visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina...

431
MARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak eldorado Título original: Formación del Estado Nacional en América Latina Editorial Universitária, Santiago de Chile, 1969 Copyrigth Marcos Kaplan Reservados os direitos em língua portuguesa à Livraria Eldorado Tijuca Ltda. Revisão de provas de: Alberto A. Teixeira Capa: Lilian Impresso no Brasil Printed in Brasil 1974 LIVRARIA ELDORADO TIJ'UCA LTDA. Rua Conde de Bonfim, 422 loja K ZC-09 20. 00 Rio de Janeiro, GB Tels.: 264-0398 254-2615 Dedico este livro à minha filha Mariana, de pais argentinos, nascida no Chile, desejando que chegue a viver em uma América Latina independente, desenvolvida, unida, pátria de homens e mulheres livres, protagonistas de uma civilização mundial humanista. Sumario Introdução ................................................... ..1 Capítulo 1: Estado e Sociedade ................................... 9 1 Níveis e aspectos. Conflitos, integração e poder ...............9 2 .Natureza e conteúdo do Estado. O duplo caráter do Estado. Administração e burocracia. Capitalismo liberal e Estado. A exemplificação com um caso-limite: o bonapartismo ................... .......15 3. Características e funções. Institucionalização, legitimidade, consenso, legalidade. Coação social, educação e propaganda, organização coletiva. As relações internacionais. A dependência externa................. 32

Transcript of visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina...

Page 1: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

MARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak

eldorado Título original: Formación del Estado Nacional en América Latina Editorial Universitária, Santiago de Chile, 1969

Copyrigth Marcos Kaplan Reservados os direitos em língua portuguesa à Livraria Eldorado Tijuca Ltda.

Revisão de provas de: Alberto A. Teixeira Capa: Lilian Impresso no Brasil Printed in Brasil 1974

LIVRARIA ELDORADO TIJ'UCA LTDA. Rua Conde de Bonfim, 422 loja K ZC-09 20. 00 Rio de Janeiro, GB Tels.: 264-0398 254-2615

Dedico este livro à minha filha Mariana, de pais argentinos, nascida no Chile, desejando que chegue a viver em uma América Latina independente, desenvolvida, unida, pátria de homens e mulheres livres, protagonistas de uma civilização mundial humanista. Sumario Introdução .....................................................1 Capítulo 1: Estado e Sociedade ................................... 9 1 Níveis e aspectos. Conflitos, integração e poder ...............9 2 .Natureza e conteúdo do Estado. O duplo caráter do Estado. Administração e burocracia. Capitalismo liberal e Estado. A exemplificação com um caso-limite: o bonapartismo

................... .......15 3. Características e funções. Institucionalização, legitimidade, consenso, legalidade. Coação social, educação e propaganda, organização coletiva. As relações internacionais. A dependência externa................. 32

Capítulo II: O Estado e a Colonização Ibero-Lusitana..............43 1. O Império Espanhol. A. A metrópole. A Espanha entre o Islã e a Reconquista. O começo do Império. B. O sistema colonial. Natureza da monarquia metropolitana. A política econômica. O pacto colonial. Objetivos o instrumentos: a. O aparato administrativo colonial. b. Ocupação territorial, c. Urbano. d. Organização de uma estrutura sócio-econômica. e. Regulação e supressão do con- flito. F. A sociedade emergente...............................43 2. O Império Português. Semelhanças e diferenças. Organização politico-administrativa e Pacto Colonial. O ciclo mineiro. Centralização e descentralização . ......................

Page 2: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

................ 71 Capítulo III: O Processo de Emancipação.........................83 A etapa bourboniana: um reformismo insuficiente e tardio. Gênese da emancipação. As influências externas: a ação britânica. As revoluções norte-americana e francesa. O impacto na elite criolla urbana. Invasão napoleônica e início da emancipação. Natureza e desenvolvimento do processo emancipador. Brasil: de colônia a império......................83 Capítulo IV: Desintegração e Dependência.......................111 1. A desintegração na América Latina............................112 2. A dependência externa. Expansão e penetração da Grã-Bretanha. Incorporação e reestruturação. As conseqüências da dependência externa.....................................................116 3. Outras potências. Os Estados Unidos. França e Alemanha..........139 Capítulo V: Estrutura Sócio-Econômica, Poder e Estado..............152 1. O regime da terra..............................................154 2. A urbanização .............................................161 3. Dualismo estrutural ou desenvolvimento dependente, desigual e combinado? ....................168 4. Padrões culturais e ideologias...............................171 5. Estrutura e dinâmica do Estado nacional. Classes e frações dominantes e hegemônicas. As alianças. A ordem político-institucional: constituição e funcionamento. A institucionalização. Coação social. Educação e propaganda. Organização coletiva e política econômica. As relações internacionais . ....................................177 Capítulo VI. As Especilidades Nacionais..........................206 1 . Chile ....................................................206 2. Argentina ...............................................211 3. Brasil ....................................................222 4. México ..................................................229

Capítulo VII: Transição para a Crise ..................... 239 1. Modificações do sistema internacional. Monopólio e imperialismo. A crise bélica. Conseqüências da Primeira Guerra Mundial. A Revolução Russa. desafio e alternativas. A crise colonial. Decadência da Europa ................................................... 239 2. Mudanças gerais na América Latina. O deslocamento do centro internacional. As modificações do mercado mundial. Diversificação e diferenciação social. Clima cultural e ideologia. Equilíbrio do poder e Estado. Elementos para um balanço provisório...........

.... 258 3. Chile: frustração da mudança.................................275 4. Argentina-. os governos radicais.............................283 5. Brasil.- surgimento e crise da República Oligárquica....... 295 6. A Revolução Mexicana ................................. 301 Bibliografia ........... 317

INTRODUÇÃO A história da América Latina mostrou, como um de seus traços mais notáveis, a afirmação do intervencionismo do Estado em todos os níveis e aspectos da sociedade. Esta constatação refletiu-se numa literatura em parte científica e em parte polêmica em torno da análise e discussão da natureza, do papel e da estrutura do Estado. A importância do tema está longe de se reduzir ao âmbito da teoria. Ao contrário, está prenhe de implicações sociais, ideológicas e políticas de grande transcendência prática. O Estado é, na verdade, o ponto focal de toda a problemática de crise e transformação, como também um centro influente de decisão e agente potencial de mudança na América Latina. Entretanto, o esforço de captação e análise desta realidade não se fez acompanhar suficientemente, na América Latina, por outro

Page 3: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

de esboço e sistematização, sobretudo no que se refere a enfoque, esquemas analíticos e apresentação de um quadro mais ou menos global e coerente. De diferentes pontos de partida e orientações, várias influências teóricas e ideológicas confluíram para exercer um efeito restritivo. As correntes conservadoras e liberais omitiram ou subestimaram a análise do Estado e do setor público nos problemas do desenvolvimento e da mudança. O modelo europeu ocidental e norte-americano, distorcido até em sua realidade específica, é apresentado como pauta paradigmática de neutralidade e dispensabilidade do Estado. O liberalismo econômico interagiu com a ótica prevalecente nestas tendências doutrinárias. Ao considerar o Estado, estas correntes o negam corno realidade total, expressão sumária de tipo público institunalizado de todas as lutas, necessidades e verdades sociais e chave da hegemonia. Ou bem o enfocam de maneira abstrata e dissociativa, através da consideração hipertrofiada e excludente de alguns de seus aspectos ou níveis básicos, ou como poder independente, expressão da 2 Nacionalidade pura, livre de conflitos internos e com a realidade que ,o envolve, imune a toda determinação sócio-econômica concreta.

Outras correntes separam arbitrariamente a análise do Estado da que se faz de outras estruturas e processos fundamentais da sociedade global, sem prejuízo de certos reconhecimentos formais e abstratos de suas conexões. A tendência ao esquematismo histórico de tipo linear, de modo não-explícito mas tacitamente e de fato, escamoteia e anula a riqueza inesgotável do motivamento histórico, sua infinita complexidade, a diversidade de possibilidades e modalidades de desenvolvimento. Expressão deste fato é a ênfase dada por muitos cientistas sociais à mera constatação empírica, ao estudo do mundo social em fragmentos artificialmente. separados, através de ciências parceladas, justificadas primordialmente por sua eficácia operativa, cuja jurisdição exclusiva e excludente cada especialista e cada tecnocrata defende com zelo feudal. A afirmação e defesa do caráter incompleto e parcelado de cada ciência implica, como bem assinala Henri Ufebvre, o repúdio da totalidade do conhecimento e da realização do humano e o conseqüente obscurecimento de sua imagem real e possível. Isto não exclui a pretensão de algumas disciplinas e tendências como a cibernética, a teoria da informação, o estruturalismo, o funcionalismo - sem ignorar suas contribuições positivas - de organizar os aspectos fragmentários em totalidades sistemáticas. Na verdade, parcelamento e totalização aparecem, inversamente, nas estruturas e sistemas como momentos convergentes de uma dialética única, expressão dos interesses e necessidades dos grupos dominantes na economia, na sociedade e no Estado. Uma terceira dificuldade provém das versões oficializadas, burocráticas e estatais do marxismo. Estas contribuíram para desenvolver em seus seguidores e simpatizantes um espírito disciplinado e rígido que resulta extremamente negativo para a vida intelectual e para a pesquisa criadora. A procura, as pesquisas concretas, a confrontação e revisão livres e permanentes de análises e posturas são depreciadas e vistas com suspeita. Estes procedimentos são substituídos pelo dogmatismo, o autoritarismo suficiente, as afirmações absolutas, a crença em que nada resta no fundo para se descobrir e que tudo está dito e resolvido, a recitação ritual de fórmulas, a adoração de fetiches, o empirismo e o praticismo mais grosseiros. O marxismo de Marx e de seus melhores continuadores que é uma ferramenta fecunda, na medida em que seja utilizada sem restrições e exercitada e desenvolvida permanentemente, não como dogma, mas como método que não se detém sequer ante sua própria autocrítica, 3 INTRODUÇÃO sofre em

Page 4: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

conseqüência uma degradação assombrosa. Vê-se reduzido ao escolasticismo, a uma codificação de teses absolutas e mecanismos formais, à manipulação de conceitos, a formas irracionais ou magicas. Faz-se com que gire no vazio e se o usa para resolver problemas técnicos e contradições reais mediante jogos de prestidigitação. Uma pretensa realidade, afirmada em premissas dogmáticas, concebida apenas por critério puramente pragmático como o aspecto mais visível e fácil do imediato, o que se concretiza em instrumentos e se afirma momentaneamente, é oposta às críticas, hipóteses, aspirações, rebeldias, é uma reafirmação teimosa dos fatos que não se enquadram nos esquemas preconcebidos. Trabalha-se com base em um mecanismo que ignora a complexa trama de ações e relações que a análise deve buscar atrás de qualquer fenômeno social, e que subestima ou desconhece a inter-relação entre todos os aspectos e níveis da realidade. Não é estranho, então, que as análises sociológicas e políticas mais sérias e férteis das últimas décadas procedam de pesquisadores não- marxistas ou de marxistas independentes das limitações e frustrações impostas pelos instrumentos da esquerda oficial. Em relação ao problema de que trato, esta posição manifesta-se em uma visão super-simplificada do Estado concebido, sempre e em toda parte, como mero instrumento exclusivo da classe dominante, identificado com ela e sujeito passivamente à sua manipulação irrestrita. Em consideração aos perigos indicados, tratei de realizar este trabalho de um ponto de vista dinâmico, totalizador e concreto, através da combinação do enfoque histórico e da análise estrutural, em que cada um deles corrige as insuficiências e desvios do outro. Pretendo assim analisar o Estado - sua natureza, funções, organização e modo de operar - em relação ao processo histórico da América Latina, aos problemas da dependência, do desenvolvimento e da mudança, da estrutura geral e de poder da sociedade global. O tema foi por muitos anos objeto de minha preocupação o trabalho, e aparece como uma espécie de fio condutor em pesquisas, livros, artigos e cursos universitários. Está presente em meus estudos sobre a política petroleira argentina, sobre a crise do radicalismo e mais recentemente sobre o setor público, o desenvolvimento e a integração da América Latina. Estas linhas de pesquisa foram criando em mim a necessidade de me aproximar de uma tentativa de enfoque integrado, por níveis e aspectos e por âmbito regional. O Instituto de Estudos Internacionais da Universidade do Chile, por intermédio de Cláudio Véliz e Osvaldo Sunkel deu-me a oportunidade de trabalhar FORMAÇÃO DO ESTADO NACIONAL 4 durante um ano neste tema. O presente livro é o primeiro fruto desta oportunidade. Cabe aqui precisar melhor os objetivos alcances do trabalho e as limitações que necessariamente o afetaram. A pesquisa enfrentou vários problemas teóricos fundamentais: Que é o Estado na América Latina? Como surge e evolui nas diferentes etapas históricas? Quais são suas relações e ínterações com a estrutura global da sociedade, a dependência externa, o sistema econômíco, a estratificação social, a constelação de poder, a cultura o a ideologia? De que modo se organiza e opera? Quais são o conteúdo, a orientação e os limites da sua atividade?

Esta simples enumeração demonstra que a tarefa pretendida exige um enfoque interdisciplinar. Não pretendo, ao reivindicar esse enfoque, atribuir-me nem exercer uma competência equivalente e generalizada nas disciplinas que um trabalho deste tipo exige. A partir da Ciência Política como alvo essencial, procurei utilizar, na medida de minhas forças e do modo mais integrado possível, as contribuições metodológicas e práticas de outros ramos,

Page 5: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

a fim de realizar uma primeira aproximação a ser seguida por novas tentativas a cargo de equipes de pesquisadores.

Devo reconhecer, junto com essa constatação, que o projeto resultou excessivamente ambicioso. Dispus somente de um ano, no qual trabalhei sozinho, sem colaboradores ou facilidades materiais e instrumentais que seriam necessárias. O resultado é o estudo preliminar de uma problemática global, que exige de imediato um desenvolvimento maior e mais detalhado. No curso da pesquisa apareceram, naturalmente, questões e dificuldades que requerem novas investigações e que pude apenas anotar e ter presentes para futuros trabalhos.

Além disso, este estudo só implica a realização de pesquisas originais na medida em que continuam meus trabalhos anteriores e em curso. É parte de uma reflexão e uma busca em andamento, que delineiam cada vez mais a necessidade de estabelecer relações e hipóteses que sejam o ponto de partida para novos trabalhos sobre problemas específicos de países e períodos históricos determinados.

Não considero que a tarefa seja supérflua apesar das limitações apontadas. Como assinala Paul Barán, "na tentativa de compreender as leis do desenvolvimento tanto das regiões adiantadas como das atrasadas do mundo capitalista,, é possível, e mesmo obrigatório, abstrair as peculiaridades dos casos individuais e concentrar a atenção nas características comuns fundamentais. Não se concebe, de fato, nenhum trabalho científico em que esse método não seja aplicado... A abs- 5 tração dos atributos secundários de um fenômeno e a concentração na sua estrutura básica sempre foram os principais instrumentos de todo esforço analítico. Pouco importa que o "modelo" do que se estuda não se aplique totalmente a uni caso particular, não acomode adequadamente todas as suas peculiaridades e especificações. Esta, circunstância não representa mesmo censura válida ao método em si ou a seus resultados imediatos. Se o modelo mostra-se útil a seus objetivos, se consegue captar os aspectos dominantes do processo real, ele contribuirá mais para a compreensão deste do que qualquer quantidade de informações detalhadas, qualquer volume de dados particulares. Além disso, é apenas com a ajuda de tal modelo, é somente quando se tem bem claros na mente os contornos do "tipo ideal", que se pode atribuir significado aos dados e informações continuamente reunidos por pesquisas organizadas e que, com freqüência, servem como substituto para a compreensão de um fenômeno ao invés de servir como subsídios para entendê-lo".1

A perspectiva latino-americana que aparece no título exige também esclarecimentos. Não são poucos os especialistas que questionam ou recusam a possibilidade e a conveniência do enfoque global para toda a região considerada como um conjunto. Como apoio desta posição alega-se a diversidade que apresentam os países latino-americanos em relação à situação geográfica, tamanho físico, volume e composição da população, natureza e importância dos recursos naturais, grau de desenvolvimento, estrutura socio-econômica, tradições e tendências políticas, nível e homogeneidade culturais. Disto se deduz a inconsistência das afirmações globais e sua inaplicabilidade a certos países. Por um processo inverso, a singularidade de cada país chega a ser convertida em lei.

Page 6: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

Meu trabalho, ao contrário, parte da crença na possibilidade o utilidade de considerar os países latino-americanos como um conjunto. As diferenças entre as regiões de uma nação não impedem que, esta exista, nem que seja considerada como tal. Sem ignorar tudo o que distingue, separa e às vezes opõe estes países, é indubitável que eles mostram elementos de comunidade ou analogia, em relação à origem, trajetória histórica, composição étnica, língua, cultura, estruturas sócio-econômicas, sistemas de poder, localização e situação dependente no mundo, identidade de obstáculos e inimigos de sua mudança e progresso, necessidade e possibilidade de uma transformação integral o liberadora a cumprir em comum, contra a subordinação satelizante, o atraso material, a injustiça social, as formas polí- ______________ 1 Baran, Paul A. A economia política do Desenvolvimento econômico 6 FORMAÇAO DO ESTADO NACIONAL ticas opressivas, a imaturidade ou o obsoletismo em matéria científica, tecnológica e cultural. O projeto possível de transformação em comum também é parte da realidade, assim como o já efetuado, e, vigente, e a utopia foi mais de uma vez história virtual à espera da hora de sua realização. A ênfase excludente no específico de cada país, em sua singularidade supostamente intransferível e incomparável, pode servir, ao contrário, para a pretensão de uma excepcionalidade que encobre a satisfação com o existente; pata al)recusa do destino comum e da obrigação de solidariedade, o para ocultar as conclusões desagradáveis que podem surgir do estudo. comparativo em escala global.

O que importa é ter permanentemente presente e explicitar em cada momento oportuno o plano de generalização com que se trabalha e fazer de forma adequada as mudanças de níveis abstratos a outros mais concretos e restritos. O enfoque global não exclui e sim ajuda a tornar possível a formulação de tipologias de países e a realização de pesquisas sobre temas de maior especificidade espaço-temporal.

Entretanto, as limitações descritas levaram-me a restringir esta primeira aproximação ao exame de quatro casos nacionais: Chile, Argentina, Brasil e México. Estes são os que principalmente se têm presentes nas generalizações e aos quais também é feita referência individual, mais detalhada no curso da exposição.

O trabalho utilizou como base materiais bibliográficos (livros, artigos, estatísticas) existentes ou disponíveis, na medida do possível fontes originais, quando não, secundárias. Nestas condições, os elementos empíricos foram introduzidos de forma limitada, e sempre com a finalidade de exemplificação, esclarecimento ou argumentação. Na escolha e uso das fontes e dos fatos usou-se um critério seletivo, recorrendo-se a materiais que considerei mais valiosos para análise, comparação e interpretação, dentro dos limites impostos pelas disponibilidades reais, pelo caráter individual da pesquisa e pela inevitável subjetividade do autor. Do mesmo modo, dei preferência a fontes e materiais de origem latino-americana.

Não utilizei notas ao pé da página, que sobrecarregam inutilmente a leitura e, com freqüência, servem mais para gratificar o virtuosismo e a vaidade acadêmica do autor que para satisfazer funcionalmente uma necessidade real. Aliás, em muitos casos é difícil ou impossível imputar a um autor ou trabalho determinado a paternidade de uma contribuição teórica ou de uni achado prático. Ao contrário, eu quis evitar - na intenção e na aparência - o pecado INTRODUÇÃO 7 tão comum a muitos pesquisadores de silenciar ou escamotear

Page 7: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

deliberadamente as contribuições feitas por outros colegas. Para isso, transcrevi escrupulosamente no final deste livro a lista completa dos textos que usei diretamente na sua preparação.

Ao reconhecimento bibliográfico devo acrescentar o da dívida que tenho com muitos colegas e amigos pelo interesse, estímulo, sugestões e críticas de que, meu trabalho foi objeto nos últimos anos. As condições de isolamento em que normalmente trabalham os cientistas sociais na América Latina impediram que o original fosse totalmente conhecido e discutido por aqueles que eu assim desejaria. Contudo, não posso deixar de lado a menção daqueles que evidenciaram mais fortemente uma preocupação fraternal e generosa por minha tarefa: Sérgio Bagú, Antônio García, Horacio Godoy, Amilcar Herrera, Carlos Delgado, Carlos Fayt, Francisco Weffort, e o prematuramente desaparecido Milcíades Peña.

É sempre importante para um cientista social não confundir neutralidade valorativa e objetividade científica. A neutralidade valorativa é impossível. O cientista social é parte da realidade que observa, está envolvido nela, em seu devenir, estruturas e sistemas valorativos. Em comparação com o mundo puramente natural, o social tem um caráter relativamente amorfo e plástico, apresentando-se os fenômenos sob a forma de um continuam embora tenham realidade objetiva, formas e inter-relações próprias. Precisamente deste fato surgem dificuldades peculiares para a captação, análise e explicação dos fenômenos e processos. Todo cientista social necessariamente parte de teorias, hipóteses, esquemas analíticos e sistemas que em parte elabora e em parte assimila da tradição recebida e da sociedade de que faz parte, o que introduz em seu trabalho uma cota quase certa de subjetivismo. Trata-se, ao contrário, de buscar o maior grau possível de objetividade cientifica; de enfatizar permanentemente a consciência das próprias limitações, a vontade de as superar, o compromisso de as explicitar, a confrontação das suposições iniciais com os resultados da verificação empírica. Finalmente minhas intenções iniciais foram além dos limites reais também em outro sentido. O propósito de um livro único teve que ceder lugar à apresentação em dois volumes. O primeiro, que agora se publica, inclui, após a apresentação de um esquema analítico, a análise do processo desenvolvido desde o período colonial até a crise, de 1929, tomada como ponto-chave por encerrar o período de forma- 8 FORMAÇÃO DO ESTADO NACIONAL ção do Estado nacional na América Latina. O secundo volume em preparação, analisa a natureza, a organização e o funcionamento do Estado na etapa de crise estrutural que se prolonga de cerca de 1930 até nossos dias. Santiago de Chile, 31 de dezembro de 1968.

CAPITULO 1 ESTADO E SOCIEDADE A intervenção do Estado na economia, na sociedade, na estrutura de poder e na cultura não é um fenômeno recente ou esporádico, mas antigo e constante nas sociedades humanas desde um passado relativamente remoto. Foi, inclusive, sugerida a possível existência de uma lei histórica de crescente extensão da atividade pública sob formas estatais. O crescimento desta atividade não é casual e se poderia sustentar também que o intervencionismo do Estado em todas as esferas, principalmente sócio-econômica, é quase inerente à sua própria essência. Para analisar melhor o fenômeno, tanto em seu significado global como em suas manifestações específicas na América Latina, é imprescindível situá-lo num esquema teórico. 1. NIVEIS E ASPECTOS As estruturas

Page 8: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

sociopolíticas são expressões e formas mais ou menos crstalizadas de uma realidade móvel, complexa e conflitante. A realidade social é o processo histórico, sem finalidade predeterminada nem estação de chegada. Realidade a processo, história e sociedade, não existem fora dos homens, de suas necessidades, relações e obras. São manifestações e concreções sempre mutantes do devenir total do ser humano, de sua produção e autoformação, através de seus laços com e de sua ação sobre a natureza e os outros homens. Mas, mesmo o decisivo sendo as totalidades viventes em movimento, este conteúdo real compreende níveis diferentes e aspectos inter-relacionados. Ele toma formas, equilíbrios relativos, auto-regulações e funções; organiza-se em estruturas e sistemas de estabilidade provisória que, embora partindo de um devenir que permanentemente os trabalha, modifica o destrói, mantêm-se no tempo, agem e reagem, e devem, também, ser estudados em si mesmos. A análise deve focalizar as for- 10 FORMAÇÃO DO ESTADO NACIONAL mas, estruturas e sistemas em superfícies ou níveis mais profundos, sem perder de vista que se referem a estratos, aspectos ou enfoques da realidade dialeticamente inter-relacionados, parte de uma totalidade móvel que os transcende e que o esforço científico deve devolver. A realidade social é expressão da totalidade de forças e atividades humanas e dos processos e estruturas por elas gerados. As estruturas sociais resumem a totalidade dos processos sociais e são definidas por eles, aos quais também dão forma e condicionam. O conjunto de processos e estruturas de uma sociedade determina o seu grau e modalidades de desenvolvimento. A unidade de estruturas e processos numa sociedade o período determinado permite e exige ser captada e analisada em função de diferentes níveis e aspectos.

O primeiro aspecto ou nível é o grau de desenvolvimento das forças produtivas, o tipo de relação humana com a natureza e a intensidade da potência humana sobre ela. As forças produtivas compreendem: as condições naturais, a divisão de trabalho social, a técnica. Seu desenvolvimento proporciona os fundamentos do ser social do homem, as modalidades de sua consciência e de sua cultura, o impulso para as mudanças fundamentais e duradouras.

Das forças produtivas fazem parte, em primeiro lugar, os elementos da natureza ou dela mais próximos.- o território, a população em alguns aspectos. O território compreende as condições físicas e o enquadramento espacial da atividade humana. Aparece como quadro delimitador, determinante e condicionante de toda a sociedade, de sua estrutura e funcionamento e de suas relações com outras sociedades.

O fator natural não atua rigidamente sobre a atividade humana e a sociedade global, nem sobre qualquer de seus níveis e aspectos. Não opera de modo mecânico ou automático, nem exerce um determinismo onipotente. De fato, oferece uma gama de possibilidades, resistências e opções, em função das quais as atividades humanas socialmente organizadas agem, reagem e operam através do trabalho, do instrumental e da cultura, modificando o próprio quadro natural. Através da história este quadro converte-se, cada vez mais, no resultado da ação do homem e não de condições físicas preexistentes. Apresenta-se como um conjunto de fatos sociais que se cria e modifica por meio de uma sociedade.

A população é parte integrante das forças produtivas, como dado natural e como material humano da sociedade. Assim abrange quantidade, aptidões biológicas e; mentais, nível

Page 9: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

técnico, divisão do tra- 11 ESTADO E SOCIEDADE balho, distribuição por grupos ativos e passivos, distribuição no espaço e em setores da economia, por sexo e idade.

A tecnologia exige consideração especial na análise das forças produtivas e dos sistemas globais. A espécie humana e suas sociedades sobreviveram e desenvolveram-se pela invenção, e melhora de um equipamento extracorporal, artificial e isolável, que os homens usam e abandonam arbitrariamente, e através do qual satisfazem algumas de suas necessidades fundamentais. Este equipamento, que diferencia o homem das outras espécies terrestres, permitiu-lhe atuar no e reagir ao meio natural, ajustar-se a esse meio e ajustá-lo a suas necessidades, transformar o mundo e, ao mesmo tempo e pelo mesmo processo, transformar-se. A tecnologia é concebida como o conjunto de objetos e meios, predominante mas não exclusivamente materiais, elaborados ou transformados pelos homens para dominar o atuar sobre o mundo natural e social. Constitui uma obra humana para a qual confluem todos os elementos da natureza e da sociedade. A tecnologia, o instrumental no sentido mais amplo da palavra, cristaliza, incrementa e prolonga a capacidade produtiva do homem. Permite a aquisição, conservação, aumento quantitativo e qualitativo dos elementos materiais e espirituais indispensáveis ao sustento, à segurança e desenvolvimento da sociedade e dos grupos e indivíduos que a compõem. Constitui uma variável fundamental ao processo de mudança de toda sociedade, e exerce uma influência determinante sobre todos os seus níveis e aspectos. Entretanto, a tecnologia não é uma variável absolutamente autônoma, mas tem um caráter essencialmente social; produto de uma sociedade, está determinada e condicionada por tudo que nela ocorre.

Este grau de domínio humano sobre a natureza e suas modalidades produz-se e funciona através e dentro de determinadas formas de organização e divisão do trabalho, funções e grupos. Este domínio é expresso sobretudo nas sociedades mais ou menos desenvolvidas e diversificadas, em complexas e móveis estruturas de classe, em modos específicos de dotar recursos e de produzir, distribuir, apropriar e usar bens, serviços, rendas, prestígio e poder, em formas de exploração e dominação. O conjunto destas formas constitui o segundo aspecto ou nível-. as relações de produção.

O grau de desenvolvimento e estruturação própria das forças e das relações de produção, assim como as combinações e interações entre elas, proporcionam as bases e a trama das formações sócio-econômicas, que se sucedem na história humana- sociedades primitivas, "sociedades hidráulicas" ou despotismos orientais, escravismo,

FORMAÇÃO DO ESTADO NACIONAL 12 feudalismo, capitalismo, socialismo, formas mistas ou aberrantes, seguindo geralmente cada uma um cicio de nascimento, crescimento, apogeu, crise intermediária e crise final. (Estas classificações têm caráter relativo e aproximado e não justificam o evolucionismo retilineo e mecânico tipo século XIX ou a "postulação de etapas ordenadas em séries inevitáveis".)

Este esquema analítico torna-se incompleto sem a introdução de um terceiro nível ou dimensão. Uma superestrutura, constituída por formas e hierarquias de poder, instituições sociais e políticas, o Estado, o Direito, as ideologias e a cultura, expressa os sistemas de

Page 10: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

relações humanas estabelecidas em um determinado grau de desenvolvimento das forças produtivas. Elabora, codifica, sanciona, justifica e encobre estas relações. Mais adiante se fará referência detalhada aos principais elementos da superestrutura. Cabe aqui destacar esquematicamente só o que se refere às ideologias.

A existência, a natureza e as funções das ideologias acham-se relacionadas aos fatores e circunstâncias seguintes. A natureza social do homem, sua aptidão para a linguagem e para o pensamento abstrato contribuem para explicar o surgimento de idéias e palavras que as expressam, objetos não-perceptíveis fisicamente, mas que, aprovados socialmente e adotados por grupos e indivíduos, adquirem realidade própria, inspiram ações e abstenções, constituem um aspecto decisivo da realidade social.

Os homens estão divididos em classes, grupos, povos, nações. Cada uma destas divisões tem interesses particulares e limitados, entre os quais surgem e subsistem contradições, conflitos e antagonismos. Nas lutas de grupos utilizam-se instrumentos cuja eficácia depende do disfarce dos interesses e objetivos, da atribuição de uma aparência de totalidade e universalidade.

A consciência de grupo ou individual não pode captar a realidade global por motivos psicofísicos e sociais. Deve partir de aspectos parciais, aos quais tende a atribuir uma totalidade abstrata e fictícia.

Assim, as ideologias aparecem como interpretações, transposições, representações refratadas ou invertidas da realidade (natural, histórico-social, cotidiana), extrapolando-se e projetando-se sobre ela. São elaboradas por indivíduos e grupos especializados, mas a partir de e no quadro da sociedade global e das lutas entre classes e grupos. São escolhidas ou admitidas por grupos dominantes que lhes outorgam primazia, ou por grupos dominados que as utilizam para se submeter ou para contestar a ordem estabelecida.

ESTADO E SOCIEDADE 13

Através dos grupos que as elaboram, assumem e impõem, as ideologias pretendem coerência e generalidade, tendem à sistematização, podem-se transformar em visões ou concepções do mundo. Apresentam, assim, tanto do ponto de vista genético como do lógico, um continuam constituído por: representações puramente ilusórias, cosmogonias, teogonias, mitologias, superstições, religiões, filosofias, morais, direitos, ideais artísticos, até as zonas cinzentas que já começam a entrar no terreno das ciências físicas e humanas.

Page 11: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

As ideologias são multifuncionais e ambíguas em si mesmas, em seu modo de agir e em seus resultados. Combinam em proporções variadas elementos reais, conceitos e conhecimentos verdadeiros com outros ilusórios e falsos.

As ideologias são produto e parte da realidade social e humana, em ação e reação com ela, impensáveis fora dela. São, de modo geral, necessárias e úteis para a sociedade, grupos e indivíduos. Conferem significado e orientação à sua existência e atividade. Mantêm a coesão dos sistemas sócio-econômicos, permitem e lubrificam seu funcionamento regular e eficiente, promovem sua estabilidade e desenvolvímento. Sua realidade e potência estão determinadas e condicionadas pelo êxito no cumprimento destas funções, pelo seu grau de adequação relativa à realidade do mundo e da sociedade, e por sua aceitação e adoção por alguns ou todos os grupos sociais.

Ao mesmo tempo que produtos da praxis e realidade sociais, as ideologias são motores e pontos de partida para novas decisões, atividades e atos, para a imposição de valores e condutas. Voltam à praxis e à realidade, integram-nas, contribuem para lhes dar forma e modificar. As ideologias agem sobre a consciência, mistificando e bloqueando; persuadindo e coagindo. Explicam e justificam a ordem vigente e a distribuição de poder na sociedade. Ajudam a proteger o sistema de produção, distribuição estratificação e dominação. In- tegram as contradições mediatizando-se e mascarando-as e assim, as tornam aceitáveis. Contribuem para manter o conformismo e criar e interiorizar a legitimidade e o consenso.

Deste modo, as ideologias expressam a estrutura social e o sistema de dominação que dela surge e a mantém. Por isso mesmo não são onipotentes nem eternas. Como o sistema em seu conjunto, estão ameaçadas pelo devenir, são instáveis e frágeis, estão sujeitas a ciclos de nascimento, desenvolvimento, crise e morte. Novos grupos, interesses e tendências podem criticá-las e negá-las na teoria e prática, e opor-lhes suas próprias alternativas ideológicas. Uma ideologia que deixa de corresponder às necessidades e exigências de desenvolvi-

14 FORMAÇÃO DO FSTADO NACIONAL mento de uma sociedade o de seus grupos mais dinâmicos e poderosos termina por se deteriorar, perder eficácia e desaparecer. Entretanto, este desajuste pode perdurar por lapsos históricos prolongados, criando obstáculos à viabilidade dos processos de mudança.

Forças produtivas, relações de produções, superestruturas não são mais que outros níveis ou dimensões do processo total, distintos mas ligados, com indepedência relativa mas influência recíproca, em interação constante embora não-mecânica. Um mesmo tipo e um nível similar

Page 12: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

de desenvolvimento técnico-econômico não exercem uma determinação rígida, mas um condicionamento relativamente amplo e flexível sobre as relações de produção, podendo gerar formas de estruturação sócio-econômica muito diferentes. Estas também não exercem um condicionamento estrito e linear sobre as superestruturas o formas institucionais. Os três níveis ou aspectos sofrem influencia dos fatores e traços peculiares ao desenvolvimento histórico de cada país. Elementos de um nível ou dimensão aparecem em outros níveis. Elementos de níveis diferentes combinam-se em determinadas relações e proporções de modo coerente e relativamente estabilizado; localizam-se no tempo e no espaço, formam estruturas e sistemas. Algumas considerações adicionais talvez permitam um melhor esclarecimento deste esquema analítico, sobretudo da natureza e junção da superestrutura, e um enquadramento mais adequado da análise do Estado.

CONFLITO, INTEGRAÇÃO E PODER Os homens socialmente considerados fazem sua história, total ou parcialmente, em condições alheias à sua escolha, através de uma combinação de lucidez e cegueira, sem saber como nem por que, de forma a inconsciente, irracional e desorganizada. (Não obstante, através do processo histórico o elemento consciente ou racional tende a se incrementar e a prevalecer sobre os espontâneos o ilusórios). Como conseqüência os resultados e produtos da ação dos homens alienam-se, escapam à sua vontade, consciência e controla, tomam formas abstratas (dinheiro, capital, maquinarias administrativas, etc. ), que parecem assumir existência independente, tornam-se realidades soberanas e opressivas, voltam-se contra os indivíduos e os arrastam a destinos inumanos. Neste quadro caracterizador e condicionante, toda sociedade é por essência móvel, heterogênea e contraditória, sustentando uma tensão permanente entre as forças e tendências de conflito e desagregação e as forças de, coesão e integração.

ESTADO E SOCIEDADE 15

Estabelecem-se e mantêm-se, entre os homens, relações sociais; formas de divisão do trabalho e das funções e hierarquias de riqueza; poder e prestígio, contradições e conflitos, lutas de classes, grupos e individuais. Sobre a base e a partir de graus e formas de desenvolvimento da técnica, produção, troca o apropriação, cria-se em cada lugar e em cada etapa uma rede de relações interindividuais, um conjunto de grupos interligados e interatuantes, superpostos e hierarquizados, que assim integram um sistema de estratificação social. Entre estes grupos, as classes têm importância fundamental.

A estratificação social expressa sempre uma estrutura de classe dinâmica e complexa. Estrutura e processo interagem permanentemente na configuração e funcionamento da estratificação social. Uma mesma base econômica pode oferecer gradações e variações consideráveis nas formas de estratificação. Estas raramente apresentam uma diferenciação e oposição entre, duas classes únicas, e sem uma multiplicidade de grupos e estratos sociais

Page 13: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

superpostos e confrontados. Não existem classes absolutamente homogêneas, a não ser, talvez, em sociedades pouco desenvolvidas. Cada classe compreende estratos ou camadas diferentes, com interesses por, vezes diversos e até opostos, com possibilidades de conflito. Quanto maior é o número de classes, estratos e camadas, maiores são as complexidades e variações de sua composição interna, de suas ações e inter-relações. Aos antagonismos essenciais entre classes básicas unem-se e ligam- se as contradições secundárias entre camadas e estratos de uma mesma classe. As classes fundamentais podem-se aliar a outras em declínio ou ascensão, a estratos e camadas, segundo seus próprios interesses - circunstanciais e permanentes - gerando ampla escala de combinações possíveis.

Os conflitos de classe constituem fator essencial do processo sociopolítico, mas não têm sempre papel exclusivo ou predominante, nem conferem necessária e fatalmente um caráter secundário ou derivado a outros tipos de conflito que podem, ao contrário, adquirir importância considerável. Este é o caso dos conflitos entre grupos territoriais (nações, regiões), corporativos, ideológicos, religiosos o raciais, lutas entre clãs, disputas pessoais. Estes tipos de conflito podem ser expressão derivada ou encoberta de lutas de classe ou adquirir uma realidade própria relativamente autônoma que influi nestas lutas ou, ainda, constituir uma combinação das duas possibilidades.

A diversidade e mobilidade de, classes, estratos, camadas e grupos, diferentes ou antagônicos, não excluem mas supõem, em cada sociedade ou etapa histórica, uma divisão em homens que mandam

FORMAÇÃO DO FSTADO NACIONAL 16 e outros que obedecem, relações de autoridade e acatamento, um tipo de polarização que deve ser sempre buscado como eixo da análise. A contradição básica produz-se entre classes dominantes e classes dominadas. Nas primeiras há sempre grupos hegemônicos e grupos subordinados. Por sua vez, as diferentes camadas ou setores das classes dominadas unem e desunem formas de coincidência, cooperação e conflito entre si e com os grupos das classes dominantes.

Divergências e oposições, tensões e conflitos de força, de interesses, e aspirações. de sistemas de valores e ideologias se manifestam prolongam e resolvem através de esforços mais ou menos orgânicos e sistematizados, que tendem a manter ou modificar a configuração estrutural da sociedade, as formas de hierarquização, os modos de produzir e distribuir recursos e rendas, os mecanismos e modalidades de exploração e domínio dos grupos entre si.

As classes e os grupos recorrem em suas lutas a todos os meios eficazes e disponíveis: violência física, riqueza material, número e organização, elaboração e manipulação da cultura,

Page 14: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

da ideologia e da informação. Estas armas de combate, no sentido mais amplo do termo, são sempre utilizadas dentro de um quadro mais ou menos deliberado e elaborado, como parte de uma estratégia geral, que também compreende e determina táticas parciais. As estratégias e táticas, com suas variações e alcances (modo de utilização e combinação de recursos materiais e humanos, luta aberta ou disfarçada, manutenção, modificação parcial ou destruição do sistema vigente), influem permanentemente no processo e nas estruturas, mantêm-nos em essencial ou transformam-nos mais ou menos em profundidade. Podem, inclusive, afetar gravemente a coesão e a própria existência de uma sociedade (guerras civis, crises, de dissolução).

As classes e grupos não podem deixar de lutar pela distribuição da riqueza e do poder. Entretanto, ambos não deixam de constituir ao mesmo tempo uma unidade, a sociedade global, baseada na divisão de funções e tarefas complementares. Em maior ou menor grau, estão basicamente interessadas na conservação das bases mínimas da estrutura social como pré-requisito para a sua própria sobrevivência e desenvolvimento, assim como da vida civilizada.

Em qualquer sociedade propõe-se e deve-se solucionar, de um modo ou outro e em permanente reajuste dinâmico, o problema de como fazer coexistir a equação grupo hegemônico-classes dominantes-classes dominadas, geradora de todo tipo de tensões e conflitos, com as necessidades de coesão e estabilidade da sociedade global. A isto se acrescenta outro fato de importância fundamental. Mesmo

ESTADO E SOCIEDADE 17 mo no caso de sociedades primitivas ou relativamente simples, a ordem básica, a hierarquia classista e grupal, a coesão interna da sociedade não se, podem constituir ou manter pelo mero exercício da violência patente de um grupo sobre outro ou outros. A coação física deve ser complementada pela obtenção de um certo grau de aceitação ou consentimento por parte dos dominados. Já o predo- mínio de uma classe ou fração dominante obtém-se e pode ser explicado por dois tipos de elementos. De um lado agem os elementos de coação, repressão, violência, a força material sem disfarces, que deve atuar como recurso de reserva para momentos excepcionais de crise ou para indivíduos e grupo recalcitrantes. De outro, temos a ação permanente através de uma concepção geral do mundo e da existência elaborada definitivamente pela classe ou fração dominante e imposta ao resto da sociedade, expressa e atuante por meio da religião, ética, sistemas de valores, estilo de vida, costumes, gostos, senso comum. Em outras palavras, através da direção política, intelectual e moral, a hegemonia, que permite criar e conservar o consentimento, a adesão ativa dos dominados e subordinados ao tipo de sociedade em que vivem.

Luta e integração, violência e consenso não são fenômenos separados, mas momentos diferentes, embora estreitamente ligados, de um só processo geral. Nesta perspectiva aparece

Page 15: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

como variável fundamental o problema do poder, concebido como capacidade de uns para coagir, influir e dirigir outros, a fim de tomar e impor decisões sobre as pessoas e as coisas, suas hierarquizações, combinações e modos de utilização e desfrute. Em qualquer sociedade que já tenha superado os estágios mais primitivos, existem relações sociais assimétricas entre grupos e indivíduos, falta de igualdade e reciprocidade, contradições e conflitos. A sociedade está em equilíbrio instável e acha-se permanentemente ameaçada pela entropia, desordem e desagregação. Não se pode manter unida nem subsistir unicamente através de unia conformidade automática de seus membros, surgida da sujeição ao costume ou à norma tradicional. Um poder supremo, nascido das desigualdades e confrontos, deve defender e conservar a sociedade, a partir e contra suas próprias contradições e debilidades. Deve, assim, constituir uma forma específica e finalmente decisória de ordenação das relações entre as classes e de imposição da vontade de um grupo ou fração hegemônica sobre outras classes dominantes subordinadas e sobre as classes dominadas, mediante a combinação específica de luta e integração, de coação e consenso. Assim toda análise concreta deve responder sempre a uma série de perguntas básicas e interligadas- - quem exerce o poder? -

18 FORMAÇÃO DO ESTADO NACIONAL quem é representado e beneficiado? - de que modo? para quê? Este poder de decisão supremo corresponde nas sociedades históricas mais evoluídas ao Estado.

2. NATUREZA E CONTEODO DO ESTADO

Ao contrário do que parece resultar de certa ciência política etnocêntrica e cronocêntrica, atingida por um "provincialismo ocidental e industrial" (Raymond Aron), conquistas antropológicas recentes permitem presumir que o Estado não é historicamente equivalente à organização política autônoma. É uma de suas manifestações históricas, específica e relativamente recente. O fenômeno político não está ligado a sociedades desenvolvidas, nem à existência de um apa- rato estatal. Todas as sociedades humanas, mesmo as mais primitivas ou atrasadas, produzem o fenômeno político, seus processos e estruturas, que desenvolvem uma diversidade considerável de manifestações. As sociedades primitivas ou atrasadas não são "unanimistas", com consenso obtido mecanicamente, nem constituem, sistemas equilibrados, pouco ou nada afetados pela entropia.

Neste tipo de sociedade, a diferenciação, especialização e divisão de funções geram desigualdades e privilégios de riqueza, prestígio e influência entre grupos e indivíduos, que se organizam em hierarquias. As desigualdades e privilégios surgem das relações econômicas, da idade, sexo, parentesco, sucessão, tarefas religiosas e militares. O aparecimento de confrontos e disputas de interesse, de formas de dominação e coalizão, de estratégias e táticas de luta, configurando uma vida política (politics), deve-se à existência dessas desigualdades. Os fatores mencionados, geradores das diferenciações ' atuam como circuitos pré-estatais, criadores e

Page 16: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

explicativos das relações de mando e obediência e dos mecanismos de governo, que entretanto não chegam a se constituir em poder estatal centralizado. São relações reais, não formalizadas, de mando e obediência, tipos de ação que tendem a conseguir e garantir - de fato e de direito a direção dos assuntos públicos (policy) e a organização de um go- verno da sociedade (polity). Estas relações já se fazem acompanhar por formas ideológicas de interpretação e justificação da vida e da estrutura políticas. Assim, pode-se admitir a existência de um espectro ou graduação histórica que abrange: sociedades acéfalas, segmentarias, de governo mínimo, de governo difuso, de chefatura. No extremo deste continuum pode emergir o Estado propriamente dito.

ESTADO E SOCIEDADE 19

O Estado não é expressão de uma racionalidade, transcendente ou imanente à sociedade, irias seu produto, seu modo de expressão e organização, sua síntese oficial e simbólica. Historicamente, parece ir emergindo e se impondo a partir do momento em que uma sociedade alcança certo grau significativo de desenvolvimento. Supõe a preexistência de condições em que a divisão de trabalho e funções, a gama de conflitos entre, classes o grupos, a luta pelo controle e exercício exclusivo do poder levam à cisão da sociedade em unidades separadas, em interesses particulares e interesse geral, o público o privado, a comunidade e o indivíduo, com a emergência e agravamento de antagonismos irreconciliáveis e violentos e de; ameaças externas que atentam contra a coesão e a própria existência da sociedade. A partir destas condições e baseado nelas, o Estado parece surgir o se desenvolver quando a sociedade de alguma forma perde sua iniciativa e poderes, abandona a gestão de seus interesses comuns, transmite-os - por debilidade espontânea ou imposição coativa - à instituição governamental. O Estado assume - emparte como pretensão e em parte como realidade - a consciênncia, racionalidade, o poder organizador e coesivo, a representatividade do interesse geral, perdidos ou de que carecem a sociedade e os grupos particulares que a integram. Pretende organizar, sistematizar, totalizar a sociedade. Expressa, institui e conserva os conflitos que lhe dão origem e sentido, atenuando-os e mantendo-os em ,compatibilidade com a ordem social básica. Apropria-se do poder da sociedade e monopoliza a força coletiva. Transforma,' os interesses comuns da sociedade nos chamados interesses gerais, que define qualifica e administra a seu modo, subordinando os interesses particulares dos grupos e indivíduos aos das entidades governamentais (burocracia, classes e frações dominantes) e dos grupos humanos que as personificam e controlam. Desta forma, pode acumular e estender continuamente amplos e complexos poderes de coação, decisão política e ideologia. Pode, do mesmo modo, aliar às funções sociais necessárias - em um momento específico ou permanentemente - uma série de excrescências que permitem ao Estado, aos grupos hegemônicos, e dominantes e à burocracia utilizar o poder para seus próprios fins, inclusive contra a sociedade em seu conjunto e contra algumas de suas classes fundamentais ou secundárias.

Page 17: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

O DUPLO CARÁTER DO ESTADO

Por um lado, o Estado é sempre o em última instância a expressão de um determinado sistema social e o instrumento das classes e

FORMAÇÃO DO ESTADO NACIONAL 20 frações hegemônicas e dominantes, correspondendo a seus interesses e as expressando e consolidando, por se estruturarem ambos em um conjunto objetivo e unificado, a sociedade global. À medida que o Estado surge e desenvolve-se, a dominação e a exploração aparentes e violentas de uma ou várias classes por outras são substituídas por formas mais moderadas e organizadas, mais legalizadas e eficazes. Segundo este ponto de vista, o Estado nunca serve exclu- sivamente à sociedade em seu conjunto nem aos interesses gerais.

Por outro lado, entretanto' raramente ou nunca existe uma identificação absoluta e incondicional ou subordinação mecânica e instrumental entre o Estado e uma classe; todo Estado deve sempre responder a certo grau de necessidades e interesses gerais da sociedade. Em maior ou menor medida todo Estado deve em parte pretender e em parte atuar, como árbitro, encarnação e realização da ordem, justiça e bem comum. Isto se explica pela ocorrência convergente das circunstâncias seguintes.

Em primeiro lugar, as formas superestruturais, e muito especialmente o sistema político-institucional e o Estado, não constituem meros reflexos ou epifenômenos das estruturas e dinâmicas sócio-econômicas. Tomam forma sobre a base e no quadro destas estruturas e como resultado de tais dinâmicas estão sob seu condicionamento em sentido amplo. No entanto sempre conservam em maior ou menor grau sua realidade própria, uma relativa margem de autonomia, capacidade mais ou menos independente de evolução, inovação e influência sobre o sistema econômico e de estratificação social, a cujas modificações podem inclusive sobreviver. Entre os fatores que contribuem para a autonomia e sobrevivência das instituições políticas, sobretudo do Estado, pode-se mencionar: o efeito acumulativo dos mecanismos de rotinização e acomodação à ordem vigente e à vida cotidiana em todos os níveis; o temor generalizado da mudança, instintivamente percebido como incerteza e ameaça; o atraso da consciência em relação à realidade, dificultando a captação do obsoletismo e da disfuncionalidade de sistemas e instituições. Como conseqüência da sua independência relativa e capacidade de sobrevivência, não só superestruturas político-institucionais pode subsistir, parcial ou totalmente, além das próprias bases sócio-economicas, como também pode-se produzir uma sobreposição de velhas e novas formas e organizações de um mesmo sistema de poder. Isto atua como causa ou reforço de disfuncionalidades, conflitos e mecanismos de estabilização, e pode alimentar a margem de manobra autônoma em favor do Estado.

Page 18: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

ESTADO E SOCIEDADE 21

Em segundo lugar, para que o Estado possa obter um mínimo de legitimidade e consenso para si mesmo e para uni sistema de e distribuição desigual da riqueza e do poder, é indispensável que em parte pretenda aparecer e em parte funcione como instância relativamente autônoma, independente e superior a todas as classes e grupos, e tenda assim a se constituir e agir como força dominante da sociedade, mais que mero instrumento de uma classe dominante. Sistema dinâmico que faz parte de uma sociedade global também em transformação, o Estado deve recorrer permanentemente a estratégias que mantenham sua própria supremacia e a do grupo ou grupos que o controlam. Ao mesmo tempo, o Estado possui ou se relaciona com elementos fracamente integrados, está sujeito a tensões e antagonismos, é afetado pelas estratégias de grupos ou indivíduos. As funções de mediação que ele assume fazem com que os grupos que as exercem não possam nunca se liberar totalmente do controle da sociedade e seus grupos componentes e devam administrar é fortalecer seu poder e seu prestígio, representar papéis, às vezes sacrificar as próprias condições de sua primazia. O Estado pode estar controlado por apenas uma fração ou frações de uma classe ou bloco dominante. A disputa e os conflitos entre diferentes frações de classes dominantes podem facilitar a pressão vitoriosa das classes dominadas, o aumento da sua capacidade de influência e negociação, a ocorrência de medidas que favorecem. De modo geral, o Estado deve, em diversas etapas e conjunturas, arbitrar entre os grupos componentes das classes dominantes e entre estas e algumas das dominadas ou a sociedade como um todo, quando rivalidades, conflitos ou tendências destrutivas ameaçam a estabilidade ou a existência do sistema global.

ADMINISTRAÇÃO E BUROCRACIA

Em terceiro lugar, o papel real do Estado é inseparável daqueles que efetivamente o encarnam, dão vida e administram, ou seja, não só os dirigentes políticos propriamente ditos, mas também todo o corpo burocrático. Em todo sistema político o governo utiliza duas ordens de ação, política e administrativa, que se diferenciam e associam em grau diferente. A ordem de ação política situa-se ao nível da formulação e execução das decisões de interesse da sociedade global e suas principais divisões e componentes; define-se pelo poder; expressa o confronto de grupos e indivíduos em competição e os resultados provisórios desta. A ordem de ação administrativa colo-

22 FORMAÇÃO DO ESTADO NACIONAL ca-se ao nível da organização e aplicação das decisões tomadas sobre assuntos públicos; define-se pela autoridade, a organização formalmente hierarquizada e a submissão a regras relativamente exatas.

Page 19: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

Entre a sociedade civil e o poder político como sistema de decisão, insere-se assim a administração como instrumento do segundo e sistema de transmissão, teoricamente heterônoma, submetida às classes dominantes e a grupos particulares, servidora de seus interesses, simples meio para o alcance de objetivos. Entretanto, em determinadas condições históríco-sociais, a administração tende a se tornar um corpo independente e centro de decisões; a obter um grau crescente de faculdades e autonomia; a se converter de meio em fim e a perseguir objetivos próprios; a usurpar o poder. Todo aparato administrativo, e o do Estado especialmente, desenvolve uma propensão quase inevitável à burocratização como processo e ao burocratismo como resultado e sistema. Isto justifica que adiante fale-se de administração e burocracia como equivalentes. Os fatores, traços e conseqüências da burocratização e do burocratismo são muitos e complexos, e aqui me limito a assinalar esquematicamente os que considero pertinentes à minha análise.

A burocracia não é uma abstração. Resulta de uma série de variáveis e de seus diversos agrupamentos, e em função delas surge, organiza-se e transforma-se. Os elementos determinantes, condicionantes e característicos referem-se tanto à estrutura e dinâmica da sociedade global como à da burocracia internamente considerada.

Do ponto de vista do sistema global, a burocracia é uma camada social de natureza específica, encarregada da administração dos assuntos públicos. Está ligada à estrutura de qualquer sociedade dividida em classes, mas não é uma classe nem uma fração de classe. Ê conseqüência da divisão interna da sociedade em classes, e de seus conflitos. Sua existência e suas funções surgem e justificam-se precisamente pela necessidade de formular em termos universais e de impor ela coação uma ordem comum que se origina nas relações sociais básicas, mas que está permanentemente ameaçada por múltiplos conflitos e não é capaz, portanto, de configurar-se, consagrar-se e manter-se por si própria.

Na medida em que a administração dos assuntos públicos supõe a preservação do sistema em cujos quadros atua, a burocracia está sempre em última instância a serviço da ordem estabelecida ou das classes ou frações hegemônicas e dominantes, e a configuração das relações sociais fixa os limites extremos de, sua ação.

ESTADO E SOCIEDADE 23

Por outro lado, a burocracia não é setor de nenhuma classe, mas existe devido à divisão das sociedade em classes, grupos e esferas de interesses particulares. Isto lhe permite, sobretudo em situações de equilíbrio instável ou de conflito agudo das classes e grupos, manter a divisão

Page 20: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

social que a gera, pretender a representação universal dos interesses que justifica sua existência e seu staus, privilegiado, obter uma autonomia relativa e, inclusive, contrariar alguns interesses dos grupos dominantes. Pela própria natureza de sua função e atividades, a burocracia cumpre assim funções reguladoras e mediador-as em relação a grupos distintos, com os quais devo assim estabelecer relações de poder, em papel subordinado e instrumental, como corpo autônomo e dirigente, ou mais frequentemente como uma combinação de ambos.

A luta de classes e grupos na sociedade reflete-se no Estado, porém de forma refratada e alterada, assumindo assim condições e características diferentes. A divisão dos interesses e necessidades da administração pública criam um âmbito próprio de, decisão estatal. Ainda para defender a ordem estabelecia e os interesses das classes dominantes, o Estado deve reafirmar e estender sobre elas próprias seu poder soberano o sua autonomia.

A burocracia pode-se recrutar, e o faz, em setores não-idênticos aos que exercem a dominação no sistema global, sobretudo nas camadas Médias e populares. Isto, se por um lado separa parte dos membros do corpo administrativo do resto da população subordinada e liga-o às classes dominantes, por outro lado pode mudar sua mentalidade, sensibilidade e perspectiva em relação aos problemas fundamentais da sociedade e dos grupos dominados. Esta mudança de situação, de atitudes e de atividades contribui para que, sem modificação no conteúdo básico do Estado, confira-se certa flexibilidade na concepção e na realização dos objetivos do governo. Mais além, em certos casos a burocracia pode representar, para todo um grupo ou estrato social subordinado, um mecanismo essencial de existência material, ascensão social e participação política, um modo de influir sobre o sistema de poder através de funções administrativas, civis ou militares, à margem de, ou contra, o interesse e a vontade dos grupos dominantes.

As sociedades contemporâneas - principalmente nas metrópoles e nos países periféricos mais desenvolvidos - tendem à diversificação, complexidade e articulação crescentes. Os grupos sociais aumentam em número, volume e importância, organizam-se em grande escala, confrontam-se em massa, compartilham em graus diversos um poder político que, nenhum grupo minoritário pode mais monopoli-

24 FORMAÇÃO DO ESTADO NACIONAI, zar totalmente,. Suscitam, exigem e justificam assim a intervenção do Estado para satisfazer seus interesses e necessidades, manter ou modificar o equilíbrio de forças, arbitrar os conflitos. Esta intervenção é determinada também pelos desajustes e crises conjunturais e estruturais. A atividade do Estado expande-se desde serviços tradicionais até novas funções e tarefas de regulação e de gestão direta. O governo torna-se o agente mais importante na compra e venda, inversão e emprego, na atividade empresarial, com incidência direta e indireta sobre a estrutura e funcionamento da economia e da

Page 21: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

sociedade. Conseqüentemente produz-se um crescimento e unia concentração do poder estatal e de seu aparato, um aumento no número e nas faculdades de suas funções em relação aos grupos e indivíduos, cada vez mais dependentes do governo para sua existência, seu status, bem- estar e segurança. Intensificam-se a especialização e a tecnificação das tarefas administrativas, a centralização e a hierarquização vertical dos funcionários governamentais. A burocratização e o burocratismo do Estado e das organizações da sociedade civil (empresas, partidos e sindicatos de massa) estimulam-se e reforçam-se mutuamente.

Os fatores e circunstâncias indicados levam a burocracia a constituir-se em uni ser diferenciado e um centro autônomo de decisões, com interesses não coincidentes ou divergentes dos interesses dos grupos, da sociedade e do próprio Estado. Aos elementos correspondentes à estrutura e dinâmica da sociedade global, alia-se a incidência das características e tendências inerentes à própria burocracia.

A burocracia não é exclusivamente uma camada social, mas também um tipo de organização. O Estado requer para sua gestão um corpo especializado de funções e técnicas administrativas, um aparato patrimônio. Em volta e através destes elementos geram-se e multiplicam-se sistemas e subsistemas de poder, núcleos e constelações de interesses, que forçam de modo natural e permanente na direção de sua autonomia, fortalecimento e expansão. Contribuem para isto, além dos fatores e traços que já assinalei, outros como os seguintes.

A burocracia articula-se como um sistema preciso e instituicionalizado de poder, saber e técnica. Estrutura-se através de uma hierarquia vertical de mando e de obediência, para a elaboração e execução de normas, decisões e atividades. O acesso a cargos, funções e atribuições, os direitos e obrigações, as atividades e conexões recíprocas são fixados pelos chefes e

25 ESTADO E SOCIEDADE níveis superiores, de cima para baixo, de maneira oficial, legalizada a impessoal. As normas pertinentes pretendem ser e aparecem como expressão de finalidades e objetivos racionais do Estado e da sociedade. O sistema supõe e gera a disciplina, o culto da autoridade e o conformismo dos membros. Todo funcionário está obrigado a dar sua devoção e lealdade ao cargo e às funções inerentes, de acordo com as normas que o regem e com os interesses e expectativas do Estado e dos superiores. Como contrapartida e como reforço dessa devoção e lealdade corresponde a cada membro segundo sua situação, graus diferentes de possibilidades de poder, responsabilidade, renda, privilégios, prestígio, promoção. Serve~se ao aparato burocrático para se servir dele, melhora-se e ascende-se com a expansão de sua autoridade e de sua influência. Pertencer e aderir à organização administrativa implica e abrange tudo que se refere à sua estrutura, vida interna, tradições, valores, ritos e cerimoniais, vocabulário específico, padrões de atitude e de comportamento, know how ou saber mais ou menos compartilhado. Tudo conduz a uma complexa articulação e forte interdependência de

Page 22: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

pessoas, engrenagens e mecanismos; à criação de laços de solidariedade e lealdade com os superiores e colegas e com a burocracia em seu conjunto. Reforçam-se os vínculos entre os membros, suas diferenças e separação em relação ao resto da sociedade.

Esta estrutura e esta hierarquia de poder na administração governamental constroem-se, justificam-se e funcionam por um saber burocrático, conjunto de conhecimentos, técnicas e procedimentos administrativos, elaborados dentro e a partir da prática específica da função pública. O saber burocrático é monopolizado, considerado como competência exclusiva de repartições e funcionários que se encarregam de guardá-lo zelosamente e torná-lo secreto e sagrado. Tende à ortodoxia e ao dogmatismo, pretende-se total e coerente, critério de verdade em função do qual a burocracia inclina-se a ver a realidade social como reflexo e transposição de si própria e como objeto de sua atividade, gerando assim um sentimento de onipotência.

A burocracia tende a constituir-se em um círculo fechado sobre si mesmo, sobre seu aparelho, suas repartições e seus membros. Ao mesmo tempo que estabelece certa ordem e determinado tipo de relações entre seus membros, compõe um meio diferenciado e separado do resto da sociedade. Gera estrutura e dinâmica próprias, entrincheira-se, cria seus interesses específicos, fixa seus fins, meios e normas de conduta, faz sua história e incrementa seu poder. Configura-se como um universo singular, separado de qualquer meio social parti-

26 FORMAÇÃO DO ESTADO NACIONAL cular, para cumprir tarefas que pretende de conteúdo e alcance universais.

A burocracia tem assim uma tendência inerente e fatal a conservar e estender seu poder, suas funções e seu âmbito de atividade à proliferação, ao crescimento acumulativo e auto-sustentado. Ao se pretender a encarnação do interesse geral, de consciência e vontade superiores, e do poder estatal, a burocracia vê-se levada além de seus fins, a exigir e conseguir grau crescente de autonomia. Isto se traduz no seu estatuto especial, na fixação de normas que garantam sua iniciativa, sua independência das decisões e pressões externas que estabeleçam pautas específicas de atuação e permitam ampla margem de, poder discrecionário. Traduz-se também em tipos de atitude e, comportamento que - em parte pretensa e em parte realmente consagram a neutralidade, o distanciamento profissional, a objetividade, a conduta desapaixonada em relação a problemas e pessoas, a subordinação das atividades administrativas a normas ligadas a princípios e fins abstratos. Tudo conflui para a obtenção, pela burocracia, de um poder quase ilimitado e incontrolável frente aos súditos e aos próprios superiores políticos. Porém, dado que a existência, a autoridade e as funções da burocracia não são compreendidas nem aceitas naturalmente pela sociedade civil e pelos súditos, sendo sempre objeto de uma resistência surda, a burocracia está condenada a urna incessante atividade que a justifique. A isso se alia a necessidade que possui cada repartição e

Page 23: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

cada funcionário de desenvolver sua própria cota de ação e de expansão, para dar testemunho e justificação de si aos outros níveis, órgãos e colegas do corpo administrativo e modificar o equilíbrio interno de poder em favor próprio e do clã burocrático a que pertença.

A burocracia possui, pois, uma dinâmica intrínseca e inevitável à expansão quantitativa e qualitativa de sua autoridade, de seu aparato e de seu âmbito de atividade. Quanto maior a dimensão, extensão, diversificação e complexidade de seu aparelho, mais numerosas e significativas tornam-se as responsabilidades que assume e as resistências que encontra, e, portanto, mais forte a necessidade de multiplicar seus órgãos de supervisão e controle sobre seus próprios membros e sobre a sociedade como um todo.

A análise precedente sobre o duplo caráter do Estado pode-se tornar mais clara com o exame de dois exemplos pertinentes: o caso normal ou clássico do Estado liberal e o caso extremo de um sistema privado, o capitalismo das experiências "bonapartistas".

ESTADO E SOCIEDADE 27

CAPITALISMO LIBERAL E ESTADO A estrutura do capitalismo liberal supõe e implica:

-Um distanciamento crescente entre a sociedade civil e o Estado. Isto é em parte herança do período da monarquia absoluta e em parte resultado da luta da burguesia ascendente contra os restos feudais e o poder político do Antigo Regime- com a conseqüente pretensão de apresentar a distinção entre sociedade civil e Estado como total e necessária e de reservar para a primeira o monopólio exclusivo da atividade econômica.

- Uma cisão entre o público e o privado, no sistema global e no indivíduo.

-Na própria sociedade civil, uma liberação 'dos homens das rígidas hierarquias tradicionais, determinadas por funções sócio-econômiucas imutáveis, pela filiação forçada a conjuntos econômico-corporativos e pela coação do Estado; surgimento de classes móveis e abertas; atomização, privatização e autonomização dos indivíduos.

- Estabelecimento de, relações sociais por meio da mudança e da competição entre indivíduos livres, iguais e autônomos; emergência de uma sociedade molecularizada, não-unificada e ameaçada pela perda da coesão.

-Classes dominantes divididas pela disputa entre suas frações; dificuldades para estabelecer e conservar a hegemonia entre elas e em relação às classes dominadas.

-Quanto ao político, os indivíduos são separados de suas de- terminações sócio-econômicas concretas e convertidos em entes abstratos aos quais se outorga liberdade e igualdade formais, e que participam com essas características e pelo sufrágio universal da comunidade

Page 24: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

política. A legitimidade do Estado baseia-se na soberania do povo e na responsabilidade que deve ter o governo para com ele.

A partir destas condições, o Estado deve-se apresentar e atuar como fator ou nível especificamente político, com unidade interna, estruturas e práticas objetivas, autonomia relativa no que diz respeito à sociedade e às classes que a compõem, eficácia própria. Constitui- se em universalidade que harmoniza o público e o privado, e encarna o interesse geral da sociedade e a vontade do corpo político nacional. Somente assim pode cumprir uma série de tarefas básicas requeridas pela natureza, estrutura e dinâmica do sistema capitalista. Em primeiro lugar, o Estado pode manter as condições de mu- dança, competição e fracionamento da sociedade, regulamentando ao

28 FORMAÇÃO DO ESTADO NACIONAL mesmo tempo as relações conflitantes e anárquicas entre grupos e indivíduos, de modo a proporcionar a essa sociedade um quadro formal de coesão interna e uma organização funcional que de outro 1;100 a por suas próprias premissas básicas, não poderia obter nem conservar.

Em segundo lugar, o Estado ao se apresentar como instância universal e encarnação do interesse coletivo da sociedade proporciona instrumento e a justificação para que uma fração consiga hegemonia sobre o resto das classes dominantes e para que ma hegemonia possa também ser exercida em conjunto sobre as classes dominadas. A unificação abstrata de todos os indivíduos no Estado e através de permite, àqueles que o controlam, apresentar sua própria dominação como expressão universalizante e mediatizada do interesse gera. Através do Estado a fração hegemônica polariza sob e ao redor de mesma o conjunto das classes dominantes, outorga-lhes participação satisfaz seus interesses, harmoniza ou equilibra contradições e antagonismos. Por outro lado, também cria condições para conseguir combinações específicas de coação e consenso em relação às classes dom nadas, de quem pode inclusive garantir ou proteger alguns interesse econômico-corporativos.

Esta natureza peculiar do sistema liberal, que lhe permite si considerado como a primeira forma plenamente desenvolvida de Estado moderno, aparece ainda mais claramente se consideradas algo mas de suas características concretas de funcionamento. Ao contrário do que pretende um mito de difusão quase universal, o desenvolvimento capitalista mesmo em sua manifestação precursora e paradigmática na Grã-Bretanha não constituiu um processo natural, autônomo e auto-regulado, sem ingerência do Estado. Representou, inversamente, a expressão e o fortalecimento do poder governamental.

Page 25: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

Sem esquecer o papel decisivo do Estado na criação de pré-réquisitos para a ascensão e a expansão do capitalismo (acumulação primitiva e absolutismo monárquico mercantilista) deve-se recorda também que o desenvolvimento econômico é acompanhado continuamente por uma série de reformas que ampliam a envergadura e o papel do governo, criam uma burocracia e um aparelho administrativa cada vez mais importantes e que exercem um intervencionismo organizado sob seu próprio controle. Este intervencionismo busca principalmente estabelecer e manter as condições para que a economia d mercado surja, consolide-se e alcance sua plenitude. O laissez-fair não aparece de modo natural e espontâneo. Desde que a separação, entre sociedade civil e Estado não possui caráter necessário e absoluto, e que, ao contrário, ambos tendem a se identificar no fundo

ESTADO E SOCIEDADE 29 essa separação deve ser resultado da ação governamental. Como bem aponta Antonio Gramsci "o liberalismo é também uma regulamentação de caráter estatal, introduzia e mantida por via legislativa e coercitiva. É um ato de vontade consciente, dos próprios fins e não a expressão espontânea, automática do fato econômicos.

Assim, o papel econômico do Estado liberal clássico está na verdade muito longe de se caracterizar pela residualidade, passividade ou neutralidade. É ele mesmo quem cria e mantém as estruturas de uma economia de mercado. Faz respeitar a propriedade individual e a liberdade contratual. Favorece a certos grupos e a um sistema de distribuição desigual da riqueza e do poder, em detrimento de grupos e estratos subordinados ou dominados. Proíbe as confederações de trabalhadores. Utiliza o pagamento de impostos diretos como critério para exercício de direitos políticos. Em seus momentos de maior fidelidade à doutrina liberal, o Estado' intervém pela omissão favorável à ordem estabelecida e a seus beneficiários. Mas são freqüentes as intervenções por ação direta. Intervém também em favor da economia nacional, através da proteção alfandegária e da conquista militar ou diplomática de mercados externos. Ao mesmo tempo, deve ser árbitro das tensões e conflitos entre frações das classes dominantes e entre estas e as dominadas, e às vezes tutelar os interesses destas últimas (como exemplo, o conflito de latifundiários e industriais na Grã-Bretanha durante o século XIX, em torno da questão protecionismo ou livre câmbio, o aparecimento da legislação trabalhista, a concepção política de Benjamim Disraeli). Por outro lado, é verdade que esta intervenção estatal no econômico-social é limitada: não dirige ou rege a produção, o consumo e os preços; não excede o âmbito legal ou regulamentário, nem desenvolve uma política orçamentária e monetária. Sem mudar sua natureza essencial, o capitalismo ocidental do século XX apresentará formas mais intensas e abrangentes de intervencionismo estatal, fenômeno que não cabe analisar no quadro deste trabalho.

A EXEMPLIRCAÇÃO COM UM CASO-LIMITE: O BONAPARTISMO

Page 26: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

Uma exemplificação particularmente notável da tendência externa, verdadeiro "caso-limite", é dada por uma forma política que aqui se designa por bonapartismo por motivos de economia expositiva, tendo em vista sua ampla variedade histórica e na falta de um conceito suficientemente abrangente. Este fenômeno apresenta-se através de manifes-

30 FORMAÇÃO DO ESTADO NACIONAL tações muito diversas, conforme países e períodos: o cesarisnio da crise republicana em Roma; as monarquias absolutas do "Antigo Regime" na Europa; o bonapartismo do Primeiro e Segundo Impérios na França; o bisinarckismo alemão; o kerenskismo de 1917 na Rússia e talvez também o stalinismo soviético; o nasserismo egípcio; o peronismo argentino. O bonapartismo em sentido genérico é apresentado aqui como hipótese geral ou esquema sociopolítico, prescindindo-se na medida do possível dos elementos de aproximação histórica e de especificidade nacional, que se deve, entretanto, considerar obrigatoriamente na análise de qualquer situação espaço-temporal concreta.

Esta forma corresponde sempre a períodos excepcionais, a situações de crise: estancamento, transições ou pontos de flexão no processo de desenvolvimento; conjunturas internacionais de tensão ou de conflito violento; fortes e rápidas mudanças no sistema de estratificação social. Estas situações acompanham-se e caracterizam-se por um estado ou processo de equilíbrio instável e de luta entre classes, frações e grupos, cada um dos quais, por sua vez suas próprias crises internas. A ou as classes e frações tradicionalmente dominantes , debilitados ou em declínio, não podem continuar impondo sua hegemonia indiscutível ou ilimitadamente. As classes novas ou ascendentes podem estar passando da passividade e submissão à atividade e rebeldia, desafiando a dominação tradicional mas incapazes de substituí-la pela sua. Assim, uma classe teria perdido e outra não teria ganho a capacidade efetiva de dirigir a nação.

Esta situação básica pode e costuma circunstâncias adicionais. Todas as classes e grupos da sociedade, inclusive os que ocupam uma situação polar, têm uma composição heterogênea, abrangem estratos distintos, com diferente capacidade de reorientação e reorganização social e política, com diferenças também no ritmo e sentido de suas ações. A isto se alia a tendência quase inevitável dos partidos políticos à rotinização e à esclerose, e a conseqüente incapacidade de readaptação às rápidas mudanças em marcha e, como resultado, o debilitamento ou perda de sua representatividade e capacidade operativa em relação às classes, frações e grupos e à própria sociedade global. Assim, é provável que não se consiga a fusão de cada classe, as fundamentais pelo menos, sob direções únicas capazes de enfrentar e resolver decisivamente (por triunfo, derrota ou compromisso durável) os problemas e conflitos que constituem a crise. Nos dois pólos da sociedade, e entre ambos, movem-se o atuam classes e grupos sem coesão sólida, sem representação política eficaz e sem capacidade para impor seus próprios interesses e para fazer com que sejam adotados ou acatados pela maioria da nação, em seu nome o

Page 27: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

ESTADO E SOCIEDADE 31 da através de seus órgãos. O bonapartismo pode surgir por falhas momentâneas ou definitivas das classes e frações tradicionalmente dominantes ou de uma imaturidade ou debilidade dos grupos e estratos emergentes e antagônicos às primeiras. Influem também, para o aparecimento e funcionamento do bonapartismo, a existência de forças intermediárias, secundárias ou marginais, e suas relações com os dois núcleos de posição polar na sociedade.

Assim, produz-se um equilíbrio instável das forças em luta, como perigo de que não se constitua ou reconstitua com rapidez suficiente um equilíbrio sólido e duradouro, e de que a disputa leve à destruição das classes e grupos em confronto e da própria sociedade,. Nesta situação, o Estado, personificado por um grupo que, direta ou indiretamente, controla e manipula os principais recursos ou mecanismos de poder, aparece como o único elemento ou fator capaz de se erigir sobre as classes e sobre a sociedade, como representante de todos ou quase todos, e apto a impor como instância independente sua autoridade ilimitada e sua arbitragem final, e a outorgar as decisões, benefícios e sacrifícios.

As manifestações historicamente conhecidas enquadráveis na categoria geral de bonapartismo apresentam divergências consideráveis entre si quanto às formas de personificação, meios de instrumentação, mecanismos de funcionamento, natureza e conseqüências de sua ação.

O bonapartismo é sempre uma forma de governo autoritário praticamente ilimitado, mas pode-se encamar numa personalidade representativa, providencial, heróica, dotada real ou ficticiamente de atitudes excepcionais, ou numa equipe de direção coletiva, em governos de coalizão, em certas manifestações específicas de parlamentarismo. As bases, instrumentos e mecanismos de poder e operação podem ser: a burocracia civil, as forças armadas regulares, os grupos irregulares ou paramilitares, a polícia em sentido restrito (repressão estatal da delinqüência e subversão social) ou em sentido amplo (conjunto de forças governamentais e particulares que tutelam a ordem existente e as relações vigentes de dominação e hegemonia), os cleros, a captação pela corrupção e pelo terror dos funcionários de partidos políticos, sindicatos operários e organizações empresariais.

O Estado bonapartista mostra uma independência considerável de qualquer classe específica e da sociedade como um todo, mas não está suspenso no ar, e sua autonomia e neutralidade são, na verdade, mais aparentes que reais. Pretende ser um poder imparcial, encarnação da sociedade e representação - simultânea ou sucessiva - de

32 FORMAÇÃO DO ESTADO NACIONAL várias ou de todas as classes. Sua capacidade de iniciativa independente não é muito atingida pelas necessidades e exigências específicas de

Page 28: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

uma classe, fração ou estrato, mas joga uma ou várias classes contra outra ou outras, favorece-as e submete-as em separado ou e m conjunto. Por outro lado, entretanto, o bonapartismo surge e funciona a partir de uma determinada ordem social, que - em última instância - não pretende modificar, mas estabilizar e consolidar. De fato atua assim como essencialmente defensor das classes e frações hegemônicas e dominantes, às vezes com a incompreensão e hostilidade das próprias interessadas.

