguiram pelas ruas desabitadas.— Que interesse os trouxe a Paleandrus? - quis saber Lughy. - Se não pensam em roubar nada, não há muito o que fazer nessa cidade deserta.— Queremos roubar umas coisas — respondeu Rhuror conduzindo o drancto com cuidado.— Roubar... - Lughy deu um sorriso de descrença.— As Armas de Ninqa. Viemos aqui com esse propósito.— Está falando sério? - Lughy inquietou-se.— Estou, mas fale baixo. Não desejo aquele pássaro bicando os nossos calcanhares.

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— Quero descer. Deixe-me ir embora. Não desejo virar um monte de cacos - exigiu Lughy, a voz desafinada saindo com dificuldade.— Fique despreocupado meio-faogard, nem sabemos onde estão os tais equipamentos de batalha.— E que eles fiquem lá onde estão, bem escondidos - desejou Lughy, o rosto assumiu um ar de indignação. - Acha mesmo que sairão vivos de Paleandrus com o seu maior tesouro? O senhor me decepciona, comandante Rhuror. Imaginei que fosse mais inteligente.O faogard não deu atenção ao que Lughy dizia e logo mudou de assunto no momento em que entraram por uma avenida de ostentosas casas cercadas por magníficos jardins.— Um desses casarões vai servir de abrigo por essa noite. Está tarde para começarmos o nosso trabalho.Dúzias de nuvens do tipo cúmulus pairavam no céu com sua aparência fofa de algodão. Estava mais quente e abafado no final daquele dia.As folhas secas rodopiavam carregadas pelo vento que entoava canções tristes quando passeava pelas ruas desertas.Rhuror farejou o ar como um nevolort que procura a caça.— Vai chover essa noite - previu ele. — Chuva forte.Escolheram uma espaçosa e confortável casa de dois pavimentos e largas sacadas que ofereciam vista ao monumental Kelatzandrus. Um jardim espaçoso, repleto de árvores frutíferas, ocupava

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os fundos da habitação. Um belo chafariz jorrava água límpida produzindo um sonoro e agradável borbulhar.Num belo jardim no fundo da casa, uma árvore se destacava com seus frutos azuis de finíssimas listras negras.— É comível? — perguntou Margaret a Talemine, desejosa de provar a fruta.— É sim, e muito saborosa. Dizem que só nasce em Paleandrus.Os garotos avançaram e morderam com prazer.— Lembram da história que meu pai contou? Em que dividiram o Vasthaur em milhares de pedaços e deles nasceriam árvores? Ele estava se referindo a essa árvore.Margaret cuspiu o que tinha na boca.— Eu comi um pedaço do Vasthaur? - perguntou com cara de nojo.— Ela está só brincando — divertiu-se Daniel, e mordeu outro naco.— Não está, não — disse Rhuror com seriedade. - Vocês estão mesmo comendo os pedaços do monstro.Então foi a vez de Daniel parar de mastigar e ficar em dúvida se engolia ou cuspia a fruta.O salão na entrada do casarão não era muito diferente de uma casa em um bairro elegante de Londres ou Paris, mas uma coisa era comum em todas as moradias de Paleandrus: numa das paredes havia azulejos de uns vinte por vinte centímetros onde acontecimentos importantes de cada família surgiam em baixos relevos, como um nascimento, casamento ou morte. Era o

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registro milenar do cotidiano daquele povo misterioso. Com seu olhar de professor, Brian estudou naquelas figuras de contornos bem desenhados, um pouco do comportamento dos antigos moradores, suas atitudes e o modo de se vestirem. Comparou e concluiu como se assemelhavam aos gregos da antigüidade.Comeram e relaxaram na mesma sala naquela noite; uma pausa confortável que fez Guillermo espreguiçar e cruzar os braços atrás da cabeça enquanto aguardava o sono chegar.Uma belíssima ânfora negra com motivos amarelos foi levantada com curiosidade por Chester que se pôs a olhar com admiração.— Devolva isso imediatamente ao balcão — disse Lughy em tom severo.Chester recolocou o objeto no lugar como se mexesse com explosivos. E se justificou:— Estou apenas olhando.— Então olhe somente... sem tocar — disse o meio-faogard, os olhos pregados em Chester como se quisesse hipnotizá-lo. E continuou falando pausadamente: - Nunca... tire... nada do lugar. Eu já soube de gente que morreu em Paleandrus por quebrar vasos como esse, e sem querer. Não sei como o Cnandauro consegue sentir quando algo é subtraído ou danificado... mas ele consegue.O vento soprou lamurioso durante a noite, balançando as copas das árvores de um lado para o outro e trazendo um grosso rolo de nuvens negras tempestuosas que se desenrolou sobre Paleandrus como um tapete gigante. A

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chuva desabou fragorosamente e os relâmpagos iluminaram a cidade como se ainda fosse dia.— É bom dormir ao som da chuva - disse Marc escolhendo um leito que ficava de frente para uma das janelas.— Ele não para de trabalhar - observou Rafael olhando lá fora, na chuva, o fenófero que seguia com seu trabalho interminável, aparando as plantas, consertando o que fosse necessário, a chuva escorrendo pelo seu corpo de pedra.Naquela madrugada, um trovão forte fez Roger despertar de seu sono agitado. Ele jogou as pernas para fora da cama e sentou-se apertando a nuca para aliviar a tensão.— O que houve, Roger? — perguntou Brian ao ser despertado do sono leve, a chuva torrencial arrebentava no peitoril da janela.— É a Helen. Ela aparece nos meus sonhos. Está tentando falar alguma coisa, mas não entendo, não ouço o que ela diz. Depois acordo e durmo novamente, então ela volta e tudo se repete.— E isso não é bom? Ver a Helen?— Não desse jeito. Ela está ansiosa. Quer me avisar de algo muito importante.Um relâmpago clareou o semblante atormentado de Roger quando Margaret entrou no quarto.— Desculpem, mas eu ouvi vocês conversando e decidi entrar.— Não tem problema, Meg. Você está bem? - perguntou Brian, gentilmente.— Não consigo dormir direito. Uma mulher fica tentando falar comigo nos meus sonhos e eu não compreendo o que ela quer... Acho que é a

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Helen, professor - Margaret olhou meio sem jeito para Roger, pensando que levaria uma bronca.Roger estremeceu. Quis saber mais o que Margaret tinha para dizer. O sonho que eles tiveram eram quase iguais.— Muito bem, Meg. Agora vá dormir - disse Brian.— Você viu, Brian? - comentou Roger com excitação, logo depois que Margaret se foi: - A Helen está tentando se comunicar. Acho que estou no caminho certo.— Escute um pouco - Brian ponderou: - Talvez Meg tenha ouvido a nossa conversa e inconscientemente pensou ter sonhado o seu sonho.— Não, Brian, não é isso. Helen está mais perto de mim. Não é um devaneio. Helen tem alguma coisa a ver com esse mundo, com essa misteriosa cidade.Há certas horas em que permanecer em silêncio é a melhor coisa a se fazer. E foi essa atitude que Brian tomou.Outro relâmpago clareou o quarto e a chuva apertou na madrugada.Ainda havia uma larga esteira de nuvens quando o sol matutino rompeu o horizonte, fazendo com que o teto nebuloso ganhasse um alaranjado magnífico pela manhã.O grupo retomou uma das principais avenidas em direção ao centro de Paleandrus.Vasculhar uma cidade daquelas proporções e encontrar objetos relativamente pequenos seria desanimador se não houvesse uma forte determinação por parte dos aventureiros. Mas

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por onde começar? E como escapar do vigilante Cnandauro após pegarem o que procuravam?— Responda, Lughy - pediu Rhuror tratando o meio-faogard com mais complacência. - Se tivesse que esconder uma coisa valiosa em Paleandrus, que lugar escolheria?— Se eu disser, você me liberta?— Você não é um prisioneiro, só estou vigiando-o de perto.— Se acharem o que tanto procuram, eu quero sair daqui antes de tocarem naquelas perigosas armas, está de acordo?— É razoável — assentiu Rhuror. — Agora, fale.— Deixe-me pensar — Lughy olhou em volta e respondeu depois de algum tempo: — Na minha opinião, objetos de considerável valor só poderiam ser mantidos em dois locais: no templo da deusa Ninqa e... lá em cima — ele apontou na direção do Kelatzandrus e arrematou: - No imenso prato sustentado pelos braços de Andrus. A floresta no seu topo. A antiga morada do Vasthaur.— O templo, onde ele fica? — perguntou Roger.— Antes de se chegar à imensa praça central, a meio caminho do Kelatzandrus. Essa avenida nos levará até ele - Lughy passou a informação.Cruzaram a ponte sobre um estreito canal artificial nascido do rio Mondasiel que abastecia o sudeste com suas águas transparentes.O templo de Ninqa era cercado por colunatas brancas, translúcidas como o alabastro, mas firmes tal qual granito para suportar a pesada construção; o pórtico amplo, destinado a receber

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os visitantes nos dias dedicados à deusa, era envolvente e místico; duas cascatas saídas das bocarras de dragões de pedras reluzentes desciam de cada lado da entrada, e o som da água corrente se misturava ao vento encanado que penetrava pelo templo: o efeito sonoro era o de dezenas de cristais chocando-se mutuamente.No interior do templo, aberturas, estrategicamente dispostas no teto, deixavam passar o sol, abastecendo de luz as luminitas que brilharam e brilhariam durante todas as noites ao longo dos séculos.Eles vagaram pelo átrio do templo até alcançarem um grande salão coberto por majestosa abóbada dourada. No meio do salão, duas colunas uniam-se em um arco formando um entablamento reto, e o que Roger vislumbrou acima das colunas o deixou assombrado.— Helen! — ele murmurou, quase perdendo a voz.Roger ficou estático ao deparar-se com uma estátua de mármore polido sentada sobre o entablamento, como se ela descansasse displicentemente em cima de um muro, as palmas das mãos apoiadas e os pés cruzados; o sorriso guardava toda a paz que alguém gostaria de ter na vida; em torno da cabeça havia uma testeira que prendia um diamante em forma de gota que irradiava uma infinita coloração violeta; do pescoço, do mesmo material da estátua, pendia um pingente que exibia o desenho de uma flor aprisionada num cristal, a célebre marca de Ninqa; os olhos, sempre fitando do alto, eram afetuosos e davam a impressão de se agradarem

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na presença dos visitantes. Mesmo estando sentada, a escultura de mármore atingia os três metros.Roger parecia ter enlouquecido.— Olhem para ela! - ele exclamou, desesperado, estendendo as mãos para a estátua. — Vocês conheceram a Helen, sabem como era o seu rosto.Guillermo e Brian trocaram olhares desconcertados.Roger agarrou Guillermo pelo braço.— Diga! Diga se não se parece com a Helen!— A semelhança é muito grande Roger, mas acalme-se - pediu Guillermo.— Como posso me acalmar, meus amigos? — ele ria com nervosismo e causava constrangimento. — É a Helen que apareceu. Era isso que ela estava tentando me dizer essa madrugada, Brian.— Roger, é uma estátua. Você está fora de si — disse Brian com dureza.Roger agarrou Brian pela roupa junto ao peito e rosnou com raiva.— É a Helen, e ninguém vai me convencer de que não é ela.Subitamente ele abriu a própria camisa e puxou o pingente de ouro. O desenho era idêntico ao da estátua: uma flor aprisionada no interior de um cristal.Brian empalideceu ao ver o mesmo desenho no pingente. Roger continuou falando e gesticulando continuamente.

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— E agora, estou mentindo? Estou louco? Isso é fruto da minha imaginação? Helen me deu isso antes de morrer. Era dela. Sempre esteve com ela... por toda a vida! — ele anunciou aos que não sabiam.— O que está se passando com ele? — perguntou Lughy. Não houve resposta.Roger voltou-se para a estátua, para as duas colunas que a sustentavam. Havia inscrições de um azul vítreo em uma delas. Ele caminhou apressadamente até aquela e tentou ler freneticamente.— O que está escrito aqui? — perguntou a esmo enquanto corria os dedos pelas ranhuras do texto. — Rhuror, Talemine, sabem o que esses sinais querem dizer?Pai e filha aproximaram-se e examinaram as gravações.— É gazivian primitivo - disse Talemine, desanimada. — Não entendo nada.— É completamente estranho para mim - disse Rhuror. — Sinto muito, amigo... — então Rhuror olhou para Lughy: — Mas espere um pouco, Lughy, você conhece gazivian primitivo.— Muito pouco... quase nada. Eu sabia ler alguma coisa quando ainda era pequeno, mas não faço isso há anos.O alucinado Roger correu para Lughy e o arrastou até as colunas.— Leia! Leia pra mim! O que essas inscrições significam? — os olhos de Roger eram de um louco. — E não me engane ou eu mato você!

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— E muito complicado — Lughy tremia, agora sabia que corria perigo. Não se brinca com uma mente insana. — Não me ameace... estou me esforçando pra ler.Lughy correu os olhos pelas inscrições procurando combinar os símbolos; agachou-se e tentou ler a base da coluna, depois se esticou novamente. Roger acompanhava os movimentos das mãos trêmulas de Lughy na esperança que o mestiço conseguisse decifrar aqueles caracteres estranhos. Por fim, o meio-faogard suspirou fundo e falou.— A escrita se refere a uma ceiféride. A primeira e a mais importante de todas as que cultuaram Ninqa. Nesse ponto... - e ele indicou com o dedo. — está escrito o nome dela... Vega.— A filha de Andrus - completou Chester, recordando a história contada por Rhuror.— Essa outra parte menciona o diamante encravado na cabeça da estátua, mas isso eu sabia há muito tempo... esse é o Lágrima de Ninqa.— O diamante que nasceu das lágrimas da deusa quando ela chorou pela morte dos pais assassinados por Arkopromis — explicou Talemine. - É uma história bem conhecida entre nós.— Vega falava com Ninqa através do diamante mágico, e agora estou diante dele - disse Rhuror com acentuada satisfação.— Há quanto tempo viveu essa ceiféride? - perguntou Rafael.

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— Estamos falando de mais de três mil e quinhentos anos - respondeu Talemine.— E como ela foi aparecer no nosso mundo, no pescoço da senhora Helen? - questionou-se Rafael, ele era atraído por mistérios.— Pelo portal, naturalmente - respondeu Margaret como se fosse a resposta mais óbvia a dar.— Após três mil e quinhentos anos? Tem alguma coisa obscura em toda essa história - disse Rafael não se dando por satisfeito.Brian fixou os olhos no Lágrima de Ninqa.— Ele deve ter uns mil quilates. É estupendo.— Já tentaram roubá-lo - confidenciou Lughy.— E o que aconteceu com o ladrão?— Foi varrido por um fenófero... em caquinhos miúdos - disse em tom tétrico.Roger, ainda aflito, voltou-se mais uma vez para Lughy.— Há outras coisas que você conseguiu decifrar?O meio-faogard balançou a cabeça negativamente.— Mais nada. Lamento, mas é só isso.A expedição pelo templo não havia terminado. Existia uma porta além das duas colunas que servia de ligação a outro salão ainda maior reservado à própria deusa, e a estátua de quase nove metros de Ninqa, localizada ao fundo, eternizada em ouro e mármore azulado. As paredes revestidas com centenas de mosaicos e caracteres indecifráveis.— Pode estar aqui - disse Rhuror ouvindo o próprio eco.

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— Não me sinto à vontade profanando um lugar sagrado — confessou Lughy.— Você?! Não me faça rir - zombou Rhuror. - Olhe quanto ouro. Seus dedos não ficam tentados em acariciá-los?— Costumo ganhar dinheiro de mortais, não de uma divindade capaz de amaldiçoar a minha pele — alegou.Passaram o resto da manhã vasculhando cada canto, levantando hipóteses sobre qualquer pista que levasse às Armas.Por fim, Guillermo não se conteve e disse o que achava daquilo tudo.— Estamos perdendo tempo. Qualquer metro quadrado da cidade pode esconder o que buscamos. As tais armas podem estar enterradas bem debaixo de nossos pés. Quantos aventureiros perderam a vida nessa busca infundada em todos esses séculos?— Recorda as palavras de Tríssia? - disse Rhuror. - Só chegaremos ao Portal se fizermos uso da proteção da deusa. Prefiro confiar no que a véussida disse. Se não acharmos nada até o crepúsculo do terceiro dia, iremos embora. O que me diz?Guillermo concordou, mas a preocupação de chegar ao Portal no tempo calculado sempre o incomodava.— Precisamos de uma pista — refletiu Daniel revivendo os dias em que ele e seus amigos esquadrinhavam a Ilha da Coroa. - Algo que nos diga: está ali.

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Foi naquele momento que Marc, num passar de olhos, notou em um dos mosaicos, o nítido desenho de uma espada, um escudo e um elmo, e algo escrito que contornava os três objetos.— O que está escrito naquela pintura? - perguntou o garoto francês.— Esse eu posso interpretar — disse Talemine. — É gazivian antigo, não o primitivo - a faogard leu com cuidado e recitou: - "Sob o peso da glória, o sangue de Paleandrus venera a sua força".— O que significa? - perguntou Margaret buscando um sentido lógico para a frase.— É óbvio que é isso um enigma - opinou Rafael. - Tem certeza que leu corretamente, Talemine?— Não tenho dúvida - confirmou. - Gazivian antigo não é como o gazivian primitivo, os seus caracteres são bem conhecidos em Faogard. Nossas bibliotecas estão repletas deles.Roger puxou um pequeno papel do bolso e anotou os dizeres com o auxílio de Talemine. Pretendia estudá-lo meticulosamente mais tarde.A escrita gazivian havia passado por três fases na história: a primeira, chamada de primitiva, apareceu há mais de onze mil anos no antiquíssimo e extinto reino de Gazívia que lhe deu o nome; a segunda fase, conhecida como antiga, aconteceu à cerca de oito mil e seiscentos anos quando os deuses falaram pela primeira vez aos mortais, sendo bastante modificada a ponto de a fase primitiva quase cair no esquecimento; por último, devido ao constante contato com outras civilizações, surgiu o gazivian moderno ou usual, este falado em

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toda a Cadecália e no ainda desconhecido continente de Calcávna.Gazívia foi o reino mais esplendoroso de sua época.— Acho que já é o bastante por ora - disse Brian cansado de procurar em um só lugar. - Melhor tentarmos o Kelatzandrus antes que escureça.Antes de chegarem à grande praça central, cruzaram pelo porto ao longo do trecho mais largo do rio Mondasiel. Grandes barcos se enfileiravam, esperando para serem navegados um dia.— Me admira como ainda náo apodreceram - observou Roger que conhecia bem das artes do mar. - Por estarem tanto tempo na água, a madeira já deveria ter se dissolvido.— Boa madeira. Bons navios — comentou Rhuror, não levando em conta que os barcos permaneciam inteiros por obra divina. — Deveríamos usar um daqueles maiores e encurtar centenas de quilômetros até as vastas planícies do leste.— Ouse desatracar uma dessas embarcações e seus restos se espalharão pelo convés em pedrinhas brilhantes, para que uma daquelas estátuas ambulantes venha limpar toda a sujeira - preveniu Lughy, pretendendo afastar outra idéia maluca da mente do guerreiro.Seguiram até a vasta praça no centro da cidade. Sua largura eqüivalia ao diâmetro do gigantesco prato sustentado pela estátua de Andrus, cerca de quatrocentos e oitenta metros. Nos dias de chuva a praça permanecia praticamente seca,

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pois o disco servia como um imenso guarda-chuva protetor. O rio Mondasiel tornava-se subterrâneo, atravessando a praça bem no meio, sem ser notado, e um quilômetro depois, retornava à superfície e continuava correndo para o leste.Brian inclinou tanto a cabeça para cima admirando o Kelatzandrus, que seu pescoço parecia que iria quebrar.— É impossível essa estrutura não ter desmoronado — disse ele muito impressionado. — Mesmo o granito não agüentaria tanto peso.— Magia, senhor Brian — assegurou Rhuror. — Somente magia mantém esse gigante em pé.— Como subimos nessa coisa? Pelo visto não há elevadores — descontraiu Guillermo.— Há uma entrada na lateral externa do pé direito — disse Lughy. — Mas nunca tentei subir por ela. Parece estar lacrada há muito tempo.Eles deram a volta no pé de proporções ciclópicas e chegaram à entrada que Lughy havia mencionado.— Está mesmo fechada - constatou Guillermo, verificando que havia duas aberturas semelhantes a fechaduras. — Alguém sabe como abrir?— Rafael deve saber - adiantou-se Marc. - Ele é um exímio arrombador de portas.— E se não fosse por ele, talvez não tivéssemos conseguido atravessar o portal - completou Daniel.— Ei! Eu não sou um arrombador - defendeu-se. - Falam como se eu fosse um larápio ou coisa

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assim. Só tenho alguma habilidade com fechaduras.— Dá no mesmo - atacou Chester. — Você acaba abrindo portas que não se pode abrir... Como os gatunos.Rafael balançou a cabeça com desdém e chegou mais perto, examinando as pequenas fendas ao lado da porta.— Tem uma espécie de engrenagem aqui dentro, posso ver os dentes - ele examinou mais um pouco e concluiu: — Não é de metal, como quase tudo nessa cidade, a engrenagem é feita de algum tipo de rocha... rocha polida.— Consegue abrir? - perguntou Daniel observando de perto como se entendesse de alguma coisa.— Posso tentar, preciso de um punhal fino e uma vareta que não quebre facilmente.O punhal foi emprestado por Rhuror e uma haste pontuda foi tirada do meio dos cabelos de Talemine.— Você usa isso nos cabelos? - quis saber Rafael, avaliando a sua rigidez.— E útil em caso de um ataque surpresa, se alguém achar que você não tem mais nada com que se defender — disse ela cheia de artifícios.— O Cnandauro pode não gostar do que estamos fazendo e nos atacar - observou Margaret enquanto vigiava o céu.— Não estamos roubando nada — retrucou Marc. - Só vamos olhar o que há lá em cima.Rafael pôs-se a trabalhar na fechadura, com empenho. Primeiramente ele forçou as engrenagens num sentido e escutou o som seco

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de algo travando. Logo constatou que estava fechando ainda mais a porta.— Não é assim — disse ele e inverteu as posições das ferramentas. Rafael mordia a língua cada vez que fazia um movimento mais complicado.Daniel riu da sua expressão engraçada.— Não dá pra fazer uma cara menos feia?Rafael parou por um instante.— Depois que eu abrir essa porta vou tratar de trancar a sua boca.— Daniel, não o atrapalhe - repreendeu-o Margaret.Rafael já persistia há alguns minutos quando a fechadura fez um novo estalido e a porta inteira recuou um centímetro.— Acho que é desse jeito - ele sussurrou e esmerou-se como se enfiasse linha em uma agulha.De repente a porta voltou à posição anterior. Algo havia saído errado.Depois de um longo suspiro, Rafael começou tudo de novo.Pela segunda vez a porta afundou na parede. Rafael lambeu os lábios e pressionou o mecanismo com cuidado.— Parece que agora eu descobri como isso funciona — e a porta foi se enterrando na rocha sólida à medida que ele aplicava o movimento correto.A porta de pedra afastou-se totalmente para dentro e abriu-se para o lado, A passagem estava liberada.

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— Garoto, estou surpreso com você — disse Rhuror em tom de elogio. Rafael sorriu orgulhoso de si mesmo.Na outra extremidade da praça, um homem corria desesperadamente olhando de vez em quando para trás. O motivo da sua pressa e do seu desespero vinha do alto com as garras abertas: o Cnandauro. O homem jogou-se no chão desviando do bote e obrigando a ave a fazer uma manobra aérea para outro ataque, mergulhando. Dessa vez o fugitivo não teve a mesma sorte e uma das garras segurou-o pelo tronco, elevando-o no ar, seu corpo transformou-se imediatamente em cristal de rocha. O Cnandauro soltou a sua presa que se espatifou ao bater no chão da gigantesca praça circular, e em seguida voou para longe, para a sua vigília inexorável.— Não quero ir com vocês — disse Lughy amedrontado, afastando-se para evitar encrenca. Rhuror segurou-o pelo braço.— Ainda não fizemos nada de errado, meio-faogard — afirmou com rigor.— Ainda não, mas logo vão fazer e eu não quero estar por perto quando isso acontecer.— Ora Lughy, não há o que temer - disse Talemine calmamente. - Você estará livre antes de pegarmos as armas, confie no meu pai. - Lughy não viu alternativa e aceitou momentaneamente.— Você vai na minha frente — determinou Rhuror, empurrando Lughy.Um odor de coisa fechada há muito tempo foi sentido quando o eles adentraram o vestíbulo

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que antecedia uma escadaria que se perdia para cima, na escuridão, pelo interior da perna direita do Kelatzandrus.— Pelo ar abafado, devia estar fechada há séculos - disse Guillermo, sendo ele o primeiro a pisar os degraus.A escada escavada na rocha subia em uma espiral contínua até o topo. De tão escuro que era o caminho, foram obrigados a lançar mão das indispensáveis luminitas.Os primeiros cem metros de subida foram os mais difíceis até os músculos se acostumarem ao esforço.Uma janela quadrada feita na rocha dura aparecia em intervalos regulares de uns cinqüenta metros, deixando o ar mais respirável e permitindo entrar um pouco de claridade. Marc enfiou o tronco pela abertura e contemplou a cidade, depois inclinou a cabeça para cima.— Ainda falta muito, temos que nos apressar.Continuaram subindo cada degrau, sem descanso, em um só ritmo. O chefe dos guerreiros faogards era o mais entusiasmado, e dizia palavras de encorajamento.— Fôlego, pessoal, não é hora de desistir - incentivava, pois esperou por aquele momento por toda a sua vida. - Estamos quase na metade do caminho.— Só na metade? - reclamou Margaret, arfando entre as palavras.Após algumas janelas, a vista já se equiparava aos picos do Gavaorum. O Cnandauro planava lá embaixo à procura de ladrões.

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Se alguém se desse ao trabalho, contaria três mil seiscentos e oito degraus percorridos em uma hora e trinta e três minutos, um tempo razoável para alcançarem aquela altura.A claridade da saída trouxe alívio aos ânimos exauridos, e a lendária floresta finalmente se revelou.A floresta era composta de vegetação exuberante e entremeada de flores encantadoras. Um jardim a seiscentos metros acima da fabulosa cidade. O grandioso santuário suspenso.O vento se tornava mais intenso naquela altitude fazendo as folhagens farfalharem.Um caminho de paralelepípedos avançava e desaparecia por entre as árvores. Alguns pássaros voejavam e bicavam frutinhas pendentes de galhos vigorosos.Margaret tomou a frente e pôs-se a caminhar sem pressa.Os outros garotos correram para a borda do gigantesco disco côncavo e tiveram o privilégio de observarem Paleandrus bem do alto. O vento os empurrava levemente para trás.Brian, ciente do perigo, alertou:— Não cheguem tão perto da borda, meninos.Os jovens não se deram conta do aviso de Brian e prosseguiram admirando a vista magnífica.— Venham, rapazes! - gritou Guillermo. - Tem mais coisa para se ver desse lado.Após percorrerem uns oitenta metros no meio de árvores robustas e viçosas, o caminho terminou em uma praça ajardinada e cercada por estátuas

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de mármore que tudo indicava serem de ceiférides em eterna adoração. Ao centro, a figura de Andrus em posição de combate, enfrentando o aterrorizante Vasthaur que atingia quatro vezes a estatura do herói. Uma outra escultura bela e radiante, a da deusa Ninqa, sustentava os braços do guerreiro e o encorajava a continuar lutando.— Se esse monstro em pedra já assusta, imaginem o verdadeiro — comparou Chester, referindo-se ao Vasthaur.Por um breve instante, ocorreu a Guillermo que as Armas de Ninqa poderiam estar camufladas sob a própria escultura do guerreiro. Era uma suposição válida, mas houve contestação por parte de Roger.— As dimensões da estátua são um pouco exageradas, não caberiam em uma pessoa normal.— Por isso mesmo — argumentou o espanhol. — As armas em tamanho natural podem estar por baixo desse revestimento de pedra.— É uma boa teoria - disse Brian verificando as dobras e saliências que davam forma ao elmo. — Mas para termos certeza do que diz, precisaremos quebrar essa obra de arte.— Façam isso e o Cnandauro estará sobre nossas cabeças em alguns segundos — preveniu prontamente Lughy.Roger sentou-se em uma elevação de pedra que servia como banco aos adoradores do passado e leu novamente o que havia anotado no templo de Ninqa.

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— "Sob o peso da glória, o sangue de Paleandrus venera a sua força" — ele analisou por algum tempo e continuou: — Não vejo como essa mensagem pode ter alguma relação com a estátua.— O que pode ser o sangue de Paleandrus? - questionou Marc. — Será que um pouco do sangue de Andrus foi preservado até hoje, guardado em um lugar secreto?— Pode ser — admitiu Rhuror. — Mas se for, onde está e como ele nos indicará o local que procuramos?— Perguntas, perguntas e mais perguntas — disse Lughy. — Desistam e vamos embora enquanto podemos sair sem medo do guardião de asas petrificadas. Se destruírem qualquer bem material de Paleandrus, todos seremos mortos.— Eu poderia usar o meu martelo e acabar logo com essa dúvida — disse Rhuror, sua mão forte ostentava o cabo da arma brutal. — Mas isso seria um desrespeito à Deusa e ao herói. Portanto, digo que devemos pensar mais um pouco e se for da vontade de Ninqa, as suas armas serão encontradas.— E se a deusa não quiser se envolver com os nossos problemas? — perguntou Daniel.— Teremos essa resposta até amanhã quando o sol se pôr, então o poder das armas de Andrus estará conosco ou Paleandrus será apenas mais uma lembrança inesquecível aos nossos corações — ao dizer aquilo, Rhuror notou que o grupo náo estava completo. - Onde está o garoto Chester?

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— Aqui! — respondeu imediatamente o jovem cavaleiro. - Descobri uma coisa que os deixarão de queixo caído.Chester se referia ao que viu além do pátio que simbolizava a lendária batalha: a legítima cabeça de Vasthaur jazia amparada em uma coluna como um troféu exibido numa clareira semi-escondida por árvores de grande porte, as feições contorcidas, a última expressão de terror ao ter o coração trespassado pela espada fulminante.— É de verdade? — perguntou Margaret, como se estivesse diante de um dinossauro recém-abatido.— Claro que é - confirmou Daniel. — Não está vendo que a pele e os músculos são autênticos?— Os dentes são mesmo de metal, como nos contou Rhuror - constatou Marc pressionando cuidadosamente com os dedos, receoso que a boca do monstro se fechasse bruscamente.Daniel imaginou se tivesse que enfrentar aquela coisa, mesmo possuindo armas impregnadas de poderes divinos. Os olhos do bicho pareciam fitá-lo furiosamente e faziam os pelos de sua nuca arrepiarem.No centro da clareira, seca e derrotada, jazia a árvore detentora do coração da criatura; em seu tronco curvado e enrugado, um rasgo, uma profunda cicatriz que ficou para relembrar por onde a espada penetrou triunfante. Os galhos, escorridos pelo chão como longos cabelos, sem vida, mas ainda ameaçadores.

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Assustaram-se quando um fenófero passou por eles, pesado, movimentos lentos, indiferente, carregando um grande saco de tecido cheio de folhas e galhos secos, e logo voltou a desaparecer no meio do bosque.— O nono fenófero! - disse Rafael, reparando que havia pequenos detalhes que os diferenciavam entre si, mas a expressão nos olhos era sempre a mesma, vazia e distante.Brian arriscou-se até a beirada vertiginosa do imenso prato e perscrutou compenetrado o complexo de ruas e prédios desabitados. O vento fazia seus olhos se apertarem.O sol alaranjado iniciou seu mergulho sobre o horizonte. Era hora de descer.A noite havia chegado. As estrelas cintilavam como nunca; eram faróis espalhados pelo firmamento de Paleandrus desafiando as milhares de luzes da gloriosa cidade.Roger esticou-se confortavelmente na varanda da bela casa, auxiliado pela luz vinda de uma luminita; alternava o olhar entre o jardim escuro e perfumado e a leitura da mensagem cifrada; e lia alto e pausadamente para que Rhuror e Brian ouvissem.— "Sob o peso da glória, o sangue de Paleandrus venera a sua força". O que pode ser? - e ergueu os olhos para os companheiros, aguardando um palpite.— O "peso da glória" — disse Rhuror. - Não há nada mais pesado por aqui que o notável Kelatzandrus. Será que é tão simples assim?

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— É um bom começo — disse Roger sem se empolgar. — Afinal, o colossal Kelatzandrus representa a glória da cidade.— Mas ainda temos o "sangue" — lembrou Brian oportunamente. — E que "força" é essa? O que significa?— Essa "força" deve estar relacionada com as armas ninqanas. São os objetos mais fortes de Paleandrus e um dos mais poderosos do mundo — disse Rhuror.— Mesmo assim, a frase ainda fica um pouco sem sentido — observou Roger enquanto coçava o forte queixo. — O que é esse "sangue"?De repente uma imagem se apoderou da mente de Brian, tomando-o de empolgação. Era a mesma que ele viu do alto da estátua de Andrus.— O sangue de Paleandrus! - exclamou entusiasmado. - O que é imprescindível a Paleandrus e está em estado líquido?— A água - respondeu Rhuror, simplesmente.— É exatamente isso! - continuou Brian a expor a sua descoberta. — A água irriga toda a vegetação, faz funcionar os chafarizes, dá vida à cidade. É o seu sangue.— Acho que estou entendendo - disse Roger, no entanto Brian não deu tempo que ele continuasse falando.— Vejam como o texto agora faz sentido: "Sob o peso da glória", sob Kelatzandrus; "o sangue de Paleandrus", a água de Paleandrus; "venera a sua força", cultua, guarda as armas.— Acho que você desvendou o enigma, Brian - disse Rhuror, felicitando o amigo. - O Mondasiel

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passa bem debaixo do Kelatzandrus. As armas só podem estar lá embaixo.Tiveram um breve encontro, no dia seguinte, com o fenófero varrendo um entulho de folhas e galhos que havia podado naquela manhã. O olhar indiferente se fixou mais uma vez em Rafael, fazendo o garoto se perguntar se o ser de pedra seria capaz de pensar. Rafael jamais saberia de fato.Encontravam-se pela segunda vez na praça central, diante do maior símbolo de Paleandrus. Roger disse após estudar de um lado a outro a grande área aberta.— O rio penetra na terra uns setecentos metros vindo daquela direção, passa sob o Kelatzandrus e retorna à superfície depois daqueles prédios do lado leste. As nossas esperanças estão no subsolo como Brian deduziu. Espero sinceramente que esteja certo.Foi a vez de Brian expor seu plano.— Um bom nadador pode mergulhar no rio e seguir a correnteza para ver o que há lá no fundo. Já temos um voluntário — e desviou os olhos para Roger. - Roger irá sozinho, alguma pergunta?— Eu tenho, duas — interrompeu Marc. — E se ele achar as armas, como se livrará do Cnandauro? E o que faremos? Na certa também seremos alvos das garras da ave.— Não farei nada... por enquanto — explicou Roger. - Isso dará tempo até que vocês saiam da cidade em segurança. Lughy nos disse que o

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Cnandauro nunca vai além das muralhas de Paleandrus, mesmo para capturar um larápio.— E nunca precisou ir - disse Lughy. - O Cnandauro sempre pega a sua presa antes.Roger continuou explanando como pretendia escapar do Cnandauro.— Caso eu consiga as armas, tentarei a fuga pelo rio, mergulhando e subindo até ficar livre.— Você já imaginou o peso dessas coisas? - questionou Guillermo. — Podem arrastá-lo para o fundo do rio. Você levaria horas para atravessar Paleandrus a nado e estaria exausto no final. Correria o risco de fracassar e morrer.— Vou mergulhar e me certificar primeiro se as ninqanas estão escondidas naquele lugar. Se alguém pensar em algo, me avise.Eles se posicionaram na entrada onde o Mondasiel era engolido por um túnel rochoso. Roger despiu-se da camisa e tirou as botas, em seguida encaixou no ombro um rolo de corda e conferiu se sua faca estava bem presa. Então mergulhou, desaparecendo rapidamente na água agitada.— Ele pode se afogar — temeu Margaret. - Os rios subterrâneos são sempre perigosos.— Eu confio nele — disse Chester. — O professor Roger é o melhor nadador que conheço.— Vamos para a saída do Mondasiel no outro lado — disse Rhuror. — Por aqui ele não volta mais.Roger era puxado pelo rio em velocidade. Em vários pontos não havia como subir para respirar, a água ocupava quase todo o espaço do túnel. Somente em alguns intervalos era possível

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emergir a cabeça e puxar o pouco ar existente, as mãos fortes do nadador se agarravam como podiam na pedra escorregadia. Roger ganhava novo fôlego e prosseguia mergulhando. A escuridão era quase absoluta e ele precisou, mesmo lançando mão da luminita, tatear o percurso para se localizar. Após algumas cansativas subidas e descidas para renovar o ar dos pulmões, Roger, por fim, encontrou um grande obstáculo que tinha o formato de uma larga coluna cilíndrica que se ligava do teto ao leito do túnel submerso; envolvendo a parte superior da coluna, havia uma galeria natural onde o ar era abundante. O explorador subiu por uns segundos para respirar mais uma vez e mergulhou apalpando os lados da estrutura sem encontrar qualquer entrada, portinhola ou sequer uma simples fresta. A operação foi repetida outras duas vezes em que Roger vasculhou detalhadamente cada centímetro. Nada encontrou.Roger surgiu onde o rio voltava a correr a céu aberto, sendo ajudado por Rhuror que o tirou da água com um puxão. Ele recobrou o fôlego e relatou o que havia encontrado.— Há uma grossa coluna lisa como espelho obstruindo parcialmente o fluxo do rio. Não há nenhuma entrada, pelo menos não encontrei uma.— O que uma coluna faz no fundo de um rio subterrâneo? - perguntou Rafael com o propósito de provocar explicações.

