visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a...

438

Transcript of visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a...

Page 1: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado
Page 2: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

O Vale do Silício é a maior fonte de inovação e de geração de riqueza do mundo, o centro das atenções da vida econômica do planeta. Além de ser um lugar peculiar e tumultuado, é também misterioso para a maioria das pessoas que vivem fora dele. Em A nova novidade, Michael Lewis es-quadrinha o Vale, fazendo o mesmo que fez com Wall Street, o foco das atenções nos anos 80, cm O jogo da mentira.

À procura da chave da identidade do Vale do Silício, Lewis estuda a personalidade da mais repre-sentativa de suas figuras, Jim Clark. Maior empreendedor do Vale, Clark é a única pessoa a ter criado do nada três empresas cujo valor de mercado superou um bilhão de dólares. E o principal deflagrador da revolução da Internet e um dos maiores res-ponsáveis pela atual febre tecnológi-ca. Também é rebelde, entusiasmado, destemido, teimoso, controvertido, bem-intencionado, mal-humorado e enigmático, além de muito, muito rico.

Para escrever o livro, Lewis em-barcou no veleiro de Jim Clark, o mais sofisticado já construído, e fez com ele uma viagem desde o Texas até o topo do mundo. Entre um pon-to e outro, descobre a infância pobre

financistas, executivos, investi-dores e advogados que passam de aliados a adversários (ou vice-versa) com a mesma facilidade com que Clark decide construir um barco de mais de 30 milhões de dólares.

A nova novidade revela a criatividade, a premência e a coragem — ou imprudência — dos empreendedores do Vale, os interesses e preocupações dos capitalistas de risco e dos banqueiros de investimento. Mostra como uns e outros se aliam para transformar empresas recém-criadas em

Michael Lewis é jornalista. Escreve sobre economia, política, relações econômicas internacionais e sociedade. Publicou vários livros, entre eles o best-seller internacional O jogo

da mentira (Campus). Mora na

Page 3: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

MICHAEL LEWIS

A nova novidadeUma história do Vale do Silício

Tradução e revisão técnica

Ricardo Rangel

Para Tabitha

A época exigia uma imagem de seu esgar vertiginoso

— Ezra Pound

COMPANHIA DAS LETRAS

Page 4: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

Copyright 1999, 2000 by Michael Lewis

Título original

The new new thing — A Silicon Valley story

Capa João Baptista da Costa Aguiar

Preparação Otacílio Fernando Nunes Jr.RevisãoAna Maria Barbosa Ana Maria Alvares

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (C1P) Câmara Brasileira do Livro, SH, Brasil

Lewis, MichaclA nova novidade : uma história do Vale do Silício /

Michacl Lewis ; tradução : Ricardo Rangei. — São Paulo : Companhia das Letras, 2000.

Título original : The new new thing.ISBN 85-359-0027-6

1. Clark, |im, 1944- 2. Homens de negócios - Estados Unidos - Biografia 3. Indústria de software para computadores - Estados Unidos - História 1. Título.

00-2333____________________________CüD-338.470053092

Índices para catálogo sistemático:1. Homens de negócio : Indústria da informática :

Biografia 338.4700530922. Indústria da informática : Homens de negócios :

Biografia 338.470053092[2000]

Todos os direitos desta edição reservados à EDITORA SCHYVARCZ LTDA.Rua Bandeira Paulista 702 cj. 32 04532-002 —

São Paulo — sp Telefone (11) 3846-0801 Fax (11) 3846-0814 www.companhiadasletras.com.br

Page 5: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

Prefácio 11

1. O barco que gerou a Netscape 17

2. O esgar vertiginoso 30

3. O passado dentro da caixa 48

4. Homem de desorganização 60

5. Inventando Jim Clark 85

6. A retranca e o mastro 113

7. Jogando areia nos olhos dos capitalistas 130

8. O grande terremoto cerebral de 9 de agosto de 1995 ....

144

9. O lar do futuro 172

10. Modo Deus 184

11. Como galinhas se transformam em porcos 196

12. Novo dinheiro novo 208

13. Sanduíche de queijo no café 230

14. Pode ser uma coisa ou outra 248

15. Em alto-mar no lar do futuro 272

16. Caçando fantasmas 295

17. A reviravolta 315

18. A nova novidade 332

19. O passado fora da caixa 349

Epílogo 357

Agradecimentos 361

Page 6: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

Prefácio

Este livro trata de uma busca que ocorre nas fronteiras da vida econômica. Talvez a melhor maneira de apresentá-lo seja explicar por que me dei ao trabalho de escrevê-lo.

Na segunda metade da década de 1990, o Vale do Silício vivia o mesmo clima de centro do universo que Wall Street vivera em meados dos anos 80. Havia uma razão para isso: ele era a fonte de grandes mudanças. Até 4 de abril de 1994, o Vale do Silício era conhecido como a sede de algumas indústrias de alta tecnologia, e principalmente da indústria de informática. Em 4 de abril de 1994, a Nestcape foi formalmente fundada. De repente — rápido assim — o Vale do Silício tornou-se a fonte de mudanças que ocorriam em toda a sociedade. A Internet foi um cavalo-de-troia dentro do qual technogeeks [maníacos por tecnologia ou computadores] entraram em todo tipo de mercado anteriormente inóspito para eles. Wall Street, para citar apenas um exemplo, foi virada de pernas para o ar por novas empresas, novas tecnologias e novos tipos

11

Page 7: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

centro desse negócio não tinha precedente, e fez com que a Wall Street dos anos 80 parecesse uma mesa de pôquer barato. Por enquanto, não há uma avaliação definitiva da riqueza criada no Vale; centenas de bilhões de dólares, certamente; talvez mesmo trilhões. Seja como for, “a maior criação legal de riqueza na história do planeta”, como diz um capitalista.

O dinheiro foi apenas parte do que achei interessante. Realmente acredito, não apenas porque por acaso escrevo um livro a respeito, que o negócio de criar e impingir novas tecnologias a outros, que ocorre no Vale do Silício, está próximo do coração da experiência americana. Os Estados Unidos obviamente ocupam um estranho lugar no mundo. São a capital da inovação, da prosperidade material, de um certo tipo de energia, de certos tipos de liberdade, e da transitoriedade. O Vale do Silício está para os Estados Unidos como os Estados Unidos estão para o resto do mundo. É um daqueles lugares, diferentes do Metropolitan Museum of Art e parecidos com Las Vegas, que são inimagináveis em qualquer parte, exceto nos Estados Unidos. É a nossa cara.

Nesse lugar incomum, havia algumas pessoas claramente mais incomuns do que as outras. Muitos dos que buscaram e encontraram a fortuna no Vale do Silício nos anos 90 poderiam perfeitamente tê-la encontrado na Wall Street dos anos 80 ou na Londres da década de 1860. Mas há um certo tipo de pessoa que acertou em cheio no Vale do Silício recentemente que não teria acertado em nenhum outro momento na história. Acertou porque estava particularmente bem-dotado para este momento histórico específico. Tinha a estrutura para trabalhar na fronteira da vida econômica quando a fronteira estava mais uma vez acessível. Foi concebido para a rápida

12

Page 8: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

tem o detonador entre as pernas, não sabe explicar o que faz para ganhar a vida. Quando alguém se dispõe a encon-trar a nova ideia ou a nova tecnologia que vai a) enriquecê-lo, b) atirar indústrias inteiras no turbilhão, c) fazer com que gente comum se levante e diga: “Meu Deus, algo mudou”, isso não é ciência. Ele não se ocupa do que qualquer pensador sério chamaria de pensamento. A não ser que ganhe muito dinheiro, não será sequer tratado como homem de negócios, pelo menos não por homens de negócios sérios. Ele pode chamar a si mesmo de “empreendedor”, palavra um tanto desmoralizada pelo uso excessivo. Na verdade, não existe um termo adequado para o que ele faz. A primeira vez que percebi esse problema foi quando observei uma dessas pessoas — um homem que ganhara 1 bilhão de dólares — tentar preencher um simples questionário. Na linha em que se pedia que informasse sua ocupação, ele não sabia o que escrever. Não havia um nome para o que ele fazia. Buscador? Ele não podia escrever isso.

Por falar nisso, não existe nome para o que ele busca, tipicamente uma tecnologia ou uma ideia à beira da viabilidade comercial. A nova novidade. É mais fácil dizer o que a nova novidade não é do que o que ela é. Não é necessariamente uma nova invenção. Não é sequer uma nova ideia necessariamente — quase tudo já foi considerado por alguém em algum momento. A nova novidade é uma ideia que está pronta para ser levada a sério pelo mercado. É a ideia que precisa apenas de um pequeno empurrão para cair na aceitação geral e que, depois do empurrão, vai mudar o mundo.

Quem busca novas novidades não se enquadra em nenhuma concepção estabelecida de como as pessoas

13

Page 9: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

daquela doce e dolorida sensação que experimentamos quando não conseguimos nos lembrar de uma palavra que parece estar na ponta da língua. Para a maioria das pessoas, lembrar-se da palavra traz um alívio quase físico. Elas se recostam na cadeira e tentam fugir de outras palavras difíceis. Mas a pessoa que ganha a vida buscando novas novidades não é como a maioria das pes-soas. Ela não quer se recostar em cadeira alguma. Precisa continuar tateando. Prefere viver eternamente no desconforto picante e doce de não saber exatamente o que quer dizer. Uma das pequenas ironias do progresso econômico é que, mesmo frequentemente resultando em níveis mais altos de conforto, ele dependa de gente que prefere não ficar confortável demais.

Desde o início de minha investigação sobre o Vale do Silício, eu sabia que estava tentando descrever um processo: como essa fantástica riqueza fora criada. Foi por acaso que a melhor maneira de ilustrar o processo acabou sendo esse personagem. Afinal, a maior criação de riqueza dentro da legalidade na história do planeta veio diretamente da nova novidade. Quando se pergunta: “Como foi que a economia deu um salto desses ?”, o que se está perguntando é: “Como alguém conseguiu dar um empurrão em toda a economia?” Acredite se quiser, há gente, dentro e fora do Vale do Silício, que acha que encontrar a nova novidade é quase um dever. Pode ser que esse tipo de gente não seja de fato típico de nossa época (existe alguém que seja?). Mas, nesse caso, é representativo: uma força subversiva. Um catalisador de mudança e regeneração. Está para o Vale do Silício como o Vale do Silício está para os Estados Unidos. E espalha impressões digitais por todo o traseiro da vida moderna.

Tentei escrever, de uma maneira indireta, a única que 14

Page 10: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

Espero que o leitor também o faça. Seja como for, espero que perceba como é ter uma ocupação tão estranha e confusa, O progresso não marcha para a frente como numa parada militar; ele se arrasta sobre a barriga como em uma guerrilha. Os eventos importantes no capitalismo não ocorrem mais em escritórios revestidos de painéis de carvalho, se é que alguma vez ocorreram. Podem ocorrer nos lugares menos prováveis. Em um barco no meio do Atlântico, por exemplo.

Como acabou se tornando claro, havia uma estrutura na vida do principal personagem desta história. Ele podia não se dar ao trabalho de reconhecer, mas ela estava lá assim mesmo. Era a estrutura de uma história de aventura à moda antiga. Bastava a presença dele em uma cena para suscitar a pergunta que impulsiona qualquer aventura: o que vai acontecer agora? Eu não tinha a

15

Page 11: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

1.O barco que gerou a Netscape

O plano original, e Deus sabe que não valia grande coisa quando foi concebido por Jim Clark, era testar rapidamente o barco no mar do Norte e depois atravessar o Atlântico. Se nada desse muito errado, levaríamos seis dias para chegar às ilhas Canárias, e mais dez para atingir o Caribe. Eu já vira Clark em tantas situações diferentes que tinha certeza de que o conhecia, e também o tipo de comportamento de que ele era capaz. Mas nada como dezesseis dias em alto-mar com um pequeno grupo de pessoas desconfiadas umas das outras para testar nossas suposições sobre o caráter humano. Na travessia do Atlântico, o Hyperion carregaria apenas o capitão e seus sete tripulantes, um ou dois programadores de computador, Clark e eu.

A questão era o motivo pelo qual valia a pena estudar Clark, e falarei disso em breve. Por enquanto, digo apenas que as idiossincrasias de seu caráter reverberavam fantasticamente no mundo à sua volta. Frequentemente com as melhores intenções, ou sem nenhuma intenção,

17

Page 12: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

submeter um ser humano: a mudança. Estranhamente, ele vivia afirmando que o que queria de verdade era deitar de pernas para o alto e relaxar. Não conseguia fazer isso por mais de um minuto. Assim que estendia as pernas, sua mente girava, seu rosto ficava vermelho e ele se agitava inteiro outra vez. Pensava em algo ou alguém no mundo que precisava ser mudado. Nesse caso específico, era seu barco novo.

Pelo que eu sabia, Clark seria lembrado principalmente por ser o sujeito que criou a Netscape e deflagrou a explosão da Internet, a qual, por sua vez, produziu uma das reviravoltas mais espantosas na história do capitalismo. Talvez em algum lugar, em uma nota de rodapé, se mencionasse que ele veio do nada, cresceu pobre, abandonou o colégio e conseguiu ganhar 3 ou 4 bi-lhões de dólares. Talvez até se dissesse que ele tinha faro para a nova novidade. Mas, no meu modo de pensar, estes eram detalhes superficiais, o que havia de menos interessante so b re ele. Afinal, uma porção de pessoas tem 1 bilhão de dólares hoje em dia. Quatrocentas e sessenta e cinco, de acordo com a edição de julho de 1999 da revista Forbes. E a maioria delas não é mais interessante do que você ou eu. Pode acreditar em mim.

Ao longo do trecho mais profundo do canal em frente a Amsterdã, petroleiros lotados e rebocadores robustos vêm descansar. Nem o piloto nem eu tínhamos a mais vaga ideia de onde, nessa morada de gigantescos navios industriais, se poderia ancorar um barco de lazer. Não era um lugar aonde alguém normalmente iria em busca de divertimento. O piloto finalmente virou-se e perguntou-me o que exatamente eu estava procurando, e eu lhe disse que procurava o veleiro que me levaria para mar aberto. Ele riu, mas daquele jeito que as pessoas riem quando

18

Page 13: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

aspec

aspectos engraçados que não têm graça nenhuma. Conte a um holandês que seu cachorro morreu, e ele vai fingir que você disse algo incrivelmente espirituoso. Foi isso que o piloto fez quando eu lhe disse que ia velejar no mar do Norte. Era início de dezembro, os ventos sopravam a cinquenta quilômetros por hora, e o mar do Norte — bem, o mar do Norte no inverno não é o lugar para se estar em nenhum tipo de veleiro. O piloto rugiu da maneira mais antigermânica possível. “Vai sair de iate!”, disse, e explodiu novamente em gargalhadas, desnecessariamente altas, como se tivesse entendido minha piada e esperasse outra. “Isso mesmo”, disse eu, o que apenas provocou mais estrondos.

O grande mastro veio nos resgatar. Em um momento estávamos perdidos; no seguinte, fizemos uma curva e avistamos no horizonte uma vara branca, rígida e alta. Suas bandeiras coloridas tremulavam em relevo no céu cinzento, e suas cinco cruzetas se esticavam em direção às nuvens como uma corrente de crucifixos que se afastavam. Faziam com que todos, num raio de dez quilômetros, ficassem boquiabertos de assombro. Foi então que o piloto finalmente parou de rir. Iate, afinal, é uma palavra holandesa.

Três minutos depois, encostamos no cais perto do veleiro branco e baixo, ao lado do nome pintado em letras manuscritas azuis: Hyperion. Era possível perceber que o piloto sabia pelo menos alguma coisa a respeito de veleiros, porque imediatamente chamou o barco de “sloop”. Um sloop é um veleiro de um só mastro, diferente de um veleiro de dois mastros, que se chama “ketch”. Qual o comprimento desse sloopV’, perguntou-me. “Cento e cinquenta e cinco pés e meio”, eu disse. “Esse é o maior sloop de que já ouvi falar”, disse. Eu disse que era porque aquele era o maior sloop construído até então. Seus olhos se moviam do casco ao mastro, do mastro à retranca, da

Page 14: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

precisa de quantos homens para cuidar das velas?” perguntou. “Nenhum”, respondi. “Teoricamente, pelo menos.”

O holandês riu de novo, mas um riso nervoso, como se estivesse decidindo o que era melhor, passar por alemão ou por tolo. Só depois que eu lhe disse que o barco não precisava propriamente de uma tripulação, que podia ser controlado completamente por um computador, é que riu de novo, agora com convicção. A história toda era, afinal, uma piada maluca de um estrangeiro.

Quando cheguei, na manhã da primeira provação no mar do Norte, Wolter Huisman estava de pé no convés embaixo do mastro. Wolter era dono do estaleiro que construíra o Hyperion. Neve úmida pingava de seu impermeável, e seu boné de lã cobria-lhe as orelhas. Seu queixo se escondia melancólico debaixo de um anoraque surrado, e seus velhos ombros holandeses estavam caídos como os de um trabalhador no fim de um longo dia de trabalho. Ele parecia estar derretendo. Quando cheguei, flagrei-o resmungando consigo mesmo. Mais tarde descobri que Wolter não tinha dormido. Passara a noite olhando para o teto, preocupado.

“Qual foi o pior tempo em que você já testou um barco?”, perguntei-lhe.

“Um tempo como este”, respondeu. Então suspirou e disse, ao mesmo tempo a propósito de tudo e de nada: “Quando Yim quer uma coisa, Yim consegue”.

Em seu pessimismo, Wolter encontrara uma estratégia para levar sua vida em frente até alcançar uma outra, nova e melhor: enquanto insistisse consigo mesmo que o amanhã seria pior do que o hoje, não fazia muita diferença se seria mesmo. Ele ainda tinha o hábito holandês de rir de qualquer coisa, para o caso de ser uma

20

Page 15: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

mas sua melancolia era jovem e vital. Como culpá-lo? Seu destino agora se confundia com o do Hyperion. E o Hyperion, nesse exato momento, estava prestes a tornar-se o mais espetacular desastre marítimo desde o Titanic.

Evidentemente, todo novo iate que saía do Estaleiro Huisman era, no entender de Wolter, um futuro acidente. Wolter, e seu pai antes dele, e o pai de seu pai ainda antes, precisaram de décadas para construir a reputação de serem, talvez, os melhores construtores de veleiros do mundo. Cada vez que Wolter lançava um novo veleiro, essa reputação ficava vulnerável. Mas desta vez era diferente. Isto era algo novo.

“Onde está ele?”, perguntei.“Em frente ao computador”, disse Wolter. Pausa.

“Quando Yim senta em frente ao computador, sai deste mundo.”

Isso era verdade. Ele criava um mundo novo.Naquela manhã de dezembro amargamente fria, o

Hyperion soltou as amarras de forma tão silenciosa que os programadores não perceberam. Os programadores eram três jovens que Jim Clark tinha trazido de avião do Vale do Silício até o mar do Norte para ajudá-lo a transformar seu novo iate em um gigantesco computador flutuante. Technogeeks. Todos tinham pouco mais de trinta anos, todos tinham um guarda-roupa que parecia consistir em nada além de camisetas e jeans, e todos eram ex-empregados do primeiro start-up [empresa criada a partir do zero] tecnológico de Clark, a Silicon Graphics. Subiram com dificuldade, vindos do convés inferior, onde digitavam furiosamente em seus teclados, para examinar a criatura que tinham produzido. Era como se não acreditassem completamente que o Hyperion pudesse flutuar.

21

Page 16: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

grandes monitores de tela plana ligados a computadores. Os três jovens tomaram seus assentos em frente a essas telas e começaram a apertar botões. Logo começaram a emitir pequenos ruídos inseguros que sugeriam que nem tudo ia bem com os computadores. Em uma das telas estava o mapa da Holanda. O mapa se concentrava na área imediatamente em volta de nós, talvez uns cinquenta quilômetros quadrados. Uma miniatura do Hyperion avançava pouco a pouco através do mapa, como um barco em um videogame. Mas, de acordo com o mapa, estávamos cruzando o campo de uma fazenda em direção a um aeroporto. O estreito canal onde de fato nos encontrávamos estava cinco quilômetros para o leste. Qualquer capitão que usasse o computador para guiar o barco pensaria estar rumando para uma torre de controle a toda velocidade.

Saí para o convés e descobri que o mesmo mapa ocupava a tela do computador diante de Allan Prior, o homem que Clark havia contratado para ser o capitão do Hyperion. Allan era da velha-guarda. Vencera a regata Whitbread, ao redor do mundo, num veleiro tão despojado que parecia ter sido depredado. O próprio Allan parecia depredado; o vento e o sol haviam devastado seu físico. Allan não achava que veleiros devessem ser controlados por computador. Nesse momento ele estava olhando fixamente para a frente, tentando evitar um grande ferry boat que atravessava o canal, “Não me perturbe com isso”, disse, quando lhe perguntei por que seu barco estava no meio de um campo de trigo. “Isso é problema do computador.” Claramente, ele não estava disposto a encarar o fato inegável de que o barco como um todo era problema do computador.

Voltei aos programadores na ponte. Depois de alguns 11

Page 17: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

moviam-se entre a beira do canal e o mapa sobre o qual o Hyperion se arrastava. Todos os mostradores de computador pareciam inadequados ou imprecisos. Um capitão que pilotasse com base neles — coisa que Allan Prior naquele momento se recusava a fazer — acreditaria não somente estar velejando através de um campo de trigo. Acreditaria estar velejando através de um campo de trigo na direção errada. Por nenhum motivo aparente, uma luz vermelha piscava nas telas. Ela dizia: PERIGO, PERIGO,

PERIGO.

Steve apertou alguns botões. De acordo com o computador, tínhamos encalhado. “É realmente lamentável que estejamos nesta situação”, disse ele, por fim.

Era mesmo. Apenas algumas horas antes, o serviço de meteorologia tinha previsto Força 4 para as condições de mar. Força 4 pressupunha agradáveis ventos de vinte nós e ondas de talvez dois metros. Mesmo antes de termos deixado o canal e atravessado as eclusas para alcançar o mar do Norte, a previsão já tinha caído em descrédito. Os mostradores que exibiam a velocidade do vento estavam congelados em cinquenta nós — o computador não tinha sido programado para registrar ventos mais fortes do que isso.

Ao atravessarmos a eclusa e chegarmos ao porto, finalmente conseguimos entender por que Wolter Huisman resmungava. Ondas de cinco metros fustigavam o quebra-mar e arremessavam sua espuma branca a dez metros de altura, onde ela se misturava com a neve que caía. Rajadas de vento sopravam a mais de cem quilômetros por hora. O barco de repente começou a balançar tão violentamente que ninguém conseguia mais observar o computador por muito tempo. Os programadores saíram

23

Page 18: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

uma equipe de TV alemã, presente para documentar o lançamento do primeiro veleiro completamente computadorizado. O único que faltava era o próprio Clark, mas quem o conhecia sabia que não valia a pena contar com sua presença onde se supunha que ele estivesse. Mais cedo ou mais tarde ele apareceria, normalmente quando não fosse mais necessário.

“Está um vento dos diabos aqui fora”, gritou Wolter Huisman, para ninguém em particular. “Esse tempo é bom para testar gente, não barcos.” Disparou um olhar significativo para Allan, que devolveu o olhar. Ambos sabiam que o tempo era o menor dos problemas.

Quando o Hyperion deixou o quebra-mar para trás, colocou-se à mercê de um mar do Norte furioso. Imediatamente, o barco foi capturado por forças muito maiores do que ele próprio, e sua magnificência foi se banalizando. Um furioso movimento em espiral nos puxou para cima e para a direita, e depois para baixo e para a esquerda. Caíamos no cavado da onda, passávamos por um curto e falso momento de calma, e então éramos sugados e torcidos de novo. O operador de som da TV

alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado um botão no computador que ordenava que o homem ficasse enjoado. Mesmo de bruços e vomitando no convés tumultuado, ele ergueu o microfone no ar de modo a captar o som ambiente. Para equalizar o som. Um jovem holandês, um amigo de Clark que ia no barco, deu uma risadinha e disse: “Esses alemães sempre fazem o que têm de fazer, não importa o que aconteça”.

Mas o operador de som alemão apenas indicara o caminho. Passou-se mais um minuto e meio até que o primeiro operário holandês se inclinasse sobre as cordas

24

Page 19: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

embaixo monitorando os motores. Alguns minutos mais tarde, três camaradas que trabalhavam no convés principal vieram se juntar à festa. Depois chegou o resto da equipe de TV alemã. O Hyperion ergueu-se, torceu-se, mergulhou e serenou, então ergueu-se, torceu-se, mergulhou e serenou de novo. Passados vinte minutos, oito homens estavam inertes como se tivessem sido desligados da tomada. Aqueles que não estavam enjoados fingiam se divertir. Agrupavam-se em torno do capitão, agarravam-se aos corrimãos e sorriam uns para os outros feito loucos.

Allan acabou por reduzir a velocidade do motor e içar a vela. Fez isso apertando um botão, que disse ao computador para içar a vela, e o computador, dessa vez, fez o que devia. O mastro era riscado por hastes, chamadas cruzetas. A vela subiu com grande estrondo, ultrapassando-as uma de cada vez até alcançar, enfim, a última cruzeta. Quando se achava que não podia haver mais vela, mais vela aparecia. Só a vela principal tinha mais de quinhentos metros quadrados, um pouco mais de um quarto de um campo de futebol. A maior vela do mundo, por sinal. Esperava-se que aguentasse até onze toneladas de vento. Ou seja, suas cordas deviam suportar uma força equivalente a um bloco de aço de onze toneladas pendurado em suas extremidades. As cordas já estavam sendo testadas. “O vento está forte demais para abri-la inteira”, gritou Allan para Wolter. Wolter assentiu solenemente.

Enquanto não se iça uma vela e se desliga o motor, não se pode compreender inteiramente a euforia que se seguiu à invenção do motor a vapor. O barco, agora sem motor, estava submetido a uma força mais bruta, mais primitiva. As ondas quebravam e a espuma vinha em

25

Page 20: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

pelas cordas de segurança, que só eles usavam. Os três technogeeks se agarraram aos corrimãos e tentaram não se lembrar de que ali não era o seu lugar. Sabiam, sem que ninguém lhes dissesse, que quem caísse no mar podia se considerar morto. Quem fosse atirado ao mar do Norte em dezembro resistiria apenas alguns minutos antes de morrer congelado; e, nestas condições, poderia ser preciso uma hora para se resgatar alguém, isso se se conseguisse encontrá-lo. Talvez por isso ninguém se desse ao trabalho de usar colete salva-vidas.

Foi aí que eu reparei em Wolter, o braço firmemente preso a um corrimão, tentando examinar uma coisa de cada vez. Era o traseiro de Wolter que estava na linha de fogo ali. Se um mastro Huisman se quebrasse, ou se um casco Huisman vazasse, e um veleiro Huisman fosse a pique, uma longa e gloriosa tradição familiar iria parar no fundo do mar do Norte. É por isso que Wolter e seus trezentos artesãos, firmes e fortes em sua pequena aldeia no Norte da Holanda, resistiam a mudanças. Eles não se apegavam ao passado inadvertidamente. Mas eram tão imunes à fascinação do novo modo de fazer as coisas quanto se pode ser. Em uma palavra, tradicionais.

Wolter passara os três anos anteriores travando uma luta com uma grande força que não tinha tempo nem gosto pela tradição. A luta o transformara num velho. Antes de Jim Clark ter ido ao estaleiro, no fim de 19 95, Wolter nunca tinha ouvido falar do Vale do Silício, nem da Internet, nem, por falar nisso, de Jim Clark. Yim, como Wolter o chamava, sentara-se no meio de primorosos modelos de navios construídos séculos antes, e de velhas fotografias preto-e-branco de Wolter e seus antepassados na tarefa de construí-los. Tinha visto um iate recém-construído por Wolter, disse, e queria um igual. Só que

26

Page 21: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

Especificamente, queria poder se conectar ao barco pela Internet de sua mesa no Vale do Silício e velejá-lo pela baía de San Francisco. Era como se alguém tivesse destilado o capitalismo maníaco dos EUA do fim do século xx num frasco e o despejasse na garganta de Wolter.

Só uma pequena parte do desconforto daquela tarde cinzenta e gelada de dezembro era física. A maior parte ocorria na mente das pessoas. Clark empurrava as pessoas para lugares aos quais elas jamais iriam espontaneamente. Com frequência, quem era empurrado presumia, por um motivo ou outro, que Jim Clark, o ricaço do Vale do Silício, que parecia saber antes de todo mundo o que estava para acontecer, garantia que não acon-teceria nada com elas. O problema é que essa suposição não era verdadeira: o máximo que Jim Clark garantia a quem quer que fosse era uma chance de se adaptar. Seu pendor para subverter o que o circundava estava na base de toda empresa que ele criava, e agora ele o usava para transformar um veleiro. As muitas sensações estranhas a bordo — o pavor de Wolter, a frustração de Allan, o improvável senso de responsabilidade dos geeks— eram todas obra de Clark e de sua nova tecnologia. Era uma grande e confusa experiência, que, retrospectivamente, não podia ter um final feliz. E não teve.

Quando o mar se tornou mais violento, a pequena população do barco se amontoou na popa. O Hyperion se contraiu e se revirou; seus passageiros se agarraram aos corrimãos e uns aos outros. Mesmo Allan, que já tinha velejado em volta do mundo três vezes em barcos do tamanho da banheira da casa de Clark na Califórnia, estava entorpecido como uma múmia. “Isso não é velejar”, gritou para Wolter. “Parece mais com botar alguma coisa na máquina de lavar para ver se quebra.”

27

Page 22: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

Clark fez. Emergiu de sua cabine, onde estava mexendo no computador, e subiu pelas cordas de segurança ao longo da amurada. Como o Hyperion tinha 47 metros de comprimento e ele tinha um metro e noventa de altura, deu algum trabalho. Devo dizer que ele não se parecia com o que era de se esperar; sua aparência era apenas mais um elemento de surpresa em um universo surpreendente. Ele era alto e espadaúdo, bem diferente do estereótipo de um nerd [variação menos nobre de geek] de computador. Seu cabelo louro estava bem penteado. Suas feições eram suaves e delicadas: era fácil imaginar que ele se parecesse com a mãe. Era bem-apessoado. Diferentemente da maioria dos homens que ganharam bilhões de dólares, tinha um jeito expansivo e espontâneo. Pelo menos era essa a primeira impressão que ele causava. Olhando de perto, podia-se perceber que cada um dos gestos lentos e espontâneos era contrariado por outro gesto pequeno, tenso e quase involuntário. Sua linguagem corporal travava um debate consigo mesma. Era como se ele sentisse uma coceira a se recusasse a coçar.

Quando alcançou a proa, ele subiu até o mastro mais alto do mundo, que se erguia 58 metros acima do convés. Colocou a mão no mastro, para se equilibrar. Lá ficou por um bom tempo, um pacote amarelo impermeável bem embaixo da vara branca, rígida e alta pertencente ao barco de seu desejo. Parecia olhar direto para o céu. O que procurava, ninguém podia dizer. Provavelmente pensava em algo que quisesse mudar. Possivelmente nem estava pensando, mas tateando no escuro. E assim que sua mente funcionava — a lógica sempre vinha depois do impulso inicial, primitivo e inexplicável. Mas, fosse o que fosse que estivesse fazendo, não o fez por muito tempo.

28

Page 23: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

Mais tarde alguém que estava na ponte disse ter ouvido um estalo bem forte. A borracha na base do mastro mais alto do mundo se rompera. A vedação de um metro de largura que mantinha em pé os 58 metros de fibra de carbono pertencentes a Clark congelou-se, converteu-se em cristal e então fez-se em pedaços. O mastro ficou solto no encaixe. Suas três toneladas e meia balançavam violentamente de um lado para o outro, como um cabo de vassoura escorregando em uma lata de lixo. Pressionando um botão tão rápido quanto possível, Allan Prior arriou a vela, antes que o próprio mastro se quebrasse e caísse no mar.

“Meu Deus”, murmurou Wolter Huisman, e olhou para

29

Page 24: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

2. O esgar vertiginoso

Apenas algumas horas depois de o último convidado ter saído pelo portão da frente, Clark ligou e fez a proposta. “Vou sair de helicóptero”, disse. “Quer vir comigo?” A voz era profunda, grossa e irregular. Aparentemente ele não tinha dormido. Eram pouco menos de oito da manhã do dia 5 de julho. Tinha passado as três horas anteriores programando o computador, e as sete horas antes disso bebendo com setenta de seus engenhei-ros prediletos, que trabalhavam nas empresas que ele criara e depois meio que abandonara.

A essa altura eu sabia que a única maneira de estar com Jim Clark era subir a bordo de uma de suas máquinas. Não há maneira de interagir mais com ele do que pegar uma carona na garupa de sua vida. Desde que você garanta que não vai reclamar, nem chorar, nem vomitar na caixa de marchas, ele não se incomoda de levá-lo. Ele tinha uma coleção de veículos: helicóptero, avião de acrobacia, motocicleta, vários carros esporte exóticos que ninguém, além dos ricos, nem sequer sabe que existe, e,

30

Page 25: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

que sua gama de posses fosse original. Ele poderia até parecer apenas mais um novo-rico tentando demonstrar ao mundo quanto é rico. Ou então uma dessas pessoas que tentam provar como são interessantes arriscando a vida em várias aventuras idiotas. Não era essa sua motivação, no entanto. Ele não precisava ostentar sua riqueza: a cifra estava no jornal todos os dias. Era de conhecimento público que Jim Clark tinha 16 milhões de ações da Netscape, e que cada ação da Netscape estava, em 5 de julho de 1998, sendo negociada a 25 dólares. Dezesseis milhões vezes 25 são 400 milhões de dólares. Eram 650 milhões menos do que Clark valera dois anos antes, e, por falar nisso, 3 bilhões de dólares menos do que valeria nove meses mais tarde. A cifra estava sempre mudando.

Seja como for, nunca teria ocorrido a Clark que qualquer de suas máquinas fosse apenas uma ostentação de riqueza, ou algum tipo de aventura. Por mais imprudente que fosse seu meio de transporte, ele nunca se considerara outra coisa que não a prudência em pessoa. Não, para ele todo o prazer vinha da intimidade mecânica. Máquinas! Ela adorava conhecê-las, operá-las, dominá-las, consertá-las quando quebradas. Mais do que qualquer outra coisa, gostava de incrementá-las e aprimorá-las. Cheguei à conclusão de que eram as criaturas do mundo das quais ele se sentia mais próximo. Eram certamente as únicas em que realmente confiava.

Na verdade, se Clark usava as máquinas, não era para impressionar os outros, mas para evitá-los. Eram seus veículos de fuga. Depois que ficava claro que uma pessoa não permitiria a fuga, Clark a jogava no banco de trás de seu avião de acrobacia, subia 1500 metros na vertical e desligava o motor. A manobra é conhecida como

3i

Page 26: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

Ainda que pudessem ser perturbadores, esses passeios nunca eram monótonos. Sempre acontecia alguma coisa que não devia.

Uma hora depois de ter me telefonado, Clark veio me buscar em um de seus carros esporte de grife. Usava óculos bem escuros e tinha a expressão dolorida de um homem que sofre as consequências de duas garrafas de um bom Borgonha. Puxei conversa sobre uma série de temas, até que ele se interessou por um: um livro que eu mencionara semanas antes2 The engineers and the price system [Os engenheiros e o sistema de preço], de Thorstein Veblen. Veblen era um quixotesco teórico social, com um gosto infeliz pelas mulheres dos colegas no Departamento de Economia da Universidade de Stanford. Entre um encontro amoroso e outro, cunhou expressões pungentes, entre as quais “classe ociosa” e “consumo conspícuo”. Em 1921, Veblen previu que os engenheiros um dia controlariam a economia americana. Ele argumentava que, já que a economia dependia da tecnologia e os engenheiros eram os únicos que realmente compreendiam como a tecnologia funcionava, eles inevitavelmente usariam seu conhecimento superior para tomar o poder dos financistas e dos capitães de indústria que ficaram no comando após a primeira fase da Revolução Industrial. Afinal, bastava que os engenheiros se recusassem a consertar o que quer que fosse para que a indústria moderna se pulverizasse e estacasse. Veblen exultava com essa perspectiva. Ele não gostava muito de financistas e capitães de indústria. Considerava-os parasitas.

Quando falei de Veblen a Clark, ele fez uma boa imitação de alguém entediado até a raiz dos cabelos. Quando não queria parecer muito interessado, fingia não

32

Page 27: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

O poder está passando para os engenheiros que criaram as empresas.”

Essa, Clark acreditava, era a ordem natural das coisas. Eram os engenheiros que tinham criado a riqueza. E durante os anos 90, o Vale do Silício criara uma fantástica quantidade de riqueza nova. O capitalista de risco John Doerr, amigo de Clark e co-conspirador no Vale, gostava de descrever o Vale como “a maior criação legal de riqueza na história do planeta”. Talvez estivesse certo. Mas um novo acontecimento dessas dimensões na história econômica levanta igualmente grandes novas questões. Por exemplo, por que ocorreu? O que causou essa explosão? Por que ocorreu aqui? As velhas teorias econômicas sobre a criação de riqueza — que a riqueza advém da poupança, do investimento, da retidão pessoal, do planeta Terra, ou do nível adequado de despesas governamentais — não conseguiam explicar o que estava acontecendo na divisão de engenharia da economia americana.

As pessoas que ganham a vida tentando explicar de onde vem a riqueza estavam apenas começando a pensar no fenômeno. Em meados dos anos 80, um jovem economista chamado Paul Romer escreveu alguns trabalhos que apresentavam uma teoria, que ele chamou de Nova Teoria do Crescimento. Logo depois de Romer ter publicado seus trabalhos, Robert Lucas, economista de Chicago ganhador do prêmio Nobel, deu uma série de palestras sobre o assunto na Universidade de Cambridge; em menos de dez anos a Nova Teoria do Crescimento se tornou senso comum entre os economistas e no mundo dos negócios. A Nova Teoria do Crescimento defendia, utilizando uma matemática abstrusa, que a riqueza advém da imaginação humana. A riqueza não era

33

Page 28: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

A metáfora que Romer usou para descrever a economia para não-economistas foi a de uma cozinha bem fornida esperando que algum chefe brilhante a explorasse. Todos na cozinha começam com mais ou menos os mesmos ingredientes, dizia a metáfora, mas nem todo mundo produz boa comida. E apenas pouquíssimas pessoas que se aventuram na cozinha encontram formas inteiramente novas de combinar velhos ingredientes em receitas deliciosamente saborosas. Essas pessoas são os criadores de ri queza. Suas receitas são a riqueza. A eletricidade. O transistor. O microprocessador. O PC [computador pessoal]. A Internet.

Uma das conclusões da teoria é que uma sociedade que quer se tornar mais rica deve encorajar as características, por mais bizarras que sejam, que levam as pessoas a criar novas receitas. Na formulação de Romer, “uma certa tolerância para com o não-conformismo é realmente decisiva para o processo”. Atributos que na França do século xi, ou mesmo nos Estados Unidos da década de 1950, poderiam ser encarados como antissociais, ou até criminosos, deveriam ser recompensados, honrados c imitados simplesmente porque conduziam a mais... receitas. Em suma, a nova teoria conferia um novo e espantoso valor à inovação e às pessoas responsáveis por ela. A mola mestra da riqueza não era mais o grande industrial que escravizava milhares de empregados, o grande político que controlava as finanças da nação, o grande magnata de Wall Street que financiava novos empreendimentos. Era o geek enfurnado no porão o fim de semana inteiro, descobrindo novas coisas para fazer com o computador. Era Jim Clark.

Clark dirigia rápido demais — na faixa exclusiva — cortando a metade inferior do Vale rumo ao San Jose Jet

34

Page 29: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

Clark tinha contratado um policial local para ensiná-lo a operar sua mais nova aquisição. O policial tinha pilotado helicópteros no Vietnã. Tinha estado em combate. Não sofrerá acidente nem fora abatido. Era um começo.

Clark passou a primeira meia hora conferindo lentamente uma checklist de segurança. Usava uma camisa azul-pálido de colarinho aberto, calça cáqui e um par de tênis surrados e manchados de onde pendia uma etiqueta onde se lia: MEPHISTO. Mesmo quando se dedicava a iniciar uma empresa nova, ele parecia estar vestido para um dia de pescaria. O policial bradava uma lista de peças, e Clark localizava cada uma delas e se certificava de que estava no lugar certo.

“Pedais antitorque?”“Checados.”“Pinos antitorque no lugar?”“No lugar.”O exercício não poderia ter sido mais tedioso; Clark

não poderia ter se divertido mais. Era sua maneira peculiar de curar a ressaca. Num dado momento, olhou para cima e disse que era uma máquina tão linda que ele estava pensando em comprar a empresa que a construíra. E estava falando absolutamente sério. Já tinha averiguado. Conversara a respeito com seu amigo Craig McCaw, que havia feito fortuna com telefones celulares e agora se dedicava a pôr satélites em órbita, em número suficiente para que se pudesse, com um modem satelital, fazer uma conexão com a Internet em qualquer lugar no planeta. Clark c McCaw estavam pensando em fazer uma oferta privada pela empresa de helicópteros — como uma espécie de hobby.

Seja como for, enquanto saçaricava em volta de sua nova máquina, apertando e puxando alavancas, botões e

35

Page 30: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

os brilhantes objetos metálicos. O policial, talvez por perceber que estava sendo ignorado, fez uma palestra de gelar os ossos sobre os perigos do voo de helicóptero. A história dos helicópteros, dizia, é uma história de falhas mecânicas. Não muito tempo antes, os dois melhores pilotos de helicóptero do departamento de polícia local tinham perdido a hélice do rotor principal durante o voo. Todo o mecanismo de sustentação saiu simplesmente voando. “Quando chegamos ao local do acidente”, disse o policial, “não havia nada. Não havia sobrado nada do helicóptero. Só pó.”

Clark arrancou o novo assento traseiro que tinha acabado de ser instalado e reclamou que a cor estava errada.

Depois de verificar todos os pontos, Clark e o policial subiram para os assentos dianteiros equipados com controles. Decolamos com um solavanco perturbador. O helicóptero ergueu-se e girou em direção à extremidade sul do Vale do Silício. Abaixo de nós estavam as lagoas de sal e os canais de esgoto que tanto irritavam os ambientalistas locais — antes de os ambientalistas terem sido expulsos pela especulação imobiliária. De uma altura de cem metros, os detritos eram o que havia de mais bonito à vista. O policial inclinou-se para fora da janela para olhar, deixando para Clark a tarefa de pilotar sua nova máquina. Era sua sexta hora de voo num helicóptero.

De onde estava sentado, imediatamente atrás de Clark, eu não podia ver quase nada de sua expressão, além do amarelo-pálido de sua nuca. Mas podia ouvir o policial gritando para ser ouvido; estava tecendo loas ao novo helicóptero. “Estamos a 140 nós”, berrou. “E sem esforço nenhum.” Clark apenas assentiu. “Dizem que

36

Page 31: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

voando de lado, com as cabeças paralelas ao solo. “Como você vê”, disse o policial, “sem esforço nenhum.” Então, sem soltar completamente, afrouxou a pressão das mãos sobre os controles e disse: “É todo seu”.

Clark olhou para o painel de controle. Os mostradores giravam freneticamente. Dúzias de círculos, ponteiros, luzes e botões. Cerca de duas pessoas no planeta poderiam saber o que tudo aquilo significava. Mas o mundo se divide claramente entre os que conseguem olhar um painel de controle e saber instintivamente o que é o quê, e os que não conseguem. E Clark era o rei dos painéis de controle. “Nem olhe para essas porras”, gritou o policial. “Basta seguir seu instinto.”

A máquina inclinava-se e balançava à medida que Clark pisava nos pedais e puxava as alavancas para descer. Queria praticar pousos e decolagens, queria saber tudo ao mesmo tempo. Não estava satisfeito em aprender a pilotar helicóptero no ritmo que o policial queria lhe ensinar. O policial era uma mera formalidade, o instrutor exigido por lei.

Não há muito a dizer sobre um homem que insiste em aprender a pilotar completamente sozinho, a não ser que ele tem uma tendência a apavorar seus passageiros. Essencialmente, Clark ensinava a si mesmo através de tentativa e erro. Apertava botões e empurrava alavancas, aparentemente a esmo, para ver o que acontecia. Cada vez que fazia isso, eu me encolhia e esperava pela inevitável queda em espiral. Não sobrou nada além de pó. Estranhamente, o homem que apenas minutos antes falara essas palavras não parecia se importar. Enquanto Clark apertava e empurrava, ele apenas recitava uma conversa fiada sobre os perigos de voar de helicóptero. “Você tem que tomar cuidado com onde pousa um helicóptero no

37

Page 32: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

Os malditos idiotas continuaram dando tacadas como se nada houvesse, as bolas de golfe caindo em cima de nós. Parecia o Vietnã de novo.”

Abaixo de nós, algumas pessoas de shorts e camisetas moviam-se a esmo, fazendo o que costumam fazer no dia 5 de julho: cortavam grama, jogavam argolas, lavavam carros. A impressão predominante causada pelo Vale do Silício a uma distância de cem metros é de novidade. As casas são novas, a grama é nova, até as pessoas são novas. E não meramente novas: projetadas para nunca envelhecer. Com exceção da Universidade de Stanford, nenhuma estrutura no horizonte foi construída para durar mais do que o tempo necessário para um engenheiro pensar numa boa desculpa para derrubá-la. Tudo no Vale do Silício, incluindo as pessoas, foi construído de modo que ninguém ache trágica, ou mesmo um pouquinho triste, sua destruição e substituição por algo novo. Foi um grande dispositivo para prevenir a nostalgia. Garantiu que a maior máquina de produzir riqueza na história do mundo nunca fosse obstruída por emoções sem sentido.

O helicóptero McDonnel Douglas é supostamente conhecido por seu silêncio para quem está do lado de fora. No interior, entretanto, a barulheira é assustadora. Rup! Rup! Rup! — é o som que ele faz. Mal pude ouvir o policial quando ele uivou com júbilo: “Eles nem desconfiam que nós estamos aqui em cima! Não ouvem nada dessa merda de rup rup rup”. Rup! Rup! Rup!, con-tinuou o helicóptero enquanto descíamos do céu. A turma do fim de semana olhou para o céu aterrorizada. No meio da imensidão do subúrbio, Clark encontrara um campo de alfafa, e decidiu que era hora de praticar aterrissagem. Era ilegal fazê-lo, mas o policial aceitou o inevitável e

38

Page 33: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

Ele não tinha falado muito até então. Desde o momento em que entráramos no helicóptero, permanecera em completo silêncio, e se concentrara em ensinar a si mesmo como pilotar sua nova máquina. Agora, pela primeira vez, virou a cabeça ligeiramente e eu pude ver seu rosto. A boca já estava totalmente retorcida. Ele gritou para o policial, mais alto que o rup rup rup: “Era você que estava pilotando?”.

Clark tinha um desses rostos que praticamente gritam para anunciar o estado de espírito do dono. A boca retorcida era sua maneira de avisar que estava irritado. A irritação, para ele, não era um acontecimento emocional básico, comum. Junto com sua irmã, a impaciência, a irritação era o que Clark sentia de maneira mais intensa. Raramente se irritava com máquinas, mas muitas vezes se irritava com pessoas, em especial aquelas que ficavam entre ele e o que ele queria. Seu rosto se avermelhava, e sua boca se retorcia e ficava franzida como a cratera de um vulcão tentando segurar o inevitável derrame de lava. Depois que a boca se franzia, o clima que se instalava era parecido com a sensação que alguém deve ter quando, ao escalar o que pensava ser uma montanha, vê fumaça em volta do topo. Ao avistar a boca franzida, o melhor é estacar, dar meia-volta e retornar rapidamente à segurança. E encontrar outro lugar para passar a tarde.

O policial não sabia nada a respeito da boca franzida. Sacudiu a cabeça com prazer. Tentou conversar com o vulcão. Coitado. “Era você o tempo todo, Jim”, berrou com um sorriso largo e amigável.

“Eu senti você no comando”, gritou Jim, seco.“Não, não”, disse o policial, perplexo, “era você o

tempo todo.” Era difícil saber se ele estava dizendo a verdade. Provavelmente não. Todo o tempo em que Clark

39

Page 34: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

Do banco de trás era impossível dizer quem estava no comando. Aparentemente, não era muito mais fácil do banco da frente.

“Isto me deixa realmente puto”, disse Clark.Tudo o que eu podia fazer era me controlar para não

me inclinar para a frente e gritar: “Claro que ele estava no comando, seu idiota! Você ficava apertando botões só para ver o que acontecia! Você quer transformar todos nós em uma pilha de pó?” Em vez disso, fiquei onde estava, quieto, o suor brotando de todos os tipos de orifícios improváveis, esperando que o conflito chegasse a seu inevitável desenlace. Eu já tinha visto isso acontecer vezes demais para manter qualquer esperança em relação ao policial.

“Acho que você estava no comando”, berrou Clark, de modo infeliz. “Eu senti'’ Sua ferocidade assustou o policial. Ele sacudiu a cabeça de novo, dessa vez não em discordância, mas em choque. Era um animalzinho felpudo que percebe tarde demais que caiu nas garras da morte. Com um suspiro silencioso, retirou as mãos dos controles e deixou-as jazer inertes ao longo do corpo. O veterano do Vietnã entregou a máquina ao homem com seis horas de experiência de voo. “Vamos lá”, disse.

Momentos depois, Clark tinha o helicóptero de novo a cem metros de altitude. Lá ele parou. A mente humana — ou a minha mente, pelo menos — costuma associar voo com locomoção: enquanto você estiver se movendo, pode ter certeza de que não está morto. Não havia como negar o fato de que tínhamos parado de nos mover. Pairávamos cem metros acima do solo, perfeitamente imóveis. Depois de cerca de um minuto parados, gotas de suor escorriam por minhas pernas. Então Clark começou a fazer o helicóptero rodopiar sem parar. Fizemos piruetas no céu,

40

Page 35: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

“Sempre pense em suas mãos e pés como uma extensão de seu cérebro. Como um robô.”

Imediatamente o robô tirou o helicóptero de seu rodopio e precipitou-se para a frente, sabe Deus em que direção. Algum lugar... qualquer lugar... desde que fosse... novo. Era puro impulso. O policial resignou-se a deixá-lo ir aonde quisesse, já que ele iria de qualquer jeito. Passamos por cima de uma estrada e chegamos às douradas colinas toscanas que se erguem ao longo da porção leste do Vale do Silício. O policial estava sentado com as mãos no colo e os olhos nos morros no horizonte. Ele não tinha nada melhor a fazer do que aproveitar a vista — e foi isso o que fez. Então perguntou: “O que é aquilo brilhante lá embaixo?”.

Clark disse que não conseguia ver nada. Eu também não. O policial apontou: “Vá naquela direção”. Trinta segundos depois ambos vimos o que ele tinha avistado, um reflexo ofuscante vindo de uma fileira de carvalhos ao lado de uma vala repugnante. “Parece um avião”, disse o policial.

Era um avião. Mais perfeitamente preservado do que qualquer avião que já tivesse pousado de cabeça para baixo em cima de uma árvore. Destacava-se do gigantesco carvalho como se tivesse sido depositado lá por uma mão enorme e cuidadosa. “Desça”, disse o policial. “Desça bem baixo” Clark desceu até que estivéssemos a, talvez, trinta metros do solo. O terreno não oferecia nenhum ponto bom para aterrissagem, e não conseguíamos chegar perto o bastante para espiar dentro do avião. Mas quando não havia mais dúvida de que o objeto de metal brilhante era mesmo um avião, o policial chamou a torre do aeroporto de San Jose.

“Encontramos um avião em cima de um carvalho”,

41

Page 36: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

Uma vez digerida a mensagem, uma nova voz apareceu no rádio. “Você acha que pode haver alguém vivo dentro do avião?”, perguntou.

“É nisso que estou pensando”, disse o policial. “Não parece um acidente fatal.” Inclinou-se para Clark, como que se desculpando. “Estamos presos aqui”, disse. “Temos que salvar essas pessoas aí embaixo — se ainda estiverem vivas.”

Clark apenas assentiu. Então disse: “Isto não faz sentido”. “OK”, disse o policial. “Logo estaremos em segurança. Jim, suba. Vamos voar em círculos até eles chegarem.” Clark subiu o helicóptero afastando-o da vala, o tempo todo se queixando de que o desastre do avião não fazia sentido. Havia descampados a um quilômetro de distância. “E esquisito”, disse. “Por que viriam para este fosso em vez de ir para um descampado?” Era como se não quisesse resgatar as pessoas antes de descobrir como elas tinham se metido numa enrascada, a ponto de precisar de resgate. “Ninguém sabe o que as pessoas fazem quando entram em pânico”, disse o policial. Logo estávamos bem acima do avião e descrevendo largos círculos sobre o Vale. “Mesmo assim não faz sentido”, disse Clark. “Bem”, disse o policial, dando uma de guru de autoajuda. “Tudo acontece por algum motivo. Nós decola-mos exatamente num determinado momento. O sol estava se pondo exatamente em um determinado ângulo, de modo que pudemos ver o avião...”

A torre de controle decidiu que não devíamos pousar, pelo menos não imediatamente, por temer que também acabássemos em cima de um carvalho e que não houvesse ninguém para coordenar o trabalho de resgate. Nada havia a fazer além de esperar por quem quer que fizesse a limpeza dos acidentes aéreos, e levá-lo até o

42

Page 37: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

escuro e o combustível acabasse, isso explicaria como caíram aqui.” O policial deu de ombros e ficou vigiando o avião lá embaixo. Era pequeno, branco e frágil; era difícil entender como não tinha se partido no impacto. Para quem ainda estivesse vivo dentro do avião, pensei, havia uma notícia boa e outra má. A boa é que tinha sido encontrado. A má é que o homem pilotando o helicóptero que coordenava as unidades de resgate tinha seis horas e meia de experiência de voo e uma ressaca. E estava fican-do cada vez mais irritado com o fato de o sobrevivente não estar entendendo nada.

Durante a hora seguinte, Clark ficou voando em círculos sobre o Vale do Silício, e eu pude afinal dar uma boa olhada no lugar, da perspectiva que Clark procurava manter — a perspectiva de alguém a grande altitude olhando para baixo. Na verdade, não parecia muito um vale. Era mais uma planície ampla e aguada, apesar de que, se você se distanciasse o suficiente para qualquer direção, acabaria encontrando algumas montanhas tímidas e modestas. Por falar nisso, é tão difícil encontrar o silício no Vale do Silício quanto é difícil encontrar o vale. O silício tinha sido a primeira parte da história do Vale, e a primeira parte já tinha acabado.

O Vale teve um breve e curioso passado comercial, pelo qual Clark não demonstrava nenhum interesse. Foi algo assim: o brilho do sol, a abundância de fundos governamentais para pesquisa, a benevolência com que a Universidade de Stanford via seus professores montarem empresas para comercializar seus inventos, resquícios da contracultura na ideia de armar as massas com novas tecnologias — tudo isso fez com que o Vale se tornasse o lugar certo para gente que tivesse jeito para criar novas tecnologias. Acrescente-se a isso a ausência do esnobismo

43

Page 38: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

como trabalho braçal embelezado. Ninguém pensava em Harvard, Princeton ou Yale como um lugar ao qual alguém ia para tornar-se engenheiro.

O Vale era, ao menos em parte, uma tentativa de reinventar a velha ordem social. Aqui a engenharia não tinha o estigma de trabalho braçal. Era respeitada, quem sabe mais do que qualquer outra profissão, talvez porque os primeiros prospectadores econômicos eram engenheiros de minas, e os advogados e banqueiros só vieram depois. Seja como for, na metade da década de 1950, gente com interesse técnico sabia que na região tinha mais chance de ganhar dinheiro do que no Leste. “Em 1955, tentei montar uma empresa de transistores na Califórnia”, disse William Shockley, ganhador do prêmio Nobel e um dos inventores do transistor, a um subcomitê do congresso americano no fim dos anos 60. “Uma das minhas motivações era eu ter chegado à conclusão de que as pessoas mais criativas não eram adequadamente remuneradas na indústria.” Os engenheiros que Shockley convenceu a mudar-se para o Vale e juntar-se a sua empresa logo entraram em conflito com ele e saíram para fundar a Fairchild Semicondutor; de lá saíram os criadores da Intel; e da Intel nasceu uma indústria. A Intel inventou o microprocessador; o microprocessador tornou possível a explosão do PC; a explosão do PC levou à explosão da Internet; e, para onde a explosão da Internet pode nos levar, ninguém sabe, embora, se depender de Clark, e se a história prosseguir na mesma direção, deva ser algo maior do que a Internet. Essa assustadora cadeia de acontecimentos foi deflagrada pela vontade de alguns técnicos de encontrar um lugar onde pudessem obter o que sentiam que era deles por direito.

Foi só depois de pairarmos cem metros acima do Vale 44

Page 39: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

da primeira para a segunda parte da história do Vale do Silício. A primeira parte girou em torno de engenheiros que construíam máquinas cada vez mais baratas, rápidas e melhores. Tão rápidas e tão baratas que, do ponto de vista comercial, tornaram-se desinteressantes. Cada nova máquina que construíam transformava-se, cedo ou tarde, em uma commodity. Outras pessoas — normalmente estrangeiras — acabavam por achar uma maneira de barateá-la. As empresas que faziam as máquinas, como a Hewlett-Packard, permaneceram viáveis. Mas tornaram-se tediosas e lentas como qualquer outra grande empresa americana.

A segunda parte da história do Vale não era de modo algum lenta ou previsível. Em algum momento no início dos anos 90, os engenheiros perceberam que não precisavam construir novos computadores para ficar ricos. Tinham apenas que bolar novas coisas para os computadores fazerem. A excitação estava nas ideias, as ideias eram a receita. A noção do que constituía trabalho “útil” ampliou-se. Por todo o Vale do Silício era possível encontrar prédios de escritórios abarrotados de jovens technogeeks inventando receitas que, eles esperavam, poriam a economia em estado de choque. O principal guru dessa atividade era Jim Clark. Isso se devia menos ao sucesso de Clark do que a seu talento para reinventar-se. No Vale do Silício, a maioria dos que estavam na faixa dos cinquenta já tinha sido derrubada e substituída. Clark, não. Os outros envelheciam, ele permanecia jovem. Sua psique era um espetáculo mágico, e esse era seu truque predileto: independentemente do tempo em que ele já estava ali, sempre se comportava como se tivesse acabado de chegar.

A ubiquidade de Clark refletia-se na paisagem abaixo 45

Page 40: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

novo departamento na escola de engenharia, que pretendia batizar de biocomputação. O parc, laboratório de pesquisa da Xerox, local de nascimento do PC: fora lá que Clark construíra sua Geometry Engine [máquina de geometria], e a Geometry Engine mudara a computação. Os grandes e extensos campi das velhas empresas de workstations [computadores individuais de alto de-sempenho], Silicon Graphics e Sun Microsystems: Clark criara a primeira e alguns amigos seus criaram a segunda. As dúzias de casinhas de madeira em Sand Hill Road, pelas quais capitalistas de risco agora pagavam oitenta dólares por metro quadrado: pagavam essa quantia para estar perto de Clark e de pessoas parecidas com ele, quando eles anunciassem a nova novidade. As empresas nascidas na Internet, Yahoo, Excite, @Home, eBay e outras: originaram-se, de um maneira ou de outra, da Netscape, que Clark fundara após ter saído da Silicon Graphics. Os provedores de serviços na Internet que agora se sobrepunham às antigas empresas de software para a Internet: Clark criara o mais despropositadamente ambicioso deles, a Healtheon, com a qual ele esperava essencialmente tomar conta da indústria de atendimento à saúde dos EUA, de 1,5 trilhão de dólares por ano. Era uma realização extraordinária, e ainda não tinha chegado ao fim.

Clark não mostrava nenhuma nostalgia em relação à história que estava abaixo de nós. Na verdade, à medida que rodávamos por cima do Vale, o que ele disse foi: “Eles têm que derrubar tudo e começar de novo. É um desperdício de espaço ridículo”. Salientou que o aluguel dos escritórios de Sand Hill Road custava o dobro do cobrado na região central de Manhattan. Sand Hill Road tinha os imóveis comerciais mais caros dos EUA. E con-

46

Page 41: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

estado de pura possibilidade. Ele só se ocupava plenamente com o que não tinha ainda acontecido. A parte de seu cérebro que o mantinha interessado em estar vivo ansiava pelo que vinha em seguida, depois da Healtheon.

Rodamos sobre o Vale por mais uma hora. O policial continuou agitado com a possibilidade de que as pessoas dentro do avião acidentado ainda estivessem vivas e de cabeça para baixo no topo do carvalho. O interesse de Clark no avião tinha praticamente desaparecido. Tendo nos conduzido até a agitação, ele agora nos deixava sozinhos para usufruí-la. Era como se sua tarefa tivesse acabado quando deparou com o avião; tudo o mais eram detalhes que era melhor deixar por conta de outros. Logo um comboio de oito carros, uma ambulância e um carro de bombeiro apareceram na estrada à distância, e fomos ao encontro deles. Avistaram-nos no ar e seguiram nossa indicação por uma estrada de terra. Vinte minutos mais tarde, outro helicóptero apareceu no horizonte. A voz do piloto irrompeu no intercomunicador. “Tiro meu chapéu para vocês, cavalheiros”, disse. “Que lugar que esses caras acharam para cair”

Do alto, mal podíamos ver a equipe de resgate subindo na árvore. Alcançaram a porta do avião acidentado. Abriram-na.

“Está vazio”, disse a voz no rádio.A cabine estava vazia. Um avião de cabeça para

47

Page 42: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

3.O passado dentro da caixa

Só no dia seguinte soubemos o que tinha acontecido. Algumas horas antes de termos decolado no helicóptero de Clark, dois sujeitos tinham saído num pequeno avião de quatro lugares à procura de cabras para perseguir. Parece que tem gente que faz isso. Persegue cabras de avião. Acham um rebanho bem grande, descem por trás, dão um susto nelas e as empurram no precipício. Ou coisa que o valha. Seja como for, naquela manhã perseguir cabras perdeu a graça de repente quando os dois caíram de cabeça para baixo num carvalho. Por algum prodígio de injustiça, nenhum dos dois morreu, nem mesmo se machucou. Os dois simplesmente desceram da árvore e seguiram para a estrada para conseguir uma carona de volta a San Jose. Achavam que poderiam voltar mais tarde com o equipamento necessário para arrancar o avião do carvalho sem ninguém perceber. Infelizmente, assim que pisaram no chão nós aparecemos. A última coisa que eles queriam era ser resgatados. Em vez de passar pelo constrangimento de se explicarem aos seus supostos

48

Page 43: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

que fôssemos embora. Assim que o céu ficou vazio, fugiram furtivamente.

Ficamos sabendo de tudo isso e mais no dia seguinte. Na tarde em que saímos de helicóptero, não tínhamos a mínima ideia do que havia acontecido. E voltamos de carro até a casa de Clark em Atherton em estados de espírito totalmente diferentes. Eu, por exemplo, achava que tínhamos acabado de viver uma experiência rara. Deparamos com um desastre de avião, coordenamos uma equipe de resgate e terminamos com um mistério pós-moderno: uma cabine vazia. Ali estava o equivalente em aviação de um texto sem autor. Clark, de sua parte, tinha pouco interesse em tudo aquilo — naquele dia ou em qualquer outro. Nunca mencionou o assunto de novo. Quando eu disse algo sobre como era estranho ver um avião espetado numa árvore, ele disse: “Ah, e como é que era?”. Durante uma hora ele havia circundado e sobrevoado o desastre sem nem uma vez remover seus olhos dos controles para dar uma olhada no avião acidentado. Toda a sua atenção estava voltada para aprender a pilotar o helicóptero.

A princípio achei que o fato de os imprevistos mais estupen- damente estranhos acontecerem com Jim Clark era só coincidência. Ele desperdiçava completamente toda a diversão que poderiam ter. Clark vislumbrava as experiências que dariam à maioria das pessoas uma filosofia de vida e logo as descartava. Era um daqueles sujeitos que adoram doces, ganham um grande pacote de barras de chocolate, comem um pedacinho de cada um e jogam o resto fora. Acabei vendo alguma lógica nessa prática: era assim que ele se mantinha aberto ao imprevisto. Se nada surpreendente ou interessante acontecesse, ele seguia em frente até que a situação se

49

Page 44: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

A incapacidade de Clark para viver sem mudança e movimento o levara até onde estava. Em seu mundo, mudança e movimento geravam dinheiro, que gerava mais mudança e movimento, e assim por diante. Mudança era sinônimo de riqueza, e riqueza era sinônimo de dinheiro, e dinheiro era o que ele queria, ou dizia que era. Minha intuição era que ele precisava ainda mais da mudança do que do dinheiro que advinha da mudança. Pessoas distintas têm palavras distintas para essa necessidade de movimento e mudança constantes. Desespero é uma delas. Impaciência é outra. Para a sociedade, a impaciência pode ser um defeito, mas, para Clark, era uma virtude comercial. “Se todos fossem pacientes”, dizia ele, “não haveria novas empresas.” O homem impaciente mantinha sua vida em tal estado de convulsão que nem sua experiência nem o ambiente que o circundava acabavam significando muito para ele. Ele se entusiasmava pelas coisas apenas no momento em que elas aconteciam; depois ele perdia completamente o interesse por elas.

O resultado é que às vezes parecia que nada jamais havia acontecido com ele. Ah, de vez em quando ele tinha a impressão de que seu passado deveria importar, da mesma maneira como uma pessoa que perdeu a perna pode ocasionalmente senti-la como se ainda estivesse lá. Em um momento desses ele chegou à conclusão de que, já que a Netscape tinha obviamente desempenhado algum papel na história econômica, ele deveria lembrar-se de como fora criá-la. Mas, logo depois de contratar um ghost-writer, Clark perdeu o interesse. Sua pequena contribuição para a história econômica — chamada Netscape time —, apesar de não desprovida de interesse, acabou soando como se tivesse sido escrita por outra pessoa. E, claro, foi

50

Page 45: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

de um momento para o outro. O processo não tem nenhuma relação com o chavão que muitos executivos vendem. Clark jamais usava as palavras e expressões que todos nos acostumamos a esperar de gente ligada a tecnologia que finge ver o futuro. Visão, o desafio do próximo século, o novo milênio, a estrada do futuro. Esse tipo de conversa grandiloquente lhe parecia puro papo furado. Durante todo o tempo que estive com ele, nem por uma vez o ouvi referir-se a sua capacidade de ver o futuro. Ele não conseguia vê-lo, daí sua necessidade de tatear no escuro à sua procura. Ele se deixava tomar por um entusiasmo esmagador — digamos, seu desejo de criar um novo campo de estudo que queria chamar biocomputação, ou sua mais nova ideia para ganhar mais bilhões na World Wide Web — e se lançava em um túnel longo e escuro que levaria sabe Deus aonde. Para ele, o entusiasmo era um fenômeno físico. Ele tinha um metro e noventa de altura e pesava talvez cem quilos, mas, quando se animava com alguma coisa, crescia dez centímetros e seu peso au-mentava em trinta quilos. Era como se alguém lhe injetasse hormônios de crescimento.

Normalmente, depois de uma semana ou duas, Clark chegava à conclusão de que havia algo errado com sua ideia e a descartava. Minutos depois de se entusiasmar com um novo plano para criar outra indústria de muitos bilhões de dólares, ele se esquecia completamente do assunto. Mas de vez em quando, o longo e escuro túnel não dava num beco sem saída. Seja lá qual fosse o radar que Clark possuía, dizia a ele que valia a pena se precipitar nas trevas. Era quando ele era mais perigoso. Era também quando estava em sua melhor forma.

Seja como for, demorei meses para perceber que eu nunca saberia de seu passado por ele, pelo menos não do

51

Page 46: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

o que, ficava cada vez mais claro, era o mesmo que perguntar como o mundo moderno passara de um ponto a outro — e l e dava alguma resposta indiferente e despachava o assunto com um gesto. “Isso é chato”, dizia. Quando eu insistia, ele podia dizer: “Isso é passado. Realmente estou me lixando para o passado”.

Então um dia descobri as caixas de papelão. Estavam empilhadas num armário no quarto de hóspedes de sua casa. Como a maioria dos quartos de hóspedes, parecia ter sido arrumado umas mil vezes e nunca usado. Desde que começou no Vale do Silício em 1979, Clark sempre tivera a mesma secretária, uma mulher chamada D’Anne Schjerning. Depois que a Netscape abriu o capital, em agosto de 1995, ela ganhou tanto dinheiro com as ações que tinha em vários empreendimentos inspirados por Clark que comprou um longo Cadillac dourado e se apo-sentou. Até então, Deus a abençoe, ela coletara os papéis e anotações de Clark e os enfiara em caixas de papelão. Ela guardou as caixas na Netscape até que a empresa cresceu demais, e então mandou-as para a casa de Clark. As caixas nunca foram abertas. Pareciam tão novas quanto tudo mais no quarto. Clark não tinha ideia do que havia dentro delas (“Devem ser só coisas velhas e chatas”, disse), mas não se importou com que eu as abrisse.

No alto da primeira caixa havia recortes amarelados do jornal local de Plainview, no Texas, onde Clark foi criado. O jornal queria que a gente da cidade soubesse que um deles tinha ido para a Califórnia e criado uma grande empresa chamada Silicon Graphics. O tom, sem rodeios, era o de uma história do tipo menino-do-interior-faz sucesso-na-cidade, e trazia à baila o fracasso de Clark na infância. Mencionava que ele tinha sido expulso da

52

Page 47: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

sucesso na América, tem que começar ofendendo os mais velhos. A ofensa que fez com que Clark fosse expulso de vez foi mandar um professor de inglês “para o inferno”. Antes disso, ele explodiu uma pequena bomba no ônibus da escola; contrabandeou um crânio, dentro do estojo de um instrumento musical, para o baile da escola; e soltou fogos de artifício no armário de um colega, entre outras brincadeiras. Depois de largar a escola — ou de ser largado por ela — fugiu da cidade.

A pista seguinte, cuidadosamente dobrada dentro da caixa de papelão, era uma fotografia de Clark, aproximadamente de 1970, logo depois de receber o diploma de mestre em Física da Universidade de Nova Orleans, a caminho de um Ph. D. na Universidade de Utah. Usava óculos pretos de aro grosso, cabelo bem curto, e tinha uma expressão que se aproximava da inocência, mas não chegava a alcançá-la. Em menos de oito anos, essa pessoa, considerada inapta para se completar o curso secundário da escola pública de Plainview, Texas, obtivera um Ph. D. em ciência da computação.

Na verdade, a história era ainda mais extraordinária. O pai de Clark abandonara a família quando ele ainda era pequeno. Sua mãe deveria ter recorrido à previdência social, mas isso nunca lhe ocorreu. O lar para o qual Clark voltava depois de virar a escola de pernas para o ar ficava em algum lugar abaixo da linha da pobreza. Quando lhe perguntei sobre o artigo no jornal de Plainview, tudo o que ele disse foi: “Cresci em preto-e-branco. Eu achava que o mundo inteiro era uma merda, e que eu estava sentado bem no meio dela”. Ao atingir a idade mínima exigida, de dezessete anos e meio, Clark pediu à mãe que assinasse a autorização para que ele se alistasse na Marinha. Em setembro de 1961, quando sua turma do curso secundário

53

Page 48: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

O início de sua carreira na Marinha foi tão ruim quanto o fim de sua carreira no colégio. Quando chegou ao campo de treinamento, recebeu, junto com todos os demais recrutas, um teste de aptidão de múltipla escolha. Nunca tinha visto um teste de múltipla escolha, e não sabia como fazê-lo. Para a maioria das perguntas, várias respostas lhe pareceram ao menos parcialmente corretas. Em vez de escolher uma que parecesse a mais correta, ele simplesmente marcou todas. A Marinha presumiu que ele soubesse que marcar mais de uma resposta enganava o computador que corrigia os testes. Acusaram-no de trapacear, tiraram-no da lenta fila dos adultos que se alistavam e o puseram na ainda mais lenta fila dos delinquentes juvenis. Assim, a primeira vez que Clark ouviu falar em computadores foi quando foi acusado de tentar enganar um para parecer mais esperto do que era.

Os outros recrutas que faziam o teste de múltipla escolha foram para uma sala de aula e obtiveram diplomas que equivaliam ao do curso secundário. Só Clark foi embarcado. Passou os nove meses seguintes no mar, fazendo as tarefas repugnantes que precisam ser feitas num navio. Esses nove meses no mar preencheram grande parte das recordações de Clark. Ele se lembra de oficiais que o chamavam de idiota, e de valentões que atiravam pratos de comida no chão para ele limpar. Voltou para a sala de aula da Marinha convencido de que Plainview, Texas, talvez não fosse a capital mundial da merda, afinal. Fez a primeira prova de matemática e tirou a melhor nota da turma. Ele não tinha consciência de ter qualquer aptidão especial para matemática e mal acreditou no resultado. Nem ele nem ninguém mais. A Marinha lhe deu outra prova. Mesmo resultado. Seis semanas depois, Clark foi designado para ensinar álgebra

54

Page 49: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

no curso noturno da Universidade Tulane, de modo que pudesse conseguir um diploma universitário quando terminasse o serviço militar. Em oito anos, Clark tinha um diploma universitário, mais um mestrado em Física, mais um Ph. D. em ciência da computação.

Na Marinha, dizia Clark, ele aprendera que seu desejo de vingança poderia levá-lo ao sucesso. Na sala de aula ele fora impelido pela raiva que tinha da humilhação sofrida no mar. 0 sucesso, para ele, tornou-se uma forma de vingança.

Voltei às caixas de papelão. Elas sugeriam um início de carreira turbulento. Havia sinais de que, entre 1970 e 1978, Clark se casara duas vezes, produzira pelo menos dois filhos, cruzara o país pelo menos três vezes, e tivera pelo menos quatro empregos, principalmente em universidades. Fez trabalho de pós-graduação na Universidade de Utah com o avô da computação gráfica, Ivan Sutherland. Em 1978 foi demitido por insubordinação de um cargo no New York Institute of Technology, momento em que a mulher, não a primeira, o abandonou. “Lembro-me de ela dizer que não podia mais viver do jeito que eu vivia”, ele recordou quando perguntei. “Ela queria apenas uma vida mais estável.”