Finalmente, é oportuno tecer algumas considerações que permitam completar este esquema e talvez enriquecer qualquer análise mais específica. O bonapartismo pode ser progressivo (Júlio César, Napoleão I), ou regressivo (Napoleão III, Bismarck); representar e reforçar uma continuidade meramente evolutiva ou um salto de características na realidade revolucionárias, conforme reforce e leve ao triunfo, ou não, com ou sem compromissos o limitações, as forças de mudança e desenvolvimento. As forças fundamentais em antagonismo podem, pela própria dinâmica do processo e pela intervenção bonapartista, chegar finalmente a uma certa assimilação ou fusão reciproca. Ao contrário, pode também existir entre elas um conflito básico insuperável que o bonapartismo inicialmente atenua ou equilibra, mas cedo acaba agravando e arrastando a um desenlace que costuma marcar o fim da experiência.

3. CARACTFRISTICAS E FUNÇOES

Todo poder estatal exibe um caráter duplo ou ambivalência essencial, em função da coexistência, em proporções diferentes e sempre em dança, das duas funções assinaladas: instrumento de dominação de classe mas também de criação de interdependências, solidariedades e integração de grupos e indivíduos numa ordem social unificada e estável, para atingir os objetivos que em cada etapa considere-se de interesse geral. O enfoque global, que inicialmente procurou se dar, permite um desenvolvimento um pouco mais explícito das características e funções do Estado.

Em suas formas já desenvolvidas, o Estado, comparado com outros grupos, caracteriza-se principalmente pelos seguintes traços: 1) Surge e opera em âmbito espacial delimitado, dentro dos quadros de um território. A sociedade estrutura-se assim em uma unidade política fechada. A filiação dos indivíduos e grupos ao sistema político

ESTADO E SOCIEDADE 33 nascimento ou residência. o interno e o externo estão nitidamente separados. O Estado é intransigente quanto à soberania territorial e organiza o espaço político de forma que o faça corresponder à hierarquia de seu poder e de sua autoridade, e assegure a execução das decisões fundamentais no conjunto do país sob sua jurisdição. II) O Estado não é criação política instintiva nem improvisada. Expressa unia racionalização progressiva de

Page 29: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

estruturas políticas preexistentes. As relações de mando e obediência no Estado formalizaram-se e operam por circuitos especializados, que copiam ou refletem os circuitos pré e extrapolíticos, incorporando-os sem aboli-los. III) O Estado também pressupõe, aprofunda e consolida a separação crescente entre governantes e governados. Configura-se como aparato político distinto, especializado e permanente de ação política e admiministrativa, dotado de unia organização que se caracteriza cada vez mais pela centralização, complexidade e grandes dimensões. IV) O Estado pretende a autonomia, a supremacia e a capacidade totalizadora ou de inclusão total. Aparece como grupo geral que abrange a sociedade global, com a qual tende a se identificar sobretudo a partir da Idade Moderna (conceitos de Estado-Nação, Estado soberano), sem se confundir completamente com ela, sem hipóstase. Reivindica a apropriação total do poder político, a autoridade soberana na ordem interna e nas relações exteriores. Aparece como lugar de elaboração e aplicação das decisões supremas e das normas que se referem à direção dos assuntos públicos e comprometem a toda a sociedade. Assim, exerce sua ação sobre a totalidade de instituições, de grupos menores e de indivíduos, existentes e operantes em seu âmbito espacial de poder, e articulados entre si e com a estrutura de governo. Eleva-se o impõe-se sobre eles, exige-lhes e extrai-lhes um grau, supremo de solidariedade e obediência. Subordina ou nega toda for- ma de poder e toda decisão de origem' privada que não emane das suas ou não se ajuste a elas.

As principais funções do Estado referem-se a: institucionalização, legitimidade e consenso, legalidade, coação social, educação e propaganda, organização coletiva, relações internacionais. Estas funções são separadas com fins analíticos e expositivos. Na realidade estão entrelaçadas por sua origem comum ou centro de imputação (o Estado), e pela convergência ou identidade de suas finalidades e resultados. As estruturas políticas são sempre multifuncionais e nenhuma delas está especializada total ou exclusivamente. As mesmas estruturas ou instituições podem ter funções diversas. Ao contrário, grupos, estrutu-

34 FORMAÇÃO DO ESTADO NACIONAL ras ou instituições de tipo privado podem desempenhar funções políticas, estatais ou para-estatais.

INSTITUCIONALIZAÇÃO, LEGITIMIDADE, CONSENSO, LEGALIDADE

As relações de mando e obediência organizadas por e em função do Estado precisam ser por ele institucionalizadas em dois aspectos inter-relacionados: o que se refere ao próprio Estado e o que se refere aos grupos e indivíduos, a seus vínculos entre si e com o governo.

Toda sociedade articula-se em instituições e através delas. São essencialmente modelos de relações humanas, de distribuição e exercício de statw, funções e papéis. Sobre elas se copiam,

Page 30: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

estruturam e formalizam as relações concretas de grupos e indivíduos através de sua formulação ou consagração pela autoridade estatal que lhes confere coesão, estabilidade, durabilidade, inserção em ordens e níveis mais gerais, reconhecimento e valorização por outros grupos e indivíduos. Numa estrutura social, as instituições que têm funções, fins e conseqüências similares constituem uma ordem institucional: econômica, política, militar, familiar, religiosa. A estrutura social global aparece integrada por instituições e ordens institucionais e por suas articulações e interações. Assim, por um lado o Estado apresenta-se como causa e resultante da criação de uma ordem político-militar, referido à constituição de um conjunto de instituições que regulam a aquisição da violência legítima. Por outro lado, a autoridade suprema institucionalizada do Estado sobre os outros grupos e indivíduos permite-lhe institucionalizar outros modelos e ordens de relações humanas: a ordem econômica (organização de recursos físicos e humanos para a produção de bens- e serviços), a familiar (sexo e procriação), a religiosa (culto coletivo a divindades).

A aceitação do poder estatal e de sua função institucionalizadora não se produz natural ou mecanicamente. Implica e exige criar e manter permanentemente uma legitimidade, um consenso e uma legalidade, três fenômenos e dimensões que se ligam, interagem e superpõem como partes de um processo único.

Todo Estado tende necessariamente à auto-sacralização. Pretende captar a sociedade como um todo, dar-lhe ordem e estabilidade, identificar-se com ela, idealizá-la ou idealizar-se como valor supremo transcendente aos grupos e indivíduos e podendo se impor coativamente a eles. Os governados aceitam parcialmente a sacra-

ESTADO E SOCIEDADE 35 polílização e a supremacia do Estado e do sistema que este expressa o impõe, como premissas e garantias da ordem, segurança, estabilidade e convivência civilizada.

Ao mesmo tempo o Estado é emanação e requisito de vigência de uma sociedade contraditória e instável, baseada na desigualdade e portadora de conflitos. Os súditos, sobretudo os que pertencem às classes subordinadas e dominadas, esperam ou exigem do Estado certa reciprocidade de responsabilidades e obrigações, em troca de sua submissão. É questionado à medida que o visualizam como expressão e instrumento da desigualdade. Temem seus excessos e abusos. A obediência é sempre acompanhada, em combinação variável, pela contestação crítica do poder, o desejo de limitá-lo, a desobediência à lei, o desafio aberto.

A supremacia do Estado não pode pois manter-se por simples de automatismo nem pela pura coação física. A disciplina baseada no medo deve ser acompanhada pela adesão interiorizada e

Page 31: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

aparentemente voluntária. O Estado necessita ser consagrado e sacralizado pelo consentimento, combinando com este fim mecanismos formais e informais. Uma de suas funções essenciais consiste precisamente em sua contribuição, sempre substancial, e frequentemente decisiva, para elaborar, sistematizar e impor - coativa e persuasivamente uma concepção do mundo e da sociedade, um sistema de valores e representações coletivas e uma ideologia que expressem e justifiquem as relações e estruturas parciais e o sistema geral vigente, em uni país e suas etapas particulares. Isto constitui, por sua vez, uma expressão simplificada de situações, estruturas e processos reais e uma cobertura mistificadora e justificadora dos interesses do Estado e das classes e frações hegemônicas e dominantes. A ação ideológica do Estado tende a conseguir uma mobilização de consciências e energias em favor de si mesmo e contra seus inimigos atuais e potenciais, para atenuar ou suprimir conflitos, além de atingir o mais alto grau possível de estabilidade e integração. A legitimidade é pois o processo e o resultado da identificação de uma ordem sociopolítica afirmada como ideal da comunidade e do Estado, e o governo que dirige a primeira e encarna, o segundo. O Estado em abstrato e o governo concretamente são postulados como formas necessárias e convenientes de estruturação institucional, idênticos a uma ordem racional e justa, distribuidores de benefícios, autolimitados no desenvolvimento e uso de seus poderes, devendo portanto exigir e merecer aceitação e obediência. O poder é assim justificado o sacralizado, adquirindo um caráter absoluto e estável. O consenso é a concordância geral dos grupos e indivíduos integrantes de, uma sociedade sobre a

36 FORMAÇÃO DO ESTADO NACIONAL legitimidade de uma forma de Estado ou de um governo determinado.

Instituições, legitimidade, consenso, por sua vez, pressupõem, exigem e geram uma legalidade, um Direito. Todas as sociedade conhecidas baseiam-se na escassez, na desigualdade e na injustiça. Repartem desigualmente os poderes, as tarefas, as responsabilidades, os recursos, os produtos e as rendas. Estão divididas por múltiplos conflitos. A divisão e especialização do trabalho determinam a complexidade e o entrelaçamento das relações sociais e individuais, a ausência de uma ordem coerente fora das unidades produtivas, o caos de iniciativa e de conflitos de interesse. A sociedade não pode operar como simples soma de funções sócio,-econômicas. Estas, suas relações e organização de conjunto devem ser mantidas e reguladas por meio de um sistema formal e institucionalizado que assegure um grau mínimo de coesão, coerência e estabilidade.

Sobre este quadro determinante e condicionante e a partir dele, o Direito de países e períodos históricos específicos aparece como um conjunto de valores, princípios, normas e procedimentos que o Estado estabelece, reconhece e sanciona, tendendo a cumprir uma série de funções básicas. Estas funções são principalmente as seguintes: I)Autoinstitucionalização do próprio poder estatal, ou seja, consolidação, formalização e legitimação do que já se havia obtido mas era ainda exercido através de recursos e procedimentos de fato. Pôr sua vez isto

Page 32: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

implica e se traduz em uma monopolização legalizada da violência, dos instrumentos de poder e das decisões. II) Regulação de uma coerência mínima sobre o caos de interesses, iniciativas e conflitos de grupos e indivíduos; estruturação das relações entre eles; institucionalização de funções, status e papéis, e das formas de conjunto da sociedade em questão. III) Fixação das regras do jogo social e político, dos princípios e procedimentos de aquisição o exercício do poder. Como corolário, esta fixação mais permite determinar se uma ação política constitui uma forma de luta dentro do regime ou fora e sobre o regime. IV) Regulação da dotação de recursos e da distribuição de bens, serviços, rendimentos e oportunidades entre os grupos e indivíduos. Parte da superestrutura, o Direito, é chave da sociedade, aliança e coroa, contribui para estruturá-la e mantê-la em funcionamento. Sua eficácia exige a combinação da coerência formal e da elasticidade e capacidade de adaptação às contradições e mudanças, que permitam reinterpretar as formas ou elaborar novas, preencher va-

ESTADO E SOCIEDADE 37 zios, superar ou compensar distorções. A esse respeito, cabe recordar que o Direito é sempre uma combinação ambígua e vacilante entre a expressão do que já é, e que os grupos de interesses dominantes pretendem manter, e a expressão ideal do que pode chegar a ser, que os grupos subordinados e dominados por sua vez podem pretender realizar. Pela legitimidade e legalidade, as decisões do poder estatal chegam a ser reconhecidas como válidas mais por sua forma (quem as toma e segundo que normas e procedimentos) que por seu conteúdo (capacidade, eqüidade, representatividade real dos e governantes) .

COAÇÃO SOCIAL, EDUCAÇÃO E PROPAGANDA, ORGANIZAÇÃO COLETIVA

Utilizando os instrumentos e inezanismos indicados, o Estado cumpre funções negativas, de coação social, o positivas, de educação e propaganda e de organização coletiva.

Através da coação social e poder estatal se propõe a (e em maior ou menor grau consegue): I) Criar e conservar seu monopólio permanente e legalizado da Violência, que é assim institucionalizada, oficializada e organizada; monopolizar todos os meios de decisão e orientação da atividade e da direção da sociedade. II) Erigir-se em instância suprema sobre e entre os grupos sociais, como meio de manter a supremacia das classes e frações hegemônicas e dominantes sobre as dominadas; regular suas relações e criar certo equilíbrio relativo entre os grupos divergentes ou antagônicos; preservar o sistema sócio-econômico e conter as forças que o questionam e podem destruí-lo. III) Atenuar, ajustar ou suprimir conflitos de interesses existentes. IV) Reconhecer ou impor formas de compromisso social e político e de cooperação interna (regulação de acordos voluntários entre indivíduos e entre grupos; negociação e arbitragem obrigatória; formas regulares e periódicas de aquisição e transmissão do poder). V) Cuidar da integração do país, criação e manutenção da unidade nacional e de um sistema de lealdades nacionais, com fins internos e para a regulação das relações com o exterior.

Page 33: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

38 FORMAÇÃO DO ESTADO NACIONAL

Através de suas formas peculiares de educação e propaganda, o Estado tende a cumprir as seguintes funções e finalidades: I) Conservação e transmissão do acervo histórico (tradição, cultura, formas organizativas e operativas), como fator de continuidade e da coerência da ordem social. II) Incorporação das novas gerações à sociedade, através de uma assimilação coletiva da tradição herdada, dos sistemas de valores predominantes, do ensino de solidariedades entre indivíduos e grupos e com a sociedade e o Estado. III) Desenvolvimento da coesão coletiva dos adultos. IV) Socialização dos grupos e indivíduos.- adaptação, integração, preparação para os papéis econômicos, sociais, políticos e culturais. V) Criação e consolidação do conformismo geral, como modo de reforçar a legitimidade e o consenso em relação ao Estado, e da aceitação da hegemonia de certas classes e frações sobre outras. VI) Contribuição à emergência e manutenção de uma personalidade básica. VII) Elevação da grande massa da população a um determinado nível cultural e moral que corresponda às necessidades de desenvolvimento do sistema e aos interesses das classes e frações hegemônicas e dominantes.

As funções de organização coletiva se referem a: I) Ação sobre o nível, orientação, estrutura e funcionamento da cultural. II) Regulação da disponibilidade e da dotação dos recursos escassos (físicos, humanos, financeiros) e da distribuição de bens, serviços e rendas entre os diferentes setores e objetivos. III) Satisfação de necessidades coletivas. Regulação ou gestão de serviços públicos ou de interesse geral, seja através da imposição de condições obrigatórias para as atividades e relações privadas, seja através de uma intervenção empresarial direta do Estado. IV) Promoção do desenvolvimento em suas etapas iniciais; estabilização e continuidade, do crescimento depois de um desenvolvimento já basicamente realizado. V) Organização e coordenação da comunidade e de seus principais setores e aspectos particulares, dentro de uma estratégia ou plano de conjunto (mero intervencionismo, dirigismo, planificação parcial e flexível, planificação total ou autoritária)

ESTADO E SOCIEDADE 39

AS RELAÇOES INTERNACIONAIS A DEPENDÊNCIA EXTERNA

Ás relações internacionais penetram às vezes nas esferas da coação social, da educação e propaganda e da organização coletiva, mas as ultrapassam e configuram uma esfera específica de ação estatal que, por sua vez, incid,el sobre as primeiras.

Page 34: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

Cada sociedade global espacialmente delimitada relaciona-se exteriormente com outras sociedades, potencial ou efetivamente hostis e perigosas. Necessita, assim, preservar sua integridade. contra as ameças externas à sua soberania, segurança e continuidade; organizar sua defesa e suas alianças. Para isso deve ao mesmo tempo exaltar sua unidade, sua coesão e seus traços característicos. O poder estatal surge estrutura-se e reforça-se não somente em conseqüência de dinamismos internos, mas também sob a pressão dos perigos exteriores, reais ou supostos. Isto lhe permite expressar a personalidade de sua sociedade, contribui ,para a coesão e eficácia de sua ação. Os fatores internos e os externos unem-se e interagem na emergência, organização e continuidade do Estado.

As relações internacionais devem assim ser concebidas por um lado como expressão e projeção das relações sociais e da estrutura global do Estado em questão. Os movimentos e as mudanças nas estruturas internas incidem sobre as relações internacionais através de expressões e mecanismos de tipo econômico, político, militar e cultural. Por outro lado, a dinâmica das relações internacionais reage sobre as estruturas internas. As relações internas de uma combinam-se com as internacionais, arribas complexas e heterogêneas em sua composição, na distribuição e sobreposição de suas forças, podendo se criar novas combinações originais e específicas'. A vontade do Estado projeta-se para o âmbito externo, insere-se e integra-se em equilíbrios de forças e em processos que a ultrapassam e condicionam, num nível em que a iniciativa de cada governo é mais limitada e pode atuar com menor eficácia decisória.

De validade geral, estas afirmações precisam ser qualificadas a fim de que tenham maior pertinência ao caso da América Latina e do Terceiro Mundo em geral. O peso relativo das duas dimensões, a interna e a externa, varia de acordo com o grau de independência ou dependência do país em questão, ou seja na medida em que os centros de decisão tendem a existir e a predominar dentro ou fora do país.

40 FORMAÇÃO DO ESTADO NACIONAL

Esta coexistência de dimensões alcança particular relevância com a emergência e expansão do capitalismo e a criação de um sistema mundial no qual todas as unidades nacionais terminam por integrar uma mesma estrutura global de interdependenncia. As diferenças entre países desenvolvidos, centrais e hegemônicos e países subdesenvolvidos, periféricos e subordinados, de estrutura econômica e de situação na escala hierárquica e no sistema de denominação in- ternacionais, não excluem mas supõem sua interdependência. Além disso, não se pode explicar a natureza e funcionamento de qualquer deles sem se considerar a ambos. Nos dois tipos de países, e na ampla variedade de casos específicos que cada um deles compreende, existe permanentemente uma dupla interação: entre os centros e as zonas e nações periféricas, entre as forças internas e as externas. Em qualquer caso é sempre necessário o

Page 35: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

enfoque global e dinâmico das forças, estruturas e processos que integram e dão forma ao sistema único de interdependência.

Assim, por um lado, o desenvolvimento do capitalismo mundial é a ação das metrópoles impõem aos países do Terceiro Mundo e da América Latina uma relação de dependência externa, desde a conquista o principalmente a partir de sua emancipação. Isto implica tipos e formas de vinculação e de dominação; a incorporação, à dinâmica das metrópoles e do mercado mundial; a configuração e modificação das estruturas sócio-econômicas e políticas internas em função de necessidades, interesses e exigências de tipo externo. As leis gerais de estruturação e movimento do sistema em seu conjunto impõem-se de modo determinante e condicionante às sociedades e nações da América Latina. As diferentes fases que o capitalismo atravessa nas metrópoles e no mundo, o predomínio de uma ou outra das grandes potências, influem no tipo e nas modalidades da dependência.

Por outro lado, entretanto tudo isto constitui um aspecto decisivo mas não exclusivo da questão. A ação - externa não é o -único fator a ser considerado. Nem também esta ação se exerce de modo unilateral, imediato e mecânico, em um só sentido e uma só dimensão. Constitui um processo dialético, pluridimensional e múltiplice. A dependência é precisamente uma relação, que por isso supõe duas ordens de forças, de formas e de dinâmicas em permanente interação. Esta relação complexa e móvel contribui para dar forma a sociedades e Estados nacionais que, total ou parcialmente, podem pre-existir ao seu estabelecimento ou modificação, com matrizes e dinâmicas histórico-sociais próprias, inclusive estruturas produtivas e estratificações sociais específicas, correlações determinadas e mutantes

ESTADO E SOCIEDADE 41 entre classes e grupos, sistemas de poder e aparato governamentais. Estes aspectos ou níveis internos têm sua existência e sua dinâmica inerentes. Configuram constelações de interesses nacionais. Determinam graus variáveis de independência relativa. Articulam-se e reagem entre si e com os fatores externos em que possam influir, inclusive de forma significativa. O dinamismo interno reflete e incorpora a ação das metrópoles e do sistema internacional, mas além disso acrescenta suas particularidades histórico-sociais, suas peculiaridades e mediações específicas, suas conjunturas e casualidades. Ao mesmo tempo, passa a integrar e modificar a composição, a orientação e o funcionamento dos agentes e forças externos. Os fatores, níveis e aspectos externos e internos não evoluem sempre, nem com intensidade, direção e significado iguais ou convergentes. Mais especificamente,, a dependência supõe, como foi dito, a existência de sociedades e Estados nacionais nas regiões subordinadas, e cria-se e opera através de nexos e alianças entre os grupos hegemônicos e dominantes das metrópoles e do país periférico e dependente, com possibilidades de divergências, tensões e conflitos. Por sua vez, os grupos hegemônicos e dominantes do país dependente estabelecem também relações de coincidência, dissidência ou confronte com outras classes e grupos nacionais, através de processos que sofrem influência ou influem quanto à dependência.

Page 36: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

A dialética do interno e do externo, com todas as suas implicações e conseqüências, indicide sobre a configuração do sistema de dominação e poder, sobre a estrutura e funcionamento do aparato político-institucional, sobre os mecanismos e processos de decisão, voltando tudo isto por sua vez a repercutir sobre a relação de dependência.

As considerações precedentes contribuem, talvez, para explicar que certas conjunturas internacionais, às vezes independentemente da vontade das metrópoles e de suas elites de poder, possam criar oportunidades e opções aproveitadas pelas classes hegemônicas e dominantes dos países periféricos de diversas maneiras para assumir uma independência relativa, e um poder mais ou menos autônomo de decisão e para pretender modificações significativas na orientação e na configuração da economia, da sociedade e da política. Explicam também que no Terceiro Mundo e na América Latina o Estado exerça freqüentemente uma espécie de função mediadora e arbitral entre os grupos internos e externos, a sociedade nacional e as metrópoles, a dependência e a autonomia.

CAPITULO II

O ESTADO E A COLONIZAÇÃO IBERO-LUSITANA Os primeiros grandes impérios europeus de além-mar foram construídos por Espanha e Portugal. Espanha é a primeira e mais importante nação imperial da Idade Moderna, com possessões coloniais na América estendendo-se, ainda nos princípios do século XIX, por cem graus de latitude, da Califórnia ao Cabo Horn. Portugal, por sua vez, ocupa a metade da América do Sul. O poder monárquico metropolitano dos dois países desempenha papel decisivo na configuração das estruturas sócio-econômicas, institucionais, políticas e culturais da América hispano-portuguesa. Constitui um fator que concorre para a dependência externa da região, para a organização e dinâmica da sociedade colonial. Determina assim características e tendências que, mais ou menos modificadas, sobrevivem a essa etapa inicial. Os dois impérios assumem o papel essencial de transmissão de um tipo de organização e cultura européias nas Américas Central e do Sul. De início examino o caso do Império Espanhol, para em seguida considerar os aspectos específicos do seu equivalente português.

I. O IMPÉRIO ESPANHOL A. A METRÓPOLE

Ao se iniciar a conquista e colonização da América, a Espanha está passando de um feudalismo peculiar a um incipiente capitalismo mercantil, apresentando uma combinação específica de elementos e traços correspondentes a estes dois modos de produção e organização social.

Page 37: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

Neste quadro, o domínio muçulmano e a Reconquista espanhola desempenham papel fundamental.

O ESTADO E A COLONIZAÇÃO IBERO-LUSITANA

44 FORMAÇÃO DO ESTADO NACIONAL

A ESPANHA ENTRE O ISLÃ E A RECONQUISTA

A influência do Islã na Espanha dura de três a oito séculos, conforme a região e traduz-se no reforço e melhoramento da obra originalmente realizada por Roma. Sob os árabes a Espanha, que já etapa romana fora chamada de província nutrix, chega a ser ainda mais opulenta e florescente. Isto ao mesmo tempo explica-se e manifesta-se por: uma agricultura eficiente e diversificada, uma notável rede de obras hidráulicas, uma ampla gama de artesanatos e manufaturas, uma vasta e complexa atividade comercial, um aparato político e administrativo desenvolvido, um florescimento científico cultural de alto nível, e uma rede de cidades repletas de elementos civilização (oficinas de artesãos; unidades mercantis; governo municipal; arquitetura de palácios, mesquitas, escolas e bibliotecas). Verdadeiro cadinho de etnias e culturas, o setor muçulmano da p 1sula exerce uma influência duradoura sobre todos os aspectos e níveis da Espanha e Europa cristãs. O mundo árabe e a rede relações e fluxos de todos os tipos que tece dentro de sua esfera com as regiões vizinhas vão gerando as condições preliminares desenvolvimento capitalista na Espanha.

O processo da Reconquista espanhola, que começa cedo e acelera a partir da Batalha de Navas de Tolosa (1212), tem por sua vez múltiplas repercussões. A prolongada duração desta operação militar - quase oito séculos - determina uma profunda influência nas estruturas, nas formas organizativas, na psicologia e nos hábitos da Espanha cristã. Por sua própria natureza a Reconquista gera reforça um sentimento de comunidade étnica, nacional e religiosa, de cruzada contra o mundo árabe. Implica grande absorção de energias nacionais durante vários séculos e estímulo ao espírito militar que reforça atitudes de tipo medieval. A grande nobreza não afirma sobre grandes feudos de tipo francês, mas sobre a capacidade militar, tanto pessoal como de mobilização de combatentes. A Reconquista - como a posterior empresa militar, européia e colonial - possibilita a existência, atividade e expansão numérica uma pequena nobreza de poucos recursos. Esta cruzada interna atinge também a Igreja, permite-lhe exercer o papel de direção espiritual e enquadramento ideológico da sociedade espanhola e cristã confere-lhe um caráter militante e um forte sentimento de sua importância e autoridade.

Page 38: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

A Reconquista imprime características peculiares à Idade Média Espanhola, determina modificações no sistema feudal que o torna

O ESTADO E A COLONIZAÇÃO ÍBERO-LUSITANA 45 atípico em comparação com o resto da Europa Ocidental. A pressão demográfica nas regiões pobres obriga a combinação da cruzada com um processo de permanente colonização. As necessidades da defesa, do povoamento e da produção contribuem para que o campesinato esteja menos sujeito a relações feudais de servidão; permitem-lhe conseguir concessões pessoais e coletivas (beetrias*, cartas pueblas), organizar-se mais ou menos livremente, conservar estruturas e tradições comunitárias, fortalecer o sentimento localista. Por outro lado, a Reconquista inicia-se e prossegue a partir de terrenos montanhosos, geograficamente isolados, e estimula assim desde cedo a formação de reinos independentes e, de modo geral, a tendência ao particularismo e ao separatismo regionais e locais, também reforçada por outros fatores sociais. De qualquer forma, por necessidades também militares logo se fortalece nos novos reinos um poder monárquico centralizante. Assim, embora inicialmente sobrevivam traços feudais, o processo feudal em geral debilita-se e atrasa e lentamente vão-se preparando as condições que levarão, por fim, à unificação feita pelos Reis Católicos. As monarquias desenvolvem um sentimento regalista; tendem a concentrar a autoridade político-militar; usam as terras reconquistadas para afiançar o próprio poder e impor decisões à nobreza e à Igreja. A nobreza começa a perder autonomia, subordina-se à Coroa, torna-se cortesã em troca da conservação e incremento de terras e privilégios. De modo semelhante, a Igreja é favorecida com bens e privilégios, mas perde autonomia e passa a ser cada vez mais um instrumento do poder monárquico.

Durante os últimos séculos da Reconquista, há um desenvolvimento da criação de gado, do comércio, das finanças e da manufatura. A criação transumante, organizada na Mesta**, produz ovinos para abastecer de lã os centros manufatureiros do norte da Europa e, em seguida, da própria Espanha. O próprio caráter de empresa mercantil que a criação assume e a expulsão de camponeses das terras destinadas à esta atividade contribuem para debilitar o regime de servidão. Isto é acompanhado por uma expansão mercantil e financeira, uma prematura concentração de capitais, o surgimento e consolidação de urna burguesia comercial, Esta participa ativamente no comércio internacional, financia e organiza oficinas artesanais e manufaturas, contribui para desencadear a revolução comercial euro- _________________ * Beetrias: povoações cujos habitantes tinham o direito de eleger a administração. (n.da T.). ** Mesta: sociedade de proprietários de gado(N.da T.)

FORMAÇÃO DO ESTADO NACIONAL 46 peia que destruirá o feudalismo, tem papel decisivo no descobrimento e conquista de regiões ultramarinas. As necessidades da Reconquista e da organização político-militar das zonas recuperadas, e a expansão do comércio e da burguesia mercantil e financeira, estimulam a urbanização revitalizando velhas cidades e criando novas, algumas das quais chegam a ser de primeira grandeza devido à situação peninsular da Espanha. Este processo é particularmente acentuado periferia da península: Portugal,

Page 39: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

Catalunha, Valença, Ilhas Baleares. Ali se constituem "ver adeiros núcleos burgueses, repúblicas mercantis à italiana" (Jean Vilar) e são reforçadas as tendências particularistas e separatistas a que se fez referência.

Baseada em suas próprias forças demográficas e sócio-econômicas e em suas possibilidades organizativas e militares, participante de importância na Reconquista, prestamista dos reis e da nobre apoiada também nos novos estratos urbanos (artesanato, proletariado embrionário), a burguesia começa a pressionar com êxito e favor de seu direito a um certo grau de co-participação no poder político e nos assuntos de Estado. A realeza busca apoio da burguesia para obter recursos destinados à Reconquista- enfrentar e dobrar a nobreza, resolver disputas dinásticas. A burguesia apóia realeza em busca de um poder centralizado que possibilite a expulsão do adversário muçulmano, a criação de um mercado nacional unificado e em expansão, condições de ordem e legalidade, proteção contra os senhores e, mais tarde, apoio na expansão ultramarina. Através da associação com o poder real, às vezes combinada pressão armada, a burguesia obtém, para si e para as cidades em que se estabelece e opera, uma série de direitos, imunidades, concessões e privilégios (cartas e foros, conselhos municipais, irmandades, milícias urbanas, participação em Cortes). Utiliza estas conquistas para reforçar seu poder econômico, financeiro, social, político e militar.

O triunfo final da Reconquista (Tomada de Granada em 1492 coincido com o salto da expansão ultramarina da Espanha (descobrimento da América), os dois processos se articulando em sua origem, desenvolvimento e conseqüências.

O COMEÇO DO IMPÉRIO

A Espanha unifica-se por impulso e sob a égide de uma monarquia centralizada absolutista, que tende a representar mais a tradição castelhana de longa reconquista medieval e a concepção territorial e re-

O ESTADO E A COLONIZAÇÃO ÍBERO-LUSITANA 47 giosa de expansão do que a linha mediterrânea, catalã-aragonesa, de, desenvolvimento econômico sob o signo capitalista. A unificação produz-se num país que, embora na etapa de capitalismo mercantil e financeiro, não liquidou totalmente as formas e vícios feudais. Não se havia concluído a consolidação de uma burguesia forte e inovadora. A existente continua dividida em segmentos regionais, sem integração em uma classe única com visão nacional e capacidade de pressão suficiente para se opor à influência da nobreza e da Igreja e influir decisivamente sobre a monarquia em seu próprio interesse.

Page 40: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

A Coroa espanhola, que faz e mantém a unificação e inicia a expansão ultramarina, governa a metrópole e logo o Império com uma concepção rigidamente absolutista em que conceitos feudais e modernos se entrecruzam sem se integrar. A hegemonia real baseia-se no direito divino e na dignidade da função, e é concebida como premissa e instrumento para a procura e obtenção de finalidades políticas e religiosas: afirmação da hispanidade e da fé católica como valores absolutos para a Espanha e para um inundo a regenerar; unidade imposta de cima para baixo sobre todas as partes da sociedade, obrigadas à subordinação incondicional. Com este fim a Coroa se apóia em seu próprio aparato político-militar, incluindo uma burocracia cada vez mais hipertrofiada e regulamentarista; na nobreza e na Igreja, às quais subordina e favorece simultaneamente; nas possibilidades de riqueza e poder abertas pelo novo império.

Com o triunfo final da Reconquista a nobreza obtém um vastos território e despojos consideráveis, e, a seguir, uma participação privilegiada no domínio, colonização e exploração da América. A alta nobreza é seduzida e domesticada; a pequena nobreza é conduzida à aventura militar externa. As ordens religiosas e militares são colocadas sob controle real. Derrotada em outros países pelo vendavel testante, a Igreja estimula o absolutismo ibérico procurando fazer da Espanha a base e instrumento da Contra-Reforrna. Esta serve à Coroa como fundamento doutrinário do absolutismo e elemento de estruturação de um regime teocrático. A Igreja é também utilizada pela Coroa para subjugar os bispos, os nobres e a burguesia urbana. A Inquisição torna-se onipotente, mais como agente real que pontifício, órgão de unificação absolutista e fonte de recursos (confisco de bens dos hereges). A Coroa segue uma política regalista em suas relações com o Vaticano, conservando sua independência e assim consolidando seu poder interno e sua expansão externa, em troca de concessões e privilégios na metrópole e nas colônias, e de uma rígida defesa da ortodoxia católica. Em todo o do-

48 FORMAÇÃO DO ESTÀDO NACIONÁL mínio do Império a clero cresce em número e em influência social, política e cultural.

A procura e a obtenção da unidade Político-ideológica, suas modalidades e conseqüências, marcam a ação dos Reis Católicos e principalmente o período dos Habsburgos. A unificação política se faz através da união de Castela e Aragão, da tomada de Granada, a incorporação de Navarra (1515) e de Portugal (1580). Entretanto, a unificação formal é feita lentamente e sobre uma vigorosa permanência dos velhos particularismos regionais e das reivindicações autônomas dos velhos reinos e das cidades. Neste processo, a justaposição e a mistura de etnias, religiões e costumes são consideradas perigosas para a unidade nacional e o absolutismo político. O temor de outras Igrejas e possíveis heresias combina-se com a suspeita e ressentimento populares ante a superioridade material dos comerciantes e financistas judeus e dos artesãos o camponeses árabes. A pressão conjunta da nobreza, Igreja, massas populares e banqueiros alemães e italianos resulta na procura simultânea de maior unidade político-religiosa e de uma frutífera expoliação das vítimas. A expulsão em massa dos judeus

Page 41: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

realiza-se em 1492; a dos árabes completa-se entre 1609 o 161 1. Estas expulsões privam a burguesia e a dinâmica capitalista da Espanha de elementos humanos, atividades e técnicas de importância para a agricultura, comércio, finanças, manufatura, administração e cultura. O exclusivismo religioso e a intolerância ideológica estendem-se às correntes filosóficas e críticas que não se ajustam à ortodoxia oficial (iluminismo, erasmismo, protestantismo), e triunfam já no fim do século XVI. Este processo gera ou reforça: a rigidez e a incapacidade para se adaptar às mudanças; o menosprezo pelo espírito de produção e lucro; o fortalecimento do espírito de casta e do poder de grupos improdutivos (Igreja, nobreza); o ruinoso compromisso com uma cruzada universal e interminável.

Por um lado, a riqueza, o poder e o prestígio provenientes dos novos domínios permitem à Coroa, especialmente a partir dos Habsburgos, compensar a perda do ideal medieval de impérito europeu - sem renunciar a ele totalmente - submeter e debilitar a burguesia urbana, sustentar a expansão no continente. Por outro lado, acabam contribuindo para a decadência e ruína da Espanha.

O crescente poderio burguês vinha preocupando os monarcas há muito tempo. As necessidades da Reconquista e da unificação, a dependência financeira e militar frente à burguesia, adiam a solução do conflito. A ofensiva real contra a burguesia urbana vai-se

O ESTADO E A COLONIZAÇÃO ÍBERO-LUSITANA 49 desenvolvendo gradualmente. A Irmandade, polícia urbana, é convertida em polícia do Estado. Os corregedores reais são introduzidos nos municípios. As Cortes são cada vez menos convocadas (nunca entre 1480 e 1497), e os seus procuradores tornam-se funcionários. Finalmente, baseada em seu poder já unificado e em seu novo império, com apoio da nobreza e da Igreja, a monarquia enfrenta a burguesia urbana, por sua vez apoiada nos artesãos e nas camadas populares. Carlos V triunfa em Villalar (1520), esmagando militarmente a burguesia urbana. Esta perde seus foros, seus privilégios o órgãos, seu poder e sua capacidade de influência e pressão sobre a monarquia e sobre a política econômica; retira-se relegada a um papel secundário; torna-se incapaz de passar da fase mercantil-financeira à industrial. O reforço do absolutismo é acompanhado pelo predomínio da nobreza e da Igreja sobre a derrotada burguesia urbana. Através da perseguição de infiéis e herejes, o Santo Ofício desempenha uni papel eficaz no debilitamento e anulação dos direitos e garantias da burguesia e das cidades.

A monarquia embriaga-se com sonhos de hegemonia mundial, compromete o país em empresas despropositadas, de enorme custo e freqüentemente estéreis. Carlos V representa os interesses da Espanha na própria península, no Mediterrâneo, Países Baixos, Áustria, Índias, e pretende ressuscitar o Sacro Império Romano. A dominação espanhola, que chega a englobar desde a Itália e os Países Baixos até as Indias, parece alcançar seu ponto culminante em isso com a incorporação de Portugal. Para manter unido este domínio imperial frente à

Page 42: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

competição e agressividade de outras potências, uma autoridade freneticamente centralizadora exige um tributo crescente em homens, materiais e dinheiro, suga as Índias e os territórios europeus, espolia continuamente a metrópole até esgotá-la e reduzi-la à prestação. Rapidamente surge a escassez financeira e a seguir o endividamento com banqueiros alemães e italianos e os conseqüentes interesses usurários e pesadas garantias. A riqueza das Índias é utilizada para a consolidação e expansão do poder monárquico e das classes dominantes (casas nobres, grande criação de gado, comerciantes monopolistas) e não para o desenvolvimento da metrópole e, menos ainda, das colônias.

Pelos motivos que derivam da análise precedente, a Coroa tem uma concepção geral e uma política econômica puramente mercantil e metalista. Falta-lhe uma visão mercantilista que se traduz no protecionismo e no fomento das manufaturas. Sua burocracia onipresente e regulamentarista, sua fiscalização voraz e opressiva, opri-

50 mem e enfraquecem as energias nacionais e as iniciativas partículares, salvo as dos reduzidos grupos ligados ao poder real e beneficiários de suas medidas. A política real confere um golpe morta nas possibilidades do capitalismo e de emergência de uma burguesia moderna como classe hegemônica. A própria insuficiência do desenvolvimento interno impede a unificação completa através de um mercado nacional estruturado pela interdependència de grupos, ramos e regiões em expansão.

Antes da instalação sólida na Espanha de um esboço orgânico de sistema manufatureiro, a empresa indiana começa a inundar o país de metais preciosos e contribui para gerar um processo inflacionário, parte da "revolução de preços" que sacode a Europa. O valor da moeda cai; aumentam os preços dos produtos, principalmente dos manufaturados, pelo aumento do meio circulante o da demanda (expedições ultramarinas e novas colônias). A qualidade produtos manufaturados começa a decair, inicialmente como um recurso especulativo das manufaturas e artesanatos para satisfazer aumento da demanda e conseguir grandes lucros. Logo começam ser cobiçadas, na Espanha e nas índias, as mercadorias estrangeiras de melhor qualidade e preço. As manufaturas e o comércio europeus não sofrem uma alta tão acentuada de preços, nem têm de pagar impostos tão elevados como os espanhóis. O valor do dinheiro baixa mais na Espanha que no resto da Europa; as matérias primas da península e da índia são compradas a menor preço pelos europeus, que por outro lado podem oferecer seus próprios produtos mais baratos e com lucro, tanto na Espanha como em suas colônias. Agora como recurso para competir com o estrangeiro, queda de qualidade se acentua e, em conseqüência, aumenta ainda mais a demanda de mercadorias européias. A proteção oficial aos produtos espanhóis, anulada pela alta contínua, acaba se transformando em ataque, com os impostos sobre as transações comerciais e sobre o capital. A situação piora com a restrição do mercado pelacompetição externa e por processos internos.

Page 43: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

A perda de rentabilidade e a crescente estagnação das manufaturas espanholas, que começam inclusive a desaparecer, significas a ruína de numerosos empresários e comerciantes, e a pauperização dos artesãos e trabalhadores. Isto restringe o mercado urbano para agricultura o que, aliado ao processo inflacionário, arruina o campesinato e a pequena nobreza que dele vive. A valorização das terras pela inflação estimula sua venda pelos pequenos e médios proprietários em crise à alta nobreza e a um reduzido grupo enriquecido que se alia a ela. A criação ovina organizada na Mesta refor-

O ESTADO E A COLONIZAÇÃO ÍBERO-LUSITANA 51 ça o processo de expulsão de pequenos camponeses e jornaleiros rurais . O latifúndio estende-se amplamente, estimulado pela ideologia mortal e política tradicionalista dos Habsburgos (favorecimento da grande burguesia propriedade e sua imobilização jurídica: morgadios*, vinculações, manos muertas). A terra torna-se cada vez mais improdutiva. A população expulsa do campo não encontra saída na manufatura e no comércio das cidades, que se estagnam progressivamente; cai na desocupação, na miséria e vagabundagem, ou se lança à aventura ultramarina. A ruína simultânea das camadas médias e baixas da cidade e do campo restringe permanentemente o mercado interno para uma burguesia espanhola comercial e incipientemente manufatureira, carente de proteção, incapaz de competir com seus iguais da Europa e de passar da fase mercantil-financeira à industrial. A produção espanhola torna-se incapaz de satisfazer o mercado interno e o colonial.

Entrelaçam-se atraso, parasitismo e dependência externa. A penetração comercial dos outros países europeus é intensificada e acelerada por sua competividade superior e pela própria política econômica da monarquia. O monopólio do comércio com as Indias é entregue pelo monarca a várias famílias de nobres espanhóis que carentes de aptidão produtiva e comercial, arrendam seus direitos a outros europeus. Estes últimos são os verdadeiros fornecedores, embora submetidos ao regime imposto pela Coroa. Enviam seus produtos - legalmente ou por contrabando - a Cádiz, cidade que monopoliza o comércio com a América, e ali operam sob nomes falsos ou de comissionados espanhóis. Franceses, holandeses, italianos, ingleses fornecem cada vez mais os bens necessitados pela Espanha e colônias. Os espanhóis se reduzem crescentemente a funções de mera intermediação o transporte. A dependência financeira manda Coroa a banqueiros alemães e italianos entrega a estes recursos básicos do comércio interno e internacional, as finanças e as manufaturas.

A riqueza proveniente das Indias não se fixa na Espanha nem se incorpora a um ciclo produtivo interno, não é utilizada para se equipar e modernizar. Passa ao largo e através de uma cadeia de intermediários, reforça o desenvolvimento econômico e a expansão imperial da Holanda, França o Grã-Bretanha. A Espanha termina perdendo a hegemonia na Europa (independência dos Países Baixos, que passam a agressivos competidores, fracasso da Invencível ____________ * Morgadio: conjunto de bens vinculados. (N. da T.).

Page 44: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

52 FORMAÇÃO DO ESTADO NACIONAL Armada, derrota de Rocroi, crescente supremacia da França e Inglaterra), e parece ir fazendo inconscientemente todo o possível para perdê-la também na América. A decadência interna e externa se superpõem, se entrelaçam e se influem reciprocamente.

O crescente atraso e as formas sociais e ideológicas que são seus reflexos ou acessórios agravam os fracassos, acentuam o isolamento das correntes internacionais de desenvolvimento, estimulam a tendência a não se confrontar, a se voltar para dentro num esforço contínuo de ortodoxia rígida e de absolutismo sem compromisso. Quanto mais se divorcia a política da realidade, quanto mais numerosos e graves são os erros e as derrotas, maior é a incapacidade da Coroa para enfrentar e superar os problemas, mais tende a se refugiar no conceitualismo abstrato e no regulamentarismo opressivo que aprofundam outra vez o abismo entre projetos e resultados, num ciclo circular acumulativo que sempre recomeça.

Este processo é, como se disse, basicamente paralelo à época dos Habsburgos, mas já quando da morte de Felipe, II o balanço é aterrador. A decadência se manifesta em todos os aspectos e níveis da realidade espanhola. A unidade nacional não se havia completado real e organicamente. O particularismo regional expresso nos antigos reinos não se extinguiu sob a integração absolutista. Esta opera de fato com extrema prudência, e no início do século XVIII, com o Conde-Duque de Olivares, realiza uma primeira tentativa de centralização violenta, quando o esgotamento do centro espanhol começa a ser perceptível. Em 1640, Portugal recupera a independência. A Catalunha se oferece à França no mesmo ano e, embora esmagada, torna a procurar a rebelião entre 1700 e 1714. O latifúndio estendeu-se em grau sem precedentes, ao mesmo tempo que se mantém o corporativismo. A desorganização e a estagnação, o atraso e a decadência caracterizam a agricultura e a manufatura. O mercado interno restringiu-se e congelou-se. O uso dos recursos e rendas é irracional e é baixa a taxa de formação do capital nacional. O esforço produtivo caiu em descrédito. A administração revela cada vez mais sua ineficácia e obsoletismo. A escassez financeira torna-se permanente. A crise econômica projeta-se, dobra-se e reforça-se na decomposição social, manifesta através do despovoamento, vagabun- dadagem, criminalidade, parasitismo. A opressão e o terror reinam na vida política e ideológica, contribuindo para o retrocesso da cultura, acentuado e aprofundado ainda sob o esplendor do Século de Ouro. A irracionalidade e a atonia impõem-se.

O ESTADO E A COLONIZAÇÃO ÍBERO-LUSITANA 53

B. O SISTEMA COLONIAL

Page 45: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

A conquista e a colonização da América pela Espanha (e Portugal) combinam vários processos complexos o contraditórios: prolongação da reconquista militar da península no Novo Mundo; transplante de elementos de um feudalismo em decomposição; projeção do capitalismo mercantil-financeiro, em parte espanhol e em parte integrante da dinâmica expansionista da Europa Ocidental. Os traços e efeitos desta sobreposição e hibridação de formas sócio-econômicas, políticas e culturais são tão diferentes como decisivos.

A América Latina entra na história universal - do ponto de vista do etnocentrismo europeu - sob o signo da relação de dependência. Sua estrutura e dinâmica globais, regionais e setoriais, as formas e conteúdos do sistema político e do Estado vão sendo configuradas inicialmente pelos interesses, necessidades e decisões dos grupos dominantes da Espanha (e Portugal) e simultânea e crescentemente pelos do capitalismo euro-ocidental, assim como dos grupos agropecuários, mineiros, mercantis e financeiros das colônias. O traço de dependência também se relaciona, desde o princípio, com a característica de um desenvolvimento desigual e combinado. A dependência liga a região a países que gozam de um grau superior de desenvolvimento, priva-a da possibilidade de progresso autônomo e acentua permanentemente a desigualdade inicial. Do mesmo modo, impõe-lhe uma aproximação e entrelaçamento de etapas históricas e de formas sócio-econônlicas, políticas e culturais - arcaicas, intermediárias e modernas. Os processos e estruturas resultantes determinam, não uma repetição das etapas e formas precedentes da história peninsular ou da americana, mas ampla gama de combinações específicas e inéditas.

A conquista e a colonização da América são realizadas por uma Espanha que passa do feudalismo a uma primeira etapa de capitalismo mercantil-financeiro. Forças, formas e traços feudais e semi-feudais entrelaçam-se em outros de tipo capitalista na empresa colonial espanhola (e portuguesa), nas próprias colônias, e nas relações de ambas entre si e com a economia internacional. Entretanto, as forças e formas capitalistas acabam prevalecendo sobre as feudais e semifeudais. A empresa colonial é parte da expansão capitalista mundial, caracterizada pela revolução comercial, mercado internacional e predomínio da produção em grande escala para venda e lucros. O Império é visto pela Coroa e classes dominantes da Espanha como o meio de participar das novas possibilidades de riqueza,

54 FORMAÇÃO DO ESTADO NACIONAL poder e prestígio que o desenvolvimento capitalista abre para a Europa e para o mundo sob sua órbita. As motivações mais profundas e decisivas da conquista e colonização não foram a cruzada religiosa, moralizadora e humanista, nem a sede de heroísmo o fama. Estes elementos, embora presentes, encobrem e reforçam as motivações reais: aquisição e acumulação de metais preciosos, terras, matérias- primas e mão-de-obra, para satisfazer os apetites e necessidades da monarquia absoluta, os grupos dominantes da metrópole, os conquistadores, as potências européias em ascensão e o

Page 46: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

mercado mundial. A dominação e a espoliação estarão motivadas em última e decisiva instância pelas necessidades de produção, comércio, acumulação e inversão dos países capitalistas avançados e do novo sistema internacional em marcha. As sociedades latino-americanas serão desde o início dependentes e subdesenvolvidas, mas não feudais.

NATUREZA DA MONARQUIA METROPOLITANA

Como se pode depreender em grande parte da análise já realizada, a monarquia absoluta em vigor na Espanha e suas colônias americanas não chega a constituir um Estado verdadeiramente moderno. É expressão política institacionalizada ao mesmo tempo que fator determinante de uma sociedade que não finalizou a passagem de um feudalismo em decomposição a um capitalismo mercantil a caminho da industrialização. No seio desta sociedade coexistem heterogêneas estruturas sócio-econômicas, institucionais, políticas e culturais, correspondentes a formas organizativas e a etapa históricas muito diferentes. Nesta sociedade não existem as condições de predomínio do intercâmbio e competição, nem da mercantilização generalizada; as relações sociais não se estabeleceram entre indivíduos privados e autônomos, através da molecularização do corpo social. Estas condições, no entanto, são pré-requisitos da aparição e consolidação do Estado Moderno ocidental como nível político específico e instância de universalidade política, com unidade interna própria e autonomia relativa. A monarquia absoluta espanhola não é expressão de uma burguesia ascendente em luta contra o feudalismo, inclinada a mais cedo ou mais tarde instaurar sua total hegemonia na sociedade e no Estado. Ao contrário, o absolutismo espanhol é reflexo da estagnação crescente e do equilíbrio e sobreposição a um conjunto de relações contraditórias (entre a Espanha e suas colônias e o resto do mundo ocidental; entre a própria monarquia e as classes dominantes e dominadas das colônias, etc. ), que possibilitam e exigem do

55 ESTADO E A COLONIZAÇÃO ÍBERO-LUSITANA Estado um alto grau de independência relativa e sua função de árbitro.

Assim a conquista e colonização são iniciadas e feitas em grande parte por iniciativa e sob controle de uma monarquia centralizadora, que irá adquirindo e fortificando os traços de paternalismo e de iniciativa. Não são unia empresa particular. Os domínios americanos são propriedade privada da Coroa (de Castela), institucionalizados como reinos unidos ao espanhol por laços dinásticos. A conquista e colonização são realizadas como empresa pessoal da Coroa de Castela, articuladas, orientadas e dirigias pelo Estado a fim de fortalecer seu poderio econômico, político, militar e religioso. A Coroa aceita ou recusa ofertas de conquista e povoamento, ou supre a falta de iniciativas particulares; oferece empresas ou as executa ela mesma. As expedições mais particulares fazem-se dentro do padrão do Estado, e seus chefes são depositários da autoridade, real. Por este caráter inicial e por seu próprio absolutismo, a monarquia espanhola sente-se naturalmente capacitada a tratar os novos territórios como seu

Page 47: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

domínio exclusivo e direto e a transplantar e a subordinação política, os modelos de organização sócio-economica, as leis e instituições, a ideologia e a religião.

Nas primeiras expedições há predomínio de interesses privados e iniciativas individuais, e unia ação de mera pilhagem. Entretanto, a Coroa logo aumenta sua participação ativa na determinação dos esboços e normas da empresa colonial e passa a uma exploração mais regular e orgânica. A caracterização, por parte da monarquia, da dinâmica original e permanente como centralizadora o paternalista é perceptível na conformação e funcionamento do sistema sócio-econômico, uma expressão típica do que é eufemisticamente denominado "Pacto Colonial". Seu exame deve ser feito no quadro mais geral da política econômica metropolitana.

A POLITICA ECONÔMICA

A política econômica imperial começa a ser elaborada e aplicada já no século XVI. As decisões dos monarcas e dos altos funcionários são determinadas e condicionadas por um entrelaçamento de elementos feudais, absolutistas e capital-rnercantilistas, em parte herdados e em parte emergentes das próprias condições da metrópole e do processo de conquista e colonização. Os elementos imputáveis à herança feudal e à dinâmica peculiar do absolutismo espanhol são basicamente- a desvalorização do trabalho, da orientação produtiva,

56 da atitude empresarial, da racionalidade, da ciência e da tecnologia; as concepções tecnológicas e metafísicas; o despotismo teocrático da Contra-Reforma. Isto é reforçado pela falta de influência efetiva e de domínio sociopolítico e cultural dos grupos metropolitanos inovadores e racionalistas. Do mesmo modo, faltam à monarquia espanhola tradições e, técnicas científicas em matérias econômicas, financeiras e administrativas. O deficit conseqüente contrasta com a vastidão e complexidade da empresa americana e suas exigências. À extrema diversificação e novidade de realidades físicas, étnicas, sociais e culturais em que se deve agir, alia-se a insuficiência de recursos humanos, materiais e organizativos, agravada pelos compromissos europeus e pelo processo de decadência interna e de atraso na competição internacional. Em sentido contrário devem ser computados: a prolongada experiência política da monarquia ibérica na própria península e na Europa, sobretudo durante a transição do feu- dalismo na Idade Média e especialmente por exigências da Reconquista; a prematura conquista e colonização de vastos territórios densamente povoados; o conseqüente estímulo representado pela envergadura do desafio a enfrentar e superar; o prolongado período de dominação.

Page 48: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

A elaboração e execução da política econômica reflete e incorpora de, forma contraditória duas linhas básicas de forças. Por um lado, busca-se a preeminência dos interesses de riqueza, poder e prestígio da Coroa. Por outro sofre-se inicialmente a pressão de grupos e interesses metropolitanos e europeus (aristocracia, manufaturas e comércio peninsulares, Igreja, capitais e Estados estrangeiros), e a seguir a pressão de grupos dominantes americanos (latifundiários, mineiros, encomendeiros*, grandes criadores, comerciantes, financistas, clero, funcionários locais). A realidade americana retrata e modifica as intenções originais da Coroa e da metrópole. O entrechoque de conflitos gerais e setoriais entre os diferentes grupos incide na concepção, aplicação e resultados da política econômica.

A Coroa parte essencialmente de uma concepção absolutista, traduzida na procura, permanente da preponderância do Estado imperial, centralizador, onipotente e onipresente. Do centro político-administrativo da metrópole decide-se e regula-se autoritariamente tudo que se refere às colônias, inclusive os menores problemas dos lugares mais distantes. Um regulamentarismo minucioso e universal

O ESTADO E A COLONIZAÇÃO ÍBERO-LUSITANA 57 pretende operar sobre todas as forças, atividades e formas, sendo múltiplas as conseqüências deste traço marcante da ação imperial na América. Basta salientar aqui, do ponto de vista global, que se produz uma sobreimposição sem integração da autoridade, instituições, Direito, linguagem, religião e cultura da metrópole à uma realidade geográfica, histórica e sócio-econômica parte herdada do período pré-colombiano e parte criada pela própria colonização. Assim, aparece prematuramente a dicotomia entre o país aparente ou formal e o país real, contribuindo para reforçar a falta de integração por interdependência e que, com modificações, perdura nos países latino-americanos até o século XX.

O PACTO COLONIAL

Em função do quadro global, metropolitano e internacional e de sua própria concepção absolutista-mercantilista, a Coroa espanhola não tarda a pretender explorar os recursos e aproveitar as possibilidades dos novos territórios, através da conformação e ordenamento da ocupação, produção, comércio, fiscalização e estrutura sociopolítica. A economia das colônias hispano-americanas recebe uma organização radial e centrífuga, com origem e eixo na Espanha, hermeticamente fehada a todo elemento externo e destinada a funcionar para as necessidades da metrópole e em seu proveito exclusivo. Os objetivos básicos a atingir são: a provisão de matérias-primas baratas e de metais preciosos; o consumo de produtos enviados da metrópole (ou através dela); a criação e transferência de um grande excedente econômico; a obtenção de uma balança comercial favorável. A economia colonial só pode-se desenvolver na medida das necessidades e interesses comerciais, financeiros e fiscais da metrópole, ou, ao contrário, infringindo diretamente as normas tutelares por ela impostas.

Page 49: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

O nível e a composição da demanda internacional, o fetichismo mercantilista e as necessidades fiscais da Coroa, a insuficiência e precariedade dos meios de transporte e os altos fretes resultantes determinam que só sejam rentáveis a produção e exportação de bens coloniais de grande valor e pouco peso, de melhor colocação no mercado mundial, particularmente os metais preciosos. A monarquia e os particulares que ela ampara ou promove só se preocupam em criar condições para a obtenção de ouro e prata, culturas tropicais (açúcar, algodão, arroz, tabaco, cacau), madeira para a construção urbana e naval. As restantes atividades produtivas ou lucrativas do

58 FORMAÇÃO DO PSTADO NACIONAL período colonial fazem-se em conexão com a produção exportável (transporte marítimo, tráfico de escravos, artesanato e, serviços para os grandes domínios e as cidades intermediárias da costa); ou por necessidade forçada, na falta de outras possibilidades. A produção é determinada por este único ou predominante objetivo de exportação para a metrópole para satisfazer a voracidade fiscal da Coroa, o consumo supérfluo dos grupos de poder, e para outros objetivo limitados. A progressiva decadência da Espanha e sua crescente subordinação às potências em ascensão aliam ao objetivo anterior o de ingressar nos fluxos do capitalismo mercantil e manufatureiro da Europa ocidental (Holanda, França, Grã-Bretanha). Esta avaliação prioritária das atividades produtivas reflete-se na organização político-administrativ o a: os vice-reinados são criados nas regiões mineiras do México, Peru e Nova Granada. Em troca de metais preciosos e de outros artigos de fácil colocação, a Espanha satisfaz em certa medida as necessidades de bens de produção e consumo das colônias. Estas são inicialmente mais importantes como fornecedoras, passando depois a se converter também em consumidoras.

Para aproveitar melhor as possibilidades americanas em seu próprio interesse e no dos grupos que expressa ou patrocina, a Coroa, impõe um sistema rígido de monopólio mercantil, sob severa fiscalização do governo. Impede o acesso dos estrangeiros aos recursos americanos e restringe todo tráfico com as colônias ao comércio e manufaturas da Espanha (monopólio do porto de Sevilha e, a seguir, proibição da imigração e comércio para os não-espanhóis, regime de frotas, galeões e feiras). O esquema subjacente de divisão geográfica do trabalho é possibilitado pela superioridade produtiva e militar da metrópole. Assim, em teoria o comércio colonial só pode fluir entre a Espanha e cada colônia por determinados portos em ambos os extremos, sob impulso e controle dos grupos metropolitanos beneficiados pelo monopólio, excluindo os grupos locais da América e de outros países. Proibições rígidas e sanções severas fulminam todo tráfico ou contato entre as colônias e entre estas e o estrangeiro, o todo processo produtivo autônomo que possa competir com empresas e atividades da metrópole, especialmente as manufaturas. As restrições legais contribuem para criar e fortalecer monopólios atravês de corporações privilegiadas de comerciantes e transportadores espanhóis dedicados ao tráfico colonial e que, dados os enormes benefícios originados, não resistem muito ao regulamentarismo e aos impostos (transmissíveis ao consumidor) da Coroa. Esta

Page 50: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

política, expressa nas interdições diretas e na não-criação de meios de transporte e comunicação entre as colônias, reforça o peso já esmagador

O ESTADO E A COLONIZAÇÃO ÍBERO-ILUSITANA 59 das distâncias e obstáculos naturais. Assim mantém-se e agrava-se o isolamento entre as regiões, e em conseqüência a falta ou debilidade da interdependência e integração geo-econômicas. A difusão generalizada o a influência crescente do contrabando irão evidenciando cada vez mais as falhas e insuficiências do sistema monopolista.

OBJETIVOS E INSTRUMENTOS

A elaboração e o funcionamento da política econômica geral e do "Pacto Colonial" supõem e exigem o cumprimento de uma série de objetivos e a criação e uso de um instrumental. Os objetivos são assumidos e o instrumental exercido primordialmente pela Coroa e parcialmente pelos grupos dominantes, mas sob a proteção e supervisão, ou colaboração, daquela. Os principais objetivos e instrumentos são: o aparato administrativo colonial, a acupação terrítorial, a urbanização, a organização de uma estrutura sócio-eeonômica, a regulação e supressão do conflito.

a O aparato administrativo colonial

A promoção, defesa e, consolidação dos interesses da Coroa e dos grupos metropolitanos e coloniais por ela representados em maior ou menor grau tendem a ser assegurados através de uma máquina burocrática, que compreende o próprio centro metropolitano e, uma rede de órgãos locais. O sistema político-administrativo estrutura-se em grande parte através de um transplante de instituições e organismo peninsulares, para impor a soberania do poder monárquico, defender seus direitos e interesses e os dos grupos dominantes, promover e supervisionar a conquista e a colonização, regular o equilíbrio entre as classes sociais.

O sistema político-administrativo imperial tem seu centro no próprio monarca, na Casa de, Contratação* de Sevilha e no Conselho das Indias, abrangendo todos os âmbitos da gestão burocrática, a legislação, justiça, comércio, finanças, guerra e religião. O centro metropolitano prolonga-se na América , de início através do adelantado ** e logo do vice-reinado , capitania -geral, presidê- ________________________

Page 51: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

* Contração : comércio de mercadorias( N. da T.) **Adelantados pessoa a quem o mando de uma expedição marítima , concedendo-lhe de antemão o governo das terras que descobrisse ou conquistasse. (N.da T.).

60 FORMAÇÃO DO ESTADO NACIONAL cias, tribunais, corregedores. Os órgãos reais nas colônias estão submetidos, direta ou indiretamente, à autoridade da Coroa e abrangem uma gama variavelmente ampla de funções sem delimitação precisa. Esta não-delimitação de funções, como a de poderes entre as diferentes pessoas e entidades, é usada para que se contrabalancem mutuamente, para impedir um grau excessivo de autonomia que ameace a autoridade real, para outorgar a esta grande liberdade de decisão. Os funcionários reais na América devem aplicar as decisões o normas da Coroa, mas sob seu controle. Para assegurar sua lealdade ao monarca lhes é proibida a ligação com as aristocracias locais por laços econômicos e familiares. Uma de suas funções essenciais é o controle dos grupos sociais e da Igreja, que por sua vez os vigia. Traço característico do sistema, de influência duradoura, é a fusão da autoridade política com a militar imposta pela necessidade de dirigir zonas ja conquistadas, próximas a outras por conquistar ou ameaçadas pela cobiça de potências rivais.

A Igreja ocupa um lugar fundamental neste sistema. A religião católica é concebida e usada como ideologia justificadora do próprio poder real, da conquista e colonização, e da Igreja mesma como aliada e instrumento da Coroa. Esta desenvolve, como se viu, uma política regalista em suas relações com a Igreja espanhola e com o Papado. O domínio e patronato real sobre a América, consolidados por Roma, contribuem para reforçar a hegemonia real sobre a Igreja. A administração eclesiástica na América está nas mãos do monarca, que exerce poderes verdadeiramente pontifícios. O clero recebe benefícios e privilégios de todo tipo, mas por meio da Coroa; torna-se meio e hierarquia da administração colonial; exerce forte controle sobre as classes e grupos coloniais, em benefício da monarquia. Por outro lado, a Igreja continua sendo um poder não totalmente identificado ou subordinado à Coroa, com independência relativa e interesses próprios, o que gera atritos e lutas, com aquela e outros grupos, por renda, poder e prestígio. A Igreja chega a adquirir forte poderio econômico, social, político e cultural. Acumula propriedades em terras produtivas e lucros, convertendo-se no primeiro latifundiário colonial. Às vezes, realiza a organização produtiva da mão-de-obra indígena. Executa operações imobiliárias, comerciais e financeiras, inclusive empréstimos a juros. Recolhe grandes recursos, não só por suas propriedades específicas, mas também pela tributação (dizimo) e doações, e pelas isenções impostas. Membros do clero têm freqüentemente, acesso a funções públicas importantes. A Igreja tem um foro e sistema de tribunais próprios. A isto se aliam obras evangelizadoras, educativas, ideológicas, admi-

61 O ESTADO E A COLONIZAÇÃO ÍBERO-LUSITANA nistrativas (registro de nascimentos e mortes cemitérios) de controle social de criação do conformismo ao sistema vigente. Sua influência no sistema sócio-econômico não se manifesta só nos aspectos e níveis indicados. A Igreja permite emprego seguro e fácil a considerável número de indivíduos, canaliza energias

Page 52: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

individuais, oferece um meio de ascensão social e política e de acesso à cultura. Contribui para o enfraquecimento das vocações econômicas, o aumento dos setores improdutivos e, portanto, para a mais intensa exploração dos produtivos. A perseguição religiosa, especialmente a Inquisição, ocasiona pânico, insegurança e confiscos, ajudando assim a limitar a expansão das camadas médias urbanas de manufatureiros, mercadores e profissionais. Um efeito similar deriva da promoção e controle pela Igreja de múltiplas organizações de participação obrigatória, sendo proibidas a competição de grupos e entidades autônomas.

Ao centro metropolitano e aos órgãos e funcionários reais nas colônias alia-se um poder político local. Este tende a ser predominantemente a representação dos mais poderosos grupos sociais americanos, a operar como instrumento de consolidação oligárquica e de conservadorismo social, e inclusive a se chocar ocasionalmente com o poder imperial e seus representantes diretos. Elemento im- portante do sistema geral e local, é o Cabido*. Sobre seu significado e gravitação desenvolveu-se uma polêmica interminável, que oscila entre aqueles que afirmaram sua grande independência do poder real e seu caráter de célula democrática e gérmen do federalismo de após-emancipação, e aqueles que sustentam sua fraqueza, subordinação ao centralismo monárquico, carência de representatividade, falta de gravitação e eficácia. Sem entrar nas discussões, pode-se dizer que a natureza dos Cabidos, o conteúdo e alcance de sua ação, mostram grande variação no tempo e espaço em relação ao grau de poder autônomo, variabilidade de funções e de influência, e em função do tipo de região em que se situem, objetivos a que circunstancialmente se proponham, efetividade das comunicações, proximidade e intensidade de controle das autoridades reais superiores.

O intervencionismo paternalista e o forte desejo de centralização político-administrativa da Coroa exigem e provocam uma expansão da burocracia urbana, intermediária entre as regiões coloniais e a metrópole, entre as populações americanas e a Coroa, entre os grupos sócio-econômicos componentes de cada esfera ou nível, den- ______________- * Cabido: corporação dos cônegos de uma catc&al. (N. da T.).

62 FORMAÇÃO DO ESTADO NACIONAL tro da complexa dialética do sistema. Assim, desenvolvem-se aparatos articulados de governo, influentes sobre as sociedades e regiões que administram, que se convertem com as limitações derivadas do zelo centralizador e da desconfiança da monarquia - em fonte e chave da obtenção o gozo de poder e riqueza. A função pública opera como base e instrumento para multiplicação das rendas, privilégios e possibilidades de acumulação. A luta pelo controle do aparato - político-administrativo torma-se essencial e é facilitada a criação da tendência ao crescimento auto-sustentado e auto-acumulativo da própria burocracia- seus poderes e esferas de ação. Unia constelação de grupos e interesses se origina e gira em torno da burocracia e suas famílias. Aquela absorve parte considerável da renda colonial, uma porção da qual devolve ao circuito interno para satisfação de suas necessidades e ambições.

Page 53: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

A administração espanhola conseegue conservar intacto o domínio da América e exercê-lo por mais de três séculos. Entretanto, o fato de que um poder político-administrativo supercentralizado, como superestrutura do sistema de exploração colonial, tenha pretendido dirigir até nos menores detalhes uma realidade complexa e distante conseqüências para a própria burocracia. Por um lado, este fato, traz e contribui para conferir à burocracia real suas características de peso e lentidão; por outro lado, origina e reforça o conflito entre a norma e a prática, generalizando a evasão, e cria a necessidade de expandir e fortalecer permanentemente o aparato burocrático indispensável à aceitação e cumprimento das leis e ao funcionamento das instituições. Isto, por sua vez, tornando a atividade administrativa pesada e opressiva, realimenta a contradição original e as tendências à infração, num ciclo de causalidade circular acumulativa. Um exemplo elucidativo é o da Fazenda fiscal.

Como já foi visto, a Coroa tem uma dinâmica de centralização e expansionismo universal, determinada por e tendente a objetivos e necessidades de unidade e estabilização internas na metrópole e nas colônias; de lutas internacionais; de manutenção de um aparato político-administrativ,o e militar de grande envergadura em extensas e dispersas regiões de vários continentes. Tudo isto cria uma necessidade inesgotável e crescente de bens, homens e dinheiro. A angústia financeira é crônica e, se resolve pela multiplicação de impostos, contribuições forçadas, confiscos, emissões, endividamento, acompanhados de uma grande falta de apreensão frente aos problemas econômico-financeiros e as opções adotadas. A acumulação de cobranças arbitrárias, através das quais a Coroa extrai soma considerável do excedente econômico das colônias, exige para seu recebimento

O ESTADO E A COLONIZAÇÃO IBERO-LUSITANA 63 um custoso aparato burocrático, que deve ser financiado por uma grande parte do que foi arrecadado.

b. Ocupação territorial

A conquista feita em menos de 50 anos e a subseqüente colonização necessitam de uma empresa de ocupação territorial em grande escala. A ocupação sumária dos primeiros destacamentos logo cede lugar ao povoamento orgânico e à exploração sistemática dos territórios ocupados, através do regime de capilaciones, adelantados e capitanias. Neste campo a Coroa assume e executa uma série de decisões e tarefas. Escolhe em parte as regiões a serem ocupadas, de acordo com as conjunturas emergentes do próprio processo, as características geográficas, a quantidade e qualidade de recursos naturais e mão-de-obra. Recolhe, aproveita e organiza as áreas obtidas pelo individualismo brutal dos conquistadores. Promove e regula a vinda de homens, capitais, instrumentos e técnicas da metrópole para a ocupação e exploração dos novos territórios. Mobiliza meios e grupos militares e

Page 54: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

administrativos para impor o aplicar a dominação e a política imperial. Autoriza e estimula o fluxo de elementos populares, médios, e de baixa nobreza. Esporadicamente, facilita a transferência para as índias de espanhóis com ofícios e profissões úteis (artesãos, técnicos e comerciantes), embora isto se choque com a necessidade destes elementos na península e de proteção dá manufatura e comércio da metrópole. Determina os setores sociais e os tipos humanos aos quais abre o caminho da América. A imigração para as colônias é severamente regulamentada, com critérios discriminatórios em relação ao número e natureza dás pessoas que pretendam se radicar. A disponibilidade e regulamentação do uso da mão-de-obra indígena, logo escrava, é parte da tarefa de ocupação territorial e da referente à conformação sócio-econômica dos novos domínios.

C. Urbanização

A Coroa tem um papel essencial na conformação do sistema urbano, peça importante na estruturação e funcionamento do sistema e da sociedade colonial hispano-americana. São os representantes diretos da monarquia que levantam os primeiros povoados e cidades, que desde o início e por muito tempo têm um, forte caráter de fun-

64 FORMAÇÃO DO ESTADO NACIONAL dação. Em seu próprio território e na América, a Espanha nua uma secular tradição greco-latina, mulçulmana e castelhana: prolonga em suas colônias os movimentos medievais de fundação de cidades na Europa meridional. No princípio da conquista é criada a maior parte das principais cidades latino-americanas que subsistem até hoje. Esta criação de cidades é um ato de posse e um ato político, atribuindo aos novos povoamentos o título e status especial de cidades. Funciona também como transplante do protótipo físico e jurídico do município castelhano ao final da Idade Média, (fundações, de vilas com vereadores, imediata instituição da força e do pelourinho como símbolos do poder municipal), com as limitações derivadas do absolutismo centralizador dos Habsburgos. As cidades coloniais são criadas por várias necessidades básicas e destinadas a satisfazer diversas funções essenciais: devem ser centros político- administrativos, para o controle do território e estabelecimento da população peninsular. Constituem a base de inserção e expansão da burocracia imperial e local. Servem às finalidades de transporte, comunicações e defesa, ou são seu resultado. Proporcionam sedes religiosas ou pontos de apoio para a evangelização. Possibilitam a incorporação dos povoadores a comunidades organizadas e sua articulação como meio de representação política frente à Coroa, A própria política mercantilista, como descrita, atua como fator de loca- lização urbana . Antes de tudo, as cidades hispano-americanas constituem instrumento fundamental de imposição e funcionamento do domínio metropolitano sobre as colônias. São intermediárias dependentes entre a metrópole e o hinterland rural; extraem e canalizam o excedente econômico do campo, das minas e das massas camponesas, que em parte retêm e incorporam, e em parte transferem ao centro peninsular, como seus satélites. Finalmente, a monarquia traça e impõe uma regulamentação urbanística. Fixa através de normas legais o esquema básico ao qual, em princípio, deve-se

Page 55: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

ajustar a estrutura das cidades coloniais (escolha do lugar, estabelecimento do plano, normas rígidas de situação e edificação). Deve-se observar, entretanto, que, por lógica, a aplicabilidade das normas reais de povoamento e urbanização depende em grau variável das condições específicas em que se situem. A situação e a estrutura das cidades são determinadas em grau significativo por estas condições, tanto originais como emergentes do processo de colonização e dos ciclos econômicos em que participam ou aos quais estão submetidas as dependências americanas.

O ESTADO E A COLONIZAÇÃO ÍBERO-LUSITANA 65

d. Organização de uma estrutura sócio-economica

A estrutura sócio-econômica que a Coroa contribui fortemente para criar e manter pode ser caracterizada globalmente, colocadas de lado as diferenças quanto à ordenação e nível de desenvolvimento entre as diferentes regiões do império hispano-americano. As características gerais surgem em parte da política econômica antes analisada por alto: ordenação radial e centrífuga; imposição do monopólio comercial; promoção de monoculturas agropecuárias e mineiras, a partir de unidades em grande escala e com base no trabalho forçado (servil ou escravo) de massas indígenas e africanas; predomínio dó setor exportador que funciona em relação ao mercado mundial, e aos mercados zonais ou locais organizados em torno das unidades que operam para o exterior. Por sua vez esta conformação geral é fator de localização e estruturação das atividades produtivas, comerciais e administrativas dos grupos sócio-econômicos e dos núcleos de povoamento. O predomínio do setor monoprodutivo-exportador, já por si pouco diversificado, significa sobretudo a canalização e localização dos fatores materiais - e humanos para as zonas caracterizadas pela existência e abundância de recursos naturais e mão-de-obra, sua aplicação só nas produções exportáveis ou em atividades correlatas, o estímulo à criação de gado e à mineração, em prejuízo da agricultura e manufatura, o abandono ou sub-utilização das zonas interiores e sem acesso aos portos e vias fluviais (exceto nas jazidas minerais mais importantes), a fixação de limites à ocupação efetiva do território, e os fortes desníveis regionais. Entretanto, é importante ressaltar que, em parte apesar de e em parte por tudo isto, a diferenciação regional e a descentralização de fato não deixam de se produzir. Os problemas financeiros da Coroa causar a redução dos custos da política indiana e, conseqüentemente, das dimensões do aparato político-administrativo de controle central. O impacto das guerras e depressões sofrido pela Espanha, principalmente no século XVII, atenua periodicamente a dependência férrea das colônias, as dissocia por um tempo, permitindo-lhes corto desenvolvimento autônomo. De qualquer forma, as regiões vão adquirindo um grau crescente de personalidade própria, traduzido na lenta emergência de comunidades pré-nacionais.