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— Guarda coisas em seu interior, eu acho — respondeu Daniel.— Consegue calcular em que posição a coluna se encontra? - indagou Talemine a Roger.— Acho que sim. Pela distância percorrida, sou capaz de apostar que o pilar fica sob os pés da estátua de Andrus.O grupo se apressou em voltar ao Kelatzandrus.— Deve haver uma entrada no mesmo nível dessa praça — disse Brian, seus pensamentos avaliavam as possibilidades. - Há um vestíbulo que antecede a escadaria no interior do colosso, e é lá que devemos tentar primeiro.Não haviam reparado antes, mas bem na entrada do colosso, que dava acesso a escadaria, havia um disco com cerca de um metro e meio de diâmetro no piso, envolvido por dezenas de minúsculos traços perpendiculares como quando uma criança desenha um grande sol no papel. Uma tênue linha reta ia do centro até a borda da roda. Brian examinou com atenção e percebeu que a tal circunferência na realidade era uma pesada tampa de pedra precisamente cortada e encaixada no restante do pavimento. Ele forçou as frestas com a ponta de uma faca e constatou que a tampa estava tão ajustada que nem uma fina lâmina penetrava no espaço quase inexistente.— Não tem como abrir. Essa tampa é como uma rolha apertada em uma garrafa.— Tampas e portas são a mesma coisa - disse Rafael com autoridade. - Servem para bloquear

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passagens. Portanto deve existir algo que a desobstrua.O garoto correu os olhos pelas paredes e o teto. Aparentemente não havia nada que lembrasse uma alavanca, botão ou fechadura. Mas havia uma outra coisa: no teto, bem acima de suas cabeças, um outro círculo menor de uns setenta centímetros de diâmetro, exatamente sobre o disco encaixado no chão; era adornado por um baixo relevo da deusa Ninqa apontando para uma circunferência ainda menor; inscrições circundavam o disco que envolvia a deusa.— Alguém consegue ler? - perguntou Rafael mostrando a figura no teto.— Outra vez gazivian antigo — disse Lughy, e inclinou bem a cabeça para fazer a leitura. — "Rodopiando como um redemoinho o sono se desfaz quando o sangue se afasta, o sol levanta duas vezes para Calcávna e se deita apenas uma vez para o distante mar enfurecido, por três vezes em Calcávna a brisa verdejante traz de longe o seu frescor e as três mãos, em sacrifício, por quatro vezes no distante mar enfurecido, poupam o mundo de seu trágico fim".— Rodopiando como um redemoinho o sono se desfaz quando o sangue se afasta... — tentou repetir Brian. - Esse enigma é ainda mais confuso que o anterior.Roger tratou de anotar cada palavra em seu papel amassado.— Não há tempo a perder — disse ele agachando-se e apoiando a folha no chão para que todos lessem. — Rodopiando como um redemoinho o

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sangue que se afasta... novamente o rio. Pode ser que o rio seque ou... mude seu curso - ele ergueu os olhos e dividiu sua dúvida. - Será isso?— Teremos que fracionar o texto se quisermos decifrá-lo de uma vez - sugeriu Guillermo, ele olhava para o céu lá fora. - O nosso tempo está acabando.Brian fitava o teto quase sem piscar e proferiu.— Não é o rio.— O que disse? - perguntou Roger.— O sangue, não tem nada a ver com o rio. Notem aquele pequeno círculo para onde o dedo de Ninqa aponta — Brian fez uma pausa dando tempo para refletirem um pouco e continuou: - E Wengarel, a lua de sangue. Vejam agora a outra parte da frase: o sono que se desfaz pode significar que as armas que estão ocultas como se dormissem, podem despertar se uma seqüência de acontecimentos se concretizar. Agora prestem atenção como fica se a frase for interpretada de outra maneira: As armas serão trazidas à luz quando Wengarel se afastar.— Afastar Wengarel? - surpreendeu-se Margaret. — Como faremos isso?— Não a verdadeira Wengarel - disse Brian, e solicitou auxílio. - Rhuror, o seu martelo consegue pressionar o pequeno círculo ali no teto?Rhuror não pensou duas vezes e fez o que Brian solicitou. Sua mandíbula se contraiu com o esforço.— Não acontece nada — disse o faogard concluindo que estava usando o método errado.

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— Se afastem um pouco. Quero tentar do meu jeito.Rhuror empunhou o martelo e passou a girá-lo mais e mais rápido até que a arma se chocasse violentamente contra o teto de pedra.O disco rochoso entrou no teto com o impacto da martelada certeira e destravou o disco maior aos pés de Rhuror, desequilibrando-o e quase o fazendo cair no chão.A tampa redonda passou a girar para os dois lados com facilidade como se suas engrenagens tivessem sido azeitadas no dia anterior.Ainda havia mais coisas a fazer antes que o disco cedesse e liberasse a passagem.— São coordenadas - disse Rafael após estudar o desenho no chão.Todos se voltaram para ele.— Percebem? Os traços curtos em torno do disco são coordenadas, que se forem alinhados em uma seqüência correta com o risco que serve de guia e que sai do centro da roda, farão o sistema todo destravar a entrada para o interior da coluna. Só pode ser isso.— Como se fosse o segredo de um cofre - entendeu Marc perfeitamente.— Mas ainda falta a solução do enigma — lembrou Margaret, oportunamente.— Leia novamente a frase, Roger - pediu Brian.— "Rodopiando como um redemoinho, o sono se desfaz quando o sangue se afasta, o sol levanta duas vezes para Calcávna e se deita uma vez para o distante mar enfurecido; por três vezes em Calcávna a brisa verdejante traz de longe o

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seu frescor e as três mãos, em sacrifício, por quatro vezes no distante mar enfurecido, poupam o mundo de seu trágico fim". A primeira parte está resolvida.Brian apoiou a testa nas pontas dos dedos enquanto olhava para o vazio, pensativo.— "Rodopiando como um redemoinho o sol se levanta duas vezes e se deita". Mas é óbvio! Leste e oeste! Leste para o continente de Calcávna e oeste para o mar enfurecido da costa junto a Nova Europa no extremo ocidental do continente. As duas primeiras coordenadas em que o disco deve se posicionar.— Mas ainda resta algo - salientou Chester. — O redemoinho que rodopia.— O sentido em que o disco deve ser girado - deduziu Margaret. - Mas é para a esquerda ou direita?— Redemoinho, redemoinho... Como se dá a rotação dos redemoinhos nesse lado do continente? - quis saber Guillermo, lançando um olhar interrogativo a Talemine.— Nunca parei para observar — disse a faogard. - Alguém sabe?— Fazem como o voo dos triônivos, as grandes aves de rapina das montanhas. Giram assim - respondeu Lughy, rodopiando o dedo indicador no sentido horário.— Então é isso - determinou Brian sem desperdiçar mais o tempo precioso. — Faremos como essas aves que Lughy mencionou. Sempre no sentido dos ponteiros do relógio. E lançou-se a mover o disco.

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No exato momento em que o primeiro alinhamento foi feito, com o disco passando duas vezes pela minúscula marca que indicava o leste, ouviu-se um clique surdo no subsolo. A teoria proposta parecia estar funcionando. O segundo alinhamento para o oeste deu igual resultado, produzindo um ruído de linguetas se afastando de seus encaixes. A tampa circular estava iniciando o seu intrincado destravamento.— "A brisa verdejante traz de longe o seu frescor" - prosseguiu Roger com a leitura.A jovem guerreira estreitou os olhos e torceu levemente a boca antes de falar.— São os ventos setentrionais que trazem a umidade das grandes florestas. Os mesmos que trouxeram as chuvas a Paleandrus durante aquela noite. Girem a roda três vezes e estabeleçam a marca guia no norte.Camine acertou em cheio. Ruídos de mecanismos trabalhando foram ouvidos novamente. Então Roger passou a ler a próxima parte do enigma.— "E as três mãos, em sacrifício, por quatro vezes no distante mar enfurecido, poupam o mundo do seu trágico fim". O enigma termina aí — lembrou Roger.Todos se entreolharam, buscando um no outro a conclusão do difícil texto hermético, exceto Rhuror que alisava a espessa barba rubra.— Acho que sei o que significa essa passagem final. As três mãos representam os deuses que se sacrificaram, enclausurando-se no Cenoteorus, a torre sagrada que impede que Wengarel

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despenque sobre nós. O Cenoteorus é a última coordenada que resta.— E você sabe precisamente onde fica a torre, Rhuror? - perguntou Roger.— Em algum ponto entre o nordeste e o leste.— Não é o suficiente - insistiu Roger. — Precisa ser exato.— Nesse caso, eu não posso ajudar — disse o guerreiro de pronto, e completou: - Mas o mapa desenval pode.— O mapa! - exclamou Daniel. - Como pudemos esquecer dele?! - e correu o mais rápido que pôde até o alforje no cavalo.O mapa foi estendido no piso, bem no centro do disco, e Rhuror pronunciou a palavra Cenoteorus com seu sotaque faogard; imediatamente a bússola desenhada no tecido grosso se movimentou impulsionada por uma força sobrenatural para uma direção específica e estabilizou-se, apontando com exatidão. Obedecendo as orientações vindas da bússola, o disco foi mais uma vez girado suavemente, uma, duas, três, e na quarta vez parou definitivamente na coordenada correta. Um som forte de rodas dentadas se acomodando surgiu como se viesse de todos os lados, deixando os aventureiros atentos para qualquer surpresa. O disco, que na verdade era um sólido cilindro de pedra, passou a afundar rapidamente, só parando cerca de seis metros abaixo, revelando uma câmara de forma circular, o interior da coluna que Roger havia encontrado no rio subterrâneo. Uma luz tênue e fria emanava do salão oculto e que deveria estar

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lacrado há muito tempo. Reentrâncias entalhadas no túnel vertical serviam de escada para o interior do compartimento.Brian pulou na frente e chegou ao fundo da sala que media algo em torno de seis metros de diâmetro.De um dos lados da parede coberta de desenhos que retratavam, em cenas grandiosas, a luta titânica entre Andrus e o Vasthaur, surgia a imagem esculpida da deusa Ninqa em nobre pedra branca; seus braços estendidos para frente sustentavam uma pesada bandeja oblonga feita em mármore esverdeado e coberta com uma riqueza de detalhes; e sobre a bandeja, as mais destrutivas armas conhecidas: a Espada, o Escudo e o Elmo, usados pelo próprio herói Andrus há milhares de anos numa batalha que se tornou uma das lendas mais exaltadas de todas as épocas.As armas que repousavam sob a proteção da deusa, eram tão negras como o negro portal de pedra que abria passagem entre os dois mundos. Brian especulou se os dois eram feitos do mesmo material indestrutível, tão grande era a semelhança.— Não toque nelas! — advertiu Lughy com veemência, quando Brian ameaçou esticar a mão. — Se o fizer, o Cnandauro não permitirá nossa saída.Os aventureiros rodearam as Ninqanas como se fossem adoradores de Cristo, diante da manjedoura.

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— Não demora muito o dia acaba — lembrou Guillermo, tirando-os do transe. - Resta-nos menos de uma hora.— Vocês devem ter um belo plano para se apoderarem dessas coisas e ainda sairmos vivos de Paleandrus - disse Lughy em tom de incredulidade.— Até então não havia um plano definido - disse Roger enquanto avaliava os contornos da câmara de paredes recurvadas. - Mas agora já sei como fazer.Lughy foi surpreendido pela resposta de Roger, suas sobrancelhas levantando numa expressão de decepção e desânimo. Até aquele instante, o meio-faogard ainda alimentava alguma esperança de que seus companheiros temporários desistissem daquele ato insano. Roger prosseguiu expondo o seu recente plano.— Não se preocupe, Lughy, você estará longe daqui quando colocarmos as mãos nessas relíquias.Enquanto tocava cuidadosamente as paredes, Roger mantinha o olhar voltado para cima, para a junção entre as paredes e o teto liso.— E um plano arriscado, mas é viável - ele pronunciou como quem calcula minuciosamente a solução para um grande problema.— O que tem em mente? - quis saber Guillermo, cronometrando mentalmente cada segundo.— Existe uma câmara de ar que circunda a coluna por fora. Se conseguirmos abrir um buraco nessas paredes grossas, acima da linha d'água, o rio não inundará esse compartimento e eu posso

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sair nadando para fora de Paleandrus como havia imaginado.— E como pretende carregar os três artefatos de pedra? - questionou Guillermo oportunamente. - O peso deles irá dificultar que você nade rapidamente e, além disso, a ave de pedra estará sobrevoando a sua cabeça. Você não terá agilidade nem força suficientes para nadar e, ainda por cima, evitar o animal enfurecido.Roger emudeceu com as palavras de Guillermo, o amigo estava certo. Coube ao próprio espanhol trazer a solução.— Eu vou junto — disse ele, resoluto. — Sei nadar muito bem e poderemos dividir o peso da carga. De nada nos adiantará se você fracassar. Perderemos as armas e a sua ajuda pra sempre.— Guillermo tem razão — intercedeu Brian. — Mas se o Cnandauro tocar em vocês, o prejuízo será muito grande para o nosso grupo.— De que jeito imagina abrir caminho por essa coluna? — perguntou Rhuror, despejando a força de seu martelo contra a parede duríssima, sem conseguir arrancar sequer um minúsculo fragmento.Roger pensou um pouco antes de responder.— Lembro-me que quando você nos contou sobre a lenda de Andrus, disse que as Ninqanas eram indestrutíveis.— Sim, indestrutíveis! — reafirmou o guerreiro.— Era essa confirmação que eu precisava. Se for como você diz, a Espada pode cortar qualquer coisa - concluiu Roger com um brilho no olhar.

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— Já não nos resta mais tempo - anunciou Guillermo com pressa. - Precisam ir agora.— Estaremos esperando na saída leste da cidade. Se apressem, pois quando escurecer, se tornará mais difícil achar a saída. Boa sorte — e foram as últimas palavras de Brian antes de subirem e deixarem Guillermo e Roger sozinhos na câmara cilíndrica.— Alguns minutos, apenas alguns minutos é o que precisamos antes que eles se afastem do colosso e o Cnandauro não os tome por ladrões - murmurou Roger, e esticou um olhar para Guillermo. - Está com medo, espanhol?— Medo? Oh, não! Só um pouco apavorado! O que você esperava, Roger? Que eu ficasse radiante de alegria por transformar minha cabeça em alvo para uma enorme ave de rapina feita em pedra? - Guillermo lançou um olhar cheio de dúvida para Roger. - E você, não está com medo?Roger balançou a cabeça afirmativamente.— Ter medo é bom, nos mantêm vivos.Eles aguardaram mais um pouco em silêncio.-Acho que já esperamos o bastante - disse Guillermo, finalmente. — Você fica com qual? - disse ele, referindo-se à bela equipagem de batalha.— Fico com a Espada e o Elmo. Você carrega o escudo.Roger cerrou os punhos antes de tocar nas poderosas armas negras. Sabia que quando isso acontecesse estariam violando objetos sagrados e não haveria mais volta; ficariam condenados a serem perseguidos implacavelmente pelo temível

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Cnandauro. Quando sua mão direita envolveu o cabo da Espada, ouviu-se um horrível e estridente grito vindo de fora. O Cnandauro sentiu instantaneamente a profanação acontecendo. Com o outro braço, Roger agarrou o Elmo e em seguida Guillermo abraçou o Escudo, dizendo:— É pesado como pensei, mas acho que dá pra levar.Roger subiu na bandeja apoiada pelos braços da deusa e de lá escalou um belíssimo ornamento arqueado sobre a cabeça da divindade, dali, posicionando a Espada, apontando-a para a parte alta da parede, e lançando o braço para trás como um guerreiro prestes a atingir o inimigo.— Reze para que aquela lenda seja verdadeira, Guillermo — disse e logo desferiu um duro golpe, a lâmina batendo fortemente na coluna.Um rasgo se abriu diagonalmente sobre a superfície de rocha, fazendo estilhaços voarem pelo salão circular.Um grande sorriso de satisfação nasceu no rosto de Guillermo.— Mais meia dúzia de pancadas como essa e estaremos nadando no Mondasiel, Roger.— Agora não me surpreende que Andrus tenha degolado o monstro com essa espada - observou Roger enquanto preparava-se para golpear novamente. - Senti como se a parede fosse de papelão.Uma série de golpes depois e havia uma abertura de um metro de altura por um metro e meio de largura.

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As fustigantes águas do rio agitavam pelo lado externo da coluna quando Roger passou a metade do corpo pelo buraco. Se a parede tivesse sido quebrada quinze centímetros mais para baixo, a água se derramaria para o interior da coluna.Roger saltou novamente para dentro e deu as últimas orientações ao amigo. Disse que a corrente era forte e que aquilo os ajudaria a nadar com velocidade até o rio voltar à superfície; aconselhou Guillermo a armazenar bastante ar nos pulmões, pois em vários pontos a água apressada ocupava todo o túnel, roubando-lhes a chance de respirar.— Suba na frente - disse Roger. — Eu o ajudo com o Escudo.Roger deu mais uma olhada para a imagem de Ninqa que parecia observá-lo com uma antipatia intensa nos olhos.— Perdoe-me, Deusa - disse ele com sincera humildade. - Estamos fazendo isso por uma causa justa e honesta. Um dia eu volto para devolver o que é seu. Eu prometo.Ele escalou a parede e juntou-se a Guillermo que quase não conseguia se equilibrar no pouco espaço existente. O seu coração estava disparado quando falou para Guillermo:— Eu pulo e você vem em seguida. O fluxo forte do rio vai nos impulsionar para longe.Um outro grito ainda mais estridente fez Guillermo achar que os seus tímpanos iriam explodir. O Cnandauro havia enfiado a cabeça ameaçadora pela entrada localizada no pé do

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Kelatzandrus, mas o seu corpo avantajado não conseguia passar pela porta. A ave forçava a passagem, em desespero e ferocidade.Foi então que Roger se atirou no Mondasiel e Guillermo fez o mesmo logo em seguida.As Ninqanas já não pareciam tão pesadas em meio às águas em turbilhão. Era difícil imaginar que objetos tão leves tivessem tamanho poder de devastação.O corredor de águas estava acabando e em pouco tempo, Guillermo e Roger ficariam em ambiente desprotegido com o Cnandauro que pressentiu a fuga e levantou vôo batendo raivosamente o seu pesado par de asas.O rochoso teto protetor havia terminado e os dois se viram a céu aberto. O sol havia se escondido por trás das montanhas do Gavaorum e a coloração do dia ganhou uma tonalidade cinza-azulada; nuvens opacas viajavam contra o Armamento que mostrava suas primeiras estrelas ganhando o lado leste.A qualquer momento a gigantesca ave poderia surgir e se arremessar contra eles.— Respire e volte a mergulhar - disse Roger a Guillermo, com a voz entrecortada quando subiu para pegar mais ar.E permaneceram nadando alguns metros sob a água para dificultar que o Cnandauro os localizassem.Guillermo imaginou se o pássaro fantástico necessitaria de olhos para achá-los. Mas os seus pensamentos foram interrompidos quando ele viu uma das garras afundar violentamente bem

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ao seu lado. O Cnandauro investiu sobre Guillermo como uma ave pescadora que almeja agarrar o seu peixe. Guillermo mergulhou ainda mais fundo, entretanto, ele não agüentaria permanecer por muito tempo submerso. Era morrer pelas garras da imensa ave ou morrer afogado.Roger tentou algo para despistar o Cnandauro e chamar a atenção para si, dando oportunidade para que Guillermo pudesse respirar. Mostrou-se a criatura, acenando a Espada e provocando com gritos que saíam engasgados e cansados.As asas, revestidas de longas placas de pedras brilhantes, impunham medo e respeito quando sobrevoavam mais de perto. Era hora de Roger mergulhar de novo.O Mondasiel os ajudava expulsando-os para leste, mas a força do rio foi se reduzindo quando as suas margens se alargaram, tornando Roger e Guillermo alvos fáceis.— Os canais! - berrou Roger.Os canais eram estreitos e se ramificavam por entre as ruas e templos; um engenhoso complexo de fornecimento de água que possibilitava que as torneiras das casas fossem abastecidas e os chafarizes funcionassem indefinidamente. Os dois fugitivos se desviaram para um deles que corria no sentido sul.As garras afiadas roçaram fortemente o Escudo de Guillermo em outro ataque. Se fosse uma peça comum, o Escudo seria atravessado como tesoura que fura o papel fino.

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O canal também não oferecia proteção alguma e o Cnandauro sabia muito bem disso. A grande ave voou alto e fez uma grande curva no ar preparando o bote definitivo. Roger percebeu a manobra e gritou a Guillermo que nadasse mais um pouco a fim de se esconderem em um estreito aqueduto que alimentava uma das desertas avenidas residenciais. Eles se enfiaram pelo encanamento rijo e se encolheram com água cobrindo-os até o pescoço. Estavam totalmente exaustos e o peito de Guillermo doía, suplicando por oxigênio.— Estamos... encurralados - disse ele, a frase não saindo de uma vez.Roger examinou o aqueduto escuro que se afunilava e impedia que seguissem adiante. Por fim, comentou sem ânimo.— Poderíamos nos valer da força da Espada para abrirmos um túnel além dos muros da cidade, mas levaríamos semanas e acabaríamos morrendo de fome e frio.O Cnandauro unhava a boca do aqueduto, arrancando fragmentos das bordas e alargando o espaço para abrir caminho até que suas garras pudessem entrar. Guillermo e Roger se comprimiam no fundo.— Parece que chegamos ao fim, companheiro - observou Guillermo enquanto desviava-se das unhas do animal que passavam a centímetros de suas pernas encolhidas.Roger não queria aceitar a derrota e espetava o Cnandauro com a ponta da Espada de Ninqa. A estocada parecia não surtir muito efeito no ser

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extraordinário criado pela magia suprema da deusa. E as unhas abriam e se fechavam convulsivamente, buscando suas vítimas acuadas.Não havia muito espaço no interior do aqueduto. Não havia nada que pudessem fazer. Era esperar a morte, lutando até o fim.Roger agarrou com força o pingente de ouro gravado com a insígnia sagrada de Ninqa e implorou por misericórdia, murmurando durante o pouquíssimo tempo que lhes restava.— Ajude-nos, senhora. Temos um bom propósito no que estamos fazendo. Sabe que há verdade nas minhas palavras - e ficou ali, em silêncio, a água sendo agitada pelas ferozes garras, agredindo seus olhos.Inesperadamente, os crocitos aterrorizantes do Cnandauro cessaram e a garra insana recolheu-se desaparecendo na escuridão, e por último se ouviu um gigantesco bater de asas afastando-se na noite que cobria a cidade sagrada.Roger e Guillermo cruzaram um olhar de espanto e dúvida, e por um momento avivaram a audição para um provável ressurgimento do feroz caçador alado.Tudo continuava muito quieto um minuto depois.— Será que ele foi embora? — cochichou Roger, os olhos grudados na entrada do aqueduto que exibia suas bordas destruídas.— Quero pensar que sim - arriscou Guillermo com cautela. - Ele não desistiria depois de nos encurralar e ficar tão perto de recuperar as três peças de maior valor de Paleandrus. Algo o

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deteve. O que você fez quando sussurrou aquelas coisas, uma oração?— Mais que isso — disse Roger. — Acho que assumi um compromisso com a própria deusa Ninqa, e ela aceitou.Roger esfregou o peito sentindo o pingente entre a roupa e a pele, e comentou:— Essa pequena medalha carrega um tipo de poder grandioso e creio que foi isso que nos salvou.— Não sei se estamos realmente salvos - duvidou Guillermo. — Mas só há um meio de saber.E se arrastou pelo aqueduto, esticando a cabeça cuidadosamente para fora; só viu algumas estrelas surgindo e desaparecendo entre as nuvens e o curso do canal que transportava calmamente as águas limpas vindas do Mondasiel.— O que se faz numa hora dessa? - perguntou-se Guillermo, manifestando receio.— Confia-se na intuição - respondeu Roger, jogando-se para fora do aqueduto. - Vamos sair daqui.Roger e Guillermo nadaram até a margem do canal e subiram para o chão firme e seco adornado por canteiros bem cuidados, certamente obra de um dos habilidosos fenóferos.A cidade se iluminara com luminitas espalhadas por todos os cantos. Olharam em volta e para cima e náo sentiram mais a presença do Cnandauro.

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— Se o bicho voltar não teremos mais onde nos esconder - observou Guillermo quando passaram para uma avenida larga, rumando apressadamente para o portão leste, e os pingos de suas roupas encharcadas molhando o caminho.Andaram pelas ruas desertas durante quase uma hora, quando finalmente avistaram o grande arco da saída oriental.— Falta muito pouco — disse Guillermo, aflito, o coração latejando descompassado. — São em momentos assim que as surpresas aparecem, como nas histórias de terror que eu lia quando ainda era menino.— Pense em algo bom e agradável — recomendou Roger, os olhos correndo de um lado ao outro com suspeita.— Roger.— O que é?— Algo bom e agradável é grande e tem asas?— Do que você está falando? — perguntou Roger se colocando em alerta.— Estou falando daquilo lá em cima - disse Guillermo apontando com um gesto de cabeça.O Cnandauro os observava do alto da muralha que protegia Paleandrus, os olhos da criatura sobrenatural refletindo, em vermelho chamejante, as luzes da noite.— Mantenha a calma agora - aconselhou Roger, ele mesmo segurando o seu nervosismo. Se a ave resolvesse atacar, eles estariam perdidos.— Você acha que devemos correr? - indagou Guillermo, medindo a distância, calculando uns

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cem metros em linha reta.— Não acho uma boa idéia. Continue andando... calmamente.Os dois amigos deram mais alguns passos e Guillermo insistiu no assunto.— Acho que dá pra correr. Falta pouco agora. Uma boa corrida e...— Não, não correremos - disse Roger com impaciência. - Cruzaremos aquele portão como estamos caminhando agora: sem pressa e naturalmente.Ainda faltavam cerca de cinqüenta metros quando o Cnandauro abriu seu bico recurvo e emitiu um estrondoso grito que fez Roger e Guillermo estremecerem. Num impulso, a ave saltou na direção dos aventureiros num vôo rápido e arrebatador. Não havia mais para onde fugir e os dois se jogaram no chão para escapar das garras em gancho. O Cnandauro planou a dois metros de suas cabeças e voou como um relâmpago para algum lugar a noroeste da cidade, desaparecendo na quietude noturna de Paleandrus.Eles nunca saberiam, mas naquela mesma noite, um ladrão de pouca sorte seria convertido em cristal de rocha e seus diminutos pedaços, recolhidos por algum fenófero de semblante frio e sem emoção.Seus amigos os aguardavam junto a um bosque de mevoronas, árvores de troncos altos, que dão flores alaranjadas e frutos azedos como limões, comumente empregados na medicina do continente cadecaliano.

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Naquela noite puseram-se a caminho das planícies do leste.

Capítulo 32A PEDRA DE ÁGATA

Além do território de Paleandrus, estendiam-se as vastas planícies da região do Venactane, entrecortadas por pequenos bosques e rios vagarosos.O Venactane era terra neutra, não pertencendo a ninguém, e sendo considerado um lugar mágico determinado pela vontade do deus Zanqeon, o protetor dos animais. Ouvia-se dizer de seres fantásticos vistos vagando por ali. Entretanto, ninguém se atrevia a caçá-los ou a molestá-los, temendo que Zanqeon lançasse uma terrível maldição por até nove gerações do infeliz. Este seria o implacável castigo imposto pelo severo deus irmão de Ninqa.Desde Paleandrus, os viajantes ladearam a margem esquerda do Mondasiel que evoluía até as grandes cachoeiras e despencava trinta metros, alongando-se para o interior das planícies, dali, abastecia outro grande rio navegável: o Eudakgian, que descia para sudeste cortando as ricas e extremamente férteis terras de Drallêngia.Os garotos retomaram o uso das vestes com profundos capuzes para confundirem os arkoprômidas, caso estes aparecessem.Quando a noite chegou, e todos se reuniram em volta da fogueira, Rhuror passou a falar sobre as

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lendas do Venactane. Contava das criaturas encantadas que só eram encontradas dentro dos bosques, e dos grandes dragões que bebiam do Eudakgian, antes de voarem para um misterioso vale entre as montanhas. Lughy sabia de algumas histórias e fez questão de relatar uma experiência pela qual passara há alguns anos ao vaguear solitário pelo território sagrado de Zanqeon.- Numa noite fria, estava eu dormindo enrolado em meu cobertor, e os únicos sons que se podia ouvir eram o crepitar da lenha no fogo e o gemido do vento correndo pelas folhagens. Um nevoeiro espesso dificultava enxergar as estrelas e as árvores em torno da clareira a qual eu me recolhia — enquanto falava, os olhos de Lughy refletiam a fogueira num efeito irreal. - Então, um ruído despertou-me no meio da madrugada. Olhei a minha volta e nada vi; pensei que tivesse sonhado aquilo e cerrei os olhos, mas o sono não veio mais. Eu tinha um pressentimento ou uma certeza que presenciaria algo que jamais se apagaria da minha lembrança. E foi o que aconteceu: o ruído voltou mais forte, mais perto de mim. Soava como passadas lentas sobre as folhas caídas no solo. Meu sangue gelou e não tive coragem de abrir os olhos naquele momento, mas a minha curiosidade forçou as minhas pálpebras se descolarem e obrigar-me a testemunhar o inacreditável.Lughy interrompeu-se e desviou o olhar, fixando-o em Marc que estava mais perto.

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- Sabe quando você abre os olhos, só um pouquinho, bem pouquinho, para que seus pais náo descubram que você ainda não dormiu, e assim evitar uma reprimenda?- Ah, sim! Já fiz isso muitos vezes quando ainda era um garotinho. Minha mãe exigia que eu dormisse cedo para não me arrastar de sono até a aula no dia seguinte - reconheceu Marc, achando engraçado e familiar Lughy mencionar aquilo.- E foi isso o que fiz — continuou o meio-faogard. — Semicerrei os olhos e finalmente vi algo que arrepiou todos os pelos do meu corpo. Aquela coisa estava muito, muito perto do meu rosto, mas tão próxima que eu podia ouvir e até mesmo sentir a sua respiração quente.O suspense causado por Lughy fazia os corações dos ouvintes acelerarem.- O surpreendente ser me observava com curiosidade, o seu impressionante rosto quase tocava o meu. A criatura sacudiu meu ombro para que eu acordasse, e era tudo o que eu desejava que ela não fizesse. Quando pude vê-la de todo, tive vontade de correr de pavor. No primeiro momento identifiquei que era um ser do sexo feminino, mas diferente de todas as mulheres que eu havia encontrado. Acham esquisito eu ter um olho de cada cor? Deviam ver aquilo. A absurda criatura tinha brilhantes esferas azuis no lugar dos olhos; safiras, se conheço bem essas belíssimas jóias, parcialmente encobertas pelos longos cabelos brancos como a mais pura neve do inverno mais

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congelante. É isso mesmo que vocês ouviram. Acreditem. Sinistros olhos de puríssimas safiras me espreitando. E não pensem que ficava por aí, pois do seu tronco sem braços destacavam-se não apenas duas, mas quatro pernas, duas na frente e duas logo atrás, dando-lhe um movimento semelhante ao dos quadrúpedes - Lughy olhou muito sério para a platéia. - Mas não eram patas como a dos cavalos ou algo assim, eram pernas de mulher. Sei disso, pois pude ver muito bem os seus pés descalços saindo por debaixo da túnica de tecido roto. Cheguei a imaginar que fosse um pesadelo, mas não era.Lughy parou um pouco de falar e contemplou o bosque escuro como se a qualquer instante pudesse ser visitado novamente pelo insólito habitante das terras do Venactane.- Contudo, todo o meu temor se evaporou quando ouvi a sua bela voz. Falava como se entoasse uma linda canção só para mim. Como por encanto, ela deixou de se parecer como um monstro assustador e fez meu coração se abrandar. As mais antigas lendas deram um nome a ela: Dasfonide, aquela que lê as estrelas. Acho que simpatizou comigo pelos meus olhos coloridos, incomuns, como os dela — disse por brincadeira. - Conversamos por um tempo que até hoje não sei definir se foram meros minutos ou muitas horas. Por último, ela ofereceu-se para ler o meu futuro no brilho das estrelas, em que consenti imediatamente. Mas deu-me uma condição que me causou espanto. Veria meu destino se eu lhe desse de comer. Parecia muito

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fácil se eu não tivesse que mastigar o alimento para ela, pois Dasfonide não possui nenhum dente e se não fosse daquele jeito, ela simplesmente não comeria - Lughy lembrou-se com desgosto da condição de sua impressionante anfitriã. — Como não tem as mãos para pegar e preparar a comida de modo que ela fique cremosa como mingau para a sua boca desdentada, Dasfonide pode ficar meses ou anos sem se alimentar, só vivendo da água dos rios e da luz dos corpos celestes.Lughy afastou um inseto voador que o incomodava insistentemente, apossou-se de alguma comida e começou a triturar e amassar todos os ingredientes em uma tigela, ao mesmo tempo em que falava.- Virei-me para uns tubérculos assados esquecidos ao lado da fogueira e passei a mastigá-los como um animal ruminante. Achei tudo muito nojento, mas ela simplesmente não se importou e abriu a boca para receber a papa de comida que eu havia preparado com os meus dentes e a minha saliva. Dasfonide devorou o alimento amolecido como se saboreasse a mais requintada ceia oferecida ao mais digno dos reis. Por fim, ela fitou-me agradecida.- Não entendo por que Zanqeon a fez assim - protestou Meg, sentindo pena. - Como pode fazer uma criatura sua passar por tantas dificuldades?- Mas não foi obra de Zanqeon - disse Lughy em tom de reparação. - O monstro em que Dasfonide se transformou foi uma das muitas vinganças de Arkopromis cometida contra seus irmãos.

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- Você havia dito que Dasfonide leria o seu destino, senhor Lughy - lembrou Chester.- E foi exatamente dessa forma que aconteceu. Notei que o nevoeiro havia sumido como se uma boca gigante o soprasse para longe. Os cristalinos olhos azulados de Dasfonide voltaram-se para o céu e se perderam por um tempo que não consigo determinar. Seu olhar encantado vagava pelo infinito e parecia se fixar ora em uma, ora em outra estrela mais brilhante.Tive naquele momento, a agradável sensação de que flutuava ao lado dela entre as constelações mais distantes.Lughy observava a fogueira e parecia não estar mais ali. Suas lembranças o afastaram para muito longe. Suavemente, como se acordasse de um sonho maravilhoso, ele seguiu narrando sua experiência.- Dasfonide me falou do que enxergou nas luzes estelares. A sua aparência já náo me causava nenhuma aversão. Ao final, a filha de Zanqeon revelou-me que um dia eu salvaria a vida de uma pessoa... uma pequena e bela menina.- Não pense que é com você - cochichou Daniel para a irmã. — Você já não é mais pequena, e tenho minhas dúvidas se é bela - Margaret devolveu um olhar de desprezo e achou uma boa oportunidade para iniciar outra discussão, mas preferiu adiar a contenda.Lughy contemplou o céu com um ar de grande interrogação e deu seqüência ao relato de sua extravagante experiência.