Quando disse isso, estava em pé Fora de sua casa, perto de seu morro. Apenas alguns anos atrás, antes da explosão da Internet, a casa de Clark em Atherton era cercada de campos vazios. Agora ele estava rodeado de casas novas, muitas das quais maiores que a dele. Uma manhã, da mesa da cozinha, ele olhou para fora e viu que os vizinhos olhavam para ele. Solicitou permissão para erguer uma cerca alta o bastante para tirá-los de seu hori-zonte, mas ela foi recusada. A cidade de Atherton, na Califórnia, tem regras severas a respeito de cercas, e a

55

Page 50: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

Parado ao pé do morro de sua própria autoria, ele tentou explicar o extraordinário salto em sua carreira, de professor universitário malsucedido e com uma etiqueta de alerta na testa a fundador de uma corporação bilionária. “Foi uma dessas ocasiões em que parece que a porra do mundo vai explodir”, disse. “Depois que minha mulher foi embora, eu entrei numa espiral... seis meses de terapia. Então eu disse, foda-se a terapia; não estava ajudando em nada. Era a época daquele papo todo de auto-realização, essas coisas. Achei que não precisava de guru nenhum para me dizer qual era a solução para mim.”

“Foi simples assim?”Ele riu. “Não. Foi um ano e meio de paralisia e pânico.

Escuridão total.”Eu disse que ele ainda não tinha respondido à

pergunta original.“É engraçado”, ele disse. “Um dia eu estava sentado

em casa e me lembro de ler tido um pensamento claro: 'Esse buraco pode ficar tão fundo quanto você quiser’. Me lembro de pensar: ‘Meu Deus, vou passar o resto da vida nessa porra de buraco’. Você chega em certos pontos da vida e diz: ‘Que merda, isso é um beco sem saída. O que que eu vim fazer aqui?’. E você cai no caos. Todos aqueles anos você achava que estava construindo alguma coisa. E não construiu nada. Eu tinha 38 anos. Tinha acabado de ser demitido. Minha segunda mulher tinha me largado. De algum jeito eu tinha ferrado tudo. Desenvolvi uma paixão maníaca por construir alguma coisa.” Fez uma pausa. “Acho que foi um pouco de psicologia que impus a mim mesmo.” Praticamente em um instante, o sujeito mudou sua vida. Reinventou sua relação com o mundo ao redor de um jeito que só se considera normal na Califórnia. Ninguém que tinha estado em sua vida até então

56

Page 51: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

O resultado dessa psicologia auto imposta surpreendeu até o próprio Clark. Ele insiste em que a transformação ocorreu da noite para o dia e que ele não é mesmo capaz de explicá-la. Mas de repente os melhores alunos de pós-graduação de Stanford queriam trabalhar com ele em seu projeto especial — um chip de computador com que ele vinha brincando havia quase três anos., A ciência da computação só se tornou uma disciplina acadêmica formal no fim dos anos 60, quando uma obscura subdivisão do governo americano chamada ARPA (Advanced Research Projects Agency [Agência de Projetos de Pesquisa Avançada, do Departamento de Defesa]) custeou departamentos de quatro universidades — na Universidade de Utah, no Carnegie-Mellon Institute, na Universidade da Califórnia em Berkeley e na Uni-versidade de Stanford. Os melhores alunos de ciência da computação de Stanford estavam entre os melhores alunos de ciência da computação de qualquer lugar, Sob a liderança de Clark, eles se uniram para formar uma força nova e poderosa. “A diferença, para mim, era fenomenal. Não sei quantas pessoas em volta perceberam. Mas eu percebi muito bem. A primeira manifestação foi quando começou a aparecer uma porção de gente querendo fazer parte do meu projeto.”

O projeto acabou sendo a primeira experiência de Clark com a nova novidade. Em 1979 o Vale do Silício era antes de mais nada um lugar onde se fabricavam chips, apesar de uma nova empresa chamada Apple estar tendo algum sucesso comercializando computadores em massa. Clark começou a canalizar seu novo interesse em estar vivo para novas tecnologias. Com seus alunos de pós-graduação, criou um chip capaz de coisas que nenhum outro chip de computador podia fazer. Fiquei sabendo

57

Page 52: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

moderna. Naquele dia mostrei a Clark um trecho de um capítulo chamado “A revolução do silício”:

Anos depois, Lynn Conway [uma pesquisadora do PARC]

ainda se lembrava do momento em que pela primeira vez pôs os olhos no chip que iniciaria uma nova ciência. Era uma ou duas semanas depois do Natal de 1979. Ela estava sentada diante de sua janela no segundo andar do PARC, que se debruçava sobre um lindo trecho do Vale, com uma cobertura de um verde invernal exuberante, que descia até Page Mill Road, que quase podia ser vista um pouco mais ao sul. Mas seus olhos estavam fixos em um wafer de silício [disco onde são criados os circuitos integrados, ou chips] que tinha acabado de chegar.

Havia dúzias de chips desenhados no wafer, a maioria esforços de alunos de um curso dado em Stanford sob supervisão técnica do PARC. Todos tentavam alcançar uma intricada elegância fabril, abarcando, como era o caso, dezenas de milhares de transistores microscópicos, comprimidos em espaços retangulares do tamanho de uma cutícula, todos dispostos em um wafer que caberia confortavelmente na palma de uma mão. Alguns anos antes, o mesmo poder de processamento não caberia em um terreno de um quilômetro quadrado.

Um dos chips desenhados se destacava, e não só porque trazia na beirada uma peremptória inscrição manuscrita: “Geometry Engine © 1979 James Clark”. Enquanto os outros pareciam combinações simples de dispositivos que formavam relógios digitais, circuitos aritméticos e coisas do gênero, o de Clark, mesmo visto a olho nu, era obviamente algo mais — maior,

58

Page 53: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

dos e jogos de “realidade virtual” nos mafuás modernos, os dinossauros destruidores do filme Parque dos dinossauros — todos vieram do pequeno chip que Lynn Conway segurava pelas beiradas naquele dia de inverno.

Mais uma vez a mente de Clark desgarrou-se da conversa. Ele não tinha nenhum interesse em sua Geometry Engine. Nunca ouvira falar no livro nem no autor, Michael A. Hiltzik, apesar de recordar-se vagamente de Lynn Conway. “Título meio bombástico, não? Dealers in lightning”, ele riu com desdém e voltou a procurar na casa algo que precisasse ser modificado. Seu ego era grande demais para o tipo de imodéstia que se pratica no jardim, orgulhando-se das realizações passadas. Ele estava realmente irritado por, de certa forma, se ver obrigado a mostrar orgulho por algo que tinha feito, e reagia procurando algo que pudesse fazer. Ele descartara a concepção de trabalho pesado do antigo proprietário e instituíra a sua própria. Removera a piscina e a colocara em outro lugar do quintal. Duas vezes. Agora olhava em volta com a expressão vazia que sempre prenunciava um novo plano.

Deixei-o entregue a sua busca e retornei outra vez ao quarto que tinha sido arrumado mil vezes e às caixas que nunca tinham sido abertas. Elas tinham emudecido. Até 1991 havia um gigantesco buraco negro. Mas, depois disso, os papéis se tornaram rápidos e densos. Primeiro havia uma grande conta de um hospital local no nome de Clark. “Acidente de moto”, dizia um pedaço de papel preso a ela. Uma anotação descrevia um “interior da tíbia completamente desprendido do osso”. Além da conta do hospital e de uma descrição clínica da perna esmagada de

59

Page 54: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

4. Homem de desorganização

Em 1956, um jornalista da revista Fortune chamado William H. Whyte publicou The Organization Man [O Homem de Organização], um estudo clássico da vida empresarial americana. Nas livrarias, o livro dividia espaço com sugestivos títulos dos anos 50, como The lonely crowd [A multidão solitária] e The man in the gray flannel suit [O homem de terno de flanela cinza]. Todos esses textos tentavam de uma maneira ou de outra explicar a estranha uniformidade do homem de negócios americano. Ele rumava para o trabalho em seu indefectível terno cinza, vindo de sua bela casa em um loteamento fora da cidade. Mantinha o gramado da frente e o cabelo aparados no comprimento certo, num acordo tácito com seus pares. Evitava a alta cultura, ou qualquer outra coisa que tivesse algum vestígio de elitismo. Trabalhava para alguma enorme corporação cinzenta, como a IBM ou a AT&T, que para ele era mais lar do que a casa fora da cidade. Essa enorme corporação cinzenta mantinha um alerta constante contra anarquistas que tentassem se passar por

6o

Page 55: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

de múltipla escolha, a que submetiam qualquer um que se candidatasse a um emprego:

Sublinhe a palavra que a seu ver combina melhor com a palavra em maiúsculas:NOITE: (escuro, sono, lua, mórbido)

PELADO: (nu, corpo, arte, mal)

Essa questão veio de um teste que Whyte desencavou nos arquivos de uma das enormes e frias corporações. Um ser humano de verdade ha esses testes, presumivelmente procurando algum sujeito estúpido o suficiente para marcar mórbido e mal. Quando o verdadeiro Homem de Organização lia PELADO, ele sublinhava nu, mesmo que pensasse mal.

Seja como for, o gosto pela conformidade do Homem de Organização levou Whyte a uma teoria simples: a Ética Protestante, com sua ênfase no individualismo inflexível, tinha sido substituída na vida americana por outra coisa. “A Ética Social” é o elaborado nome que Whyte deu a essa outra coisa. O Homem de Organização acreditava que os grandes grupos estavam essencialmente certos — e que os indivíduos estavam essencialmente errados. Ele tinha o forte sentimento de que as pessoas tinham um obrigação moral à qual deviam se ajustar. Para Whyte, isso representava uma mudança importante, e possivelmente permanente, nos valores americanos — uma espécie de perda da inocência. Os americanos não estavam apenas trabalhando de um modo diferente de como haviam trabalhado no passado. Também estavam votando, rezando, vestindo-se, comprando e amando de um modo diferente. E tudo isso resultava das mudanças na cultura empresarial. Quando os americanos mudaram sua

61

Page 56: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

O personagem central do maravilhoso psicodrama de Whyte era “o homem sem arestas”. Era o tipo ideal dos anos 50. Whyte escreveu seu livro em parte como uma argumentação contra o homem sem arestas. Ele acreditava que, ao incensar esse ideal, a sociedade punia os verdadeiramente talentosos: cientistas, artistas, músicos, engenheiros, gente que encarava a vida de pon-tos de vista surpreendentemente novos. A pressão para que os excêntricos se tornassem “normais” fazia com que produtos extraordinários da imaginação humana fossem desencorajados e reprimidos:

Em busca de sua própria imagem, administradores procuram cientistas “sem arestas”. Não esperam que eles sejam tão “sem arestas” quanto trainees de executivos; geralmente percebem que os cientistas são “diferentes”. Mas sua atitude condescendente sugere, no entanto, que a diferença não é nada que um bom programa de doutrinação não corrija. Costumeiramente, sempre que a palavra talento é usada, ou bem precede a palavra porém (cf. “Somos totalmente a favor do talento, porém...”) ou bem é casada com palavras como errático, excêntrico, introvertido, maluco etc.

Em algum ponto do caminho, o Homem de Organização sumiu do cenário americano. É difícil dizer se foi assassinado ou se morreu de causas naturais; obviamente, teve muito azar entre o fim dos anos 50 e o fim dos anos 90. Um dos azares foi a rápida mudança técnica, uma arma que excêntricos novos-ricos podiam usar contra as enormes e frias corporações. Outro foi Jim Clark, ou, mais genericamente, o engenheiro com gosto

62

Page 57: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

Essa gente se transformou em alguns dos homens de negócios mais admirados da Terra. E, no entanto, pelos padrões do Homem de Organização, eles mal pertenciam à sociedade.

O esforço quixotesco de Clark para conquistar dinheiro e poder começou na Silicon Graphics. A empresa que fundou com diversos de seus alunos de pós-graduação em Stanford foi uma dentre as poucas que ampliaram o alcance do computador e fizeram com que gente importante repensasse o que a máquina era capaz de fazer. O chip que Clark projetou, a Geometry Engine, era mais capaz de processar gráficos tridimensionais em tempo real do que qualquer antecessor, e, assim, de criar uma simulação da realidade na tela do computador. “Segundo a lógica de Jim, o mundo era tridimensional, de modo que o mundo do computador também teria que ser”, disse Kurt Akeley, um dos alunos de Clark. “Ele achava que a maneira certa de interagir com as máquinas é como você interage com o mundo.” Havia bastante tempo que Clark era fascinado pela realidade virtual. A Geometry Engine tornou possível desenhar e redesenhar o mundo real dentro de um computador, o que equivalia a dotar o computador do sentido da visão. Quando se ligava um computador no laboratório de Clark em Stanford, via-se uma imagem tridimensional realista. “Os gráficos computacionais são tão fundamentais para os computadores quanto a visão para os humanos”, escreveu Clark na época em que lecionava. Esse pensamento, estranho na época, logo se tornou lugar-comum.

Muita gente que deveria ter percebido a importância da Geometry Engine de Clark achou que era um brinquedo inútil. Metade dos capitalistas de risco de Sand Hill Road, que tinham feito suas fortunas, pelo menos na teoria,

63

Page 58: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

Mesmo gente cujo trabalho seria transformado pelo invento demorou a apreender sua importância. Por exem-plo, um engenheiro da Lockheed visitou a Silicon Graphics (SGI) logo depois de a empresa ter sido fundada. Os engenheiros da SGI fizeram uma demonstração para ele: um automóvel desenhado e manipulado no espaço tridimensional num computador SGI. “Isso pode ser bom para projetar carros”, disse o sujeito da Lockheed, “mas eu projeto aviões.” Ele simplesmente não acreditou no que acabara de ver; presumiu que Clark e seus engenheiros tinham colocado uma imagem do automóvel dentro do computador, um truque que funcionaria só daquela vez e nunca mais. Não entendeu que a nova empresa de Clark tinha tornado possível projetar tudo dentro do computador. E que todos os novos aviões da Lockheed, desde então até a eternidade, seriam criados pela tecnologia da Silicon Graphics.

A turma de Hollywood foi mais atilada em relação às possibilidades, e não demorou muito para que Steven Spielberg e George Lucas estivessem esmurrando a porta de Clark e pedindo para ser os primeiros clientes. A estação de trabalho da Silicon Graphics tornou possível uma porção de novos efeitos especiais. Os fogos de artifício que se alastraram pelos filmes e pela televisão nos anos 80 e 90, e mantiveram os espectadores presos a histórias ruins, foram todos realizados com tecnologia SGI.

Quando um frequentador assíduo de cinema esfregava os olhos e dizia: “Mas no que eles vão pensar agora?”, normalmente era porque a SGI havia lançado um modelo novo. Alguém já disse que é impossível distinguir a boa tecnologia da mágica. Clark agora tinha a melhor mágica do Vale do Silício,

O melhor número de mágica atraiu muitos dos 64

Page 59: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

atrair tecnólogos que prezavam sua liberdade e queriam permanecer na ponta. De toda forma, para certo tipo de engenheiro, a chance de lidar com uma tecnologia nova e fascinante compensava o risco para a carreira. Clark deu-lhes essa chance.

No início da década de 1980, os laboratórios que abrigavam o melhor talento técnico do mundo — aqueles pertencentes a Hewlett-Packard, Bell Labs, Xerox PARC,

Stanford, MIT — entregaram algumas de suas melhores cabeças à nova empresa de Clark. Vieram de toda parte, mas sempre pelo mesmo motivo simples: viram as possibilidades do chip de silício de Jim Clark. Nem todos os engenheiros eram tão aventureiros quanto Clark. Al-guns deles provavelmente preferiram ficar no Leste e submeter-se a testes de personalidade de múltipla escolha até se aposentarem e se mudarem para Sarasota ou St. Petersburg. Mas muitos dos melhores estavam em busca de uma chance de mostrar do que eram capazes. Greg Chesson, um jovem engenheiro do Bell Labs, lembra-se de visitar o laboratório de Clark em Stanford em 1981 e ver a Geometry Engine em ação. Ele assistiu a uma ima-gem gerada por computador de Snoopy voando em sua casa de cachorro pela tela do monitor de Clark — uma cena que apenas alguns anos mais tarde não pareceria digna de nota. Em 1981, era uma espécie de milagre. Chesson soube imediatamente que estava contemplando o futuro. “Não havia nenhuma dúvida na minha cabeça”, diz ele. “Eu simplesmente disse: ‘Muito bem, agora é aqui que eu trabalho’.”

Em pouco tempo, a nova empresa de Jim Clark exercia uma atração gravitacional sobre as cabeças técnicas. Quando você pergunta a pessoas que lidavam com a Silicon Graphics, ou que trabalhavam para a Silicon

65

Page 60: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

Tom Jermoluk recorda-se de seu primeiro encontro com a empresa. Isso foi dez anos antes de Jermoluk se tornar, por exigência de Clark, CEO [chief executive officer, principal executivo de uma empresa] da @Home Networks. Em 1986, Jermoluk era um engenheiro de 31 anos da Hewlett-Packard. Alguém da Silicon Graphics telefonou para ele e lhe disse que deveria ir até lá, só para dar uma olhada. Ele conheceu Clark. Em minutos estavam entretidos em uma discussão sobre o potencial das imagens geradas por computador. Durou toda a tarde. “Entrei para a empresa no ato: ‘OK, estou nessa’ ”, diz Jermoluk. “Jim estava fazendo as coisas mais legais. Valia a pena estar por perto só para ver o que ia acontecer em seguida.”

O que ia acontecer em seguida, quase todo mundo achava, é que a Silicon Graphics ia se tornar uma grande empresa. E se tornou mesmo. Clark inventara a tecnologia, apostara a carreira nela, e acertara. Atraíra os mais talentosos engenheiros do Vale do Silício para sua empresa, e eles, por sua vez, criaram os melhores computadores. Mas, de modo geral, Clark começou a se queixar, tinha recebido muito pouco em troca. Outros ti -nham se apoderado da parte do leão das ações e do poder. Financistas e gerentes possuíam grande parte da Silicon Graphics e tinham tomado o controle do conselho de administração, enquanto os engenheiros de Clark possuíam migalhas e acompanhavam a tomada de decisão de longe. Claro, estavam muito melhor do que estariam se estivessem no Leste. Mas não estavam tão bem quanto pessoas que não tinham participado da criação da tecnologia.

Não demorou muito até que Clark ficasse profundamente irritado com as regras do capitalismo americano. Em sua opinião, as cartas eram marcadas de

66

Page 61: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

eram os brilhantes engenheiros: os chefes de cozinha que criavam as novas receitas. (Clark era um teórico do Novo Crescimento muito antes de qualquer um no Vale do Silício ter ouvido falar da Teoria do Novo Crescimento.) Sua opinião não chegava a ser surpreendente: ele era um dos engenheiros. O que ele fez com sua opinião, entretanto, foi assombroso. Ele a empurrou goela abaixo por todo o Vale do Silício. E deixou que o Vale fizesse o mesmo com o resto do mundo.

Evidentemente, se o criador da ideia e os engenheiros que a executaram não estavam recebendo o que mereciam, alguém estava recebendo mais do que devia. A primeira pessoa que Clark apontou foi o homem que lhe emprestou o dinheiro para construir sua nova máquina. Quando começou a criar sua primeira empresa, Clark não tinha nenhuma experiência com os capitalistas de risco que financiam novos empreendimentos. Acabou vendendo uma participação de 40% na Silicon Graphics a um homem chamado Glen Mueller, do prestigiado Mayfield Fund, por 800 mil dólares. A princípio, Clark manteve uma par-ticipação de 15% para si mesmo — o que sugeria que ele, seu invento e sua capacidade de atrair engenheiros valia 300 mil dólares. Ele gostou do acordo quando o fez, e levou cerca de seis meses para mudar de ideia. Sua participação original em seu próprio negócio logo ficou muito menor; e ele começou a ficar irritado. Os que o financiavam logo descobririam o que isso significava.

Construir hardware novo custa muito dinheiro, muito mais do que Clark imaginava. Ele e seus engenheiros consumiram o capital inicial de 800 mil dólares em menos de um ano, e se viram forçados a voltar aos capitalistas de risco com o chapéu na mão. Mueller e outros puseram mais 17 milhões em troca de mais um pedaço da

67

Page 62: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

de mais dinheiro ainda, e então precisaram vender uma participação ainda maior na empresa. O resultado é que antes mesmo de ganhar o primeiro tostão, Clark e seus engenheiros tinham sido, em grande medida, expulsos de seu próprio empreendimento. “Não me surpreenderia se, de todas as enormemente bem-sucedidas empresas do Vale do Silício, a Silicon Graphics tiver sido a que fez menos milionários entre os engenheiros que a fundaram”, diz Greg Chesson. O Mayfield Fund acabou ganhando 400 milhões de dólares com seu investimento.

Clark encarou isso e quase tudo o mais que aconteceu na Silicon Graphics como uma questão pessoal. A cada passo dado, ficava mais claro que a SGi seria um grande sucesso: no entanto, a cada passo dado, Clark ficava mais à mercê dos financistas, que não arriscavam nada além de dinheiro. Seis meses depois de a Silicon Graphics ter recebido sua primeira infusão de dinheiro, Clark chegou à conclusão de que, de alguma forma, vendera barato demais. Glenn Mueller tinha conseguido um belo negócio para si mesmo. Mueller era, supostamente, um cara bacana— todo mundo dizia isso. Todos os anos, a família Mueller dava um festa de Natal a que quase todo mundo que era alguém no Vale do Silício queria ir. Clark havia confiado nele. Nunca faria isso de novo com nenhum capitalista de risco. E nunca perdoou Mueller por ter explorado sua ignorância. Em reuniões do conselho, Mueller frequentemente se via sujeito à fúria de Clark. “O rosto de Jim ficava vermelho e ele começava a gritar que Glenn tinha enganado a ele e a seus engenheiros”, lembra-se Dick Kramlich, um capitalista de risco que entrou para o conselho da Silicon Graphics em 1984. “Glenn simplesmente aguentava aquilo calado.”

68

Page 63: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

que a Silicon Graphics estava se preparando para entregar suas primeiras máquinas, Glenn Mueller convocou uma reunião em seu escritório. Foram dois anos desde a fundação da empresa até seu primeiro produto. Os novos computadores não eram fáceis de vender, pelo menos não no começo. A sGI fornecia muito mais computador do que a maioria das pessoas conseguia manejar. Um modelo barato custava 70 mil dólares. Um dos engenheiros fundadores, Mark Grossman, lembra-se de “reuniões e debates sem fim no sentido de espremer o que tínhamos em um gabinete menor. Basicamente não conseguíamos imaginar como fazê-lo mais barato”. Mas mesmo um modelo barato era complicado de usar, até para alguém íntimo de computadores. Gente com talento modesto para programação em frente a uma estação de trabalho Silicon Graphics às vezes se sentia um pouco como um sujeito num Lamborghini em uma estrada de duas pistas.

O resultado era uma luta entre os engenheiros, que faziam computadores cada vez melhores, e os gerentes, que tinham sido contratados para vendê-los. Os gerentes queriam que os engenheiros tornassem seus produtos mais fáceis de usar. Os engenheiros, como seu líder, achavam que os gerentes eram todos idiotas. “Eles prometiam coisas que não podíamos entregar”, diz o engenheiro Tom Davis, “e não entendiam o que fazíamos. Claro, mais quinze anos de experiência me mostraram que essa é a situação normal.” Na época, no entanto, os engenheiros ficavam ultrajados. Os gerentes lhes diziam para fazer uma coisa, os engenheiros faziam o contrário e, a despeito do que ocorresse, achavam que estavam certos até que alguém provasse que estavam errados. “Era como uma comunidade acadêmica particularmente briguenta”, lembra Tom Jermoluk. “Você era estimulado a fazer um

69

Page 64: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

A reunião de Glenn Mueller era uma tentativa de corrigir o problema e transformar a empresa de Jim Clark em uma instituição estável, bem ajustada e duradoura. Na reunião estavam Clark, Vern Anderson, o CEO que Mueller tinha dito que Clark precisava para conseguir que o Mayfield Fund lhe fornecesse o capital de risco, alguns outros altos executivos e os capitalistas de risco que bancavam o empreendimento. Dick Kramlich, da New Enterprise Associates, era o mais novo destes. Foi o primeiro encontro de Kramlich com a cultura empresarial de Clark, e o mais hostil que ele já vira. “As pessoas gritavam e vociferavam umas com as outras, por causa das coisas mais insignificantes — que nem diziam respeito a negócios”, recorda. “Esperei até que fossem cinco horas, e então saí. Disse-lhes que realmente não queria passar por aquilo de novo, e para eles me chamarem quando tivessem resolvido seus problemas emocionais.”

Depois da reunião, Vern Anderson renunciou ao cargo de CEO. Isso não deve ter sido surpresa para ninguém: depois que Mueller lhe dissera que, para conseguir o capital de risco, ele precisava de um CEO, Clark literalmente saiu pela porta, encontrou Anderson na rua em Paio Alto e perguntou-lhe se ele queria o cargo. (“Eu não esperava que fosse ser fácil”, diz Anderson.) Clark nunca tivera realmente o desejo de dirigir ele próprio a empresa; mesmo naquela época, ele sabia não estar preparado para a tarefa. Ele não tolerava as pequenas etapas, os detalhes, o tédio. Achava que deveriam contratar alguém de fora para cuidar dos detalhes enquanto ele se certificava de que seus amados engenheiros continuavam a construir a máquina do futuro. Ele não avaliava plenamente quanto poder tinha que entregar à pessoa dos detalhes para que ela fizesse bem

70

Page 65: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

McCracken, e explicou que ele tinha que abandonar a ilusão de que ainda controlava a Silicon Graphics, Clark desmontou e caiu em prantos. “Jim sempre teve a impressão de que não estávamos fazendo as coisas direito”, disse Anderson. “No fundo ele sabia que precisávamos de alguém como Ed.”

Com o entendimento de que teria controle completo, Ed McCracken deixou um cargo seguro e confortável na Hewlett- Packard e assumiu outro arriscado na Silicon Graphics. Ele e Clark juntos eram prova do alcance limitado da fisiognomonia. Ao olhá-los, pensava-se que poderiam ser irmãos — altos, louros, com óculos de arame sobre feições surpreendentemente delicadas. Ao vê-los em ação, se pensaria que vinham de planetas diferentes. A Hewlett-Packard era a coisa mais parecida com uma enorme corporação cinzenta que havia no Vale, e Ed McCracken era a versão do Vale do Homem de Organização. Era um mestre naquele tom de voz artificialmente sincero do Homem Profissional. Quando queria indicar seriedade, descia o queixo até a garganta. Quando tinha uma conversa reservada com alguém, soava como se estivesse fazendo um discurso para uma plateia de mil pessoas. Para dar ênfase a seus argumentos, que raramente mereciam ênfase, ele pressionava o polegar contra o indicador como se tivesse acabado de pegar uma mosca pela asa. Usava terno. Detestava o conflito. Adorava o consenso, ou pelo menos a ideia de consenso.

Para muitos dos engenheiros fundadores, era a primeira experiência com o Executivo Americano Sério, e com as posturas emocionais vagamente fingidas que parecem ser, seja qual for o motivo, necessárias para o sucesso do líder de uma grande organização. “Ele acabou se mostrando desajeitado e manipulador”, diz Mark

71

Page 66: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

para os outros preencherem”, diz um terceiro engenheiro. McCracken gostava de lidar com as pessoas indiretamente, usando intermediários. Como diz outro dos engenheiros que deixaram Stanford com Clark para fundar a Silicon Graphics, “Ed tinha uma expressão para todos os nossos problemas. Ele dizia que nós éramos ‘altamente resistentes’”. Foi essa expressão — “altamente resistentes” — que ficou na cabeça das pessoas.

No fim de 1984, McCracken assumiu a empresa de Clark, que permaneceu como presidente do conselho, tivesse isso o significado que tivesse. Ele examinou as contas e descobriu que a empresa tinha apenas 7 milhões de dólares, e estava consumindo dinheiro a uma razão de 2 milhões por mês, o que significava que sobravam exatamente três meses e meio. Ele lançou um olhar demorado sobre os engenheiros briguentos e suas opiniões hostis. Chegou à conclusão de que a cultura empresarial de Jim Clark precisava de mais do que um executivo-chefe. Precisava de um terapeuta.

McCracken contratou um psicólogo de empresas. O psicólogo e mais quarenta funcionários da Silicon Graphics, incluindo os principais engenheiros e seu líder, Jim Clark, recolheram-se por três dias em um hotel de veraneio não muito longe do Vale. Lá se submeteram a uma bateria de testes psicológicos destinados a fazer deles melhores Homens de Organização.

Antes desse retiro, foi solicitado que Clark e seus engenheiros encontrassem duas pessoas para preencher avaliações psicológicas em seu nome, e que as remetessem confidencialmente para o psicólogo de empresas. Uma vez reunidos no hotel de veraneio, os engenheiros preencheram mais formulários. O primeiro pretendia classificá-los em um dentre quatro tipos psi-

72

Page 67: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

psicologia do que sobre os engenheiros. Seja como for, os testes dividiam o mundo entre introvertidos e extrovertidos, e depois nas versões do lado direito e do lado esquerdo do cérebro. Os quatro tipos receberam os seguintes nomes:

introvertido + lado direito = “apoiador” introvertido + lado esquerdo = “analítico” extrovertido + lado direito = “promotor” extrovertido + lado esquerdo = “controlador”

Dependendo do nível dessas qualidades, alguém era classificado como uma versão “forte” ou “fraca” do seu tipo. Ed McCracken era um “analítico fraco”. Jim Clark era um “controlador forte”. (Pelo que Clark recorda, “o psicólogo chegou à conclusão de que todo mundo no comitê executivo era agressivo passivo e eu era apenas agressivo”) Todos os engenheiros contratados por Clark tiveram mais ou menos o mesmo desempenho que ele. Dos trinta engenheiros que fizeram o teste, apenas dois se classificaram como “apoiadores” e outros dois foram “analíticos”. Os outros eram “controladores”.

O segundo teste pedia que os engenheiros de Clark respondessem a 250 perguntas destinadas a uma análise mais profunda de suas psiques. Os resultados foram apresentados em um gráfico de pizza com doze fatias. De novo, cada fatia da pizza representava um tipo de personalidade diferente. O psicólogo tinha uns nomezinhos estranhos também para esses: humanístico, otimista, vago, e assim por diante. Depois que o gráfico foi completamente preenchido, onze das categorias

73

Page 68: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

Mais tarde, pediu-se a cada engenheiro que explicasse seu perfil psicológico. Foi aí que as personalidades realmente emergiram: a acusação de que eles eram “altamente resistentes” na verdade agradava a muitos dos engenheiros de Clark. Agrada até hoje. Por exemplo, Tom Davis, um dos sete engenheiros fundadores que saíram de Stanford atrás de Clark, diz: “A definição deles de resistência era basicamente a de alguém que se aferra a suas opiniões. Isso é claramente um traço negativo se você se aferra a suas opiniões quando está claramente enganado, mas, na época, era provavelmente o melhor grupo de engenheiros que já vi reunido, e todo mundo sabia que eles estavam quase sempre certos. Do meu ponto de vista, eles tinham exatamente as qualidades necessárias para produzir grandes produtos — estavam quase sempre certos, e se você discordasse, teria muito trabalho para fazê-los mudar de opinião. Mas, se você estivesse certo, depois de alguma briga, eles quase sempre mudariam de opinião. Se alguém insistir que 2 + 2 = 5, eu nunca vou recuar, não interessa se os outros vão se sentir mal ou não. Creio que o psicólogo achava que a gente devia recuar de qualquer jeito. Em áreas que não estão ligadas à engenharia, onde as coisas são muito mais difusas, ceder mais frequentemente é uma coisa razoável a fazer”.

O psicólogo dirigiu os três dias de treinamento que se seguiram como se fossem uma reunião dos alcoólatras anônimos. Pediu a cada um dos engenheiros de Clark que se levantasse, explicasse seu desempenho nos testes e dissesse aos demais como pretendia mudar. O segundo teste, que o psicólogo chamava de “o instrumento”, reduzira a personalidade de cada engenheiro a uma “forma” tridimensional, que vinha a ser uma folha de

74

Page 69: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

idiota de idiota e que não tinha a menor intenção de mudar isso agora. Alguém queria brigar por causa disso? Os outros engenheiros exultaram. Outro engenheiro disse que tinha compreendido a relação entre as perguntas e o perfil, e que queria fazer o teste de novo de modo a tirar nota dez. O psicólogo insistiu que não havia nota dez. “Ele ficou repetindo sem parar que não havia respostas certas”, diz Rocky Rhodes. “E que o único objetivo era nos conhecermos melhor. Que não havia pessoas erradas nem formas erradas. Que não havia nenhum julgamento a respeito. Eram apenas formas. Você se sentava na frente do grupo numa cadeirinha e mostrava sua forma. Um por um. Então veio Greg Chesson e o psicólogo quase engasgou. E disse: ‘Uau! Nota dez!’.”

Uma maneira de entender a Silicon Graphics na metade da década de 80 é respondendo a duas perguntas. A primeira é: se for permitido a um ser humano extraordinariamente obstinado e com grande aptidão técnica criar uma grande empresa, qual será a estratégia de tal empresa? Em 1984, todos compreendiam que essa estratégia seria como a de Jim Clark, o que equivale a dizer que ela agiria como nenhuma grande empresa americana tinha agido até então. Seria um grupo indefinido de engenheiros brilhantes, brigões e teimosos que podiam ganhar dinheiro ou não, mas que certamente criariam algo maravilhoso.

A segunda pergunta é: como uma tal empresa envelheceria? A resposta é: dolorosamente.

Depois do retiro, Ed McCracken rapidamente se dedicou a fazer com que a empresa se parecesse menos com Jim Clark. Era isso que sempre acontecia com as novas empresas de hardware no Vale do Silício: assim que começavam a parecer promissoras, a primeira providência

75

Page 70: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

McCracken instalou camadas e mais camadas de pessoas parecidas com ele mesmo: indiretos, gerenciais, diplomáticos, políticos. Tais pessoas jamais poderiam construir as máquinas do futuro, mas podiam vender as do presente. E fizeram isso muito bem. Durante os seis anos seguintes, a Silicon Graphics foi talvez a empresa mais bem-sucedida do Vale do Silício. As ações subiram de três dólares cada para mais de trinta dólares. A empresa cresceu de duzentos empregados para mais de 6 mil. A receita anual subiu de alguns milhões para bilhões de dólares. Terapia à parte, a empresa continuou sendo o melhor lugar para trabalhar se você fosse um cowboy de computador que quisesse viver na fronteira da tecnologia. A tecnologia que Clark e seus engenheiros haviam criado acabou sendo exatamente aquilo pelo que o mundo ansiava.

Enquanto isso, McCracken expulsava Clark de sua própria empresa. Do ponto de vista de McCracken, Clark era tão-somente um subversivo feroz. Ele perambulava pela empresa instigando todo tipo de desordem e fazia com que os engenheiros se tornassem ainda mais obstinados do que seriam por conta própria. Alguns dos principais engenheiros apareciam em sua sala dizendo que o presidente do conselho (Clark) os havia persuadido de que estariam em melhor situação se saíssem da Silicon Graphics e fundassem suas próprias empresas, e McCracken passava horas tentando convencê-los a ficar. Mas ele tinha como extravasar a própria frustração. Quando McCracken se juntou à empresa, em 1985, Glenn Mueller garantiu a ele e a Clark que ambos receberiam a mesma quantia anual. No fim de 1989, McCracken ligou para Mueller, que agora era presidente do comitê de remuneração dos executivos, para reclamar dessa regra.

76

Page 71: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

deixou de receber opção de compra de ações em sua própria empresa. Ele era o único membro do comitê executivo tratado dessa maneira.

Considerando o que aconteceu depois, é fácil ter pena de Ed McCracken. Na época era mais difícil. Tendo se estabelecido como capitão do navio, ele fazia o que os capitães-de-indústria vinham fazendo desde que surgiram. Estava se transformando em uma Pessoa Importante. Coordenava conferências sobre o futuro da indústria americana. Era íntimo de senadores dos EUA e testemunhava no Congresso. Em 1992, incentivou os organizadores da campanha de Clinton a usar a Silicon Graphics como cenário para um discurso importante — e descobriu, tarde demais, que Clark tinha decorado as salas por onde Clinton passara com a capa da revista Fortune em que ele, Clark, aparecia. Depois que Clinton foi eleito presidente, McCracken passou a frequentar os jantares da Casa Branca. Esse comportamento pomposo podia não deixá-lo à vontade com os engenheiros de Clark, que o acusavam de não dar a devida atenção à empresa, mas tinha um objetivo: criava uma aura de permanência em torno não apenas de Ed McCracken, mas também da Silicon Graphics. McCracken estava tentando construir algo duradouro.

A ordem e a hierarquia eram essenciais nesse processo. McCracken sentia-se desconfortável com os desafios mais triviais à sua autoridade — o que equivale a dizer que vivia num estado de desconforto perpétuo. Os engenheiros, inspirados por Clark, estavam constantemente desafiando sua autoridade.

O problema eram os trotes. A ideia que um engenheiro tem de brincar é passar trote, talvez porque o trote, ao contrário de outras brincadeiras, precisa ser

77

Page 72: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

que pregava no chefe. Por exemplo, Clark ficava encantado com a incapacidade de sua filha adolescente de se lembrar do nome de McCracken. Ela sempre o chamava de Ed McMuffm. Então um dia Clark comprou uma plaquinha igual às que ficavam coladas nas portas da sala dos executivos, mas gravada com o nome ED mcmuffin. Colocou-a no lugar da placa com o nome de McCracken e esperou a reação. Durante três dias o novo CEO entrou e saiu de um escritório em cuja porta estava escrito ED

MCMUFFIN. Os engenheiros escapuliam de seus laboratórios para vê-lo passar e depois voltavam ao trabalho rindo às escondidas.

Todos aguardavam o glorioso momento em que a vítima do trote de um engenheiro perceberia o que estava acontecendo, coraria, tentaria sorrir, gaguejaria e diria a todos que tinha sido uma ótima piada. Nunca aconteceu. Na quarta manhã do trote, a placa ED MCMUFFIN tinha desaparecido. McCracken nunca disse uma palavra a respeito. Junto com uma porção de outros trotes que Clark pregou em McCracken, o episódio incendiou o folclore da empresa. Um dia, anos depois, em uma reunião repleta de engenheiros de Clark e gerentes de McCracken, Clark contou a história de como, por três dias inteiros, McCracken tinha sido McMuffin. McCracken ficou vermelho, e os gerentes engoliram o riso. “Era como se alguém tivesse pregado uma peça no ditador e você estivesse proibido de rir”, diz um dos engenheiros que estavam lá.

Ed McCracken era o primeiro contato direto de Jim Clark com a classe de gerentes profissionais dos EUA e com sua política. Daí nasceu sua convicção de que havia nas empresas americanas toda uma camada de pessoas autodenominadas gerentes cujo objetivo na verdade era

78

Page 73: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

tão convencido quanto Clark de que a vida deveria ser justa. Estava tão convencido disso que decidiu corrigir o problema e tomar o que por direito pertencia a ele e a seus engenheiros. Evidentemente, demorou algum tempo até que as pessoas percebessem que a nova regra no Vale do Silício era que Jim Clark sempre conseguia o que queria. Dez anos, para ser mais exato.

Durante os anos dourados da Silicon Graphics, enquanto McCracken assumia a empresa e a transformava em sua, Clark travou uma guerra civil. Convenceu os colegas engenheiros de que deviam se sentir tão maltratados quanto ele próprio se sentia. “Tom [Davis, outro engenheiro fundador] e eu íamos conversar com Jim”, recorda-se Rocky Rhodes, que deixara Stanford junto com Clark para criar a SGi. “E ficávamos sabendo que a vida era uma merda. Ao sairmos do seu escritório, dizíamos: ‘É, acho que não estamos sendo bem tratados. Acho que deveríamos ter recebido milhões de dólares’. Antes disso, eu não tinha ideia. Cheguei ao Vale do Silício com uma bolsa do governo de quinhentos dólares por mês. Tinha 27 anos e essencialmente nenhuma experiência com computadores. Agora eu tinha opções de compra de ações que Jim dizia que um dia valeriam uma fortuna. Além disso, tinha um ótimo salário. Antes de aprender com Jim que tinha sido maltratado, eu estava bem satisfeito.”

Uma campanha subterrânea não fazia o estilo de Clark. Tudo o que dizia a seus en g e nheiros ele também dizia diretamente a McCracken. Dick Kramlich se lembra de uma reunião entre Clark e McCracken, à qual ele mesmo e Glenn Mueller compareceram. “Jim simplesmente destruiu Ed. Explicou a Ed tudo o que havia de errado com seu caráter. Jim sabe ser verdadeiramente

79

Page 74: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

“O Filho da Puta do Ed McCracken”, Clark dizia, “pode ter ajudado a estabelecer a empresa, mas agora ele a está destruindo. Ele não consegue ver o que está acontecendo.” O que estava acontecendo era o computador pessoal. Quando Clark criou a Silicon Graphics, o mundo da informática era uma pirâmide. No topo estavam pessoas como ele e seus engenheiros, que mexiam com as máquinas mais rápidas. Na base estava o computador pessoal. O computador pessoal tinha sido criado no Vale do Silício como um brinquedo de hobistas, uma tecnologia de araque, ridicularizada pelos bambambãs que trabalhavam para Jim Clark. Agora havia encontrado um mercado para seus serviços. A Lei de iMoore, que afirma que o preço do poder de processamento cai pela metade a cada dezoito meses, sugeria que a pirâmide ia desmoronar. O PC logo seria capaz de desempenhar todas as funções de uma estação de trabalho da Silicon Graphics. A Microsoft controlava o mercado de pcs com seu sistema operacional, e, portanto, ia desbancar a Silicon Graphics. A Microsoft e a Silicon Graphics abriram o capital no mesmo ano, 1986. A Silicon Graphics podia ser um sucesso estonteante, mas a Microsoft estava conquistando o mundo. “Dava para vislumbrar uma época em que o PC seria capaz de fazer o tipo de gráficos que as máquinas SGI faziam”, diz Clark. “E a SGl estaria frita. A Microsoft acabaria por tomar seu negócio.”

A. queda constante do preço do poder de processamento estava levando o computador a novos mercados. A Lei de Moore tinha um corolário social: a alta tecnologia não permaneceria alta tecnologia por muito tempo. Você podia ser o engenheiro mais capaz do Vale, e podia ter construído o computador mais sofisticado, mas

8o

Page 75: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

dinheiro e tornar-se muito poderoso, era melhor abraçar uma atitude mais igualitária.

No fim dos anos 80 e início dos 90, aqueles que tinham fama de inventar o futuro passavam muito tempo discutindo qual seria a próxima tendência. Jim Clark era uma dessas pessoas. Em dezembro de 1990, ele participou de uma discussão em uma conferência chamada PC Outlook. Uma das questões debatidas pelo painel era “a computação pessoal e as comunicações pessoais serão um dia aliadas, ou isso continuará sendo ficção científica?” Em 1990, a ideia de que as pessoas poderiam usar seus PCS para se comunicarem umas com as outras era exótica. Mesmo assim, valia a pena discuti-la, porque se o computador se tornasse mesmo um dispositivo de comunicação, isso poderia transformar não apenas o Vale, mas toda a economia. Conectaria as massas a uma máquina de pensar, e a máquina de pensar às massas. Na conferência, Clark previu que isso aconteceria assim que o computador se tornasse algo divertido de usar. Nos dois anos anteriores, ele argumentara que a nova novidade eram os jogos de computador, como Nintendo. Ele estava enganado, mas de uma maneira interessante. Ele estava cm busca de um mercado de massa. “Jim estava sempre procurando democratizar a tecnologia”, diz Dick Kramlich. “Estava sempre pensando em como fazer com que uma tecnologia de ponta se tornasse acessível a um público maior. Foi isso que ele fez com a Geometry Engine. Seu chip derrubou o custo da computação gráfica em tempo real de milhões de dólares para dezenas de milhares.”

Clark só via uma solução. A Silicon Graphics tinha que construir um computador barato para competir com o computador pessoal. Máquinas baratas queriam dizer

8i

Page 76: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

“Jim estava provavelmente dois ou três anos à nossa frente ao ver o que estava a caminho”, diz Ed McCracken. “Ele conseguia vislumbrar problemas adiante, e os problemas se tornavam emocionalmente importantes para ele.” “Eu dizia: ‘Porra, nós estamos loucos’ ”, lembra Clark. “Eu estava muito preocupado com o PC. Estava convencido de que devíamos construir um produto sim-ples, e tinha que ser algo que pudesse ser vendido por menos de 5 mil dólares.” Isso não aconteceu — em grande parte porque McCracken não concordava com Clark. Fred Kittler, na época analista do J. P. Morgan, lembra-se de ter visitado Clark em seu escritório na SCI no início de 1990. “Fui até lá com outros analistas, e ele andava de um lado para o outro como um sujeito numa cela de prisão, reclamando que o conselho não lhe permitia criar o computador barato. Nessa época já estava claro que na verdade ele não tinha nenhum poder.”

Clark achava que a Silicon Graphics tinha que se “canibalizar”. Para ser bem-sucedida, ele defendia, uma empresa de tecnologia precisa estar sempre tentando destruir a si mesma. Se não fizesse isso, outra o faria. “E isso é muito difícil em qualquer empresa”, dizia ele. “Até mesmo criar um produto de baixo custo é algo que vai contra a natureza de qualquer negócio, porque os produtos de baixo custo prejudicam os de alto custo, que são os mais lucrativos.” Em uma empresa bem-sucedida, todos, do CEO ao faxineiro, estão interessados naquilo que ela estiver vendendo no momento, o que quer que seja. Não ocorre a ninguém buscar uma maneira de prejudicar aquele produto. Clark acreditava saber como se tornar o agente de sua própria destruição criativa, e estava preparado para executar a ação. Ele queria que a Silicon Graphics seguisse o mesmo espírito auto corrosivo.

82

Page 77: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

que, como CEO, ele ficaria com a maior parte da culpa se qualquer aposta desse errado. Ainda assim, ele produziu uma espécie de contradição no coração da empresa. Tudo de bom que acontecera na Silicon Graphics se devia à intuição de Clark de que a computação gráfica tinha um futuro comercial. A empresa tinha sido construída baseando-se inteiramente na previsão de Clark. Mas, depois de tornar-se uma grande empresa, não havia mais espaço para Clark ou para seus palpites. Uma grande empresa — mesmo uma com tanta energia quanto a sgi — precisa acreditar em sua própria propaganda interna: que seus produtos são os melhores, que sua tecnologia será vencedora, e assim por diante. É difícil ela imaginar que está condenada.

Quando Clark percebeu que não podia forçar sua própria empresa a reinventar-se e liderar a empreitada, viu-se novamente em uma vala escura de desespero. Tinha acabado de se casar pela terceira vez, e sua nova mulher, a jornalista Nancy Rutter, começava a se queixar de seu comportamento. Ele tinha que encontrar outra coisa com que ocupar sua mente turbulenta. Contratou gente para reformar sua casa. Comprou uma motocicleta e corria demais. Descobriu o aeromodelismo de helicóp-tero. A princípio, ficava constrangido com a mera hipótese de que alguém o visse — aquilo era algo tipicamente technogeek. Mas havia kits fantasticamente elaborados que permitiam que se montasse uma máquina que podia ser pilotada por controle remoto. Então ele esperava até o meio da semana, quando os vizinhos estivessem todos trabalhando. Aí ele saía com seu kit de helicóptero e pilotava.

Logo Clark ficou obcecado por seus pequenos helicópteros. Punha todos juntos na garagem, depois os

83

Page 78: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

feito para um menino — pelo menos no começo os helicópteros pareciam brinquedos de criança. Clark começou com os modelos pequenos, e logo que pegou o jeito passou para máquinas maiores e mais realísticas. As máquinas maiores levantavam enormes nuvens de poeira no pátio da frente, de modo que, naturalmente, ele construiu um heliponto na entrada de automóveis. Ficava lá horas, em plena luz do dia, no meio da semana, execu-tando decolagens e aterrissagens de gigantescos helicópteros de brinquedo.

Certa vez, alguns trabalhadores que ele contratara para mudar uma piscina de lugar ou construir algum morro cometeram o erro de estacionar os carros perto do heliponto. Clark foi até eles e lhes pediu, num tom levemente constrangido, que tirassem os carros de lá, pois ele queria pilotar os helicópteros. Os trabalhadores riram e continuaram com seus afazeres. Clark pegou os controles do maior dos helicópteros e decolou, voando por cima da vizinhança. Então, algo começou a dar terrivelmente errado. À medida que o helicóptero se aproximava do heliponto, os controles pararam de funcionar, e, em vez de flutuar para trás e para baixo, o helicóptero arremeteu em direção a sua cabeça. Clark largou o controle remoto e abaixou-se bem na hora. O helicóptero fustigou a lateral dos carros dos trabalhadores, fazendo um horrível uóc, uóc, uóc, amassando e arranhando as portas.

Obviamente, ele não podia passar o tempo todo pilotando helicópteros de brinquedo pela vizinhança.

84

Page 79: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

5. Inventando Jim Clark

Quando perguntei a Kittu Kolluri o que ele achara de seu primeiro encontro com Jim Clark, ele pensou por um momento e disse: “Então...”. Isso não era incomum. Quando um programador de computador responde a uma pergunta, ele frequentemente começa com a palavra então.

“Por que você veio para o Vale do Silício?”“Então... eu sou de uma cidade pequena em Iowa...”Então derruba barreiras com a turma de computação

da mesma maneira que tipo! derruba barreiras entre meninas adolescentes. É o mais característico dos cacoetes verbais criados pelas cabeças dos engenheiros. Engenheiros do Vale do Silício para quem o inglês é a segunda ou terceira língua o adquirem rapidamente como se fossem nativos. Ninguém sabe por quê. Alguns dizem que então impõe uma aparência de lógica a um evento essencialmente ilógico, a conversação humana. Afinal de contas, então sugere que a resposta é decorrência direta da pergunta. Outros afirmam que o então simplesmente

85

Page 80: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

“Então”, disse Kittu Kolluri, que aprendeu a falar inglês quando aprendeu a programar computadores, em Hyderabad, na índia. “Jim Clark entra em nossa sala na Silicon Graphics. É 1990. Eu acabo de entrar para a empresa. E penso: Isto não pode ser! O presidente do conselho da SGI acaba de entrar em nossa sala! Ele passou ao lado da minha mesa! Está em pé ao lado de Pavan! [Pavan é Pavan Nigam, o indiano que contratou Kittu para trabalhar na Silicon Graphics]. Jim Clark não disse nada; ficou olhando para o nosso grupo. Finalmente se vira para Pavan e diz: ‘Pavan, temos que ter mais indianos aqui’. Fiquei tão chocado. Fico pensando: Não se pode dizer uma coisa dessas na Califórnia. Deve ser contra a lei!"

Depois Clark pediu para ver o que os engenheiros indianos estavam fazendo. Pavan e Kittu lhe mostraram. A Silicon Graphics ainda tinha dificuldade de fazer com que suas máquinas fossem mais fáceis de usar. Clark podia se identificar com essa dificuldade. Buscando um meio de se ocupar, ele começara a programar em casa em uma estação de trabalho Silicon Graphics. Estava experimentando as mesmas frustrações dos clientes da SCI, e ansiava por qualquer coisa que tornasse mais fácil escrever programas que funcionassem. E foi isso, logo ficou claro, que o levou a visitar Pavan e Kittu. A formação de Clark era em física. Quando voltou a programar computadores, ele escrevia seu código na linguagem da física, a matemática. A máquina da Silicon Graphics exigia que o programa traduzisse a matemática para uma linguagem de computador. Por exemplo, se você quisesse elevar um número ao quadrado (x2) em um programa, precisava escrever x**2. “Jim falava alemão, e o compu-tador só entendia espanhol”, disse Pavam Nigam, “então era necessária uma camada extra de pensamento para

86

Page 81: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

era a língua dos princípios primordiais. Como ele era o presidente do conselho, nós dizíamos: ‘Boa ideia, Jim! Boa ideia, Jim!’— e aí falávamos com o pessoal de desenvolvimento de produto, e eles diziam: ‘Por que diabo vocês querem fazer isso? Isso deve estar em tringentésimo lugar em uma lista de trezentas coisas que temos para fazer’.”

Clark transformou os jovens indianos em seus professores particulares. Os jovens indianos ficaram ao mesmo tempo lisonjeados e impressionados. Dois minutos com Clark e os dois jovens cobras caíram prisioneiros de seu encanto, como tinha acontecido com muitos engenheiros antes deles. Eles tinham a sensação de que Jim Clark compreendia seus valores como nenhuma outra pessoa importante compreendia. “Jim Clark não é um desses malucos que fundam empresas”, disse Kittu. “Não é um gerente que não sabe do que está falando. Quando viu as ferramentas pela primeira vez, entendeu exatamente o que elas significavam. Percebeu que estávamos fazendo algo importante.” Mas se passaram alguns meses até que Kittu descobrisse por que Clark voltara à programação de computador, o que parecia uma atividade bem estranha para um homem tão importante. Então um dia o telefone de Kittu tocou. Ele atendeu, e uma voz de mulher do outro lado da linha lhe disse que era Jim Clark. Kittu sentiu uma onda de agitação. Imaginou Clark sentado à frente de uma bela mesa, em uma bela sala, no mais belo dos doze prédios de tijolos vermelhos do campus da Silicon Graphics. Houve uma longa pausa e surgiu a voz de Clark, longínqua e entrecortada. Soava como se ele estivesse na Mongólia exterior.

“Kittu”, disse Clark, “tem um bug [erro de programação] que eu não consigo encontrar.” Descreveu

87

Page 82: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

Longa pausa. Mais estalidos na linha. Então a voz profunda de Clark: “Não tenho certeza”.

“Como assim, não tem certeza?”, perguntou Kittu.Riso nervoso. “Algum lugar ao largo da costa da Nova

Zelândia.”“Jim, o que você está fazendo ao largo da costa da

Nova Zelândia?”“Estou no meu barco.” Clark tinha comprado um

veleiro de segunda mão. O barco tinha vindo equipado com um computador pessoal, que Clark pusera de lado por princípio. No seu lugar tinha instalado uma estação de trabalho Silicon Graphics.

“Jim, que ideia é essa de programar uma porra dum computador ao largo da costa da Nova Zelândia?”

Mais riso nervoso. “Estou programando o barco!’E esta foi a primeira indicação que Kittu, e também

Pavan, tiveram de que nem tudo estava bem com Jim Clark. Logo Kittu percebeu que Clark lhe telefonava de todos os lugares, menos da bela sala na moderna sede da Silicon Graphics. O sujeito tinha parado de aparecer no trabalho. Passava o tempo todo escrevendo um programa de navegação para o veleiro que tinha acabado de comprar. Fazia isso, contou a eles uma vez, porque tinha ideias sobre o futuro da alta tecnologia que ninguém queria ouvir. Ensinar o barco a se auto pilotar desviava sua mente do fato de que outros estavam prestes a herdar a Terra. No barco ele podia, pensar em como herdar a Terra dos atuais herdeiros.

Durante cerca de nove meses, Clark telefonou para Kittu e Pavan regularmente para importuná-los com perguntas sobre software. E então silenciou.

88

Page 83: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

nessa época — fim de 1990, início de 1991 —, sua vida dera outra guinada imprevista. A motocicleta de Clark derrapou em uma curva perto de sua casa em Atherton. Esmagou sua perna contra a rua e o deixou de cama por seis semanas. Isso lhe deu mais um motivo para ficar zangado com Ed McCracken. Se McCracken fizesse o que Clark lhe dizia, ele, Clark, não seria obrigado a se distrair andando de motocicleta em ruas molhadas no meio da semana.

Na cama, esperando que sua perna ficasse boa, e sem nada melhor para fazer além de amaldiçoar McCracken, Clark escreveu um texto que resumia os anos anteriores, nos quais ele procurara uma saída para o que considerava a ruína inevitável da Silicon Graphics. Ele tinha razão sobre o futuro da empresa. Com seu monopólio do sistema operacional, a Microsoft já controlava o computador pessoal. Um dia a Microsoft invadiria a computação de alto desempenho da qual a Silicon Graphics tirava seu sustento. A Microsoft tinha deixado claro que a única maneira de preservar uma posição no Vale era criar um monopólio. Criando um monopólio, conseguia-se escapar, pelo menos em parte, do curto ciclo de criação e destruição que era a regra. Na informática, um monopólio era como um posto de pedágio. Bill Gates era dono de um posto de pedágio, o sistema operacional do PC. Jim Clark queria ser dono do seu.

Em T991, as pessoas que tinham computadores em suas mesas usavam-nos principalmente para análise financeira e processamento de texto, mas era certo que isso ia mudar à medida que o preço da memória de computador caísse. No momento, entretanto, o alcance do computador pessoal nem se comparava ao da televisão. Cerca de 95% das residências americanas tinham pelo

8y

Page 84: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

Terminou seu texto na cama e lhe deu o título de “O telecomputador”.

Tecnicamente, o telecomputador era factível. Os Estados Unidos tinham uma nova e assombrosa infraestrutura à qual um tal dispositivo poderia se conectar. Na década anterior, a indústria de TV a cabo tinha instalado ligações que alcançavam 75% de todas as residências americanas, e essas ligações podiam levar e trazer informações para os telecomputadores. A questão era: seria possível fazer um telecomputador barato e convencer as pessoas a comprá-lo? Se sim, seria possível controlar uma nova e atraente fatia da economia americana. O computador tinha um traço importante que a televisão comum não tinha: ele podia interagir com o espectador. Você podia dizer a ele o que queria e ele sairia em busca daquilo para você. Podia fazer compras com sua ajuda. Podia mandar mensagens instantâneas por ele, e receber respostas. Podia requisitar notícias locais de qualquer parte do mundo. Podia encomendar qualquer filme que quisesse, quando quisesse, e interromper sua exibição para ir ao banheiro. A máquina podia ser o duto para toda informação que entrasse ou saísse da casa.

A ideia básica não surgiu com Clark. No fim dos anos 70, uma empresa antepassada da Time Warner, chamada Warner-Amex, criou o piloto de uma televisão interativa em Columbus, Ohio, chamado Qube. A Qube pretendia permitir aos assinantes de tv a cabo mandar mensagens para as emissoras e solicitar programas que quisessem ver usando o controle remoto. Mas a máquina não funcionava particularmente bem, e sua fabricação custava uma fortuna. A empresa gastou 30 milhões de dólares tentando produzi-la e então desistiu. Depois veio o

90

Page 85: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

mensagens umas para as outras enquanto assistiam à BBC.

Ninguém queria isso também. Alguns anos depois, a AT&T e o Knight Ridder se aliaram para entregar às massas, via TV, O jornal pela manhã. As massas bocejaram e voltaram para a cama.

Em todos os casos, pelo menos parte do problema era que os fios que entravam e saíam das casas comuns não eram capazes de transmitir dados a uma velocidade suficiente. Os fios podiam dar vazão a textos, que exigiam muito menos “largura de banda”, mas não podiam enviar filmes. Filmes continham grande quantidade de dados digitais e, portanto, exigiam grande poder de processamento. Tudo bem. O problema de engenharia era tão interessante que pareceria falta de educação estragar tudo perguntando quem, exatamente, queria ler texto na televisão.

Uma espantosa ignorância do gosto da massa era um problema comum na alta tecnologia. Quando um engenheiro brilhante concebia um produto, ele tendia a construir o tipo de coisa que só um engenheiro brilhante apreciaria. Tipicamente, ele superestimava o interesse do sujeito médio em aprender como usar uma máquina nova e subestimava o custo de fabricação da máquina. Quando se passeia pela história da informática, encontra-se uma série de exemplos estranhos disso. Em um armazém atrás do Museu do Computador, logo ao norte de San Jose, por exemplo, ergue-se um computador vermelho brilhante de mais de um metro de altura construído pela Honeywell no meio da década de 1960. Chamava-se O Computador da Cozinha. Esperava-se que a mulher do Homem de Organização programasse suas receitas nele. “Ah, se ela soubesse cozinhar como a Honeywell sabe computar”, dizia o anúncio no catálogo da Neiman Marcus. O

91

Page 86: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

A ideia pela qual Clark se apaixonou, ainda que por pouco tempo, era que o computador se tornaria o eletrodoméstico mais importante de todos. Eletrodoméstico de informação era uma expressão utilizada na época para descrevê-lo. A empresa que fizesse o primeiro eletrodoméstico de informação se posicionaria no centro de toda comunicação humana; seria o McDonald’s da informação. Desempenharia em relação à televisão o mesmo papel que a Microsoft desempenhava em relação ao PC. “O telecomputador foi um resultado direto da frustração que eu sentia ao ver a Silicon Graphics ocupar uma fatia de mercado cada vez menor em comparação com o pc”, diz Clark. “Eu queria atacar o ponto fraco da Microsoft, roubar seu monopólio por debaixo das suas pernas.” O telecomputador seria a ferramenta mais fabulosa já criada. Mas antes que isso acontecesse, era necessário responder a uma pergunta: por que as pessoas correriam para comprar um telecomputador? Que coisa um telecomputador faria sem a qual as pessoas simplesmente não conseguiriam viver?

Clark não tinha muita esperança de que os americanos quisessem computadores para se educar. Ele supôs que iriam querê-los para jogar Nintendo e se distrair da mediocridade de suas existências. A resposta que conseguiu encontrar foi que as pessoas iriam querer ver os filmes que quisessem na hora que quisessem. O telecomputador seria muitas coisas, mas à primeira vista seria um videocassete virtual.

Claro que Ed McCracken não queria ter nada que ver com um videocassete virtual, pelo menos no começo. Era apenas mais uma ideia maluca do maluco que presidia a Silicon Graphics, que se recusava a deixá-lo tocar a empresa sozinho. E então Clark achou outra válvula de

92

Page 87: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

Ainda me chamavam de presidente. E a maioria dos jornalistas acha que o presidente de uma grande empresa é uma pessoa importante.” Ele sabia perfeitamente que McCracken não aprovava que ele falasse com a imprensa. Mas a publicidade tinha um efeito criador maravilhoso: quanto mais ele falava do telecomputador, mais gente queria ouvir a respeito. Era quase como se ao falar do telecomputador ele o tornasse realidade. “Eu saía e re-citava uma conversa fiada para os repórteres”, recorda. “E eles publicavam! E gente dentro da Silicon Graphics começou a falar a respeito. Então eu pensei: ‘O Ed McCracken que se foda. Posso dizer o que eu bem entender. E com certeza se eu falar sobre isso o bastante, Ed vai ser obrigado a fabricá-lo’.”

As opiniões de Clark foram publicadas na sua forma final em 1992, na exposição anual da indústria de computação gráfica, chamada Siggraph. A palestra de Clark reproduziu o texto que ele escrevera enquanto estava de cama se recuperando do acidente de moto. O texto descrevia o “computador do consumidor”. O palpite de Clark era que ele poderia ser construído em “dois ou três anos”. Ele explicou que, apesar de o preço da me-mória de computador em 1992 fazer com que um tal dispositivo ficasse caro demais para ser vendido em massa, em 1995 a história seria outra. Ele alinhavou as tecnologias básicas — áudio digital, vídeo digital, independência de transmissão e recepção, independência de resolução —•, todas existentes de uma forma ou de outra. Mas ele apenas esboçou esse lado técnico. No geral, o texto era uma peça de propaganda política, cujo objetivo era aumentar a pressão sobre McCracken. No Vale do Silício, a propaganda assumia a forma de futurologia. “Nos próximos três ou quatro anos”, Clark

93

Page 88: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

multimídia entrar nos lares por meio do telecomputador [...] A linha telefônica e o cabo de TV

se tornarão uma única conexão a um servidor multimídia. Cada conexão representará dezenas de milhares de clientes, cada qual usando um telecomputador. Nessa conexão haverá computadores de alta velocidade para fornecer áudio e filmes sob encomenda, jogos de realidade virtual, versões digitais dos jornais diários e de revistas semanais e mensais, de bibliotecas, enciclopédias e livros interativos. Com o tempo, todas as mídias estarão disponíveis em uma forma dinâmica.

Ele estava enganado sobre tudo isso, pelo menos em relação a quando isso ocorreria. Estava correndo em um túnel escuro que dava diretamente em um muro de tijolos. Mas ao menos estava correndo.

O texto de Clark chamou a atenção de todos, exceto do conselho de administração da Silicon Graphics. As caixas de papelão no quarto de hóspedes de Clark contêm uma grande pilha de cartas de fãs e de respostas. Por exemplo, em 4 de agosto de 1992, ele respondeu a uma carta de Lance Glasser, do Departamento de Defesa americano, que concordava com Clark e queria saber por que ele não tinha simplesmente feito a máquina. “A direção da Silicon Graphics considera que investir em TV

digital é uma perda de tempo”, escreveu Clark. “Sou eu quem leva isso adiante, mas [...] se deixada por sua conta, a sgi não vai cuidar disso por pelo menos quatro ou cinco anos [...] acho que a solução é formar uma nova empresa.”

De longe, a carta mais importante veio de Jim Chiddix. Chiddix era diretor de tecnologia da Time Warner

94

Page 89: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

totalidade de seus cabos de cobre e substituí-los por cabos de fibra ótica, que transmitiam dados de forma muito mais eficiente. Em outras palavras, ela construiria a infraestrutura necessária para que um telecomputador enviasse e recebesse imagens em movimento. Mais importante, a Time Warner estava disposta a pagar a alguém para construir um telecomputador. Chiddix sus-peitava que Clark era o homem perfeito para a tarefa.

Quanto mais Chiddix se enfronhava no problema, mais tinha certeza de que Clark era o único homem capaz de dar conta do trabalho. Ou, ao menos, de que a empresa fundada por Clark era a única capaz de dar conta do trabalho. No fim de 1992, Chiddix visitou as empresas que poderiam, em tese, construir a caixa preta de que ele precisava: Microsoft, Oracle, Sun Microsystems, Silicon Graphics. Nelas estavam os maiores egos e as mentes mais brilhantes da tecnologia. Apresentaram-se a Chiddix da melhor forma que conseguiram, e, mesmo assim, a opinião de Chiddix era bem clara: os engenheiros reunidos por Jim Clark formavam uma categoria especial. “Ficou claro que o próprio Clark não tinha nenhum poder na empresa”, diz Chiddix. “Mas também ficou claro que se alguém podia construir uma televisão interativa, era a Silicon Graphics. O pessoal de todas essas empresas era inteligente. Mas os engenheiros da SGI é que eram os porretas.”

Em outubro de 1992, Clark finalmente tentou vender a ideia do telecomputador ao conselho de administração da Silicon Graphics. Ele começou com um slide que dizia: “Como podemos ser para a computação de entretenimento o que a Microsoft é para a computação produtiva”. Apresentou sua visão do mercado, que, segundo ele, poderia movimentar 10 bilhões de dólares

95

Page 90: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

Em troca de dinheiro e apoio técnico, a SGi receberia uma grande participação no novo empreendimento, que Clark controlaria. Filho da Puta do Ed McCracken, nunca mais. Clark chamou sua nova empresa de Entertainment Computer Company. Como chamariz, mencionou que a Time Warner estava disposta a financiar a construção do telecomputador.

Não muito tempo depois da apresentação de Clark ao con-selho da SGI, Pavan Nigam foi convocado para ver Tom Jermoluk — T. J., como era chamado. Contrariando as probabilidades, T. J. tinha sido capaz de conquistar a amizade de Clark sem sacrificar a de McCracken. Enquanto McCracken bancava o estadista empresarial, T. J. tocava a empresa; e era por intermédio de T. J. que Clark exercia a pouca influência que tinha na SGl. “Quando recebi o telefonema avisando que T. J. queria se encontrar comigo, achei que ele queria reclamar dos bugs em nosso software”, diz Pavan. “Ele vivia reclamando dos nossos bugs. Então eu levei uma lista dos bugs e do que pretendíamos fazer a respeito.” Em vez disso, T. J. tinha uma proposta para Pavan. “O que você acha de construir a primeira televisão interativa do mundo?” perguntou. Explicou que Ed McCracken acabara concordando com o modo de pensar de Jim Clark, mas não gostava da ideia de Clark ter sua própria empresa. A Time Warner estava disposta a pagar 30 milhões de dólares à SGI para construir o que chamava de televisão interativa (ITV). O aparelho que a SGI construísse, fosse o que fosse, seria instalado em 4 mil residências em Orlando, na Flórida, que a Time Warner estava cabeando especialmente para isso. E, por recomendação de Jim Clark, ela queria que Pavan Nigam,

96

Page 91: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

tinham alguma relação com informação ou entretenimento passaram a agir e contrataram seus próprios engenheiros para construir um telecomputador. “Foi uma correria louca”, recorda Chiddix. A at&t e a Viacom anunciaram que estavam fazendo seu piloto de televisão interativa em Castro Valley, na Califórnia. A tci e a Microsoft anunciaram um piloto em Seattle. A companhia telefônica us West, a empresa de computadores DEC e a empresa de animação por computador 3do anunciaram seus próprios projetos em Omaha, no estado de Nebraska. A Oracle anunciou vagas intenções de se envolver. Tudo somado, implicava milhares de pessoas e centenas de milhões de dólares. O telecomputador era o primeiro passo em uma nova direção. Empresas muito grandes, e muitos investidores importantes, empolgaram-se com a ideia de um eletrodoméstico inteligente. Compraram a novidade de Clark, que permitiria às pessoas fazer compras, comuni-car-se e divertir-se usando suas televisões.

Foram necessários três dias para que Ed McCracken se apossasse do telecomputador e para que o projeto Orlando se tornasse 0 melhor lugar da Silicon Graphics para se trabalhar. Não demorou muito até que Michael Douglas e Arnold Schwarzenegger aparecessem nos escritórios da SGI para saber como a tecnologia mudaria seus negócios. O CEO da Time Warner, Gerald Levin, chegou até a porta da frente da Silicon Graphics na maior limusine já vista por quem quer que fosse. A luta para ser designado para o projeto se tornou tão sangrenta que McCracken enviou um e-mail advertindo os engenheiros para não sabotarem as carreiras uns dos outros. Ao mesmo tempo, informou a Pavan Nigam que do projeto dependia o futuro da empresa. “O que Ed disse foi: ‘Gaste

97

Page 92: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

não constroem nada; se você precisar construir bem rápi -do algo realmente complicado, contrate as cinquenta pessoas mais capazes que você conseguir achar.” Foi exatamente isso que ele fez. Começou contratando Kittu Kolluri. O telecomputador tinha sido confiado aos professores particulares de software de Clark.

Para os engenheiros, o principal apelo do telecomputador era sua complexidade. Isso era por si só um sinal ameaçador. Uma boa regra da tecnologia é que, quanto mais interessante intelectualmente for uma máquina, menor a chance de alguém comprá-la. Não era trivial montar um sistema que permitisse que um “come-e-dorme” com uma lata de cerveja na mão pegasse o filme que quisesse sem sair do sofá para ir de carro até a Blockbuster. Cada “come-e-dorme” exigia seu próprio fluxo de vídeo, e cada fluxo de vídeo continha uma gigantesca quantidade de dados. O computador precisava processar informação mais rapidamente do que jamais se tinha processado antes. “O projeto Orlando acabou se mostrando o projeto de supercomputação mais agressivo já organizado na história do mundo”, diz Jim Barton, um dos engenheiros que chefiaram o trabalho. “Como desafio de engenharia” diz Marco Framba, outro engenheiro do projeto, “era mais difícil do que qualquer coisa de que já se tivesse ouvido falar.” Jim Chiddix, da Time Warner, diz: “O projeto exigiu mais linhas de programação do que as que foram necessárias para pôr o homem na Lua”.

Pavan e Kittu foram informados de que tinham dezoito meses para construir a nova máquina. Disseram que precisariam de 24. Demoraram 23. Em 12 de dezembro de 1994, a imprensa se amontoou em Orlando para a demonstração. Outras empresas tinham gastado mais dinheiro e empregado mais engenheiros, mas

98

Page 93: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

F.D. McCracken e alguns outros engravatados. Sua presença era uma espécie de garantia de que a tecnologia se movia de maneira estável e previsível, do jeito que os engravatados determinavam que se movesse. “Nunca na história das telecomunicações”, disse Levin, “se projetou, desenvolveu e lançou um meio de comunicação de tamanha complexidade em um intervalo de tempo tão curto.” Então ele pegou um controle remoto, apertou um botão e... funcionou! (“Como num passe de mágica”, diz Pavan.) Os engenheiros foram aplaudidos de pé. Levin cortou a fita e anunciou que a Time Warner pretendia gastar 5 bilhões de dólares para pôr aquela fantástica nova tecnologia em funcionamento. Um dia, as vidas de todos os americanos dependeriam ainda mais de seus aparelhos de televisão. A nova tecnologia mudaria a maneira como as pessoas faziam compras, votavam, trabalhavam e amavam.

Ed McCracken seguiu-se a Gerald Levin no palco. Sem mencionar Jim Clark uma única vez, explicou à plateia como sua equipe na Silicon Graphics tinha condições de controlar o futuro.