Page 56: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

O Estado metropolitano intervém direta e indiretamente na organização do sistema produtivo e na conformação da estratificação social. Participa na produção através das minas exploradas por administração e das encomiendas reais. Outorga doações de terras o encomiendas de índios, jazidas e privilégios de mineração, monopó-

66 FORMAÇÃO DO ESTADO NACIONAL lios comerciais, a conquistadores, colonizadores e favoritos. Tem papel decisivo na criação, mobilização e regulação da oferta de mão-de-obra forçada - escravidão dissimulada dos indígenas e aberta dos negros - em condições de abundância, disciplina o baixo nível de consumo (cuat-quít, mita*, reduções indígenas, tráfico negreiro). Decide e executa movimentos forçados de trabalhadores, caçadas de mão-de-obra dispersa, e sua concentração em lugares de melhor aproveitamento. O desocupado participa sob coação de expedições militares para conquista e colonização do interior.

Não é menor a incidência da ação estatal na emergência, consolidação e evolução do sistema de estratificação social,. Esta ação contribui decisivamente para a existência e funcionamento de uma sociedade hierarquizada, polarizada e rígida. Participa na criação de classes e grupos sociais, na determinação de sua situação, stwus, funções e limites recíprocos. Uma de suas preocupações mais intensas neste campo é a de manter o equilíbrio de modo que nenhuma das classes se torne demasiado poderosa e independente e estejam todas subordinadas à Coroa. Protege-se alguns grupos face e contra outros, mas nunca algum permanentemente, e quando há conflitos a Coroa distribui alternativamente sua influência. O poder real espanhol nunca abandona sua faculdade de mudar as estruturas sócio-econômicas e sua ação visando a regulação e supressão do conflito.

A sociedade colonial divide-se de início em conquistadores e conquistados, ao que logo se alia a cisão entre grupos dominantes subordinados médios e dominados, e entre peninsulares e nativos. A estratificação social cristaliza-se e adquire contornos definidos nas cidades antes de tudo (conquistadores, primeiros povoadores, vizinhos, moradores, massas proletarizadas, marginais).

A Coroa cria uma aristocracia. Estimula seu surgimento, outorga-lhe sólidas bases econômicas, para que atue como eixo, fundamento e salvaguarda do regime colonial, em nome e em favor da monarquia metropolitana. Para este fim distribui recursos e privilégios (terras, minas, mão-de-obra, monopólios comerciais, favoritismo tributário, funções burocráticas civis e militares); consolida legalmente seu status; tolera seus abusos e latrocínios. Assim surge e vai-se afirmando uma oligarquia fechada, possuidora de meios de produção de rendas altas e concentradas, com funções políticas, religiosas e militares, poder e prestígio. Ela defende zelosamente suas posições, afirma-as e estende-as pela interligação de seus grupos componen- ____________________ * Mita: sorteio que se fazia entre os índios na América para empregos em obras públicas. (N. da T.).

Page 57: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

O ESTADO E A COLONIZAÇÃO ÍBERO-LUSITANA67 tes entre si e com os funcionários reais e a Igreja, através de inversões recíprocas, interesses sociais comuns e uniões familiares.

A aristocracia é criada, estimulada e privilegiada, mas também é sujeita à subordinação e instrumentação da Coroa. Desta recebe os benefícios, a ela está submetida. A monarquia real teme particularmente o surgimento de concentrações excessivas de riquezas e poder, de grupos com demasiada força econômica, social e política, que possam se tornar rebeldes e agressivos, sobre os quais não se poderia exercer vigilância e controle eficazes, e que terminariam por desembocar na autonomia e no separatismo. Por outro lado teme-se que a exploração desenfreada dos indígenas disperse e extinga a mão- de-obra, afete as bases demográficas, econômicas, políticas e militares do Império, prive a Coroa de trabalhadores e contribuintes, reduza demasiadamente a produção. A monarquia metropolitana responde a esta dupla preocupação através de várias atitudes e medidas: restrições às encomiendas e à sua concentração, por meio de revogações e distribuições; limitação à expansão dos grupos mineradores, redução de faculdades dos poderes políticos locais (cabidos) sob controle oligárquico, especialmente no que se refere à distribuição de terras e encomiendas, tendência à fiscalização real direta (uso de corregedores); utilização da Igreja como instrumento de controle sobre a aristocracia e os grupos de poder local, paralelamente à restrição do seu poder; proteção da propriedade, condições de trabalho e remuneração dos indígenas. Entretanto, esta ação reguladora é limitada pela resistência da aristocracia e seus órgãos políticos locais e pelos próprios interesses econômicos e fiscais da Coroa (venda de cargos públicos, melhor rendimento de terras e minas), que viola as leis formais através de instruções secretas. A legislação é objeto de infração crônica pelos grupos privilegiados e de poder e pelos funcionários interessados.

Entre a aristocracia oligárquica e as amplas bases da sociedade colonial se interpõem as camadas médias. O seu surgimento, consolidação e expansão encontram certos estímulos em alguns aspectos da política imperial, mas também limitações que, em última instância, são prevalecentes. A estrutura sócio-econômica linear deixa aos grupos intermediários pouca margem de situação, ocupação e progresso. A ação estatal e o apoio da aristocracia e da Igreja implicam a criação de monopólios, a multiplicação de freios ao desenvolvimento autônomo comercial, financeiro e manufatureiro das colônias. A Igreja absorve energias e talentos potencialmente disponíveis ou canalizáveis para as camadas médias e suas atividades específicas, e rutringe-as e desarticula-as através da perseguição religio-

68 FORMAÇÃO DO ESTADO NACIONAL sa. Efeitos também limitativos surgem da regulamentação corporativa das associações artesanais. Estas camadas médias abrangem ampla gama de estratos e setores: pequenos e médios proprietários e empresários, rurais e urbanos; artesãos; profissionais; funcionários e sacerdotes de baixa hierarquia; empregados de

Page 58: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

grandes domínios e empresas. Em seus níveis inferiores vegetam massas de brancos sem privilégios, caboclos, mulatos e resultados de outros cruzamentos étnicos, carentes de oportunidades, instáveis e inquietos, perpétuos aspirantes à ascensão social. A existência e a evolução das camadas médias no período colonial caracterizam-se pela instabilidade, fortes flutuações entre prosperidade e ruína, descontinuidade no tempo.

Finalmente, a pirâmide social acaba nas classes e estratos populares, de composição heterogênea. De início deve-se distinguir nestas classes a massa de trabalhadores submetidos à escravidão aberta ou dissimulada e outros que podem ser considerados livres em regime assalariado, brancos ou mestiços. Ambos compartilham as mesmas características quanto à situação e possibilidades: privação dos meios de produção e de capital; em alguns casos, interação da dife-renciação étnica e da social; entrega de todo ou grande parte do trabalho e produto aos grupos dominantes, sem receber nada de volta; a submissão o expoliação tributária (multiplicação e superposição de impostos). Nos grupos trabalhadores propriamente ditos coexistem: a clientela de agregados em torno dos senhores rurais e urbanos (brancos pobres, caboclos, mulatos); uma massa de desocupados, delinqüentes, prostitutas, que subsistem por expedientes ou caridade; e a população não-incorporada à economia colonial. As massas populares estão totalmente privadas de direitos efetivos, de acesso à educação, às funções e decisões públicas, à posse e uso de armas.

e. Regulação e supressão do conflito

A sociedade colonial hispano-americana (como a portuguesa) caracteriza-se pela multiplicidade, onipotência e intensidade dos conflitos entre classes, grupos e estratos (espanhóis, coloniais e estrangeiros): metrópoles contra domínios americanos; peninsulares contra crioulos; a Coroa e seus representantes com as oligarquias locais; as regiões entre si; os comerciantes monopolistas espanhóis com os grupos latifundiários, mercantis e manufatureiros americanos; os senhores da terra com lavradores, rendeiros, assalariados e escravos; as classes altas com as médias e ainbas com as populares; os grupos subordinados ou oprimidos entre si; os livres com os escravos; a Igreja com

O ESTADO E A COLONIZAÇÃO ÍBERO-LUSITANA 69 a Coroa, as oligarquias locais, o baixo clero. Trata-se de uma sociedade baseada na dominação e explicação, que surge, se conforma e mantém pela violência. Grande número de rebeliões percorre como um risco vermelho a história colonial hispano-americana o confronto com esta problemática confere à Coroa uma de suas funções essenciais, a de regular e suprimir (relativamente) o conflito. Recorre para isto a medidas como: manutenção do monopólio das armas para grupos dominantes e privilegiados; a selvagem repressão física de rebeldes e suspeitos; medidas para impedir contatos e alianças entre os grupos oprimidos; restrição ou proibição do acesso à função

Page 59: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

pública, serviço militar e educação para os grupos oprimidos, e inclusive para as camadas médias e os crioulos.

f. A sociedade emerge

O tipo de sociedade que emerge, do processo analisado é resultado de um entrelaçamento de forças, formas e traços feudais e capitalistas. A conquista e a colonização espanholas trazem e introduzem elementos, caracteres e instituições de origem e tipo feudais: a montalidade e as atitudes da Coroa, aristocracia e Igreja; os padrões senhoriais; as relações hierárquicas; a ênfase na grande propriedade territorial- as tendências à auto-suficiência e ao trabalho servil. Entretanto, a ordem histórica destes elementos não faz necessariamente que, ao serem importados pela América, operem como simples réplica ou prolongação de sua natureza original. Ao contrário, a realidade americana e mundial determina-os e condicionados, modificando-os e especificando-os.

A conquista e a colonização desenvolvem motivações e finalidades próprias do capitalismo da época, integrando-se em seu ciclo ascendente, e reforçando-o. Tanto na origem quanto na evolução fazem parte da revolução comercial e da estruturação e dinâmica do mercado mundial. As forças e as relações de produção da sociedade colonial surgem, conformam-se e operam por e para a extração e elaboração de bens destinados a satisfazer a demanda metropolitana e européia e para a obtenção e acumulação de lucros, a partir de grandes unidades que utilizam mão-de-obra escrava, servil ou assalariada. A economia monetária e o capital em dinheiro desempenham o papel essencial ao funcionamento do sistema. As economias dos domínios espanhóis tendem a ser dependentes, abertas, ca-

70 FORMAÇÃO D0 ESTADO NACIONAL pitalistas exportadoras e a se organizar em função do comércio a longa distância. Os núcleos e mecanismos mercantis são predominantes, origina ramificações que penetram o influem em todo âmbito colonial, sobre, contra e além dos elementos próprios de econômias fechadas, autárquicas e de subsistência. O peso e importância dos comerciantes, financistas e banqueiros nas colônias resultam especialmente reveladores a esse respeito. Esta natureza básica do sistema sócio-econômico hispano-americano aparece através de outras características e elementos que também o configuram. A teia da dependência externa tem, como se viu, seu centro na metrópole e se prolonga através de uma cadeia descendente, de núcleos e níveis satélites periféricos, operando como força fundamental na organização e direção da vida econômica, social, política e cultural dos domínios. Isto permite a expropriação de um grande excedente econô- mico e sua apropriação em grau desigual pelas classes e grupos dominantes da metrópole - que recebem a parte mais considerável e das colônias. A isto se aliam a má orientação e o uso irracional da parte do excedente que permanece na América. Assim, as possibilidades de funcionamento e de transformação do sistema são determinadas de fora, pela relação de dependência, e pelas

Page 60: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

estruturas internas que em grande parte são seu resultado. As deformações e os desequilíbrios regionais, setoriais e sociais multiplicam- se e superpõem-se, e a estagnação econômica tende a ser o padrão dominante. À forte polarização social alia-se o predomínio de grupos improdutivos nos três níveis fundamentais de estratificação já descritos, o que contribui para sobrecarregar ainda mais os setores realmente produtivos, gerar injustiça, imoralidade e delinqüência, falta de disciplina social, baixa produtividade média. A estagnação econômica e o imobilismo social (relativo) se supõem e se influem reciprocamente. A sociedade colonial tem pouca coesão: cria ou estimula as tendências à desintegração, ao individualismo exacerbado, à dissolução. Não surgem, ou se formam com dificuldade, classes no sentido moderno, com certo grau de organicidade, consciência e solidariedade interna.

O quadro traçado refere-se principalmente ao período dos Habsburgos. A etapa dos Bourbons presencia importantes modificações, a aparição ou afirmação de forças, tendências e fenômenos que modificam aquele quadro e preparam a emancipação. Antes da análise desta segunda etapa, são necessárias considerações sobre alguns aspectos específicos do sistema colonial português no Brasil.

O ESTADO E A COLONIZAÇÃO IBÉRO-LUSITANA 71

2. o IMPÉRIOO PORTUGUÊS SEMELHANÇAS E DIFERENÇAS

O sistema colonial português na Amér a reproduz os aspectos essenciais do espanhol, embora com variações e matizes específicos. O processo de Reconquista cedo permite a obtenção da unidade nacional e a centralização político-militar por e em uma monarquia relativamente moderna. Ela possui um aparato administrativo-militar próprio, impõe-se sobre e subordina-se a uma nobreza de reduzida base latifundiária, de serviços, burocrático-combatente, e a uni clero poderoso e influente mas sem base feudal. A monarquia portuguesa logo assume, direta e consideravelmente, a tarefa marítima e colonial. Funda empresas e companhias para o comércio, navegação e exploração de territórios na África, Ásia e América, ou participa de outras criadas ou administradas por capitais privados mas com monopólio e controle reais. Por pressões internas e externas a monarquia portuguesa é obrigada a seguir contra os árabes e judeus uma política similar à espanhola, o que tem como conseqüência (embora com menor intensidade) a eliminação de fortes núcleos de burguesia mercantil e a necessidade de que a Coroa assuma em seu lugar as tarefas e responsabilidades do descobrimento, conquista o colonização de territórios ultramarinos. A afirmação de um forte absolutismo mercantilista é acompanhada por uma menor aptidão nacional para o comércio e a manufatura.

Page 61: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

Absorvida a princípio pelas feitorias asiáticas e africanas, a Coroa portuguesa subestima as possibilidades do Brasil, descoberto em 1500, destinando-lhe uma parte bastante reduzida de seus recursos humanos e materiais e o abandonando de fato por uns 30 anos. Sua maior preocupação inicial, que perdura em grande parte nos séculos seguintes, é, além de impedir que outras potências rivais ocupem o país, a de o explorar do modo menos oneroso e mais' lucrativo possível para o erário real, com uma forte orientação fiscal. A falta do, metais preciosos, a inexistência prévia de culturas indígenas e de tradições urbanas determinam que as primeiras fundações portuguesas se localizem principalmente por influência das disponibilidades de recursos naturais, portos e facilidades defensivas e ofensivas. Não tarda a aparecer uma burocracia forte e extensa, monopolizada por funcionários de origem lusitana.

O sistema imperial português na América apresenta várias diferenças gerais em relação ao espanhol. É menos sistemático e rígi-

72 FORMAÇÂQ DO ESTADO NACIONAL do, mas também menos eficiente. Demora a se constituir, Sofre a conseqüência do interregno determinado pela dominação espanhola sobre a metrópole (1580-1640) e logo a seguir da crescente hegemonia britânica sobre aquela. A política mercantilista é comparativamente mais flexível e aberta, com maior grau de penetração do comércio exterior, especialmente desde o século XVII, pela aliança de Portugal e Grã-Bretanha, e a submissão do primeiro à segunda. A estratificação social é relativamente mais informal e de fato me- nos sistemática e legalizada. A Igreja tem um poder menor do que na América espanhola e não há um tribunal específico para a Inuisição. A motivação religiosa e evangelizadora tem papel menor, e desenvolve maior grau de tolerância e de facilidades para a imigração de estrangeiros e de dissidentes do credo oficial. Ao inverso, a exploração dos indígenas não é suavizada por escrúpulos de fé nem por preocupações políticas adquirindo assim caráter menos dissimulado. Finalmente, o desenvolvimento cultural resulta menos vigoroso e amplo.

Como a Espanha, Portugal desde o início coloca o Brasil sob o signo da dependência externa, incorporado ao processo mundial do capitalismo mercantil, cria suas estruturas determinantes e condicionantes de satelização e subdesenvolvimento. A demanda externa proporciona os impulsos dinâmicos da economia e da sociedade brasileira, através de uma sucessão de ciclos caracterizados pela Monocultura de um tipo básico de produto exportável, separados por períodos intermediários de estagnação econômica, tensões sociais e mutações políticas. Sucedem-se: ciclo do pau-brasil, do açúcar ...(1530-1650), movimento de expansão territorial (1650-1670), do ouro e diamantes (1700-1780); emancipação e consolidação de um poder monárquico centralizado; ciclo do café (1840-1930). Durante este longo período de 1500 a 1930 - segundo Celso Furtado - o desenvolvimento econômico consistiu essencialmente na ocupação de novas terras ou na exploração de recursos naturais esgotáveis, por um lado, e por outro na importância da mão-de-obra da África e Europa. Desenvolvia-se uma zona enquanto outras, cujos recursos naturais se haviam esgotado ou cujos produtos de exportação haviam

Page 62: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

perdido seus mercados, permaneciam estagnadas ou declinavam. Como o desenvolvimento de uma zona incidia pouco ou nada sobre as demais, as regiões que haviam entrado num período de decadência em épocas remotas sobreviveram secularmente baseando-se em diversas formas de economia de subsistência, sem nenhum impulso próprio de crescimento. Assim se explica tanto a descontinuidade do desenvolvimento do Brasil como as grandes disparidades de

O ESTADO E A COLONIZAÇÃO ÍBERO-LUSITANA 73 níveis de vida entre suas regiões". 2 Cabe aqui assinalar que o sistema de dependência integra, tanto ou mais que no caso espanhol, uma longa cadeia que começa na Europa ocidental, especialmente Holanda e Grã-Bretanha, passa pela metrópole portuguesa como intermediária, e vai-se prolongando em sentindo descendente através das regiões que se beneficiam sucessivamente da prosperidade de um produto, e das zonas que são sub-satelizadas por aquelas.

ORGANIZAÇÃO POLMCO-ADMINISTRATIVA E PACTO COLONIAL

As primeiras formas de organização político-administrativa correspondem ao ciclo do pau-brasil. A um sistema inicial de administração direta a cargo de governadores reais, sucede em 1533, por decisão de D. João 11, outro de capitanias, já aplicado nos Açores e na ilha da Madeira. O território do Brasil é dividido em 12 capitanias, correspondentes a 12 faixas de 50 léguas de largura sobre a costa e de extensão indefinida para oeste. As capitanias são entregues a 12 donatários com direitos hereditários sobre gigantescas extensões abrangendo as terras, os poderes econômicos e políticos, as funções administrativas e certos privilégios reais. Apesar da origem e fundo feudais desta instituição, as capitanias são aceitas e exploradas por motivações e através de mecanismos capitalistas. A Coroa recebe suas rendas mas não custeia a exploração das terras nem sua administração. No período das capitanias é fundado o primeiro tipo histórico de cidade brasileira, correspondente a outra primeira modalidade de ocupação do território: cidade por um lado destinada a ser base de operação administrativa e de poder metropolitano e residência de funcionários e, por outro lado, ponto de contato e exportação para Portugal e base militar. O sistema atrasa a montagem de uma forma eficaz de administração Política e exploração econômica do Brasil.

O sistema inicial de capitanias fracassa por exceder as possibilidades dos donatários e pela ameaçadora pressão do expansionismo francês. Acrescente-se ainda um crescente interesse pelo Brasil por parte da Coroa, que toma a seu cargo um esforço mais sistemático de colonização e defesa do domínio conquistado. Para esta mudança também contribui o florescimento econômico que se produziu desde o final do século XVI com a expansão dos sistemas Celso Furtado. Dialética do desenvolvimento __________________- 2 Celso Furtudo. Dialética do desenvolvimento

Page 63: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

74 FORMAÇÃO DO ESTADO NACIONAL de exploração da cana-de-açúcar, e também do tabaco e do algodão, destinados aos mercados externos e com características de economia capitalista mercantil-escravista (plantation). A introdução de mão-de-bra escrava traz também uma forma lucrativa de atividade economica e um elemento demográfico de grande influência na estruturação sociocultural do Brasil. Em 1549 os donatários são privados de seus poderes políticos, conservando os domínios econômicos. O sistema de várias capitanias cede lugar em 1548 a outro de 13 capitanias, com uma capitania geral localizada na Bahia (fundada em 1549) e a seguir no Rio de Janeiro.

A união da Espanha e Portugal, de 1580 a 1640, confere ao sistema colonial português muitas das características principais do espanhol. Determina o conflito com a Holanda, que aproveita para ocupar durante 25 anos uma rica e extensa zona do nordeste brasileiro, do rio São Francisco até quase o Amazonas.

A estrutura sócio-econômica, regional, urbana e política do Brasil vai-se configurando pela ação convergente da Coroa e dos interesses particulares, em proporção variável.

A Coroa se propõe principalmente a criar no Brasil condições adequadas à satisfação de seus próprios interesses, dos grupos dominantes metropolitanos e da nova classe senhorial que vai-se gestando na colônia. Isto é conseguido através de uma política mercantilista que combina o regime de monopólio comercial com as possibilidades e exigências de um capitalismo mercantil baseado na monocultura e no trabalho escravo e voltado para a exportação e para a metrópole. As necessidades financeiras da Coroa, e a não menor avidez do capital comercial português, impõem e configuram a versão lusitana do Pacto Colonial, aplicado rigorosamente no Brasil. Trata-se de controlar as atividades econômicas locais e o mercado em favor dos produtos agropecuários (alimentos, vinhos) e manufatureiros provenientes de Portugal (e da Grã-Bretanha). O mono- pólio do comércio com o Brasil é reservado à Coroa e às grandes corporações mercantis. Multiplicam-se as proibições à produção local de bens que concorram com os importados, favorecendo os agentes beneficiados e os canais estabelecidos pelo monopólio. Os estabelecimentos competitivos são destruidos. Somente são toleradas as produções cujo mercado não interessa às manufaturas portuguesas e européias, ou às situadas em regiões protegidas pela distância geográfica e debilidade relativa das culturas de exportação (açúcar, tabaco, algodão, cacau). Por outro lado, mas com o mesmo sentido, a Coroa promove e mantém o isolamento das diversas capitanias en-

O ESTADO E A COLONIZAÇÃO ÍBERO-LUSITANA 75 tre si, e sua comunicação e dependência diretas de Portugal, que pode assim explorá-las de modo mais livre e eficaz. A criação de estradas só é tolerada ou estimulada dentro de cada capitania ou entre esta e as capitais da

Page 64: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

costa. Os colonos empreendedores que abrem novas rotas na selva para comunicar as capitanias entre si são duramente castigados, e suas obras destruídas pelos governadores. O isolamento é reforçado pela precariedade dos meios de comunica- ção e a grandeza dos obstáculos naturais. A ação centrífuga resultante freia o progresso da divisão do trabalho entre as regiões, do intercâmbio e do mercado internos, com resultados negativos para as possibilidades de urbanização.

A ação da Coroa e dos monopólios metropolitanos converge, se entrelaça e se alia com a dos plantadores locais para debilitar ou extinguir os primeiros gérmens de desenvolvimento capitalista manufatureiro de tipo interno, e com isto, os de uma urbanização significativa. O tipo de colonização marítima e o ciclo da monocultura do açúcar efetuam se sobre a faixa costeira e favorecem a criação de uma estrutura baseada no domínio por uma poderosa aristocracia de unidades que combinam a plantação e o engenho. Esta estrutura tem sua expansão limitada internamente pelo regime escravista e a conseqüente restrição ao desenvolvimento do mercado interno, e externamente pela ingerência estatal que estabelece ao mesmo tempo o controle da circulação pelo grupo monopolista metropolitano e um sistema de forte tributação. Fatores deste tipo reduzem as possibilidades de surgimento e expansão de um rigoroso e diversificado sistema urbano. Esta afirmação exige, entretanto, algumas considerações adicionais.

Na faixa costeira de culturas tropicais produzem-se uma considerável concentração demográfica, uma estrutura social vasta e complexa e cedo o aparecimento de uma potente aristocracia de proprietários rurais. A esta classe de senhores numerosa e estável corresponde também uma relativa importância numérica das camadas populares. A classe senhorial beneficia-se com a política real de distribuição de grandes extensões de terra a poucos indivíduos, e a seu considerável poder sócio-econômico alia uma significativa participação e controle das células políticas locais.

A estrutura resultante determina uma tendência centrífuga ao povoamento disperso através da constituição de grandes domínios relativamente auto-suficientes, embora não dissociados do mercado, que atraem e fixam os habitantes da região e não se convertem em eixos organizativos exclusivos da vida econômica, social e política.

76 FORMAÇÃO DO ESTADO NACIONAL Além disso, nesta região de culturas tropicais, os senhores, único setor que goza de possibilidades econômicas e - limitadamente - políticas, mantêm-se durante todo o período colonial sob forte influência o dependência da metrópole. Existe uma aliança tácita entre a Coroa, o capitalismo mercantil lusitano e os senhores locais do açúcar, e vantagens específicas para cada setor. Esta aliança reflete-se na submissão dos plantadores à política colonial inócua a seus interesses, numa ligação com Portugal que enfraquece ou anula o sentimento de pertencimento ao Brasil e fará tardia e fraca a posterior

Page 65: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

adesão ao movimento emancipador, e no reforço dos efeitos econômicos e sociais daquela política. Os grandes plantadores não dissimulam sua hostilidade a toda atividade econômica alheia à cultura do açúcar e demais produtos tropicais e a seus prolongamentos comerciais. Somente os grandes plantadores e comerciantes concentram a acumulação da renda e do capital, destinando-os exclusivamente à reinversão nas plantações e à compra de escravos, jamais a projetos manufatureiros. A isto se alia o fato de que o grande domínio tende, como já foi dito, a certa autarquia relativa e desenvolve dentro de seus limites um certo número de serviços artesanais indispensáveis (marcenaria, caldeirada, tecelagem, sapataria, panificação, olaria, mecânica). As relações escravistas de produção limitam ainda mais o mercado interno para as eventuais possibilidades de um artesanato e comércio independentes. Surge unicamente uma reduzida população flutuante de pequenos artesãos e comerciantes, chegando alguns a comprar terras e a se incorporar assim, marginal e subsidiariamente, ao sistema dominante de plantação. Desta forma em geral faltam estímulos suficientes para romper a rotina, provocar a inovação, estimular o autofinanciamento que permite o ar- mazenamento de mercadorias e a compra de equipamentos e a conseqüente passagem da fase artesanal à manufatureira.

O impacto convergente destes fatores e processos (monopólio mercantil, predomínio do latifúndio, povoamento isolado, estagnação do artesanato e comércio locais e independentes) reduz as possibilidades de surgimento e expansão das cidades em número e importância relevantes. Na costa aparecem sistemas regionais em torno de cidades, girando em volta de um porto principal, ao mesmo tempo sede político-administrativa, base militar, ponto de partida para a lenta penetração no interior, para a exportação do açúcar e outros produtos agrícolas, e para a importação de Portugal e da Europa Ocidental. O equilíbrio de vários centros regionais já aparece como característica destinada a permanecer até o século XX. No interior brasileiro origina-se outro tipo de cidade. Para combater o isola-

O ESTADO E A COLONIZAÇÃO ÍBERO-LUSITANA 77 mento determinado pelo tipo de povoamento predominante e que gera a estrutura agrícola-pastoril, e manter uma vida social menos rudimentar, surgem os patrimônios, aglomerações urbanas e cidades como ponto de encontro entre os domínios. Nestes, os senhores da zona constroem suas residências, habitam-nas de sábado até segunda-feira (cidades de domingo), período da missa, feira e reunião do conselho municipal. As cidades tipo património, e geralmente os pequenos centros urbanos que, surgem e giram na constelação do grande domínio, são simples locais de trânsito, repouso ou abastecimento, e não importantes centros residenciais., menos ainda focos de produção, circulação e troca. Neste tipo de conglomerado urbano a política é monopólio dos grandes proprietários, basicamente nos seus domínios e subsidiariamente nos conselhos municipais por eles controlados e privados de real significação democrática. O direito de voto e de exercício de cargos públicos é reservado à minoria senhorial. Os conselhos municipais são instituições artificiais sem correspondência orgânica com a estrutura da sociedade tradicional e secundárias quanto às decisões básicas dos grandes domínios. Cabe salientar que, comparado ao espanhol, o sistema português caracteriza-se por maior grau de

Page 66: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

atraso, variabilidade e imprecisão dos esquemas urbanos, quanto aos métodos e modos de escolha do local, do traçado e da situação das construções e espaços.

Por outro lado, na Bahia e no Maranhão, grupos de criadores lançam-se à conquista do sertão, a seca e árida região interior de planícies; isolam-se ao mesmo tempo da plantação-engenho que os criou e manteve na relação satelizante, e da metrópole, começando a operar para o mercado interno. As condições peculiares deste tipo de exploração pecuária no Norte - e também nas planícies do sul e nos planaltos centrais - determinam o habitat disperso, as estruturas sociais pouco complexas, a insegurança de condições políticas, a dispersão e raridade das estruturas estatais. Faltam elementos para uma urbanização digna de consideração e para a implantação das instituições municipais vigentes na costa. Para esta realidade singular os governadores gerais criam a figura do capitão-major-regente, projeção de outra tradicional nas zonas fronteiriças lusitanas, espécie de ditador local que centraliza em sua autoridade os poderes civis e militares da região: ao mesmo tempo alcaide, juiz de Paz, chefe de polícia e comandante militar.

O Maranhão e o estuário amazônico começam a ser ocupados para colheita de drogas, exploração do algodão com mão-de-obra escrava e irradiação das missões jesuítas, sendo a rede fluvial a via

78 FORMAÇÃO DO ESTADO NACIONAL essencial de penetração. Entretanto, o povoamento desta região é reduzido e instável.

O CICLO MINEIRO O ciclo do açúcar vai aproximadamente de 1530 a 1650 e após um período de estagnação acompanhado de forte expansão territorial, inicia-se no fim do século XVII o novo ciclo mineiro do ouro e diamantes. Este determina a rápida e forte expansão do centro e do sul brasileiros, principalmente de Minas Gerais, e influi decisivamente na conformação das estruturas sócio-econômicas, políticas, culturais, regionais e urbanas. A atividade mineradora estimula direta ou indiretamente a expansão demográfica e o povoamento, a exploraçao geral do território, o progresso dos transportes e das comunicações, a forte concentração de escravos. Por sua alta rentabilidade e por suas características tecno-econômicas, favorece uma especialização mais avançada, o desenvolvimento da agricultura alimentícia da criação de gado e do artesanato (em Minas Gerais, São Paulo no sul em geral), a maior divisão do trabalho entre as regiões, a expansão do mercado e do comércio internos, o surgimento ou incremento de grupos sociais intermediários.

A estrutura e o equilíbrio da vida social e política modificam-se consideravelmente e originam formas inéditas de organização e atividade. É uma sociedade extremamente móvel, enérgica e

Page 67: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

ativa. A colonização mineradora bandeirante realiza-se por elementos altamente dotados de independência, dinamismo e agressividade. O valor individual é critério de hierarquização e base de acesso ao poder, prestígio, funções e privilégios. A façanha guerreira e o êxito na empresa mineira ou econômica em geral dão acesso à terra, à influência e aos cargos públicos. Uma distribuição de terras sem dimensões latifundiárias impede o surgimento de uma classe senhorial como a da região do açúcar. Os freqüentes cruzamentos étnicos criam uma mestiçagem que contribui para a ampliação e diversificação das bases da sociedade e da estrutura política.

Sobre a base de uma forte concentração demográfica e de uma estrutura sócio-econômica mais diversificada e dinâmica, frente ao desafio de um meio novo, instável e hostil, e na ausência de uma elite política preexistente - autoformada e/ou imposta pelo poder real - aparece uma nova elite durante a própria expansão mineradora. Ela ignora, deixa de lado e substitui os velhos órgãos da adimistração colonial, e seus representantes acumulam os recursos de uma

O ESTADO E A COLONIZAÇÃO ÍBERO-LUSITANA 79 ,organização militar numerosa e de um aparato administrativo e judiciário complexo. Nas regiões de descobrimento o chefe da coluna bandeirante se torna "capitão-major das minas". Nas regiões onde a exploração mineira desenvolve-se, as figuras e instituições são mais elaboradas, com matizes derivados do mineral em questão (ouro ou diamantes). Assim na zona aurífera criam-se as "intendências do ouro", as "casas de fundição do ouro" e as 49 patrulhas volantes" para perseguição de contrabandistas e dos que subtraem os produtos descobertos ao controle dos agentes do poder local. Na zona diamantífera aparece o "intendente de diamantes" com poderes excepcinais: administração de minas, justiça civil em toda sua jurisdição.

Neste mesmo processo produzem-se e desenvolvem-se na região mineradora (sul e centro-sul) agrupamentos urbanos que se tornam importantes centros de atividade, poder e oposição à política colonial. Os corpos municipais são formados pelo tipo humano aqui descrito, e que gera dentro deles o sentimento de autonomia local e regional, de início, e logo os primeiros gérmens e sintomas de um sen- timento nacional e de uma consciência política. As municipalidades; bandeirantes são capazes de reunir fundos suficientes para construir uma rede de estradas que vai criando e fortalecendo canais de comunicação e solidariedades locais, regionais e inter-regionais. Tudo isto vai entrar em conflito com a Coroa e com o sistema colonial. A pretensão de aplicar uma fiscalização extorsiva e um forte regime de monopólio determina rudes medidas da administração colonial (recolhimento coativo de impostos, repressão do contrabando), multiplicando e agravando os conflitos entre ela e os grupos mineradores ou a eles vinculados. Os conflitos não tardam em assumir formas políticas estimuladas pela crescente penetração de idéias do exterior. Os municípios da região mineira evoluem da simples, mas importante função administrativa, à ação política, da reivindicação de maior autonomia ao projeto de emancipação.

Page 68: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

É importante realçar, entretanto, que a Coroa portuguesa não reagiu somente através da repressão à modificação da estrutura e do equilíbrio da vida social e política. Frente ao deslocamento do eixo para o sul, em favor de Minas Gerais e em prejuízo da Bahia e Pernambuco, o governo colonial concentra seus esforços em favor da primeira, de Goiás e de Mato Grosso. Cria novas capitanias; estabelece em 1763 o vice-reinado com capital no Rio de Janeiro; reduz alguns aspectos particularmente esmagadores e odiosos do sistema fiscal. Expande o aparato administrativo, reforçando assim o tamanho e o peso específico dos grupos urbanos já incrementados pelo ciclo mineiro e suas repercussões. Ao Marquês de Pombal, ministro dá

80 FORMAÇÃO DO ESTADO NACIONAL D. José I, correspondem as tentativas (finalmente fracassadas) de uma política nacionalista-mercantilista e das reformas do período @750-1777, que resultam num grau maior de unificação político-admininistrativa do Brasil.

CENTRALIZAÇÃO E DESCENTRALIZAÇÃO

Através dos processos analisados delineia-se uma dialética que une tendências à centralização e à descentralização. Na verdade, o principal problema político da Coroa portuguesa no Brasil colonial é a conciliação do sistema imposto e do princípio de unidade do territário com a propensão à desintegração regional e local.

Por um lado, pretende-se manter no Brasil uma forte centralização política com eixo na metrópole, visando a manutenção do Pacto Colonial. Utiliza-se com este fim a nomeação e hierarquização verticais dos funcionários, dotados de fortes poderes, e o grau reduzido ou nulo de participação dos grupos locais nos mecanismos de decisão. De início as possibilidades de-autonomia das regiões e dos centros urbanos são rebaixadas ao mínimo. Impede-se o contato direto entre estes para que não se cristalizem solidariedades que possam gerar um sentimento nacional e uma frente comum contra a poder colonial, finalizando em uma reivindicação emancipadora. Para se opor ao isolamento excessivo, prejudicial à centralização e controle, a administração colonial abre estradas entre o interior e as capitais da costa, e no interior de cada capitania, mas impede a criação de uma rede inter-regional de transportes e comunicações, não melhora nem permite que se melhore os sistemas de ligação das capitanias entre si. A simples construção de estradas inter-regionais por iniciativa dos colonos é severamente castigada.

Por outro lado, a imensa extensão do território - quase a metade da América do Sul - e as conseqüências da política metropolitana e da estrutura sócio-econômica emergente da

Page 69: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

colonização, opoem-se e finalmente derrotam a intenção unificadora e centralista. As dimensões e características do espaço colonial brasileiro criam diferenças profundas entre as populações e estruturas sócio-econômicas das várias regiões, multiplicam as particularidades, exercem unia ação centrífuga. Esta é também alimentada e reforçada pela ação do Estado e dos grupos locais que contribuem para a conformação da estrutura sócio-econômica e espacial do Brasil. Os tipos de colonização, exploração e formação sócio-econômica da zona das culturas tropicais determinam as tendências à concentração a à retirada dos senhores, colonos, camponeses e mão-de-obra forçada e livre na

O ESTADO E A COLONIZAÇÃO ÍBERO-LUSITANA 81 anarquia dos domínios e nos núcleos a eles agregados, e, conseqüentemente, também a tendência à dispersão do povoamento, à debilidade do babitat urbano e das redes de intercomunicação. A urbanização reduz-se às cidades costeiras ou aos pequenos centros urbanos que surgem como apêndice delas e dos domínios, simples locais de trânsito, descanso e abastecimento, carentes de importância como centros' de residência, atividade produtiva e de irradiação modernizante e integradora. Resultam de tudo isto a propensão e a afirmação do isolamento, do individualismo, da falta de vida comunitária, de solidariedade e de hábitos de cooperação, a não ser no âmbito da família, do clã e do domínio senhorial. O poder político concentra-se. essencialmente dentro do domínio e, se exerce através dele e dos conselhos municipais controlados pelos senhores, sob a sujeição e em harmonia com a metrópole e sua administração central. Entre a Coroa e os senhores existe uma harmonia final de interesses que permite que suas respectivas esferas de poder se complementem sem conflitos sérios. A orientação localista e centrífuga combinasse com uma aceitação e consolidação da dependência e as duas linhas confluem para impedir ou enfraquecer qualquer sentimento de pertença a uma comunidade mais vasta, de gérmens de uma consciên- cia nacional e de veleidades emancipadoras.

Nas regiões pecuárias do sertão nordestino, nos planaltos centrais e do sul, também ocorrem fenômenos de povoamento disperso, nomadismo, debilidade do habitar urbano e das instituições municipais e certa resistência à dependência direta e rígida da autoridade central, embora com origem diversa, variantes específicas e matizes particulares. Nas zonas mineradoras de colonização bandeirante a situação é radicalmente diferente, como o evidenciam a maior diversificação sócio-econômica, o povoamento mais aglomerado, o forte desenvolvimento dos centros urbanos e de sua autonomia política e administrativa.

Neste quadro, a conseqüência global é sempre o choque permanente entre o desejo unificador da administração colonial e as tendências centrífugas das regiões e dos grupos locais, originando a permanente e nunca resolvida dialética centralização-descentralização. Com este conflito básico a política e a organização do poder colonial resultam instáveis e contraditórias, oscilando de fato entre a aceitação relutante das tendências centrífugas e a tentativa de atenuá-las ou suprimi-las.

Page 70: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

A atitude da administração colonial é na prática bastante flexível. É inspirada por um espírito de fiscalização, típico de toda sua política, que a leva a procurar o mais fácil e eficaz recolhimento de

82 FORMAÇÃO DO ESTADO NACIONAL impostos e outras rendas reais, e não pretender portanto uma uniformidade rígida. Assim, reconhece a existência de diferenças e particularidades regionais o locais e cria ou aceita instituições mais ou menos adaptadas às peculiaridades do meio.

A ação combinada das tendências centrífugas da realidade socio-econômíca e da flexibilidade relativa da administração colonial traduz-se numa certa desagregação interna do poder político. O governo geral começa se dividindo em dois grandes domínios: o Estado do Maranhão e o Estado do Brasil. Estes logo se subdividem em numerosas capitanias gerais, e estas em capitanias secundárias, que pouco a pouco fragmentam-se em distritos e municípios. As províncias só virão a existir após a emancipação. A autoridade do governo metropolitano e de seus apêndices locais decresce em razão direta de seu afastamento do centro. Cada jurisdição, cada órgão, cada funcionário local importante tende a se automatizar, a procurar uma espécie de micro-soberania, em seu âmbito específico, a basear' seu poder mais nas populações e fatores locais que na designação e apoio das autoridades superiores e centrais.

A Coroa e suas delegações tentam, em sentido contrário, reagir contra as tendências centrífugas e os processos desagregatórios do poder político centralizado, reduzindo ou destruindo a autonomia dos funcionários locais, mas só o conseguem no nordeste, onde estas tendências são pouco importantes ou ameaçadoras, e no centro-sul. Apesar disso, porcura impor oficialmente urbanizações forçadas. Com este objetivo a metrópole ordena a um capitão-geral ou a uni governador que crie um agrupamento urbano em determinado lugar, sob a autoridade de um "capitão-major-regente", dotado de amplos e diversos poderes para cumprir a missão, dirigir o novo centro, estruturar um aparato administrativo e militar próprio. A este funcionário cabe lançar a convocação oficial, reagrupar os vagabundos e aventureiros da região, perseguir militarmente os recalcitrantes. Estas urbanizações forçadas nem sempre têm êxito. Os fatores centrífugos conservam sua força; os novos centros subsistem enquanto se mantêm a coação direta do capitão-major-regente , e quando este enfraquece sua vigilância ou se ausenta, retorna o absentismo urbano, a dispersão rural e o nomadismo.

A análise precedente refere-se principalmente à estrutura e dínâmica dos impérios americanos da Espanha e de Portugal, tal como se apresentam em linhas gerais até aproximadamente a segunda metade do século XVIII. Cabe agora examinar os fatores de crise que se, entrelaçam

Page 71: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

para resultar na Emancipação, e as características que esta assume como entrada da América Latina em uma nova etapa.

CAPITULO III

O PROCESSO DE EMANCIPAÇÃO

O poder imperial espanhol pode-se orgulhar de haver criado e imposto por mais de três séculos a dominação e a exploração coloniais sobre uma imensa extensão de 16 milhões de quilômetros quadrados, contra as tendências internas conflitivas e desagregadoras e, as ameaças externas das potências rivais. Entretanto, esta proeza político-administrativa não consegue impedir que, a partir do século XVII, e principalmente do XVIII, comecem a decadência e a crise do sistema imperial espanhol na América, que resultarão finalmente na emancipação da quase-totalidade das colônias.

Neste processo se entrelaçam e interagem a decadência interna da Espanha e as substanciais mudanças que se desenrolam nas suas colônias americanas. O sistema colonial espanhol tende essencialmente, como se viu, a desenvolver uma economia fechada com centro na Espanha. Esta extrai das colônias metais preciosos, produtos de baixo custo mas com alto preço no mercado mundial, consideráveis recursos fiscais, um grande excedente econômico. Em troca, satisfaz de forma relativa e monopolista as necessidades de produtos manufaturados dos domínios americanos. O sistema funciona em maior ou menor grau enquanto as colônias são pouco povoadas e economicamente fracas, embora não deixem de sofrer, sempre, contra a vontade, o alto custo do regime monopolista. "Em última análise" - assinala Miron Burguin - "o sistema repousava sobre uma divisão geográfica do trabalho, de modo que, com o inevitável crescimento e diversificação da economia colonial, sua estabilidade dependia primordialmente de um desenvolvimento paralelo da pátria mãe". A decadência da Espanha explica por que aquela condição básica acaba não se realizando. A agricultura e a manufatura metropolitanas se desorganizam, estancam-se e atrasam-se. A escassez financeira acossa uma administração obsoleta e ineficaz. A decomposição social, a irracionalidade e a atonia generalizam-se e acentuam-

84 FORMAÇÃO DO ESTADO NACIONAL se na península. A economia metropolitana (e portanto a colonial) vai sendo submetida em grau crescente ao controle e usufruto de países e grupos estrangeiros. A Espanha cai cada vez mais sob a dependência de outras potências no que se refere à produção, comércio e finanças.

Page 72: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

De modo em parte paralelo e em parte interligado com a decadência interna da Espanha, agravam-se seu debilitamento externo e a crise coloniais Os poderes financeiro, marítimo e militar da Espanha vão-se reduzindo inexoravelmente. A empresa militar de âmbito universal a esvazia em homens, materiais e, principalmente, em dinheiro. O endividamento procurado como solução ou paliativo torna-se um reforço da drenagem financeira e da dependência externa. Desde o século XVI evidencia-se o enfraquecimento marítimo da Espanha: incursões de piratas ingleses e berberes, desastre da Invencível Armada (1588); saque de Cádiz por uma frota anglo-holandesa (1598); fundação em 1602 da Companhia das índias Orientais, destinada pela Holanda a solapar o predomínio espanhol na Âsia e na África; e em 1621, criação da Companhia das índias Ocidentais com objetivo similar para a América. Para manter o domínio marítimo a Coroa fora obrigada a deixar livres a iniciativa e o espírito de empresa da burguesia espanhola. Segue-se a isto precisamente a política oposta e se esterilizam, não utilizados, os recursos do litoral e a vocação mar ma de sua população. Na mesma época, as potências rivais dão plena liberdade e firme apoio às companhias mercantis, armadores e piratas que constituem frotas, exploram novos continen- tes, atacam e saqueiam navios e colônias espanholas, minam seu regime de monopólio. A supremacia militar também se enfraquece e ameaça desaparecer totalmente. A rebelião dos Países-Baixos triunfa em 1597. Em 1640 Portugal recupera sua independência. A França de Luís XIV derrota a legendária infantaria espanhola em Rocroi (1643), e os tratados de 1648 consagram a perda de territórios consideráveis.

A Espanha tenta em vão isolar suas colônias de todo contato com o comércio mundial. Seu tráfico com os domínios ultramarinos cai sob crescente dependência da manufatura, comercialização e financiamento dos países europeus em ascensão, que sob os últimos Habsburgos, fornecem perto de 5/6 das exportações de Sevilha. As potências rivais, principalmente a Grã-Bretanha, pressionam o destroem as relações com as colônias através das agressões formais, da pirataria, comércio legal, tráfico de negros, contrabando. Os exércitos e frotas regulares e os piratas atacam portos, cidades e navios espanhóis carregados de metais preciosos. O contrabando desenvol-

O PROCESSO DE EMANCIPAÇÃO 85 ve-se em grande escala, possibilitado pela debilidade marítimo-militar da Espanha, a extensão das costas, a venalidade dos funcionários, as necessidades da população que sofre a escassez e os altos preços resultantes do monopólio. Os centros negreiros da França e Inglaterra, além de fornecer trabalho escravo às colônias, constituem ativíssimos centros de espionagem e contrabando. Com facilidade crescente, os navios europeus introduzem nas colônias produtos manufaturados de boa qualidade e a baixo preço, e levam metais preciosos e produtos agropecuários. Tudo isto representa, por um lado, o debilitamento e substituição do comércio monopolista metropolitano, por outro, o estímulo ao crescimento e diversificação das economias coloniais. As crescentes necessidades dos domínios americanos não podem ser satisfeitas por uma metrópole em decadência, cuja incapacidade para impor a vigência do sistema colonial vai-se tornando totalmente evidente.

Page 73: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

Antes que esta contradição básica amadureça e exploda no processo emancipador, o Estado espanhol tentará infrutiferamente uma vasta operação de salvamento através da dinastia bourboniana.

A ETAPA BOURBONIANA UM REFORMISMO INSUFICIENTE E TARDIO

A dinastia dos Bourbons, que inaugura o século XVIII, incorpora ao Estado espanhol a tradição e a atitude do absolutismo mercantilista francês, mais adiantado, dinâmico e racionalista. A nova casa real deve enfrentar as ameaças emergentes da decadência da Espanha, da agressividade das potências rivais, da possível perda das colônias americanas. Propõe-se a enfrentar tal problemática e a fortalecer seu próprio poder, modernizando e racionalizando a economia, a sociedade, a administração, na metrópole e nos domínios da América. Este projeto não surge somente, daquelas ameaças. É também exigido pela pressão e possibilitado pelo apoio de determinados grupos sociais da metrópole. Isto se origina ou se reforça pela convergência de uma séria de circunstâncias favoráveis. O crescimento demográfico leva a população de 6 milhões em 1700 a 11 milhões em 1800. A perda das possessões européias permite restringir a políti- ca exterior espanhola a objetivos mais limitados e manejáveis. As expulsões religiosas -terminaram e as perseguições da mesma natureza reduziram-se consideravelmente. Vão-se produzindo importantes modificações na estrutura econômica e no equilíbrio das classes sociais em favor de setores produtivos, principalmente a partir das re-

86 FORMAÇÃO DO ESTADO NACIONAL giões menos afetadas pelas causas e traços gerais da decadência: a marítima, a cantábrica e a mediterrânea. No campo, ataca-se privilégio da criação de gado, lavram-se novas terras, colonizam-se e crescem novas populações, renovam-se grandes trabalhos de planejamento territorial, consegue-se maior prosperidade rural. O comércio revitaliza-se, especialmente em torno dos grandes portos. Aumentam o intercâmbio, a equipagem de frotas, a cabotagem, e do comércio mediterrâneo se passa a intensificar o tráfico com a América. Ê reduzido o monopólio dos portos tradicionalmente, privilegiados em benefício de outros até então abandonados. Começa a ser proposta uma nova formulação do Pacto Colonial, que favoreça melhor a produção e o comércio da metrópoles. A acumulação de ca- pitais nacionais intensifica-se. Tudo isto estimula o setor manufatureiro que aumenta suas inversões e suas inovações técnicas. Os grupos industriais e comerciais crescem em número, importância e peso específico. A Espanha parece tender a uma maior adaptação ao capitalismo sem se converter plenamente a ele quanto a pré-requisitos, estruturas e mecanismos.

Os Bourbons sofrem a pressão e podem contar com o apóio de novos grupos burgueses, sobretudo nas províncias mais ativas, que, por outro lado, sabem tirar seu proveito. Destes setores e zonas provêm os melhores estadistas do período: Aranda, JoveRanos, Floridablanca, Campomanes, Patiño. Esta base social mais ampla e dinâmica permite aos Bourbons certa

Page 74: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

recuperação parcial de posições no âmbito internacional e um reforço da centralização interna, enfraquecendo as autonomias e privilégios tradicionais que ainda subsistem.

Uma minoria de aristocratas e burgueses instruídos, com influência no monarca e na corte, recebe, assimila e adota isoladamente na Espanha uma parte da concepção e do programa do Iluminismo do século XVIII. A maior abertura às influências européias é acompanhada por uma atitude e uma atividade caracteriza- das por tímida moderação, combinação de tradicionalismo e prática inovadora, equilíbrio, comedimento e realismo, em prejuízo do vigor revolucionário inicial. Os ideólogos e administradores da etapa bourboniana aplicam uma versão seletiva e conservadora do Ilumilusmo. Eliminam seus elementos críticos e programáticos de maior transcendência nos âmbitos social, político e cultural. Reduzem tudo a um plano de reforma empírica dentro da ordem existente, sem pretender modificá-la, para aumentar a renda, a riqueza e o poder da monarquia. Trata-se de preservar e renovar as bases materiais e políticas da Coroa, através de um absolutismo informado por maior

O PROCESSO DE EMANCIPAÇAO 87 conteúdo secular. Isto implica e determina maior independência da monarquia em relação às influências eclesiásticas, a redução do poder material do clero, a expulsão dos jesuítas, o ataque ao fanatismo e às falsas crenças. Entretanto, a religião e a Igreja são basicamente respeitadas e a Inquisição em decadência subsiste e atua. O reformismo bourboniano procura também elaborar e aplicar pla- nos mais racionais de governo, através de pessoal capacitado e de uma reforma do aparato administrativo do Estado (supressão ou redução do nepotismo e da corrupção, procura de maior eficiência). A concepção senifliberal que é parcialmente admitida na economia e a preocupação por uma mobilização e expansão das forças produtivas manifestam-se no ataque ao regulamentarismo e aos excessos fiscais, às alfândegas internas, aos direitos sobre a produção e sobre as importações de equipamentos e maquinarias. A agricultura é fomentada através do cercamento de terras comunitárias, da venda de domínios reais, desamortização de bens eclesiásticos, destruição do poder da Mesta pecuária. As manufaturas também recebem certo estímulo irregular. Um espírito mais progressista desenvolve-se na educação, ciência e tecnologia.

A política bourboniana não se limita à Espanha. Idéias e planos de reforma para as colônias em matéria de política econômica e administração estatal são esboçados e aplicados a fim de fortalecer seus laços com a metrópole e explorá-las melhor. Esta linha de ação combina contraditoriamente elementos de mercantilismo e liberalismo. Reconhece-se o fracasso do mercantilismo como instrumento de política econômica e colonial. O sistema de monopólio mercantil sofre um enfraquecimento parcial e gradual. Ocorre uma certa abertura de possibilidades para espanhóis nativos quanto à educação e funções militares, administrativas e eclesiásticas. O Conde de Aranda propõe a seu monarca a criação de três reinos autônomos no México, Lima e Bogotá, governados por três infantes reais. São adotadas algumas medidas para o desenvolvimento do ensino primário, ciências e artes.

Page 75: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

A reforma bourboniana é insuficiente e tardia na Espanha e principalmente nas colônias. Um fator decisivo para isto é o peso e resistência das classes e estruturas tradicionais da metrópole e da América. A alta e baixa nobreza, o clero, o campesinato espanhol sujeito à tutela eclesiástica e ao prejuízo misoneísta defendem velhos costumes e prerrogativas, resistem às novas idéias e mudanças demasiado audazes. A monarquia não deixa de pertencer às classes dominantes, de expressar seus interesses e valores, de depender do seu apoio. Isto não é suficientemente compensado por pressões al-

FORMAÇÃO DO ESTADO NACIONAL 88 ternativas de grupos dinâmicos e modernizantes. Em conseqüência, a monarquia é incapaz de realizar transformações profundas e rápidas. Além disso, as tentativas de reforma econômica e social produzem-se em plena decadência interna da Espanha e sob crescente subordinação à Grã-Bretanha. A linha reformista se enfraquece e retrocede, sobretudo a partir de Carlos IV (1788).

GÊNESE DA EMANCIPAÇÃO As tímidas inovações liberais resultam especialmente insatisfatórias para os domínios coloniais da América, por suas insuficiências e por suas conseqüências não desejadas nem previstas.

A reforma do sistema de monopólio mercantil desenvolve-se por várias décadas. Os comerciantes de Sevilha perdem seus privilégios. A Casa de Contratação é removida daquela cidade para Cádiz. O regime de frota é abolido (1748). O direito de comércio transatlântico é estendido a portos espanhóis (1764) e logo a outros 13 (1778). Em 1768 decreta-se a liberdade de comércio entre os vice-reinados de Nova Granada e do Peru, e logo a seguir aos de Nova Espanha e Rio da Prata. Vários portos americanos vão sendo abertos ao comércio ultramarino com a Espanha e, em parte, ao internacional. Em 1778 institui-se a liberdade de comércio entre as colônias e destas com a Espanha. Em 1797 a Espanha, arrastada à guerra com a Grã-Bretanha por sua aliança com a França, vê-se isolada de suas colônias e, para burlar o bloqueio inglês, abre os portos americanos aos navios neutros. Esta medida permite principalmente a penetração dos navios, mercadorias e idéias dos Estados Unidos e implica a quebra do regime monopolista-que se torna praticamente irreversível. A estas medidas alia-se a revisão de tarifas e direitos. O comércio imperial aumenta e seus lucros distribuem- se entre um número relativamente maior de grupos e indivíduos. A expansão do tráfico legal e a perduração do contrabando contribuem para criar urna certa prosperidade geral e estimular o desenvolvimento econômico, social e demográfico das colônias, tanto no campo como nas cidades. Estas crescem em população, dimensão física, peso sócio-econômico e importância política, pelo impacto convergente das mudanças indicadas e, das reformas administrativas. Criam-se ou ampliarn-se mercados regionais e as produções locais incrementadas. A oferta e a demanda das colônias aumentam e são se diversificam enquanto as novas necessidades não são absorvidas nem satisfeitas pela metrópole. Cada vez mais, esta aparece como

Page 76: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

O PROCESSO DE EMANCIPAÇÃO 89 intermediária inefíciente e onerosa, em termos econômicos e fiscais. À desfavorável relação de intercâmbio entre a Espanha e suas colônias somam-se as reformas fiscais bourbonianas que elevam consideravelmente uma imposição já opressiva e geram urna resistência crescente ao pagamento de impostos.

Ainda mais, o monopólio subsiste no essencial. São mantidas muitas das discriminações e proibições em favor de produtos espanhóis ou de europeus vindos da Espanha, e outras são criadas. As concessões comerciais resultam insuficientes e mesmo efêmeras (os direitos alfandegários são restabelecidos antes do término do século XVIII por razões financeiras). Apesar de terem incrementado e diversificado seu potencial produtivo e de demanda e suas necessidades gerais, as colônias americanas sofrem restrições quanto ao acesso ao mercado internacional, salvo através do contrabando, e limitações quanto ao aumento de sua capacidade produtiva. Conseqüentemente procuram cada vez mais o contato direto com o resto da Europa Ocidental, especialmente Grã-Bretanha, e com os Estados Unidos, como meio de expansão do mercado e da produção, para melhor uso dos recursos naturais, e para conseguir maiores rendas e, satisfação das necessidades crescentes em número e complexidade. A evidente impossibilidade de harmonizar os interesses da Espanha e da América cria e estimula a exigência de livre comércio com todas as nações. Da idéia de liberdade econômica vai-se passando à de suprimir os vínculos e freios sociais e políticos que derivam da submissão à Espanha. A independência começa a aparecer como pré-requisito para a reorganização da economia e da sociedade americanas. Tudo isto leva à necessidade de pleno acesso e controle sobre o poder estatal como meio de adotar e impor decisões em matérias de política econômica: comércio externo, alfândegas, impostos, despesas públicas, privilégios. Além disso, a liberdade econômica, insuficiente para alguns setores e grupos, é excessiva para os que produzem mercadorias iguais ou similares às provenientes da Europa, interessados no protecionismo e portanto afetados pelo limitado liberalismo bourboniano.

Estes fatores de irritação e rebeldia não são os únicos que aparecem e operam durante o período bourboniano como determinantes e condicionantes da lenta emergência de um projeto emancipador.

A política exterior espanhola compromete as colônias americanas em suas aventuras e vicissitudes, ignorando ou prejudicando os interesses destas. Utiliza seus recursos, obriga-as a suportar suas flu

90 FORMAÇÃO DO ESTADO NACIONAL tuações e derrotas, não lhes dá proteção suficiente e frequentemente as abandona a seu destino. A aspiração à independência é reforçada aqui

Page 77: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

pelo desejo de decidir com autonomia tudo que se refira aos próprios interesses e às políticas adequadas.

O tratamento diferenciado pela origem territorial contribui para o agravamento e localização da divergência geral de interesse entre a Espanha e suas colônias. O sistema cria e mantém uma divisão nítida entre os espanhóis de origem peninsular e crioula. Os segundos pertencem há várias gerações à terra americana onde nasceram e que consideram como sua. Seu número vai aumentando com o crescimento demográfico até se constituir em núcleo compacto da sociedade colonial. O acúmulo de recursos econômicos básicos converter-os em setor importante das classes altas do campo e das cidades. Ao poder econômico vai-se aliando o acesso à cultura e à técnica, através da educação básica e universitária e do exercício das profissões liberais. A urbanização, estimulada pelo relativo desenvolvimento econômico das colônias no século XVIII e pela crescente vinculação com o mercado mundial, reforça a expansão numérica e a concentração ecológica da classe alta nativa (latifundiários, comerciantes, advogados) nas cidades e desenvolve suas expectativas e exigencias de consumo material, cultural, poder e prestígio. Acrescente-se um certo grau de diferenciação e de conflito entre os espanhóis peninsulares estabelecidos na América e aqueles em trânsito.

O peso crescente e a expansão dinâmica do setor entram em contradição com a situação secundária a que o relega o sistema colonial. Este dá preferência aos espanhóis peninsulares e pretere os americanos nativos no acesso e exercício das funções mais decisórias, honoríficas e lucrativas: os altos postos da administração, do exército e da Igreja, os grandes negócios monopolistas. São relegados às profissões liberais e às posições políticas menos importantes. O predomínio automático e inalterável dos peninsulares sobre os Crioulos fecha a estes o caminho para o poder, prestígio e riqueza; torna cada vez mais irritante o parasitismo dos primeiros, evidencia ainda mais e de modo crescentemente acelerado os inconvenientes gerais do sistema colonial indicados.

A sensibilização dos crioulos é estimulada pela crescente percepção da pouca flexibilidade das instituições políticas e administrativas, agravada pelas reformas centralizadoras dos Bourbons. O sistema imperial espanhol demonstra-se essencialmente incapaz de se adaptar às mudanças e de enfrentar com eficácia e êxito as ameaças geradas pelas potências rivais e pelas transformações em curso na O PROCESSO DE EMANCIPAÇÃO 91 economia internacional e colonial. A 'teoria e a prática do governo espanhol inspiram-se na necessidade e na pretensão de conservar basicamente intacta a estrutura tradicional da metrópole e do Império. Mantêm-na numa atitude de monopolismo, espoliação econômica e fiscal e ênfase administrativa renitente à estratégia política de grande alcance. Determinam assim uma inaptidão congênita - social, política, mental - para a flexibilidade, adaptação e iniciativa. O plano de inovações de Carlos III tem múltiplas conseqüências nas colônias e cria condições favoráveis à aparição. e desenvolvimento de tendências centrífugas e separatistas. A criação de novos vice-reinados e capitanias-gerais, e sobretudo do sistema de intendências, gera e multiplica divisões,

Page 78: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

rivalidades e conflitos entre os diferentes órgãos, níveis e jurisdições (vice-reis contra intendentes, estes contra cabidos, capitais contra cidades secundárias e regiões) . Funcionários bourbonianos liberais que chegam às colônias (inclusive alguns de origem crioula) chocam-se com o clero e grupos monopolistas, mas estimulam o fomento da elite crioula urbana. O governo impreial na América Latina se enfraquece e perde prestígio; suas divisões internas mostram as tensões criadas pelos progressos estimulados por suas próprias reformas; e assim os crioulos podem começar a exercer maior influência. Por outro lado - como ocorre no México - os intend6íites e seus subdelegados substituem os corregedores, função ocupada por certo número de crioulos, e seus titulares são recrutados majoritariamente entre peninsulares. Aumenta a irritação contra uma administração colonial que se mostra ineficaz e corrompida. Por insuficiência de recursos financeiros e humanos para a manutenção de corpos militares regulares, a metrópole vê-se obrigada a recorrer a milícias coloniais de soldados mestiços e mulatos e de chefes superiores espanhóis peninsulares, mas onde os crioulos podem ser oficiais, com privilégios e imunidades do foro militar. Por um lado, isto proporciona certa satisfação aos grupos crioulos, mas por outro permite-lhes aumentar seu poder e influência e sugere-lhes que sua participação nas forças armadas poderá ser utilizada eventualmente contra os espanhóis. Esta possibilidade também surge e se reforça pela incapacidade militar do Império, expressa em forças armadas escassas, mal treinadas, de disciplina deficiente, facilmente desmoralizadas no meio social e físico dos domínios americanos. As invasões inglesas do Rio da Prata (1806-07) revelam a incapacidade espanhola e as possibilidades dos crioulos (uso da cavalaria ligeira e da guerrilha urbana) De um modo geral, assim vão-se intensificando as aspirações e pressões dos crioulos abastados e das camadas médias, tendentes

92 FORMAÇÃO DO ESTADO NACIONAL a uma maior participação administrativa, política e econômica, de acordo com seu crescente poder material, social e cultural. O desejo correspondente de substituir os peninsulares se manifesta e reforça através de um ódio generalizado a estes, que são qualificados por vários epítetos pejorativos (gachupines, chapetones, gmos), e também na lenta emergência de uma consciência localista e regional, ré-requisito -para o nacionalismo, para a qual contribui a exploração e melhor conhecimento do próprio país e de suas possibilidades. As concessões do período bourboniano estimulam as aspirações e reivindicações jos crioulos, permitem4hes maior contato com o exterior, ao mesmo tempo que lhes deixa entrever tudo o que ainda pode e falta ser conquistado. A reação restritiva da metrópole e dos espanhóis nativos no fim do período colonial, visando resistir à pressão crioula e recuperar o terreno perdido, não faz mais do que agravar o mal e a rebeldia latentes.

AS INFLUÊNCIAS EXTERNAS: A AÇÃO BRITÃNICA

O quadro ficaria incompleto se não fossem também consideradas as influências externas, não só econômicas, mas também culturais, ideológicas e políticas. Estas influências procedem do

Page 79: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

processo geral euro-atlântico do século XVIII e, particularmente, de modo em parte sucessivo e em parte simultâneo e acumulativo, da Grã-Bretanha, Estados Unidos e França.

Do ponto de vista global, deve-se computar os efeitos dissolventes do regime colonial e estimulantes da rebeldia e do projeto emancipador que são produzidos pelo comércio legal e ilegal, os viajantes, os contatos clandestinos. Os conflitos internacionais da Espanha, quase sempre catastróficos, criam um semi-isolamento das colônias e permitem agressões que são ao mesmo tempo contatos e aberturas para o exterior.

A ação britânica constitui possivelmente o mais forte fator do movimento de pressões externas que finaliza a decadência da Espanha e de seu império., A frota da Grã-Bretanha assesta golpes mortais no poderio marítimo espanhol e, aliada ao seu exército regular, seus piratas, comerciantes, negreiros e contrabandistas, mina o monopólio mercantil da Espanha. Pelo Tratado de Utrecht (1713) a Grã-Bretanha obtém o direito de enviar anualmente um navio de registro à América Espanhola e o privilégio do tráfico negreiro com aquela por 30 anos. Assim, a Grã-Bretanha, com a Revolução In-

O PROCESSO DE EMANCIPAÇÃO 93 dustrial já em formação, substitui a França e Portugal no tráfico de escravos e arrebata aos comerciantes espanhóis grande parcela das importações americanas. Passa a mãos inglesas uma parte cada vez mais importante do tráfico entre a metrópole e suas colônias. A este contato fertilizante deve-se em grande parte o desenvolvimento econômico relativo das colônias hispano-americanas. Pelos mesmos mecanísmos vai penetrando na América o modelo de democracia aristocrática parlamentarista, de liberalismo econômico e de antimercantitismo, sementes que caem em campo já preparado pelos fatores e circunstâncias indicados. Além disso, a Grã-Bretanha apóia os descontentes e futuros rebeldes do setor crioulo, de início como promessa e a seguir como realidade. Este apoio tem pelo menos duas motivações básicas e convergentes. Em primeiro lugar as classes dirigentes britânicas presumivelmente compreendem, com adiantada lucidez, que o controle do Mediterrâneo é condição essencial para a expansão e consolidação de seu império. Uma Espanha recuperada e vigorosa ameaçaria a efetividade e permanência deste controle. A penetração do comércio e capital ingleses na economia da Espanha peninsular e de suas colônias, acentuada desde o século XVIII, e as agressões navais e militares não procuram a simples obtenção de lucros imediatos mas se propõem também a manter a subordinação, atraso e enfraquecimento da metrópole. Em segundo lugar, a Grã-Bretanha logo assume, como outra motivação básica, conquistar o mercado interno das colônias hispano-americanas, através de sua conquista militar e política ou, ao menos, do apoio ativo de sua independência em troca de liberdade comercial e preferência para a produção e inversão inglesas. As duas possibilidades vão sendo consideradas conjunta ou alternativamente, até que a segunda prevalece. É im possível compreender a natureza e dinâmica reais deste processo sem se considerar algumas circunstâncias relativas à Grã-Bretanha, à Espanha e à evolução de, suas relações no contexto da economia e da política internacionais.

Page 80: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

Em plena expansão interna e mundial, a Grã-Bretanha melhora rapidamente sua técnica produtiva e sua organização comercial, e incrementa sua acumulação de capitais. Dispõe já de uma produção industrial em grande escala, a baixos preços e de boa e uniforme qualidade. Isto a leva, cada vez mais, a deixar de lado os vícios de organização e política mercantilista, internamente, o a procurar sua finalização na economia internacional e nos impérios coloniais de outras potências, especialmente Espanha e Portugal. Suas finalidades e exigências anteriores são substituídas por outras, de acordo com as novas circunstâncias e possibilidades. Em vez de

94 FORMAÇÃO DO ESTADO NACIONAL, seguras fontes coloniais de fornecimento, altos lucros por intercambio seguro mas pequeno, feitorias comerciais garantidas por tratados, a Gra-Bretanha procura agora o livre cambio sem condições, as rápidas vendas atraves do trafego direto com grandes mercados compradores . Esta dinamica britânica choca-se com a nova política bourboniana, mistura de mercantilismo e liberalismo, que pretende manter no essencial o monopólio imperial americano em beneficio de grupos espanhóis, busca suprimir o contrabando e a exportação ilícita de metais, e reduzir a ação britânica aos limites e clausulas dos tratados . Eliminada a França como rival efetiva na América, a Grã-Bretanha e a Espanha enfrentam-se como pretendentes únicos a hegemonia hemisferica. A luta agrava-se após o Tratado de Asiento (1750) . A Grã- Bretanha vai fortalecendo os instrumentos e mecanismos que lhe permitam a penetração direta nos domínios espanhóis: portos livres e bases perto da costa e em volta do Império espanhol, utilização de Portugal e Brasil como intermediários e cúmplices . Mas a Grã-Bretanha começa a mostrar crescente impaciencia frente as limitações e incertezas derivadas dos tratados e do contrabando. Vai percebendo que sua expansão comercial tem obstáculos, não só na legislação amerindia, sempre burlável, mas principalmente na estrutura interna do mercado colonial espanhol, que determina sua redução de dimensão. e de elasticidade: pobreza, baixa produtividade, auto-suficiencia local, rígida e hierarquizada estratificação social, conservadorismo fomentado pelo governo e pela Igreja. A possibilidade básica de romper os limites e de modificar as estruturas internas do Império espanhol e dada pela existência de grupos crioulos - latifundiários, comerciantes, intelectuais e profissionais cada vez mais interessados no livre cambio e na autodeterminação política, e portanto utilizaveis como base de operação contra o regime monopolista. A partir dai, pensa-se principalmente na possibilidade de conquista militar direta. Fracassos como os de Miranda e das invasões do Rio da Prata mostram à Grã-Bretanha que os povos americanos não estão muito predispostos a promover ou aceitar a mera troca do velho amo colonial por outro novo, e levam-na a esboçar e aplicar sua linha de ação definitiva: o fomento de uma revolução nos domínios espanhóis que implante uma ordem liberal, através da liquidação do poder metropolitano, como premissa para a expansão das exportações de manufaturados ingleses no mercado americano . Este tipo de projeto aparece relativamente cedo. O almirante ingles Vernon, que na guerra anglo-espanhola de 1739 toma

Page 81: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

O PROCESSO DF EMANCIPAÇÃO 95 Portobelo, afirma em documento enviado a seu governo a 6 de junho de 1741 "que era preciso a Grã-Bretanha se inclinar à emancipação das fundações espanholas na América, para abrir seus mercados aos de Londres, um pouco cansados do tráfico ilícito" (Busaniche, José Luis. História "ensina. p. 206). O processo global da segunda metade do século XVIU e começos do XIX e a- luta contra Napoleão determinam finalmente que esta estratégia seja retomada e adotada. As necessidades da guerra com o poder imperial francês, de miná-lo fora da Europa e de compensar as conseqüências do bloqueio napoleônico, que reduz ou fecha os canais de comércio no velho continente, reforçam a tendência ao apoio da revolução hispano-americana.

Entretanto, a existência e o sustento da subversão crioula desenvolvem-se de modo lento e contraditório, com limitações de várias naturezas. A Grã-Bretanha teme principalmente que o ataque ao Império espanhol reforce na Europa os laços da metrópole com a França; assim, quando a Espanha, em 1808, torna-se sua aliada na luta contra, Napoleão, é obrigada a respeitá-la até certo ponto e trata de defender suas colônias contra qualquer ataque. Além disso, a Grã-Bretanha é uma potência colonial temerosa por seu próprio império que já sofrera a perda das 13 colônias norte-americanas. Pôr isto resiste sempre a adotar medidas contrárias à sua própria ideologia social e política, a seus interesses e estratégias ou que possam afastá-la da elite crioula, Suas incitações à revolução são cautelosas; evitam o apelo à guerra social; não estimulam a liberação dos escravos, as negociações com os índios, a desordem social e política; buscam explicitamente a conservação do esquema básico de estratificação e de poder nas colônias, a não ser no que seja requisito indispensável para a substituição das elites governantes. A hostilidade contra a insurreição popular e a democracia republicana correlaciona-se à simpatia pelos projetos aristocratizantes e monárquicos.

De qualquer forma, a Grã-Bretanha vai intensificando o apoio à revolução hispano-americana, com capitais, armas e mesmo homens. Promove e sustenta as duas primeiras tentativas de libertação: a de Francisco Miranda na costa venezuelana e no mesmo ano e no seguinte as invasões fracassadas do Rio da Prata. Desde 1810 aproveita o processo abertamente emancipador para intensificar sua penetração comercial, financeira e diplomática. A partir da queda de Napoleão, que a libera de seu antigo aliado espanhol, age às claras em favor do processe revolucionário.

96 FORMAÇÃO DO ESTADO NACIONAL

AS REVOLUÇOES NORTE-AMERICANA E FRANCESA

Page 82: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

A Revolução Norte-americana de 1776 age em sentido semelhante, embora não idêntico, ao da ação britânica, utilizando diferentes caminhos. Proporciona o modelo e o exemplo de sua experiência vitoriosa, e cria um foco revolucionário estatalmente consolidado próximo da América Latina. Nos Estados Unidos, onde participa da revolução em nome do rei da Espanha, o precursor Francisco Miranda concebe o projeto de emancipar as colônias espanholas, e com este fim encontra-se em 1783 com Alexander Hamilton, Samuel Adams, Henry Knox, e, talvez, Washington. A informação e a ideologia da Revolução Norte-americana penetram na América Espanhola através de um comércio crescente com os Estados Unidos. A Espanha apóia os revolucionários norte-americanos como parte de sua luta contra a Grã-Bretanha. Em 1795, aliada da França, a Espanha lança-se em guerra contra a Grã-Bretanha, o que a isola de suas colônias e a obriga a decretar a abertura dos portos americanos ao comércio com países neutros. Disto se aproveitam os Estados Unidos para dirigri seu comércio e seus navios para o atraente mercado hispano-americano, trazendo homens, idéias e esquemas da Revolução Norte-americana, cada vez mais influentes na concepção revolucionária que começa a fermentar. As traduções de Common sense ,de Thomas Paine, multiplicam-se. A influência norte-americana se refletirá nos textos constitucionais das futuras repúblicas.

O impacto da França inicia-se no plano das idéias, para logo somar a influência direta política, diplomática e militar. Desde meados do século XVIII começa-se a ler nas colônias espanholas as obras dos pensadores franceses (e ingleses), em livros que penetram clandestinamente através do comércio, do contrabando, viajantes, e mesma funcionários espanhóis, e são às vezes traduzidos e reimpressos por crioulos. Esta tendência desenvolve-se cada vez mais no século XVIII e começos do XIX, com a conseqüente difusão do pensamen- to iluminista dos fisiocratas Mably, Diderot, D'Alembert, Voltaire, Montesquieu e Rousseau. Também as reformas bourbonianas atuam em parte como difusoras do espírito do Euminismo que as inspira com as limitações antes indicadas. A Revolução Francesa, principalmente antes da inquietante fase jacobina, faz vibrar a elite crioula. Antonio Nariño traduz a Declaração dos direitos do homem e do cidadão que, impressa clandestinamente em Bogotá (1794), circula em grande parte da América. Francisco Miranda, general da França revolucionária, entra em contato com chefes girondinos. O Diretório abarca a Espanha na luta contra a Inglaterra, que finalmente

O PROCESSO DE EMANCIPAÇÃO 97 provoca a abertura dos portos americanos ao comércio com os países neutros. Assim, a ação napoleônica agirá como a grande desencadeadora do processo de emancipação.

O IMPACTO NA ELITE CRIOULA URBANA

A invasão ideológica que vem dos centros mais avançados do mundo euro-atlântico encontra acolhida em uma elite crioula instruída, e difunde-se entro as universidades, meios intelectuais e profissionais, latifundiários e comerciantes, funcionários e chefes militares nativos. Assim, é

Page 83: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

recebida primordialmente pela burguesia urbana que a assume e se mobiliza, enquanto os grupos estritamente rurais a assimilam lenta e limitadamente, ou inclusive a vêm com indiferença, receio e hostilidade. Proporciona à elite crioula urbana um sistema de idéias e modelos correspondentes ao liberalismo econômico e político dos países avançados: comércio interno e externo sem restrições, modernização da produção, da sociedade e do Estado, progresso cultural, e os conceitos de liberdade, igualdade, segurança, soberania popular, divisão de poderes, parlamentarismo.