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- E é só? Perguntei a ela, com alguma decepção. É só o que precisa saber. Disse-me ela com uma misteriosa simplicidade. E aquela foi a única vez em que eu a vi. Todavia, ainda pude apreciar seu canto inebriante espalhando-se pelo ar fresco na noite seguinte. Eu sentia como se toda a planície entoasse lindas canções através da sua voz. Vaguei pelos bosques escuros e campos abertos banhados pelo brilho das estrelas, em buscas inúteis. Ela nunca mais apareceu para mim.O meio-faogard baixou o olhar, viu como havia transformado o alimento em uma substância cremosa, fácil de se deglutir, e então desejou com melancolia.- Gostaria de falar com Dasfonide, só mais uma vez... e poder oferecer-lhe essa refeição.Alguém que tem o dom de interpretar as estrelas pode ter a resposta para muitas perguntas, e Roger saberia o que fazer se tivesse uma única chance com a vidente de múltiplos olhos.A noite se tornou muito escura com o forte nevoeiro que se formou repentinamente durante a madrugada. A fogueira e as luminitas não bastavam para iluminar as árvores mais próximas e nem o córrego que passava silenciosamente e se perdia pela mata. A bruma envolvia o acampamento de tal maneira que Roger, o único acordado, na função de sentinela, tinha a clara impressão que nada mais havia no universo a não ser o que sua vista detectava.No início era apenas um som muito distante que se confundia com o vento da planície, mas aos poucos, foi aumentando, e Roger pôde distinguir

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uma voz feminina que seduziu os seus ouvidos. Uma música cantada em língua estranha, gazivian antigo, primitivo provavelmente. Ele ficou atento por um ou dois minutos, esperando que o ser surgisse do meio da névoa branca que flutuava como fantasmas, iluminada pelas luzes do acampamento.- É ela - sussurrou Lughy, despertado pelo canto de Dasfonide.Roger abandonou o seu posto e caminhou com curiosidade e fascinação para o interior do bosque.- Não vai achá-la se ela não quiser — murmurou Lughy, livrando-se do cobertor, agarrando a tigela cheia de comida pastosa e seguindo Roger, cautelosamente para não acordar os outros.Roger caminhou pelo matagal, querendo avidamente se deparar com a criatura que poderia dizer alguma coisa que o levasse a Helen. No entanto, a música de Dasfonide vinha de todos os lados, confundindo-o.O vigoroso professor atravessou o pequeno bosque e contemplou as grandes planícies límpidas do Venactane. O céu brilhava com milhões de estrelas e Wengarel, esta reinando em absoluto no zênite.Algo tocou o braço de Roger e o fez virar-se rapidamente. Era apenas Lughy.- Desista - aconselhou. — Esgotaríamos nossas vidas vagando pelo Venactane e não a encontraríamos sem o seu consentimento.- Pois eu quero falar com ela - disse Roger, perseverante. — Dasfonide deve saber de Helen.

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Sinto que ela pode me mostrar um caminho, Lughy - ele estancou o passo de repente, lançando um olhar esperançoso ao meio-faogard. - Agora sei que posso recuperar em seu mundo a mulher que perdi no meu.No fundo, Lughy acreditava que algo inacreditável seria possível, por isso não contestou as palavras do seu companheiro de ronda noturna.Roger andava de um lado ao outro como se estivesse perdido em um labirinto de sons maviosos e arrebatadores, enganado pela voz entorpecente de Dasfonide. Lughy tinha razão ao afirmar ter perdido a noção do tempo quando esteve em contato com a filha de Zanqeon. Os passos de Roger e Lughy afundavam na grama orvalhada e o frio, mais intenso, arrancava vapores finos de suas narinas. O tempo tornou-se algo incerto como se existisse entre o sonho e a realidade.Aos poucos, Roger caiu em si e perdeu as esperanças.- Daqui a pouco vai amanhecer. É melhor voltarmos ao acampamento, já devem ter dado por nossa falta — sua voz saiu triste.O nevoeiro se adensou ainda mais em torno deles, tornando difícil reencontrarem o caminho de volta. Lughy sentou em um tronco caído e comentou enquanto esfregava os braços para se aquecer.- Só uma outra vez eu vi um nevoeiro como esse em toda a minha vida, quase posso pegá-lo com as mãos.

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- Não temos mais nenhuma referência - disse Roger, avaliando a parede de fumaça branca que os envolvia. - Estamos de fato temporariamente perdidos.Roger sentou-se ao lado de Lughy e desabafou sob o som distante da canção de Dasfonide.- Foi tolice minha entrar no bosque e querer resolver um problema meu. Deixei meus amigos dormindo sem proteção. Fiz a coisa errada, senhor Lughy.- Não o censuro — disse Lughy, solidarizando-se, deslizando a mão pelo ar e fazendo a bruma ondular como fumaça. - Temos os nossos próprios sonhos e frustrações e às vezes não agimos conforme a razão.Ficaram um tempo sem terem o que dizer. Foi aí que algo aconteceu, pela segunda vez para Lughy.- Não há mais música — avisou Lughy, erguendo a cabeça como um cão em alerta. — Dasfonide parou de cantar.- E o que isso quer dizer? - indagou Roger, seu coração sentindo a esperança ressurgir.- Não tenho muita certeza, mas não tire os olhos da neblina.Rapidamente o nevoeiro foi afinando, dissipando e se esvaecendo, fazendo o bosque renascer nitidamente. Por entre as árvores ainda pairava uma atmosfera nevoenta e misteriosa. De dentro do matagal, um ruído de galhos sendo afastados para abrir passagem fez a pulsação de Roger disparar. Era exatamente como Lughy descrevera: Dasfonide, ao mesmo tempo

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horripilante e fascinante. A criatura mitológica das lendas milenares, bem ali, a sete ou oito metros, indo na direção deles, as quatro pernas trocando alternadamente o peso de seu corpo fantástico, caminhando com uma estranha graciosidade.- Roger, seu sortudo, ela aceitou o seu chamado — disse Lughy, sorrindo como se fosse a criança mais feliz do mundo.Roger ficou um pouco deslocado com a aparência monstruosa de Dasfonide, mas a impressão negativa acabou quando ela falou com ele.- Você é um homem atormentado por dúvidas, detentor da Espada de Ninqa — seus olhos de um azul profundo emanavam uma luz maravilhosa como se todas as estrelas se refletissem neles.Roger sentiu-se enlevado ao ouvir a voz suavemente modulada. Também ficou impressionado, pois Dasfonide sabia dos objetos sagrados que conseguira em Paleandrus.- Vim aqui lhe pedir um favor, pode me atender? — disse Roger, respeitosamente, escolhendo bem as palavras.A fantástica criatura o observava. Parecia que o pedido de Roger não era o suficiente. Lughy intercedeu.- Ofereça o alimento a ela — e esticou a tigela com a comida.Roger deu dois passos à frente e mostrou o recipiente num sinal de amizade.- Yá! Dê a comida... aproxime de sua boca - orientou Lughy. - Junte com a mão, desse jeito - e gesticulou com a mão em concha.

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Roger fez como Lughy havia ensinado e Dasfonide recebeu a pasta, lambendo os dedos e a palma da mão de Roger, deliciando-se até que a tigela se esvaziasse. Naquele momento nascera um vínculo entre ele e a filha de Zanqeon. Não havia mais repugnância, só admiração.A neblina desaparecera e as estrelas cintilaram para Dasfonide que olhava para elas como suas amigas eternas. Roger fitou o Armamento e sentiu-se envolvido pelo espaço infinito. Viajava nos olhos da vidente.Depois de tempos o sonho cessou. Roger se viu novamente no bosque, sob um teto estrelado. Dasfonide o encarou e profetizou serenamente para ele.- O seu tempo é o tempo até que a jornada se cumpra. A tua resposta te aguarda pacientemente ao fim de tudo.- E Helen? - quis saber Roger, objetivamente.- É o que é — ela encerrou.Do mesmo jeito que apareceu, Dasfonide se foi. Naquela noite ela não entoou mais as suas canções.No acampamento, os questionamentos aconteceram naturalmente, e não houve um consenso sobre o tempo em que estiveram fora. Passaram-se horas para Roger e Lughy, todavia, para os que ficaram, o encontro com Dasfonide não durou mais que trinta minutos, a madrugada indo alta. Lughy dormiu muito bem pelo resto da noite e o coração de Roger conheceu uma feliz esperança em rever Helen.

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O dia seguinte estava tão radiante que aquela tarde parecia ser eterna. Os perfumes das frutas e flores estimulavam os pássaros a voarem com estridência. O Venactane era terra vazia, pois os viajantes recusavam-se a pisar em seus domínios temendo as histórias terríveis sobre seres grotescos.A expedição acomodou-se diante do vasto campo de mato alto e verdejante que ondulava com o vento morno. Os animais bebiam de um riacho nascido numa distante encosta e tudo era realmente calmo. Rhuror aguçou os sentidos ao ouvir qualquer coisa familiar, e disse com entusiasmo.- Querem ver algo muito interessante? Então me sigam.Rhuror meteu-se entre os arbustos e se arrastou, exigindo silêncio aos que o acompanhavam.- Não façam tanto barulho ou eles vão embora - repreendeu o faogard enquanto abria caminho pelo matagal.Rhuror afastou as folhagens do outro lado dos grandes arbustos que davam vista a uma ampla pastagem de gramíneas. A paisagem mostrou-se como um quadro imaginário de extrema beleza. Cavalos alados de todos os tipos pastavam livremente; uns abriam suas asas enormes e alçavam voo majestosamente; alguns pousavam com leveza no chão macio; e outros ainda, mordiscavam a grama viçosa. Suas pelagens eram variadas: totalmente brancos que resplandeciam ao sol, negros como petróleo cru, marrons, malhados e cinzas. Diferente de rabos,

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possuíam um feixe de penas que se abria como um leque para direcionar o vôo. Marc, Daniel, Margaret e Rafael mostravam suas caras com a mesma expressão de deslumbramento: olhos arregalados e queixos caídos. E Chester, mal podia acreditar no que via. Cavalos o fascinavam, mas cavalos dotados de asas, isso era demais para ele.- Como se cavalga essas maravilhas? - quis saber Chester, a imaginação indo longe.- Não se cavalga — explicou Rhuror, apreciando os belos eqüinos voadores —, são indomáveis.- Mas ninguém nunca conseguiu montar em um? — Chester náo se deu por satisfeito, os olhos fixos nos animais, observando cada movimento que faziam.- Soube de alguns que tentaram, preparando armadilhas para capturá-los, e até conseguiram prender alguns e colocar-lhes selas e arreios, mas quando tentavam voar, eram derrubados e os bichos fugiam. Alguns desses belos espécimes morreram de maus tratos ou até de desgosto. Eles não se assujeitam à submissão e ao cati-veiro. São livres. E quanto aos malditos caçadores... tiveram o seu merecido castigo imposto por Zanqeon.- Como são chamados? — perguntou Marc. - Que nome dão a eles?- Cilenantes. Eu poderia ficar aqui a tarde inteira olhando esses belos animais - Rhuror fez uma expressão relaxada.- O que acha de ter um no seu rancho, Chester? — brincou Guillermo, que acabara de chegar e

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estava igualmente extasiado. Então sacudiu uma lagarta que subia pelo seu ombro.- Não sei quanto ao rancho - desconversou Chester pulando para fora dos arbustos. — Mas quero apreciá-los mais de perto. Cilenantes foi o que disse, senhor Rhuror?Subitamente, no instante em que Chester mostrou-se aos cilenantes, houve uma grande revoada como pombos em uma praça ao serem molestados por alguma criança curiosa. O vento das enormes asas batendo em fuga agitou vigorosamente a copa de uma árvore próxima. Somente um cilenante permaneceu.Chester! — rosnou Brian, tentando se controlar para não berrar e assim espantar o último dos cavalos alados. - Veja o que você fez!- Eu vou com ele — disse Daniel, ameaçando sair para o campo de pastagem.- Você fica aqui — impôs Brian, amarrando a cara, o dedo indicador apontando severamente para o chão. — Já basta o que o seu amigo aprontou.Chester estacou a uns vinte metros do único cilenante que não havia voado. Era um animal nobre, pelagem cinza que brilhava ao sol, fazendo-o parecer que era todo feito em prata, poderosas asas dobradas ao longo do corpo imponente, a cauda de penas retas voltada para baixo, e um olhar fixo em Chester.- Quero ver no que isso vai dar - disse Marc acomodando-se na melhor posição como se fosse assistir a uma sessão de cinema.- O que ele pretende fazer? - perguntou Lughy, adrnirando-se como o cilenante ainda estava ali.

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Não era nada habitual um animal daquela espécie aceitar, por vontade própria, a proximidade com pessoas.Chester arrastou o pé sobre o capim, conquistando o primeiro passo, e, lentamente, deu o segundo passo em direção ao animal. O cilenante permaneceu estático como uma escultura, observando o rapaz caminhar bem devagar. Chester parou ao lado de uma pena caída ao chão, devia ter uns noventa centímetros, no mínimo. Seria mesmo imprescindível penas compridas e fortes para manter um cavalo daquele tamanho nas grandes alturas. O garoto deu uma nova passada e o cilenante respondeu abrindo as asas de enorme envergadura, as patas dianteiras se dobraram, deixando a bela criatura preparada para se lançar no ar.- Não fuja - murmurou Chester, suplicante. - Não quero lhe fazer mal. Só desejo tocá-lo uma vez, só isso.- Ele não vai conseguir — assegurou Lughy. — Ninguém consegue. O cilenante vai esperar o garoto chegar bem perto e aí sairá voando, zombando dele.- Pois eu digo que consegue — retrucou Margaret, confiante.- Quer apostar? — incitou o meio-faogard. — Vinte moedas de puro ouro pelo seu lindo cavalo como o garoto não toca no cilenante.- Não aceite, Meg - aconselhou Rhuror, reprovando a proposta. - Lughy sabe que os cilenantes são indomáveis e quer levar vantagem

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da situação. É assim que esse aproveitador leva a vida.- Mesmo assim eu aceito - ela decidiu. - Acredito em Chester.- Então agora o problema é seu — disse Rhuror, dando de ombros.Doze metros separavam Chester de um sonho. O eqüino de longas asas meneou a cabeça e bateu o casco escavando a grama. Ficava cada vez mais arredio.- Por favor, deixe-me afagar você. Uma oportunidade apenas - implorou Chester, bem baixinho, os braços rente ao corpo, com todo cuidado para que o cilenante não se assustasse.Três metros faltavam para que a mão de Chester pudesse entrar em contato com uma lenda viva. Lembrou-se das histórias que leu sobre Pégaso, o lendário cavalo voador que ajudou o herói Belerofonte a derrotar a Quimera. Então poderia ser verdade. Um daqueles magníficos cavalos alados deveria ter atravessado o Portal há muito tempo e originado a célebre história que atravessou vários séculos e ficou registrada para sempre.Faltava muito pouco para Chester. Outro e mais outro passo curto foi dado muito vagarosamente. Agora só faltavam dois metros. O magnífico animal recolheu as grandiosas asas e postou-se atento. Chester agachou-se e seus dedos agarraram um punhado de capim fresco. Ele ergueu-se, e num gesto de amizade, estendeu a mão para o cilenante que refugou a oferta

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afastando a cabeça, fitando o garoto de esguelha.- Tome — disse Chester com voz afável. — É pra você.Lughy, do meio dos arbustos, abriu a boca e fez menção de falar ou gritar alguma coisa.- Lughy, se você afugentar o cilenante eu enterro a sua cabeça em seus ombros — rugiu Rhuror, mostrando o punho cerrado.- Estou torcendo pelo rapaz tanto quanto você — disse o meio-faogard, defendendo-se.- E abrir mão de suas moedas de ouro? Não espera que eu acredite nisso.Chester insistiu, fazendo o cilenante pegar confiança e finalmente comer a grama de sua mão. Então afagou o pescoço forte do animal, o pelo era de uma só vez firme e sedoso.- Vou abraçá-lo agora - avisou Chester, ele tremia de emoção. — Não tenha medo.E Chester envolveu a cabeça do cilenante com os seus braços, e ficou assim por um longo tempo, sentindo o seu cheiro selvagem. Ele havia conseguido a inacreditável proeza.- Esse garoto é especial — disse Rhuror, sublimado com a cena encantadora. — Nunca vi isso acontecer.- Me deve vinte moedas douradas, senhor Lughy — Margaret não desperdiçou tempo em cobrar, um grande sorriso de orgulho e vitória nasceu nela.Chester finalmente recuou dois passos e disse ao cilenante.

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- Sempre, sempre, enquanto eu viver, guardarei esse momento, meu amigo. Agora vá. Voe bem alto. Quero admirar você lá em cima, entre as nuvens! - gritou emocionado.Contudo, o cilenante não se moveu. Perdera a desconfiança. Ali havia nascido uma forte ligação entre um garoto e um cavalo voador.- Não se acostume com os homens - pediu Chester. — Podem ser perigosos. Voe agora!O animal pareceu ter compreendido o conselho de Chester e levantou voo majestosamente, a cauda aberta numa meia-lua de penas, ele planou duas vezes sobre o campo de gramíneas e sumiu, com o sol prateando suas asas.— Não esqueça que você tem uma dívida — disse Rhuror ao passar por Lughy. — Grandioso espetáculo, Chester! — gritou, elogiando.Durante aquela tarde fizeram mais trinta quilômetros até o sol se pôr.Naquela mesma noite ouviu-se o tilintar de moedas caindo.- ...Dezessete, dezoito, dezenove, vinte — contou Lughy, a contragosto, as moedas de ouro sendo despejadas, uma a uma, nas mãos de Margaret. - Estão todas aí. Quer conferir?— Não — disse ela, apreciando o valioso peso do metal. — Confio no senhor.— Confiar em Lughy?! - exclamou Rhuror com declarado escárnio. — Cuide bem do seu pequeno tesouro, minha querida Meg, ou ele pode evaporar de seu alforje como água no sol do deserto.

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Lughy olhou-o com indignação, mas encolheu os ombros e foi sentar-se no seu canto bem perto da fogueira, ao lado de Chester.- Gostei de ver você hoje, garoto. Perder aquelas moedas não foi tão ruim. Já perdi outras vezes, mas ver você abraçar o cilenante foi comovente. Sei que Rhuror não acredita em nada do que falo, mas no final eu já estava desejando que você conseguisse, mesmo que não creia em uma só palavra que sai da minha boca.Chester observava os olhos entristecidos de Lughy que remexia o fogo com um galho. E algo fez o jovem domador de cavalos pensar que a sua tristeza não era pelo dinheiro, e sim pelo modo como Rhuror o tratava. Porém, o pensamento de Chester desviou-se para o momento inesquecível em que estivera com o cilenante, e saboreou tantas vezes quanto podia resistir ao sono. Então dormiu e sonhou com cavalos de asas abertas e o vento batendo em seu rosto exultante.Mal quando o sol se levantou, Roger já estudava o mapa mágico e determinou a direção a ser seguida naquele dia ensolarado. Seguiram através do Venactane e cruzaram riachos, subiram e desceram o terreno levemente irregular, galoparam ao longo das gigantescas rochas fincadas em fileiras que serviam de divisa dentro do Venactane e pararam diante de uma floresta fechada e escura, quando o sol do meio-dia esquentou as suas cabeças e secou suas gargantas. As árvores entrelaçavam seus galhos e deixavam a mata praticamente impenetrável.

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Os arredores da floresta eram de pântanos lodosos e só havia uma alternativa de seguirem em frente: atravessando pelo interior da floresta escura. O enorme pântano que cercava a floresta pelos dois lados era o habitat de milhões de mosquitos inconvenientes que zuniam permanentemente em seus ouvidos. O grupo desmontou para descansar e preparar a difícil travessia daquele trecho inóspito. Roger voltou-se para a mata densa e examinou por onde poderiam caminhar com alguma segurança. Galhos desciam até o solo e se emaranhavam em outros galhos formando uma intrincada teia, como se todas as árvores tivessem combinado entre si em impedirem a presença de intrusos.- Só há um meio de transpormos essa fortificação vegetal - disse Roger para si mesmo. - É abrindo caminho à força.E brandiu a poderosa espada de Andrus antes de desferir o primeiro golpe contra uma rede de galhos retesados.- Não! — berrou Lughy, a Espada negra parou de súbito a poucos centímetros do seu objetivo. - Não corte esses galhos. Não cometa nenhuma agressão a essas árvores.Roger ficou sem entender, e foi quando Lughy esclareceu tudo.- Olhe para cima, para as copas, está vendo aquelas coisas pontudas?Lughy se referia a centenas de bulbos que pendiam das pontas dos galhos maisaltos, todos apontados para Roger. Os bulbos eram dotados de dardos com pontas finas como

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ferrões que se moviam para o seu agressor. O meio-faogard explicou então.- Essas árvores são as mortíferas agridinas. Se você tivesse atingido uma delas, mesmo por acidente, centenas de dardos venenosos voariam e se enterrariam em seu corpo e você estaria morto agora, e não gostaria nada de saber em que estado ficaria seu pobre cadáver.Depois do dramático alerta, Roger afastou a Espada cautelosamente para evitar meter-se em apuros.Após o perigo passar, Lughy falou um pouco mais a respeito:- Essa planta só nasce aqui e em nenhum outro lugar. Certa vez os drallengianos plantaram sementes de agridina, na fronteira entre Drallêngia e Crassen, para desenvolverem uma defesa natural. Nenhuma vingou — Lughy apontou de um lado ao outro da imensa barreira de árvores. - As agridinas circundam toda a floresta e jamais crescem em seu interior. São como guardas protetoras.- E de que jeito iremos passar? — perguntou Guillermo. — Não há espaço para os cavalos, e muito menos para o Drancto.- Pergunte ao guerreiro faogard - respondeu Lughy. - Não é difícil se contorcer um pouco e vencer as agridinas, mas com relação aos cavalos e ao drancto, eu não tenho como responder. E é apenas isso em que posso ajudar. Daqui pra frente, para o leste, não conheço mais nada.

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Rhuror estava mudo. Desconhecia ser bem ali a morada das letais agridinas. Um erro por não conhecer bem as terras venactanes. Por fim ele viu como a presença de Lughy havia sido útil ao salvar a vida de Roger. Mas sua fibra de coman-dante treinado não se deixou abater.- Se não há outra solução, contornaremos a floresta e o pântano pelo sul. Perderemos um bom tempo, mas ficaremos vivos.Rhuror, como todo bom faogard, tinha ouvidos sensíveis, entretanto, Talemine foi quem deu o sinal.- Cavalos se aproximam, pai. Quarenta... cinqüenta deles ou mais.Rhuror voltou-se para a direção do tropel que vinha de onde as pedras fincadas lhe escondiam a visão. Não demorou um minuto e identificaram uma tropa muita bem armada e disposta a lutar até a morte: um obstinado batalhão de... arkoprômidas.A tropa de fanáticos manteve-se próxima as pedras fincadas, como se estivessem organizando um definitivo ataque. Havia a possibilidade dos arkoprômidas terem mudado sua tática de salvar Daniel, o deus Arkopromis para eles, e eliminar Margaret que seria a encarnação de Ninqa. Matar a todos poderia ser uma solução desesperada, porém eficaz. O tempo também corria rápido para os adoradores de Arkopromis, pois ao cruzarem o território de Drallêngia, seriam perseguidos pelos destemidos guerreiros draliengianos, fieis aliados dos faogards.

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- Nunca soube da presença de arkoprômidas no Venactane — observou Lughy recuando para trás de Rhuror. — Desafiam as criaturas de Zanqeon. Estamos imprensados entre eles e a perigosa floresta.Brian raciocinou com as informações recentes e refletiu.- Você disse que esses carniceiros não costumam andar por estes lados.- Sabem que é terra hostil - confirmou Lughy. — Não sei como tantos chegaram ilesos até aqui.- Então teremos de atraí-los... para a floresta — disse Brian, o olhar grudado nos inimigos.- Compreendi o que pretende, Brian - disse Rhuror puxando o seu martelo que há muito tempo não manejava, prendeu Daniel pelo braço e o arrastou com brutalidade na direção da cavalaria arkoprômida, urrando como um alucinado. - O que estão esperando?! Venham até aqui buscar a porcaria do seu deus! — e empurrou Daniel com violência, provocando a sua queda.- O que o senhor Rhuror está fazendo? - quis saber Margaret, aflita com o irmão, sua feição era de evidente apreensão.- Confie nele - disse Brian. - Daniel está seguro.Imediatamente, em reação a provocação feita, a cavalaria irada armou-se com seus punhais bifurcados e avançou entre gritos coléricos.- Querem nos pegar em um ritual - percebeu Talemine. — Utilizam somente facas curtas.- Pois irão provar da Espada de Ninqa - disse Roger, desembainhando a poderosa arma.

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- Não, Roger! - contestou Brian com energia. - Você não poderá defender todos ao mesmo tempo. Haverá mortes do nosso lado. Guarde essa espada e corra para o interior da floresta.Lughy enfiou-se por entre os galhos para salvar a pele.- Corram! Depressa! A floresta vai nos proteger! - gritava Lughy, acenando freneticamente. - Cuidem para não ferir as agridinas, ou não verão o próximo pôr do sol.- E os cavalos? - questionou Chester.- Esqueça os cavalos - respondeu Talemine rapidamente. — Aqueles desgraçados só querem a nós — ela olhou para Chester, os olhos transmitindo segurança. - Eles vão ficar bem. Proteja-se agora.Rhuror suspendeu Daniel até o ombro musculoso como se o garoto fosse um saco de arroz, e correu como nunca na direção da vegetação cerrada onde seus amigos se protegiam. Os dois foram os últimos a se embrenharem na trama de galhos antes que os enraivecidos arkoprômidas levassem a efeito o ataque instantâneo.- E o que faremos agora? - indagou Guillermo enquanto esperava a aproximação dos inimigos.- Aguardamos - respondeu Lughy, com uma expressão atenta. — Se der certo assistiremos algo impressionante.E foi precisamente como Brian havia concebido. A raiva dos Seguidores de Arkopromis os deixou cegos para o perigo, fazendo-os correrem inadvertidamente contra as mortais agridinas, golpeando-as e dilacerando-as furiosamente.

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Milhares de espinhos tóxicos foram disparados como se saíssem de zarabatanas certeiras, cobrindo os corpos que tombavam e se contorciam dolorosamente. Naquele instante puderam assistir a um espetáculo apavorante: as vítimas começaram a arroxear numa velocidade espantosa, os dedos contraindo-se como garras secas, os lábios recuando e deixando os dentes à mostra, a pele foi escurecendo cada vez mais até ficar totalmente enegrecida. O horror ainda não havia terminado, pois raízes brotavam de muitas partes dos corpos imobilizados e se enfiavam na terra. Não eram mais pessoas, mas vegetais com horríveis formas humanas. Os poucos arkoprômidas que não foram mortos, fugiram apavorados e convencidos que o deus Zanqeon havia executado sua vingança. Chester experimentou um grande alívio ao constatar que nenhum animal fora atingido.- Sobraram nove - disse Rafael que foi o primeiro a ressurgir da floresta. - Eu contei.Talemine armou uma flecha em seu arco e disparou, a seta acertou as costas de um arkoprômida em fuga que desabou pesadamente para frente; o arco da guerreira não tardou em atirar outra flecha e fazer mais uma vítima.- Agora são sete - disse ela em resposta a Rafael.- Nos deixarão em paz por enquanto - disse Brian. - Mas certamente irão em busca de reforços. Eles estão desesperados e dispostos a qualquer coisa para nos deter.Passaram por cima dos arkoprômidas transfigurados em plantas e mudaram o curso

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para o sul, desviando-se da floresta e do pântano fétido.Naquela mesma noite, Talemine teve uma triste notícia ao entrar em contato com Camine, sua irmã: Tuldoror havia morrido. A medicina faogard tinha conseguido quase um milagre prolongando por tanto tempo a fraca vida de seu rei. Não era nada bom perder-se um soberano em tempos conturbados e o reino de Faogard precisava urgentemente promover a coroação de seu novo monarca. Rhuror reuniu todos os amigos e anunciou a sua decisão.- Meu povo precisa de mim. Feneliane, minha esposa, herdará o trono em breve. O reino de Crassen e seus aliados logo serão sabedores da morte do nosso intrépido rei, e esse é um momento perfeito para uma declaração de guerra por parte de nossos rivais. Esperam que um novo soberano seja fraco e inexperiente e se curve perante suas exigências. Todavia, o principal responsável por tanta hostilidade é o seu líder, Gosferac, um homem poderoso que tem um respeitável número de desenvals e véussidas ao seu lado, e o maior exército da Cadecália submetido ao seu comando. A crença de Gosferac. em uma profecia muito antiga, a mesma que creem os arkoprômidas, é capaz de nos trazer sérios problemas — Rhuror respirou fundo e finalizou: - Volto a Faogard pela manhã, e tudo me leva a crer que guiarei o nosso exército para uma sangrenta guerra muito em breve. Necessito de todos os nossos guerreiros em condições de marcharem para o leste.

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Guillermo ouviu tudo com tristeza e lamentou em silêncio a sua separação de Talemine.No dia seguinte, Rhuror aprontou o drancto, despediu-se e convocou o seu companheiro de viagem.- Suba de uma vez. Não temos tempo a perder, Lughy.Guillermo surpreendeu-se.— Lughy? É o Lughy que vai com Rhuror? — ele olhou incrédulo para Talemine. — Pensei que fosse você.— Sim, é Lughy que fará companhia ao meu pai. Eu sigo com vocês, até o fim. Ainda serei muito útil. Sou uma guerreira e também uma exímia médica, lembra?— Eu não quero voltar com você, Rhuror - reclamou o meio-faogard enquanto era forçado mais uma vez a escalar o drancto.— Você ainda é suspeito na questão da areia nos odres — disse Rhuror, subindo logo depois, tirando a chance de Lughy retroceder.— Essa história de novo... eu sou inocente.— Inocentes são aqueles que você enganou em Fena, como quis fazer recentemente com Meg na ocasião de Chester e o cilenante.— Ora, senhor Rhuror, quem é inocente em Fena a não ser as criancinhas? Até as aves maiores roubam minhocas do bico dos passarinhos.— Pois vou ficar de olho em você, Lughy. Até breve, filha! — despediu-se mais uma vez, conduzindo o drancto de volta para as longínquas terras do oeste. — Cuide de nossos amigos, e muito mais de você, guerreira!

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A voz de Lughy ainda era ouvida longe.— Pois na primeira oportunidade eu vou fugir e...A separação causou um vazio aos amigos, mas era daquele jeito que deveria ocorrer.Na manhã nublada, a planície abriu-se novamente e permitiu que se enxergasse quilômetros de paisagem. Uma cadeia de montanhas surgia pela frente, bem no meio do Venactane. A reduzida expedição rumou até o pé de um monte coberto de arvoredos e mato úmido. Havia uma passagem que cortava caminho para um vale rodeado de montanhas isoladas. Seguiram a trilha principal e avistaram o vale estreito que tinha a forma de uma gigantesca caldeira natural, separado, solitário e silencioso como o fim do mundo. Estavam pisando no escondido Cemitério dos Dragões.Naquele vale perdido cercado por montanhas escarpadas e coberto por escuras nuvens acinzentadas, os dragões voavam para morrer quando já eram bem velhos ou doentes. Esqueletos enormes espalhavam-se por todos os lados. Algumas ossadas deviam estar ali há séculos, pois se achavam desconjuntadas e carcomidas pelo tempo. Outras carcaças eram bem mais recentes, porque ainda guardavam sobre si grossas camadas de couro como velhas lonas escamosas. Havia dragões menores, não tendo mais que sete metros do focinho à cauda, e outros maiores que ultrapassavam os dezoito metros. Dragões viviam no imaginário de inúmeras pessoas, contudo, dar de cara com eles

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era algo que muita gente desejava, mesmo que já estivessem mortos.Rafael tocava os ossos duros e polidos, imaginando que um dia aqueles dragões tivessem voado livres, lançando espessas colunas de fogo pelos ares. Tais pensamentos o deixaram tanto fascinado quanto melancólico.- Um cemitério de dragões — disse ele para Talemine que caminhava ao seu lado. — São como os cemitérios de elefantes. Na verdade não existem cemitérios de elefantes, é só uma história que contam.- Elefantes, o que são? — perguntou Talemine, sua mão deslizou sobre uma arcada grande e limpa.- São animais que vivem no meu mundo - ele explicou. - Têm a metade do tamanho de um drancto, portanto são bem grandes, dois longos dentes pontudos, patas roliças no formato de colunas e um nariz muito comprido que utilizam para cheirar e pegar tudo o que encontram.- Devem ser bem feios - disse ela, julgando a aparência dos paquidermes pela descrição que acabara de ouvir.- Na realidade são até bem bonitos. Meu irmão tem um, só que é feito de pano — ele lembrou com carinho de seu pequeno irmão abraçado ao brinquedo preferido.- Ei! Todos vocês! - gritou Marc. — Vejam só isso!Marc havia encontrado um dragão de pele prateada como um peixe. Sua cauda ondulava um pouco e os olhos tremiam querendo abrir. As

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asas estavam desalinhadas e esparramadas. Ainda estava vivo.- Era o que eu queria lhes mostrar - disse Marc, demasiadamente impressionado. — O que aconteceu a ele para estar aqui?- Não vejo ferimentos - disse Talemine, depois de andar em volta do dragão que deveria ter mais de doze metros. - É um dragão bem jovem, da maior espécie que existe.Sua bocarra entreaberta fumegava como uma chaminé no inverno. Ele já não tinha forças para produzir fogo, nem mesmo uma centelha. Estava cansado e fraco, seu peito subindo e descendo, respirando com muita dificuldade.- Não podemos fazer nada? — perguntou Daniel, compadecendo-se do pobre animal.- Ainda não entendo por que ele se encontra desse jeito. Pode estar envenenado ou sofrendo de alguma doença... mas, espere - Talemine olhou de novo, por trás do pescoço comprido e revestido de escamas tão duras que pareciam serem feitas de metal. - Há alguma coisa aqui, embaixo do pescoço dele. Preciso que me ajudem a mover um pouco a cabeça. Podem fazer isso?Guillermo olhou os dentes afiados que sobressaíam como punhais enfileirados.- Talemine, se esse bicho me morder eu faço um assado com ele.- Ele náo vai te morder — garantiu Brian. - Não vê que mal consegue respirar?- Oh, claro, professor - respondeu Guillermo cheio de sarcasmo. - Havia me esquecido que você era

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especialista em dragões.- Os dois vão ficar aí discutindo ou preferem me ajudar a erguer todo esse peso? — impacientou-se Talemine.Foi necessária a força de todos juntos para desencostar do chão a pesada cabeça do animal. Parte de uma haste de ferro aparecia entre as escamas e era bem ali a fonte dos problemas do dragão.- É um pedaço de flecha. Conheço bem esse tipo. Flechas compridas e de têmpera reforçada, difícil de se quebrar - identificou Talemine, forçando-a um pouco para livrar o dragão ferido. - Os crassênidas usam dessas para abater dragões no ar... e acertaram esse bem em cheio. Os arcos para impulsioná-las são fortíssimos, a ponto de fazerem as flechas de ferro transpassarem duas armaduras peitorais de uma só vez — ela puxou de novo e a flecha resistiu: — Não adianta, temos de rasgar a carne e consertar o estrago. Ajudem-me a puxar. Usem toda a força que tiverem.Guillermo e Roger seguraram a haste de metal e deram um puxão ao comando da guerreira. Um líquido escuro borrifou do local do ferimento e se evaporou no ar.O animal usou a pouca força que ainda lhe restava para gemer de dor num som gutural como se saísse do fundo de um poço.- É o sangue dele - explicou Talemine, empenhando-se para tapar o vazamento. — Não escorre como o dos outros animais, mas desaparece quando toca o ar. Por isso náo há vestígios dele sob o dragão. Foi como eu pensei,

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atingiu uma artéria importante. Preciso agir bem rápido antes que seja muito tarde — ela racio-cinou apressadamente e pediu: — Alguém me alcance a handácea.Margaret disparou para o cavalo e voltou apressada, as duas mãos protegendo o pote com a droga. Talemine abriu o recipiente e retirou de dentro uma substância azul-forte e pastosa, besuntando todo o ferimento vigorosamente como se preenchesse uma rachadura na parede usando argamassa. O dragão gemeu expelindo uma fumaça débil.- Acho que vai funcionar - disse Talemine, limpando as mãos, livrando-se da handácea. — Essa coisa não pode ficar por muito tempo em contato com a pele, ou não sai nunca mais. Acaba se tornando parte da gente — ela fez uma pausa, apreciando o fantástico animal deitado à sua frente. — É o que irá acontecer com ele, vai guardar uma marca azulada pelo resto da vida.- Pelo que você acaba de nos dizer, o dragão vai sobreviver - deduziu Guillermo.- Creio que sim. Ele vai sofrer por algum tempo até a droga ser absorvida pelo organismo e ser incorporada aos tecidos, mas vai ficar bem.Após alguns minutos o dragão abriu seus dois grandes olhos verdes como se fossem de vidro brilhante. Era o sinal de que ele estava reagindo ao medicamento. Então lançou um olhar sofrido para cada um dos que se encontravam diante dele, mas igualmente parecia um olhar de gratidão, era difícil definir.