De seus lugares no meio da multidão, Pavan Nigam e Kittu Kolluri observavam e sabiam que não era verdade. Tinham passado os dezoito meses anteriores realizando um dos grandes feitos de engenharia do século, e tudo o que tinham para mostrar eram caixas pretas que custavam 5 mil dólares cada. Poucos pagariam tanto por aquela tecnologia, e o valor dela dependia em parte de que muitas pessoas a utilizassem. O valor de um video-cassete era um só, pouco importando se uma ou 100 milhões de pessoas tivessem um. Mas uma televisão que interagia com outras televisões exigia um público. “A ITV

era um grande exercício acadêmico”, diz Kittu. 99

Page 94: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

Havia outro mau sinal — ainda que eles não percebessem inteiramente sua gravidade. Jim Clark tinha ido embora. De repente abandonou a empresa que criara e disse que ia começar outra. “Foi bom que Jim saísse”, diz Ed McCracken, no que deve ser uma das declarações mais sutis de uma carreira repleta de sutilezas. “Não há lugar para uma ambição financeira daquelas em nenhuma grande empresa.” O advogado de Clark o aconselhara a parar de reclamar e grunhir a respeito de McCracken por seis meses, depois ir a uma reunião do conselho e demitir-se. E foi isso que ele fez. De público, disse que saía com as melhores relações possíveis. Em particular, disse a amigos que ia mostrar ao Filho da Puta do Ed McCracken que tinha sido ele, não McCracken, o responsável pelo sucesso da Silicon Graphics. Disse aos engenheiros que o ajudaram a criar a sgi que ia ficar rico. Rocky Rhodes se lembra de ele ter parado para conversar sobre seus planos futuros: “Jim disse logo de cara: ‘vou ganhar 100 milhões de dólares’. E eu disse: ‘Isso é ótimo, Jim’, e também algo sobre como eu estava contente de a SGi ter dado certo. E então eu disse: ‘Mas mesmo que não tivesse dado certo, eu me diverti muito, conheci pessoas ótimas e aprendi bastante’. E Jim ficou furioso. Ele disse: ‘Não! Se eu fizer outra empresa e não ganhar 100 milhões de dólares, vai ser um fracasso. Eu vou ser um fracasso’. E, pelo que me lembro, a conversa parou por aí”.

Pavan e Kittu sabiam a maior parte dessas coisas e ficavam preocupados — mas muito menos do que deveriam. Eles ainda acreditavam que a história econômica se movia devagar, empurrada por grandes empresas como a Silicon Graphics.

100

Page 95: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

Depois Ed McCracken e os outros membros do conselho conspiram para isolá-lo da empresa enquanto McCracken faz suas cagadas. Depois Mueller e McCracken o retiram do grupo que recebe opção de compra de ações. Depois ele coloca a empresa de cara para o futuro — e consegue que a Time Warner lhes pague para estar lá! — e é imediatamente isolado de todas as discussões seguintes. No minuto em que as limusines da Time Warner apa-receram na Silicon Graphics, Ed McCracken se apossou do projeto. A indisposição entre Clark e McCracken era tamanha que quando ele descobriu que sua imagem tinha sido removida da fotografia dos engenheiros fundadores no relatório anual da SGI, presumiu que fora McCracken que decidira fazer isso.

A forma que Clark escolheu para se vingar foi o sucesso. Ele estava decidido a inventar para si um novo papel que não permitisse que os Mueller e os McCracken o usassem. Olhando para trás, há muitas maneiras de descrever esse novo papel. Mas talvez a mais simples seja o modo pelo qual Clark o descrevia para si mesmo: o cara que descobre qual é a nova novidade e faz com que ela aconteça. Os engenheiros que o ajudam a fazê-lo acabam em segundo plano. Os financistas e estadistas empresariais, sanguessugas do crescimento econômico, chegam em terceiro, bem atrás. Clark pretendia comandar o Vale do Silício tão firmemente quanto a Microsoft comandava o mercado de pcs. Evidentemente, ele não era o único engenheiro com gosto por dinheiro e poder. Era apenas aquele que finalmente disse: “Chegou a hora de tomá-los”.

Mas esta versão do que aconteceu é certinha demais. Clark não conceituou seu novo papel, e sim tateou no escuro até encontrá-lo. Ele tinha um desejo animal de ter

101

Page 96: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

grande empresa. Nem sequer queria ser um capitalista de risco que examinasse milhares de planos de negócio, financiasse dúzias de empresas e se recostasse com desprendimento olímpico na esperança de que algumas se tornassem grandes. Ele queria criar a empresa que inventaria o futuro. Uma vez feito isso, queria fazê-lo de novo e de novo e de novo e de novo. Por seus serviços, ele queria receber um tratamento melhor, e um pagamen-to maior, do que qualquer outra pessoa.

Algumas pessoas perceberam a força de Clark com exatidão assim que ele saiu da Silicon Graphics. O capitalista de risco Dick Kramlich encarregou um jovem chamado Alex Slusky, recém-saído da Faculdade de Administração de Harvard, de seguir Clark aonde quer que ele fosse. “Eu disse a Alex para dormir debaixo da cama de Jim se fosse preciso”, recorda Kramlich. “Jim é um revolucionário, você sabe. Ele está determinado a revolu-cionar tudo o que merecer ser alvo de uma revolta.” Slusky era um pouco como aqueles zeladores do Instituto de Estudos Avançados de Princeton que se arrastavam atrás do já idoso Albert Einstein e catavam seus rabiscos na improvável hipótese de que acabassem se mostrando importantes. Seu trabalho era grudar em Clark e fazer anotações. Quando Clark finalmente decidiu qual seria sua aventura seguinte, Slusky teve que insistir para que fosse permitido a Dick Kramlich da New Enterprise Associates comprar parte do empreendimento. “Dick tinha uma visão um pouco diferente”, diz Slusky. “Alguns de seus sócios não queriam ter nada que ver com Jim Clark. Achavam que Jim Clark era um cara meio maluco.”

Mas Slusky fez o que mandaram. Depois de quatro anos na Universidade de Harvard, dois na Faculdade de Administração de Harvard, deparou-se jantando com Clark

102

Page 97: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

feitos cuja fúria irrompia sem motivo aparente. Ele ouviu Clark queixar-se de Ed McCracken, grunhir sobre Glenn Mueller e planejar seu próximo lance. A princípio, Clark acreditava que o projeto Orlando poderia acabar bem. Tentou comprar da Time Warner os direitos do sistema operacional e posicionar-se como a Microsoft da nova tecnologia. A Time Warner não quis vender. A seguir, Clark passou a falar em criar novas aplicações para o telecomputador — havia muito a fazer com o dispositivo depois que se tornasse popular. Para isso ele precisava de jovens talentos que trabalhassem com software, e procurou um rapaz de 22 anos recém-saído da Universidade de Illinois, novato no Vale, chamado Marc Andreessen. Clark tinha visto o Mosaic, um programa cujo código Andreessen tinha ajudado a escrever na faculdade. O Mosaic permitia que o usuário viajasse pela Internet. Por que alguém haveria de querer fazer isso não estava claro na época.

Uma das primeiras coisas que Andreessen disse foi que não queria montar uma empresa com base no Mosaic. Clark não deu importância. Sua ambição era ainda mais incipiente. Ele precisava encontrar mais craques de software para substituir os que tinha deixado para trás. “Eu estava desesperado para encontrar bons engenheiros porque sabia que queria começar uma empresa”, diz. “E Marc conhecia um monte deles da faculdade.” Durante o mês seguinte, Alex Slusky jantou com Jim Clark e Marc Andreessen. Clark vomitava ideias; Andreessen as alinhavava num plano de negócio. Quase todas essas ideias presumiam que o telecomputador em construção em Orlando, na Flórida, era o futuro. Afinal, a Time Warner dissera que ia gastar 5 bilhões de dólares para torná-lo realidade. A essa altura, todas as grandes empresas de

103

Page 98: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

Um dia, quando Andreessen e Clark estavam sentados à mesa da cozinha de Clark, Clark anunciou que tinha mudado de ideia. Isso não era incomum: ele vivia mudando de ideia. Agora achava que o telecomputador estava à frente de seu tempo. Sua construção era cara demais. “A gente pode escrever um programa para matar o Mosaic”, disse Andreessen. “Como assim?” perguntou Clark. Andreessen disse que a Universidade de Illinois havia se apropriado do software que ele escrevera, mas que ele tinha certeza de que a universidade ia desperdiçar qualquer tentativa de comercializá-lo. Mencionou novamente que havia então 25 milhões de pessoas usando a Internet, e que a quantidade vinha dobrando a cada ano fazia bastante tempo. Clark recorda: “Eu pensei, meu Deus, esses números são grandes. Eu nunca estive num negócio com números grandes assim. Nessa marcha, íamos acabar falando de toda a população da Terra”.

Durante todo o tempo em que ele estivera matutando com Andreessen sobre o que fazer, a solução estivera bem na sua frente. A Internet. “De repente ficou claro para mim que quando eu olhava para a Internet estava olhando para o computador pessoal em 1985”, diz Clark. “Era uma tecnologia lenta e desajeitada, mas as pessoas a usavam. E ia ficar mais rápida. Percebi que era isso que eu estava procurando.” Ele e Andreessen contrataram os colegas de faculdade de Andreessen que tinham escrito o código para o Mosaic, o qual permitia que o usuário navegasse pela Internet, e Clark tinha de novo um time de jovens engenheiros para levar à guerra. Ele chamou a empresa de Mosaic Communications, e depois mudou o nome para Netscape.

Dessa vez Jim Clark tinha razão. Atirou-se no túnel escuro e sem fim. Em dezoito meses, as maiores

104

Page 99: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

de informática por parte da Microsoft. Os mil empregados da Microsoft dedicados a construir um telecomputador foram desviados para competir com o start-up de Jim Clark. Milhares de outros na Oracle e na Sun, e mesmo na Time Warner, foram encarregados da mesma coisa. “Jim aposentou a maior parte da ITV”, diz Pavan Nigam. “Todos perceberam imediatamente que o próximo grande acontecimento não era o telecomputador, mas o computador pessoal ligado à Internet.” Se você der uma olhada na palestra de Clark sobre o telecomputador, vai ver como a sorte favorece as mentes antenadas. A apresentação que Clark fez ao conselho em 1992 é um bom esquema do que seria a explosão da Internet. Todas as ideias (comércio eletrônico, correio eletrônico) e parte da tecnologia que ele concebeu para seu amado telecomputador foram enxertadas na Internet.

É preciso sentar e pensar um pouco para perceber o que isso significa, não só para Clark, mas para qualquer pessoa que tenha o mínimo interesse em saber como as economias e as sociedades são empurradas de um lugar para outro. Uma empresa criada por um sujeito técnico que um bando de manda-chuvas considerava meio desequilibrado, junto com um cara de 22 anos, que no princípio não queria fazê-la, e outro cara de 22 anos en-carregado de dormir embaixo de sua cama, se tornou não apenas um sucesso. Ela torpedeou os investimentos de centenas de milhões de dólares das maiores corporações e das mentes supostamente mais brilhantes do mundo — sgi, tw, Microsoft, Sun, Oracle, at&t. Milhares de pessoas tinham meio que desperdiçado bilhões de dólares, e, soubessem disso ou não, estavam seguindo a liderança dele. Justamente quando estavam todos correndo como uma manada na mesma direção, ele seguiu por outra. E

105

Page 100: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

Logo as opiniões de Clark chegaram aos capitalistas de risco em Sand Hill Road, que começaram a telefonar e perguntar se poderiam investir em sua empresa. Alex Slusky disse a Dick Kramlich que Clark estava prestes a entrar em ação — ele investira na empreitada 3 milhões de dólares de seu próprio dinheiro, uma parte considerável do que tinha. Kramlich procurou Clark, e Clark disse que dessa vez qualquer capitalista de risco que quisesse financiá-lo teria que fazer isso em termos novos, de um rigor sem precedentes. Ele avaliava em 18 milhões de dólares a recém-batizada Mosaic Communications, que consistia em 3 milhões de dólares de seu dinheiro e sete recém-formados da Universidade de Illinois. Ele permitiria que capitalistas de risco comprassem parte da nova empresa, pelo triplo do que ele tinha pago. Ou, como ele disse a Kramlich, “Meus dólares valem três vezes mais do que os seus”.

Isso era cerca de três vezes o que Kramlich esperava pagar. Kramlich procurou John Doerr, que trabalhava alguns metros acima em Sand Hill Road, na esperança de que Doerr pudesse ajudá-lo a meter um pouco de juízo na cabeça de Clark. Em vez disso, Doerr convidou Clark para ir a seu escritório e lhe deu exatamente o que ele pedia. Sua firma, Kleiner Perkins, comprou uma participação de 15% em uma Netscape avaliada em 18 milhões de dólares, e deixou Clark ainda com 25% da empresa. “Aquele”, diz Alex Slusky, “foi o momento que definiu esse período no Vale. Nenhum engenheiro tinha conseguido um acordo desse tipo até então.” (Clark, que tinha se afeiçoado ao rapaz encarregado de dormir sob sua cama, ofereceu a Slusky um emprego na Netscape. Slusky recusou. “Ele era simplesmente volátil demais para mim”, diz. “Eu não podia viver daquele jeito”)

106

Page 101: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

Glenn Mueller. Durante todo o mês de março de 1994, Mueller procurou Clark repetidas vezes pedindo para entrar na Netscape. Desculpou-se pela maneira como havia tratado Clark na Silicon Graphics. Disse que concordava com Clark. Que o futuro era a Internet, não a ITV. Em l2 de abril de 1994, Clark disse a Mueller pela última vez que ele não poderia investir na Netscape. Mueller telefonava de seu veleiro, ao largo do cabo San Lucas. Implorou a Clark uma última vez, e Clark o rejeitou. Em 4 de abril de 1994, dia em que a Netscape foi formalmente constituída, Mueller pegou um revólver e meteu uma bala na cabeça. Morreu instantaneamente.

Demorou um pouco até que as pessoas que julgavam conhecer Glenn Mueller encontrassem uma explicação que lhes desse paz de espírito. A mulher de Mueller contou a seus colegas o que eles não sabiam, que ele sofria de um medo intenso de que o objetivo das pessoas fosse destruir seu negócio. Em outras palavras, sofria de uma versão extrema de uma desordem mental que é motivo de orgulho entre muitos magnatas do Vale do Silício: paranoia. A árvore genealógica que decorava as paredes de todos os escritórios — a Shockley gerou a Fairchild, a Fairchild gerou a Intel, a Intel gerou... — era a cara alegre de uma verdade violenta. As novas empresas com frequência levavam as antigas à falência; as novas sempre devoravam as antigas. O Vale inteiro era um drama edipiano acelerado. Nesse drama, a tecnologia desempenhava um papel muito claro. Ela era a arma do crime.

Nas semanas seguintes, até que a tragédia deixasse a mente das pessoas, muita gente disse a Clark que o suicídio de Mueller não era culpa sua: nenhum ser humano se mata só porque foi impedido de participar de um

107

Page 102: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

ocasião. Então seguiu em frente e, quiçá pela primeira vez na vida, realmente precisou tentar esquecer.

Passaram-se alguns anos até que Ed McCracken percebesse que também ele seria excluído do futuro que Clark estava inventando. Mas o processo que o excluiria começou imediatamente. Seis meses depois de ter fundado a Netscape, Clark entrou em campanha para abrir o capital da empresa. A empresa tinha pouca receita, lucro zero e uma porção de novos empregados. Ninguém mais dentro da empresa achava que se devia fazer qualquer coisa além de manter a cabeça baixa e tentar torná-la um empreendimento viável. “Jim começou a nos pressionar para abrir o capital muito antes de qualquer outra pessoa”, recorda Marc Andreessen. Descobriu-se que havia uma razão para isso. Ele tinha visto um barco chamado Juliet. Queria um igual, só que maior. E para consegui-lo precisava de dinheiro.

A essa altura a decisão não pertencia apenas a Clark. A empresa tinha contratado um CEO conhecido e importante, Jim Barksdale, e tinha um conselho de administração respeitável. Barksdale não queria abrir o capital. Achava que já era difícil o bastante tentar encontrar uma forma de ter lucro sem precisar dar explicações a acionistas furiosos. Mas dessa vez Clark tinha poder, por sua participação no capital. Convocou uma reunião para discutir o primeiro lançamento de ações [initial public offeringy ou ipo], e a apinhou de advogados e banqueiros que receberiam uma grande comissão no caso da abertura do capital e que, por isso mesmo, estavam entusiasmados com a ideia. Nessa reunião, Barksdale finalmente capitulou. Dezoito meses depois de a Netscape

108

Page 103: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

meses depois estava em 140 dólares. Foi um dos lançamentos de ações mais bem-sucedidos na história das Bolsas de Valores dos Estados Unidos, e possivelmente o mais famoso.

Havia uma única explicação para o sucesso: agora o mercado via o futuro pelos olhos de Clark. “As pessoas começaram a dançar conforme a minha música”, diz Clark. “A Netscape obviamente não criou a Internet. Mas se a Netscape não tivesse insistido no assunto, a Internet teria permanecido em segundo plano. Teria continuado a ser uma coisa anti-intuitiva. A crítica que se fazia é que ela era anárquica. O que o ipo fez foi dar credibilidade à anarquia.”

No frenesi que se seguiu, muitas das regras do capitalismo foram quebradas. Por exemplo, sempre tinha sido regra geral entre os capitalistas de risco do Vale do Silício não oferecer uma empresa de tecnologia ao público investidor antes de ela ter tido pelo menos quatro trimestres de lucro seguidos. A Netscape não tinha nada para mostrar a seus investidores além de prejuízos maciços. Mas seu fabuloso sucesso na Bolsa criara um precedente. Não era mais necessário apresentar lucros; era necessário apresentar um crescimento acelerado. Ter um passado na verdade depunha contra uma empresa, porque um passado era um registro de desempenho, e um registro era um sinal das limitações da empresa. O fato de não se estar realmente ganhando dinheiro não tinha importância — haveria tempo para isso mais tarde, presumindo-se que alguém acabaria descobrindo como ganhar dinheiro com a Internet. No momento, o que importava era reinvestir toda a receita para conseguir crescer mais. Era preciso mostrar que a sua empresa não era do presente, mas do futuro. As empresas mais

109

Page 104: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

Outra regra antiga que mudou foi aquela segundo a qual os financistas que bancavam a empresa, e talvez o CEO que a conduzia ao sucesso, eram os que ganhavam mais dinheiro e acumulavam mais poder. Qualquer pessoa que tenha se dado ao trabalho de ler o memorando de investimento da Netscape descobriu um fato curioso. Os capitalistas de risco em Sand Hill Road e o novo CEO, Jim Barksdale, possuíam alguns milhões de ações cada. No final, eles ganharam centenas de milhões de dólares da Netscape e não tinham motivo para se queixar. Mas os jovens engenheiros que Clark reuniu para criar a empresa também ficaram ricos. Um engenheiro que entrou para a Netscape em julho de 1995 tinha, em novembro, 10 milhões de dólares.

Clark também se certificou de que a maior participação na empresa, de longe — quase um quarto do total —, seria sua. E se tornou o mais novo bilionário do Vale.

A velocidade com que Clark enriqueceu e transformou vários outros engenheiros em milionários criou novas redes de cobiça e medo no Vale do Silício. A Microsoft tinha doze anos quando se começou a falar dos milionários da Microsoft; a Netscape tinha um ano e meio. Até então, o engenheiro típico decidia onde trabalhar com base em considerações antiquadas, como salário, benefícios e o interesse técnico inerente ao trabalho. De repente, tudo isso foi eclipsado pela opção de compra de ações. Os engenheiros que foram trabalhar na Netscape não eram diferentes de você. E ainda assim... eles — não você! — estavam ficando ricos. Pior, eles eram o segundo time. O primeiro time da engenharia era, em geral, muito bem tratado por suas empresas para se arriscar no que parecia, à distância, uma duvidosa nova aventura. A

110

Page 105: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

roleta onde as apostas eram altíssimas, e o engenheiro tinha que decidir em que número colocar seus serviços. Se errasse, perdia a onda; se acertasse, ficava rico.

A maioria das pessoas não gosta de fazer grandes apostas no futuro. Prefere que alguém lhe diga o que fazer. Foi isso que Jim Clark fez. A partir do momento em que a Netscape fez dele um bilionário, ele adquiriu uma nova forma de poder: o poder de ser Jim Clark. Metade dos engenheiros do Vale queria trabalhar para qualquer empresa que ele iniciasse, na suposição de que se havia alguém capaz de prever o futuro, era Jim Clark. Tudo o que Clark tinha que fazer era anunciar como pretendia inventar o futuro, e enormes quantias de dinheiro e vastos reservatórios de talento de engenharia caíam em cima dele, decididos a provar que ele tinha razão. A pergunta era: o que ele faria em seguida? No fim de 1995, muitos engenheiros da Silicon Graphics estavam se fazendo essa pergunta. A empresa tinha os engenheiros mais capazes, e os mais capazes dentre eles tinham acabado de desperdiçar dois anos de seu tempo e centenas de milhões de dólares. A partir do momento em que a Netscape abriu o capital, a Silicon Graphics ficou oficialmente doente — uma empresa do passado e não do futuro. O valor de mercado da empresa chegou ao pico de 44 dólares por ação uma semana depois do lançamento da Netscape e então caiu em um ritmo regular pelos quatro anos seguintes, até chegar a oito dólares por ação. Em 1997, Ed McCracken foi demitido da Silicon Graphics. Ele abandonou o Vale do Silício e assumiu a administração de uma fundação no Norte do estado de Nova York. Muitas das pessoas que o consideravam um gênio apenas alguns anos antes agora o consideravam um tolo. “Na época eu achava que Jim estava apenas sendo brutal com Ed”, diz

111

Page 106: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

Muitos dos engenheiros na Silicon Graphics prometeram a si mesmos que embarcariam junto com Jim Clark, pouco impor tando o que ele fizesse em seguida. Havia o boato de que Clark estava construindo um novo barco. Um barco! Seu barco era para onde ele se mpre ia quando estava bolando a nova novidade! Seu velho amigo Forest Baskett, que o seguira de Stanford para o Vale do Silício, recebeu um telefonema de Clark. Era fim de 19 95, logo depois de a Netscape ter aberto o capital e Clark ter se tornado o mais novo bilionário do Vale. Mas Clark não pare cia satisfeito. Parecia agitado, como acontecia quando havia algo entre ele e o que ele queria. Queria conversar com Forest sobre seu novo barco. Tinha sido Forest que levara Clark para velejar pela primeira vez na baía de San Francisco. Agora, apenas al guns anos depois, Clark estava tentando descobrir se o barco que queria construir conseguiria entrar na baía de San Francisco.

“Forest ”, ele perguntou, “qual é a altura da ponte

112

Page 107: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

6. A retranca e o mastro

Uma vez por mês, às vezes mais, Clark se arrastava da cama às quatro da manhã, dirigia até o terminal aéreo de San lose, na Califórnia, subia a bordo de seu novo jato e voava para Amsterdã. O avião não podia fazer toda a viagem sem ser reabastecido. Em algum momento, ele descobriu uma faixa de tundra ao norte do Círculo Polar Ártico, com uma pequena aldeia que consistia em não muito mais do que uma pista de pouso, uma bomba de combustível e um posto médico de emergência para esquimós. Ele descia dos céus, estacionava ao lado da bomba, sacava seu American Express, comprava 7 mil litros de gasolina de um esquimó e zarpava. Depois de chegar a Amsterdã, dirigia para o norte por uma hora e meia até chegar ao estaleiro de Wolter Huisman, em Vollenhove. Vollenhove parecia apenas ligeiramente mais remota do que a cidade esquimó.

Clark fez essa viagem sessenta vezes desde o lançamento das ações da Netscape, em agosto de 1995, até a viagem inaugural do barco financiado pelo

113

Page 108: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

de 1998, cinco meses antes da data prevista para a conclusão do Hyperion e onze meses antes de ele ser de fato concluído. O barco estava encarapitado como uma baleia branca encalhada em cima de um cavalete em um hangar ao lado do escritório de Wolter Huisman. Havia, como de hábito nas visitas de Clark, uma espécie de formigamento no ar que precedia más notícias.

Dentro do escritório, Clark sentou-se a uma mesa de reunião em frente a Wolter Huisman, vários de seus auxiliares, o capitão do Hyperion, Allan Prior, e esperou para ver qual era a notícia. Réplicas de barcos de madeira e fotografias em tons sépia dos antepassados de Wolter cercavam a mesa. Era um escritório de trabalho, mas também um santuário à tradição de navegação dos Huisman — uma tradição que Clark agora ameaçava.

Um bookmaker que não conhecesse bem os personagens provavelmente diria que as probabilidades eram desfavoráveis ao desafiante. É mais fácil preservar as tradições quando os riscos da mudança são maiores, e é esse o caso com veleiros. Um veleiro construído por Wolter em 1992 tinha muito em comum com um outro construído por Wolter em 1972 ou com um veleiro cons-truído pelo pai de Wolter em 1932 ou com um outro construído pelo avô de Wolter em 1892, pelo singelo motivo de que o padrão Huisman de qualidade tinha mantido muita gente em cima da água. Por mais de cem anos, o Real Estaleiro Huisman vinha produzindo belos barcos de madeira não muito diferentes dos barcos de passeio holandeses originais do século xvII. Normalmente, o que Wolter vendia era a Gloriosa Tradição Holandesa de Construção Naval. Quando alguém rico aparecia no Real Estaleiro Huisman, entre as primeiras coisas que lhe eram mostradas estavam as belas fotografias antigas em preto-

114

Page 109: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

que ouvisse contar histórias dos incêndios, das inundações e dos vários exércitos alemães a que o Estaleiro Huisman havia sobrevivido.

Então, em 1993, as probabilidades mudaram drasticamente, quando um novo tipo de cliente de veleiro apareceu. Era americano. Um empreendedor de San Francisco, amigo de Jim Clark. Queria um iate maior do que qualquer um que Huisman tinha construído: 142 pés. Para ter certeza de que ia conseguir exatamente o que queria, fez dúzias de viagens à aldeia holandesa de Vollenhove. Ocasionalmente dormia no escritório de Wolter Huisman. Era, do modo que os ingleses reprovam, agressivo. No fim de 1993 o barco ficou pronto. Foi batizado de Juliet. O Juliet assinalou uma mudança na curva de demanda, pelo menos na cabeça agora irrequieta de Wolter. Até então, 60% de seus clientes eram alemães; de repente, 75% deles eram americanos. Os ricos, especialmente os novos-ricos americanos, tomaram gosto por barcos obscenamente grandes e pela alta tecnologia exigida para controlá-los. Os barcos deixaram de ser meros barcos. Eram pequenas cidades-estados flutuantes. Wolter guardou suas objeções a respeito do gosto de seus clientes para si mesmo, pelo menos até que estivessem longe o bastante para não ouvir seus gritos. Mas, depois que saíam, ele explodia. “Sempre maior, maior, maior!” gritava. “Se alguém tem um barco de noventa pés, querem um barco de 95 pés. Se outro alguém tem um bar-co de 95 pés, querem um barco de cem pés. E normal, não?” Ele deixava em aberto se estava fazendo uma afirmação ou uma pergunta.

De qualquer maneira, Wolter não se sentia inteiramente à vontade no novo cenário. Antes do Juliet, o lema oficial do Real Estaleiro Huisman era: “Se você tem

115

Page 110: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

Mesmo em seus momentos mais pessimistas, Wolter não imaginava as estranhas forças que o Juliet ia libertar. Ao sair do Estaleiro Huisman, ele rumou para a Baía de San Francisco, onde foi visto e admirado por pessoas de cabeça técnica que estavam destinadas a criar uma das maiores explosões de riqueza da história econômica. No verão de 1995 a primeira dessas pessoas entrou no escritório de Wolter no Estaleiro Huisman. Disse que seu nome era lim Clark, e que tinha acabado de criar uma nova empresa de Internet chamada Netscape. Para comprar o iate de seus sonhos, explicou, ele tinha convencido seu conselho de administração a abrir o capital da Netscape — ou seja, a vender ações da empresa para investidores. (Ele frequentemente faz as coisas certas pelos motivos errados.) Wolter tentou se informar sobre se o dinheiro de Clark era de verdade e. .. nada descobriu. Ninguém que ele conhecesse tinha jamais ouvido falar na Netscape. Acabou descobrindo que a empresa existia havia pouco mais de um ano, tinha tido enormes prejuízos, não tinha planos concretos para ter lucros, e... bem, Wolter não conseguia dizer o que ela fazia. Então, alguns meses depois, Wolter se pegou lendo artigos de revista sobre Jim Clark. A Netscape o tinha transformado em um bilionário.

O papel de Wolter na criação do iate computadorizado de Clark foi o de sofrer com ironia. Era um papel para o qual ele não estava preparado. Clark e suas novas ideias eram na verdade muito angustiantes para Wolter. Ele passaria dois anos e meio com uma contradição bem no meio de sua vida: um cliente que queria procurar a nova novidade num lugar que era uma velha velharia. Wolter acordava no meio da noite imagi-nando as manchetes no jornal, IATE HUISMAN, FAMOSO NO

116

Page 111: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

fraquejou e ele foi colocado numa cama de hospital. Alguns dias depois ele saiu com uma ordem do médico: deveria se poupar... e encontrou Jim Clark e seus programadores esperando-0 no estaleiro.

Nessa visita de Clark em particular, Wolter começou a falar de um de seus temas favoritos, se era sensato deixar um computador pilotar o barco. Um artigo recente em uma revista de vela salientava o fato de que o novo veleiro de Jim Clark “aprenderia” a se auto pilotar, em qualquer condição. O Hyperion era, de fato, uma máquina que aprendia. Continha milhares de sensores eletrônicos capazes de medir tudo, desde a pressão nas velas até a temperatura nas geladeiras. Eles forneciam um fluxo constante de dados para 25 computadores feitos para resistir a tudo. Com o tempo, os computadores adquiririam a informação necessária para lidar com todas as condições de navegação possíveis. Se quisesse, Clark poderia se conectar ao Hyperion pela Internet a partir de sua sala de estar na Califórnia, assumir o computador do capitão e pilotá-lo pelo teclado. Esse ponto em particular chamou a atenção de Wolter Huisman. “Não acredito nisso”, disse bruscamente. “Você precisa de um capitão a bordo, não?”

“Também não acredito”, disse Clark. Um ano antes, talvez como uma concessão ao coração enfraquecido de Wolter, Clark começara a dizer que nem em um milhão de anos tentaria pilotar o barco a partir de seu computador na Califórnia. “Mas”, prosseguiu, “é bom ter controle automático de velocidade no carro, você tem que admitir. Você pode usar ou não. Mas é bom ter.”

Wolter pensou nisso por um ou dois segundos como se decidisse se Clark tinha concordado com seu argumento. Concluiu que tinha. “O barco é só mais uma

117

Page 112: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

afirmação era maior do que parecia. Clark estava construindo o mastro mais alto do mundo. O mastro mais alto do mundo segurava a maior vela do mundo. A maior vela do mundo pressupunha a maior exposição ao vento que já houvera. Ao eliminar o problema de cuidar das velas manualmente, o computador tornava esse desejo factível.

“Yá”, disse Wolter, “isso é verdade.”“E você não pode achar ruim o barco soar um alarme

para avisar que você está navegando em popa rasa”, disse Clark, percorrendo sua lista mental das muitas ações que o computador podia executar melhor do que um ser humano falível.

“Yá”, disse Wolter, menos feliz, “isso também é verdade.”

A revista de vela também salientava que o Hyperion não teria apenas um cérebro, mas também uma voz. Em vez de soar um alarme, o computador podia até gritar para o capitão. Se ele ignorasse o aviso, o computador podia gritar mais uma vez. “Cuidado, maldito idiota!” foi a sugestão de Clark para o segundo aviso.

“É”, disse o capitão Allan Prior, pouco à vontade, “ouvi dizer que vai haver uma voz.”

“A voz do milênio”, grunhiu Wolter. Ele não se sentia inteiramente confortável com a ideia de um barco falante.

“Uma voz alemã”, disse Clark, divertindo-se com a ideia. Caprichou no sotaque do Terceiro Reich e trovejou: “Allan! A barco estar afundando! Mexa-se!”

Clark gostou mais da piada do que Wolter, e Wolter gostou mais da piada do que Allan, mas Allan já sabia por que Clark tinha decidido informatizar o barco. A ideia tinha ocorrido a Clark em 1991, quando, desesperado com o

118

Page 113: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

barco que Clark possuía na época tinha navegado uma noite de St. Barts a Anguilla. Na volta ele raspou o barco levemente em um recife de coral. Não contou o incidente a Clark, que passara a noite em terra firme. Mas a mulher de Clark, Nancy Rutter, que estava a bordo, acordou com o barulho. O fato de o capitão lhe ter sonegado essa informação cinco anos antes o enfurecia até aquele dia. Daí ele retirou uma lição: o capitão precisa ser vigiado. E daí tirou a ideia de escrever um programa de computador para vigiá-lo. Um computador poderia monitorar tudo que acontecesse a bordo do barco. Clark tinha apenas que manter o olho na tela e saberia tudo que o capitão tinha feito enquanto ele estava fora.

Allan Prior conhecia a história. E por isso também sabia que o programa de computador era voltado para ele.

Deixando o computador de lado, Wolter então deu a má notícia afinal. “Yim”, disse Wolter, “estão construindo um barco na Nova Zelândia. Parece que vai ter um mastro maior do que o seu.”

Clark encostou-se no espaldar da cadeira.“Parece que vai ter mais de 61”, disse Wolter.“Mais de 61 metros?”, perguntou Clark.Wolter assentiu.“E o nosso tem apenas sessenta”, disse Allan. Às

vezes diziam que eram 58 metros, outras vezes diziam que eram sessenta. Tanto faz. Era grande.

Na verdade, sessenta metros era um número importante na cabeça de Clark. Era a altura máxima para qualquer barco que quisesse passar na maré cheia sob a ponte Balboa no canal do Panamá. Se ele estivesse certo, seu mastro de sessenta metros não seria apenas o maior construído até então, mas o maior já construído em toda a eternidade.

119

Page 114: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

Retiro isto. Ele não estava fisicamente andando. Falo assim porque não consigo pensar em outra maneira de transmitir o efeito que ele surtiu em todo mundo na sala. Na verdade, ele apenas alterou sua expressão facial. Sua boca se retorceu, seu rosto se avermelhou um pouco e ele meneou a cabeça como um pugilista entre um soco e outro. Mas, a julgar pelas expressões do outro lado da mesa, ele bem que podia ter se levantado e estar andan-do para cima e para baixo no escritório de Wolter e gritando a plenos pulmões. Wolter estava consternado.

Logo Clark ficou mesmo de pé e levou os demais para fora do escritório de Wolter. Saíram pelos fundos e atravessaram a passarela que serpenteava em volta do Hyperion, quatro andares acima do chão. A essa altura, o Hyperion era um esqueleto do que seria, e era possível ver toda a sua espantosa complexidade. Havia doze geladeiras, um dessalinizador de água, uma estação de tratamento de águas servidas, três geradores, um motor do tamanho de um fusca, um sem-número de catracas hidráulicas, e vários milhares de sensores eletrônicos afixados a tudo o que pudesse ser medido por um computador. Havia cem quilômetros de fios elétricos ligando os sensores a 25 computadores Silicon Graphics, que armazenavam e manipulavam os dados. Eles cole-tavam e analisavam 40 mil tipos diferentes de informação. O barco tinha sido reduzido à soma de seus dados digitais.

Clark, Wolter, Allan e os executivos da Real Huisman passaram por toda essa maravilhosa complexidade, desceram os degraus da passarela, atravessaram uma oficina no térreo que fervilhava com cinquenta marceneiros fazendo os acabamentos de teca e de mogno do barco. Essa gente era tão diferente de Clark quanto os índios Maori. Muitos deles tinham aprendido seu ofício no

120

Page 115: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

sem jamais cogitar ir embora. Nunca tiveram dúvida ao sair da cama de manhã sobre o que fariam naquele dia, ou no seguinte, ou no seguinte. Tratava-se de pequenas figuras no plano intermediário da paisagem holandesa que, depois de cavarem alguns canais e erigirem um dique ou dois, davam-se por satisfeitas em deixar o mundo da mesma maneira que o tinham encontrado.

O grupo de executivos liderado por Clark surgiu no galpão na extremidade do estaleiro. Antes de Clark ter entrado em cena, não havia prédio do Estaleiro Huisman que pudesse abrigar um mastro de sessenta metros. Clark descartara aquela objeção, dizendo que pagaria para se construir um prédio novo. O prédio novo no velho estaleiro era longo, baixo e claro. À distância parecia uma enorme estufa. Não era. Era um forno.

Depois de terminado, e muito antes de ser espetado no barco, o mastro receberia um revestimento branco e lustroso. Mas por enquanto era uma vara longa e negra esticada no chão. Ninguém poderia adivinhar o que era; podia ser, talvez, o oleoduto do Alasca. Depois de pronto, posto na vertical e grudado no barco, não caberia debaixo da ponte do porto de Sydney, da ponte Coronado em San Diego, ou da ponte Triborough em Nova York. Uma dúzia de trabalhadores ainda alargava seu diâmetro aplicando uma camada de fibra de carbono preta sobre a outra. Depois de aplicar cada camada, os trabalhadores esquen-tavam o prédio inteiro até o ponto de fusão do material. As camadas negras derretiam e se misturavam em um conjunto ainda mais negro. O mastro ficava cada vez mais negro. Não estava sendo construído: estava sendo cozido.

E até dez minutos antes era o mastro mais alto do mundo. Que isso pudesse não ser mais verdade afligia Clark. Evidentemente, ele sabia tão bem quanto todo

121

Page 116: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

dizia: “Quem está interessado em saber qual é o ricaço que tem o mastro mais alto?” — e de fato acreditava em cada palavra. No minuto seguinte ele estava de pé na extremidade do galpão, os braços abertos como se fosse Moisés abrindo o mar Vermelho, o mastro como um enorme falo negro, berrando: “O meu tem sessenta metros. Quantos tem o seu?”. Dentro dele, um atributo e uma substância química — inteligência e testosterona — lutavam pela hegemonia. No momento a substância química estava ganhando por pontos.

A substância química lhe criara um certo desconforto. Os jornalistas viviam descrevendo Clark como “um texano alto e magricelo”. A imagem evocada por esta descrição, de um sujeito grande e despreocupado errando pela cidade com um sorriso negligente no rosto, era completamente falsa. Ele era grande, e podia fingir algo de relaxado por tempo bastante para enganar um estranho, mas não havia nada de despreocupado nele. Seu temperamento não combinava com um homem do seu tamanho. Era agitado como um mangusto vigiando uma cobra. Essa agitação podia ser profundamente perturbadora para os outros. Rich Karlgaard, editor da Forbes e antigo observador do Vale do Silício, disse certa vez que havia apenas três homens no Vale que eram fisicamente intimidadores. Larry Ellison, que administrava a Oracle, Gerald Saunders, que administrava a Advanced Micro Devices, e Jim Clark, que administrava a si mesmo. Essa afirmação é a um só tempo estranha e verdadeira. Estranha porque, apesar de ter um temperamento difícil, ele nunca era violento. Verdadeira porque as pessoas ficam frequentemente apavoradas com Clark, mesmo que não tenham medo de apanhar. Clark permite que sua raiva corra solta dentro de si mesmo. Ao chegar ao ponto

122

Page 117: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

De qualquer modo, naquela manhã no Estaleiro Huisman, não foi preciso ele dizer por que estava um pouco contrariado, pois todo mundo no galpão sabia o motivo. Ele tinha tido algum trabalho para descobrir quais as exigências para barcos que quisessem passar sob a ponte Balboa, no canal do Panamá. Agora Wolter estava lhe dizendo que tinha comido mosca. Na maré baixa, com uma permissão especial do governo dos Estados Unidos, que era dono e administrador do canal do Panamá, barcos que se erguessem 61 metros acima da água tinham autorização para atravessar. Pior, no ano 2000 o governo do Panamá voltaria a ter o controle do canal. E o governo panamenho dizia que talvez estendesse o limite de altura de 61 para 62 metros. O dono do barco da Nova Zelândia, um especulador imobiliário de Atlanta, julgou que podia passar pelo inconveniente de ter que esperar pela maré baixa para atravessar durante um ano. Depois que o canal voltasse ao controle panamenho, no ano 2000, ele poderia atravessar na hora que lhe conviesse.

De pé na extremidade do que agora era sem dúvida o mastro mais longo do mundo apenas temporariamente, Clark examinou seu próprio bug do ano 2000. Perguntou a Wolter o que ele achava de acrescentar um prolongamento ao mastro. Wolter murmurou que não achava uma boa ideia. Finalmente, Clark se voltou para Allan, seu capitão, e disse: “Acho que devíamos desafiar esse cara de Atlanta para uma regata”.

A vida de Clark sempre estivera de pernas para o ar, mas a partir do momento em que se abriu o capital da Netscape e ele se tornou o mais novo bilionário do Vale do Silício, ficou mais confusa do que nunca. O lazer assumiu

123

Page 118: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

qualquer outra coisa, o mantinha ligado o tempo todo. Passou muitas noite acordado pensando em soluções matemáticas para os problemas de software do Hyperion.

Por exemplo, um problema que o incomodava era como criar um mostrador na tela do computador que se parecesse com um mostrador mecânico. Simular a realidade dentro do computador era a obsessão de sua carreira: sua tese de Ph. D. na Universidade de Utah fora sobre realidade virtual. Um dia ele criou um mostrador de combustível da maneira usual, empregando a nova linguagem de programação C++. Naquela noite ficou na cama acordado, torturando-se por causa da má qualidade do trabalho. Ele não gostava da falta de precisão das linguagens de programação, que considerava uma ciência não exata. Foi ficando cada vez mais irritado porque o mostrador não era exatamente igual a um mostrador mecânico. Não havia sombreamento nas beiradas, por exemplo, e o ponteiro andava aos trancos como uma ferramenta digital, em vez de deslizar suavemente como no velocímetro analógico de um carro.

Às três da manhã ele finalmente desistiu de tentar dormir. Saiu da cama sem acordar a mulher, pegou o carro e dirigiu até o escritório a cinco quilômetros pela estrada. O problema era a porra da linguagem de programação. Uma das razões pelas quaiso mercado de software favorecia os jovens era que as linguagens mudavam com frequência. Era como se se anunciasse para a população da França que todos deveriam falar esperanto em vez de francês. As pessoas antigas, com sua linguagem antiga, eram expulsas por pessoas novas que, não tendo investido nada na lin-guagem antiga, aprendiam a nova linguagem com mais facilidade. Que Clark, no fim dos anos 80, tivesse se dado

124

Page 119: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

ponto de vista técnico. “Sou um cachorro velho que aprendeu um truque novo” , dizia Clark. Ele era um cachorro velho que aprendeu tantos truques novos que se tornou uma ameaça à reputação dos cachorros velhos.

Mas aquele truque, ao menos, não resolveu. Assim, às três da manhã, em seu pequeno e encardido escritório em cima do centro Jenny Craig para perda de peso, Clark resolveu o proble ma usando a matemática, e depois traduziu a solução para códi go de computador. Quando terminou, tinha um mostrador do qual gostava. Algumas horas depois, tirei seu trabalho da lata de lixo, como uma lembrança do que os bilionários tecnológicos americanos do fim do século xx faziam entre meia-noite e seis da manhã:

125

Page 120: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

A verdade é que nenhum observador fortuito seria capaz de dizer quando Clark estava trabalhando e quando estava de folga. Isso se dava em parte porque, na maneira de pensar de Clark, a grande distinção não era entre “trabalho” e “folga”, mas entre “criar nova tecnologia por dinheiro” e “criar nova tecnologia por prazer”. E em parte porque não havia nenhuma distinção.

No outono de 1995, Clark estava fora da Netscape. Tendo aprendido na Silicon Graphics que seu lugar não era mesmo em uma grande organização, ele projetou todas as futuras grandes organizações sem um lugar para si mesmo. Ele conservou o título de presidente, continuou fazendo parte do conselho e manteve a maioria de seus cerca de 19 milhões de ações (as ações haviam sido divididas), mas não fazia muito além de comparecer a algumas reuniões e atrapalhar o novo diretor-geral da em-presa, Jim Barksdale, com suas várias premonições do que estava para acontecer.

Para Clark parecia claro que o segmento de browsers [programas de navegação na Internet] de Internet seria um dia devorado pela Microsoft. A Microsoft tinha devorado a Silicon Graphics devagar; devoraria a Netscape rapidamente. O monopólio da Microsoft no sistema operacional do pc lhe dava duas gran des vantagens na batalha pela Internet. A primeira eram bilhões de dólares em lucros: ela podia investir mais do que qualquer rival. A segunda era o poder sobre qualquer empresa que pretendesse vender o que quer que fosse para o usuário de pc. A Netscape já estava à mercê da Microsoft. Não fazia sentido desenvolver novas e melhores versões de seu browser de Internet se elas fossem incompatíveis com cada versão subsequente do Microsoft Windows. E não era possível torná-las compatíveis sem

126

Page 121: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

gente era isso o que ela era. Para Clark era uma força que retardava a mudança, de forma que a mudança não corroesse seu monopólio. Era maior do que a General Motors, e, à sua maneira, igualmente sem imaginação.

E então Jim Clark começou a pensar em como ganhar mais1 bilhão de dólares para repor o bilhão que poderia perder para Bill Gates. Esse era o ponto de partida para Clark depois da Netscape: como ganhar não milhões, mas bilhões de dólares. Rapidamente. Enquanto arquitetava seus planos, nunca lhe ocorreu que ele era um intruso sem nenhuma experiência na indústria que planejava invadir. Ele tinha a impressão de que a indústria ame-ricana inteira estava à disposição de quem quisesse se apossar dela, graças à Internet. Não, o problema é que qualquer mercado relacionado à informática que fosse grande o bastante para permitir que Clark se tornasse muito mais rico do que já era seria um mercado que a própria Microsoft cobiçaria. Quando ele se perguntava “como posso ganhar mais 1 bilhão de dólares?”, o que ele estava perguntando mesmo era “como posso ganhar mais 1 bilhão de dólares sem que a Microsoft perceba o que estou tramando?”. Precisou de quatro meses para achar uma resposta.

No final de 1995, diagnosticou-se que Clark tinha uma doença rara no sangue, hemocromatose. Em essência, seu sangue produzia mais ferro do que seu corpo precisava. A doença exigia que em intervalos de algumas semanas Clark comparecesse ao hospital, onde era submetido a uma antiga panaceia medieval: a sangria. Era a primeira vez que frequentava um hospital desde o desastre de motocicleta em que tinha esmagado a perna. O festival de formulários e a burocracia eram mais do que se poderia

127

Page 122: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

puro desperdício. Muito desse desperdício poderia ser evitado simplesmente pela eliminação da papelada. Como grande parte dela parecia ter sido inventada para impedir o paciente de conseguir o que queria na hora em que queria, eliminá-la agradaria ao paciente. A Internet foi inventada para esse tipo de tarefa: com efeito, ela permitia que todas as muitas partes de uma transação de saúde estivessem presentes na mesma sala. O paciente poderia entrar no consultório de um médico que nunca tivesse visto, dar-lhe uma senha, e alguns segundos mais tarde o médico teria seu prontuário e sua cobertura de seguro. Alguns minutos depois de o paciente sair, o médico mandaria a conta à seguradora pela Internet, e dela receberia o pagamento pela Internet. Se o paciente precisasse de remédios, poderia encomendá-los na tela, no próprio consultório médico. Nenhum formulário, ne-nhum papel, nenhuma aporrinhação.

Clark sentou-se com um pedaço de papel — um pedaço de papel! — e desenhou este pequeno diagrama:

PAGADORES*

MÉDICOS * * FORNECEDORES

*CONSUMIDORES

Do jeito que ele desenhou, saiu um belo diamante. O Diamante Mágico. Clark pensou por um minuto na região no centro (*), que era, claro, o lugar que ele supunha que seria ocupado por qualquer empresa que criasse. Digamos que houvesse, talvez, um terço de 1,5 trilhão de dólares

128

Page 123: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

resto como lucro. Ele ainda seria maior do que a Microsoft, e a Microsoft estava a caminho de se tornar a empresa mais valorizada da Bolsa de Valores de Nova York. Se ele ia criar a empresa mais valorizada dos Estados Unidos, a empresa ia precisar de um nome. Ele poderia muito bem ter escrito “Empreendimentos Jim Clark”, porque era exatamente isso. Em vez disso, escreveu “Healthscape”.

Qualquer outro ser humano teria sido atirado em um manicômio por ter pensamentos tão grandiloquentes. Mas Clark tinha inventado Jim Clark, de modo que foi levado a

129

Page 124: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

7- Jogando areia nos olhos dos capitalistas

Não muito depois de ter desenhado o Diamante Mágico e a si mesmo no centro da indústria de saúde americana, Clark seguiu de carro até Sand Hill Road para se encontrar com um grupo de capitalistas de risco. Eles se anunciavam como os maiores tomadores de risco do Vale, mas podia-se descobrir tudo o que era preciso saber sobre sua atitude em relação a riscos simplesmente indo até Sand Hill Road. Era lá que os capitalistas de risco se agrupavam em busca de segurança, como patos no parque esperando migalhas de pão. Cada vez que Clark fazia essa viagem, a situação dos patos piorava. O preço das migalhas ficava mais elevado, e eles tinham que grasnar mais alto para consegui-las. Quando Clark foi falar com os capitalistas sobre a Netscape, havia o consenso de que ele atuaria como CEO até que a empresa estivesse em pleno funcionamento. Dessa vez, ele propunha não apenas ficar com a parte do leão nas ações da nova empresa, mas que os capitalistas fizessem todo o trabalho necessário. Clark não tinha planos de passar nem sequer

130

Page 125: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

de negócios e se transformado em um artista conceituai. Depois de enunciar a nova novidade, Clark pretendia retornar à importante tarefa de ensinar seu computador a pilotar seu novo barco.

Surpreendentemente, a dúvida em sua mente não era se algum capitalista de risco aceitaria seus termos, mas a qual capitalista de risco ele daria a honra da sua presença. Os capitalistas de risco aprenderam uma dura lição com a Netscape. Antes de a Netscape ter aberto o capital, muitos capitalistas de risco achavam que John Doerr e sua firma, Kleiner Perkins, tinham sido loucos de aceitar os termos de Clark. Clark cobrara de Doerr o triplo da taxa vigente para capital inicial. Doerr tirou cerca de 500 milhões de dólares limpos em dezoito meses, ou trinta vezes seu investimento original, e se tornou o capitalista de risco mais falado de Sand Hill Road. Os outros capitalistas de risco foram forçados a concordar: obviamente valia a pena pagar um preço novo e alto por ideias, e pelas pessoas que as concebiam.

Dick Kramlich, da New Enterprise Associates (NEA), a maior pilha de dinheiro de risco e de conhecimento da indústria de saúde existente no Vale, fez o maior lance a Clark. Clark ainda reclamava de Kramlich ter se aliado a Ed McCracken para tirá-lo do caminho na Silicon Graphics. Mas Kramlich era uma dessas almas caridosas que querem apenas que todo mundo se dê bem e estava disposto, pelo menos era o que parecia, a submeter seu ego aos outros. “Onde houver chance de abaixar a cabeça ou de ajoelhar-se”, diz um de seus colegas, “Dick será o primeiro da fila.” Kramlich apareceu em uma das reuniões da Netscape com investidores logo antes do IPO, e disse a Clark que estava feliz por seu sucesso. Esse ato de auto rebaixamento — um reconhecimento formal de que Clark era importante

131

Page 126: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

Ed McCracken, e nunca o perdoaria, mas ficou, por assim dizer, comovido com o gesto.

Clark tinha um motivo para reconsiderar sua irritação com Kramlich, por sinal: ele agora estava ainda mais irritado com John Doerr. Sempre que o nome de Doerr vinha à baila, a boca de Clark se retorcia completamente. Quando Clark ofereceu a Doerr a chance de investir na Netscape, Doerr estava em uma maré de azar. Entre 1991 e 1993, Doerr convenceu uma porção de gente, incluindo a si mesmo, que o futuro do Vale estava no pcn computing. Pen computing era uma versão prematura do Palm Pilot. Doerr tinha queimado dezenas de milhões de capital tentando enfiar computadores no bolso de gente comum, um fracasso espetacular chamado GO. Depois do GO, Doerr se agarrou à televisão interativa. Começou a fazer discursos futurísticos, cujo tema era que a televisão interativa ia transformar o mundo. (Ele continuaria fazendo o mesmo discurso até o fim da década, simplesmente substituindo “televisão interativa” por “Internet”) Clark resgatara Doerr daquele beco sem saída e o ajudara a arquitetar outras empresas de Internet. Uma delas era a @Home. Clark e Doerr compartilhavam uma obsessão pela Microsoft. Ambos sentiam que a Internet seria grande demais para a Microsoft ignorar. Presumiram, ainda, que em mais alguns anos a Internet entraria na casa das pessoas por cabos de televisão, que podiam transmitir dados muito mais rápido do que linhas tele-fônicas. Portanto, a Microsoft procuraria dominar a indústria da Internet por cabo. A @Home foi criada para conquistar a indústria de cabo para o Vale do Silício.

O trabalho importante, do ponto de vista de Clark, era a ideia, e a ideia da @Home pertencia pelo menos tanto a ele mesmo quanto a Doerr. E, no entanto, a firma de

132

Page 127: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

antigo modelo de capital de risco, que relegava a empreendedores como Clark um papel secundário em qualquer empresa que eles não tivessem criado explicitamente. Recusou-se a pagar a Clark de acordo com sua nova cotação de artista conceituai. Clark respondeu dizendo a Doerr que pretendia levar suas ideias a outros lugares.

Agora ele tinha uma: o Diamante Mágico. Outra vez ele punha seu nome em uma ideia e corria pelo túnel longo e escuro. Algumas semanas depois de ter encontrado Kramlich na reunião da Netscape, Clark dirigiu até Sand Hill Road e fez uma visita à NEA, a firma de capital de risco de Kramlich. Kramlich finalmente parecia entender que o mundo mudara, e que o engenheiro com a grande ideia era o soberano natural. Era um ponto importante a favor de Kramlich. Ele juntou seus sócios em uma sala de reunião. Clark desenhou o Diamante Mágico com a Healthscape no centro da única indústria de 1,5 trilhão de dólares dos Estados Unidos, o maior mercado do mundo, e anunciou que ia “consertar o sistema de saúde americano”. Evidentemente, ninguém que realmente compreendesse o sistema de saúde americano ousaria fazer uma afirmação tão grandiloquente. E, evi-dentemente, Clark sabia que não o compreendia — e também sabia, ou pelo menos pressentia, que sua falta de compreensão era uma vantagem psicológica. Ninguém que compreendesse o sistema de saúde americano se daria ao trabalho de tentar consertá-lo.

Kramlich e seus sócios responderam como Clark esperava. Queriam tomar parte na ação. Pediram que ele voltasse e falasse mais. Logo. A incapacidade de participar da Netscape já tinha custado a Kramlich meio bilhão de dólares. O erro fora em parte atribuído a Alex Slusky, o

133

Page 128: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

forçado a sair da NEA pouco depois de a Netscape ter aberto o capital. (“Eles ‘demitiram’ Alex porque ele não conseguiu fisgar Jim”, diz outro ex-funcionário da NEA.

“Demitiram neste caso quer dizer apenas que tornaram a vida de Alex tão insuportável que ele foi embora”)

Para lidar com Clark dessa vez, Kramlich arregimentou dois sócios seniores, que vou chamar de Phil e Bill. Phil e Bill eram os especialistas em saúde da NEA.

Eram também em grande medida o que Clark mais odiava nos capitalistas de risco. Ambos eram “profissionais” acanhados que sabiam o que trajar nas reuniões com engenheiros e o que trajar nas reuniões com financistas de Wall Street e que nunca diziam nessas reuniões nada que surpreendesse quem quer que fosse. Eram pessoas convencionais que acreditavam que eram as convenções que moviam o mundo, como, claro, normalmente movem. Seja como for, eles não acreditavam realmente na hipótese da mudança, de modo que não traziam para o trabalho a paixão dos revolucionários. Como um de seus colegas na NEA explica: “Phil e Bill não tinham nenhuma disposição de trabalhar de noite nem nos fins de semana, de escrever um plano de negócio, de se dedicar com afinco à solução de problemas, de passar o tempo com Jim fora do expediente etc.”. Phil e Bill, mais até do que Dick Kramlich, consideravam Clark um personagem perigosamente instável, talvez mesmo louco, que precisava ser “gerenciado”.

Clark percorreu com os olhos a mesa de reunião de Dick Kramlich, cheia de sócios da NEA, e disse que não queria saber de Phil e Bill. Queria Hugh.

Hugh era Hugh Reinhoff, um jovem médico com pouca experiência em negócios que tinha acabado de largar um emprego no Johns Hopkins Hospital e aceitado

134.

Page 129: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

do nisso. Clark com frequência preferia gente jovem e inexperiente a gente mais velha e mais experiente. Mesmo que não soubessem direito o que faziam, os jovens pelo menos não tinham aprendido as coisas erradas. Não tinham perdido a paixão, não tinham se tornado Chatos Financeiros. E assim, em setembro de 1995, por feroz insistência de Clark, Hugh assumiu de onde Alex Slusky tinha parado. Tornou-se o assistente pessoal de Clark na corrida desabalada pelo longo e escuro túnel. “Meu trabalho”, disse Hugh mais tarde, “era não sair do lado de Jim — garantir que a NEA fizesse parte do que quer que Jim criasse.”

De modo improvável, Clark tinha se catapultado para o topo da cadeia alimentar capitalista. Uma vez lá, passou a exigir que as pessoas que haviam passado ali suas carreiras se comportassem de forma mais parecida com ele. Esperava que os capitalistas de risco se unissem a ele e pusessem dinheiro na ideia, deixando que seus engenheiros cuidassem dos detalhes. Até então as empresas financiadas pelos capitalistas de risco do Vale do Silício podiam ser aventuras pelos padrões do comércio americano, mas a aventura era bem planejada. Agora a aventura era imprudente; Clark a improvisava pelo caminho. No fundo de sua alma intuitiva, ele acreditava que “planos de negócio”, “modelos de negócio” e “estruturas de gestão” eram uma perda de tempo. Tempo era a única mercadoria que não se podia perder se você quisesse ganhar 1 bilhão de dólares na Internet. Depois de identificar a nova novidade, tudo o que ele precisava eram engenheiros realmente capazes e apaixonados para persegui-la e fazê-la acontecer. Afinal, a ideia era simples: eliminar a papelada, as filas e a falta de lógica comercial do sistema de saúde americano reunindo todos os

135

Page 130: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

de saúde de 1,5 trilhão de dólares, Clark trabalhava quase em tempo integral como programador de computador. Ele tratava o maior mercado do mundo como um trabalho de meio expediente. Ao acordar de manhã, escrevia o programa do barco; ao deitar de noite, contemplava o teto e pensava nos bugs no programa do barco. Comunicava-se com os capitalistas de risco principalmente por correio eletrônico — o que significa que raramente tinha que vê-los.

Seria possível escrever um capítulo sobre o efeito do correio eletrônico no imaginário das empresas americanas. Em cerca de dezoito meses, transformou-se de exótico em essencial. Os homens de negócios que se sentiam desconfortáveis com computadores mentiam e fingiam usar correio eletrônico. O CEO da Netscape, Jim Barksdale, por exemplo, não operava seu próprio correio: mandava sua secretária digitar as mensagens para ele. Mas todas as pessoas com quem Clark lidava agora estavam à disposição de seus dedos sempre que lhe dava na veneta às três da manhã. Muita coisa lhe dava na veneta.

A maioria das missivas matutinas de Clark traía sua preocupação em encontrar pessoas de quem gostasse para tocar a Healthscape. Queria contratar gente em quem confiasse, em vez das pessoas que os capitalistas de risco recomendavam. Por exemplo, em 24 de outubro de 1995, Clark escreveu a Hugh Reinhoff:

T. j. [o velho amigo engenheiro de Clark, Tom Jermoluk, agora presidente da Silicon Graphics] seria o CEO [da Healthscape| perfeito, mas duvido que ele se interesse, porque, apesar de

136

Page 131: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

Clark não queria que ninguém “suspeitasse disso” porque era uma quebra de contrato. No momento em que a Netscape abriu o capital, ele começou a receber currículos de engenheiros da Silicon Graphics. Clark já tinha recebido cartas dos advogados de Ed McCracken ameaçando processá-lo se ele contratasse engenheiros da Silicon Graphics.

Os principais capitalistas de risco do Vale não aceitaram desde o início todas as suposições de Clark sobre o trabalho e a vida. Mas achavam graça nelas. E tinham uma tendência a deixar que as coisas corressem do jeito de Clark. Ele agora tinha um novo tipo de poder — podia levar suas preciosas ideias aonde quer que quisesse, e se os capitalistas de risco fizessem algo de que não gostasse, era isso o que faria.

Inevitavelmente, os capitalistas de risco acabaram fazendo algo de que ele não gostou. Perto do fim de outubro, Dick Kramlich convidou Mark Perry, vice-presidente do conselho da Silicon Graphics e partidário de Ed McCracken, para ser sócio da nea. Na teoria, isso não dizia respeito a Clark; na prática, Clark agora tinha muito a dizer sobre o que acontecia dentro de qualquer firma de capital de risco que quisesse suas ideias. Em 31 de outu-bro de 1995, Clark disparou uma mensagem destemperada para vários funcionários da nea: “Dick ficou maluco ao convidar Mark Perry para ser sócio da nea. Sua firma caiu um ponto quando fiquei sabendo disso. [Isso] põe em questão a sanidade de Dick [...] Um insulto e tanto aos demais sócios. Desculpem-me por ser tão direto”. Depois de vomitar isso, ele fez uma pequena tentativa de conciliação: “Eu gosto de Mark, mas ele continua sendo vice-presidente do conselho da Silicon Graphics, e isso, somado à função de Dick lá [Kramlich permanecia no

137

Page 132: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

desistiu de ser gentil: “Seja como for, acho que é provável que vocês tenham que ser co-investidores junto com a KP

[Kleiner Perkins], e se eu perceber algum problema de os caras saberem que vou contratar, me afasto da NEA no ato”.

O rompimento nunca foi especialmente difícil para Clark. O correio eletrônico tornou isso mais fácil ainda. Como ele sabia muito bem, a única razão para Hugh ser sua sombra era impedi-lo de acabar nos braços de outro capitalista de risco. O pesadelo de Kramlich era que Clark vagasse rua acima e chegasse a John Doerr, na Kleiner Perkins — que simplesmente por seguir a liderança de Clark já estava sendo tratado como o capitalista de risco do futuro. A rusga de Clark com Doerr tinha dado uma abertura a Kramlich; agora Clark dizia que sua nova irritação com a NEA superava qualquer traço de ressentimento que ainda subsistisse contra Doerr.

Dentro da NEA, a situação ia rapidamente de mal a pior. Um dos sócios da nea, que chamava Clark de “psicopata”, começou a pendurar fotos dele pelas paredes do escritório, com legendas feitas em casa que apresentavam Dick Kramlich como o “pai desventurado” e Clark como o “filho problemático” num melodrama edipiano. Outro sócio queixava-se de que Clark estava arruinando toda a carteira de investimentos da nea ao convencê-los de suas ideias sobre a Internet, ideias que amiúde ele mesmo abandonava.

Metade da empresa estava furiosa porque Kramlich tinha feito um trato com o demônio; a outra metade estava furiosa porque o trato não tinha sido plenamente consumado. E depois que ficou claro que eles podiam perder o controle de Clark para John Doerr, foi uma confusão dos infernos. Kramlich tentou tirar Hugh Reinhoff

138

Page 133: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

O problema é que, soubesse Hugh ou não, Clark agora controlava Hugh. E Clark não gostava que lhe dissessem que teria que lidar com Phil. Ele queria Hugh e, como estava bastante claro, o que Clark queria, Clark conseguia. Ele disparou outra mensagem, agora para Dick Kramlich: “Estou realmente puto com a atitude de Phil. Ele é sócio nessa porra [...] não vou permitir que a NEA tenha uma participação grande no negócio por causa do comportamento infantil dele. Essa firma de vocês está fodida, com bebês como ele como sócios principais”.

Dias depois, Clark convocou uma reunião com a NEA

incluindo John Doerr. Semanas depois ele concordou em dividir o capital em onze partes, ele e Kleiner Perkins ficando com quatro partes cada, e a NEA ficando com apenas duas. Em novembro de 1995, um funcionário da Kleiner chamado David Schnell, escrevendo “em nome da NEA e da Kleiner Perkins”, enviou uma mensagem para Clark “recapitulando nossa discussão sobre seu modelo de negócio”:

Obrigado por reunir a NEA e a KPCB [Kleiner Perkins Caufield Byers, o nome inteiro da firma) para uma troca de ideias. Como a Netscape, acreditamos que [a Healthscape] deve ser construída primeiramente incorporando todos os planos, empregados e empregadores das organizações (por exemplo, corporações, univer-sidades, empresas sem fins lucrativos) que ofereçam serviços necessários e pelos quais pagarão. Estabelecer essa ponte permitirá [à Healthscape] atacar outras oportunidades.

ps: John Doerr está prevendo que você pode se tornar o único empreendedor no planeta a

139

Page 134: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

chefes haviam dito que para ser sócio teria que fazer por merecer. Para os chefes de Schnell, isso queria dizer tornar-se capitão de um dos navios de Jim Clark. Se Schnell saísse com o imprimátur de Clark e voltasse com algumas centenas de milhões de dólares de lucro, seria um dos sócios da Kleiner Perkins. Schnell, que sabia perfeitamente o que significava ser capitão de um dos navios de Jim Clark, recusou educadamente. No fim das contas, não lhe deram escolha, e ele se tornou, relutante, CEO interino da Healthscape.

O tom sicofanta de sua mensagem para Clark sugeria que Schnell, como todos os outros capitalistas de risco, achava que Clark precisava ser “gerenciado”. Ele procurava dar a Clark a impressão de que estava no comando do que poderia se tornar a maior empresa do mundo sem lhe dar o comando efetivo. O resultado é que não demorou muito até que Clark começasse a botar defeitos na Kleiner Perkins — ou pelo menos em David Schnell. Schnell, junto com Hugh Reinhoff da NEA, tentava continuamente enquadrar Clark, oferecendo-lhe vários modelos de negócio e planos de negócio para a Healthscape. No início de dezembro, Clark escreveu a ambos: “O que me incomoda na maneira como essa discussão entre mim e a KP/NEA está evoluindo é que ela é meio abstrata — isto é, estamos confeccionando um modelo de negócio sem a equipe de administração. Talvez seja assim que algumas empresas sejam formadas, mas me interessa mais encontrar gente esperta com entusiasmo para mudar as coisas”.

Clark precisou de apenas seis semanas de muito pouco trabalho para semear a discórdia na empresa de Dick Kramlich. Precisaria de apenas mais algumas para abalar a de John Doerr. Um mês depois da primeira

140

Page 135: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

Clark, para queixar-se do “comportamento de JC aqui”. David Schnell tinha novos temores. O sujeito da firma de capital de risco que trabalhava com Clark, ele resmungava, era sempre quem era demitido. Sua clarividência era maior do que imaginava.

Assim era a relação entre Clark e os capitalistas de risco que se sentavam no topo do capitalismo americano e financiavam as muitas pessoas comprometidas com a busca da nova novidade. Clark era, na melhor das hipóteses, ambivalente em relação aos jovens de terno que tinham frequentado escolas de administração e nunca tinham corrido riscos de verdade em suas vidas. Ele certamente jamais permitiria que as coisas se passassem do jeito deles, a não ser que fosse, por acaso, também o jeito dele próprio. Isso suscita uma pergunta óbvia: por que os capitalistas de risco mais importantes do mundo toleravam Clark? Certamente seria bastante fácil para a Kleiner Perkins ou para a NEA anunciar que iriam financiar outra pessoa para fazer a mesma coisa que Clark. Os capitalistas de risco do Vale roubavam as ideias uns dos outros o tempo todo. Desde o início, Clark pôs muito menos esforço nessa empreitada do que eles — se bem que nem eles sabiam que Clark passava a maior parte do tempo informatizando o barco. (“Eu sabia que lim cuidava disso nas horas vagas”, disse Reinhoff muito depois. “Ele tinha o grande ideal [...] os detalhes ficavam para os outros na empresa. Eu realmente não sabia o que mais ele estava fazendo. Supus que fosse a Netscape que drenasse a maior parte de sua energia”) E mesmo assim ninguém, nem uma única vez, ousou sugerir que Clark não estava pegando no pesado, ou que a empresa estaria melhor sem ele.

Esse era o milagre de Jim Clark: perto do fim de 1995 141

Page 136: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

risco, os banqueiros de investimento, os CEOS eram todos intercambiáveis. Se você pretendia assumir o controle de uma indústria de 1,5 trilhão de dólares, precisava de certa autoridade com a classe dos engenheiros. No outono de 1995 ninguém no Vale tinha uma autoridade com os engenheiros como a de Clark. Essa aura era a razão pela qual todas as mensagens de correio eletrônico enviadas da Kleiner e da NEA para gente que poderia trabalhar para a Healthscape se gabavam logo no início de que o Diamante Mágico era ideia de Jim Clark. No fim de1995, havia um novo tipo de fé na mente dos engenheiros. Eles acreditavam que se Jim Clark dissesse que ia fazer algo de novo, por mais escalafobética que fosse a proposta, ele o faria. E Clark respondia a essa fé concebendo coisas ainda mais escalafobéticas para fazer.

O software necessário para encadear toda a indústria de saúde dos Estados Unidos não era um projeto trivial. A lógica de invasão da Internet determinava que ele tinha que ficar pronto três vezes mais rápido do que deveria. Para desenvolver um software complicado tão depressa, você precisa de engenheiros — mas não apenas engenheiros. Você precisa dos mais brilhantes. No final de 1995, os engenheiros mais brilhantes do Vale do Silício tinham muitas opções de onde passar o tempo. O Vale estava explodindo. Muita gente dizia ter tropeçado em uma grande oportunidade de negócio. Para atrair os engenheiros mais brilhantes alguém precisava convencer as pessoas de que tinha a nova novidade.

Clark achava que havia cerca de três craques em software que podiam levar a cabo o que ele tinha em mente tão depressa. Todos trabalhavam para a Silicon Graphics. Ele os conhecia e todos estavam muito interessados em trabalhar para ele. No fim das contas,

142

Page 137: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

Natal de 1995, a escolha final de Clark chegou à Kleiner Perkins para sua entrevista com David Schnell — que até Schnell sabia ser mera formalidade. No dia de Natal, David Schnell escreveu para Clark: “Passei algumas horas ontem com Pavan. Acho que ele é ótimo, e acredito que quer se juntar a nós”.

143

Page 138: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

8. O grande terremoto cerebral de 9 de agosto de 1995

Como muitos engenheiros de software no Vale do Silício, Pavan Nigam consegue se lembrar de onde estava quando ouviu falar do IPO da Netscape. Ou, ao menos, pode imaginar. Ele estava na índia — disso tem certeza. Não podia estar em Kanpur, a cidade onde nasceu. Kanpur era uma cidade esquálida, infestada de moscas, imersa em morte, assolada por vacas, porcos e galinhas. Quando alguém com padrões ocidentais de higiene saltava do trem em Kanpur, a primeira coisa em que pensava era em subir de volta. Mesmo Pavan agora a considerava repulsiva. Mais importante, Kanpur não recebia jornais americanos. E Pavan se lembra claramente de ler a primeira página do USA Today. Então ele devia estar em Delhi, o que significa que estava em um hotel. Então, em um hotel em Delhi, ele pegou a edição de 10 de agosto de 1995 do USA Today e leu que o preço inicial das ações da Netscape tinha subido de dezoito dólares para um pico de 171 dólares.

No fim de 1995, o estado mental de Pavan não era 144

Page 139: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

uma altura fantástica no Vale do Silício. Acabara de completar dezoito meses supostamente espetaculares na Silicon Graphics, nos quais tinha sido o líder do projeto de engenharia mais glamoroso do Vale: a criação da primeira televisão interativa do mundo. Contratara cinquenta dos engenheiros mais brilhantes jamais reunidos debaixo do mesmo teto. Gastara 300 milhões de dólares reservados por empresas para pesquisa em tecnologia. Seu nome e sua fotografia estavam no jornal; homens de negócios famosos lhe haviam dito que seu trabalho era importante. E tudo o que ele tinha para mostrar era uma caixa preta que devia ficar em cima dos aparelhos de tv das pessoas, mas que estava tão lamentavelmente desconectada do mercado quanto o Computador da Cozinha. Jamais vendeu uma única unidade.

Essa experiência aniquilou grande parte da fé de Pavan na virtuosidade técnica pura, ou o que ele chamava de “religião da tecnologia”. Um grande sucesso técnico tinha se mostrado um grande fracasso comercial. “Era apenas um monte de engenheiros resolvendo problemas”, disse Pavan com desdém.

Seja como for, quando ele partiu para a índia por algumas semanas para fazer um sério autoexame em agosto de 1995, Pavan suspeitava que Jim Clark estava sempre certo, exceto, claro, quando estava errado. E quando Jim Clark estava errado, ele não ficava por perto para sofrer as consequências. A lição que Pavan retirara de sua amarga experiência foi a de observar o que Jim Clark fazia, não o que ele dizia. Antes de pegar o avião, Pavan telefonou para seu corretor de ações e deixou uma ordem para comprar ações da Netscape na abertura do pregão. Lendo o USA Today no hotel em Delhi, calculou que devia ter comprado a cinquenta dólares — o preço das

145

Page 140: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

já tinha ganho na vida” mas mesmo assim o gosto era agridoce. A Netscape alcançara 171 dólares por ação! Ele deixara na mesa 71 dólares por ação!

Com esse e muitos outros pensamentos na cabeça, Pavan retornou à esqualidez de Kanpur. “Lembro-me de ficar sentado na casa de meus pais por duas semanas, com uma porção de vacas passando em volta”, diz. “Lembro-me de que foi bem ali que decidi que qualquer coisa que eu fizesse em seguida, seria na Web.” Pavan já tinha aprendido o bastante sobre o capitalismo americano para saber que, onde o mercado de ações ia, as oportunidades iam atrás. Um segundo depois ele reconsiderou: “Lembro-me de pensar que se eu conseguisse descobrir o que Jim Clark planejava fazer em seguida, era isso o que eu iria fazer”.