A penetração e a difusão do novo pensamento fazem-se com dificuldades, enfrentando-se a proibição, perseguição e sanções do governo imperial e da Igreja. Isto não impede que seus efeitos continuem e se multipliquem. O espírito crítico desenvolve-se e é fortalecido, aplicando-se a todos os aspectos do sistema colonial. O monopólio espoliador da Espanha começa a ser examinado e denunciado. As crenças religiosas até então aceitas passam a ser discuti- das e questionadas com um critério racionalista, e a autoridade da Igreja é colocada em dúvida, inclusive por membros do clero. O isolamento e atraso culturais e obscurantismo oficialmente imposto e mantido são objeto de particular ressentimento e condenação por intelectuais e grupos cultos da elite crioula. As questões internas da Igreja possibilitam e reforçam esta atitude, especialmente as referentes ao alto e baixo clero, seus membros peninsulares e crioulos. A crítica à administração colonial espanhola e a suas políticas vai aumentando em intensidade e minuciosidade. Esta atividade é acompanhada pela lenta emergência de esboços doutrinários e formulações práticas para uma possível reorganização da sociedade colonial. A ação repressiva do poder civil e do religioso não faz mais que agravar o ressentimento, e os fracassos sangrentos das rebeliões precursoras são menos dissuasivos que estimulantes. As assembléias secretas têm atividade crescente. Como em qualquer fase pré-revolu-

98 FORMACÃO DO ESTADO NACIONAL cionária, reina uma grande confusão. Os membros não -peninsulares da sociedade colonial, ou não ligados a eles, especialmente a elite crioula, sentem um descontentamento difuso e permanente, mas não sabem com alguma ,precisão e coerencia o que fazer em relação a ele . A combinação de critica e rebeldia, de ilusões de reforma e vagas aspirações revolucionarias exige também algumas explicações .

Somente um minoria absorve o pensamento iluminista com um sentido revolucionário, a qual não representa a opinião generalizada da elite crioula nem das massas populares (indígenas, escravas, mestiças e mulatas) . A maioria dos crioulos de origem espanhola (fazendeiros, mineiros, comerciantes, profissionais, intelectuais, funcionários eclesiásticos) tem suas aspirações e exigencias estimuladas pelas reformas bourbonianas e começa a sentir que as inovações são necessárias e possíveis

. Incorporam e adaptam o que lhes interessa do conteúdo do Iluminismo . Adotam novos enfoques de conhecimentos e opiniões através da razão e da pratica e não da autoridade e

Page 84: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

tradição. Enfatizam o valor da educação e da ciencia e aspiram a expansao economica, a certo tipo de mudança social e desenvolvimento cultural e tecníco

. Desejam a reforma do sistema imperial, mas sem questionar suas bases ou sua existencia, nem muito menos buscar sua destruição. Não são consideradas, mas sim repelidas, as idéias de ateismo, republicanismo e mudança violenta. Finalmente, sob o impacto de circunstancias externas, aceitar-se-a a ideia de independencia política como meio de libertação do monopólio espanhol e de pleno aproveitamento das possibilidades do comercio livre. Na verdade, esta aceitação deve-se não só a evidencia do fracasso do reformismo bourboniano, mas também e principalmente ao multiplo impacto da invasão napoleônica .

INVASAO NAPOLEONICA E INICIO DA EMANCIPAÇÃO A expansão napoleônica lança novamente a Espanha e suas colonias no tumulto das lutas entre impérios, mas desta vez com envergadura e consequencias inusitadas .

Ao final de 1807, Napoleão conclui que a plena vigencia do bloqueio continental, decretado para arruinar e submeter a Grã-Bretanha, será impossível enquanto Portugal e Espanha não caiam sob domínio francês . A aparente submissão dos Bourbons e Braganças não encobre sua complacencia com o contrabando . As duas casas reais podem arruinar seus países, impedindo latifundiários e campo-

PROCESSO DE EMANCIPAÇÃO 99 neses de vender lã merina à Inglaterra e impedindo a entrada de manufatura barata daquele país. Em outubro de 1807 o exército francês atravessa o território espanhol para atacar Portugal, com a cumplicidade do favorito Godoy, e ocupa Lisboa em novembro. Neste processo ocupa também as praças fortes da Catalunha e Navarra. Poucos meses depois, Napoleão tem 100 mil soldados concentrados na Espanha e em março de 1808 Murat marcha sobre Madri. O Imperador francês aproveita as divisões da família real espanhola, arma-lhe uma armadilha em Bayona, força as renúncias de Carlos IV e seu filho Fernando e envia-os prisioneiros para a França com o resto dos Bourbons. Em 6 de junho Napoleão nomeia seu irmão José Bonaparte rei da Espanha. Propõe-se a integrar totalmente a península ibérica no bloqueio continental e a transformá-la em objeto de exploração para lucro exclusivo da burguesia francesa. Os produtos franceses abasteciam o mercado ibérico em condições de monopólio. A península forneceria exclusivamente à manufatura francesa as variedades de algodão e lã merina de que ela necessitava. As riquezas da América Espanhola também passariam a ser controladas pelo império francês.

Este projeto prejudica os criadores, camponeses, fabricantes e, em geral, todos os interessados na produção de lãs e tecidos. A declaração de guerra à Grã-Bretanha aterroriza os setores peninsulares ligados ao comércio colonial, pois implica o isolamento dos domínios ultramarinos e sua possível captura por forças inglesas. Os setores o representantes da velha

Page 85: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

Espanha resistem a Napoleão por temerem a tradição revolucionária de 1793. O sentimento nacionalista e anti-estrangeiro une um aglomerado heterogêneo de grupos, motivações o tendências. Em 2 de maio de 1808 os mamelucos de Murat afogam em sangue o levante de Madri contra as tropas francesas, mas começara a guerra de independência que convulsionaria os rincões mais afastados da Espanha. O movimento é ao mesmo tempo profundo e amplo. Abrange todas as regiões e classes sociais da Espanha. Combina a reafirmação tradicionalista, os desejos de renovação liberal, o confuso descontentamento das assas populares. A pretensão de direção ideológica o política articulada coexiste com a rebelião anárquica dos grupos guerrilheiros. Durante mais de cinco anos, a combatividade popular, freqüentemente vencida mas sempre renascente, persegue sem tréguas tropas habituadas a arrasar os exércitos imperiais da Europa. A monarquia, a nobreza e o alto clero abandonam o país ao invasor. A minoria liberal instruída, organizada na Junta antral, nas Juntas Provinciais e nas Cortes, pretende governar a Espanha a suas colônias, mas está isolada das mas-

100 FORMAÇÃO DO ESTADO NACIONAL sas combatentes e dos domínios ulttramarinos, não representa nenhum dos dois, e sua eficácia é portanto muito reduzida. Camponeses, arrieiros, pastores, artesãos e intelectuais sustentam a encarniçada revolta que, aliada aos desembarques ingleses, forçará, depois da batalha de Vitória, a devolução do trono a Fernando VII.

Esta rebelião foi interpretada por alguns como uma luta entre o espírito novo, encarnado por Napoleão, e o fanatismo retrógado do povo espanhol. A versão é no mínimo discutível. A invasão é feita por questões de estratégia e de expansão econômica. O Imperador francês propõe-se também, segundo confessa posteriormente, a castigar as ofensas feitas pelos Bourbons. Seu erro é confundir estes com seus súditos e castigar cruelmente um povo que a princípio via com certa simpatia o antigo general da Revolução. Mais ainda, não são propriamente revolucionárias as poucas reformas decretadas por Napoleão durante a ocupaçao da Espanha: supressão de direitos feudais, da Inquisição e de alguns conventos. O imperador burguês, em luta contra uma monarquia do Antigo Regime, não toma nenhuma medida que implique ou desencadeie uma renovação total. "As re-formas" - sublinha Jean Vilar - "não fazem mais que encobrir o espírito de conquista. O Imperador paralisa as boas intenções de seu irmão e os generais, através de verdadeiras pilhagens, paralisam as dos administradores" (Vilar, Jean. Histoire de I'Espagne. p. 56).

O impacto da invasão napoleônica sobre os domínios americanos é suficientemente conhecido, agindo essencialmente como fator desencadeante das forças e tensões contidas e em equilíbrio instável, a que antes se fez referência.

Ao conhecer as notícias da Espanha, as colônias vêem-se em face de uma situação inédita: a ausência de rei legítimo, pela abdicação de Carlos IV e de Fernando a a pretensão de sua substituição por um imperador francês visto como usurpador. Esta pretensão do Napoleão não

Page 86: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

é apenas uma suposição nem é fora do alcance das colônias, A assembléia de notáveis, reunida em Bayona para reconhecer o rei José, inclui representantes das colônias que também recebem um papel na Constituição que Napoleão prepara para a Espanha. O Imperador e o rei José enviam imediatamente agentes especiais para solicitar o apoio dos domínios americanos. Não obstante todos estes esforços, as autoridades e os grupos coloniais do México, Caracas, Bogotá, Buenos Aires, através de Cabidos Abertos, única expressão aceita de certo grau de participação popular, negam a autoridade de Napoleão, proclamam sua fidelidade a Fernando VII e à Junta de Sevilha. A resistência à dominação napoleônica e a leal-

O PPOCESSO DE EMANCIPAÇÃO 101 dade ao rei espanhol são inspiradas decididamente pela Igreja e interesses monopolistas ameaçado, pela competição francesa. A elite crioula não formula de imediato uma decisão plenamente emancipadora por pressão dos grupos conservadores, inexperiência frente a uma situação nova e cheia de incertezas e perigos, e medo de uma insurreição social incontrolável.

NATUREZA E DESENVOLVIMENTO DO PROCESSO EMANCIPADOR

A finalidade inicial do processo emancipador das colônias é pois limitada ao sustento do movimento nacionalista e monárquico da Espanha contra o invasor e pela restauração do rei legítimo. Se seguisse neste caminho o movimento se reduziria por muito tempo a conseguir estes objetivos e a uma série de tímidas reformas no sistema comercial e fiscal, na administração e na participação política. Tal não ocorre. Uma vez começado, o movimento emancipador vai adquirindo crescente dinâmica própria. Vários processos e circunstâncias convergem neste sentido.

O liberalismo espanhol, por meio das Juntas e sobretudo das Cortes de Cádiz, toma medidas progressistas. As Cortes, convocadas com inclusão de representantes coloniais, atacam o poder da Igreja, desamortizam seus bens e suprimem a Inquisição. Decretam a liberdade de imprensa e a abolição das jurisdições de senhorio e seus privilégios. Em março de 1812 promulgam uma constituição liberal para a Espanha, estabelecendo o princípio de soberania nacional, a divisão de poderes com uma câmara legislativa e uma monarquia limitada, a organização unificada de províncias e municípios, e as liberdades fundamentais. Entretanto, a Junta Central de Cádiz, que governa em nome de Fernando VII, proclama as colônias como parte integrante da Espanha e resiste. em conceder-lhes ou reconhecer-lhes qualquer grau considerável de autonomia. Reempossado no tronco, Fernando VII demonstra que não aprendeu nem esqueceu nada. Sua cega intransigência absolutista anula totalmente a obra das Cortes de Cádiz, elimina as liberdades constitucionais, restabelece a Inquisição, reprime os liberais. O monarca também não aceita a possibilidade de um acordo - agradável à Inglaterra - com as elites americanas, que combinaria a manutenção 'da soberania espanhola com maior grau de autonomia política e econômica para as colônias. Ao se propor o arrasamento

Page 87: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

incondicional do movimento americano, Fernando VII impede qualquer possível compromisso e obriga o prossegui- 102 mento da luta até às últimas conseqüências. A brutal, mediocridade deste regime espanhol faz fracassar nova tentativa de renovação interna na Espanha e possibilita finalmente a desarticulação definitiva do Império. Em grande número, os agentes provocadores de Napoleão percorrem todas as regiões do Império espanhol na América incitando à independência total, e sua influência é indubitável, embora de difícil avaliação exata. Mesmo limitada por sua aliança com a Espanha, a Grã-Bretanha não deixa de influir em sentido favorável à emancipação. Sua insistência no pleno acesso do comércio inglês aos portos hispano-americanos representa para os governos revolucionários o contato com o mundo, possibilidades de abastecimento e de rendas alfandegárias. Sobretudo a partir de 1810, manifesta-se e intensifica-se a hostilidade latente entre espanhóis crioulos e peninsulares, agravada pela rígida intransigência destes últimos. Torna-se claro o conflito das tendências à manutenção ou à mudança da hegemonia. Da luta contra a França Napoleônica vai-se passando à guerra emancipadora contra Espanha e seus representantes e aliados na América.

A luta pela mudança na hegemonia é contida inicialmente pelo medo de que pudesse implicar um radicalismo liberador de massas populares (escravos, indígenas, brancos pobres), de resultados imprevisíveis. Entretanto, este medo chega em alguns casos a agir como acelerador, face ao perigo de que o Império não possa manter a ordem e a hierarquia social tradicional ou que seja derrubado inesperadamente, provocando um vácuo de poder. Assim, a Independência também é vista pela elite crioula como meio preventivo para tomar o poder antes que advenha unia subversão incontrolável.

Esta constatação deve ser inserida no quadro global do processo emancipador, de sua natureza, conteúdo e desenvolvimento. Antes de tudo, é um movimento mais elitista que popular. É promovido e usufruído predominantemente pela burguesia crioula urbana. Constitui uma revolução política - substituição da elite dirigente peninsular pela nativa - mais que sócio-econôinica. Mesmo politicamente, a iniciativa e condução do movimento emancipador é contraditória e vacilante (temor à subversão popular e às fórmulas radicais, oscilação entre republicanismo e monarquismo). O movimento não provoca nem é acompanhado por mudanças profundas na economia e estratificação social (reforma agrária, política de industrialização, expansão do mercado interno), a não ser quanto às conseqüências da integração na economia internacional. As massas populares, que já aprenderam a temer mais aos amos crioulos, que as dominam e exploram de perto, do que à monarquia longínqua, que pa-

103 rece às vezes protegê-las, são detidas inicialmente pela percepção do tipo de liderança que a revolução assume e dos limites a ela impostos. Mantêm-se indiferentes, passivas e até abertamente hostis (os habitantes das planícies venezuelanas ajudam a sufocar a primeira Insurreição na Nova Espanha). A crueldade e os atropelos das autoridades e tropas espanholas,

Page 88: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

sobretudo nas zonas temporariamente reconquistadas, provocam a reação e o aumento de participação das classes populares. Esta participação, entretanto, só adquire caráter de massa em algumas regiões onde a presença de indígenas em quantidade considerável conjuga-se com promessas de reforma agrária, abolição da escravatura, igualdade social e supressão de privilégios (México, com Hidalgo e Morelos).

Em segundo lugar, é grande a diversidade regional quanto à origem, o peso relativo das causas, o ritmo, as características e os resultados do processo emancipador. Esta diversidade surge de diferenças quanto a: meio geográfico; estrutura econômica; relações com as velhas e novas metrópoles e com o mercado mundial; estratificação social; correlação de forças entre as classes e o grau de participação ativa e direta das mesmas: possibilidades militares da Espanha e dos insurretos; alternativas e efeitos da luta. As diferenças influem particularmente nas motivações atraentes, nos princípios elaborados e expressos, objetivos fixados e procurados, tipo de liderança e sua interação com as bases sociais que expressam e os condicionam. Assim, a independência emerge e define-se com maior intensidade e rapidez nas áreas coloniais periféricas e dependentes, de, produção não-comerciável no mercado metropolitano (pecuária), vinculadas à Grã-Bretanha (Nova Espanha, Rio da Prata). A lealdade, à metrópole e as vacilações na decisão emancipadora são mais nítidas nos centros coloniais tradicionalmente privilegiados (Peru, México), onde a presença de grandes massas de trabalhadores e sua ameaça de revolução social têm maior peso. A existência de bases militares e navais, herdadas ou mantidas pelas necessidades de luta contra as potências rivais e os indígenas, fortalece as possibilidades de ação contra-revolucionária (Cuba, Chile).

Em terceiro lugar, os traços da guerra emancipadora combinam- se com os da guerra civil. Conflitos políticos, ideológicos, de classes e etnías, entrelaçam-se no processo global, contribuem para sua complexidade e alto grau de violência e ferocidade. A elite dirigente, e atrás dela o resto da população, divide-se em facções sociais, políticas, regionais, que se contrapõem e se aliam: espanhóis contra americanos; espanhóis peninsulares contra crioulos; crioulos realistas contra partidários da independência; monárquicos contra republica-

104 nos; radicais contra conservadores; clericais contra liberais; militares contra civis; elites contra massas populares. O desenvolvimento da luta e os primeiros efeitos da emancipação vão formando as bases de novos conflitos posteriores (por exemplo, unitários contra federais). Multas das contradições herdadas da sociedade colonial e da primeira fase de luta pela independência projetam-se, ampliam-se e modificam-se no período revolucionário e o que se segue.

A revolução emancipadora - excluindo os planos precursores abordados - desenvolve-se de 1810 a 1823, período que pode ser dividido em duas etapas: a das tentativas e fracassos iniciais (1810-1817) e a do triunfo (1817-1823).

Page 89: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

Na primeira etapa passa-se rapidamente da lealdade - em parte autêntica e em parte fictícia e tática - à monarquia espanhola para a intenção explícita de independência total. A definição política clara e a restauração de Fernando VU, que opta pela repressão implacável, agravam a intensidade do conflito militar. Os revolucionários vão-se isolando de todo apoio externo significativo. A Grã-Bretanha está limitada por sua aliança com a Espanha contra Napoleão e o bloqueio naval inglês impede a intervenção francesa em favor da luta americana. Os Estados Unidos abastecem os exércitos anglo-espanhóis da península e são assim também limitados quanto à possibilidade e vontade de ajudar ativamente os insurretos. A guerra de 1812 contra a Grã-Bretanha absorve em seguida os re- cursos norte-americanos disponíveis para a luta. A falta de apoio externo somam-se como fatores limitativos e debilitantes da combatividade americana: os obstáculos geográficos e a escassez de transportes e comunicações; a falta de solidariedade por interdependência de interesses sócio-econômicos entre as regiões; o particularismo zonal e local; a conseqüente raridade do esforço comum e coordenado das diferentes colônias; as divisões e conflitos de grupos, clãs e personalidades; as vacilações dos dirigentes, inclusive sua negativa ou restrição à plena participação popular; a persistência do poder e da influência dos setores vinculados ao sistema colonial (clero, latifundiários, comerciantes monopolistas); a superioridade marítima e militar da Espanha. Também neste período surgem e fracassam tendências sociais e políticas radicais ou extremistas,. geradas e alimentadas pela influência ideológica européia (jacobinismo francês) e pela apelação ao apoio, assim como pelo próprio apoio, das classes populares. A estas tendências correspondem, em grau variável, figuras e movimentos como os de Mariano Moreno e José Gervasio de Artigas no Rio

O PROCESSO DE EMANCIPAÇÃO 105 da Prata; Hidalgo e Morelos no México; Bolívar, quanto a certos aspectos de sua estratégia como o projeto de unidade latino-americana, na parte setentrional da América do Sul. Estas tendências acabam sendo derrotadas pelas resistências e pressões conservadoras de latifundiários crioulos, de caudilhos militar" e do clero.

Em 1816, aproximadamente, o único foco revolucionário que persiste e conserva vigor defensivo e ofensivo é do Rio da Prata. A parti de 1817 a conjuntura desfavorável começa a se transformar. Derrotado Napoleão, a Grã-Bretanha deixa de se sentir limitada por sua aliança com a Espanha; a necessidade de dominar os mercados latino-americanos para seu comércio e exportação de manufaturados volta a ser sua preocupação fundamental. A rígida intransigência absolutista de Femando VII impede o que a Grã-Bretanha preferiria: um compromisso entre a Coroa espanhola e as elites crioulas que conservasse o Império em condições de maior flexibilidade e autonomia nas relações com as colônias e quanto aos direitos destas. O governo, os comerciantes e industriais e a opinião pública da Inglaterra vão-se tornando mais simpáticos à causa emancipadora. O apoio britânico concretiza-se em armas, provisões, fundos e quadros militares e navais novamente disponíveis, e na afirmação pública de que não tolerará uma intervenção espanhola ou européia na América. Fortalecidos e mais livres depois de sua guerra com a Grã-Bretanha, os Estados Unidos começam a auxiliar mais

Page 90: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

significativamente os insurretos; reconhecem os novos regimes e na simbólica Declaração de Monroe fazem uma advertência antiintervencionista à Europa. A repressão espanhola nos territórios reconquistados, a multiplicação de massacres, vinganças pessoais, confiscos e deportações contra os rebeldes desacreditam a metrópole na opinião internacional e sobretudo fortalecem o desejo de luta dos já combatentes e arrastam os vacilantes e passivos à insurreição. As dificuldades do terreno e as simpatias crescentes da população nativa são ao mesmo tempo aproveitadas pela maior experiência político- militar dos líderes crioulos, encabeçados por figuras de talento excepcional, e por uma proliferação de grupos guerrilheiros. Além disso, os rebeldes começam a dispor de frotas de navios de guerra, regulares e corsários, que rompem o bloqueio e desgastam o poder naval espanhol. Em janeiro de 1820, o coronel Rafael Riego subleva em Cádiz as tropas espanholas que iam lutar na América e à frente delas ataca Madri. A Coroa espanhola e a reação absolutista são relegadas à defensiva. A crescente sucessão de importantes vitórias vai aniquilando os focos de poder militar metropolitano. Uma atrás da outra as principais regiões da América Espanhola vão

106 FORMAÇÃO DO ESTADO NACIONAL Conquistando sua independência formal. A batalha de Ayacucho, a 9 de dezembro de 1824, representa a derrota definitiva da Espanha.

BRASIL: DE COLÔNIA A IMP.ÉRIO

O desenvolvimento internacional do século XVIII e os processos que, paralela e interligadamente ocorrem na economia e na sociedade coloniais do Brasil aliam novas contradições e conflitos aos já existentes neste país (capítulo 11). Às diferenças e divergências entre indígenas e conquistadores e colonizadores, e entre escravos e senhores, acrescentam-se outras: entre companhias monopolistas e consumidores locais; entre latifundiários e manufatureiros; entre os grupos mineiros e o fisco metropolitano; entre Classes altas e médias nativas e as autoridades coloniais. O eixo dos conflitos se estabelece e opera através da luta entre a metrópole e a classe dominante colonial e em função dos problemas do monopólio mercantil e de uma fiscalização voraz e opressiva. A classe dominante colonial começa a deixar de se identificar com a metrópole, de representá-la e de defender seus interesses.

Importante papel neste processo é desempenhado pela Grã-Bretanha que desde o século XVIII vem intensificando sua dominação e penetração sobre Portugal e Brasil. Através de uma série de Tratados, especialmente o de Methuen (1703), a Grã-Bretanha destrói a indústria têxtil de Portugal, controla seu comércio externo e interno, subdesenvolve-o e torna-o o dependente, converte-o em mero intermediário mercantil e fiscal entre a metrópole inglesa e as colônias lusitanas, especialmente o Brasil. A quase totalidade da demanda de Portugal e suas colônias é satisfeita pela produção e comércio da Grã- Bretanha. Esta inclusive utiliza o Brasil - como já se disse - na luta contra o regime colonial espanhol; usa livre e seguramente seus portos, tratados diplomáticos e relações e tráficos mercantis com a Espanha para comerciar com o Rio da Prata,

Page 91: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

Paraguai e Peru; anima Portugal a estender seus territórios americanos; apóia-o contra a Espanha na agressão, defesa e negociações de paz.

A relação de satélite de Portugal com a Grã-Bretanha desenvolve-se com tensões e conflitos. Na segunda metade do século XVIII, o Marquês de Pombal, primeiro ministro de Portugal, tenta converter seu país em uma pálida versão do mercantilismo francês de Colbert e do reformismo bourboniano da Espanha. Sua intenção é produzir uma reação contra a dependência de Portugal frente à Grã-Bretanha e contra o crescente atraso e, enfraquecimento dos laços

O PROCESSO DE EMANCIPAÇÃO 107 com as colônias. Tende a promover o desenvolvimento econômico de Portugal e a reduzir a penetração britânica, através de uma política mercantilista nacionalista. Isto é estimulado e possibilitado pelo afluxo de ouro proveniente do início do. ciclo mineiro no Brasil. Nesta colônia Pombal pretende reestruturar o aparato político-administrativ o para adequá-lo às exigências de uma melhor dominação (criação de novas capitanias e do Vice-Reinado com centro no Rio em 1763). O choque com os interesses britânicos produz-se quando Pombal pretende aplicar as regulamentações imperiais sobre o tráfico de metais e funda companhias comerciais portuguesas com privilégios de exclusividade. Portugal é obrigado a ceder, por sua dependência e atraso já insuperáveis e pela necessidade de apoio político britânico na metrópole, em suas colônias e no plano internacional. A tentativa reformista de Pombal fracassa.

No processo de emancipação, as camadas médias brasileiras. impulsionam a classe dominante, nativa para a independência política e a segunda limita o movimento com este fim. Respeita a estrutura socio-econômica colonial, que transferirá basicamente, intacta para o período posterior à emancipação. A independência é uma empresa da classe senhorial, em função de seus interesses, e caracterizada pela cautela, gradualidade e envergadura limitada. Às convulsões revolucionárias que marcam a emancipação hispano-americana contrapõe-se no caso do Brasil uma transição pacífica, depois de algumas tentativas abortadas de insurreição (Inconfidência Mineira em 1788). Estes traços surgem pela liderança e conteúdo classistas do processo, ao lado de uma conjuntura histórica determinada criada pela invasão napoleônica.

Em novembro de 1807, com a chegada do exército francês do General Junot a Lisboa, o Regente de Portugal D. João, governando desde 1799 em nome de sua mãe demente D. Maria 1, a família real e a corte fugiram com o tesouro português para o Brasil, a conselho da Grã-Bretanha e protegidos por sua frota. O Brasil transforma-se em sede da monarquia portuguesa e o Rio substitui Lisboa como sua capital. As conseqüências deste fato são múltiplas e fundamentais para o posterior processo histórico do Brasil.

Page 92: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

Do ponto de vista da relação de dependênia com a Grã-Bretanha, as condições da mudança produzida favorecem e impõem a plena abertura do Brasil aos navios e comércio britânicos e estrangeiros, A Grã-Bretanha aproveita e promove as transformações determinadas pela troca do eixo político do império português. O Brasil substitui as possibilidades e esperanças suscitadas pelo Rio da

108 FORMAÇÃO DO ESTADO NACIONAL Prata e relativamente postergadas pelo fracasso das invasões de 1806 1807. Os navios britânicos afluem ao porto do Rio de Janeiro e suas mercadorias abarrotam a cidade. A preeminência britânica no mercado brasileiro consolida-se por longo tempo. A Grã-Bretanha estabelece uma aliança direta com a classe dominante brasileira que, aliada à dependência política e militar portuguesa, permito impor o Tratado de 1810. Este dá aos interesses britânicos uma posição predominante na economia brasileira. Por um lado implica liquidação do monopólio, liberdade de comércio e navegação, tarifa privilegiada para as mercadorias britânicas, extraterritorialidade judicial para os comerciantes britânicos, limitação da soberania do governo brasileiro em política econômica; mas, por outro lado, significa para o Brasil e sua classe dominante um mercado de exportação e a possibilidade de importações relativamente baratas.

O deslocamento do eixo impede que Portugal continue sendo simplesmente um intermediário fiscal e comercial entre a Grã-Bretanha e o mercado mundial e o Brasil. Além do fato da metrópole ser ocupada por Napoleão durante vários anos, aparece claramente a natureza parasitária desta intermediação e do papel desempenhado pela monarquia e seu aparato burocrático-militar. Ao mesmo tempo, a Coroa adquire consciência das possibilidades territoriais, demográficas, econômicas e políticas do Brasil, como base de um império português na América, podendo inclusive chegar a incorporar alguns dos domínios espanhóis em insurreição. Produz-se assim uma convergência de interesses entre uma Coroa reduzida a um aparato estatal sem reino e o Brasil como país sem governo político e administração. A presença da Corte estimula mudanças e progresso no Rio de Janeiro e em outras partes do país. A pequena cidade colonial que é o Rio de Janeiro converte-se numa grande capital, adequada a sede de uma corte européia. A transformação é perceptível em menos de duas décadas. Constrói-se um teatro, instala-se uma impressora e publica-se regularmente um jornal. Surgem. alguma manufaturas que subsistem enquanto não sofrem concorrência inglesa. Bosques e serras são convertidos em terras cultiváveis para produzir alimentos e matérias-primas exigidos pelo consumo da Corte, de seus dependentes e do resto da população. A presença da Corte e a expansão do livre comércio aumentam e diversificam a população, a estrutura produtiva e ocupacional, os serviços e as profissões. A vida social e cultural incorpora elementos e estilos europeus.

O deslocamento imperial para o Brasil proporciona ainda a este a possibilidade de uma transição gradual de colônia a reino, e logo a império independente. Confere-lhe um centro político, um

Page 93: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

O PROCESSO DE EMANCIPAÇÃO 109 aparato de governo e administração, uma equipe de funcionários experientes, uma orientação econômico-social, a unidade e estabilidade institucional. Assim o Brasil evita o rompimento brusco com o passado colonial - com as vantagens e inconvenientes que isto implica - uma longa e devastadora guerra civil, o movimento oscilante entre anarquia e caudilhismo que tanto afetaram o processo histórico de quase todos os países latino-americanos. Em 1815 a colônia é colocada no mesmo nível que a metrópole no Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves; um ano depois D. João, que por morte da rainha sobe ao trono como D. João VI, converte-se formalmente em rei dos dois países. Em 1821, ameaçado de perder seu trono português, regressa à metrópole, deixando seu filho Pedro como regente no Rio de Janeiro. A suspeita de que o governo metropolitano planeje restituir o Brasil ao primitivo satus colonial leva D. Pedro em 1822, com impulso e apoio de grupos crioulos, a proclamar a independência do país e sua subida ao trono.

111

CAPITULO IV DESINTEGRAÇÃO E DEPENDÊNCIA

Na década de 1820 a maioria dos países latino-americanos obtém a independência política formal. A passagem da etapa colonial à seguinte faz-se através de uma solução de compromisso. A emancipação é, como se viu, uma rebelião de elites e grupos colonizadores de origem espanhola contra o governo e as classes dominantes e monopolistas da metrópole. As elites sócio-econômicas e políticas nativas substituem as metropolitanas e seus prolongamentos. As motivações, o conteúdo e a liderança do processo emancipador limitam sua envergadura e suas projeções. As massas populares, especialmente as indígenas, a nação real e profunda, reagem a este processo com indiferença ou como espectadores passivos, desligados dos grupos dirigentes; ou então, têm uma participação reduzida e subordinada corno carne de canhão para os combates pela independência e das facções. As promessas que se fazem às massas latino-americanas não são cumpridas. A emancipação e suas primeiras conseqüências beneficiam as classes altas nativas, mantendo e afirmando seus privilégios e posições, e prejudicam outros setores e regiões. As estruturas sócio-econômicas herdadas do período colonial passam quase intactas aos novos Estados nacionais emergentes. São respeitadas, consolidadas e estendidas a novas regiões e grupos, junto com as transformações impostas pelas convulsões revolucionárias e pelas modificações na relação de dependência. Como um de seus aspectos mais essenciais, a emancipação implica a transferência do centro metropolitano de dominação de metrópoles esgotadas e opressivas (Espanha, Portugal), que não oferecem compensação alguma, por outras em expansão, prósperas e poderosas (Grã-Bretanha, França, Estados Unidos). A análise mais detalhada da estrutura e da dinâmica que

Page 94: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

surgem e se desenvolvem a partir da emancipação conduzirá às raízes e características da América Latina contemporânea.

FORMAÇÃO DO ESTADO NACIONAL 112

1. A DESINTEGR,4ÇÃO DA AMÉRICA LATINA

Os sistemas coloniais espanhol e português impõem a seus domínios americanos uma organização subordinada, radial e centrífuga de suas economias e sociedades, com centro nas metrópoles e para funcionar em sua direção e benefício. Esta situação determinante, a localização e isolamento das cidades, a proibição do comércio direto entre as colônias, a escassez ou carência de comunicações entre elas determinam a falta de interdependência de interesses e de integração geográfica e socioeconômica. A heterogeneidade e a diversidade das regiões são acompanhadas por uma superposição desintegrada das instituições, Direito, autoridade, linguagem, religião e cultura, realidade geográfica e socio-econômica, e manutenção de uma relativa unidade político-administrativa.

Com a emancipação, a América Latina perde essa unidade político-adniinistrativa que formal e precariamente gozara na época colonial, terminando por se fragmentar em duas dezenas de repúblicas independentes e separadas entre si. O atraso herdado, a sobrevivência de estruturas arcaicas, o desenvolvimento capitalista não realizado ou insuficiente, a conseqüente gestação de várias tendências centrífugas, à dependência externa, a ação deliberada das grandes potências contribuem poderosamente para criar e consolidar esta divisão que até hoje persiste.

Não é estranho nem inexplicável que assim tenha ocorrido, embora a dinâmica e o clima iniciais tenham permitido supor o contrário. As elites que promovem e chefiam a emancipação participara do movimento de idéias dos países do norte do Atlântico. Assim, logo sofrem a fascinação - entre admirativa e temerosa - do exemplo norte-americano, como protótipo de uma nova grande nação e como ameaça de substituição da hegemonia espanhola. Deste movimento geral de idéias e dos exemplos britânicos, francês e norte-americano, tomam, entre outras coisas, o nacionalismo e o projeto de construir uma grande nação latino-americana, ou, ao menos, várias grandes nações. O projeto emancipador expressa um impulso e bus- ca uma projeção continentais. A consciência de um destino latino- americano comum eletriza os homens que atuam e combatem em toda a América, sem preocupação com sua origem local particular. Simon Bolivar expressa com grande clareza o projeto de integração nacional latino-americano e a consciência de suas dificuldades. "Deve ser uma só a pátria de

Page 95: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

todos os americanos, já que tivemos uma perfeita unidade em tudo. É uma idéia grandiosa pretender formar de todo o Novo Mundo uma só nação, com um só vínculo que ligue

DESINTEGRAÇÃO E DEPENDÊNCIA 113 suas partes entre si e com o todo. Já que possuem origem, língua, costumes e religião únicos, deveria ter um só governo que confederasse os diferentes estados que se formassem, mas isto é impossível suas porque climas remotos, situações diversas, interesse opostos e características semelhantes dividem a América. Que bom seria se o Istmo de Panamá fosse para nós o que o de Corinto era para os gregos! Oxalá tenhamos algum dia a fortuna de ali instalar uni solene congresso dos representantes das repúblicas, reinos ou impérios para tratar e discutir sobre os altos interesses da paz e da guerra com as nações de outras partes do mundo. Esta espécie de corporação poderá acontecer em alguma época de, nossa geração."

Esta concepção inicial frustra se. A idéia nacional e a vontade de construir o novo Estado sobre e dentro de grandes marcos geográficos conservam um caráter de abstração e impraticabilidade até hoje. Difundem-se e concretizam-se de modo lento e incompleto. Não encontram o sustento sociopolítico, os quadros territoriais e demográficos de que necessitam para se efetivar. A independência formal é acompanhada pela desintegração da América Latina como conjunto, A emancipação, como se viu, não se origina em interesses sócio-econômicos da totalidade do país real e profundo, mas sobretudo na ação de grupos dirigentes nativos, pertencentes ao país formal ou supercifial, inspirados em experiências, idéias e formas da Europa e dos Estados Unidos. Além disso, a independência é realizada e usufruída em grande parte por personalidades e pequenos grupos e comunidades de tipo urbano. Como ponto de partida e herança, o movimento tem uma organização social composta de inúmeros grupos isolados e disperses, voltados para si mesmos e relativamente auto-suficientes, dirigidos por chefes (notáveis, latifundiários, comerciantes, caudilhos militares) com grande autonomia de, fato. O sentimento e a idéia da unidade latino-americana surgem da identidade cultural, do ressentimento comum contra o amo e inimigo, do desejo compartilhado de usufruir as possibilidades criadas ou prometidas pela independência. Corresponde à integração superficial um fraco aparecimento do sentimento nacional, não só a nível latino-americano mas também no plano mais localizado dos novos Estados emergentes. As novas nações sustentam-se em populações não muito numerosas, dispersas, de cultura escassa, grande heterogeneidade, afastadas das elites que negam às maiorias nacionais uma participação real. Por outro lado, o desaparecimento da autoridade metropolitana criou um vazio difícil de ser superado pelos aspirantes à sua sucessão, que se multiplicam pelo próprio desenvolvimento, alternativas e conseqüências da luta emancipadora. As forças centrífu-

114 FORMAÇÃO DO ESTADO NACIONAL gas, inscridas na velha sociedade colonial e pela convulsão revolucionária, criam e mantêm uma fragmentação do território em pequenas soberanias. O desaparecimento do inimigo externo une-se à falta de interdependência e de

Page 96: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

pressões sócio-econômicas genuínas e à quebra de laços e canais tradicionais nas guerras independentistas e civis, para impedir a passagem do isolamento à integração.

Faltam quadros territoriais com capacidade para conseguir ou impor reconhecimento e acatamento no sentido de reconcentrar os Estados fragmentados em um ou vários Estados soberanos. As divisões administrativas legadas pela colônia correspondem a divisões geográficas naturais ou a periferias e zonas dependentes de algumas cidades (Buenos Aires, Lima, Bogotá, México), mas não expressam necessidades imperiosas nem fortes sentimentos nacionais dos respectivos povos e, portanto, não conseguem resposta, adesão ativa ou acatamento destes povos. As tendências centrífugas impõem-se, apesar das tentativas centralizadoras de algumas personalidades, equipes de notáveis e grupos dominantes que, ao fracassar, exacerbam o nacionalismo restrito. Novas classes dominantes preocupam-se em delimitar e congelar as fronteiras. Produz-se e mantém-se a divisão em função de limites naturais e de certos quadros administrativos tradicionais. A fragmentação concretiza-se em Estados de unidade interna duvidosa que muitas vezes encobrem com a semificção do federalismo uma fraca união de regiões, cidades e senhorios pessoais, familiares e de grupos. O peso da inércia colonial, que permanece sob a tempestade revolucionária, é reconhecido com amargura por alguns líderes lúcidos (Mariano Moreno e Simón Bolivar). A ação dás grandes potências, Grã-Bretanha e Estados Unidos principalmente, constribui para criar e consolidar esta divisão. Sua política tem a deliberação de manter e acentuar a fragmentação política da América Latina.

A mais importante tentativa inicial de integração latino-americana é a de Simón Bolivar. O líder venezuclano, que chega a governar quatro países da região (Venezuela, Colômbia, Peru e Bolívia), já tinha a idéia de agrupar os países latino-americanos em algum tipo de associação mais ou menos federativa que enfrentasse o republicanismo independente da região, a ameaça monárquica das potências européias e a dinâmica expansionista dos Estados Unidos. A convocação do Congresso do Panamá para junho de 1826 foi resultado de sua ação diplomática neste sentido. Esta tentativa precursora fracassa. As forças centrífugas do contos objetivos e o próprio desenvolvimento do congresso, especialmente através da anarquia interna e das desconfianças mútuas dos novos

DESINTEGRAÇÃO E DEPENDÊNCIA 115 Estados A Grã-Bretanha e os Estados Unidos não desejam de forma alguma estimular a criação de um bloco latino-americano. A primeira principalmente teme que o projeto de unidade política de Bolívar possa criar um poder unificado autônomo na América Latina que imponha uma situação de relativa paridade nas relações e negociações entre a metrópole britânica e a região. Além disso, teme que o projeto possa igualmente colocar os Estados Unidos em posição de liderança de uma confederação americana contraposta à Europa. "Canning temia que se tivesse formado uma liga de liberalismo e republicanismo demográfico americano, em oposição ao conservadorismo, monarquia e aristocracia europeus; mais ainda, temia que tal combinação pudesse ter outras

Page 97: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

complicações igualmente perigosas para o sistema de qual Canning era expoente. Poderia constituir uma ameaça às normas marítimas habituais que a Inglaterra havia estabelecido com seu longo domínio dos mares" (Rippy, Fred La rivalidade entre Estados Unidos y Gran Bretaña por América Latina - 1808-1930. p, 139 e 140). Os Estados Unidos, por sua vez, embora desejando se opor à influência britânica no hemisfério ocidental, não ignoram que a diplomacia e a frota da Grã-Bretanha interpõem-se entre a América e as pretensões expansionistas das outras potências européias e vêem com desconfiança a possibilidade de que a organização de uma liga pan-americana possa arrastá-los a alianças comprometedoras. A Grã-Bretanha envia um representante ao Congresso, mas sua diplomacia consegue que os novos Estados sob sua influência (Províncias Unidas do Rio da Prata, Brasil, Chile) não compareçam. Os delegados dos Estados Unidos nunca chegaram. O Congresso fracassa e Bolívar morre afirmando que a América é ingovernável e que aquele que trabalha pela revolução lavra no mar.

A partir desta fase a desintegração continental prossegue o se acelera. Somente o Brasil conserva a unidade herdada da colônia e mantida pelo Império independente. A América Central, que em 1821 torna-se independente e une-se ao México, separa-se deste em 1824 e mais tarde fragmenta-se em cinco repúblicas. A Grande Colômbia desintegra-se em três países. Os latino-americanos dedicarão às guerras civis e internacionais parte considerável dos recursos o esforços que poderiam destinar a seu desenvolvimento integrado e autônomo, Em virtude da relação de dependência que possuem desde a emancipação, cada um destes países estrutura-se com um sentido centrífugo e divergente. Sua economia e comércio, sua política e diplomacia, até sua vida cultural são orientados separadamente para os centros mundiais de poder, e integrados na órbita de uma

116 FORMAÇÃO DO ESTADO NACIONAL ou varias potencias . Este processo acentua e consolida a fragmentação inicial, frustrando permanentemente os diversos planos de integração tentados após o fracasso do Panama . Nenhum deles chega a se concretizar em definitivo por imaturidade de condições historicas, interferencias externas e por se basear somente em afinidades culturais, coincidencias políticas ou urgências economicas de carater ocasional. Transcorrera um século e meio antes que a integração regional volte a ser colocada na agenda histórica da America Latina.

2. A DEPENDENCIA EXTERNA

A herança negativa da etapa colonial não se reduz a desintegração da unidade regional. Abrange outros aspectos essenciais que são ao mesmo tempo parte e efeito daquela desintegração e sobre os quais reage . Os principais aspectos são o novo tipo de dependencia externa, as estruturas socio-economicas e politico-ideologicas, e a continuidade (modificada) do subdesenvolvimento.

Page 98: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

A conquista e colonização da America Espanhola e Portuguesa e consequencia, parte integrante e fator do processo capitalista em sua fase mercantil-financeira. A emancipação e a etapa histórica subsequente correspondem a outra fase do mesmo processo, caracterizada pela Revolução Industrial e pela definitiva criação e vigência de um mercado e de um comercio internacionais, pelo impulso e sob a hegemonia da Gra-Bretanha e Europa Ocidental de inicio e, logo, dos Estados Unidos .

A Revolução Industrial começa na Grã-Bretanha, pela combinação de circunstanciais excepcionalmente favoráveis, e irradia-se para a França, Alemanha, Países Baixos, Estados Unidos e Japão. A capacidade produtiva ultrapassa os limites tradicionais e passa a multiplicar de modo constante ou ilimitado os bens e serviços para uma população para cuja expansão contribui. Através da união da força humana e ferramentas a mecanismos e novas fontes de energia, o carater da produção transforma-se, torna-se cada vez mais coletivo, atividade de equipes parte humanas e parte mecânicas. A divisão do trabalho alcança extensão e complexidade sem precedentes, na economia geral e dentro de cada unidade produtiva. A técnica progride rapidamente, e sua mudança torna-se um processo normal e continuo, com ímpeto acumulativo próprio

. O fluxo de inovações e invenções tecnológicas estende-se e interliga-se nas industrias texteis e mecânicas, na metalurgia e siderurgia, nos transportes (ferroviário e navegação a vapor), e na agricultura, incidindo sobre todas as re-

DESINTEGRAÇÃO E DEPENDÊNCIA 117 lações econômicas e sociais. Os novos equipamentos e procedimentos poupam trabalho, aumentam a taxa e volume de lucros e abrem caminho a inversões lucrativas. O controle humano sobre a natureza e a perspectiva do progresso material pareceu sem limitas. O volume e o ritmo da produção fabril aumentam em proporções inusitadas. O tamanho médio da unidade produtiva cresce continuamente. A fábrica torna-se a forma dominante e matriz da organização sócio-econômica e política. O proletariado industrial, criado o expandido a partir do campesinato e artesanato, concentra-se nas grandes cidades e regiões industriais, onde se delineia uma nova paisagem física e um novo ambiente social. O processo em marcha exige e possibilita a mobilização e o desenvolvimento de recursos materiais, financeiros e humanos, e a adaptação da economia e da sociedade a suas necessidades e demandas, tanto na metrópole como nas regiões e países da periferia e do mundo colonial. O mesmo processo suscita ou estimula o triunfal desenvolvimento científico, a acumulação e difusão de conhecimentos, o progresso cultural nos principais aspectos da existência humana, a enfatização da idéia de progresso.

A revolução industrial interna da metrópole correspondem transformações decisivas na economia e na política internacionais e nas das zonas periféricas. Em meados do século XIX, o mundo acha-se quase completamente dominado - econômica, política, militar e culturalmente

Page 99: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

- pelas potências européias e, cada vez mais, também pelos Estados Unidos. Os países adiantados da Europa Ocidental e da América do Norte vão atingindo alto grau de progresso e prosperidade. Constituem e regem um sistema econômico internacional, ao qual incorporam os países periféricos, atrasados e dependentes. Criam-se vínculos mais estreitos entre as metrópoles desenvolvidas e dominantes e as regiões e nações subordinadas ou coloniais; um mercado internacional unificado e relativamente competitivo, amplas facilidades para o movimento de capitais, mercadorias, serviços e pessoas. A vasta periferia, que começa na própria Europa e estende-se aos outros continentes, vai sendo incorporada à economia internacional e ao sistema central de dominação pelas metrópoles avançadas, através do comércio, progresso do transporte e das comunicações a grande distância, fluxos de inversões, migrações, penetração econômica, pressão diplomática, agressão militar, difusão de padrões e modelos político-ideológicos, associação com forças e interesses locais. A América Latina é parte importante desta operação histórica de envergadura planetária.

A emancipação representa para a América Latina a mudança dos centros e eixos de dominação metropolitana, a substituição da

FORMAÇÃO DO ESTADO NACIONAL 118 hegemonia de potências decadentes pela de outras em ascensão e expansão. A soberania formal conquistada pelos países da região encobre sua crescente submissão, em vários graus e formas, aos interesses e à dinâmica das grandes potêncais. Este processo, perceptível no final do século XVIII, desenvolve-se no século XIX com velocidade, crescentemente acelerada. Durante grande parte deste lapso, a Grã-Bretanha toma a dianteira e predomina, embora também atuem a França, Alemanha e Estados Unidos. O exame da ação britânica permite, assim, analisar o modo de constituição e funcionamento da nova relação de dependência a que é submetida a América Latina. As potências rivais seguem seus passos e, ao menos no século XIX, agem de modo semelhante.

EXPANSÃO E PENTRAÇÃO DA GRÃ-BRETANHA

A expansão e a penetração da Grã-Bretanha são ao mesmo tempo motivadas e possibilitadas por uma série de condições favoráveis parte criadas e parte aproveitadas, combinadas numa estratégia definida. Esta surge e delineia-se já na etapa anterior à emancipação. À medida que a Grã-Bretanha assenta as bases de sua hegemonia, e sobretudo desde que se forma e se acelera sua revolução industrial, tornam-se cada vez mais sistemáticas e rápidas sua presença, pressão e entrada na América Latina. A agressão armada - legalizada ou por pirtaria - o comércio e o contrabando, o tráfico de negros, a diplomacia aberta e os agentes secretos da Grã-Bretanha desempenham o papel decisivo na erosão e desmoronamento do império espanhol na América, e na transformação do império português no Brasil. Esta ofensiva secular é parte de sua luta pelo domínio do mundo, em prejuízo da Espanha, Portugal, Holanda e

Page 100: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

França. Nos últimos 25 anos do século XVIII, a revolução industrial inglesa aumenta seu ritmo, envergadura e exigências. Isto é ainda mais acentuado durante o século XIX.

Convertida em oficina do mundo e especializada na produção fabril, a Grã-Bretanha necessita de alimentos e matérias-primas agropecuárias e minerais, em abundância e baixo preço, para compensar as conseqüências desta especialização, contrabalançar os efeitos da baixa relativa do setor rural e do deslocamento de recursos, mão-de-obra e capital para o desenvolvimento industrial e urbano, alimentar uma população em aumento, reduzir os salários reais dos trabalhadores e abastecer uma indústria devorada de insumos. Como vício mercantilista, subsiste uma forte cobiça pelas lendárias jazidas

DESINTEGRAÇÃO E IDEPFNDÊNCIA 119 de metal da América, causando em Londres a multiplicação de novas sociedades destinadas à sua exploração. Além disso, a Grã-Bretanha necessita de mercados em expansão para sua produção, e zonas de colonização para os excedentes de capitais e homens criados pelo desenvolvimento interno e incremento demográfico. Esta dinâmica de expansão, a perda das colônias norte-americanas e o fecha- mento de caminhos para seu avanço na Europa pela ação jacobina e napoleônica intensificam o interesse britânico pelo domínio da América Latina.

A Grã-Bretanha pretende conquistar a América Latina e, a seguir, estimular sua rebelião emancipadora, como manobra contra a Espanha e a França, e também como meio de impedir que sendo a Espanha derrotada pelos exércitos napoleônicos, a França ocupe suas colônias, contrariando os interesses britânicos, e ali difunda o espírito da Revolução. Esta estratégia desenvolvesse com dificuldades, modificações e matizes específicos. Surge e concretiza-se em função das próprias etapas e necessidades de desenvolvimento da Grã-Bretanha, pela interação entre a política geral do Estado inglês e as exigências e pressões dos grupos industriais, comerciais e financeiros da metrópole, e em função também das relações daquela com outras potências e com os próprios países latino-americanos.

Até 1808, a Grã-Bretanha projeta a conquista direta das colônias espanholas, ou a aproveitamento de sua emancipação, para o pleno acesso aos mercados americanos. A aliança anglo-espanhola de 1808 modifica momentaneamente estes planos. A Grã-Bretanha compromete-se a não se apropriar diretamente das colônias hispano-americanas e a impedir a mesma ação por parte da França, Rússia e Estados Unidos, que além disso representam uma ameaça ao Canadá e às Índias Ocidentais britânicas. Como potência colonial, teme por seu próprio império e pelo perigo de derrubada revolucionária de qualquer outro. Além disso, está ligada à Europa reacionária pela coalizão contra Napoleão. É hostil às insurreições populares de conteúdo classista e ao republicanismo democrático. Deseja a qualquer custo manter os laços entre a Europa e a América, e utilizar esta última para assegurar sua expansão comercial e industrial e para possibilitar um reajuste do equilíbrio político da Europa que a favoreça. Por

Page 101: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

outro lado, e em sentido contrário, a Grã-Bretanha opõe-se ao mercantilismo espanhol, Prefere e exige uma política mais liberal da Espanha face às suas colônias e a abertura destas ao comércio inglês. Pela emancipação dos Estados Unidos, tem consciência dos perigos de unia repressão demasiado rígida contra povos empenhados em se libertar e já considera a independência

120 latino-americana talvez irreversível. A política ambígua da Grã-Bretanha permite um alívio às regiões e governos rebeldes. Por outro lado, aquela aplica totalmente os princípios desenvolvidos como potência comercial, naval e militar, para conseguir e manter o domínio dos mares e triunfar na luta competitiva com seus rivais (desconsideração aos direitos dos neutros, bloqueio efetivo, nôminas de contrabando, direito de registro, definição de navios nacionais).

Terminada a guerra de 1812 com os Estados Unidos, e Napoleão definitivamente derrotado, a Grã-Bretanha retoma sua política de neutralidade face à Espanha e América; reivindica maior autonomia para as colônias e o livre acesso inglês a seus mercados; opõe-se às interferências européias nos domínios hispano-americanos e à expansão e influência dos Estados Unidos, que ameaça com o uso potencial de sua frota. Não é favorável à plena independência das colônias e simpatiza com os regimes aristocráticos e monárquicos. Pretende servir de intermediária entre a Espanha e os regimes americanos, adia seu reconhecimento até o último momento, mas abandona totalmente o método da intervenção direta. Sua ação é pragmática, concentrada no presente, mas sempre dentro de uma estratégia a longo prazo. Antes e depois do reconhecimento diplomático, a linha fundamental tende a englobar os países latino-americanos nas fronteiras econômicas da Grã-Bretanha e a criar as condições para a vigência nos novos Estados de uma ordem que confira amplitude e segurança ao funcionamento e expansão dos interesses britânicos.

O estabelecimento da Grã-Bretanha na América Latina não se realiza sem dificuldades, originadas sobretudo pelo próprio processe revolucionário e pelos desequilibras do período pós-emancipador. A luta emancipadora e suas conseqüências transtornam as relações sociais. A mão-de-obra disponível diminui, dispersa-se e desmoraliza-se; o campesinato e o artesanato são absorvidos pelos exércitos. Surgem ou se fortalecem novos e velhos conflitos entre interesses regionais, setoriais e classistas (capital ou interior, livre cambistas e protecionistas, criadores e agricultores, proprietários e assalariados), contribuindo para que a guerra internacional combine-se com a civil e com a permanente instabilidade política. A nova sociedade constitui-se lentamente, cheia de vícios coloniais, e não facilita a introdução e o redomínio da mercantilização e da racionalidade capitalistas. Os grupos locais vigiam e temem os britânicos e produz-se freqüentemente uma convergência de rivalidades comerciais, ressentimento popular, preconceitos conservadores contra os não-católicos e ateus, e contra a ideologia e os valores do capitalismo liberal. Grupos nacionais manobram com os britânicos e jogam com ameaças de

Page 102: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

DESINTEGRAÇÃO E DEPENDÊNCIA 121 possíveis acordos com outras potências (França, Portugal através do Brasil, Estados Unidos). A luta de facções e a demagogia dos caudilhos não afetam o recurso ao nacionalismo antibritânico. As vicistitudes das guerras internacionais e civis e das mudanças políticas produzem fortes flutuações na política econômica e um estado de insegurança para as vidas, propriedades e empresas britânicas, traduzido em confiscos, empréstimos forçados, alistamento militar.

O processo de penetração e dominação da Grã-Bretanha sobre a América Latina assume caráter indireto e utiliza ampla gama de mecanismos e instrumentos. Nas primeiras décadas do século XIX, a Grã-Bretanha explora sistematicamente a região para determinar que atividades lucrativas atribuir a cada zona, em que momento e com que pré-requisitos e características. Expedições científicas, inquisitivos viajantes e comerciantes, agentes financeiros e diplomáticos mobilizam-se durante muitos anos para procurar informação detalhada, contactos, oportunidades mercantis e de investimentos, deslocamento de competidores. O comércio britânico tem papel fundamental no processo, agindo com base na abundância de capital, experiência e vinculação mercantis, gradual mercantilização da sociedade, e tendendo a monopolizar a venda de manufaturas baratas e a compra das produções locais. Os grupos britânicos alcançam também papel decisivo no sistema creditício; participam em instituições e operações financeiras com particulares e governos. Firmas bancárias metropolitanas operam como intermediárias entre um número crescente de investidores britânicos e as autoridades públicas latino-americanas que tomam empréstimos, e entre aqueles e as empresas inglesas e nativas dos países da região. A ênfase mercantil desta primeira etapa é reforçada nas décadas seguintes pelas inversões. A influência britânica inclui entre seus instrumentos a manipulação da informação, cultura e ideologia, e também os grupos de residentes britânicos. De fato, súditos britânicos de várias atividades deslocam-se para a América Latina: comerciantes, fazendeiros, mineiros, oficiais militares e navais, agentes diplomáticos, profissionais liberais, artesãos, operários qualificados, colonizadores, aventureiros. Sua motivação essencial é fazer fortuna, conservando estreitas ligações com a metrópole, à qual pretendem retornar no futuro. São grupos predominante urbanos, por origem e por preferência quanto à residência e atividade nos países latino-americanos. Logo estabelecidos, aprendem a conhecer o meio local, suas características e matizes, as regras do jogo. Acumulam conexões e experiências para a ação no presente e para as perspectivas futuras, trazem hábitos de iniciativa

122 FORMAÇÃO Do ESTADO NACIONAL. empresarial e de disciplina no trabalho; são consumidores de produtos britânicos

Os súditos britânicos tendem a criar organizações autônomas fechadas (câmaras comerciais), centros de organização mercantil e financeira, de sociabilidade e cooperação. Estas debatem

Page 103: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

os assuntos cotidianos e as questões políticas, são agência de informação para a própria ação local e para o governo britânico; operam como grupo de autodefesa e de pressão. Informam os governos nacionais e locais sobre os problemas, interesses e necessidades da colônia britânica. Gravitam ao mesmo tempo sobre a política interna e sobre a metropolitana, diretamente o através da ligação com grupos mercantis e industriais da Grã-Bretanha, influindo sobre o Estado e sobre a opinião pública. Os grupos de residentes e de interesses britânicos procuram o apoio dos órgãos de poder da Grã-Bretanha, localizados na metrópole ou nos países latino-americanos; o Foreign Office, os agentes diplomáticos (representantes diplomáticos, cônsules, ministros plenipotenciários), os comandantes navais. O apoio externo é utilizado internamente com fins econômicos, políticos e ideológicos.

Entretanto, a ação britânica não foi monolítica ou unilateral. Durante todo este período existem divisões, rivalidades e divergências entre o governo inglês, os grupos metropolitanos e locais, assim como dentro de cada um. Pela própria heterogeneidade dos diferentes grupos e de sua composição interna, pela crescente complexidade de processos e acontecimentos internacionais e latino-americanos, e pela desigualdade de seu impacto, as ações o reações políticas dos setores britânicos não são sempre uniformes. O governo assume os interesses gerais da metrópole e da expansão imperial, às vezes contra interesses particulares da mesma origem e sentido (preocupação com atrações inadequadas ou perigosas de pessoas e empresas britânicas, em conseqüência de colapsos financeiros).

Desde a etapa em que o governo inglês procura principalmente servir de intermediário entro a Espanha e as colônias insurretas, visando conciliar a subsistência do império espanhol com os interesses britânicos, a política latino-americana da Grã-Bretanha delineia-se cada vez mais claramente sobretudo através dos ministros Castlereagh e Canning. A Grã-Bretanha não pretende exercer diretamente o poder político na América Latina, nem permitir que outras potências o façam. O interesse econômico deve predominar, com premissa de boas relações políticas, que por sua vez devem servir ao primeiro. Objetiva-se conseguir privilégios comerciais e financeiros, mas reco-

DESINTEGRAÇÃO E DEPENDÊNCIA 123 nhecendo os governos latino-americanos como soberanos e negociando diretamente com eles, para a própria proteção interna dos interesses britânicos. Os súditos ingleses devem acatar as leis locais. A igualdade formal dos Estados deve ser, respeitada. O governo britânico não exerce exclusivamente o poder de, decisão, nem o uso preponderante da força. Participa habilmente da política interna, dando ou retirando apoio a diferentes grupos de interesse e facções políticas, sem comprometer a influência britânica com um único setor. Mantém a aparência de não-intervenção, más induz os poderes locais a tomar as decisões que deseja ' Em princípio, a ação britânica visa moderar os conflitos internos, evitar guerras civis e internacionais, substituir a violência pela negociação econômica e política. Entretanto, o governo inglês não deixa de recorrer à ingerência política, à pressão diplomática e à intervenção naval e militar quando indispensável e conveniente para a

Page 104: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

proteção de interesses estratégicos, diplomáticos e econômico-financeiros (Rio da Prata, América Central, México, Venezuela).

O governo britânico adota um critério segundo o qual os novos Estados são reconhecidos e os governos e suas políticas terão aceitação e apoio quando demonstrarem capacidade para participar da comunidade internacional, com todas as obrigações conseqüentes; quando tenham capacidade para promover o desenvolvimento interno, garantir os interesses da Grã-Bretanha e assegurar o reconhecimento pelas grandes potências. A preferência britânica dirige-se a um Estado que reduza seu papel a possibilitar e garantir o funcionamento regular de um mecanismo comercial-financeiro automático entre uma potência industrial e países produtores de matérias-primas; a governos que representem classes respeitáveis e defensoras da ordem, e que asseguram a unidade, a paz e o regime liberal. A influência britânica contribui decisivamente para definir neste sentido as características da sociedade e do Estado emergentes, o tipo de desenvolvimento, a política econômica, a distribuição da renda, a abertura de possibilidades comerciais e financeiras, o regime fiscal, o cumprimento de obrigações. O Estado desejado deve promover decisões políticas que favoreçam a expansão e a integração no sistema internacional e várias decisões secundárias no mesmo sentido. Deve começar por desfazer as estruturas socioeconômicas e políticas que mantêm ou reforçam o tradicionalismo e a inércia, @quando ofereçam obstáculos à penetração e dominação britânica, e tomar medidas favoráveis a estas (garantias, concessões, dívida pública, livre trânsito de pessoas, bens e serviços. Ao inverso, a política britânica é hostil aos planos de desenvolvimento nacional independente, ao fortale-

124 FORMAÇÃO DO ESTADO NACIONAL cimento de empresas privadas nacionais com autonomia e iniciativa. É hostil também à integração das nacionalidades separadas pela emancipação, e por isso favorece a balcanização e o equilíbrio de forças entre os países latino-americanos.

O governo e os grupos de interesses britânicos procuram e conseguem apoios internos para o desenvolvimento e êxito de sua estratégia o os encontram nas classes dominantes e nos Estados nacionais,., Existe uma predisposição favorável - visível já antes e durante, o processo emancipador - à procura ativa da integração internacional e da criação de novas formas de produção e comércio, por parte de grupos urbanos e dos setores latifundistas mais dinâmicos. Estes começam a depender cada vez mais do capital, trabalho, técnica e mercados da metrópole. O comércio e as inversões exteriores abrem novos mercados para a produção primária, valorizam as terras e os produtos agrominerais. Para o Estado das novas classes dominantes a integração no sistema internacional implica expansão do comércio, rendas alfandegárias e fiscais em geral, empréstimos públicos, investimentos, apoio diplomático-militar em conflitos externo e internos. À irradiação do poder econômico aliam-se a influência sob a opinião pública, a ingerência nas lutas internas políticas e militares', a criação de uma rede de agentes nativos. A venalidade generalizada de políticos e funcionários corruptíveis a

Page 105: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

preço variável conforme a importância das decisões em jogo, das diversas ofertas e dos choques entre potências e empresas estrangeiras - dispensa a conquista política aberta. Esta conquista torna-se ainda menos necessária pela harmonia de objetivos dos grupos econômicos e sociopolíticos dominantes nos países latino-americanos e na metrópole reduzindo ao mínimo as possibilidades de diferenças e confrontos, que, entretanto, nunca desaparecem completamente.

Com o transcorrer do século XIX, sobretudo na sua Segunda metade, ,já é evidente a supremacia da Grã-Bretanha no processo geral -de expansão capitalistas. Seus rivais operam quando ela a tolera. Seu comércio e investimentos impõem sua supremacia de tal forma que é apenas necessário o poder político para que ela mantenha esta situação. A penetração britânica consolida-se na América Latina. As economias, as sociedades e os governos nacionais estruturam-se e estabilizam-se, definem seu caráter, sua orientação, suas relações com os grandes centros metropolitanos. As alianças entre Grã-Bretanha e os grupos dominantes locais estreitam-se. O laissez-faire reina, e permite a substituição parcial da diplomacia política por, uma de negócios.

DESINTEGRAÇÃO E DEPENDÊNCIA 125

INCORPORAÇÃO E REESTRUTURAÇÃO

A Grã-Bretanha - e subsidiária e posteriormente as outras potências européias e os Estados Unidos - vai impondo a incorporação definitiva dos países latino-americanos à economia internacional sob seu controle, e ao mesmo tempo, sua reestruturação interna. As economias e as sociedades da região são situadas dentro de uma esquema de divisão e especialização internacional do trabalho. Esta vasta, operação histórica de fundamentais conseqüências pôde ser realizada pela Grã-Bretanha a partir e através da supremacia industrial, comercial e financeira, e do controle das correntes mercantis e investidoras. Os países latino-americanos são convertidos em produtores de matérias-primas agropecuárias e minerais a baixo preço para o abastecimento das metrópoles, em mercado para a indústria das nações desenvolvidas, e em zona de inversão para os capitais da mesma origem.

Esta atribuição de papéis especializados e o novo tipo de motivações, estruturas e processos decorrentes, ocorrem em cada país latino-americano em diferentes momentos históricos e graus' de intensidade, em função da disponibilidade de recursos naturais, dos sistemas produtivos herdados, situação geográfica, condições socio- políticas internas, diversificação da demanda e das técnicas de produção e transporte. À dinâmica das grandes potências alia-se a predisposição favorável à integração internacional e procura ativa de novas formas de

Page 106: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

produção e comercialização, por parte dos grupos urbanos e dos setores latifundistas mais poderosos e dinâmicos.

O controle dos movimentos e canais mercantis e investidores pela metrópole e a aliança com os grupos dominantes nativos constituem os principais instrumentos desta operação, através da qual se aplica em definitivo um modelo de "crescimento para fora ", por estímulos primordialmente externos, em superfície e sem profundas modificações estruturais. O desenvolvimento adquire um caráter espontâneo, por resultar da atração de grupos nacionais e estrangeiros movidos pela busca de máximos lucros, e por se postular a não-ingerência e a exclusão (teóricas) do intervencionismo estatal. As atividades e correntes econômicas internas são incorporadas aos fluxos e mercados internacionais de bens e de capitais, o que supõe, e exige certa transformação das estruturas nacionais.

Numa primeira etapa, que cobre mais da metade do século XIX, a ação britânica concentra-se mais na compra de matérias-primas e alimentos e na venda de produtos manufaturados que na inversão pro-

126 FORMAÇÃO DO ESTADO NACIONAL dutiva de capitais. Isto corresponde a uma etapa comercial-financeira do capitalismo britânico (e europeu), na qual a revolução industrial gera consideráveis necessidades internas de recursos e dificuldades financeiras, consequentemente. Os investidores britânicos não substituem em grau significativo as classes dominantes locais, que continuam a exploração dos recursos e espécies herdados da colônia.

Assim, o processo de incorporação e reestruturação faz-se principalmente através de um tipo de comércio externo reduzido ao intercâmbio de matérias-primas agromineiras por manufaturas (e inversões de capital). As exportações concentram-se em alguns produto e poucos países compradores. Com seu produto adquirem-se importações e pagam-se os juros, os lucros e as amortizações das inversões e dos empréstimos. A expansão das exportações é promovida pelos interesses britânicos também para incrementar a capacidade de importação e de pagamentos externos dos países latino-americanos. As importações concentram-se em bens de consumo, intermediários e de capital, provenientes da Grã-Bretanha, Europa Ocidental e Estados Unidos. A Grã-Bretanha consegue expandir suas exportações para a América Latina e assegurar o seu quase-monopólio através de: vigência de um livre cambismo generalizado, barateamento dos produtos industriais e sua adaptação ás necessidades e padrões de consumo dos compradores locais, capacidade de oferecer crédito adequado e de fazer suficientes inversões a longo prazo, controle do sistema financeiro e de transportes, aptidão para organizar e dirigir empresas; e condições gerais favoráveis as quais já foram feitas referências. Grupos britânicos vão obtendo crescente controle do comércio atacadista, externo e interno, o que lhes possibilita a gradual infiltração no campo da produção direta.

Page 107: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

À imposição de um determinado tipo de vinculação comercial alia-se o papel dos investimentos. Entretanto, estes aparecem e expandem-se mais lenta e tardiamente que a penetração mercantil e financeira. Também neste aspecto a Grã-Bretanha tema por várias décadas a dianteira em relação à França, Alemanha e Estados Unidos. Pode utilizar para isto: a supremacia econômica adquirida; capacidade superior de acumulação e inversão de capitais; aptidão técnica, organizativa e administrativa de seus empresários; conhecimento cedo adquirido das realidades nacionais e locais em que se opera. O fluxo de investimento requer a criação de clima e regime favoráveis, chega em quantidades crescentes, e é valorizado como agente primordial de progresso. O investimento estrangero combina-se com o comércio exterior e o financiamento externo. Busca satisfazer as necessidades de matérias-primas, alimentos, minerais e combustíveis dos

DESINTEGRAÇAO E DEPENDÊNCIA 127 países industriais de origem. Tende a promover o desenvolvimento da infra-estrutura e dos serviços, como instrumento e coadjuvantes da produção e exportação de bens primários, como lucrativos em si mesmos e como canal e mercado para a importação de bens intermediários e de capital e serviços. O crédito público e privado é utilizado para possibilitar que o Estado funcione com um sentido favorável aos interesses estrangeiros (estabilidade, promoção da implantação e prosperidade do comércio exterior e das inversões); para orientar a produção e os fluxos mercantis, adaptando-se a suas necessidades e flutuações; e para obter lucros e juros consideráveis. As atividades promovidas pelo modelo de crescimento para fora e lucros que elas ocasionam para os grupos locais contribuem para criar um mercado interno para as exportações de maquinarias, equipamentos, peças de reposição, bens intermediários e de consumo, serviços. As inversões projetam-se e estão subdivididas nos principais ramos e setores da economia e da sociedade nacionais e utilizam a influência assim adquirida para se consolidar e criar condições favoráveis a novas inversões.

As inversões estrangeiras concentram-se fortemente em determinadas atividades e países de origem. Chegam a ser parte muito importante da inversão total e dirigem-se a setores-chave, em forma de monopólio: a produção agropecuária, mineira e de combustíveis; as indústrias elaboradas de matérias-primas (frigoríficos, moinhos, refinarias); os transportes (ferrovias, navegação marítima e fluvial, portos, carros elétricos); os serviços públicos (água, eletricidade, gás, telefone) e anexos, o comércio atacadista, internacional e doméstico; os bancos e as finanças. Quanto à origem nacional, provêm da Grã- Bretanha, França, Alemanha e Estados Unidos. As inversões britânicas são de tipo indireto (empréstimos) e direto colonial, ou seja, através de empresas fundadas para negociar no próprio país, com capital total ou parcialmente britânico. As inversões norte-americanas mostram dupla tendência, ao incremento e à hegemonia, e à diversificação por ramos de atividade e por países. Destinam-se à mineração e à fundição, ao petróleo, aos serviços públicos, ao comércio e, logo, à indústria manufatureira; concentram-se na Venezuela, Brasil, México, América Central, Argentina e Chile.

Page 108: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

Através do comércio exterior e das inversões estrangeiras, incorporam-se aos países latino-americanos imagens, valores, idéias, costumes, instituições, bens, padrões e aspirações de consumo que influem na economia, organização social, política e cultural e reforçam ainda mais a estrutura e a dinâmica da dependência.

128 FORMAÇÃO DO ESTADO NACIONAL

A infraestrutura e a imigração desempenham papel decisivo no processo de integração e reestruturação.

Os Estados latino-americanos são induzidos, pelos interesses estrangeiros e pelos grupos dominantes locais, a promover e assumir importantes obras de infra-estrutura (transporte, comunicações, serviços públicos, infra-estrutura urbana) destinadas a criar pré-requisitos para a expansão da produção e da comercialização de bens exportáveis, e para o surgimento de economias externas aproveitáveis pelas inversões estrangeiras.

A imigração em massa é determinada pela confluência da dinâmica européia e dos países latino-americanos. Nas metrópoles da Europa Ocidental o impacto da revolução agrária e industrial, do crescimento demográfico, da inovação tecnológica e das tensões e lutas sociais e políticas cria um excedente de população disponível e predisposta a emigrar em busca de melhores perspectivas. A melhoria e barateamento dos transportes e comunicações proporcionam outro estímulo e a possibilidade de deslocamento. A América latina atrai a imigração por se tratar de sociedades em formação e expansão, fluidas, sem estratificação rígida, com níveis de vida superiores (escassez de mão-de-obra adequada, altos salários, baixos preços de consumo) e possibilidades de fácil e rápida ascensão na escala socioeconômica. O início do desenvolvimento para fora incrementa a necessidade de mão-de-obra abundante e barata (não-qualificada e especializada), de técnicos e empresários, para a valorização das terras, a exploração de recursos naturais para a produção primária exportável, e para atividades criadas pelo crescimento das inversões.

A imigração é promovida e financiada parte por governos e empresas privadas, parte por iniciativas individuais espontâneas. Suas cons1eqüências são de grande transcendência. Modifica profundamenográfica, sócio-econômica, política e cultural dos te a estrutura em países que a recebem em grande escala, dentro de quadros tradicionais que não sofrem mudanças profundas. Introduz novos padrões de conduta social e política, de ideologia e organização, e de consumo. Reforça as tendências à urbanização e ao crescimento dos setores secundários e terciários.

Page 109: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

Estimula novas inversões e a importação de bens de consumo.

AS CONSEQUÊNCIAS DA DEPENDÊNCIA EXTERNA modelo adotado que se. está descrevendo implica uni tipo de desenvolvimento subordinado, motivado e controlado - em grande

DESINTEGRAÇÃO E DEPENDÊNCIA 129

parte, embora não totalmente - do exterior . Constitui um desenvolvimento desigual, parcial e desnivelado segundo ramos, grupos e regiões; um desenvolvimento combinado, semi-espontâneo e sem grandes mudanças estruturais. O sistema capitalista, originado e centralizado nas metrópoles avançadas, promove e executa a expansão e a unificação da economia mundial e, neste processe, incorpora a periferia latino-americana e contribui para ali desencadear um modo de crescimento econômico e ordenação sociopolítica. Mantém e acentua diferenças de formas, ritmos e níveis de desenvolvimento entre as regiões e os países do planeta, e cria outras novas. Multiplica as oposições e antagonismos entre nações, ramos econômicos e classes sociais. Produz uma combinação de diferentes etapas históricas e de formas atrasadas e adiantadas de organização sócio-econômica, de vida política e de cultura. Ligam-se, assim, tendências contraditórias e conflitantes, centrípetas e centrífugas, de nivelação e disparidade.

O desenvolvimento dependente se expressa na expansão de atividades já existentes e na criação de novas, por mudanças na demanda, organização e tecnologia. O produto e a renda nacional aumentam. Ocorre uma transferência maciça de capitais, técnicas, tnão-de-obra e formas organizativas e empresariais. Incrementam-se a infra- estrutura, o capital social básico, a urbanização e a modernização, a produtividade geral. As estruturas socioeconômicas e o sistema político-institucional sofrem modificações significativas. O aumento e a diversificação das atividades econômicas permitem ao Estado aumentar as rendas fiscais, e assim se constituir realmente como tal, montar sua máquina político-administrativa e satisfazer as necessidades e exigências da produção primária, do comércio exterior e das inversões estrangeiras.

Estes tra os positivos não invalidam o fato básico de que o que na verdade surgem são economias subordinadas, superespecializadas, deformadas, instáveis, muito vulneráveis aos fatores e movimentos externos da economia internacional. O desenvolvimento para fora não é projeção de um complexo integrado de atividades primárias, industriais e de serviços, mas da venda de um ou poucos produtos agrários ou mineiros.

Page 110: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

As economias latino-americanas estão sujeitas ao ritmo e às modalides do desenvolvimento econômico mundial, sobretudo o dos países adiantados. O comércio externo, as inversões, o valor da moeda, a demanda interna, as rendas fiscais, as decisões fundamentais de política econômica determinam-se e operam em função dos inte-

FORMAÇÃO DO ESTADO NACIONAL 130 resses das metrópoles, empresas estrangeiras e seus aliados nativos. Estes interesses tendem a prevalecer sobre aqueles autenticamente nacionais, de grande importância.

o sistema funciona através da manutenção de uma espécie de circuito contínuo: aumento das exportações e das inversões estrangeiras, que proporcionam renda suficiente para importar bens de consumo e elementos destinados à exploração primária e ao desenvolvimento da infra-estrutura, e para pagar dividendos, lucros e exportações, de modo a continuar expandindo as exportações e importações e atraindo novos capitais estrangeiros.

Desenvolvem-se apenas os setores e regiões que coincidem com um esquema pre-estabelecido de divisão internacional do trabalho, e na medida em que aumentem os lucros, a capitalização e o poder das potências e classes dominantes metropolitanas e de seus aliados nativos, em prejuízo de outras possibilidades regionais e setoriais e dos restantes grupos nacionais. São privilegiadas as atividades que, com pouco risco, mão-de-obra barata e apoio estatal, podem proporcionar lucros rápidos e seguros.