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O olhar de Talemine foi de Marc até o dragão e de novo para Marc. Parecia entender os pensamentos do rapaz.- O que está esperando, Marc? Que o dragão diga algumas palavras de agradecimento? Dragões não falam, mas espere até ouvir um deles emitir um rugido. Soa como um pequeno trovão.Marc ouvira tantas histórias de dragões falantes que não se surpreenderia se aquele conversasse com ele em bom francês.- Por que os crassênidas matam dragões? — perguntou Daniel, sua mão afagava as rígidas escamas reluzentes.- De vez em quando os dragões atacam as criações dos camponeses daquele reino, assim como fazem com o rebanho dos drallengianos, faogards e outros povos, pois necessitam de farta quantidade de carne para se alimentarem. Entretanto, os crassênidas não admitem tais ataques e pelo que se sabe, quase não há mais dragões cobrindo os céus de Crassen. Ouvi casos de dragões que saltaram do ar sobre batalhões inteiros de crassênidas, transformando todos os soldados em um monte de carne queimada. Os ferozes dragões estão começando a perder a paciência com os matadores da sua espécie.- Ainda há muitos deles? — indagou Daniel.- Muitos vivem nas montanhas, longe daqueles que querem lhes fazer mal - disse Talemine, e olhou com ternura para o imenso animal mitológico que demonstrava uma ligeira melhora ao respirar mais profundamente. - Mas ainda existem muitos deles por toda a Cadecália.

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Talemine ofereceu grandes porções de água para que o dragão não desidratasse, e após os procedimentos para salvar a criatura ferida terem sido concluídos, os aventureiros seguiram em frente, atravessando as passagens entre os montes escarpados que ocultavam o Cemitério dos Dragões.Durante aquela noite, os olhos de Talemine cintilaram como prata pura, foi quando ela soube da grande cerimônia de sepultamento do seu saudoso avô. Em três dias Faogard teria uma rainha.Logo que o dia raiou e a viagem seguiu em caminhada firme pelo Venactane, as pradarias foram trocadas por terreno de arenito seco com rala vegetação rasteira e dispersa. O sol estava radiante no céu de poucas nuvens, seria um dia de muito calor. Um cenário de rochas areníticas formava-se pela frente, composto basicamente de paredões retilíneos e pedras soltas. Não havia uma estrada ou sequer uma trilha para se guiarem; o melhor caminho era aquele em que podiam pisar sem escorregar nos seixos ou se enfiarem numa fenda traiçoeira. Haviam escolhido uma passagem que seguia para cima onde começava um labirinto em que o vento emitia um lamento constante. No momento mais quente do dia, descansaram no meio do arenito, comeram frutas secas e beberam dos cantis à sombra de rochedos avermelhados. Marc e Daniel improvisaram uma excursão encosta acima, desaparecendo de vista por não mais de dez minutos. Quando retornaram, Chester trazia

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algo que se assemelhava a uma pedra oblonga com cerca de vinte e cinco centímetros, e coberta de manchas raiadas em tonalidades azuis e alaranjadas.- Onde conseguiram isso? — inquiriu Talemine, levantando-se de um salto, a expressão de seu rosto era como o de confrontar algo apavorante.- Encontramos escondida entre umas pedras, lá no alto — informou Chester, apontando para um conjunto de rochas achatadas que lembrava um enorme ninho encaixado no declive.- Parece ser um belo exemplar de ágata - disse Brian, olhando o ovo de perto.- Seu tolo! — disse a faogard, tomando a pedra das mãos de Chester. — Você pegou um ovo de grípharus. O grípharus pode ser terrível quando invadem o seu território, mas se alguém lhe rouba um ovo, torna-se um feroz assassino. Este ovo estava chocando entre as pedras quentes, é assim que eles fazem quando saem para caçar.Talemine sondou o céu com aflição.- Temos que devolvê-lo antes que o seu dono volte.- Eu faço isso - prontificou-se Brian apoderando-se do ovo e subindo rapidamente o terreno pedregoso.- Peguem suas coisas e vamos sair daqui enquanto é tempo — alertou Talemine, e gritou para Brian: - Seja rápido e se afaste logo desse ninho!Brian mal acabara de ouvir o aviso dado por Talemine quando um estridente guincho vindo de cima rasgou o ar.

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No alto, via-se o terrível grípharus se aproximar velozmente premeditando o ataque. O espantoso animal de pelagem quase negra era tão grande como um corcel, sua cabeça de ave de rapina, lembrando uma águia com um poderoso bico em gancho e o seu corpo de leão sustentado por um par de enormes asas escuras era como a descrição das lendas muito antigas relacionadas ao grifo. Os olhos, totalmente negros, despejavam todo ódio aos visitantes indesejados. De longe, a fera alada percebera que o seu território, normalmente despovoado, havia sido profanado. Enfureceu-se quando se deparou com o ninho vazio.-Não há mais tempo, Brian! — berrou Talemine, lançou mão de seu arco e preparou o disparo. - Solte o ovo e corra!Brian largou o ovo que rolou pelo declive e parou numa pedra; sem desperdiçar tempo, ele correu e escorregou pela encosta, fugindo como podia. O grípharus, ou grifo, soltou outro grito e investiu contra Brian que, procurando escapar, não conseguia ver de onde vinha o ataque surpresa.Talemine lançou a primeira flecha e errou, o grípharus se esquivara, fazendo uma curva impossível no céu. A segunda flecha de Talemine triscou o flanco do ser de asas sombrias sem, no entanto, causar ferimento. Espertamente, a criatura voadora se colocava contra o amplo halo luminoso do sol, confundindo a visão da guerreira. Numa absurda manobra, o grípharus mudou de direção e executou uma ação ofensiva, atacando Brian pela frente, fazendo-o perder

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definitivamente o equilíbrio e expondo o peito às afiadas garras que entraram rasgando o tórax do professor inglês.-Brian! — gritou Roger, armando-se com a Espada e o Escudo do Herói Andrus, e correu para salvar o amigo, caso não fosse tarde demais.Roger vibrou a Espada muitas vezes para atrair o contendor ferrenho; deveria ser daquele jeito que Andrus enfrentara o monstro da montanha há muitos e muitos séculos. O grípharus alterou momentaneamente o objetivo de sua fúria e voltou-se para Roger que enfrentou o perigo extremo com determinação, agitando a lâmina negra, mantendo o animal enlouquecido de raiva à distância. Talemine persistia em usar o seu arco em disparos sucessivos, todas as setas erravam o alvo por pouco.Percebendo que não conseguiria atingir Roger, o grípharus voltou-se novamente para Brian estirado e sem nenhuma reação, uma extensa mancha de sangue espalhava-se pelo seu peito gravemente ferido.Guillermo muniu-se de seu arco, retesando-o ao máximo, precisava ajudar o amigo a qualquer custo; se as flechas de Talemine não acertavam seu objetivo, como ele poderia ter êxito em um momento tão delicado? Contudo, o grípharus ficava atento aos movimentos da arqueira, e Guillermo posicionou-se fora do foco de visão da criatura fabulosa.No entanto, algo surpreendente aconteceu. Por cima e por detrás dos rochedos de arenito surgiu

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com a velocidade de um raio outro ser alado de envergadura equivalente ao grípharus. Era o cilenante com o qual Chester havia estabelecido o inesquecível contato de amizade. Chester logo o reconheceu pela sua cor cinza prateada. O cavalo de grandes asas mergulhou sobre o grípharus, escoiceando-o com toda a força de seus cascos. O grípharus foi atirado ao solo, causando um baque que fez o chão estremecer. A fera náo se abateu e contra-atacou, elevando-se da encosta, articulando suas poderosas asas. Todas as garras da monumental criatura voadora agora apontavam para o cilenante que não era páreo em um confronto direto. O grípharus era mais forte, mais ágil e possuía um arsenal de garras capazes de retalhar um cilenante como um tigre faria com um cervo. Normalmente, os cilenantes não eram agressivos, e jamais desafiavam um perigosíssimo grípharus para um enfrentamento. O cilenante voou, se esquivou como pôde, mas era uma questão de pouquíssimo tempo até ser alcançado pelo adversário impiedoso.Não havia mais tempo. Quando caçador e caça deram um rasante, a flecha de Guillermo foi arremessada com precisão, penetrando em uma pata dianteira do implacável grípharus, as garras retraindo-se num reflexo; outra seta saída do arco de Talemine raspou o flanco direito, desestabilizando o ataque contra o cilenante; o grípharus gritou de dor e cólera, mergulhou no solo de arenito e prendeu o ovo com uma de suas patas de unhas afiadíssimas, então se

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lançou para o ar e voou acima dos paredões, desaparecendo de vista.Todos acorreram para Brian e presenciaram a gravidade do ferimento. Uma única unha aguçada provocou um rasgo quebrando a clavícula, desunindo algumas costelas do osso esterno, e terminando na metade do abdômen. Numa cena de terror, as extremidades das costelas de Brian emergiam da carne, deixando parte do coração exposto e batendo aceleradamente. Brian estava morrendo.Margaret levou as duas mãos ao rosto, chocada com o que via. Chester e Marc sentiam-se culpados vendo o querido professor Brian naquela situação deplorável, abrindo e fechando a boca numa respiração curta e rápida, a cabeça jogada para o lado, os olhos entreabertos em agonia.-A handácea! — disse Talemine enquanto avaliava como faria a intervenção cirúrgica de tamanho risco; Margaret tomou a iniciativa e correu para os cavalos.-Vai fazer com Brian o que fez com o dragão? - perguntou Guillermo, depositando toda a confiança na guerreira amada.-Tem uma idéia melhor? É o único jeito de evitar a sua morte — respondeu ela, sem outra opção. - Não sei se vai dar certo, Guillermo - o olhar da faogard tornou-se terno para ele. - O ferimento é gravíssimo e, além disso, ele está perdendo muito sangue. Nem temos como removê-lo para um lugar melhor. Terei que operá-lo aqui mesmo.

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Roger dividia a atenção observando o amigo ferido e vasculhando o céu, caso o grípharus retornasse, a Espada mágica em punho pronta para ser usada.No que o cilenante aterrou no declive, Chester foi até ele, cheio de admiração e gratidão.-Não sei realmente se me entende — disse. — Mas sou muito grato pelo que fez, arriscando a própria vida para salvar o professor. Se não fosse pela sua bravura ele teria morrido.Chester arregalou os olhos quando uma coisa veio a sua mente.-Ah, espere! Não vá embora — as duas mãos abertas para conter o cilenante.Ele desceu aos cavalos e retornou com um pequeno odre cheio de água, dirigindo-se prestativo ao eqüino voador.-Essa correria deve tê-lo deixado com sede, tome — e aproximou o saco de couro que foi esvaziado rapidamente ao som do cilenante sugando a água.Chester ainda acariciou o focinho do cilenante antes que ele se lançasse no ar e desaparecesse novamente.-Náo fique triste, Chester - gritou Marc que assistia à certa distância. - Você vai vê-lo outras vezes.-Claro que vou — sussurrou para si mesmo.Talemine abriu o pote de medicamento e ajoelhou-se ao lado de Brian, em seguida terminou de rasgar com a sua faca a camisa ensangüentada e pediu uma corda para amarrar as pernas dele, as dores lancinantes da cirurgia

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fariam o professor se contorcer como alguém que recebe a mais brutal das torturas. Deveriam, também, segurar-lhe os braços para impedir qualquer acidente no momento crucial. Ficando Brian totalmente imobilizado, Talemine orientou Rafael a pressionar as costelas dilaceradas até que elas voltassem na posição correta, ligando-as ao osso esterno no centro do peito.-Tenho mesmo que fazer isso? — disse o garoto, considerando a tarefa por demais tétrica.-É assim que deve ser. Se o coração parar de bater, teremos de massageá-lo removendo novamente as costelas. Esteja pronto pra isso também — avisou a faogard ao mesmo tempo em que distribuía a handácea pelo peito aberto.A dor aguda fez Brian se agitar e gemer, sua mente inquieta estava longe, e em seu torpor ele não estava entendendo o que acontecia com o seu corpo.Talemine quase esgotou o pote de handácea, e a cada passada de mão sobre o extenso ferimento, todos os músculos de Brian explodiam em espasmos, até que, por fim, ele perdeu os sentidos. Era de se duvidar que num ambiente contaminado e sem nenhuma assepsia preventiva não houvesse o perigo de uma infecção. Todavia, Talemine agia com tanta desenvoltura e certeza na eficácia da handácea que era de se esperar que a estranha medicação fosse verdadeiramente miraculosa.A guerreira pediu que trouxessem um cobertor, cortando-o em uma comprida tira que foi empregada para enfaixar o tronco de Brian que

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já náo esboçava nenhuma resistência. Náo haveria possibilidade de tirar Brian da encosta de arenito, morada do grípharus, até que ele reunisse condições de se locomover pelas próprias pernas. Ao concluir a atadura improvisada, Talemine limpou as mãos com um trapo que restara do antigo cobertor, usou um pouco de água para eliminar os últimos resíduos da handácea, e proferiu decididamente.— Só nos resta esperar. Em menos de um dia saberemos se ele vai viver. Esta noite passaremos nesse lugar, em vigília.— Grípharus. Grifo - disse Rafael com olhar observador para Marc. - Nomes bastante semelhantes, não é mesmo?— Sou capaz de apostar minha preciosa flauta que foi esse mesmo animal o que atacou Alexei Martov - comentou Marc em resposta.Uma fogueira que bruxuleava com o vento, foi acesa ao lado de Brian para aquecê-lo sob as estrelas na noite fria. Brian, bastante pálido, tremia muito e pronunciava palavras sem sentido. Em seu delírio prolongado falou de Roger voltando sozinho a Paleandrus; comentou sobre a meiguice de uma bela criança; referiu-se a um homem atormentado que vagava pelas montanhas e florestas, mas não lhe atribuiu um nome; por muitas vezes balbuciou frases incoerentes.— A febre está muito alta — disse Guillermo ao tocar a testa do companheiro enfermo.— É normal isso acontecer - informou Talemine, avivando a fogueira com mais gravetos. — A

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handácea está interagindo com o organismo dele. Pela manhã teremos a resposta se houve ou não houve rejeição.— E se houver rejeição? — inquiriu Roger, a espada negra grudada em suas mãos alertas.— Uma sepultura solitária fará parte dessa paisagem - disse ela com sua típica dureza de guerreira faogard.Na claridade rosada dos primeiros raios de sol, Talemine bebericava um chá bem quente para espantar o frio gélido que a noite havia trazido. Os olhos aplicados da faogard cuidavam do sono tranqüilo de Brian após muitas horas de sofrimento e agitação; a febre havia cedido e a respiração fluía normalmente debaixo da atadura grossa.— O que me diz... sobre a recuperação dele? - perguntou Guillermo a Talemine, quase num murmúrio.-O seu semblante é sereno e a cor voltou ao normal. Lembro bem quando Tríssia, a véussida, afirmou o quanto Brian é importante nessa difícil expedição. Alegro-me em dizer que o seu amigo vai sobreviver.A guerreira lançou um olhar satisfeito para o namorado.-Senti orgulho de você. Caso não acertasse o grípharus, Brian estaria morto agora.Guillermo correu as mãos pelo rosto cansado. Havia uma grande expressão de alívio no professor espanhol.-Foi apenas sorte de principiante, e o grifo estava tão ocupado com as suas flechas e com as

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arremetidas de Roger que nem reparou em mim. Mas foi um bom tiro.Ao abrir lentamente os olhos, Brian teve uma visão embaçada de Guillermo, Talemine e Margaret observando-o com olhares interessados. Quando se acorda assim, tudo se mostra confuso. Não foi preciso mais do que cinco minutos para Brian saber do que havia ocorrido. Brian ainda recuperou-se por cerca de uma hora quando finalmente era chegado o momento de verificar o resultado do trabalho feito nele. O pano foi removido com cuidado e o tórax nu, totalmente recuperado, exibia um desenho azulado de trinta e dois centímetros que corria verticalmente.Talemine forçou com o polegar a cicatriz resistente e flexível enquanto consultava Brian.-Está doendo?-Não, nem um pouco — então ele fez uma cara de desagrado para Talemine.— Não me diga que essa coisa azul vai ficar grudada em mim pra sempre, que nem naquele dragão.-Vai sim — respondeu ela com bastante naturalidade ao mesmo tempo em que arrumava sua bagagem alquímica para partir. — A handácea já é parte viva de você.Brian apalpou a sua nova pele azul como se tocasse numa lesma asquerosa.-Sinto cada toque - declarou ele, perplexo. - Isto é realmente parte do meu corpo.-É flexível como a pele humana e resistente como aço. Se você for atingido, mesmo pela

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lâmina de uma espada ou a ponta de uma flecha, nada lhe acontecerá— explicou Talemine, detalhadamente.Num teste final, Brian esticou-se e dobrou o tronco revitalizado, bateu os pés no chão e respirou inchando o peito; decididamente ele estava inteiro para viajar.Quando se despediram da encosta de arenito, o grípharus retornou ao ninho, recuperando seu reinado. O formoso ser mitológico havia se livrado da flecha de Guillermo usando o fortíssimo bico. O grípharus depositou o ovo, recolheu as potentes asas e caminhou duas vezes em círculos por sobre o ninho como um gato que se prepara para deitar.— Alguma coisa deteve o ímpeto assassino do grípharus - disse Talemine, ela admirava pela última vez o adversário feroz.Um enérgico bater de asas desviou novamente a atenção para o alto. O cilenante havia voltado, e dessa vez para integrar a caravana onde quer que ela fosse.-Ele pode nos ser bastante útil - declarou Chester todo orgulhoso. - Será o nosso batedor e enxergará o perigo de cima, bem antes que possamos perceber.A paisagem de arenito ficou distante, colorida de vermelho pela luz do sol matutino.

Capítulo 33OS DEUSES RECLUSOS

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A planície majestosa que findava o Venactane era cortada pelo Libenceon, o caudaloso rio limítrofe que anunciava o início do território de Drallêngia, o reino aliado de Faogard. Há quatrocentos metros pelo norte, havia uma ponte de tijolos reforçados que atravessava o rio para o interior do segundo maior país do continente cadecaliano. A leste, três colinas cônicas, os montes Niskepelon, serviam de marco para avisar que os viajantes estavam prestes a penetrar no imenso vale Dinfalein, o Vale da Veneração. Talemine deteve subitamente o seu gifenonte logo que cruzaram a ponte. O vento soprava de oeste para leste no princípio da manhã.-Estamos sendo seguidos — ela afirmou ao sentir o ar em suas narinas.-Tem certeza? — questionou Roger, girando o seu gifenonte para oeste e fazendo uso do binóculo. Ele não viu nada fora do comum.-Não há como meu olfato errar. São muitos homens em seus gifenontes. Mais de cinqüenta cavalgam à uma hora de nossa caravana. O vento trouxe o cheiro deles, o cheiro da morte: são arkoprômidas.Os gifenontes adiantaram o galope na direção das Niskepelon, as colinas do Dinfalein. Mas primeiro teriam que passar por pradarias descampadas antes de conseguirem abrigo entre as três elevações rochosas.Agora foi a vez de Marc estacar seu cavalo. Ele notou um grande movimento à frente. Muitos cavaleiros se aproximando em cavalgada ligeira.

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-Guerreiros drallengianos — disse Talemine ao reconhecer seus reluzentes trajes de batalha.Não tardou muito e cerca de cem guerreiros rodearam os forasteiros vindos do oeste.-São como um exército saído do mundo dos mortos — observou Marc, sussurrando para Daniel.Suas armaduras peitorais, exibindo um vulcão lançando chamas estilizadas, reluziam como bronze polido; os olhos amarelos se destacavam da pele cinza fazendo-os se parecerem com cadáveres ambulantes. Metade dos soldados sustentava longas lanças apontadas para cima, dando-lhes um poderoso aspecto de força e organização militar.Aquele que deveria ser o líder apresentou cumprimentos em gazivian. Talemine avisou que seus amigos não compreendiam a língua nativa e perguntou se o oficial drallengiano conhecia o idioma dos habitantes do extremo oeste. Ele assentiu com a cabeça.— Está muito longe de casa, guerreira, ou devo chamá-la... princesa de Faogard?— As notícias sempre correm como o vento pelo continente - disse ela em resposta, pois o guerreiro drallengiano se referia a recente coroação de sua mãe, a rainha de Faogard. - No momento estou em missão militar, portanto, trate-me como um soldado.— Desde quando enfeitiçam cilenantes para que os acompanhe como um nevolort treinado? - perguntou o drallengiano com os olhos fixos no

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cilenante que voava em círculos sem abandonar seus novos companheiros.— É um talento especial do nosso domador de cavalos — disse a faogard, indicando Chester. — Parece que não há cavalo que ele não possa amansar. A prova está bem aí, planando acima de nossas cabeças.O líder da tropa drallengiana modificou a expressão para um tom muito sério e pouco amigável, advertindo duramente.— Não gostamos de visitantes em Drallêngia sem nossa permissão.— Por toda a minha vida acreditei que nossos povos fossem aliados - disse Talemine desaprovando tal advertência. - E que como visitantes seríamos bem-vindos.— Faogards sempre serão merecedores de nossa hospitalidade — especificou o soldado drallengiano. - Desde que não nos tragam problemas, como motivos para uma guerra.O impetuoso gigenonte de listras vermelhas do drallengiano trotou impacientemente diante de Talemine. O guerreiro de olhos amarelos então proferiu palavras incisivas que fizeram os viajantes colocarem em dúvida a boa vontade de Drallêngia para com a expedição até Crassen.— Se nós entregarmos os seus amigos aos crassênidas, pouparemos Drallêngia de se envolver em uma guerra sangrenta de repercussão inimaginável.Ao ouvir aquilo, Roger levou a mão à cintura onde repousava a espada negra.

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— Não viemos até aqui para desistir — declarou Talemine com ferocidade. - E nunca traio meus amigos. Luto ao lado deles - ela sacou sua espada, posicionando-se para defender os amigos de jornada, mesmo que fosse obrigada a lutar contra cem guerreiros drallengianos.O oficial drallengiano sorriu e pronunciou.— Se essa é a posição de uma guerreira faogard, julgo que Drallêngia escolheu bem os seus aliados. Que as terras de Drallêngia os recebam com cortesia. Baixe sua espada faogard, pois está entre amigos.Os ânimos relaxaram e o guerreiro apresentou-se de maneira mais cordial.— Sou o comandante Milonícius das tropas do oeste que protegem as fronteiras ao longo do rio Libenceon até o sul. Enviarei um triônivo com as boas novas de sua chegada.Um dos soldados aproximou-se, havia agarrada em seu antebraço uma ave semelhante a um falcão de penas azuis da cor do céu. A cor de suas penas confundia o observador quando a velocíssima ave estava em vôo, tornando-a praticamente invisível no céu claro, tanto ao ataque de dragões e grifos quanto aos olhos de suas presas rastejantes. Quando o sol se punha, a plumagem do triônivo tornava-se negra como a dos corvos, para que a ave conseguisse voar camuflada e imperceptível no escuro. Milonícius prendeu uma mensagem numa gargantilha e soltou o triônivo que sabia exatamente o que deveria fazer. O pássaro bateu as asas e voou para algum ponto entre o leste e o sudeste.

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— Não somos os únicos a adentrar o Dinfalein - avisou Talemine. - Em breve dezenas de arkoprômidas cruzarão o rio Libenceon a nossa procura, e outros se somarão a eles. Creio que hordas de arkoprômidas se avolumam procedentes do sul e do norte.— Dois de meus soldados os guiarão para além dos Niskepelon. Vão para lá e aguardem na base do Cenoteorus. Daremos uma boa recepção a esses detestáveis arkoprômidas.Ao comando de Milonícius, a tropa cavalgou para as margens do Libenceon, as espadas e lanças alçadas para a batalha.Os três montes se agigantaram, e por um caminho entre dois deles, a caravana seguiu avante escoltada por uma dupla de guerreiros bem armados.A elevada estatura das três montanhas ocultava, na distância de dois quilômetros para o lado leste, o maior símbolo de adoração dos drallengianos: o Cenoteorus, a gigantesca torre mágica que impedia, por milhares de anos, que todo o planeta sucumbisse em um pavoroso cataclismo caso Wengarel despencasse do céu. A torre cilíndrica como uma coluna dórica atingia mais de novecentos metros de altura, e a sua base circular de construção Megalítica tinha quase cento e cinqüenta metros de diâmetro. Os próprios deuses a construíram, e três deles, Zanqeon, Niabardhian e Sargaleu, permaneciam, segundo uma lenda muito antiga, enclausurados em seu interior, e através do seu sacrifício, de seus poderes combinados e concentrados na

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pedra Kalizoel fincada no altíssimo topo do Cenoteorus, Wengarel permanecia fixa no firmamento, prisioneira, exatamente acima da magnífica torre. O Cenoteorus, agora escurecido pela sua longa existência, outrora resplandecera em um azul inconfundível como o da turmalina.Os visitantes, maravilhados, apreciaram o monumento de estupendas proporções que superava em altura até mesmo o inesquecível Kelatzandrus. Na base do Cenoteorus havia uma sinistra porta de metal negro medindo aproximadamente cinco metros de altura, as frestas que um dia contornaram toda a porta haviam se fundido com o restante da edificação, formando um maciço e impenetrável bloco; entalhados no sólido metal, baixos relevos retratavam as faces dos eternos deuses irmãos. Diante da única entrada, havia uma cúpula sustentada por dez pilastras esculpidas em formas humanas, representando cada um dos povos da Cadecália: faogards, drallengianos, anuabis, crassênidas, nesdulácios, esfégios, fherózios, gazívians, misantréios e paleandreses.A pequena caravana foi prontamente recepcionada por dezenas de soldados drallengianos guardadores da Torre da Veneração, como eles mesmos a denominavam.Talemine apeou, e num profundo gesto de adoração e respeito, abriu os braços e pôs-se de joelhos perante as portas dos três deuses. Ela se pôs de pé e caminhou por entre as colunas que contornavam a grandiosa cúpula das dez raças e deleitou-se ao aspirar o sagrado ar que a

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envolvia. No seu êxtase, os olhos da guerreira se tornaram prata para que ela compartilhasse aquele sublime momento com a sua querida irmã.— Eles estão lá dentro - disse ela ao sair do transe e voltar-se para seus amigos.— Pude senti-los, cada um deles.— Você quer dizer que... — Guillermo tentou entender.— Que os três deuses habitam o Grande Cenoteorus — ela explicou melhor. — O sacrifício deles os encarcera numa prisão eterna para que o mundo não termine em angústia e desgraça.— Um lugar bem apropriado - observou Daniel, analiticamente. - Quero dizer, para servir de morada aos deuses. Espetacular, é o que essa torre é.— Por toda a minha vida achei que deuses fossem etéreos como fantasmas - comentou Rafael, as mãos apoiadas na cintura, os olhos sem perder nenhum detalhe como um explorador que contempla uma notável descoberta arqueológica.— Eles são o que quiserem ser — esclareceu Talemine, ainda deleitando-se em comunhão com o Cenoteorus. — Por isso eles são deuses.— Impressionante como a torre aponta diretamente para Wengarel - disse Marc, a cabeça voltada para cima, a boca aberta em espanto.Quase uma hora havia se passado quando a cavalaria de Milonícius regressou das margens do Libenceon, suas espadas e lanças ainda guardavam o sangue dos arkoprômidas.

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— Aqueles animais enlouqueceram de vez — disse ele num misto de indignação e perplexidade, ele correu o olhar pelos seus guerreiros, alguns feridos e outros atravessados nos lombos dos cavalos, mortos em batalha. - Ainda que estivessem em menor número, de um para dois, nos enfrentaram com tamanha tenacidade que cheguei a pensar que o próprio Arkopromis tivesse guiado suas amaldiçoadas armas.Ele contabilizou as baixas e lamentou-se.— Drallêngia perdeu quatorze bravos soldados, contudo, o generoso Libenceon conduz as carcaças dos nossos inimigos, lambendo o seu sangue pestilento para depois vomitá-lo no mar longínquo - os olhos deixaram transparecer um ódio intenso quando ele pronunciou: — Matamos todos eles, os selvagens.— Sinto pelos seus guerreiros - disse Brian, manifestando seu aborrecimento por tanta matança. - Espero que essa guerra de que tanto comentam não se materialize.— Sobre esse assunto conversaremos em Ciáfragus — decidiu Milonícius mencionando a grande metrópole, capital de Drallêngia. - Sigo com vocês para onde o sol nasce. Uma escolta nos servirá de apoio enquanto a maioria de meus homens permanece aqui, resguardando o Cenoteorus - Milonícius recordou a hostilidade impensada do inimigo, justificando a presença de tantos guerreiros no Dinfalein. - Os abomináveis soldados de Arkopromis já tentaram destruir a Torre da Veneração por duas vezes: quando o fizeram pela primeira vez, nenhum de nós aqui

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era nascido, foi há muito tempo. Na segunda vez, eu era um garoto inexperiente que sonhava ser guerreiro de Drallêngia. A notícia se alastrou pelo reino. Lembro-me dos soldados atravessando os portões da cidade para defender a Torre. Atualmente um batalhão monta sentinela permanente em redor do Cenoteorus — ele endireitou o corpo sobre o gifenonte e definiu: — Reforçaremos a proteção com mais guerreiros para que os deuses não sejam importunados na sua sagrada missão.Na tarde daquele dia, os aventureiros e vinte soldados comandados por Milonícius viajaram para além das colinas rasas do Dinfalein, em estradas que cortavam fazendas de terras férteis e lavouras pródigas. Os camponeses, todos de pele cinzenta e grandes olhos amarelos, saudavam seus valorosos guerreiros e olhavam com estranheza para os forasteiros de pele clara; crianças drallengianas cochichavam entre si e riam contidas, o que era natural para os habitantes daquela região que nunca haviam visto um humano pela frente. Não se via homens jovens entre os moradores do campo, todos se encontravam nas áreas militares em treinamento.Milonícius obteve pouso para a sua comitiva em uma espaçosa casa rural e ordenou aos seus valorosos soldados que se montasse turnos de guarda durante o pernoite. As camas com colchões recheados de palha, de longe eram mais confortáveis que o chão duro dos

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acampamentos improvisados. Foi um sono pesado para os que puderam dormir a noite toda.Ciáfragus distava cinco dias desde o vale do Dinfalein. Os cavaleiros avançavam rapidamente pelos prados, deixando vilarejos e imensas plantações para trás.No quarto dia, Brian espantou-se quando contemplou o horizonte. Pesadas nuvens escureciam os céus do leste. Trovões distantes se prolongavam como se avisassem de uma copiosa tempestade se aproximando.— Tem alguma coisa errada com aquelas nuvens — ele estranhou, pediu auxílio às lentes do binóculo de Roger e observou mais de perto: - Muito esquisitas, eu poderia jurar que...— Não são nuvens de chuva — interrompeu Milonícius, uma expressão atribulada marcou seu rosto cadavérico.Os soldados drallengianos falavam e discutiam ao mesmo tempo como se alguma coisa muito grave estivesse acontecendo. Subitamente um triônivo mensageiro surgiu do céu, sobrevoando a expedição e buscando o antebraço de Milonícius para pousar. O comandante desvencilhou um minúsculo pergaminho preso ao pescoço do animal e pôs-se a ler apressadamente, a testa contraída, os olhos muito fixos no que lia. Então amassou a mensagem no punho cerrado e pronunciou algumas palavras em gazivian que fizeram seus soldados se agitarem ainda mais. Em seguida dirigiu-se aos forasteiros.

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— O Merasgor está entrando em erupção — Milonícius falava com desolação na voz. - Ameaça explodir a qualquer momento.— E o que isso significa? - perguntou Guillermo. — Pelo tom que usa as palavras, não se trata de uma simples erupção.— Ciáfragus cresceu em volta do Merasgor, o maior vulcão da Cadecália. Ele esteve adormecido desde a cataclísmica guerra travada entre os deuses e depois de incontáveis séculos ninguém mais acreditava que pudesse acordar. A capital abriga mais de quatrocentos mil drallengianos que poderão morrer em minutos se o vulcão explodir de repente.— Mas ele não dava sinais de querer entrar em atividade? — indagou Brian. - Tremores de terra e mudanças no comportamento de certos animais são comuns antes de um vulcão iniciar uma erupção.— Náo que eu saiba — respondeu Milonícius, sua aflição aumentava quando ele via as nuvens ameaçadoras espalhando-se lentamente. — Estive por mais de sessenta dias comandando as tropas no Dinfalein, e as mensagens que chegavam a mim nunca mencionavam qualquer atividade do Merasgor.Inesperadamente os cavalos desequilibraram-se a ponto de quase derrubarem seus cavaleiros. O chão abaixo deles havia sacudido por mais de cinco longos segundos.— Aí está o seu tremor de terra - disse Milonícius a Brian, logo que se recompôs. - Ciáfragus precisa de seus filhos. O reino de Drallêngia corre grande

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perigo se a capital desaparecer sob as cinzas do Merasgor. Não têm que vir se não quiserem - ele disse olhando para Talemine e logo para Guillermo. - Podem guardar uma distância segura caso o vulcão se torne destrutivo.— Iremos com vocês e faremos o que for preciso para ajudar - disse Talemine com determinação, pedindo apoio ao olhar para Guillermo que assentiu de imediato.Rumaram em velocidade para Ciáfragus, só parando em um ou outro riacho para abastecer as montarias.Utilizaram parte do período da noite para avançar pelas veredas quase apagadas e dormiram muito pouco nas curtas horas de descanso. A noite, o horizonte do lado leste se iluminava de vermelho das chamas distantes do vulcão.Quando o sol nasceu o seu brilho não foi visto, encoberto que estava pelo gigantesco teto de nuvens cor de chumbo. Ao cruzarem o topo de uma colina, avistaram os primeiros sinais da extensa capital de Drallêngia. Telhados escuros da poeira atirada do vulcão e ruas alvoroçadas de gente em desespero era o que se assistia por toda parte. Afinal, Ciáfragus fora edificada em torno do Merasgor como Milonícius havia descrito.O Merasgor, por sua vez, se mostrava um vulcão majestoso de quatro mil e seiscentos metros de altitude e encostas com ângulos suaves, o que aumentava consideravelmente a sua estupenda área de ocupação no centro da capital de Dral-

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lêngia. Uma tenebrosa fumaça espessa e escura no formato de um cone invertido era constantemente lançada da escancarada cratera da montanha explosiva, e se elevava a uma altura de trinta quilômetros sobre Ciáfragus, espalhando-se até o horizonte mais distante. O alvorecer não chegou naquele dia obscuro para o povo que se espremia aterrorizado entre as ruas. A cidade agonizante mergulhara numa assustadora penumbra. De tempos em tempos, uma forte explosão jogava incontáveis toneladas de poeira vulcânica no ar, agravando o pavor na população que insistia em permanecer, esperançosa num milagre dos deuses para abrandar o vulcão tomado de fúria. Era tanta a confiança no passar dos séculos em que o Merasgor jazia completamente extinto, que muitas casas subiam pelas encostas e se equili-bravam solenemente nos penhascos do vulcão como perdizes que ciscam imperturbáveis ao lado de um lobo faminto. Quando um vulcão da categoria do Merasgor inicia o processo de erupção, materiais como rocha derretida, cinzas, gases tóxicos e blocos de pedra que podem chegar ao tamanho de uma casa são catapultados com extrema violência matando tudo a sua volta.Fileiras de luzes de luminita avisavam que uma parcela dos moradores abandonava a cidade pelas estradas do sul e do oeste. Milonícius observou sua gente em retirada e comentou pesaroso:

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— Estão indo embora. Meu povo perde as esperanças - ele mal podia crer no que estava prestes a dizer. - Ciáfragus irá desaparecer ainda hoje se não houver um jeito de salvá-la. E sem Ciáfragus, sem a cabeça do reino de Drallêngia, Crassen conquistará uma estratégica superioridade emocional quando o espírito de luta do meu povo estiver enfraquecido.— Isso ainda náo aconteceu - disse Brian, levando ânimo ao nobre aliado. - Passamos por dificuldades inacreditáveis em nossa jornada e sempre encontramos um jeito. Deve existir uma solução. Pense.A interferência de Brian estimulou Milonícius a raciocinar com mais equilíbrio em meio à severa adversidade. Ele apertou firme a rédea de seu gifenonte e disse com a voz fortalecida:— Você pode ter razão, sábio estrangeiro. Vamos entrar em Ciáfragus. Preciso urgentemente ver umas pessoas.Lançaram-se pela estrada em direção ao portão oeste de Ciáfragus, o cilenante apoiando-os pelo ar. Multidões andavam com pressa, a mesma expressão nos olhos: medo e desesperança. Os homens chefiados por Milonícius cavalgavam em sentido contrário da massa de gente atordoada e em fuga. Pessoas contrariadas que deixavam seus lares falavam em gazivian coisas como lamentos e advertências. Milonícius inclinou-se em seu gifenonte e segurou pelo braço um drallengiano que carregava uma grande trouxa onde trazia seus mais caros pertences. Para os

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que entendiam gazivian, ouviriam o seguinte diálogo:— Onde estão o rei e os sacerdotes?— Todos reunidos no templo de Zanqeon. Fazem preces aos deuses e rogam proteção para Ciáfragus - o retirante olhou repentinamente para trás, abalado com outra explosão vinda do interior do Merasgor, e então voltou o rosto amargurado para Milonícius. - Recomendaram que nos afastássemos do vulcão, mas muitos se recusam partir. Preferem morrer a deixar suas casas.Milonícius encarou o homem, como se fosse falar algo que espinhava o seu coração, mas desistiu e apenas disse:— Siga em frente e se refugie além das colinas. Estará mais seguro.Quando entraram na cidade viram as ruas em polvorosa. Gente ajoelhada abraçada a imagens de deuses de pedra. Soldados do reino se empenhavam em colocar um pouco de ordem na confusão que tendia a se descontrolar, caso o Merasgor finalmente lançasse de uma só vez toda a sua devastação pelos ares. A cidade era iluminada pelos clarões dos relâmpagos que nasciam no interior da gigantesca coluna de cinzas e fumaça. Seria um espetáculo belíssimo se não trouxesse o clamor nefasto da morte.Milonícius conduziu seu gifenonte às portas do templo ao pé do vulcão. O lugar de adoração fora escavado na própria rocha basáltica do Merasgor, num admirável trabalho da engenharia drallengiana.