O mercado de trabalho no Vale do Silício era uma das muitas alegrias na nova vida de Jim Clark. Tendo chegado à conclusão de que a indústria de saúde, de 1,5 trilhão de dólares, era a nova novidade — e, por ter chegado a essa conclusão, tendo-a transformado na nova novidade —, Clark precisava contratar rapidamente muita gente brilhante. Não havia lugar no planeta onde isso fosse mais fácil. Fazia muito tempo que os engenheiros do Vale do Silício tratavam as empresas para as quais trabalhavam com menos do que a fidelidade costumeira à causa da corporação. Seus chefes, claro, censuravam os que partiam, de modo que havia um debate constante sobre o que era simplesmente o funcionamento normal de um mercado livre, e o que era uma quebra indevida de lealdade. O fluxo constante de engenheiros que saíam da Silicon Graphics e entravam na Netscape logo antes de a

146

Page 141: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

Com a Healthscape, Clark achava que precisava de cérebros mais capazes ainda, e planejava roubá-los da Silicon Graphics — desde que não fosse descoberto. Sua solução para o problema era entrar sorrateiramente, contratar um dos melhores cobras de software e deixar que ele se tornasse o flautista de Hamelin. Se ele contratasse a pessoa certa, os outros implorariam para segui-lo, e Ed McCracken não poderia fazer nada para impedi-los.

O momento da criação era, no modo de pensar de Clark, o momento crítico de qualquer novo empreendimento. Nessa hora era importante não apenas contratar gente inclinada a mudar o mundo, mas evitar os que só queriam mudar de emprego. “Muitos vão aparecer só porque não têm mais nada para fazer”, dizia ele. “Essas pessoas são exatamente as que não interessam. Tenho uma estratégia para lidar com essa gente. Quando eles vêm procurar um emprego, eu lhes digo: ‘Está uma confusão aqui. Ainda não sabemos o que vamos fazer’. Mas, quando encontro alguém que interessa, eu digo: ‘Isto é exatamente o que vamos fazer e vai ser um lance enorme e você vai ficar muito, muito rico?’

No que se referia a talento em engenharia, Clark voltou-se para a Silicon Graphics. Em particular, ele estava de olho nos engenheiros indianos que o ensinaram a programar seu barco e depois construíram a televisão interativa. Clark tinha obsessão pelos indianos. “Os párias indianos do Vale do Silício”, ele costumava chamá-los; ou “minhas hordas indianas”, em momentos menos sóbrios. Ele achava que os indianos que lhe ensinaram o ferramental de que ele precisava para programar seu veleiro estavam entre as cabeças técnicas mais aguçadas que ele já tinha encontrado. “Como grupo compacto”,

147

Page 142: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

e gente como ele, mais valorizava. Evidentemente, não foi para isso que foi concebido originalmente. O sistema educacional indiano foi concebido por Nehru como uma reação à experiência colonial britânica. Nehru acreditava que a índia tinha maior chance de permanecer um país independente se conseguisse se tornar tecnologicamente equivalente a seus antigos senhores. Com este fim, criou um mecanismo implacavelmente eficiente para encontrar e explorar o talento técnico indiano. Chamava-se Instituto Indiano de Tecnologia. Os IITS foram criados no início dos anos 60 com recursos estrangeiros. Os dois primeiros, em Kharagpur e Madras, foram financiados pela Alemanha; o terceiro, em Bombaim, pela ex-URSS; o quarto, em Kanpur, pelos Estados Unidos; o quinto, em Delhi, pelo Reino Unido.

Os IITS se tornaram o funil pelo qual os jovens indianos mais bem-sucedidos em uma prova nacional padrão passavam rumo ao esforço de Nehru para alcançar os países desenvolvidos. A força de sua atração era espetacular. Era como se uma nação de 900 milhões de pessoas estivesse determinada a encontrar as poucas dentre elas realmente capazes de programar um compu-tador e não deixasse coisa alguma por conta do acaso. Na época em que o regime de Nehru acabou de estruturar a sociedade indiana, todos os pais do país queriam que seus filhos se tornassem médicos ou engenheiros. No início dos anos 70, centenas de milhares de indianos de dezessete anos se submetiam aos dois dias de exames de engenharia que havia todo ano. Algumas semanas depois do exame, os resultados eram publicados nos jornais. Os 2 mil estudantes com as melhores notas eram admitidos nos IITS e tinham seus nomes publicados nos jornais. Imagine a emoção de ser admitido em Harvard. Multiplique várias

148

Page 143: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

resto de sua vida estava garantido”, diz Pavan Nigam. “Se você não conseguisse entrar num IIT, não havia garantia de nada. Quero dizer nada mesmo!’

Mas o exame era apenas o começo da busca da índia por sua própria aptidão técnica. Os 2 mil estudantes que passavam na prova eram classificados por nota. Começando pelo primeiro lugar, eles escolhiam as escolas e departamentos nos quais queriam entrar. Essas escolas e departamentos tinham sua própria hierarquia informal. Por exemplo, no início dos anos 80, o lugar mais concorrido para se estudar na índia era o departamento de ciência da computação no IIT de Kanpur — a escola financiada pelos Estados Unidos. O departamento de ciência da computação de Kanpur tinha apenas cinquenta vagas. Quando chegava a vez de o aluno que tinha tirado o centésimo lugar na prova fazer sua escolha, as vagas já tinham sido ocupadas pelos que tinham se saído melhor no exame. Dos 150 mil alunos indianos de curso secundário que fizeram o exame nacional em 1975, Pavan Nigam ficou em 91-. Ele ficou com uma das últimas vagas em ciência da computação de Kanpur.

Na época ele não poderia saber, mas seu sucesso o colocou em uma rota de colisão com Jim Clark. Um sistema projetado para produzir engenheiros para uma economia do Terceiro Mundo logo seria usado com a maior eficácia na busca da nova novidade. Os talentos que o governo tinha se esforçado tanto para encontrar e cultivar acabaram se transformando em alguns dos mais disputados funcionários da iniciativa privada do planeta. Todos esses brilhantes jovens falavam inglês. Eles podiam facilmente fazer as malas e ir para os Estados Unidos, que estava pagando o preço mais alto por seu talento. E, em quantidades maciças, foi isso mesmo o que fizeram. Os

149

Page 144: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

governo dos Estados Unidos para trabalhadores de alta tecnologia foi para indianos. No início de 1999, uma socióloga de Berkeley chamada AnnaLee Saxenian descobriu que quase metade de todas as empresas do Vale do Silício fora fundada por empreendedores indianos. Definitivamente, o aroma dos start-ups do Vale do Silício era o de curry.

Um dia, quando Jim Clark terminou de escrever o programa de seu barco, pegou o telefone, ligou para Pavan Nigam e lhe contou sua ideia de como torná-lo rico. Quando Pavan pediu o plano do negócio, Clark simplesmente revelou o Diamante Mágico com a Healthscape no centro. Pavan ficou muito animado a princípio; depois ficou muito nervoso. Engenheiros de software caçavam em grupo: ele não podia fazer um projeto grande daquele jeito sozinho. Onde encontraria os engenheiros de que precisava para ajudá-lo? Pavan dizia com frequência que “a diferença entre o grande programador e o programador apenas bom é enorme. Um grande programador vale dez vezes o que vale um programador apenas bom”. Software não era como hardware; software era semelhante a arte. Clark estava jogando em cima dele um projeto que requeria os melhores entre todos os artistas, Era verdade que uma porção dessas pessoas trabalhava com ele na Silicon Graphics. Como Clark, entretanto, Pavan sabia que os advogados de Ed McCracken não tolerariam um ataque sistemático à equipe. E se ele não pudesse ir buscar mão-de-obra na Silicon Graphics, onde conseguiria os brilhantes engenheiros necessários para o sucesso?

“Você não vai precisar ir buscar”, disse Clark. “Eles 150

Page 145: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

total. Afinal, ele era naquele momento um sujeito muito importante na Silicon Graphics, e a Silicon Graphics era uma corporação muito bem estabelecida. Era um grande risco para ele saltar de lá para tocar um start-up. Seu conhecimento do sistema de saúde americano era exatamente nenhum. Nunca tinha entrado em um hospital americano ou se consultado com um médico americano. Nem sequer tinha certeza do que seu seguro de saúde cobria.

Pavan ligou de volta para Clark. “Pensei no assunto, e não acho que eles vão me acompanhar”, disse. Clark disse: “Pavan, confie em mim nesse assunto”.

Mas como poderia Pavan confiar em quem quer que fosse para uma decisão dessa importância? Clark já era bilionário. A ITV tinha mostrado a habilidade de Clark para levar Pavan e uma porção de gente a um beco sem saída, dando de cara com um muro de pedra. E se Clark mudasse de ideia de novo? E se Pavan saísse da Silicon Graphics e anunciasse que planejava “consertar o sistema de saúde americano”, e ninguém aparecesse para ajudá-lo? Ele seria o imigrante indiano de 36 anos que tinha construído uma caixa preta que ninguém comprara, que ficaria sentado sozinho num escritório enquanto todos que ele conhecia estariam rindo pelas suas costas — esse era o seu futuro. Consertar o sistema de saúde americano. Claro.

Pavan sabia que era possivelmente ilegal e certamente imoral de sua parte recrutar gente da Silicon Graphics. Mas ele com certeza podia escolher alguém e. .. bater um papo. Havia uma pessoa acima das outras que aliviaria consideravelmente a ansiedade de Pavan: Kittu Kolluri. Kittu era ao mesmo tempo o engenheiro mais

151

Page 146: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

Por alguns anos, Kittu Kolluri fora o alvo principal dos estranhos telefonemas de Jim Clark. Clark o chamava de KI-TU, quando a pronúncia correta era KIT-TU. Não importa. Sempre que Clark estava flutuando ao largo da costa do Taiti ou de Bornéu e precisava de ajuda com o programa de computador que estava escrevendo para o iate, ele recorria a Kittu. Kittu não conseguia entender por que o chairman de uma grande corporação americana haveria de passar seu tempo escrevendo programas de computador. Entendia muito bem, entretanto, por que alguém que estivesse escrevendo um programa lhe telefonaria em busca de ajuda.

Kittu era outro bom exemplo da capacidade da sociedade indiana de se auto vasculhar, encontrar o talento técnico e catapultá-lo em direção a gente como Clark, que sabia como usá-lo. “Há alguns momentos precisos na minha vida”, diz Kittu, “em que me dou conta de que as coisas mudaram e me tornei um engenheiro.” O primeiro desses momentos foi quando sua prima de Bombaim foi visitar sua família em Hyderabad num verão. Kittu estava na sexta série, e sua prima era uma bela jovem. “Ela descreveu o sujeito por quem estava apaixonada”, recorda Kittu.

Ela estava completamente apaixonada por ele porque ele era muito inteligente. Ela dizia que amava o cérebro dele. Ele tinha frequentado o Instituto Indiano de Tecnologia. Foi a primeira vez que ouvi falar no iit. Ela falou comigo a respeito dele por duas horas seguidas! Fiquei encantado. Totalmente. Quero dizer, o que ela descrevia era um típico geek. Disse que ele usava óculos de fundo de garrafa, e coisas do tipo. Ele 152

Page 147: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

No ano seguinte, quando Kittu estava na sétima série, uma noite ele teve uma briga com o pai — o motivo ele não lembra. Retirou-se para um canto da casa e se encolheu para dormir. “Então meu pai aparece todo simpático. Sorri. E eu digo: ‘Que porra é essa?’. Uma hora antes ele estava se comportando como um babaca! E ele diz: ‘Swaroop -— é assim que me chamavam na época —, o diretor da escola acaba de ligar e disse que querem que você tire uma foto para o jornal!’.” Na prova geral ministrada aos alunos da sétima série, Kittu tinha tirado o primeiro lugar de sua região. Sua região continha 80 milhões de pessoas. “Foi um desses momentos”, diz Kittu, “em que você diz: ‘Uau! Eu sabia que era bom. Mas não sabia que era tão bom assim’. Depois disso, virou uma completa obsessão para mim. Eu tinha que ir para um IIT.

Meu pai entrava no meu quarto às três da manhã e eu estava estudando! Ele dizia: ‘Swaroop, você tem que ir dormir’.”

Kittu, como Pavan, foi embora da índia assim que se formou no iit. Depois dos dois anos obrigatórios de pós-graduação em alguma faculdade americana, que OS indianos consideram um posto de pesagem no caminho do Vale do Silício, Kittu conseguiu o emprego na Silicon Graphics. Não muito depois, encontrou Clark. E não muito depois disso, tornou-se uma espécie de observador profissional da busca de Clark pela nova novidade. A mente de Jim Clark era o hobby de Kittu; Kittu achava fascinante que uma pessoa cuja mente era tão técnica pudesse ficar tão feliz de se atirar cegamente em direção a uma montanha de dinheiro. “Jim Clark tem uma clareza de visão que é instigada pela mais pura forma de ganância”, diz Kittu. Nada a obscurece.

Como os outros jovens programadores do 153

Page 148: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

na empresa. “Eu sabia que estava cometendo um erro quando não me juntei a Jim na Netscape”, diz. “Jim já tinha dito ‘eu te avisei’ muitas vezes. Supus que ele fosse dizer ‘eu te avisei’ de novo. Mas não imaginei que ele fosse dizer ‘eu te avisei’ tão alto.” Kittu esperava nunca mais cometer um erro financeiro tão grande quanto o de não ter entrado para a Netscape. Em dezembro de1995ele continuava sendo um funcionário da Silicon Graphics ganhando um salário de 89 mil dólares por ano. Se tivesse seguido Clark para a Netscape, teria ganho 20 milhões de dólares.

Como Pavan Nigam — como quase todos os engenheiros do Vale do Silício —, Kittu via uma certa injustiça nisso. Ele considerava os engenheiros da Netscape um pouco de segundo time. Com certeza, os melhores e mais brilhantes não tinham saído da Silicon Graphics para juntar-se a Clark. “Tecnicamente, o browser da Netscape não chegava a ser uma proeza”, diz Kittu. Não estava no mesmo nível do que aquilo que ele, Pavan e outros tinham conseguido em Orlando. Kittu podia desfiar todas as tecnologias reunidas para criar a primeira televisão interativa do mundo: gráficos 3D, gráficos 2D, ATM, frequência modulada, IMP1, impeg.2, comutação, infravermelho, uma tempestade de termos desconcertantes que deixam o leigo com a clara opinião de que é melhor não saber mais do que o necessário. “Ficamos completamente absorvidos pela tecnologia”, diz Kittu. “Todos pensamos: ‘Puxa, esta tecnologia é bacana. Deve valer muito para alguém’.”

Isso disfarça uma verdade dolorosa: o propósito daquela tecnologia era ganhar dinheiro. O propósito mais elevado da televisão interativa era facilitar a letargia do sujeito no sofá com uma cerveja numa mão e um controle

154

Page 149: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

técnico, um desafio tão grande quanto levar o homem à Lua”, diz Kittu, “e no final das contas não passou de um grande exercício acadêmico. Uma puta perda de tempo”.

A Netscape, por outro lado, claramente não foi perda de tempo. “O truque da Netscape foram os mercados”, diz Kittu, “estar no lugar certo na hora certa. E tudo isso foi por causa de fim Clark. Se Jim Clark não estivesse lá, Marc Andreessen e seus amigos ainda estariam trabalhando em suas teses de Ph. D. na Universidade de Illinois.” Graças a Jim Clark, o segundo time ficou rico enquanto o primeiro continuou sendo de classe média, pelo menos na visão de Kittu. Alguns engenheiros, especialmente os mais velhos, preferiram atribuir isso ao fato de que os engenheiros que criavam novas empresas tinham um “perfil de risco” diferente. A implicação era que profissionais realmente brilhantes como Pavan e Kittu não tinham o gosto pelo risco necessário para saltar em uma das fantasias de Jim Clark.

Só que agora tinham.Clark sabia o que fazia quando começou a procurar

indianos. Não era só porque metade do trabalho já tinha sido feito pelo governo indiano. Não era só porque, comparados à peneira por que Pavan e Kittu tinham passado, os critérios de admissão de Harvard eram benevolentes e misericordiosos. Era porque qualquer um com miolos para entrar em um IIT e com a energia necessária para entrar nos Estados Unidos era capaz de toda sorte de milagres. Os engenheiros indianos tinham o instinto assassino que Clark amava. Eram capazes de uma competição feroz e desenfreada. Pavan e Kittu ficaram dentro do 1% mais bem-sucedido em uma prova prestada por brilhantes jovens indianos, os quais já constituíam, provavelmente, o 1% com a maior capacidade cerebral no

155

Page 150: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

Para Kittu, a ideia de que ele era esperto demais para correr riscos era “uma idiotice completa”. Em primeiro lugar, quanto risco havia em se trabalhar para um start-up do Vale do Silício? A pior coisa que podia acontecer era o start-up fracassar e você voltar para seu ex-emprego de 80 mil dólares por ano. A Silicon Graphics ou outra grande empresa o contrataria de volta no instante em que se apresentasse. Em segundo lugar, sua vida não tinha sido nada além de risco: o risco de crescer em um buraco nojento no Terceiro Mundo, de não entrar em uma escola decente que 0 catapultasse para fora do buraco nojento, de não achar trabalho nos Estados Unidos, de que a ITV, O

projeto de engenharia mais famoso do Vale do Silício, fracassasse. Até então, na avaliação de Kittu, ele tinha passado a vida em uma corda bamba sem rede de segurança. Assistir ao segundo time da ciência da computação fazendo uma algazarra depois do lançamento de ações da Netscape o enfurecia. “Vou lhe dizer o que fiquei sabendo no dia em que a Netscape abriu seu capital”, diz ele. “Soube duas coisas. Que minha próxima empresa seria um start-up. E que qualquer coisa menor do que a Netscape era inaceitável.”

Naquele dia, em dezembro de 1995, depois que Jim Clark lhe mostrou o Diamante Mágico com a Healthscape no centro, Pavan voltou para seu trabalho na Silicon Graphics. Convidou Kittu para dar uma volta com ele. Os dois homens passaram várias horas andando pelos gramados bem aparados de Shoreline Boulevard, ao longo dos braços pantanosos da baía, onde era menos provável que fossem vistos. Pavan contou a Kittu sobre o Diamante Mágico. Kittu teve apenas um pensamento claro a res-peito: “Não há jeito no mundo de eu deixar essa passar”.

Evidentemente, Pavan não deveria falar nada com 156

Page 151: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

Jermoluk (T. J.), o CEO da Silicon Graphics, tinha ido lhe pedir sua promessa de que não ia roubar nenhum empregado da Silicon Graphics. O próprio T. J. decidira não embarcar na nova aventura de Clark. E assim, a rigor, Pavan não podia contratar Kittu sem quebrar sua promessa. Mas não havia nada além do medo dos advogados de Ed McCracken que impedisse Clark de ligar para Kittu em nome de Pavan, só para pôr as coisas em andamento. E foi isso que Clark fez. E assim, uma vez mais, Kittu se viu, surpreendentemente, recebendo um telefonema de Jim Clark. Clark pediu que Kittu passasse em sua casa logo que possível.

Kittu passou no dia seguinte. Já tinha tomado sua decisão, no instante em que Pavan lhe contara do Diamante Mágico. De sua parte, tudo o que faltava era negociar as opções de compra de ações que ele receberia. Ademais, ele estava animado com o convite para visitar Clark em sua casa. “Mas, sabe uma coisa”, disse, “eu não estava nada nervoso. Eu poderia ir trabalhar em qualquer lugar. O fato de Jim Clark me querer bastava. Não há jeito de você não acompanhar Jim Clark.” Como Pavan, Kittu tinha absorvido a lição essencial da televisão interativa: fazer o que Clark fazia, não o que ele dizia para fazer. Kittu passou pela entrada pavimentada de seixos e contemplou a grande casa, que tinha um morro artificial no fundo e caixas de papelão no quarto de hóspedes com uma velha tuba ao lado. Havia cerca de seis reluzentes carros esportivos na entrada; a casa poderia ser con-fundida com uma loja de automóveis. Clark saiu da casa calmamente para saudá-lo. Estava daquele seu jeito relaxado.

Clark gostava de dizer que “não há nada que deixe a gente mais interessada em dinheiro do que ter um pouco

157

Page 152: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

acabado de atingir o ponto em que associava a palavra dólares não a milhões mas a bilhões. Ele queria ajudar Kittu a superar seu velho hábito de pensar em “milhares” e adquirir um novo de pensar em “milhões”. Logo contou a Kittu sua parábola predileta sobre oportunidades perdidas. Ele comprara a casa com entrada de seixos logo depois de a Silicon Graphics ter aberto o capital, em 1986. Para pagar pela casa, ele vendera 1 milhão de ações da Silicon Graphics por três dólares cada. As ações agora valiam trinta dólares cada. “Está vendo essa casa?”, Clark perguntou a Kittu, fazendo o cálculo óbvio, “é minha casa de 30 milhões de dólares.”

Kittu não perdeu o ritmo. Virou-se e apontou para seu Toyota empoeirado e disse: “Jim, está vendo aquele carro? Vendi 2 mil ações da Silicon Graphics a dez dólares cada para comprar aquele carro. Então aquele é o meu Toyota Camry de 60 mil dólares!’.

Naquele dia Kittu retornou à SGI para pedir demissão. Ele estava disposto a ficar algumas semanas para ajudar os gerentes a suavizar a transição. Mas os gerentes já estavam em um estado avançado de paranoia: as pessoas tinham ouvido dizer que Clark tinha um novo start-up e que tinha falado a respeito dele com Pavan. O gerente de Kittu o acusou de conspirar para roubar outros engenheiros. “E então”, recorda Kittu, “eu simplesmente disse: ‘Vá à merda, eu vou embora’.”

Pavan Nigam se demitiu da Silicon Graphics na tarde de uma sexta-feira, em fevereiro de 1996. Não tinha ideia de quem poderia vir com ele, exceto Kittu. Ele ainda suspeitava de que ninguém viria, e que ele se tornaria motivo de chacota em todo o Vale do Silício. Até onde ele

158

Page 153: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

Quando chegou em casa naquela noite, descobriu que várias dúzias de pessoas tinham enviado seus currículos para seu aparelho de fax. No sábado de manhã seu telefone começou a tocar. Nunca mais parou. Os primeiros a telefonar foram engenheiros que Pavan conhecia da Silicon Graphics. Dentro de algumas horas, quem ligava eram completos estranhos, que trabalhavam para empresas das quais Pavan nunca tinha ouvido falar. Pelo fim da tarde, as ligações vinham a rodo: no momento em que Pavan terminava uma conversa, o telefone tocava e começava tudo de novo. Todos os que ligavam queriam a mesma coisa: um emprego na nova empresa de Pavan.

Logo ficou claro para Pavan que estava em um mercado com excesso de oferta no que se referia a talento em engenharia. Ele só precisava de cerca de uma dúzia de pessoas extraordinariamente talentosas para tirar a empresa do chão. Quando percebeu quantas pessoas queriam trabalhar para ele, seus modos se tornaram nitidamente ríspidos. Quando atendia o telefone, nem se dava ao trabalho de dizer alô. Dizia: “Por que você me ligou? O que você pode fazer por mim?”. No domingo de manhã, os engenheiros que não conseguiram alcançá-lo pelo telefone começaram a aparecer na porta de sua casa. Na segunda de manhã, mais de trezentos engenheiros tinham enviado seus currículos para o fax de sua casa, e um sem-número de outros tinha telefonado, candidatando-se a um emprego na Healthscape. E ne-nhum deles tinha a menor ideia do que era a Healthscape.

Desse grupo inicial de trezentos — um grupo muito maior precipitou-se sobre seus portões mais tarde —, Pavan escolheu seus engenheiros favoritos na Silicon Graphics. Depois de Kittu, selecionou Shankar. Depois de Shankar, selecionou Motasim. Depois de Motasim, Flavio.

159

Page 154: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

Dois eram italianos, um era chinês e os outros na maioria eram indianos.

Pavan, Kittu e os outros se reuniram em 19 de fevereiro de1996 num escritório minúsculo no centro de Paio Alto. Foi cerca de um ano depois que Hillary Clinton finalmente abandonou suas esperanças de reformar a indústria de saúde americana a partir da Casa Branca. Seis indianos, dois italianos, um japonês e um belga iam fazê-lo a partir do Norte da Califórnia. Evidentemente, nenhum deles tinha a menor pista do que se esperava que fizessem. “Era tudo muito, muito confuso”, diz Motasim Najeeb. “Não tínhamos uma única linha de código. Não tínhamos nada, mesmo. HMO. PPO. Todos esses nomes!” “Eu pedi um plano do negócio”, recorda Shankar Srinivasan. “E não havia nenhum! A ideia geral de Pavan era simplesmente conseguir um monte de gente inteligente e jogá-lo no problema, que algo bom sairia.” Como diz Kittu: “Ninguém sabia porra nenhuma de tratamento médico”. A ideia claramente lhe agradava.

Em 19 de fevereiro de 1996, dez jovens engenheiros se apresentaram para trabalhar; em 20 de fevereiro voaram para Boston para uma reunião com a Blue Cross/Blue Shield. A maioria deles nunca tinha ouvido falar da Blue Cross/Blue Shield. Eis como Shankar Srinivasan recorda seu primeiro contato com um pequeno apêndice da indústria de saúde americana: “No primeiro dia eles iam nos contar o que faziam e do que precisavam. No segundo dia, nós lhes diríamos o que íamos construir. Entre o primeiro e o segundo dia tínhamos que descobrir o que deveríamos construir. Ficamos acordados a noite inteira lendo tudo o que podíamos sobre a área de saúde. Nós nos perguntávamos:

160

Page 155: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

uma bendita ignorância da magnitude do que pretendiam. Tinham ainda outra coisa: a fé de que podiam impingir a tecnologia a outros. Em suma, comportavam-se como as pessoas sempre se comportam quando estão na ponta do capitalismo, com a convicção de que podiam remodelar o mundo à sua imagem. Trabalharam como loucos — muitos deles mandaram suas famílias de volta à índia. Uma manhã, Clark apareceu de motocicleta para dar uma olhada. Viu Panos, um engenheiro grego, enfiado atrás de seu computador. Disse: “Chegou cedo”. Panos olhou para cima e disse: “Não saí daqui”, e voltou ao trabalho, “A pai-xão, a chama estava lá”, diz Kittu. “Havia a impressão de que estávamos a ponto de mudar o mundo. E todos sabíamos agora que é assim que se ganha dinheiro, mudando o mundo,?

Aquela era uma Investida alegre, impelida pela vontade de Clark, por seu dinheiro e por suas expectativas. Qualquer esperança que Pavan nutrisse de que lhe seria permitido fracassar discretamente foi logo dissipada por uma ação pelas costas de Clark com os jornalistas que cobriam o Vale do Silício. Apesar de Pavan saber que Clark passava uma parte surpreendente de seu tempo falando ao telefone com jornalistas de negócios, ele achava que tivessem combinado que, pelos primeiros seis meses, até que tivessem o que mostrar às pessoas, não falariam com a imprensa. Alguns dias depois dessa conversa, Pavan estava na empresa quando se sentou na privada e passou os olhos por uma edição do Wall Street Journal ou do USA Today ou de algum outro jornal e achou um artigo curto que começava assim: “Jim Clark, fundador da Silicon Graphics e da Netscape, anunciou hoje que planeja refazer a indústria de saúde americana

A verdade, mais interessante, é que dez engenheiros 161

Page 156: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

que concordara em ser CEO só porque queria virar sócio da Kleiner Perkins, e de um homem mais velho que estava interessado principalmente em escrever programas para informatizar um iate. E os engenheiros na maioria nem sequer eram cidadãos dos Estados Unidos.

Stuart Liroff era um americano baixo e barbado, de gestos amplos e diretos. Stuart era aberto, relaxado, amistoso, expansivo — e ansioso para se tornar parte da nova novidade. Entrou para a Silicon Graphics em 1990, e começou a construir a televisão interativa em abril de 1995, depois dos testes em Orlando, mas antes de a tecnologia ser revelada no Japão. Diversas vezes, Pavan indicou a Stuart que considerava que ele estava um ponto acima da média de sua equipe. Como muita gente, Stuart tinha se convencido das virtudes de ser empreendedor pelo IPO da Netscape. “Aquele foi o momento mais importante de todas as nossas vidas — Ah, merda, por que não fiz aquilo?”, diz ele. “Foi a mesma coisa com todos nós.” E então, quando Stuart percebeu certas mudanças em Pavan, perguntou-lhe se tinha planos de sair da Silicon Graphics e começar uma nova empresa. Pavan ficou agitado e disse a Stuart: “Eu não posso te abordar para falar disso, mas nada te impede de me ligar. Está entendendo o que digo?”. Stuart disse que entendia. E entendeu. No dia em que Pavan anunciou sua demissão, Stuart mandou um fax para a casa de Pavan. Ficou empilhado juntamente com os outros trezentos fax que Pavan não leu.

Alguns dias depois, Stuart ligou para Pavan e pediu para conversar. Pavan lhe disse que esperasse duas semanas e ligasse de novo. Stuart esperou duas semanas

162

Page 157: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

“Deixei um recado atrás do outro. Aí comecei a ficar puto. Finalmente disse: ‘Vou até lá’.”

Stuart descobriu que Pavan tinha alugado escritórios no centro de Paio Alto e dirigiu-se para lá. “Eu entro. E tem essa gente toda que eu conheço. Motasim está lá! Kittu está lá! E Shankar!” Dez engenheiros, aglomerados em vinte metros quadrados, trabalhavam diligentemente em algum misterioso novo projeto. “Vejo Pavan e ele me diz que nem viu minha carta, que tinha recebido tantas cartas.” Quando Stuart perguntou que diabo Pavan estava fazendo, Pavan desenhou o Diamante Mágico. Todos os engenheiros adoravam o Diamante Mágico, que, de acordo com a lembrança de Stuart, era “uma imagem de Jim Clark no centro de 15% da economia americana”. Era como uma das imagens nas cavernas de Altamira: bastava pintar a presa para o caçador ter certeza de que ia conseguir abatê-la. Os engenheiros estavam enfeitiçando sua presa.

De qualquer maneira, quando pegou o espírito, Stuart ficou ainda mais ansioso por se tornar parte da nova empresa. Pediu que Pavan o contratasse. “E Pavan diz: ‘quero saber o que você vai fazer para mim’.” E nesse ponto Stuart fez o joão-sem-braço: Pavan, sou eu, Stuart. “No fim das contas, acabei inventando alguma coisa.” Stuart sabia que Pavan era o engenheiro predileto dos engenheiros. As pessoas mais bem-dotadas queriam trabalhar com Pavan porque ele não perdia tempo com detalhes. “Ele se concentra em conceber o projeto do produto”, ressalta Stuart. “Ele diz ‘Danem-se os detalhes... por enquanto’. E uma atitude agressiva mas não é burra.” Stuart percebeu que Pavan não estava pensando em como testar o produto, em como documentar o trabalho. “Ele supunha que alguém ia cuidar disso. Eu disse que eu era esse alguém. E ele disse que

163

Page 158: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

o assunto. “Então, dois dias depois”, recorda Stuart, “eu dirigi até lá de novo e armei uma emboscada para Pavan. Fomos até uma cafeteria e em alguns minutos decidimos meu salário e minha opção de compra de ações. Foi assim que consegui meu emprego na Healthscape.”

Não foi assim tão simples. Pavan explicou que os costumeiros padrões americanos de comprometimento não se aplicavam mais. Trabalhar para a Healthscape significava mais ou menos abandonar sua vida particular. Stuart aceitou o emprego assim mesmo. Como me escreveu mais tarde:

O potencial para ganhar muito dinheiro sempre esteve lá, implicitamente. Mas quando Pavan e Jim negociaram minha remuneração, a única articulação explícita foi um corte no salário de 35%. O resto era dinheiro incerto, na forma de opção de compra de ações, e eu não tinha absolutamente nenhuma referência em que basear o valor dessa opção. Então minha mulher e eu tomamos a decisão de eu sair da sgi e entrar para a Healthscape baseados na minha crença de que P, J e kp [Pavan Nigam, Jim Clark e Kleiner Perkins] iam fazer algo grande e que eu seria apenas uma parte disso. Ela me perguntou quanto eu poderia ganhar e eu me lembro de ter dito algo a respeito de “nunca mais ter que trabalhar”. Lembro-me de ter dito a alguém, explicando a lógica de eu ter saído da SGl:

“Nunca na vida eu vou encontrar todas essas estrelas alinhadas ao mesmo tempo: P [Pavan], J [Clark], KP [Kleiner Perkins], o diamante com o H no meio”.164

Page 159: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

horas que a noção de “trabalho” e de “casa” era absurda. A vida era o trabalho — ou ao menos estar no escritório. “Pavan, na sua inimitável sabedoria, pegou uma data no ar e disse: ‘Podemos entregar o produto em Ia de outubro de 1996’. E ninguém tinha nenhuma pista do que era esse produto. Tudo o que sabíamos é que tinha que ser um software realmente enorme — de modo que parecesse adequado no meio do enorme diamante.”

A despeito da óbvia tensão que vinha com essa nova situação, Stuart estava encantado. “Eram três da manhã”, recorda-se. “Estou ali bebendo café expresso, ouvindo música, fazendo umas anotações sobre o programa e... eu nunca conseguiria explicar isto a ninguém... nem a minha mulher... eu estava tão feliz. Ria sozinho.” Era assim que eles se sentiam nos primeiros nove meses, enquanto corriam para terminar seu primeiro programa para a B lue Cross/Blue Shield. Sentiam que estavam fazendo algo im-portante. Blue Cross/Blue Shield era apenas o primeiro alvo; logo eles estariam no meio do Diamante Mágico. Outros engenheiros imploravam para se juntar a eles! Jornalistas vinham de longe para entrevistá-los! Jim Clark entrou de motocicleta no saguão. Em pouco tempo, a revista Forbes se preparava para publicar o primeiro artigo sobre a empresa — antes mesmo de a Healthscape ser uma empresa.

Foi aí que os engenheiros souberam que algum esperto, nos calcanhares da Netscape, tinha comprado os direitos de todo tipo de nomes terminando com “scape”, incluindo “Healthscape”, e queria uma fortuna em troca de seu uso. Os engenheiros já tinham seu logo, um grande símbolo com a palavra “Health” (saúde) no meio. Então se

165

Page 160: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

Em suma, o pequeno ato de descaramento de Clark fez com que uma violenta onda de talento e dinheiro se levantasse em sua direção, uma onda tal que, dentro de poucas semanas, muita gente séria começou a dizer coisas como: “A área de saúde é o maior mercado de todos, mas Jim Clark já a controla”. A essa altura, Clark tinha plena consciência de que bastava que ele anunciasse para uns poucos jornalistas que pretendia inserir-se no centro da maior indústria do mundo para que todo tipo de gente séria se atirasse no túnel longo e escuro.

É aí que seu trabalho acabava, no entender de Clark. Depois de desenhar seu pequeno diagrama do maior mercado do mundo, com ele mesmo no centro, estava tudo resolvido. Outras pessoas podiam cuidar dos confusos detalhes de como transformar a Healtheon em uma corporação gigantesca. Era isso que ele sempre dizia depois de vomitar a nova novidade, e ela se tornava, simplesmente, a novidade. Não estava tudo resolvido, entretanto. Uma regra rígida na vida de Jim Clark era que devia perseguir a nova novidade sempre. Três empresas multibilionárias não eram suficientes para uma vida. Uma vez, quando lhe perguntei como ele pretendia transformar sua fortuna em lazer, disse: “Você tem que pensar em alguma coisa que esteja fora do caminho da Microsoft. Pode esquecer a construção de uma grande empresa de software. Se é para ser grande e é software, então vai ser controlado pela Microsoft”. Outra manhã, dedicou-se a uma cantilena antiquada cujo argumento era que a Healtheon ia provar que ele não precisava provar mais nada. “Podem dizer que a Silicon Graphics e a Netscape foram apenas sorte, mas quando eu tiver outro sucesso, e a Healtheon será um sucesso, não podem dizer que foi

166

Page 161: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

Bem antes de a Healtheon se tornar um sucesso, ele já estava em busca. Programava o barco e procurava. Cada vez era mais difícil do que a anterior, porque cada nova ideia tinha que ser maior do que a anterior. A Netscape tinha sido maior do que a Silicon Graphics; a Healtheon, ele tinha certeza de que seria ainda maior do que a Netscape. O que era maior do que a Healtheon? “Sempre se pode ganhar 50 milhões de dólares”, me explicou ele uma vez. “Mas quem precisa disso?” Ele não tinha tempo para criar empresas que valessem somente 50 milhões de dólares. Cinquenta milhões de dólares não contavam. Diabo, seu barco tinha custado 50 milhões de dólares, somando-se o imposto. Quando tateava no escuro, era em busca de algo grande. Ele era uma corporação multibilionária sempre à beira de acontecer.

Ele também era um caso raro de um homem com a maldição chinesa: seus desejos tinham se realizado. Ele era mais bem tratado e ganhava mais do que qualquer pessoa no Vale. Possuía três vezes mais ações nas coisas que tinha concebido do que qualquer outro, e outras pessoas faziam a maior parte do trabalho. E agora — esta era a maldição — não podia mais parar. Mesmo que quisesse, o que, ocasionalmente, ele afirmava ser o caso, ele não conseguia parar de tentar forçar a mão do futuro. Estava destinado a buscar a nova novidade para sempre. Quando menos, ele agora tinha um público para o qual representar. Era como se tivesse vendido 10 mil ingressos para um monólogo e agora se visse em pé no palco, imaginando como manter as pessoas em seus assentos. Capitalistas de risco permaneciam a seus pés como um labrador que observa o jantar de seu dono. Jovens brilhantes saíam em ondas da Netscape, da Silicon Graphics e de uma porção de outras empresas, implo-

167

Page 162: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

podiam conseguir dinheiro com capitalistas de risco. Eles precisavam de seu imprimátur em suas novas ideias. Alguns deles nem tinham ideia alguma, somente achavam que talvez fosse bom ter uma ideia. Todos esses empreendedores ainda por desabrochar eram atraídos por Clark da mesma maneira que gente normal é atraída pelo nascer do sol, só para ver de onde vem a luz. Eles queriam ver Clark se erguer e dizer: “Contemplai a nova novidade”.

A situação toda era absurda, ou teria sido em outra hora e em outro lugar. Mas, como o próprio Clark percebeu, uma série de coisas tinha mudado e tornado sua abordagem dos negócios, e da vida, viável.

A primeira e mais óbvia mudança era o milagre na Bolsa de Valores americana. Entre o lançamento da Netscape e o lançamento do Hyperion, o índice Dow Jones subira mais de 5 mil pontos. Mais importante, a bolsa Nasdaq, onde se negociava a maior parte das empresas de tecnologia, quadruplicara. O mercado pagava alto por empresas de tecnologia que só davam prejuízos. O público americano decidiu que estava disposto a embarcar sem pensar no futuro, o que quer dizer que estava disposto a embarcar sem pensar em qualquer coisa na qual Jim Clark e empreendedores como ele embarcassem sem pensar, por um preço dez vezes maior.

A segunda coisa que empurrava Clark para a frente era a natureza do negócio de software. A Netscape e as empresas que se seguiram eram diferentes da Silicon Graphics em aspectos importantes. A diferença mais importante, pelo menos do ponto de vista de quem concebera essas empresas, é que elas custaram quase nada para serem criadas. Tudo o que você precisava era uma ideia, um pouco de engenharia da melhor qualidade

168

Page 163: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

sua participação até não sobrar quase nada. Você encontrava a ideia, você escrevia o software para explorar a ideia, você vendia a empresa ao público.

Tudo isso foi causa e consequência de uma mudança sutil, porém importante, no sistema de valores do Vale do Silício. E este era o último motivo pelo qual Jim Clark era o homem do momento. “O Vale do Silício tem mais em comum com Hollywood do que com Detroit”, diz Vern Anderson, primeiro CEO da Silicon Graphics e, portanto, primeiro capitão do primeiro navio construído por Jim Clark. “Os capitalistas de risco são os estúdios. Os administradores são os diretores. Os engenheiros comuns são os roteiristas. E os empreendedores são as estrelas.” O que aconteceu no Vale do Silício é muito parecido com o que aconteceu em Hollywood depois que os estúdios perderam a força. As estrelas tomaram o poder. E depois de tomarem o poder, elevaram seu preço e exigiram o direito de dirigir seus próprios filmes. E estrelas muito grandes como Jim Clark conseguiram contratos dignos de Marlon Brando. Apareciam no set por alguns dias e iam embora com metade do orçamento.

E assim, mesmo depois de ter desenhado o Diamante Mágico, Clark continuou na busca. Durante o verão de 1998, andou por alguns meses com um camarada chamado Greg Kovacs, que tinha conhecido por um motivo qualquer no Centro de Sistemas Integrados da Universidade de Stanford. Clark entrou no laboratório de Kovacs, olhou num microscópio, e viu o que parecia ser um chip de computador comum. O chip começou a pulsar, como se seu coração batesse. Kovacs tinha enxertado células do coração de uma galinha no chip. Havia caixas de ovos empilhadas atrás da porta de Kovacs, como que para prová-lo. Os impulsos elétricos da célula “falavam”

169

Page 164: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

Kovacs já tinha um acordo com o Departamento de Defesa, que acreditava que o chip pudesse ser útil em guerras biológicas. Clark pensava em outras aplicações. Na verdade, ele se lembrava de seu trabalho de pós-graduação na Universidade de Utah, onde tinha ficado fascinado com a ideia de gravar impulsos elétricos no cérebro e criar uma espécie de biblioteca de pensamentos e sensações. Se era possível enxertar uma célula em um chip, era possível enxertar um chip em uma célula. “Tenho certeza de que de alguma maneira o sistema nervoso será um dia integrado ao computador”, disse Clark. “Não seria ótimo se você pudesse fatorar de cabeça, digamos, o número 500 342?” Era possível inserir chips no corpo humano. Clark procurou seu amigo John Hennessey, o decano da engenharia elétrica em Stanford, e ofereceu-se para custear um novo campo de estudo, que ele queria chamar de biocomputação.

Então um dia Greg Kovacs desapareceu e Clark nunca mencionou seu nome de novo. No lugar de Kovacs veio um fluxo regular de jovens amontoando seus inventos e ideias. Havia rádios FM e AM na Web. Havia o noticiário local na Web. Havia os incontáveis frutos do Projeto Genoma Humano. Não era incomum encontrar Jim Clark conversando com alguém com um copo de vinho em uma mão e uma placa de Petri na outra. Frequentavam sua casa. Frequentavam seu escritório. Mas quando eram bons mesmo, frequentavam o barco. Era nos barcos que ocorriam as gestações importantes. Era nos barcos que ele mantinha sua mente aberta para novas possibilidades.

O Hyperion não era apenas a utopia de um tecnólogo ou uma nova novidade que desabrochava. Era ambas as coisas. Era também o lugar onde Clark podia se manter distante do ambiente que ele estava permanentemente

170

Page 165: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

172

de um museu, ou qualquer outra coisa que exigisse que ele se comportasse da maneira como se espera que homens de negócios importantes se comportem. As circunstâncias fizeram com que ele se tornasse membro de um grupo, mas o temperamento fazia com que permanecesse sempre um intruso. Ele era como o sujeito que dá a maior festa do mundo e não aparece. Era essa condição de intruso que lhe dava sua visão de mundo incomum. Seu talento para tatear no escuro em busca do futuro era geralmente visto como um dom sobrenatural, mas era resultado tanto de suas limitações quanto de suas forças. Ele conseguia ver a sociedade humana como a maioria dos homens de negócios não conseguia porque não fazia parte dela totalmente. E, conscientemente ou não, ao se refugiar em sua ilha flutuante ele preservava essa limitação tão preciosa.

Na próxima vez em que ele e alguma nova tecnologia entrassem na sociedade em geral, seria de barco. Ele não

171

Page 166: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

173

9. O lar do futuro

E então, lá fomos nós para o barco, pelo menos até que chegasse a hora da nova novidade. As ligações, fossem quais fossem, que Clark mantinha entre o barco e o mundo exterior passavam por 25 computadores fabricados pela Silicon Graphics e um browser de Internet criado pela Netscape. “Não há nada que me satisfaça mais”, disse ele, “do que criar um mundo completamen-te independente que seja controlado por um computador.” Demorou um tempo até que se percebesse o significado pleno dessa afirmação, especialmente para as pessoas menos técnicas que ha-bitavam aquele mundo independente. A primeira indicação veio logo depois da experiência tumultuada do mar do Norte.

No fim de dezembro de 1998, os danos causados ao Hyperion durante a prova no mar do Norte haviam sido reparados, e a tripulação e os programadores de computador subiram a bordo e se prepararam para a

Page 167: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

174

travessia do Atlântico. Logo ficou claro que, se você estava a bordo, ou programava o computador ou era programado por ele. Ou você era Steve, Lance e Tim, ou não era.

balhado na Silicon Graphics; tinham abandonado qualquer coisa que estivessem fazendo para se envolver no que quer que Jim Clark estivesse tramando. Clark chamou seu novo empreendimento de Seascape. Quando chegou a hora das provas no mar, os programadores do Seascape tinham passado mais de dois anos costurando os programas necessários para

controlar um veleiro. Desde o início, eles partiram do princípio de que Clark não se daria ao trabalho de fazer o casamento de seu barco com um computador se não fosse ganhar dinheiro com isso. Qualquer um deles teria conseguido facilmente um emprego, e opção de compra de ações, no Yahoo, na Cisco ou mesmo na Microsoft. No entanto, preferiam labutar em uma relativa obscuridade, construindo um sistema que qualquer pessoa inteligente mas desinformada — isto é, qualquer um que não conhecesse Clark — consideraria uma maluquice de rico. Para eles, a vida comercial de Clark era um passe de mágica.

Estranhamente, em dezembro de 1998, e antes mesmo que o software tivesse sido testado, os instintos dos programadores já se pareciam menos com fé cega e mais com clarividência. Umadas idéias de negócio de Clark os tinha entusiasmado: o software do barco poderia ser adaptado para o lar. O Lar Americano do Futuro, não é preciso dizer, seria controlado e

Page 168: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

175

monitorado por um computador. O computador permitiria que o dono entrasse em uma nova e fantástica relação com sua moradia. Com efeito, uma maneira de encarar o Hyperion era como um teste da tecnologia. Clark estava usando o capitão e os seis tripulantes do veleiro como cobaias: eles veriam como seria a vida em uma casa computadorizada. No fim de 1998, Steve Hague, nomeado programador-chefe do Seascape

por Clark, estava trocando e-mails com executivos e capitalistas de risco que poderiam se envolver e passando os resultados de suas discussões, também

por correio eletrônico, para Lance e Tim. A idéia básica era vender o software primeiro para tecnófilos ricos e depois, gradualmente, infiltrá-lo nas mentes dos donos das amplas casas de classe média na periferia das cidades. Em uma das mensagens escritas na época em que o Hyperion saiu do estaleiro, Steve informou seus colegas programadores sobre um CEO importante que queria ajudar a criar, como disse Steve, “um pacote que ele possa vender como parte de uma grande instalação personalizada para os Larry Ellison da vida [isto é, os tecnólogos ricos]. Ao fim e ao cabo, creio que esta tecnologia pode ser vendida mais como um produto padronizado, por meio de licenciamento. Um exemplo interessante podem ser as grandes casas de veraneio no Havaí, às quais os donos poderiam se conectar pela Web e verificar se a piscina está quente e se os empregados não estão trepando em sua cama”.

Sem dúvida, o Lar do Futuro era apenas um dos vários usos possíveis que Clark podia encontrar para seu

Page 169: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

176

trabalho. Essa era a atividade de Clark — imaginar um futuro para seu software. Como ele fazia isso, não interessava a mínima a Lance, Tim ou Steve. Como uma porção de engenheiros brilhantes do Vale do Silício, eles tinham desistido de tentar descobrir como funcionava a mente de Clark.

De modo que eles escreviam o programa para controlar o barco de Clark e esperavam para descobrir qual seria o próximo truque de Clark. Acima de tudo, tentavam garantir que o primeiro Lar do Futuro não acabasse no fundo do oceano. Puseram suas máquinas em uma mesa comprida de cantina escolar no salão principal do Hyperion. Todos os que estavam trabalhando no barco — e junto com os oito tripulantes permanentes ainda havia dúzias de operários navais — os rodearam. Dentro do contexto, os programadores pareciam ociosos. Ficavam sentados, quietos, olhando para suas telas e bebericando cappuccinos.

Page 170: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

177

E, no entanto, eram de longe as pessoas mais importantes a bordo do Hyperion.

Steve Hague era o gerente de projeto, o que significa que se esperava que ele costurasse os remendos de programas escritos por pessoas diferentes, em uma velocidade alucinante, de modo que formassem uma colcha uniforme. Muitos dos maiores remendos eram escritos pelo próprio Clark, claro. Isso deixava Steve na delicada situação de ter que supervisionar o patrão. O resultado é que ele adquiriu uma habilidade sobre-humana de agüentar gritos sem reagir. Sua vida o havia preparado para isso. Criado em uma família operária em Leeds, uma cidade monótona no Norte da Inglaterra, ele tornou-se uma dessas personalidades oblíquas e discretas que sempre existiram na Inglaterra, pelo menos desde que Shakespeare criou suas personagens cômicas. Steve era Rosencrantz, Guildenstern, Bardolph e Pistol todos num só. Quando dizia que sua infância tinha sido tão sem graça que ele não se lembrava de nada, exceto que “certa vez um gato morreu”, era tão divertido que ninguém parava para pensar no que aquilo significava.

Apesar de a habilidade de Steve com os computadores ter sido sua passagem de Leeds para o Vale do Silício, ele considerava a máquina, na melhor das hipóteses, uma aliada inconstante: vivia criando armadilhas para o programador. Ele acreditava que o computador não chegava a ser uma ferramenta confiável para controlar e manipular o mundo em torno; era como uma pá com a lâmina solta. Steve tinha pouca paciência para a abordagem mística e espiritual da programação dos computadores. O que quer dizer que sua paciência

Page 171: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

178

era freqüentemente posta à prova por Lance.Lance era Lance Welsh, que, nos dias imediatamente

anteriores à travessia do oceano, sentava-se ao lado de Steve na comprida mesa de cantina na sala de estar principal do barco.

Junto com Steve e Jim Clark, ele escrevia as partes dos programas que se pode ver e tocar. Tipicamente, quando Lance escrevia um programa, começava com uma solução complicada e a tornava ainda mais complicada. Às vezes funcionava, às vezes não, mas em nenhum dos casos alguém conseguia entender como Lance tinha feito o que tinha feito. Lance estava para a programação de computadores como Joyce estava para a literatura, possivelmente profundo, mas também desconcertante. O problema é que a clareza e a simplicidade eram mais im-portantes na linguagem de computador do que na linguagem humana. Um programador que fosse contratado para corrigir um bug no código precisava descobrir rapidamente como o código funcionava. Com o código de Lance, isso era impossível. Quando algo dava errado, o que ocorria freqüentemente, só se podiam fazer duas coisas. Ou Lance tinha que corrigir a falha pessoalmente, ou alguém tinha que começar do início e reescrever o programa.

Lance era, numa palavra, um romântico. A nostalgia que o romântico sente pelo passado Lance sentia pelo programa que tinha escrito. Por exemplo, editar um programa, como editar texto em inglês, freqüentemente exige que o programador remova linhas supérfluas. Lance se recusava a fazê-lo. Em vez disso, ele instruía o computador a preservar as linhas de código antigas.

Page 172: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

179

Quando deparava com um trecho que precisava ser removido, ele escrevia:

#ifdef

(código antigo de Lance)

#endif

O computador interpretava isso como: ignore as antigas linhas de código, mas preserve-as. Dessa maneira, uma grande quantidade de código inútil escrito por Lance foi enterrada nos computadores do Hyperion. Essa tentativa de preservação era apenas um tanto irritante para Steve, mas levava Clark à loucura. Sempre que Clark deparava com alguma dessas múmias ele-trônicas, ele enrubescia e se retorcia como a cratera do monte Etna antes de uma erupção. Então se dedicava a remover tudo 0 que Lance tinha feito. Lance freqüentemente ficava irritado e se queixava a Steve de que “fim não tem carinho pelo código”.

A situação política de Lance não melhorava em nada pelo fato de ele ser bonito — e não só um pouco bonito. Ele era o Último dos Moicanos da beleza, com longos cabelos negros e suaves traços morenos. Quem era destacado para examinar o código e encontrar um bug freqüentemente presumia que Lance, naquele momento de extremo tédio, estava em algum lugar sendo

Page 173: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

180

perseguido por um bando de mulheres lascivas. Lance ti-nha a aura do homem que passa muito tempo sendo perseguido por um bando de mulheres lascivas. “Lance exerce um efeito estranho sobre as mulheres”, explicou-me Steve. “Desde que comecei este projeto, mais amigas minhas me perguntaram se ele era casado do que se Jim era casado.” Todos os homens que trabalhavam com Lance suspeitavam que devia haver uma ligação entre sua atitude excessivamente romântica em relação à programação de computadores e a atração que ele exercia sobre as mulheres. Lance podia não ser a prova de que um programador homem, para ser desejável para as mulheres, tinha que reformular completamente sua atitude em relação à máquina. Mas era uma indicação terrivelmente sugestiva.

Tim Powell era o terceiro homem na tarefa do Hyperion. Tinha a constituição de um zagueiro de futebol e pensava em si como o equivalente de um zagueiro na programação de computadores.Se você lhe perguntasse que parte do software era de sua responsabilidade, Tim desviava o olhar e ficava ruborizado. Se você insistisse no assunto, ele dizia: “Se eu fizer meu trabalho direito, você nunca vai saber”. Possivelmente, ele já tinha visto o bastante da luta que ocorria entre Jim, Steve e Lance para saber que não queria participar. Seja como for, Tim se mantinha dis-creto, trabalhava intensamente e falava pouco. Tim era a única razão que eu tinha para suspeitar que o Hyperion não ia acabar no fundo do oceano.

Steve, Lance, Tim, Jim; Jim, Tim, Lance, Steve. Eles haviam passado dois anos quicando entre o estaleiro de Wolter Huisman e a sala idiotizante em cima do centro

Page 174: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

181

Jenny Craig para perda de peso. Agora, em uma doca na jjeriferia de Amsterdã, estavam no centro do palco. Ao digitar em seus teclados, eles abriam um caminho através da floresta, criando a picada que outros teriam que trilhar. O programador de computador cria o único caminho disponível para o usuário do computador; o efeito que suas decisões causam sobre os outros é mascarado pela abstração que ele cria. Quando você usa o Microsoft Word, por exemplo, adentra um diminuto espaço mental criado por milhares de programadores da Microsoft. No caso de software que controla o mundo físico, em vez de um mundo meramente simbólico, o caminho é menos trivial. Os programadores decidiam que passos todos a bordo do Hyperion teriam que dar para fazer tudo, desde diminuir as luzes até içar as velas. De mil maneiras sutis ou não eles reinventavam a experiência de se viver a bordo de um barco.

Esse fim de tarde em dezembro de 1998 era um dos ültímos que os três jovens programadores tinham antes que o Hyperion saísse de sua doca e avançasse pelo Atlântico. Nenhum dos jovens falava. Presumivelmente, cada um estava absorvido por sua própria pequena cadeia de lógica, se bem que nunca se podia ter certeza. Foi então que os problemas tiveram início.

Começou com um problema que o computador de Lance apresentou. Em algum lugar do barco, um alarme soou, e as palavras “Mensagem de Erro” apareceram na tela de Lance. Lance sacudiu sua crina escura, deu um gole no cappuccino, e fingiu não perceber. O barco estava

equipado com mais de 3 mil alarmes. Todos podiam, na teoria, gritar insultos para o capitão, mas normalmente apenas faziam um bip-bip-bip muito agudo. Àquela altura

Page 175: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

182

do trabalho, os alarmes soavam constantemente; era difícil pegar uma cerveja na geladeira sem disparar um alerta vermelho. Lance apontou para a mensagem na tela e disse: “O computador não tem senso de proporção. Ele não sabe se o que aconteceu é sério ou trivial. A gente acaba se acostumando a ignorar essas mensagens de alarme”.“Ei! Ei! Ei! Ei! Ei! Ei! Ei?’

Dessa vez o alarme veio de um ser humano. Gritos. Vinham da cozinha.

“Ei! Ei! Ei! Ei! EU..." Era um protesto bem agudo. E imediatamente seguiu-se o som de pratos se quebrando no chão.

Os programadores giraram nas cadeiras. À sua frente se descortinava uma cena intrigante. Uma grossa fatia do

estrado que separava a cozinha do salão inferior se erguia no ar, como

por mágica. A divisória que tinha sido construída no estrado entre a cozinha e o resto do barco, como tudo mais, era automatizada. Tina, a cozinheira do Hyperion, jogava sua frágil figura sobre a fatia de madeira que se erguia, em um esforço futil para mantê-la no lugar. Os pratos empilhados no estrado voaram em oito direções. Era tudo inevitável como uma execução. Steve, Lance e

Tim observaram enquanto a divisória subia e os pratos se quebravam e a cozinheira na cozinha desaparecia devagar. À medida que desaparecia atrás da divisória, os gritos de Tina foram se tornando abafados até desaparecer.

“Que diabo causou isso?”, perguntou Steve.

Page 176: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

183

“Não fiz nada”, disse Tim.“Quem mexeu no quê?” perguntou Steve.“Eu estava trabalhando no DVD logo antes de

acontecer”, disse Lance. “Talvez tenha sido eu.”Os três jovens de camisetas e jeans deram um

risinho. O DVD era o sistema de cinema do Hyperion. Como tudo mais a bordo, era controlado por computadores. Ao sugerir que o programa de computador que cuidava dos filmes tinha feito com que o estrado de Tina se levantasse em direção ao teto e mandasse os pratos pelos ares, Lance tinha feito uma piada. Humor de computador.

Rapidamente esqueceram o incidente. Perderam-se novamente no mar azul de seus monitores. Agora, enquanto digitavam, também falavam. “O que é bom nesse projeto”, disse Tim, “é que os programas conversam com coisas físicas em vez de conversarem só com outros programas. Você pode ver o efeito do que está fazendo.” Lance discordou. Ele achava que a neces-sidade de Tim de ver seu trabalho se manifestar no mundo físico fora do computador traía uma fraqueza de espírito. “Nerds de verdade”, disse Lance, “ficam entusiasmados da mesma maneira quando conversam com outros programas.”

“Jim não fica”, disse Steve.“O que entusiasma Jim são outras coisas”, disse

Lance. “Ele agora pode ser dono de seus próprios domínios graças a sua habilidade com computadores. Ele pode ficar de pernas para o ar e aproveitar seu Borgonha enquanto o computador controla 0 vento e as velas.”

“Você também gostaria disso”, disse Steve.

Page 177: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

184

“Fico constrangido de admitir”, disse Lance. “Isso me entusiasma também. Mas a diferença é que Jim está cagando para a tecnologia.”

Steve levantou os olhos, em dúvida.

“É, sim”, disse Lance, “no começo me lembro de ter perguntado a Jim se devia fazer todas as telas em gráficos de três dimensões. Ele disse: ‘fodam-se as três dimensões’. Eu disse: ‘Jim, você inventou os gráficos de três dimensões’.”

Page 178: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

185

“Ei! Ei! Ei! Ei! Ei..:’

Dessa vez, os gritos de Tina eram mais estridentes. Na cozinha, o estrado agora descia tão misteriosamente quanto tinha subido. À medida que descia, criava algo parecido com os efeitos de um terremoto em um filme B, sugando tudo o que não estivesse preso para dentro de uma cratera. Tina lutava para impedir que uma toalha desaparecesse nas entranhas da terra.

Os três programadores observaram a luta, um pouco mais detidamente, e voltaram a seus monitores. Estavam pensando. Pensamentos de computador. Finalmente Steve se levantou, muito casualmente, e desceu três degraus até o salão inferior e mais três degraus até a cozinha. Deixou-se ficar ao lado do inter-ruptor de luz que Jim Clark costumava usar para ilustrar seu principal argumento a respeito da maravilhosa flexibilidade dos computadores. Ao fim de um longo dia de programação, com um copo de um bom Borgonha na mão, Clark ligava e desligava o interruptor e dizia: “Este

Page 179: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

186

interruptor envia um sinal ao computador para ligar e desligar as luzes. Mas seria igualmente fácil programar este interruptor para ligar o motor ou para içar as velas. Se eu quisesse controlar o barco daqui, eu poderia”.

Steve agora estava olhando o monitor de um dos 25

computadores do barco. Os onipresentes monitores planos

faziam com que o iate desse a impressão de ser a sala de caixas eletrônicos de um banco novo e reluzente. Para onde quer que você se virasse, outro caixa eletrônico! Steve tocou o monitor da cozinha delicadamente, como um novo correntista que faz sua primeira retirada, e

então, aparentemente satisfeito, voltou ao salão principal e se sentou diante de seu computador. Apertou mais algumas teclas.Então gritou, quase triunfante: “Lance, foi você que cau-sou o problema!”.

Lance levantou os olhos; Tim deu a volta na mesa de cantina. Na tela azul-oceano do computador de Steve uma única linha de código piscava. Seria absolutamente desprovida de sentido para qualquer outra pessoa no barco, mas para estes três jovens era uma mensagem importante. Ela dizia: “HYP 24 Request PLC Write P24-Control S430303-10 1:(0): null”.

HYP 24 era uma referência ao vigésimo quarto computador na longa série de máquinas Silicon Graphics lá embaixo. HYP 24 também era a máquina na qual Lance estava trabalhando.

O resto da linha consistia em um comando emitido pelo computador número 24 para outro computador, este mais simples, chamado PLC, que controlava o sensor que fazia com que o estrado de Tina subisse e descesse. Esta era uma maneira de compreender o Hyperion: como

Page 180: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

187

uma rede de sensores que conversavam uns com os outros. Alguém tinha apertado um botão que enviara um sinal elétrico pelos cabos até o vigésimo quarto computador, que gerara um sinal elétrico enviado até o estrado de Tina. Fosse o que fosse que Lance estivesse fazendo no sistema de cinema, parecia ser ele o culpado. Apesar de obviamente não ser por si só crítica — o barco podia navegar sem cinema —, a mensagem sugeria um problema mais profundo e perturbador. 0 problema era: por que o computador de Lance tinha emitido aquele comando? E se Lance podia apertar um botão e mandar o estrado de Tina para o teto, o que mais Lance podia fazer com o barco simplesmente apertando um botão?

Ninguém ousou dizer isso, no entanto. Todos trabalhavam na suposição de que os computadores inevitavelmente fariam o que deveriam fazer na hora da verdade.

“O que há com essa divisória?” perguntou Tina. Uma tabuleta pendurada na parede da cozinha indicava sua exasperação com o Lar do Futuro. Dizia: “Os espertos passam horas apren- dendo a usar novas tecnologias. Os mais espertos encontram um jeito de escapar disso”.

Os três jovens permaneceram perdidos em seus pensamentos informatizados. Eram todos bons rapazes. Não queriam mal a Tina. Mas a única maneira de ajudar que conheciam era usando suas máquinas. Não responderam aos gritos que vinham de baixo.

“Não sei, não”, disse Tina. “Talvez eu esteja aqui só para a viagem e mais nada.”

Os três jovens permaneceram indecisos e agitados

Page 181: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

188

até que um som novo, rude e barulhento, interrompeu sua meditação. Allan Prior estava descendo as escadas para ver que diabo era aquela gritaria. O capitão sabia apenas o bastante para ficar preocupado. Disse ele: “Ouvi ‘Lance’ e ‘problema’ na mesma frase”.

Page 182: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

189

1o.Modo Deus

Allan Prior era o marinheiro dos marinheiros, se é que se pode dizer que tal coisa exista em um iate de 157 pés, decorado com 30 milhões de dólares em pinturas impressionistas francesas e controlado por um computador. Ele completara a regata Whitbread, ao redor do mundo, três vezes, e a vencera uma vez. A regata Whitbread é um daqueles ritos de passagem, como atravessar o Canal da Mancha a nado ou comer 120 rosquinhas de uma enfiada, que indicam a disposição de um homem de sofrer por sua arte. Na Nova Zelândia, onde Allan cresceu, a regata Whitbread é uma obsessão nacional. No fim da década de 1970, um psiquiatra da Universidade de Auckland fez um estudo sobre o estranho desejo de jovens neozelandeses de se atirar em barquinhos com sete amigos, alguns sacos de alimento em pó e o compromisso de não tomar banho, fazer a barba, limpar-se ou dormir por seis semanas seguidas. O

Page 183: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

190

psiquiatra evidentemente pensou que era preciso ver para crer, e então transformou seu estudo em um documentário. Chamou o filme de Não adianta ligar para mamãe em casa.

Page 184: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

191

Quando Não adianta ligar para mamãe em casa estreou na televisão neozelandesa, a central telefônica da emissora recebeu tantos protestos que nunca mais pôs o filme no ar. Até hoje, se você quiser assistir, tem que comprar uma cópia pirata por quinhentos dólares. Não adianta ligar para mamãe em casa se distingue de outros perturbadores programas de TV pela absoluta ausência do material ofensivo de costume. O filme não contém sexo, nudez ou blasfêmia. Não promove nenhuma heresia política ou religiosa. Talvez seja o único filme já feito que é ofensivo apenas pelas grotescas violações dos padrões comuns de limpeza pessoal praticadas por seus personagens principais. Por trinta dias seguidos, os únicos ensaios de higiene pessoal feitos pelos jovens marujos neozelandeses saíam de uma caixa de lenços de papel. Quando esses trinta dias foram condensados em uma hora e meia de televisão, os bravos jovens marujos da Nova Zelândia viraram o estômago da nação.

Allan Prior tinha sido um desses bravos jovens marujos. A idéia ainda lhe agradava. Tinha mais de quarenta anos, mas um sorriso esquisito ainda dançava em seu rosto sempre que se lembrava dos detalhes nauseabundos de sua juventude. Ele ainda levava, em muitos aspectos, a vida de um marujo ao redor do mundo na regata Whitbread. Raramente tomava banho. Nunca mudava de roupa. Atacava a comida com uma violência selvagem que impressionava seus colegas de barco tão profundamente que eles eram capazes de reviver a última refeição em sua companhia da mesma maneira que fazem pessoas que testemunham juntas um acidente de trânsito. Uma vez, durante o jantar, os tri -

Page 185: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

192

pulantes viram seu novo capitão catar no cabelo de arame grisalho uma partícula estranha e comê-la. Causou-lhes uma profunda impressão. Por mais chocante que Não adianta ligar para mamãe em casa pudesse ser, claramente passava longe de explorar a habilidade de seu capitão em praticar coisas que, se capturadas em filme e transmitidas pela televisão, poderiam inspirar batalhões de pessoas a ligar para reclamar.

Mesmo assim, Allan tinha uma excelente reputação nos circuitos de vela. Era, de fato, um marinheiro talentoso. Tinha instintos que nenhum computador poderia imitar — ao menos por enquanto. Era o Kasparov nos primeiros dias da luta contra o Deep Blue. Pelo menos um dos tripulantes do Hyperion se referia a ele, sem ironia, como A Lenda.

Allan tinha demorado a assimilar o computador. Em sua cabeça, quando imaginava um veleiro, ainda via uma casquinha equipada com uma vela e oito kiwis (ave típica da Nova Zelândia, incapaz de voar) de pele rija como couro e descrentes da higiene pessoal. Um computador não tinha lugar nessa imagem. A princípio, ele tinha tratado a nova tecnologia como um passageiro clandestino. “Acho que ele nos odiava”, diz Steve. Mas com o tempo, os programadores, e o dono atrás deles, chegaram a bom termo com o capitão, ou pelo menos tinham essa impressão. “Allan, de certa forma, foi vencido”, diz Lance. “Ele viu o estado de miséria em que estava o software. Ou em que pode estar. De modo que quando funciona, mesmo que pouco, ele fica feliz!”

Isso era discutível. Durante o ano e meio em que o barco foi construído, Allan desenvolveu uma rígida carapaça de cinismo em relação aos meninos do Vale do

Page 186: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

193

Silício. Quando Jim Clark estava por perto, ele conseguia disfarçar seus verdadeiros sentimentos. Mas quando Clark estava fora da vista, Allan se divertia à custa dos technogeeks contratados por Clark para transformar seu barco em computador. Quando estavam concentrados em seus terminais, Allan passava por trás deles e sussurrava ameaças em seus ouvidos delicados. “Durante a classificação para a America’s Cup”, dizia, “tínhamos um barco só para a sala do computador — doze nerds de computador vomitando nos teclados.

Page 187: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

194

A tarefa deles era nos dizer o que fazer para irmos mais rápido.” Fazia uma pausa para valorizar o efeito. “Mas é um problema fazer qualquer coisa num computador quando tem um pedaço de cenoura preso atrás da tecla e’.”

Não era preciso psiquiatra para ver que Allan estaria igualmente feliz se zarpasse em um dos barcos de madeira construídos pelo avô de Wolter. Mais feliz, provavelmente. Assim, pelo menos, não teria que fingir estar interessado na infinita série de falhas trazida a bordo de seu barco pelos 24 computadores de Clark.

Isto levantava a pergunta óbvia: por que ele tinha aceitado o emprego, então? Allan Prior aceitara o cargo de capitão do barco de Jim Clark pelo mesmo motivo que levava quase todo mundo a aceitar os empregos que Clark oferecia. Ele achava que Clark o faria rico. Clark oferecera 12 500 ações da Healthscape, a empresa oriunda do Diamante Mágico, com a promessa de mais no futuro. Se a Healthscape tivesse tanto sucesso quanto Clark dizia que teria, Allan ganharia 1 milhão de dólares. Talvez mais. Allan aceitara o acordo aceito por todos que tinham sido capitães de algum empreendimento de Clark: agüente a humilhação de não entender inteiramente seu trabalho, e talvez você nunca mais precise trabalhar.

No momento em que Allan chegou à mesa dos programadores de computador, uma pequena multidão tinha se reunido para ver o que causara a comoção na cozinha. Ninguém tinha certeza do que tinha acontecido exatamente, a não ser que o estrado de Tina desaparecera no teto, e que o computador tinha mandado que desaparecesse^ Esse tipo de confusão

Page 188: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

195

era considerado normal por um programador de computador, especialmente por um programador do novo barco de Clark. Primeiro você diz à máquina o que fazer, então a máquina invariavelmente deixa de fazer exatamente o que você lhe disse para fazer, e

Page 189: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

196

então você passa dias tentando descobrir por que ela se recusou a fazer o que devia. Esse último estágio é conhecido como de- bugging [depuração], uma palavra que entrou na língua inglesa no início dos anos 60, quando alguns programadores que esta- vam tendo problemas com seu computador descobriram que uma grande mariposa [ bug} tinha pousado dentro do computador e morrido. Nos meses anteriores, sempre que Allan perguntava sobre o computador, Steve dizia: “Estamos vendo melhoras, mas o barco ainda tem bugs”. Allan não achava que esse tipo de conversa fosse tranquilizador.

Por fim, Steve disse a Allan que tinha uma idéia. Ele não tinha achado o bug. Mas pelo menos sabia onde procurá-lo. De alguma maneira o computador tinha recebido o sinal de que alguém queria assistir a um filme. Sua resposta fora separar a cozinha do resto do barco. A instrução “quero assistir a um filme” estava, portanto, obviamente ligada à instrução “feche todas as portas e janelas”. Lance lembrou a Steve que no momento em que o estrado de Tina desaparecera no teto ele estava trabalhando no sistema de filmes do barco.

Allan hesitou atrás da mesa dos programadores. Seu barco estava a ponto de atravessar o oceano Atlântico, e o DVD colocara os novos mestres e senhores do barco em estado de confusão. O capitão devia ficar no convés dando ordens para as pessoas, não embaixo, perplexo. Ele se inclinou e fez a pergunta óbvia. “Pode acontecer de você apertar o botão da água quente e a vela principal subir?”, perguntou.

“Não, não, não”, disse Lance. “Acontece que essa

Page 190: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

197

parte do programa ainda não foi testada.”“Sei”, disse Allan, “bem, temos que garantir que

tudo vai ser testado.”Allan estava avançando pouco a pouco em direção

à pergunta que realmente queria fazer. “Então, na cabine de hóspedes”, disse finalmente, “você pode mostrar a tela aos passageiros, mas eles não podem fazer nada com ela, certo?”

Demorou um momento até que Steve compreendesse o que Allan havia perguntado. Ele havia perguntado: eu controlo este barco sozinho? Não era uma pergunta boba. Tudo no barco podia ser controlado, ao menos na teoria, de qualquer dos 25 monitores planos. Allan, muito razoavelmente, estava se perguntando: o que impedia um hóspede de apertar alguns botões e, digamos, atirar o barco contra um recife? O que ele tinha em mente era algum nerd genial do Vale do Silício que nunca tivesse estado em um barco e que, zonzo em seu quarto depois de dar cabo de algumas garrafas dos vinhos finos de Jim Clark, resolvesse assumir o controle do barco.

“Não”, disse Steve, “criamos níveis de acesso diferentes.” Na verdade, os programadores tinham criado quatro níveis de acesso ao sistema. O marujo menos graduado tinha o que eles chamavam acesso nível um. O acesso nível um permitia que o usuário ligasse e desligasse as luzes do convés, por exemplo. O nível mais alto era formalmente chamado de acesso nível quatro, e informalmente conhecido pelos programadores como “Modo Deus”. O Modo Deus permitia que o usuário controlasse o barco inteiro de qualquer uma das telas. A boa notícia, para Allan, é que

Page 191: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

198

apenas algumas pessoas tinham recebido senhas para o Modo Deus: Allan, Simon, os programadores e Clark. A má notícia é que as senhas secretas tinham vazado não apenas para toda a tripulação, como também para os operários do estaleiro holandês. Allan não queria mais ouvir falar em Modo Deus.

“Nós retiramos três quartos das possibilidades da cabine de hóspedes”, disse Steve. “A idéia é que não se quer que os hóspedes acordem no meio da noite com algum alarme disparando, e pensem que o barco está afundando, quando foi uma geladeira que parou de funcionar.”

Allan deu um grunhido que parecia uma aprovação.Steve retornou ao trabalho imediatamente e pôs na

tela o programa que controlava o cinema. Lance o escrevera — o sistema audiovisual era na verdade o último trecho de código escrito por Lance que não tinha sido reescrito por alguém, geralmente Clark. Como era de se esperar, o programa tinha uma abor dagem tipicamente heterodoxa, característica de Lance. Quando se apertava o botão “Filmes” na tela, o computador instruía o Hyperion a se reconfigurar para o prazer da contemplação. O barco acordava, cheio de zumbidos e zoadas. A grande tela no salão principal se erguia, as luzes nas salas adjacentes diminuíam, as cortinas das escotilhas e as várias aberturas que leva-vam do salão principal à cozinha embaixo e à ponte de comando em cima se fechavam. Quando os computadores do barco concluíam seu trabalho, só sobravam você, o filme, o silêncio e a escuridão.