Os recursos naturais são objeto de intensa e desordenada exploração pelo predomínio de formas extensivas na produção agropecuária, arroteamento sem método, derrubada de bosques, monocultura exaustiva, incêndios descontrolados de jazidas de petróleo. Logo aparecem conseqüências previsíveis, como o subconsumo, a fome e as epidemias, que reforçam o cruel desperdício da mão-de-obra indígena e crioula. Também é freqüente a dilapidação de recursos financeiros e materiais em obras inúteis e fraudulentas, em benefício de especuladores, promotores e contratadores.

A alta da produtividade geral e da renda nacional é acompanhada por forte concentração da segunda por setores, grupos e regiões. Os progressos ocorrem nas unidades e nos enclaves da economia agromineira exportadora. Em economias, cujas estruturas são conservadas e reforçadas no essencial, introduzem-se formas modernas de produção e comercialização, com tecnologia avançada, forte concentração de capitais e alta eficiência organizativa. O controle e a incorpo- ração regulada de tecnologia em todos seus aspectos e níveis (equipamentos, organização, administração) contribuem para possibilitar a destruição de formas pré-

Page 111: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

capitalistas (campesinato, artesanato local) o conferir às empresas estrangeiras uma superioridade esmagadora sobre as nacionais, condenando estas à ruína, deslocamento ou subordinação. Estas situações e processos têm como correlato o desinteresse pelos setores e atividades que podem promover um desenvolvi-

DESINTEGRAÇÃO E DEPENDÊNCIA 131 mento autônomo e integrado, em função das necessidades nacionais. A formação do capital é o básico é insuficinte, e este tende a uma configuração distorcida e ao uso irracional. A industrialização é vista com desinteresse ou hostilidade. Esta última afirmação exige, entretanto, algumas considerações e qualificações adicionais.

O projeto de desenvolvimento nacional autônomo em gerara e de industrialização em particular, por impulso e sob controle de empresários nacionais e com recursos da mesma origem não está ausente da história latino-americana deste período. Projetos deste tipo conseguem inclusive, em alguns países e momentos, certo apoio do Estado. As conjunturas favoráveis determinadas por guerras e depressões das potências metropolitanas, por falta de laços de comércio e inversão, ou por alguns efeitos favoráveis do protecionismo espanhol, permitem já no período colonial certo grau de acumulação autônoma de capital e o surgimento e a continuidade de centros manufatureiros e comerciais para o mercado interno local e de outras regiões do império: São Paulo no Brasil, o norte e o oeste -argentinos, Assunção no Paraguai, Querétaro e Puebla no México.

Depois da emancipação, o Ministro da Fazenda do Chile, Manuel Rengifo, aproveita uma conjuntura econômica favorável e faz duas leis alfandegárias destinadas a promover o crescimento da marinha mercante nacional, como meio de fugir ao controle monopolista estrangeiro e de conseguir uma expansão autônoma do comércio. Sob as presidências de Manuel Bulnes e Manuel Montt, o Estado investe em grandes obras públicas (estradas, ferrovias, navios a vapor para a navegação da costa pacífica, telégrafos) e promove -a expansão da mineração e das manufaturas. A mineração surge por iniciativa de empresas nacionais: o nitrato começa a ser explorado com capitais e trabalhadores chilenos e peruanos. Magnatas chilenos da mineração intervêm na agricultura do Vale Central com espírito empresarial e atitude inovadora, manifestos na irrigação e na introdução de maquinaria moderna e novos cultivos.

No Brasil, apesar da política liberal do Império, D. João VI exime de direitos os tecidos e fios de produção local e as matérias-primas com este fim utilizadas; faz desenvolver com recursos fiscais o projeto siderúrgico de Ipanema, cria centros de educação técnica; promove a imigração suíça (Nova Friburgo). Em 1844, o Ministro da Fazenda Manuel Alves Branco regulamenta uma nova tarifa alfandegária promulgada um ano antes, elevando os direitos

Page 112: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

sobre a importação de bens estrangeiros, com objetivos fiscalizadores e protecionistas. A decadência do tráfico negreiro desloca para a indús-

132 FORMAÇÃO DO ESTADO NACIONAL tria consideráveis capitais ali concentrados . Desde aproximadamente 1850 ocorre um crescimento ndustrial, expresso na criação de empresas manufatureiras, financeiras, de transporte (marítimo, ferroviário, urbano), de mineração e colonização. Isto se faz através da figura excepcional de Irineu Evangelista de Souza, Barão e logo Visconde de Mauá, que se dedica às indústrias básicas (fundição, forja, maquinarias e equipamentos, estaleiros navais), aos transportes ferroviários e fluviais, às comunicações e à energia, e ao crédito bancário. O desenvolvimento da exploração cafeeira também ocorre inicialmente com empresários e recursos nacionais; surge pela necessidade de promover uma nova produção que obtenha grandes mercados ou rendas externas. Para ela confluem, por um lado, os recursos e elementos abandonados pelo açúcar e mineração em crise (financiamento, escravos, estradas, mulas, rede mercantil), por outra, os capitais e empresários que abandonam o tráfico negreiro. A ascensão do café ocasiona a diversificação da economia e o alargamesto do mercado interno, estimulando o desenvolvimento industrial e a urbanização.

Na Argentina, a crise de 1875 contribui para criar uma tendência industrializadora originada na classe dominante e que se opõe ao extremo livre canibismo vigente e deseja uma política de industrialização. O amparo da lei alfandegária de 1876 estimula certo desenvolvimento manufatureiro. O capital nacional cria a primeira estrada de ferro, o primeiro frigorífico, bancos e companhias de seguros, empresas de colonização e comercialização, fábricas com motores a vapor e máquinas-ferramentas.

Ações como as indicadas a título de exemplo não podem determinar em definitivo um processo de desenvolvimento independente e auto-sustentado, sem uma industrialização integrada. Isto resulta da situação dependente que se vem analisando e de seus vários efeitos e projeções. A estrutura do comércio externo e das inversões e seu modo perar implicam principalmente que os avanços e lucros da produção agromineira exportável desestimulam toda atividade e todo uso de recursos fora do esquema criado para esta. A importação de bens de consumo e de capital satisfaz a maior parte da demanda e desenvolve uma competição praticamente irresistivel contra a incipiente manufatura nacional. O Estado está controlado, ou tende cada vez mais a estar, por setores nacionais e estrangeiros unidos pelo interesse comum na vigência de unia política livre cambista, que de fato predomina. No Chile, a lei alfandegária de 1864 impõe o livre comércio absoluto na navegação costeira e produção manufatureira e o capital britânico chega a obter quase total controle do comércio atacadista interno e externo. A situação se reproduz na Argentina, Brasil e Mé-

DESINTEGRAÇÃO E DEPENDÊNCIA 133 xico. A política livre cambista manifesta-se inclusive no que se pode denominar de "neutralidade mal-intencionada do Estado", pela qual as tarifas não

Page 113: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

protegem a manufatura nacional e também gravam mais as matérias-primas para a fabricação de certos produtos que os próprios produtos.

Ao livre câmbio soma-se a escassez de capital disponível para o investimento industrial. O sistema de comércio exterior e de in- versões estrangeiras determina a descapitalização, a drenagem para fora de grande parte do excedente econômico gerado internamente. A renda recebida pelas classes altas nativas é desperdiçada, utilizada irracionalmente com fins divergentes da industrialização: usura, intermediação, especulação, consumo suntuário de bens importados. A indústria nacional incipiente carece de um sistema de crédito ade- quado às necessidades de sua implantação e desenvolvimento. O Estado absorve parte dos recursos financeiros disponíveis para suas próprias operações, usa-os com fins improdutivos ou para o fomento do campo e das inversões estrangeiras. Os bancos privados, estreitamente ligados a interesses antiindustriais (latifundiários, comerciantes, financistas, estrangeiros e nacionais), negam-se a financiar empresas manufatureiras. O mercado interno está limitado em superfí- cie e em profundidade, pela escassez e dispersão da população, baixa renda das maiorias, consumo prioritário de importações pelas classes altas e camadas médias, fragmentação do país em regiões de grau desigual de desenvolvimento e com reduzidos laços de interdependência.

No último terço do século XIX e começos do XX, ocorre certo grau de desenvolvimento industrial, apesar das circunstâncias desfavoráveis. O crescimento para fora diversifica até certo ponto a estrutura sócio-econômica, amplia os mercados para bens de consumo, intermediários e de capital. Este fato, aliado ao avanço da urbanização, expande não só os grupos de alta renda como os grupos médios e populares de consumidores, que não requerem artigos importados para a satisfação de suas necessidades elementares. As construções urbanas - públicas e privadas -, e o traçado de sistemas portuários e ferroviários, são fontes de demanda adicional.

O desenvolvimento industrial nasce por impulso, sob o controle ou vinculado a homens e capitais da oligarquia e de grupos estrangeiros. Os latifundiários e comerciantes exportadores e importadores ligam-se estreitamente ao mercado mundial e desenvolvem-se em função deste; desde o início são produtores de mercadorias que submetem suas terras o recursos à exploração comercial. Como os primei-

134 FORMAÇÃO DO ESTADO NACIONAL ros grandes capitalistas nacionais contribuem para promover as etapas iniciais da industrialização. Como assinalara Milcíades Pefia, entre outros, o capitalismo vai do campo para a cidade e a burguesia industrial nasce como diferenciação na classe latifundiária, integrada por homens desta origem ou a ela ligados por laços sócio-econômicos e políticos de vários tipos. Em relação aos grupos estrangeiros cabe destacar sobretudo o papel dos imigrantes que tra- zem trabalho, experiência técnica e poupanças;

Page 114: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

criam pequenas indústrias têxteis, químicas e mecânicas; tendem a se ligar - pelo comércio, crédito e associação - a empresários da mesma origem estrangeira. O capital controlado pelos interesses estrangeiros instala estabelecimentos destinados ao acondicionamento elementar de produtos exportáveis e de importados (frigoríficos, transformação de vegetais em fibras e óleos, refinarias de petróleo, repartição e embalagem). Os serviços públicos instalam atividades industriais complementares (oficinas ferroviárias, usinas elétricas, fábricas de gás). Esta variedade de empresas manufatureiras origina uma constelação de outras de menor porte, subsidiárias ou complementares.

A indústria que aparece nesta etapa é sempre incipiente; localizada na região privilegiada pelo comércio exterior e investimentos estrangeiros; estruturada em estabelecimentos de reduzida dimensão, ocupação de mão-de-obra, nível tecnológico e com escassa integração horizontal e vertical.

Ao desenvolvimento desequilibrado por setores e ramos corresponde a acentuação dos desníveis regionais. O processo analisado só favorece ou permite o progresso das regiões adequadas à satisfação das necessidades e objetivos das inversões e correntes metropolitanas, em prejuízo do resto do país. Estas regiões são favorecidas injeções maciças de capital e pela dotação de transportes, serviços públicos e infra-estrutura. Absorvem parcela crescente do aumente demográfico, vegetativo e imigratório. Concentram o poder político e o aparato da administração pública. Tornam-se apêndices /privilegiados das metrópoles, seus sócios menores na colonização e na expoliação das outras regiões, preteridas e abandonadas à própria sorte, e do país como um todo. Assim, operam como engrenagem decisiva no processo de satelização e como um dos fatores fundamentais do desenvolvimento desigual e combinado no plano interno.

O comércio exterior e as inversões estrangeiras também são causa determinante de um processo de expoliação o descapitalização dos paises latino-americanos, que reforça os desequilíbrios assinalados e cria outros novos.

DESINTFGRAÇÃO E DEPENDÊNCIA 135

A dependência da balança comercial e do balanço de pagamentos tem incidência sobre a capacidade de importar, a obtenção e garantia de empréstimos e investimentos, a moeda em circulação e seu valor, as rendas públicas. Uma soma importante do valor dos produtos exportados não retorna aos países de origem, mas aumenta a renda, a poupança e a capitalização das empresas e metrópoles hegemônicas. A irregularidade das exportações, a forte dependência das importações e a deterioração dos termos de troca determinam uma

Page 115: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

pressão negativa sobre a balança comercial e o balanço de pagamentos, a ser compensada pelos empréstimos e investimentos externos. Estes, ao se, tornar indispensáveis para o funcionamento normal e possibilidades de expansão da economia e do Estado, implicam um reforço permanente dos mecanismos de dependência.

Os investimentos e os empréstimos atuam de maneira semelhante ao comércio exterior. Os retornos de capitais ao país investidor, remessa de lucros dos investimentos, amortização de empréstimo e pagamento de seus juros representam alta porcentagem do valor das exportações e podem exceder o montante de ingresso de capitais. O deficit da balança comercial e do balanço de pagamentos, as necessidades de desenvolvimento da infra-estrutura e da atividade econômica geral obrigam a recorrência quase permanente aos empréstimos, cujo serviço consome montante considerável das rendas externas. Esta necessidade permite ao capital financeiro internacional frutíferas especulações e a imposição de condições mais favoráveis ainda para o comércio e investimentos dos grupos estrangeiros e potências hegemônicas.

A transferência de poupanças para as metrópoles não é compensada por movimentos equivalentes ou semelhantes em sentido contrário. Isto implica uma contínua drenagem para fora dos recursos gerados internamente, de montante imprevisível quanto à capacidade nacional de liquidez. Assim, os países latino-americanos têm freada sua capitalização e, portanto, suas possibilidades de desenvolvimento independente e auto-sustentado. O dinamismo subtraído destas economias reforça as economias dominantes, capacidade para prosseguir sua expansão, penetração e controle sobre os países da zona.

Este tipo de desenvolvimento dependente não assegura nem a própria continuidade. De início apresenta fortes e pertubadoras flutuações, rápidas seqüências de prosperidade e crise (1857, 1866, 18731, 1882, 1890, 1900); a seguir, uma tendência para reduzir sua inten-

136 FORMAÇÃO DO ESTADO NACIONAL sidade e velocidade. É fonte de instabilidade econômica, social e, política.

A relação de dependência tem implicações diretas no campo financeiro monetário, creditício e fiscal.

Uma dás mais importantes implicações refere-se ao regime monetário metálico ou de padrão-ouro. As transações internacionais, comerciais o financeiras, fazem-se com base na moeda metálica de ouro (ou prata); as internas utilizam notas de papel, normalmente

Page 116: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

conversíveis em metal. O volume do circulante é determinado pelos saldos do comércio exterior e dos movimentos internacionais, e eventualmente pela produção interna de metais preciosos. Os saldos negativos da balança comercial e do balanço de pagamentos obrigam a exportar ouro e prata, e a reduzir assim o volume interno de circulante em papel-moeda e de crédito. Isto restringe ou paralisa as atividades produtivas e mercantis internas e reduz os preços, determinando simultaneamente a depressão da demanda de importações e o melhoramento da capacidade exportadora. Logo reaparecem os saldos positivos na balança comercial e no balanço de pagamentos, e torna-se a aumentar o circulante. Ao contrário, a recuperação expande o volume de papel-moeda o de crédito, a demanda interna, as atividades produtivas e mercantis e o nível de preços . Mais uma vez encarecem as importações, a demanda é estimulada e o desequilíbrio reaparece. O sistema é imposto o defendido com6 regulador automático do processo econômico mas de fato opera como um dos instrumentos essenciais da dependência e como amplificador de seus efeitos negativos. Por um lado, permite a transferência de rendas para o exterior. Por outro, descarrega as crises do sistema mundial e das metrópoles sobre os países latino-americanos, desde os grupos dominantes até a população em geral (de vendedores de produtos primários exportáveis até consumidores de bens importados) . Funciona, assim, como distribuidor e socializador dos lucros e perdas resultantes do sistema produtivo e da balança comercial e do balanço de pagamentos. Estes mecanismos exigem algumas observações adicionais.

Como se viu, o sistema econômico enfatiza a produção primária para exportação e o abastecimento através de importações. A baixa produtividade dos produtores primários contribui para a redução de sua competividade no mercado mundial e para a tendência baixista dos preços de exportação. Isto é em parte compensado pela depreciação da moeda, deliberadamente induzida, que aumenta os preços internos e, portanto, o nível de custos da produção exportável.

DESINTEGRAÇÃO E DEPENDÊNCIA 137

Ao mesmo tempo, existe a alta propensão ao consumo de produtos, importados por parte da oligarquia e das camadas médias imitadoras daquela, e cujo número, expectativas e capacidade de pressão aumentam cada vez mais com o próprio crescimento. Isto determina uma expansão dos meios de pagamento internos para cobrir a demanda de divisas, cuja renda não aumenta. Produz-se assim um desajuste quase permanente entre as exportações e as importações, que eleva o valor das divisas estrangeiras e deprime correlativamente o da moeda nacional.

Por outro lado, as empresas comerciais e investidoras estrangeiras retêm e drenam considerável garantia das rendas provenientes das exportações e se abastecem em suas metrópoles. Desta forma, importantes recursos são subtraídos à possível produção para

Page 117: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

satisfazer uma demanda interna em aumento. Por ambos os caminhos contribui-se mais uma vez para a alta de preços internos e a desvalorização do papel-moeda nacional, para a menor competividade das exportações maior demanda de importações.

Finalmente, as finanças públicas dependem grandemente das rendas originadas em um comércio exterior sujeito a fortes e contínuas flutuações, dependência que se traduz em instabilidade. Simultaneamente, os gastos fiscais tendem a aumentar. Para isto contribuem a fé em um crescimento econômico sem limites e as próprias necessidades e exigências do modelo imperante e dos grupos que o impõem e o usufruem. O Estado assume - como logo se verá - um número crescente de tarefas e responsabilidades econômicas, financeiras e sociais. Garante a rentabilidade da inversão estrangeira e das grandes explorações agro-exportadoras. Cria a infra-estrutura. Faz funcionar o sistema creditício em benefício dos grupos dominantes estrangeiros e nativos. Compensa em termos o lento crescimento da ocupação, satisfaz os membros da oligarquia procura ampliar sua estabilidade política sobre bases de clientela, através da oferta de empregos públicos, aumento de suas remunerações, outorga de pensões e subsídios. Daí resulta um desajuste quase contínuo entre as rendas do Estado, recebidas em moeda nacional desvalorizada, e seus gastos, grande parte dos quais abonada em moeda metálica ou em divisas estrangeiras. O Estado tenta compensar o desajuste através do emissionismo monetário frequentemente ilegítimo), da inconvertibilidade ou circulação forçada de papel-moeda e da contratação de novos empréstimos cujos juros aumentam suas cargas financeiras. Em todos estes casos são reforçados os processos inflacionários.

FORMAÇÃO DO ESTADO NACIONAL 138 O processo e os mecanismos da dependência apresentam outros aspectos e níveis significativos.

As empresas estrangeiras se inter-relacionam e unem-se aos grupos latifundiários, comerciais, financeiros e industriais do país. Estes crescem e consolidam-se em estreita ligação com o mercado mundial de bens, serviços e capitais, sob controle da metrópole. Surge assim uma comunidade de interesses, a co-participação na apropriação do produto social excedente gerado no e pelo país. A divisão do produto faz-se em proporções variáveis, segundo relações complexas e contraditórias, flutuações de demanda e de preços, e segundo as alternativas do processo sociopolítico interno. As empresas estrangeiras também incorporam à sua constelação de interesses e de poder setores importantes das camadas médias (pequenos industriais e comerciantes, in-termediários, serviços, profissionais liberais, funcionários, empregados) .

Através desta união com diversos grupos, do próprio peso socio-economico e das pressões diretas e indiretas dos centros metropolitanos, as empresas estrangeiras conseguem grande influência sobre a estrutura, funcionamento e orientação do Estado, assim como sobre a vida cultural. Sua ingerência na política interna chega a ser considerável. Podem assim induzir ou

Page 118: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

impor condições gerais e específicas, econômicas, sociais, políticas, jurídicas e ideológicas, que resultam favoráveis à vigência e consolidação do status de dependência.

Assim, torna-se normal a ênfase privatista em relação aos agentes "naturais" e desejáveis da vida sócio-econômica, com forte preferência pelas iniciativas e empresas particulares (nacionais e estrangeiras), e a subestimação ou negação correlativas do papel do Estado, embora na verdade dele se utilize. Todo intervencionismo estatal, e tudo que seja semelhante a um projeto de desenvolvimento econômico autônomo, é visto como ameaça à livre empresa e aos interesses estrangeiros.

Os grupos externos adquirem controle hegemônico sobre a disponibilidade e dotação de recursos, e sobre a orientação dos processos produtivos, que podem não ser os convenientes. Os fatores e recursos naturais, financeiros, humanos - são absorvidos pelos grupos estrangeiros, em prejuízo de melhores usos alternativos dos grupos nacionais e do conjunto do país. Possibilidades e oportunidades positivas e progressistas são subutilizadas, mal-usadas ou perdidas. A modernização adquire caráter restrito e condicionado, em função da estratégia das empresas estrangeiras e do respeito básico à estrutura e grupos tradicionais. A capacidade de acumular capital e de resolver sobre seus usos, de adotar decisões em matéria socio-econômica e po-

DESINTEGRAÇÃO E DEPENDÊNCIA 139 lítica, transfere-se, em grau variável, dos países latino-americanos seus grupos nacionais e seus governos, aos que possuem, controlam e operam o capital (grupos investidores e suas metrópoles).

O resultado é a tendência à atenuação da soberania e da identidade nacionais. Atrasam-se a formação e a afirmação operativa de uma consciência nacional e, com muito mais razões, de uma consciência latino-americana. O modelo adotado imprime orientação centrífuga e divergente à economia, política, diplomacia e vida cultural de cada país latino-americano, para os centros de poder mundial, com acentuação correlativa da fragmentação sofrida pela América Latina a parte da independência. Ao desequilibro regional interno de cada país corresponde a crescente desintegração da América Latina. A não-comunicação recíproca afirma-se cada vez mais como resultado de determinismo topográfico, do clima e da distância; da falta de infra~estruturas interligadas; do reduzido fluxo recíproco de capitais, empresários, técnica e mão-de-obra; do escasso desenvolvimento do, comércio latino-americano; e da ação balcanizadora deliberada das grandes potências. Desde o Congresso do Panamá fracassam sistematicamente todos os projetos e tentativas de constituir ligas ou federações entre alguns ou todos os países latino-americanos.

Page 119: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

3.AS OUTRAS POTÊNCIAS

OS ESTADOS UNIDOS

A hegemonia da Grã-Bretanha cobre grande parte do século XIX e prolonga-se até começos do XX, mas não é aceita sem disputa ou desafio pelas outras potências: França, Alemanha, em menor grau Rússia, e, sobretudo, os Estados Unidos. Estes últimos enfrentam a Grã-Bretanha desde as vésperas da emancipação latino-americana. O confronto acentua-se durante todo o século XIX, até que os Estados Unidos conseguem em décadas mais recentes o deslocamento da hegemonia britânica no hemisfério ocidental.

Os Estados Unidos surgem como nação independente em luta contra uma potência colonial, o que influi ao mesmo tempo na formulação das linhas básicas de sua política externa e em sua atitude e conduta frente à América Latina. A política externa dos Estados Unidos delineia-se pelo discurso de despedida de George Washington, das mensagens de Thomas Jefferson, da Doutrina Monroe e do corolário que desta última extrai Theodore Roosevelt. Os Estados Unidos concentram-se em suas oportunidades continentais. A sede do poder norte-

140 FORMAÇÃO Do ESTADO NACIONAL americano deve-se manter independente e, ser ]protegida contra novas conquistas e colonizações de potências européias. Os Estados Unidos não devem intervir nas lutas e vicissitudes da política européia. Tampouco devem adquirir territórios que não sejam de fácil alcance para uma defesa segura. O primeiro objetivo de seu governo nas relações com potências estrangeiras deve ser a proteção e o avanço dos interesses norte-americanos no hemisfério ocidental. A expansão das fronteiras para o sul e para o oeste se insere nesta perspectiva. Toda interferência européia na América Latina deve ser rechaçada. A partir destes princípios pode-se compreender melhor a gênese e evolução da política norte-americana para a América Latina

.

Durante o período colonial os futuros Estados Unidos e América Latina mantêm-se em isolamento recíproco. No começo do século XIX os primeiros têm em relação à segunda uma atitude de ignorância, superioridade depreciativa e crença em que os determinismos de proximidade geográfica e das vantagens sócio-econômicas e étnicas os predestinam à hegemonia sobre os vizinhos do sul.

Semelhante atitude não impede a existência de uma simpatia inicial pela emancipação latino-americana. Os Estados Unidos têm origem anticolonial. O idealismo político dos primeiros

Page 120: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

tempos identifica-se com os movimentos de libertação e o surgimento de repúblicas independentes e democráticas. A emancipação debilita o velho inimigo espanhol; facilita a aquisição de cobiçadas zonas adjacentes e a expansão territorial; diminui os pontos de contacto entre a Europa e a América, e a influência da primeira sobre a segunda. Além disso os Estados Unidos temem a Grã-Bretanha, França e Rússia e estão decididos a não permitir que nenhuma potência européia se estabeleça em territórios vizinhos ou próximos. Finalmente, vêem com agrado a quebra do sistema mercantilista e esperam que os novos Estados adotem normas -liberais sobre comércio e navegação que permitam a expansão norte-americana em ambos os aspectos.

A simpatia é acompanhada de cautela. Os Estados Unidos não desejam comprometer-se de tal forma, em apoio à luta emancipadora, que possa afetar gravemente as relações com a Grã-Bretanha - cuja frota necessita como barreira contra outras potências e teme como ameaça sempre presente - e com a Espanha, com quem procura negociar pacificamente a aquisição de novos territórios. Entretanto, sua ajuda à emancipação é considerável, através do comércio, simpatia expressa, apoio diplomático, fornecimento de armas e abasteci- mentos.

141 DESINTEGRAÇÃO E DEPENDÊNCIA

Em 1822 os Estados Unidos reconhecem oficialmente a grande Colômbia, o México e o Rio da Prata, e pouco depois começam a estabelecer representações diplomáticas em quase toda a América Latina. Em 2 de dezembro de 1823 o Presidente James Monroe apresenta ao Senado a doutrina que, embora criada pelo Secretário de Estado James Quiney Adams, passa à História com o nome do primeiro.

A ação dos Estados Unidos na América Latina desde o início entra em choque com a da Grã-Bretanha. O conflito continua os ressentimentos da velha situação colonial e da luta pela independência, é ao mesmo tempo econômico, político, ideológico e diplomático.

A rivalidade comercial e marítima manifesta-se na luta pelo controle dos novos mercados americanos e do transporte por águas oceânicas. A competição mercantil é mais potencial que imediatamente efetiva. De início os norte-americanos só podem oferecer produtos agropecuários e algumas simples manufaturas de consumo, enquanto a Grã-Bretanha tem absoluta superioridade em uni amplo espectro de produtos industriais. O mesmo ocorre em matéria de investimentos. Os Estados Unidos acabam de começar sua acumulação original de capital, que deve destinar por várias décadas ao esforço de desenvolvimento interno, inclusive precisando recorrer aos investimentos e empréstimos da Grã-Bretanha. Em troca, norte-

Page 121: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

americanos e britânicos competem desde o início e com grande intensidade pelo transporte marítimo dos novos países latino-americanos, carentes de marinha mercante.

Face às concepções colonialistas, hegemônicas e beligerantes da Grã-Bretanha, os Estados Unidos procuram aproveitar as vantagens de sua neutralidade quanto às nações européias em freqüente conflito. Necessitam romper o velho sistema de mercantilismo colonialista e de navegação, e anular as pretensões britânicas de domínio monopolista do mar. Opõem-se às normas tradicionais sobre: direitos dos neutros; liberdade das cargas transportadas sob bandeira livre; amplo exercício do direito de bloqueio; longas listas de contrabando, definição de "navios nacionais"; direito de registro; recrutamento. Pretendem que a América Latina seja considerada nação única quanto ao comércio e transportes livres de e para os Estados Unidos. A sua ação constitui uma ameaça à supremacia naval e comercial da Grã-Bretanha. A afirmação de princípios dos Estados Unidos nestas matérias contradiz na maioria das vezes sua conduta real, caracterizada pelo egoísmo pragmático. Isto se manifesta nas vacilações quanto à abolição do direito de pirataria; na extensão de operações béli-

FORMAÇÃO DO ESTADO NACIONAL 142 cas contra os neutros; na não-admissão , de naves estrangeiras em iguais condições que as nacionais para cabotagem; na criação de obstáculos alfandegários; no uso da Doutrina Monroe para cobrir e justificar a própria expansão na América Latina.

A competição econômica, comercial e marítima está estreitamente ligada à luta política, ideológica e diplomática.

Os Estados Unidos olham com simpatia os movimentos revolucionários das colônias espanholas e a instauração de repúblicas independentes e democráticas, e pretendem promover o maior grau possível de separação entre elas e a Europa. Apressam o reconhecimento dos novos Estados e enviam para eles seus comerciantes e navios, agentes, representantes, comissários, ministros plenipotencíários e oficiais navais. Estes interferem nos assuntos internos e nas lutas de facções dos países latino-americanos; conspiram ativamente contra a Grã-Bretanha; procuram conseguir o tratamento de nação mais favorecida. Se por um lado aproveitam a simpatia inicial da América Latina para com um país precursor da própria emancipação, por outro são limitados pela falta de tradições, de experiência e de habilidade na atividade político-diplomática.

Simultaneamente, os Estados Unidos começam a expansão territorial para o sul. Neste processo, como no de penetração comercial e financeira, logo adotam a concepção das esferas de influência e as atitudes imperiais, mas suas intervenções procuram se consolidar com certa

Page 122: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

cautela formal e um reconhecimento aparente das normas legais. Proclama-se o respeito às formas republicanas e à autodeterminação interna e externa dos países latino-americanos, e procura-se levitar o domínio direto ou a ocupação prolongada de territórios, quando isto não atinja os interesses econômicos e políticos dos Estados Unidos. Em 1812 ocupam a Flórida, que acabam recebendo definitivamente da Espanha pelo tratado de 1821. Em 1803 adquirem a Loulsiana da França. Por um momento parecem dispostos à anexação de Cuba. Fomentam a rebelião do Texas, que se levanta em 1835 e, torna-se independente em 1836, sendo oficialmente incorporado em 1845. Através da vitoriosa guerra com o México (1846), os Estados Unidos apoderam-se da metade de seu território original (Califórnia, Novo México, Arizona, Nevada, Utah, parte do Colorado) .

A Grã-Bretanha reage com receio e hostilidade a esta ofensiva dos Estados Unidos. Combate as modificações do regime tradicional de comércio e navegação. Seus agentes comerciais, políticos, diplomáticos e navais enfrentam a ação norte-americana em todos os planos, com a destreza de longa experiência imperial e de firme im-

DESINTEGRAÇÃO E DEPENDÊNCIA 143 plantação anterior na América Latina. Os atritos e conflitos entre as duas nações produzem-se e prolongam-se na Argentina, Brasil, Chile, Peru, Grande Colômbia, América Central, México e Caribe. A resistência da Grã-Bretanha é particularmente ativa face às aspirações dos Estados Unidos sobre a Flórida, Loulsiana, Texas e Cuba. Teme principalmente quanto à segurança do Canadá e das Indias Ocidentais britânicas. A guerra de 1812 é um ponto culminante do conflito. A renúncia dos Estados Unidos - incapaz a esta altura e por longo tempo de enfrentar a superioridade naval inglesa - a toda intervenção contra as possessões britânicas no hemisfério leva a uma certa estabilização provisória do conflito político-militar. Entretanto, a competição econômica e diplomática continua durante o resto de século XIX e prossegue no seguinte.

A ação dos Estados Unidos na América Latina é, desde o início, definida nos perfis de uma estratégia a longo prazo, mas também freqüentemente contraditória e ambígua. A Doutrina Monroe não é aplicada de modo consistente contra as agressões européias no hemisfério. Os Estados Unidos podem realizar às vezes um protesto formal, mas não se sentem obrigados a utilizar sua força militar e naval contra as intervenções da Grã-Bretanha e França no México, Brasil , Argentina, Uruguai e Chile. Demoram 20 anos para intervir na disputa anglo-venezuelana pela fronteira com a Güiana (1875 a 1895). Só no final do século XIX, ao se tornar clara a marcha dos Estados Unidos para a hegemonia na América Latina, a Doutrina Monroe começa a ser aplicada abertamente como forma de reduzir a ingerência européia e confirmar a própria expansão, na região.

A nova fase delineia-se já na década de 1840 com a proclamação do "Destino Manifesto" (Fiske). A Guerra de Secessão impõe um parêntesis, mas resolve alguns dos conflitos internos

Page 123: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

mais paralisantes da sociedade norte-americana, após o que o desenvolvimento interno e a expansão externa entram em fase decisiva. No último terço do século XIX os Estados Unidos terminam a exploração, ocupação e organização de seu território. O progresso industrial e a acumulação de capitais dão grandes saltos e começam a exigir mercados e zonas de inversão no exterior. Os Estados Unidos já estão preparados e desejosos de se expandir plenamente no mundo, e, sobretudo, no hemisfério ocidental. Sua ação econômica e a política, diplomática e militar, avançam interligadas.

A expansão econômica progride, embora com dificuldades o tropeços. Em relação ao comércio externo com a América Latina, os Estados Unidos sofrem durante algum tempo os efeitos de sérias de-

144 FORMAÇÃO DO ESTADO NACIONAL ficiências. Sua frota mercante é fraca, atrasada e dispersa; compõe-se de veleiros antiquados que navegam sem regularidade por todos os mares; os que chegam a portos latino-americanos não têm carga de retorno. Os comerciantes norte-americanos não se preocupam com os usos e costumes dos mercados locais, e os gostos dos consumidores; enviam produtos mal-embalados que chegam em estado deficiente; não estabelecem agentes diretos ou sucursais nos países. Faltam bancos próprios, sistemas de crédito a médio e longo prazos, serviços consulares suficientes e acordos comerciais recíprocos. Além disso, são competidores dos produtos latino-americanos e estabelecem contra medidas protecionistas.

Esta situação não se mantém indefinidamente. Os empresários e o governo norte-americano não tardam em tomar consciência das possibilidades e exigências do mercado ao sul do Rio Grande, investigam sobre o terreno, aprendem e inovam. Começam a vender na América Latina produtos manufaturados em quantidade e diversidade crescentes. Prestam mais atenção às necessidades e preferências locais, apresentam artigos novos e atraentes; enviam viajantes que falam espanhol e português e distribuem propaganda nestes idiomas; satisfazem-se com lucros reduzidos se isto lhes permite assegurar mercados. A venda é acompanhada pela compra. No final do século XIX tornam-se definitivamente o principal adquirente de produtos brasileiros.

O governo norte-americano é pressionado para que assuma uma política mais ativa na promoção do comércio e investimentos de seus empresários na América Latina. A pressão vem particularmente de grandes importadores e exportadores de Nova Iorque e da costa marítima oriental, de fabricantes de artigos de lã e outros produtos interessados no aumento das exportações e na compra de matérias-primas baratas, e com influência em setores do partido republicano. Seu interesse concentra-se na produção de certas matérias-primas (petróleo venezuelano e mexicano, estanho boliviano, cobre chileno) e de alimentos (café, açúcar e banana) .

Page 124: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

Desde a década de 1880 o Poder Executivo e o Congresso dos Estados Unidos, sob estas influências, começam a ter interesse ativo e a desenvolver uma política cada vez mais definida no sentido da expansão para o sul. Em 1822 e em 1885, o governo norte-americano opõe-se à unificação das cinco repúblicas da América Central. Por outro lado, fazem-se projetos de união econômica (alfandegária, monetária, ferroviária) entre o norte e o sul do hemisfério. Desde 1889, por iniciativa dos Estados Unidos, começam a se fazer conferências pan-americanas. A expansão político-militar delineia-se cada

145 vez mais definida e agressiva. Em 1895 o secretário de Estado Richard Olney pressiona a Grã-Bretanha para a solução por arbitragem do seu conflito com a Venezuela. Os Estados Unidos se lançam a um programa de rearmamento que os converterá em potência mundial. Na guerra com a Espanha (1898), impõem a independência de Cuba e a submetem a seu protetorado (Emenda Platt) e incorpo- ram Porto Rico a seu território. Neste mesmo ano a Grã-Bretanha retira sua frota do Caribe. A consciência de seu poder mundial e a conseqüente necessidade de movimentar rapidamente a frota entre o Atlântico e o Pacífico levam os Estados Unidos a promover a separação do Panamá em prejuízo da Colômbia e a conseguir, por tratado, a construção e o controle do Canal (1903). O comércio e os investimentos norte-americanos multiplicam-se na América Central e do Sul, concentrando-se em empréstimos, terras, explorações agropecuárias, mineração e petróleo, serviços públicos. Theodore Roosevelt formula seu, corolário à Doutrina Monroe na mensagem ao Congresso de 1904. A instabilidade política e os desagradáveis fatos que poderiam ocasionar (não-cumprimento de obrigações financeiras, apoderamento de propriedades estrangeiras) podem levar os Estados Unidos, mesmo contra sua vontade, "ao exercício de um poder de polícia internacional". Assim a política do garrote (Roosevelt) e a diplomacia do dólar (Tait) encontram sua formulação jurídica, à qual logo se seguem as aplicações práticas. Sucedem-se as intervenções militares em Cuba, Panamá, Nicarágua, Haiti, República Dominicana e México. Seus objetivos são: o planejamento e controle das finanças, a proteção dos investimentos e propriedades de empresas norte-americanas, a instauração e o sustento de governos e grupos militares simpáticos, a consolidação definitiva da hegemonia norte-americana. Em discurso a 11 de março de 1913 o presidente Woodrow Wilson dá mais um passo na política intervencionista ao sugerir o não-reconhecimento dos governos latino-americanos não considerados democráticos nem regulares. As intervenções militares acompanham o comércio e os investimentos e são seu estímulo e garantia.

A atitude das classes dirigentes latino-americanas em relação ao expansionismo norte-americano é complexa e ambígua, dependendo da estrutura sociopolítica interna e do tipo de conexão com o mercado mundial, e do comércio e inversões. Por um lado, admira-se o modelo de organização política, de eficiência econômica e de crescente poder internacional dos Estados Unidos; busca-se sua cooperação econômica e sua aliança, permanentemente ou como meio de atenuar a dependência financeira e as ameaças intervencionistas da

Page 125: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

146 FORMAÇÃO DO ESTADO NACIONAL Grã-Bretanha e da Europa. Por outro lado, teme-se os perigos do "destino manifesto" e de uma deterioração dos laços com a Europa.

No começo do século XX, a hegemonia norte-americana já se afirma perceptivelmente no hemisfério. Em 1830 o comércio da Grã- Bretanha com a América Espanhola alcança a cifra de US$ 32 milhões e o dos Estados Unidos, 20 milhões. No Brasil as cifras deste ano são US$ 30 milhões e 4 200 mil. O comércio da Grã-Bretanha com a América Espanhola é de US$ 258 milhões em 1900, e 993 milhões em 1925; o dos Estados Unidos US$ 282 milhões e 2 110 milhões, respectivamente.

Os investimentos ingleses alcançam 40 milhões de libras esterlinas até 1830 e os empréstimos governamentais até esta data ascendem a mais de US$ 110 milhões. Neste mesmo período os investimentos norte-americanos são insignificantes. Até 1913 os investimentos britânicos continuam a superar os norte-americanos em termos absolutos, mas o ritmo de crescimento dos segundos tende a aumentar em relação aos primeiros. Em'1913 os investimentos britânicos sobem a US$ 4983 milhões; os norte-americanos a US$ 1 242 milhões, ou seja, uma proporção 4/1. Em relação à competição marítima, a superioridade da Grã-Bretanha mantém-se em tonelagem de marinha mercante. Entre 1840 e 1890 a cifra britânica sobe pouco menos de 7 para quase 22 milhões de toneladas; a norte-americana de 5 para 7 milhões. Entre 1900 e 1920, a situação modifica-se em favor dos Estados Unidos: Grã-Bretanha, 24 e 23 milhões de toneladas; Estados Unidos menos de 8 e 24 milhões. Os Estados Unidos também conseguem que a Grã-Bretanha vá aceitando seus princípios em matéria de direito marítimo.

Desde a emancipação, e em todo período considerado, a Grã- Bretanha praticamente não adquire territórios na América Latina, o que não pretendia na realidade, nem pode impedir que os Estados Unidos o façam. Mais ainda, a Grã-Bretanha começa lentamente a se resignar à crescente hegemonia dos Estados Unidos sobre a região e termina aceitando a Doutrina Monroe e a anexação norte-americana de territórios latino-americanos ou a imposição de protetorados.

FRANÇA E ALEMANHA

A menor influência da França e Alemanha na América Latina, neste período, explica-se não só pela prolongada hegemonia britânica e pela que, mais lentamente mas em ritmo crescente, impõem os Estados

Page 126: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

DESINTEGRAÇÃO E DEPENDÈNCIA 147 Unidos, mas também pelas peculiaridades do desenvolvimento dos primeiros.

Apesar das condições favoráveis de que goza no final do século XVIII, a França acelera seu desenvolvimento mais tarde que a Grã-Bretanha. O tipo de revolução agrária, originado pela Revolução de, 1789 o suas conseqüências, é diferente do britânico: estabelece a pequena propriedade, reforçada pelo fracionamento promovido pelo regime legal de sucessões, determinando menor grau de concentração agrária e de possibilidades de acumulação de capital no campo. O sistema de crédito continua deficiente por muito tempo. Prevalece uma mentalidade pequeno-burguesa, oposta à do protótipo do empresário moderno, que prefere a poupança e a lenta acumulação com um mínimo de insegurança à inovação e ao risco. As convulsões internas e as guerras externas da Revolução e do Império produzem grave sangria e o uso improdutivo de recursos humanos e materiais. A França continua estagnada até 1830, quando começa a industria lização em t6exteis, com máquinas a vapor e mecânicas m em metalurgia e, desde 1845, em estradas de ferro. Esta industrialização produz-se com ajuda estrangeira (capital, engenheiros e operários da Grã-Bretanha) e com um significativo protecionismo alfandegário. Sob o Segundo Império ocorre o verdadeiro salto- desenvolvimento do sistema bancário, rápida extensão da rede ferroviária, grandes obras públicas, siderurgia. A derrota frente à Alemanha impõe novo compasso de espera. O atraso histórico não deixa de produzir seus efeitos. Durante o século XIX, antes de tomar consciência disto, a França já perdeu a corrida pela hegemonia mundial e se reduz ao papel de potência de segunda categoria.

A ação francesa na América Latina reflete a situação da metrópole. Napoleão I tenta sem êxito incorporar a América Latina a seu império e logo promove sua emancipação da Espanha. Os Bourbons, ao contrário, opõem-se à revolução independentista e Luís XVIII apoia Fernando VII. A França demora a outorgar um total reconhecimento aos novos Estados, com intercâmbio de ministros e ajusta- mento de tratados, mas começa a enviar cônsules e imigrantes (comerciantes, artesãos, trabalhadores rurais) como ponta de lança. Oficiais franceses são corsários de governos latino-americanos. Luís Felipe de Orleans tenta uma política mais malcável. Seu governo reconhece a independência da Confederação Argentina. Entretanto, a penetração francesa é dificultada por uma série de fatores o circunstâncias. A França demora a fixar objetivos e uma política para a América Latina. O traçado e a execução de sua estratégia são dificultados pela luta entre grupos mercantis, financeiros e militares, e

148 FORMAÇÃO DO ESTADO NACIONAL obviamente, pela resistência britânica. A isto se alia a agressiva política exterior da monarquia orleanista, que atemoriza os governos latino-americanos. De fato, neste período a França anexa a Argélia, apóia Mchemet Ali no Oriente Médio contra a Turquia, que é sustentada pela Grã-Bretanha, Rússia, Prússia e Áustria. Os enviados franceses intervêm abertamente na política interna da região. No Rio da Prata, apóiam Juan Lavalie e Fructuoso Rivera contra Juan Ma- nuel de Rosas e Oribe, e projetam

Page 127: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

implantar uma base, protetorado ou colônia. No México, a França reclama indenização por danos e pagamento de juros a seus comerciantes, e na falta de resposta que a satisfaça, bombardeia Veracruz e a ocupa com sua esquadra (1838). Napoleão III, convencido por proscritos mexicanos que existe no país um forte partido monárquico, e sob pretexto de impor pagamento das dívidas, pretende realizar um sonho de expansão econômica e política através de um império latino-católico, vassalo da França. Seus propósitos são: a obtenção da hegemonia na região, a exploração de riquezas da América Central, a contenção do poder norte-americano e o oferecimento de uma compensação ao catolicismo pela luta contra o Papado na Itália. A Guerra de Secessão nos Estados Unidos traz outro elemento conjuntural favorável. Em 1862, uma expedição anglo-hispano-francesa

desembarca no México, mas o exército napoleônico é o único a permanecer e coloca Maximiliano da Áustria como imperador, numa infeliz experiência imperial terminada em 1867 com grande fracasso.

Causas econômicas decisivas também contribuem para o pouco êxito da penetração. A França sofre as conseqüências do desenvolvimento tardio de sua produção, do reduzido montante de capital excedente e da orientação dos investimentos para a Europa. Carece de superioridade na indústria pesada e em capacidade organizativa. Também contribuem para esta situação as tarifas excessivas do transporte ferroviário e marítimo, a carestia da mão-de-obra, a mesquinharia creditícia, a ignorância e incapacidade dos exportadores, representantes e corretores. Não pode competir com a Grã-Bretanha, a não ser em artigos de luxo (joalheria, vestuário, alimentos de qualidade), e em certos equipamentos industriais. Os investimentos franceses não colaboram, como os britânicos, para transformar os países latino-americanos em apêndices da metrópole industrial. A ação francesa dirige-se ao comércio, bancos e finanças (maioria no Banco Nacional do México, 1882), mineração (cobre de El Boleo, México), ferrovias, serviços públicos, indústria têxtil (México). É exercida através da imigração e do êxito na criação de certa vassalagem cultural das novas nações da região (costumes, modas, consumo, ideologia).

145

A Alemanha também tem um desenvolvimento tardio em comparação com a Grã-Bretanha. O regime feudal só é abolido no começo do século XIX. Nesta época os latifundiários junkers criam uma agricultura de grandes explorações com métodos modernos. A fragmentação do território em grande número de principados, com diferentes alfandegários, fiscais, monetários e jurídicos, freia o desenvolvimento capitalista. Em 1828 começa o processo de Zollverein, destinado a superar esta fragmentação paralisante. Em 1848 já é perceptível o início da industrialização, com assistência técnica e financeira da Grã-Bretanha acelerando-se a partir de 1870, em conseqüência da unificação política feita por Bismarck e do triunfo militar sobre a França. Os laços entre a grande indústria e o Estado estreitam-se, expressos principalmente no

Page 128: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

forte protecionismo alfan- degário. Por influência dos bancos, ocorre forte concentração de empresas. O militarismo manifesta e reforça a expansão do jovem capitalismo alemão, forte mas tardiamente colocado na divisão do mundo entre as potências imperiais.

Durante quase todo o século XIX, a presença alemã na América Latina é irrelevante. Os recursos da Alemanha são absorvidos pelo desenvolvimento interno e pela luta pela unificação e hegemonia na Europa. Os investidores alemães carecem de tradição empresarial e de capacidade para organizar sociedades, o mostram grande prudência quanto a sair do continente. O governo é hostil às ope- rações no estrangeiro.

A situação começa a mudar nas duas últimas décadas do século XIX. A economia alemã alcança uma produtividade crescente e cria excedentes de bens industriais para exportação. Desenvolvem-se a decisão, o impulso e a capacidade organizativa dos empresários. C afastamento da Rússia Tzarista, determinado por razões diplomático-militares, desvia os financistas alemães e seus capitais para a América Latina.

A imigração alemã para o hemisfério ocidental é promovida. Surgem comunidades locais alemãs, que representam novas bases e seguras fontes de informação para a expansão comercial. Aparecem bancos alemães em vários países da região e contratam-se empréstimos. Os comerciantes desta origem são mais instruídos que os britânicos e de nível social superior aos norte-americanos. A organização comercial também é superior à britânica, utilizando-se o estudo cuidadoso das possibilidades e mecanismos mercantis dos países latinos americanos e agentes e propaganda em idiomas vernáculos. Os empresários alemães vão demonstrando maior capacidade de inovação

150 FORM,AÇÃO DO ESTADO NACIONAL na produção e na apresentação de bens industriais, assim como grande aptidão para o cumprimento dos compromissos. Não deixam de trabalhar por lucros moderados, sempre que isto favoreça a melhor implantação no mercado latino-americano. As sucursais bancárias concedem crédito a médio e longo prazos. Linhas regulares de navios a vapor reforçam a penetração. A indústria e a navegação alemãs já competem ativamente com as britânicas, especialmente na venda de armas e de aço para ferrovias. As influências militar e intelectual somam-se às econômica e financeira.

CAPITULO VI ESTRUTURA SOCIO-ECONÕMICA, PODER E ESTADO

A América Latina entra na emancipação em condições de dependência e subdesenvolvimento. A soberania política formal não altera situação originária. A estrutura sócio-econômica é

Page 129: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

respeitada, consolidada e estendida pelas classes dominantes crioulas. São absorvidas integradas as transformações desencadeadas ou estimuladas pela convulsões revolucionárias e pela incorporação à economia capitalista mundial e suas repercussões internas. A estrutura sócio-econômica herdada e em processo de modificação e a dependência externa interagem em uma relação complexa, não-mecânica nem unilateral. Examinou-se a constituição da dependência externa e seu impacto sobre as estruturas nacionais. Cabe agora analisar o processo do ângulo interno.

Dos centros metropolitanos para os países latino-americanos desenvolve-se - como ressalta André Gunder Frank, entre outros uma cadeia descendente de constelações sócio-econômicas, políticas e culturais, cada uma com submetrópoles e satélites menores, até chegar às últimas regiões, setores e grupos inferiores de cada país. A isto corresponde uma participação decrescente na divisão do excedente econômico, da renda, do investimento e consumo, e do poder

O predomínio é do setor agro-exportador, que abarca e enlaça os grupos latifundiários e mineiros, comerciantes e financistas urbanos, chefes políticos, militares e eclesiásticos, em estreita aliança com as metrópoles e empresas estrangeiras. Isto se traduz sobretudo um alto grau de concentração monopolista expressa em: propriedade controle dos recursos naturais e produtivos; superioridade comercial, financeira e tecnológica; domínio dos sistemas de transporte e armazenagem; gozo de posições superiores no campo social, político, administrativo, militar, cultural e ideológico. A organização social é relativamente hierarquizada, polarizada e rígida, com forte concentração de riqueza, poder e prestígio em grupos minoritários.

152 FORMAÇÃO DO ESTADO NACIONAL

A estrutura sócio-econômica dependente e vertical não surge nem se impõe rápida e automaticamente. As classe e grupos dominantes necessitam um processo, em geral prolongado e sempre complexo e difícil, para obter o monopólio dos recursos e instrumentos funda mentais da economia; para definir e impor a hegemonia em seu próprio seio e em relação às classes intermediárias e dominadas; para organizar um Estado centralizado e estável; e para criar as condições de incorporação ao sistema capitalista internacional. Este processo e as formas conseqüentes surgem das estruturas sócio-econômicas herdadas, do tipo de relação que se consegue estabelecer com as metrôpoles e com a economia mundial, do impacto desta relação no plano interno e da dialética das classes e grupos nacionais.

Page 130: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

As economias e as sociedades nacionais que se constituem de maneira mais rápida e sólida são aquelas em que, as classes dominantes nativas conseguem controlar os recursos e sistemas produtivos de bens e as exportações que interessam ao mercado mundial; reorientar neste sentido as relações a alianças externas; impor acordos internos operativos com grupos subordinados, subdominantes ou marginais, e conseguir a segura submissão das classes dominadas (intermediárias e populares) . A constituição como economias, sociedades e Estados nacionais é mais lenta e insegura em países com economias tradicionais que não conseguem se adaptar à nova estrutura do sistema internacional, ou são marginais em relação a ela.

Após a independência, praticamente todos os países latino-americanos, em maior ou menor grau, passam por um período de lutas entre as oligarquias centrais e locais fazendeiros e plantadores, criadores o agricultores, produtores e intermediários, urbanos e rurais - e delas com grupos intermediários e populares. As lutas giram em torno do problema da hegemonia, do controle do sistema de decisões, da política econômica e, portanto, da distribuição e uso da renda nacional.

A chave central destas lutas surge de um conflito básico entre as oligarquias emergentes com pretensão hegemônica e os grupos regionais, artesanais, manufatureiras e comerciais que conseguem o mercado interno. Estes tentam desenvolver atividades agropecuárias, mineiras e industriais, assim como marinhas mercantes próprias. Opõem-se aos feitos do livre comércio e da penetração financeira externa, e demandam uma política protecionista que interfere com os interesses das oligarquias dominantes e das potências européias. Nestas lutas não se enfrentam só os grandes campos de forças, mas também grupos intermediários e dominados que se incorporam aos primeiros

ESTRUTURA SÓCIO-ECONÔMICA, PODER E ESTADO 153 através de sistemas flutuantes de alianças e oposições. Monarquismo e republicanismo, conservadorismo e liberalismo, federalismo e centralismo constituem expressões político-ideológicas deste conflito.

A solução final combina a obtenção do predomínio hegemônico por certos grupos oligárquicos com a satisfação parcial de interesses menos fortes ou subordinados. Os núcleos mais concentrados e poderosos da oligarquia impõem sua dominação, deslocam o eixo econômico do interior para a costa, fazendo-o retroceder em benefício da última, fazem uma redistribuição social e regional da renda nacional. O acordo, que combina graus variáveis de coação e consenso, traduz-se em pactos e no grau de ambigüidade da estrutura e gestão do Estado, combinação de paternalismo e patrimonialismo com certa emergência de um burocratismo eficaz e objetivo.

Page 131: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

A hegemonia constitui-se e é exercida através de uma aliança de grupos e interesses nacionais e estrangeiros: latifundiários (criadores e plantadores; modernos e tradicionais; do litoral e do interior); comerciantes exportadores e importadores; financistas e intermediários; logo também certo tipo de empresário industrial; elites políticas, militares e eclesiásticas. A importância dos estrangeiros aumenta com o incremento de inversões que se vão agregando à relação mercantil-financeira do primeiro período. Os elementos da dominação que, incidem sobre as alianças e as soluções do problema da hegemonia, e sobre o tipo, conteúdo e alcance da relação externa, são essencialmente os seguintes: o controle do aparato produtivo, dos recursos naturais e da mão-de-obra, e da oferta de bens com demanda internacional; o controle das correntes comerciais (porto, intermediação, alfândega); a capacidade para a formação direta de capitais e para a atração de recursos externos (empréstimos, inversões); os poderes de decisão sobre a inversão produtiva, segundo os movimentos da deman- da internacional; o monopólio do aparato estatal, através da administração, Forças Armadas, recursos de política econômica e exercício das relações internacionais. Acrescente-se o apoio financeiro, político e militar que as potências européias e logo os Estados Unidos prestam às oligarquias dominantes.

A hegemonia tem, entretanto, limites externos e internos. A oligarquia tem o pleno exercício de seu poder limitado do exterior. Os grupos estrangeiros e seus Estados controlam o mercado mundial e, portanto, a demanda e os preços dos produtos exportáveis, assim como o abastecimento de importações, capital (inversões e empréstimos), tecnologia e mão-de-obra imigrante. Exercem uma superioridade militar e naval finalmente insuperável. Mantêm o equilíbrio de poder

154 FORMAÇAO DO ESTADO NACIONAL entre os países latino-americanos através da balcanização. O apoio externo é indispensável ao exercício do poder interno. As relações entre a oligarquia e os grupos estrangeiros e seus Estados não são sempre regulares e harmônicas, embora concordem em última instância com base na vigência do sistema de laissez-faire e na solidariedade ou coincidência de interesses sócio-econômicos e políticos. No plano interno, os grupos oligárquicos vencedores têm sua hegemonia recolocada e questionada pelos conflitos entre seus setores componentes e com as classes dominadas. A convergência destes tipos de tensões a conflitos se expressa de forma variável em algumas experiências políticas e na conduta de seus protagonistas: Juan Manuel de Rosas e a Revolução de 1890 na Argentina; Rengifo e Balmaceda no Chile; Mauá e Nabuco no Brasil; Francia e os dois Upez no Paraguai; Lucas Alamán e Juárez no México.

O que se configura em definitivo é uma sociedade oligárquica, organizada por um reduzido grupo de latifundiários, comerciantes, financistas, dirigentes políticos e administrativos, em aliança com os interesses estrangeiros. Esta estrutura e o conseqüente grau de concentração de riqueza e poder manifesta-se e estruturam-se sobretudo através do regime da terra.

Page 132: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

1. O REGIME DA TERRA

O modelo de crescimento descrito implica o predomínio das atividades agropecuárias. O campo tem parte considerável, majoritária, nos totais de população ativa, produção, produto e renda. A propriedade latifundiária da terra, com seu domínio monopolista da mão-de-obra e de outros recursos materiais e financeiros, constitui a forma primordial de organização. Os grupos latifundiários, estreitamente ligados com os setores altos das cidades e com os setores dominantes do comércio e finanças internacionais, instituem-se como núcleo decisivo da economia, sociedade, política e cultura.

À grande concentração da terra em poucas mãos contrapõe-se a carência para as massas rurais. O latifúndio herdado da colônia consolida-se e estende-se a partir da emancipação, à custa do domínio fiscal, comunidades indígenas, agricultura de subsistência e espaços vazios ou selvagens. A dependência externa estimula a concentração, através dos lucros da exportação, investimentos estrangeiros e valorização de terras e produtos.

O latifúndio (hacienda, estancia, plantación) coexiste com os minifúndios (individuais e comunais), em relação simbiótica que con-

ESTRUTURA SÓCIO-ECONÔMICA, PODER E ESTADO 155 figura um composto que possibilita grande variedade de combinação e de situações de transição.

A grande propriedade latifundiária constitui- se e funciona como unidade estruturante, com ampla gama de funções econômicas, sociais, políticas e militares. Os poderes e privilégios de seus donos se exercem sobre os núcleos de população e sobre todas as atividades realizadas no âmbito do domínio, projetando-se também sobre o resto da sociedade nacional. Os latifundiários concentram a propriedade e o uso da terra, as águas, os capitais acumuláveis e os créditos necessários para produção em grande escala. Controlam também a oferta e a demanda de mão-de-obra barata, explorada de várias maneiras: baixa remuneração, trabalho gratuito, participação no produto de terras arrendadas ou outorgadas em uso, a venda de bens de consumo, a compra de produtos, a usura. A concentração da propriedade, a abundância de terras e mão-de-obra, a demanda dos mercados urbanos e de exportação, o crescimento econômico aproveitado mas não promovido e o poder político possibilitam aos latifundiários obter e concentrar altas rendas.

Page 133: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

A partir de suas bases próprias no campo, os latifundiários tecem fora dele uma rede de ligações comerciais, financeiras, industriais, profissionais, políticas e culturais. As relações com os mercados internacionais, com os sistemas mercantis e fluxos inversores das grandes potências unem-se nos âmbitos da produção, comercialização e transporte de produtos primários, do abastecimento de equipamentos e bens de consumo, e do financiamento. As relações com os altos grupos urbanos são estabelecidas e operadas por meio da comercialização, financiamento, operações imobiliárias e co-participaçâo no poder político. As ligações dos latifundiários com os grupos estrangeiros e com os urbanos são estreitas, mas complexas e variáveis, e não excluem tensões e conflitos. O controle e a influência dos primeiros são projetados e exercidos sobre o aparato político-administrativo, a legislação, os tribunais, a polícia e as forças armadas, os bancos e o comércio, a Igreja e o ensino. O poder conseqüente é usado para obter e conservar a concentração da propriedade, dos recursos e das rendas, e para consolidar uma ordem social indentificada com seus interesses.

Os latifundiários demonstram geralmente, com raras exceções, visível desinteresse pelo progresso, funções e tarefas sócio-econômicas, e pelas inovações técnicas. A estrutura econômica que promovem e integram, a inserção no sistema de dependência externa, a estratificação social que aceitam e usufruem, a tradição religiosa que assi-

156 FORMAÇÃO DO ESTADO NACIONAL milam, os padrões culturais e educativos, o quadro de valores da classe dominante fazem com que se predisponham a estabelecer seu poder e sua renda sobro a propriedade de terras, um número limitado de atividades mercantil-financeiras, cargos políticos e militares, profissões liberais clássicas. As mesmo tempo, é escasso seu interesse pela posse e direção de complicadas empresas financeiras, industriais e de transporte. Carece de propensão empresarial e modernizante. Sua atitude é basicamente estática e rotineira, resistente à promoção deliberada e enérgica de oportunidades favoráveis e à orientação de mudanças progressivas no campo e na sociedade global. Seu interesse reduz-se ao a aproveitamento de vantagens naturais e outras, provenientes do crescimento espontâneo da economia (valorização de terras e exportações), sem as criar ou induzir, ao mero gozo de situações lucrativas para as quais não contribuiu, ao uso do aparato e da política do Estado em proveito próprio.

Deste modo, o setor latifundiário utiliza inefícientemente a terra e a força do trabalho (monocultura, exploração extensiva, subutilização de solos e mão-de-obra). Carece de incentivos para a inversão e a melhora tecnológica, e destina para esses fins parte relativamente pequena de sua acumulação. Emprega métodos e equipamentos retrógados e inadequados, na própria produção, na organização e na administração. Sua capacidade competitiva internacional vai-se reduzindo à medida que se esgotam os recursos naturais e que aparecem outros produtores estrangeiros mais eficientes; muitos mercados começam a se restringir ou fechar. Alia o interesse pelas obras públicas e melhoras de lucro direto (estradas, ferrovias) à absoluta desconsideração da infra-estrutura social (saúde, educação).

Page 134: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

Os rendimentos dos latifundários, embora inferiores aos que poderiam ser obtidos com uma atitude mais dinâmica e inovadora, são de qualquer forma consideráveis. Juntamente com os recursos provenientes do crédito são utilizados para concentrar ainda mais a propriedade e a renda, e consolidar a própria posição no sistema de poder, sem sentido empresarial nem desejo de desenvolvimento. Estes rendimentos são destinados a: aquisição de terras e capital físico para a exploração agropecuária; o absentismo para a residência urbana e estrangeira; o alto consumo suntuário (importações européias, turismo, mansões na cidade e no campo, educação no exterior); a intermediação mercantil e a usura; a inversão em bens seguros dentro e fora do campo. No setor rural propriamente dito, as rendas do latifúndio são utilizadas para a acumulação de terras como meio de capitalização, renda e especulação, obtenção de créditos hipotecários, aumento das bases de prestígio social e de poder político. Contri-

ESTRUTURA SÓCIO-ECONÔMICA, PODER E ESTADO 157 bui para isto o aproveitamento das baixas taxas e da isenções de impostos, além do processo inflacionário. Fora do campo, as rendas dirigem-se às terras e construções urbanas , à especulação imobiliária , à participação em sociedades comerciais , financeiras e manufatureiras.

O setor latifundiário exerce influência decisiva sobre as tendências e políticas tributárias, creditícias e monetárias. Seus membros virtualmente não pagam impostos, mas se beneficiam com os gastos públicas de um Estado que assume as tarefas e responsabilidades indispensáveis ao modelo de crescimento adotado e à satisfação dos interesses da classe dominante. Além disso, os latifundiários procuram compensar a baixa produtividade e a competividade decrescente de seus produtos no mercado internacional por meio de desvalorizações monetárias deliberadas. Seus padrões de consumo aristocrático, adotados mimeticamente por uma parte das camadas médias, mantêm e aumentam a demanda de bens importados, que tira recursos internos e divisas de possíveis produtos racionais. O setor latifundiário contribui também para o uso irracional do crédito público, que lhe é generosamente outorgado, em função da influência e controle que exerce sobre o Estado e suas instituições financeiras. Os empréstimos são obtidos em montantes consideráveis, sem garantias ou com cauções pouco efetivas. A cobrança das dívidas tem pouco ou nenhum rigor, e os latifundiários são favorecidos por pror- rogações, ampliações, uso de moeda desvalorizada. Perde significado a dívida dos juros e de parte do principal. Por outro lado, o Estado é fonte de ocupação para membros da oligarquia e para seus apêndices clientelísticos, o que aumenta o volume do corpo burocrático e sua incidência nas finanças públicas. Os latifundiários são desta forma, por seu papel objetivo e ação deliberada, causadores diretos e indiretos- da inflação e da desvalorização monetária. Na verdade, os fatores básicos daquelas são, deste ângulo, a obtenção de rentabilidades para as produções exportáveis; a demanda de importados; o freio à produção doméstica; o desequilíbrio fiscal; o aumento do crédito e o alívio das dívidas; a redistribuição regressiva da renda em prejuízo de credores e assalariados e em geral das camadas médias e populares.

Page 135: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

Esta generalização, essencialmente correta, não exclui a existência de diferenças internas no setor agro-exportador. Grupos importantes de agropecuaristas e mineiros, nacionais e estrangeiros tornam-se, relativamente cedo, empresários capitalistas que exploram comercialmente suas terras para a venda de seus produtos no mercado mundial. Empregam uma tecnologia, administração e cálculo

158 FORMAÇÃO DO ESTADO NACIONAL empresarial modernos; conseguem alta produtividade das terras, jazidas e mão-de-obra. Inversões de origem agrária e mineira são de importância considerável em diversas fases da industrialização.

Na pirâmide da sociedade rural, os setores intermediários carecem de relevância e peso decisivo. Entre os latifundiários e as massas camponesas existe um conglomerado relativamente reduzido de camponeses acomodados, prestamistas o intermediários, com dimensão e influência variáveis segundo os países e fases históricas. Estas camadas médias estão subordinadas aos senhores latifundiários mas exercem certo controle sobre a população camponesa, que expoliam pelo arrendamento e compra da força de trabalho, pela retenção de uma parte do preço final dos produtos agropecuários que compram desta, pela extração de uma renda adicional pelo preço dos produtos manufaturados que lhe vendem. Desempenham, também, parcialmente, papel simétrico em sentido inverso, com relação aos produtores e, consumidores urbanos.

A base é composta por uma massa de produtores camponeses, minifundistas e peões.

Os minifundistas são limitados em seus recursos e oportunidades pela posse ou arrendamento de terras de extensão reduzida e qualidade inferior; pelo baixo nível tecnológico e o resultante desperdício do trabalho; e pelo sistema de expoliação mercantil, financeira e fiscal a que estão submetidos. Produzem para a subsistência ou para participação reduzida no mercado. Têm pouco ou nenhum contato com o mundo exterior. Carecem de canais comerciais independentes, de fontes de crédito, de informação e de tecnologia moderna. Usam a intermediação dos latifundiários, comerciantes e políticos, que os manipulam e utilizam, e resistem a um contato mais direto com o mundo exterior ao reduzido âmbito existencial do camponês. Nos casos em que os minifundistas alcançam certo grau de integração no mercado, suas baixas rendas são reduzidas ou absorvidas pela renda agrária, imposto, juros, dívidas e a intermediação comercial.

A situação dos assalariados rurais é determinada principalmente pela abundância de mão-de-obra, combinada ao predomínio socio-econonômico e político dos latifundiários. A mão-de-

Page 136: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

obra é recrutada sobretudo em bases familiares, mais que individuais, com o conseqüente alto número de trabalhadores familiares não-remunerados. A mão-de-obra crioula alia-se àquela proveniente da imigração que não consegue acesso à propriedade nem chega a se deslocar para as cidades. O latifúndio e sua relação simbiótica com o minifúndio

ESTRUTURA SÓCIO-ECONÔMICA, PODER E ESTADO 159 operam como reservatório de mão-de-obra barata a hacienda tradicional, a exploração agro-exportadora, e logo também para as atividades urbanas. A sociedade rural tende a ser biclassista, com certos traços configurativos de um sistema de castas (trabalho negro e indígena, em relação de escravidão e semi-escravidão). Os níveis de remuneração são baixíssimos e predominam os pagamentos em espécie e formas similares, que substituem total ou parcialmente o uso do dinheiro. Esta vigência de padrões pré-capitalistas de ocupação, de remuneração e, portanto, de consumo, não limitam seu impacto ao âmbito puramente rural. Irradiam-se e influem sobre as atividades urbanas e o mercado nacional de trabalho. Em todos estes campos, os salários tendem a não aumentar de acordo com o incremento da produtividade, e o mercado nacional não se unifica plena o funcionalmente.

As características indicadas da sociedade rural exigem algumas extensões e complementos no que se refere à miséria e marginalidade camponesas, ao sistema primário de relações sociais e às conseqüências e implicações para a sociedade nacional em seu conjunto.

As maiorias camponesas (minifundistas, assalariadas, e toda a gama de combinações entre ambas as categorias) sofrem os resultados baixíssimos níveis de renda, dos padrões pré-capitalistas de remuneração e conseqüentes condições submanas em termos de alimentação, habitação, saúde e educação. O uso da maior parte da baixa renda para subsistência, especialmente alimentos, restringe o mercado interno. As massas são privadas de possibilidades reais de acesso à terra e de aumento de suas rendas. Estão submetidas à autoridade paternalista dos latifundiários (e da Igreja) e ao peso da expoliação e da miséria, da crueldade e da opressão social e política, da tradição e da ignorância, sem possibilidades nem estímulos para a mudança, marginalizada da vida nacional. Aliam à falta de inserção real e efetiva no mercado nacional, na economia monetária, e, portanto, nos benefícios da sociedade moderna, a carência de integração nas instituições do sistema nacional de poder. A cidadania estende-se muito lentamente aos campos. O campesinato carece de identidade própria como grupo. Insere-se nos marcos sociais e institucionais pré-nacionais através de laços tradicionais de dependência (direta e pessoal) . Alia-se ao alistamento eleitoral das massas camponesas a participação em comícios através da hegemonia e manipulação dos latifundiários, intermediários entre estas e a sociedade e o sistema político nacionais. O sindicalismo camponês tem também evolução lenta e acidentada, para o que contribuem.- o isolamento, o analfabetismo e a falta de consciência; as condições de trabalho;

Page 137: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

160 FORMAÇÃO DO ESTADO NACIONAL a diversidade de tipos de exploração agropecuária; a resistência ou o desinteresse do Estado e dos grupos e partidos políticos urbanos. Falta uma política social efetiva em matéria de legislação trabalhista e sindical, de serviços sociais, sistemas de previsão, educação; e na pequena medida em que surge não é cumprida. A miséria e a marginalidade reforçam o poder e a autoridade dos grupos rurais dominantes e é ao mesmo tempo fator e efeito do sistema de relações sociais dominantes no campo.

A marginalidade generalizada, quantitativa e qualitativamente, por número de implicados e de aspectos e níveis, mantém e reforça um sistema de relações sociais primárias. Este institucionaliza o intercâmbio direto de serviços e favores, os vínculos de dependência do campesinato aos senhores da terra em todos ou quase todos os aspectos da personalidade e da conduta. Uma engrenagem de expectativas mútuas liga o paternalismo, os padrões senhoriais e familiares, com as lealdades diretas e pessoais. A selecão e situação das pessoas fazem-se por critérios adscritivos. As relações contratuais são excepcionais e sem estímulo pela carência de leis e aparatos administrativos que as poderiam impor e conferir vigência. Assim, o campesinato carece de estímulos para a mudança, participação e modernização.

A estrutura do campo e dentro dela o papel central do latifúndio repercutem de outras formas na configuração e dinâmica da sociedade global.

A hacienda tradicional e inclusive a plantação e a exploração agroexportadora moderna em muitos aspectos tendem a se constituir um quadro social fechado, com tendências à auto-suficiência relativa e à redução de estímulos para se ampliar e se diversificar. Sua existência e seus modos de funcionamento geram ou estimulam o isolamento e o conservantismo, a dispersão do povoamento, a insuficiência e as dificuldades dos transportes e comunicações. Contribuem para a fixação dos limites nacionais e a não-coincidência do território formal e do território efetivo da nação e do Estado. A elas também pode-se atribuir a inexisténcia de uma zona geográfica e sociopolítica de fronteira aberta. O açambarcamento monopolista impede às maiorias o acesso à terra, que não tem exploração real, constituída em troca como reserva para renda, especulação e poder. Nenhum Estado latino-americano institui unia legislação semelhante à do homestead norte-americano.

Diferindo do ocorrido em modelos "clássicos" de desenvolvimento capitalista, faltam ou escasseiam e carecem de importância as

161 ESTRUTURA SÓCIO-ECONÔMICA, PODER E ESTADO

Page 138: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

cidades pequenas o médias, como elo de ligação entre as sociedades urbanas e rurais, para- a transmissão e estímulo das mudanças e da participação e integração sociais e políticas do campesinato. Sua situação e suas funções são limitadas e usurpadas pelo grande domínio.

As formas atrasadas e as tendências conservadoras determinadas pela primazia do latifúndio repercutem também de outras formas sobre a sociedade global. Aquele freia o desenvolvimento de um mercado interno amplo e diversificado, sobretudo por meio de um tipo de produção para o consumo interno do grande domínio quase auto-suficiente e para exportação, e da propensão dos latifundiários ao consumo suntuário de bens importados; da forte concentração da renda; da escassez de cidades médias e pequenas; e da pouco desenvolvida divisão regional do trabalho. A débil propensão -a investir com fins produtivos e a inovar teenelogicamente reduz e encarece a oferta de alimentos e matérias-primas para exportação e consumo e os insumos manufatureiros dos grupos urbanos. Isto contribui para o desequilíbrio do balanço de pagamentos, para o surgimento e propagação de processos inflacionários. Baixa o salário real dos trabalhadores urbanos e encarecem os produtos manufatureiros, restringindo-se sua demanda. Mais uma vez o mercado interno é limitado em superfície e profundidade.

Em geral o latifúndio cria e mantém obstáculos generalizados ao desenvolvimento por estímulos internos e mediante transformações estruturais, e também - como logo se verá - à centralização estatal, à democratização política e à modernização. Contribui também para a coexistência e união de etapas históricas e formas socio-econômicas de organização e funcionamento, diferentes e contraditórias: comunidade agrícola fechada ou semifechada; agricultura indi- vidual de subsistência, hacienda tradicional sem dinâmica empresarial moderna, explorações capitalistas para exportação, setor urbano. Este último aspecto merece especial consideração.

2. A Urbanização

A incorporação da América Latina, a partir da emancipação, a um novo tipo de relação de dependência, e a aplicação do modelo de desenvolvimento para fora, criam e conformam um processo peculiar de urbanização. A incidência de tais fatores revela-se particularmente nas mudanças produzidas na rede ecológico-demográfica das cidades e na estrutura e dinâmica das sociedades urbanas; mudanças que

162 FORMAÇÃO DO ESTADO NACIONAL por sua vez interagem sobro o processo geral e seus principais componentes.

Page 139: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

O período colonial lega um sistema e uma gama de elementos urbanos significativos para a organização e funcionamento da sociedade global. A emancipação tem origem e caráter fortemente urbanos. A partir dela, embora continuando processos anteriores, pode perceber duas situações básicas. Os centros originários de poder colonial, que já sofrem desde século XVIII o declínio da produção mineira, e, a seguir, da mão-de-obra disponível, estão isolados das novas correntes internacionais de comércio e financiamento; estagnam-se corno centros produtores e mercantis; carecem de forças e elementos de modernização. O poder dos grupos tradicionalmente dominantes e a persistência de padrões senhoriais e patrimoniais de organização social e política encontram reforço nesta situação e alimentam-na. O crescimento urbano, a integração nacional e a criação de um Estado burguês moderno são efetivamente limitados. Esta situação apresenta-se principalmente nos países andinos do Pacífico, exceto Chile, e sobretudo no Peru.

As mudanças na estrutura, as tendências e o sistema hegemônico do capitalismo mundial permitem, ao contrário, uma incorporação mais direta e interna dos países do Atlântico (Argentina, Uruguai, Brasil) e do México e Chile. Isto possibilita e estimula: considerável desenvolvimento comercial, agropecuário e mineiro; menor vigência de estruturas e pautas senhoriais e patrimoniais; maior grau de integração nacional, urbanização e desenvolvimento político concretizado na criação de um Estado burguês liberal.

No segundo caso, embora não se modifiquem fundamentalmente os padrões coloniais de povoamento urbano, nem surjam muitas funções novas para as cidades, o comércio legal, as finanças e certas atividades produtivas expandem-se pela ação ou sob controle de banos. Contribuem para o desenvolvimento das principais cidades, que por sua vez criam ou reforçam atividades econômicas e grupos secundários e terciários (artesanato, manufatura, profissões, serviços) . Como se viu, o predomínio do sistema latifundiário tem um sentido limitativo da urbanização. Estimula a descentralização, a vigência de quadros sociais semifechados e estáticos, a dispersão do povoamento, a insuficiência de transportes o comunicações, a inexistência de fronteiras abertas; e freia o desenvolvimento do mercado interno baseado na divisão inter-reginoal do trabalho. Isto contribui

ESTRUTURA SOCIO-ECONOMICA, PODER E ESTADO 163 para a falta ou escassez de cidades medias e pequenas, e de setores sociais intermediários .