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No exato instante em que desmontaram e se preparavam para entrar, desabou uma chuva fina e constante de diminutas pedras-pomes, rochas efusivas porosas e muito leves que ao serem lançadas a grandes alturas, adquirem um aspecto esponjoso e se precipitam em quantidades incalculáveis em um raio de muitos quilômetros. O som das pedras-pomes caindo no chão e nos telhados lembrava uma chuva forte.Reunidos no interior do templo, encontravam-se os mais dignos sacerdotes e o rei acompanhado por doze soldados da sua guarda pessoal, todos com a atenção depositada em um pesado livro aberto numa mesa circular feita de um tipo de pedra clara. Ao fundo a grande estátua do deus Zanqeon com brilhantes olhos de luminita, ocupando o seu trono magnífico de basalto escuro e lustroso.— Milonícius! — exclamou o rei, abrindo os braços para acolhê-lo. De resto nada se entendeu enquanto os dois trocavam palavras apreensivas em gazivian.Milonícius fez rapidamente as apresentações.— Esse é o portentoso Livdonus, o monarca de toda a grande Drallêngia.O rei voltou-se para os visitantes, o velho rosto cinza esmaecido emoldurado por cabelos e barba muito brancos. Seu nobre traje longo em negro e dourado o diferenciava com magnificência.— Sinto recebê-los nessas circunstâncias, mas estou certo de que se compadecem do meu tormento - disse o rei, o semblante em desgosto.

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- Dói em meu coração pensar que Merasgor, o orgulho de Ciáfragus, poderá ser a sua ruína.— O Palácio, meu Senhor, como se encontra? - quis saber Milonícius.— Foi parcialmente destruído pelos tremores e pelas avalanches de cinza e lama que escorrem pelo declive - o rei Livdonus apontou para a mesa redonda onde trabalhavam os devotados sacerdotes do templo, e pôs os recém-chegados a par dos acontecimentos. - Os sacerdotes vasculham o milenar Livro das Mensagens à procura de uma resposta que nos livre de nosso infortúnio. Descobriram que o Merasgor, depois de ficar quieto por milhares de anos quando findou a brutal batalha travada entre os deuses, foi invocado por uma força maligna que o colocou contra o meu povo. E a única coisa que pode salvar Ciáfragus desapareceu há muitos séculos como está escrito bem aqui — ele indicou uma passagem no livro que falava sobre uma lenda.Mais um tremor balançou o templo e fez com que todos interrompessem o que faziam, os olhares receosos percorrendo as paredes. Pouco depois tudo se acalmou por um momento.— Eu posso olhar o que diz a lenda? - pediu Milonícius abrindo um espaço entre os sacerdotes que só falavam na língua gazivian.Ele debruçou-se sobre o livro muito antigo e leu os escritos com desvelo, depois ergueu os olhos e comentou consternado.— É a história de dois objetos muito poderosos. Um deles é um punhal mágico criado pelo deus

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do mal, Arkopromis: o Punhal de Skenágraca. Aqui diz que quando alguém cravava esse punhal no centro da cratera de um vulcão adormecido, toda a montanha voltava a vida, violenta e destrutiva como nunca esteve antes. O despertar do vulcão se dava de maneira muito rápida e surpreendente, exatamente como está acontecendo com o Merasgor — Milonícius acrescentou uma história curiosa que acabara de conhecer no velho livro: — Uma vez, faz cerca de três mil e quinhentos anos como mostra a data aqui mencionada, um fanático sacerdote do leste acreditando cegamente em uma lenda que falava sobre a terrível destruição de sua gente, apoderou-se do punhal enfeitiçado e atravessou o portal negro com o propósito de aniquilar os demônios que habitavam o mundo das trevas. Sabendo disso, uma ceiféride de Ninqa foi atrás dele com a missão de impedir a catástrofe, pois os dois mundos precisariam um do outro para coexistir, caso contrário, na destruição de um deles, o outro mundo também desapareceria. Agora essa parte é a mais interessante - Milonícius tocou o texto que havia lhe chamado a atenção. — Havia um segundo objeto, uma contra-magia que neutralizava o poder do punhal. Foi com esse artefato que a ceiféride acreditava impedir o ato macabro do sacerdote insano. O objeto deveria ser atirado na cratera antes do vulcão explodir totalmente, e assim, evitar a catástrofe. A ceiféride também desapareceu através da passagem mágica e nunca mais voltou.

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— Santorini! - exclamou Brian. — A ilha vulcânica do mar Egeu que está fragmentada como uma meia-lua. Pelo visto ela pode ter entrado em erupção nessa época, há mais de três milênios. Existem sérias pesquisas sobre o passado vulcânico da ilha.— Nesse caso, o sacerdote deve ter tido êxito, enterrando o punhal enfeitiçado na cratera do antigo vulcão - completou Guillermo, e levantou duas importantes questões. - Mas onde ficou escondido o tal artefato por todo esse tempo? E quem o trouxe de volta a esse mundo?— Náo pode ser o mesmo punhal - retrucou Milonícius. - Ouçam isto: "ao ser evocada, a faca do mal se liqüefaz para sempre na montanha de fogo como uma poção que se dilui no cântaro. Nunca mais pode ser vista e nem tocada. Passa a fazer parte do próprio monumento de morte que um dia fez surgir".— E quanto ao segundo objeto? - lembrou Margaret, ela estava bem atenta.— Ah, sim... aqui está - Milonícius voltou-se mais uma vez para o grande livro. - Era um pingente, um amuleto no formato de um medalhão que Ninqa confeccionou com o mais puro metal trazido das profundezas da terra.Milonícius virou a página e lá estava ele.— Esse aqui é o desenho dele - disse o drallengiano. — A marca sagrada de Ninqa.— Mas é a flor dentro do cristal! - exclamou Marc que prontamente lançou um olhar abismado para Roger.

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— Como o medalhão pode ter viajado por milhares de anos e acabar nas suas mãos? - questionou Talemine em tom de interrogatório, como se Roger não tivesse o direito de possuí-lo.Roger, sem saber o que dizer nem o que pensar, ficou estarrecido ao reconhecer a marca de Ninqa estampada no livro. Mas raciocinou rápido e lembrou que, embora inglesa, os antepassados de Helen eram gregos. Tornara-se fácil concluir que a família de sua amada havia guardado a medalha por mais de trinta séculos e que Helen fora a sua última guardiã. Havia até a possibilidade de os ancestrais de sua esposa não conhecerem o verdadeiro valor daquela jóia. Provavelmente Helen não o conhecia, pois jamais tratava a medalha dourada que trazia no pescoço como um objeto de tanto poder, ao menos não demonstrava saber de nada.— Esperem um pouco - interrompeu Milonícius. - Do que vocês estão falando?— Eles se referem a isto - disse Roger, puxando de dentro da camisa a corrente que deixou à mostra o lendário medalhão.Milonícius, o rei e os sacerdotes aproximaram-se curiosos e estupefatos, os olhos fixos na marca dourada conhecida por todos eles.— Inacreditável! — espantou-se o rei. — Os deuses enviaram vocês para salvar o meu reino.Milonícius explicava em gazivian aos sacerdotes que devolviam questionamentos e exclamações de admiração.— Só um momento, só um momento — disse Roger, as mãos espalmadas para aplacar os

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ânimos exaltados. — Nem sabemos se é o verdadeiro medalhão. Pode ser uma réplica.— O livro diz que o autêntico medalhão possui as mesmas medidas do desenho — informou Milonícius.— Pois veremos — decidiu Roger, e retirou a medalha de ouro do pescoço, levando-a até a página aberta.As dimensões da placa de ouro e a figura eram perfeitamente iguais.— Mas ainda assim pode ser uma cópia bem feita - insistiu Roger.— Só se tem um jeito de saber - disse Talemine considerando que o tempo se escoava. - Atirando-o na cratera.— E se não for o verdadeiro, perco a última lembrança de Helen.— E se for você evitará a morte de centenas de milhares de pessoas e salvará Ciáfragus de sua destruição. Essa gente está praticamente começando uma guerra por nossa causa, e talvez esse vulcão ainda dormisse como uma criancinha se não tivéssemos dado início a essa jornada - ponderou Brian, tocando o bom senso de Roger que refletiu por um momento.— Tem razão, estou sendo um tolo me apegando a uma coisa sem sentido — disse, dando-se por convencido. Logo o pensamento prático retornou a ele: — Mas como faremos para chegar lá em cima? Levaria dias numa escalada.— Isso é uma boa pergunta - concordou Daniel que conhecia bem de montanhas ao escalar costumeiramente os montes europeus na

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companhia de sua irmã e de seu pai. Sempre que possível, durante as férias, uma nova montanha era escolhida. Da última vez subiram o lado ocidental dos Pirineus e observaram raposas-vermelhas, esquilos e cervos da fauna local. — E o calor na boca do vulcão deve ser insuportável — concluiu, apresentando mais um problema.— Tem toda razão, rapazinho — disse o rei. — Não há tempo para organizarmos uma expedição ou mesmo prepararmos um voluntário. O material destrutivo que rola pelo Merasgor atrasaria e poderia até matar quem tentasse subir agora, sepultando o medalhão e as nossas esperanças.— E o cilenante? — sugeriu Chester. — Ele pode voar até a cratera e soltar o medalhão.— Ele não saberia fazer — disse o rei Livdonus depreciando a idéia. — E, além disso, um cilenante não voa tão alto, ainda mais num céu repleto de fumaça e explosões.— Mas alguém pode ir junto até aonde ele conseguir - persistiu Chester. — Depois é só escalar a encosta restante e fazer o serviço.— Muito bem, e quem convence o bichinho a enfrentar perigo tão extremo? — questionou Milonícius.— Eu mesmo posso tentar - respondeu o jovem domador de cavalos.— Temos uma maneira de saber se vai dar certo - disse Brian, finalmente. — Vamos lá fora.O cilenante aguardava sob um beirai na entrada do templo, protegendo-se de tudo o que caía do céu. Os demais cavalos, irrequietos, relinchavam e não paravam de trotar no mesmo lugar. As

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pedras-pomes não haviam dado nenhuma trégua e já formavam um espesso tapete ao longo das ruas e sobre as construções. O inferno deveria ser assim: tenebroso e com o odor tétrico da morte. Uma gigantesca explosão estremeceu os alicerces do templo, prenunciando que o pior viria muito em breve.— Não resta muito tempo, Chester! — gritou Brian. - Se tem que fazer algo, que faça agora.Chester abraçou a cabeça altiva do cilenante e colou o rosto junto à orelha comprida para pedir ajuda. Os grandes olhos castanhos do animal piscavam moderadamente. Chester parecia orar ou fazer uma súplica que só ele e seu amigo quadrúpede tinham a capacidade de compreender.— Ele é mais inteligente do que eu pensava — disse Chester, alisando uma das enormes asas ainda dobradas ao encerrar a sua conversa particular. Sem a luz do dia, o cilenante exibia uma cor cinza opaca; iria se misturar nas nuvens escuras e logo sumir do campo de visão. Chester apressou-se dizendo: - Preciso de rédeas para ele.— Imaginei que o cavalo faria tudo sozinho - disse Rafael. — Quem vai montá-lo?— Eu, é claro. Quem mais? — disse Chester como se ele fosse a única alternativa.— Não pode fazer isso — descartou Roger. - É uma missão muito perigosa. Convença o seu amigo a me levar.— Ouçam - Milonícius interferiu, a paciência se esgotando. — Para a nossa sorte, as paredes

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dessa montanha são excessivamente grossas, e isso está retardando a tragédia. Entretanto, o tempo exíguo não deve ser menosprezado. Acontece que um cilenante não consegue atingir uma altitude como a do Merasgor, muito menos carregando o seu peso, senhor Roger. Você deve ser quase três vezes mais pesado que o menino. O voluntário deve ser alguém leve que possa descer na encosta e daí iniciar a subida até a borda.— Eu me ofereço - disse Daniel. - Tenho experiência com montanhas e sou tão leve quanto Chester.Brian assistia a discussão e pensava que tudo aquilo deveria ser uma grande estupidez. Garotos comuns discutindo quem deveria voar num cavalo com asas e enfrentar um vulcão que poderia volatilizar quem se aproximasse.— Não há melhor escolha — teimou Daniel usando sua forte argumentação. — Tem que ser eu.— Então será você — sentenciou Brian, não havia certeza para ele se aquela fora a melhor decisão tomada.Chester ajeitou a rédea enquanto murmurava para o cilenante concordar em deixar-se montar pelo garoto inglês.— Isso é só para o meu amigo ter em que se segurar. Você não gostaria que ele agarrasse a sua crina e puxasse com força, gostaria? Quando voltar, eu prometo que liberto você disso. O cilenante, por fim, aceitou que o seu focinho comprido fosse preso aos incômodos ferros e correias.

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— Como pode ter certeza que ele vai fazer o que você está pedindo? - perguntou Daniel a Chester, antes de montar.— É um cavalo mágico, esqueceu? Confio nele. Suba de uma vez.Os sacerdotes prepararam uma máscara de pano com ervas para que Daniel não se intoxicasse com o ar venenoso. Quando amarrou a máscara atrás da cabeça, Chester ainda aproveitou para fazer um comentário em tom de brincadeira.— Daniel, você está se parecendo com um daqueles bandoleiros dos filmes de bang-bang.Chester entrelaçou as mãos fazendo uma escadinha para Daniel, que reclamou:— Não me sinto muito firme sobre ele — sua voz saindo abafada de dentro da máscara. - Acho que na primeira curva que esse bicho fizer eu despenco lá do alto.— Quer desistir, Daniel? — provocou Rafael.— Não vou desistir. Vou fazer o que é pra ser feito.Roger esticou a mão e entregou o medalhão de ouro.— Pendure em seu pescoço e vá com ele assim até chegar a hora de usá-lo.— E o cavalo, como vai respirar lá no alto sem se envenenar com os gases? — perguntou Rafael, prudentemente.— O sistema respiratório dos cilenantes tem um tipo de filtro que retém as impurezas do ar e só absorve o ar saudável — explicou Talemine, rapidamente. — Não estranhe se ele soltar uma golfada preta pelas narinas. É desse jeito que um cilenante se limpa por dentro.

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Milonícius deu as últimas orientações.— Preste atenção agora, rapaz. O vento sopra e empurra as nuvens negras para sudeste. Existe uma escadaria de pedra que começa por volta de duzentos teions abaixo da borda oeste, e sobe até o topo.— Uns trezentos metros, Daniel — lembrou Talemine.— Muito bem - continuou Milonícius está vendo para onde aponta o meu braço? É bem naquela direção — mostrou uma parte escura no flanco da grande montanha em ebulição para onde deveriam voar. Daniel balançou a cabeça para dizer que estava entendendo. — O cilenante náo terá condições de alcançar a borda da cratera, mas é bem provável que vocês consigam chegar próximo de onde começam os primeiros degraus. Desça na encosta e ache o caminho. Náo perca muito tempo lá em cima, as ervas que garantem a sua respiração só funcionam por cerca de duas horas. Jogue o medalhão com toda a sua força e volte o mais depressa que suas pernas agüentarem.Chester também mostrou ao cilenante para onde deveria voar, imitando os gestos do comandante drallengiano. Esfregou afetuosamente a mão no pescoço de seu amigo alado e se afastou para abrir espaço.O cilenante desdobrou as potentes asas, curvou as patas e saltou, distanciando-se mais e mais do solo. Daniel, experimentando um frio na barriga, via os companheiros, o templo e as casas

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próximas diminuindo de tamanho e serem escondidos finalmente pelo ar fumacento.A medida que subiam, o ar ficava mais pesado e quase impossível de ser respirado. A atmosfera estava tomada de dióxido de carbono, ácido sulfúrico e gases de enxofre, acompanhados de outros vapores nocivos. Entre uma camada e outra de nuvem escura, Daniel enxergava, a milhares de metros abaixo dele, as débeis luzinhas da metrópole que lutava para sobreviver ao implacável Merasgor. Nada mais se ouvia além do bater de asas do cilenante e o rigoroso estrondear do vulcão; e a cada sacolejada, o garoto pressionava os joelhos contra o corpo largo do animal que não parava de ganhar altitude. A encosta rochosa foi se aproximando até Daniel entender que era hora de pular. Por via das dúvidas, Daniel esperou chegar um pouco mais perto. O salto não foi dos melhores, mas ele conseguiu se equilibrar no terreno irregular e inclinado, apesar de esfolar as palmas das mãos ao cair de mau jeito. A visão era dificultada, todavia, após algum tempo de procura, Daniel encontrou o começo da escadaria como Milonícius havia dito. Logo se pôs a pisar degrau por degrau, sempre em frente; ao olhar uma última vez para trás, ainda viu o cilenante voar e desaparecer no meio dos rolos de fumaça.— Trezentos metros — sussurrou ofegante. — São só trezentos metros que me faltam.Apertou o nó atrás da cabeça para que os gases não penetrassem em suas narinas e enfrentou as escadarias, enfiando-se na escuridão.

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O ar rarefeito o fazia sentir-se como se tivesse corrido vinte quilômetros sem descanso; suas pernas começaram a falhar, não obedeciam direito por mais que quisesse firmá-las sobre os degraus; sua cabeça parecia que iria explodir como uma bomba. O calor era tão abrasador que provavelmente estouraria um termômetro. Daniel olhava para cima e, envolto em tantos gases cor de chumbo, só identificava três ou quatro degraus à sua frente. Quanto ainda faltava? Ele náo conseguia raciocinar direito, mas sabia que tinha de cumprir sua obrigação. Centenas de milhares de vidas lá embaixo agora dependiam dele.Daniel chegou a um patamar retangular e ficou aterrorizado quando viu com seus olhos impregnados de fuligem, um homem muito alto e ameaçador barrando seu caminho. Quem poderia estar ali naquele lugar inóspito, dominado por tanta hostilidade? Firmou mais uma vez os olhos e conseguiu perceber que não era um homem de carne e osso, nem mesmo era um espírito, mas uma estátua de Zanqeon danificada pelos constantes castigos que o Merasgor lhe impôs. Um curto tremor fez a cabeça da estátua soltar-se de seus ombros, cair pesadamente e parar aos pés de Daniel que se agachou e a abraçou com dificuldade; deveria pesar mais de quinze quilos. O jovem aventureiro arrastou-a para perto do grande corpo inerte, petrificado; então pediu, quase sem fala, e a grande cabeça de pedra dava a impressão de estar ouvindo.

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— Me arranje mais forças... seu povo tem que ser salvo... mesmo que a minha vida seja o seu preço — Daniel ficou ali parado por uns poucos segundos, encarando a cabeça disforme. Uma nova explosão o trouxe à realidade.A escada continuava para cima, passando ao lado do corpo decapitado do deus dos drallengianos.Daniel apoiou as mãos feridas nos próprios joelhos e ergueu-se num esforço doloroso, levando avante sua sacrificada peregrinação. Não suportava mais caminhar apoiado somente nas pernas fracas, dali em diante teve que engatinhar para não cair e rolar pelas escadas. Arrastava-se com a cabeça baixa e os olhos rentes aos degraus desgastados por infindáveis cortejos de adoração aos deuses, que se repetiam há milênios; as mãos feridas ardiam quando tocavam o chão duro e áspero. O medalhão pendia do seu pescoço, balançando num vai e vem sem parar. Daniel concentrava-se no brilho dourado e fraco da peça metálica, na flor e no cristal envolvente. Primeiramente foi a flor a emitir um brilho chamejante que se alastrou pelo cristal, e logo era todo o medalhão que irradiava uma luz avermelhada como fogo.— O medalhão... algo está acontecendo com ele — balbuciou o garoto que já começava a duvidar da própria sanidade mental.Daniel não estava sofrendo de uma alucinação, tampouco o artefato dourado que ele trazia no pescoço produzia qualquer magia luminosa. O que ele verdadeiramente viu foi um reflexo; e só

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ao erguer a cabeça dolorida pôde notar de onde vinha o rubor que cintilava como fogo. Ele havia chegado à imensa borda do Merasgor, uma caldeira fervente de mil e quatrocentos metros de diâmetro que borbulhava rocha derretida e fumegava como o inferno. Se não fosse estar usando a máscara feita com ervas especiais que faziam às vezes de filtro, Daniel estaria morto, envenenado pelo ar tóxico. Porém, ele sofria com o impiedoso calor que se desprendia da caldeira, apesar do vento forte empurrar os gases mortais para o lado oposto de onde ele se achava. Caso a corrente de ar se invertesse repentinamente, o corpo de Daniel seria reduzido a pó em segundos.Um fortíssimo tremor quase fez Daniel despencar para dentro da caldeira, e dali em diante, o Merasgor náo parou mais de mostrar a sua ferocidade avassaladora. Uma fratura com mais de duzentos metros abriu-se na encosta noroeste, derramando lava sob altíssima pressão. Todo aquele lado ameaçava desmoronar num espetáculo jamais visto pelos habitantes do continente cadecaliano.Daniel encheu os pulmões com todo o ar que podia; precisava arranjar forças para arremessar o medalhão bem longe, para o interior da caldeira que queimava igual a milhões de fornalhas; os vapores venenosos fizeram os seus olhos arderem e lacrimejarem como se fossem banhados em uma solução de pimenta; por fim, desvencilhou-se da corrente que o prendia ao objeto mágico e o jogou com toda a energia que

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ainda possuía em seu braço. Não havia mais nada a fazer, ele tinha que sair daquele lugar o quanto antes. Desceu a escadaria aos trambolhões, tropeçando nos degraus e pensando o que faria se a caldeira transbordasse todo o oceano de magma armazenado em suas entranhas. Decerto estaria morto e nunca mais o seu corpo seria encontrado. Após completar o último degrau, havia um caminho de terra que serpenteava descendo pela inclinação irregular da encosta. A trilha estava interrompida em diversos pontos por rupturas profundas e camadas de pedras-pome. Ele recostou-se um pouco para descansar e sondou com desânimo a paisagem nebulosa e desoladora. Perguntou-se como o cilenante o encontraria no meio da sombria cortina de cinzas suspensas no ar. Sua respiração se fazia mais difícil; a máscara estava perdendo o efeito.Dali a pouco, Daniel ouviu um fragor surpreendente como milhares de vidros estilhaçando, vindo de cima e de dentro da cratera. O som foi crescendo e aumentado, e se assemelhava a tiros de espingarda disparados no interior de uma igreja. A lava que jorrava pela grande fenda do flanco oeste estancou e endureceu como concreto, esfriando e cristalizando numa cicatriz esbranquiçada que logo assumiu a coloração rochosa escura do Merasgor. A fratura estava fechada.Os estampidos secos do basalto foram morrendo lentamente até que só restassem o vento e os trovões que nasciam no centro da gigantesca

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coluna de nuvens negras sobre o vulcão. Quem olhasse o Merasgor de cima, veria toda a extensão da caldeira coberta por um tampão de basalto sólido. A erupção havia sucumbido ao encantamento da antiga jóia dourada. O merasgor finalmente voltara a adormecer.Daniel enxugava os olhos ainda ardidos e ajustava o pano que lhe protegia o nariz, quando um movimento de asas revolveu a fumaça consistente bem à sua frente. O cilenante havia retornado para resgatá-lo.Imediatamente Daniel distinguiu alguém sobre o dorso do animal quando este se aproximou mais a ponto de quase tocar o solo. Era Chester, o rosto igualmente coberto com uma máscara de proteção contra os mortíferos gases. Chester gritou contente, estendendo a mão para que Daniel subisse em segurança.— Ótimo trabalho, Daniel, Ciáfragus está em festa. Você vai se transformar no herói da cidade. De todo o reino.— No momento só quero sair daqui - disse, quase sem voz. - Não consigo respirar muito bem - mencionou expondo uma cara de mal-estar. — O cilenante agüenta voar com o nosso peso?— Não se preocupe, descer é bem mais fácil.Chester mais uma vez ofereceu a mão a Daniel, puxando-o, e os dois foram levados através do denso nevoeiro vulcânico.Sobrevoaram praças e largas avenidas coaguladas de gente comemorando o fim do tormento. O cilenante fez um grande arco no céu e pousou suavemente diante do templo que por

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pouco não teria se transformado em um monte de escombros.O rei Livdonus fez logo questão de demonstrar sua gratidão oferecendo aos seus convidados de honra, alojamentos confortáveis em seu palácio. Daniel, por sua vez, precisou repetir incontáveis vezes como conseguiu aplacar o furioso Merasgor. Contudo, o jovem herói só queria mesmo era descansar; estava exausto e tossia além da conta. Com preparados e poções de gosto ruim, os melhores médicos de Ciáfragus cuidaram dele e o puseram para descansar em uma cama macia, livre do burburinho dos salões do palácio real.Chester cumpriu a promessa e libertou o heróico cilenante de suas desagradáveis rédeas. O rapaz se assustou quando o cilenante espirrou um repugnante muco preto em sua roupa.— Ei! Eu honrei minha palavra. Olhe o que você fez na minha camisa — reclamou enquanto olhava para o próprio peito respingado da gosma escura.Os drallengianos eram conhecidos pela sua determinação. E por serem assim, durante toda a madrugada ouvia-se os sons de pessoas trabalhando para limpar e reconstruir a portentosa cidade.Havia agora duas grandes preocupações: colocar tudo em ordem e, a maior delas, estabelecer uma barreira militar para bloquear o poderoso exército crassênida.Somente os drallengianos não seriam suficientes, apesar de sua bravura, para conter o avanço de

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Crassen. O apoio faogard se tornaria fundamental, e mesmo assim, corriam notícias de que os anuabis teriam firmado uma aliança militar com os crassênidas. Caso isso se confirmasse, uma expressiva vantagem estaria do lado inimigo. Também existiam fortes rumores que a Nesdulácia, o reino noroeste, e a Misantreia, país situado no sudeste do continente, penderiam para o lado de Crassen por questões geográficas e por convenientes razões políticas. Ninguém, além de Faogard e Drallêngia, seria imprudente a ponto de desafiar o poderio do exército mais bem equipado do reino mais rico da Cadecália. Todas essas possibilidades inquietavam os pensamentos do rei drallengiano reunido com os membros do seu conselho e os seus novos amigos. A madrugada seguia conturbada.— A erupção do Merasgor foi intencional - acusou Livdonus, ocupando o seu trono de basalto cravejado de esmeraldas, as sobrancelhas brancas sobre os olhos muito amarelos, contraídas em preocupação. - Foi um forte golpe para tentar desestabilizar o meu reino. Amaldiçoados sejam os que desvendaram o conhecimento do punhal de Skenágraca que enraivece vulcões.— A magia do punhal só poderia se manifestar pela vontade dos deuses ou por um feiticeiro que tenha poderes muito acima dos de um simples desenval ou véussida, majestade - informou Milonícius, apaixonado estudioso das escrituras milenares. — Para se forjar o punhal, são

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necessários tempo e profundo conhecimento. E ainda assim, seria preciso escolher o local certo: o poço de fogo de Skenágraca, a caverna na base do monte Tundagor em Misantreia. Um experiente feiticeiro levaria um excessivo número de anos para chegar ao resultado final. Muitas décadas provavelmente - Milonícius pensou melhor e especulou: - Ou o fabrico do punhal foi passado de geração para geração, ou alguém que possua a longevidade fez todo o trabalho sozinho.— Não existem muitos na Cadecália que estejam vivos a tanto tempo - disse o rei combinando as idéias, os dedos grossos entrelaçados. - A lista desses nomes é bem pequena: Nomaktus, Tríssia...— Klovanira! - interviu Talemine. - A filha de Arkopromis é muito poderosa, e viveu por milhares de anos nas profundezas do lago Zsenesh, majestade. Não faz muito tempo ela conseguiu escapar. Nós presenciamos sua fuga.— Conheço bem a história de Klovanira. E quase toda a Cadecália já tomou ciência das desventuras do grupo de vocês no deserto do Canormut - disse Livdonus, os cotovelos bem apoiados nos braços do altivo trono. — Meus espiões suspeitam que ela esteja escondida em Crassen, recuperando seus poderes... mas não, ela não teria tido tempo de fabricar o punhal de Skenágraca. Minhas desconfianças recaem sobre Gosferac, o Supremo de Crassen, um dos mais poderosos desenvals de todas as eras.

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Daniel sentiu-se bem ao despertar na manhã do dia seguinte. A medicina drallengiana era tão eficiente quanto a faogard.A primeira alimentação do dia foi servida no grande salão que dava vista para o lado sul, através de uma ampla janela que mostrava os telhados ainda carregados de pedras-pome e fuligem. O povo de Ciáfragus passara toda a noite trabalhando incansavelmente e ainda se esmerava para pôr tudo em ordem o quanto antes.Após o farto desjejum, Milonícius convocou os aventureiros a comparecerem mais uma vez no Salão do Trono, as feições do comandante drallengiano eram graves, embora ele nada mencionasse.Um alvoroço incomum de gente entrando e saindo do recinto real, indicou que algo muito importante estava acontecendo naquele momento. Todo o Alto Conselho se achava reunido diante de Livdonus, e a aparência do rei era tudo menos serena.Os olhos amarelos do monarca fixaram-se em Talemine, quando ele anunciou com austeridade.— O exército de Crassen marcha contra Drallêngia, cara aliada. Estamos em guerra.Embora aquela lastimável notícia fosse aguardada há algum tempo, saber que a guerra havia começado causou grande comoção. Tudo se tornaria mais difícil a partir dali. Realizar a travessia de desertos, desfiladeiros e florestas, infestados de seres fantásticos e perigos a espreita já se tornara corriqueiro; no entanto,

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numa situação de beligerância em que um pequeno grupo deve cruzar um território des-conhecido onde milhares de soldados inimigos querem a sua cabeça, era algo ainda não experimentado.— Tem alguma idéia de como a nossa caravana possa passar incólume pelos crassênidas e alcançar o Portal? - perguntou Roger avançando até o rei.— Apesar de numeroso, o exército de Gosferac não tem condições de vigiar todas as regiões de fronteira — disse Livdonus, buscando apoio nos olhos de Milonícius. — Certamente os seus soldados ficarão concentrados em setores estratégicos para desferir ataques contínuos, e assim, tentar minar os meus guerreiros. Desse modo, muitas brechas se abrirão entre Drallêngia e Crassen, e é através desses caminhos restritos que um número reduzido de viajantes consegue levar vantagem, passando praticamente despercebido tal como insetos que rastejam nas pradarias. Mas espere. O cabo dessa espada me é familiar.Livdonus, observador, notou pela primeira vez a empunhadura negra que sobressaía da bainha presa à cintura de Roger.Num movimento longo, Roger desembainhou a poderosa espada negra aos olhos abismados dos drallengianos.— A Espada de Ninqa! - exclamou Livdonus, erguendo-se de seu trono e aproximando-se com admiração e reverência.

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O rei apreciou, assombrado, os desenhos sulcados no corpo da arma espetacular. Conhecia a lendária espada através das gravuras que estampavam os livros antigos.— É realmente a Espada da deusa Ninqa? — indagou Livdonus, ainda incrédulo. — A arma que levou o povo de Andrus à vitória?— Ninqa está do nosso lado — interviu Talemine. — Quando a guerra se findar, nosso triunfo ficará para sempre na história, majestade. Sim, é ela, a genuína Espada que derrotou o terrível monstro da montanha.— Deixe-me tocá-la... ao menos uma vez — sussurrou Livdonus, tateando a espada com seus dedos cinzentos como a pele dos mortos, o semblante em incontido fascínio. — Como a conseguiram? Essa relíquia estava desaparecida por milênios.— A Espada não repousaria em meu poder se não fosse pela vontade da deusa, grande rei — explicou Roger. - O Elmo e o Escudo também estão sob nossa guarda. E quando isso tudo acabar, o tesouro sagrado de Paleandrus será devolvido aos braços da bondosa Ninqa.Comovido pela visão da Espada, Milonícius recitou de memória uma passagem que lera no Livro das Mensagens.— "O portador das Armas de Ninqa usará a força de um exército. Os adversários cairão à leste e a oeste, ao sul e ao norte, e pelos vales e montanhas; e até no horizonte mais distante somente se conhecerá a perdição do inimigo".

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Livdonus aprumou o tronco e proferiu com voz firme:— Agora sei que a vitória será nossa. Ninqa escolheu por quem lutar — ele correu os olhos por todos no salão, não tinha mais nenhum tempo a perder. - Meu fiel comandante Milonícius, o cerimonial dos guerreiros está pronto para começar?— A sua vontade, majestade.O rei atravessou o amplo salão, arrastando as bordas de sua longa indumentária pelo chão, e com um gesto ordenou que duas grandes portas se abrissem deixando à vista um enorme espaço aberto ao ar livre sob o céu ainda nublado de pó vulcânico. Ouviu-se uma balbúrdia do lado de fora do palácio. Um coro de milhares de vozes saudava a aparição de seu soberano. Incontáveis soldados perfilados diante da sacada que se elevava cerca de doze metros do solo, era um cenário espetacular do poderio de combate. Até onde a vista alcançava, só se via guerreiros com seus coletes da cor do bronze e lanças com as pontas erguidas para o alto; animais preparados para a guerra como os dranctos de três chifres, uma variação dos dranctos utilizados pelos faogards; cramakaus, animais da estatura de um rinoceronte africano, revestidos por uma grossa pele encouraçada capaz de suportar lanças e flechas, seus únicos pontos fracos se localizavam na parte inferior do pescoço e abdômen. Os cramakaus eram usados como verdadeiros carros de combate para destroçar arqueiros e lanceiros do lado inimigo.