“Que legal”, disse alguém. “Parece um filme do James Bond.”

Page 192: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

199

Lance sorriu. Parecia mesmo.“Talvez seja legal se você for o James Bond”, disse

Steve.Uma linha brilhante cortava o mundo dos

programadores, e ela separava o ar entre Lance e Steve. De um lado da linha ficam os estetas que retiram prazer da complexidade dos computadores e passam grande parte do tempo escrevendo programas deli-ciosamente elaborados que fazem com que outros exclamem “Que legal!” quando os vêem, mas que freqüentemente não têm propósito econômico. Do outro lado da linha ficam os utilitários. Eles só se interessam pela habilidade crua e brutal que os computadores têm de impor sua vontade no mundo ao redor. Lance estava apaixonado pela beleza do computador; Steve, por seu poder.

Allan não via a diferença. Ele simplesmente encarava os

jovens do Vale do Silício como geeks

que não deveriam estar em

Page 193: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

200

seu barco. Sua estratégia era preservar ao menos a

ilusão, se não o fato, de que o comando era seu. “Vocês

nos dizem quando pudermos ver um filme”, disse,

severo. “E vamos ficar de olho em qualquer coisa que se

mexa.” Por via das dúvidas, jogou um pouco de censura

técnica em cima do desdém. “Estou aqui há muito

tempo”, disse, “e ainda não sei onde estão as coisas. Os

controles das luzes — onde diabo estão eles? São um

programa no computador? Ou estão na parede?”Então foi-se embora. E por alguma razão

inexplicável, todos os outros acharam que o problema estava meio que resolvido, o que não era verdade. Tina olhou para os programadores e disse: “Se eu tiver que ficar à mercê desse computador, vou ser uma cozinheira paranóica”. Voltou à cozinha.

Surgiu uma fumaça. Tim ergueu os olhos e se impressionou com sua densidade.

Lance disse: “É, parece com o interior do meu cérebro”.

Steve lançou-lhe um olhar. “Ainda não resolvemos isso”, disse.

A verdade é que estavam mais confusos do que nunca. O código sugeria que deveriam ter acontecido muito mais coisas depois de Lance ter dito ao computador

para passar um filme do que o estrado de Tina ter subido para o teto. As luzes deveriam ter diminuído, as portas deveriam ter-se fechado, as cortinas deveriam ter descido e a tela gigante deveria ter saído de seu esconderijo dentro da parede de madeira.

Page 194: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

201

“A questão principal é por que o computador está fazendo isso”, disse Lance, filosoficamente. Lance era abençoado com uma natureza de amor à paz. Independentemente do peso da opinião pública contra ele, recusava-se a sentir-se atacado ou mesmo criticado.

“Porque alguém viu isso em Jornada nas estrelas e quis fazer igual”, disse Steve, cortante.

Lance o ignorou.

Em seguida veio o ritual de depuração-padrão. Quando um computador faz algo inesperado, seus programadores com freqüência tentam provocar uma repetição do comportamento. Dessa maneira podem ter a certeza de que acharam a origem do problema. Por insistência de Steve, Lance refez o que tinha feito uma hora antes, quando o estrado de Tina subira para o teto. Nada aconteceu. O estrado não arredou pé.

Durante os sete minutos seguintes os três homens fitaram em silêncio suas telas azul-oceano. Pensamentos de computador.

Finalmente Steve sugeriu uma hipótese: não era absolutamente culpa de Lance. Lance podia ter programado o sistema de cinema para se comportar como um filme de James Bond, mas o programa de Lance não funcionava. Nenhuma das coisas legais que Lance tinha mandado o computador fazer — diminuir as luzes, erguer a tela, fechar as portas e cortinas, subir os estrados para o teto, acender a lareira e servir um copo de Borgonha — tinha acontecido. Logo, 0 estrado de Tina tampouco deveria ter se movido.

Lance recebeu a nova hipótese de Steve com a mesma indiferença que tinha devotado à anterior. Ele

Page 195: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

202

sabia que Steve continuava fazendo adivinhações. O mesmo se dava com Tim, que tinha voltado a seu terminal e pedira ao computador para emitir uma história completa de si mesmo. Um computador, ao con-trário das pessoas que o programam, consegue se lembrar das experiências que teve na vida. Todas as experiências são elétricas, claro, mas a eletricidade é usada para armazenar informação. A informação contém pistas para muitos mistérios. Alguns desses mistérios chegam mesmo a ser interessantes.

Enquanto esperavam que o computador se autopesquisasse, os três jovens raciocinavam alto. Todos concordavam que o que Steve acabara de dizer fazia sentido: se Lance tivesse dito ao computador para passar um filme na tela grande do salão principal, muito mais coisas além do estrado de Tina deveriam ter se mexido. Mas se alguém tivesse dito ao computador que queria ver um filme na cozinha, era bem possível que a resposta do computador tivesse sido fechar apenas a cozinha. Não havia motivo para que isso não pudesse ter acontecido. Afinal, era possível assistir a um filme em qualquer um dos 25 monitores planos do barco. Tim, Lance e Steve seguiram essa linha de pensamento até o que parecia ser a conclusão óbvia: se alguém tinha pedido um filme na cozinha, então o problema não tinha sido causado por Tim, Lance ou Steve. No momento em que o crime de computador fora cometido, todos os três programadores estavam sentados juntos na longa mesa de cantina no salão principal. Um era o álibi do outro.

Steve levantou o queixo como um coiote que se preparasse para uivar para a lua. “ Yonboxum!”, gritou.

Jan Bocksum era um camarada holandês do Estaleiro

Page 196: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

203

Huis- man destacado por Wolter Huisman para ajudar os novatos em vela do Vale do Silício a ganhar uma compreensão do barco suficiente para que pudessem controlá-lo; era muito assediado. Ele havia desistido, ou ameaçara fazê-lo, várias vezes durante os dois anos e meio anteriores. Sempre dizia que sabia como se deveria escrever software porque sabia como a Microsoft escrevia software. A Microsoft empregava milhares de programadores, em ondas humanas, sempre que queria criar algo novo. Jim Clark tinha colocado três jovens em cima do centro Jenny Craig para Perda de Peso em Menlo Park, Califórnia. Mas Jan

Bocksum não tinha escolha. Por decreto de Wolter Huisman, ele e outros quatro ou cinco operários holandeses firmes e fortes tinham adquirido um conhecimento razoável do novo sistema de compu-tadores de Clark. Nenhum deles sabia realmente como programar o barco, mas todos sabiam como usar o computador. Mais especificamente, conheciam as senhas para obter acesso ao sistema. Qualquer um deles poderia ter solicitado um filme na cozinha.

Logo os operários holandeses estavam de pé, pouco à vontade, ao lado da longa mesa de cantina como crianças convocadas pelo diretor da escola.“Na última hora e meia”, perguntou Steve, “algum de vocês mexeu no computador da cozinha?”

Eles sacudiram a cabeça em uníssono. Steve olhou para eles por um momento como se fossem prisioneiros políticos — o que, em certo sentido, eram. Nenhum dos holandeses sucumbiu e confessou, entretanto, de modo que Steve os dispensou. “O problema”, disse Tim depois que os operários holandeses saíram, “é que todos eles

Page 197: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

204

usam a mesma senha. Qualquer um poderia tê- lo feito, e nenhum quer admitir.”

Os jovens retornaram a seus teclados, e, por uns dez minutos, o único som que se ouvia era o de dedos digitando. Alguns minutos mais tarde, o computador de Tim vomitou o registro histórico. Tampouco ele dizia algo a respeito do estrado de Tina. Do ponto de vista do computador, o estrado de Tina tinha le- vitado por iniciativa própria. “E se for um problema de cabea- mento?”, perguntou Tim. “Bem”, disse Lance, “Simon tem sido meticuloso no cabeamento.” Tendo deixado de ser o principal suspeito, Lance tinha ficado mais animado. Agora saltava para defender os outros. Simon era o tripulante responsável pelo hardware de computador no mar. Tinha acabado de voltar de um treinamento no Vale do Silício. Ele agora idolatrava os programadores, e os programadores gostavam disso.

“0”, disse Steve, “o Hyperion 24 recebeu uma instrução. Apenas não está claro de onde veio a instrução.”

Mais silêncio.Mais batidas nos teclados. Clark apareceu para ver como iam os progressos. Steve explicou o problema com o estrado de

Page 198: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

205

Tina. Clark deu de ombros. Sua atitude parecia ser a de que havia tantas coisas importantes que estavam erradas com o software que ninguém deveria se preocupar muito Com probleminhas como móveis que desaparecem no teto. Sua falta de interesse funcionou como um narcótico para os programadores. Steve chegou a dar uma risadinha. “Não tenho certeza se tenho o perfil para ser gerente”, disse.

“E uma praga que vem junto com o gosto pelo trabalho de verdade”, disse Clark, e retornou ao computador de sua cabine.

Quinze minutos depois, Tim ergueu os olhos de seu teclado e admitiu o óbvio. “Bem, isso não resolve. Não temos idéia do que aconteceu. Seria legal se pudéssemos chegar a uma conclusão.” Legal... mas não necessário. Tim os estava conduzindo a uma solução popular para os bugs de computador intratáveis. Desista! Esqueça o assunto! Torça para não acontecer de novo! O barco ainda tinha dúzias de bugs. O que havia de tão especial neste?

Os três jovens respiraram melhor. O bug que tinha mandado o estrado de Tina para o teto passou por uma mudança de status sutil. Não era mais um bug problemático. Um bug crítico. Um bug significativo. Era um bug que podia ser ignorado. Poderia ser caçado amanhã, ou no dia seguinte, ou mesmo no outro. Ou talvez nunca. Steve deu um risada abafada, como se fizesse parte de uma conspiração. “Vai ser difícil manter a concentração com Tina guinchando o tempo todo”, disse. “Tina não guinchou exatamente”, refletiu Lance. “Foi mais como um trinado.” Os três jovens de camiseta e jeans compartilharam uma risadinha e voltaram a seus

Page 199: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

206

computadores.

11. Como galinhas se transformam em porcos

Parecia valer a pena ao menos perguntar por que alguém confiaria sua vida a um programa de computador que deixava seu próprio programador pouco à vontade. Cada tripulante do Hyperion tinha sua razão. Robert, o engenheiro britânico, esperava ser o primeiro engenheiro com total comando tanto de computadores como de barcos. Simon, o marujo canadense, se apaixonara pela teoria, se não pela prática, dos computadores. Jaime, o imediato australiano, deixara um ótimo posto na resposta japonesa à America’s Cup em troca da chance de pilotar o barco do futuro. “Este barco tem uma aura”, dizia. “Todos no mundo da vela o conhecem, ou querem conhecê-lo.” Tina, a cozinheira americana, simplesmente gostava mais de Jim Clark do que

Page 200: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

207

qualquer pessoa para quem já tinha trabalhado antes. Era uma cozinheira brilhante, e sabia disso, e sabia que Clark sabia. Um elogio de Clark significava muito para ela.

Mas o principal motivo pelo qual os tripulantes do Hyperion haviam concordado em atravessar o oceano Atlântico em um barco controlado por um computador que não parecia funcionar muito bem é que eles já estavam envolvidos tão profundamente que não podiam voltar atrás. Clark gostava de dizer que os seres humanos, quando corriam riscos, se enquadravam em dois tipos: porcos e galinhas. “A diferença entre esses dois tipos de pessoas”, dizia, “é a diferença entre o porco e a galinha num prato de presunto com ovos. A galinha está interessada, o porco está comprometido. Se você vai fazer algo que valha a pena, precisa de uma porção de porcos.” Os tripulantes do Hyperion agora eram porcos, por uma razão muito simples: todos tinham uma participação nos negócios de Clark na Internet. Clark não tolerava a idéia de que alguém trabalhasse para ele sem ter a chance de acumular um pouco de dinheiro. Havia dado aos tripulantes do Hyperion essa chance ao lhes oferecer opções de compra de ações na Healtheon.

Os tripulantes não conseguiam explicar com exatidão o Diamante Mágico que punha Jim Clark no centro de 15% da economia americana, mas tinham ouvido Clark e outros dizerem que o novo empreendimento poderia um dia ser tão grande quanto a Microsoft. E sabiam que também teriam ações na nova novidade, fosse lá o que ela viesse a ser, e que a nova novidade seria provavelmente ainda maior. Como uma porção de gente que entrava no ClarkWorld, os

Page 201: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

208

tripulantes do Hyperion suspeitavam que Jim Clark faria com que seus sonhos se realizassem. Só precisavam manter seu barco flutuando por tempo suficiente para que isso acontecesse.

O engraçado é que os engenheiros da Healtheon também se sentiam assim. Eles também eram galinhas que tinham sido transformadas em porcos. E eles também logo descobriram que os porcos pagam um preço surpreendentemente alto para desempenhar um papel na mesa do café da manhã de Clark.

Page 202: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

209

O primeiro mau sinal chegou para a Healtheon cerca de seis meses depois que os engenheiros criaram o software para a Blue Cross/Blue Shield de Massachusetts. O software criado pelo grupo de Pavan foi uma espécie de triunfo. Era seguro, confiável e funcionava igualmente bem para dez pessoas ou para 10 mil. Haviam feito o trabalho de vários anos em seis meses. Mas a Blue Cross/Blue Shield de Massachusetts não o quis. Depois de dizer o quanto tinha gostado, a Blue Cross/Blue Shield de Massachusetts anunciou que não podia realmente se dar ao luxo de se concentrar em uma nova tecnologia. A Blue Cross/Blue Shield estava em má situação financeira; e, como sempre acontece em tempos difíceis, seu investimento no futuro precisava ser reduzido. O grupo de novas tecnologias foi demitido.

Durante a maior parte de 1996, os engenheiros fizeram o que a força de vendas lhes disse para fazer. A força de vendas, por sua vez, tinha sido reunida por um capitalista de risco da Kleiner Perkins, David Schnell, que, contra seu próprio julgamento, tinha concordado em ser capitão do novo navio de Clark. A força de vendas lhes tinha dito que a chave para o Diamante Mágico era escrever um software que permitisse que empregados da iniciativa privada interagissem com seus planos de saúde pela Internet. Eles escreveram tal software... e ninguém o queria! A força de vendas contratada por David Schnell os tinha levado a um beco sem saída. “Eles contrataram um monte de sujeitos simpáticos para fazer as vendas, gente que podia perfeitamente estar vendendo seguros”, diz Stuart Liroff. “Um bando de corretores de seguros — eles não

Page 203: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

210

tinham idéia do que estavam fazendo. A boa velha guarda.” A boa velha guarda estava enganada. Pior do que enganada. Um dia no fim de 1996 os engenheiros ergueram os olhos e perceberam que nem sequer pensavam mais a respeito do Diamante Mágico. Não estavam fazendo nada além de conversar com grandes empresas a respeito de como permitir que seus empregados resolvessem todos os seus problemas de seguro de saúde pela Internet, em vez da costumeira tempestade de papelada. Uma meta louvável, talvez, mas nada de grandioso como a aspiração original de assumir uma indústria de saúde no valor de 1,5 trilhão de dólares. Em suma, perceberam que o negócio estava mal orientado. E, quando perceberam isso, ficaram zangados. “A essa altura”, diz Pavan, “nós, engenheiros, assumimos o negócio.”

Os engenheiros, que sempre tinham se contentado em agir conforme as instruções do departamento comercial, fizeram o

que nunca tinham feito antes. Chutaram os vendedores para escanteio — acabaram sendo todos demitidos — e foram para a rua vender eles mesmos o software. Estavam à procura da chave para o Diamante Mágico. Se conseguissem um só cliente grande e importante, pensavam, os outros viriam em seguida. Durante algum tempo acreditaram que seriam contratados para organi-zar o plano de saúde da Fidelity, a maior administradora de recursos americana, mas isso não deu em nada. A Fidelity lhes pagaria 20 milhões de dólares para fazê-lo. Clark reapareceu e disse que o primeiro contrato da Netscape, com a mci, tinha sido de apenas 6 milhões de dólares: eles estavam em uma situação três vezes melhor do que a da Netscape!

Page 204: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

211

E então, em março de 1997, a Fidelity anunciou que tinha decidido afinal não se meter com novas tecnologias, e os engenheiros se viram sem ninguém que quisesse comprar o que tinham feito. “Tínhamos renunciado a nossas vidas por seis meses”, diz Stuart. “Minha mulher estava puta comigo. Minha filha chorava porque eu nunca voltava para casa. Trabalhávamos vinte horas por dia. E então finalmente entregamos o produto e pensamos: o que foi que fizemos? Renunciamos a tanto... para isso? Foi uma espécie de tomada de consciência total. Ficamos todos putos. Pavan, Kittu e eu... fazíamos reuniões noturnas para discutir o que fazer, e

Page 205: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

212

essencialmente o que fazíamos era gritar uns com os outros. Tínhamos nos metidos naquela porra de situação. Tínhamos sido levados por um caminho. O período de 1996 foi a época mais horrorosa de nossas vidas. Sabíamos que tínhamos criado algo muito importante. Só que não conseguíamos vender para ninguém. E o que é que tínhamos aprendido? Não tínhamos aprendido porra nenhuma. Tínhamos construído o que tinham nos mandado construir. Era a ITV toda de novo.”

O maior temor deles era o maior temor de toda nova empresa do Vale do Silício: êxodo em massa. Empresas assim não conseguem agüentar o pessimismo, e naquele momento havia muito pessimismo na Healtheon. A situação ficou tão ruim que Pavan foi para o quadro-negro e desenhou o que chamou de “matriz de fidelidade”. Os primeiros dez engenheiros que contratara, imaginava, lhe eram fiéis. Ligou para cada um deles e lhes disse que encontrassem as pessoas que eram fiéis a eles e as persuadissem a não ir embora. Bastava que gotejassem algumas pessoas para começar a enchente.

Era a segunda vez em alguns anos que um grupo de engenheiros altamente talentosos tinha corrido por um caminho indicado por Clark, e assim mesmo, estranhamente, ninguém punha a culpa em Clark. Eles o tinham encarado como um patrocinador o tempo todo. Sempre que o conselho de administração da Healtheon se reunia, os capitalistas de risco passavam pelos engenheiros sem dizer nenhuma palavra. Clark se detinha e ficava metade do dia conversando com eles sobre o software. Sempre que no conselho da Healtheon

Page 206: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

213

se falava em diluir a participação que tinha sido dada aos engenheiros, Clark resistia. Os engenheiros tinham por certo que Clark era a única pessoa no lugar que estava do lado deles.

Eles punham a culpa em David Schnell, o capitalista de risco que tinha sido instalado pela Kleiner Perkins como CEO

Page 207: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

214

temporário. Diziam a Clark, como ele disse mais tarde, que “David ocasionalmente deixava os clientes com a impressão de que O trem estava deixando a estação, e que, se eles não subissem a bordo imediatamente, ficariam para trás”. (Pode ser útil que um cliente tenha essa impressão, mas nunca se deve dizer isso expli -citamente.) Mas, claro, Schnell era o problema! Schnell era um capitalista de risco, e capitalistas de risco normalmente não precisam ser bem-educados com ninguém, já que as pessoas normalmente vão até eles de quatro e imploram por dinheiro. E, como capitalista de risco, Schnell tinha a tendência, repentinamente infeliz, de preferir ganhar um dinheirinho fácil a reformar o mundo à sua imagem. Ele tinha afastado os engenheiros do Diamante Mágico e os tinha levado a um pequeno terreno baldio chamado administração de benefícios, onde esperava ganhar dinheiro imediatamente. E nem isso tinha feito direito.

O que Clark e seus engenheiros perceberam é que eles precisavam de um líder carismático que fosse capaz de tornar o Dia mante Mágico uma realidade. O que precisavam era um desses sujeitos com cabelo grisalho e maneiras agradáveis que pudesse falar com os CEOS das grandes empresas de saúde em seu próprio idioma. Um desses sujeitos do grande mundo de negócios americano que instantaneamente, apenas por sua presença em cena, tornasse plausível o implausível. O que precisavam, em outras palavras, era algo que Jim Clark sozinho nunca ofereceria. Um Executivo Americano Sério.

Page 208: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

215

Até esse momento de grave desespero no início de 1997, nunca tinha ficado inteiramente claro por que Clark tinha procurado os capitalistas de risco de Sand Hill Road. Ele não precisava do dinheiro deles. Tinha mais dinheiro do que todos juntos. Mas precisava deles, afinal: precisava que traduzissem sua extraordinária ambição para o idioma compreendido pelo mundo dos negócios americano. O homem que buscava a nova novida de era, de muitas maneiras, inepto para os negócios convencionais. Clark sabia que ia chegar a hora de colocar uma carinha sorridente de grande empresa em sua feroz ambição. E também que ele não sabia fazer tal coisa. Como diz um observador de longo curso de Clark: “Jim é esperto o bastante para saber quando não deve confiar em si mesmo”. Em especial, Clark sabia que era pouco provável que ele conseguisse atrair sozinho um Executivo Americano Sério para administrar sua empresa loucamente ambiciosa. O Executivo Americano Sério daria uma longa cheirada no Clark World e correria para o lado oposto. Baseadas como eram não em lucros, mas na percepção, as novas empresas de Internet ainda eram tudo menos compreensíveis para o Executivo Americano Sério. Uma simples verificação de quem era quem revelaria que, traduzido em língua de executivo, “Jim Clark” significava “Problema Sério”.

Os capitalistas de risco, por outro lado, estavam por dentro. No tom e no espírito, não eram tão diferentes dos Executivos Americanos Sérios. Os capitalistas de risco tinham freqüentado escolas de administração, falavam o jargão, vestiam ternos, ou pelos menos tinham alguns. Os capitalistas de risco deixavam as

Page 209: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

216

gravatas em cabides atrás das portas dos escritórios, de modo que podiam ir de um jeito ou de outro. Estavam agradavelmente livres do cheiro de quem está em uma missão suicida. Um capitalista de risco em particular tinha um dom especial para persuadir CEOS convencionais de que o único lugar em que valia a pena estar era um start-up no Vale do Silício: John Doerr. Doerr era o único capitalista de risco a quem Clark dispensava algo parecido com respeito. Ele pediu a Doerr que se juntasse ao conselho da Healtheon e o ajudasse a encontrar um CEO. Doerr, que tinha dito a muita gente que a Healtheon poderia se tornar a maior empresa já financiada pela Kleiner Perkins, dedicou-se então a encontrar o Executivo Americano Sério que pudesse tornar o Diamante Mágico plausível para o mundo exterior. Ele o encontrou em uma conferência em Phoenix, no Arizona. Seu nome era Mike Long.

Long diplomara-se em história na Universidade da Caro- lina do Norte, em Chapei Hill, em 1974, e tinha passado os vinte anos seguintes construindo uma bela empresinha de serviços de informática em Austin, no Texas, chamada Continuum. Em 1996, a Continuum foi vendida por 1,7 bilhão de dólares para outra empresa de serviços de informática igualmente obscura chamada Computer Sciences. Tinha sido um negócio e tanto na época — o sétimo maior negócio já feito na indústria de informática. Tudo a respeito de Mike Long tranqüilizava Jim Clark: suas maneiras gentis, seu cabelo prematuramente grisalho, sua habilidade de parecer sempre controlado. Quando Mike Long entrava em uma sala, todos se sentiam de alguma forma melhor. Ele atraía seguidores como ímãs atraem limalha de ferro.

Page 210: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

217

Em outras palavras, era exatamente o homem certo para tomar uma idéia inerentemente implausível e fazer com que outros acredi tassem nela.

Não tinha ocorrido a Mike Long que ele pudesse querer trabalhar no Vale do Silício até que John Doerr lhe submeteu a hipótese. No curso de seis meses, John Doerr telefonou para Long “mais de cem vezes” e tentou convencê-lo a deixar sua estável e bem-sucedida empresa, chamada Computer Sciences, e juntar-se à revolução da Internet. Long voou até a Califórnia para conhecer Jim Clark. Quando lhe perguntavam qual sua primeira impressão de Clark, ele dizia: “Jim é um visionário”. E também: “Jim é um excêntrico”.

Long precisou de seis meses para conseguir sair de sua antiga empresa. Quando chegou à Healtheon, em julho de 1997, todos estavam em total desespero. A empresa inteira, agora mais de cem pessoas, se reuniu em uma sala. Desligaram a cascata artificial, de

Page 211: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

218

forma que ninguém perdesse uma só palavra. Long levantou-se e explicou como pretendia restituir a empresa ao coração do Diamante Mágico. “Era claro o que tinha acontecido”, disse mais tarde. “Esta empresa começou com grandes ambições, e então a ambição foi ficando cada vez menor. Eu simplesmente a levei de volta à visão original de Jim.” Era exatamente o que os engenheiros queriam ouvir. Eles não sabiam bem o que Mike Long fazia, mas tinham a impressão de que o fazia bem. “Ele usa todas essas palavras incríveis, e esse jeito de falar”, diz Stuart, apesar de não se lembrar de nenhuma delas. É a maneira que os engenheiros têm de dizer que a Healtheon tinha encontrado, afinal, seu Executivo Americano Sério.

O Executivo Americano Sério, de sua parte, tinha encontrado o caos. Na reunião do conselho, em setembro de 1997, Mike Long anunciou que o dinheiro estava acabando. Antes da reunião, Dick Kramlich e seus sócios na New Enterprise Associates tinham avaliado sua carteira de investimentos. Seguiram a lista de alto a baixo e estimaram quanto valia cada empresa no momento. Quando chegaram à Healtheon, escreveram “0”. A Healtheon estava acabada, presumiram. Juntamente com Clark, tinham posto 6 milhões de dólares na empresa, e não estavam dispostos a pôr mais nada. E então, quando Long disse que precisava de mais dinheiro, os capitalistas de risco endureceram o olhar na reluzente mesa de reuniões. Acabaram por traçar um plano para levantar 20 milhões de dólares de investidores estrangeiros. Evidentemente, se acreditassem que a Healtheon tinha futuro, teriam feito o investimento eles mesmos. Como não

Page 212: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

219

acreditavam, saíram em busca de capital em outras plagas.

A exceção foi Clark. Ele telefonou para Long alguns dias depois da reunião do conselho e disse que tinha pensado a respeito e chegado à conclusão de que a Healtheon era simplesmente uma oportunidade boa demais para deixar que gente de fora entrasse. Disse que forneceria pessoalmente todo o dinheiro que Long precisasse. Se Long precisasse de 20 milhões de dólares, Clark lhe daria o cheque de 20 milhões no dia seguinte.

Evidentemente, isso significava que Clark ia adquirir uma participação ainda maior na empresa. Mas já que os capitalistas de risco estimavam que a empresa valia zero, ele não imaginava que eles pudessem se opor. Long telefonou para os capitalistas de risco com a proposta de Clark. A impressão que eles tinham de que a Healtheon valia muito pouco travava uma guerra com seu medo de que Jim Clark soubesse algo que eles não sabiam. Em algum lugar, bem no fundo, eles percebiam como ficariam mal se a Healtheon por algum milagre se tornasse um enorme sucesso, e Clark ficasse com tudo sozinho. Quase sem saber o que faziam, jogaram o dinheiro na mesa — 8 milhões de dólares. Clark forneceu os outros 12 milhões.

Esse momento representou uma pequena, mas importante, reviravolta no capitalismo do Vale do Silício. Na verdade, essa expressão não é muito precisa. “Reviravolta” sugere que retroceder era impossível, quando retroceder era inevitável. Mesmo assim, o comportamento de Clark foi significativo. Ele foi, durante aquele momento breve e curioso, o regente da

Page 213: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

220

orquestra. Marcou o ritmo. No passado, os capitalistas de risco tinham sempre feito isso. Os capitalistas de risco do Vale do Silício tinham sempre sido os primeiros a pôr dinheiro em qualquer empresa de tecnologia nova. A explosão da Internet tinha transformado o capitalismo de risco em uma licença para imprimir dinheiro; metade dos funcionários de bancos de investimento sonhava em trabalhar para a NEA ou para a Kleiner Perkins, porque trabalhar como capitalista de risco colocava as pessoas mais perto da origem da riqueza. Das receitas culinárias. Era como se todo mundo em Wall Street de repente se desse conta de que se alguém quisesse o melhor corte de carne, tinha que entrar na cozinha à força. Gente que era sócia em firmas de Wall Street implorava para entrar. Uma vez aceito na Grande Sociedade de Sand Hill Road, conseguia-se participar desses empreendimentos milagrosos por uma pequena fração do custo para os banqueiros de investimento de Wall Street — sem falar no público em geral. Mas havia apenas um punhado de gente com esse tipo de privilégio, e Kramlich e Doerr eram dois dos mais importantes. A maquinaria capitalista favorecia esses capitalistas como nunca favorecera ninguém mais em sua história.

Clark conseguiu fazer essa máquina enguiçar. Ele precisava dos capitalistas de risco para ajudá-lo a colocar um rosto sério em suas preciosas idéias. Precisava de John Doerr para convencer Mike Long a administrar a empresa. Além disso, até onde Clark estava interessado, o departamento financeiro da economia americana era descartável. Ele não precisava da bênção dos capitalistas

de risco. E certamente não precisava de seu dinheiro. A

Page 214: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

221

essa altura estava sentado em cima de 1 bilhão de dólares em ações da Netscape e podia fazer o que quisesse com elas. E o que lhe aprazia era colocar seu dinheiro em grande risco. Os

capitalistas de risco não se interessavam em fazer esse tipo de aposta colossal no futuro. Eles espargiam seu dinheiro em uma porção de empresas diferentes e contavam com que a lei das probabilidades se encarregaria do resto. Clark usava uma abordagem dife-rente. Ele dizia com alguma convicção: eu sei como ganhar muito dinheiro no futuro. E já que sei como ganhar muito

dinheiro no futuro, vou pôr todo o meu dinheiro nele.Era uma diferença de temperamento mais do que

outra coisa. Clark andara até uma roleta cercada de homens mais ou menos razoáveis, e tinha depositado todas as suas fichas no 00.

E isso apavorava todos os outros na mesa. Os capitalistas de risco podiam tolerar que empresas quebrassem — tinham tantas —, mas não suportavam a idéia de ficar fora da nova novidade. E, portanto, investiam dinheiro a rodo. Jogavam dinheiro e mais dinheiro em empresas que suspeitavam que fracassariam. Eles gostariam de ser galinhas; Clark os obrigava a ser porcos. “Acho que Jim sabia exatamente o que estava fazendo quando ligou para Mike Long e disse que daria todo o dinheiro de que ele precisasse”, diz Dick Kramlich. “Jim progrediu muito desde a Silicon Graphics.”

Page 215: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

222

12. Novo dinheiro novo

Certa tarde de verão, depois de uma reunião com os capitalistas de risco a respeito do futuro da Healtheon, Clark pulou em um de seus carros esporte e se arremessou na direção de San Francisco. Com a capota arriada e o ponteiro do velocímetro perto dos 160 quilômetros por hora, ele tinha que gritar para se fazer ouvir. “Estou começando a me sentir pobre!” berrou.

Era ao mesmo tempo uma piada e uma queixa. Ele se sentia pobre e percebia que era engraçado, ou pelo menos estranho, se sentir pobre. Afinal, sua participação na Netscape ainda valia quase 600 milhões de dólares. Mesmo que a Microsoft conseguisse tirar a Netscape do negócio (o que Clark acreditava que aconteceria), ele achava que logo seria muito mais rico do que então. A despeito de todas as indicações, ele tinha certeza de que a Healtheon seria um sucesso tão grande que seria constrangedor. De fato, um de seus

Page 216: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

223

propósitos na reunião era aumentar sua participação na empresa. Não, ele estava menos preocupado com a Healtheon do que com a nova novidade — fosse o que

pudesse ser. Fosse o que fosse, tinha que ser maior e mais espetacular do que a Healtheon. Essa era a única regra de Clark sobre novas novidades: cada uma tinha que ser maior do que a anterior. “A idéia até aqui é que reuni toda a madeira que eu tinha em uma flecha só”, explicou. “O risco agora é que na próxima vez a flecha fique tão grande que o mundo inteiro vai prestar atenção. E não é mais uma flecha, é um míssil balístico intercontinental. ‘Bem, Jim Clark fracassou.’ Essa vai ser história. E vai ser uma história e tanto.”

A idéia o deixava feliz. Ele dizia que sobreviveria ao inevitável fracasso, porque seria, inevitavelmente, espetacular. Apenas vinte minutos antes, quando entramos no carro, ele estava soturno. Tinha amaldiçoado os capitalistas de risco do Vale do Silício como “parasitas” e se queixado da comissão cobrada pelos bancos de investimento de Wall Street para ajudar as empresas do Vale do Silício a abrir o capital. E agora, no entanto, de repente, ele estava de bem com o mundo. A história de aventura na sua imaginação o acalmara. Ou talvez fosse a velocidade do carro. Tudo o que ele tinha que fazer era enfiar a marcha mais alta em algum de seus bólidos para redescobrir o lado ensolarado da vida.

A viagem do escritório principal da Healtheon, na

beirada norte de San Jose, até o centro de San Francisco durou uma hora. Chegamos a um arranha-céu, estacionamos irregularmente, entramos no elevador e apertamos um botão. Subimos, subimos, subimos, e à

Page 217: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

224

medida que subíamos, me dei conta da incongruência dele. O centro de San Francisco é um desses lugares antiquados, onde homens de negócios vão para o trabalho

de terno e medem seu status pela vista da baía. Clark vestia uma camisa pólo amarela, calça esporte presa na cintura por um cinto de marinheiro manchado, e um par de tênis puídos com uma etiqueta encardida onde se lia: mephisto. Os motoboys estavam mais bem vestidos.

Page 218: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

225

Ele tinha vindo a San Francisco para abrir uma conta num banco suíço. Por que ele queria uma conta num banco suíço é difícil de explicar. Tinha a ver com a Europa.

A chegada de Clark no estaleiro holandês representara um ritual de acasalamento financeiro transmitido por todo o território europeu. Príncipes, duques, condes, barões e todos os tipos de desocupados vieram correndo para abraçar o futuro. A tendência de Clark a confiar nas pessoas logo no primeiro encontro o colocara em apuros. Ele emprestara a um dos deso-cupados mais notórios algumas centenas de milhares de dólares de modo que o desocupado pudesse comprar ações da @Home. O desocupado ganhou muito dinheiro e então, talvez baseado em uma vaga idéia jamesiana segundo a qual americanos ricos têm tanta admiração pelos desocupados europeus que preferem perdoar suas dívidas a provocar um tumulto social, deixou de pagar o empréstimo. A essa altura, a tendência de Clark para destruir gente que traía sua confiança entrou em cena. (Pode ter demorado cem anos, mas o americano de quem Henry James falava aprendeu muito.) Ele descobriu qual era o banco do sujeito na Suíça, Banco Julius Baer, e voou até lá para encontrar o diretor geral e informá-lo das dívidas do cliente. Agora, para completar a humilhação, ia abrir uma conta na filial do Julius Baer em San Francisco, de modo que, se o desocupado desse o calote, o faria sob os olhos de seu pomposo banco. A idéia de Clark era que ou bem o sujeito pagava ou sofreria vergonha e humilhação na Suíça.

O diretor da filial do Julius Baer em San Francisco

Page 219: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

226

nos encontrou no momento em que saíamos do elevador. Ele estava claramente deliciado com o fato de o americano rico estar abrindo uma conta, mesmo que pretendesse depositar apenas o mínimo exigido. Seu rosto redondo indicava a ânsia de agradar, sua pança indicava a disposição para almoçar. Mas o que chamava a atenção

Page 220: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

227

era menos sua aparência do que suas maneiras, uma mistura infeliz de deferência e autoridade.

“Não vou gastar seu tempo com nosso material promocional”, disse, gastando o tempo de Clark com o material promocional, antes de jogar os folhetos brilhantes de lado. Ele se abraçou a um documento de aparência séria que nada tinha de brilhante, e levou Clark para uma sala revestida de madeira escura. Clark se sentou de um lado da mesa, o banqueiro suíço do outro. O banqueiro disse que o documento em suas mãos continha uma série de perguntas que todos os bancos suíços faziam a seus novos clientes.

“Ocupação?”, perguntou.Clark fez uma pausa. Sua expressão traía uma total

falta de entendimento. A primeira pergunta! E ele já estava embatucado!

“Executivo”, disse afinal. Então olhou para mim como se pedisse desculpas. “Eles geralmente não têm uma categoria para o que faço. Então simplesmente digo executivo.” O banqueiro suíço riu, nervoso. “Nunca perguntávamos essas coisas até muito recentemente... dez anos atrás”, disse. “Até então não perguntávamos nada. Mas agora...” Deu de ombros, e nesse minúsculo gesto estava o grito silencioso de um homem de pé em cima de uma tradição que desmorona. Uma combinação de pressão direta do governo americano com pressão indireta da consciência pública forçara os bancos suíços a se tornarem indiscretos.

A tradição dos bancos suíços, no entanto, seria inútil no caso de Clark. O problema com os novos-ricos americanos, do ponto de vista dos bancos suíços, é que eles nada têm a ocultar do ponto de vista financeiro. A

Page 221: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

228

fortuna de Clark era tão pública quanto as grandes fortunas sempre foram. Quem quisesse saber quanto ele tinha precisava apenas examinar alguns documentos na Securities and Exchange Commission [a Comissão de Valores Mobiliários americana]. Ou se não quisesse se dar a esse trabalho, podia

Page 222: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

229

consultar a lista anual dos quatrocentos americanos mais ricos na Forbes, onde agora apareciam o nome de Clark e uma boa estimativa de sua fortuna. Ou, se não quisesse ler, bastava perguntar a Clark. Ele não via muito sentido em fingir que seu dinheiro era uma espécie de segredo.

“Meta de investimento?”, perguntou o banqueiro suíço.

Clark disse: “Recuperar meu dinheiro”.“Perfil de risco?”, perguntou o banqueiro.Clark ficou olhando para ele. “O que quer dizer?”,

perguntou. O banqueiro não sabia bem como explicar, então fez uma pausa para um pouco de conversa fiada. Dava para perceber que ele tentava encontrar o conjunto de frases, ou talvez o estado de espírito, que faria com que o americano em busca da nova novidade revelasse suas finanças ao Banco Julius Baer. Era como um sujeito que percorre um molho de chaves velhas na vã tentativa de abrir um fechadura nova e brilhante. A fechadura gentilmente se recusava a abrir.

Finalmente, o banqueiro simplesmente deslizou o questionário pela mesa de mogno e pediu que Clark o preenchesse ele mesmo.

Clark fitou intensamente o documento, “PERFIL DE INVESTI-

MENTO”, estava escrito, em negrito, no alto. O questionário podia ser novo para os bancos suíços, mas mesmo assim refletia vetustas premissas suíças a respeito de dinheiro. Presumia, em particular, que qualquer dinheiro depositado no Banco Julius Baer a) não tinha sido ganho por outra pessoa que ainda estivesse viva, e b) não podia ser perdido.

À medida que Clark estudava o documento, seu

Page 223: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

230

rosto adquiria a expressão dolorosa de uma criança bem-intencionada que está dando tudo de si para responder a uma pergunta difícil. Ele ficava assim com freqüência quando enfrentava novas situa- ções, ou com pessoas que não conhecia. Ele queria muito fazer o que se esperava dele. Só depois de chegar à conclusão de que isso era impossível é que ele seguia em frente e fazia o que bem entendesse.

Agora ele estava dando tudo de si para agradar ao Banco Julius Baer. Mesmo assim, não conseguia atinar como as perguntas do banco pudessem se aplicar a ele. Chegou à primeira categoria, marcada “Risco/Retorno”. Um gráfico simplório com uma seta apontando para cima e para a direita ilustrava o princípio segundo o qual quanto maior o risco que você correr com seu dinheiro, maior sua chance de ganhar ou de perder. Nos dez meses anteriores, Clark tinha “perdido” 600 milhões de dólares simplesmente por conservar suas ações na Netscape. “Se eles soubessem”, disse. O banqueiro suíço deu uma risada infeliz. Clark permaneceu sério. Seus olhos correram pela página até chegar a uma categoria intitulada “Metas de retorno e tolerância a risco”. Era um resumo da idéia típica dos banqueiros suíços da gama de atitudes possíveis em relação ao risco financeiro. Dizia:

Conservador: Procuro [...] minimizar a volatilidade do investimento.

Crescimento moderado: Quero correr algum risco, mas preser-vando o capital.

Page 224: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

231

Alto crescimento: Tenho um horizonte mínimo de cinco anos no qual perseguir meus objetivos.

Junto a cada perfil de risco havia um pequeno quadrado. Clark passou rapidamente pelos dois primeiros e deu uma parada no terceiro, imaginando, provavelmente, onde é que punham o quadrado para as pessoas que procuram transformar 10 milhões de dólares em 1 bilhão em alguns meses. Finalmente ergueu os olhos com uma expressão absolutamente perplexa.

”Acho que isso é para... alguém diferente”, disse.Nesse momento, aconteceu algo dentro dele. Lá

estava ele, o criador do dinheiro mais rápido já ganho legalmente. Era o líder espiritual de um novo movimento financeiro que acreditava em colocar todas as fichas no 00. Ele não tinha a mais leve vontade de “administrar” aquele dinheiro, ou de “diversificar sua posição”, ou de empregar qualquer desses verbos sutis que emanam dos banqueiros e inspiram gente que não é de banco a lhes entregar seu dinheiro. Naquele momento, a carteira de investimentos de Clark, tal como era, tinha esta aparência:

Healtheon: 9 500 000 ações. Valor de mercado estimado: 0.

Netscape: 15 500000 ações. Valor de mercado estimado: 550 milhões

Page 225: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

232

de dólares.

A Microsoft estava devorando a fatia de mercado da Netscape, com ela o valor da ação da Netscape, e com ele a fortuna de Clark. E mesmo assim Clark não tinha um só pensamento no sentido de “preservar” essa fortuna. Não tinha nenhum interesse em preservação de qualquer tipo. Dedicava a vida à bela arte de destruir e construir de novo. Não comprava títulos do Tesouro americano, nem ações de empresas de fora do Vale do Silício, nem, por falar nisso, de nada fora do vergonhosamente volátil setor de Internet. Cerca de um ano antes ele comprara e vendera 1 milhão de ações da @Home, e ganhara rapidamente 45 milhões de dólares. Além disso, enterrara sua fortuna na mais nova de suas empresas, e deixara tudo lá até que aparecesse a nova novidade.

Essa magnífica miopia financeira era comum no Vale, e uma das principais fontes de seu sucesso. A tendência dos tecnólogos de comprometer todos os seus recursos em novas tecnologias, ao

Page 226: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

233

financiar continuamente outras novas tecnologias, havia gerado um dos grandes milagres econômicos da história humana. Agora esse banqueiro suíço barrigudo, em seu terno cinza molhado, oferecia sua receita suíça de como mexer com dinheiro. Na cabeça de Clark era uma receita apenas para a mediocridade e para a estabilidade, que redundavam na mesma coisa. Todos os preceitos destinados a manter as pessoas trancadas no mesmo lugar estavam ali no questionário. Apresentá-lo a Clark, e pedir-lhe que o preenchesse, não era apenas um infeliz julgamento comercial. Era uma gafe social de mesma magnitude que convidar o gatilho mais rápido do Oeste para a corte em Versalhes.

“Ninguém que eu conheça saberia o que isso significa”, disse Clark afinal.

A essa altura já estava aos risos. O banqueiro suíço também ria, mas com menos sinceridade. O cliente estava rindo! Do questionário do Banco Julius Baer! Do Banco Julius Baer! Clark pulou uma das perguntas do Julius Baer, depois outra, e uma terceira. Finalmente, parou em uma seção perto do fim do questionário, intitulada “O panorama”. Dizia:

Os ativos investidos com o Grupo Julius Baer serão:

A maior parte de meus ativos financeiros

Apenas parte dos meus ativos financeiros

___dos meus ativos

Page 227: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

234

financeiros.

Enquanto o banqueiro suíço tentava dividir algumas centenas de milhares por 550 milhões de dólares, Clark se curvou sobre a terceira linha no formulário e escreveu “0,00035”.

“O que será que o computador deles vai fazer com isso?”, perguntou. Então agradeceu ao banqueiro educadamente e saiu.

Nunca o amor do homem pelo risco foi tão perfeitamente amplificado por seu ambiente quanto o de Clark foi no Vale do Silício. No fim de 1997, a Healtheon não valia nada, pelo menos do ponto de vista dos capitalistas de risco. No verão de 1998, os bancos de investimento de Wall Street achavam que ela era digna de abrir o capital. Ainda não era uma empresa viável; estava perdendo dinheiro num ritmo de 50 milhões de dólares por ano. Mas de repente ficou plausível. Isto é, poderia ser oferecida aos investidores como uma empresa que poderia um dia ganhar vastas quantias de dinheiro. Os investidores acreditariam nisso. Pelo menos é o que diziam os bancos de investimento.

Um pouco mais de um mês depois de Clark ter visitado o banco suíço, os bancos de investimento de Wall Street visitaram a Healtheon. Em 1986, quando Clark queria que os bancos de investimento de Wall Street vendessem a Silicon Graphics para o público, ele voou para Nova York de chapéu na mão. Muitos dos banqueiros o trataram mal. O CEO da Salomon Brothers, John Gutfreund, faltou a um encontro — deixou-o sentado no saguão da Salomon Brothers como se fosse um matuto. Agora os bancos de investimento vinham ao

Page 228: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

235

Vale do Silício. Essa era apenas uma das muitas mudanças recentes na cadeia alimentar do capitalismo. Wall Street tinha deixado de ser a celebridade da cultura do dinheiro para se tornar o lacaio.

Foi em junho de 1998 que seis banqueiros da Goldman Sachs visitaram a Healtheon; bem nos seus calcanhares vieram mais cinco banqueiros do Morgan Stanley. Junto com Long, Pa- van Nigam, Jim Clark e uma dúzia de funcionários da Healtheon, enfiaram seus corpinhos engomados em uma pequena sala de reunião. O que se seguiu foi um balé de dinheiro maravilhosa-mente elaborado.

Demorou cerca de uma hora para a dança começar: quando há bilhões de dólares cm jogo, não se pode simplesmente falar de dinheiro. É importante demais. Mike Long se sentou na cabeceira da mesa de reunião. Os banqueiros de investimento se sentaram ao longo da mesa. Os funcionários da Healtheon se acomodaram nas cadeiras junto à parede. Clark se sentou perto da porta, que, para consternação dos banqueiros, deixou entrea-berta. Eles não entendiam que nada realmente importante acontece a portas fechadas. Assim mesmo a sala permaneceu abafada demais para o gosto de Clark, e ele passou toda a reunião se levantando e perambulando pelos corredores. Long apresentou os funcionários da Healtheon e então voltou-se para 0 único homem na sala que dispensava apresentações. “Jim Clark”, disse, “por que não nos conta como era sua visão original desta empresa?”

Jim Clark não se fez de rogado. “Logo depois da Netscape, me interessei pelos mercados verticais”, começou, empregando o costumeiro dialeto da Internet.

Page 229: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

236

Um mercado vertical era o mercado de um único produto ou serviço, como livros ou viagens. Um mercado horizontal era um mercado que se esparramava por muitos bens ou serviços, como um browser Web. A Netscape estava em um mercado horizontal; a Healtheon estava em um mercado vertical. “Sempre achei que a maior oportunidade na Internet eram os mercados verticais”, continuou Clark. “Eu não entendia nada de saúde, mas estava procurando alguma coisa que valesse a pena fazer, e...”

Ele prosseguiu por alguns minutos explicando por que “valia a pena” virar um mercado de saúde, de 1,5 trilhão de dólares, de cabeça para baixo. Então pôs sua cadeira sobre duas pernas, contra a parede, e devolveu o palco a Mike Long. “A Internet muda tudo”, disse Long. “Todo o mundo pode se conectar à Internet. E isso graças a você, Jim.”

Os banqueiros deram risinhos de aprovação. Por seu tom e seus modos, eles transmitiam a idéia geral de que todos que

Page 230: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

237

importavam nesse mundo novo estavam naquela pequena sala. Ali se sentiam seguros. O jogo agora era no Vale do Silício. Evidentemente, um banqueiro de investimento não era exatamente um jogador no Vale do Silício. Estava mais para gandula. Mas pelo menos estava no Vale do Silício. Seus colegas em Nova York estavam relegados à arquibancada do capitalismo — e isso os torturava. Afinal, qual é a graça de ser um banqueiro de investimento se você não ganhar mais dinheiro do que todo mundo?

Ainda assim, os banqueiros de Wall Street ocupavam um estágio mais alto na cadeia alimentar do capitalismo do que os banqueiros suíços. Participavam diretamente no milagre de Jim Clark, ou achavam que participavam. É verdade que tinham sido empurrados um ou dois estágios cadeia abaixo por empreendedores como Clark e capitalistas de risco como John Doerr. É verdade que quando o Morgan Stanley e a Goldman Sachs telefonaram para Mike Long e disseram, do seu jeito pomposo, que só fariam o lançamento de ações da Healtheon se tivessem exclusividade no negócio, bastou que Long lhes dissesse com severidade: “Ponha isso por escrito”, para que eles cedessem e dissessem que fariam o que ele mandasse, quando mandasse. Mas ganharam centenas de milhões de dólares com a explosão da Internet. Era plausível que afirmassem, pelo menos naquele momento, que eram os realizadores, e não as vítimas da mudança. Para abrir o capital de uma empresa como a Healtheon, eles cobravam 7% de todo o dinheiro levantado, mais despesas. Se uma empresa levantasse 50 milhões de dólares, o banco de investimento embolsaria 3,5 milhões de dólares líquidos

Page 231: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

238

por algumas semanas de trabalho. Essa comissão era geralmente apenas uma espécie de adiantamento. Depois que o preço da ação dessas empresas de Internet deco-lava, podia ser usado para adquirir outras empresas cuja ação era mais barata. Os banqueiros de Wall Street atuavam como agentes para essas aquisições. Suas comissões não os faziam ricos comoClark ou como quem trabalhava para Clark, ou como quem trabalhava para quem trabalhava para Clark, ou mesmo como quem trabalhava para quem trabalhava para quem trabalhava para Clark. Mas eram mais ricos do que os banqueiros suíços.

A reunião com os banqueiros de Wall Street durou quatro horas, das duas às seis, com um longo intervalo para café e telefonemas. Long apresentou a empresa com o novo diagrama da Healtheon. O novo diagrama era ainda mais impressionante do que o Diamante Mágico, que ele substituíra. Era assim:

Page 232: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

239

Informalmente conhecido como Gráfico de Muitas Bolhas, onze para ser exato, ainda mostrava a Healtheon no centro. Mas agora a pequena empresa, que ainda tinha menos de duzentos empregados, ficava no meio de muitas coisas obviamente complicadas. O Gráfico de Muitas Bolhas provava que Mike Long, antes de tomar conta da indústria de saúde, ao menos se dera ao trabalho de aprender os nomes de suas partes constituintes. No entanto, o interesse do pessoal do Morgan Stanley pelo Gráfico de Muitas Bolhas era apenas cortesia. A abertura da reunião foi como um ritual, um espargir de água benta no cordeiro antes de sacrificá-lo. Dava para perceber sua seriedade nesse assunto pela atitude em relação à caixa preta sobre a mesa de reunião. Um dos seis colegas, uma mulher que tinha ficado em casa doente, participava da reunião através do telefone viva-voz. De vez em quando um chiado ou um gorgolejo emanava da caixa no centro da

Page 233: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

240

mesa de reunião. Um bebê! A mulher do Morgan Stanley estava segurando um bebê, e o bebê se recusava a ficar quieto. A cada vez que ele choramingava, a sala o transformava cm pretexto para abandonar o Gráfico de Muitas Bolhas e se unia em uma gargalhada.

“Se você quer participar do jogo da saúde”, disse Mike Long, “precisa que grande parte do seu pessoal fale a língua.”

“Gibagibagibagiba”, disse o bebê.“Ho, ho, ho”, responderam todos na sala.Mas o Gráfico de Muitas Bolhas sugeria uma

questão óbvia, e os banqueiros de investimento levantaram-na: o que todas as empresas nas pequenas bolhas achavam da idéia de uma empresa iniciante do Vale do Silício organizá-las num Gráfico de Muitas Bolhas e se colocar em seu centro? Long tinha uma resposta longa e feliz: a Healtheon podia se inserir e eliminar os 250 bilhões de dólares de desperdício sem enfurecer as pessoas que viviam do desperdício. As empresas mais fortes de cada setor usariam os serviços da Healtheon para encurralar as empresas mais fracas. Quando as mais fortes percebessem que a Healtheon tampouco precisava delas, seria tarde demais. A maneira como Long disse tudo isso era um alívio absoluto. O que ele descrevia não era uma sublevação feroz na qual centenas de bilhões em capital seriam desviados e centenas de milhares de pessoas teriam que encontrar um novo emprego. Ele pretendia comer o mingau pelas beiradas, amistosamente.

Page 234: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

Essa era a versão light da intenção original de Clark. Ele tinha visto o sistema de saúde como via a maior parte do mundo: em preto-e-branco. Na sua maneira de pensar, havia profissionais de saúde que serviam a um propósito claro. Chamavam-se médicos. E havia pessoas que claramente precisavam de tratamento de saúde. Chamavam-se pacientes. Todo o resto — centenas de bilhões em papelada e papo furado — podia ser dis-pensado. Toda a conversa apaziguadora a respeito de “parcerias” e “relacionamentos com outras empresas de saúde, em que todos ganham”, era uma cortina de fumaça para o que Clark pretendia quando criara a Healtheon. “Queremos libertar os médicos e os pacientes, e tirar todos os babacas do caminho”, Clark me disse uma vez, e então riu. “Exceto nós mesmos. Um babaca só, bem no meio.”

Long não mencionou a pàrte a respeito de um babaca só, bem no meio. Em vez disso, apresentou o Gráfico de Muitas Bolhas aos médicos e outras autoridades de saúde na sala, mercenários em uma nova guerra civil. Um de cada vez, todos explicaram como pretendiam se imiscuir em sua própria bolha e conquistá-la para si. Primeiro os laboratórios farmacêuticos (o laboratório SmithKline tinha assento no conselho da Healtheon), depois as seguradoras (a seguradora United Health Care também tinha assento no conselho), PPOS [prestadores de serviços na área de saúde], hmos [empresas de medicina de grupo), hospitais, médicos, pacientes e assim por diante. Cada bolha, por si só, representava um gigantesco mercado. Durante os nove meses anteriores, Mike Long tinha convencido uma grande entidade em cada bolha a tornar-se cobaia para

Page 235: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

242

o software da Healtheon. Na essência, os funcionários da Healtheon explicaram aos banqueiros de Wall Street como pretendiam construir, simultaneamente, onze negócios multibilionários independentes.

Page 236: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

243

“Então, o que vocês fizeram durante o ano que passou?”, perguntou um dos banqueiros quando eles terminaram. Todos riram. O bebê chorou. Todos riram mais um pouco.

“Pavan Nigam agora vai explicar por que tudo isso vai funcionar”, disse Mike Long.

Pavan estivera sentado de lado, quieto, fingindo estar interessado. Levantou-se e ficou na frente de uma tela gigantesca, e me perguntei se era isso que tinha em mente quando terminou de ler o exemplar do USA Today no hotel em Delhi e decidiu ser um empreendedor na Internet. “Três anos atrás isso teria sido impossível”, ele disse, e começou uma apresentação absolutamente desconcertante sobre os meandros do funcionamento do software da Healtheon. Seguiam-se abstração após abstração, algo parecido com a crítica de arte contemporânea. O pessoal do Morgan Stanley nada tinha a dizer sobre o assunto. E como poderia? Não compreendiam aquilo melhor do que eu ou você compreenderíamos. Se eles soubessem escrever software, não ganhariam a vida tentando conduzir empresas de um lado para o outro. Mas, no fim da apresentação, um deles, talvez na esperança de desfazer a impressão de que o motivo pelo qual ban-queiros de investimento são banqueiros de investimento é que não tem inteligência suficiente para serem engenheiros de software, perguntou: “Há alguma parte importante da plataforma que não tenha sido construída?” Plataforma.

“Na verdade, não”, disse Pavan.Os banqueiros de investimento assentiram como se

compreendessem aquilo. Ninguém ousava ir mais fundo.

Page 237: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

244

O bebê deu um gritinho. Todos riram.Clark havia permanecido quieto o tempo todo. A

certa altura, quando os banqueiros perguntaram sobre as perspectivas da Healtheon, ele disse: “Pode ficar tão grande quanto a Microsoft, só que mais rápido”. Fora isso, ficou sentado e observou o que ocorria com a mesma indiferença de um menino que joga uma pedra morro abaixo e a vê se tornar uma avalanche. Sua maior contribuição à reunião era o fato de estar presente. Seu envolvimento com o negócio era igual ao de Jack Nicholson com o roteiro de um filme — ele aumentava a chance de o roteiro se transformar em um filme. Apenas pelo fato de estar por perto e ter algum interesse, ele fazia com que todos os envolvidos tivessem a sensação de estar empenhados em algo muito especial.

“E a concorrência?”, perguntou um dos banqueiros. “A IBM tem algo chamado Health Data Networks.”

Clark acordou por um minuto. “Eles não têm nenhuma vantagem sobre nós”, disse. “Assim que contratarmos alguém de relações públicas, vamos acabar com eles.”

Toda a conversa sobre a concorrência parou por aí. O assunto se desviou para finanças. Os banqueiros fizeram várias perguntas cosméticas: quanto dinheiro Mike Long achava que a empresa precisava? (40 milhões de dólares) Com que velocidade poderia crescer? (Com que velocidade queriam que crescesse?) Quanto estava em jogo? (O futuro do maior de todos os mercados.) “Os benefícios de ser o primeiro a atuar nesse espaço são enormes”, disse Long. “É por isso que temos a estratégia de ocupar o território.” Os banqueiros concordaram energicamente com essa

Page 238: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

245

afirmação. Um deles disse: “Isso é verdade em todos os espaços da Internet. A Amazon.com está faturando 87 milhões por trimestre. A Barnes and Noble está faturando apenas9 milhões de dólares. E não há ninguém que tenha respondido à ameaça da Internet melhor do que a Barnes and Noble”.

“É por isso que estamos numa corrida desesperada para sair a campo e colocar vidas no sistema”, disse Long calmamente. “Vidas” é como o pessoal do ramo de saúde chama seus clientes. Mike Long era o tipo de homem que podia afirmar estar em uma “corrida desesperada” e, ao mesmo tempo, dar a impressão de estar tão absolutamente sob controle que não faria sentido con-tinuar a discussão.

“A base de investidores está se tornando muito mais criativa na avaliação desses negócios”, disse a mulher dentro da caixa em cima da mesa. Os banqueiros de investimento tinham todo um conjunto de frases maravilhosamente reconfortantes que sugeria que o mundo lá fora tinha controle de temperatura. A base de investidores! Aquilo a que ela se referia era uma massa peristáltica, fervilhante de doidões viajando na explosão mais inebriante que o mercado de ações americano jamais tinha visto.

“Nenhum investidor tradicional, tipo Graham e Dodd, investiu na AOL [America Online]”, disse um banqueiro. “Ficaram todos vendidos. E se foderam. Estão aprendendo o novo modelo.”

Mike Long disse: “O importante é que ninguém seguiu uma estratégia de crescimento no ramo de saúde”.

Page 239: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

246

“É por isso que é uma oportunidade tão fantástica”, disse um dos banqueiros. “É como a AOL no começo. Ou o Yahoo.”

O bebê na caixa fez barulhos absolutamente deliciosos. Dessa vez ninguém deu atenção.

Tinham chegado ao real propósito da reunião. O real propósito da reunião não era determinar se a Healtheon era digna da atenção de Wall Street. Era determinar exatamente qual era o nível de entusiasmo pela Healtheon que os banqueiros estavam preparados para demonstrar. O dinheiro deles era barato: havia tanto dinheiro sendo despejado no Vale, que Mike Long tinha cerca de doze maneiras diferentes de pôr as mãos no dinheiro de que precisava. O Vale era uma pequena experiência de capitalismo com capital demais. Por um breve mas cintilante momento o capital perdera seu poder em seu próprio processo. O processo assumiu um ímpeto todo próprio, e o capitalista antiquado era apenas um passageiro na viagem. Tudo o que podia oferecer

Page 240: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

247

era sua capacidade de influenciar as mentes dos investidores que ainda não tinham entendido o que estava acontecendo. Os banqueiros de investimento não estavam mais vendendo dinheiro; estavam vendendo conversa.

A turma de Wall Street agora era só elogios sobre o futuro da Healtheon. Um disse: “A oportunidade é mesmo enorme”. Outro: “O único problema é encontrar uma maneira de explicar”. Um terceiro: “É como a AOL de novo”. Pela primeira vez Clark ficou verdadeiramente interessado. “A oportunidade de mercado aqui é maior do que todo mundo junto — maior do que a Netscape, do que a Amazon, do que a AOL, do que o Yahoo, do que todos eles”, disse. “É por isso que quando vejo as projeções de receita de vocês elas parecem risivelmente pequenas.”

Quanto valia a Healtheon? Como alguém em sã consciência avalia uma empresa que nunca deu lucro? As velhas fórmulas dos velhos investidores como Graham e Dodd e Warren Buffett não se aplicavam mais. Por essas fórmulas, a Healtheon valia zero. O balanço da empresa era repleto de números negativos. Mostrava prejuízos até onde a vista alcançava. Como outras empresas de Internet, ela dizia à Bolsa de Valores: nosso futuro vai ser muito diferente do nosso presente; logo você não pode determinar nosso valor olhando nosso presente. Você tem que fechar os olhos e imaginar um novo mundo. Olhe para o futuro! O futuro é luminoso! Bastava a fé para aquilo se tornar a verdade, ao menos em parte: é comum que seja assim com a fé. Depois que o valor das ações decolasse, o assunto estaria resolvido. A concorrência desmoronaria ou, mais

Page 241: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

248

provavelmente, tentaria ser adquirida pela Healtheon. Mike Long falou de uma “estratégia de crescimento baseada em fusões e aquisições”. O que queria dizer com isso era que, logo que pudesse comprar concorrentes em potencial, ele o faria.

A fórmula da Internet para o sucesso virava o capitalismo de pernas para o ar. Tradicionalmente, uma empresa convencia as pessoas a investir nela por causa de seus lucros. Agora ela primeiro convencia as pessoas a investir, e torcia para que os lucros viessem em seguida.

Clark tinha compreendido a natureza cabeça-para-baixo do empreendimento desde o início. A natureza cabeça-para-baixo era o que lhe dava sua vantagem tática. O truque era a Healtheon conseguir ser designada pelos mercados financeiros para o posto de Madrinha Oficial da Área de Saúde da Economia do Milagre. Isso, por sua vez, dependia de que a Healtheon fosse vista não como uma empresa do ramo de saúde, mas como uma empresa de Internet. E isso, por sua vez, dependia de relações públicas contundentes. E as relações públicas dependiam em parte do que os bancos falassem a respeito da empresa. Mas já que os bancos queriam desesperadamente a comissão que acompanhava a supervisão do negócio, eles diriam o que tivessem que dizer para agradar Jim Clark e Mike Long, desde que dentro do razoável. Faziam isso de consciência limpa. Se conseguissem persuadir os mercados de capitais de que o lugar da Healtheon era no centro do Gráfico de Muitas Bolhas, a Healtheon podia muito bem acabar no centro do Gráfico de Muitas

Page 242: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

Bolhas. Neste mundo novo, o ceticismo não era um sinal de inteligência. Era um pecado.

Se alguém se detivesse e observasse, veria que uma única premissa sustentava toda a explosão: o futuro seria melhor do que o passado. A Healtheon existia em um estado de pura possibilidade. Era um menino de ouro na última série em direção aos píncaros. Pedir-se-ia à Bolsa de Valores que imaginasse as possi-bilidades mais empolgantes. Pedir-se-ia a ela que se desvenci- lhasse do passado, se livrasse da conversa costumeira a respeito de “histórico de performance” e investisse tudo em uma idéia de como o futuro poderia ser.

Em outras palavras, estava-se pedindo à Bolsa de Valores que adotasse o sistema de valores de Jim Clark. E o que é espantoso é que ela aceitou.

A reunião durou mais duas horas, e nesse meio tempo o bebê conseguiu chegar ao telefone viva-voz outras vezes. Ele ron- ronou, riu, disse aquelas deliciosas palavras de bebê. Ninguém titubeou ou mesmo sorriu. Duvido que alguém sequer o tenha ouvido dessa vez. A partir do momento em que a conversa se voltou para o valor em dólares que podia ser afixado na Healtheon, o preço da reunião ficou alto demais para o bebê.

Alguns dias mais tarde, a Healtheon escolheu o Morgan Stanley para liderar seu lançamento de ações. Dias depois os mercados de ações quebraram. A má notícia que aparentemente causou o colapso nada tinha a ver com as Bolsas americanas. Na sexta-feira, 22 de

Page 243: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

250

julho de 1998, correu um boato pelas mesas de operação de que a Rússia deixaria de pagar a parcela a vencer de sua dívida externa. O boato causou pânico, e o pânico forçou a Rússia a deixar de pagar. Um grande país estrangeiro deixando de honrar sua dívida fez com que os investidores suspeitassem de que outros também o fariam. Isso, por sua vez, levou a se temer todos os tipos de risco financeiro. Os investidores retiraram seus recursos dos mercados de ações e bônus e o transformaram em dinheiro vivo ou em títulos do governo americano. Entre l2 de julho e l2 de outubro o índice Dow Jones caiu 2 mil pontos, ou 25%. O índice Nasdaq, uma bolsa mais arriscada — o melhor indicador das fortunas do Vale do Silício — caiu de 2900 para 1450, ou 50%. A Netscape caiu de 41 para 16. Clark deixou de ter 640 milhões de dólares e passou a ter 248 milhões, com uma margem de erro de 50 milhões de dólares.

Esse período foi um teste para a determinação de Clark. Uma parte dele temia que o jogo estivesse terminado. A verdade é que a cotação da maioria das empresas de Internet estava ridiculamente acima do que realmente valia. Ele achava que a Microsoft acabaria controlando a parte do leão dos lucros com a Internet, e que a maioria dos filhos dourados da economia do milagre estava condenada. “Essa porra de Yahoo não vale 30 bilhões de dólares”, dizia. “Depois de controlar o mercado de browsers, a Microsoft vai tomar o mercado do Yahoo também.” O problema é que ele não podia dizer publicamente o que achava da Microsoft sem atingir a Healtheon. Ele achava que logo a

Page 244: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

Microsoft começaria a tomar os mercados verticais na Internet. “Já estão no segmento de viagens”, dizia. “Logo vão entrar em tudo.”

Ainda assim, Clark não vendeu suas ações na Netscape para comprar títulos do Tesouro americano, ou, mais logicamente, ações da Microsoft. Era como se tivesse decidido que o primeiro a entrar tinha que ser também o último a sair. Acho que ele quase preferiria ser pobre de novo do que comprar ações da Microsoft. Quase.

A quebra da Bolsa de Valores destruiu os planos imediatos de Clark para a Healtheon. Fez com que o Morgan Stanley — e todos os outros banqueiros de Wall Street — se tornasse cauteloso. Wall Street tinha feito o lançamento de ações de 370 empresas entre o início do ano e agosto; entre agosto e outubro, tinha feito o lançamento de apenas uma. As primeiras ofertas públicas de ações de cinco novas empresas de Internet (Earthweb, The- globe.com, Interworld, Multex, Netgrocer) foram adiadas sine die. O Morgan Stanley cancelou, com exceção de duas, todos as suas primeiras ofertas públicas programadas para aquele outono. Uma das duas que ela não cancelou foi a Healtheon.

Em retrospecto, é estranho que tenham ido em frente. Em l2 de outubro de 1998, no que era amplamente encarado como o pior mercado para primeiras ofertas públicas desde o início da década de 70, eles se decidiram a vender uma empresa e devolver o vigor à conta bancária de Clark. Às quatro da manhã, em um aeroporto no interior de New Jersey, cinco homens se amontoaram no avião de Clark: Clark, Mike Long, o diretor financeiro da Healtheon, Jay Westerman,

Page 245: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

252

um banqueiro de investimento e eu.

Page 246: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

253

13. Sanduíche de queijo no café

Empresas novas são vendidas ao público com muito do espírito com que se vendem livros novos, discos novos e políticos novos. Quem vende salta em aviões e visita muitas cidades, onde faz uma exibição para pessoas totalmente estranhas na esperança de que comprem seu produto. No caso de uma empresa nova, os estranhos são administradores de recursos e a exibi-ção se chama “road show” [espetáculo mambembe].

O road show da Healtheon tinha os mesmos dois palcos da maioria dos road shows de empresas do Vale do Silício. O primeiro palco era a Europa. A Europa era um lugar útil para começar, não porque tinha muitos administradores de recursos loucos para investir em novas empresas de tecnologia, mas porque não tinha. Os europeus são famosos por sua ignorância a respeito de novidades, para não falar de novas novidades. Quando o road show da Netscape passou por Londres, e

Page 247: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

254

depois de Jim Barksda- le ter levado uma hora para explicar a um grupo de ingleses o que, exatamente, o browser da Netscape fazia, um dos investidores levantou a mão e perguntou: “E preciso um modem para usar seu produto?” Pela maneira como ele disse isso, percebia-se que se dava por satisfeito de ter ouvido falar em modem.

A Europa era o lugar para dar um polimento no espetáculo antes de levá-lo para o palco que realmente importava: os Estados Unidos. Era possível fracassar na Europa sem que os europeus nunca soubessem. “O que dizemos aos americanos quando voltamos é bem mais complicado”, disse o homem do Morgan Stanley com simplicidade, enquanto o avião de Clark nivelava a 11 mil metros de altitude.

Uma vez sobre o Atlântico, Mike Long e seu diretor financeiro, Jay Westerman, revisaram sua apresentação. O road show era, na verdade, uma apresentação de slides que viajava. A apresentação de slides era a técnica preferida para transformar conceitos essencialmente abstratos — “o futuro”, “o software”, “a indústria de saúde americana” — em concretos. A não ser que vissem uma apresentação de slides, os investidores não acreditavam que estavam vendo uma empresa de verdade, especialmente quando a empresa é uma promessa abstrata de ganhar muito dinheiro, em vez de um empreendimento gerador de lucros concreto. E assim, junto com o homem do Morgan Stanley, os exe-cutivos da Healtheon se sentaram em grandes poltronas giratórias na traseira do avião de Clark e examinaram o primeiro slide da apresentação. Era o Gráfico de Muitas Bolhas.

Page 248: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

255

Devo dizer logo de cara que estava claro que a apresentação não era de Clark, mas de Mike Long. Clark estava vindo junto só porque Long lhe tinha pedido, supondo que a reputação de Clark de inventor do futuro não podia fazer mal e talvez ajudasse. Afinal, Jim Clark tinha ganhado muito dinheiro para os investidores ao longo dos anos. Clark, de sua parte, teria preferido ficar trabalhando no barco. Ouviu educadamente a apresen-tação de Long. Ocasionalmente andava até a traseira do avião e se sentava em frente à estação Silicon Graphics azul que levava para onde

quer que fosse. Ainda havia muita coisa de errado no software, e o barco estava programado para atravessar o Atlântico dentro de algumas semanas. Ele estava determinado a impedir que, se algo desse errado, fosse causado pelo programa dele.

Clark não abandonou suas prioridades por Long. Antes de estabelecer as datas para o road show da Healtheon, certificou-se de que não interfeririam no lançamento do barco.

O problema com a apresentação de slides de Long é que ele não podia simplesmente dizer aos investidores o que realmente pensava: que pretendia construir a maior empresa do mundo. Eles não acreditariam nele e o expulsariam do palco às gargalha-das. Para traduzir a ambição de Jim Clark para a língua do investidor global, Long tinha que provocá-los com gráficos e números e esperar que eles chegassem a uma conclusão cor-de-rosa por si mesmos. Mas lá, fora do Vale do Silício, o Gráfico de Muitas Bolhas parecia absolutamente desconcertante. Nenhum desaví- sado

Page 249: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

256

chegaria a conclusão alguma com base nele. Long parecia perceber que nunca poderia realmente explicar o software da Healtheon, ou a indústria de saúde americana, a estrangeiros. Ele procurava uma maneira mais simples de mostrar aos europeus exatamente como a Healtheon pretendia tomar conta do maior mercado do mundo.

“Eu meio que gosto de ‘métrica de médicos’ disse. Ele soava esperançoso, mas parecia abatido. Fazia dias que não dormia direito.

* O termo metric, cujo significado em inglês é “padrão de mensuração”, é corrente em informática para identificar o método utilizado para o controle de prazos e custos de um projeto. Não existe uma palavra específica em português para essa mensuração, de modo que muitos profissionais de informática brasileiros adotam o termo aportuguesado métrica. Assim sendo, a expressão “métrica de médicos” indica que o parâmetro usado para aferir o sucesso da Healtheon não seria o faturamento da empresa, mas o número de médicos associados a ela. (N. T.)

A “métrica de médicos” era uma expressão complicada que expressava uma idéia simples: o número de médicos que usavam o serviço da Healtheon. Os investidores precisavam de alguma forma de avaliar como a Healtheon estava indo. Investidores gostavam de contabilizar o progresso em dólares. Long queria que contabilizassem o progresso em médicos.

“Também gosto de métrica de médicos”, disse o homem do Morgan Stanley.

“Você acha que há coisas demais nesse slide?” perguntou Long, mostrando um dos gráficos que se seguiam ao Gráfico de Muitas Bolhas. O slide era uma guerra de setas e traços.

“Quanto mais simples, melhor”, disse o homem do

Page 250: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

257

Morgan Stanley. “Pense na AOL. Uma das melhores coisas da AOL foi que eles martelaram na cabeça dos investidores que tudo o que importava era o número de assinantes.”