Com o fechamento ou limitação do caminho para o interior e para a terra, os grupos urbanos abrem se ainda mais para o campo internacional e especializam-se em atividades comerciais e financeiras e na promoção de novas linhas produtivas, mercantis e de serviços . A urbanização avança, não como concomitante ou consequencia de um desenvolvimento autonomo e industrializante, mas como resultante e parte de um crescimento dependente, determinado pelo comercio internacional e pelo financiamento e inversão estrangeiros.

Page 140: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

Um dos traços mais importantes deste processo e o crescimento de pelo menos uma grande cidade principal em cada pais, dominante, quase sempre costeira e que vai concentrando ampla gama de funções e recursos . Converte-se no centro das decisões políticas e das estruturas administrativas fundamentais . Age como intermediária entre o mundo desenvolvido e o interior. Multiplica as atividades comerciais, financeiras, profissionais, de serviços e de cultura. Torna-se assim eixo organizador da vida social para o pais em seu conjunto e agente interno fundamental para a constituição das novas relações de dependência.

Na grande cidade concentram-se e aumentam camadas altas e medias, interessadas na integração do respectivo pais no sistema internacional. São relativamente cultas, perceptivas e autoconscientes. Orientam-se para os grandes centros de poder mundial e tendem a separar-se do interior, salvo no referente a conversão crescente da grande cidade em submetrópole satelizada das potências hegemônicas, intermediária e co-participante na dominação e espoliação do hinterland .

As camadas altas e médias da grande cidade interessam-se e beneficiam-se por: expansão do comércio exterior e das inversões estrangeiras; criação de uma infra-estrutura adeauada a esses fins; desenvolvimento da produção e exportação de bens primários e importação de bens de consumo e equipamentos; aumento e diversificação das atividades produtivas, profissões, serviços, possibilidades de renda e bem-estar maiores. Estas camadas operam como mecanismos e reforço da relação de dependência através dos laços de interesse como grupos estrangeiros e grandes potencias, e através da incorporação e imitação de padrões tecno-economicos, ideológicos e políticos . Os grupos que controlam o comércio exterior e as inversões estrangeiras selecionam as regiões adequadas a satisfação das próprias

164 FORMAÇÃO DO ESTADO NACIONAL necessidades e das metrópoles, e portanto também a cidade ou cidades que são eixo ou acesso do país e das regiões privilegiadas. Estas cidades são favorecidas pelas correntes mercantis, as inversões de capitais, a dotação de portos, ferrovias, transportes urbanos, comunicações, infra-estrutura em geral. A concentração de riqueza, recursos e facilidades atrai e fixa todo novo incremento e progresso. Estimula o crescimento vegetativo e imigratório da população e a mercantilização da sociedade. Suscita novas atividades complementárias e subsidiárias. Amplia a demanda de bens de consumo e equipamentos. Multiplica e diversifica as profissões, serviços, artesanatos e manufaturas. O aumento do excedente econômico é retido em parte pelas cidades e grupos urbanos, e usado em seu benefício. A valorização de terras e produtos e as inversões estrangeiras não favorecem só aos latifundiários, que de qualquer forma tendem cada vez mais a residir. nas cidades, mas também aos comerciantes, financistas, especuladores, políticos, advogados de grandes empresas, estabelecidos nas metrópoles nascentes latino-americanas e nas principais cidades da mesma constelação interna.

Page 141: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

A concentração econômica e demográfica rompe o equilíbrio, favorecendo a grande cidade, e faz o governo central operar e tomar decisões cada vez mais em função de interesses urbanos. O Estado estabelece ou mantém sua sede na grande cidade, e utiliza parte de suas rendas, aumentadas pelo desenvolvimento, no seu melhoramento (infra-estrutura, grandes edifícios públicos). A indústria, que começa a se desenvolver apesar das limitações indicadas, localiza-se na grande cidade que lhe proporciona o ponto fundamental de ligação com o exterior, de onde provêm os importados (matérias-primas, equipamentos, combustíveis), e opera como centro consumidor, fornecedor de energia e outros insumos, fonte de mão-de-obra especializada, de capitais e de informação. Ao mesmo tempo, como sede do Estado, elabora e impõe a política econômica.

O crescimento urbano é ao mesmo tempo causa e efeito da europeização. A grande cidade atua como eixo e correia de transmissão de dependência em relação ao comércio, inversões, transporte e comunicações, meios de informação e publicidade. Os grupos altos e médios das concentrações urbanas mais importantes abrem-se à influência dos centros metrooplitanos da Europa e logo dos Esta- dos Unidos. Recebem e incorporam formas produtivas, técnicas de trabalho, invenções, padrões de consumo, modas, costumes, idéias, métodos educativos. quadros de valores, instituições, elementos e adornos da civilização euro-norte-americana. A europeização produz-se pela imitação e improvisação, sem originalidade criadora, como

ESTRUTURA SÓCIO-ECONÔMICA, PODER E ESTADO 165 aculturação por impulso externo, mas tem papel significativo como reforço da dependência e da conformação estrutural emergente. O aumento da população consumidora repercute na dinâmica e na organização do comércio; obriga a melhorar a qualidade, variedade e distribuição dos produtos; cria sistemas mercantis mais complexos e especializados (comércio atacadista, corretagem, publicidade).

A europeização estimula ao mesmo tempo o crescimento urbano. A grande cidade começa a se apresentar como o único modo de vida capaz de progresso, civilização e acesso às satisfações materiais, sociais e culturais. Cresce o atrativo da vida urbana, favorecido pelo aumento da riqueza, retido em parte considerável pelas novas metrópoles e outras grandes cidades intermediárias, pelas novas possibilidades tecnológicas criadas pela própria expansão urbana em processo de causação circular acumulativa. Os transportes e comunicações intensificam a vida comercial, que assume formas modernas de organização e estimula o consumo de bens importados. As classes altas adotam os estilos arquitetônicos e as comolidades e amenidades de origem francesa e britânica. A grande cidade atrai e fixa os latifundiários absentistas, os provincianos movidos por uma perspectiva de ascensão social e política, os imigrantes e estrangeiros que buscam participar das novas possibilidades e gratificações. Os imigrantes, repelidos pela estrutura atrasada e rígida da sociedade rural, provêm de países industrializados- e urbanizados, trazem padrões mais ou menos modernos

Page 142: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

de trabalho e consumo, e contribuem para o desenvolvimento de novas atividades para a satisfação das necessidades internas, e para ampliação e diversificação da demanda.

Junto aos aspectos positivos inquestionáveis, a urbanização apresenta outros visivelmente negativos. Opera como fator de cosmopolitismo que atenua ou destrói a idiossincrasia e a consciência nacionais. Elabora e assimila instituições e padrões sociopolíticos e culturais para funcionar em e para a capital e as cidades importantes, sem procurar muito nem conseguir uma operatividade das mesmas fora dos limites. daquelas. Surge e se afirma um menosprezo quase absoluto pelas populações do interior, seus setores camponeses e populares, suas formas de vida e cultura. O colonialismo intelectual vai-se convertendo em traço central, expresso entre outros aspectos no desinteresse pelo estudo sério e o conhecimento efetivo dos grandes problemas nacionais, salvo no exigido pela integração internacional e a concomitante modificação da estrutura interna. Os hábitos de consumo prevalecem sobre os de produção. A civilização urbana superficial não impede ou ainda estimula fenômenos de desorganização social: instabilidade; acumulação de marginais; deliqüência;

166 FORMAÇÃO DO ESTADO NACIONAL sistemas de valores que privilegiam o dinheiro e o poder e justificam o arrivismo; agressividade e crueldade.

` A grande cidade adquire um peso específico esmagador em relação ao resto das cidades médias e pequenas, reduzidas em número, tamanho e importância. A rede urbana polariza-se e se debilita, e a descontinuidade entre cidade e campo tende a se intensificar. Quebra-se o equilíbrio entre o Estado nacional, centralizado na capital, e as províncias interiores. O centro metropolitano absorve riqueza, população, poder, em prejuízo do interior, e isto gera e reforça ressentimentos e conflitos de todo tipo.

O crescente desequilíbrio não exclui que a urbanização metropolitana seja acompanhada de modo subsidiário pela de núcleos de povoamento no interior. Estes surgem da ocupação territorial, da defesa interna e externa e conseqüentes bases militares, dos enclaves mineiros, e da intermediação comercial-financeira entre as principais cidades e o campo.

As cidades, sobretudo a metrópole e os outros núcleos importantes, apresentam seu próprio subsistema de estratificação social, parte integrante e decisiva do sistema social nacional.

No alto da pirâmide social urbana situam-se os grupos nacionais superiores, ligados a seus similares rurais e aos interesses estrangeiros: comerciantes, banqueiros, investidores, especuladores, Latifundiários ausentistas, empresários industriais, dirigentes políticos,

Page 143: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

militares e religiosos, altos funcionários. São estratos interligados e reciprocamente influentes, que configuram uma classe única, a oligarquia, que apresenta as características fundamentais que se seguem.

A oligarquia tem um recrutamento restrito e endógeno, ao qual alia um a reduzida incorporação de adventícios crioulos e imigrantes, inicialmente não-aceitos, mas que acabam se incorporando à elite em função da riqueza, poder e talento pessoal. A elite apresenta traços de relativa antigüidade, homogeneidade e força de ligações internas. Aparece em grande parte como casta fechada, que se estrutura pela riqueza, educação, matrimônio, formas de vida urbana e rural, en- contro em reuniões religiosas e sociais, viagens, direção política, modalidades de existência (mansões luxuosas em bairros elegantes, de estilos mesclados, mobiliário luxuoso e conforto europeu; cemitérios e mausoléus que projetam o status na morte; costumes de alimentação e vestuário) . Os laços de sangue, interesse, trajetória histórica e estilo de vida ligam-se e são reforçados mutuamente. O acesso às posições hierarquizadas de poder regula-se por critérios adscritivos, a importância da sucessão, jogo da solidariedade interna, mecânica e

ESTRUTURA SÓCIO-ECONÔMICA, PODER E ESTADO 167 racional, baseada na linhagem. Assim, a oligarquia detém um poder homogêneo e forte, gerado e consolidado pela própria força econômica (setor produtivo primário-exportador), pelas relações com o mercado mundial e as grandes potências; pelo exercício de posições institucionalizadas de poder, e pelo controle direto e indireto de recursos sociais, culturais e ideológicos.

As camadas médias das cidades refletem o impacto de uma urbanização dependente e distorcida, na qual o setor terciário surge e predomina antes que apareça um embrião significativo de setor secundário. Integram-se com os grupos burocráticos (governamentais e privados), militare3, profissionais liberais (advogados, médicos, arquitetos), intelectuais, artesanato, pequenos e médios empresários do comércio e da manufatura. Seus elementos de origem crioula tendem a se fundir com os de origem imigrante. Estão ligadas por parentesco com a sociedade tradicional, identificam-se com as atitudes conservadoras dos grupos oligárquicos dos quais dependem ou que lhes servem de imagem e exemplo. Não chegam a constituir uma classe social compacta, dotada de autêntica consciência de si e para si, e de homogeneidade política operativa.

Quanto às classes populares, deve-se assinalar a prematura existência de massas urbanas, segregadas e marginais, em relação tradicional de dependência face aos grupos superiores, sem grande capacidade de articulação e pressão. O desenvolvimento dependente, a imigração, a urbanização em vias de se acelerar, os enclaves mineiros (Chile), a primeira fase da industrialização fazem emergir as manifestações da classe trabalhadora e do sindicalismo. Os novos setores operários sofrem péssimas condições de trabalho e de remuneração,

Page 144: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

determinadas pela oferta excessiva do fluxo imigratório, carência de organização, reduzida demanda da economia agripecuária latifundista. A isto se alia o papel do Estado que rebaixa os salários reais (emissionismo monetário) e reprime as tentativas de sindicalização e os movimentos reivindicatórios. A classe trabalhadora surge dividida entre elementos estrangeiros e nativos, e há predominância de elementos semi-artesanais. Os imigrantes trazem e incorporam uma consciência bastante elevada de sua condição de produtores, orientações político-ideológicas e tradições organizativas dos países adiantados originais. As ideologias que se impõem visam remodelar a sociedade a partir de uma cultura operária desenvolvida nas próprias organizações de classe. Emerge um sindicalismo de elites militantes, que estrutura seus órgãos político-culturais (atencus, teatros, literatura e jornalismo), e ao mesmo tempo organiza as reivindicações por melhores condições de trabalho e remuneração, es-

168 FORMAÇÃO DO ESTADO NACIONAL boça uma estratégia operária anticapitalista, tendente a transformar o sistema em nome de um novo humanismo. O sindicalismo operário começa a exercer influência, variável segundo países e etapas, sobre outros grupos populares e sobre os intelectuais das camadas médias. A presença ativa deste sindicalismo operário converge com o processo de ascensão das camadas médias, que se detalhará a seguir, nas aspirações de, antitradicionalismo, industrialização e democratização política. Em etapa posterior, as camadas médias e o Estado em que obtêm maior participação promoverão certo tipo de política social e de sindicalização operária, como meios para ampliar suas alianças e bases, e analisar o potencial sociopolítico dos trabalhadores.

3. DUALISMO ESTRUTURAL OU DESENVOLVIMENTO DEPENDENTE, DESIGUAL E COMBINADO?

As diferenças existentes entre a sociedade rural e urbana levaram à postulação da teoria do dualismo estrutural. Esta teoria é apresentada corno esquema de análise e enfoque teórico, mas tem implicações políticas. Sua formulação dirigiu-se aos países da Ásia e África (cf. J. H. Beeke para a sociedade indonésia, 1942) e América-Latina (Jacques Lambert; marxistas dogmáticos, especialmente dos partidos comunistas; correntes desenvolvimentistas). De acordo com esta concepção, cada país da América Latina é composto por duas sociedades, duas formações sócio-históricas: a rural e a urbana. Elas são diferentes, e em parte independentes, embora ligadas, dentro de um mesmo marco político-admínistrativo. Cada uma delas tem sua própria dinâmica. Ambas se justapõem, mantendo entre si relações externas, parciais, tangenciais. A coexis- tência constitui o dualismo estrutural e expressa um estado intermediário ou forma híbrida, resultante da passagem de uma velha sociedade em vias de desaparecimento a outra nova que ainda não emergiu, não se constituiu nem funciona plenamente. As diferenças apresentam-se em termos de estrutura e dinâmica, de produtividade, renda, aptidão para gerar, absorver e difundir transformações. Em algumas versões, o dualismo estrutural é identificado como conflito entre o feudalismo e o capitalismo,

Page 145: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

no qual o segundo deve anular e destruir o primeiro, como pré-requisitos do progresso histórico a América-Latina.

A sociedade rural é descrita como arcaica, tradicional, feudal ou semifeudal. Nascida na etapa colonial, incorpora e prolonga vícios desta origem. Sua estrutura estagnada ou retrógada inclui: re-

ESTRUTURA SÓCIO-ECONÔMICA, PODER E ESTADO 169 lações de tipo familiar e pessoal; instituições tradicionais; estratificação social rígida, com status atribuídos; normas e valores que expressam e reafirmam a ordem herdada; falta de racionalidade no pensamento e na atividade; inexistência ou lentidão da mudança: interna; determinada além disso em grande parte por impulsos externos, provenientes da sociedade moderna.

A sociedade urbana é identificada com a modernização e o desenvolvimento capitalista. Sua origem é pós-colonial, e liga-se à emancipação, integração internacional, urbanização e começos da industrialização. Nela predominam as relações de tipo secundário e os atos impessoais, racionais e utilitários. Sua estratificação é mais flexível, com considerável grau de mobilidade social e maiores possibilidades de adquirir e expressar o status pelo esforço pessoal, educação, renda e função. Suas normas e valores surgem orientados para a mudança, inovação e racionalidade. Tem capacidade para gerar e irradiar impulsos inovadores e desenvolvimentistas.

O dualismo estrutural aparece essencialmente como conceitualização teórica, mas suas implicações políticas são perceptíveis. A superação do subdesenvolvimento seria, na verdade, tarefa exclusiva ou predominante dos grupos urbanos, representantes da modernização capitalista, que imporiam a transformação a uma sociedade rural qualificada de feudal. Isto poderia assumir a forma de uma hegemonia da burguesia industrial sobre as camadas médias e populares das cidades (desenvolvimentismo) ou de uma aliança e mobilização multiclassista de todos estes grupos (estratégia da Frente Popular) . A formulação do dualismo estrutural como conceito, como instrumento de análise e como premissa de estratégia política, é julgada inadequada por uma série de pesquisadores (Sérgio Bagu, Milcíades Pcila, Rodolfo Stavenhagen, André Gunder Frank, Luis Vitale, Fernando Cardoso, Enzo Falleto, Anibal Quijano... ) com os quais concordo no essencial.

O esquema é criticável sobretudo pela simplificação histórica que lhe é inerente. Do ponto de vista mais geral, pretende atribuir exclusivamente à América Latina e ao Terceiro Mundo um traço de toda a história humana. Esta se fez até hoje de forma predominantemente espontânea, com relativa debilidade das forças e elementos de ordenação efetiva e de

Page 146: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

racionalização real. Portanto, todas as sociedades são, em grau variável, heterogêneas. A História nelas introduz elementos novos sem eliminar todos aqueles herdados. Uma formação sócio-econômica, um sistema, uma sociedade nacional arras-

170 FORMAÇÃO DO ESTADO NACIONAL tam estruturas atrasadas como herança do passado, que não podem liquidar nem levar a seu próprio nível geral de modernização. Pôr outro lado, enquanto a formação dominante subsiste e marcha para o fim de suas possibilidades, vão aparecendo em seu seio outras forças e estruturas. Umas e outras correspondem a diversas etapas históricas, mas continuam sendo contemporâneas. Não são separadas por compartimentos estanques. Coexistem, com freqüência por longo tempo, se justapõem sem limites precisos nem rígidos, sofrem influência e se penetram mutuamente. Suas interações e combinações manifestam-se em todos os níveis e aspectos da realidade: na complexidade das relações sócio-econômicas, políticas, jurídicas e culturais; nas necessidades e motivações; nos fatos e atos; na vida cotidiana e na consciência; nos comportamentos e ideologias; nos estilos e modos de existência; nos tipos humanos. A diversidade de tendências, funções e atitudes encarna-se e é assumida por diferentes grupos, e cada grupo pode-se apresentar sob aspectos distintos, segundo as situações. Esta mistura inextricável de elementos dispares configura em conjunto a trama de cada sociedade e determina em última instância seu nível médio de desenvolvimento.

A universalidade deste traço básico verifica-se particularmente nos países em desenvolvimento. Sua evolução sócio-histórica sofre a interferência da penetração e domínio do capitalismo metropolitano, que, exercendo ação incorporante e totalizante, introduz elementos o formas correspondentes a uma dinâmica externa e mais avançada, ao mesmo tempo que inibe, suprime ou deforma suas potencialidades e modalidades próprias. Neste mesmo processo e nos projetos de desenvolvimento autônomo, os países dependentes o subdesenvolvidos adotam elementos de progresso disponíveis na metrópole, adaptam-nos a suas próprias peculiaridades e possibilidades. As estruturas emergentes resultam assim complexas e combinadas. São amálgamas heterogêneas de formas e etapas diferentes e de suas combinações variáveis. Por esta razão, nunca podem constituir urna repetição idêntica das formas e etapas próprias dos países adiantados.

Ao contrário, a concepção do dualismo estrutural supõe - implícita ou explicitamente - que os países latino-americanos devem- se desenvolver por imitação do processo dos países capitalistas avançados, com iguais etapas, seqüências e características. Dá-se assim prioridade ao dinamismo dos fatores externos e visualizam-se e julgam-se as particularidades estruturais como desvios. A sociedade urbana é identificada com o desenvolvimento e a modernização, e a sociedade rural como sua inimiga. Não se estabelece unia correlação precisa entre o conceito de sociedade tradicional e o de socieda-

Page 147: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

ESTRUTURA SÓCIO-ECONÔMICA, PODER E ESTADO 171 de moderna, por um lado, e as situações sociais definitórias e explicativas de ambas, por outro; nem com as etapas sócio-econômicas fundamentais, também não são explicados os processos de transição de uma sociedade para outra. De fato, subestima-se o papel dos grupos sociais e das forças políticas.

Na América Latina existem desde a época colonial, acentuadas cada vez mais, grandes diferenças tecno-econôm'cas, sociais, políticas e culturais entre. regiões incorporadas em diversos graus ao sistema internacional; regiões relativamente desenvolvidas e atrasadas; zonas urbanas ou rurais; elites urbanas e rurais e massas populares da cidade e do campo; populares indígenas e não-indígenas. Esta constatação é exata em termos gerais, mas exige ser qualificada e enriquecida. Os dois pólos da sociedade integram um mesmo processo histórico. São partes diferentes mas dialéticamente relacionadas de um mesmo sistema capitalista dependente, apêndice das potências metropolitanas. As relações entre os dois setores representam o funcionamento de uma só sociedade global, por eles integrada de modo contínuo ou descontínuo. Há penetração e influência mútuas, através da interdependência conflitiva mas estreita. A sociedade global oscila entre os dois pólos, embora o "moderno" tenda a prevalecer. As estruturas, os processos e os seres humanos não organizam sua existência, ação e consciência, relacionando-as alternativamente aos dois pólos do suposto dualismo estrutural. Na realidade, dá-se uma dialética entre o tradicional, degradado, e o moderno, emergente pela interação entre os determinantes e condicionantes externos e as mudanças internas, da qual surge o sistema tal como é, conflitivo e instável. Um dos fatores que explicam o papel predominante do Estado na América Latina é precisamente a necessidade de ajustar ordenar reciprocamente e manter em precário equilíbrio elementos heterogêneos e divergentes que configuram o desenvolvimento desigual e combinado. Finalmente, parece mais adequado falar de relações de colonialismo interno, em que uma parte explora a outras e ambas resultam satelizadas em grau diferente pelas metrópoles. Estas relações supõem integração mútua, excluindo assim a marginalidade recíproca.

4. PADRÕES CULTURAIS E IDEOLOGIAS

Os padrões culturais e a ideologia que emergem e tomam forma durante este período combinam traços provenientes da estrutura tradicional com outros determinados pela dependência externa. A oli-

172 FORMAÇÃO DO ESTADO NACIONAL garquia agromineira-exportadora e a elite urbana a ela ligada exercem uma influência derivada de suas próprias características e do modelo de desenvolvimento que importam e aplicam.

Page 148: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

A oligarquia rural impõe um sentimento de idolatria da terra, como fonte e manifestação de riqueza, poder e hierarquia. Manifesta seu desprezo pelo trabalho manual, a técnica, o comércio, a indústria, o risco, a aplicação econômica direta e o mercado interno. A cultura é considerada como produto exótico, indigno de interesse e proteção, salvo em suas formas superficiais e de ornato. Aos padrões e atitudes senhoriais e paternalistas, a oligarquia alia um sentimento localista , um patriotismo calculista que tendo ao isolamento e desconfia dás inovações. Isto se combina, de forma aparentemente paradoxal, com a desconfiança nas forças internas e a procura crescente do impulso e dos recursos externos para o crescimento econômico.

As elites e as camadas médias cultas das cidades em parte assimilam os padrões culturais e ideológicos da aristocracia rural, e em parte exercem sobre eles uma influência modernizadora e europeizante. A cidade age como intermediária entre o país e o mundo metropolitano, e desde a independência, mas sobretudo depois, torna-se agente e canal da penetração estrangeira, contribuindo assim para romper, o relativo isolamento cultural e ideológico.

A europeização aparece e funciona como interpenetração de culturas, propugnada, orientada e aproveitada pelos países industriais e as classes altas nativas, parte do processo de integração internacional, possibilitado e estimulado pela revolução tecnológica em marcha (transportes, comunicações). Neste processo, a oligarquia rural-urbana age a partir de seu controle sobre o aparato produtivo, ligações com o exterior, acumulação de riqueza e poder. Conserva inicialmente certo nacionalismo nos costumes, práticas e idéias, que reforça por influência da vida política e institucional interna. A europeização de início é adaptada aos hábitos e idiossincrasias locais, mas vai impregnando-as e modificando-as. O cosmopolitismo cultural e a - alienação ideológica para o estrangeiro terminam por prevalecer.

A civilização européia e logo a norte-americana exercem uma fascinação hipnótica nos grupos altos e médios relativamente cultos. O desenvolvimento do respectivo país é identificado como sua europeização ou norte-americanização. Surge um culto fanático ao progresso, mas com ênfase em seus aspectos puramente materiais. O dinheiro, a opulência e o poder tornam-se critérios prioritários de valor. A civilização é concebida como importação mecânica a adoção servil de técmcas, inventos, sistemas de trabalho, regimes poli-

ESTRUTURA SÓCIO-ECONÔMICA, PODER E ESTADO 173 ticos, reformas legislativas, ideologias, métodos educativos, quadro de valores, modas, padrões de consumo e de prestígio. Também nesta esfera a mentalidade de consumo predomina sobre a de produção, a adoção de fórmulas sobre a aquisição de métodos de conhecimento. O que surgirá em definitivo é uma construção intelectual híbrida, carente de solidez, coerência e sentido nacional; uma cultura importada que não haja sobre a base interna para lhe dar força, mas que constribua para frear ou debilitar esta base.

Page 149: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

A cultura do capitalismo liberal proporciona às elites nacionais o conteúdo e o quadro de seus pensamentos e ações. As principais contribuições são: algumas tradições revolucionárias da França e Estados Unidos; a industrialização, o livre câmbio e o sistema institucional da Grã-Bretanha; o constitucionalismo racionalista de Guizete Constant; o utilitarismo jurídico de Benthan; a filosofia social de Saint-S'mon e Leroux; o positivismo cientificista. Desta bagagem heterogênica selecionam-se os elementos combinados de uma democracia ela aristocrática no político e de um externo liberalismo no econômico.

Por um lado, a democracia é concebida como governo dós melhores. A participação política das massas populares leva à anarquia, devendo portanto ser eliminada ou fortemente restringida. Naturalmente, esta decisão requer ideologias justificatórias. O preconceito de classe combina-se com o racial. Proclama-se a superioridade do sangue espanhol, latino e saxão, e da pele branca sobre os grupos crioulos, indígenas e negros, condenados por uma falta biológica à degradação física e mental, estupidez, incapacidade de trabalho, irresponsabilidade. Assim tornam-se justificadas e desejáveis a dominação e exploração destes grupos subordinados às elites. A imigração de elementos europeus é concebida como operação regeneradora da população nacional, atuando também como parte e reforço da europeização cultural e ideológica.

Por outro lado, o liberalismo econômico assimilado indiscriminadamente leva a desconfiança rumo a um Estado forte, centralizado e intervencionista (sem prejuízo de poder controlá-lo e usá-lo para fins particulares): e a subestimação da administração e de seu papel possível no acúmulo nacional e no desenvolvimento econômico.

A elaboração, o manejo e o controle da cultura e da ideologia realizam-se por e para grupos minoritários. As grandes maiorias' nacionais resultam quase totalmente marginalizadas, no entanto protagonista e beneficiarias do processo cultural ideológico. Tudo isto se cumpre mediante uma série de instrumentos e mecanismos, entre os

174 FORMAÇÃO DO ESTADO NACIONAL quais se destacam: os grupos intelectuais, a Igreja, a educação o a imprensa.

A oligarquia cria e desenvolve grupos intelectuais orgânicos no seu próprio seio, incorpora outros estratos nacionais e imigrantes, e ao mesmo tempo utiliza categorias preexistentes de intelectuais tradicionais (a Igreja), introduzindo em ambos uma crescente especialização, relativa. Ambos os tipos de grupos intelectuais influem sobre a atividade geral da oligarquia, proporcionam-lhe suas elaborações mais extensas e complexas. Dão-lhe homogenidade e

Page 150: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

consciência de si mesma e de sua função, nos planos econômicos, social, político e cultural. Criam, conservam e irradiam a concepção do mundo que corresponde a seus interesses e aos do sistema, e a modificação para, absorver as trocas inevitáveis. Trazem-na os quadros para as tarefas diretivas e organizativas na sociedade civil e no Estado. A disponibilidade de intelectuais, sobretudo aqueles do tipo orgânico, reforça o prestígio, o poder da oligarquia e o consenso da maioria quanto ao direito material daquela para dominar, decidir e administrar, o que lhe permitirá assim mesmo conservar um quase-monopólio. cultural e ideológico ainda depois que sua dominação sócio-econômica e, política se debilite.

O papel da Igreja como núcleo de intelectuais tradicionais requer consideração especial. Aquela constitui uma instituição e uma ideologia, do tipo supranacional e universalista. Tem espírito de corpo, consciência de sua independência, quadros próprios e privilégios especiais. Exerce um monopólio tradicional de funções intelectuais, e da elaboração, manipulação e transmissão de cultura. A esse monopólio,. surgido e reforçado no período colonial, a Igreja latino-americana agrega, como caracteres influentes, os que derivam de sua fossilização na matriz peninsular, e de sua conseqüente identificação com o espírito misoncísta da contra-reforma. Produzida a independência, o monopólio cultural-ideológico da Igreja e o direito de sancionar penalmente a quem pretender lhe resistir ou iludir debilitam-se e ameaçam desaparecer. Como relíquia do passado colonial, a Igreja entretanto conserva vitalidade e poder no novo sistema, resiste à extinção ou ao relegamento a posições secundárias, e não tolera que desapareçam as estruturas que a geraram e reforçaram. Opõe freios econômicos, sociais, políticos e culturais aos processos de mudança acelerada e às tentativas inovadoras. Contribui com a manutenção de crenças, valores, atitudes e instituições que estimulam o autoritarismo, a resignação, o conformismo, em prejuízo do desenvolvimento econômico, da mudança social e da participação política. A Igreja alia-se a oligarquia, que a soma ao próprio gru-

ESTRUTURA SÓCIO-ECONÔMICA, PODER E ESTADO 175 po de intelectuais orgânicos, e a qual, a primeira traz sua tradição unificante e conservadora. Isto não exclui o surgimento de choques entre grupos oligárquicos liberais, especialmente as elites urbanas, e a Igreja, em torno dos problemas e exigências da integração internacional, modernização e secularização. Os atritos e conflitos se produzirão mais acentuadamente ainda e com as camadas médias que começam a surgir no sistema tradicional.

O peso dos grupos intelectuais do tipo orgânico impede ou freia o surgimento de outros novos e relativamente independentes. As profissões liberais, a literatura, a arte e as ciências permanecem debaixo da oligarquia e de seus apêndices ligados aos latifundiários, a elite urbana, os interesses estrangeiros e o clero. Esta situação, entretanto, tende a ir-se modificando mais adiante, à medida que avançam o desenvolvimento e a diversificação da estrutura socioeconô- mica e que a pressão de novas forças começa a modificar o equilíbrio tradicional.

Page 151: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

O sistema educativo configura-se sob o signo de uma contradição. Os líderes da emancipação e da organização buscam a criação de uma sociedade moderna em todos os aspectos, inclusive o cultural. Este projeto reflete-se nas condições criadas pela dependência, o desenvolvimento desigual e combinado e o regime oligárquico e modifica-as. A educação, a ciência e a tecnologia, a cultura em geral, sofrem as conseqüências do desenraizamento com relação à realidade, à nação e às maiorias populares.

A dependência externa de técnicas e produtos industriais de Consumo e equipamento, a deformação de uma economia superespecializada na monoprodução primária, o atraso industrial, a abundância de mão-de-obra barata e submetida carecem de estímulos para a criação e o progresso de formas diversificadas e modernas de produção, de uma ciência e uma tecnologia próprias, e para o aumento da produtividade. A educação e a cultura dão ênfase a um pseudo-humanismo e a uma pseudofilosofia sem aplicação prática. Menosprezam o manual, o técnico e o concreto. Mostram-se ignorantes ou indiferentes em relação aos problemas e pré-requisitos do desenvolvimento econômico e da mudança social. Carecem de criatividade e de eficácia para conhecer e -transformar a realidade. O colonialismo faz consigo o desinteresse por um estudo profundo dos aspectos específicos e possibilidades potenciais do respectivo país. A atitude cosmopolita e alienada substitui a criação interna pela recepção de uma cultura para as minorias com forte imitação dos modelos e materiais provenientes da Europa e dos Estados Unidos. A oligarquia considera no seu foro íntimo as manifestações

176 FORMAÇÃO DO ESTADO NACIONAL elaboradas de cultura como exotismos indignos de interesse e proteção. Esta situação reflete-se no ensino em todos os níveis.

O ensino universitário organiza-se e funciona, para a oligarquia e o estrato superior das camadas médias, como instrumento de hegemonia na sociedade civil e no Estado que satisfaça, além disso, os limitados requerimentos de profissões liberais. Especializa-se na formação de certos profissionais nos quais incute um espírito de, subordinação face à oligarquia, aos interesses estrangeiros e ao sistema vigente e uma acentuada despreocupação pelo bem-comum e o interesse nacional. A especialização torna privilegiada a produção de juristas, médicos, engenheiros e arquitetos. Os juristas são destinados ao governo, à organização interna, às relações com a metrópole, aos conflitos entre os grupos oligárquicos, e destes com as camadas médias e populares. Os médicos devem cuidar da saúde das classes altas e criar e manter condições normais mínimas para a produtividade do trabalho e a recepção de imigrantes e investidores estrangeiros. Os engenheiros e arquitetos devem tomar a seu cargo a realização de casas suntuosas, obras públicas e de infra-estrutura. O sistema educativo das universidades é dogmático e escolástico, carece de inspiração e de aptidão inovadora.

Page 152: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

A ênfase na educação universitária e de forma limitada e subordinada na intermediária é acompanhada de uma privação quase absoluta de educação e cultura para as grandes massas urbanas e rurais e para o interior preterido e colonizado. A cultura oficial, aristocrática e afastada do povo não incorpora seus elementos mais fortes e talentosos. A cultura dominante superpõe-se às subculturas populares e regionais, mantidas na subordinação e marginalidade.

A imprensa desenvolve-se sob o estímulo da integração internacional, do crescimento das grandes cidades e de seu hinterland imediato, e da diversificação das estruturas socioeconômicas, políticas e culturais. Desde aproximadamente 1860 começa a publicação de diários regulares em número considerável. Em alguns dos países latino-americanos, a oligarquia e seus governos exercem monopólio total sobre a imprensa. Em outros Argentina e Chile Exemplo mantém-se uma liberdade de imprensa relativa. Esta é de fato controlada pela oligarquia, à qual pertencem seus proprietários e seus principais redatores. É necessária para as lutas pessoais e de clãs no seio da própria oligarquia, e para combater seus inimigos. A imprensa oficial acha-se em condições de igualar os órgãos opositores. Uma imprensa relativamente livre é indispensável para a propagação da ideologia oligárquica-liberal e para a di-

ESTRUTURA SÓCIO-ECONÔMICA, PODER E ESTADO 177 fusão do pensamento e dos movimentos econômicos e políticos da Europa e Estados Unidos, que interessam ao sistema e à classe e grupos dominantes.

5. ESTRUTURA E DINÂMICA DO ESTADO NACIONAL

O Estado nacional que se constitui a partir da emancipação reflete a nova situação de satelização, a estrutura sócio-econômica e o clima cultural-ideológico em emergência, mas é também agente, ativo que contribui para a sua configuração.

O processo emancipador e o período subseqüente alteram o velho equilíbrio e a nova ordem tarda a surgir e se consolidar.

Os Estados nacionais vão-se constituindo desde o próprio começo da insurreição, embora isto seja dissimulado a princípio sob a ficção de lealdade a Fernando VII. São organizados inicialmente por elites urbanas, cheias de ideologia, em reação ao autoritarismo colonial carentes de experiência de governo. Estas fracassam na tentativa de harmonizar a teoria e a prática. Enfrentam as reações da aristocracia rural, temerosa que a ação governamental transtorne a ordem social tradicional, e a dos grupos médios e populares do interior, afetados

Page 153: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

pelas conseqüências econômicas e sociais da nova política liberal. Os primeiros governos revolucionários terminam sendo desgastados e substituídos pela anarquia, caudilhismo e regimes autocráticos.

Antes que isto ocorra, os novos Estados devem enfrentar as ameáças externas e os conflitos internos, assumir a direção da luta político-militar, organizar e administrar uma socideade em fluxo. A seu cargo estão a montagem de uma máquina administrativa e a criação, a partir de nada, de exércitos disciplinados e equipados, de tipo regular, aos quais se aliam recrutamentos populares e grupos guerrilheiros. Isto cria consideráveis necessidades de homens, materiais e dinheiro, e, portanto, de um sistema financeiro. Aos gravames de vários tipos sobre a população (impostos, contribuições forçadas, emissionismo monetário) cedo se alia o recurso ao crédito externo.

Os primeiros governos revolucionários assumem também a liquidação de alguns dos aspectos mais resistentes do regime colonial. Suprimem a Inquisição, o tributo indígena, o sistema jurídico de castas e corporações; limitam a escravidão; restringem e redefinem as funções de cabidos audiências. Organizam os poderes do Estado e suas relações com a Igreja e o novo exército. Finalmente, reorion-

178 FORMAÇÃO DO ESTADO NACIONAL tam as relações externas, definem uma diplomacia e uma política econômica, frente aos países vizinhos e frente às grandes potências que começam a intervir ativamente nos assuntos e processos internos.

O Estado começa a se estruturar e funcionar em condições de desequilíbrio generalizado. A força de trabalho, por si própria pequena, é mais reduzida ainda pelos recrutamentos militares, limitação da escravidão, desordem social; torna-se escassa e pouco produtiva. Destruições materiais e perdas humanas se produzem em grandes extensões do território. Para algumas regiões, a independência significa a perda das relações e vantagens econômicas que gozaram sob o sistema colonial, e uma crescente deterioração por impacto do novo regime livre cambista. Surgem ou se agravam conflitos sócio-econômicos entre: interesses regionais, setoriais e de classe; a capital e o interior; as cidades e o campo; livre cambistas e protecionistas, comerciantes e artesãos; criadores e agricultores; proprietários e assalariados. Estes conflitos se expressam em termos político-ideológicos e institucionais como antagonismos que se contrapõem: transformadores radicais e reformistas graduais; conservadores e liberais; republicanos e monárquicos; aristocratizantes e democratas; católicos e livre pensadores; unitários e federais; nacionalistas e cosmopolitas; civis e militares. Atrás da gama de expressões político-ideológicas, frequentemente superpostas ou entrecruzadas, opera a luta de classes e grupos pelo controle do Estado, como chave da política econômica, dos recursos, da eleição e imposição de um determinado tipo de configuração estrutural e de desenvolvimento.

Page 154: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

A isto corresponde na quase-totalidade dos países latino-americanos - com a exceção do Brasil e Chile - um longo período de anarquia e guerras civis, e a emergência de caudilhos locais, regionais e nacionais. O tipo dominante, embora não o único, do caudilho é o grande latifundiário que, para a afirmação de seus interesses pessoais e de grupo, e por reação à inoperância ou à hostilidade do Estado central, reforma o sistema de poder. Para isso mobiliza e lidera seus iguais e as massas populares sacudidas pelas guerras independentistas e pelos conflitos internos entre facções e atingidas pela nova política liberal e penetração estrangeira: pequenos e médios fazendeiros e comerciantes, artesãos, peões, antigos combatentes. Os componentes desta base, social de massa estão ligados por laços de lealdade pessoal direta ao caudilho, expressão de uma identificação real ou fictícia de interesses. O caudilho pode utilizar esta função dirigente e mediadora que lhe é conferida para se voltar ao poder regional e local ou para pretender a obtenção e o exercício do poder

ESTRUTURA SÓCIO-ECONÔMICA, PODER E ESTADO 179 nacional. Do caudilhismo e contra ele surgem ditaduras pessoais que tendem a impor uma ordem social unificada.

O Estado nacional emerge e constitui-se através de um lento e, penoso processo, até se afirmar como expressão da sociedade nacional em vias de se organizar como regulador das relações entre as classes e grupos nacionais e entre o país e as metrópoles, e como chave e instância definitiva da hegemonia. Este processo ocorre com consideráveis diferenças de ritmos, traços e peculiaridades entre os diferentes países latino-americanos. Simplificadamente, pode-se fazer uma diferenciação fundamental entre os países produtores de bens com grande demanda internacional e aqueles com produções marginais ou carentes de interesse para as metrópoles. A seguir se examinará os países do primeiro tipo. Chile, Argentina, Brasil e México.

Os pré-requisitos, tarefas e resultados do processo referem-se a: constituição e objetivos de uma classe ou de frações dominantes e hegemônicas; obtenção das alianças efetivas; própria construção da ordem político-institucional e suas modalidades de operação; funções de institucionalização, coação social, educação e propaganda, organização coletiva e política econômica, e relações internacionais.

CLASSES E FRAÇOES DOMINANTES E HEGEMÔNICAS Em primeiro lugar, uma classe dominante, ou várias frações componentes da mesma, em controle do aparato produtivo, com organicidade e bases próprias, e em função das relações e alianças internas e externas com setores subordinados da própria classe, com as classes dominadas e com as metrópoles, impõem sua própria hegemonia, suas formas de poder e de autoridade, um sistema político-institucional legitimado, e obtêm o consenso e a submissão das classes o grupos restantes.

Page 155: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

O sistema político-institucional e o Estado se organizam a partir de e para uma economia agromineira-exportadora, por e em benefício dos grupos dominantes que a controlam e beneficiam-se com seu funcionamento e expansão. O sistema é expressão e instrumento de latifundiários, comerciantes, financistas, dirigentes políticos o militares e profissionais, de tipo nacional; e de comerciantes e investidores estrangeiros. A aliança básica dá-se entre produtores de bens para o mercado internacional, exportadores e importadores, e financistas. Os objetivos básicos do sistema político e do Estado são: a consolidação e extensão da hegemonia e da estrutura sócio-econômica na qual se baseia; a criação de possibilidades para um crescimen-

180 FORMAÇÃO DO ESTADO NACIONAL to dependente em regime de economia liberal, para a incorpora sistema internacional e para uma modernização restrita.

AS ALIANÇAS

A classe ou fração hegemônica estabele uma rede de alianças externas e internas. Às primeiras fez-se referência ao analisar-se a dependência externa (capítulo IV). Outra exigência fundamental refere-se à obtenção de um acordo básico com grupos subordinados ou marginais das classes dominantes (oligarquias regionais). Este segundo tipo de acordo explica-se por várias razões convergentes. Assegura a oferta de recursos e produtos que interessam ao mercado interno, para uma parte da produção primária nacional e para os bens importados do exterior. Permite impor o sistema político e um Estado nacional viável sobre a totalidade do território, o que tem ao mesmo tempo importância imediata e potencial, em projeção para o futuro. Outorga ao Estado nacional, e a quem o controla e exerce, uma representação nacional efetiva frente às metrópoles e à economia in- ternacional, satisfazendo assim exigências ineludíveis do comércio exterior e dos investimentos estrangeiros. Assegura a ordem e o regime de propriedade, e um regime adequado para a mão-de-obra nas regiões submetidas às oligarquias regionais. Amplia o volume e o controle dos recursos nacionais: rendas fiscais; reservas militares; fontes de matérias-primas e energias; mão-de-obra; tudo isto tanto para o sistema produtivo como para o Estado (administração, forças arma- das). Permite a delegação parcial do poder político nacional para os níveis e órgãos regionais e, locais, o que é determinado pelo peso próprio das oligarquias do interior e pela precariedade inicial do aparato administrativo central. Todos estes fatores levam à elaboração de um jogo de alianças e de um sistema político que permita combinar a satisfação prioritária dos interesses hegemônicos com certa consideração e satisfação das demandas e pressões dos grupos dominantes secundários, e inclusive de grupos dominados. Em relação aos primeiros, isto se produz pela co-participação nas novas possibilidades de riqueza, poder e prestígio. O próprio progresso econômico une os grupos dominantes. A divisão regional do trabalho reforça as interdependências. A paz e a estabilidade são indispensáveis para a expansão das forças

Page 156: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

produtivas internas com fins de exportação e para a atração do comércio exterior e das inversões es- trangeiras. Em relação aos grupos dominados, a imposição coativa combina-se em alguns casos com benefícios parciais provenientes da

ESTRUTURA SÓCIO-ECONÔMICA, PODER E ESTADO 181 mesma expansão: incorporação promovida ou aceita, através de vigorosa seleção, de adventícios crioulos ou imigrantes com talento e êxito; aumento da ocupação laboral no Estado e na economia privada.

A ORDEM POLITICO-INSTITUCIONAL: CONSTITUIÇÃO E FUNCIONAMENTO

Para a construção da ordem político-institucional importa-se o modelo europeu e norte-americano de soluções políticas, instituições, textos constitucionais e legais, a cujas fontes inspiradoras antes fez-se menção. Este se refere a um tipo de Estado independente, centralizado, baseado na soberania popular e na democracia representativa. A adoção deste modelo pelas elites é explicável por várias circunstâncias confluentes: o prestígio dos países de origem corno paradigmas de progresso e civilização; a formação intelectual e a alienação ideológica das elites crioulas; a identificação do liberalismo econômica com o político; a crença de que a democracia liberal contribui para a obtenção da legitimidade e de consenso de massas; a confiança em que o peso do próprio poder dos grupos dominantes e da estrutura sócio-econômica vigente limitaria o alcance do sistema democrático formal.

O modelo é importado e adotado mais como fórmula mágica que como método autônomo e criativo de conhecimento e de ação. Não é a expressão real e orgânica de um processo e de forças sócio-econômicas internas, que tendam a um desenvolvimento capitalista independente e auto-sustentado. Não é também resultado nem fator das transformações sócio-econômicas, políticas e culturais que foram pré-requisitos e concomitantes do modelo importado em seus países de origem. No momento da incorporação daquele esquema, predominam na América Latina os grupos, interesses e conteúdos tradicionais. Não existe urna burguesia capitalista de tipo clássico. As camadas médias são débeis e dependentes. As maiorias populares estão submetidas a condições de exploração, atraso e marginalidade (sociopolítica e geográfica).

O sistema político-institucional é imposto de modo arbitrário e forçado a estruturas basicamente tradicionais, que em parte o rechaçam e em parte o refratam e deformam. Busca-se combinar a implantação de uma economia liberal (livre câmbio, iniciativa privada livre, direito de propriedade de tipo romanista, hierarquia social baseada no jogo de todos aqueles elementos) com a obtenção e vigência da estabilidade, segurança, legalidade formal, integração nacional,

Page 157: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

182 FORMAÇÃO DO ESTADO NACIONAL democracia representativa, a supremacia e eficácia de um Estado centralizado que não interfira no jogo irrestrito das forças econômicas e sociais. O modelo ideológico e as formas institucionais chocam-se com as estruturas e práticas reais. As constituições, as leis, as instituições formulam-se e são acatadas, mas não se cumprem, ou adquirem uma dinâmica própria que se afasta em grau variável do esquema teórico. O maior impacto neste campo provém de alguns as- pectos e implicações do próprio modelo geral: particularmente, da dependência externa, da estratificação de classes e dos agudos desníveis sociais e regionais.

O princípio da soberania estatal alcança vigência limitada e conserva em grande parte caráter de ficção, pela influência de fatores que a limitam e dispersam de fato. O poder real continua concentrado em mãos de minorias restritas, de grupos altos, regionais, nacionais e estrangeiros. Assinalou-se já a tendência da propriedade latifundiária a se constituir em unidade sócio-econômica semifechada e autárquica, e a limitar em conseqüência a soberania interna do Estado. Também se indicou a tendência desnacionalizante e limitativa da autonomia política nacional que provém da relação de dependência e do poder e ingerência interna dos interesses estrangeiros. Estas tendências são ainda mais favorecidas pela instauração de um regime de liberalismo extremo, que implica um mínimo de interferência no sistema econômico e na iniciativa privada, e, portanto, uma proteção ao mesmo tempo automática e deliberada dos grupos dominantes e privilegiados.

Os pré-requisitos e mecanismos da democracia representativa são desvirtuados. O exercício do poder social e político é monopolizado de fato, e em parte de direito, pelos grupos superiores do campo e da cidade, que têm controle real e a representação formal das massas camponesas e urbanas (caciquismo, caudilhismo, semi-servidão, clientelismo) . A isto os grupos dominantes aliam certa co-participação subordinada das camadas médias urbanas. Ao contrário, a participação popular é inexistente ou muito limitada.

À ação das situações sociais indicadas somam-se o impacto das condições econômicas e técnicas, da inexistência ou precariedade dos meios de transporte e comunicação material e cultural, e da escassez de recursos e instrumentos à disposição do Estado. Apesar do seu alto grau de coesão, a própria classe dominante não está perfeitamente unificada. Em seu seio, grupos e facções competem pelo poder, força material, riqueza e prestígio. Em suas estratégias e táticas, recorrem aos jogos de coalizões com outras divisões e segmentos sociais e regionais. No próprio interior da organização estatal coexis-

ESTRUTURA SÓCIO-ECONÔMICA, PODER E ESTADO 183

Page 158: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

tem precariamente estruturas diferentes - político-administrativas, e classistas, de clãs, familiares, clientelísticas - em relativa incompatibilidade e com multiplicidade de oposição entre segmentos e hierarquias, poder central e poderes de pólos alternativos, valores aristocráticos o democráticos.

O Estado integra parcialmente as diferentes forças e ordens, apresenta-se como seu ponto de interseção e de equilíbrio instável. Carece de meios e condições favoráveis para a concretização da unidade efetiva. Só lenta e dificultosamente, e de modo limitado, consegue constituir e impor sua supremacia sobre os poderes setoriais, regionais e locais. Para superar estas dificuldades, como reforço e contrapeso, procura criar uma rede de agentes e representantes diretos nas regiões e zonas de resistência autonomistas ou, então, procura soluções de compromisso, como a associação com os dentetores de poderes locais, ou a delegação de funções e faculdades em órgãos provinciais.

A soberania territorial do Estado vai sendo reconhecida, mas suas limitações subsistem. Seu poder conserva caráter segmentário e difuso. Não pode impor suas instituições, normas e decisões sobre todo o território e sobre os setores da sociedade. Sua autoridade vai desaparecendo à medida que pretende atingir as regiões afastadas do centro, e coexiste com focos de poder setorial e local que controla de forma meramente relativo. Tarda inclusive a adquirir e usar o monopólio absoluto da violência legítima. A integração nacional não se completa, a centralização político-administrativa permanece inacabada e vulnerável. O conjunto da vida coletiva tarda em se organizar. Sob o manto da unidade nacional ou de um federalismo formal e frouxo, subsistem as tendências centrífugas, os direitos particulares, os perigos de ruptura e secessão. No processo de constituição e imposição da unidade nacional e das sua centralização e supremacia, o Estado dá lugar considerável ao empirismo. Cria-se o desenvolve-se a partir de unidades sociais e políticas pre-existentes, que não se pode abolir e sobre as quais vai estabelecendo suas próprias estruturas.

De forma geral, o desajuste entre as realidades socioeconômicas e culturais, por um lado, e a organização político-institucional, por outro, geram tendências quase permanentes à instabilidade, violência, anarquia, caudilhismo e autocratismo.

Uma observação é útil à compreensão da estrutura e dinâmica reais desta etapa histórica. Embora a atuação do Estado não coincida com o modelo ideológico importado da Europa Ocidental e dos Estados Unidos, isto não implica que ele tenha deixado de servir

Page 159: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

184 FORMAÇÃO DO ESTADO NACIONAL com eficiência aos grupos de interesses que o geram e instrumentam, nem que seu papel tenha-se tornado reduzido e débil. A oligarquia consegue e mantém forte controle político sobre o Estado, e sobre seus recursos e funções, utilizando-os em benefício próprio. Suas principais características foram analisadas nas páginas anteriores, especialmente nas correspondentes à sua estrutura de aristocracia paternalista, homogênea e coesa, com tendência à transformação em casta fechada, e forte poder real, baseado no controle do processo agro-exportador, das relações externas e das estruturas sociais; e culturais. Este poder oligárquico se expressa, é prolongado e reforçado pelo aparato político e estatal.

A oligarquia agro-urbana não compartilha, de fato, o poder com nenhum grupo a ela alheio. Em seu seio são recrutados o presidente, sua equipe imediata e sua caramilha, os legisladores nacionais, os governadores e legisladores das províncias e os funcionários Públicos superiores. Os rígidos critérios adscritivos para a pertença e o acesso à hierarquia de poder não excluem que ocasionalmente a oligarquia tenha uma incorporação seletiva de adventícios dotados de talento ou capazes de êxito econômico.

O domínio político da oligarquia é favorecido pela inexisténcia de partidos com programação de princípios definidos, ampla organização formalizada e extensa base. Os existentes, oficiais ou opositores, são partidos de notáveis, conglomerados de grupos personalistas e de clãs, que buscam assegurar a manipulação de mecanismos políticos, nacionais e locais. A máquina de governo é de fato o único partido viável e formal. Ambos se identificam como instrumento da classe e grupos dominantes; apóiam o presidente, sua equipe e sua camarilha, e são estruturados e dirigidos por eles. O surgimento e as projeções dos partidos de oposição são limitados pela emergência lenta, falta de organicidade e de auto-consciência dos grupos intermediários e dominados; pela subordinação e marginalidade das massas nacionais e dos imigrantes; pela rigidez do sistema político. Este limita o aparecimento e o poder irradiante de novas elites políticas com possibilidades e atitudes para se organizar, fazer-se conhecer nas massas populares e lograr sua adesão. Os partidos de oposição inicialmente aparecem mais como forças de crítica e resistência ao regime, do que de direção e oferta de alternativa. Por serem débeis e inoperantes não se constituem em séria ameaça para a oligarquia. Esta conserva por muito tempo plena liberdade de manobra, e não é induzida por nenhum desafio real a se modificar em si mesma e em sua conduta política. As disputas entre grupos oligárquicos podem-se desenvolver sem repercussão na estabilidade do sistema.

ESTRUTURA SÓCIO-ECONÔMICA, PODER E ESTADO 185

A unidade fundamental da oligarquia, na verdade, não exclui lutas pessoais, de clãs e de grupos de interesses pela obtenção e a repartição de poder, cargos públicos, privilégios e concessões. Os conflitos deste tipo são resolvidos pelo Estado e dentro dele de acordo com as

Page 160: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

alianças internas e externas, com as relações variáveis de forças e as próprias vicissitudes da luta. Duas situações básicas são possíveis a respeito: hegemonia quase aboluta de um grupo dominante sobre os outros; o equilíbrio mais ou menos estável de forças entre grupos distintos e facções, expresso em soluções de compromisso, provisórias ou duradouras.

Em qualquer dos casos, tende a prevalecer a concepção absolutista e centralista do poder executivo. O presidente, sua equipe e sua, camarilha elegem e controlam em maior ou menor medida os parlamentares nacionais, os governadores e legisladores das províncias, os dirigentes partidários e altos funcionários públicos, os juízes. Todos estes, por sua vez, manipulam o eleitorado, selecionam e impõem os homens adequados para enviar ao Congresso, confirmam e executam as decisões da elite de poder da qual são partes e apêndices.

O governo estrutura-se e opera como num campo cercado e os assuntos nacionais são manejados como problemas familiares, para servir e satisfazer a um círculo restrito de interesses particulares e de indivíduos privilegiados. A corrupção política e administrativa, o favoritismo, o nepotismo, a arbitrariedade são a regra geral, e dão-se por supostas. Isto se manifesta na repartição de cargos públicos e de possibilidades de enriquecimento; no uso de poderes de decisão e de manipulação de recursos e bens públicos (política comercial, financeira, monetária, creditícia, agrária, mineira) para acumulação privada de membros e grupos da oligarquia.

O sistema político em toda esta fase apresenta traços de ditadura unificadora para manter a ordem e a coesão, ou de democracia e participação restringida, ou então associa elementos de ambos os tipos. Baseia-se essencialmente na combinação da força clara e de um consenso em parte falso em parte real. O sufrágio é suprimido ou limitado pela violência militar e policial, os artifícios constitucionais e legais, a corrupção eleitoral, a compra e adulteração de votos, a anulação arbitrária de eleições desfavoráveis pelo Congresso. A participação política encontra também seus limites na estrutura sócio-econômica vigente e nas suas principais conseqüências. As grandes -maiorias nacionais, urbanas e rurais, sofrem as conseqüências dos baixos níveis de renda e alfabetização, da marginalidade generalizada, da sua submissão à manipulação política pelas elites e

186 FORMAÇÃO DO ESTADO NACIONAL para elas, da própria heterogeneidade sócio-econômica e cultural, e da carência de organização política autônoma. Os imigrantes, que em alguns países chegam em determinado momento a ser uma proporção considerável de população total, estão em posição ambígua. Se por um lado lhes dão a plenitude dos direitos civis, por outro carecem de direitos políticos. A legislação vigente não promove sua nacionalização. A rigidez do sistema político não estimula sua participação, eleitoral, pelo contrário torna-se um obstáculo. Os imigrantes têm por preocupação quase exclusiva o êxito

Page 161: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

econômico que permita um regresso triunfal às suas terras de origem. São indiferentes ou hostis à assimilação, ao gozo de cidadania e aos problemas nacionais. Não se incorporam de forma permanente e ativa à vida econômica, social e política. Seguem ligados pela origem, mentalidade e laços pessoais aos países europeus de que provêem. Reforçam a colaboração com grupos estrangeiros e com as potências hegemônicas. Não ameaçam o poder da oligarquia nem a ordem existente (com exceção dos trabalhadores militantes, portadores de tradições sindicais e políticas anarquistas e socialistas). Em geral toda a população urbana compartilha o desejo geral de enriquecimento e os sonhos de progresso e ascensão individuais, o que contribui para reduzir ou desviar a pressão política popular. A manipulação do Estado e do orçamento permite incorporar e burocratizar uma parte das camadas médias, que permanecem assim passivas ou predispostas a outorgar seu consenso à hegemonia oligárquica. As camadas médias do tipo em- presarial e profissional carecem de organicidade, maturidade e auto-consciência em grau suficiente para elaborar uma estratégia alternativa à da oligarquia e para proporcionar uma liderança efetiva às massas Populares.

Constituído deste modo, o Estado oligárquico cumpre funções e tarefas específicas de institucionalização, coação social, educação, organização coletiva e relações internacionais.

A INSTITUCIONALIZAÇÃO

O Estado institucionaliza a si próprio, os grupos e indivíduos, e as relações destes entre si e com o governo. Cria uma ordem político-militar e uma legalidade que regulam a aquisição, o exercício e a distribuição do poder, o monopólio e a organização da violência legítima, o funcionamento de uma sociedade estruturada sobre as bases de uma economia liberal dependente. A institucionalização propõe-se a promover e garantir a consolidação e expansão da, hegemonia do

ESTRUTURA SÓCIO-ECONÔMICA, PODER E ESTADO 187 setor agro-exportador e de seu controle sobre o sistema produtivo; a reorganização da sociedade para a vigência e eficácia do modelo escolhido de crescimento; o desenvolvimento regular do regime econômico e da integração no sistema internacional.

Um dos instrumentos básicos de institucionalização é a expedição de constituições, suas reformas e emendas; também importante é a sanção de códigos e leis sobre os principais aspectos da vida socio- econômica. Aplicam-se modelos importados da Europa e dos Estados Unidos, aos quais logo se somam inovações de origem local.

Page 162: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

A ênfase constitucionalista desenvolvida pela América Latina evidencia-se no fato de se haver expedido em um século e meio cerca de 200 textos deste tipo, o primeiro no México (1814). O constitucionalismo combina, como se viu, o respeito à forma com a desuaturalização prática de um espírito já por si limitado. Instituem-se regimes democráticos, republicanos e representativos, baseados na divisão de poderes e nos direitos e garantias individuais.

A divisão de poderes é um dos princípios abstratos do regime, constitucional, que vão sendo desvirtuados na prática. Os países latino-americanos herdam do passado e reforçam ininterruptamente a tendência à centralização e ao predomínio do poder executivo. O presidencialismo instaura-se com maiores poderes que no sistema, norte-americano. O reforço do órgão executivo é ao mesmo tempo determinado por uma longa tradição de origem colonial, e pelas exigências confluentes da integração nacional e social e da hegemonia oligárquica. Por motivos semelhantes, o regime parlamentar não se adapta às realidades nacionais e fracassa, com exceção dos caos, chileno brasileiro. O Congresso tem um papel débil e subordinado em relação ao Poder Executivo, exceto no que se refere ao Senado, que tende a funcionar como reduto das oligarquias regionais.

Todas as constituições estabelecem um Poder Judiciário independente, cuja organização inspira-se no modelo norte-americanos, mas que aplica sistemas jurídicos europeus. A magistratura dos países latino-americanos exerce cautelosa e limitadamente o controle da constitucionalidade das leis. É tímida e complacente frente ao Poder Executivo e ao Legislativo. Resiste a julgar e a invalidar seus atos e leis e a limitar sua discricionalidade. Declara por iniciativa própria sua incompetência em matérias políticas. Aceita as delegações de poder em favor do presidente e faz uma interpretação geralmente extensiva das suas faculdades e avanços sobre as liberdades públicas e direitos locais. Inclina-se cada vez mais a tolerar e confirmar os governos "de fato".

188 FORMAÇÃO DO ESTADO NACIONAL

Alguns países (México, 1824-1836 e de 1857 em diante; Argentina, desde 1853; Colômbia, 1863-1886; Venezuela, 1884; Brasil, desde 1889), adotam o sistema federativo como forma de harmonização e equilíbrio entre os particularismos regionais e locais e a vigência de um Estado nacional unificado. O federalismo formal vai evoluindo para a centralização e o unitarismo de fato, pela ruptura crescente do equilíbrio socioeconômico, demográfico e político no, e pela tendência à concentração de poderes no Estado federal. Na maioria das nações latino-americanas adota-se o sistema unitário. O regime municipal, no que se refere ao autogoverno e às liberdades locais, tem um reconhecimento limitado e uma vigência incerta.

Page 163: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

Os textos constitucionais incluem declarações enfáticas sobro direitos e garantias individuais. Estas, entretanto, referem-se sobretudo na letra e na aplicação às instituições do capitalismo liberal: propriedade privada, acesso formalmente aberto aos recursos produtivos; liberdade dó empresa e negócios; movimentos de pessoas, produtos e valores; contrato; herança. A rejeição do intervencionismo estatal constitui - tática e expressamente - um dos princípios fundamentais que inspiram o sistema político-institucional e jurídico. Os direitos políticos e sociais são ignorados ou subestimados na teoria e na prática O direito de sufrágio universal é restringido pela lei (analfabetismo; sistema de censo) e pelos fatos.

Os direitos trabalhistas e, sindicais são reconhecidos apenas no século XX. Os direitos garantidos pelo constitucionalismo liberal têm um duplo âmbito de atuação. Funcionam em tudo que se refere às relações da América Latina com as metrópoles, e dos grupos oligárquicos entre si e com os interesses estrangeiros. Não se aplicam quase ou nada às relações entre elites e massas, nem entre os centros modernos e as zonas interiores subdesenvolvidas. A maioria da população é privada de proteção estatal efetiva. que a de direito. A cidadania de fato é menor que a de direito. São mantidas, em certos aspectos agravadas, as relações opressivas e injustas (semi-escravidão, peonagem, meerias, pagamento em espécie, dependência por dívidas).

As codificações e outras reformas legislativas têm o mesmo sentido e limitações que o sistema constitucional básico. Eliminam as discriminações explícitas de raça e de casta. Impõem a igualdade perante a lei, suprimindo certos privilégios, títulos de nobreza, morgadios e honras hereditárias. Entretanto, estas diferenciações legais são substituídas na prática pelas formas de dominação e exploração de classe. Assim, o novo sistema legislativo tende essencialmente à regulacão de relações interindividuais ambiguamente liberais: instaura-

ESTRUTURA SÓCIO-ECONÔMICA, PODER E ESTADO 189 ção da plena liberdade de empresa e comércio; supressão de monopólios, de manos murtas e de amortizações.

COAÇÃO SOCIAL Dentro da função estatal de coação social destacam-se dois aspectos centrais. a criação do aparato administrativo e o papel das forças armadas.

Desde o início e de modo permanentemente decisivo, a oligarquia exerce na organização de uma máquina e prática administrativa um controle estrito quanto ao recrutamento para os postos diretivos ç a seleção de funcionários. Sua natureza e sua estrutura de classe, e de dominação, e o sistema do qual é parte e poder institucionalizado, imprimem características peculiares ao aparato administrativo que vai organizando.

Page 164: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

As etapas e características de tipo tradicional-patrimonialista confundem-se ou são entrelaçadas com as de tipo burocrático - no sentido weberiano - com predomínio das primeiras. O poder e a autoridade se personalizam. Sua atribuição e seu exercício estão baseados mais em critérios de tipo pessoal (status; pertencimento familiar, de clã e de classe; de dependência clientelística) que em critérios formais (competência, regulamentos explícitos). O aparelho governa- mental e administrativo recorre a notáveis e dignatários, mais que a funcionários propriamente ditos. O interesse e o domínio públicos separam-se lenta e incompletamente do interesse e domínio privados daqueles que assumem as funções estatais, ou que nomeiam e mantêm governantes e funcionários. De qualquer forma, o crescimento sócio-econômico e a crescente diversificação de atividades e exigências obrigam a uma certa modernização limitada do aparato administratívo.

Dentro das funções de coação social e do aparato de, governo e administrativo que se vai constituindo as forças armadas merecem tratamento especial.

O exército e a marinha de guerra surgem nas guerras da independência e nas lutas civis e situações anárquicas que aí aparecem, e que se prolongam por décadas.

A violência impregna o clima coletivo e torna-se princípio fundamental de arbitragem e decisão política.

Os primeiros chefes militares são membros idealistas e/ou ambiciosos das elites urbanas, intelectuais de uniforme semelhantes a seus iguais dedicados ao governo civil, diletantes entusiastas nos quais a paixão supre a falta de experiência prévia.

190 FOPMAÇÃO DO ESTADO NACIONAI Além desta primeira categoria, a prolongada guerra emancipadora' e o começo quase imediato das lutas civis vão criando outra, de combatentes profissionais, já definitivamente afastados da vida e atividade civis, acostumados a resolver todos os problemas pela força. Estes elementos perdem contacto com o povo e desiludem-se do radicalismo democrático-liberal dos primeiros tempos. Tendem a se irritar com os civis, que acusam de desfrutar privilégios e comodidades e de não prover adequadamente os exércitos de homens, abastecimento e dinheiro. Carecem de ideologia coerente. Suas, lealdades cívicas para o Estado se enfraquecem e são substituídas por outras de tipo militar, para a corporação e seus chefes. Aos oficiais veteranos de classe alta e média, acrescentam-se homens de origem popular, que aproveitam a atividade militar nos exércitos regulares e nas guerrilhas, onde não existem ou agem menos as discriminações so- ciais e étnicas, como meio de vida, de mobilidade social e de obtenção de riqueza e honrarias.

Page 165: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

A relação pessoal entre chefes e subordinados contribui para das base política ao caudilhismo militar. Este se nutre também em ou fonte. Os latifundiários unem o poder sócio-econômico ao que provém das armas. São altos oficiais nas guerras emancipadoras e civis, e com seus iguais e as levas camponesas criam suas próprias milícias rurais, e usam-nas para resistir às decisões políticas adversas e impor ás próprias.

Terminadas as guerras da independência, generais e oficiais ambiciosos procuram aproveitar sua força e experiência e a instabilidade anárquica, para conquistar uma posição privilegiada, conseguir e controlar o poder político, acumular riquezas, ascender na escala social. Chefes militares o forças sob seu mando tornam-se árbitros finais nos assuntos públicos e participam ativamente nas decisões. Exploram o descontentamento popular. São chamados por governantes civis para que os sustentem, e acabam por limitá-los ou substituídos, criando ditaduras militares personalistas. Carentes de situação social definida o de ideologia coerente, tendem ao alinhamento com a oligarquia, que os aproveita para consolidar seu poder e manter submetidos seus rivais e os grupos populares. Os generais e oficiais formam-se às vezes incontroláveis e criam-se bases e âmbitos próprios de poder. Mesmo nestes casos mantêm uma ideologia e uma atração de ortodoxia e conservadora; respeitam o sistema sócio-econômico e político, a oligarquia e a Igreja. Sua presença e sua ação possibilitam que, inclusive nos momentos de luta entre facções oligárquicas, não surjam vazios de poder que permitam intervenções violentas das mas-

ESTRUTURA SÓCIO-FCONÔMICA, PODER E ESTADO 191 Desde aproximadamente a segunda metade do século XIX as questões referentes ao papel do exército e à sua inserção no sistema são retraçadas e resolvidas por longo período. O progresso econômico acelerado exige uma ardem estável e geral e portanto um Estado centralizado que a imponha e mantenha em todo o território na cional. O desenvolvimento possibilita uma estreita aliança dos latifundiários com a elite urbana e a conseqüente solução temporária do problema da hegemonia. À necessidade de integração nacional e de paz interna alia-se a de assegurar e estender fronteiras nacionais, entre países que esperam um acelerado aumento de riquezas e população e que entram em conflitos fronteiriços. Estas tarefas requerem exército e armadas fortes, e determinam unia profunda transformação das forças armadas.

Os militares subordinam-se ao Estado, convertendo-se em corpo profissional, burocratizado e especializado. O exercício das armas transforma-se em carreira regular, submetida à disciplina rígida, remunerada normalmente com fundos públicos. Os que a exercem começam a se preocupar basicamente com Os saldos, promoções, pensões e reformas, e a levar uma vida militar ordenada. A especialização faz-se pelo treinamento científico por oficiais e missões de países adiantados (França, Alemanha, e mais tarde Estados Unidos, no Caribe), e em academias que se criam ou que são totalmente renovadas. Além disso, exércitos e armadas são dotados de armamentos modernos e custosos, e de uma base regular, provenientes do serviço militar obrigatório que age ao mesmo tempo como mecanismo de

Page 166: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

integração nacional. A oficialidade começa a ser recrutada na oligarquia, na nova burguesia ou nas camadas médias, segundo os países. A profissão militar adquire novo prestígio e converte-se em meio de ascensão social, intelectual e política. Seus princípios são, entretanto, por longo tempo, o apoliticismo, a defesa da ordem e a identificação com a oligarquia rural-urbana. Assim as forças armadas colocam-se em condições de cumprir várias tarefas fundamentais; pacificação interna e integração nacional, defesa externa, sustentação do sistema.

No que se refere à pacificação interna e à integração nacional, os caudilhos, já afetados pelo arranque do crescimento dependente, ação passam à defensiva, e logo vão sendo destruidos, substituídos ou incorporados em subordinação à oligarquia e ao Estado central. Seus recursos financeiros e humanos, de origem pessoal e local, e os obstáculos naturais tornam-se insuficientes frente a exércitos numerosos e disciplinados, dotados de armas modernas e que aproveitam a nova infra-estrutura de ferrovias e telégrafos. As forças militares irregula-

192 FORMAÇÃO DO FSTADO NACIONAL res ou locais passam a ser parte do exército regular centralizado. Este faz a conquista e a ocupação do espaço interno. Os indígenas são exterminados ou submetidos. Os trabalhadores rurais, livres e nômades, reduzem-se e resignam-se à condição de assalariados regulares. Um sistema de fortins fronteiriços vai marcando a crescente dominação do espaço vazio ou bárbaro e reforça o processo limitado de urbanização interna.

A defesa, redefinição e extensão das fronteiras externas, por necessidades atuais e para o progresso ilimitado que se espera, requerem também exércitos e frotas fortes, e desencadeiam corridas armamentistas. Ocorrem alguns conflitos armados de envergadura considerável, em que o choque de interesses nacionais junta-se às necessidades e estímulos de grandes potências, e que somam novos obstáculos aos projetos latentes de integração regional.

Finalmente, as forças armadas atuam também como guarda preteriana, para a defesa da ordem oligárquíca das pressões das camadas médias, populares e proletárias. Impõem e fraude eleitoral; reprimem as manifestações camponesas, operárias e políticas; são o braço armado das intervenções do poder central contra as regiões e províncias.

EDUCAÇÃO E PROPAGANDA

Page 167: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

As funções estatais de educação e propaganda são organizadas e exercidas a partir do controle oligárquico sobre os recursos e mecanismos de ensino, difusão e informação. Existe, entretanto, um choque de tendências, em parte convergentes, e em parte contraditórias.

Por um lado, a dinâmica da incorporação ao sistema internacional e à relação de dependência fortalece a tendência à europeização. Por outro lado, a oligarquia precisa conservar também uma base de manobra, para a exploração do sistema produtivo, a manutenção da coesão interna e da própria hegemonia, e o reforço de sua posição negociadora com os grupos estrangeiros e as grandes potências. Além disso, deve dirigir uma realidade nacional que tem sua dinâmica própria e suas tendências e exigências específicas. As necessidades de assimilação da massa de imigrantes combinam-se com as de afirmação frente e contra países vizinhos. Em certas conjunturas, o nacionalismo é utilizado como meio de limitar ou atacar a penetração de grupos estrangeiros e de uma potência estrangeira, em benefício de outros grupos e de outra potência. A dialétca do cosmopolitismo e nacionalismo não desaparece de todo, embora o primeiro prevaleça sobre o segundo por um período considerável, O nacionalismo

ESTRUTURA SÓCIO-ECONÔMICA, PODER E ESTADO 193 continua sendo estimulado pela confluência de vários fatores- persistência do localismo e do regionalismo; tomada de consciência das possibilidades nacionais; mito do progresso indefinido e do encontro do respectivo país com um destino determinado; dissimulação de conflitos internos; reação contra os imigrantes, vistos como competidores, dissociadores e corruptores das antigas virtudes autóctones. O exagero e a idealização dos recursos e qualidades nacionais não interferem com a satelização; ao contrário, impedem uma avaliação crítica das realidades e necessidades do país.

Já se fez referência às características e conteúdos da educação. Pode-se acrescentar agora que a atividade do Estado neste campo concentra-se na procura de soluções para a escassez de mestres (introdução do método lancasteriano de ensino mútuo; criação de escolas normais); na reorganização, modernização e laicização das universidades existentes, e na criação de novas e de escolas de nível universitário, assim como de museus, academias e institutos científicos. Entretanto, é necessário salientar que o Estado, apesar do clima positivista, mostra pouco ou nenhum interesse pelo progresso científico e tecnológico, salvo em seus aspectos militares. A análise da estrutura sócio-econôniica, política e cultural, que se fez anteriormente, contribui para explicar esta indiferença.

Também se mencionou o papel da imprensa, direta e indiretamente controlada pelo Estado, como instrumento de poder e de difusão ideológica. Cabe retomar agora a análise, anteriormente indicada, sobre o papel da Igreja, a qual deve ser considerada ao mesmo tempo como função institucionalizadora, de coação, e de educação e propaganda.

Page 168: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

O problema da situação institucional e da ação política da Igreja delineia-se desde a emancipação, que agrava e desnuda uma divisão interna já latente no último período do regime colonial. A hierarquia eclesiástica, em sua maior parte nativa da península, alia-se à Coroa, chave de seu poder e privilégios, e também beneficiaria da lealdade política que a Igreja promove. A independência é condena da como ímpia ou herética. O médio e baixo clero, em sua maioria nativo (crioulos, mestiços), apóia a independência e até mesmo se bate por ela (Miguel Hidalgo, José Maria Morelos, no México; Luis Beltrán, no Rio da Prata; Camilo Henríquez no Chile).

Consumada a emancipação, a Igreja perde o apoio da Coroa e sofre o golpe do anticlericalismo proveniente do último período colonial e da guerra independentista, ao qual se acrescenta agora o da ideologia liberal. Seu poder já não é incontestável, seus privilégios deixam de ser intocáveis, sua capacidade de repressão ou de recurso

194 FORMAÇÃO DO ESTADO NACIONAL ao braço armado do governo secular viu-se seriamente limitada. A Igreja é obrigada a se defender sozinha e, portanto, a entrar na luta política.

A primeira possibilidade que se dá é a aliança entre a Igreja e as forças e tendências conservadoras que emergem durante e depois da emancipação. Para estas, o catolicismo colonial e a Igreja representam uma ideologia coerente; uma estrutura institucional sólida e onipotente; uma tradição unificadora, hierarquizante e de ordem, contra os perigos provenientes de forças e instituições não enraizadas no passado, violentas e ameaçadoras para o equilíbrio social "natural". O alto clero se recruta na oligarquia. Os grupos conservadores e seus governos consolidam o poder e influência da Igreja (Diego Portales, no Chile; Juan Manuel de Rosas, na Argentina; Gabriel Garcia Moreno, no Equador; Rafael Núflez, na Colômbia).