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Milonícius convocou os convidados a se unirem ao rei no grandioso cerimonial que estava a ponto de ter seu início. Em menos de uma hora, todo o contingente de vinte mil guerreiros partiria para o norte com a missão de reforçar o exército drallengiano posicionado em uma das linhas que dividiam os reinos de Drallêngia e Crassen. Muitos outros soldados já estavam sendo treinados e aparelhados em diferentes províncias para cobrirem os limites norte e sul do território do rico país do povo de pele cinza. A propósito, Drallêngia guardava a maior reserva de luminita do continente, além de produzir mais da metade de todo o ferro da Cadecália e possuir imensas minas de níquel, cobre e ouro. Um país rico que se permitia prover todos os seus guerreiros com reluzentes armaduras feitas de uma liga semelhante ao bronze, porém, duas vezes mais resistente. Não fosse só isso, o solo de Drallêngia, por ser de origem vulcânica, era um dos mais férteis que se conhecia, produzindo alimentos suficientes para atender a toda a sua população e ainda abastecer a Misantreia, a Nesdulácia e a região oeste de Crassen. Contudo, o fornecimento de comida estava cancelado havia algum tempo, e isso exasperava Gosferac, o todo-poderoso do império crassênida.A um comando dado por sonoros clarins e largos tambores ritmados a quatro mãos, uma clareira de guerreiros se abriu no centro do pátio de apresentação. Apenas um soldado, um oficial diferenciado pelo seu colete prateado, permaneceu bem no centro do campo de

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exibição. Aquele era Beliafos, o comandante em chefe dos soldados que se exibiam com garbo para seu adorado rei. Ao som de uma empolgante música marcial, o guerreiro de prata colocou-se em marcha, dando início a uma coreografia extasiante que abrasou o orgulho de Livdonus, as mãos firmemente apoiadas no parapeito da sacada suspensa.O desfile combinado com a música alta era contagiante. Algo de arrepiar. Uma encenação perfeita que, a partir de um único guerreiro, desencadeou várias formações de quadrados, retângulos e triângulos de soldados marchando numa demonstração de unidade e funcionalidade como se todos os elementos daquele exército fosse um só corpo.— Uma progressão geométrica — observou Rafael, debruçado sobre o muro.— O que foi que disse? - perguntou Marc, distraído, absorto com o desfile.— Náo vê? A formação dos soldados é uma impressionante progressão geométrica: um, dois, quatro, oito, dezesseis soldados que vão se somando e se encaixando em grupos cada vez maiores.— Pelo visto está gostando, rapaz — disse Livdonus, os olhos de tão amarelos nas órbitas, pareciam brilhar como puro ouro.— Ah, sim. Estou gostando sim, senhor, ou melhor, sua majestade.Havia diferenças entre os guerreiros faogards e drallengianos: os primeiros eram mais aguerridos e emocionais, sobressaindo a sua fúria no ato da

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batalha; os drallengianos eram mais estratégicos e metódicos, e varriam os inimigos com precisão. Um dia seria possível ver os dois exércitos lutando juntos, na maior guerra entre povos no que a Cadecália serviria de palco.Quando a apresentação das tropas terminou, Beliafos, o comandante de prata, estava exatamente posicionado à frente de um gigantesco retângulo de guerreiros, seu colete prateado destacando-se dos outros milhares de coletes de bronze. Era como se dissesse ao seu excelso soberano: estamos prontos para seguir e guerrear, Livdonus.O rei ergueu os dois braços e os dirigiu para o norte. A ordem real fora dada. Os vinte mil homens colocaram-se a caminho imediatamente, incentivados pelos clarins e tambores estrondeantes.— Acompanhem-me — disse providencialmente o rei, conduzindo Talemine pelo braço. - Agora temos que cuidar dos planos para vocês.Retornaram ao salão régio e Livdonus assumiu seu lugar no escuro trono de basalto.— Em breve, triônivos voarão sobre Ciáfragus, trazendo notícias das frentes de batalha — disse ele. — Conforme o desenrolar do conflito, redistribuiremos nossas tropas, mas... entramos nessa luta armada em desvantagem.Daniel não compreendia a mecânica do embate entre os dois lados e expôs o seu ponto de vista.— Seu exército é muito numeroso e me parece bem armado. Não devem ter muita dificuldade em vencer os tais crassênidas.

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— Que bom se fosse assim, estimado rapaz. Contudo, receio que seja bem diferente. Os crassênidas não são difíceis de vencer por serem fortes, mas porque são muitos, centenas e mais centenas de milhares. Sabe como eles são conhecidos? - Daniel negou com a cabeça. - Homens-formigas: fracos na aparência, mas tantos que estão na proporção de oito para cada um de nós. Possuem armas eficientes e uma enorme manada de gigantescos animais que fazem frente aos nossos dranctos e cramakaus. E nossa condição piora se os Anuabis entrarem na guerra. E é isso que está para acontecer... se já não aconteceu.Livdonus deixou seu trono e andou pelo salão ao acaso, enquanto continuava expondo a delicada situação.— Já viu um anuabi... Daniel, esse é o seu nome, correto?— Daniel Crowley, senhor. Não, nunca vi um pessoalmente, mas sei como eles se parecem nas cartas de dakenkal.— Então deve ter percebido como eles têm uma aparência selvagem, e sabem de fato ser terríveis quando entram em uma briga. Se por ventura perdem suas armas numa luta, não hesitam em usar os dentes afiados para rasgar a carne do inimigo. São fiéis aos propósitos que acreditam... e creem totalmente na profecia do Portal, aquela que anuncia a chegada dos demônios que trazem o presságio sobre a ruína dos povos do leste... vocês são esses demônios para eles.

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— Já ouvimos sobre a lenda — disse Margaret. — E se ela for verdadeira, então temos mesmo que chegar ao Portal do leste para que a profecia se cumpra.— Se for tão simples assim para que os reinos do leste caiam derrotados, daremos toda a ajuda ao seu pequeno grupo - disse Milonícius no momento em que desenrolou um mapa e indicou uma cadeia de montanhas no lado nordeste de Ciáfragus, uma vasta e quase intransponível fronteira natural que separava os dois reinos. Ele continuou com suas orientações: - Nenhum comandante que tenha juízo se atreverá a enviar suas tropas através das Fossálidas, as montanhas-labirinto como são chamadas. As rochas são instáveis e constantemente ocorrem desmoronamentos. As tropas que se arriscassem por aquele caminho conheceriam muitas baixas e chegariam bastante enfraquecidas no lado oposto — por fim, ele enrolou o mapa e alertou os aventureiros: - As fronteiras livres foram fechadas pelo exército inimigo e sabemos que a cada hora mais guerreiros chegam para fortalecer o bloqueio. Apesar do perigo, creio que as Fossálidas são a melhor opção de ingressarem em Crassen.— E quando devemos partir? - indagou Brian. - Não nos sobra mais tempo.— Imediatamente — disse o rei. — Providenciei coletes e elmos para sua proteção. São de uma liga reforçada não obstante serem leves e confortáveis — enquanto Livdonus descrevia o aparato militar, serviçais traziam armaduras da

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cor do bronze e as depositavam no chão. As couraças peitorais eram constituídas de pequenas chapas sobrepostas atribuindo-lhes um aspecto escamado; essa técnica fazia com que o colete se tornasse mais resistente a impactos e perfurações.Em seguida foi o momento de Milonícius passar mais informações.— Um destacamento de vinte dos meus audazes cavaleiros os escoltarão até a entrada das Fossálidas. Dali por diante será com vocês... e lembrem-se, não sabemos o que encontrarão nas terras de Gosferac. O rei de Crassen não é um tolo.Gosferac é um experiente desenval que fará de tudo para destruí-los e pôr um fim à profecia. Desviem de Benavastan, a capital de Crassen. Ela é uma cidade fortificada praticamente impenetrável, protegida por guerreiros preparados e com um único propósito, o de matar. Suas torres altas vigiam o horizonte á procura de visitantes indesejáveis. Não há como se aproximar sem ser visto.— Quanto ao seu avô - disse Livdonus lançando um olhar respeitoso para Talemine -, não tive ainda oportunidade de falar dele para você. Era um desses amigos que não se conhece outro igual em toda uma vida - ele fitou Talemine por uns poucos instantes e viu traços de Tuldoror, o rei morto, na guerreira. — Tuldoror iria com a sua espada aos dezesseis vértices do Havormum por uma causa em que acreditava. E seria capaz de entregar a vida para defender aqueles que

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amava, como um verdadeiro rei. Sei que a mão de seu querido avô guiará a sua na batalha quando chegar a hora. Que o seu espírito magnânimo viva eternamente nos jardins de Kalípria - então a voz de Livdonus se fez mais forte. - Vá, guerreira! Honre o nome de Tuldoror nas terras dos nossos inimigos. Nossos olhos ainda se cruzarão com orgulho nas planícies de batalha, intrépida guerreira faogard.No tempo em que a caravana se distanciava de Ciáfragus, os ventos das altitudes dissipavam as nuvens negras do Merasgor para o leste, como se uma tenebrosa sombra enviasse um sinistro aviso a Gosferac.O límpido céu azul da tarde resplandeceu no oeste. No fim daquele dia, os habitantes de Ciáfragus viram outra vez um sol alaranjado deitando no horizonte.

Capítulo 34NO REINO HOSTIL

Dois dias se passaram desde a partida de Ciáfragus, e ninguém poderia supor que o reino de Drallêngia estivesse em guerra ao ver os campos cultivados e a vida correndo serenamente nas vilas e fazendas do povo de olhos amarelo-ouro.Invariavelmente escolhiam caminhos despovoados e pouco acessíveis para diminuir o risco de serem vistos.

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A caravana escoltada por silenciosos cavaleiros, percorria uma estrada de terra por entre bosques de grandiosas cimelênias e vingáfias que suavizavam o sol intenso da tarde.O cilenante traçava um voo por cima das árvores e trazia Chester como seu leal companheiro de investidas pelo ar. Cavaleiro e montaria alada cortavam o céu e foram pousar sobre a relva onde o bosque acabava. O cilenante encolheu as asas que cintilavam na luz do dia e abocanhou um feixe de pasto vicejante, ao mesmo tempo em que Chester aguardava a passagem dos companheiros que ainda se embrenhavam pela mata.Além do bosque, mais campos, mais cultivo, mais fazendas que prosperavam alheias à guerra que acontecia distante.Chester e seu inseparável cilenante agora cavalgavam, alinhando-se com os viajantes em galope cadenciado.— Troque de gifenonte, Chester - aconselhou Talemine. — Os cilenantes não estão acostumados a longas caminhadas como os quadrúpedes normais. Suas asas são muito pesadas para serem carregadas por longas distâncias.Chester saltou para o seu cavalo de jornada e livrou o cilenante de seu peso. O garoto igualou outra vez sua montaria com a de Talemine quando ela perguntou.— Que nome tem o seu amigo cilenante?— Não sei. Não pensei nisso — respondeu ele, coçando a nuca.

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— Tem todo direito de batizá-lo - disse ela. - Afinal, se o seu parceiro nos acompanha, é por sua causa. E pelo que me lembro, Ciáfragus não sobreviveria sem o auxílio do cavalo com asas, e sem o seu belo trabalho de mostrar a ele como deveria proceder, voando até o vulcão.Chester pensou por um momento, e disse:— Como se traduz asas de prata para gazivian?— Denáculus - disse a guerreira faogard sem desgrudar os olhos da estrada.— Denáculus... Denáculus. É um bom nome. É como ele vai se chamar. Denáculus — aprovou Chester, e gritou para o cilenante que planava em círculos. — Ouviu, meu valoroso amigo? Agora você tem um nome! Denáculus! Denáculus, das asas de prata!Durante a noite, sob um céu estrelado e de nuvens adelgaçadas, armaram acampamento aos pés da cachoeira que despejava as águas do rio Catranaia, que irrigava as fazendas dos arredores de todo o vale a leste de Ciáfragus. Uma patrulha local composta de treze drallengianos se banqueteou na companhia deles, comendo peixes assados tirados do rio. O chefe do patrulhamento disse a Talemine que milhares de guerreiros anuabis se dirigiam para o norte de Drallêngia. Em conjunto com as forças crassênidas, tentariam sufocar o exército drallengiano num ataque maciço e fulminante.O interior de Drallêngia parecia desconhecer o flagelo que se travava nas fronteiras. Não havia medo e nem desespero nos rostos das mulheres e crianças que saíam pela manhã para cuidar de

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suas vidas, lavrando a terra e cuidando dos ani-mais. Dava a impressão que a paz viveria ali por mais mil anos. E naquela calma a viagem se deu por outros seis dias, quando avistaram a sinistra cadeia de montanhas de paredões negros: as Fossálidas.De certa maneira, as Fossálidas eram como uma versão maior dos rochedos pontiagudos que rodeavam a Ilha da Coroa. Imponente e misteriosa, a barreira de montanhas se alongava por, pelo menos, sessenta quilômetros de norte a sul, como um monumento às diferenças seculares entre Crassen e Drallêngia. Um gigantesco monstro de pedra espinhento que dormia seu sono eterno.Não havia nenhuma trilha, uma simples picada que conduzisse à base das Fossálidas. Ninguém nunca ia lá. Só mato alto habitado por cobras peçonhentas e insetos impertinentes separava a única estrada das muralhas escarpadas.Roger correu os olhos pela estrutura rochosa, e sem demora falou a Chester como um general que se dirige ao seu comandado: Você e seu cavalo voador vão por cima. Os picos não são muito altos e acho que os riscos serão menores que pelo interior das Fossálidas — em seguida ele lançou um olhar mais severo para o rapaz, querendo que cada palavra fosse obedecida ao pé da letra. — Em caso de perigo, volte. Entendeu? Se esconda, entre as nuvens se necessário. Não se deixe ver.Chester fez que sim com a cabeça, recordando os tempos em que Roger era rigoroso, quase bruto,

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comandando as aulas de Educação Física. Era o jeito dele, ao se dedicar para que as coisas dessem certo, sem falhas.Antes de se despedir e desejar boa sorte, o comandante da escolta drallengiano revelou uma estreita greta, quase imperceptível, que servia de passagem ao interior do labirinto obscuro. A fenda, de pouca largura, náo permitia mais que dois cavaleiros lado a lado. Pequenos seixos caídos das encostas retas atrapalhavam o caminho, fazendo os cavalos quase tropeçarem. Muitas outras pedras, ao despencarem pelo extenso corredor tortuoso, ecoavam como se tudo fosse desabar. Certos trechos eram apertados, formando túneis asfixiantes onde apenas um cavaleiro passava de cada vez; alguns, ainda mais afunilados, obrigavam os viajantes a desmontarem e cuidarem para que suas montarias não esfolassem o dorso no teto baixo. Em outros trechos o terreno era desnivelado, se assemelhando a degraus disformes que faziam os cavalos subirem e descerem e seus cavaleiros quase baterem a cabeça na cobertura sólida.Parecia que era só seguir em frente quando a primeira dificuldade se apresentou. Uma bifurcação. As duas se perdiam em curvas e não havia nada que sugerisse a opção correta.— Abrem para lados diferentes, como um "V" — constatou Guillermo.— Pode ser que se unam mais na frente - disse Marc. - E pode ser que os dois caminhos nos levem pra fora das Fossálidas.

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— Há uma rajada de vento vindo dos dois lados - sentiu Talemine. - Nesse caso você pode estar certo, Marc.— E se usarmos o mapa mágico? - propôs Rafael. - Quem sabe ele nos mostra a saída.— Creio que o mapa não vai nos ajudar dessa vez - disse Brian em desacordo. — Ele só aponta destinos geográficos. Duvido que mostre a direção se simplesmente alguém proferir a frase "saída das Fossálidas".— Talvez funcione — insistiu Rafael.— Está bem — aceitou Brian. — Não custa tentar. Talemine, você tem a pronúncia correta. Sabe como proceder.Ela estendeu o mapa e soletrou "saída das Fossálidas" em gazivian. Esperou.— Não deu certo — disse a faogard.— Tenho um método mais eficaz — intercedeu Guillermo. — Cara ou coroa. Alguém tem uma moeda?Os garotos riram, mas Brian não achou nenhuma graça.— Tenho uma idéia melhor, você vai na frente e volta para nos dizer onde é a saída. Enquanto isso ficamos aqui, jogando dakenkal e contando piadas.— E se eu não voltar... — completou com um sorriso de quem espera uma resposta indesejada. Escolhemos a outra passagem e escrevemos um comovente epitáfio na saída em sua homenagem. "Aqui jaz um herói que morreu fazendo gracinhas" - declamou, deslizando a mão no ar tocando uma placa de bronze imaginária.

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Se não há nada que nos dê uma pista, podemos fazer uma votação — disse Margaret. Não contem comigo — escapuliu Rafael. — Normalmente faço escolhas erradas. Ótimo! — Daniel exclamou como se houvesse achado a solução. — Decida-se por um dos lados e nós iremos pelo outro. Está fazendo escola, Guillermo - observou Brian. - Outro engraçadinho no grupo.Após tantas discussões sem sentido, optaram pelo desfiladeiro da esquerda. Rafael murmurou a si mesmo que escolheria ir para a direita. Teoricamente estariam certos.A senda permanecia monótona, a não ser pelos minúsculos seixos do tamanho de bolas de gude que volta e meia desabavam sem escolher o alvo. Se não fosse pelos elmos oferecidos pelos amigos drallengianos, já haveriam algumas cabeças rachadas.Rafael notou algo que não se fazia muito lógico, e ponderou como um geólogo experiente. Pensem na formação das Fossálidas. Toda ela deve ter milhares ou até milhões de anos. E daí... - disse Marc, seus olhos mais atentos nas elevações de pedra. Por todos esses anos deve ter chovido tantas pedrinhas, que esse desfiladeiro comprimido certamente estaria abarrotado por metros de cascalho. Olhem, há tão poucos no chão que eu diria que alguém varre esse lugar todas as semanas. Que nem os fenóferos de Paleandrus - lembrou Margaret.

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Não me surpreenderia ver um por aqui — disse Marc. — Os fenóferos são criaturas solitárias dadas à quietude.A percepção de Rafael mexeu com Brian. Onde teriam se metido as toneladas de fragmentos que se soltavam dos paredões? Quem as teria tirado de lá se ninguém costumava usar as Fossálidas ou sequer chegar perto?Daniel se mantinha atento e percebeu algo diferente. Está tudo muito quieto. Tudo está muito quieto desde que chegamos, Daniel — disse Rafael. Não — corrigiu Marc. — Entendi o que Daniel quis dizer. O cascalho não está mais se desprendendo. As Fossálidas silenciaram.Margaret fez uma cara como se sentisse seu estômago revirar. Eu estou tremendo ou o mundo inteiro é que está?Os gifenontes ficaram em alvoroço quando suas pernas oscilaram.— Um tremor de terra, mas náo se preocupem, é muito lev... — Marc foi interrompido quando o solo cedeu quase embaixo dos seus pés, abrindo um abismo que interrompeu a passagem.— Isso não tem fundo! — gritou Brian, e foi apanhado de surpresa por um estrondo abafado de rochas pesadas caindo na água.— Agora tem! - disse Marc, olhando para a escuridão lá embaixo.Mal teve chance de terminar o que dizia e o chão de pedra onde sua montaria pisava mergulhou

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em um abismo profundo, levando em uma queda fatal o cavalo do francês. Por sorte suas botas não se enroscaram nos estribos ou ele terminaria no leito de um rio subterrâneo. Marc se segurou como pôde na borda do buraco sem fim. Seus dedos começaram a escorregar com o abalo que não havia cessado.— Segure-se, Marc! - berrou Brian e esticou a mão para o menino.Brian agarrou o pulso de Marc e puxou de uma vez.— Meu cavalo! Droga, perdemos outro! - protestou ao sentir-se bem seguro sobre suas pernas.— Pena ter acontecido, mas da mesma forma, poderia ter sido com você — disse Brian, olhava para todos os lados, sabia que ainda não havia acabado. - Vamos nos afastar da beirada.Mais adiante um novo desmoronamento carregou mais pedaços do desfiladeiro.— Não há como passar! — avisou Roger que agora desconfiava da estabilidade de toda extensão da fenda. - Só nos resta o outro atalho.— Agora sabemos para onde vão os seixos que caem das encostas — disse Rafael. — Vão todos para os subterrâneos, em galerias cheias de água. Uma excelente maneira de se manter esse lugar limpo.Fugiram de volta torcendo para que o chão onde pisavam não cedesse. Não havia onde se agarrar. A queda seria inevitável.Voltaram cinqüenta, oitenta, cem metros. Nada de localizarem a segunda passagem.

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— A bifurcação deveria ficar por aqui — calculou Talemine. — Deve ser, pois nesse ponto o caminho faz um pequeno desvio para a esquerda.A faogard sacou da espada e raspou a lâmina nas paredes, procurava uma fresta ou qualquer encaixe que denunciasse a outra saída.— Não há nada com essas rochas. É como se esses paredões sempre estivessem desse jeito.— Essa montanha não vai nos fazer de bobos - disse Roger, ao mesmo tempo em que sacava a espada negra, os dentes rangendo de impaciência. - Bem aqui, onde o desfiladeiro se curva para a esquerda, essa parede não deveria estar nessa posição impedindo a passagem, deve existir um corredor atrás dela que complete a bifurcação. É isso mesmo? Eu apostaria minhas férias como você está certo — incentivou Guillermo. Ótimo. Era o que eu precisava ouvir. Afastem-se.Roger rosnou com raiva quando o primeiro golpe foi dado. E o segundo. E o terceiro. A espada enfeitiçada lhe passava um vigor tão extraordinário que ele poderia ficar golpeando daquele jeito pelo resto da vida. Estou conseguindo enxergar o outro lado! - gritou Margaret com alegria, assistindo o bloqueio de rocha cair aos pedaços.Mas uma coisa surpreendente começou a acontecer: a abertura feita pela poderosa espada de Ninqa tentava se fechar, se reconstituindo rapidamente.

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Não pare agora, professor Roger! - estimulou Daniel. Não vou parar! Ou eu ou esse labirinto, um de nós dois será transformado em poeira.Como uma ferida que cicatriza numa velocidade estonteante, o buraco na pedra lutava para impedir que Roger desobstruísse a passagem. A cada choque da lâmina contra o rochedo, a fenda se quebrava mais e se recompunha logo depois. Roger então viu que entre uma bordoada e outra havia espaço suficiente para seus amigos atravessarem, um por um, saltando rapidamente como um artista de circo que pula através de um aro em chamas. Ele disse então, sem interromper as estocadas, de que jeito deveriam fazer para passar. E os cavalos, professor? — questionou Marc, medindo a pouca abertura. — Eles não têm como atravessar por esse buraco diminuto. Esqueçam os cavalos — disse rispidamente. - Soltem os alforjes e façam com que eles retornem a Drallêngia. .Antes que essas paredes mudem novamente de lugar.Os gifenontess foram afugentados e conforme Roger orientara, a cada dois ou três golpes de espada, um dos aventureiros tomava impulso e se jogava para o outro corredor, até que somente restasse Roger, lutando para manter a cavidade aberta. Não consigo bater e pular. A fenda se fecha muito rápido. Jogue a Espada! — disse Guillermo que já havia atravessado. - Eu mantenho a passagem aberta

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pra você.A Espada de Ninqa foi agilmente lançada para Guillermo que passou a desferir golpes com uma fúria que não lhe era normal. Roger se atirou como se mergulhasse de ponta em uma piscina. A parede se restaurou como um olho que se fecha e o corredor sepulcral tornou a ficar quieto.Guillermo olhava para a espada mágica com fascínio nos olhos. Havia experimentado a espantosa força de um deus atravessando o seu corpo. E não derramou uma gota de suor.— Senti como se fosse capaz de enfrentar todo o exército crassênida... e vencer — disse ele ainda chocado, entretanto, teve medo ao ser arrastado por uma imensa vontade de matar inimigos. — Pegue-a de volta, Roger, acho que ela estará melhor na sua cintura.O desfiladeiro ondulava como uma grande cobra. Após uma curva vinha outra, e nunca se sabia o que se ocultava na próxima.A enganosa calma dos últimos vinte minutos não iludia mais ninguém.— O que é aquilo pendendo da parede? - perguntou Margaret, a primeira a avistar estranhas bolsas roliças de cerca de oitenta centímetros de comprimento, que se assemelhavam a casulos amarelos.— Não sei o que é — disse Guillermo, preparando o seu arco. — Mas está me cheirando a mais encrenca.Pelas paredes, penduradas por fios gosmentos, havia pelo menos uma dúzia daquelas coisas.

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Algo muito ruim estava para acontecer, pois do alto da vereda rochosa, um ser aterrador de pelo menos uns três metros da cabeça à cauda surgia das sombras, agarrando-se nos paredões com as suas inúmeras patas enfileiradas produzindo o movimento das centopeias; seu corpo anelado era comprido e coberto de pelos verdes eriçados e assustadores; oito quelíceras se projetavam de sua boca esquisita, e algo como um escovão saía de dentro dela; tinha um apêndice no formato de um rabo bastante flexível que terminava em três ferrões capazes de perfurar até a rocha dura; por fim, quatro grandes olhos alaranjados não desperdiçavam nenhum detalhe, nada que pudesse servir de comida.A coisa monstruosa se desprendeu de uma altura de vinte metros e saltou com a sua bocarra horrenda sobre Talemine, engolindo-a de uma só vez. Para assegurar que a sua presa não escapasse, a monstruosidade cravou os quatro pares de quelíceras no solo de pedra. O rabo da coisa se empinava como se ela se tornasse agora uma árvore extravagante, se remexendo freneticamente em várias direções, os três ferrões ameaçando dilacerar aquele que se aproximasse. Guillermo até disparou algumas flechas, acertando duas que entraram poucos centímetros no corpo duríssimo do animal, mas não houve efeito sobre o bicho que continuava a fazer sabe-se lá o que com Talemine presa em seu abdômen.— Talemine! — gritou Guillermo, consciente que não tinha muito tempo para salvá-la. Esquivava-

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se da cauda giratória e cortante que poderia dividi-lo em pedaços como um presunto fatiado.Como um camaleão terrível, o corpo da criatura foi absorvendo a consistência da rocha. Não apenas a aparência, mas a rigidez e a inércia de uma escultura em pedra. Agora ela podia concentrar-se em dar um fim a sua vítima.— Acho que ela não pode se mexer por enquanto - disse Brian. — Se temos que fazer algo tem que ser agora.Roger armou-se novamente da Espada de Ninqa. Os olhos explodindo em ódio quando ele partiu para cima do monstro petrificado.De um só golpe o rabo foi decepado, rolando para um canto e voltando a mexer-se involuntariamente como o rabo de uma lagartixa quando é separado do resto do corpo.Roger então passou a despedaçar o corpo do anelídeo gigante, partindo-o em pedaços como se fosse queijo.— Roger! — gritou Guillermo, segurando-lhe o braço. - Esqueceu quem está aí dentro?— É — disse ele como se acordasse de um sonho. - Me ajudem a descascar essa coisa. Temos de chegar a Talemine sem feri-la.A faogard estava desfalecida sob camadas de tecido petrificado e morto. Não esboçava nenhum movimento e seu rosto parecia não ter mais vida. Talemine tinha a face branca como cera, e quando foi tirada de dentro do monstro, estava tão mole que parecia ter o dobro do peso.Guillermo esticou-a no chão e encostou o ouvido em seu peito, pôs as costas da mão ern sua

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narina para saber se ainda respirava.— Os sinais vitais estão fracos — disse com inquietação. — Esse animal asqueroso parece ter sugado parte de sua vida... e da minha também — seu olhar se perdeu no vazio. — Não quero ficar sem ela. Estou gostando dessa guerreira... muito mesmo... de verdade.Roger e Brian mantinham-se vigilantes, rastreando os esconderijos sombrios de onde poderiam surgir outros seres repugnantes como aquele.— Talemine! Talemine! - Guillermo chamou, batendo levemente em seu rosto.Suas pálpebras tremeram e se abriram devagar visualizando a face turva, abrandada de Guillermo.— Eu estava fraca e meu coração quase não batia - ela sussurrou com uma voz doce que Guillermo teve vontade de proteger.- Meu coração bateu forte por nós dois — disse ele acariciando-lhe o rosto pálido.Daniel aprontou seu arco e mirou para um dos casulos que pendiam como lingüiças em uma venda.— Sabe como se elimina uma praga de baratas, rapazes? — ele fechou um olho para apurar a pontaria. — Acabando com a mãe e os filhotes de uma só vez.— Não, Daniel! — Brian não permitiu que a seta fosse atirada. — Se essa centopeia crescida nos causou dificuldades, as de sua espécie poderão fazer o mesmo com os crassênidas se eles se atreverem a passear nesses becos.

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— Vamos cair fora desse inferno - disse Roger. - Estou perdendo a paciência com lugares fechados.Guillermo apoiou Talemine, agarrando-a pela cintura para ajuda-la a caminhar enquanto se recuperava.Como se fosse uma estátua em ruínas, os restos do animal permaneceram pelo caminho como um aviso sinistro para novos visitantes.Andaram por mais uma hora sem outros acontecimentos inesperados, e os ânimos se elevaram quando avistaram o final da garganta.Brian tomou a frente e ganhou a saída das Fossálidas. No mesmo instante voltou-se para trás das rochas, fazendo um gesto para que ninguém saísse da proteção do desfiladeiro.- Guerreiros crassênidas — disse ele. — Uns trezentos metros daqui.- Acha que viram você? — perguntou Guillermo, esticando o pescoço para arriscar uma olhada.- Acho que não. Logo que os vi tratei de me esconder... mas minha preocupação é com Chester.— Chester não é tolo - disse Rafael. - Certamente voou para os picos das Fossálidas. Deve estar escondido até os crassênidas irem embora.- Eles se preparam para partir. Calculo uns duzentos soldados. Parece que vão para o sul — disse Guillermo, abrindo e remexendo em seu alforje e retirando o binóculo. — Quero ver como são de verdade.Ele descreveu os crassênidas como sendo de estatura média. Suas armaduras eram de um

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vermelho vivo, e tinham o desenho de dois olhos negros e furiosos gravados nos peitorais. Alguns se armavam de lanças tão vermelhas quanto suas armaduras, outros portavam afiados machados de dois gumes. Não dava para lhes ver o rosto, pois se ocultavam com seus elmos encarnados que refletiam o sol.— Bela fantasia - Guillermo continuou falando. — Mas eles não me parecem muito fortes.— Foi como avisou Livdonus — lembrou Talemine, ela já estava quase tão bem quanto antes. — A força deles reside no seu numeroso exército.— O que simbolizam aqueles dois olhos zangados? — Guillermo ficou curioso.— Os olhos vingativos de um deus que só eles cultuam — disse Talemine. — Seu nome é Namptras: um deus impiedoso do panteão antigo de Calcávna.Momentos depois a tropa marchou para o sul deixando o caminho livre.Brian vasculhou o céu em busca de Chester.— Onde está aquele fedelho? — e gritou: - Chester!Chester esticou a cabeça de outra fresta bem acima deles.— Aqui, professor!Ele contou como havia se escondido ao ver os crassênidas chegando, e achou prudente ficar bem quieto em companhia de Denáculus.Adentraram os campos de Crassen, a pé, carregados de bagagem. Precisariam de cavalos ou outro meio de transporte, se quisessem chegar ao Portal a tempo.

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Orientaram-se pelo mapa de Nomaktus. O Portal do leste era conhecido por Nebnolus na língua gazivian. Talemine pronunciou o nome e o ponteiro girou timidamente e mostrou um ponto específico entre o leste e o sudeste. Diante das coordenadas, a jornada seguiu até o final do dia por mais de trinta quilômetros em planícies desertas.Evitaram um lugarejo vigiado por centenas de soldados escarlates, refugiando-se num platô rodeado de copas cerradas e que oferecia visão das vielas iluminadas pelo brilho das luminitas.Os guerreiros de armadura vermelha, sempre em grupos de dois ou três, faziam rondas dentro e nas cercanias da pequena cidade crassênida.Marc emprestou o binóculo de Guillermo e se acomodou na extremidade do platô. Do seu posto de observação, contou mais soldados do que esperava ver; prestou atenção no movimento dos habitantes indo para suas casas, mas estava escuro e não deu para distinguir os rostos do povo de Crassen.— E se algum soldado subir aqui em cima? — perguntou sem descolar os olhos do binóculo.— Estará morto antes de piscar - Talemine mostrou uma flecha pontuda, entretanto, Marc, ocupado com o binóculo, não viu o gesto da guerreira.O vento soprou, movendo as copas e fazendo as luminitas tremeluzirem por entre as folhagens. No decorrer da noite não houve fogueira que os aquecesse na grande pedra fria, e o céu

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estrelado da madrugada deu lugar a um manto robusto de nuvens negras.Chovia pela manhã quando Roger jogou a mochila nas costas e ajustou a Espada de Ninqa numa posição mais confortável. Ele liderou o grupo por uma picada que dava para um pântano de acesso ruim, cheio de árvores recurvadas como velhas bruxas reumáticas; a região pantanosa se alargava por quilômetros para qualquer lado.Preferiram os trechos menos encharcados e usaram troncos caídos como pontes instáveis para atravessarem os alagadiços estagnados. Mesmo sob tais condições, avançaram vinte quilômetros em um só dia, uma boa marca levando-se em conta os escorregões, as botas atoladas na lama até o joelho e os mosquitos insolentes.Descansaram em uma ilhota malcheirosa longe de tudo. Poderiam passar ali pelo resto de suas vidas que, provavelmente, jamais seriam vistos por um crassênida.Com armas em punho, aproveitaram o pouco tempo disponível para treinarem, cruzando espadas e espetando flechas nos troncos podres que boiavam nas águas sujas de betume.No fim do pântano, havia um bosque que serviria muito bem como camuflagem por mais alguns quilômetros, conduzindo-os mais para dentro das terras estrangeiras. Uma estradinha de terra molhada de chuva surgiu cortando a floresta densa. Marcas de cascos denunciavam que a estrada fora percorrida recentemente por mais

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de dez cavaleiros bem equipados com armaduras e instrumentos de batalha. Talemine soube disso ao avaliar os sulcos profundos deixados pelas patas no chão enlameado.Os viajantes usaram as margens da estrada por um bom tempo, até que Talemine deu o alarme.- Se escondam na mata, depressa!Denáculus foi empurrado com força até que todo o seu corpo se escondesse por entre a vegetação.Da curva surgiram mais cavaleiros crassênidas indo para o sudoeste; as armaduras e os metais tilintando com o balanço dos animais; dava a impressão de que não havia sequer um vão na blindagem das indumentárias de metal para uma lâmina penetrar.- Onde será que eles arrumam tanta tinta vermelha para as armaduras? — sussurrou Guillermo ao ouvido de Talemine. As patas dos gifenontes passavam a menos de cinco metros deles.Talemine emergiu da mata ao ter a certeza de que o último cavaleiro havia desaparecido entre as árvores, e esclareceu a dúvida de Guillermo.- Não são pintadas. Essas armaduras são feitas da combinação de dois metais que só são encontrados nesse reino e no sul da Anuábia. A liga adquire esse tom vermelho vivo quando se funde 63% de firincium e 37% de augamita - ela olhou para o outro extremo da estrada e viu que o caminho estava seguro: - Dizem que os crassênidas adotam a cor vermelha para disfarçar o próprio sangue e fazer o inimigo

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pensar que jamais se ferem. Ver o próprio sangue escorrer pode desalentar o guerreiro durante uma batalha.- E encorajar o inimigo - arrematou Margaret. Talemine sorriu, achando bom que sua jovem companheira havia compreendido o ensinamento.O término do bosque emendava com o fundo de uma fazenda à beira de um regato.Um bando de aves frutívoras assaltava um pomar, grasnando de contentamento como se realizassem uma grande festa.- Um estábulo! — disse Chester cheio de esperança. - Devem caber uns vinte cavalos lá dentro.— Mais um pouco e escurece - observou Brian, seu olhar procurava os donos da propriedade. - Os camponeses devem estar cuidando das outras terras além do contorno do bosque.— E se tentássemos pegar os cavalos agora? - sugeriu Daniel. — Numa operação rápida estaríamos longe daqui em pouco tempo.— Prefiro esperar. E nem mesmo temos certeza se aquele estábulo não está vazio — respondeu Brian com ponderação, depois levantou os olhos para o céu: — Seremos favorecidos por uma noite nublada e escura.Naquelas horas, se alimentaram apenas de frutas secas e água dos cantis, enquanto esperavam que tudo fosse envolto pela escuridão.Chester foi orientado a esperar junto ao bosque. Se algo desse errado, ele sairia voando para ajudar ou fugir, conforme fosse o caso.