Clark disse: “É isso mesmo”.O homem do Morgan Stanley ficou mais

entusiasmado com a métrica de médicos. Queria ligar para Mary Meeker, a analista do Morgan Stanley que estava construindo rapidamente a reputação de ser a maior autoridade no negócio de Internet, e “plantar” na cabeça dela a idéia de que os investidores deveriam se concentrar apenas no número de médicos ligados ao serviço da Healtheon. Long se inclinou até Clark e disse: “Cara, podemos conseguir mais 150 mil médicos com apenas dois contratos”.

“É mesmo?”, disse Clark. Ficou interessado de novo.Os dois homens se lançaram então ao problema

heurístico que vinha em seguida: como explicar aos investidores quanto dinheiro a Healtheon esperava ganhar sem que isso soasse absurdo. “Não acho que eu precise dizer quanto”, disse Long. “Acho que tudo o que tenho que dizer é que há 700 mil médicos nos Estados Unidos e que temos uma boa chance de conquistar 500 mil deles.

Page 251: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

258

Cada médico representa 20 mil dólares por ano de receita. Vou só dizer: ‘É só vocês fazerem as contas’.”

Clark achou que era uma ótima idéia, e o homem do Morgan Stanley também achou. É só vocês fazerem as contas. Os homens da Healtheon e seu banqueiro não estavam apenas criando uma apresentação. Estavam inventando a maneira pela qual seu negócio seria avaliado, pelo menos durante os próximos anos, enquanto perderiam grandes quantias de dinheiro. É só vocês fazerem as contas tornou-se uma das expressões favoritas de Mike Long, que deu aos investidores o que fazer com as mãos enquanto ele falava. E se eles de fato fizeram as contas, chegaram aos números mais fantásticos. Multiplique 500 mil médicos por 20 mil dólares e você chega a uma receita de 10 bilhões de dólares por ano. Dez bilhões de dólares por ano que nem sequer incluíam os mercados de saúde do exterior, que a Healtheon a essa altura tinha um vago desejo de conquistar. A Microsoft, a empresa de maior valor de mercado dos Estados Unidos, tinha uma receita anual de apenas 8 bilhões de dólares.

Todos estavam felizes com a métrica de médicos. O homem do Morgan Stanley estava tão feliz que achou que era possível certa intimidade com Clark. Clark tinha se acomodado na frente de seu computador. O homem do Morgan Stanley inclinou-se para bater papo a respeito do veleiro. O veleiro tinha dado o que falar no Vale do Silício — era mais uma evidência de que Clark era um pouco... diferente. “Eu estava pensando, Jim”, perguntou o homem do Morgan Stanley, “o que acontece se o computador pifar? Existe um controle manual, ou um backup, ou alguma outra coisa?”

Page 252: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

259

“Os computadores não vão pifar” disse Clark, tão rispidamente que o banqueiro de investimento se assustou. Ficou claro que nessa viagem não seriam toleradas perguntas sobre o barco,feitas por banqueiros de investimento. Clark permitia que o pessoal de Wall Street vendesse suas empresas ao público e ganhasse para ele bilhões de dólares, mas só porque ele ainda não tinha conseguido descobrir uma maneira de se livrar deles. Mas nunca lhes permitiria entrar em seu sagrado mundo das máquinas.

Nos primeiros dois dias em Londres não aconteceu grande coisa. Foi difícil vender para os ingleses, mas sempre foi difícil vender para os ingleses. Nessas situações, eles tendem a nem sequer cruzar a invisível linha mental que separa espectadores de clientes. Ingleses garbosos em ternos caros vieram ver a apresentação de Mike Long com o ar de quem assistia a uma partida de tênis. Fizeram perguntas que sugeriam, se não interesse intenso, ao menos uma leve curiosidade. Long deu seu recado na Inglaterra sete vezes em 36 horas. Movia-se rápido demais para per-ceber que algo estava terrivelmente errado. Foi somente na terceira manhã em Amsterdã que lhe ocorreu, bem como a todos os outros, como era improvável que ele vendesse o que quer que fosse a qualquer um, muito menos vender a nova novidade a europeus. A idéia de uma empresa de tecnologia se erguendo do miasma que era a indústria de saúde dos Estados Unidos e transformando o mundo era, de repente, horrivelmente inadmissível. A transformação

Page 253: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

260

exigia otimismo, e o otimismo ficara subitamente escasso.

Na primeira manhã no continente europeu nos reunimos na sala de reunião de um hotel sofisticado de Amsterdã. Fazia 48 horas que Long não dormia. A Bolsa de Valores americana tinha fechado na véspera em queda de duzentos pontos, e no dia anterior já havia caído 250 pontos. A Bolsa alemã tinha acabado de abrir em queda de 8%, o equivalente a uma baixa de seiscentos pontos no índice Dow Jones. Os bancos do mundo inteiro anunciavam prejuízos maciços por empréstimos que tinham feito ao Long-Term

Page 254: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

261

Capital, um fundo financeiro de perfil agressivo, que tinha azedado. A maior corretora holandesa, o ING Barings, tinha anunciado naquela manhã seus planos recentes de cortar 1200 postos de trabalho. O serviço de notícias Bloomberg transmitiu um artigo citando especialistas em lançamento de ações em Bolsa que diziam que as atividades de empresas com grandes prejuízos, sem previsões de lucro e cujas ações valiam muitas vezes o total de suas receitas tinham sido completamente paralisadas pelo recente ceticismo dos mercados financeiros.

Clark chegou para o café da manhã com uma pilha de faxes da agência de publicidade da Healtheon. Eram os primeiros comentários sobre a Healtheon. Havia um artigo de primeira página no Wall Street Journal, uma grande matéria de duas páginas na Business Week, uma menor no U. S. News & World Report, e um longo artigo no Bloomberg News. Long se recusou a ler o que quer que fosse antes da apresentação. Mesmo assim, podia ver pelo rosto de Clark que os comentários não eram bons. A Business Week citava Jim Barksdale, o Mike Long da Netscape, descrevendo Clark como “um louco que mantém sua loucura apenas parcialmente sob controle”. A matéria de primeira página do Wall Street Journal insinuava que o software da Healtheon não estava pronto.

Long olhou em volta à procura do projetor de slides. Não existia nenhum. Normalmente, havia algo de errado com o projetor, mas ao menos existia um. Normalmente, Clark simplesmente o consertava.

Olhou por cima da mesa do café. Ao longo dela estavam sentados meia dúzia de jovens holandeses

Page 255: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

262

surpreendentemente jovens, com sua pálida pele holandesa e seus cabelos escorridos holandeses. Devoravam uns sanduíches de queijo molengas. Sanduíches de queijo! Às sete da manhã! A idéia obviamente não diminuía o prazer que tinham com a refeição grátis. Cada um comia por três. Atacavam os sanduíches de queijo com gosto, o que fez com que Long se perguntasse se teriam vindo, talvez, pela comida. Será que eram mesmo os grandes corretores dos mercados financeiros da Europa setentrional? Claro que não! Os grandes corretores estavam todos em seus escritórios tentando descobrir um jeito de vender suas ações de Internet.

Cansado, Long mostrou a versão em papel de sua apresentação. Levantou-a como um professor primário mostra o alfabeto. O primeiro slide não era mais o Gráfico de Muitas Bolhas. O Gráfico de Muitas Bolhas tinha desconcertado demais os ingleses. O primeiro slide era uma lista das pessoas que tinham assento no conselho da Healtheon: Jim Clark, John Doerr, Dick Kramlich, um “quem é quem” virtual do Vale do Silício. “Todos em nossa empresa que não estão neste diagrama” disse Long, “têm menos de 26 anos de idade, trabalham 24 horas por dia, sete dias por semana e dormem no escritório.”

Ninguém na mesa de reunião riu. Ninguém sequer deu um sorriso. A julgar por suas expressões de incompreensão, não ficava claro se entendiam inglês. Pareciam ter doze anos de idade, com seus ternos pret-à-porter de poliéster que todo europeu compra antes do primeiro dia de trabalho no banco. As meias caíam pelos tornozelos.

Page 256: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

263

Mesmo assim, Long prosseguiu com a apieseiilaij-ão. As expressões fluíam de sua língua: Acreditamos que os médicos vão correr para comprar nossos serviços... A Internet muda tudo... Nossa empresa é constantemente esmiuçada... Temos mercado de um-vírgula-cinco-trilhão-de-dólares ao nosso alcance... E só vocês fazerem as contas.

Os rostos permaneceram impassíveis. Não havia o mais leve sinal de compreensão neles. Se havia algum som naquela sala, era o do ar saindo de um pneu. A Internet e tudo o que ela representava estavam deploravelmente fora de lugar. O que ela podia sig-nificar para uma dúzia de holandeses que ainda estavam tentando se acostumar com a idéia de energia elétrica?

Um homem mais fraco teria desmoronado e ido embora. Afinal, por que Mike Long precisaria ficar 48 horas sem dormir em troca do privilégio de explicar o sistema de saúde americano a um punhado de adolescentes holandeses? Ele era rico o bastante para não precisar trabalhar. Era, ao menos parecia, um homem modesto; com certeza não tinha maiores necessidades materiais. Mais especificamente, não era como Jim Clark, para sempre condenado a buscar a nova novidade. Podia ter desistido ali mesmo. Mas não desistiu. O Executivo Americano Sério tinha se alistado para cumprir sua obrigação nas guerras da Internet. Tendo se alistado, ia cumpri-la.

Depois da apresentação de papel na Holanda, seguimos em silêncio no carro até o avião de Clark. Lá, enquanto esperávamos na pista de decolagem, ele pediu e recebeu o artigo de primeira página do Wall Street Journal. Sentou-se em uma das grandes poltronas

Page 257: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

264

giratórias e pôs o jornal no colo, sem ler. Podia ser um diretor preparando-se para ler a crítica de seu último filme, ouum político examinando o jornal para saber a repercussão de seu último discurso.

Mas, antes de começar, Long baixou suas expectativas. Era um dos pequenos truques psicológicos que ele pregava em si mesmo. Como Executivo Americano Sério, não tinha permissão para mostrar grandes emoções. Não se permitia ficar visivelmente perturbado ou decepcionado. Por mais entusiasmado que estivesse com a métrica de médicos, nunca pensou seriamente que conseguiria vender a idéia aos europeus. Por exemplo, enquanto seguíamos de carro do aeroporto até o centro de Londres, ele trouxe à baila uma viagem à Europa que tinha feito com seu pai pouco tempo antes. Seu pai tinha sido soldado da infantaria na Segunda Guerra Mundial. Long reuniu umas vinte foto-grafias que o pai tinha trazido da guerra, tomou o pai pela mão, e foi visitar os mesmos lugares e tirar as mesmas fotos. Acharam dez dos vinte lugares. “E o fato”, disse Long, ao voltar da Europa, “é que eram todos iguais. Tiramos uma foto em Pisa, ao lado da estátua de Garibaldi. Na foto antiga, havia uma veneziana presa por uma dobradiça só. Isso tinha sido consertado. Afora isso, as duas fotos eram idênticas.”

Esse era o jeito de Long de dizer: se não conseguisse vender a Healtheon na Europa, ele podia pôr a culpa na resistência dos europeus à mudança. Agora, antes de ler o artigo na primeira página do Wall Street Journal, Mike Long dizia: “George é um sujeito cínico”. Referia-se a George Anders, o repórter do

Page 258: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

265

Journal que tinha escrito o artigo. Se George Anders espinafrasse a Healtheon no Wall Street Journal, era porque George era um sujeito cínico.

E então Mike Long começou a ler. Durante a hora seguinte ele leu e releu o artigo muitas vezes. Leu do início ao fim, depois de trás para a frente. Saltou para o meio para reexaminar um trecho particularmente venenoso. Baixou o jornal, depois o pegou de novo, como se o fato de começar do início pudesse de alguma forma alterar seu significado. Naquela hora, Long não falou nem mudou de expressão. Tratava-se de um homem em transe.

O artigo sobre a Healtheon que apareceu na primeira página do Wall Street Journal no dia 2 de outubro de 1998 era um míssil vindo da América pré-Internet. Citava especialistas na indústria dizendo coisas como “muitos dos desafios que enfrentamos no ramo de saúde têm muito pouco a ver com a Internet”. Ressaltava o fato de que Pavan e sua equipe estavam atrasados na entrega do software da Healtheon aos médicos, e deixava por conta do leitor a conclusão de que isso podia muito bem estar acontecendo porque o software não funcionava. Prosseguia dizendo:

Page 259: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

266

Muito do encanto da Healtheon vem de seus dois principais financiadores. O presidente do conselho da empresa, Jim Clark, é co-fundador da Silicon Graphics Inc. e da Netscape Communications Corp., cujos Web browsers ajudaram a Internet a tornar-se uma mania que conquistou o mundo. O principal capitalista de risco da Healtheon é a Kleiner Perkins Caufield & Byers, que já demonstrou ter o toque de Midas em seus investimentos na Internet... Mas a Healtheon tem tido dificuldades para se mostrar digna de seu pedigree... Durante a maior parte do ano, o sr. Clark, presidente da empresa, esteve fora dos Estados Unidos cerca de uma semana por mês, visitando um estaleiro holandês que está construindo um iate para ele.

A idéia era clara: era impossível que alguém que passasse uma semana por mês na Holanda construindo um barco pudesse plausivelmente pretender reformar o sistema de saúde dos Estados Unidos. Isso sem mencionar que só um homem que passasse a maior parte de seu tempo programando um barco para se autonavegar persistiria na ambição quixotesca de refor-mar o sistema de saúde dos Estados Unidos. Apenas alguns meses antes nenhum jornalista teria se atrevido a se mostrar tão cético sobre qualquer empreendimento associado a Jim Clark. O clima da Internet tinha mudado. De repente Clark tinha se tornado um mastodonte peludo no despertar de uma nova Era Glacial. O ClarkWorld tinha se tornado traiçoeiro. O valor das ações caía depressa, e as ações de Internet eram as que caíam mais depressa.

Page 260: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

267

Mike Long, como todos os outros a bordo do jato, incluindo-se os pilotos de Clark, que tinham ações da Healtheon, soube instantaneamente que o road show tinha terminado. Claro, eles viajariam de uma cidade a outra nos Estados Unidos com a apresentação. Explicariam o Gráfico de Muitas Bolhas mais cinqüenta vezes. Mas, aonde quer que fossem, o artigo no Wall Street Journal os seguiria.

O artigo marcou o derradeiro rito de passagem para Mike Long, o Executivo Americano Sério. Ele passara vinte anos construindo uma sólida empresa de informática em Austin, no Texas, sem ler uma palavra a seu próprio respeito, exceto, talvez, no jornal local. Certamente ninguém se atreveria a criticá-lo em públi-co. Nenhum repórter jamais ousaria analisá-lo ou dissecar sua empresa. Agora, à medida que Long lia o Wall Street Journal, ele percebia que tinha se exposto a um novo conjunto de forças. O Executivo Americano Sério leu a matéria várias vezes. Tinha acabado de se tornar um cidadão de ClarkWorld.

“Pavan nunca fica nervoso”, disse Long afinal. Sua voz estava fria de raiva.

“O quê?”, perguntou Clark, que o tempo todo estivera sentado ao lado de Long sem prestar atenção a ele.

“Aqui diz que ‘Pavan Nigam “ficou nervoso” quando lhe pediram que estipulasse uma data certa para que o software ficasse pronto’. Pavan nunca fica nervoso.” Então Long jogou o artigo no assento e foi para o sofá tirar uma soneca. Clark simplesmente o observou. E disse apenas: “Mike tem que se acostumar com a imprensa”.

Page 261: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

268

A última etapa do road show europeu foi o triunfo do hábito sobre a razão. Mike Long continuou a vender, mesmo depois de ficar claro que vender era uma perda de tempo. De qualquer forma, os europeus provavelmente não teriam sido capazes de fazer as contas. Mas, ao menos, enquanto observava investidores europeus adolescentes devorarem seus bizarros cafés da manhã, Long podia permanecer esperançoso em relação a suas perspectivas nos Estados Unidos. Agora sabia que estava condenado

Page 262: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

269.

também nos Estados Unidos. Vender a Healtheon exigia que ele administrasse a sensibilidade dos investidores. Nenhum investidor seria capaz de avaliar o software da Healtheon; eles confiavam nas reputações das pessoas envolvidas. Agora essas reputações tinham sido questionadas. Até agora, os investidores tinham estado inclinados a acreditar que o software funcionava; agora estavam inclinados a acreditar que não funcionava. Foi por essa razão que Pavan Nigam foi tirado de sua mesa de trabalho na Healtheon e trazido para o road show.

Evidentemente, se a Bolsa estivesse subindo, o Wall Street Journal talvez não tivesse tido o mesmo efeito. De fato, o pessoal do Journal talvez não tivesse tido coragem de publicar um artigo daqueles, pois havia grandes chances de se dar mal caso o valor das ações da Healtheon decolasse. Mas, com o mercado em que-da, o artigo era tão definitivo quanto uma estaca no coração. Depois de sua última apresentação, Mike Long retornou ao avião, voou de volta aos Estados Unidos e concluiu sua tarefa. A medida que viajava pelo país, escrevia e-mails para Kittu, Stuart e cerca de outros trezentos funcionários que tinham ficado no Vale, os quais, ele sabia, apenas esperavam para saber quão ricos estavam. Os e-mails transmitem o espírito de um homem que tenta esconder de seus entes queridos o fato de que vai ser executado pela manhã.

De Nova York ele escreveu:

A primeira coisa que vocês vão perceber de diferente em Nova York em relação à Europa e à Costa Oeste é que a cortesia e o beneficio da dúvida são jogados pela janela. Este é o território em que tudo é dito na

Page 263: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

270

sua cara. O comportamento de muitos investidores é de franca hostilidade. Em parte fazem isso para testar seu conhecimento e sua convicção e em parte é apenas o jeito de ser das pes- soas que moram aqui. Nós respondemos com a mesma agressão.

Da Filadélfia:

Uma das regalias que os banqueiros oferecem em todas as cidades são essas enormes limusines negras em que garotos de colégio levam as namoradas à festa de formatura. Esse carro acabou sendo um ativo importante na Filadélfia, onde tivemos que nos lembrar de que quando objetos colidem, a massa faz diferença. Estávamos voltando para o aeroporto por uma estrada escorregadia por causa da chuva e três carros bateram em nós. Logo estávamos ajudando os motoristas de dois dos carros acidentados, colocando-os deitados no banco de trás da limusine para esperar a chegada das ambulâncias.

A massa faz diferença.Uma coisa que é bastante óbvia a respeito de

administradores de recursos é que sua auto-estima e sua atitude dependem fortemente da aparência diária de seus gráficos de desempenho.

De Dallas:

Os banqueiros estão sempre muito ansiosos quanto à duração de nossas

apresentações. A meta é contar a história toda em vinte minutos ou menos, uma meta ambiciosa, a qual Pavan, Jay e eu ainda estamos nos esforçando para cumprir.

Page 264: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

271

De Chicago: “Não há ninguém aqui além de nós. Será possível fazer um IPO bem-sucedido neste mercado?”

De San Francisco:

Fizemos uma apresentação-jantar que acabou sendo em um restaurante aberto cheio de gente interessante, mas perplexa, que não sabia que haveria uma apresentação para investidores durante o

jantar. Uma coisa que se percebe imediatamente é que você faz apresentações em uma porção de cafés da manhã, almoços e jan- tares e todo mundo come, menos nós, porque estamos falando. Responder a perguntas difíceis feitas por investidores em potencial com a boca cheia de comida não é de bom-tom. Entre uma reunião e outra, há sempre os mesmos sanduíches velhos no carro.

O road show foi interrompido de forma estridente em Nova York, no fim de outubro de 1998. Algumas centenas de investidores institucionais que tinham passado a manhã vendendo ações e bônus sem garantias plenas do governo americano se reuniram para almoçar em um salão de hotel e ouvir a idéia mais arriscada que tinham ouvido nos últimos tempos. Antes da apresentação de slides de Mike Long, Clark fez algumas observações animadoras. Um investidor levantou a mão e pediu que Clark comentasse o artigo no Journal e a citação do executivo da área de saúde que dizia que a Internet era irrelevante para sua indús-

Page 265: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

272

tria. “É bem típico das grandes empresas que são ameaçadas pelas pequenas”, disse Clark. “Elas dizem: ‘Não tem importância’. E é isso que as impede de reagir.”Mike Long então se levantou e fez sua apresentação. As expressões saíam de sua boca: A Internet muda tudo... Nossa empresa é constantemente esmiuçada... Temos mercado de um-vír- gula-cinco-trilhão-de-dólares ao nosso alcance... E só vocês fazerem as contas.

Fez o estardalhaço adequado. Mas no fim da apresentação os investidores tinham uma pergunta só.

“Se vocês tiverem sucesso”, perguntou um investidor de Nova York, “quanto tempo vai levar para que a Microsoft entre nesse negócio?”

Exagerando sua expressão de cansaço, Mike Long repetiu a pergunta para quem pudesse não ter ouvido. “A pergunta é sobre a Microsoft. Se eles vão nos esmagar? Bem, a estratégia deles é dominar todas as indústrias verticais. E a prepotência deles não tem limites. Então, claro, temos que supor que, mais cedo ou mais tarde, eles virão.”

O sujeito do Morgan Stanley levantou-se e disse: “Muito obrigado. Aguardamos uma proposta de preço no início da semana que vem”.

A proposta nunca veio. Alguns dias mais tarde, o sujeito do Morgan Stanley dirigiu de seu escritório na Sand Hill Road até a Healtheon e disse a Mike Long que não tinham encontrado investidores interessados em número suficiente para justificar abrir o capital da Healtheon. Ah, eles provavelmente conseguiriam vender uma pequena participação na empresa a um punhado de crentes — pelo mesmo preço que Clark e os capitalistas de risco tinham pago. Mas qual era o

Page 266: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

273

sentido disso? Algumas horas depois, após ter conversado com Clark, Mike Long cancelou o negócio. O negócio era, claro, fundamental para os planos de Mike Long. Sem uma ação muito valorizada, ele não conseguiria comprar todas as pequenas empresas que queria e assumir o controle da indústria de saúde americana. Não obstante, convocou todos os funcionários para uma sala de reunião e os persuadiu de que em breve eles triunfariam.

Mas no mesmo instante em que falava, sabia que tinha um problema muito imediato: precisava de mais 40 milhões de dólares para manter a empresa funcionando. Telefonou para os banqueiros de Wall Street, para os capitalistas de risco e para Jim Clark, e lhes deu a notícia.

Foi nesse momento, acho, que ocorreu a Clark que faltava um elo na cadeia alimentar do capitalismo, e que se ele encontrasse a coragem para se apresentar, ele mesmo poderia ser esse elo. E que, se não tivesse a coragem de fazê-lo, transformaria sua notável ascensão em motivo de zombaria. Uma vez ele me disse: “Não posso ser um capitalista de risco, porque não sou esse tipo de gente. Não posso ser um administrador, porque não sou esse tipo de gente. Só o que posso fazer é colocá-los em movimento”. Seu papel no Vale ficou claro de repente: ele era o autor da história. Era o homem com a coragem de inventar a história em que todas as personagens — engenheiros, capitalistas de risco, admi-nistradores, banqueiros — concordavam em desempenhar o papel que ele lhes designasse. E, se pretendia manter o privilégio de contar histórias, tinha de se certificar de que elas tivessem final feliz. Se isso

Page 267: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

274

significava fornecer mais 40 milhões de dólares para a Healtheon, que assim fosse.

Nessa decisão, tomada durante um pânico financeiro descrito por Alan Greenspan, presidente do Federal Reserve [o Banco Central americano], como “o pior” que ele já tinha visto, era possível, desde que se examinasse bastante de perto, vislumbrar o primeiro lampejo da nova novidade. A disposição de Clark decorrer riscos dos auais outros se esauivavam era a fonte HP sen poder financeiro. Ele era o sujeito que sempre vencia os pegaspara ver quem agüenta mais tempo sem desviar o carro, porque o adversário suspeitava que ele realmente iria bater de frente. Com os mercados desabando, e os financistas hesitando, ele telefonou primeiro para Mike Long e depois para os banqueiros de investimento, e disse-lhes que gostaria de fornecer sozinho os 40 milhões de dólares à Healtheon. Quarenta milhões de dólares de repente pareciam dinheiro de verdade. Quarenta milhões de dólares eram o orçamento anual de uma cidade de porte médio. Mais especificamente, 40 milhões de dólares eram, naquele momento, quase 20% do valor, descontados os impostos, da participação de Clark na Netscape, ela própria se desvalorizando rapidamente.

A fé de Clark em seu novo empreendimento era na verdade a fé em sua própria imaginação, já que o novo empreendimento era meramente uma extensão dessa imaginação. O poder dessa fé, uma vez mais, era transformador. Em um momento, os financistas estavam conjecturando de onde viriam os 40 milhões de dólares. No momento seguinte, estavam tentando impedir que

Page 268: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

275

Clark fornecesse toda a quantia e adquirisse uma participação ainda maior na problemática empresa. No fim das contas, os banqueiros e os capitalistas de risco concordaram em permitir que Clark desse a Mike Long metade dos 40 milhões de dólares de que ele precisava. Eles forneceram o resto. E assim Clark comprou metade do abortado IPO, a seis dólares por ação.

Falei com ele algumas horas depois de ele ter feito isso. As ações das empresas de tecnologia estavam desabando, e um novo pessimismo tinha alcançado o coração da economia do milagre. Clark disse apenas: “Logo serei um bilionário de novo”. E então voltou à importante tarefa de programar seu barco e à busca da nova novidade.

Page 269: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

276

14- Pode ser uma coisa ou outra

Clark dizia que a Netscape “tinha conferido respeitabilidade à anarquia”. Tarde da noite, quando não havia mais ninguém por perto, ele deve ter se perguntado por quanto tempo esse estranho sentimento poderia sobreviver no mundo dos negócios americano. As instituições abominam a desordem. Procuram domesticar as forças da anarquia. É uma das muitas contradições internas que não conseguiram derrubar o capitalismo: a geração de riqueza é suprimida por aqueles que, supostamente, são os maiores interes-sados na riqueza. A rápida mudança tecnológica ameaça as pessoas que já detêm o poder, mesmo quando elas trabalham com tecnologia. Esse fato simples cria uma certa tensão interna em empresas consideradas de alta tecnologia. Ao mesmo tempo que promovem mudanças, empresas grandes e estabelecidas também desejam que a mudança ocorra devagar o suficiente para não as

Page 270: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

277

esmagar. A Netscape era uma enorme ameaça à ordem estabelecida porque sugeria que a mudança podia ocorrer fora dessa ordem, tão rapidamente quanto gente como Jim Clark pudesse fazer com que ocorresse, sem dar atenção ao establishment.

Page 271: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

278

Muitos acontecimentos poderiam conspirar com o establish- ment da alta tecnologia para expulsar o espírito anárquico do centro do palco e devolvê-lo ao seu lugar costumeiro e desconhecido, nos bastidores. O mercado de ações podia desabar, por exemplo. Em agosto de 1995, quando a Netscape abriu o capital, o mercado de ações tinha dito mais ou menos o seguinte: “OK, sabemos que é uma loucura encorajar uma empresa que não dá lucro, não tem uma idéia clara de como vai dar lucro, e, na verdade, está meio que inventando seu negócio à medida que avança, mas enquanto todos concordarmos em fingir que isso é um comportamento comercial razoável, talvez possamos criar um milagre”. Quando o lançamento de ações da Healtheon fracassou em outubro de 1998, o mercado de ações passou a dizer: “Espere um minuto. Talvez tenha sido tudo um enorme engano”.

Mas, como ameaça ao ClarkWorld, o mercado não se comparava à Microsoft. Cerca de um ano depois de Clark ter criado a Netscape, em 21 de junho de 1995, o diretor de marketing da empresa, e velho companheiro de Clark na Silicon Graphics, Mike Homer, telefonou para Clark e lhe contou que sete executivos da Microsoft, chefiados por um homem chamado Dan Rosen, e instruídos por Bill Gates, tinham voado até o Vale do Silício e dito à Netscape que, a não ser que a Netscape desse à Microsoft um assento no conselho e vendesse à Microsoft uma participação na empresa, a Microsoft tiraria a Netscape do mercado.

Era mais uma promessa do que uma ameaça. Para rodar nos cerca de 500 milhões de computadores pessoais do mundo, o browser da Netscape tinha que ser

Page 272: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

279

compatível com a última versão do Microsoft Windows — na época o Windows 95. Qualquer um que quisesse escrever software para PC obviamente tinha que se certificar de que ele fosse compatível com o Windows. A Netscape, como todas as outras empresas de software, precisava que a Microsoft lhe fornecesse versões antecipadas de algo chamado “as APIS” do Windows, API

significa application pro- gramming interface [interface de programação de aplicações], uma expressão tipicamente incompreensível do dialeto geek. Uma API é uma espécie de buraco de fechadura para o Windows. Para criar chaves que se ajustem à fechadura, a Netscape precisava conhecer as formas dos buracos. Os programadores da Microsoft rotineiramente as forneciam para empresas que faziam software que não ameaçasse a Microsoft. Tinham sido mais lentos do que de costume para fornecê-las à Netscape. Em 21 de junho de 1995, disseram à Netscape que, a não ser que a Netscape cedesse a suas exigências, de modo algum as forneceriam. Como dissera Dan Rosen, executivo da Microsoft, de acordo com as anotações feitas durante a reunião por Marc Andreessen, da Netscape: “Se tivéssemos uma relação especial, vocês não esta- riam nessa posição”.

Mais tarde Clark lembrou-se do que pensou ao desligar o telefone: “Esses babacas que se fodam”. Um pensamento simples, facilmente transformado em ação. Imediatamente telefonou para Gary Reback, advogado em uma firma de advocacia no Vale do Silício chamada Wilson Sonsini Goodrich & Rosati, contou- lhe o que Homer acabara de dizer e pediu a Reback que infor-masse o Departamento de Justiça (DOJ) dos Estados

Page 273: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

280

Unidos. Dois dias depois, Reback fez exatamente isso — apesar de ter dado um jeito para que parecesse que o DOJ tinha solicitado a informação. Clark mais tarde me disse que tinha tomado essa iniciativa porque “não acreditava que Barksdale [Jim Barksdale, novo CEO da Netscape] fosse fazer alguma coisa a respeito”.1 De qualquer maneira, depois que Reback enviou sua carta, o DOJ o convidou para uma conversa informal. Na época, o DOJ estava brincando com a idéia de rever um acordo a que tinha chegado com a Microsoft alguns meses antes, quando a Microsoft concordara em não “empacotar” novos produtos com seu

Page 274: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

281

sistema operacional. Clark e Reback, junto com vários outros executivos da Netscape, voaram para Washington.

Em sua única reunião em Washington, D. C., com advogados do governo americano, Clark primeiro tentou explicar o que estava para acontecer no mercado de informática. O Departamento de Justiça estava preocupado com a Microsoft Network — uma primeira e mal concebida tentativa da Microsoft de “enclausurar” a Internet em um espaço único e controlado pela Microsoft. A Microsoft Network não era ameaça para ninguém, argumentava Clark, já que ela não apreendia a principal característica da Internet, que era o fato de ser ela “inenclausurável”. A ameaça, dizia, era a inevitável entrada da Microsoft no novo mercado de browsers de Internet.

Nos anos 90, Clark descrevera seu telecomputador como algo para “roubar o monopólio por debaixo das pernas da Microsoft”. Se a revolução digital ocorresse na televisão em vez de no computador pessoal, imaginava ele, havia ao menos uma chance de que a Microsoft não a controlasse. A Netscape também queria passar por “debaixo das pernas da Microsoft”, mas, desta vez, passaria muito mais rente às pernas do que antes. Para acessar a Internet, pelo menos por enquanto, era preciso um computador pessoal. E o computador pessoal tinha um único ponto de entrada — a primeira janela que aparecia na tela do computador depois de o usuário ter ligado a máquina. Para chegar a qualquer programa dentro do computador, o usuário tinha que passar por aquela janela. E, como a Microsoft controlava aquela janela, também controlava tudo do

Page 275: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

282

outro lado dela. Esse tipo de poder não era privilégio da indústria de informática — a indústria ferroviária tinha um pouco das mesmas tendências monopolistas. Mas na indústria de informática quem estava do lado de fora tinha muito mais dificuldade de enxergar esse poder, de modo que era muito mais difícil combatê-lo.

A Internet desafiava o poder de monopólio da Microsoft de uma maneira indireta. A Internet não tinha propriamente um “sistema operacional”. Em vez disso, tinha vários pontos pelos quais a empresa dominante podia forçar os usuários a percorrer um caminho ou outro. O primeiro e aparentemente mais importante era o browser — o programa que permite que se viaje pela Internet. Os usuários de computador tendem a seguir o caminho que apresenta a menor resistência técnica. O browser da Netscape, que tornava fácil para as pessoas viajar pela Internet, foi a primeira janela de verdade fora do Windows. D Windows se tornou um mero ponto de partida para uma viagem mais longa e mais interessante. A longo prazo, com a Internet seria possível que o usuário apenas estendesse o braço para reunir todos OS programas necessários para fazer seu computador funcionar. Em um caso extremo, podia tornar supérfluo o próprio sistema operacional da Microsoft.

Evidentemente, a Microsoft se apresentava como amiga da mudança e do progresso. Seu fundador, Bill Gates, o homem mais rico do mundo, vivia publicando livros e artigos com sua assinatura, cujo único propósito era transmitir a idéia de que ele era algum tipo de visionário. O primeiro livro de Gates, publicado em novembro de 1995, chamava-se A estrada do futuro, e saiu

Page 276: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

283

um ano e meio depois de Clark ter dito: “A Internet é o futuro de toda a comunicação de dados, e todas as comunicações são comunicações de dados”, e, no entanto, o autor mal menciona a Internet. Os livros, as entrevistas em revistas e as campanhas publicitárias eram uma cortina de fumaça. Tudo o que Gates queria do futuro era que fosse exatamente igual ao presente. Para sobreviver, a Microsoft não precisava descobrir a nova novidade, mas domesticá-la.

É por isso que Clark sabia, no momento em que criou a Netscape, que mais cedo ou mais tarde, provavelmente mais cedo,

Page 277: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

284

a Microsoft tentaria destruí-lo. Clark disse aos advogados do DOJ que a Microsoft usaria seu monopólio para controlar o mercado de browsers de Internet. Por exemplo, a Microsoft teria condições de procurar fabricantes de computador como a Dell e a Compaq e dizer, com efeito: “Se vocês incluírem em suas má-quinas o browser da Netscape, ou se excluírem o Internet Explo- rer da Microsoft, vamos tirar vocês do mercado”. E os advogados do DOJ acharam que isso não era importante! Pelo menos no início. “Jim meio que tinha vislumbrado o futuro”, diz Gary Reback, “e ele ficou repetindo para a turma da Justiça: Não é isso. Tinha vislumbrado o futuro antes de Bill Gates, e tentava explicá-lo ao Departamento de Justiça. Mas o Departamento de Justiça insistia em travar uma batalha que já terminara.”

Quase na mesma hora ficou claro para Clark que qualquer ação legal chegaria tarde demais para fazer alguma diferença financeira para ele. Depois de uma hora na reunião, ele começou a ficar agitado; mais uma hora e ele saiu, deixando para que os outros terminassem o que ele tinha começado. “Estava perfeitamente claro para mim que era uma perda de tempo”, disse ele. “Naquela altura eu meio que desisti do sistema jurídico americano.” “Quando falei com ele mais tarde”, recorda Gary Reback, “Jim disse: ‘Desculpe, eu simplesmente não agüentava mais. Mas, vocês, sigam em frente’.”

Somente dois anos depois que Clark, por intermédio de Reback, alertou o DOJ é que o DOJ anunciou formalmente que tinha mudado de opinião e que concordava com o ponto de vista dele. Um motivo para

Page 278: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

285

o doj ter mudado de idéia foi o fato de que Reback tinha realmente seguido em frente. Ele tinha metralhado o governo com notícias da frente de combate na guerra dos browsers entre Netscape e Microsoft. Em março de 1997, o presidente Clinton nomeou, e o Senado confirmou, Joel Klein como novo chefe de fiscalização antitruste do Departamento de Justiça. A verdade é que ninguém esperava que Klein fiscalizasse coisa alguma; os senadores que votaram contra sua nomeação eram democratas que achavam que ele fosse dormir no ponto. Klein mais tarde explicou como chegou a sua surpreendente decisão, em outubro de 1997, de processar a Microsoft:

Recebemos um relatório da Netscape e de Gary Reback logo que eu assumi, no outono de 1996. Decidi colocar investigadores na Seção 1 e na Seção 2 da lei antitruste, e averiguar se não havia violações ao acordo judicial [no qual a Microsoft concordava em não “empacotar” novos produtos com novas versões do Windows]. Começamos a direcionar recursos para o escritório de San Fran-cisco, e eles começaram o processo de coleta de dados.

Esses dados, por sua vez, levaram Klein e seu principal economista, Dan Rubinfeld, a reconsiderar sua visão anterior de que a Microsoft era uma força benigna. No verão de 1998, enquanto Clark defendia junto aos banqueiros de investimento que a Healtheon era um bom negócio e caçava bugs no programa de seu barco, os advogados de Washington e de Nova York percorriam

Page 279: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

286

o Vale do Silício colhendo depoimentos. Os advogados da Microsoft interrogaram Clark; semanas depois, foi a vez dos advogados do DOj; ambos os grupos gravaram o depoimento de Clark em vídeo. Naquele verão, Clark apareceu na Sea- scape muitas vezes vestindo um terno. Sempre que punha um terno tinha o ar de um homem que fora convidado para uma festa à fantasia à qual não queria comparecer. Naqueles dias, parecia-se com qualquer outro homem de negócios americano. Era uma visão estranha, um homem com centenas de milhões de dólares e uma tendência a fazer o que bem entendesse, até mesmo virar indústrias inteiras de pernas para o ar, concordando em viver de acordo com o padrão de vestuário de

Page 280: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

287

outras pessoas. Bem lá no fundo, Clark abrigava o desejo de ser um bom menino. Quem é rebelde de verdade nunca faz exatamente o papel que lhe é designado.

Para Clark, o julgamento antitruste da Microsoft que estava a caminho não tinha mais importância. Nos três anos que se tinham passado desde seu telefonema para Gary Reback, a fatia da Netscape no mercado de browsers tinha caído de 85% para 45%. A fatia da Microsoft tinha crescido de zero para 50%. Quando as pessoas se conectavam à Internet, a primeira coisa que viam era, cada vez mais, o Internet Explorer da Microsoft. Mais importante, o mercado tinha a expectativa de que a Microsoft venceria; portanto, a Microsoft venceria. Esse fato simples conferia à Microsoft um poder fantástico sobre o futuro da Internet. Seu software estava recuperando a ascendência sobre o consumidor. Uma vez que isso ocorresse, os bens e serviços que a Microsoft vendesse pela Internet teriam uma vantagem fundamental sobre os bens e serviços vendidos por outros. “Posso lhes garantir que é isso o que vai acontecer em seguida”, dizia Clark, alto e amiúde, normalmente a propósito de nada. “Primeiro a Microsoft vai nos tirar do mercado de browsers. No momento em que eles tiverem o controle do mercado de browsers, vão cortar a ligação com outros portais [Yahoo, Excite, Lycos etc.], Todos vão ter de passar pelo portal da Microsoft. E depois que tiverem o controle sobre o mercado de portais, tomarão todos os mercados verticais. Você não acha que é isso que querem? Já estão no ramo de viagens. Garanto que a Microsoft tem condições comerciais de assumir todos os mercados verticais. Mais cedo ou mais tarde chegarão à

Page 281: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

288

área de saúde.”Três meses depois, e alguns dias após a Healtheon,

procurando controlar o maior dos mercados verticais, ter cancelado seu IPO, o maior julgamento antitruste da época começou. O sistema jurídico americano, com efeito, decidiria como devia ser remunerado o homem que busca a nova novidade. A essa altura, quase todo mundo, inclusive Clark, tinha se esquecido do telefo-nema para Gary Reback que havia desencadeado o julgamento. Com certeza ninguém encarava o caso da Microsoft como aquilo que de fato era: mais uma pedra que Clark tinha empurrado despenhadeiro abaixo e observava, com indiferença divina, tornar-se uma avalanche.

Um tribunal americano é, sob muitos aspectos, antiameri- cano. Em nossas vidas cotidianas, nós, americanos, celebramos a subversão da ordem social; não importa para onde olhe, um visitante em nosso país verá um garoto americano pobre tentando melhorar de vida, em geral com o estímulo da sociedade. Um tri-bunal americano é destinado, antes e acima de tudo, a preservar a ordem social, para manter o garoto pobre lá embaixo. O juiz senta-se em uma plataforma elevada da qual ele pode ser condescendente para com os advogados, os advogados ficam em pé para poderem ser condescendentes para com as testemunhas sentadas, e as testemunhas, apesar de não terem com quem ser condescendentes, a não ser, talvez, com os curiosos nos bancos duros no fundo da sala, ao menos têm o conforto da poltrona estofada. Se alguém se

Page 282: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

289

atrever a sair da linha o mínimo que seja, aparece um sujeito corpulento do fundo e grita: “Ordem no tri-bunal!”. Se o juiz precisa se aliviar, o sujeito corpulento aparece de novo para gritar: “Todos de pé!” E todos na sala se levantam e esperam de maneira estúpida até que o juiz tenha se retirado para um pipi. Tudo isso sem um “por favor”, um “obrigado” ou um “com sua licença”. O sistema de justiça de nossa democracia é uma sociedade feudal em miniatura.

O tribunal distrital [tribunal de primeira instância] de Washington, D. C., tinha o charme e a eficiência da alfândega soviética.

O teto de ladrilhos brancos encardidos era iluminado por horrendas luzes fluorescentes. O selo dos Estados Unidos acima da lua cheia que era o rosto do juiz Thomas Penfield Jackson parecia ser feito do mesmo plástico duro de uma máscara de Halloween. Por uma série de motivos que não vale a pena explorar, sendo o principal o DOJ não estar buscando danos materiais, não havia júri. O juiz proferiria o veredicto. Apesar de ser um dos maiores julgamentos antitruste desde que as leis antitruste foram criadas em 1890, o juiz decidira realizá-lo na sala de júri pequena. A maioria dos 450 repórteres que apareceram no primeiro dia foi deixada mofando no vestíbulo.

O juiz permitiu que cada uma das partes chamasse apenas doze testemunhas. O caso do DOJ agora incluía outras

empresas além da Netscape, mas a Netscape ainda era a peça central. A Microsoft era acusada por seu governo de ser não apenas um monopólio — o que, por si só, não era ilegal —, mas de valer-se de seus poderes de

Page 283: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

290

monopólio para tirar a Netscape (e outros) do mercado. A Netscape apresentava o mais bem documentado exemplo do abuso de poder da Microsoft, graças, em grande parte, às providências precoces de Clark. Conseqüentemente, o governo queria um testemunho forte por parte da Netscape. “Pensamos em chamar Jim Clark”, disse-me um dos advogados do Departamento de Justiça durante um recesso, “e, em vários sentidos, ele teria sido ótimo, porque conhecia muito a tecnolo-gia. Mas o sujeito é meio louco. Não é alguém que você possa disciplinar o bastante para poder dizer: ‘Jim, isto é o que queremos que você faça’.”

E então, o DOJ acabou se contentando com Jim Barksdale, que, afinal de contas, tinha sido contratado por Clark e Doerr porque sabia desempenhar seu papel. Ele conferiu aos assuntos jurídicos da Netscape a mesma cara convencional e aceitável que conferia a seus assuntos comerciais.

As alegações iniciais do julgamento tomaram dois dias. O DOJ apresentou inúmeros e-mails e memorandos mostrando que a Microsoft tinha subornado e chantageado empresas para fazê- las prejudicar a Netscape. (“Quanto temos que pagar a vocês para arrebentar a Netscape?”, perguntou Gates a executivos da America Online no início de 1996.) No terceiro dia, a Microsoft chamou Barksdale para depor. Sua tarefa — do ponto de vista do DOJ — era: a) dar credibilidade às anotações da reunião de 21 de junho de 1995 entre a Microsoft e a Netscape apresentadas como prova; b) explicar como a Microsoft se valera de seu monopólio para prejudicar a Netscape; e c) dar a impressão de ser

Page 284: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

291

um sujeito razoável e digno de confiança. Esta última missão era, talvez, a mais crítica, porque o juiz, que não tinha a menor idéia do que era um programa de computador, seria obrigado a escolher entre narrativas conflitantes dos mesmos acontecimentos. A tarefa foi dificultada pelo principal advogado da Microsoft.

Esse advogado era uma grande bola, um homem de carne rosada como os gordos ricos dos quadros de William Hogarth, com uma papada que ondulava acima da camisa branca engomada. A biografia de uma página dizia que seu nome era John Warden e que fora criado em Evansville, Indiana, se formado na Faculdade de Direito de Harvard e sido sócio por doze anos do Sullivan & Cromwell, um elegante escritório de advocacia especializado em direito societário na cidade de Nova York. Apesar disso tudo, ele tinha de alguma forma conservado um sotaque que deixaria um matuto encabulado. E ainda tinha orgulho disso. Inclinava-se para o microfone no centro da sala do tribunal e ribombava suas perguntas com uma Voz de Deus, fazendo com que os cinqüenta espectadores no fundo da sala tivessem um sobressalto em seus bancos de madeira dura. Era um caipira, ou fingia ser, provavelmente por força de alguma crença antiquada segundo a qual caipiras, mesmo de faz-de-conta, têm

Page 285: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

25 9

um apelo maior junto aos jurados do que advogados de Nova York que ganham mil dólares por hora, que é o que ele era na verdade.

De qualquer maneira, sua voz era como o gemido tedioso do trovão depois que caía um raio distante. E ele não precisou de muito tempo para provar que a alta tecnologia soava muito menos impressionante quando discutida por um caipira gordo. Seguiu em frente falando de “Web sahts” e da “Netscayup” e da “Innernet” e de “mode-ums”, e a cada sílaba que pronunciava fazia com que a modernidade inteira soasse um pouquinho ridícula. Quando mencionou a AOL,

parecia cantar em falsete. AOOOLLLLLl Ele se dirigiu à testemunha como Mis-ter Barks- day-ulll.

Antes de ter ouvido falar em Jim Clark, ou na Netscape, ou na trapalhada que era esse julgamento no qual Clark, com um estalar de dedos, o tinha atirado, Jim Barksdale construíra uma bela reputação de administrador no Federal Express e na McCaw Cellular. Tinha sido criado no Mississippi e conseguira manter um pouquinho do sotaque da terra dos bosques de pinheiros, só o suficiente para apresentar uma razoável imitação de bom moço. Tudo o que restava de suas origens lingüísticas era o hábito do sulista quase aristocrata de transformar consoantes chiadas em secas (ele pronunciava “mature” como “ma-tur”, em vez de “ma-tchur”). Claramente chegara a um ponto em que não compreendia mais o dialeto dos caipiras. Quando Warden enfiou-lhe um documento nas mãos e lhe pediu que lesse em voz alta para o tribunal the first sayntance [a primeira frase] de um dos memorandos de Gary Reback, Barksdale respondeu: “The first sentence?”. “Apenas leia a

Page 286: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

25 9

sayntance, Mister Barksdayuf, ribombou dc volta o advogado, rispidamente. Todos, com a possível exceção de Barksdale, encararam a rispidez do caipira gordo como um estratagema para dar nos nervos de Barksdale.

Page 287: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

272

Por quase cinco dias inteiros, os dois homens discutiram violentamente sobre assuntos que nenhum dos dois compreendia inteiramente. Nenhum deles entendia a tecnologia de um browser de Internet como um engenheiro de software. Mas Barksdale foi esperto. Logo percebeu que sabia mais do que War- den, ou, por falar nisso, mais do que qualquer um dos advogados, e usou seu maior conhecimento para deixar seus algozes em situações embaraçosas — sutilmente, claro. Por exemplo, War- den perguntou a Barksdale se ele sabia, antes da reunião decisiva entre a Microsoft e a Netscape, em 21 de junho de 1995, que a Microsoft pretendia incluir “todas as funções de um browser” em seu sistema operacional — sugerindo assim que a reunião dificilmente poderia ter sido o choque que Barksdale agora afirmava ter sido. “Um browser ou as funções de um browser?”, perguntou Barksdale, com astúcia. Isso deixou Warden perplexo, e ele gaguejou um pouco. Por cinco dias ele exibiu a expressão de um aluno medíocre a quem se pede para explicar a toda a turma a diferença entre um algoritmo e um logaritmo. Em seu íntimo, ele era um agente triplo: um grande advogado da cidade que pensava ter adotado, como estratégia deliberada, os maneirismos superficiais de um caipira idiota, mas que era, para os efeitos deste julgamento, um caipira idiota.

“Um browser é um produto separado, independente”, disse Barksdale, explorando sua vantagem. “É uma coisa. Anda como um pato, grasna como um pato, é um pato!”

“E mesmo?”, berrou Warden, recuperando-se. “Mostre-me um! Onde está o pato?” “Um” eram duas

Page 288: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

273

sílabas. Uh-uhn.“Bem ali!”, gritou Barksdale, apontando por cima

da barra de madeira lustrosa do banco das testemunhas para um dos computadores do tribunal, que não se parecia nada com um pato.

Fim da discussão. Não tendo provado nada, Warden então prosseguiu para estabelecer, sem sombra de dúvida, que as pessoas que trabalhavam para a Netscape (“Netscayup”) tinham nomes estranhos. Provou seu ponto pronunciando-os. Um vendedor da Netscape de nome Ram Shriram (pronuncia-se “Rom Shree-Rom”) ele chamou como Ram Sha-ram (rima com Sha- zam!). Referiu-se a Mitchell Baker, uma advogada da Netscape, como Mister Mitchell Baker. “É Missus [Mrs.] Mitchell Baker”, disse Barksdale. “Alguns desses nomes”, disse Warden, “não dá para saber. Podem ser uma coisa ou outra.” Quando chegou a hora de se defrontar com um funcionário da Netscape chamado Alan Louie, o advogado já sabia que era melhor não fazer adivinhações sobre essa gente do Norte da Califórnia. “É Mister Alan Louie?”, ribombou. Barksdale assentiu. “E suponho que seja Lou- eeeeeV’ Seu tom dizia: “Essa gente da Netscayup contratou moças com nomes de rapazes e rapazes com nomes de moças. Que diabo de empresa é essa afinal?”

Logo chegou a hora de o advogado da Microsoft questionar a carta que Jim Clark tinha mandado Gary Reback escrever para o Departamento de Justiça, imediatamente após a reunião entre a Microsoft e a Netscape, em 21 de junho de 1995. Brandindo a carta, Warden pediu que Barksdale admitisse que ela omitia qualquer menção à suposta oferta da Microsoft para

Page 289: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

274

repartir o mercado de browsers. (A idéia era que se a Microsoft tivesse de fato feito uma sugestão tão patentemente ilegal, o advogado da Netscape a teria ao menos mencionado em sua queixa ao DOJ.)

“Mr. Barksday-ul”, disse Warden, “a carta diz alguma coisa a respeito de uma proposta para repartir o mercado?”

Barksdale respondeu que não tinha lido a carta de Reback, que agora estava à sua frente. Warden lhe pediu que a examinasse. “Quer que eu leia isto?”, perguntou Barksdale, incrédulo, segurando a carta como se fosse titica.

“Sim” disse Warden.

Certa vez Barksdale tinha desdenhado de alguns documentos colocados à sua frente e declarado: “Essas coisas são completamente inúteis”. Agora ele zombava: “Uma carta de quatro páginas em espaço um?”

“Eu fui capaz de lê-la inteira bem rápido”, disse Warden, lamentoso.

“Bem, o senhor é um homem bem mais inteligente do que eu”, disse Barksdale, a voz pingando condescendência. Os jornalistas na arquibancada explodiram em gargalhadas. Ricos homens de negócios eram honestamente incapazes de tratar advogados com outra coisa que não fosse desdém.

“Não” ribombou Warden, em uma tentativa desesperada de recuperar fosse qual fosse a vantagem que havia em ser o único caipira gordo da sala. “O senhor é um homem muito mais esperto, sr. Barksday-ul. É por isso que o senhor tem 100 milhões de dólares e minha casa pertence ao banco.”

Page 290: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

275

Nesse momento, o juiz olhou para baixo de seu assento e disse, penetrante: “O senhor terminou, sr. Warden?”

Ele tinha terminado. Barksdale, não. Haviam-lhe solicitado que recordasse os últimos estágios da negociação entre a Microsoft e a Netscape, depois de a Netscape ter concluído que a Microsoft jamais divulgaria o código fundamental de que ela precisava para tornar seu browser compatível com o Windows 95. Ora se não ia recordá-los. Ele percorreu com os olhos a sala do tribunal. Estava, claro, repleta de advogados. “A essa altura, estava tudo por conta dos advogados”, suspirou Barksdale, “e quando isso acontece, é melhor esquecer o assunto.”

De novo, os jornalistas explodiram em gargalhadas. Lá estava ele de novo, claro como o dia. Ah, o desdém! Ah, o desprezo! E se o desdém podia ser expressado daquela maneira a alguns dos advogados mais bem pagos do país, o que dizer de todos aqueles outros advogados enfileirados nas mesas no centro da sala do tribunal, que passavam o dia todo digitando em teclados e cochichando segredos. E todos os brilhantes jovens que tinham sacrificado os melhores anos de suas vidas na Faculdade de Direito de Harvard e que agora viviam para receber uma reles palavra de aprovação do caipira gordo? O que Jim Barksdale, o Executivo Americano Sério, pensava que essa gente que passava a vida cochichando segredos e digitando em laptops eram? Servos!

À medida que a desordem no tribunal arrefecia, Barksdale sorriu e se inclinou para o juiz, como alguém que vai contar uma piada em um abrigo de caça. “Digo

Page 291: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

276

isso no bom sentido, Meri- tíssimo.” O Meritíssimo corou. O que podia dizer? Ele não deixava de ser um advogado. E aquele homem tinha 100 milhões de dólares.

A única pessoa que poderia olhar para Barksdale com o mesmo desdém olímpico com que Barksdale tinha olhado para os advogados não estava presente para fazê-lo. Mas fez uma entrada teatral. Clark não veio pessoalmente; ele passou os primeiros dias do julgamento da Microsoft correndo para aprontar seu barco para atravessar o Atlântico. Mas sua imagem apareceu na tela gigante da sala do tribunal, e ele respondeu a algumas perguntas num tom que sugeria que as pessoas que trabalhavam como advogados para a Microsoft não tinham condições de compreender a nova novidade. “Você obviamente não é um busi- nessman [homem de negócios]”, disse com sarcasmo a certa altura. Bidnessman [homem de riscos]. A lei muda tudo aquilo em que toca, entretanto, e agora fazia isso de uma maneira para a qual Clark estava mal preparado, sondando seu passado. O sistema jurídico americano abriu as caixas de papelão ao lado da velha tuba no quarto de hóspedes de Clark e começou a cavar em busca de uma prova terrível.

Até então, a defesa da Microsoft não era muito mais do que ataque violento e espetacularmente confuso contra a Netscape.

Consistia em quatro argumentos. 1) a Microsoft nunca intimidara a Netscape, em especial na crucial reunião de 21 de junho de 1995 entre as duas empresas, justamente a que levara Jim Clark a procurar o Departamento de Justiça. 2) Mesmo que a Microsoft

Page 292: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

277

houvesse de fato intimidado a Netscape na reunião, a reunião era um “estratagema” para forjar provas que justificassem um processo antitruste contra a Microsoft. 3) Não era possível que a Microsoft fosse considerada responsável pelo fracasso da Netscape, porque a Netscape não havia fracassado: ela ainda era líder de mercado e uma importante inovadora na tecnologia de browsers de Internet. 4) A Netscape havia fracassado terrivelmente, mas por causa de sua própria incompetência. Como prova deste último ponto, o advogado da Microsoft tinha apresentado um novo livro de dois professores da Faculdade de Administração de Harvard intitulado Competing on Internet time [A competição na era da Internet], Os professores defendiam que a Netscape, ao zombar da Microsoft, flertara com o desastre desde o início. “Mostrando a língua ao gigante” era o nome que os professores haviam dado a essa tática. Clark havia mostrado a língua ao gigante, primeiro ao se referir à Microsoft em público como “Estrela da Morte”, e depois ao permitir que seu sócio de 22 anos, Marc Andreessen, se vangloriasse a jorna-listas de que a Netscape ia tirar a Microsoft do mercado.

Barksdale adotou um tom de autodepreciação. Sempre que os advogados da Microsoft começavam a argumentar que a Netscape ainda era muito bem-sucedida, Jim Barksdale dizia exatamente o contrário. E assim os espectadores testemunhavam o estranho espetáculo em que duas empresas, ambas com plena consciência de que pertenciam a um ramo de negócio em que a impressão de sucesso leva ao sucesso e a impressão de fracasso leva ao fracasso, se auto-espinafravam. A retórica no tribunal era quase o oposto

Page 293: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

278

da retórica no mundo dos negócios. O desafio daMicrosoft era persuadir o juiz de que não tinha um monopólio sem persuadir da mesma coisa a Bolsa de Valores. O desafio da Netscape era não parecer patética.

E então Jim Clark entrou no tribunal. Um homem que estivesse mais apreensivo com seu passado teria se preocupado em não deixar vestígios. Uma parte de sua mente teria se dedicado a ver como suas ações seriam vistas pela história. Mas essa não era a sua natureza. Clark inventava sua vida à medida que caminhava. Avançando dessa maneira, ele deixava atrás de si uma bagunça que outros deveriam arrumar. A bagunça era com freqüência inspirada, mas continuava sendo uma bagunça. E da bagunça os advogados da Microsoft arrancaram um único e-mail. Tinha sido enviado por Clark aos executivos da Microsoft Dan Rosen e Brad Silverberg em 29 de dezembro de 1994, às três da manhã. “Gostaria de convencer vocês a reconsiderar”, começava. Seguia por uma página inteira, mas seu âmago podia ser reduzido a um único trecho:

Queremos fazer com que esta empresa seja um sucesso, mas não à custa da Microsoft. Gostaríamos de trabalhar junto com vocês. Trabalharmos juntos pode ser interessante tanto para vocês como para nós. Dependendo do interesse, vocês poderiam comprar uma participação na Netscape, com a possibilidade de expandir essa participação mais tarde [...] Considerando a preocupação que existe com o predomínio da Microsoft em praticamente todas as áreas, podemos ser uma boa maneira indireta de vocês entrarem no

Page 294: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

279

segmento da Internet.

Ele concluía: “Ninguém na minha organização sabe desta mensagem”.

Projetado na tela grande, o e-mail de Clark teve diferentes efeitos em diferentes pessoas. O juiz Thomas Penfield Jackson exibiu o que estava se tornando sua expressão de perplexidade. Um e-mail enviado às três da manhã era apenas mais uma prova de que esses bilionários tecnológicos eram um pouco... perturbados. O juiz tinha sua própria concepção de trabalho, que ter-minava pontualmente às cinco da tarde. Ninguém o encontraria curvado em frente a nenhuma tela retangular às três da manhã tentando encontrar uma maneira de ganhar 1 bilhão de dólares. Seu tribunal permanecia em sessão por duas horas e quinze minutos todas as manhãs e outras tantas todas as tardes. Quatro horas e meia por dia, quatro dias por semana. As sextas-feiras eram livres. Muitos outros dias também eram livres, escolhidos de maneira aparentemente aleatória pelo juiz. A simples idéia de alguém escrever um e-mail às três da manhã do dia 29 de dezembro, um dia que era, afinal, parte do feriado de Natal, lhe parecia absurda.

Os advogados do Departamento de Justiça ficaram taciturnos. Estavam se esforçando ao máximo para persuadir o juiz de que a Microsoft tinha pressionado a Netscape. Se Clark tinha convidado a Microsoft a participar de sua empresa em dezembro de 1994, como é que o DOj poderia agora sustentar que a Microsoft tinha importunado a Netscape em junho de 1995? Os advo-gados do DOI também estavam irritados com Clark. Ele

Page 295: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

280

não lhes tinha falado de sua oferta à Microsoft; os advogados do departamento só descobriram sobre ela quando o e-mail foi apresentado pela Microsoft na indicação prévia de provas, imediatamente antes do julgamento.

Para completar, havia a reação de Barksdale ao espantoso e- mail de Clark, que era como uma espécie de cavalo-de-tróia oferecido à Microsoft para que ela invadisse a Internet. Clark tinha convencido Barksdale a deixar seu emprego na AT&T. Barksdale tinha concordado em administrar a Netscape sob a condição de ter controle total. Tanto Clark como John Doerr tinham concordado

em não interferir. E agora isso! O e-mail de Clark convi-dando a Microsoft a participar de seu negócio tinha sido escrito cinco dias antes de Barksdale se apresentar no trabalho. E o único motivo pelo qual Barksdale sabia de sua existência naquele momento era que os advogados do Departamento de Justiça o tinham alertado sobre o que o esperava antes de ele sentar-se para depor.

Prevenido, Barksdale tentou sustentar que o e-mail de Clark fora escrito em um “momento de fraqueza”. O advogado da Microsoft, claro, esperava persuadir o juiz de que o e-mail não fora o ato de um homem lutando contra seus demônios às três da manhã, mas uma política empresarial deliberada. Queria forçar Barksdale a admitir que ele e Clark eram parte de uma equipe coesa, e que, portanto, Barksdale deveria ter conhecimento do e-mail. Quando Barksdale estava sob juramento, ofereceu-lhe uma escolha dilacerante. Barksdale podia concordar que ele, assim como Jim

Page 296: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

281

Clark, tinha tido o prazer de convidar a Microsoft para participar da Netscape, e assim torpedear toda a argu-mentação do governo. Ou podia dar a impressão de ser um idiota que não tinha conhecimento dos assuntos internos de sua própria empresa.

“Sr. Barksdale”, ribombou o advogado da Microsoft. Barks- day-ul. Barksdale ergueu os olhos.

“O sr. Clark é um homem muito reservado?”, perguntou o advogado.

“Pode ser muito reservado, sim, senhor” respondeu Barksdale.

“O sr. Clark teve uma carreira nos negócios muito bem- sucedida, não teve?” perguntou o advogado.

“Sim, teve”, respondeu Barksdale.“E ele tem a reputação de dizer a verdade?”,

perguntou o advogado.

Page 297: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

282

“Isso não posso dizer”, respondeu Barksdale. “Eu não sei.”

“O senhor o considera um homem honesto?” Demorou tanto a fazer a pergunta que um enxame de mosquitos poderia ter nascido em sua boca. “Honesto” saiu de sua garganta gorda como hone-e-e-es... toooo. “Homem” tornou-se homeim. Até “Clark” tornou-se duas sílabas. Clar-ark.

Mesmo assim, Barksdale precisou de tempo para pensar. Se fosse um filme em vez da vida real, teria havido um flashback para três anos antes. Desde o instante em que deixara a proteção do útero do Executivo Americano Sério e entrara no Clark- World, a vida de Barksdale se tornara uma luta constante para preservar sua dignidade. Nos jantares a que comparecia, Barksdale contava uma história engraçada sobre sua primeira viagem ao Vale do Silício, quando ele e sua mulher se encontraram com uma corretora de imóveis que Clark lhe tinha empurrado garantindo que ela era a melhor que havia no ramo.

A corretora de Clark mostrou-se uma dessas pessoas agitadas e tagarelas que, enquanto dirigem, insistem em olhar nos olhos dos passageiros no banco de trás. “Querem ver a casa de Scott Cook?”, berrou por sobre o ombro para os apavorados sr. e sra. Barksdale. Scott Cook era o presidente da Intuit, empresa de software financeiro. “Ela está à venda?” perguntou Barksdale. “Não”, disse a mulher. “Então não quero vê-la”, disse Barksdale. A corretora de Clark o ignorou e atravessou cantando os pneus um enorme portão de bronze, entrando na casa de Scott Cook. A sra. Scott Cook precipitou-se da casa para investigar a invasão. A

Page 298: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

283

corretora de Clark entrou em pânico, deu ré e tentou uma fuga rápida, mas acabou enfiando o carro no jardim recém- plantado. E lá ficou, atolada na lama. As rodas giravam em falso, as plantas voavam. A sra. Cook estava lívida. Olhou para Barksdale como se ele fosse uma espécie de criminoso. Tiveram que chamar um caminhão de bombeiro e um guincho para retirarBarksdale, sua mulher e a corretora de Clark do jardim. O episódio durou uma hora.

Na época parecera um incidente atípico. Em retrospectiva, foi a tônica da carreira de Barksdale no ClarkWorld. Clark o tratara tão gentilmente quanto era capaz de tratar um de seus capitães, mas ainda era um tratamento mais rude do que Barksdale jamais tinha recebido. O IPO da Netscape fora um excelente exemplo. Barksdale queria que a Netscape continuasse a ser uma empresa fechada. Gostava do método antiquado de esperar que uma empresa se tornasse lucrativa antes de vender ações ao público. Mas apenas alguns meses depois de Barksdale ter entrado para a empresa, Clark apareceu para uma reunião do conselho com Frank Quattrone e Larry Sonsini a reboque. Quattrone e Sonsini eram, respectivamente, o principal banqueiro de investimento e o principal advogado do Vale do Silício. Durante a reunião, Clark, que, claro, estava ansioso para conseguir o dinheiro para construir o barco, voltou-se para eles e lhes perguntou o que achavam da idéia de abrir o capital da Netscape. Advogados e banqueiros de investimento fazem suas fortunas quando as empresas abrem o capital. Ambos os homens se uniram a Clark para pressionar Barksdale a fazer o negócio. Tudo isso para que Jim Clark pudesse construir um

Page 299: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

284

barco!

Você poderia pensar que Clark se contentaria em pôr a mão no dinheiro. Você poderia pensar que ele se dedicaria a outra coisa. Nem um pouco! Clark vivia atazanando Barksdale para seguir o Yahoo e o Excite para o mercado dos portais. Portal, como browser, era outro termo cunhado pela Internet. Nos calcanhares da Netscape, muita gente teve ao mesmo tempo a bri -lhante idéia de criar uma espécie de entrada, ou portal, para o novo mundo virtual. O Browser permitia que o usuário viajasse pela Internet, mas como ele saberia para onde ir? A informação na Internet suplicava para ser organizada, e as empresas de portais responderam à súplica. Clark não parava de dizer a Barksdale que o futuro não estava em vender browsers, mas em atrair as massas ao portal da própria Netscape, aliás, bastante sem graça. Pior, ele tinha razão! Em questões técnicas, Barksdale estava à mercê de Marc Andreessen, o jovem que pela primeira vez mostrara um browser de Internet a Clark e o ajudara a criar a Netscape. Andreessen tinha permanecido a bordo como a autoridade técnica da Netscape, mas ameaçara sair meia dúzia de vezes, e tinha ameaçado liquidar suas ações mais vezes ainda. Imagine o que a imprensa financeira faria com isso! Do jeito que estava, Andreessen tinha vendido um quarto de sua participação perto da baixa, a dezesseis dólares por ação. Jim Barksdale, o Executivo Americano Sério, não era mais um líder de homens. Era uma babá.

Além de tudo isso, havia aquele tribunal. Bem que tudo podia ser obra de Clark. Depois que se tornou

Page 300: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

285

inevitável que a Netscape fosse a peça central do processo do DOI contra a Microsoft, Barksdale se encarregou do assunto, claro. Era esse seu trabalho — conferir ordem e razão à anarquia dos outros. Mas o motivo de Clark ter procurado Reback, e feito com que escrevesse a carta ao Departamento de Justiça, tinha sido seu receio de que Barksdale não fosse fazer nada. E ele provavelmente tivera razão.

Enquanto estava sentado, infeliz, no banco das testemunhas, Barksdale examinava a pergunta. Se ele considerava Jim Clark um homem honesto? Ele já havia jurado nunca ter visto o e-mail de Clark. Isso podia ser a pura verdade — afinal, Barksdale ainda não tinha aprendido a ler seu próprio e-mail —, mas sua declaração de ignorância estava longe de captar o espírito daquele momento. O

Page 301: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

286

DOJ tinha mostrado uma cópia do e-mail de Clark a Roberta Katz, advogada da Netscape, e Katz tinha aju-dado Barksdale a se preparar para o interrogatório. Ambos sabiam que lhe apresentariam o e-mail de Clark, e solicitariam que o explicasse. A mostra de ignorância de Barksdale era para causar impressão: se ele não sabia do e-mail, então não podia ser terrivelmente importante. Mas a verdade é que ele estava chocado. Tinha sido contratado para conferir uma certa dignidade ao novo empreendimento de Clark, e o e-mail o despojava dela. O e-mail fazia com que ele parecesse um criado a quem se dizia o mínimo necessário.

“O senhor considera Jim Clark um homem honesto?”, perguntara o advogado.

“Eu o considero um vendedor”, respondeu Barksdale.

“Não vou discutir isso, sr. Barksdale”, disse o advogado da Microsoft, e passou para assuntos menos interessantes.

Page 302: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

287

15- Em alto-mar no lar do futuro

Para passar algum tempo com Clark era necessário abandonar todas as conveniências costumeiras que advêm do planejamento antecipado: comprar passagens aéreas com antecedência, reservas em hotéis, roupa de baixo limpa. Os amigos de Clark aprenderam a não se surpreender ao receber um telefonema dele— sempre de um telefone celular, normalmente a uns mil quilômetros de onde esperavam que ele estivesse no momento — que começava: “Oi, hum, só queria te dizer que, hum, houve uma mudança de planos. Não vou te encontrar em Nairóbi hoje à tarde”. A mulher de Clark, Nancy Rutter, já tinha descoberto havia muito tempo que os planos dele não tinham nada de pla-nejado. Um plano era meramente uma hipótese do que ele poderia fazer durante o dia; o tempo todo meia dúzia de outras hipóteses se chocavam em sua mente.

Não era surpresa para ninguém que conhecesse

Page 303: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

288

Clark — e com certeza não surpreendia sua tripulação — que antes de atravessar o oceano Atlântico em seu novo iate informatizado ele tinha que mudar de idéia sete ou oito vezes sobre como fazê-lo.

Primeiro ele disse que não perderia a travessia por nada no mundo. Então disse que talvez a perdesse para dar uma palestra para alguns alunos em Stanford. Então disse que talvez cancelasse a palestra para fazer a travessia, e ficou mais entusiasmado do que nunca com a travessia do oceano. Depois de marcar a data da partida, disse que o barco não podia partir, porque naquele dia as cortinas na sala de estar do barco não estavam exatamente do jeito que ele queria. E assim por diante. Parecia um sujeito com uma flor na mão que diz “bem me quer, mal me quer”, exceto pelo fato de que fazia isso com toda a sua vida.

Finalmente, às quatro horas de uma manhã de janeiro de 1999, ou três meses depois que a Healtheon cancelou seu IPO, subimos a bordo do avião de Clark em Palm Beach, na Flórida, e voamos para as ilhas Canárias: eu, Clark e a cozinheira do Hyperion, Tina Braddock, que Clark decidira levar consigo aonde quer que fosse. O resto da tripulação e o engenheiro de software Steve Hague já estavam a bordo. (Lance e Tim tinham sido mandados de volta para a sala em cima do centro Jenny Craig para perda de peso, em Menlo Park, Califórnia.) O Hyperion tinha acabado de passar pela Espanha, a caminho da doca na Grande Canária, onde pretendia nos recolher no dia seguinte. O jato de Clark estava em funcionamento e pronto para partir. O compartimento de bagagem estava repleto de comida e

Page 304: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

289

vinho para a travessia. Depois de sete anos escrevendo programas para pilotar um barco, Clark tinha, afinal, a chance de ver seu programa guiar o barco através do oceano. Mesmo assim, ninguém no jato podia prever o que ia acontecer em seguida. Quando Clark saiu para mexer em alguma coisa na traseira do avião, Tina se inclinou para o corredor e disse, nervosa: “Eu me pergunto se vamos mesmo”.

Ela sabia! Em algum lugar havia um motivo para não velejar através do Atlântico na viagem inaugural do Hyperion. Ela sabia

Page 305: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

290

também que teria que esperar para descobrir que motivo era esse.

Quando chegamos à Grande Canária, a multidão de ilhéus já estava reunida. Era uma doca feia, em uma área industrial, a um quilômetro de distância de qualquer lugar aonde alguém em perfeitas condições mentais iria voluntariamente. Mesmo assim, a noite inteira, as pessoas tinham vindo se embasbacar. À meia- noite, os ilhéus fluíam pela doca a pé, ou rodavam em carros velhos e destrambelhados, e paravam para espiar o barco. À meia- noite não havia muito o que ver: algumas pessoas agitadas; Steve e Jim na cabine disparando comandos em seus computadores; e Allan Prior encarapitado na cadeira de capitão, usando os mesmos trajes dos últimos três dias, fitando, por razões que logo ficariam claras, a tela do computador.

Algumas horas depois de termos chegado, Allan assumiu sua posição no timão, atrás de uma fileira de telas de computador, apertou alguns botões e conduziu o Hyperion para o oceano Atlântico.

À medida que nos afastávamos da doca na Grande Canária e rumávamos para o mar, a tripulação e os passageiros se reuniram em torno do capitão e lançaram um longo, último olhar. Das cabines dos hóspedes vieram Steve, Clark e Louie Psihoyos, o fotógrafo que Clark tinha contratado para documentar a travessia. Da cozinha vieram Tina, o camareiro, Peter, e sua assistente, Kristi; do convés vieram o imediato, Jaime, e os dois marujos, Simon Hutchins e a moça de nome curioso, Celcelia. O sol brilhava forte e o mar se

Page 306: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

291

estendia calmo, como se o Atlântico nos convidasse a atravessar. No momento exato em que parecia que todos estavam presentes deleitando-se com o orgulho da partida, o chão da cozinha se abriu e surgiu um homem da abertura.Parecia não ver a luz do sol havia um século. Era o engenheiro, Robert.