A esta tendência contrapõe-se a de grupos urbanos modernizantes, que à tradicional hostilidade contra a Igreja incorporam os assomos anticlericais do liberalismo do século XIX. Este inclui, corno se viu, uma postura científico-positivista, que busca o progresso através da investigação empírica, e vê a verdade revelada como superstição e obscurantismo que ameaçam o progresso material, político e cultural. A liberdade intelectual é reivindicada como fator e resultado do desenvolvimento econômico. Ao relativismo religioso e ao espírito secular alia-se a rejeição do autoritarismo opressivo, culpável por submeter e manipular as massas. A ofensiva liberal cria seus próprios instrumentos. A maçonaria surge, entre outras razões, como resposta ao jesuitismo. O afluxo de imigrantes, que trazem religiões não-católicas e não-cristãs, implica ao mesmo tempo uma possibilidade de proselitismos alternativos e uma

Page 169: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

demanda de tolerância para a integração efetiva daqueles, que vão minando de fato, e logo de direito, o monopólio da Igreja oficial.

A luta entre católicos e anticlericais combina-se e mistura-se com outra mais ampla e profunda, entre conservadores e liberais. Torna-se prolongada e violenta em alguns países (Guatemala, Equador, Colômbia, México). O conflito é menor no Brasil, onde a tradição de forte submissão eclesiástica ao Estado provém do período colonial, e onde o clero é mais flexível e capaz de compromisso. A luta de grupos civis para reduzir ou suprimir o poder temporal, os privilégios econômicos e a influência sociocultural e política da Igreja, embora provenha geralmente de certos setores urbanos, e também assumida e chefiada por dirigentes e frações da oligarquia, em função das necessidades de promoção da supremacia política do Estado, de integração no mercado internacional, de mobilização de recursos econômi-

ESTRUTURA SÓCIO-ECONÔMICA, PODER E ESTADO 195 cos e de atração de imigrantes e investidores estrangeiros. Os principais pontos de conflito e de decisão podem ser agrupados do seguinte modo: I)Problemas vinculados com a soberania do Estado nacional. Uma longa querela trata de decidir se os direitos de patronato, antes correspondentes à Coroa metropolitana, passam aos novos governos americanos, ou tornam, ao contrário, à Igreja, que teria assim plena autoridade em assuntos religiosos e poderia impor uma interpretação teológico-clerical aos assuntos políticos. Somam-se a isto as disputas sobre a aplicabilidade direta, ou ao contrário estatalmente controlada, da legislação vaticana, e sobre a ingerência dos representantes papais na política interna. II) Problemas econômicos: imposição fiscal (o Estado continua ou não a perceber os dízimos da Igreja?); mobilização da riqueza eclesiástica (desamortização e confisco de bens de comunidades religiosas, ou sua supressão) . III) Abolição de foros e tribunais eclesiásticos. IV) Limitação do controle sobre a educação e a caridade; secularização de cemitérios, matrimônios, registro civil; leis de tolerância para hereges e infiéis.

ORGANIZAÇÃO COLETIVA E POLITICA ECONÔMICA Estado atua sobre a orientação, estrutura e funcionamento da atividade econômica e do sistema social, para possibilitar e assegurar o sucesso do modelo de crescimento dependente. Isto implica, desde meados do século XIX aproximadamente, uma decisão política definitiva em favor destes objetivos e uma série de decisões secundárias decorrentes. Estas decisões têm como conteúdo e implementação as seguintes tarefas: a) O setor produtivo prirnário-exportador herdado da etapa colonial é mantido sob o controle local e autônomo da oligarquia. Este setor é estendido e convertido em atividade fundamental e em principal de vínculo com as economias e Estados dos países adiantados e com o mercado internacional. b) Mantém-se e expande-se a disponibilidade de recursos produtivos para o setor agromineiro-exportador e para os grupos nacionais e estrangeiros que o controlam e exploram.

Page 170: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

Isto implica sobretudo a aquisição, a propriedade inviciável o uso irrestrito das terras e jazidas minerais. As concessões mineiras são outorgadas a investidores estrangeiros e empresários nativos

196 FORMAÇÃO DO ESTADO NACIONAL em condições excepcionalmente favoráveis. As terras fiscais, parte por imposições do governo e parte por pressão dos proprietários latifundiários, são vendidas a baixo preço, longo prazo e com requisitos para crédito pouco rígidos. Ao mesmo tempo o Estado faz ou confirma apropriações ilegítimas de terras em favor dos grandes proprietários, ás expensas dos camponeses crioulos e indígenas e das comunidades agrárias. As legislações que pretendem estabelecer certa legalidade e igualdade formais na distribuição de terras fiscais ou de colonização são desnaturalizadas na prática pela falta ou debilidade dos mecanismos governamentais de implementação e controle, e pelo peso dos grupos econômicos e politicamente dominantes nas lutas e decisões.

O Estado assume as tarefas de extensão das fronteiras internas e de conquista e ocupação dos espaços livres ou habitados por trabalhadores crioulos nômades e pelas tribos indígenas. Elimina desta forma focos de conflito armado, de pilhagem e destruição, e formas primitivas de produção e comercialização. Abre novas terras à apropriação e exploração privadas e à produção mercantil. Dá segurança definitiva às velhas e novas regiões rurais. Contribui para a expansão do mercado interno, da rede urbana secundária, e da mão-de-obra. Este último aspecto requer maiores detalhes.

Uma das mais importantes tarefas estatais nesta etapa reside precisamente no fechamento do acesso a recursos produtivos próprios, para os trabalhadores indígenas, crioulos e imigrantes. Na metade do século XIX vai-se produzindo uma aguda escassez de mão- de-obra, frente às crescentes necessidades criadas pelo começo do desenvolvimento para fora. A escravidão vai sendo abolida na América Latina e o tráfico negreiro da África é limitado cada vez mais efetivamente. Os libertos não querem trabalhar nas terras onde foram escravos e fluem para as cidades. Os trabalhadores resistem a substituí-los em terras insalubres, tarefas exaustivas e mal remuneradas. As conquistas do deserto e as marchas para o interior permitem não só a acumulação de terras nas mãos dos latifundiários, mas também o aumento da disponibilidade de mão-de-obra às custas das massas indígenas e crioulas. As comunidades indígenas são em parte exterminadas ou deslocadas à força para regiões marginais e inóspitas; ou então se tornam vítimas de enganos e despojos de todo tipo. Por outro lado, tenta-se assimilar um setor dos indígenas e os trabalhadores rurais crioulos às condições da produção capitalista. Isto implica adaptação a longas jornadas de trabalho, ao regime salarial (baixos níveis), a novos padrões de consumo, a novas atitudes face ao trabalho e ao sistema de empresa privada para o mercado, em

Page 171: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

ESTRUTURA SÓCIO-ECONÔMICA, PODER E ESTADO 197 troca de alimentação. Implica também acesso a outros benefícios da civilização, como o analfabetismo, o álcool, da droga, enfermidades ainda desconhecidas, o desprezo racial e classista, a marginalização.

A mão-de-obra nativa é insuficiente, em quantidade e em outros requisitos, e deve ser complementada pela de origem imigratória. Faz-se uma importação em massa de trabalhadores chineses no Peru, o em alguns casos e países tenta-se a de hindus e polinésios. A maioria corresponde, entretanto, à imigração européia, por movimentos espontâneos de agentes e companhias particulares, e do apoio governamental. Além disso, o Estado vai modificando a legislação a fim de facilitar a chegada e incorporação dos imigrantes (leis de secularização). A imigração européia contribui para criar condições para a inversão lucrativa de capitais nacionais e estrangeiros em terras, produção primária, infra-estrutura, serviços públicos, atividades comerciais, financeiras e industriais. Proporciona uma força de trabalho treinada e disciplinada. Valoriza de diversas formas as terras de latifundiários nativos e estrangeiros. Lavra e melhora terras até en- tão não exploradas ou submetidas a regimes primitivos de trabalho. Aumenta o preço da terra, ao lutar por sua propriedade ou arrendamento. Permite inversões rentáveis em empréstimos e hipotecas por parte de bancos e de agiotas particulares. Possibilita o desenvolvimento de uma produção primária, a baixo preço e grande escala, por parte dos consórcios agro-mineiros-exportadores. Cria um mercado adicional para a importação de bens de produção e de consumo provenientes da Europa e intermediados por grupos mercantis nacionais e estrangeiros. c) O Estado favorece a acumulação interna de capitais e a atração de recursos externos. O comércio internacional e doméstico, os fluxos de inversões e empréstimos, a infra-estrutura chegam a funcionar a como parte de um circuito único e contínuo. A própria constituição de um Estado centralizado e forte .1 a obtenção da estabilidade interna e da paz externa, a criação de instituições e leis adequadas a uma economia liberal são parte desta tarefa. O Estado desenvolve uma política econômica ambígua e de dúplice.

Por um lado, de acordo com a teoria liberal, supõe-se que o Estado não intervenha na regulação da vida sócio-econômica, e limita-se a criar os pré-requisitos para uma plena vigência do sistema de iniciativa privada e de mercado. Não é conveniente que estabeleça um sistema protecionista que limite o comércio e as inversões, mas que favoreça o livre fluxo de bens, capitais e pessoas de qualquer origem, do exterior e para lá, e dentro do território nacional. As organizações sindicais não devem se intrometer na atividade dos em-

198 FORMAÇÃO DO ESTADO NACIONAL presários nem no funcionamento automático do sistema econômico. Os impostos não devem gravar em excesso a riqueza privada. O governo deve abandonar toda empresa pública que possua e não adquirir ou explorar outras novas.

Page 172: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

Por outro lado, entretanto, o Estado assume uma vasta gama de responsabilidades e tarefas, já assinaladas e outras mais. Abre possibilidades à exportação primária, à importação de bens industriais e à inversão estrangeira. Outorga amplas garantias à vida, propriedade e empresas de estrangeiros, que promovem e viabilizem suas inversões e lhes assegurem o rendimento e a amortização. O comércio e os investidores das grandes potências são favorecidos por uma política alfandegária que estabelece tarifas diferenciais, cláusulas de nação mais favorecida, livre navegação de rios interiores, e concessões privilegiadas. Uma política semelhante por seu liberalismo permite que estes mesmos interesses, em aliança com a oligarquia nativa, detenham o controle e a exploração da intermediação comercial e financeira entre as economias metropolitanas e as regiões e zonas locais.

O Estado constrói e opera obras e serviços públicos, na infra- estrutura e no equipamento social básico, exclusivamente ou em co-participação com os grupos privados; ou então outorga concessões, garantias, subsídios e outros estímulos às empresas estrangeiras, que assegurem assim lucros elevados. Os benefícios desta intervenção estatal fluem para os latifundiários, comerciantes, investidores, especuladores, intermediários, advogados das grandes empresas. Ferrovias, estradas, obras sanitárias, gás, eletricidade e telefones constituem ao mesmo tempo um ponto fundamental de inversão estrangeira e um instrumento decisivo para a adaptação e especialização deformante das economias latino-americanas. Permitem incrementar a produção, comercialização e transporte de bens primários, e a importação e distribuição de bens industriais. As ferrovias valorizam as terras dos latifundiários e permite-lhes vender seus produtos; abrem novas regiões ao mercado de exportação; possibilitam o fluxo de populações para regiões afastadas ou desabitadas; contribuem para a liquidação das formas e grupos pré-capitalistas. d) O Estado desempenha papel decisivo no ordenamento do território e na urbanização.

Sua política estende, define e fixa as fronteiras externas. Ao mesmo tempo, expande a ocupação e exploração do espaço interno, através da Conquista militar e do estímulo à instalação de novas redes de transporte e comunicações. Soma-se a isto sua promoção das atividades agropecuárias e mineiras, da integração internacional e das migrações. Contribui assim para a diversificação relativa da estrutu-

ESTRUTURA SÓCIO-ECONÔMICA, PODER E ESTADO 199 ra produtiva, maior divisão regional do trabalho e surgimento e intensificação de fortes desníveis entre as diversas partes do país (privilégio de algumas zonas, postergação de outras).

As grandes cidades crescem por sua intermediação entre o interior e o mercado mundial, pela expansão comercial, concentração das inversões, infra-estrutura, imigrantes europeus e do próprio interior, diversificação de atividades, serviços e profissões. Tudo é, em grande parte, resultado da política estatal que se vem analisando. Esta também expande a ocupação

Page 173: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

burocrática no aparato administrativo, constrói edifícios públicos como marco físico de sua atividade uma aumentada, ou como expressão monumental do próprio poder e do da oligarquia. O aumento de população, o enriquecimento das oligarquias de residência urbana, a atração e absorção dos imigrantes europeus e de grupos e indivíduos do interior incrementam consideravelmente a construção privada. A urbanização é também reforçada pela fundação ou extensão de cidades interiores como sedes administrativas, militares e comerciais. e) A realização da política econômica e das tarefas que ela abrange aumenta as responsabilidades e obrigações do Estado e exige a montagem de um aparato político-institucional e de uma máquina que administrativa de certa envergadura e complexidade. Isto, por sua vez, causa a expansão dos recursos à disposição do Estado e a conseqüente reorganização do sistema financeiro.

A ação do Estado favorece o desenvolvimento econômico dependente, a expansão da produção exportável, o afluxo de inversões um estrangeiras, e como resultado ingresso de divisas, o que ocasiona a possibilidade de continuar aumentando a capacidade de contrair empréstimos, de atrair capitais externos e de importar bens industriais. A manutenção do bom nome como devedor e do crédito externo torna-se preocupação permanente dos governos latino-americanos, com o reforço de pressões diplomáticas, navais e militares a que recorrem para as grandes potências para a cobrança compulsória das dívidas atrasadas. O desenvolvimento dependente expande e diversifica as atividades suscetíveis de pagar impostos (comércio e investimentos, técnicas obras produtivas, bens e serviços, população ocupada e remunerada em dinheiro), e, portanto, aumenta a disponibilidade potencial de rendas públicas.

A magnitude de recursos absorvidos pelo Estado a partir das atividades internas e do setor exportador varia segundo países e etapas. Depende do grau de desenvolvimento e diversificação das economias; do peso relativo de grupos de interesses estrangeiros e nacio-

200 FORMAÇÃO DO ESTADO NACIONAL náis; do tamanho o complexidade da máquina estatal, e do número de tarefas a seu cargo.

Os recursos estatais provêm basicamente dos empréstimos externos e dos impostos, e subsidiariamente de outras fontes como a venda de terras fiscais e os lucros das empresas públicas. empréstimos externos, a que já se fez reiterada referência, aumentam a disponibilidade imediata de recursos, mas também a carga de amortizações e juros, que deve ser custeada com novos compromissos externos e com rendas tributárias.

Page 174: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

O sistema tributário baseia-se essencialmente em taxas alfandegárias e contribuições indiretas. Os direitos de importação e exportação devem harmonizar sua importância para o erário com a necessidade de não perturbar os fluxos do comércio exterior. As empresas estrangeiras são frequentemente eximidas de seu pagamento. São abonáveis em papel-moeda nacional, e não em ouro e divisas. Suas rendas são em geral hipotecadas em garantia de credores estrangeiros. Os impostos indiretos incidem sobre o consumo e portanto se descarregam sobre as maiorias populares, ao passo que não existem ou são de reduzida importância os de tipo direto que poderiam afetar a oligarquia e os interesses estrangeiros. A política de emissionismo monetário e de crédito oficial fácil, realizadas pelos governos latino-americanos, e sua contribuição à inflação e à desvalorização menetária, a que já se fez referência, tornam fictícia a maioria dos impostos e taxas alfandegárias. Com rendas fiscais desvalorizadas por sua percepção em papel-moeda, os governos compram ouro e libras para as obrigações externas, o que implica uma considerável perda nas operações de conversão, que reduzem ainda mais a contribuição efetiva das arrecadações.

A venda de terras públicas, além de se realizar em benefício das oligarquias e grupos estrangeiros, não produz rendas consideráveis para o Estado, por se realizar em caráter de massa, antes da valorização proveniente do desenvolvimento, a preços marítimas e com grandes facilidades de prazo e de taxas de juros. Também não resultam muito lucrativas as escassas empresas que o Estado possui e opera por ter caráter promocional (ferrovias), ou pelas condições de seu funcionamento (bancos públicos de política creditícia frouxa e impregnada de favoritismo para os grupos privados).

O uso dos recursos fiscais se canaliza para os seguintes objetios básicos: I) Obras públicas, infra-estrutura econômica e social, serviço que proporcionam economias externas à oligarquia e às empresas estran-

ESTRUTURA SÓCIO-ECONÔMICA, PODER E ESTADO 201 geiras e permitem incrementar as exportações, o ingresso de divisas e a capacidade de pagamento dos compromissos externos. II) Pagamento de capital e juros correspondentes aos empréstimos contraídos pelo governo, e as garantias de contratação de outros novos. III Financiamento do risco: pagamento de garantias de juros mínimos em favor de inversões estrangeiras e de empresas nacionais. IV) Participação do Estado como acionista de novas empresas privadas estrangeiras nas quais a oligarquia não quer participar. V) Empréstimos de bancos públicos a membros da oligarquia e da elite política. Tais empréstimos caracterizam-se pelo considerável montante médio, baixo juro, longo prazo, falta de garantias efetivas e de segurança de uma cobrança compulsória. São pagáveis em papel-moeda ou novos créditos. A política monetária inflacionista promovida por um Estado ligado à classe de que fazem parte os deve dores, implica a liberação de fato do pagamento dos juros e de uma parte do capital. VI) Custo de manutenção do aparato burocrático civil, militar e religioso, cujo volume aumenta ao mesmo tempo pelo aumento de tarefas e responsabilidades a cargo do Estado, e pelo papel deste como criador de ocupação

Page 175: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

para os homens da oligarquia e para suas clientelas. VII) Realização de obras de caráter suntuário e não produtivo (edifícios públicos monumentais, como expressão simbólica do poder da oligarquia e reforço de seu prestígio interno e externo). VIII) Em geral, uso das políticas e recursos estatais para o mecanismo de redistribuição de rendas, em favor das oligarquias e dos interesses estrangeiros. Esta função é cumprida permanentemente pelos Estados latino-americanos, mas adquire especial importância nas situações de crise determinadas pela dependência externa e pela superespecialização deformante das economias latino-americanas. Nas situações de crise, o governo não pode reduzir os gastos fiscais, nem fazer uma política de deflação monetária e creditícia, já que isto afetaria os homens e grupos que o formam ou a que são ligados. A superação da crise é procurada pelo aumento da produção, mediante trabalho intensificado com salários nominais e reais baixos, a fim de exportar mais barato. A inflação e a desvalorização da moeda, determinadas pelo automatismo (relativo) do padrão-ouro, o deficit na balança comercial e no balanço de pagamentos, e na manipulação da política financeira, produzem a transferências de rendas dos setores de ingressos fixos (assalariados, pequenos capitalistas) para os de ingressos flexíveis ou móveis (grandes proprietários e empresários na-

202 FORMAÇÃO DO ESTADO NACIONAL cionais e estrangeiros), e da população que paga impostos aos exportadores. As perdas socializam-se, as rendas o lucros concentram-se.

AS RELAÇÕES INTERNACIONAIS

O manejo das relações internacionais, a elaboração e aplicação de uma política externa vão surgindo principalmente pela confluência e interação de duas tendências de sentido contrário.

Por um lado, as tarefas e custos da organização interna tendem por longo tempo à absorção de energias para tais fins e reduzem a preocupação com o mundo exterior e a situação internacional, e a consciência que deles se tem. A tendência relativa ao isolamento político interno é acompanhada pela formulação de algumas diretivas gerais de política externa, mas sem princípios ativos nem estratégia precisa. Por outro lado, a pressão e a intervenção estrangeiras, e a dinâmica de incorporação ao sistema internacional reduzem e quebram em definitivo a tendência isolacionista.

A política externa resultante é formulada e executada pela equipe governante da oligarquia. Esta é a dona natural da política externa. Controla o Estado, que se reafirma como regulador das relações com as grandes potências e com os outros países latino-americanos. Tem o controle do comércio externo e as vinculações com os grupos estrangeiros e suas metrópoles.

Page 176: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

Só ela pode conceber a país em termos internacionais; perceber sua importância e possibilidades. Seu nível educativo e cultural a capacita para exercer a diplomacia segundo a tradição européia, que ainda constitui o modelo paradigmático.

A preocupação fundamental da política externa da oligarquia refere-se à intensificação e estreitamente das relações com as metrópoles, impedindo qualquer interferência com elas e tentando extrair o máximo proveito. Isto tem como premissa ideal a afirmação de, uma harmonia preestabelecida e eterna de interesses entre ambos os termos da relação, e utiliza como instrumento preferido o tratado bilateral.

Entretanto, alguns fatores complicam as relações dos países latino-americanos com as metrópoles. As próprias oligarquias sofrem acessos periódicos de alarma ante o excessivo domínio da Grã-Bretanha, e logo dos Estados Unidos, sobre a América Latina ou alguns de seus países. Estes acessos se produzem sobretudo ante as intervenções diplomáticas e militares das grandes potências, em favor de

ESTRUTURA SÓCIO -ECONÔMICA, PODER E ESTADO 203 seus cidadãos, de suas propriedades e de suas operações nos países latino-americanos. Soma-se a isto as lutas entre clãs oligárquicos, alguns dos quais tentam jogar com diversas empresas estrangeiras e potências rivais como parte da luta por posições políticas e econômicas internas. Ocorrem às vezes rusgas e conflitos entre empresas nacionais e estrangeiras, que tendem sobretudo a surgir e se agravar quando as crises econômicas redelineiam as condições da divisão do excedente, produzido nos respectivos países. Certas atitudes antiimperialistas respondem no fundo à necessidade de limitar a penetração de uma potência em benefício de outra já instalada ou cuja ascensão modifica o esquema de dependência externa. A redução do ritmo de desenvolvimento tem projeções políticas. Estimula a lenta e parcial aparição de uma consciência mais precisa sobre os inconvenientes de uma dependência excessiva, e sobre as vantagens de um sentido nacionalistas maior como meio de negociar melhor como os grupos e nações imperialistas. A emergência e o crescente peso sociopolítico de novas camadas médias e de setores trabalhadores irão agregando outro reforço aos gérmens de um nacionalismo difuso mas influente.

Às relações com as grandes potências aliam-se as que os países latino-americanos criam e mantêm entre si. O desenvolvimento dependente, de sentido centrífugo e divergente, determina como se disse uni reforço da balcanização da América Latina, e um visível desinteresse por tudo que seja regionalismo. Cada país latino-americano procura se abster de alianças perigosas, defende os próprios interesses e trata de cooperar com outros de interesses similares. A paz é buscada e valorizada como pré-requisito para a expansão do comércio exterior e dos investimentos estrangeiros, e como meio de reduzir os gastos fiscais. Por outro lado, entretanto, já agem neste período importante fatores de conflito intra-

Page 177: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

regional. Os principais países latino-americanos, submersos no clima social e cultural já analisado, abrigam grandes ilusões sobre seu desenvolvimento futuro. A preocupação com os interesses nacionais e os dos grupos dominantes leva à defesa e extensão das fronteiras. Neles prevalece um sentido de excepcionalidade, superioridade e destino hegemônico, que chega inclusive a se condensar em sonhos imperiais. Ainda assim, o aumento de tensões sociais e políticas internas é canalizado pelos grupos dominantes para o conflito externo. As grandes potências promovem ou aproveitam as ameaças bélicas ou as guerras abertas entre vários países latino-americanos, como meio de realizar suas próprias finalidades econômicas, políticas e diplomáticas, e de proporcionar aos segundos assistência técnica e armamentos para seus exércitos cada vez mais profissionalizados. Desde a emancipação, e durante todo o

FORMAÇÃO DO ESTADO NACIONAL 204 período considerado, cinco guerras importantes opõem e esgotam tais países- Argentina e Brasil (1825-1828); Argentina e Uruguai com apoio de Brasil (1843-1852); Chile com a Confederação Peru-Boliviana (1836-1839); Paraguai e a Tríplice Aliança (Argentina, Brasil o Uruguai) (1865-1870); Chile, e Peru o Bolívia (1879-1883). Outros conflitos ameaçam chegar ao campo de batalha e são contidos no último momento.

A análise realizada até agora refere-se às características e relações mais significativas do problema em exame, em um nível de generalização que abstrai as particularidades dos casos nacionais considerados. No capítulo seguinte, ao contrário, são salientados como complemento alguns elementos específicos perceptíveis nos processos do Chile, Argentina, Brasil e México.

CAPITITULO VI

AS ESPECIALIDADES NACIONAIS

1. Chile

Após a emancipação definitiva (1818), numa sucessão de tentativas de organização política que levam o Chile à beira da anarquia - menor, entretanto, que a sofrida por outros países latino-americanos - a luta entre liberais reformistas (pipiolos) e conservadores (pelucones) decide-se em favor dos segundos na batalha de Lircay (abril de 1830). Inicia-se então um grande período de reação, manifestada pelo Ministro Diego Portales e os Presidentes Joaquín

Page 178: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

Prieto, Manuel Bulnes e Manuel Montt. Até meados do século XIX impõe-se e mantém-se praticamente intacta a hegemonia de urna oligarquia de proprietários de terra e comerciantes, que, tem seus principais centros nas cidades de Santiago e Valparaíso. Trata-se, no entanto, de um regime e de uma oligarquia que não apresentam características puramente reacionárias ou estáticas.

A aliança dos proprietários de terra e comerciantes vai inspirada, é certo, por um espírito de aristocratismo e de conservadorismo colonial. Tais grupos possuem, no entanto, uma sólida base socio-econômica. Promovem e aproveitam um rápido e espetacular desenvolvimento do setor agromineiro-exportador e do sistema produtivo nacional. Dispõem de abundantes recursos e de um tempo histórico suficiente para impor sua hegemonia sem concorrência nem ameaça de outros grupos sociais significativos. Os investimentos estrangeiros não predominam na agricultura e na mineração. No campo, subsistem prolongadamente relações tradicionais e paternalistas que submetem a um campesinato pouco numeroso e isolado. Embora o proletariado mineiro apareça precocemente, constituí-se em núcleos localizados, dissociados do restante da sociedade chilena e sem grande capacidade de influência sobre o campesinato e sobre outras camadas trabalhadoras e populares. Os grupos oligárquicos conseguem

206 FORMAÇÃO DO ESTADO NACIONAL dispor, desde cedo, de uma força militar independente, impedindo porém a consolidação do caudilhismo castrense e subordinando exército e a marinha à autoridade civil. Os grupos investidores e governos da Grã-Bretanha o dos Estados Unidos lutam desde o início pela penetração e domínio do Chile, aliando-se nesta luta com diversos setores da oligarquia nacional, sem lograr contudo, nenhum daqueles, capacidade suficiente para converter o país em colônia protetorado.

A oligarquia chilena adquire, assim, a base material e a capacidade subjetiva para governar, manter a ordem interna e defender vitoriosamente seus interesses no âmbito internacional (Guerras de 1836 e de 1879, com a Confederação Peru-Boliviana e com o Peru e a Bolívia, respectivamente). Tem confiança em si mesma e no destino nacional, que identifica com o interesse do próprio grupo hegemônico. Suas bases próprias e o êxito em suas realizações reforçam sua dominação, seu prestígio e sua legitimidade, permitindo-lhe fixar regras do jogo político e lograr, precocemente, a estabilidade e a instauração de instituições sócio-econômicas e políticas operativas.

O Estado se organiza sob formas nominalmente republicanas revestindo uma essência oligárquica. O sistema consegue uma perfeita expressão na Constituição de 1833, que priva de direitos políticos população analfabeta e a carente de terras. Instaura um senado como reduto oligárquico exclusivo. Restabelece os morgadios abolidos pela constituição de 1828. E, sobretudo, erige um presidencialismo quase-onipotente na supremacia legal que exerce sobre o congresso, administração pública, as forças armadas, o poder judiciário e as relações

Page 179: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

exteriores. Os governos desta etapa de reação pelucona recorrem, além disso, de modo quase-continuo, às faculdades extraordinárias aos conselhos de guerra permanentes, ao estado de sítio e a outras medidas enérgicas de repressão contra a oposição liberal.

O despotismo oligárquico é, primeiramente reforçado, em seguida mitigado e logo depois modificado, por uma série de fatores e circunstancias nelas que é pertinente anotar.

O sistema político-constitucional resulta adequado à estrutura sócio-,econômica vigente e à classe dominante, porém não obstaculiza crescimento e, pelo contrário, durante um período considerável, o promove. Sob sua égide realiza-se a integração ao sistema internacional e a instauração de uma, economia e de um clima ideológico de tipo liberal. Ao mesmo tempo o poder do Estado é utilizado num ser tido relativamente desenvolvimentista: leis alfandegárias que protegem a frota mercante nacional, gravames sobre os lucros da minera-

AS ESPECIFICIDADES NACIONAIS 207 ção e propriedades agrícolas, utilização dos recursos fiscais para a criação de um sistema nacional de transportes e comunicações (ferrovias, estradas, barcos a vapor para a costa do Pacífico, telégrafos), para a expansão das atividades de mineração e para o estímulo à manufatura, o que não se converte, entretanto, em uma política industrializante sistemática. O Estado promove, além disso, a expansão territorial em direção à costa patagônica, ocupa o Estreito de Magalhães e funda Puerto Bulnes, a seguir Punta Arenas (1843), como ponto de partida da colonização posterior.

O desenvolvimento econômico logrado desde a emancipação até às vésperas da Guerra do Pacífico encontra seus protagonistas e promotores em alguns grupos da própria oligarquia. O Chile conta, antes que qualquer outro país latino-americano, com uma falange pioneira de empresários nacionais com capacidade para a iniciativa, o risco e a invocação. Capitalistas chilenos promovem a mineração, a manufatura e a exploração agropecuária sem que exista uma precoce ingerência dominante de grupos estrangeiros. Sobre estas bases surge ou se reforça uma atitude nacionalista e de lealdade â soberania nacional e ao sistema político estabelecido. O próprio desenvolvimento diversifica as estruturas sócio-econômicas, modifica a oligarquia, faz surgir novas forças, muda a relação entre a elite tradicional e os grupos médios emergentes. A oligarquia chilena não chega nunca a ser totalmente monolítica; subdivide-se em diferentes núcleos e facções, de acordo com vinculações à Grã-Bretanha ou aos Estados Unidos e segundo diferenciações setoriais, zonais ou regionais. Isto se manifesta na existência de tendências e centros conflitantes de poder, em diferentes sistemas de lealdades, em distintos agrupamentos políticos e ideológicos. Gesta-se e mantém-se, desta maneira, uni sistema que permite e legitima, dentro de certos limites, a dissensão, a disputa organizada do poder, o multipartidarismo, o compromisso e a coalizão, a co-participação simultânea ou alternada no governo, como elementos normais e indispensáveis para a satisfação de interesses classistas e grupais.

Page 180: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

A prosperidade determinada pelo crescimento voltado para o exterior, que se manifesta sobretudo na mineração, estimula um auge considerável do comércio, das atividades bancárias e da indústria e um progresso da urbanização, que tende cada vez mais a intensificar-se na segunda metade do século XIX. Vai emergindo e afirmando-se uma camada de financistas, banqueiros, donos de minas e industriais. Estes homens novos, provenientes em parte do velho tronco criollo e das correntes imigratórias européias, alcançam uma base sócio-econômica cada vez mais sólida, uma crescente influência cultu-

208 FORMAÇÃO DO ESTADO NACIONAL ral e ideológica e pressionam a oligarquia tradicional a fim de obter maior co-participação na riqueza, no prestígio e no poder. Entre a velha aristocracia e esta camada média em ascensão se estabelece uma dialética de conflito e harmonização de interesses, na qual, o segundo termo finalmente prevalece. A oligarquia domina sem contrapesos nem limites durante a primeira metade do século XIX, porém é, como já se disse, uma classe não-monolítica, segura de seu poder, capaz de flexibilidade e compromisso. Frente à pressão dos homens novos aprende rapidamente a pactuar com eles e a integrá-los em seu sistema. Sua coesão, por outro lado, vê-se relativamente afetada por certo debilitamento do crescimento econômico nos 20 anos anteriores à Guerra do Pacífico, pela ocorrência de crises (1857- 1861, 1878), por lutas facciosas de tipo político e religioso e pela conseqüente necessidade dos grupos oligárquicos em conflito de buscar aliados em outros grupos sociais. A camada superior da classe média, por seu lado, vê obstaculizada sua emergência pela estratificação social e pelo sistema oligárquico de poder. À sua própria dinamica acrescenta a manipulação dos novos grupos proletários, especialmente os mineiros, cujo apoio eleitoral obtém. Expressões política, ideológica e institucional deste processo são: a emergência de grupos democrático-liberais que lutam por maior flexibilidade e abertura do sistema republicano; a crescente ruptura dos tradicionais moldes de vida política e cultural; a intensa discussão de questões sociais, ideológicas e religiosas; o precoce estabelecimento de um regime jurídico liberal, dos tribunais de justiça, do ensino público e dos centros culturais, da liberdade de imprensa e da tolerância religiosa. Gradualmente vão sendo ampliados os direitos eleitorais, ímpõe-se a secularização das instituições e a liberdade religiosa, amplia-se o círculo governante, culminando-se, mais tarde, na quebra da suprema- cia presidencial em benefício do Congresso. O despotismo repressivo é substituído pela república principiante sem que se modifique a natureza do sistema.

Os atritos e conflitos entre a alta classe média e a oligarquia não impedem que ambas encontrem uma base natural de coincidência no progresso do crescimento voltado para o exterior, na exploração das atividades agromineiro-exportadoras e de seus apêndices internos (distribuição, serviços), no livre cambismo e na espoliação compartilhada das massas rurais e urbanas, que menosprezam e te- mem. A disponibilidade de riqueza, talento e energia da classe média ascendente é assimilada e aproveitada por uma oligarquia relativamente dividida, empobrecida e debilitada. A fusão vai sendo produzida por laços, econômicos (investimentos recíprocos em setores

Page 181: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

AS ESPECIFICIDADES NACIONAIS 209 agrários e urbanos, sociedades), familiares, sociais e políticos. Na medida em que o estrato superior das camadas médias vai sendo parcialmente aceito e incorporado, identifica-se com a aristocracia. Preocupa-se obsessivamente em integrar-se nela de maneira mimética. Torna-se seu cúmplice na exploração das massas e das riquezas nacionais. Perde a própria consciência de classe. Ascende e aumenta sua participação sem alterar o equilíbrio social e o sistema político. Oligarquia e alta classe média outorgam-se, mutuamente, legitimidade e estabilidade, maiores possibilidades de riqueza, prestígio e poder, tornam-se estéreis em idéias, talentos, atitudes, possibilidades organizativas e de ação. Ambas contribuem destarte para consolidar ainda mais o sistema de compromisso, pluripartidarismo e luta legal pelo poder, que opera, no entanto, dentro de estritas fronteiras de classe. Os dois aliados formam uma frente única contra as reivindicações e pressões dos trabalhadores rurais e urbanos e da baixa classe média que, em graus diversos, vêem-se reduzidos à marginalidade de fato. A injustiça social e o controle político fortemente hie- rárquico permanecem como componentes ínseparáveis da democracia durante todo o período considerado.

A emergência de uma nova classe dominante, híbrida da velha oligarquia e de setores ascendentes e bem sucedidos da classe média, tanto permite absorver novos elementos disruptivos de conflito social como contribui para explicar a perda de impulsos inovadores e autônomos em tal classe.

Em primeiro lugar, o desenvolvimento da mineração no sul e no norte (cobre, carvão, salitre) provoca desde cedo o surgimento de uma classe operária afastada da capital e das grandes cidades. Ela constitui centros independentes de poder social, contrabalança em parte a influência exclusiva da classe dominante, elabora uma ideologia democrática, ganha um relativo direito a se organizar e a reivindicar. Seu caráter minoritário, sua dispersão e isolamento impedem-na, entretanto, de elevar suas lutas a uma envergadura classista global e a um nível nacional. Não lhe permitem tampouco influir de modo decisivo em outros setores operários e no campesnato, nem ameaçar de modo sério a oligarquia, cujo poder con3olidou-se anteriormente à constituição definitiva do proletariado mineiro. A aliança da oligarquia com a alta classe média permite às duas desenvolver uma relativa flexibilidade no trato com os trabalhadores, conceder certa legalidade ao sindicalismo operário e aos conflitos sociais pacíficos. Isto não quer dizer que se prescinda de violentas repressões episódicas, nem determina uma política séria de reformas.

210 FORMAÇAO DO ESTADO NACIONAL

Em segundo lugar, o êxito do modelo de crescimento voltado para o exterior, a consolidação da classe dominante híbrida, a carência de ameaça efetiva de uma frente consolidada de

Page 182: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

massas trabalhadoras e populares e a crescente penetração do capital estrangeiro contribuem para explicar por que a oligarquia e a alta classe média perdem de maneira crescente todo o dinamismo autônomo e transfor- mador. O debilitamento dos fatores de crescimento dependente, especialmente o comércio exterior, não encontra resposta em um aumento do investimento produtivo e da inovação tecnológica por parte dos produtores primários nacionais. A ideologia do laissez-faire termina por prevalecer sobre qualquer veleidade de intervencionalismo estatal e de protecionismo industrializante. A Lei de Alfândegas de 1864 impõe o livre câmbio absoluto em matéria de navegação costeira e possibilita o seu controle pelos consórcios monopolistas estrangeiros, iniciando desta maneira a decadência da frota mercante nacional. Este tipo de política, além do mais, freia as possibilidades de industrialização autônoma, favorece a crescente dominação do comércio exterior ou interno pelos grupos britânicos, converte-os em beneficiários fundamentais da Guerra do Pacífico. O conflito militar entre o Chile e a aliança peruano-boliviana gira em torno do controle das jazidas minerais da região limítrofe e do litoral marítimo correspondente. O triunfo do Chile e a aquisição definitiva dos territórios e jazidas em disputa resultam finalmente em uma transferência dos recursos minerais para o controle de capitalistas britânicos (John North) e em um entorpecimento da classe dominante na prosperidade indireta, produto da expansão salitreira e cúprea. O salitre, em particular, desenvolve o comércio exterior, porém faz aumentar a especialização em detrimento de outras produções que se estancam ou crescem muito lentamente. Acentua-se a dominação forânea sobre o comércio, o sistema bancário e a indústria. O Estado dispõe de maiores recursos fiscais que são usados de modo pródigo e irracional em benefício da oligarquia e, subsidiariamente, das camadas médias (obras públicas, créditos, burocracia) . A guerra vitoriosa e suas benéficas seqüelas consolidam ainda mais o poder da oligarquia híbrida.

Este processo produz uma tomada de consciência nacional sobre as implicações da dependência e do subdesenvolvimento e sobro a necessidade de um progresso agro-industrial autônomo. Algumas de suas manifestações mais notáveis provêm da Sociedade de Fomento Fabril (1883), do ex-ministro Luis Aldunate (1893-1894), do historiador Francisco Encina e, sobretudo, do Presidente Balmaceda. Seu programa de governo tende a um intervencionismo estatal que promova a mineração, a agricultura e a industrialização nacionais.

AS ESPECIFICIDADES NACIONAIS 211

Propugna a reestruturação da administração e do sistema fiscal, o equilíbrio orçamentário, a realização de grandes obras públicas, o desenvolvimento dos transportes e da educação, a satisfação do consumo interno com a produção doméstica, a melhoria da situação dos trabalhadores. Propõe-se a limitar a penetração dos capitais estrangeiros. A tentativa de Balmaceda desencadeia uma acirrada oposição da oligarquia, de importantes grupos agrários, financeiros e comerciais, de intelectuais liberais e dos interesses britânicos. A reação oligárquica organiza-se e entricheira-se no Congresso, utiliza como pretexto a necessidade de

Page 183: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

limitar ou destruir a supremacia do Poder Executivo e apóia-se na marinha de guerra. Uma sangrenta insurreição derruba o Presidente Balmaceda o leva-o, logo, ao suicídio (1891). A última tentativa importante de desenvolvimento progressista e autônomo no século XIX chileno encerra-se, e por muito tempo, com este episódio.

2. ARGENTINA

A tarefa de organizar a nova sociedade nacional e um Estado centralizado absorve quase 2/3 da história argentina no século XIX, aproximadamente de 1810 a ISSO, período coberto por situações de anarquia, guerras civis, despotismo e conflito internacional. O processo da emancipação e suas conseqüências reforçam a levam ao primeiro plano o conflito básico entre Buenos Aires e o Interior. Os projetos de organização socioeconômica e política esbarram durante muito tempo nos obstáculos criados pela extensão geográfica, pela escassa população, pela grande diversidade de regiões o seus desníveis de estrutura e de graus de desenvolvimento, pela perduração de formas pré-capitalistas de produção e troca, pela relativa incipiência da divisão social e geográfica do trabalho, pela debilidade ou inexistência de interesses comuns e laços de interdependência entre setores e zonas. A emancipação destrói o precário equilíbrio da época colonial, reforça as diferenciações tradicionais e acrescenta outras novas, além de colocar a necessidade de uma adequação às novas condições internas e internacionais.

A cidade e a província de Buenos Aires constituem-se, na base e no eixo de grupos criadores de gados, mercantis, financeiros e intelectuais, beneficiarias diretos da independência e da crescente integração do país no sistema internacional, cada vez mais ligados aos interesses britânicos e que desenvolvem e tratam de impor uma estratégia política de tipo particularista. Seu objetivo fundamental é monopolizar os benefícios econômicos e sociais da revolução. Para

212 tanto procuram conservar o controle do porto e da alfândega de Buenos Aires e das rendas provenientes do comércio exterior, como pré-requisito de sua prosperidade e de sua própria supremacia econômica e financeira. Esta, por sua vez, deve permitir a estes grupos expandir sua produção agro-exportadora, quebrar a autonomia das províncias interiores, suprimir qualquer entrave político e fiscal à circulação interna, converter a cidade principal e seu hinterland provincial no centro intermediário entre o resto do país e a economia internacional.

Dentro do bloco portenho-bonaerense aparece com rapidez um conflito interno entre os grupos urbanos, mercantil-financeiros e os proprietários de terra e de gado que, como base da

Page 184: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

prosperidade põem a ênfase, respectivamente, na expansão do comércio e da produção agropecuária. Os grupos mercantil-financeiros da cidade de Buenos Aires encontram apoio em similares do interior, ligados à sua atividade e aos chefes e oficiais do exército regular. Estão impregnados de um liberalismo aristocratizante e cosmopolita e se expressam e se organizam de modo definitivo no Partido Unitário, numericamente reduzido porém articulado e orgânico, que tenta a implantação brusca, de cima e de fora e por qualquer meio, do desenvolvimento capitalista e da civilização européia, através de uma política fortemente centralizadora.

O Interior gozou durante a época colonial de uma série de vantagens: protecionismo derivado do sistema mercantilista espanhol, grande variedade de recursos naturais, disponibilidade de mão-de-obra indígena e de mercados internos, diversificação relativa das estruturas econômicas, sem superespecialização na criação de gado, desenvolvimento significativo de atitudes próprias e de certo grau de integração econômica, sob formas pré-capitalistas de produção e troca. Isto vinha acompanhado entretanto pela continuidade básica do atraso, traduzido na baixa produtividade e na escassa capacidade de concorrência em termos de custo e de qualidade. Já nos últimos anos do período colonial o contrabando e a crescente liberalização do comércio exterior começam a gerar a crise e a decomposição da economia e das relacões sociais nas províncias interiores. Desde o início da emancipação, em 1810, a expansão do comércio interprovincial devido à abertura definitiva de Buenos Aires ao comércio internacional é mais que compensada pela perda de mercados tradicionais que provocam a guerra independentista (ruptura de laços com o Chile, o Alto Peru e o Peru), pela desintegração do Vice-Reinado do Rio da Prata e pela violenta irrupção da concorrência britânica. Ante a ruína çue as ameaça, as províncias interiores buscam defen-

AS ESPECIFICIDADES NACIONAIS 213 der sua agricultura, seu artesanato e suas incipientes manufaturas, seu comércio e ampliar sua participação no tráfico interno e exterior. Isto requer a preservação da autonomia econômico-financeira (protecionismo alfandegário, disponibilidade de recursos fiscais) e a acentuação de uma política federalista, em oposição às tendências centralizadoras de Buenos Aires. As tendências autonomistas de Interior aliam-se às dos criadores de gado bonacrenses em luta contra o unitarismo portenho e dão lugar à emergência do Partido Federal.

A luta entre unitários e federalistas abarca várias décadas de sangrentas convulsões internas, complicadas com outros conflitos de tipo internacional (Brasil, Uruguai, França e Grã-Bretanha). O regime encarnado por Juan Manuel de Rosas constitui de 1829 a 1852 uma tentativa relativamente vitoriosa, de suprimir ou atenuar de modo limitado e provisório o conflito de fundo.

A política e a gestão governamental de Juan Manuel de Rosas triunfam e mantêm-se por uma conjunção favorável de forças e circunstâncias. A guerra civil havia criado uma generalizada e

Page 185: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

compulsiva aspiração de paz interna, estabilidade e progresso econômico. O federalismo das províncias interiores reivindica maior grau de justiça econômica e política. A salvaguarda de suas economias atrasadas contra a penetração destrutiva dos comerciantes e financistas, nacionais e estrangeiros, que operam em, ou por meio de Buenos Aires, deve-se fazer acompanhar de uma participação mais equitativa nos recursos nacionais, de tal maneira que permita a adaptação do Interior às novas condições pós-revolucionárias e a criação de um sistema global equilibrado. O centralismo portenho deve ser substituído por uma organização federativa.

No federalismo portenho-bonaerense confluem aspirações de diversas origens e orientações. Os grupos mercantis e pecuaristas recusam urna vinculação negativa com o poso morto representado pelas províncias pobres e atrasadas do Interior e a submissão a um governo nacional fora do controle exclusivo de Buenos Aires. Desejam, em troca, um governo local que se vincule aos interesses e problemas de uma economia provincial em expansão, expresse-os defenda-os acima de qualquer outra consideração, que goze no mais alto grau possível de autonomia financeira e retenha, por meio do monopólio do porto e da alfândega, a maior parte das rendas nacionais dentro da província. A isto se liga, por parte dos grupos médios o populares, a aspiração de justiça econômica e social para todas as classes provinciais e de democracia política efetiva. Ao federalismo popular, sinceramente nacionalista e renovador de um Manuel Dorrego,

214 FORMAÇÃO DO ESTADO NACIONAL contrapõe-se outro, mais estreito, localista e conservador que se encarna em Juan Manuel de Rosas. Eliminando Dorrego pela inércia do Partido Unit , Rosas triunfa so re este e impõe a seu longo governo o signo de sua orientação, que é a dos grupos que lhe dão substrato e conteúdo.

O regime de Rosas baseia-se, com efeito, nos setores dominantes de Buenos Aires: os pecuaristas orientados para o mercado internacional, que mantêm relações sociais correspondentes à estância tradicional, e os grupos superiores de comerciantes e financistas portenhos, monopolizadores do tráfico interno e externo proveniente de Buenos Aires ou que por aí passa. Com esta base social e o controle de um poder central unificado, Rosas impõe a hegemonia de Buenos Aires sobre todo o país.

Para tanto, o regime de Rosas aproveita-se do atraso e miséria de algumas províncias, da cegueira de outras, das rivalidades entro todas elas, das divisões e erros do Partido Unitário e da oposição a Buenos Aires, do -nacionalismo exacerbado pelas agressões militares e navais da França e Grã-Bretanha. Promove conflitos entre as províncias para dividi-las, mutuamente debilitá-las e arbitrar sobre elas. Trata em separado com cada uma delas, vigia-as incansavelmente, usa contra elas e contra seus caudilhos descontentes a força militar, a corrupção pessoal, a outorga de subsídios e ajudas de diversos tipos, impõe-lhes a tutela e as

Page 186: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

normas de Buenos Aires. Sob a aparência de um Estado nacional confederado, a capital de fato e seu hinterland provincial exigem uma estrutura e uma opinião políticas uniformes a todo o país. A possibilidade de um organismo geral, representativo das províncias, é eliminada e posterga-se, indefinidamente, a convocação de uma assembléia constituinte impedindo-se a cristalização de qualquer projeto de organização federal. Como governador de Buenos Aires, Rosas assume também a responsabiliude pelas relações exteriores, pela guerra e pela paz. A política econômica é elaborada e executada em, por e para Buenos Aires. Os grupos portenho-bonaerenses conservam o monopólio do comércio exterior, do porto e da alfândega e retêm, a seu favor, os lucros provenientes daquele. O aproveitamento direto dos grandes rios interiores, Paraná e Uruguai, é vedada às províncias.

Durante sua larga vigência e, em particular durante seus últimos anos, o regime de Rosas não resolve os problemas básicos que lhe deram origem e o justificavam; vai acumulando tensões e conflitos que provocam sua derrubada. O descontentamento vai crescendo, primeiro nas províncias e logo em Buenos Aires.

AS ESPECIFICIDADES NACIONAIS 215

As províncias vêem defraudadas cada vez mais abertamente suas aspirações e esperanças de justiça econômica e política, de progresso material, autonomia, organização federativa e paz interna e externa. A continuidade das guerras civis, alimentadas pelo próprio descontentamente do interior, e os vários conflitos internacionais -afetam duramente as províncias, desorganizam seu sistema produtivo e seus canais comerciais, obrigando-as, além disso, a participar nos gastos e sacrifícios das lutas. A insatisfação e a rebeldia aparecem, embora mais tarde, também na cidade e na província de Buenos Aires. Inicialmente são beneficiarias da hegemonia que, através do regime de Rosas, impõem ao país. Desfrutam por algum tempo os efeitos da estabilidade social e política e da recuperação material. Suas economias expandem-se e diversificam-se, como resultado do aumento das exportações, da incorporação de territórios conquistados ao indígena para a exploração pecuária, de certo protecionismo para as manufaturas locais, da disponibilidade de mão-de-obra submissa, da estabilidade monetária e da reabilitação do tesouro público. Os conflitos internos e externos vão anulando os benefícios da hegemonia e do isolamento. O custo da manutenção do regime começa a superar suas vantagens. O rígido tradicionalismo nos aspectos socio-econômicos, políticos e culturais, próprio do regime de Rosas, impede as menores mudanças necessárias à plena expansão das possibibdades produtivas, comerciais e financeiras, abertas pela economia internacional. O regime de Rosas carece de um programa efetivo para o desenvolvimento nacional. Seu protecionismo industrial é limitado e de curta duração. A situação das camadas médias e populares da cidade não melhora e os setores rurais inferiores são abandonados à própria sorte, isto é, à dominação e à espoliação irrestritas dos proprietários de terras. A rebelião contra Rosas surge das entranhas de seu regime. O levante de Juan José de Urquiza, pilar do regime de Rosas, grande estancieiro e caudilho provinciano, conjuga as tendências

Page 187: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

federalistas do Litoral e do Interior, conta com o apoio de Brasil e das potências européias e com a passividade das forças de Rosas. Na batalha de Caseros (3 de fevereiro de 1852) o regime desaba quase sem luta.

A queda de Rosas inaugura o período de organização definitiva do país. Desde esta data, até começos do século XX, os problemas da hegemonia social e regional, das relações de Buenos Aires com o Interior, do desenvolvimento interno, da incorporação à economia internacional e da estruturação de um sistema político-institucional operativo encontram um tipo determinado de solução perdurável.

216 FORMAÇÃO DO ESTADO NACIONAL

No período que vai da queda de Rosas até os começos do século XX, a hegemonia é imposta por uma oligarquia que inclui os proprietários de terras e pecuaristas de Buenos Aires e do Litoral, comerciantes, financistas, políticos e profissionais vinculados à exportação e importação e aos investimentos estrangeiros, tendo sua base social e operativa na cidade que é a capital; todos esses setores são ligados, em grau diverso, a grupos e interesses da Grã-Bretanha.

À constelação oligárquica centralizada em Buenos Aires e no Litoral incorporam-se importantes setores equivalentes do Interior, vinculados à produção primária e às indústrias derivadas da mesma (engenhos de açúcar do norte, adegas vitivinícolas de Cuyo, estabelecimentos madeireiros e hervateiros do norte e nordeste), favorecidos por uma política protecionista do governo federal. Os caudilhos provinciais são exterminados ou então submetidos e incor- porados ao sistema, pela abertura de possibilidades econômicas, prebendas burocráticas, negociatas e associação com o capital estrangeiro (empréstimos, investimentos, empresas comuns).

A elite oligárquica promove sua própria hegemonia, a incorporação definitiva da Argentina ao sistema internacional e à dominação britânica e a transformação correspondente das estruturas sócio-econômicas e políticas internas. Seu projeto histórico pressupõe: a manutenção em suas próprias mãos do controle sobre o aparelho de produção primária; a crença na incapacidade do país para um desenvolvimento autônomo e integrado; a necessidade postulada de alcançar o progresso mediante forças e estímulos de tipo externo, recorrendo ao capital, à técnica e à mão-de-obra de origem européia.

Page 188: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

Neste período a Grã-Bretanha consolida definitivamente sua penetração e seu domínio na economia e na sociedade argentinas. Converte-se no principal mercado para as exportações agropecuárias da Argentina e no abastecedor fundamental de suas importações industriais. Seus empréstimos financiam parte considerável do orçamento estatal, utilizado por sua vez em atividades e tarefas benéficas aos interesses britânicos e oligárquicos. Seus investimentos dirigem-se para a terra, explorações agropecuárias e indústrias derivadas destas, transportes (ferrovias, navegação marítima e fluvial), comunicações (telégrafos, telefones), energia, serviços públicos urbanos, comércio e sistema bancário. Sua influência pesa de maneira quase incontrastável na vida política e cultural do país. A imigração européia, promovida simultaneamente por empresas particulares e pelo Estado, representa um afluxo maciço de mão-de-obra barata e adestrada para a agricultura e para as cidades. A

AS ESPECIFICIDADES NACIONAIS 217

prematura implantação e a intensa rigidez do sistema latifundiário impedem à maioria dos imigrantes o acesso à propriedade da terra, converte-os em peões, arrendatários e parceiros e os faz refluir em direção ao proletariado e às camadas médias das cidades. Alguns de seus elementos, excepcionalmente talentosos e afortunados, logram incorporar-se à oligarquia.

A integração plena ao sistema internacional sob a égide da Grã- Bretanha faz-se acompanhar no plano interno, em estreita interação com aquela, pela emergência de uma economia e de uma sociedade de tipo capitalista dependente. Isto se vê favorecido - além da conjuntura histórica mundial - pela disponibilidade de enormes zonas de grande fertilidade desérticas ou escassamente ocupadas, pela inexistência de massas indígenas estáveis ou seu rápido extermínio, pela falta de economias pré-capitalistas ou de subsistência, pela prolongada implantação previa de um sistema de produção agropecuária o de mercado, e pela tendência à acentuada concentração urbana.

A economia argentina adquire fortes traçados de dependência externa, especialização, deformação e desequilíbrio. O crescimento está condicionado pelos movimentos internacionais de demanda, preços e capitais e permanece sujeito a fortes flutuações e a crises mais ou menos periódicas. O comércio de exportação e de importação revela intensa concentração por produtos e por países. O deficit da balança comercial e do balanço de pagamentos é compensado, em parte, pelo fluxo de investimentos e por considerável endividamento externo, que criam ou agravam este deficit.

Page 189: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

Desde seus primórdios o processo de crescimento dependente gera e reforça desequilíbrios entre os diversos ramos econômicos, regiões e grupos sociais. Concentra-se na produção agropecuária extensiva para exportação, nas zonas de pradaria fértil, setor em que se produzem as mais importantes inovações tecnológicas. Os benefícios do crescimento são monopolizados fundamentalmente pela produção agropecuária e seus prolongamentos produtivos internos, pelas atividades comerciais e financeiras, pelos grupos oligárquicos e de investidores estrangeiros e pelas regiões privilegiadas para as quais tais atividades e setores orientam-se e nas quais se implantam. As forças e grupos virtualmente capazes de promover um modelo alternativo de desenvolvimento autônomo e equilibrado apenas se esboçam nesta etapa, são débeis e incapazes de modificar a tendência geral.

O crescimento econômico produz-se de qualquer modo e a um ritmo acelerado. Entre 1869 e 1914 o intercâmbio comercial decuplica-se. O capital e o trabalho europeus, ingressam maciçamente.

218 FORMAÇÃO DO ESTADO NACIONAL

A esta intensificação de estímulos de origem externa correspondem a mobilização, a diversificação e a modernização das forças e estruturas produtivas internas. A exploração agropecuária expande-se pela agregação de terra e mão-de-obra, com investimento de capitais e incorporação de tecnologia em escala relativamente reduzida. As áreas exploradas ampliam-se. A produção agropecuária cresce aos saltos. A dinâmica capitalista penetra no campo. A terra é relativamente mobilizada, toma-se produtora de renda, valoriza-se, favorecendo aos grupos que já a possuem e colocando novos obstáculos aos que buscam acesso à sua propriedade. O setor dos proprietárias de terras goza de ampla disponibilidade de mão-de-obra, através do regime salarial ou do arrendamento e parceria. A ferrovia unifica o país, elimina o isolamento local estimula o desenvolvimento de ramos e regiões exportadoras e a urdidura de vínculos internos à base de maior divisão regional do trabalho, contribui para a intergração de um vasto mercado unificado e para a consolidação do Estado nacional centralizado. As formas sócio-econômicas pré-capitalistas desaparecem. Surge a indústria leve que logo alcança certo desenvolvimento - mensurável pelo número de estabelecimentos, pelo nível de ocupação e pelo montante de capitais investidos - concentrada em Buenos Aires e no litoral e que constitui um prolongamento das atividades primárias de exportação e serve para a satisfação de uma parte da demanda interna. A urbanização intensifica-se como resultado da imigração e, da expansão dos serviços, do comércio e do aparelho estatal. A população quadruplica-se entre 1869 e 1914 (de 1 836 490 a 7 785 237 habitantes), tendendo a se concentrar na capital e nas províncias do pampa úmido (Buenos Aires, Entre Rios, Santa Fé, Córdoba) e também nas de Tucumán (açúcar) o Mendoza (vinho). O crescimento demográfico apresenta uma taxa inferior ao da renda nacional que se decuplica entre 1870 e 1910; a renda por habitante eleva-se.

Page 190: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

A própria expansão capitalista concentra a oligarquia e consolida sua hegemonia. Ao fortalecimento relativo de seus laços internos (grupos bonaerenses, litorâneos e do interior) e com os interesses britânicos, agrega a submissão e o consenso ativo ou passivo das outras classes e grupos nacionais e a absorção de resistências e rebeldias potenciais.

A organização definitiva de um Estado nacional centralizado entre 1853 e 1880 é tanto expressão quanto fator essencial do êxito no modelo de crescimento dependente e da firme instauração da hegemonia oligárquica. A Constituição de 1853 proporciona para tanto o esquema abstrato e a institucionalização do sistema político. Es-

AS ESPECIFICIDADES NACIONAIS 219

tabelece um regime representativo, republicano e federal, fundado teoricamente na soberania popular. Sua letra democrático-liberal é e desvirtuada na prática pela concentração oligárquica de poderes sócio-econômicos e políticos e pela franca violação das liberdades públicas. A mesma concentração do poder e as conseqüências centralizadoras do tipo de crescimento dependente e deformado convertem o federalismo teórico em um unitarismo de fato. As decisões fun- damentais são tomadas em e para Buenos Aires segundo os interesses dos grupos que aí baseiam sua dominação. Os governos provinciais tornam-se simples apêndices e agentes do governo central. No entanto, o Estado oligárquico nacionaliza e seculariza o poder e atua como centro de inovação institucional e de promoção econômica.

O sistema não se baseia exclusivamente na coação. A oligarquia constitui uma classe dirigente dinâmica e flexível, habituada ao manejo dos mecanismos econômicos e políticos. Desenvolve, dentro de certos limites, uma notável variedade de recursos políticos. Abre-se às novas influências. É capaz de se adaptar às mudanças e de assumir tarefas renovadoras. Evita os confrontos perigosos. Prefere, aos ataques frontais, os movimentos envolventes o de captação. Estas características próprias e alguns traços e efeitos do crescimento econômico permitem-lhe manter a direção do processo geral, de maneira direta até 1916, indiretamente logo a seguir.

O crescimento econômico, com efeito, embora dependente, deformado e concentrado por grupos e setores, estende alguns de seus benefícios à maioria da população e limita a mergência e afirmação de grupos capazes de enfrentar de modo eficaz a dominação oligárquica e de proporcionar um modelo alternativo viável. Diversifica e torna cada vez mais complexa a estrutura econômica, permite que nela surjam ou se insiram novos grupos. A abundância de terra, as brechas no sistema possibilitando ainda certo acesso limitado à sua

Page 191: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

propriedade, a expansão aparentemente ilimitada da produção agro- exportadora diminuem a importância da questão agrária. Comércio, investimentos, urbanização e governo expandem o setor terciário e, em parte, o secundário e com eles as camadas médias e os novos núcleos de trabalhadores. Nas camadas médias uma parte está identificada com a oligarquia e com seu sistema (setor comercial, burocracia). Os gérmens de uma burguesia nacional industrializante não alcançam um desenvolvimento diferenciado, uma organicidade e uma autonomia que lhe permita promover seus próprios interesses e assumir a liderença dós grupos subordinados e dominados. O proletariado urbano é quantitativamente reduzido, de formação incipiente

220 FORMAÇÃO DO ESTADO NACIONAL.

e de composição heterogênea (imigrantes e criollos, de origem camponesa ou artesanal urbana). Apenas se encontra nos primórdios de sua experiência sindical e política, isolado das camadas médias que, não mostram grande interesse em valorizá-lo ou mobilizá-lo. Suas reivindicações específicas - salários, jornadas de trabalho - combinam-se imperfeitamente a elementos ideológicos. e políticos importados. O crescimento econômico e a relativa flexibilidade dos quadros sociais criam um clima de otimismo moderado generalizado, reduzem o potencial explosivo das tensões e dos conflitos, mantêm um grau flutuante de equilíbrio e de consenso, reforçado pelo oportuna recurso à violência aberta (eleições, manifestações políticas, greves operárias,).

As contribuições e os confrontos no entanto subsistem e ocasionalmente desembocam em situações críticas. Uma das mais significativas tem lugar por volta dos fins do século. Durante a década de 1880, especialmente sob a presidência de Miguel Juárez Celman, a hegemonia dentro da classe dominante tende a ser detida por uma "suboligarquia gestora" (Milcíades Peúa), promotora, procuradora e advogada dos interesses estrangeiros, intermediária entre o capital financeiro internacional e o Estado argentino. Sua existência e pros- peridade vinculam-se cada vez mais ao endividamento externo do país, aos empréstimos, às concessões e às negociatas. Os dirigentes políticos vinculados à suboligarquia gestora tornar-se independentes de suas bases classistas e tendem a manobrar o Estado por conta e em benefício de seu próprio grupo e de interesses estrangeiros. O governo de Miguel Juárez Celman é a expressão culminante desta tendência, à qual também se filiam outras figuras patrícias, como o General Julio A. Roca e Carlos Pellegrini.

A oligarquia em sentido estrito, os grandes proprietáros de terras e produtores de carnes e cereais para exportação beneficiam-se durante muito tempo do endividamento externo. No entanto, começam a temer que o capital estrangeiro, utilizando-se da suboligarquia gestora, vá reduzindo seus lucros, através da manipulação financeira e comercial e das crises periódicas e, definitivamente, a arruíne, levando-a à perda de seu domínio sobre os meios de produção agropecuária e a afaste totalmente do controle do país, do Estado e da política econômica. Os

Page 192: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

estancieiros vão adotando uma atitude de nacionalismo oligárquico, de tipo defensista, limitado à hostilidade contra a excessiva ingerência e o controle ameaçador do capital financeiro internacional e da suboligarquia gestora sobre o Estado e a economia. Seu descontentamento crescente entronca-se com o de, outros setores: grupos tradicionais, marginalizados pelo

AS ESPECIFICIDADES NACIONAIS 221

processo econômico e político, grupos de origem recente que não alcançaram ainda plena incorporação ao sistema, grupos regionais e provinciais deslocados pela concentração oligárquica e pela centrafização política.

Desta maneira, pecuaristas de origem mais recente (imigração) que não pertencem ao núcleo oligárquico ressentem-se da expoliação por meio do mecanismo dos preços a que os submetem os monopólios exportadores, das tarifas ferroviárias que reduzem ainda mais seus lucros, da falta crescente de crédito, orientado pelos bancos oficiais em direção aos privilegiados nacionais e estrangeiros. Um partido católico, cujos homens estão ligados tanto à Igreja quanto aos grupos estancieiros, reage contra a estratégia econômica da sub- oligarquia gestora e contra sua política secularizante, anticlerical e laica. Setores das camadas médias urbanas, com a simpatia de grupos populares, expressam por intermédio de Leandro Alem, Aristóbulo del Valle e outros, sua existência crescente de participação ampliada, resumida na reivindicação de sufrágio universal efetivo. Os fatores indicados, aos quais se agregam os abusos financeiros e políticos do governo, e o impacto da crise internacional e das dificuldades por que passa a poderosa firma bancária Baring Brothers, criam, por volta de 1890, uma frente única contra o Presidente Juárez Celman. Compõem-na os representantes das forças indicadas, estancieiros, comerciantes, políticos, militares, juventude universitária, com a hegemonia e o apoio financeiro da oligarquia bonaerense e litorânea. A própria heterogeneidade do movimento limita o seu programa, e, seu alcance a um antiimperialisrno de reação e a uma exigência de participação política ampliada e de moralidade administrativa, dentro dos marcos de um sistema que continua sendo respeito no essencial. Não se postulam mudanças estruturais, nem um modelo alternativo de desenvolvimento. Não se apela às massas populares; não se as mobiliza nem se as arma. Vacila-se e negocia-se. A Revolução de 1890 fracassa militarmente, porém consegue forçar a queda do Presidente Juárez Celman e de sua camarilha. O General Rota fomentou o movimento para alcançar, ao mesmo tempo, sua limitação e frutração e a queda da incontrolável equipe de Juárez. Partindo disto, Roca, com a colaboração de Carlos Pellegrini, outorga satisfações limitadas aos setores estancieiros e outras, mais substanciais, ao capital financeiro internacional. Reforça seu próprio poder pessoal e do seu grupo e, em geral, consegue um reajuste das relações entre a metrópole e o país. A Revolução de 1890 marca, de qualquer maneira, um ponto crítico no desenvolvimento do sistema oligárquico e inaugura a marcha da nova União Cívica Radical, em

Page 193: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

222 FORMAÇÃO DO ESTADO NACIONAL direção ao poder que, com Hipólito Irigoyen à cabeça, conquistará em 1916.

3. BRASIL

A passagem da subordinação colonial à metrópole portuguesa para a emancipação, a conquista e a consolidação da hegemonia da classe senhorial, a estruturação de um sistema político-institucional com vigência em todo o território, a incorporação à economia internacional cumprem-se no Brasil sob a égide da monarquia constitucional. Este regime contribui para permitir que o Brasil livre-se da prolongada etapa de anarquia e guerra civil que assolou a maioria dos outros países latino-americanos.

O desafio político a ser enfrentado está muito longe de ser simples ou insignificante. O país tem uma dimensão e uma diversidade continentais, com uma população relativamente escassa. Existem fortes desníveis internos e consideráveis diferenças entre as regiões, pela variedade e dispersão das atividades a zonas produtoras, pelos distintos graus de desenvolvimento e pelas orientações divergentes (em direção à Europa ou ao Rio da Prata). A isto se agrega a inexistência ou a insuficiência de transportes e comunicações e a falta de uma rede mercantil-financeira de envergadura nacional. A virtual destruição das atividades de mineração e a queda do açúcar contribuem para fragmentar e restringir ainda mais o mercado interno. Esta situação mantém e reforça as contradições sociais herdadas da etapa colonial e engendra outras novas, no seio da classe dominante, entre esta e as outras classes nacionais e entre os grupos brasileiros e estrangeiros. Tensões, atritos e conflitos opõem entro si senhores de engenho, pecuaristas, cafeicultores e comerciantes; as principais regiões; setores rurais e urbanos; a classe senhorial, as camadas médias, os trabalhadores livres e escravos. Desta maneira explicasse por que se mantém o movimento pendular, cuja origem remonta à colônia, entre a centralização e a descentralização política o administrativa. A tradição centrífuga e divisionista persiste e, em certa medida afirma-se. Torna-se cada vez mais árdua a tarefa de impor uma autoridade unificada, efetivamente vigente, em todo o subcontinente brasileiro.

O Estado imperial surge e mantém-se durante quase um século como expressão político-institucional de uma aliança entre a classe senhorial e o capitalismo britânico, embora seja dotado de certa independência relativa e de um caráter arbitral, provenientes da ne-

AS ESPECIFICIDADES NACIONAIS 223

Page 194: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

cessidade de regular o nó das contradições assinaladas. O Império deve alcançar e manter a independência e a unidade nacionais e a estabilidade sociopolítica do país nas condições de diversidade, carência de coesão, multiplicidade de antagonismos e conflitos entre regiões, classes, partidos e facções. Para tanto, à qualidade tradicional do rei, o Império acrescenta a função do Poder Moderador, representante da nação como um todo, situado acima das classes o dos partidos, juiz e fiador do sistema social e do regime constitucional. O Poder Moderador diferencia-se do Executivo, sobretudo após a instauração da responsabilidade ministerial perante a Assembléia e do Presidente do Conselho como chefe do governo. Esta peculiar estrutura política emerge e vai-se corporificando por meio da Constituição de 1824 da abdicação de Pedro I (1831), do Ato Adicional de 1834, da Regência, da ascensão de Pedro II ao trono (1841) e da lei de 1848 que institui o presidente do Conselho como chefe do Poder Executivo.

O Império, sobretudo durante o longo reinado de Pedro 11 (até 1889), tem um caráter personalista e autocrático, embora impregnado de uma ideologia liberal e exercido com moderação e respeito às formas constitucionais adotadas. A Constituição proclama os princípios do liberalismo burguês do século XIX. A Câmara dos Deputados é eleita pelo voto popular, estando, entretanto, os analfabetos privados de direitos eleitorais. Os senadores propõem os candidatos para a eleição de novos membros do corpo senatorial, porém é o Imperador que os escolhe em definitivo, bem como a todos os principais funcionários nacionais e estaduais. A oposição liberal e republicana goza de liberdade em sua pregação.

O poder imperial tem caráter plebiscitário, expresso ou implícito, contínuo, tacitamente renovado. Baseia-se tanto na disponibilidade de um aparelho político-burocrático-militar

que o capacita a exercer a função de árbitro indicada, quanto no apoio das forças dominantes (classe senhorial, capitalismo britânico) ou em certa capacidade de influir subsidiariamente nos processos de distribuição e exercício do poder (camadas médias urbanas). Os escravos o as massas analfabetas estão excluídos de Qualquer participação no sistema.

Efetivamente, o Império expressa em sua essência os interesses da classe senhorial, servindo-os diligentemente. A classe senhorial faz, através do Parlamento e do exercício de seus poderes regionais e locais uma valiosa aprendizagem política. O Estado imperial é o seu Estado, funcionando predominantemente em seu benefício sem impor-lhe a obrigação correlata de financiá-lo. O regime livre-cambista contribui para criar um esquema de comércio exterior com

Page 195: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

224 FORMAÇÃO DO ESTADO NACIONAL saldos negativos que reduzem os recursos à disposição do Estado para sua própria organização e efetivo funcionamento. A classe senhorial impede, além disso, o estabelecimento de impostos sobre a exportação, o que a afetaria diretamente. O Estado deve buscar seu financiamento em empréstimos internos e externos, emissões monetárias e sobretaxas à importação que transferem a carga impositiva a toda a população capaz de consumir. As oligarquias regionais mantêm suas bases e mecanismos de poder e arrancam concessões ao Estado central em detrimento de sua efetiva supremacia. As medidas descentralizadoras (Ato Adicional, 1834) e a criação da Guarda Nacional, implicam em urna transferência ou em um reforço dos poderes políticos, administrativos e militares das oligarquias regionais. As tensões entre o Estado central e os grupos de senhores locais alcançam, não raras vezes, um estado insurreicional, no qual inter- vêm diversos fatores e também as camadas médias e populares (Pernambuco, 1817, 1824 e 1848; Alagoas e Pernambuco, 1832; Grão-Pará, 1834 a 1837; Cabanada amazônica, 1833-1837; Bahia, 1837; Maranhão, 1838; São Paulo e Minas Gerais, 1840; Rio Grande do Sul, 1835 a 1845).

O Império expressa uma aliança de interesses entre a classe dos senhores e o capital britânico, servindo-a ao mesmo tempo. À sua gestão, desde a chegada de D. João VI ao Brasil, deve-se, como vimos, a imposição de um sistema de livre câmbio que abre o país à dominação pelo comércio e investimentos da Grã-Bretanha. Durante o século XIX o comércio atacadista, externo e interno, vai caindo em mãos estrangeiras, sobretudo britânicas. O financiamento externo do Estado e da classe senhorial (sustentação do orçamento fiscal, cobertura dos saldos negativos na balança comercial e no balanço de pagamentos, expansão de setores privados) permanece sujeito ao mesmo controle. O desequilíbrio da balança comercial (flutuações da demanda externa e dos preços de exportação, dependência das importações, deterioração dos termos de troca) e do balanço de pagamentos determina a tendência quase permanente à desvalorização monetária - pelo jogo automático do padrão-ouro - e à inflação, tornando obrigatório o recurso continuado ao endividamento externo. Deve-se notar, no entanto, que a política ultraliberal do Império. já assinalada, coexiste com certa tendência protecionista o industrializante, embora esta careça de continuidade sistemática e não consiga prevalecer definitivamente sobre a primeira.

O esquema estrutural esboçado começa a modificar-se por volta de meados do século XIX. O eixo desta mudança é constituído pelo café, atividade desenvolvida para suprir o papel econômico dos

AS ESPECIFICIDADES NACIONAIS 225 dois ramos tradicionais, a mineração e o açúcar, cujo estancamento e crise afetam toda a organização e a própria vida do país. O café começa a substituir a mineração e o açúcar como elemento dinâmico e estruturador, tornando-se o produto central do sistema agro-exportador e da vida social e política do Brasil. A expansão da cafeicultura determina transformações substanciais na sociedade global, na hegemonia

Page 196: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

interna da classe senhorial, sobre o Estado e todas as outras classes e nas relações internacionais.

A cafeicultura, uma vez que preenche a necessidade de substituir o papel da mineração e do açúcar em decadência, aproveita uma gama de possibilidades que se lhe oferecem desde o início.

O desenvolvimento do café começa por utilizar recursos relativamente pouco consideráveis e de imediato disponíveis, sobretudo os liberados pela crise da mineração e do açúcar. Organiza-se como sistema de exploração em grande escala dando continuidade ao sistema tradicional, ao qual incorpora novos elementos. Iniciado em zonas novas, encontra terras disponíveis sem necessidade de invadir as zonas açucareiras. Utiliza mão-de-obra escrava, animais de carga, estradas, capitais e redes mercantis da região mineira. Compra a altos preços e transfere de suas bases os escravos do Nordeste. A expansão é capitaneada por uma classe nacional (capitalistas ligados à mineração e ao comércio e, logo a seguir, antigos traficantes de escravos), como recursos próprios, que participa não somente da produção como intervém na circulação.

A expansão da cafeicultura começa no Rio de Janeiro, sobe o vale do rio Paraíba pela região Centro-Oriental e estabelece seu centro principal em São Paulo. Suas implicações e efeitos vão sendo sentidos externa e internamente. O café conquista novos mercados. O destino final da produção muda, deslocando-se cada vez mais para os Estados Unidos. As exportações establlizam-se. O rápido progresso traduz-se em uma vultosa acumulação que permite transformar continuamente a própria estrutura, ao mesmo tempo que muda e diversifica a da economia e da sociedade globais.

O desenvolvimento do café é, tanto o resultado quanto concomitante a causa da crise do regime escravista, surgida, esta, da ação combinada de fatores externos e internos. De um lado, a oposição britânica ao tráfico de escravos alimentado na África e a repressão ao mesmo tornam-se cada vez mais deliberadas e sistemáticas. Esta oposição provém da concorrência que a produção brasileira de açúcar utilizando-se mão-de-obra escrava faz à das colônias britânicas das Índias Ocidentais, da restrição que a escravatura impõe à capa-

226 FORMAÇAO DO ESTADO NACIONAL cidade aquisitiva do mercado interno brasileiro para a produção industrial inglesa, de um sentimento de represália às tarifas protecionistas que o Império estabelece desde 1843 e do crescente peso de uma corrente abolicionista liberal na metrópole. A lei Aberdeen (1845) legaliza a captura e o tratamento como piratas dos navios negreiros descobertos em alto mar. A marinha de guerra britânica dedica-se a capturar os

Page 197: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

navios que se dirigem ao Brasil, ou que estão no porto de Paranaguá e repele qualquer reclamação por danos e perdas.