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As luzes da casa da fazenda foram acesas, e do estábulo, somente uma luminita pendia do beirai, clareando a entrada.Havia um odor forte de frutas vindo do pomar e se misturando com o cheiro do mato.Os gatunos ocasionais contornaram o estábulo pelos fundos e pararam diante da porta de madeira trancada com uma corrente presa de maneira descuidada. O dono dos gifenontes não parecia se preocupar com a presença de ladrões. Aquilo não deveria ser um problema para ele.Brian teve a incumbência de dar um jeito na corrente. Os elos, quando se batiam, davam a impressão que poderiam ser ouvidos por toda a redondeza.— Dá pra fazer mais barulho? — Guillermo reclamou com ironia, murmurando como se lhe faltasse o ar. — Acho que o som ainda não chegou em Faogard.— Estou fazendo o que posso — Brian se defendeu. - Pronto. A porta está liberada - ele depositou a corrente no chão como se fosse uma cobra se enrodilhando.A grande porta de madeira rústica foi puxada com cuidado, o que não evitou o ranger desagradável das dobradiças.— Será que esse maldito camponês não sabe o que é lubrificante? — praguejou Guillermo.— Depois dessa noite ele não vai mais precisar nem de estábulo — escarneceu Daniel.— Tem uns quinze cavalos aqui - disse Marc, se enfiando para dentro do estábulo escuro.

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— Só precisamos de nove - disse Roger, então achou uma pilha de rédeas sobre uma mureta de toras. - Usem essas nos animais e vamos embora.— Achei algumas selas - disse Rafael surgindo do fundo.De repente, ouviu-se um grito na parte de fora seguido por sons de luta.Talemine capturou o que deveria ser o camponês dono das terras, a adaga da guerreira posicionada na garganta fina, pronta para a degola.Foi a primeira vez, com exceção de Talemine, que viram um crassênida cara a cara. Os olhos graúdos e negros divididos por um nariz adunco e fino e uma boca pequena como se fosse cortada a faca; os ralos cabelos louros plantados na pele quase branca como mármore revestindo um corpo de compleição magra e frágil; as pernas e os braços ossudos fazendo imaginar que ele não se alimentava há semanas. Não era exatamente assim. Crassênidas eram normalmente magérrimos, de aspecto doentio. Não devia ter mais que um metro e setenta de altura. Um ser franzino se comparado aos drallengianos e faogards. Porém, assustador como nas histórias de fantasma.A guerreira de cabelos rubros o empurrou no chão coberto de restos de feno. Falou de maneira bruta com ele em gazivian. Discutiu e interrogou, sempre em tom de ameaça. Os olhos do crassênida exteriorizavam medo e cólera.

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— Que ótimo — disse Brian descontente. - Agora fomos descobertos.A confusão atraiu o resto da família do camponês. Sua mulher de consistência débil e dois meninos esquálidos como o pai. Roger forçou-os a entrar no estábulo. Estavam assustados, e um dos garotos, o menor, fez uma careta e passou a chorar. Talemine gritou com ele, provavelmente estava mandando-o calar a boca. O garoto magrelo engoliu o choro e arregalou os olhos lacrimosos para ela.O tumulto estava completo, não havia como voltar atrás.Roger e Brian correram até a casa do fazendeiro e vasculharam todos os cômodos sem encontrar mais ninguém.Talemine prosseguiu aterrorizando os crassênidas. Queria saber se havia mais alguém além dos quatro. Ameaçou matar a mulher na frente dos filhos se estivessem mentindo. O homem insistiu que eram apenas eles.Brian e Roger retornaram ao estábulo dizendo que o número de camas conferia. Deviam estar falando mesmo a verdade.- Se os deixarmos aqui seremos denunciados — disse Brian. - Vocês viram que esse lugar é rota de tropas.Um olhar frio brotou do rosto da guerreira faogard e uma voz insensível saiu de sua boca ditando ordens.- Levem os gifenontes para fora — disse ela, dessa vez desembainhando a espada que resplandeceu assustadoramente com a pouca

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luz. — Se afaste, Guillermo, eu dou conta de todos eles.Guillermo olhou para ela e depois para a família de crassênidas. Não queria acreditar no que Talemine, a jovem que se apaixonara, iria fazer.- Você vai... matar essa gente?- São inimigos - disse ela friamente. - Se viverem vão contar tudo, e o exército deles cairá sobre nós aos milhares e tudo estará acabado - ela suspirou de impaciência. - Entendam, o nosso grande trunfo é que se os crassênidas não sabem de nossa presença em seu território, então não nos perseguem. Acreditam que ainda estamos em algum lugar em Drallêngia e isso nos dá uma boa vantagem.- Mas... são crianças - argumentou Guillermo, sensibilizado com os rostos apavorados dos garotos franzinos.- Crianças crassênidas também crescem — disse ela, irredutível. — Se vestem de vermelho e vão para a guerra matar faogards. Que morram antes.- Espere um pouco, Talemine — Guillermo mudou o tom da fala. — Não somos assassinos - disse apontando para os amigos de aventura. — Há uma outra maneira de resolvermos essa questão — Guillermo correu o olhar pelas paredes do estábulo. — Há cordas resistentes aqui que podem segurá-los por muito tempo, tempo suficiente até estarmos bem longe.Talemine encarou-o desafiadoramente.- Você sabe quantos quilômetros um triônivo mensageiro faz em um só dia? Não sei quantos

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soldados protegem o Nebnolus, o Portal que ardentemente almejamos. Possivelmente milhares. Apenas uma mensagem enviada por uma dessas aves e eles reforçarão, a todo custo, a proteção da passagem para o seu mundo, montando barreiras militares, rastreando nosso caminho, tornando nossa marcha praticamente impossível. De modo que nem as armas sagradas que Roger carrega serão capazes de fazer-nos chegar ao fim da jornada - por fim ela disse: - Se queremos vencer essa guerra, temos que pensar e agir como guerreiros.— Você alguma vez matou uma criança? — ele perguntou olhando dentro dos olhos dela.— Nunca precisei matar.Havia uma parede de gelo entre os dois.Marc e Rafael pararam de levar os cavalos para fora por um instante a fim de ver como o impasse acabaria.— Sinto muito, minha querida - a fisionomia antes tão alegre e jovial de Guillermo estava tensa e conflituosa. - Não posso consentir que faça isso.— Vai se interpor entre eu e eles?Guillermo não falou nada, e náo saiu da frente da guerreira dominada pela raiva.Os olhos dela faiscaram para ele com ira e desprezo. Ela virou-se e deixou o estábulo.— Façam o que bem entenderem.Brian correu com as cordas e foi ajudado por Guillermo e Roger a amarrar os reféns. O homem crassênida se debateu e esbravejou até fazer Guillermo perder a paciência.

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— Escute aqui, feioso — ele encostou a ponta de sua faca no rosto descorado do prisioneiro. - Estou cansado, nervoso, e acabei de brigar com a minha namorada por sua causa. Não custa muito eu fazer o que ela deveria ter feito. Está me entendendo?Guillermo deu um nó bem firme nos pulsos salientes do homem. Ele queria descarregar a sua raiva fazendo o crassênida sentir um pouco de dor.— Uns dias sem comer e beber não lhes farão mal - disse Roger depois de ver o serviço terminado.A corrente foi passada novamente e os aventureiros se serviram de carne defumada e do pomar até que seus alforjes estivessem abastecidos.Cavalgaram por toda noite e se ocultaram nos matagais na alvura do dia.Não se ouvia mais a voz de Talemine, e Guillermo, por sua vez, economizava as frases, os dois sempre afastados.Brian recostou-se em um tronco ao lado de Guillermo que parecia olhar para lugar algum.— O que foi, espanhol? Está assim pelo que aconteceu ontem à noite, acertei?— Não consigo imaginar Talemine matando crianças. Não sei o que vai ser de nosso relacionamento daqui pra frente - as palavras amargavam a sua língua.- É da cultura dela. São criados desde cedo para guerrear e matar se for preciso — ele arrancou uma folha de capim e começou a brincar sem prestar atenção no que fazia. — Talemine deixou

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sua gente e escolheu ficar conosco, porque o que ela queria mesmo era ficar ao seu lado.- Eu sei disso - ele fechou os olhos e esfregou a testa, querendo pôr as idéias em ordem, em seguida recostou a cabeça na árvore e olhou longe: — E é esse pensamento que está me corroendo.- Eu deveria estar no seu lugar naquele estábulo, me confrontando com ela. Assim teria poupado você — Brian suspirou profundamente. - Mas o que está feito está feito. Por que não vai até ela? Quem sabe o ressentimento não tenha diminuído.- Se consegui ler alguma coisa naqueles olhos de rubi, ela ainda vai ficar assim por muito tempo - ele se levantou e apanhou alguns cantis vazios. - Vou pegar água. Deve ter um curso d'água no meio desse bosque.- Quer que eu o acompanhe?- Não, obrigado — agradeceu Guillermo. - Desejo ficar um pouco sozinho.Margaret desfilou na frente de Talemine até tomar coragem de sentar-se perto dela.- Eu sei que não é o momento, mas mesmo assim eu gostaria muito que você me ouvisse.- Você tem razão, não é o momento.Margaret fez que não ouviu a resposta refratária da faogard e persistiu.- Quero dizer que você está certa e lhe dou razão de ficar aborrecida com o professor. Não sei se no seu lugar eu não acabaria com todos aqueles monstrinhos com corpo de marionetes.

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Talemine desviou os olhos da menina como se não quisesse mais ouvir. Margaret optou por continuar falando.- O professor Guillermo é um homem muito bom, e pelo que sei, nunca matou um peru para o Natal. Bem, acho que você não sabe o que é um peru e nem o significado do Natal, mas se quer saber, de onde viemos, da Ilha da Coroa, não se executa pessoas e ninguém fica pegando em armas pra guerrear. Lá é uma escola, com professores e alunos. O professor Guillermo é um excelente professor e, bem, o que eu queria dizer é que...- Admiro sua tentativa de consertar o que aconteceu — Talemine cortou o pequeno discurso da menina. - Quando lhes dei o treinamento em Faogard, manuseando espadas, arcos e todas aquelas armas, aquilo não foi um simples passatempo.Preparei-os para lutar... e também matar inimigos. E sabe por quê? Porque se você não os mata, eles matam você. É simples de entender, como uma guerra. Quem se sai melhor arrancando cabeças e atravessando corações, vence — a guerreira lançou um olhar muito severo para Margaret. - A decisão tomada ontem pode ter definido o nosso destino... com o selo da morte, ouviu bem?Talemine não media as palavras para se comunicar com uma jovem. Ela nunca fora tratada com docilidade quando se tratava de lutar pela própria vida. Margaret viu isso algum

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tempo atrás no temperamento de Camine, a irmã mais nova da guerreira.- Eu sei de tudo isso e sei que você quer nos ajudar - a voz de Margaret saía entristecida quando ela se ergueu para retirar-se de perto da faogard. - Mas só pra terminar, queria te dizer que juntos ficaremos mais fortes como foi desde o início... quando me tiraram daquele lago... quando você curou o professor Brian... e quando a salvaram daquele bicho horroroso.Talemine ficou ali, sem dizer nada, fitando os próprios pés e mergulhada em pensamentos antagônicos.Ninguém notou quando um triônivo mensageiro riscou o firmamento para leste, sua plumagem camuflada de azul-celeste.Pela primeira vez Guillermo viu um bando de dunins brancos, saracoteando entre os galhos mais altos. Não eram tão chamativos como os resplandecentes dunins-de-ouro, mas pareciam graciosos tufos de algodão flutuando no ar per-fumado da floresta. Ele ainda não havia encontrado água para os cantis e por isso seguiu em frente. Não havia nada ameaçador. Só a brisa fresca que farfalhava as folhas e o pio afável dos dunins.Guillermo caminhou até um ponto onde podia se ouvir o som convidativo da água corrente. Não devia estar a mais de trinta metros de distância. Era afundar os cantis e voltar, quem sabe molhar um pouco a nuca na água refrescante.Mas uma coisa apavorante aconteceu Com ele.

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Os longos galhos de uma grande árvore próxima prenderam brutalmente os seus braços e pernas, puxando-o para junto do tronco rijo e áspero. Os cantis voaram com a violência do bote surpresa. Um outro galho fino deslizou, enrolando-se em seu pescoço como uma serpente que deseja destroçar os ossos de sua presa impotente. O galho apertava cada vez mais a sua garganta impedindo que Guillermo gritasse por ajuda, roubando a sua respiração. Ele não conseguia se desvencilhar, imobilizado que estava pelas garras compridas da árvore. Guillermo nunca ouvira falar de árvores que ganhavam vida e atacavam as pessoas. Nunca havia sido adver-tido por Talemine sobre essas coisas. Nunca lera nada no livro de Martov. O certo é que ele náo conseguia mais respirar direito. Pensou que a falta de oxigênio no cérebro provocava-lhe alucinações, pois viu o contorno de um corpo feminino surgir de dentro da mata. Imaginou Talemine, mas não era ela. Foi então que seus olhos desesperados viram um rosto conhecido, pavorosamente conhecido.Demnisia — ele só pôde pensar no seu nome. Sua voz não existia.— Mas olhe só quem caiu na minha armadilha - ela disse enquanto se deliciava vendo Guillermo impossibilitado de se mexer, colado ao tronco como se fizesse parte do enorme vegetal. - Está conseguindo respirar? Não? Que coisa mais desconfortável. Quer sair daí? Quer que eu o salve? - ela balançou a cabeça parecendo estar desapontada.

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Então fez uma carícia na árvore como se agradasse a um bichinho de estimação, em seguida voltou os olhos para Guillermo, examinando-o cuidadosamente como se ele fosse uma escultura interessante.A aparência da perversa véussida mudou quando ela dirigiu um novo olhar para ele. Seus olhos ardiam de ódio. Foi quando Guillermo conseguiu perceber que o rosto de Demnisia se alterara desde a última vez que se encontraram: os lóbulos das orelhas gravados com o sórdido "V" invertido dos arkoprômidas, e a língua bifurcada, cortada como a de uma cobra.- Você acha que essa árvore inocente é capaz de fazer essas coisas horríveis? Idiota! É apenas uma planta como outra qualquer. Eu estou no comando. É o meu poder que manobra cada fibra deste ser de madeira e seiva — a agonia de Guillermo asfixiando, contorcia-se em seu rosto. Ela instigou ainda mais o sofrimento sussurrando para ele, os dentes quase tocando a sua orelha. — Tem consciência do que está acontecendo? Você está morrendo.Demnisia deu uma risada sarcástica e disse para Guillermo:- Se você pudesse se ver agora. Seu rosto está ficando roxo. Embora não possa falar, deve estar se perguntando como escapei da prisão em Loreuvena. Que pena, tive que me livrar de duas véussidas — ela fez um ar de pouco caso e caçoou: — Oh, elas se achavam muito espertas, as protegidas da toda poderosa Tríssia. Inúteis! — ela exclamou com um descontrolado desdém.

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A traqueia de Guillermo era duramente comprimida contra o seu próprio pescoço. Ele queria tossir e não conseguia. Esforçava-se para aspirar um pouco do sopro da vida, mas o ar não passava. A sensação era desesperadora.Demnisia sabia muito bem o que estava fazendo com Guillermo. Ora afrouxava um pouco a amarra de cipó para que ele respirasse e logo depois apertava o abraço mais uma vez, estrangulando-o, retardando sua morte por puro prazer.- Gosta de segredos? Pois vou lhe revelar um. Não me preocupo, os mortos não sabem falar - ela sorriu para ele com escárnio. — Os arkoprômidas estabeleceram uma aliança com os crassênidas. Uma trégua bastante conveniente para eliminar os nossos inimigos em comum. Hoje será evitada toda essa trabalheira que estão tendo em pro-curar vocês para executá-los. Ficaremos com o menino, e nosso deus, Arkopromis, ressurgirá para governar o Havormum em uma nova Era de força e paz.Guillermo não se importava em morrer se existisse uma única chance de avisar sobre o que estava por vir. Inutilmente ele era um mero espectador de seu próprio fim.- Mas agora basta. Eu não quero mais perder tempo com você. Onde está a sua namorada? - ela procurou em volta e retornou um olhar vingativo para Guillermo. - Não esqueci o nome dela: Talemine, a grande guerreira faogard - ela soltou uma risada irônica. - A miserável acha que aqueles brinquedinhos que chama de armas

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podem me fazer algum mal - e aproximou o rosto mais uma vez de Guillermo, a língua se revirando em duas pontas. - Pois ouça bem o que eu vou fazer. Primeiro mato você, em seguida dou um fim à vida dela e a de seus amigos, porém, com muita dor, e por último acho a família da degenerada em Faogard. Soube que ela tem uma linda irmãzinha. Imagina o que vai acontecer? Pense num par de pregos bem pontudos. Disseram-me que a irmã de Talemine tem belos olhos vermelhos, luzidios. Consegue conceber uma criança viver um dia de terror antes de morrer, tendo os dois olhos vazad...Sem concluir seu intento nefasto, a face de Demnisia se contorceu estranhamente, exprimindo um espanto agonizante antes que ela caísse sobre o corpo imóvel de Guillermo e escorregasse para o solo entrelaçado de raízes. Uma flecha havia entrado em suas costas e perfurado irremediavelmente o seu coração.Um par de botas de guerreira, próximo ao seu rosto, foi a última coisa que Demnisia viu antes de morrer. As botas de Talemine.- Como eu havia dito uma vez: tome cuidado por onde anda, minhas flechas não costumam errar o alvo.Logo que a vida se esvaiu de Demnisia, a árvore libertou Guillermo, deixando-o cair de joelhos, tossindo e arfando por salvadoras golfadas de ar. Talemine o apoiou por um tempo até que ele recuperasse o fôlego.Ainda se recobrando recostado em um tronco seco, Guillermo expôs tudo o que ouviu de

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Demnisia aos seus companheiros. Seu pescoço ainda doía muito e uma marca roxa de bordas vermelhas ia de lado a lado, dificultando engolir a própria saliva. E por fim, da mesma forma seus membros guardavam as nódoas da tortura.— Ela nos achou antes de todos os outros - refletiu Brian com perplexidade. - Uma louca pertinaz conseguiu superar uma facção de fanáticos e um exército em seu próprio terreno, e por muito pouco não pôs um fim a nossa missão.— Mas foi ela que morreu e não nós - disse Talemine friamente, e disparou uma expressão fulminante para Guillermo. — Talvez achasse melhor se eu dialogasse com ela diplomaticamente enquanto você era enforcado por uma árvore enfeitiçada.Guillermo deu um tapa na própria perna com indignação. Perdera a fala duas vezes num mesmo dia, dessa vez provocada pela língua ferina de Talemine.As trevas se tornaram uma decisiva aliada no território estrangeiro. A cada noite os saudáveis cavalos percorriam cerca de cinqüenta quilômetros sem se cansarem. Chester e Denáculus sobrevoavam com alguma segurança, agindo como os batedores que vão à frente para o reconhecimento do percurso.O sol esticou-se pelos contrafortes íngremes na outra manhã, e mesmo a total claridade não perturbou o sono fatigado da expedição.O contraforte moldou uma depressão profunda e perfeita para foragidos se esconderem. Uma

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ravina oval caprichosamente esculpida pela natureza.Roger e Brian, os únicos despertos, revisaram a rota e concluíram que restavam exatos sessenta e quatro quilômetros até o Nebnolus.Brian experimentou o mapa mágico girando as posições.— Olhe isso, Roger: para o sul, na distância de duzentos e oitenta quilômetros em linha reta, está Benavastan, a capital de Crassen.— É bom que continuemos bem longe. Evidentemente há uma enorme concentração de tropas para proteger o imperador Gosferac.No meio da tarde, Marc e Daniel se aventuraram numa escalada pelo penhasco do lado leste. Subiram até o topo e se arrastaram entre pedras irregulares e vegetação ressequida brotando do solo pobre, um pequeno lagarto se escondeu numa reentrância para fugir das mãos distraídas de Marc. Escorregaram até a borda que dava para a imensidão do vale Shelantaharn; foi quando eles arregalaram os olhos e recuaram rapidamente as cabeças da beirada. Marc voltou apressado enquanto Daniel vigiava entre os recortes das pedras.— Professor! - Marc chamou por Brian que ensaiava um cochilo no seu leito pouco macio, sacudia os braços para que subisse depressa. - Tem que ver uma coisa!— O que ele quer? - Guillermo havia despertado de um sono leve.— Não sei, mas deve ser importante.

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Do alto da formação rochosa observaram um extenso acampamento militar salpicado de uniformes de metal escarlate por todos os lados, e estranhas e pesadas armas de guerra atreladas a dranctos de três cornos. Talemine subiu pouco depois e espiou por cima do ombro de Guillermo, se acomodando numa posição que abrangesse toda a aglomeração de soldados, animais e armamentos reforçados.Denáculus saltou para cima do monte trazendo o seu cavaleiro.— Não façam barulho! - advertiu Brian fazendo uma cara feia para Chester.— Os homens-formigas, como o rei Livdonus mencionou — Daniel lembrou bem.— Obviamente não é um acampamento provisório - ela afirmou com toda a segurança. - Estão prontos para despejar essa força bélica em um ataque concentrado.— Sobre nós? — perguntou Guillermo.— Só pode ser — ela respondeu. — Não há nada de valioso num raio de cem quilômetros para sustentarem mil guerreiros alinhados, se as frentes de guerra e as cidades importantes estão a quatro ou cinco dias desse ponto.— A não ser o Portal - disse Brian.Talemine assentiu lentamente com a cabeça e fixou o olhar no vale; o seu semblante mudou para um jeito que Guillermo já havia visto outras vezes.— Está procurando contato?Ela fez que sim e imergiu em seus pensamentos recônditos. Alguns minutos e nada aconteceu.

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— Estamos muito distantes uma da outra — a faogard suspirou fundo mostrando cansaço.Quando as estrelas se levantaram no leste, eles ainda espreitavam o acampamento, agora pintado de luzes de fogueira e luminitas. Decididamente, o numeroso agrupamento de tropas era uma consistente barreira para impedir o avanço daquela singular caravana que, sob hipótese alguma, poderia alcançar o Nebnolus.Talemine, obstinada que era, esforçou-se pela concentração mental apropriada para se unir a Camine; o escuro, combinado aos pontinhos de luz lá embaixo, colaborou para que as coisas dessem certo.— Veja os olhos dela - Margaret murmurou a Rafael. — Não ficam lindos com essa cor prateada?A faogard varria todo o enorme acampamento com os seus cintilantes olhos de prata.— Isso, cara irmã, conte tudo ao nosso pai: as armas de mão, os carros de combate, tudo o que puder identificar para que os nossos guerreiros destruam esses desprezíveis crassênidas.O transe de Talemine não durou mais do que um breve minuto e quando findou, ela estava orgulhosa do que fez.— O que viu através dos olhos de sua irmã? - indagou Margaret.— Não deu pra ver muita coisa. Ela olhava Faogard por uma janela, acho que do palácio real que um dia foi de meu avô. Vi as luminitas projetando sombras pelas avenidas.

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Entretanto, o maior dos problemas não havia acabado: como passar por cerca de mil homens equipados com todo tipo de armas? Sessenta e quatro quilômetros, isso era o que faltava. Uma ninharia se comparada à gigantesca travessia sobre um continente de maravilhas, horrores, esperanças, sofrimento e morte.— Só falta descobrirmos um meio de passar - disse Rafael muito concentrado nas sentinelas vermelhas que zelavam pelos soldados entregues ao sono dentro das barracas de campanha.— É a sua vez, Roger — disse Guillermo confortavelmente esticado em uma pedra lisa e inclinada, as mãos entrelaçadas atrás da cabeça. — Vá até lá e acabe com eles. E não me importo se der conta da minha parte.A fisionomia de Roger se alterou com o gracejo de Guillermo, fazendo-o oscilar a cabeça em aprovação.— Guillermo, você nos deu a resposta.— Que resposta? — Guillermo sentou-se num sobressalto. — Eu só brinquei.— Situações desesperadoras requerem soluções desesperadas — Roger parecia conferir algo mentalmente. O Elmo e o Escudo haviam ficado na fenda que servia de refúgio, lá em baixo. Seria hora de usá-los.Roger explanou sua idéia maluca que recebeu insistentes manifestações contrárias. Seria suicídio.Pelos planos do portador das Armas Sagradas, Roger desceria e escaparia pela única saída

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existente, um corredor de pouca largura que conduzia a uma trilha sinuosa até o nível do chão. De cima do platô, ele avistou os crassênidas se espalhando e bloqueando a saída e só não acharam a abertura para a depressão que servia de esconderijo por uma incrível sorte, apesar da entrada permanecer encoberta pelas curvaturas da rocha. Não havia mais como fugirem sem serem descobertos. No momento em que Roger saísse de seu refúgio, cairia sobre dezenas de soldados que dariam o alarme que desencadearia a batalha mais desigual dos últimos tempos. Roger, porém, acreditava ser capaz de lutar contra todos eles; o problema seria escapar das flechas e lanças disparadas à distância. Para solucionar essa questão, ele contaria com o apoio dos oito arqueiros que atacariam de uma altura de quinze metros, atirando primeiro, mais rápido e melhor. Perfeitos franco-atiradores.Não havia outra alternativa, o plano era uma moeda com as duas faces iguais. Só existia uma opção de aposta. E assim se deu.Os preparativos para a decisiva batalha foram iniciados com as aljavas repletas de setas com pontas de ferro deixadas ao lado dos arqueiros bem posicionados. Flechas faogards com pontas de ferro são ótimas para abrirem buracos em armaduras.Quando desceu ao fundo da cavidade, Roger foi ajudado por Brian a equipar-se com um colete de metal escamado, perneiras resistentes, luvas grossas com articulações metálicas; ajustou no

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antebraço o Escudo que exibia orgulhosamente o desenho da flor aprisionada no cristal, apertou a Espada em seu punho e, por último, o Elmo que se encaixou como se fosse forjado com as suas medidas, milhares de anos antes.Ele fez uma última advertência a Brian que teria que subir logo para o seu posto.- Ao ouvirem os primeiros sons de metal se partindo, atirem sem parar nos arqueiros e lanceiros.Ele desapareceu entre os gifenontes indiferentes, nas sombras da depressão, e só o que se escutou naquele instante foi um ou outro soldado gargalhando ou falando coisas incompreensíveis.- Mirem num alvo e se concentrem nele — orientou Brian ao mesmo tempo em que aprontava seu arco, e se calou.O coração de Margaret estava aos pulos, como deveriam estar o de seus amigos. Por que não começava de uma vez?Ela piscou de susto quando ouviu os primeiros metais se chocando.- Atirem! - vociferou Talemine.As flechas zuniram e atravessaram mortalmente os guerreiros mais próximos.Um som estridente de ferro batendo e se misturando a gritos enlouquecidos acordou todo o acampamento. Soldados pulavam para fora de suas tendas, agarrados a espadas, arcos e lanças. Muitos estavam desprotegidos de suas armaduras escarlates, berrando entre si o que poderia estar havendo.

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Uma massa de crassênidas tentava desesperadamente conter a fúria de um só homem que lutava com assustadora velocidade e força.- Olhem pra ele! - exclamou Chester com assombro. - O seu corpo brilha como o Sol.Chester não estava exagerando, a resplandecência emanada de Roger era tanta que o cenário da batalha ficou claro como dia.Até então, as poderosas Armas que um dia foram empunhadas por Andrus, ainda não haviam demonstrado todo o seu poder de extermínio. No entanto, a traição era algo que enchia os deuses de ira, e Ninqa ficou furiosa com os crassênidas ao formarem uma aliança com os odiados arkoprômidas. Roger havia finalmente evocado para si o poder divino da deusa.Daniel interrompeu o arco para contemplar, bestificado, a ferocidade avassaladora de Roger. Foi surpreendido pelos gritos de Brian o repreendendo.- O que está fazendo! Não pare! Atire as flechas!Fragmentos de soldados e metal retorcido se espalhavam pelo chão em volta de Roger como se uma explosão tivesse sido deflagrada. Um simples golpe desferido por ele deixava quatro ou cinco inimigos fora de combate. A Espada reluzente cortava os escudos como finas cortinas de seda. Os crassênidas concluíram que um confronto direto seria uma perda injustificada de homens.O capitão de arqueiros gritou ordens para atacar de longe, morreu com uma flecha atravessada no

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pescoço. Guillermo havia realizado um disparo digno de elogio.- Acerte mais algumas dessas e eu te perdoo — disse Talemine, os olhos atentos ao próximo alvo.- Combinado! - ele exclamou, e imediatamente abateu outro arqueiro.Triônivos voavam pela noite com pedidos de socorro.Três lança-setas se posicionavam para contra golpear Roger pelas costas. Os lança-setas eram carros especializados em disparar setas de ferro de dois metros com a mesma ação destrutiva dos arpões de caçar baleias. Os crassênidas aprecia-vam o seu uso para derrubar dragões ainda no ar. Diziam eles que se os dragões não podiam ser domados ou comidos, pois sua carne era dura e de gosto ruim, e ainda atacavam as criações, então não serviam para nada. Justificava-se, portanto, a matança descontrolada daquela fabulosa espécie. Felizmente os reinos do ocidente tinham os dragões como animais sagrados e deixavam-nos viver em paz nas mon-tanhas altas e lugares isolados.- Aqueles lança-setas estão muito afastados de nossas flechas - constatou Talemine deixando passar um ar de apreensão. - Se não fizermos nada será o fim de Roger.Havia pouco tempo, pois as engrenagens das poderosas armas disparadoras estavam girando para trás e destravando, pondo os arpões pontiagudos em posição. Apenas uma coisa retardava a morte de Roger, a lentidão do aparelho comparada a agilidade do incansável

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guerreiro. Contudo, eram três lança-setas que caçavam o seu alvo e que mais cedo ou mais tarde acabariam igualando a pontaria.Chester, surpreendentemente, pulou em Denáculus, os dois voaram sobre a desordem da batalha desviando a atenção de uma leva de crassênidas aturdidos. Denáculus deu um rasante para chamar a atenção dos lança-setas, um deles tomando-o como um novo alvo. Várias flechas agora buscavam o cavalo alado e seu cavaleiro.Roger entendeu a intenção de Chester. O braço dele girou rápido e mais duas vidas foram ceifadas. Ele mudou seu objetivo e seus olhos agora miravam o trio de carros bélicos que corrigiam suas pontarias. Em resposta, Roger correu com raiva na direção de um dos lança-setas, saltando sobre uma miríade de cadáveres dilacerados, seu escudo reluzente o defendia das enormes lanças que, ao serem impelidas com violência dos carros de combate, faziam um irritante ruído de ferro friccionando em madeira.Denáculus bateu as asas escondendo-se na proteção das sombras quando Chester se certificou que a situação estava sob controle.— Vejamos como Roger se sai com aqueles carrinhos de pipoca — disse Guillermo enquanto fazia mais um crassênida tombar.O Escudo ofuscante fazia os arpões colidirem e caírem aos pés de Roger como frágeis canudinhos de papel.O furor da Espada brandindo e descendo com estrondo fez o primeiro lança- setas desmontar. Os outros dois carros tiveram o mesmo destino,

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destroçados como se uma mão gigante os tivesse achatado.A horda de crassênidas estava sendo desbaratada e não existia mais um senso de organização entre eles. As fogueiras lambiam as tendas espalhando o incêndio que transformou o acampamento num enorme tapete de labaredas.Minutos depois não havia mais batalha. Apenas um homem no meio do caos de chamas crepitantes e gemidos de dor.Para Roger ainda não havia acabado. Algumas dezenas de feridos agonizantes conheceram a morte pelo fio de sua Espada que esmaeceu até tornar-se novamente negra; Roger não parava de esmagá-los como baratas.— Está bem, Roger! - gritou Brian, correndo para conter a sua raiva desproporcional. — Não há mais por que lutar contra os moribundos.Roger estava banhado de sangue inimigo quando se deu conta que a batalha tinha chegado ao fim. Ele fechou os olhos por um breve instante para se acalmar. Sua respiração abrandou e suas feições se atenuaram.— Você está bem? — quis saber Guillermo.Os olhos de Roger se abriram levemente e ele falou com uma voz distante.— Vi uma menina em meus pensamentos, ela corria pra mim com os olhos cheios de lágrimas. Havia muita tristeza nela.— Vamos sair daqui - disse Talemine com voz urgente. - Logo todo o vale estará fervilhando de armaduras vermelhas. E quando digo

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fervilhando, me refiro a dezenas de milhares delas.Roger mergulhou em um rio e a correnteza se tingiu com o sangue coagulado dos mortos.Naquela madrugada enquanto cavalgavam, Roger contou o que sentiu quando teve todo o seu corpo envolvido por aquela luz.— Senti um ódio infinito pelos crassênidas, que crescia quanto mais eu matava. Queria vê-los todos mortos, e não só isso, queria poder lacerar a sua carne e quebrar seus ossos.— Por isso não parou mesmo depois de não haver mais nenhum oponente - observou Rafael.Roger retomou as lembranças e refletiu sobre o que havia feito. Era uma atrocidade desmedida pela qual ele se afeiçoara como uma inseparável e terrível companheira, quando se achava sob a influência daquelas armas. Lidar com o poder dos deuses poderia ser mortal para ele e seus amigos. Por ora havia sido apenas para os seus declarados inimigos.Vagaram pela noite por terrenos pedregosos de terras desconhecidas, e contemplaram o disco solar espalhando a sua luz pelos campos alaranjados de aromáticas vunínxias.Os semblantes de Talemine e Guillermo não traziam mais o peso da desavença recíproca. A pontaria dele foi tão eficiente que era de se imaginar que uma de suas flechas acertara o coração de Talemine em cheio.Era hora de certos assuntos serem conversados. Brian precisava falar sobre quando

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atravessassem o Nebnolus e saíssem em Santorini.— Prestem atenção um minuto. O Portal de chegada em Santorini fica numa caverna na base da encosta entre o mar e o rochedo. A saída sempre fica abaixo da linha da água. Se a maré estiver alta teremos que mergulhar uns quatro metros e depois subir. Na maré baixa o trabalho será menor. Nadem para longe das pedras e fujam da arrebentação. Dúvidas?A água quase saltou do cantil de Marc quando ele tentou beber um gole. Era o conhecido efeito do disco negro.— Falta pouco agora, pessoal! - ele derramou a água num ângulo inclinado, como se uma rajada de vento soprasse o líquido para longe. O efeito magnético do Portal sobre a água estava se manifestando.A água escorreu pelo chão desafiando um aclive e se entranhou na terra. Talemine espantou-se, só sabia da existência do fenômeno pela boca das pessoas.Brian consultou outra vez o mapa de Nomaktus, mas para sua surpresa ele não funcionou. Não era mais diferente de um simples mapa de viagem, não tinha movimento, não havia mais desenhos coloridos girando para qualquer lado. Não havia magia.— Deve estar quebrado - disse Guillermo ao dar uma olhada rápida. - Sabem como é, muitos sacolejos dão nisso.— Mapas encantados não quebram, professor - retificou Margaret, aparentemente não

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entendendo a piada. O que ela queria mesmo era firmar a sua posição na crença de que os artefatos mágicos eram infalíveis, pelo menos quando precisavam ser.Percorreram um bosque de copas fechadas para a base de uma encosta. Contornaram uma colina de inclinação suave e se colocaram entre pedras grandes e arredondadas para não serem vistos. Estavam a umas poucas centenas de metros do fim de sua longa jornada.Um grupo de soldados montava guarda em uma elevação, uma espécie de platô, trezentos metros de onde eles estavam e aparentemente não tomaram conhecimento da chegada de seus contendores. As árvores compactas fizeram um bom trabalho em encobri-los.O Nebnolus ficava encravado no fundo de uma espécie de cratera natural com beiradas mais ou menos altas, que impediam quem se encontrava do lado de fora enxergar o seu interior, a não ser que se alcançasse a borda íngreme guardada por sentinelas incrédulos do sucesso da expedição.— E o nosso último obstáculo — lembrou Brian. - Um ataque bem feito e estaremos em casa. Se espalhem e deem cobertura ao Roger e ele fará o que for preciso.Roger arrastou-se pela elevação a fim de pegar os crassênidas desprevenidos, assim seria mais fácil. Somente por instinto ele deslizou a lâmina de sua espada por uma protuberância rochosa no aclive. A Espada negra, que teria cortado o bloco como manteiga, sequer arranhou a pedra. Roger

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fez o mesmo movimento outra e outra vez. Foi o mesmo que usar uma espada comum.Ele voltou-se para trás e sussurrou para Brian que escolhia uma das flechas mais agudas, se preparando para quando chegasse o momento de invadir a cratera.— Não está funcionando!— O que não está funcionando? - ele sussurrou de volta.— Essa Espada! - ele agitou a arma como se fosse uma vassoura. - Perdeu o encanto, não sei.— Tem certeza? - Brian resistiu em acreditar.Roger irritou-se e fingiu que cortava o próprio pescoço.— Não vai funcionar aqui, professor - disse Margaret que acabara de ouvir os protestos de Roger. - Acho que a proximidade do Portal anula a magia dos objetos, como aconteceu com o mapa.Brian raciocinou e concluiu que a menina estava certa.— Ainda essa, agora - e acenou para que Roger recuasse.Teriam que mudar a estratégia'. Não era possível ver tanto sacrifício fracassar a alguns passos do Portal. Brian se preocupava, pois não demoraria muito, todo o lugar seria invadido por um exército enraivecido de crassênidas enviados por um rei louco, e sem se poder contar com os poderes da deusa Ninqa.Os olhos de Roger correram pela borda alta.— Os soldados se distribuem por quase todos os lados e não há como se estimar quantos são.