Foi assim que onze das doze pessoas a bordo começaram a travessia do oceano Atlântico — com senso de aventura. Para a maior parte das pessoas que o fazem, há algo de romântico em se velejar através do oceano Atlântico. Colombo, ninguém menos, tinha partido das ilhas Canárias, e velejado por três meses até o Caribe. íamos seguir a rota de Colombo, mas precisaríamos de apenas dez dias para fazer a mesma viagem. Imagine! O resto de nós imaginava; só Clark não imaginava, ou não queria imaginar, ou não podia imaginar. Não era uma dessas pessoas que podem se nutrir da fantasia dos outros. Ele precisava da sua própria. Ele percebia o romantismo na viagem, ou ao menos percebia que deveria haver um romantismo. Com certeza, a idéia tinha apelo para ele. Se não tivesse, não teria contratado um fotógrafo para vir junto e documentá-la. Mas logo ficou claro por que ele tinha ficado tão relutante em vir. A realidade da coisa seria uma tortura.

A realidade de atravessar o Atlântico num veleiro é que é um tédio. Um tédio muito, muito grande. Pelo menos quando vai bem, é um tédio. Quando vai mal é um perigo. Não muito tempo depois de nossa partida, Robert, o engenheiro, mostrou a mim e a Louie, que, estava claro para todos, devíamos ser vigiados como

Page 307: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

292

um par de idiotas, o equipamento que era usado quando as coisas iam mal: botes de salvamento, sofisticados coletes salva-vidas cheios de apitos e sinalizadores especiais, o sistema de resgate no caso de alguém ser jogado ao mar, os alarmes de incêndio. Robert bateu o dedo na lateral de uma cápsula de gás pendurada na parede e usada, aparentemente, para extinguir incêndios. (“A chance de vocês dispararem o gás é muito remota”, disse. “Mas se todos os outros a bordo estiverem mortos, bem, façam um esforço.”) Pelo que eu podia ver, havia várias maneiras de se morrer ao atravessar um oceano num veleiro; se não houvesse, não seria uma aventura. Uma era ser atropelado por um petroleiro tão grande que nem percebesse o que tinha atingido. A outra era ser apanhado por uma tempestade que fizesse com que o mastro se quebrasse ou o barco emborcasse. Uma terceira era cair no mar. A quarta, e a mais provável, era morrer de tédio.

Clark só estava preocupado com a quarta. Para ele, a travessia era um estudo sobre a ausência: nenhuma mudança, nenhuma diversão, nenhum estímulo, nenhum lugar aonde ir. Ele parecia saber desde a largada que por mais que você localize as Três Marias, vasculhe o horizonte à procura de baleias e golfinhos que nunca se materializam, lembre a si mesmo que atravessar o oceano deve ser a emoção da vida inteira, sempre chega uma hora em que você começa a questionar o empreendimento inteiro. O homem comum precisaria, talvez, de três dias para amotinar-se. Clark precisou de um pouco menos de três horas. Depois de exatamente duas horas e quarenta minutos na viagem de dez dias, virou-se para mim e disse: “Não sei que

Page 308: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

293

porra eu vim fazer aqui. Vai ser uma aporrinhação dos diabos”. Então caminhou até Allan, que ostentava a pose de capitão no leme, e deu uma ordem a ser passada para os computadores cuja essência era: “Atravesse o oceano em linha reta, o mais rápido que conseguir”.

Então desceu para a sala de estar, desanimado. Em um barco, a sala de estar é chamada, por algum motivo, de “salão”. Clark afundou em uma das poltronas superestofadas de seu salão e examinou sua obra. Uma paisagem de Monet estava pendurada na parece acima de sua cabeça, e um retrato de Picasso da fase azul estava pendurado na parede a três metros dele — quando se decidiu a ganhar dinheiro suficiente para construir o barco, ele exagerou um pouco. Este seria o momento em um filme de Hollywood em que o roteiro o orientaria a mostrar seu barco de 37 milhões de dólares, novo em folha, decorado com mais 30 milhões de dólares em quadros, e dizer como era impressionante que um menino pobre de Plainview, no Texas, pudesse velejar ao crepúsculo em uma máquina como aquela, encomendada e paga com um dinheiro que ele tinha ganho em menos de dezoito meses. Em vez disso, sua boca estava retorcida, formando aquele apavorante esgar de irritação. Dava para perceber que sua mente estava concentrada em algo que desaprovava, e sua exasperação crescia. Finalmente disse: “Deveriam ter feito as molduras das escotilhas de madeira, também”.

A tripulação ergueu os olhos para ver o que havia de errado com as escotilhas. Eram emolduradas por alumínio pintado de branco em vez da teca e do mogno escuros usados no resto do interior. Para mim parecia

Page 309: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

294

bom, mais do que bom, e obviamente parecera bom aos cerca de cinqüenta mestres marceneiros holandeses que tinham revestido o interior. Mas aqui estávamos nós, no mar, afinal, e tudo o que Clark podia pensar é que podia ter ficado melhor. O homem escolhia seu próprio caminho em direção à loucura, e não era o caminho do pessimista, mas o do utópico. Ele estava na busca sem fim de alguma solução inatingível. O mundo perfeito. No momento em que suspeitava ter criado o mundo perfeito, no entanto, Clark encontrava algo que precisava ser modificado.

Para as outras onze pessoas no barco, a viagem começou bem calma. Quem tinha o que fazer dedicou-se a suas tarefas. Cel- celia, Jaime e Simon esfregaram o convés e testaram as velas. Steve ficou curvado sobre seu computador por horas a fio, até que sua postura trouxesse à lembrança um corcunda com dor nas costas. Clark, depois que se cansou de achar coisas erradas em seu novo barco, desapareceu em sua cabine para achar coisas erradas em seu código dc computador. Durante os primeiros dias, ele parecia apenas comer, beber e se reunir com Steve para discutir algum bug intratável. Os mares não estavam calmos nem agitados. Não havia petroleiros, nem, por falar nisso, embarcações de qualquer tipo no horizonte. A única voz no rádio era a estática, pontuada por gritos de marinheiros filipinos em superpetroleiros que não podíamos ver. “Otário filipino! Otário filipino!”, berravam histericamente uns para os outros por alguma razão que ninguém conseguia explicar. Então explodiam em uivos alucinados. O som era de gente que atropelava veleiros só para se divertir.

Page 310: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

295

Nos primeiros dias, vivemos em um mundo imutável. Nosso maior desafio, ao menos no começo, era evitar enervar os outros. O desafio se tornava maior por causa de uma forma estranhamente poderosa de privação do sono, conhecida como “quarto”. Com exceção de Clark, todos a bordo tinham que cumprir dois quartos de quatro horas para garantir que não seriamos atropelados pelos otários filipinos. Allan Prior afixou o plano de quartos antes de partirmos. Era assim:

12h00-4h00: Jaime, Celcelia, Peter4h00-8h00: Robert, Simon, Louie, Michael8h00-12h00: Allan, Kristi, Steve

Aquele cujo nome aparecia primeiro em cada turno era oficialmente designado “capitão do quarto”. Nosso quarto tinha quatro pessoas porque incluía duas — Louie, o fotógrafo, e eu — que não tinham o que fazer no barco. O capitão decidira que dois idiotas juntos eqüivaliam a uma pessoa útil. Na verdade, não eqüivaliam nem a isso, como descobrimos uma noite quando Robert estava na cabine, inspecionando a casa de máquinas. Atingido por uma terrível necessidade de ir ao banheiro, Simon preferiu quicar pelo convés durante vinte minutos a confiar a mim e a Louie a tarefa de avistar superpetroleiros antes de eles nos esmagarem.

Os quartos se repetiam a cada doze horas. Na grandiosa organização do sofrimento humano, um quarto de quatro horas não parece grande coisa. Até contemplar o vazio perfeito e imutável por quatro horas seguidas, você pode até considerar que deve ser

Page 311: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

296

relaxante. Aliado à ondulação do mar e ao ranger do barco, era mortal. O mar transformava as camas do barco em versões modificadas, turbinadas, das camas vibratórias de hotéis baratos dos anos 70. O madeirame holandês, novo em folha, estalava como fieiras de fogos de artifício em miniatura. Somando tudo, dormir no Hyperion era mais um projeto do que um fato. Isso era verdade não só para os marinheiros de primeira viagem mas para todos a bordo. Em pouco tempo, os olhos estavam remelentos, os nervos em frangalhos, e os sentimentos, que normalmente estão bem guardados nos corações das pessoas, começavam primeiro a vazar — e depois a jorrar para fora.

O capitão Allan Prior passou os primeiros dias sentado ao timão ou gritando cupidamente com o computador com uma intensidade que me surpreendia, dada a freqüência com que ele havia descartado qualquer interesse na coisa. Uma vez a cada meia hora algo pouco relevante dava errado, ou o computador achava que tinha dado errado e soava um alarme. O som era um “bip-bip-bip”, porque Clark ainda não havia tido tempo para escrever o programa para fazer com que o computador gritasse para a tripulação. Sempre que o alarme fazia seu irritante barulho, outro tripulante gritava “Robert! O alarme!”, e Robert, o jovem e robusto engenheiro, surgia de alguma gaiúta no chão, caminhava até o computador, apertava um botão ou dois, e o incômodo bip-bip-bip cessava. Na superfície, ao menos, tudo parecia bem.

Page 312: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

297

Não estava tudo bem — apesar de, exceto pelo óbvio descontentamento de Clark, os sinais disso serem sutis. Na primeira noite, o aquecimento da cabine de Louie disparou por vontade própria. Louie surgiu no nosso quarto às quatro da manhã com gotas de suor escorrendo pelas têmporas. Perguntou, bem razoável: “Por que está esse calor da porra na minha cabine?” Descobrimos que estava quente porque o computador tinha decidido que era para ficar quente. Foram necessárias duas horas apertando botões no computador para convencê-lo a diminuir a temperatura, e depois o computador decidiu, aparentemente por decreto, elevá-la de novo. Na segunda noite, enquanto Steve dormia na cabine que eu e ele compartilhávamos, alguém ativou por engano o monitor de tela plana que havia no teto. Nossa cabine, por algum motivo que nunca entendi, tinha uma tela de compu tador em uma gaveta ao lado da cama e outra escondida no teto. Às duas da manhã o teto acima da cabeça de Steve abriu-se com um zumbido sinistro, e desceu uma tela verde brilhante de uma abertura, como um OVNI. Ele ficou completamente apavorado, como teria acontecido com qualquer um.

Evidentemente, eram apenas marolas no lago. Em tecnologia, mudanças não são um assunto simples. Com freqüência alteram a maneira como as pessoas interagem com o ambiente em que estão e com as outras pessoas. Invente o automóvel, e as pessoas vão viajar mais; invente o ar-condicionado, e vão viajar para os trópicos. O Hyperion oferecia uma pequena ilustração, bem nítida, dos primeiros estágios do caos social provocado pela tecnologia. Provavelmente não existe,

Page 313: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

298

ou não existia até Clark aparecer, um lugar no mundo ocidental onde o ritual seja mais importante do que um veleiro. Ele tem seu próprio e peculiar vocabulário, concebido para confundir os não-iniciados. Sota- vento, buja, guarda-mancebo, burro, pé-de-galinha — nem um em cada dez marinheiros de água doce, por mais inteligentes que fossem, conseguiria definir metade desses termos. Há costumes e tradições em um veleiro. Há uma hierarquia que é cuidadosamente observada. O capitão domina o imediato, o imediato domina os marinheiros, os marinheiros dominam os camareiros. Neste pequeno e organizado ambiente feudal, Clark havia jogado seu temperamento anárquico e seus 25 computadores Silicon Graphics — um poder computacional maior do que o que se encontra em uma grande fábrica totalmente automatizada. Os tripulantes que não compreendiam computadores de repente descobriram que estavam à mercê daqueles que os compreendiam. Isso representava óbvias ameaças à paz.

Como eu digo, os primeiros sinais de que a utopia do tecnólogo era tudo menos uma utopia eram sutis. Em nosso quarto, por exemplo, Simon e Robert preferiam não ficar juntos. Quando Robert entrava em uma conversa, Simon a abandonava. Ou eu ficava com Simon no convés e Louie ficava com Robert na ponte, ou, como era mais comum, eu ficava com Robert na ponte e Louie ficava com Simon no convés. Era evidente que os dois tripulantes estavam se evitando, discretamente. Na terceira noite, Robert e eu estávamos juntos nas altas cadeiras giratórias da ponte, de frente para a fileira de brilhantes monitores de tela plana. Do lado de fora, o mar lavava o casco

Page 314: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

299

suavemente e as estrelas cintilavam. Robert começou a falar sobre o que significava ser engenheiro. Quando usava a palavra engenheiro, ele claramente queria dizer “engenheiro à moda antiga”, não “geek de computador”. Ele tinha a visão de que havia dois tipos de pessoas no mundo, as que fazem o trabalho e as que recebem o crédito. Engenheiros de verdade pertenciam à primeira categoria. Entre outras coisas, ele tinha o sentimento de que os engenheiros tinham sido em grande medida abandonados pela história.

“Quem inventou a turbina a gás?” perguntou, um pouco bruscamente.

Eu não tinha idéia.“Frank Whittle”, disse. “Quem foi o engenheiro-

chefe do projeto Apollo?”Eu disse que tampouco sabia a resposta dessa

pergunta.“Está vendo?”, disse Robert, e seguiu-se uma pausa

eloqüente. Eu podia ouvi-lo sorrindo no escuro. “Mas se você quer ver sua foto no jornal hoje em dia”, afirmou, “tudo o que tem a fazer é sentar-se em frente a uma tela de computador.” Assobiou um pouco para si mesmo, então falou: “Quando algo dá errado neste barco, todo mundo acha que o engenheiro quebrou alguma coisa. Quando algo dá errado no programa do computador, todo mundo acha que o geek dá um jeito. Você acha que é assim por quê?”

A sala estava escura, exceto pelo brilho cor de laranja das telas. As ondas balançavam o barco de um lado para o outro. Robert não passava de uma sombra espessa. “O problema aqui”, continuou a voz, “é que Jim construiu o barco mais sofisticado, do ponto de vista

Page 315: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

300

tecnológico, que jamais fora construído e o dotou de uma equipe não técnica.”

Essa afirmação não fazia nenhum sentido imediato para mim. Afinal, Simon fora contratado por Clark para ser um meio- de-campo humano entre a tripulação e os computadores. Simon não sabia programar um computador, mas tinha aprendido, num curso de três semanas na Silicon Graphics, a executar algumas tarefas técnicas rudimentares. Se o seu laptop falhasse, Simon tinha consideravelmente mais chance de resolver o problema do que você. Pertencia à crescente tribo de pessoas semi- técnicas cuja principal função é responder às queixas da humanidade contra os computadores. Sem dúvida, era o primeiro marinheiro na história que, para ser contratado como marinheiro, tinha que conhecer ciência da computação. Eu disse isso a Robert.

“Se algo der errado de verdade, Simon não pode consertar”, disse Robert. “Este é um dos motivos pelos quais existe um atrito entre mim e Simon. Eu disse a Allan que achava que a pessoa a bordo que fizesse a interface com os computadores deveria ter quinze anos de treinamento na área. Allan não tem a menor idéia de como isso tudo funciona. E Simon também não. Simon não sabe programar o computador. Não é um especialista. E você quer que as coisas funcionem quando aperta o botão no computador.”

Aparentemente, Robert estava ficando farto por as coisas não funcionarem quando ele apertava um botão no computador. Ele era, afinal, um homem técnico. Havia vezes, disse, que não conseguia descobrir como apagar as luzes. E isso o aborrecia.

Page 316: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

301

No fim do quarto dia no mar, viramos para o sul e ligamos 0 motor. Sul era a direção errada para quem quisesse traçar uma linha reta para o Novo Mundo. Apenas algumas horas antes, Clark dissera que tinha pressa de chegar em casa, já que realmente precisava fazer a palestra para os 2 mil médicos que poderiam se tornar clientes da Healtheon. Mas agora ele tinha mudado de idéia em relação à urgência de chegar a tempo; ele queria fugir do frio.

Como o vento não estava favorável, o computador baixou a vela principal para dentro da retranca e aumentou o motor para vigorosos doze nós. Por um momento, esqueceríamos o prazer de velejar e nos valeríamos do motor para seguir em frente. Clark se recolheu para sua cabine às dez horas, e eu fui para a cabine de hóspedes pouco depois. À meia-noite, 0 quarto de Steve terminou; ele entrou na cabine e se jogou na outra cama. Refletiu um pouco sobre seu curioso papel: o homem que escreveu o programa para controlar o veleiro. O barco não tinha sido feito para carregar um programador, mas agora um programador era indispensável. “No estaleiro não tivemos realmente chance de testar o sistema, porque o sistema nunca esteve totalmente no ar”, disse. “Eu precisava estar por perto só para entender os computadores porque ninguém mais os compreende — exceto Jim, e Jim não quer se dar ao trabalho de explicar tudo ao Simon. Ainda me pergunto como este barco vai funcionar sem mim, sem Lance, Tim ou Jim a bordo. Se houver uma falha séria, suponho que eles vão desligar os computadores, tornar a ligá-los e torcer para dar tudo certo.”

Page 317: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

302

Fiz a pergunta óbvia: de onde tinha vindo a idéia do Hyperion? “Não tenho muita certeza de quanto Jim conhecia de vela, para ser honesto”, disse. “Ele simplesmente tinha essa idéia de querer um veleiro que pudesse pilotar por controle remoto.” “Ele velejou bastante depois que saiu da Silicon Graphics”, eu disse, porque era verdade.

“Talvez”, respondeu Steve. “Mas isso começou meio como uma experiência de laboratório.” Então repetiu o que dissera uma vez antes, de modo muito desconcertante. “Não acho que Jim compreenda que a vida das pessoas depende de este troço funcionar direito.”

Então caiu num sono profundo. O barco vibrou, estalou, subiu e desceu. A madeira nova rangia para se acomodar, com um som que lembrava uma árvore alta sendo derrubada. Fora isso, me dei conta, todos os ruídos a bordo eram resultado do computador fazendo alguma coisa. Contemplei o teto e invejei o ronco de Steve.

Meia hora mais tarde, logo antes da uma da manhã, o motor parou. A vibração e os estalos pararam com ele. O barco ficou em silêncio.Quando o motor parou pela primeira vez, eu estava rolando na cama, tentando calcular o tamanho das ondas baseando- me na violência com que eu era arremessado para um lado, contra a parede, e para o outro, contra a proteção de madeira colocada para impedir que eu fosse atirado para fora da cama de vez. Até mesmo eu era capaz de dizer que algo estava errado. Em um momento havia uma pequena vibração e a sensação de uma máquina cortando as ondas propositadamente. No momento seguinte, o barco estava à deriva. As ondas balançavam a cama mais

Page 318: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

303

violentamente do que antes, e em novas direções. Subi para o convés.

O quarto da meia-noite às quatro era de responsabilidade de Jaime, o imediato australiano, Peter, o camareiro americano e Celcelia, a marinheira sueca. Normalmente, eles estariam zan- zando pelo convés, verificando as coisas. Quando cheguei, esta- vam os três na sala de controle, apertando botões nas telas de computador. Estavam claramente perplexos. Uma pequena luz vermelha onde estava escrito “Alarme” piscava no computador, que emitia um incômodo bip agudo. Por sorte, a pessoa que chegou em seguida foi Robert.

“Não consigo dormir”, disse, enfiando a cabeça pela gaiúta. “O que houve?”

“O motor simplesmente parou”, disse Jaime.“Bem, isso é não é bom”, disse Robert, e foi até a

tela e desligou os alarmes. O som de bip cessou. Em seu lugar apareceu o homem que inventou o som de bip. “O que está acontecendo?”, perguntou Clark, subindo os degraus do salão principal para a sala de controle. “Pelo som, parece que o motor parou.” Colo-cou-se bem à frente da fileira de monitores de vídeo. Digitou a senha que lhe permitia entrar no Modo Deus. A escuridão só era abrandada pelo brilho cor de laranja das telas de computador.

Acabava de passar de uma da manhã. Para compreender perfeitamente o que aconteceu em seguida, você tem que se lembrar de que fazia pelo menos quatro dias que ninguém dormia direito. Agora, seis das doze pessoas a bordo estavam na sala de controle. Robert e Jim, os rostos iluminados de um

Page 319: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

304

laranja pálido, fitavam atordoados os monitores, enquanto o imediato, Jaime, hesitava atrás deles e aguardava alguma notícia. As telas ofereciam informações sem fim: o mar abaixo de nós tinha 5732 metros de profundidade, o vento atrás de nós soprava a dezesseis nós, o barco em que estávamos se movia à deriva a pouco mais de um nó, na direção da Antártida, a adega de vinhos estava na temperatura perfeita, a porta da cabine do capitão estava fechada, as luzes do capitão estavam apagadas... o computador seguia sempre em frente, explicando tudo, com exceção do que queríamos saber: Por que o motor tinha parado? O motor era nossa salvação. O motor nos arrancaria do caminho dos otários filipinos tagarelas. Era o motor que nos levaria para casa em vez de para a Antártida.

Robert desapareceu nas entranhas do barco. Quatro minutos depois o motor recomeçou a funcionar, e todos respiraram melhor. Robert reapareceu com o jeito de um homem que tenta disfarçar, até para si mesmo, o prazer que sente com sua atuação. Trinta segundos depois, recebeu alguma ajuda: o motor parou de novo. De novo Robert desapareceu, de novo o motor recomeçou a funcionar, de novo todos respiraram melhor. E de novo Robert reapareceu, mas dessa vez sem nenhum traço de auto-satisfação. O motor recompensou-lhe a humildade. Não parou mais.

Nesse momento Louie, vindo de sua cabine, subiu os degraus aos tropeções. Como todos os bons fotógrafos, Louie tinha um talento evidente para aparecer onde não se desejava sua presença, e para permanecer inabalável. Passou a tirar uma foto atrás da outra. “Como você vê”, brincou Robert, alto apenas o

Page 320: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

305

bastante para que Clark ouvisse, mas não alto o bastante para parecer que ele quisesse que Clark ouvisse, “se você quer ver sua foto no jornal, tudo o que tem a fazer é ficar na frente de um monitor, abrir umas cinco janelas e dar a impressão de que sabe o que está fazendo.”

Clark não disse nada. Robert consertava as coisas. Robert era útil. Não havia nada de errado com Robert. Logo, era permitido a Robert um pouquinho de insolência controlada em um momento de tensão como esse. Clark e Robert então ficaram juntos perto das telas de computador. Clark naturalmente queria saber o que Robert tinha feito. Robert explicou a Clark que o problema era algo chamado de “tomada d’água”. A tomada d’água retirava água salgada do oceano para refrigerar o motor. A água salgada não circulava realmente dentro do motor, claro. Ela apenas esfriava sua superfície externa. Se entrasse ar na tomada d’água, o motor perdia parte de sua capacidade de refrigeração. O computador entendia que era perigoso se o motor sofresse superaquecimento. Quando o motor ficava superaque- cido, o computador o desligava.

“Quando desci a primeira vez, vi que havia ar na tomada d’água” disse Robert. “Não devo ter tirado todo o ar da primeira vez.”

Naquela linda ponte de mogno, à uma da manhã, havia três reações à nossa condição. As cinco pessoas não técnicas — Louie, Jaime, Peter, Celcelia e eu — estavam felicíssimas. A tomada d’água — fosse que diabo fosse — tinha sido consertada! O motor funcionava! Não iríamos à deriva para a Antártida! O homem mecânico — Robert — estava satisfeito, mas

Page 321: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

306

não feliz. Sempre que o motor falhava, seu mundo se tornava um pouco menos seguro. A terceira reação era a de Clark. Ele sempre fazia questão de ter sua própria reação a qualquer problema técnico, e isso lhe dava uma espécie de controle sobre a opinião acerca do problema. Estava claramente interessado. Depois de ter ouvido a explicação de Robert, disse: “Isso não faz sentido”. Robert lhe perguntou por que não. “O mar está calmo demais”, disse Clark. “Posso entender que entre ar na tomada d’água se o barco estiver sendo jogado para lá e para cá, mas não devia entrar ar nestas condições.”

A essa altura o motor estava funcionando perfeitamente, de modo que aquilo parecia uma preocupação estéril de um intelectual. Clark insistiu em sua argumentação de qualquer maneira. “Se o motor estava superaquecido”, disse, “deveria ter havido um alarme antes de ele parar.” Apontou para a tela do computador. “Os alarmes que soaram foram todos uma resposta ao fa- to de 0 motor parar. Eles vieram depois.”

Não é que Robert não percebesse a lógica no raciocínio de Clark. Ele percebia perfeitamente. Robert tinha trabalhado para uma porção de donos de iate ricos; Clark era o primeiro a acreditar, com razão, que conhecia muito da máquina de sua propriedade. Robert vivia dizendo coisas como “A diferença entre falar com Jim e falar com Allan é a diferença entre falar com alguém que compreende instantaneamente o que você quer dizer e alguém que nunca vai entender”. Mas Robert tinha uma atitude ligeiramente diferente da de Clark: quando uma máquina estava funcionando, ele não ficava inclinado a suspeitar que houvesse algo errado. E o motor estava funcionando! Robert disse

Page 322: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

307

isso. Clark pareceu concordar: se o motor estava funcio-nando, Robert devia tê-lo consertado. Cansado, Robert voltou para a cama. Clark continuou mexendo no computador.

Quinze minutos depois o motor parou de novo.Dessa vez, como o oceano nos jogava para lá e

para cá alucinadamente, Jaime, Peter e Celcelia falavam nervosos entre si, mas calaram-se quando me viram chegar. Quando a tripulação começa a ocultar a situação dos passageiros, os passageiros começam a ficar preocupados. “Isso é uma loucura”, disse Clark, mais para si mesmo do que para as cinco pessoas que o observavam sem nada compreender. “Não consigo entender.”

Ele apontou para o que não conseguia entender. Ligados ao motor havia dúzias de sensores. Os sensores mediam praticamente tudo o que pode ser medido dentro de um motor. O computador organizava e monitorava esses dados. Mas um tipo de dado— a pressão dentro do motor — não fazia sentido. O valor no mostrador de pressão deveria ser sempre positivo, já que não existe pressão negativa. O valor também deveria ser bem pequeno — a medição típica era algo entre 1 e 2. Mas o monitor do computador mostrava - 38883354,6669. Era um número doido. Estava claro que o computador tinha um parafuso a menos.

Clark disse: “Steve”. Virou-se como se esperasse encontrar Steve atrás de seu ombro. “Steve está... onde?”, perguntou.

“Steve está dormindo”, disse Jaime. Agora já passava muito das duas da manhã. Steve estava mais

Page 323: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

308

do que dormindo, eu disse. Steve estava em coma.“Acordem ele”, disse Clark.Acordaram Steve. Ele lutou para sair da cama e

chegar à ponte. Não parecia bem. A verdade é que o cérebro de Steve, ao contrário do de Clark, tinha um apetite limitado para imperfeições técnicas. Steve tinha banido, havia muito tempo, os computadores de sua casa no Vale do Silício para impedir que as máquinas malucas o seguissem aonde quer que fosse. Aqui em alto-mar ele não podia escapar delas; aqui, o lar era um computador.

Naquele tom animado, peculiar a quem quer convencer os outros de que está plenamente consciente quando não está, Steve disse: “E então, o que é que há?”

“Alguma coisa está enlouquecendo os computadores”, disse Clark.

“Isso é novidade”, disse Steve.Steve e Clark passaram a olhar para os monitores

juntos. Clark apertava os botões com mais energia do que antes, como um sujeito que tem pressa em pegar seu dinheiro num caixa eletrônico. Aparentemente, havia muitos dados estranhos. De acordo com o computador, por exemplo, a direção do vento era exa-tamente oposta à de minutos antes. “O vento mudou mesmo”, disse Clark. Voltou-se para Jaime. “O vento mudou?”

Jaime disse que o vento não tinha mudado. Marujos sabem essas coisas.

“Mas este monitor mostra que o vento está vindo do norte”, disse Clark. “Estava vindo do sul.”

“Esse computador está definitivamente esquisito”,

Page 324: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

309

disse Steve. “A direção do vento que ele indica está errada.”

“Que diabo está acontecendo?”, perguntou Clark. Não era uma pergunta, na verdade. Ele não estava com raiva de Steve exatamente; era mais com a situação, na qual Steve, infelizmente, era fundamental.

“Computadores costumam ter problemas estranhos”, disse Steve.

As duas únicas pessoas a bordo capacitadas até para discutir o computador por mais de um minuto ou dois contemplavam confusas as estranhas telas. Não era nada emocionante. Daqui a cem anos, pensei, se nos dragarem perfeitamente preservados do fundo do mar, a equipe de resgate vai concluir que afundamos sem lutar, contemplando alegremente uma fileira de telas de computador. Por outro lado, daqui a cem anos, é possível que equipes de resgate percebam que contemplar uma tela de computador no barco de Jim Clark é a mais firme das formas de luta. Com gente de informática, a aparência de inação mascara a aflição de seus pensamentos. São, talvez, os primeiros tiranos a tentar conquistar o mundo através da lógica. A tela era a matéria-prima para sua série infinita de declarações de “se... então”. Se o computador disparava alarmes antes de o motor ficar supe- raquecido, então o motor não devia ter ficado superaquecido. Se o motor não ficou superaquecido, então o problema devia estar fora do motor. Se o problema estava fora do motor, então devia estar dentro do computador.

Já que todos os problemas importantes no barco, com exceção de quem fazia sexo com quem e da qualidade da comida, passavam pelo computador, essa

Page 325: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

310

idéia não era terrivelmente reconfortante. Finalmente, Clark chegou à conclusão de que não ia conseguir o que queria dos computadores na ponte. “Vamos descer”, disse. Descemos.

Depois de se sentarem em frente à máquina Silicon Graphics na parede de sua cabine, a conversa de Clark com Steve submergiu no buraco negro de um mistério inescrutável.

“Esse número negativo é muito estranho”, disse Clark.

“O MSB é em unidades de 10”, disse Steve. Deus sabe o que ele quis dizer, mas foi isso o que disse.

“Mas está vendo aqui — ele sempre volta para um número negativo grande”, disse Clark apertando um botão. “O que faz suspeitar de que o problema não está no nosso programa.”

Nada disso fazia sentido para alguém que não tivesse programado o computador. Mas a impressão geral agora estava ao menos clara para mim: talvez o problema estivesse não no motor, mas no software que controlava o motor. Clark achava que os computadores mais simples ligados ao motor — conhecidos como PLCS,

ou controladores lógicos programáveis [programma- ble logic controllers] — poderiam estar transmitindo dados errados para as sofisticadas máquinas Silicon Graphics na sala dos computadores. Ele achava que os computadores tinham percebido, por engano, que havia algo errado com o motor, e por isso o tinham desligado. Um problema no programa comprometia Steve, mas apenas de uma maneira genérica. Os PLCS haviam sido programados por uns holandeses, ainda no estaleiro. A programação dos PLCS deveria ser trivial, motivo pelo

Page 326: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

311

qual a tarefa havia sido deixada por conta dos holandeses.

Steve e Jim estavam a caminho de uma longa e incompreensível conversa acerca da programação do barco, mas antes de conseguirem chegar lá, o motor começou a funcionar. O barco parou de jogar como louco. Começou a avançar pelo mar com uma vontade renovada. O motor, parecia, tinha personalidade própria. Então Robert apareceu com um sorriso matreiro. Sozinho, sem contar a ninguém, ele tinha acordado, descido até a casa de máquinas, esvaziado a tomada d’água e dado partida no motor. Agora, entretanto, ele admitia que não podia jurar que tinha consertado o problema fundamental, já que não tinha certeza de qual era o problema fundamental. Mas ao menos o barco estava em marcha de novo. Clark e Steve retornaram à ponte; dessa vez Robert os seguiu.

Lá em cima, na frente de quatro grandes telas de computador, Clark se queixava de seus computadores. “Steve, algo está realmente fodendo esses computadores”, disse. Steve murmurou algo a respeito de haver muito por fazer. Clark então apertou o botão que trazia o mapa-múndi, com o Hyperion nele. Sua pre-cisão tinha na verdade piorado desde o teste no mar do Norte. O Hyperion aparecia no mapa como um barquinho azul. Naquele momento, de acordo com o computador, estávamos passando bem ao norte do Iêmen. Clark apenas olhou a tela enquanto seu iate se arrastava através do deserto da Arábia Saudita. Tudo o que ele disse foi: “Que merda”.

Até ele estava cansado demais para pensar no que aquilo significava. De qualquer maneira, logo outros

Page 327: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

312

problemas tomaram sua atenção. Dos dois lados da ponte havia telas de radar que nos diziam que estávamos a ponto de ser atropelados por otários filipinos. A tela do radar da esquerda começou a piscar, como uma lâmpada com mau contato. Todo o resto do equipamento, juntamente com os dados que geravam, tinha sido colocado em gabinetes, de onde os dados eram mandados diretamente para os computadores. Os programas de Clark funcionavam como uma espécie de sistema operacional através do qual todos os outros instrumentos deviam se conectar; ele tinha pregado nos fabricantes de equipamento náutico o mesmo tipo de peça que a Microsoft tinha pregado na indústria de software inteira. O radar era a única exceção. O radar era o único instrumento que Clark tinha deixado de incluir; ele simplesmente nunca tinha conseguido fazê-lo. Quando viu o radar piscando, os ombros de Clark se arquearam. O radar era responsabilidade sua. “Acho que fui eu que criei esse problema”, disse.

Agora já passava muito das três da manhã. Ninguém queria se preocupar com mais um problema de computador. O motor estava funcionando bem. Robert estava obviamente exausto. Mesmo assim, não conseguia esconder a satisfação com sua própria resposta a uma crise em potencial. “Mesmo que estivéssemos no estreito de Gibraltar com um petroleiro vindo em nossa direção”, disse, “estaria tudo bem. Botei o motor funcionando em cinco minutos.” Ele saiu para recuperar o sono nas duas horas que tinha antes de começar o nosso quarto. Steve foi para a popa e olhou para o mastro mais alto do mundo. Percebeu como ele se parecia com uma infinita corrente de

Page 328: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

313

crucifixos que se erguia, até desaparecer, no céu estrelado da noite. “Se a gente pendurasse uma estátua de Jesus em cada cruzeta, ficaria parecido com um caminhão mexicano”, disse. Depois ele seguiu até um dos monitores no convés — aquele na frente do qual Allan se sentava, mas o qual ignorava — e colou uma etiqueta amarela em sua superfície. Dizia: “Allan: fiz uma cagada no programa de longitude. Não estamos no deserto da Arábia. Steve”.

Então ele também voltou para a cama. Clark logo o seguiu. Eram quase quatro da manhã. Depois de três horas de luta, o Hyperion apontava novamente para o sul. Os dois homens que compreendiam perfeitamente o computador, e o único homem que compreendia perfeitamente o motor, tinham ficado exaustos. Em nenhum momento ocorreu a essas pessoas tecnicamente preparadas acordar Allan Prior. Ele dormira profundamente todo esse tempo. Em uma crise tecnológica, era claro que o capitão era inútil. E todas as crises a bordo do Hyperion eram agora tecnológicas.

Page 329: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

314

16. Caçando fantasmas

Na manhã seguinte à falha do motor, os mares estavam particularmente calmos. Pela primeira vez desde que tínhamos abandonado as Canárias, o sol brilhava forte e quente. Normalmente não havia mais de duas pessoas na ponte. Todos que não estivessem cumprindo seu quarto ou comiam ou dormiam, ou estavam tentando fazer isso. Aquela tarde era uma exceção. Simon, Jaime e Celcelia esfregavam o convés. Steve caçava algum bug que pudesse ter perturbado o motor. Robert escarafunchava nos armários da cozinha e depois desaparecia nas entranhas do navio. Era como se cada pessoa a bordo tentasse começar do zero. Alguém viu um grupo de golfinhos dando cambalhotas junto à proa do barco. Até Clark, em uma tentativa breve mas fracassada de entusiasmo genuíno, subiu ao convés para olhar.

“O Hyp 4 está conversando com o Hyp 19”, disse Steve, curvado sobre um computador enquanto tentava achar o bug que gerara os valores que não faziam

Page 330: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

315

sentido. Cada um dos 25 computadores a bordo havia recebido um número. De acordo com Steve, eles tinham adquirido personalidades próprias — um traço que era um mau agouro para o Lar do Futuro. Agora dois dos moradores mais encrenqueiros estavam conversando um com o outro.

“O quê?”, disse Allan, desinteressado, a dois assentos de distância. Não estava ouvindo. Estava lendo com atenção a tela do computador.

“Há algo estranho acontecendo aqui”, disse Steve.Allan continuou a olhar para sua própria tela.

Finalmente, depois de Steve se certificar de estar sendo ignorado e voltar a olhar para o mistério do momento, Allan ergueu os olhos. Disse, com a satisfação de um homem no fim de um longo dia de trabalho: “A @Home comprou a Excite”. Longa pausa. “Ótimo.”

“É mesmo?”, perguntou Simon, o marujo de computador, que estava passando. “O que aconteceu com o valor das ações?” Ele estava interessado.

“Ótimo!”, exclamou Allan, de novo mais para si mesmo do que para Simon ou Steve. Apertou algumas teclas no teclado que tinha ligado ao computador. Estava recalculando o valor da carteira de suas supervoláteis ações de tecnologia.

Esse era o motivo pelo qual de vez em quando se encontrava Allan extasiado na frente de uma tela de computador. Duas vezes por dia, ao meio-dia e de novo às sete da noite, cie se conec- tava à Internet pelo telefone satelital. O telefone satelital a bordo do Hyperion tinha a misteriosa autoridade da concha em O senhor das moscas. Custava doze ou vinte dólares por minuto, dependendo do tripulante que lhe desse o

Page 331: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

316

preço. O tempo nele era precioso, exceto, claro, quando Clark o usava. Mesmo no meio do Atlântico, Clark passava horas a fio no telefone, conversando com jornalistas sobre a Healtheon, com amigos que queriam investir em seu novo start-up de Internet, com qualquer um que ele achasse que podia desviar sua mente do tédio da travessia do oceano. Só Allan podia usar o telefone satelital. O controle do capitão sobre o aparelho lhe dava sua única fonte verdadeira de poder: o poder de determinar que notícias chegavam a bordo, e quando chegavam. Quando Allan se conectava, trazia três blocos de dados digitais preciosos para a tripulação: e-mail, a previsão do tempo no meio do oceano Atlântico e as notícias de Wall Street.

Somando tudo, isso lhe tomava cerca de quatro minutos. Nesses quatro minutos, Allan sentava-se embevecido em frente de um dos cinco monitores de tela plana na ponte. Era a única hora em que ele voluntariamente dava atenção a uma tela de computador, e o evento era claramente importante para ele. Seus ombros ficavam tensos; então ele girava em sua alta cadeira de capitão e apertava várias teclas. Uma tecla enviava e-mails a seus vários destinatários, outra enviava os valores de fechamento das ações em sua carteira para uma outra tela, uma terceira enviava análises financeiras e a previsão do tempo para a impressora. Ele então girava completamente na cadeira, abria uma gaveta de mogno onde estava a impressora e pegava as análises financeiras. Supostamente, a previsão do tempo podia esperar.

Naquele dia, a @Home, a empresa que tentava levar a Internet aos lares americanos por meio de dutos

Page 332: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

317

pertencentes a operadoras de TV a cabo, tinha anunciado que ia adquirir a Excite, um portal de Internet. O valor da ação da Excite tinha dado um salto de 42 pontos; a ação da @Home tinha subido seis pontos. Clark tinha ajudado a criar a @Home e convencido Tom Jermo- luk, seu velho amigo da Silicon Graphics, a tocar a empresa. Seguindo os interesses de Clark à risca, Allan tinha comprado ações da @Home; seguindo os movimentos de Allan à risca, Simon tinha feito o mesmo. Clark tinha vendido suas ações, e ganhado 40 milhões de dólares. Allan e Simon, não. Tinham-nas mantido. Essa era sua estratégia.

Em linhas gerais, existem na Bolsa de Valores dois tipos de investidores. O primeiro poderia ser chamado de investidor fun- damentalista. O mais famoso conjunto de regras para investimentos fundamentalistas foi provavelmente aquele estabelecido nos anos 50 por Benjamin Graham e David Dodd. Os investidores que seguem Graham e Dodd submetem as empresas a análi-ses cuidadosas. Eles baseiam sua percepção do que seja o valor correto da ação de uma empresa nos lucros dessa empresa. Uma empresa sem lucros não é atrativa para um investidor como Graham e Dodd. Conseqüentemente, nenhum investidor que verda-deiramente se pareça com Graham e Dodd jamais comprou uma ação de Internet. Investidores como eles fazem questão de rir por último. Em troca desse privilégio, perdem muitos risos no meio do caminho.

O Hyperion não era o lugar para investidores do tipo Graham e Dodd. O manual clássico de Graham e Dodd descansava, sem ter sido lido, na prateleira da cozinha, um tributo a alguma tentativa frustrada de se fazer uma

Page 333: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

318

análise financeira séria. Os investidores a bordo durante nossa travessia se enquadravam na segunda categoria, a dos camicases, Os investidores camicases tratam o mercado mais como um jogo de adivinhação. Seguem palpites, gráficos, boatos e dicas, perseguindo eternamente a ação certa. Sua visão da Bolsa de Valores é essencialmente mística, ou, pelo menos, impermeável a análises. Para o investidor camicase, nenhum preço é alto demais para se pagar por uma ação, porque ela sempre pode subir mais. Eles dependem fortemente da vertigem dos outros.

Allan era um espécime de investidor camicase. Até encontrar Clark, dois anos antes, quando Clark lhe deu opções na Netscape, Allan nunca tinha investido na Bolsa. Mas a Netscape o deixou interessado, mais do que interessado. Logo comprou ações na Cisco, na @Home, na Intel, na Lucent — a lista era mais comprida que seu braço, e a maioria das ações decolou sem que ele soubesse bem o motivo. Mas Allan acabou revelando ter um toque maravilhoso: tudo o que comprava subia, O tempo todo. A exceção tinham sido alguns meses no fim do verão e início do outono de 1998, quando a Bolsa despencou. Mas desde a época em que começou o julgamento da Microsoft, a Bolsa voava alto. Os negócios iam de vento em popa, as ofertas públicas de ações seguiam num ritmo feroz. A aliança entre a @Home e a Excite, que colocava em uma Excite deficitária um valor de quase 7 bilhões de dólares, era apenas mais um caso relevante. O que Allan viu quando olhou na tela de computador era a recompensa entregue a um homem que tinha esperado o momento certo. Eram os frutos que caíam nas mãos de um

Page 334: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

319

camarada que tinha se recusado a arredar pé de debaixo da árvore.

O efeito da breve queda na Bolsa, a qual condenara o IPO da Healtheon, sobre o capitão Allan Prior era, provavelmente, não muito diferente de seu efeito sobre milhões de outros investidores em Internet. Ele o convenceu da sabedoria de sua decisão. Como a maioria dos pequenos investidores em Internet, Allan aferrou-se à sua carteira de Netscapes, @Homes, Excites e Ciscos durante toda a crise. Essa carteira, acumulada durante os dezoito meses anteriores em um estaleiro holandês, agora valia três vezes o que valera apenas alguns meses antes. Isso provava a Allan que ele nunca devia vender as ações que comprava. Inde-pendentemente do que acontecesse com a Bolsa em seguida, Allan afirmava, ele pretendia manter sua carteira. Allan se limitava a uma única decisão de investimento: comprar ou não ações de uma nova empresa que abria o capital. Estranhamente, ele nunca usava as informações que obtinha sobre seus investimentos como base para suas decisões. Mas isso não mitigava seu interesse pelas informações. No meio do oceano Atlântico, ele estudava atentamente os documentos que baixava da Internet como alguém que tivesse uma espada sobre a cabeça.

Muitos tripulantes do Hyperion, no espírito de seu capitão, também tinham se tornado investidores camicases. Todos tinham ações da Netscape e da Healtheon: alguns deles tinham ações de outras empresas do Vale do Silício; Allan tinha de tudo. A frustração de vender antes da hora era tão estranha a eles quanto ao capitão. Eles, como milhões de outros,

Page 335: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

320

acreditavam que o futuro seria melhor do que o passado. Era esse estado de ânimo alegre que encorajava Clark em sua cruzada para inventar o futuro.

Hoje eles viam pela enésima vez o brilho de tal estratégia. A Cisco, outra de suas favoritas, subira mais três pontos. A AOL também subira. A Lucent subira de novo; tinha quadruplicado nos dezoito meses desde que Allan a descobrira. Com efeito, todas as ações nas quais Allan tinha mergulhado haviam subido muito.

“O problema em se investir nos EUA”, disse Allan, ainda falando principalmente para si mesmo, “é o imposto sobre ganhos de capital.”

“Eles pegam você mesmo que você não seja cidadão americano”, disse Simon, com conhecimento de causa.

Perguntei a Simon como ele tomava suas decisões de investimento. “Eu simplesmente peço conselhos a Allan” disse Simon, fazendo com que Graham e Dodd dançassem um minueto em seus túmulos. “Ele quase sempre acerta.”

“Quase sempre”, disse Allan com alguma modéstia. Dissera a Simon para comprar @Home quando a @Home estava a 25. Hoje a ação chegara a 57.

“Exceto na eBay”, disse Simon.“eBay!” exclamou Allan. “Devíamos ter comprado

essa.” A eBay tinha aberto o capital alguns meses antes. Desde então tinha subido de dez para 215.

“Mas imagine o imposto sobre ganhos de capital se tivéssemos comprado!”, disse Simon.

“Não é justo”, concordou Allan, “mas... mesmo assim.” Olhou com atenção para o papel em sua mão. Sua fortuna recém- calculada parecia diminuir a

Page 336: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

321

sensação de ser maltratado pelo governo americano. A verdade é que, como Allan nunca vendia, o imposto sobre ganhos de capital dos EUA era para ele um proble-ma mais teórico do que prático.

“Realmente não vejo motivo para vender”, disse.Esse comentário chamou a atenção de Steve. Steve

era um day traáer. “Day trader” é uma dessas expressões popularizadas pela Internet, a qual tornara mais barato, mais fácil e menos embaraçoso (já que, como a masturbação, é tipicamente um ato absolutamente privado) que as pessoas comprem e vendam as mesmas ações no mesmo dia. Como day trader convicto, Steve gostava de procurar padrões no valor das ações e achava que o mercado freqüentemente os oferecia a quem quer que quisesse observar. “A Netscape costumava passar por um ciclo regular”, explicou Steve, sem levantar os olhos da tela. Você comprava a vinte e vendia a 28. Não tinha nenhum mistério, de verdade.”

“A Netscape era o azarão da minha carteira”, disse Allan. “Agora...” Ele olhou atentamente para a longa listagem de sua carteira... havia comprado a Netscape a 44... tinha despencado para dezessete... mas agora...

“Está ótima!”, disse. Não tão ótima quanto a carteira, mas também, a carteira tinha subido 300%.

Por mais cerca de uma hora, até Robert voltar da casa de máquinas, o programador de computador, o marinheiro e o capitão do Hyperion exploraram o milagre do investimento na Internet. Então Robert apareceu, e Allan encontrou mais o que fazer. “Acho que estão todos loucos”, disse Robert, depois de Allan ter saído. “A única coisa que Allan faz é ficar sentado lá pensando em seu dinheiro. Mas se você lhe perguntar o que

Page 337: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

322

qualquer dessas empresas faz, ele não tem idéia. Quer ficar rico. Mas a atitude dele em relação a seu dinheiro não é lógica.”

Nessa noite o motor parou de novo.

Aconteceu quase na mesma hora que antes, perto das duas da manhã. De novo, era o quarto de Jaime, Peter e Celcelia; de novo, Clark, Steve e Robert saíram de suas camas para lidar com o problema; de novo, deixaram o capitão dormindo. A única diferença dessa vez era o nível de frustração no rosto de Robert. Ele tinha passado a maior parte do dia procurando algo que tivesse provocado a falha no motor na véspera. Em algum momento, chegara à conclusão de que era provável que tivesse corrigido o problema. “Qualquer engenheiro lhe dirá”, comentou, “que é muito mais difícil descobrir o que há de errado com uma máquina quando ela parece estar funcionando. Isso se chama caçar fantasmas. Passei o dia todo caçando fantasmas.”

Dessa vez, Robert não ficou muito tempo na ponte com Clark, que, de novo no Modo Deus, estava sentado na frente do computador apertando botões. Em vez disso, desceu imediatamente os dois lances de degraus para a casa de máquinas. A casa de máquinas era o único lugar a bordo que não se pensou em tornar confortável. Era quente. Era tão barulhento que Robert usava protetores de ouvido. Mas era tão arrumado quanto qualquer outro lugar no barco, talvez mais. A.s ferramentas de Robert estavam cuidadosamente penduradas na estante, e as flanelas sujas estavam primorosamente empilhadas em uma lata do lado de fora. “Um bom engenheiro tem que ser organizado”,

Page 338: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

323

Robert gritou acima do estrondo do motor. “Se eu morresse amanhã, outra pessoa poderia entrar em meu mundo e continuar de onde eu parei — porque há uma maneira lógica de fazer as coisas. Uma estrutura.” Fez uma pausa. “Se você quer ser um bom engenheiro, tem que estar disposto a poder ser substituído. Esse negócio de ‘sou insubstituível’ me deixa completamente louco.”

Uma vez na casa de máquinas, o rosto de Robert se transformou. Seus movimentos, normalmente letárgicos, se aceleraram. Em um ou dois metros quadrados ele executava uma espécie de dança com suas máquinas. Claramente poderia fazê-lo de olhos vendados. Alguns anos antes, quando Robert tentava se habilitar para trabalhar em barcos a motor, tinha feito quase isso. Ele foi fazer a prova, ainda na Inglaterra, onde morava, e o entrevistador lhe fez perguntas detalhadas sobre a casa de máquinas de um superpetroleiro. A prova era concebida para pessoas que tivessem trabalhado em navios cargueiros. Robert, que nunca tinha visto o interior de um cargueiro, saiu-se muito mal. Passou as duas semanas seguintes em uma biblioteca; a partir dos livros, ele criou um modelo tridimensional da casa de máquinas de um superpetroleiro. Transportou aquele complexo espaço por inteiro para a memória, e retornou ao centro de provas. O mesmo entrevistador disparou as perguntas contra ele — pedindo-lhe que andasse de máquina em máquina fazendo vários reparos —, esperando, claro, que ele não conseguisse fazê-lo. Robert tirou nota dez. O homem supôs que ele tivesse passado as duas sema-nas anteriores dentro de um navio. Disse: “É como se uma outra pessoa tivesse entrado aqui”. No fim da

Page 339: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

324

prova, quis apertar a mão de Robert.Dessa vez, Robert se movia em um território que

conhecia por experiência. A bordo, ele tinha 1400 peças sobressalentes — 300 mil dólares em peças sobressalentes — e compreendia onde cada uma se encaixava. De novo ele esvaziou a tomada d’água e deu partida no motor. O motor estava encrencado, mas de um jeito que possibilitava dar partida com alguma facilidade. Depois que o motor começou a funcionar, ele não ficou esperando para ver se continuaria funcionando. Agora, certo de que o problema era mais básico do que apenas ar dentro da tomada d’água, ele foi caçá-lo. Esgueirou-se para debaixo do gigantesco motor BMW e começou a escarafunchar. Então saiu, removeu uma tampa em cima do motor e voltou a escarafunchar. Enquanto isso, Steve entrou. Pelo desconforto em seu rosto, estava claro que Steve nunca tinha passado muito tempo ali. “Está quente pra burro aqui”, disse. Apesar de o título de Steve ser “engenheiro”, ele tinha tanta experiência com baixa tecnologia quanto eu. Ele era o novo novo engenheiro.

“Não temos um escritório com ar-condicionado”, disse Robert, embaixo do motor.

“Nada de ar-condicionado, cappuccinos e fotos pornô na Web 24 horas por dia”, disse Steve, olhando em volta. Ali estavam eles, dois engenheiros ingleses empregados pelo mesmo bilio- nário americano, aparentemente trabalhando no mesmo projeto, e suas concepções de “trabalho” dificilmente poderiam ser mais diferentes. Steve observava Robert mexer com o maquiná- rio com a mesma expressão de impotência que gente que não entende de computador exibe ao

Page 340: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

325

observar alguém como Steve escrever software. Era a expressão de um homem que não tinha absolutamente nada a oferecer para a solução do problema em questão. Finalmente, Robert ergueu-se de debaixo do motor e disse: “Não acho que seja o motor”.

O que queria dizer que o problema era o sensor, ou a conexão de rede com o resto do barco. Uma cadeia de informação atravessava o Hyperion. Em grande medida, o barco se reduzia a informação. A informação tinha sua própria lógica. Os sensores mediam tudo que Clark tinha se lembrado de medir, incluindo- se a pressão no motor. Passavam essas medições para os contro ladores lógicos programáveis (PLC). Os PLCS, por sua vez, envia-vam Os dados, por cabo, para os computadores Silicon Graphics de alto desempenho. Os computadores organizavam e apresentavam os dados ao capitão c à tripulação. Em algum lugar no caminho algo estava errado. A questão era: onde? Poderia ser dentro do próprio sensor, ou nos PLCS, ou nos sofisticados compu-tadores Silicon Graphics. Depois de ter dado algumas pancadas no sensor, Robert disse: “Não acho que seja o sensor”.

A mente de Robert estava caminhando de baixo para cima. Se não era o motor e não era o sensor, então o problema estava em algum lugar entre o sensor e os computadores. Quanto mais perto dos computadores chegava, menos segurança tinha. “Tenho que descobrir como o sistema está obtendo informação — como os PLCS a enviam para o SCADA”, disse Robert. SCADA era acrônimo do otimista título que tinham dado a seu programa: Superior Control and Data Acquisition (Excelente controle e aquisição de dados). O SCADA era o que Steve,

Page 341: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

326

Lance, Tim e Clark tinham passado a maior parte do tempo escrevendo. Ele colhia informações digitais vindas do barco inteiro e as manipulava do jeito que era preciso. Steve e Robert deixaram a casa de máquinas e rumaram para a sala dos computadores, ao lado, para descobrir o que o SCADA tinha a dizer.

As 25 esbeltas máquinas negras estavam dispostas ao longo de uma parede, parecendo uma estante de liquidação em uma loja barata de videocassetes. Robert tinha pouca paciência para o que acontecia dentro delas. (“Elas apenas tornam meu trabalho mais complicado.”) Ele havia passado grande parte do ano anterior tentando explicar a casa de máquinas a Tim, Lance e Steve para evitar exatamente problemas como esse. Do pessoal do computador, o único que tinha impressionado Robert como engenheiro era o próprio Clark. “Veja o Lance”, disse Robert, quando Steve subiu. Eu estava sentindo a falta de Lance na viagem, e de sua tentativa de instilar na programação de computadores um pouco de espírito romântico. “Lance é um homem particularmente inteligente”, disse Robert, “e, mesmo assim, não consegue se lembrar de onde deixou os sapatos. E quando vai visitar Amsterdã, é assaltado... o que você precisa para ser um bom engenheiro é um conjunto de habilidades, além de um processo lógico. Algumas pessoas têm uma aptidão para isso; outras nunca terão.”

Os programadores abordavam o barco de cima para baixo. Robert o abordava de baixo para cima. Ele acreditava que essa abordagem levava a uma compreensão mais profunda da máquina. Enquanto Steve estava fora, disse: “Um dos problemas aqui é que

Page 342: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

327

o programa de computador foi concebido para controlar coisas que os próprios programadores não compreendem”. A resistência de Robert ao computador era a resistência à abstração. O engenheiro de computador tem um sabor pós-moderno— motivo pelo qual talvez seja tão difícil para ele explicar, mesmo a outros engenheiros de computador, o que faz para ganhar a vida. A resposta honesta é que ele fita uma tela e pensa. É um criador de conceitos. Robert, ao contrário, era um homem prático. Ele queria ver o que consertava.

Finalmente Steve voltou. Juntos, Robert e ele procuraram as linhas de código que tratavam do motor. Steve puxou uma página de números de aparência incompreensível, e Robert bufou: “É a primeira vez que vejo esse maldito papel”.

Para qualquer pessoa que nunca o tenha visto, código de computador não tem nenhum sentido. Robert tinha aprendido sozinho a programar um pouco, mas mesmo assim ficava perturbado pela maneira como ele removia do mundo real problemas que pertenciam ao mundo real. Enquanto Steve seguia lendo, Robert se queixava. “A única maneira pela qual posso examinar as funções vitais do motor é através do sistema de computador”, disse. “A única maneira pela qual posso saber o que fez parar o motor é esta página aqui.” Apertou alguns botões e apareceu uma tela cheia de números. “Do jeito antigo, eu teria medidores em todos os lugares, e poderia interagir diretamente com a máquina.Neste barco, tenho que ir até uma tela de computador e procurar o que quero.” Fez uma pausa. “Neste barco, se

Page 343: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

328

eu quiser acender uma luz, tenho que ir até uma tela de computador.”

“É o mundo moderno”, disse Steve.“Há 1 milhão de linhas de código aí dentro”, disse

Robert, apontando para os 25 computadores, “e em nenhuma delas você encontrará a palavra ‘barco?’

Depois de uma hora garimpando o código, tanto Robert quanto Steve decidiram que o problema estava fora de seu alcance e provavelmente demoraria muito tempo para corrigi-lo. Dado que não conseguiam encontrar a ruptura na cadeia de informação entre o motor e os computadores, a única coisa a fazer era remover a cadeia. “Meu próximo passo”, disse Robert, “é pular o sensor. Sempre se pode enganar o motor e fazê-lo pensar que o sensor não está lá.”

E foi isso o que ele fez, apesar de ter horror à idéia de fazê- lo. “É realmente a pior coisa que um engenheiro pode fazer”, explicou, “desligar um conector e deixar alguma coisa sem proteção.” Ele se enfiou no motor e arrancou os sensores. Ao fazer isso, ele arrancou a ligação entre o motor e os computadores de Clark, impedindo assim que os computadores desligassem o motor arbitrariamente. Infelizmente, também impedia o computador de desligar o motor se ele precisasse ser desligado. Na prática, ele estava removendo por completo o motor do sistema de monitoramento do computador. Essa pequena revolta contra a nova tecnologia, encenada às quatro da manhã, conquistou para Robert o direito de voltar para a cama. Mas ele o fez com desconforto. Sem o sensor, o motor poderia se superaquecer sem que ninguém percebesse. Poderia pegar fogo, até explodir, sem

Page 344: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

329

aviso. De repente, o barco ficou muito mais perigoso.Por dois dias inteiros, navegamos com o motor

ligado sem incidentes. O tédio excedeu até as expectativas de Clark. A cada hora eu conferia na tela do computador que distância tínhamos percorrido; a cada hora tínhamos viajado mais meros dezoito quilômetros.

A sétima noite trouxe um novo tipo de problema. Por que as crises no barco de Clark não podiam ocorrer à uma da tarde em vez de à uma da manhã, eu não sei. Mas nunca ocorriam. À uma da manhã, uma hora depois de ter começado seu quarto, Steve andou até a popa, olhou para a vela e viu o que parecia uma almofada em um dos lados. A almofada estava crescendo. Depois de algum tempo, o céu noturno estava preenchido por uma brancura caótica. A vela estava caindo sobre o convés. Suas fraldas ondulantes se amontoavam ao pé do mastro, uma pipa do tamanho de uma mansão lutando para ganhar altura.

O estranho no episódio era o silêncio que o acompanhava. A adriça principal tinha arrebentado. A adriça é a corda que mantém a vela içada. Era claramente um mau momento. A maior vela do mundo, recebendo mais vento do que qualquer vela na história, estava solta. Quinhentos metros quadrados de vela se agitavam ao vento violentamente, com apenas uma corda no pé do mastro para mantc-la no lugar. Se batesse para um lado, seria arrancada do barco; se batesse para o lado oposto, atiraria Steve para fora do barco. E o computador nada tinha a dizer sobre o assunto. Nenhum alarme. Nem som de nenhum tipo. Steve soou o alarme, inadvertidamente. Ele berrou.

Page 345: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

330

Das entranhas do barco vieram correndo a tripulação inteira, Clark e Louie. Ainda meio dormindo, de maneira imprudente, atiraram seus corpos em cima da vela na tentativa de tirar o vento de dentro dela e de impedir que saísse voando.

A tripulação demorou cerca de quinze minutos jogando-se em cima de bolsões de ar para remover os últimos traços de vento da vela. Depois que conseguiram subjugar a vela, acharam outra corda, substituíram a adriça quebrada, e içaram-na. Enquanto trabalhavam, Clark observava com uma expressão curiosamente distante. Não era, como se poderia pensar, o olhar de um homem aflito por seu barco estar sendo feito em pedaços no meio do oceano Atlântico. Com o convés principal em estado de calamidade, não havia nada mais calmo do que Clark a bordo. Com efeito, apresentava uma expressão que eu nunca tinha visto nele: contentamento. Clark freqüentemente lutava com afinco para fingir um contentamento que não sentia. Quando a revista Fortune apareceu para tirar sua foto para a capa, por exemplo, ele se recostou com um grande charuto na boca e lhes deu a foto que queriam: a de um bem-sucedido empreendedor da Califórnia. (Ele realmente sentia um impulso forte para corresponder às primeiras expectativas dos outros a seu respeito.) Fazia isso sem jamais se sentir contente de fato. Ele é a negação viva da idéia de que a Califórnia é o lar de quem tem o dom de ficar tranqüilo. A Califórnia é, no máximo, o lugar das pessoas que querem parecer tranqüilas.

Page 346: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

331

De qualquer maneira, agora que seu barco estava se despedaçando, Clark realmente parecia feliz. Alguns meses antes, no estaleiro, ele tinha me explicado o que havia de tão especial no Hyperion. “Tudo a bordo é mensurado”, tinha dito. “Tudo” Tudo tinha que ser mensurado, ou quantificado, para que o computador pudesse fazer suas análises. Estava claro que aquela afirmativa não era verdadeira: a corda que segurava a vela no lugar não estava sendo mensurada. Tinha se quebrado sem a menor reação por parte do computador. Vendo isso, Clark disse: “Você prova-velmente pode encontrar uma maneira de colocar sensores nas cordas, de modo que saiba quando elas estiverem puídas”. Esse pensamento — havia algo mais com que ele poderia se ocupar — deu a Clark um senso de propósito. Ele era talvez o primeiro proprietário de um megaiate que gostava mais de seu barco quando ele estava quebrado.

Depois de terem domesticado a vela, os tripulantes, liderados por Jaime, enfiaram nela uma nova corda e a içaram mastro acima. Clark os observou trabalhar com um misto de admiração (por Jaime) e surpresa (por haver parte do barco que seus computadores ainda não controlavam). Finalmente, enquanto a vela subia de novo, virou-se para mim e perguntou: “Você não fica com medo?”

No momento em que me fez essa pergunta, me dei conta de que não ficava. Não realmente. Eu era o destinatário perfeito da nova tecnologia dele. Tecnicamente inepto, absolutamente preguiçoso, eu não demorava a depositar minha confiança em gente que dizia compreender como funcionavam as várias

Page 347: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

332

máquinas das quais minha vida dependia. Evidentemente, de vez em quando, como por exemplo quando um avião dava um solavanco em uma tempestade, meu estômago se apertava e todas as suposições eram momentaneamente postas em dúvida. Mas esses momentos sempre passavam.

“Não”, eu disse.“Eu fico”, disse ele, sério. Deve ter percebido a

nova incerteza no meu rosto. “Em algum nível fundamental, fico espantado de que isso tudo funcione.” Então riu e voltou à sua cabine. Esse era o fardo do homem técnico. Ele conhecia as muitas maneiras pelas quais a tecnologia podia falhar. E se dava conta de que apenas ele era responsável por seu sucesso.

Na manhã seguinte, foi Jaime o primeiro a sentir que havia mais uma coisa errada: ele ouviu um som ao passar pelo mastro. O som, fosse o que fosse, não era algo que os computadores percebessem; não havia nenhum sinal óbvio de que algo estivesse

Page 348: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

333

errado. Mas o mastro fazia um leve estalido que Jaime nunca tinha ouvido, e ele fazia questão de conhecer todos os ruídos do barco. Este, tão leve que mal se percebia, era inteiramente novo. Clic... clic... clic. Incomodava Jaime tanto que ele resolveu subir no mastro e ver o que poderia estar causando aquilo.

Isso em si já parecia um ato de loucura. Passou por minha cabeça que os computadores tinham se encarregado de tantos afazeres no barco que os seres humanos forçavam a imaginação para se manterem relevantes. A razão de ser do computador era reduzir a arte da vela a uma ciência, e eliminar sua dependência da coragem e do instinto humanos, ou, pelo menos, limitá-la à coragem e ao instinto dos programadores de computador. Jaime estava reafirmando a necessidade de coragem e instinto. O mar estava mais agitado do que o normal nos últimos dias. O barco jogava com uma violência tal que você tinha que se concentrar para ficar em pé no convés. O alto do mastro estava a 61 metros do oceano, ou cerca de dezessete andares. Uma oscilação mínima no convés era percebida no alto do mastro como uma guinada violenta. Mesmo com o mar calmo, ele era arremessado para um lado e para o outro como num passeio particularmente traiçoeiro na montanha-russa. Agora, a cada vez que o barco balançava embaixo, ele girava dezenas de metros céu afora, em um feio movimento em espiral.

Jaime era, de certa forma, a mais eloqüente expressão das habilidades de navegação de Allan Prior. Tinha sido contratado pelo capitão para ser o imediato do Hyperion. Tinha velejado em regatas por todo o mundo, e a tripulação considerava, de maneira geral,

Page 349: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

334

que ele tinha uma aptidão especial. O que quer que fizesse de um marinheiro um marinheiro, Jaime, como Allan, tinha essa qualidade. Era uma dessas pessoas que parecem ter nascido para desempenhar um papel. Só que não tinha. Jaime tinha começado a velejar por força das circunstâncias, não por escolha. Ele começou sua carreira como fazendeiro em algum rincão da Austrália. No início da década de 1980, uma seca o expulsou da terra e o levou em direção ao mar, à procura de outra maneira de ganhar a vida. Um amigo lhe disse que havia um emprego em um veleiro que ia fazer a travessia do Atlântico. Jaime sabia tão pouco de barcos que, quando o acordaram às três da manhã para seu primeiro quarto, seu instinto inicial foi esmurrar o sujeito que o acordara.

Tudo isso acontecera quinze anos antes, quando Jaime tinha vinte e poucos anos. Agora, em nossa sétima noite no mar, ele ouvira um som que ninguém mais tinha ouvido. Em resposta a esse som, ele pôs em si mesmo um fino arreio em forma de sunga e pediu a Celcelia, que estava fazendo sua primeira viagem longa em um veleiro, que o suspendesse. A graciosa Celcelia tinha passado grande parte do dia com o nariz enterrado em livros com títulos como Como atravessar o Atlântico com facilidade. Agora a vida de Jaime estava em suas mãos. Jaime subiu, subiu e subiu, usando os pés para se manter junto ao mastro, até se transformar em um ponto branco e pálido no céu do entardecer. Quando sinalizou para Celcelia parar de girar a manivela, ele estava próximo ao topo do edifício de dezessete andares, agarrando-se à sua lateral com as pernas. Um escorre- gão e ele estaria acabado. Seria arremessado

Page 350: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

335

como uma pedra de atiradeira e depois se chocaria com o mastro. Seria esmagado, e mais de uma vez.

A princípio, Jaime havia pensado que o som no mastro podia ser a antena parabólica. Mas ele subiu acima da antena na segunda cruzeta, e o barulho aumentou. Aumentou, na verdade, o tempo todo, até bem no alto. Só quando chegou ao topo do mastro é que Jaime descobriu a origem do barulho. A corda que tinha sido passada no lugar da adriça principal — isto é, a corda que sustentava a enorme vela — tinha rasgado a vela. Um rasgão recente de quase um metro de comprimento aparecia no alto da vela. Ou seja, o que Jaime detectara ao passar perto do mastro era a minúscula diferença entre o som feito por uma vela de quinhentos metros quadrados que está absolutamente intacta e uma vela de quinhentos metros com um pequeno corte a sessenta metros do chão. À medida que seu corpo se arrojava pelo céu noturno, Jaime explicava tudo isso pelo walkie-talkie. A vela inteira era como uma gigantesca meia de náilon a ponto de puxar um fio, disse. Uma rajada de vento forte a rasgaria em duas. Uma metade provavelmente iria embora por um dos lados; a outra ficaria batendo alucinadamente, presa na base do mastro. A força desse acontecimento, em uma vela daquele tamanho, poderia facilmente fazer com que o mastro se quebrasse.

O rasgão pôs um ponto final em nossa viagem a vela. Os computadores não aprenderiam mais a velejar nessa viagem. A única solução era recolher a vela para a retranca e colocar-nos à mercê do quixotesco motor. Depois de uma hora de vôo no escu ro no topo do mastro mais alto do mundo, Jaime voltou tiritan- do ao

Page 351: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

336

convés. O resto da tripulação percebeu que tinha acabado de testemunhar uma extraordinária demonstração do que era ser marinheiro, apesar de ninguém dizer nada a respeito. Mas na manhã seguinte ouvi alguém dizer: “Já estive em barcos em que o mastro se quebrou, mas nunca vi nada parecido. Isto é completamente diferente. Graças a Deus que ele subiu lá”.

Sendo esta a viagem de Jim Clark, não era possível que seguisse seu curso e chegasse ao destino previsto. Quando zarpamos das Canárias, o rumo era St. Barts. Depois de cinco dias em uma travessia de dez dias, Clark decidiu que St. Martin era um pouso melhor. No nono dia ele mudou de idéia de novo e disse a Allan que levasse o barco para Antígua. Antígua era mais perto.Antígua era também uma novidade. Novidade era bom. Clark ficava muito mais feliz de fazer algo que acabava de decidir do que algo que decidira muito tempo antes. Nunca valia a pena manter uma decisão se ela não tivesse substituído várias outras decisões.

Fomos tateando até Antígua. Algumas milhas ao largo da costa, um falcão manchado voou por cima do barco. Foi um momento pungente, como é usual quando a primeira ave aparece no céu. A primeira ave, como um homem à frente de seu tempo, é uma figura trágica. Em geral, a primeira ave voou para longe demais da costa, e está batendo as asas em direção à morte. A boa notícia de que a terra está perto é logo seguida da compreensão de que a terra não está perto o bastante para a ave. A tripulação se reúne no convés torcendo

Page 352: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

337

para que a ave se empo- leire no mastro e volte à costa junto com o barco. Quase nunca isso acontece.

A ave continuou batendo asas em direção ao esquecimento. Algumas horas depois, o jato de Clark mergulhou vindo das nuvens e deu uma rasante no barco. Todos, incluindo Clark, subiram ao convés e aplaudiram.

Page 353: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

338

17- A reviravolta

O jatinho Gulf Stream subiu e girou sobre o mar calmo e a areia branca e brilhante. À medida que se nivelava, a voz de Cliff surgiu no sistema de intercomunicação. Cliff era um dos dois pilotos contratados por Clark para comandar o jato.

“Muito bem, bilionários aí atrás”, disse Cliff. “Abriram a 174,50 e 74.”

Não havia necessidade de especificar quem ou o que “abriram”. Evidentemente, o que tinha aberto eram as ações da AOL e da Netscape, que a AOL concordara em comprar seis meses antes. Dava para ouvir o sorriso no rosto de Cliff. Ele era sócio de ClarkWorld e, portanto, dono de ações tanto da Netscape como da Healtheon. Clark esticou a mão displicentemente para trás de seu assento e pegou uma calculadora de bolso. A notícia dada por Cliff era a cereja; o sundae era o alívio de finalmente terminar a travessia. A AOL tinha concordado em entregar 0,45 de suas próprias ações para cada ação da Netscape. Clark detinha 14,2 milhões

Page 354: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

339

de ações da Netscape. Digitou 0,45 vezes 14,2 milhões na calculadora. Seis milhões e 300 mil — o número de ações da AOL que ele de fato possuía, tornando sua a maior participação individual no capital da AOL, maior até do que o de Steve Case, que criara e administrava a empresa. Multiplicou 6,3 milhões por 174,5. Um bilhão e 100 milhões de dólares. Em nossos dez dias no mar, o valor de sua participação na Netscape tinha quase triplicado, de 25 dólares por ação para 74 dólares.

Era o fim de janeiro de 1999 e a Bolsa de Valores estava subindo mais rápido do que tinha caído no outono de 1998: a Healtheon logo faria sua segunda tentativa de abrir o capital. E quando a Healtheon abrisse o capital, Clark ficaria mais rico ainda. Mais importante, estaria livre para se pôr em ação nova-mente. Era essa a seqüência não oficial: iniciar o negócio, abrir o capital, e então anunciar a nova novidade. A queda da Bolsa o tinha forçado a protelar o lado público de sua busca da nova novidade; no entanto, claro, ele continuara febrilmente a busca privada. Agora as duas estavam a ponto de convergir.

“Isto é a Ilha da Fantasia”, disse, pondo de lado a calculadora.

Ele passou toda a viagem de volta para os Estados Unidos maravilhado com o milagre da Bolsa de Valores. Antes de aterrissarmos, disse: “Quando a Healtheon abrir o capital, vou receber muita atenção de uma vez. Tenho que pensar como lidar com isso”.

Em meados de fevereiro, a Healtheon finalmente abriu seu capital. Não houve nenhum tipo de transição

Page 355: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

340

entre o IPO que fracassara cinco meses antes e o segundo. Ninguém perguntou como uma empresa que o mercado considerara desprezível agora era, de repente, desejável. Simplesmente aconteceu. A empresa em-pregava agora quase seiscentas pessoas. Trezentas delas estavam alojadas no escritório principal em um parque industrial ao norte de San Jose. Às cinco da manhã do dia do lançamento das ações, estavam todas trabalhando.