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— Não devem ser muitos, pois o espaço não comportaria tantos homens amontoados numa toca abafada - supôs Daniel. — Eles nos subestimaram e concentraram forças pelas planícies e vales abertos. Por isso conseguimos chegar até aqui.— E já encontramos um grande problema — disse Talemine. — Que quero resolver de uma vez.Chester ergueu a mão pedindo que o ouvissem.— Só vejo um meio de resolvermos isso. Vocês já viram que Denáculus é muito veloz quando o negócio é voar. Um pequeno número acrobático dele pelos céus é o bastante para que os soldados se distraiam. E aí vocês atacam.— E você? - Brian ergueu uma sobrancelha.— Estarei lá em cima com ele fazendo as minhas flechas choverem sobre aqueles bobocas.Os três professores se entreolharam, todos sabiam perfeitamente qual seria a decisão.Um triônivo, muito azul, planou pelo céu da manhã indo direto para a fortaleza côncava.— Não há mais tempo! — exclamou Talemine ao ver a ave. — Logo estarão lendo sobre nós.Denáculus decolou e voou contra o sol; a maioria dos crassênidas só conseguia enxergar uma silhueta borrada cruzando o ar de um lado para o outro.Talemine contou aproximadamente trinta alvos mirando o céu, loucos para derrubar um cavalo com asas. Teria que ser rápida enquanto eles não percebiam a armadilha em que estavam caindo. Quatro crassênidas mortos no espaço de quinze segundos, uma excelente marca para a arqueira.

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Já era tarde demais quando os crassênidas perceberam a emboscada. Os inimigos, alguns desprotegidos de suas armaduras vermelhas, tombavam vítimas do ataque surpreendente e veloz, seus corpos rolando sem vida pelo interior inclinado da cratera. A última barreira fora aniquilada. A passagem estaria livre, se não fosse por um detalhe.No fundo da cratera se erguia uma sólida edificação de pedra em formato circular e rodeada de colunas quadradas, duas delas ladeavam uma grossa porta de bronze. Não havia janelas ou qualquer outra abertura. Estava completamente lacrada.Roger viu que o cenário náo batia com a descrição de Alexei Martov.— Martov escreveu em suas memórias que o Portal ficava ao ar livre - disse ele enquanto descia o declive, então parou diante da imponente fachada hermeticamente fechada como se ela guardasse um grande tesouro. O que o seu interior ocultava era muito mais que o mais rico dos tesouros existentes.O triônivo, pousado em uma pedra, aguardava passivamente que alguém se interessasse pela mensagem presa em seu pescoço.— Essa construção é recente — disse Brian, inspecionando as junções das pedras. — Os crassênidas a construíram depois que Martov conseguiu passar, para que ninguém mais repetisse o feito.— As paredes são resistentes. Não há como derrubá-las em tão pouco tempo — disse Rafael.

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— Cada bloco não deve medir menos que um metro de largura. Essa coisa foi construída para que ninguém possa entrar.Rafael examinou melhor a arquitetura e notou três fendas verticais dispostas lado a lado nas paredes arredondadas, do lado esquerdo da pesada porta de bronze adornada por dois olhos zangados do deus crassênida Namptras. Ele fez um ar desconfiado e fechou um olho a fim de espiar por uma das fendas, depois examinou as outras duas com cuidado e se endireitou para falar.— Existem dispositivos aí dentro. São fechaduras, e o dono levou as chaves.— É um sistema de fechadura monotripla, uma chave grande para as três aberturas - disse Talemine. - Serve para se trancar coisas valiosas. Temos uma em Faogard no cofre do tesouro do reino - e ela completou para justificar: - Nem todos os faogards são honestos.— Consegue abrir? — Roger dirigiu a pergunta para Rafael.— Não sei. De qualquer modo, precisarei de ajuda pra tentar. Duas pessoas com dedos habilidosos e firmes — ele olhou para os possíveis candidatos e deu a sua impressão. - Pensei em Margaret por ter a mão pequena, e Marc, com tanto talento pra tocar instrumentos musicais, deve ter desenvolvido uma precisão tátil que pode nos ser útil agora.Estava claro que todas as chances estavam nas mãos de Rafael, o que fez Brian ser contundente.— Faça o melhor que puder. Confiamos em você.

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Rafael acharia melhor que Brian não tivesse dito aquilo. Afirmar que confiava nele era o mesmo que dizer: "Tudo bem, garoto, você tem um trabalho grande pra fazer, portanto, não nos decepcione". Tirou dos bolsos uma série de ferros e arames que usava com a mesma destreza que um cirurgião faz com seus instrumentos cirúrgicos, cada um com a sua função específica.Guillermo desceu da borda trazendo um pequeno pergaminho tirado do triônivo, e o deu para Talemine ler.— "Os demônios conseguiram passar pelo nosso bloqueio sem serem notados. Não deixem que se aproximem. Usem todas as armas que dispuserem. Matem todos. Estamos enviando reforços".— Passar sem serem notados? — Guillermo sorriu com um ar zombeteiro. — Foram massacrados, isso sim.Se a mensagem contasse a verdade, poderia desestabilizar a última resistência. O autor do texto havia agido estrategicamente - a faogard logo entendeu a intenção da mensagem.Rafael suspirou fundo e pôs mãos a obra. Teria que ser minucioso na luta contra três fechaduras estranhas e ainda correr contra o relógio. Ele deu instruções aos seus dois ajudantes, explicando como se usava duas a três hastes combinadas para destravar complicadas engrenagens. Palitos e arames entravam e saiam das fendas sem nenhum resultado favorável.Depois de cinco minutos ele mostrou-se desanimado.

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— Está muito difícil. Dentro de cada fenda existem quatro dentes que podem se mover para diversos lados simultaneamente. Pra piorar, os dentes precisam se movimentar de acordo com os das outras duas aberturas exatamente ao mesmo tempo. Se apenas um dente for empurrado na direção errada, todo o conjunto permanece travado, e a porta não abre.— Doze engrenagens, cada uma com quatro posições, que dariam um número enorme de probabilidades - Brian percebeu rapidamente a dificuldade. — Se não descobrirmos a combinação certa, não entramos.Daniel olhava a uma certa distância quando algo lhe ocorreu.— Como é essa chave monotripla? — sua pergunta foi direcionada a Talemine.— Igual a um tridente de cabo curto - ela explicou. - Cada ponta é introduzida em uma abertura e um disco localizado no cabo faz com que as três pontas girem empurrando os doze pinos nas direções corretas.— Seria como isso? - disse Daniel e se afastou para uma parte aberta próxima a um grupo de arbustos.Havia restos de argamassa endurecida que foram usados na obra recente. Alguma ferramenta havia sido esquecida ali por um breve instante enquanto a massa ainda estava mole como mingau, e ao ser retirada deixou o seu molde em detalhes como a sola do sapato de algum desatento que pisa em uma calçada de cimento

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fresco. Para a felicidade de Rafael cada pormenor da chave ainda estava lá, preservado no tempo.— Consegue fazer alguma coisa com esses desenhos? - quis saber Brian, agachado ao lado de Rafael.O rapaz estudou atentamente cada detalhe, sua mente agrupando, combinando e desembaralhando todas as possibilidades. Ele ficou assim por um minuto, talvez dois. Então respirou como se sugasse todas as esperanças para o interior dos pulmões.— Se essa for a chave, eu acho que podemos abrir a porta.Rafael voltou-se para seus ajudantes e os orientou de maneira tão metódica que Margaret se irritou.— Escute, não somos crianças do jardim de infância. Já entendemos perfeitamente o que você quer que façamos.Rafael assentiu com um acenar rápido de cabeça e se posicionou entre os dois, na abertura do meio, lembrando mais uma vez.— Tudo ao meu comando.— Já sabemos disso também — ela fez uma careta impaciente.Uma nuvem de poeira se levantou bem longe, nas colinas do leste e do sul.Denáculus pousou num galope brusco e Chester trouxe as aguardadas más notícias. Haviam voado alto até o extremo do bosque no encalço dos primeiros vestígios de aproximação do inimigo.

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— Estão chegando! São como um mar de formigas saúvas fechando um ataque em massa. Devem ser mais de dez mil.— Quanto tempo acha que nos resta? - Guillermo gritou para Chester.— Cerca de cinqüenta minutos, se muito.Os dedos de Rafael tremiam. Valia naquele momento a sua experiência. Ele deu o sinal.— Agora!Não houve barulho de engrenagens se movimentando.— Não é possível, tinha que dar certo — Rafael disse inconformado, seu estômago doía de nervoso.Ele correu para o molde no chão, sua testa franzida, os olhos pregados nas figuras sulcadas. Então deu um tapa na própria testa como se quisesse punir a si mesmo.— Tem horas que não entendo como sou tão imbecil - disse enquanto voltava para o seu lugar em frente à fechadura. — O desenho está ao contrário. Só tenho que inverter o processo - ordenou. — Invertam os movimentos, preparados? - Marc e Margaret concordaram com um gesto de cabeça: — Já!Um som forte de mecanismos trabalhando arrancou um sorriso largo de Rafael.Brian correu para a porta e jogou-se sobre o metal pesado, suas botas derrapavam no chão procurando apoio.— Pesa como dez elefantes - ele disse, e teve ajuda de Roger e Guillermo.

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Estava escuro lá dentro e o ar abafado soprou nos rostos apreensivos.O disco negro se mostrou quieto e misterioso através da luz das luminitas.Chester e seu amigo alado foram os últimos a entrarem no ciclópico prédio circular.— Vamos, garotos, quero vocês pisando naquele disco - ordenou Brian, e em seguida deu um forte abraço em Guillermo. Um abraço de despedida.Os garotos não compreenderam a atitude de Brian e lançaram olhares desentendidos para ele. Guillermo esclareceu ao ver suas expressões interrogativas.— Eu não vou. Não tenho como ir embora e deixar Talemine - disse ele olhando carinhosamente para sua amada. - Não posso levá-la para o nosso mundo, e nem ela abandonaria a família e seu povo na situação em que se encontra o seu país. Vou lutar ao lado dela até essa guerra acabar. — Guillermo queria aproveitar alguns segundos para dizer mais uma coisa para os jovens aventureiros: — Quero que saibam que foi muito gratificante viver essas aventuras com vocês, e que eu considero todos os cinco como dignos do nosso segredo.— Meu trabalho acaba aqui - disse Roger.— O que quer dizer? - perguntou Brian.— Não vou atravessar o Portal.A decisão dele também pegou Brian e Guillermo de surpresa. Roger continuou falando:— Náo faz sentido eu voltar e deixar para trás algumas dúvidas que me atormentam. Perguntas que não me foram respondidas, e uma chance,

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mesmo sendo inverossímil, de encontrar novamente a mulher que amo. Eu nunca seria feliz se voltasse agora — ele deu o maior sorriso desde muitos anos e disse para seus jovens alunos: - Me orgulho de um dia ter sido o professor de cada um de vocês — ele virou-se para Brian. — Agora é com você, grande amigo, a responsabilidade de completar a missão.Chester caminhou para o disco, Denáculus trotava junto dele.— Não, Chester, Denáculus fica - disse Brian.— Os crassênidas... vão matá-lo, professor - sua face desabou em tristeza.— Pense nas conseqüências, Chester. Um cavalo com asas aparecendo em plena Europa. Os olhos do mundo se voltarão para nós. O nosso segredo estará mais uma vez ameaçado.Chester não segurou as lágrimas. Não estava nos seus planos se separar de Denáculus. Apertou os olhos com as pontas dos dedos, seu queixo tremia involuntariamente. Abraçou o forte pescoço de Denáculus e suas lágrimas escorreram no pelo cinzento do animal.— Vá embora, salve sua vida - ele disse a Denáculus. - Voe bem alto para que ninguém o veja - disse isso e empurrou Denáculus pela anca... e o viu partir.— Não há mais tempo — disse Brian com pressa e pôs os dois pés na superfície negra, ainda inerte.Rafael hesitou em ir. Só ele não estava a postos.— Venha, Rafael — Brian chamou. — O disco já vai começar a girar.

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Os olhos de Rafael estavam indecisos. Pelos seus pensamentos passaram o medo de ser excluído da Escola, a decepção que daria aos seus pais que confiaram tanto nele, o desespero de ter de encará-los quando fosse obrigado a contar que não haveria mais estudos na Ilha da Coroa, e nem um futuro promissor, a angústia de saber que seus queridos irmãos poderiam ficar desamparados a ponto de passarem fome como naquele sonho que teve em Edrendora.Rafael foi arrancado de seus demônios ao ouvir os gritos distantes de Brian, o disco começava a girar. O teto tornou-se transparente como vidro revelando Wengarel, a gigantesca e silenciosa acompanhante desde o primeiro dia. O Portal estava se abrindo.— Pule, Rafael! Pule agora! — Brian gritou com energia.Rafael correu e se atirou.O ensurdecedor redemoinho absorveu os seis viajantes num espetacular jorro de luz branca, e em questão de minutos, tudo voltou a ficar quieto.— Vamos embora — disse Guillermo, os olhos pousados na superfície escura do disco, a agradável sensação do dever cumprido. — Temos um longo caminho de volta.

Epílogo

O mar Egeu abriga milhares de ilhas que serviram de cenário a muitas das histórias da

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fascinante cultura grega. Sua mitologia, conhecida em todo o mundo, ainda parece ser murmurada pelos ventos que sopram nos litorais entrecortados, durante as noites de calor em que seus habitantes observam o mar como se aguar-dassem o retorno do heróico Odisseu, do poderoso Apolo ou da bela Afrodite, para reviver o passado glorioso.Dentre esse universo de ilhas, existe um pequeno arquipélago vulcânico localizado a sudeste cerca de duzentos quilômetros em linha reta a partir de Atenas, a capital grega. Esse grupo de ilhas, que os gregos chamam de Thira, outrora foi uma só, no entanto, em um dia fatídico, uma explosão vulcânica de proporções inimagináveis ocorrida por volta de 1.500 a.C. despedaçou-a e fez surgir as atuais ilhas que compõem esse impressionante conjunto geológico. A explosão que destruiu grande parte da ilha deu origem a uma belíssima cratera, hoje ocupada pelo mar de azul infinito. A maior ilha do arquipélago tem a forma aproximada de uma lua crescente. Chama-se Santorini, e foi batizada assim no século XIII pelos venezianos em homenagem a santa Irene. Suas encostas, muito íngremes, atingem os trezentos metros de altura onde se agrupam casas, restaurantes e hotéis pintados quase sempre na cor branca. Do outro lado da cratera fica Thirasia, a segunda maior ilha do grupo, e no centro da caldeira inundada pelo mar estão Néa Kaméni e Palaiá Kaméni.Santorini ainda á um vulcão ativo e o que apresenta a maior atividade entre os vulcões da

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região do Egeu.E aconteceu naquele 25 de novembro de 1933.Uma fragata da armada grega permanecia fundeada havia semanas na grande cratera azul translúcida de Santorini, nenhuma outra embarcação era avistada nas proximidades. Um marujo se debruçava indiferente sobre a amurada do navio, seus olhos sonolentos, voltados para os penhascos escarpados, como se nada de interessante pudesse acontecer naquela manhã de sol.No entanto, alguma coisa fora do comum tirou o marinheiro de sua prolongada apatia, suas sobrancelhas contraíram-se profundamente e seus olhos convergiram para um ponto próximo aos rochedos de Santorini. Ele estufou o peito para gritar.— Capitão! Capitão! - berrou até que o comandante da fragata surgisse na coberta do navio. - Olhe!O comandante Pétros Stavrópoulos apontou o seu binóculo na direção em que o braço do marujo indicava insistentemente. Braços e pernas lutavam contra o mar para alcançarem o vaso-de-guerra grego.Stavrópoulos baixou o binóculo e sussurrou para si mesmo.— Aqueles malucos, eles conseguiram - depois gritou para a tripulação: - Homens ao mar! Andem logo com esse salvamento! Quero abraçar minha mulher e brincar com meus filhos antes que esse dia termine!

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Uma hora depois, a fragata cortava as águas do Egeu rumo a Atenas.Brian, acomodado no convés, protegido dos ventos do mar por um casacão da marinha grega, pensou pela primeira vez como os garotos haviam crescido tão rapidamente, dormindo ao relento, viajando por lugares admiráveis, conhecendo seres fantásticos e até perigosos, enfrentando e matando inimigos, amargando a sensação da perda de amigos, e tendo suas vidas por um fio. No final das contas se comportaram bem... pensando melhor, muito bem. A travessia entre os portais foi uma lição sobre maturidade que nenhuma escola teria condições de ensinar. Brian apertou os olhos ao que o navio mudou de curso fazendo os raios de sol incidirem sobre o seu rosto.Da amurada da proa, Rafael lançava um olhar aflito para o mar.— O que está incomodando você? — quis saber Marc, seu olhar se lançava sobre o mar azul-turquesa, o vento tirava um som sibilante da gola alta dos casacos.— Se eu pudesse, ficaria pelo resto da minha vida nesse navio - ele levou os olhos do mar até Marc. — Estou com medo do que farão com a gente quando chegarmos na Ilha da Coroa. Se me expulsarem eu não volto pra casa. Desapareço e minha família nunca mais ouvirá falar de mim. Não quero desapontá-los.— Você está criando um monstro na sua mente — Marc ajeitou na cintura a calça larga que ganhou para substituir as roupas molhadas. — Eles não

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podem fazer nada conosco. Sabemos muitas coisas agora. Eu diria que sabemos tudo.— Para onde vamos agora?— Ouvi o professor Brian comentar com o comandante que o nosso destino é a Ilha da Coroa. A viagem até Paris seria mais curta, mas não sei se quero ir pra casa no momento e também não acredito que eles deixariam. Viu o comandante? Pétrus Stavrópoulos é o seu nome. Certamente é um membro da Ordem do Círculo de Pedra. Eles são como um exército invisível.Rafael voltou a observar o mar.— A pequena imagem da santa que a minha mãe me deu não está mais comigo. Acho que a perdi no momento em que revirei os bolsos para usar as ferramentas que abriram a grande porta de bronze - ele sorriu melancolicamente. - Não é engraçado? Ela esteve comigo todo o tempo e se separou de mim no último minuto.Marc ouviu aquilo e apertou o casaco para sentir a flauta contra o peito, o fio dourado dando a volta em seu pescoço. A flauta se tornara a lembrança inseparável de sua inesquecível aventura. Não poderia mais ficar sem ela.Na mesma noite dormiram em Atenas e voaram sobre o continente europeu no dia seguinte. Seis dias depois avistaram os rochedos pontiagudos da Ilha da Coroa.Só havia cinco tripulantes, além do comandante Hugo que evitou manter diálogo, embora mostrasse um disfarçado sorriso de contentamento como se aprovasse tudo o que os jovens tinham aprontado.

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O navio Divina Providência III teve seus cabos fixados e o reduzido número de passageiros desembarcou na ilha semi-deserta, sem alunos, todos em férias de final de ano.Um comitê de recepção formado por monitores escoltou os aventureiros pela praia até o prédio principal.— O que vai acontecer conosco, professor? - perguntou Margaret.— Estou tão curioso quanto você — Brian dizia enquanto caminhava rapidamente, ela teve que apressar o passo para acompanhá-lo.Diante da fachada do prédio da escola havia um rosto muito familiar, um martelo na mão e um pano encardido jogado sobre o ombro. Marc o reconheceu de imediato.— Aquele não é o...— Júlio! - exclamou Daniel. - O que está fazendo aqui?— Fui readmitido - disse ele, feliz em ver Daniel e os outros. - Essa pobre ilha não funciona sem mim, seria capaz de afundar sem os meus remendos.— Não comentem nada com ele - advertiu Brian num tom sigiloso. - Ele não é um dos nossos.Os garotos foram enfiados no gabinete do diretor e obrigados a aguardar enquanto Brian se reunia com Helmut.— Já passei por isso uma vez - disse Daniel, lembrando que um dia, ele e Rafael, ficaram detidos naquela sala até resolverem fugir e passar pelo Portal.

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— Eu estava menos tenso quando quebrei a cabeça com aquelas fechaduras — disse Rafael enquanto apertava as mãos nervosamente.Fazia mais de uma hora que Brian resumia toda a história para Helmut que andava de um lado ao outro pelo cômodo anexo, as mãos atrás das costas. O tempo parecia não ter amenizado a sua cólera com relação aos alunos transgressores. Brian permaneceu sentado em uma cadeira de encosto baixo e ouvia em silêncio o esbravejar do diretor, os olhos do inglês seguiam Helmut em cada canto da sala. Em um outro canto estavam o vice-diretor Ramón e o professor Rajev Shekar, de Física. O diretor parecia ter emagrecido nos últimos meses.— O que você quer que eu faça? Agradeça àqueles infratores? — Helmut se empertigou e fez uma encenação: — Oh, muito obrigado, meus estimados delinqüentes, por quase revelarem ao mundo um segredo de quatrocentos anos!— Eles são o que procuramos, Helmut - Brian argumentou com serenidade. - E depois não há mais nada o que possamos fazer quanto a eles.Helmut apoiou uma das mãos em uma pequena mesa de mogno e fechou os olhos como se sua cabeça latejasse a ponto de explodir.— Isso nunca foi feito assim. Não desse jeito — disse o diretor aparentando ter recuperado a calma. - Você sabe muito bem, levaríamos anos até que tivéssemos absoluta certeza em escolher os próximos membros da Sociedade.— Vi aqueles jovens fazerem coisas incríveis. Eles têm habilidades, inteligência e esperteza

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incomuns para suas idades - Brian procurou ser convincente, falando a Helmut e depois olhando para Rajev e Ramón.— Se souberem controlar a língua já me dou por satisfeito - disse Helmut, sisudo. — Venham comigo, quero olhar nos olhos deles e dizer-lhes umas verdades.Quando a porta se abriu, Rafael perdeu a respiração. Marc olhava para o diretor como se estivesse gostando de toda a situação. Helmut procurou ponderar no tom de voz.— Qualquer coisa que eu diga não muda o que aconteceu. Eu me questiono se um dia vocês foram dignos de colocar os pés nessa ilha. Isso sem levar em consideração que perderam quatro meses de aula. Como esperariam recuperar todo esse tempo perdido caso continuassem como nossos alunos?"Continuassem como nossos alunos?". As quatro últimas palavras perfuraram o estômago de Rafael como se fossem lanças crassênidas. Ele quis falar. Fez até menção de prometer qualquer coisa em troca de não ser expulso, mas a voz não saiu.A porta do gabinete se abriu novamente após três batidas leves. O homem que entrou tinha pouco mais de trinta anos, estatura média, cabelos claros e olhos azuis, fitou cada um dos jovens alunos como se estivesse muito curioso em conhecê-los.— Esse é o Sr. Johan Van Vossen, nosso professor interino de Geologia - disse Helmut. — Teve que vir às pressas de Amsterdã para que as aulas de

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Brian não fossem interrompidas. Vocês devem imaginar que o mesmo aconteceu para as cadeiras de Química, de Guillermo, e Educação Física, do professor Roger. Esse foi um dos problemas que enfrentamos, sem falar nas centenas de alunos que perguntavam todos os dias sobre o desaparecimento repentino de professores e alunos da noite para o dia. Inventamos uma desculpa esfarrapada sobre uma excursão de pesquisa pela América do Sul. Até hoje eu fico me perguntando se algum idiota acreditou naquela história.Ramón mostrou cinco maços de envelopes de cartas amarrados com barbante.— Enquanto estavam fora, essas correspondências chegaram para vocês. Enviamos telegramas dizendo que no segundo semestre do primeiro ano os alunos não estavam autorizados a responder as cartas que recebiam e que esse procedimento fazia parte da adaptação dos calouros. Mais mentiras - Ramón olhou diretamente para Marc: - Caso tenha interesse em saber, a orquestra que você organizou fez uma bela estréia e continua se apresentando para as autoridades que visitam a ilha.— Bem, por ora é o que há para dizer. Vão para os seus alojamentos e fiquem lá. E não se ausentem sem autorização - e Helmut ainda completou antes que Daniel e Margaret saíssem: - Vocês ficam por enquanto. Temos mais uma coisa para conversar.Margaret e Daniel se entreolharam e voltaram a se sentar. Agora só ficaram eles, Helmut e

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Ramón.Rafael disparou pelo corredor até alcançar Brian.— O que o diretor quis dizer com aquela frase sobre se nós continuássemos como alunos?Brian viu temor nos olhos do garoto, então dobrou um corredor enquanto Rafael o seguia.— Do que você tem medo?— Ora, do que eu tenho medo, de que me mandem embora pra casa, numa passagem só de ida — Rafael lambia os lábios numa clara demonstração de nervosismo.—Se eu tivesse certeza de que as coisas iriam terminar assim, não teria voltado, seria bem melhor travar uma guerra contra os crassênidas a decepcionar meus pais.— Sabe, rapaz — disse Brian ao mesmo tempo em que caminhava, as mãos enterradas nos bolsos da calça. — Durante esses meses vimos coisas que ninguém acreditaria — ele parou de andar por um momento e voltou-se para Rafael, encarando-o severamente como se quisesse desvendar os seus pensamentos mais ocultos.- Você seria capaz de guardar o maior segredo de todos os tempos?Que tipo de resposta Brian esperava de um garoto que dividiu com ele tantas aventuras. Diante de tal pergunta, Rafael só sabia responder de uma forma.— E se eu lhe dissesse que sim, isso mudaria alguma coisa?Brian fitou os próprios sapatos e então seu olhar se perdeu na penumbra dos corredores.

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- Acho que não. Pense no que é esconder uma coisa fascinante e nunca, nunca poder compartilhar esse segredo com seus pais, seus irmãos, sua mulher e seus filhos; ser perguntado em que está pensando e ter que mentir todas as vezes. E se quer saber, você e seus colegas caçadores de encrenca estão enterrados nessa ilha até o pescoço e pelo resto de suas vidas.Brian não foi totalmente claro, mas o que ele disse deixou Rafael satisfeito.- Vá para o seu quarto e descanse. Leia as suas cartas e converse com seus amigos, afinal... estamos em casa.Brian se embrenhou pelas sombras de um corredor comprido.- Professor!Brian virou-se sem pressa.- Esses corredores ficariam bem melhor cheios de luminita - ele disse, e seu semblante esboçou alegria enquanto ele se afastava. Não existia mais o medo em seu coração.Helmut circulou um pouco pelo gabinete e sentou-se em frente aos irmãos, olhando para os lados como se escolhesse muito bem cada palavra que iria usar.- Para que a nossa Sociedade sobreviva, necessitamos que no nosso grupo existam pessoas competentes, influentes e acima de tudo, confiáveis. Não há como pertencer a nossa Ordem sem possuir essas qualificações - Helmut ergueu os olhos para Ramón e voltou um olhar ameno para os irmãos: - John, o pai de vocês, é uma dessas pessoas.

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- O nosso pai? - Margaret disse como se não tivesse ouvido bem.Helmut confirmou com a cabeça.- John Crowley é um integrante que nos auxilia há muitos anos. Foi um de nossos melhores alunos e é considerado um dos maiores colaboradores da Sociedade do Círculo de Pedra.Daniel e Margaret sorriram orgulhosos. Jamais imaginariam que uma pessoa tão próxima fizesse parte daquilo.- E a nossa mãe? - perguntou Margaret.- Ela não sabe - respondeu Ramón, objetivamente. - Nenhum membro pode revelar o nosso segredo para quem quer que seja. Nunca. Em hipótese alguma.- Mas o nosso pai deve estar sabendo do que aconteceu - deduziu Daniel. — Vocês o avisaram, não foi?Helmut voltou a trocar olhares com Ramón, depois suspirou profundamente antes de começar a falar.- Nós o localizamos e o deixamos ciente de tudo — Helmut explicou. — Onze dias depois ele havia chegado a Ilha da Coroa após se desligar de uma missão no Pacífico. Eu mesmo conversei com ele e lhe disse que fizemos de tudo para contornar o problema. John errava pelos corredores deste prédio como uma fera presa numa jaula. Certa noite, alguém bateu na porta do meu quarto, consultei o relógio, passava das duas horas da madrugada. John estava lá, a mão apoiada no batente — os olhos de Helmut reviviam a cena trazida à sua lembrança. — Ele não me deu

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tempo de abrir a boca e disse com voz angustiada "Vou atrás deles". Uma hora depois ele partiu. Exatamente dezesseis dias haviam se passado desde que vocês se foram.- Então meu pai está do outro lado? Por nossa causa ele atravessou o Portal?- É isso mesmo - Helmut foi sucinto.- Talvez sozinho ele se saia melhor — disse Ramón com certa razão. - John é um homem que vivenciou muitas situações em várias partes do mundo, regiões em conflito onde a vida não vale um centavo.- Não com um continente inteiro em guerra - retrucou Margaret. - Só conseguimos voltar porque combinamos nossas aptidões e conhecimentos. Jamais algum de nós teria conseguido sem a ajuda dos outros.- Lamento, mas não podemos enviar outra expedição de resgate. John é um militar experiente e vai saber se cuidar. Cabe aos dois voltar pra casa daqui a alguns dias e levar um pouco de alegria e conforto à mãe de vocês — disse Helmut, mostrando-se inflexível.Toda a sensação de culpa e responsabilidade recaía sobre os ombros de Margaret e Daniel. E se John nunca mais voltasse? Como poderiam olhar para a mãe sem jamais revelarem a verdade sobre o desaparecimento do próprio pai. A sociedade provavelmente já teria montado uma versão convincente em que John teria morrido em uma explosão que deu um fim ao seu corpo. Eles eram especialistas nesse tipo de

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coisa, como haviam feito em 1925 criando a lenda sobre Fawcett, o explorador britânico.Os dois saíram atordoados da sala de Helmut, subiram as escadas e se arrastaram cada um para o seu dormitório.Marc jogou-se na cama e leu as suas cartas sossegadamente. Em uma delas, sua mãe ressaltava o desejo de que ele desistisse e retornasse a Paris. Ela alertava para o perigo das tempestades tropicais oceânicas. Mal sabia ela que tipo de perigo o seu querido filho experimentara nos últimos meses.Afobado, Rafael abria os envelopes - eram nove - e lia as cartas compulsivamente; queria saber o que se passara com sua família nos meses em que ele esteve ausente. Nenhuma novidade, a vida transcorria lenta e enfadonha como normal-mente costumava ser.Chester rasgou um dos envelopes enquanto contemplava o monte Cabeça do Rei bem diante de sua janela; debruçou-se sobre o peitoril e passou a ler, a brisa que vinha do mar tremulava as pontas da folha escrita. Uma parte da carta dizia:"Temos novidade, nasceu um lindo potro, negro como petróleo e com uma pequena mancha na testa. Ele é um cavalinho bastante arredio. Teremos dificuldade para domá-lo. O potro ainda não tem um nome, deixamos para você escolher um pra ele".Chester sentiu uma vontade muito grande de escrever algo, arranjou papel e caneta, sentou-se na mesa junto à parede e começou a rabiscar

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como se conversasse com a carta que acabara de ler."Querido tio Fred e querida tia Mary, está tudo bem por aqui. Sinto não poder escrever antes, mas as normas da escola são rígidas e só agora me deixaram responder. Sobre o potro, se vocês não se importarem, já escolhi um nome pra ele. Não estranhem, mas eu gostaria muito que ele fosse batizado com o nome de Pesadelo."Ele dobrou o papel e o guardou no bolso, não sabia ao certo por que fez aquilo, no entanto, sentiu uma enorme necessidade de deixar algo registrado.Naturalmente, a primeira coisa que Daniel fez quando se reuniu com seus amigos foi contar sobre o seu pai. Mesmo sem querer, ele acabou dividindo a responsabilidade sobre o que acontecera com o comandante John. A cumplicidade nascida entre eles fazia com que aquela reação coletiva fosse algo perfeitamente normal de acontecer. Eles eram uma equipe agora.Não foi uma noite muito tranqüila naquele prédio grande e vazio, e quando todas as luzes foram desligadas, os olhos insones se arregalaram na escuridão quebrada apenas pela rotação do farol.Daniel não teve ânimo para se levantar tão cedo, ainda não sabia o que fazer com relação ao seu pai perdido em algum lugar da Cadecália. Por fim, o seu corpo não suportou mais o colchão macio e ele vagou pelas dependências desertas até achar a sua irmã e Chester no refeitório, os farelos de pão e os restos de fruta se espalhavam

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pelas bandejas. Daniel só tomou uma grande caneca de leite e os três saíram atravessando os salões de luzes fracas, sem ter para onde ir, como réus que aguardam suas condenações. Foi quando viram Rafael e Marc correndo até eles, as expressões aturdidas e a respiração ofegante.- Leia isto! - disse Marc passando um jornal para as mãos de Chester.- O que é isso? — indagou Chester não entendendo direito a que ele estava se referindo.- Um jornal, não está vendo? - disse Marc com impaciência. - Encontramos na biblioteca. Veio no navio junto com as correspondências e com os outros malotes. A data é de anteontem: 1o de dezembro de 1933.- Veja o que está escrito na primeira página - estimulou Rafael como se o jornal noticiasse o fim do mundo.Chester desdobrou o jornal e leu a manchete:- "O chanceler Adolf Hitler incentiva o crescimento da indústria bélica alemã". E o que tem isso?- Não, não! Leia a notícia que está no rodapé da página! - disse Marc. - Olhe no rodapé!Chester fez uma cara feia como se estivessem fazendo alguma brincadeira de mau gosto com ele, porém, sua expressão mudou e seus olhos se arregalaram ao encontrarem uma pequena nota quase despercebida.

MISTÉRIO NO CÉU DA EUROPA

VÁRIAS TESTEMUNHAS DECLARARAM TER VISTO UM OBJETO ESTRANHO SOBREVOANDO O SUL DO

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CONTINENTE EUROPEU NOS ÚLTIMOS DIAS. O OBJETO, QUE FOI DESCRITO DE MUITAS FORMAS,TERIA VOADO DESDE 0 MAR EGEU NA GRÉCIA, CRUZADO A ITÁLIA, A PENÍNSULA IBÉRICA, E POR ÚLTIMO TERIA SIDO VISTO SOBRE AS ILHAS CANÁRIAS RUMO AO OCEANO ATLÂNTICO.DEPOIMENTOS CONTRADITÓRIOS SUGEREM QUE SERIA UM NOVO MODELO DE AVIÃO MILITAR, OUTROS DIZEM SER UMA AVE PRATEADA DE TAMANHO ANORMAL REMANESCENTE DOS TEMPOS PRÉ-HISTÓRICOS. CHEGOU-SE AO ABSURDO DE AFIRMAR QUE, NA VERDADE, O QUE ESTÁ VIAJANDO PELOS CÉUS DO NOSSO PLANETA É UM CAVALO COM LONGAS ASAS COMO O PÉGASO DA MITOLOGIA.