Não havia quase nada de bom para se dizer a respeito dos escritórios da Healtheon, a não ser que não eram em nada piores do que a maioria dos escritórios no Vale do Silício. Do lado de fora, era um armazém baixo de estuque branco jogado em um mar de asfalto e decorado com um logo empresarial para se passar por um edifício de escritórios. Do lado de dentro, dava para contar nos dedos de uma mão os esforços para melhorar o estado de espírito dos empregados: a fonte barata em frente ao balcão de recepção, as plantas de sombra, o aparelho universal de musculação no canto da sala de jogos vazia, a máquina de cappuccino que Clark comprou e instalou no dia em que fundou a empresa. Não fosse por isso, seria um mar de cubos cin-zentos indistintos. Alguns dos cubos eram ligeiramente maiores do que os outros. Alguns tinham vista para o estacionamento. Fora isso, o lugar era tão monotonamente uniforme quanto uma comuna. Por mais que se colocassem balões no saguão ou bandeiras na sala de jogos, nunca se transformaria em um espaço que alguém lamentasse abandonar. As empresas eram criadas para mudar. Não se encorajava ninguém a se apegar a seu próprio espaço.

Page 356: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

341

Às cinco e meia os funcionários tinham se reunido na grande sala de jogos, em frente a um televisor. Pavan, Kittu, Stuart, a Liga dos Indianos — estavam todos amontoados na mesma sala. Havia um leve cheiro de curry. Os únicos sons vinham da televisão, sintonizada na cnbc, um canal de notícias de negócios. As cotações da Bolsa corriam pelo pé da tela. A Bolsa Nasdaq abrira em alta de 64 pontos, ou mais de 2%. O Yahoo e a @Home estavam ambos em alta de mais de dez pontos. Ninguém sabia como estava a Healtheon, porque a negociação de suas ações fora suspensa antes de começar, por causa de um desequilíbrio de ordens. A Healtheon tinha oferecido ao mercado 5 milhões de ações, ou cerca de 8% da empresa. A demanda inicial, principalmente de grandes instituições, era de mais de 5 milhões. Quanto a mais, exatamente, ninguém podia ter certeza. O Morgan Stanley e a Goldman Sachs tinham mostrado grande interesse. O negócio era quente ou parecia ser, o que dava no mesmo. As ações da Healtheon tinham sido oferecidas a sete dólares cada, mas só pagaria esse preço quem tivesse a sorte de receber o que encomendara. O que importava era: a que preço ocorreria a primeira transação? Quanto pagariam pelas ações da Healtheon as pessoas que não tinham conseguido as ações que queriam? A que preço os investidores que haviam se disposto a pagar os sete dólares se desfariam de suas ações? O diretor financeiro da Healtheon, Jay Westerman, estava na região central de Manhattan ao lado do operador do Morgan Stanley, que registrava as operações com as ações da Healtheon. Ele diria o preço a Pavan. Pavan o anunciaria à sala.

Page 357: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

342

Depois que os funcionários foram informados de que a negociação tinha sido suspensa, a atenção passou a oscilar entre a televisão e Pavan. Pavan descobriria o preço da ação antes da CNBC. A cnbc apresentaria Jim Clark. O repórter da tv estava agendado para entrevistar Clark, apesar de não estar claro onde Clark estava exatamente naquele momento. Mike Long estava sentado à mesa de operações do Morgan Stanley em Nova York; Clark não estava em nenhum lugar onde pudesse ser encontrado. Pelos trinta minutos seguintes, Pavan ficou de pé estoica- mente à frente da sala com um telefone celular no ouvido, enquanto os funcionários à sua volta riam nervosos. Juntos, eles controlavam cerca de 15 milhões de um total de 69 milhões de ações. Pavan sozinho tinha 1 milhão. Kittu, em pé ao lado de Pavan, tinha 350 mil. Stuart, em pé um pouco mais para o lado, tinha talvez 100 mil — apesar de Stuart ser discreto a esse respeito. Todos juntos, os funcionários tinham apenas um pouco a mais do que Clark, que, no instante do lançamento, controlava

Page 358: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

343

11,5 milhões de ações. A impressão que tinham é que haviam sido tratados generosamente em tributo à sua crença no sistema de classes do Vale do Silício.

Não tinha havido road show dessa vez. Em vez disso, Mike Long reunira-se com um punhado de grandes investidores institucionais que, acreditavam os banqueiros do Morgan Stanley, comandariam a opinião pública em relação à empresa. Em sua cabeça, Long chegara à conclusão de que parte da culpa pelo fra-casso do primeiro IPO era sua. “O discurso do outono era complexo demais”, disse. Tinha aprendido que, em um ambiente empresarial que mudava tão rapidamente quanto aquele, ninguém do lado de fora tinha tempo para “estudar os detalhes” do negócio. Essa era uma maneira bem-educada de dizer que muitos dos potenciais investidores não tinham idéia do que a Health- eon de fato fazia. A Healtheon, como uma porção de empresas de Internet, era uma abstração em constante metamorfose. Quando lhe perguntavam que conselho daria para outros Executivos Americanos Sérios que tivessem sido convencidos a administrar alguma empresa do Vale do Silício, ele dizia: “Não se trata de planos de negócios. Não se pode planejar o caos”.

Dessa vez, Long tornou sua apresentação para investidores ainda mais simples do que antes. Abandonou qualquer menção ao software, que ninguém entendia mesmo. Só o que importava é que Long podia dizer, com sinceridade, que o software tinha sido instalado em computadores de médicos apenas alguns dias depois de o abjeto artigo no Wall Street Journal ter sugerido que talvez o software nunca visse a luz do dia.

Page 359: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

344

Abandonou, também, o Gráfico de Muitas Bolhas. Da mesma forma que o Diamante Mágico tinha dado lugar ao Gráfico de Muitas Dolhas, o Gráfico de Muitas Bolhas agora dava lugar ao Triângulo Dourado. O Triângulo Dourado resumia o conceito que estava por trás da Healtheon em seus componentes essenciais:

Page 360: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

345

Médicos*

Pacientes * * Instituições da área de saúde

Deixando lugar apenas para um único babaca no meio. A idéia de um único babaca no meio era mais fácil de explicar quando se resumia toda a burocracia bizantina da área de saúde, a maior parte da qual se pretendia estripar, com a expressão “instituições da área de saúde”. Os cálculos que Long pedia que os investidores fizessem também eram ainda mais simples do que antes. A Healtheon tinha agora 200 mil médicos sob contrato; logo todos estariam conectados ao sistema da Healtheon. A cada vez que um médico apertava uma tecla em seu computador para solicitar um exame de laboratório, ou uma receita, ou o prontuário médico de um paciente, a Healtheon receberia entre nove e 35 centavos. Long dizia aos investidores que a empresa tinha processado 5 milhões de transações em 1998, e esperava processar 500 milhões em 1999, 1,5 bilhão em 2000 e assim por diante durante algum tempo até que, presumivelmente, todas as transações na área de saúde nos Estados Unidos passassem por seus computadores. E só vocês fazerem as contas.

No comando disso, dizia Long, a Healtheon poderia ser o principal portal de saúde na Internet. As pessoas poderiam ir ao website da Healtheon em busca de informação; uma vez lá, a Healtheon poderia lhes vender toda sorte de coisas.

O discurso da Healtheon tinha melhorado ao ser

Page 361: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

346

proferido de novo. O discurso talvez não tenha tido tanta importância quanto a disposição do mercado para ouvi-lo, mas ainda tinha muita. Ninguém podia honestamente pretender saber quanto valia a Healtheon. Em sua breve história, a empresa não tivera nada além de prejuízos. Ainda dissiparia várias centenas de milhões de dólares antes de dar um tostão de lucro. Podia oferecer apenas uma estimativa de suas receitas para os anos seguintes, a qual ninguém instruído, ou mesmo um ignorante inteligente, poderia levar a sério. A Healtheon valia o que quer que os investidores se dispusessem a pagar, e isso dependia fortemente da opinião pública. A Healtheon estava em campanha para presidente. O IPO era o dia da eleição. As pesquisas estavam andando na direção certa. Apenas um ano antes, os capitalistas de risco que a haviam financiado achavam que seu valor era zero; apenas seis meses atrás os banqueiros dc investimento que iam abrir seu capital diziam que talvez conseguissem vender as ações a um preço que implicava um valor total de pouco mais de 500 milhões de dólares. Agora se dizia na sala de jogos que talvez a empresa valesse mais de 1 bilhão.

E por que não? A Bolsa de Valores estava de novo produzindo milagres. Agora era possível que os grandes investidores na Internet — Fidelity, Vanguard, Bowman Capital, Nicholas- Applegate, Amerindo — se embriagassem com o discurso de Mike Long. Se fosse esse o caso, sua excitação podia muito bem seduzir até os pequenos investidores, como o capitão Allan Prior, aprumado em frente à única tela de computador que o satisfazia no Hyperion, pronto para comprar algo novo.

Page 362: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

347

Os funcionários esperaram por quase duas horas. Às nove e quinze, Pavan pediu silêncio. Um grande sorriso quase tomou conta de seu rosto, o qual ele engoliu rapidamente com o objetivo de preservar seu ar de autoridade. “A demanda é de 40 milhões de ações!”, gritou. Um grito de júbilo percorreu o salão.

Esperaram mais quinze minutos. Às nove e meia, Pavan impôs 0 silêncio de novo. Sua expressão de repente ficou mais séria. Mais que séria. Dolorida. Parecia ter dor de estômago. A excitação do que estava por dizer era quase demais para ele. “Vinte e um e cinqüenta!”, gritou. As quatrocentas pessoas na sala enlouqueceram. A maltrapilha coleção de engenheiros e assistentes de engenheiro tinha, de repente, 300 milhões de dólares. Pavan acenou a mão pedindo silêncio. A sala ficou quieta.

“Vinte e quatro!”, gritou Pavan.Mais gritos de júbilo.Outra vez Pavan ergueu a mão; outra vez, silêncio.

“Vinte e oito!”, gritou Pavan.Mais gritos de júbilo.Agora a mão de Pavan se erguia alta e espalmada,

como a de um orador romano. A sala estava em absoluto silêncio. Estava cheia de gente cuja fortuna disparava; na velocidade em que ia, seriam todos bilionários ao cair da noite. De forma bastante grave, Pavan anunciou: “Um milhão de ações negociadas a 33,25!”

Dessa vez um novo som recebeu a notícia. Não gritos de júbilo. Risos! Os funcionários da Healtheon se viravam, batiam nas costas uns dos outros e riam. Trinta e três e vinte e cinco! A esse preço eles

Page 363: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

348

deixavam de ser os vencedores de uma corrida que recebiam o merecido prêmio. Transformavam-se em felizes donos de um bilhete de loteria premiado. Um dos engenheiros indianos jogou as mãos para cima e correu até seu cubículo para escrever um programa que passasse as cotações da Bolsa no alto da tela de seu computador. Trinta e três e vinte e cinco! A 33 a empresa valia 2,2 bilhões de dólares. Pavan Nigam valia 33 milhões. Kittu Kolluri valia 10 milhões. Stuart valia 3,5 milhões. Jim Clark valia 375 milhões a mais. Somando isso a sua participação na AOL, ele valia agora 1,5 bilhão de dólares.

Toda a atenção tinha agora se desviado para o aparelho de televisão. Houve um grito de júbilo quando o valor da ação da Healtheon passou pela tela, outro quando o jornalista anunciou que o IPO da Healtheon tinha sido um dos mais bem-sucedidos de todos os tempos. Eram, juntos, um sucesso. O que as quatro-centas

Page 364: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

3^3

pessoas na sala queriam ver agora era Jim Clark. Tempos atrás, Clark dissera pessoalmente a muitos deles o que ia acontecer. “No fim do primeiro dia de negociação, a Healtheon vai valer mais de 2 bilhões”, tinha dito. “E não vejo nenhum motivo para que não chegue a 5 bilhões bem rápido. Depende do tipo de publicidade que se consiga.” Para os engenheiros, esse era um momento mítico de Clark; e eu sabia que era um mito verdadeiro porque ele tinha dito exatamente isso para mim, um ano e meio antes. Quantas vezes um homem lhe diz: “Vem comigo, que vou fazer você ficar rico”, depois diz o tamanho exato dessa fortuna, e depois cumpre o que promete? Era um pouco como observar Babe Ruth* caminhar até a base e apontar para o muro com o taco.

Não é preciso dizer que Clark ia improvisando à medida que avançava: ninguém podia saber, nem na véspera, o que a opinião pública financeira faria com a Healtheon se e quando ela finalmente abrisse o capital. Mas engenheiros craques como Pavan, Kittu e Stuart tinham acreditado nele, e sua fé escorria para os demais. Nem um único engenheiro deixara a empresa depois da fracassada oferta de ações. Todos eles poderiam ter trabalhado em qualquer start-up do Vale do Silício em que quisessem. Naquele momento, a decisão sobre onde trabalhar era monumentalmente importante. Trabalhe para uma empresa que fracasse e você perde o momento dourado — talvez a única chance que vai ter na vida de ficar rico. E todos ficaram na Healtheon. E agora sua fé tinha sido recompensada. É por isso que

* Babe Ruth foi um dos maiores jogadores de beisebol de todos os tempos, e às vezes apontava para fora do estádio quando pretendia rebater a bola para longe do alcance do time adversário. (N. T.)

Page 365: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

3^3

ficaram sentados metade do dia esperando Jim Clark aparecer na tela.

Page 366: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

324

Esperaram por uma hora e... nada. Algo estava detendo o aparecimento de Clark. Pavan tentou descobrir o que era. As pes- soas no Morgan Stanley em Nova York não tinham idéia do que fosse. Finalmente, Pavan anunciou que Clark estava em seu barco. Evidentemente, Clark tinha projetado a busca pela nova novidade de modo que ela ocorresse onde quer que ele estivesse. Naquele momento ele estava em seu barco, atracado em algum porto do Caribe. Uma equipe da CNBC

esperava na doca, na esperança de registrar a reação de Clark ao fato de ser o primeiro homem a criar três empresas de tecnologia diferentes valendo bilhões de dólares cada. Não havia possibilidade de que imagi-nassem que sua mente já estava completamente ocupada pela quarta. De qualquer maneira, Clark decidira que não queria aparecer na televisão. O repórter da CNBC tinha pensado em mostrar um mapa do Caribe com a posição do barco. Clark não gostou da idéia.

Quando Pavan repassou a notícia, a energia do acontecimento desapareceu. Os engenheiros da Healtheon saíram aos poucos, relutantemente, da sala de reunião. Pavan e Kittu saíram juntos. Kittu estava alegre, Pavan, sóbrio. Quando voltava a seu cubículo, suas pernas começaram a tremer. Kittu pôs os braços em volta dele, e riram juntos.

O cubículo de Pavan não era o tipo de lugar para um homem que valia 33 milhões de dólares. Tinha um computador, uma mesa e um gigantesco quadro-negro. Pavan andou até o quadro-negro, ficou lá por um minuto e desistiu. Não havia nada para desenhar. As linhas, gráficos e diagramas que ele vivia rabiscando no quadro

Page 367: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

325

não mais expressavam o que ele queria dizer. Parecia um homem que tinha engolido um terremoto de uma só vez e agora tentava conter em seu corpo os tremores menores que se seguiam. Tremia involuntariamente. Havia quase cinco anos que ele vinha imaginando esse momento, desde que tinha lido, pela primeira vez, sentado em um hotel de Delhi, a respeito do IPO da Netscape. Tinha encontrado seu destino e não sabia exatamente o que fazer com ele. Pavan Nigam era um homem rico.

Aquela noite cheguei em casa e encontrei um e-mail de Stuart Liroff. Ele tinha tido uma reação mais reticente em relação a sua boa sorte do que Pavan ou Kittu. Ao lhe perguntar se, ponderando bem, o sacrifício tinha valido a pena para sua mulher, seu rosto sugerira que ele não tinha certeza. “A história vai documentar isto como a maior bolha financeira da economia mundial”, disse a certa altura. Acho que bem lá no fundo Stuart não tinha a expectativa de ganhar milhões de dólares: ele era muito feliz sem eles. Depois da oferta de ações perguntei-lhe se alguma vez tinha pensado em se aposentar. Ele disse que o pensamento nunca lhe tinha passado pela cabeça, e nem devia. Então escreveu:

Meu avô era um açougueiro kosher, e meu pai era do ramo têxtil. Acho que minha reação à palavra “aposentadoria” é quase visceral...

Mas você não acreditaria no que aconteceu comigo esta noite.

Como mencionei, fui com minha mulher a um evento de caridade aqui na redondeza [...] Não

Page 368: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

326

havia mais de quinhentas pessoas lá [...] Foi assustador. Parecia que quase todo mundo vinha até mim, e todos urravam que eu agora estava rico e que eu podia me aposentar e todo mundo queria saber “o que eu ia fazer agora”!? Me senti como se fosse meu bar mitzvah ou se meu filho tivesse acabado de nascer. Você tem que entender: nunca falo com ninguém sobre minhas finanças pessoais; em minha família, sempre se considerou de “mau gosto” falar do próprio dinheiro em público. E lá estava eu, no meio de um evento público, e parecia que 250 pessoas sabiam que eu estava “rico”. Me senti como alguém exposto ao público, e, quer saber?, era uma sensação ótima!Alguns dias depois da oferta de ações da

Healtheon, Mike Long foi convidado a ir à CNBC para falar de sua nova e espetacular empresa, que, a 44 dólares por ação, valia agora 3 bilhões de dólares. Não havia o que discutir sobre se devia aceitar ou não. A CNBC era o canal de TV a cabo favorito dos especuladores que levantavam o preço das ações da Healtheon. Havia uma sala conectada no campus da Universidade de Stanford — era usada para todos os programas de TV da Costa Leste. Era para a sala que os executivos do Vale do Silício iam quando queriam falar com seus investidores. Long dirigiu até lá às quatro da manhã. Prendeu o microfone à gravata e pôs o fone no ouvido. Olhou para o alto da parede, no olho negro da única câmara. Olhe direto para o olho negro quando falar, tinham-lhe dito. Uma voz de mulher — ele nunca chegou a pôr os olhos nela — foi despejada pelo fone de ouvido. A mulher deu as boas-vindas da CNBC a Mike Long, disse-lhe que

Page 369: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

327

estavam no ar e então lhe fez uma lista de perguntas. Depois de algumas delas, Long teve a oportunidade de mencionar “nosso novo relacionamento com a IBM”.

“Vamos falar disso”, disse a mulher da CNBC. “A aquisição dessa empresa e o futuro da Healtheon. Como foi que essa aquisição ajudou vocês?”

Long teve que pensar nessa pergunta. A IBM valia cerca de 240 bilhões de dólares. Tinha 290 mil empregados, 82 bilhões em receita, e uma história longa e gloriosa que começava em 1911. A IBM não era uma empresa, era um país. A Healtheon... bem, até alguns dias antes, ninguém nunca tinha ouvido falar da Healtheon. Agora a empresa estava sendo acusada no canal de TV a cabo oficial das classes especuladoras de ter adquirido a IBM.Tempos atrás, quando Mike Long era um Executivo Americano Sério, ele não tinha contato com o público em geral. Talvez

Page 370: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

328

uma ou duas vezes seu nome tenha aparecido no jornal local quando ele e sua mulher compareceram a um jantar de caridade. Agora esperava-se que ele desempenhasse um papel que era em parte o de uma celebridade comercial, e em parte o de animador de auditório. O novo papel exigia que sufocasse uma boa dose de perplexidade. Tinha que encontrar uma maneira de ser adaptável o bastante para manter uma cara séria quando algum jornalista lhe perguntasse por que ele tinha comprado a IBM, mas não tão adaptável a ponto de perder o auto-respeito. Seu sistema nervoso central estava ocupado fazendo os ajustes devidos.

Uma das muitas coisas que Mike Long tinha aprendido na transição de Executivo Americano Sério para guardião da nova novidade era manter o discurso em movimento. Ou, como ele formulava: “Você tem que estar à frente do mapa rodoviário público”. No minuto em que os investidores entendiam o que você estava fazendo, a estima que tinham por você diminuía. Um desempenho sólido deixava de ser interessante; a familiaridade gerava o desprezo. Os dólares investidos na Healtheon estavam sempre ameaçando migrar para a oferta de ações mais recente. Para seduzir investidores apaixonados pela novidade — e assim manter o preço das ações em ascensão —, você tinha que se manter em estado de pura possibilidade.

Nessa pergunta sobre sua aquisição da IBM, Long percebeu uma oportunidade. A Healtheon compra a IBM

— isso é uma novidade! Na tela da televisão, Long contorceu o rosto ligeiramente, do jeito que faria se um lunático na rua se aproximasse dele para dizer que havia um homenzinho verde encarapitado em seu ombro. Mas, antes cjue chegasse a tanto, o rosto se congelou. Ele sorriu. Disse que, apesar de a Healtheon não ter comprado a IBM, tinha concordado em fornecer tecnologia à IBM, deixando assim os espectadores da CNBC

Page 371: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

329

com a vaga impressão de quea pergunta não era um disparate. A Healtheon podia muito bem ter comprado a IBM, mas tinha achado mais útil fazer uma parceria.

No mês seguinte ao IPO, a cotação da Healtheon se comportou como um paciente maníaco-depressivo que deixa de tomar seus remédios. Primeiro caiu, de 44 para 29 dólares por ação. Então, em 8 de março os bancos de investimento Morgan Stanley e Goldman Sachs emitiram recomendações de compra. No dia seguinte a cotação disparou dezenove pontos, chegando a 48 dólares por ação. O entusiasmo, entretanto, era temporário. No início de abril caiu e depois subiu um pouco mais, até 59 dólares. Então caiu muito. Do início de abril até o início de maio caiu vinte pontos, chegando a 39 dólares por ação. Algo estava impedindo que a cotação subisse.

Logo ficou claro o que era esse algo. Mais ou menos nessa época, Clark ouviu de um amigo — recusa-se a dizer qual — que a Microsoft estava interessada na indústria de saúde. Segundo o boato, a Microsoft pretendia investir 700 milhões de dólares em uma nova empresa baseada em Atlanta chamada Web MD [Medicai Doctor, médico]. A Web MD não era muito mais do que um invólucro para uma brilhante campanha de marketing. Seu CEO era Jeff Arnold, de 29 anos, e ele tinha convencido algumas organizações de saúde a assinar contratos, mas na verdade não tinha produto algum. Por esse motivo, Clark não tinha prestado muita atenção à Web MD. O apoio da Microsoft mudou sua atitude. Com a Microsoft por trás, a Web MD tinha todas as chances de abrir o capital com um valor de mercado mais alto do

Page 372: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

330

que 0 da Healtheon e se estabelecer como a principal marca de medicina na. Internet. “Eu não podia deixar isso acontecer”, diz Clark.

Na metade de maio, Clark e Long voaram para Atlanta para se encontrar com Jeff Arnold. Quando saíram da reunião, tinham chegado a um acordo para comprar a Web MD — entregando 1,85 ação da Healtheon para cada ação da Web MD. A Microsoft teria uma participação de 17% na empresa resultante. Era o modo original de Clark de chegar a um acordo com a Microsoft. A Netscape tinha lhe ensinado de maneira desagradável que não valia a pena tentar resistir ao que ele encarava como o império do mal. Aparentemente, o julgamento antitruste contra a Microsoft poderia se arrastar por vários anos mais; não havia sequer uma tênue esperança de que o governo fosse impor restrições à empresa, ao menos a tempo de fazer diferença para Clark. Ponderando bem, Clark chegou à conclusão de que era melhor comprar a proteção da Microsoft. A reação da Microsoft à Healtheon tinha sido tão brutal quanto sua reação à Netscape: dê-nos um pedaço da sua empresa ou nós o tiramos do negócio. Da mesma forma, seu investimento na Web MD resultava em extorsão: dê- nos um pedaço da festa, ou vamos financiar outra empresa para competir com você. “É grotescamente injusto”, disse Clark. “E eu odeio isso. Mas não há nada que eu possa fazer.”

Em 20 de maio as empresas anunciaram a fusão. O mercado interpretou o negócio como um sinal de que um novo monopólio estava sendo criado, e talvez o mercado estivesse certo. Com certeza, o efeito de combinar o ClarkWorld com a Microsoft seria assustar

Page 373: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

331

muitos competidores em potencial e, assim, os expulsaria do mercado. Qualquer um que não ficasse assustado o bastante poderia ser comprado. A cotação da Healtheon subiu quase setenta pontos em dois dias, chegando a 105 dólares. A empresa valia agora 16 bilhões de dólares. Parecia que tinham arrancado 16 bilhões de dólares do nada. A participação de Clark no empreendimento tinha se reduzido a 6%, valendo cerca de 1,3 bilhão. “É o bastante para manter meu nível de interesse”, disse, com um desencanto com que, a esta altura, eu já estava familiarizado, se insinuando na voz, “mas não é o que eu queria ter.” Disse também: “Quando formei a Netscape, considerei a hipótese de ir para a cama com o inimigo. Agora sei que deveria ter feito isso. Eu passei para o lado negro”.

A verdade é que era hora de se pôr em ação novamente. Na véspera da nova novidade, o Netdex, como o analista de investimento Keith Benjamin descrevia seu índice de empresas de Internet, valia 405 bilhões de dólares. Isso significava uma alta de 654% em um ano. Para dar um padrão de comparação a esse número, as vinte maiores empresas de mídia — Time Warner, Disney CBS etc. — valiam juntas 527 bilhões de dólares. Quanto exatamente do Netdex pertencia a gente associada aos vários empreendimentos de Clark era difícil de dizer; mas, na primavera de 1991, fiz umas continhas rápidas num papel qualquer. Era uma lista das pessoas de ClarkWorld que eu chegara a conhecer um pouco:

CEOS:

Mike Long (Healtheon): 400 milhões de

Page 374: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

332

dólares Jim Barksdale (Netscape): 1 bilhão de dólares Tom Jermoluk (@Home): 550 milhões de dólares

Capitalistas de risco:Kleiner Perkins (John Doerr): 1,8 bilhão de dólares New Enterprise Associates (Dick Kramlich): 700 milhões de dólaresMayfield Fund (Glenn Mueller): 400 milhões de dólares

Engenheiros co-fundadores:Pavan Nigam (Healtheon): 85 milhões de dólares Kittu Kolluri (Healtheon): 30 milhões de dólares Stuart Liroff (Healtheon): 8,5 milhões de dólares Marc Andreessen (Netscape): 80 milhões de dólares

Page 375: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

33i

Tom Davis (Silicon Graphics): 10 milhões de dólares Rocky Rhodes (Silicon Graphics): 5 milhões de dólares Kurt Akeley: (Silicon Graphics): 5 milhões de dólares

O capitão e os programadores do Hyperion:Allan Prior: 1,062 milhão de dólares Steve Hague: 1 milhão de dólares Lance Welsh: 1 milhão de dólares Tim Powell: 1 milhão de dólares

A cota de Clark no Netdex era de 3,2 bilhões. Descontados os impostos, ele ainda era um bilionário de verdade. Tinha, como dizem, alcançado seus objetivos financeiros.

Page 376: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

61

18. A nova novidade

Diferentes pessoas têm usado expressões variadas para descrever O caminho que a mente de Clark percorre quando passeia no alto do despenhadeiro da economia americana e escolhe qual pedra chutar, de modo a fazer desmoronar a maior quantidade de terra possível. O capitalista de risco John Doerr o chama de “impressionante radar de longa distância”. Kittu Kolluri, engenheiro da Healtheon, o chama de “olfato animal”. Hugh Reinhoff, um dos jovens que os capitalistas de risco destacaram para seguir Clark aonde quer que fosse, fala de sua “lógica difusa”. Seus inimigos 0 consideram “bizarro”, uma “disfunção” ou, mais freqüentemente, “sortudo”. Todas as vezes que os empreendimentos deram certo, algumas pessoas, mesmo do Vale do Silício, disseram que era sorte. Sorte de ter popularizado a terceira dimensão dentro do computador na hora certa, sorte de ter encontrado Marc Andreessen e visto seu browser de Internet, sorte de ter

Page 377: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

62

detonado a explosão da Internet, sorte de ter procurado controlar a indústria de saúde, o maior mercado do mundo, no exato momento em que ele estava pronto para ser controlado.

Sorte é uma dessas palavras infelizes das quais se exige mais do que podem fornecer. O que aconteceu a Clark no Vale do Silício é muito mais interessante do que sorte. Foi a interação de um personagem que tem uma profunda afeição pela tecnologia e um gosto pela anarquia com um ambiente que recompensava esses traços. O Vale do Silício no fim dos anos 90 é o mais perto que o mundo dos negócios já chegou de uma experiência química infantil. Alguma mãozinha invisível misturava uma substância química atrás da outra em um tubo de ensaio, na esperança irresponsável de causar uma explosão. Clark e gente como ele vinham a ser os ingredientes ativos.

Seja como For, na primavera de 1999, depois de a Healtheon se estabelecer como o IPO mais bem-sucedido em um ano de ofertas fabulosamente bem-sucedidas, Clark estava mais ativo do que nunca. Havia muitos motivos para isso, mas o principal era a Internet. Já não havia muita discussão sobre o que Clark vinha dizendo o tempo todo: a Internet era maior do que qualquer um pensava. Praticamente todos os Executivos Americanos Sérios agora concordavam que não tinham escolha além de se adaptarem, ou então acabariam num vidro de for- mol e dispostos em uma prateleira da nova exposição especial de espécies econômicas extintas. Em março de 1999, Jack Welch, presidente da General Electric, uma dessas pessoas que cria o senso comum em negócios a cada vez que abre a boca, disse que a Internet “era o

Page 378: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

63

acontecimento individual mais importante da economia americana desde a Revolução Industrial”. Mesmo o geralmente sutil presidente do Federal Reserve, Alan Greenspan, disse que “a revolução na tecnologia da in-formação alterou a estrutura do funcionamento da economia americana”.

O crescimento era a mudança, e a mudança era perturbadora — se houvesse alguma dúvida, era só perguntar ao ExecutivoAmericano Sério. As revistas de negócios tinham até uma expressão para a angústia do desastre incipiente que sofriam: “ansiedade com a Internet”. A ansiedade com a Internet era simplesmente a impressão, agora compartilhada por todo mundo, de que você estava para ser expulso do mercado por alguém que se comportava no espírito de Jim Clark. A Internet criava muitas oportunidades para que gente como Jim Clark — forasteiros, encrenqueiros — pensasse em coisas que virariam indústrias inteiras de pernas para o ar. Jeff Bezos, fundador da Amazon.com, tinha revirado o negócio de livros; os fundadores da eBay tinham revirado o negócio de leilões; os fundadores da E*Trade e da Ameritrade tinham revirado as corretoras de ações de Wall Street. Em 1998, o chefe dos 15 mil corretores de ações da Merrill Lynch, John Steffans, chamara as corretoras da Internet de “séria ameaça às vidas financeiras americanas”, e garantiu a seus funcionários que a Merrill Lynch nunca faria tal coisa. No ano seguinte, a Merrill Lynch criou um departamento de corretagem pela Internet.

Paul Romer, o jovem economista cujo trabalho na Nova Teoria do Crescimento tinha ressaltado a

Page 379: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

64

importância da tecnologia no crescimento econômico e, por implicação, conferia uma enorme importância à nova novidade, vislumbrou um outro motivo, mais profundo, pelo qual a mudança tecnológica era tão perturbadora. Em uma digressão de sua normalmente rigorosa análise, na edição de 1994 do Journal of Development Economics, Romer escreveu: “Depois que admitirmos que existe espaço para a novidade — que há vastamente mais possibilidades concebíveis do que os resultados verificados —, teremos que nos confrontar com o fato de que não existe uma lógica especial por trás do mundo que habitamos, nenhuma justificativa particular pela qual as coisas são da maneira que são. Qualquer quantidade de perturbações arbitrariamente pequenas pelo caminho poderia ter feito com que o mundo como o conhecemos tivesse resultado muito diferente [...] somos forçados a admitir que o mundo como o conhecemos é o efeito de uma longa cadeia de ocorrências aleatórias”.

Clark, o inventor da ocorrência aleatória, era ele mesmo um de seus exemplos. Não muito depois de ter me encontrado com ele, quando a cotação da Netscape corria em direção ao nada, e se considerava que a Healtheon não tinha nenhum valor, ele anunciou seu plano de se aposentar quando se tornasse um bilionário pós-impostos de verdade. Pretendia flutuar em volta do mundo em seu novo barco assim que estivesse pronto. Mesmo então você podia ver que era impossível que ele acreditasse no que dizia. Sua vida era uma história de aventura: sem suspense, ela perdia o propósito. Além disso, ele continuava curioso para descobrir o que aconteceria em seguida. Como saberia se não se

Page 380: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

65

dispusesse a fazê-lo acontecer? A quase certeza de que algo importante borbulharia de sua pessoa, a impressão de que ele tinha algum dom peculiar para deixar a coisa certa borbulhar, mantinha ele e muita gente no Vale do Silício com a respiração ofegante. Em abril de 1999, gente de fora do Vale queria falar com Clark sobre a Healtheon, que agora parecia pronta para virar a indústria de saúde americana de cabeça para baixo. O interesse de Clark pela Healtheon estava evaporando. Ele nem sequer tinha certeza se queria manter seu investimento na Healtheon. A Healtheon era o passado. Tinha chegado a hora da nova novidade.

Na primavera de 1999, Clark começou a pensar seriamente a respeito de seu dinheiro. Na verdade, ele sempre pensava seriamente a respeito de seu dinheiro, de modo que eu deveria ter percebido o que estava a caminho, mas fiquei distraído com toda a conversa a respeito de transformar o software do Hyperion no Lar do Futuro. Ele tinha até pago 12 milhões de dólares por uma mansão de 3 mil metros quadrados e 35 quartos em Palm Beach, com o objetivo, parecia, de ter um lugar para testar o software. A mansão chamava-se II Palmetto. Havia sido construída por Joseph Widener na década de 1930, quando se esperava que gente rica ficasse ociosa. Se conseguisse reduzir a casa de 3 mil metros quadrados à soma de seus dados digitais e administrar esses dados pela Internet, imaginava Clark, ele poderia fazer a mesma coisa com qualquer casa. Clark tinha comprado II Palmetto depois que Steve Hague, o programador do barco, tinha lhe explicado, em um e-mail, “como o software que controla o barco pode

Page 381: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

66

se tornar uma empresa ponto com”. A nova empresa se chamaria Landscape. A Landscape, e 11 Palmetto, mostrou ser apenas mais um indício falso.

Em algum momento, provavelmente enquanto atravessávamos o oceano, Clark perdera o interesse no Lar do Futuro. O Lar do Futuro teria que esperar. Ele decidiu primeiro mudar, tanto quanto conseguisse, aquilo do que não gostava em ser rico de verdade.

Ele acumulara uma longa lista de queixas de sua breve experiência com a riqueza de verdade. Ele não gostava de pagar OS impostos sobre ganhos de capital na Califórnia — a tal ponto que mudara sua residência oficial para Palm Beach, na Flórida. Não gostava do inconveniente de ter que pagar contas — a tal ponto que contratara um camarada chamado Harvey para cui-dar disso. Não gostava de corretores de ações — a tal ponto que ignorara seus conselhos para diversificar e mantivera toda a sua fortuna na Netscape e na Healtheon. E não gostava de capitalistas de risco e de banqueiros de investimento e, em geral, da legião de intermediários financeiros instalada entre os criadores de riqueza e suas merecidas sobremesas.

A princípio, acreditou que o que de fato queria era o que os ricos sempre tinham tido: um family office. O family office do rico é normalmente uma equipe de pessoas que nada fazem além de cuidar do dinheiro do rico. Os mordomos do dinheiro. Logo, logo, contudo, percebeu que queria mais do que um mordomo do dinheiro. Queria ser capaz de observar o que os mordomos do dinheiro faziam. Queria ser capaz de compreender todos os aspectos de seu dinheiro num só relance, independentemente de onde no mundo

Page 382: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

67

estivesse o dinheiro, ou de a que horas. A Internet era perfeita para o que ele tinha cm mente.

Quanto mais Clark pensava a respeito, mais achava que o melhor dos mordomos do dinheiro usaria a Internet. A Internet o pouparia de infinitas dores de cabeça: seria o fim dos telefonemas aos bancos e contadores, o fim da procura por calculadoras para descobrir o valor de sua fortuna, o fim da consulta a recibos para descobrir quanto tinha pago pelo Picasso. Sem perceber, tinha tido uma idéia para um negócio. Ele chamou sua nova empresa de myCFO [meu diretor financeiro].

Sua linha de pensamento era algo assim. Havia muitos iguaizinhos a ele, que tinham ganhado milhões de dólares e agora precisavam lidar com o inconveniente de manipulá-los. Clark lera em algum lugar que havia 180 mil decamilionários americanos — gente com ao menos 10 milhões de dólares em ativos. Juntos eles controlavam algo como 15 trilhões de dólares em ativos. “As massas opulentas”, Clark os chamava. Ele imaginava que as massas opulentas estavam apenas esperando para ser organizadas em uma unidade de combate. (Não tinham nada a perder além de seus grilhões de ouro.) Certamente compartilhavam alguns objetivos financeiros básicos: queriam minimizar impostos e aporrinhações; queriam maximizar a riqueza. O myCFO ajudaria os ricos a alcançar seus objetivos. Seria, em primeiro lugar, uma moradia para o dinheiro. “A idéia é que tudo relacionado às finanças deles passe por um único lugar”, dizia Clark. Depois que convencesse as massas opulentas a reunir sua riqueza nesse único lugar, ele poderia negociar em

Page 383: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

68

nome dessa riqueza, quase como se ela pertencesse a uma só pessoa. “Digamos que você tenha 2 trilhões debaixo do mesmo teto”, Clark explicava, “ou mesmo 1 trilhão. O poder desse dinheiro é imenso. Você pode conseguir acordos com bancos, corretoras, seguradoras ou qualquer um que queira fazer negócios com o dinheiro.” Os ricos que ficassem no myCFO acabariam com uma longa lista de acordos especiais.

O que ele estava buscando não era apenas uma nova empresa. Era um novo tipo de instituição financeira, e, apesar de obscuro na concepção, criava uma fantástica ameaça para as antigas e estabelecidas instituições financeiras. A Internet tornava possível que as pessoas se organizassem de novas maneiras. Tornava possível que os ricos se organizassem. Ninguém disse que a nova organização dos ricos tinha que se comportar como outras instituições financeiras. As pessoas que reunissem forças no myCFO teriam um grande poder de barganha sobre as instituições fi-nanceiras tradicionais. Não seriam tolhidas da maneira como são as pessoas que, digamos, depositaram 1,5 trilhão em contas da Merrill Lynch. Quando um cliente da Merrill Lynch quer comprar ações, tem que telefonar para um corretor da Merrill Lynch. A pilha de dinheiro de Jim Clark — que, ele imaginava, seria facilmente a maior pilha de dinheiro do mundo — operaria de forma independente. Anarquicamente. Como um grupo, seus clientes poderiam jogar uns contra os outros capitalistas de risco do Vale do Silício, banqueiros de investimento de Wall Street, corretores de ações de cidades do interior e bancos voltados para pessoas físicas da Suíça, da mesma maneira que Clark em sua própria vida

Page 384: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

69

empresarial. Se o myCFO não se apoderasse das alavancas do capitalismo, ao menos poderia retirar a alavanca das mãos dos capitalistas. E, quanto maior a pilha de dinheiro dentro do myCFO, maior a influência desse cartel dos muitos ricos no mercado. Depois que o valor em dólares se tornasse enorme o suficiente, eles poderiam se aboletar acima do mundo financeiro como um sistema operacional se aboleta em um computador pessoal.

Como de hábito, Clark achava que tinha que se mover rapidamente. Dessa vez ele nem sequer tinha um desenho em uma folha de papel, apenas uma idéia vaga na cabeça. Queria que o myCFO se tornasse uma empresa de capital aberto e valesse bilhões de dólares em menos de um ano, de modo que pudesse estar mais bem posicionada para devorar a inevitável concorrên-cia. Ele acreditava que seu valor de mercado ultrapassaria o da Healtheon, que a essa altura já ultrapassava 15 bilhões de dólares. No fim de abril ele visitou alguns líderes de opinião do Vale do Silício, cujo sucesso comercial lhes dava grande influência sobre as massas opulentas. John Chambers, CEO da Cisco, fabricante de hardware para a Internet, era ele próprio um bilionário. Era também um engenheiro. Também era um admirador de longa data da capacidade de Clark de mudar junto com o tempo. O Vale estava cheio de gente que tinha criado mais de uma empresa bem-sucedida, mas de um só tipo. Só Clark tinha passado de um conceito fundamental a outro. Depois de ouvir Clark, Chambers disse: “Se você controlar 80% da riqueza, o resto vai junto. Esse negócio tem o potencial de mudar os serviços financeiros para sempre”. Dizendo que

Page 385: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

70

“disso pode resultar uma situação de ruptura”, pediu para comprar uma participação de 5% no myCFO, e disse que pretendia ser o primeiro cliente da empresa. Tom Jer- moluk, CEO da @Home, teve a mesma reação. “Jim mudou o tipo de acordo que as pessoas conseguem fazer com capitalistas de risco”, disse T. J., “não há motivo pelo qual ele não possa levar isso um passo à frente.” T. J. também comprou 5% do myCFO.

Em algo equivalente ao noblesse oblige do Vale, Clark ofereceu participações menores no mycFO aos capitães que lhe tinham servido bem, Jim Barksdale e Mike Long. Long comprou 2,5% da empresa; Barksdale telefonou e pediu para ver o “plano do negócio”. “Não tenho plano de negócio”, disse Clark. Barksdale, também, disse que queria uma participação.

No início de junho, Clark dirigiu pela Sand Hill Road até a Benchmark Capital, os capitalistas de risco que tinham ficado famosos por financiar a eBay. Mais alguns negócios glamourosos como aquele, e a Benchmark poderia oferecer a mesma espécie de imprimátur da Kleiner Perkins — que era, talvez, o principal motivo pelo qual gente como Clark procurava o dinheiro da Kleiner Perkins. A auréola da Kleiner, como era chamada. O problema com a auréola da Kleiner é que ela estava ao alcance de qualquer um, como tudo o mais no Vale. Por medo de perder mais um grande sucesso de público para a Benchmark, a Kleiner Perkins acabara de pagar 25 milhões de dólares por uma participação de 33% em uma nova empresa chamada Google.com. A Google.com consistia em um punhado de alunos de graduação de Stanford que tinha um programa que talvez tornasse mais fácil fazer buscas na

Page 386: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

71

Internet.Em suma, a Kleiner Perkins já estava sentindo um

pouco da pressão nos capitalistas que Clark, com o myCFO, pretendia aumentar muito. Ele não pensava realmente em permitir que a Benchmark investisse em sua empresa. Apenas tinha a esperança de que a notícia de sua visita à Benchmark chegasse a John Doerr na Kleiner Perkins.

Cerca de uma semana depois de ter visitado a Benchmark Capital, Clark dirigiu de novo pela Sand Hill Road até a Kleiner Perkins. John Doerr encontrara seus sócios na sala de reunião. Excluindo Jim Clark, a sala de reunião da Kleiner era o que ha- via de mais próximo ao marco zero da explosão da Internet.

Page 387: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

34i

Sentados em sua sala de reunião, os sócios da Kleiner tinham financiado meia dúzia dos mais sensacionais novos empreendimentos: Netscape, Amazon.com, Excite, @Home, Healtheon. A empresa afirmava, plausivelmente, ter financiado empresas que valiam mais de meio trilhão de dólares. A sala de reunião pare-cia um lugar improvável para se criar uma tal pilha de dinheiro. As paredes eram feitas de vidro, a madeira era um bordo mos- queado claro, e a luz do sol jorrava de todas as direções. Você poderia esquadrinhar a sala durante semanas, e, a não ser que penetrasse nas mentes dos homens do lugar, nunca encontraria uma sombra. O ambiente em que as mais importantes decisões financeiras dos anos 90 haviam sido tomadas era claro e arejado como uma cabana de esqui. A iconologia do poder financeiro tinha mudado.

Clark tomou seu lugar ao sol e explicou tudo a respeito das massas opulentas e de seus planos de organizá-las em unidade de combate. Um dos sócios da Kleiner perguntou sobre o modelo de negócio. “Modelo de negócio” é uma dessas expressões fundamentais para a explosão da Internet: ela abrilhanta todo tipo de plano mal-acabado. Tudo o que realmente identifica é como você planeja ganhar dinheiro. O “modelo de negócio” da Microsoft, por exemplo, era vender por 120 pratas um software que custa cinqüenta centavos para fazer. O “modelo de negócio” da Healtheon era acrescentar alguns centavos a cada conta, ordem ou solicitação que saía do consultório de um médico. O “modelo de negócio” da Netscape estava sempre mudando; ninguém nunca realmente descobriu como ganhar dinheiro com a Netscape; em sua breve vida, ela

Page 388: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

34i

deu prejuízo. O “modelo de negócio” da maioria das empresas de Internet era atrair enormes multidões para um website e depois vender a outros a oportunidade de anunciar produtos para as multidões. Ainda não estava claro se o modelo fazia sentido.

Page 389: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

342

O “modelo de negócio” do myCFO, tal como era, era curiosamente antiquado. De fato, assinalava um distanciamento do modelo de criação de empresas na Internet que tinha se tornado comum a essa altura. Em vez de maximizar o número de pessoas que visitava seu website, Clark ia se dedicar a maximizar o número de dólares. O myCFO cobraria das massas opulentas, em média, 50 mil dólares por ano para usar o serviço. Elas pagariam porque o serviço lhes economizaria de volta no mínimo a mesma quantia. Clark imaginava que, ao fim e ao cabo, podia atrair 100 mil clientes ricos; com isso haveria 1 bilhão por ano de receita. Ele formulava de outra maneira: um contador com experiência consolidada que pedisse um salário de cerca de 200 mil dólares por ano trazia quase 2 milhões por ano cm

receita. Em um ano, Clark imaginava, ele teria contratado quatrocentos contadores, na maioria trazidos das grandes firmas de contabilidade, que já aconselhavam os ricos. Em troca de abandonarem empregos estáveis nas grandes empresas, os contadores receberiam opções de compra de ações. Eles viriam porque, como todo mundo nos Estados Unidos, estavam desesperados para participar da explosão da Internet. “Com que freqüência contadores têm a chance de ficar ricos?”, perguntou Clark aos sócios da Klei- ner, retoricamente.

Era um “modelo de negócio” pelo qual até um investidor tipo Graham e Dodd poderia se apaixonar — o que eqüivalia a dizer que era relativamente imune a inversões na Bolsa de Valores. Teria lucros, muitos lucros. Com empresas chamadas Google valendo 75 milhões de dólares, Clark não via muito sentido em

Page 390: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

343

vender ar: todo mundo já estava fazendo isso. A revolução tinha devorado o revolucionário. A reação do revolucionário era se preparar para devorar a revolução. “Antiga concepção da Internet” é como ele descartava as centenas de empresas inspiradas pela Netscape. Foi em frente e passou a explicar o que não precisava de explicação entre os sócios da Kleiner Perkins: o poder de cerca de 1 trilhão de dólares reunidos em uma espécie de cartel. Não havia fim para o que podia ser feito com isso, depois de arrecadado. Ele concluiu dizendo o que os sócios da Kleiner já tinham adivinhado: que ele tinha “uma idéia muito, muito melhor de como ganhar dinheiro do que quando sentei aqui cinco anos atrás e lhes falei da Netscape”. Disse que era “uma das maiores oportunidades que já vi na vida”.

Quando Clark terminou, John Doerr assumiu a reunião. Doerr estava maravilhado. No Vale do Silício, como em todas as culturas onde o status é muito importante, as pessoas têm tendência a saber tudo. Doerr mantinha uma capacidade de curiosidade e de assombro quase infantil. Seus sentimentos por Clark eram o caso em questão. Mesmo nos períodos mais sombrios de seu relacionamento, ele falava de Clark, nos bastidores, como um “patrimônio nacional”. Era isso o que dizia a seus colegas sócios da T^lpinpr, qnp àq vp7ps sp pprgnntavam por qne Doerr fazia tanto esforço para agradar Clark — Jim Clark era um patrimônio nacional. Ele compreendia exatamente como era profunda e misteriosa a força que estava sentada do outro lado da mesa na sala de reunião na Kleiner Perkins.

Normalmente, os sócios da Kleiner deliberavam por alguns dias antes de decidir se investiriam em uma

Page 391: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

344

empresa. Não haviam feito isso com a Netscape, Doerr lembrou a Clark. Ele telefonara a Clark uma hora e meia depois de ele ter explicado aquela nova novidade em particular e concordara com os termos mais leoninos jamais exigidos de capitalistas de risco. Os termos eram ainda mais leoninos desta vez, mas Doerr queria tomar a decisão ainda mais rapidamente. Virou-se para Clark e disse: “Quer que coloquemos as cartas na mesa agora mesmo?”. Clark disse que não era necessário; de qualquer maneira, a decisão era uma formalidade. Uma hora e meia mais tarde, Doerr lhe telefonou e disse que a Kleiner queria comprar tantas ações do mycpo quantas Clark quisesse vender e que ele gostaria de ter um assento no conselho de administração da empresa.

Durante as semanas seguintes, Clark mudou de idéia várias vezes sobre quanto deveria permitir que a Kleiner investisse, ou mesmo se deveria permitir que ela investisse. “Não preciso deles”, disse certa vez; no dia seguinte disse: “Se eu não os deixar investir, vão iniciar uma empresa concorrente”. Finalmente, decidiu deixar Doerr comprar uma participação de 12% no myCFO. Ao mesmo tempo, deixou vazar a notícia do novo empreendimento para a imprensa. Uma vez ele me dissera que não compreendia por que os jornalistas de negócios achavam que homens de negócios lhes contariam a verdade sobre seus afazeres. O bom homem de negócios era obrigado a manipular a opinião pública, especialmente agora que a opinião pública era tão importante para o futuro dos negócios. No verão de 1999 ele demonstrou seu ponto de vista. Apresentou aos repórteres uma versão distorcida e tímida de seus desejos. A idéia era mandar para os contadores o

Page 392: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

345

recado de que pretendia contratar e criar um burburinho sobre a empresa, mas sem alertar a concorrência. De novo, ele tinha bastante claro quem era a concorrência. “Não quero levantar a bandeira vermelha para a Microsoft”, explicou-me, “então, em vez de ‘massas opulentas’, tenho dito ‘indivíduos de alta renda’, e, em vez de expor a idéia toda, sim-plesmente digo que vamos fazer ‘planejamento fiscal’.”

De fato, não muito depois de Clark ter vazado o novo texto para a imprensa, os contadores começaram a telefonar. Em apenas algumas semanas, várias centenas de pessoas das quais Clark nunca tinha ouvido falar apareceram querendo fazer parte do novo empreendimento. O mero volume de telefonemas indicava que os próprios contadores estavam espalhando a notícia entre eles. Como todos os demais, tinham se sintonizado na freqüência da nova novidade. Um conselheiro fiscal na empresa de contabilidade Price/Waterhouse/Coopers, por exemplo, telefonou para Harvcy, que Clark tinha instalado como CEO temporário do myCFO, e perguntou se o que ele tinha lido em alguma publicação de negócios era correto. Harvey disse que era. “Vocês vão controlar todos os dados financeiros”, disse o contador, “e se vocês controlarem os dados, vão controlar tudo o mais. Posso ir trabalhar com vocês?” O contador ganhava meio milhão de dólares por ano e ligara para pedir emprego em um start-up. Em sua voz, Clark conseguia detectar o ranger de uma classe profissional americana cedendo a uma nova ordem.

Uma noite, sentados em sua cozinha, lembrei a

Page 393: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

346

Clark que ele dissera que depois que se tornasse um bilionário pós-impos- tos de verdade ele se aposentaria. Ele disse, sem titubear: “Quero só ganhar mais dinheiro que Larry Ellison. Depois eu paro”.

Isso era novidade. Salientei que ele nunca tinha mencionado esse desejo. “Quero só ganhar mais dinheiro que Larry Ellison” disse novamente. “Não sei por quê. Mas depois que eu tiver mais dinheiro que Larry Ellison, vou ficar satisfeito.” Larry Ellison, CEO da Oracle, a maior empresa de software do Vale, tinha cerca de 9 bilhões de dólares; Clark tinha um pouco mais de 3 bilhões. Por outro lado, a fortuna de Ellison estava completamente amarrada às ações da Oracle, que tinha perdido a maior parte da explosão. No ritmo em que a fortuna de Clark estava crescendo, ele passaria Ellison dentro de seis meses. Chamei sua atenção para isso e fiz a pergunta óbvia: “O que vai acontecer quando você tiver mais do que Larry Ellison? Vai querer ter mais dinheiro do que, digamos, Bill Gates?”. “Ah, não”, disse Clark, e com a mão empurrou minha pergunta para o canto da cozinha onde as idéias ridículas se reúnem para se consolarem umas às outras. “Isso nunca vai acontecer.” Alguns minutos mais tarde, depois que a conversa tinha virado para outros assuntos, ele foi sincero. “Sabe”, disse, “só por um momento, eu acho que gostaria de ser o mais rico de todos. Só por um breve momento.”

Era um desses breves momentos em que era bom ter um registro de nossas conversas. Apenas alguns meses antes, quando tinha meros 600 milhões de dólares, Clark tinha dito: “Quero apenas ter 1 bilhão de dólares, descontados os impostos. Aí vou ficar

Page 394: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

347

satisfeito”. Tempos atrás, antes de fundar a Netscape, ele dissera a Mark Grossman, um dos jovens engenheiros que o ajudaram a criar a Silicon Graphics, algo parecido. Grossman recorda: “Jim veio a meu escritório antes de sair para fundar a Netscape e disse que a SGI é legal, mas eu realmente gostaria de ter 100 milhões de dólares”. Ainda antes disso, antes de fundar a Silicon Graphics, ele dissera a Tom Davis “que o que ele realmente gostaria de ter eram 10 milhões de dólares”. Os números! Viviam mudando! E, mesmo assim, ele era sincero a esse respeito. O que Clark queria dizer quando dizia “eu realmente gostaria de ter” era “vou fazer o que for preciso para conseguir” Não era exatamente pensamento positivo. Um mundo no qual Larry Ellison tivesse mais dinheiro do que ele era de repente inaceitável.

Por que as pessoas estão perpetuamente criando para si mesmas as condições para sua insatisfação? Ouvir Clark falar de quanto dinheiro precisava ganhar era como observar o cão de corrida esperto o bastante para agarrar o dispositivo que controla o coelho mecânico. Em vez de diminuir a velocidade, no entanto, ele acelera. Clark pregava essas pequenas peças em si mesmo de modo a ter uma desculpa, ainda que esfarrapada, para continuar correndo tão depressa quanto pudesse. Era a mesma coisa com seus ressentimentos. Ele tratava aqueles que o tinham maltratado da mesma maneira que tratava aqueles de quem não gOStava, que tinham mais dinheiro do que ele. Eram

todos molas propulsoras. Plainview, a Marinha, Glenn Mueller, Ed McCrac- ken, vários capitalistas de risco: ele precisava que as pessoas ou lugares duvidassem dele

Page 395: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

348

para que ele pudesse provar que esta- vam enganados.Evidentemente, Clark não podia parar de usar a

tecnologia para mudar o mundo, de modo que precisava de uma desculpa para não parar. Os motivos pelos quais ele não podia parar eram, ao fim e ao cabo, incognoscíveis; mas eu presumi que a melhor e mais duradoura motivação para querer mudar o estado em que as coisas estão é estar infeliz com o estado em que as coisas estão. As pessoas que estão infelizes com o estado em que as coisas estão tendem a permanecer infelizes mesmo depois que as mudaram. A natureza da sua infelicidade é tal que a mudança não a abranda. A diferença de Clark é que ele continuava a acreditar nas infinitas possibilidades da mudança, mesmo depois de ter experimentado suas limitações. Ele era o otimista menos feliz que já existiu. Independentemente do sucesso que Jim Clark conseguisse, eram sempre duas da manhã em seu coração, e ele nunca conseguia dormir.

Acima de tudo, uma coisa estava clara: sua busca da nova novidade dependia de sua curiosa amnésia. Sua capacidade de se esquecer do que tinha dito que faria em seguida, ou do que tinha pensado que o faria feliz, era a argamassa com a qual ele erigia suas infinitas camadas de auto-renovação. Ele tinha transformado em uma espécie de religião a atividade de guardar apenas as partes do passado de que necessitava como combustível para sua viagem para o futuro.

Sua fuga do passado era necessariamente incompleta. Ainda não inventaram a droga que permite que as pessoas esqueçam tão perfeitamente quanto

Page 396: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

349

elas às vezes gostariam. Ele ainda tinha sua tuba, por exemplo. O instrumento velho e sem brilho permanecia misteriosamente no canto do quarto de hóspedes no segundo andar — o mesmo que abrigava as caixas de papelão cheias de recortes de jornal que sua secretária tinha resgatado do passado de Clark. Era tão estranho tropeçar em uma coisa daquelas em uma casa que, dc resto, dizia tão pouco sobre quem era seu morador, ou sobre seu lugar de origem, que eu lhe perguntei a respeito. Ele tinha tocado tuba quando criança, disse. Vinte anos antes, logo depois de ter fundado a Silicon Graphics, e ganhado seus primeiros milhões, tinha sido tomado pelo desejo de tocar de novo. E então comprou essa tuba. Logo percebeu que tinha perdido o interesse por ela. Apenas a idéia de tocar a tuba o agradava agora. Então ele a encostou no canto do quarto de hóspedes e a deixou lá, como um lembrete solitário de algo que não conseguia explicar direito.

Page 397: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

350

19- O passado fora da caixa

Um grande lençol cTágua abaixo das planícies entre Amaril- lo e Lubboc fornece a Plainview mais água do que qualquer outra cidade a oeste do Texas recebe. A água foi descoberta não muito depois da Guerra de Secessão. No final do século XIX, Plainview arava a terra de cultura de algodão mais fértil dos Estados Unidos. A economia local era baseada na fazenda familiar — uma base posta em questão na infância de Clark, quando a fazenda moderna, de alta tecnologia, entrou em cena. Desde então, todas as notícias para Plainview têm sido más. Assim é a história econômica de Plainview, Texas.

Fui de carro até a cidade em uma luminosa manhã de inverno. Locais pobres mudam mais devagar do que os lugares ricos; talvez gente pobre mude mais devagar do que gente rica, também, A bela escola de tijolos, a pequena casa, a igreja, as pessoas que, como Clark dissera uma vez, “observavam o mundo externo como se fosse um programa de televisão” estavam pra-

Page 398: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

351

ticamente da mesma maneira que estavam quando ele as deixara no início dos anos 60. O som no centro da cidade era o som do interior de uma concha. O vento zunia. Os prédios, de um tom irremediavelmente bege, se equilibravam na grama amarela como se fossem projetados para diminuir a imaginação humana. O horizonte era intocado por cerca ou ambição; a única exceção era a torre de água na extremidade da cidade. A base de Plainview era a água, e a torre que abrigava a água era pintada com orgulho. Só que não dizia Plainview, dizia Rust Water. Em 1992, a Paramount Pictures usou Plainview como cenário de uma comédia chamada Leap of faith, sobre um pastor evangélico do interior, representado por Steve Martin. A turma de Hollywood ficou algumas semanas, deu trabalho a todo mundo, e deixou atrás de si mais dinheiro do que a cidade tinha visto em muito tempo. Em troca, pintaram a torre de água com o nome da cidade fictícia do filme. Plainview nunca se deu ao trabalho de repintá-la.

Afora isso, Plainview parecia ter se contentado com uma velha idéia a respeito de si mesma. Tinha ficado plantada, recusando a oferta de mais uma carta que a banca lhe fazia. Tornara- se um desses lugares que se definem não pelo que tên^ mas pelo que não têm, e não por quem ficou, mas por quem foi embora. O homem cuja partida definia a cidade com a mais horrenda clareza era Jim Clark.

Naquela luminosa manhã de inverno segui as instruções que a mãe de Clark, Hazel McClure, me deu até chegar a sua casa de tijolos, ligeiramente maior do que as casas de ambos os lados. Esperando dentro da casa estavam a irmã mais jovem de Clark, Sue, e seu

Page 399: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

352

marido, Roger. Eu viera lhes fazer algumas perguntas, mas descobri que Hazel que tinha uma pergunta para mim. “Você sabe quando Jim vai vir nos visitar?”, perguntou depois que nos sentamos.

Page 400: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

35i

Nas raras ocasioes em que Clark visita Plainview, ele aterrissa no aeroporto nas cercanias da cidade, almoça com a mãe, e então voa para outro lugar tão rápido quanto possível. Raramente vai de carro até a cidade e nunca vai até em casa. Nunca viu a casa que a mãe adquiriu com as opções de compra de ações da Silicon Graphics que lhe deu. As poucas paradas que fez foram todas não programadas. A rota do vôo de Palm Beach a San Jose por acaso passa diretamente acima de Plainview, Texas, e de vez em quando Clark desce dos céus. Quase sempre pega a mãe de surpresa. Por exemplo, Hazel soube da última visita de Clark, um ano antes, pela secretária eletrônica. Ela achou um recado de Jim na secretária que dizia que ele estava sobre sua cabeça, descendo, e que pretendia ficar em Plainview só o tempo suficiente para reabastecer. Se ela estivesse por perto, dizia, poderiam almoçar no campo de pouso. “Eu simplesmente girei nos calcanhares e corri porta afora em direção ao aeroporto”, recorda-se Hazel. Metade da cidade a seguiu. O aparecimento do jato de Clark no céu de Plainview era um acontecimento público. Todos os moradores de Plainview reconheciam o avião de longe, e cerca de cem deles correram para o campo de pouso, só para vê-lo aterrissar. “Eles sabem que qualquer coisa do tamanho do avião de Jim simplesmente tem que ser Jim”, diz Roger, cunhado de Clark, “porque não existe nada parecido... E a verdade é que, sempre que vem, Jim causa um certo alvoroço na cidade.”

Hazel disse então que, a maior parte do que conhecia da ilustre carreira do filho, soubera por ler nas revistas. Ela tem dificuldade de conciliar o menino que

Page 401: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

35i

criou com o homem sobre quem lê. Não tem nenhuma teoria sofisticada sobre por que Clark se tornou quem ele é. Tudo o que tem são algumas lembranças que talvez possam dar pistas a alguém que está em busca de uma personalidade. Ela se lembra dele aos quatro anos de idade, quando suspeitou pela primeira vez de que ele podia ser

Page 402: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

352

mais inteligente do que um menino normal. Ele recitava cantigas de ninar inteiras de memória e se gabava: “Qualquer coisa que você me diga eu posso lembrar desde que preste atenção”. Um pouco mais tarde, quando tinha doze anos, ela recorda que ele acidentalmente acertou em todos os dedos do pé esquerdo com um rifle calibre 22. Ficou na cama com o pé imobilizado e construiu mais miniaturas de avião do que ela jamais tinha visto alguém construir. Também se lembra de ter encontrado, mais tarde no mesmo ano, logo antes do Natal, um saco cheio de lâmpadas de Natal enfiado num armário. Hazel não tinha dinheiro para ter lâmpadas de Natal. E no entanto havia centenas de lâmpadas num saco, esperando para serem penduradas. Descobriu- se que Jim as tinha roubado das casas de outras pessoas.

O telefone tocou. A irmã de Clark, Sue, levantou-se para atender. Em um tom apressado de irritação mal reprimida, disse: “Desculpe, não estamos fazendo investimentos neste momento”. Pausa. Então, mais tensa: “Eu disse que não estamos fazendo investimentos”. Desligou. Ao voltar, explicou que as ações na Netscape que Clark lhes dera os deixara ricos. “Você tem que entender”, disse, “que quando isso aconteceu, éramos pobres. Eu estava a ponto de botar o gato na panela.” Imaginei que fosse uma piada, e ri. Imaginei errado. Ela tinha estado, de verdade, a ponto de botar o gato na panela. O IPO da Netscape salvara pelo menos uma vida.

A privação que Sue recordou tinha ocorrido havia apenas quatro anos. Agora, Plainview inteira pensava nela e em sua família como se fossem sacos de dinheiro

Page 403: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

353

ambulantes. As pessoas os tratavam de maneira diferente. Pediam empréstimos. Pediam dicas de ações. Perguntavam que tipo de empresa Jim ia fundar em seguida. Pediam para investir. Agora havia um fosso do tamanho de Clark, cheio de dinheiro, que separava sua família do resto de Plainview.

Ha/.el voltou a garimpar sua memória — e tinha muito material a garimpar. O mais arrepiante dizia respeito ao pai de Clark, que, aparentemente, bebia o dia inteiro e batia em Hazel a noite inteira. Hazel agüentou essa rotina durante anos: ela se tornou, de certa forma, normal. Esperava apenas que Charles — o pai de Clark — batesse em algum lugar em que as pessoas do trabalho não vissem os hematomas. Entretanto, Charles foi se tornando cada vez mais brutal, e Hazel divorciou-se dele quando Jim tinha catorze anos. Charles foi morar nas ruas de Plainview. De lá ele passou a aterrorizar a família com uma engenhosidade que não mostrara em nenhum outro aspecto da vida.

Um episódio permanecia frcsco na mente de Hazel. Ela olhou pela janela do escritório um dia e viu Charles em pé em frente a seu carro. Ele tinha levantado o capô e estava mexendo no motor. Ela saiu e gritou; Charles fugiu. Depois disso ela passou a estacionar em frente a uma oficina mecânica e pedia ao proprietário para vigiar o carro para ela. Um dia depois do trabalho, ela encontrou um homem da oficina esperando por ela. Ele lhe disse que acabara de ver um homem, parecido com seu ex-marido, mexendo na caixa de marchas do carro. Hazel abriu a caixa de marchas e encontrou lascas de aço. O sujeito da oficina a ajudou a removê-las.

Page 404: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

354

Acreditando terem resolvido o problema, Hazel foi com a filha bebê (Sue) visitar amigos em Amaril- lo. Na estrada o carro quebrou. Fosse quem fosse que tinha posto as lascas no motor, tinha também posto areia no óleo. Hazel gastou dois meses de salário para consertar o motor.

Naquela noite ela disse a seu filho o que tinha acontecido. Clark acabara de fazer dezesseis anos. “Jim levantou-se e saiu da casa”, disse Hazel, “e foi procurar o pai. Quando voltou estava chorando.”

“Nunca descobri o que aconteceu”, disse Sue, que claramente estava se sentindo excluída.

“Eu nunca soube o que aconteceu”, disse Hazel.“Mas vou lhe dizer uma coisa”, disse Sue. “Depois

daquilo meu pai nunca mais perturbou minha mãe de novo.”

Verificou-se que Hazel também se lembrava da tuba — como poderia esquecê-la? O instrumento de metal embaçado encostado no canto do quarto de hóspedes de Clark me parecera duplamente estranho, e eu disse isso. Era o único artefato de seu passado que ele achava que merecia ser mostrado, e para alguém tão obstinado e individualista como Clark, era um ins-trumento mal escolhido. A obrigação de um tocador de tuba é misturar-se à orquestra. Ninguém que quisesse se destacar da multidão escolheria uma tuba por sua própria iniciativa.

A tuba tinha sido uma surpresa para Hazel. “Um dia Jim chegou da escola com ela”, disse. “E sabia tocar um pouco. Ele costumava ir para o banheiro, onde podia ouvir a si mesmo melhor, e sentar-se na privada — com a tampa abaixada, sabe — e praticar. Eu nunca soube

Page 405: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

355

onde ele conseguiu a tuba. Acho que ganhou da escola. Eu nunca teria dinheiro para comprar instrumento nenhum.” Hazel sustentava uma família de quatro pes-soas com os 225 dólares por mês que ganhava do hospital, onde trabalhava como assistente de um médico. Depois de pagar as contas, ela tinha cinco dólares por mês para comida. Clark estava evidentemente bem consciente da situação desde muito jovem. Ele escolhera tocar tuba porque era o único instrumento fornecido de graça ao aluno pela escola. Hazel nunca soube disso, mas era verdade. O velho diretor da banda de Clark, O. T. Ryan, disse isso. Na escola de ensino médio de Plainview, os alunos que quisessem tocar flautas, clarinetas, trompetes e trombones tinham que comprar seus próprios instrumentos. Só os tocadores de tuba recebiam uma tuba emprestada da escola.

Não muito depois de ter chegado em casa aos prantos, voltando do que acabou sendo seu último encontro com o pai,Clark parou de tocar a tuba. Pouco depois ele foi expulso do colégio e foi embora da cidade. Depois disso, tornou-se um estranho para a própria família. Aparecia de vez em quando, e sua família agora rememorava alguma coisa a respeito de cada visita. Uma vez, não muito depois de ter ido embora, por exemplo, ele chegou em casa falando de computadores e mais nada. “Ninguém em Plainview tinha visto um computador, a não ser nos filmes”, disse Hazel. Outra vez chegou em casa com grande ambição financeira. “Quando Jim voltou da Marinha”, Hazel recordou, “disse ao tio que um dia ganharia 50 mil dólares por ano.” Sue deu um

Page 406: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

356

uivo de desprezo e bateu palmas: “Ele conseguiu ganhar um pouco mais do que isso!”

Hazel continuou: “Lembro-me que ele me disse quando voltou da Marinha: ‘Mãe, eu vou mostrar a Plainview’”.

Page 407: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

357

Epílogo

O sol brilhava forte sobre o mar claro e calmo. Quando Allan manobrou o Hyperion pelo estreito canal que levava ao porto raso na costa sul de Antígua, provavelmente sabia que seria demitido. Não muito tempo depois de o barco ter alcançado a doca, Clark dispensou Allan de suas funções como capitão. Clark não tinha um motivo em particular para substituí-lo. Allan simplesmente não estava preparado para ser chefe da tripulação de um veleiro informatizado. Quando, seis meses depois, o Hyperion navegou por baixo da ponte Golden Gate e entrou na baía de San Francisco, Jaime também iria embora. O capitão do Hyperion e metade de sua tripulação seriam novos.

Mas durante aquele último momento, Allan ainda era capitão de Jim Clark. Ele guiou o Hyperion com habilidade até a costa, sem nem ao menos olhar para a tela de computador abaixo da roda do leme. O computador oferecia toda sorte de informação útil: a

Page 408: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

358

profundidade do mar, a velocidade do barco, as mudanças sutis na força e na direção do vento. Allan bufou c disse: “Nunca olho para o computador — não confio nele”, c voltou à tarefa de guiar o barco até a costa. Entrou no porto devagar, e, ao fazê-lo, Simon, em pé na proa, deu um grito. Atrás de uma série de veleiros sem mastro estava o barco no qual Simon trabalhava quando Clark o seqüestrou para aprender tudo sobre computadores: Juliet. A essa altura, a tripulação sabia que o Juliet era a razão da existência do Hyperion — que fora depois de ter embarcado no Juliet na baía de San Francisco que Clark chegara à conclusão de que queria um barco igual a ele, só que maior e mais inteligente. O Juliet levara ao Hyperion, o Hyperion levara ao IPO da Netscape e este deflagrara a explosão da Internet. Evi -dentemente, a explosão provavelmente teria acontecido sem o Juliet, ou mesmo sem a Netscape. Mas duvido que tivesse ocorrido de maneira idêntica. A primeira visão do Juliet por parte de Clark foi uma dessas pequenas perturbações que alteram radicalmente o mundo que habitamos.

Agora o Juliet parecia pequeno e insignificante. A tripulação do Hyperion acenou para o pessoal do Juliet com o mesmo espírito com que a vencedora de um concurso de beleza abraça a segunda colocada. Clark acenou também. Desde que tivesse o maior mastro e o melhor barco, ele não se incomodava de participar. Era um bom vencedor: maus perdedores freqüentemente o são. A alegria de vencer diminuiu apenas levemente pela visão do barco a motor, muito maior, de Larry Ellison (este é um mundo curiosamente pequeno). Atracamos diretamente à sua direita, e fomos depressa

Page 409: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

359

para o avião de Clark.Mas, antes de irmos, desci à cabine de Clark.

Queria ouvir que conclusão ele tinha tirado da travessia — e se ele achava que o programa do barco podia virar uma empresa. Encontrei-o rondando uma planta de arquitetura. Estava bem aberta na mesa, ao lado do computador. Parecia muito a planta de um barco, eu disse, chegando por trás dele. É um barco, disse ele. Ele tinha pedido ao sujeito que projetara o Hyperion para traçar as linhas gerais de um veleiro que fosse uma vez e meia o Hyperion, ou pouco maior do que 250 pés [75 metros]. Já tinha falado com Wolter Huisman a respeito, e Wolter estava disposto a construí- lo, mesmo se isso exigisse erigir um novo galpão para abrigá-lo. A planta era o que Clark considerava seu “novo barco”.

Imagino que ele tenha me visto estremecer, porque imediatamente passou a explicar por que precisava pensar em construir um outro barco. Tinha empenhado os últimos cinco anos, e virado a economia americana de pernas para o ar, para pôr as mãos no barco em que havíamos acabado de atravessar o oceano Atlântico. “O Hyperion é um lindo barco”, disse, e no momento em que disse isso cu sabia qual seria a palavra seguinte. “Mas...”, seu dedo acompanhou as linhas de seu novo barco, que ainda não passava de uma fantasia. Pura possibilidade. Um sorriso se espalhou por seu rosto. O Hyperion era bacana, mas isto... isto era o barco perfeito.

Page 410: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

360

Agradecimentos

Andy Kessler e Fred Kittler me apresentaram ao Vale, e me ajudaram a fazer deste livro o que ele é. Jim e Nancy Rutter Clark agüentaram este escritor de um modo que ultrapassa qualquer senso de obrigação. Clark fez sua carreira correndo riscos que outros evitam. Correu mais um quando permitiu que eu o con-vencesse a me deixar entrar em sua vida. E sempre serei grato por isso. Também gostaria de agradecer a Pham Nguyen por verificar informações e a Chris Wiman por verificar impressões. F.ric Ver Ploeg corrigiu minha falta de instrução técnica; Paul Romer corrigiu minha ignorância em assuntos econômicos; Patricia Chui corrigiu minha falta de instrução pura e simples. Quais-quer erros que tenham deixado de perceber são obviamente culpa deles; com efeito, podem ser responsabilizados por qualquer coisa que o leitor venha a desaprovar. Um agradecimento especial a meu editor, Starling Lawrence, que navegou por rascunhos como

Page 411: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

361

navega pela vida, com grande elegância. É bom estar de novo a bordo.

Page 412: visionvox.com.br  · Web viewO operador de som da tv alemã caiu de joelhos, arrastou-se até a lateral do barco e vomitou. Ele não podia evitar; era como se alguém tivesse apertado

362