Por sua vez, o Parlamento brasileiro suprime, com a lei de 1850, ,o tráfico negreiro. A escravidão vai-se tornando incompatível com a nova estrutura sócio-econômica emergente no país, no setor do café e em torno deste, especialmente pela baixa produtividade daquela, sua crescente onerosidade e seu insignificante papel no consumo e no mercado interno. À medida que a cafeicultura incorpora novas terras, orienta-se para formas de parceria e de trabalho livre e permite uma agricultura de subsistência que não conduz à extrema especialização, tendo assim um efeito diversificante. O caráter anacrônico adquirido pelo regime de trabalho escravo e o preconceito generalizado contra o trabalhador de cor provocam sua substituição por mão-de-obra branca, de origem européia. A imigração é promovida pela iniciativa privada e pelo Estado imperial, o qual estabelece colônias de trabalhadores europeus em zonas reservadas para tal fim, outorgando-lhes concessões e privilégios de diversos tipos, ou ainda, custeando a viagem dos imigrantes. A introdução maciça destes trabalhadores acelera a decomposição do regime escravista, e o Estado imperial consagrada legalmente. A partir da lei de 1850 que suprimiu o tráfico, sucedem-se, a de 1871 que estabelece a liberdade dos ventres, a de 1884 que alforria os sexagenários e a de 1888 quando o regime é totalmente abolido.

O desenvolvimento da cafeicultura e a substituição do trabalho escravo pelo livre trazem, outrossim, novas conseqüências. Uma das mais importantes é a ampliação do mercado interno. A economia diversifica-se, setorial e regionalmente. Surge e amplia-se um mercado de trabalho remunerado em dinheiro. Incrementam-se os fluxos monetários de poupança e renda, cria-se uma demanda interna de bens e serviços, a cuja satisfação atende o desenvolvimento das manufaturas, do transporte e das comunicações (telégrafos em 1852, ferrovias em 1854), da rede comercial e do sistema bancário, das profissões. A crise do tráfico negreiro libera rapidamente consideráveis recursos que se dirigem para o café e para todos os novos ramos e setores em crescimento, aos quais, além disso, beneficia o

AS ESPECIFICIDADES NACIONAIS 227 protecionismo direto e indireto. A expansão e a diversificação da economia dão o derradeiro impulso, à caducidade de regime escravista. Estimulam também o crescimento das camadas médias, compostas o formadas pelos setores vinculados ao artesanato e à manufatura, ao comércio, à burocracia (civil, militar e religiosa), às atividades profissionais e intelectuais e à pequena produção agro-pecuária, sobretudo a proveniente da colonização imigratória. No seio das massas trabalhadoras começam a adquirir crescente importância os trabalha- dores livres das cidades. A urbanização acelera-se conseqüentemente, e opera como efeito e reforço dos processos indicados. Certas cidades crescem, sobretudo aquelas envolvidas na expansão da cafeicultura e em seus efeitos, redefinindo-se suas funções. De maneira especial, São Paulo, seu porto de Santos e seu hinterland convertem-se na grande metrópole do Brasil.

Page 198: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

O setor cafeeiro alcança a hegemonia dentro da classe senhorial e no Estado. Sua ascensão em parte estimula e em parte é acompanhada pela dos grupos pecuaristas do sul (Rio Grande). Ambos os setores estão orientados essencialmente, para uma exportação que, se expande, vão-se desligando do trabalho escravo e localizam-se nas regiões centrais e meridionais, até então relativamente secundárias e, há pouco, incorporadas à exploração. Outros setores da classe senhorial sofrem, pelo contrário, um processo de crise e decadência, perdem possibilidades de exportação e continuam ligados ao trabalho escravo, exploram o algodão e o açúcar, ou uma agricultura de subsistência, nas regiões do Nordeste, do Oeste e do Norte, de antiga atividade. A prosperidade do café difunde-se em graus diversos a outras regiões e setores. Os recursos de que dispõem os senhores do café, suas alianças com outros grupos da classe senhorial, seus efeitos positivos em relação às camadas altas e médias das cidades sua proximidade da sede do Estado permitem-lhes exercer um controle crescente sobre o aparelho governamental, ao qual proporcionam um financiamento mais adequado, utilizado para reforçar e estabilizar sua própria hegemonia. Devido a seu peso político, suas relações com outras frações oligárquicas e com outros grupos intermediários e pelo uso do aparelho governamental, o setor cafeeiro impõe-se sobre o restante da classe senhorial e sobre todo o território nacional, projetando-se, inclusive, além de suas fronteiras. A orientação centralizadora triunfa. O eixo do poder desloca-se para o Centro e para o Sul. As regiões restantes caem ou passam a gravitar em torno do novo núcleo. As rebeliões provinciais são esmagadas. Uma emenda ao Ato Adicional limita os poderes regionais. As tropas irregulares dos fazendeiros e estancieiros e as orga-

228 FORMAÇÃO DO ESTADO NACIONAL nizações da Guarda Nacional são progressivamente substituídas e absorvidas pelas forças armadas do poder central e sob a chefia de oficiais federais.

A centralização permite, além disso, operações que ligam mais estreitamente certos grupos regionais ao setor cafeeiro e ao poder federal. Tal é o raso dos estancieiros do Sul, interessados em estender ao Uruguai suas propriedades, rebanhos, campos de pastagem e mercados. Estas aspirações coincidem com outras de tipo diplomático e estratégico do governo brasileiro, tendentes a quebrar o possível monopólio de Buenos Aires sobre o Rio da Prata e os entraves que o Paraguai coloca à livre navegação nos rios interiores (Paraná e Uruguai) e, portanto, à comunicação direta do litoral brasileiro com o Mato Grosso. A influência britânica neste nó de interesses conflitantes é permanentemente significativa. "Pressionando alternativamente ora o Império (do Brasil) ora a República (Argentina), seja para levá-los à guerra, quando um ou outra ameaçava fortalecer-se, ou para negociar a paz quando resistia à diminuição, a Inglaterra conseguiu impedir à Argentina o domínio pleno sobre o Prata e ao Brasil sua ampliação até a linha do Paraná, sonho de seus primeiros patriotas, criando entre ambos os Estados grandes um Estado pequeno (Uruguai) que servisse, não de almofada, porém de eterno pomo da discórdia para aguçar suas rivalidades e debilitá-los em guerras incessantes" (Irazusta Júlio. Influencia econômica británica, en el Rio de la

Page 199: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

Plata. p. 54). Dentro da perspectiva da marcha do Império em direção ao Sul, inserem-se a guerra argentino-brasileira de 1825, a intervenção no Uruguai, a participação na derrubada do governo de Juan Manuel de Rosas e o conflito da Tríplice Aliança contra o Paraguai, do qual o Brasil toma considerável parte de território.

O setor cafeeiro vai assim impondo sua hegemonia ao mesmo tempo que desenvolve relações cada vez mais estreitas com o capital estrangeiro, por meio do comércio exterior e interno, do financiamento público e privado, dos investimentos. As modalidades preexistentes agregam-se aquelas surgidas na fase cafeeira. A dominação estrangeira é exercida, primeiro pela comercialização internacional do café e em seguida pela participação estrangeira no financiamento e na produção direta (compra de terras), bem como na ampliação da infra-estrutura. Neste processo, à fase de predomínio britânico quase exclusivo começa a suceder, desde as últimas décadas do século XIX, outra, de penetração e controle dos capitais dos Estados Unidos e sua diplomacia.

AS ESPECIFICII)ADES NACIONAIS 229

Enquanto a estrutura sócio-econômica e política do Brasil sofre as transformações indicadas, o velho Estado imperial parece sobreviver às situações que lhe deram origem e permanência e às funções que lhe conferiram legitimidade e consenso. As mudanças ocorridas tornam-no inadequado, debilitam-no e desagregam-no, gerando as forças que o levam à crise final e à sua substituição pela República (1889).

4. MÉXICO

A invasão napoleônica da Espanha desencadeia o processo de emancipação no México, que atravessa duas etapas distintas, definidas pelas diferenças de protagonistas e de orientações e nas quais os conflitos de classes e de etnias têm um papel preponderante sobre as posições e lealdades políticas.

A primeira etapa começa em 1810 em Querétaro, a partir de uma conspiração que agrupa os membros da burguesia criolla do México Central, juristas, funcionários subalternos, oficiais do exército e baixo clero. O plano original consistia em conseguir o apoio da população criolla e das tropas, prender todos os espanhóis e organizar um governo mexicano em nome de Fernando VII. Descoberta a conspiração, um de seus membros, o pároco de Dolores, Miguei Hidalgo, conclama à insurreição pela independência e a coloca sob o estandarte da Virgem de Guadalupe. Seu chamado encontra apoio nas massas indígenas e camponesas e em alguns

Page 200: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

grupos militares que, em conjunto, alcançam em um mês a cifra de 80 000 homens. Hidalgo muda radicalmente a limitada orientação original da conspiração, suprime a escravidão e promete aos indígenas a restituição de suas terras e a supressão do tributo. A guerra de independência converte-se em guerra de classes e de raças, rejeita qualquer vínculo com a monarquia espanhola, torna-se "uma revolução agrária em gestação" (Octávio Paz) e alcança, de ambos os lados, um grau feroz de violência. A insurreição estende-se a várias regiões e grupos. Incorpora sacerdotes, rancheiros, tropeiros, camponeses pobres, de origem criolla, mestiça ou indígena e líderes com o pároco José Maria Morelos. Assustados pelo caráter classista e racial da insurreição e pelos rumos que ela vai tomando, os oficiais do exército (mexicanos, em sua maioria), os proprietários de terra e a Igreja aliam-se à Coroa espanhola. Esta coalizão reacionária aproveita-se das debilidades e dos erros da insurreição e vai derrotando-a até reduzi-la a núcleos pouco significativos.

23O FORMA~AO DO ESTADO NACIONAL

Ao mesmo tempo que a insurreição vai sendo sufocada em sua primeira fase, popular e agraria, seu irresistivel impacto e as arbitrariedades e atrocidades das autoridades espanholas contribuem para que a causa da independencia ganhe a maioria da população: Um acontecimento externo acelera esta definição e desencadeia a segunda fase do processo emancipador. Em 1820, Riego subleva-se em Cadiz e obriga Fernando VII a restabelecer a Constituição liberal de 1812, que limitava o absolutismo real. O triunfo liberal na Espanha e visto no México, por conservadores, Igreja e exercito, como uma ameaça a seus privilégios. A independência, através de uma formula monarquica, começa a parecer-lhes um meio de evitar a concretização do perigo. Com tal finalidade iniciam-se negociações com os insurretos. Um ambicioso oficial mestiço, Agustin Iturbide, e parte importante na negociação que se materializava no Plano das Tres Garantias (Iguala, fevereiro de 1821 ), aceito por liberais e conservadores e que aprova o último vice-rei espanhol O'Donoju pelo tratado de Cordoba (24 de ago5to de 1821 ). A independência política e acompanhada da preservação de riquezas, privilégios e poder dos grandes proprietários de terra e da igreja e gela possibilidade da solução monárquica.

A 18 de maio de 1822, sob a pressão do exercito e das massas populares mexicanos, mobilizadas para tal, Agustin Iturbide e proclamado imperador pelo Congresso constituinte. A conquista da independência e a solução imperial não se traduzem de imediato na constituição do México como nação nem no surgimento de um Estado nacional centralizado e eficiente. Inicia-se, pelo contrario, um prolongado período de instabilidade, anarquia e guerra civil. Os conflitos sociais e políticos, conteúdo e substrato desse período, são gerados por fatores e circunstancias de tipo externo e interno. Os Estados Unidos começam a infiltrar seus cidadãos como colonos no Texas, principio de uma estratégia anexionista que não tardara a triunfar. A Grã-Bretanha desenvolve, por seu lado, uma penetração econômica por meio da exportação, dos investimentos de capitais na mineração e dos empréstimos ao Estado. Entre os dois trava-

Page 201: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

se uma batalha política e econômica que influi nos assuntos internos e repercute nos choques e em seus desenlaces.

Do ponto de vista interno a estrutura sócio-economica da colônia e, no essencial, preservada e consolidada pelos novos governos. O poder e conquistado pelos grupos de proprietários de terras e burgueses urbanos de origem criolla, radicados no México Central, em conflito com os rancheiros mestiços do norte e do sul. A Igreja

AS ESPECIFICIDADES NACIONAIS 231 mantem e reforça sua riqueza, poder e privilégios. Embora ela seja o principal proprietário, não mobiliza seus bens e recursos, beneficiando-se da isenção de impostos. O Exercito defende zelosamente seus efetivos, soldos e privilégios, intervindo de maneira ativa na política, alternando seu apoio aos diversos grupos e governantes e impondo decisões. As massas indígenas veem frustradas as esperanças que lhes suscitaram as promessas de seus lideres revolucionários. São mantidas sob sujeição, espoliação e marginalidade, entremeadas por explosões ocasionais de rebeldia. (No Yucatan uma insurreição dos maias contra os brancos prolonga-se por vários anos). A miséria, o analfabetismo e o alcool permitem sua fácil manipulação política e militar pelas facções em luta.

A vida política polariza-se durante varias décadas em duas tendências fundamentais. Os "Moderados" agrupam e expressam os proprietários de terras e burgueses urbanos da região central e a Igreja, ao mesmo tempo que contam com o apoio da maçonaria de rito escocês. São favoráveis a uma política conservadora e clerical e procuram implantar uma republica centralizada e autoritária, dirigida pelos caudilhos militares. Esta tendência conta com a simpatia e a aliança da Grã-Bretanha. Os "Puros" são expressão política dos rancheiras mestiços e criollos do norte e do sul. Querem uma política liberal e anticlerical que instaure uma Constituição damocratica, limite o poder e os privilégios dos proprietários de terras e da Igreja e assegure a vigência das liberdades públicas e locais e de uma republica federal. São apoiados pelos Estados Unidos e pela maçonaria do rito de York.

O sistema politico-institucional e o Estado nacional soberano e centralizado emergem e consolidam-se no curso de um demorado processo de varias décadas. As dificuldades provem de uma variedade de fatores e circunstancias convergentes: a extensão e diversidade do território, a contraposição de interesses sociais e regionais; a falta de uma pronta solução para o problema da hegemonia sociopolítica; o exacerbado individualismo dos políticos e dos generais; a constante intervenção do exercito; a rivalidade entre a Grã-Bretanha e os Estados Unidos e entre as sociedades secretas; a dificuldade dos transportes e comunicações, que favorece os levantes locais e as tentativas de secessão. O Estado vê-se também tolhido e paralisado em seu poder e ação pela insuficiencia de recursos. O deficit orçamentário permanente e alimentado pelas isenções impositivos da Igreja, pelo grande custo do exercito,

Page 202: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

com elevados efetivos e soldos e as exigências dos generais, pela insuficiência de entradas (alfandegas, impostos, monopólios fiscais), pela dependência a usurários e espe-

232 FORMAÇAO DO ESTADO NACIONAL culadores que impõem condições gravosas e exigem grandes lucros, comissões e garantias alfandegárias.

A sucessão de tentativas constitucionais e de etapas de anarquia e ditadura parece perpetuar-se sem fim (Constituição Federal de 1824; leis constitucionais centralistas de 1836; Constituição autoritária de 1843; Império de Itúrbide, 1822-23; ditadura de Santa Ana, que com alternativas dura de 1834 a 1855). Até à chegada de Porfirio Díaz ao poder os governos duram, em média, menos de um ano. As lutas civis e a debilidade do Estado possibilitam a expansão agressiva dos Estados Unidos que tomam do México a metade do seu território.

Nos meados do século XIX entra em cena uma nova geração de liberais de diferentes origens étnicas, sociais e profissionais, inspirados pelo pensamento econômico britânico e pela filosofia política francesa. Seus principais líderes são Santos Degollado, Manuel Doblado, Benito Juárez, Miguel Lerdo de Tejada, Ignacio Ramírez e Guillermo Prieto. Seu pensamento busca concretizar-se numa política que liquide o passado colonial, renove as atrasadas estruturas do México, suprima os privilégios, mobilize os bens do clero e instauro uma república verdadeiramente constitucional para uma nação capitalista (Lerdo de Tejara) ou de pequenos proprietários (Ocampo). A estratégia deste novo liberal-reformista vé-se forçada pela derrota do México frente aos Estados Unidos, o que desacredita o caudilhismo militar e contribui para a derrubada do ditador perpétuo Santa Ana em 1855. A nova concepção começa a traduzir-se em atos. A Lei Juárez (1855) dispõe sobre a abolição dos foros e tribunais especiais para o exército e clero. A ordem dos jesuítas é dissolvida. A Lei Lerdo de Tejada (junho de 1856) suprime a propriedade coletiva dos bens imobiliários, ordena a venda das propriedades da Igreja e a distribuição dos cridos (lotes de terras), correspondentes às aldeias indígenas. A mobilização das terras daí resultante traz benefícios à acumulação dos capitais estrangeiros e mestiços, estimula a concentração latifundiária e prejudica aos indígenas. A Constituição de 1857 mantém o sistema federal e a divisão do país em estados, porém amplia os poderes do governo central e reafirma, enfaticamente, algumas liberdades essenciais (abolição dos privilégios, ilegalidade da poenagem).

A legislação da Reforma desencadeia uma contra-ofensiva conservadora-elerical, que desemboca em urna sangrenta guerra civil de três anos, à qual juntam-se conflitos regionais, religiosos e sociais. O governo de Benito Juárez, designado presidente pelo Congresso, decide em plena luta o confisco dos bens do clero, a supressão das

Page 203: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

AS ESPECIFICIDADES NACIONAIS 233 ordens religiosas e a separação entre a Igreja e o Estado. O controle das alfândegas, o apoio do governo norte-americano e a ampla adesão popular permitem a Juárez conduzir vitoriosamente uma guerra regular e de guerrilhas e fazer uma entrada triunfal na cidade de México (janeiro de 1861).

Uma vez vitorioso, tenta restabelecer a ordem institucional e legal. Embora as medidas contra os bens eclesiásticos tenham enriquecido numerosos proprietários mestiços e chefes locais, o Estado carece de recursos financeiros e Juárez suspende por dois anos o pagamento dos juros da dívida externa e se nega a satisfazer os pedidos de indenização por dados a cidadães europeus. Os conservadores e clericais derrotados apela à intervenção estrangeira da França, Grã-Bretanha e Espanha, da qual surge a tentativa imperial de Maximiliano de Áustria (1863-1867), finalmente fracassada. Uma vez mais, vitorioso, Benito Juárez governa até sua morte em 1872. Suas leis e as de seu sucessor na presidência, Miguel Lerdo de Tejada (1872-1876) dão continuidade à linha de mobilização e redistribuição de propriedades eclesiásticas e indígenas, fomentam a colonização, dissolvem as ordens religiosas e implantam a liberdade de ensino. A nova classe latifundiária aproveita-se das leis reformistas e dos conflitos civis e internacionais para continuar enriquecendo-se e afirmando-se.

A consolidação e a expansão da estrutura socioeconômica que veio se configurando desde a emancipação, a organização definitiva do sistema político-institucional e a integração do México no sistema internacional têm lugar pelo impulso e sob a égide do "Porfiriato".

O General Porfirio Díaz organiza um exército rebelde nos Estados Unidos, entra no México, derruba o sucessor de Benito Juárez e chega ao poder, em 1876, sob a divisa: "Sufrágio efetivo, reeleição não". É reeleito oito vezes e governa o país durante 34 anos (1876-1911), com o intervalo formal de 1880-1884. Herói militar das jornadas de Juárez, dotado de energia, astúcia e experiência, seu regime, uma versão mexicana do despotismo esclarecido, baseia-se numa eficaz combinação de violência brutal, hábil manipulação, obtenção de um tipo particular de paz e prosperidade e satisfação dos interesses fundamentais da nova oligarquia e dos grupos estrangeiros.

Sob o Porfiriato o aparelho estatal é centralizado e fortalecido, multiplica seus mecanismos e aplica-os em todos os setores e regiões. Os caudilhos são ganhos pela adulação, honras, dádivas e privilégios. Suas rivalidades são estimuladas para que uns se joguem

234 FORMAÇÃO DO ESTADO NACIONAL contra os outros. São mudados de posto e de lugar quando podem-se tornar demasiadamente populares. Suas arbitrariedades e tropelias são

Page 204: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

toleradas de tal maneira que o resultante ódio dos súditos os torne mais dependentes do poder central. Civis e militares, governadores, comandantes e caciques locais são manipulados e enfrentados sagazmente de tal modo que se debilitem, impedindo-se que surjam rivais eventualmente perigosos, do poder. Os oficiais do exército beneficiam-se de altos soldos e de possibilidades de suborno e negociata porém não se lhes permite que permaneçam demasiado tempo comandando os mesmos homens nos mesmos lugares.

Uma polícia montada rural, bem equipada e remunerada dotada de poderes discricionários, absorve em seu recrutamento um número considerável de antigos rebeldes e ex-bandidos, desenvolvendo respeitáveis aptidões para o terrorismo repressivo contra os indígenas, camponeses e oposicionistas que não se submetem ao governo central e aos abusos e depredações dos proprietários nativos e dos investidores estrangeiros (grilagem de terras, condições servis ou escravagistas de trabalho). A paz dos cemitérios é imposta nos campos e cidades. Os sindicatos operários são proibidos e aniquilados. Duzentos trabalhadores têxteis de empresas francesas são fuzilados na primavera de 1907. Isto não exclui que o governo às vezes arbitre com certa amplitude nos conflitos trabalhistas, uma vez suprimidos os dirigentes.

O desenvolvimento das ferrovias e o do telégrafo contribuem para dar vigência e eficácia ao Estado e a seu aparelho repressivo em todo o território nacional, para integrar fisicamente o país e manter a ordem.

Uma receita fiscal crescente permite a multiplicação por nove do número de funcionários públicos, bem remunerados e recrutados preferencialmente entre os chefes de famílias numerosas, predispostos ao servilismo por temerem o desemprego e a miséria.

A política de paz, estabilidade e crescimento econômico e de distribuição de privilégios discriminatérios (empregos, negociatas, monopólios) traz para o Porfiriato o apoio e a lealdade da aristocracia criolla- rural e urbana, dos generais, funcionários, antigos reformistas enriquecidos, clero e capitais estrangeiros. Sua submissão incondicional ou predisposição favorável, que os Faz esquecer os aspectos opressivos do regime, são pagas por sua prosperidade e privilégios. Os oposicionistas - políticos, advogados, intelectuais, jornalistas, líderes sindicais - são submetidos pelo terror, assassinato ou corrupção. A fraude eleitoral organizada pelos caciques e funcionários

AS ESPECIFICIDADES NACIONAIS 235 faz-se acompanhar de uma apatia política induzida, tanto pela opressão como pela prosperidade. Não se tolera a existência de unia vida política autêntica, existindo apenas um partido oficial (União Liberal, 1891). O presidente nomeia

Page 205: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

todos os funcionários na administração pública, recrutando para os cargos superiores homens competentes. O congresso e o poder judiciário carecem da -mínima independência.

Além disso o regime conta com sua própria equipe ideológica, os "Cientistas". São intelectuais, funcionários e empresários de mentalidade positivista, admiradores da ciência, da indústria e do livro câmbio, que elaboram um programa de crescimento econômico e de reforma administrativa modernizante. Segundo sua concepção, que se torna dogma oficial, os investidores estrangeiros devem contribuir com capitais e com a aptidão empresarial que, segundo se acredita, o país não possui. O próprio progresso, em seguida, permitirá que se os substitua por mexicanos nos pontos críticos da economia. Para tanto deve-se criar um clima favorável para os investidores estrangeiros e também em seu seio. Esta operação abarca, pelo menos, dois -aspectos essenciais. De um lado, desencadeia-se uma campanha sistemática de descrédito contra o povo mexicano, especialmente indígenas e mestiços, aos quais se atribui uma incapacidade racial congênita. e uma crescente tendência degenerativa. O menosprezo da cultura nacional recebe consagração oficial. A orientação desnacionalizante torna-se evidente na cultura, arquitetura, arte e costumes. Por outro lado, o México deve oferecer todos os incentivos possíveis aos investidores estrangeiros, especialmente condições de estabilidade sócio-econômica o política, favoritismo e alta rentabilidade.

O Porfiriato começa por restabelecer a confiança da oligarquia nacional e dos investidores estrangeiros. A dívida externa é reajustada por meio de negociações com os credores estrangeiros. A dívidas interna é reduzida mediante reembolsos e conversões. As dívidas públicas são escrupulosamente pagas. O orçamento fiscal alcança o equilíbrio e logo a seguir o superavit. A crescente estabilidade monetária termina por possibilitar, em 1905, a adoção do padrão curo. As leis mexicanas são modificadas em favor dos estrangeiros e multiplicam-se as concessões a estes. O prestígio Internacional do regime sobe rapidamente. Em 1890 o governo tinha que pagar um juro de 6% e um desconto de 35% para obter um empréstimo; para igual fim as condições baixas, respectivamente, a 4% e 3 %, em 1910.

Os investimentos estrangeiros começam a penetrar em quantidades cada vez mais consideráveis. Dirigem-se para a exploração

236 FORMAÇÃO DO ESTADO NACIONAL agropecuária, ferrovias, serviços públicos, petróleo e mineração, comércio atacadista e varejistas, adquirindo uma posição dominante na economia. A inclusão de membros da família do presidente e de seu círculo mais íntimo nas direções das empresas estrangeras reforça os vínculos entre estas e o sistema de poder.

Page 206: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

O Porfiriato realiza uma distribuição maciça de terras em favor de capitalistas estrangeiros e nacionais, políticos e generais ' ás expensas, sobretudo, do campesinato indígena. Entre 1883 e 1894, 1/5 da superfície total da república é repartida entre especuladores estrangeiros e amigos pessoais do círculo dirigente. Por volta de 1910, apenas cerca de 10% das comunidades indígenas conservam algo de suas terras. O Código das Minas de 1884 outorga aos donos do solo a propriedade, do subsolo e em 1910, 3/4 das minas pertencem a estrangeiros.

As principais correntes de investimentos procedem dos Estados Unidos Por pressão destes, o governo do México franqueia o território para a construção de ferrovias às companhias norte-americanas seguidas por falanges de petroleiros, mineradores, percuaristas, especuladores em terras, comerciantes e industriais da mesma origem. O tráfico mercantil interno passa também a ser dominado por grupos norte-americanos. A ação britânica dirige-se para a agricultura, mineração, petróleo, comércio exterior, bancos e indústria. A França faz grandes investimentos na indústria têxtil. A Alemanha adquire posição importante no comércio exterior. A Espanha concentra-se no comércio atacadista e varejista e nas plantações de tabaco. Dentro de sua política geral de investimentos estrangeiros, o Porfiriato tenta contrabalançar a influência norte-americana com a européia, impedindo. assim que as ferrovias caiam totalmente nas mãos dos pri- meiros.

Sob o Porfiriato, o México penetra em cheio no desenvolvimento capitalista dependente. As estatísticas oficiais, que se publicam pela primeira vez com regularidade e que têm no estrangeiro ampla difusão, exibem os índices da prosperidade e do progresso. A rede ferroviária cresce de algumas centenas de milhas a mais de 15 mil. O comércio exterior é diversificado, decuplicando-se entre 1873 e 1910, alimentado pela expansão da mineração e, da produção agropecuária (prata, ouro, cobre, petróleo açúcar, juta). A indústria amplia-se em quantidade e diversidade (fundições de chumbo, dobre, ferro e aço, fiações de algodão e lã, química, alimentação, manufaturas de tabaco, centrais hidroelétricas). O crédito externo e o afluxo de capitais estrangeiros parecem não ter limites. A população aumenta em cerca de 50% de 1880 a 1910.

AS ESPECIFICIDADES NACIONAIS 237

A face brilhante do progresso e prosperidade material encobre uma realidade sombria e ameaçadora. A maioria do povo mexicano recebe pouco ou nenhum benefício da política porfirista e do crescimento econômico dependente e deformado, que ela promove e reflete. A concentração de riqueza e poder por uma minoria de nativos e estrangeiros é acompanhada pela espoliação, miséria e opressão dos operarias, camponeses e camadas médias inferiores. O rápido cres- cimento demográfico ameaça ultrapassar os limites de um sistema socioeconômico e político cada vez mais rígido. A dominação estrangeira sobre a vida nacional é exercida de maneira quase absoluta e vai criando um nacionalismo que termina por

Page 207: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

converter-se em violenta e generalizada xenofobia. O próprio Porfirio Díaz, nos últimos anos de seu regime, teme ter-se excedido ao colocar o México "muito longe de Deus e muito perto dos Estados Unidos" e começa a manobrar com as empresas estrangeiras e com as grandes potências para diminuir sua influência relativa (principalmente no que se refere às ferrovias e ao petróleo). As suas tardias veleidades nacionalistas não são compreendidas nem acreditadas pelo povo mexicano, porém irritam os interesses estrangeiros que começam a retirar seu apoio ao regime e até a estimular conspirações contra ele.

O Porfiriato já sobreviveu muito tempo. Os êxitos que o justificam parecem conquistados e seus aspectos opressivos passam ao primeiro plano. Intelectuais e políticos intensificam sua atividade oposicionista. Porfírio Díaz e seu círculo mais íntimo vão-se isolando do país, envelhecem, não dando lugar a homens novos e a promoções juvenis. O regime acumulou durante décadas uma massa de materiais explosivos que uma fagulha ocasional ou Imprevista converterá na gigantesca fogueira revolucionária de 1910.

CAPÍTULO VII

TRANSIÇÃO PARA A CRISE

A análise até agora efetuada refere-se à estrutura e à dinâmica do Estado na América Latina, como resultado e agente da aplicação de um modelo de crescimento dependente, superficial e por estímulos externos, em regime de economia liberal e dentro do quadro de um desenvolvimento capitalista internacional. Este processo prolonga-se, até os fins do século XIX. Dos começos do século XX até à crise de 1929 produzem-se transformações nas metrópoles e no sistema internacional e as concomitantes mudanças daí resultantes na América Latina, que conformam uma etapa de transição, preparam e prefiguram a etapa de, crise estrutural.

A seguir analisaremos sucessivamente as modificações ocorridas no sistema internacional, suas implicações na América Latina e os aspectos específicos do processo no Chile, Argentina, Brasil e México.

1. MODIFTCAÇOES DO SISTEMA INTERNACIONAL

Aproximadamente a partir do último quartel do século XIX o capitalismo entra em uma Segunda Revolução Industrial, em si e por suas repercussões mundiais, mais veloz, totalizante e causadora de impacto que a primeira. Constitui um ponto de inflexão decisivo, a partir do

Page 208: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

qual os problemas de hoje começam já a apresentar um perfil visível e a história estritamente contemporânea tem início.

A Segunda Revolução Industrial apresenta, com efeito, características especiais que a diferenciam da primeira, da qual constitui a contabilidade e um salto qualitativo. Tem um caráter mais científico e apresenta menor dependência do empirismo. A ciência e a tecnologia incidem decisivamente na organização e no funcionamento das economias e das sociedades nacionais metropolitanas e depen-

240 FORMAÇÃO DO ESTADO NACIONAL dentes e no sistema internacional em seu conjunto. As ciências progridem rapidamente, sofrem profunda transformação interna, aumentando suas influências recíprocas e sobre a tecnologia, indústria, agricultura, transportes, comunicações, estrutura econômica, estratifição social e sistema de poder. O progresso tecno-científico possibilita uma produção mais eficiente dos bens e serviços ja existentes e de outros novos, com resultados sem precedentes quanto à velocidade e horizontes de influência: todos os aspectos e níveis da organização, produção, existência e cultura em escala planetária.

As fontes de energia, luz e calor são ampliadas, com a adição do petróleo e da eletricidade, havendo com relação a estes a invenção dos motores a explosão e elétricos. A siderurgia e a metalurgia recebem novo impulso. O aço torna se um material industrial de baixo custo e primordial importância e, logo em seguida, são utilizados e adquirem valor crescente, o alumínio, o níquel, o cobre e o chumbo. O progresso da siderurgia e da metalurgia contribui para o avanço das indústrias mecânicas, de construção e o transporte (navegação, automóveis, aviação). A indústria química tem um desenvolvimento decisivo, refletido na produção de anilinas, têxteis sintéticos e na agricultura. A importância relativa dos diferentes ramos industriais na economia mundial modifica-se profundamente em favor de alguns deles (aço, construção mecânica, automóveis).

Os avanços da medicina, higiene e nutrição reduzem a taxa de mortalidade e determinam o considerável aumento da população logo em oposição aos fatores mencionados mais adiante - absorvido predominantemente pelas cidades. A aplicação das novas ciências e técnicas na agricultura (química, mecanização) faz crescer sua produtividade, possibilitando o abastecimento a baixo custo das populações industriais e urbanas.

MONOPÓLIO E IMPERIALISMO

Page 209: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

A Segunda Revolução Industrial age como solvente do capitalismo liberal clássico e como catalisador do capitalismo monopolista e imperialista, que o substitui. Cria uma nova sociedade urbano-industrial nas metrópoles, projetando-a em níveis decrescentes e sob formas dependentes, desiguais e mistas para o resto do mundo. Dá poderoso impulso à centralização e concentração de capitais e empresas, exigência e possibilidade simultâneas das novas técnicas e instalações (aço) e das novas indústrias (alumínio, química, aparelhos elétricos, automóveis) . A massa de equipamentos e seu alto custa

TRANSIÇÃO PARA A CRISE 241 exigem enormes investimentos dos quais são capazes apenas as grandes empresas. Além disso, as novas técnicas favorecem a concentração ao permitir a sincronização da produção fabril (subdivisão crescente do trabalho, operações em cadeia). A centralização e a concentração dão-se precisamente nas indústrias mais novas e nos países adiantados que, por participarem tardiamente do desenvolvimento industrial, apenas adotam os aspectos e elementos mais modernos da estrutura produtiva (Alemanha, Estados Unidos, Japão, Rússia, Itália). Partindo das novas indústrias e dos centros de desenvolvimento mais recente, a centralização e a concentração propagam-se, em maior ou menor grau, em todas as direções, a ramos e regiões até então relativamente marginais no processo geral.

A centralização e a concentração podem ser medidas nas porcentagens de participação das grandes empresas no total de investimentos, capital fixo, pessoal, produção e lucros. A concentração aumenta a capacidade competitiva das grandes empresas em relação às médias e pequenas que são liquidadas, reduzidas à subordinação ou totalmente absorvidas. A concentração contribui para que aumentem as possibilidades de crises de superprodução e tentando reduzi-las, ou seus efeitos, recorre-se à racionalização e à gestão unificada das empresas o que reforça, ainda mais, a tendência à concentração, que se torna irreversível. A urbanização, o surgimento e expansão de áreas metropolitanas e regiões urbano-industriais é são resultados da concentração empresarial (necessidade de mão-de-obra disponível em grande escala, diversificação induzída da estrutura econômica), reforçando-a (mercado de massas).

Os enormes investimentos de capital fixo implicam amortizações rápidas e regulares, aumento dos riscos e a conseqüente necessidade de manter estabilizados em níveis altos preços e lucros. Em sua defesa as grandes empresas evitam a luta ruinosa, reduzindo sua mútua concorrência mediante acordos nos setores fundamentais da economia. O capitalismo das empresas individuais de tamanho reduzido ou médio é substituído pelo das firmas-gigantes. Ao regime de livre concorrência sucede o dos monopólios. Isto se dá, simultaneamente, na indústria e nos bancos. A centralização e concentração industriais e bancárias reforçam-se mutuamente e seu entrelaçamento gera o capital financeiro como forma dominante da economia, da sociedade e da vida política, O processo monopolista assume ampla gama de formas que vão dos acordos de cavalheiros à fusão completa de empresas, passando pelos convênios de preços, pools, cartels, trustsy holdings e konzern.

Page 210: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

242 FORMAÇÃO DO ESTADO NACIONAL

Por meio do monopólio e do oligopólio as empresas-gigantes, eliminando ou reduzindo a concorrência, conseguem manter e aumentar seus preços de venda e taxas de lucro, ultrapassando os níveis médios dos preços de produção e lucro. A isto acrescentam o aproveitamento das possibilidades de maior e iência econômica. A grande dimensão proporciona uma posição superior no mercado para obter bens, serviços, fora de trabalho e especialistas e para determinar fa- voravelmente preços, tarifas e fontes de recursos financeiros. Possibilita também a racionalização intensiva da produção, a aplicação sistemática dos descobrimentos técnicos, o avanço da organização do trabalho, o aumento do rendimento, a diminuição dos custos e a melhora da qualidade. O monopólio produz efeitos irreversíveis na economia, na sociedade e na política. As grandes empresas fixam preços mínimos, impostos por unia coação de fato, distribuindo-os por categorias de consumidores, recorrem vitoriosamente ao dumping e exercem controles de exclusividade. Regulam a aplicação do progresso técnico (patentes) e o mercado de trabalho, volume de ocupação e nível das remunerações. Influem decisivamente sobre a vida política, o Estado, a cultura e a ideologia.

O monopólio introduz fatores de rigidez e irracionalidade no sistema econômico. O aumento do capital fixo tira das grandes empresas a capacidade de adaptação às flutuações conjunturais e estruturais, especialmente nos momentos de crise. A economia passa a ser composta de zonas com diferentes plasticidades, com uma menor plasticidade no conjunto. Os consórcios mopolistas são propensos ao conservadorismo malthusiano. Travam o progresso técnico e econômico. Em função dos níveis procurados de preços e lucros, limitam deliberadamente a produção para fazê-la absorvível pela demanda solvente. Suprimem ou retardam a aplicação de inovações tecnológicas. Criam e reforçam novas formas de parasitismo, por exemplo, as que surgem da crescente dissociação entre os aplicadores de fundos e organizadores financeiros (financistas), de um lado, e os dirigentes técnicos efetivos, de outro; entre a propriedade o a gestão.

Na verdade, a concorrência não desaparece. Reproduz-se em nível mais alto e de maneira exacerbada. Internamente, entre os consórcios monopelistas e entre estes e as empresas não-monopolizadas e no plano internacional pelas lutas interimperialistas.

O monopólio acompanha-se, com efeito, pela emergência do imperialismo de tipo capitalista. Aquele acelera a aparição de excedentes de capitais nos países desenvolvidos, devido à queda da taxa de lucro e tende a procurar, com crescente urgência, seu investimento em países menos desenvolvidos nos quais a abundância de mão-de-obra

Page 211: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

TRANSIÇÃO PARA A CRISE 243 barata permite uma aplicação proporcionalmente menor de capital fixo e uma superexploração, traduzida em lucros superiores aos obtidos nas metrópoles. À exportação de mercadorias, característica da etapa capitalista precedente, agrega-se agora, como traço dominante, a exportação de capitais, entrelaçada com a primeira sem eliminá-la. A exportação de capitais vê-se naturalmente favorecida pela simultânea revolução nos transportes e comunicações internacionais.

A motivação básica da expansão dos investimentos une-se a outras também significativas. A indústria européia, devoradora de matérias-primas e obrigada a alimentar uma população fabril e urbana crescente, lança-se em direção às regiões menos desenvolvidas e mais dependentes em busca de fontes de níquel, nitratos, cobre, chumbo, borracha, petróleo e alimentos. A dimensão extrametropolitana da produção primária estende-se cada vez mais no rumo das terras trospicais e subtropicais. Além disto, os países dependentes, semicolo- niais e coloniais proporcionam mercado para a produção industrial das metrópoles e ocupação e possibilidades de enriquecimento para seus soldados, administradores, concessionários e contratadores. O prodigioso desenvolvimento científico e tecnológico tende a romper o equilíbrio de forças entre as grandes nações e sua expansão é um modo de restabelecê-lo em plano mundial. O impacto da prolongada depressão de 1873 a 1896 também estimula a saída para o mundo como mecanismo compensatório.

Esta dinâmica expansionista modifica a ação econômica, política, diplomática e estratégica das grandes potências européias, do Japão e dos Estados Unidos. Seus monopólios e governos lançam-se em desenfreada corrida em que cada qual busca, às expensas de seus competidores, preservar o campo de ação nacional e invadir o alheio, apoderar-se de novos territórios (fontes de matérias-primas e mão- de-obra, mercados, zonas de investimento), obter e garantir um afluxo contínuo de amortizações, juros e dividendos a partir das implantações e mecanismos colonialistas. É este o conteúdo e significado da época da ascensão imperialista que vai de 1875, aproximadamente, até 1914.

O imperialismo opera como movimento mundial envolvendo todos os países industriais e é exercido sobre todo o planeta. Grã-Bretanha, França, Alemanha, Rússia, Japão e Estados Unidos repartem entro si o mundo, por meio de modalidades coloniais diretas ou pela criação de zonas de influência sobre países formalmente independentes. Em menos de uma geração, 1/5 da superfície e 1/10 da população do globo são açambarcados por aqueles países, principalmen-

244 FORMAÇÃO DO ESTADO NACIONAL te na África, Ásia e Oceania. O imperialismo começa a realizar a integração mundial como unidade em que tudo interage e afeta a tudo. A

Page 212: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

interconexão econômica e financeira a nível planetário alcança um grau até então sem precedentes. A divisão do trabalho, a socialização e a internacionalização da produção realizam-se em escala global. O mercado mundial no qual, até 1914, bens, capitais e pessoas circulam livremente por uma rede cada vez mais densa e efetiva de transportes e comunicações rege-se por preços mundiais.

Esta aparente realização do velho sonho liberal apenas mascara, em verdade, o conteúdo real que a condiciona e contradiz. O processo desenvolve-se pelo impulso, sob o controle e em benefício das burguesias imperialistas. Estas exportam o capitalismo monopolista para a periferia dependente e colonial, submetendo-a a uma dominação e expoliação desenfreadas, utilizando-se de seu próprio poderio econômico, político e militar, do progresso dos transportes e comunicações, das inovações tecnológicas e da eficiência da moderna orga- nização empresarial. Os cartels internacionais expandem-se pelos mais diversos ramos e regiões, repartindo entre si o planeta. Dominam nações inteiras (campany countries), unilateralizam e deformam suas organizações tribais e políticas (colônias) ou seus Estados (dependências) . As grandes potências evoluem bastante em força e auto-consciência e a brecha existente entre elas e o resto do mundo não faz mais que crescer até 1914.

Após os fatos do imperialismo chega sua doutrina. A expansão colonial é apresentada como uma responsabilidade e encargo do homem branco em sua tarefa civilizadora das raças inferiores. O nacionalismo chovinistas exalta a própria segurança de cada metrópole e o militarismo que serve seus interesses. O liberalismo econômico reduz-se em prestígio e influência real pela emergência crescente de um neomercantilismo que vê no império a base indispensável da auto-suficiência nacional para a sobrevivência em um mundo de ferozes concorrências, liquidando, de fato, o livre câmbio nas metrópoles e colônias. Os países industriais esforçam-se por estabelecer combinações bilaterais de intercâmbio e grupos coloniais e semicoloniais próprios: o Império Britânico, o sistema colonial francês, a estratégia expansionista alemã na Europa Central e no Oriente Próximo ("Mittel Europa", "Drang nach Osten"), as áreas comerciais dos Estados Unidos e do Japão. A integração econômica internacional é acompanhada da fusão das principais regiões do planeta em um sistema político universal onde - e já não mais na Europa - tomamam-se e executam-se, cada vez mais, as grandes decisões.

245

O imperialismo possibilita a expansão capitalista durante 40 anos. Ao mesmo tempo cria e multiplica tensões e conflitos, além de novos centros de gravidade no sistema internacional, e começa a encontrar limites. A partilha do mundo concluiu-se nos princípios do século XX com a divisão da China em esferas de influência das principais potências. A única alternativa disponível 'as grandes nações que entraram tardiamente na arena mundial é a redistribuição

Page 213: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

do já repartido. As lutas de concorrências e a modificação das relações de força entre as potências ameaçam, durante muito tempo, desembocar em conflitos armados e levam, finalmente, à conflagração de 1914.

ACRISE BÉLICA

A Guerra de 1914-1918 é tanto resultado como agente efetivo no processo de luta interimperialista. Reflete modificações significativas no equilíbrio entre as grandes potências e entre a Europa e o resto do mundo, conduzindo-as a um desenlace transcendente. A compreensão do significado dessa guerra e de suas conseqüências exige uma sumária referência às mudanças ocorridas, especialmente aquelas que se referem à nova situação das grandes potências, em si mesmas e na sua relação com o sistema global.

Na expansão capitalista do século XX, a Grã-Bretanha faz-se e opera como potência dominante e oficina industrial do mundo, primeira em compras de matéria-prima, venda de produção manufatureira e em investimento de capitais. Até 1860 é, praticamente, o único país que investe no exterior. Ainda em 1914 os investimentos britânicos representam cerca de 42% do total mundial de investimentos estrangeiros (USS 18 mil milhões e US$ 44 mil milhões, respectiva- mente). Provê e regula, na City, o primeiro centro financeiro mundial, as mais decisivas correntes de capitais por uma rede que, em 1914, compreende cerca de 3 mil agências bancárias em todo o planeta. Possui a principal marinha mercante e de guerra. Encabeça a expansão colonizadora mundial graças à sua capacidade produtiva, comercial, e financeira, a seus navios de guerra e regimentos e ao aríete espiritual de seus ideólogos e missionários.

"Era tão absoluta esta supremacia que necessitava apenas de controle político para funcionar. Não havia (por volta de 1850) outros poderes coloniais, exceto aqueles permitidos pelos britânicos e, portanto, estes não tinham rivais... Nunca, em toda história, uma única potência exerceu uma hegemonia mundial como a britânica dos

246 FORMAÇAO DO ESTADO NACIONAL meados do século XIX, pois até mesmo os grandes impérios e hegemonias do passado - a chinesa, a muçulmana, a romana foram meramente regionais. Nunca, desde então, uma potência sozinha logrou restabelecer uma hegemonia comparável, nem é provável que o consiga em um futuro previsível, pois nenhum poder desde àquela época pôde reivindicar o status adequado de oficina do mundo. . . " (Hobs- bawn, E. J. The age of revolulion (1789-1848). p. 355-6).

Page 214: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

A futura decadência da Grã-Bretanha foi prevista, no entanto, já nas primeiras décadas de século XIX. Alexis de Tocqueville predisse a conversão dos Estados Unidos e da Rússia em potências gigantescas. F. Engels pressentiu, por volta de 1844, a concorrência temível cia Alemanha. Desde 1875 torna-se visível o retrocesso da Grã-Bretanha em relação a países situados dentro e fora da Europa - Alemanha, Estados Unidos, Japão - que iniciam, com ritmos e alternativas variáveis, uma rápida ascensão ameaçadora da hegemonia britânica.

Adormecida no desfrute de sua posição imperial privilegiada, grande intermediária e usurária do mundo, a Grã-Bretanha vai-se atrasando na concorrência econômica internacional. A produtividade, de seu aparelho tecnológico cresce muito lentamente e, de fato, estanca-se em relação aos rivais novos e mais dinâmicos. A participação britânica na produção industrial do mundo reduz-se; na de ferro baixa de 50% em 1870 para 12% em 1913. Suas indústrias mineiras, especialmente a do carvão, tornam-se cada vez mais atrasadas e ine- ficientes. A tendência à baixa dos preços, duradoura no período de 1874 a 1896, e uma certa melhoria das remunerações operárias reduzem os lucros e o ritmo dos investimentos industriais. A Segunda Revolução a faz perder definitivamente sua preponderância quase monopolista na produção industrial. Assim, o deslocamento do carvão pelo petróleo prejudica a Grã-Bretanha em benefício dos Estados Unidos, possuidores de vastas reservas do combustível líquido. A concorrência crescente da Alemanha e dos Estados Unidos priva de mercados a Grã-Bretanha, determina uma velocidade decrescente no desenvolvimento de sua produção e de seu comércio exterior, contribui no desemprego e na baixa das remunerações operárias.

Nesta situação o frente, sobretudo, à ameaça alemã, a Grã-Bretanha reage em dupla direção. De um lado, tende a reforçar os laços com seu Império, no qual, em 1914 encontra-se 47% dos investimentos externos britânicos, contra uns 20% nos Estados Unidos, outros tantos na América Latina e 6% na Europa. Isto não se dá sem dificuldades. Os domínios brancos da coroa inglesa (Canadá, Austrália, Nova Zelândia) não aceitam a necessária identificação de in-

TRANSIÇÃO PARA A CRISE 247

teresses entre eles e a metrópole, reclamam maior autonomia, desconfiam da capacidade daquela em salvaguardar a unidade do Império e satisfazer as necessidades mínimas dos seus componentes, especulam sobre as implicações das mutações em marcha no sistema mundial e lançam olhares, não-indiferentes, para os Estados Unidos em ascensão. Nos domínios restantes, de população amarela e negra, aparecem os gérmens da insatisfação e da rebeldia. Por outro lado, a Grã-Bretanha reforça sua frota e procura colocar-se à testa de um bloco antialemão, cristalizando na Entente Cordial.

Page 215: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

O bloco oposto que se alinha na Europa está encabeçado pela Alemanha. Esta atravessa durante o último quartel do século XIX um poderoso desenvolvimento industrial, convertendo-se em um dos principais protagonistas da Segunda Revolução tecno-científica, supera a Grã-Bretanha e a França e passa rapidamente a ser grande exportadora de manufaturas e de capitais. Seus investimentos estrangeiros alcançam em 1914 a cifra de US$ 6 mil milhões (13,7% do total) situados na Europa Central (53%), América Latina (16%) e América do Norte (15%).

O fulgurante desenvolvimento da Alemanha e sua conseqüente necessidade de expansão externa acham-se contudo limitados por sua chegada tardia à partilha do mundo. Seu império colonial é de insignificante dimensão e, dada a desfavorável situação geográfica da metrópole, as comunicações entre um e outra são vulneráveis e expostas à agressão de uma potência naval hostil, sobretudo a Grã-Bretanha. A expansão alemã tende fatalmente a colocar em questão a partilha, já realizada, do mundo. A estratégia decorrente visa reorganizar a Europa Central sob sua égide, para competir com os outros impérios e ganhar o direito de participar na política mundial, pelo menos com igual força que aqueles; formar um bloco colonial de ultramar, na África, Ásia e América Latina e realizar, através da Europa do Leste e Sudeste (Império Austro-Húngaro, Balcãs) a marcha em direção à Turquia e ao coração da Ásia. O delineamento dessa estratégia e a vigorosa entrada da Alemanha na corrida armamentista, sobretudo naval, são os fatores decisivos de alarme britânico a que se fez referência.

Por volta de 1914 constituem-se dois blocos europeus, encabeçados pela Grã-Bretanha e pela Alemanha. Do primeiro fazem parte principalmente a França e a Rússia. A França possui um império colonial considerável. Seus investimentos estrangeiros alcançam em 1914 a cifra de US$ 8 500 milhões, 19,3% do total mundial, dos quais correspondem cerca de 61% à Europa (25% à Rússia) e 9% ao próprio império. No entanto, a França se atrasa em seu desen-

248 FORMAÇÃO DO ESTADO NACIONAL volvimento e industrial. Em termos demográficos, produtivos e militares é superada pela Alemanha e esta posição desvantajosa, somada ao fantasma de 1870 e ao revanchismo virulento nascido deste, induzem-na a estreitar sua aliança com a Grã-Bretanha e com a Rússia Czarista, para a qual canaliza investimentos e empréstimos. A Rússia vê-se arrastada ao conflito, em parte consciente e em parte inconscientemente, pela necessidade de frear a expansão alemã em direção aos Balcãs, de população eslava, pela tradição pan-eslavista, pelos laços econômicos e financeiros com à França e a Grã-Bretanha e pela conveniência de desviar para fora a crescente pressão das massas, cuja força ameaçadora a Revolução de 1905 revelou.

O quadro explicativo da I Guerra Mundial e a indicação de sua implicações e conseqüências exige que se considerem, além desses outros fatores e circunstâncias referentes à situação global da Europa em si mesma e em relação ao sistema mundial.

Page 216: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

Desde antes de 1914 o poder e a capacidade expansiva da Europa começaram a debilitar-se. Nos fins do século XIX e em particular nas primeiras décadas do século XX vai-se corporificando um processo de erosão do predomínio europeu. As potências européias devem enfrentar simultaneamente problemas emergentes de sei próprio passado e de uma nova situação mundial. As lutas internacionais absorvem o melhor de suas energias e recursos, impossibilitando-lhes o acordo para realizar em comum, com unidade de propósitos e pela força, a empresa colonial. Esta, ao lado de seus benefícios, obriga-as a estender-se e comprometer-se além de suas possibilidades. A expansão colonial desencadeia na periferia processos que logo não podem ser detidos, revertidos ou controlados, modificando inclusive suas premissas iniciais. Embora nem todas as implicações desta situação sejam visíveis antes de 1914, uma pelo menos o é: a insuficiência de recursos, sobretudo humanos. Desde 1900, aproximadamente, começa a baixar na Europa a taxa de crescimento demográfico relativo, pelo impacto do alto nível de vida, da difusão de métodos anticoncepcionais, da prolongada depressão durante as últimas décadas do século XIX e das migrações internacionais. Isto, combinado à tendência demográfica ascendente da Ásia e África (queda da taxa de mortalidade, manutenção ou aumento da taxa de fertilidade) origina um desequilíbrio relativo, traduzido na capacidade decrescente de controlar os territórios coloniais com um número suficiente de população branca. Esta situação divergente apenas temporariamente é compensada pela superioridade industrial e militar dos países europeus.

TRANSIÇÃO PARA A CRISE 249

O fenômeno indicado faz parte de um processo mais geral em virtude do qual vão surgindo fora da Europa novos centros de população e de poder, que desgastam e limitam cada vez mais o predomínio tradicional daquela. Citemos os Estados Unidos, Japão e Rússia.

Os Estados Unidos concluem a ocupação de seu espaço interior e realizam um processo de acumulação de capitais e de desenvolvimento industrial que os introduz na etapa da expansão externa. Sua posição como produtor e exportador industrial vem-se fortalecendo às vésperas da I Guerra Mundial. Deixam de ser um alvo para as migrações, manufaturas e investimentos da Europa e tomam-se ex- portadores de bens e capitais. Em 1914, sendo ainda devedores líquidos, começam a investir e a estabelecer empresas no Canadá, América Central e Caribe e até na Europa. Seus investimentos exteriores alcançam a cifra de 3 500 milhões de dólares, 7,7% do total. Sua expansão, sem desligar-se do eixo atlântico, tende a deslocar-se cada vez mais para o Pacífico. A esta nova e crescente orientação responde o desenvolvimento da Califórnia. Os Estados Unidos conseguem manter-se afastados das complicações e vicissitudes da política européia mas as utilizam na promoção de seus próprios interesses. Intervêm cada vez mais decisivamente na política mundial, orientando-se para a Ásia e a América Latina, tomam contato e chocam-se com os outros imperialismos (sirva de exemplo a China).

Page 217: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

O Japão também intensifica seu desenvolvimento industrial, sua expansão comercial e financeira e seu poderio militar. Amplia sua influência na Ásia e contribui - juntamente com os Estados Unidos e a Rússia - para atrapalhar a partilha da China entre as potências européias, obtendo-se uma distribuição mais ampla de esferas de influência. Seu triunfo bélico sobre a Rússia em 1904-1905 revela surpreendentemente seu alarmante progresso. Escarranchada entre dois mundos - o do passado semifeudal e burocrático e o do modernismo, o do Ocidente e o do Oriente - a Rússia Czarista obstaculiza, de sua parte e a seu modo, a expansão e o predomínio da Europa mais desenvolvida e participa, com a colonização incipiente da Síbéria, no movimento geral de deslocamento em direção ao eixo do Pacífico.

O tradicional sistema de equilíbrio de poderes, conteúdo e regulador do equilíbrio mundial em seu conjunto, começa a tornar-se obsoleto. Os países europeus debilitam-se relativamente e suas rivalidades e conflitos tornam-se agudos a tal ponto que a Grã-Bretanha não pode mais continuar como fiel da balança. As áreas continentais e regionais fundem-se em um sistema internacional amplificado, em esca-

250 FORMAÇÃO DO ESTADO NACIONAL la global, onde se tomam as grandes decisões finais, condicionantes das potências européias. Fora da Europa surgem novos centros de população, produção, poder e cultura, que não aceitam mais a liderança, as normas e as imposições da Europa, a questionam e desafiam, opondo-lhe suas próprias alternativas (Estados Unidos, Rússia, Japão). Sem que ela mesmo saiba, sem que ninguém o perceba de início, a Europa entra no século XX retrocedendo. A revelação brutal é proporcionada por 1914 e suas seqüelas.

CONSEQUÊNCIAS DA PRIMEIRA GUERRA MUNDIAL

Na Guerra de 1914-1918, desenlace apocalítico dos processos e conflitos que foram indicados, enfrentam-se dois blocos: Grã-Bretanha, França, Rússia, Itália, Japão e Estados Unidos, de um lado, Alemanha, Áustria-Hungria e Turquia, do outro. Ao redor de ambos os eixos gira uma série de países menores, arrastados, mais ou menos voluntariamente, ao conflito. Acima e além de seus resultados estritamente militares a guerra tem conseqüências transcendentais. Abala de maneira violenta e profunda o sistema capitalista, corroendo-o e tornando-o mais vulnerável; debilita o prestígio e o consenso de que gozara; marca o fim de um período de sua história e o início de um outro, novo. A guerra determina a interrupção do desenvolvimento capitalista mundial que até então parecia ilimitado, produz uma transferência de riqueza e poder em seu interior, arruinando uma parte da burguesia mundial e reforçando outra.

Page 218: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

A preexistente tendência ao debilitamento e à paralisação da expansão européia reforça-se e prolonga-se. A Europa é o campo de batalha. Os países europeus que participam da guerra, vencedores ou vencidos, sofrem enormes perdas humanas e materiais, debilitam-se e empobrecem; e com eles o capitalismo europeu em seu conjunto.

A absorção bélica da mão-de-obra e das fábricas, a queda dos investimentos e da reposição, com a consequente deterioração, contribuem para que, em 1919, a produção industrial se reduza em mais de 1/3, com relação ao nível de pré-guerra. Algo semelhante ocorre na agricultura e nos transportes. Grande parte do posterior aumento da produção - que com grande esforço alcança apenas o nível anterior - deve ser destinado à reparação direta ou indireta das destruições bé- licas.

Os beligerantes são obrigados a liquidar uma parte importante de seus ativos no estrangeiro, principalmente nos Estados Unidos e América Latina. A Alemanha perde quase a totalidade de seus há-

TRANSIÇÃO PARA A CRISE 251 veres e torna-se receptará de investimentos estrangeiros. A Revolução Bolchevique de 1917 e o desaparecimento do império otomano ,aniquilam as esperanças dos possuidores franceses, ingleses e belgas de valores russos e turcos. Um quarto dos haveres britânicos no exterior e a metade dos franceses são perdidos ou transferidos. A Europa vê reduzidos seus investimentos no exterior e obtém menores-entradas do resto. Suas exportações de capitais não recuperam o nível de pré-guerra. O acerto das astronômicas dívidas originadas pelo conflito contribui, de maneira geral, para estimular a inflação interna' criando complexos problemas cambiais. A estabilização monetária internacional restabelece-se precariamente até 1930. Os países desenvolvidos recorrem a todos os instrumentos protecionistas para preservar o equilíbrio de seu balanço de pagamentos, o que limita o livre movimento internacional de mercadorias, capitais e pessoas. O mercado mundial tende a retrair-se, fracionar-se, explodir. A configuração geral do comércio internacional modifica-se. O intercâmbio cresce mais lentamente que a produção mundial. Tomando-se o volume total do comércio mundial em 1913 como base (igual a 100), o número-índice para 1924-25 cai para 82,3 e para 1926-30 sobe penosamente a 110,1. Entre 1913 e 1926, a participação do comércio mundial entre os continentes redistribui-se. A Europa passa de 58,5 a 47,9%; América do Norte, de 14 a 19%; Ásia, de 12,3 a 17,1%; América do Sul, de 6,2% a 5,8%; América Central, de 2,1 a 2,6%; África, de 4,3 a 4,4%; Oceania, de 2,6 a 3,2%., O comércio mundial deixa de ser a válvula de segurança para a superprodução capitalista. A recuperação, frágil e limitada, realiza-se, além disso, mediante processos (racionalização, concentração, inflação) que tendem a produzir mais com menos homens, redistribuem a renda nacional reduzida em benefício do grande capital e em detrimento das camadas médias e proletárias, polarizam a sociedade, criando um estado quase permanente de graves conflitos sociais e políticos.

Page 219: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

A posição da Europa como centro do mundo capitalista é solapada também por outras circunstâncias de. inegável incidência.

A Europa oriental e do sudeste, que até 1914 tinha funcionado como válvula de escape para Grã-Bretanha, França e Alemanha, é subdividida - devido à derrocada do Império Austro-Húngaro e ao cordão sanitário contra a Revolução Russa - em um grande número de unidades nacionais médias e pequenas, de escassa viabilidade nacional para o desenvolvimento interno e incapazes de continuar funcionando como área de expansão capitalista @:dos países da Europa ocidental.

252 FORMAÇÃO DO ESTADO NACIONAL

As mudanças limitativas e irruptivos mais importantes ocorem fora da Europa Ocidental: a ascensão do Japão e dos Estados Unidos, a Revolução Russa, o desenvolvimento crescente. da rebelião colonial.

O Japão intervém na I Guerra Mundial em favor dos futuros vencedores, sem grandes gastos nem riscos e seu próprio desenvolvimento vê-se favorecido pelo conflito. Deixa de ser uma zona reservada para a expansão européia e tende a atuar como grande produtor e exportador industrial, como investidor no estrangeiro, ampliar sua zona de influência (China, Sudeste asiático), embora não deixe de ser uma potência de segunda categoria.

Os Estados Unidos intervêm na 1 Guerra Mundial (1917) devido à importância de seus laços econômicos e financeiros com a Grã-Bretanha e a França, e, como reação frente à crescente agressividade do imperialismo alemão. Sua intervenção funciona como fiel da balança, convertendo o empate até então existente entre ambos os lados no triunfo de seus aliados e apenas causando-lhes insignificantes perdas em homens e recursos. A participação norte-americana na guerra representa o ponto decisivo de inflexão e de passagem da era européia à da política mundial. Os Estados Unidos emergem do conflito como o mais poderoso país industrial, dominante do mercado internacional, credor e principal exportador de capitais, sucessor da Europa na hegemonia dentro do sistema capitalista. A atuação do Presidente Woodraw Wilson, antes e durante a guerra e nas negociações, de paz, traduz a confiança daquele país em sua capacidade de rejeitar a velha ordem européia e mundial e de impor uma nova, segundo seus interesses e ideologia. A partir de 1918 sua expansão na Europa e, sobretudo, nas regiões dependentes, semicoloniais e coloniais (Canadá, América Latina, China) é acelerada.

Page 220: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

A REVOLUÇÃO RUSSA: DESAFIO E ALTERNATIVA

A Revolução Russa de 1917 produz um duplo efeito sobre a estabilidade do capitalismo. Representa a amputação de um vasto país continente que deixa de ser mercado, fonte de matérias-primas e zona de investimentos para as nações desenvolvidas do Ocidente e volta-se sobre si mesmo em um esforço de desenvolvimento autônomo e acelerado. A isto se agregam projeções sociais, ideológicas e políticas enorme transcendência.

O marxismo em sua versão leninista deixa de ser uma doutrina ,minoritária para converter-se na teoria e na ideologia da revolução

TRANSIÇÃO PARA A CRISE 253 desafio operante ao capitalismo e ao liberalismo, expressão de forças em ascensão e dos problemas e necessidades de uma nova época, a das sociedades de massas. O marxismo aparece como um regime lógico, dotado de coerência sistemática, de auto-suficiência e de totalidade, pretendendo aplicabilidade universal. O leninísmo insiste na integridade doutrinária, repudia o espírito de compromisso-,- exibindo notável aptidão para captar o essencial. A postura especulativa é substituída pela ênfase na ação, na vontade e na disciplina revolucionária. Surge uma nova forma de organização - política que lhe confere força e eficácia consideráveis. A combinação de racionalidade, e de mística, de realismo e de elementos éticos e emocionais confere ao marxismo leninista uma tremenda capacidade para enfrentar e resolver problemas e para inspirar a devoção e o sacrifício.

A isto se agrega o enfoque e o apelo de tipo universalista, a valorização da liberdade, da justiça social e da igualdade, sem distinção de nação, raça, cor, classe ou sexo. A reorganização das sociedades nacionais é apresentada como ínseparável da criação de uma nova ordem internacional, sem diplomacia secreta e sem relações de dominação e espoliação. Uma profunda brecha divide o mundo. À guerra clássica de objetivos limitados sucede a guerra ideológica em escala planetária.

A viabilidade da doutrina recebe uma demonstração empírica que combina o próprio triunfo revolucionário com a conquista de uma base nacional formidável e sua projeção em um movimento internacionalista. Revela-se a possibilidade de unia forma diferente de desenvolvimento e de organização da economia, da sociedade e do Estado. Evidenciam-se as vantagens de um intervencionismo estatal forte e centralizado como fator de superação das crises e motor do desenvolvimento, especialmente na promoção e orientação dos recursos e investimentos e no crescimento adequado do pleno emprego e dos ganhos da população. Vem à luz a importância do grande espaço econômico que abarca populações numerosas e recursos abundantes e diversificados. Verificam-se as virtudes da planificação, sobretudo no que se

Page 221: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

refere à centralização das decisões de investimento, a eliminação de usos duplicados, capacidades ociosas, desperdícios e falsos custos, a inexistência de freios injustificados do progresso técnico, as possibilidades de rápida padronização e organização em série da produção, a distribuição mais racional e ampla da renda nacional. Finalmente, junto com os Estados Unidos, à União Soviética surge como um grande bloco continental estabilizado. Ambos contornam, limitam e debilitam o velho centro europeu, contribuem para

254 FORMAÇÃO DO ESTADO NACIONAL desaparecimento das áreas de manobras livres e para o congelamento das posições de poder no mundo.

A Revolução Russa e a experiência soviética produzem um formidável impacto inicial, frente aos horrores da guerra mundial e ao debilitamento e desprestígio do capitalismo. A sua irradiação vê-se limitada nos países desenvolvidos pelo "'cordão sanitário", o enfraquecimento da URSS nas guerras internacionais e civis, as exigências da reconstrução do desenvolvimento interno acelerado, as características e conseqüências do regime stalinista, o fracasso das revoluções européias e a recuperação pós-bélica da economia capitalista. Mesmo assim, a crise de 1929 torna a dar força à projeção internacional da experiência soviética, que começa a exercer de imediato influência cada vez mais intensa e múltipla na periferia dependente e colonial da Ásia, África e América Latina.

A CRISE COLONIAL

A retração do âmbito externo para a recuperação e nova expansão dos países capitalistas desenvolvidos é reforçada pelo início da crise no mundo colonial. A própria ação imperialista começou a espalhar as sementes de mudança e rebelião, inclusive antes de 1914, embora seus frutos definitivos apenas recentemente, depois da II Guerra Mundial, tenham amadurecido. Os consórcios monopolistas e seus Estados dos convertem os países dependentes e coloniais em produtores de matérias-primas, mercados para a indústria metropolitana e zonas de investimento. Isto requer o cumprimento de várias tarefas convergentes. A ordem social tradicional, sua estrutura e equilíbrio devem ser subvertidos ou profundamente modificados. A organização tribal é dissolvida; seus chefes vêem sua autoridade reduzida, sua população e incorporada ao sistema mercantil, ao regime salarial, à alfabetização e a uma relativa qualificação de trabalho. A economia é remodelada em função de produções especializadas para exportação. O transporte e certas formas elementares de industrialização são desenvolvidos, bem como passa a haver um grau limitado de diversificação socioeconômica interna. A introdução da medicina e recuperação de terras, de distribuição e armazenamento de alimentos reduzem a taxa de mortalidade - mas não a de fertilidade - e determinam uma tendência ascendente na população da Ásia o África. A urbanização também faz consideráveis progressos e com eles, novos padrões de organização, consumo e cultura. Surgem e ampliam-se novos grupos sociais: camadas mé-

Page 222: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

TRANSIÇÃO PARA A CRISE 255 dias urbanas, empresários, burocratas, intelectuais e um proletariado nascente. O tipo de desenvolvimento dependente, desigual e combinado, em suas formas mais extremadas, cria ou agrava dificuldades e desequilíbrios, suscita novas reivindicações e conscientização face à subordinação, exploração e atraso inerentes ao sistema colonial. As idéias, técnicas e instituições ocidentais são assimiladas pelos nativos, primeiro como mimetismo e, em seguida, usadas contra o próprio ocupante.

A isto se agrega o progressivo debilitamento do controle europeu sobre o mundo colonial, determinado pelo desequilíbrio demográfico entre ambos os termos da relação e, sobretudo, pelas rivalidades e guerras entre as grandes potências, O triunfo do Japão sobre a Rússia (1904-1905) assesta uni rude golpe no prestígio europeu, ao que se soma mais tarde outro triunfo japonês sobre a Alemanha (Shantung, 1915) e as campanhas do líder turco Kemai Ataturk contra a França (1920) e contra a Grécia (1922). A Revolução Russa de 1905 é vista na Ásia como uma luta de libertação das populações oprimidas contra o despotismo europeu.

A Guerra de 1914 age de diversas maneiras no mesmo sentido. Os povos coloniais são mobilizados para a luta, sentem-se necessários como fornecedores de soldados, mão-de-obra, recursos e produtos. Os combatentes de cor são atores e testemunhas do massacre a que se entregam os representantes da civilização colonialista branca, percebem-nos vulneráveis e capazes de atos de barbárie. As potências beligerantes estimulam o nacionalismo nas colônias inimigas, disseminando nelas e em suas próprias, a propaganda das idéias ocidentais sobre democracia, independência nacional e, autogoverno. São obrigadas, além disso, a fazer concessões aos súditos nativos, cujo posterior descumprimento as desprestigia e alimenta o descontentamento. A guerra determina também interrupções e mudanças de direção no comércio, investimentos internacionais e nas atividades produtivas. Estimula um certo desenvolvimento da indústria e a valorização de recursos nos países dependentes e coloniais. Contribui para o crescimento das camadas médias, dos empresários nativos e de grupos de trabalhadores, setores estes, todos, nos quais, de várias maneiras e diversos graus, começa a surgir e enraizar-se a motivação de independência.

A Revolução Russa, em parte subproduto da 1 Guerra Mundial, incide poderosamente no despertar social e nacional dos países dependentes e coloniais. Proporciona um exemplo de revolução pos-

256 FORMAÇÃO DO ESTADO NACIONAL sível, proveniente de um país sem muitos estigmas de um passado colonialista, que desafia as potências ocidentais implantadas na Ásia, África e América Latina e propõe fórmulas novas para a solução dos problemas da dependência e do subdesenvolvimento. A URSS surge como um esquema alternativo e operante, sem compromissos com os interesses criados pelo imperialismo e oligarquias nativas, predisposto a soluções e políticas de caráter simples e drástico.

Page 223: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

Sob o impacto convergente destes fatores e circunstâncias, os movimentos nacionalistas nos países dependentes e coloniais são impulsionados, desde os fins da I Guerra Mundial. A Europa conserva, em seu conjunto, a esfera colonial de que dispunha em 1914, ainda que as possessões sejam redistribuídas em favor dos vencedores, porém sua expansão neste sentido é detida e começa a ser questionada. O estancamento da perspectiva colonial não recompensa a Europa das perdas sofridas em seu território e em outras regiões desenvolvidas.

DECADÉNCIA DA EUROPA

A diminuição e debilitamento da Europa, embora geral, afeta alguns países mais que a outros. O contraste é particularmente visível se se considera os cabeças dos dois blocos bélicos, Grã-Bretanha e Alemanha.

A Grã-Bretanha perde na guerra 740 mil homens, 10% de sua população masculina ativa, e deve utilizar uma parte importante de seus investimentos exteriores para financiar as operações militares. Sua produção cai em uns 16% durante o período 1914-1918 o não chega, em seguida, a recuperar o nível de 1913. A economia britânica vê-se, além disso, afetada pelo estancamento da expansão externa, sofrido pelo capitalismo em seu conjunto e, mais particularmente, pelas mudanças estruturais ocorridas na economia internacional: início da industrialização nos "países novos", sobretudo a partir da I Guerra, desenvolvimento do consumo extra-europeu de alimentos e matérias-primas e as dificuldades maiores, daí decorrentes, na troca tradicional de produtos industriais por outros de tipo primário. Estas mudanças afetam as indústrias básicas e tradicionalmente exportadoras da Grã-Bretanha, em especial as do carvão e as têxteis. A decisão do governo conservador, em 1925, de recuperar o lugar que a Grã-Bretanha ocupara no mercado financeiro internacional durante o século XIX, apesar da deterioração de seu balanço de pa-

TRANSIÇÃO PARA A CRISE 257 Gamentos , e a valorização da libra esterlina daí decorrente , agravam o peso das dívidas públicas e privadas . Cresce a resistências sindical à queda das remunerações . Tudo isto se traduz de exportações competitivas.

A expansão colonial britânica detêm-se e suas conquistas anteriores são ameaçadas. Debilitam-se suas exportações de capital e seu comércio exterior. Sua participação no intercâmbio mercantil mundial baixa de 13,11% em 1913 para 9,87% em 1929, com queda das exportações e incremento das importações. O balanço de pa gamentos correntes, equilibrado e com excedentes favoráveis a partir de 1870, devido sobretudo às entradas provenientes dos investimentos e serviços no exterior, perde este supervit no pós-guerra, tornando-se

Page 224: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

deficitário em 1935. A Grã-Bretanha deixa, portanto, de contar com o elemento que lhe permitirá até então compensar o atraso relativo de sua indústria na concorrência mundial. Suas exportações de capital reduzem-se ainda mais. Vê-se privada de sua tradicional posição de predomínio financeiro. Sofre um contragolpe sócio-econômico interno ainda mais acentuado. Seu potencial demográfico debilita-se sensivelmente. Pela primeira vez em sua história conhece o desemprego crônico, e por muitos anos, bem como uma primeira greve geral de grande envergadura (1926).

Com os resultados de sua derrota militar a Alemanha sofre tremenda sangria de homens, materiais e recursos. Sua capacidade militar e dinâmica imperial são destruídas. Perde a maior parte de seus investimentos estrangeiros e torna-se, ela mesma, campo de investimento das potências vencedoras, especialmente os Estados Unidos. Perde, além disso, todas as suas antigas colônias e a base in dustrial da Alsácia-Lorena. Sua expansão para o Leste é limitada pelo desmembramento do Império Austro-Húngaro e pela criação da Pequena Entente com os estados menores, resultantes de tal desmembramento. Somente por volta de 1939 poderá reavivar seu impulso investidor nos países da Europa Central, para os quais se expande. Ao peso enorme da dívida de guerra contraída deve acrescentar o pagamento de reparações em um montante astronômico. A inflação que se lhe segue arruína as camadas médias e empobrece ainda mais os grupos assalariados, restringindo desta maneira o mercado interno. Seu esforço de reconstrução deve-se dar no quadro destas condições negativas, pela procura intensa de racionalização e modernização do aparelho produtivo e com as limitações decorrentes tanto da demanda interna contraída como da forte concorrência

258 FORMAÇÃO DO FSTADO NACIONAL internacional. Suas exportações não recuperam o nível de 1913. Os efeitos do Tratado de Versalhes, a contradição, não resolvida e agravada, entre o potencial industrial e as saídas externas, a permanente crise social e política, a ameaça sempre presente e nunca concretizada de uma solução revolucionária combinam-se na criação de condições, favoráveis ao ressurgimento do imperialismo e. militarismo e para o aparecimento e triunfo do nacional-socialisrno, afluentes decisivos da II Guerra Mundial.

2. MUDANÇAS GERAIS NA AMÉRICA LATINA

As modificações analisadas no contexto internacional incidem sobre a América Latina combinando seus efeitos com as mudanças nela ocorridas como resultado do funcionamento do modelo de crescimento dependente. Este começa a exibir insuficiências e desajustes que, a partir da infra-estrutura, projetam-se na estratificação social, cultura e ideologia, no sistema de poder e no Estado.

Page 225: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

Já nos anos anteriores à I Guerra Mundial evidenciam-se certo debilitamento e descontinuidade dos estímulos externos, em função das ondas longas ou ciclos seculares da economia e de suas flutuações mais breves. À crise das últimas décadas do século XIX (1873-1895) vem-se acrescentar o abalo de 1914, que se prolonga praticamente durante todo o resto do período considerado, durando estancamento relativo com fortes flutuações a curto prazo.

O DESLOCAMENTO DO CENTRO INTERNACIONAL

A I Guerra Mundial tem como conseqüência, em primeiro lugar, a perda da importância da Grã-Bretanha como centro econômico mundial e sua substituição, neste papel, pelos Estados Unidos. As implicações desta mudança, para a América Latina, são facilmente perceptíveis. A Grã-Bretanha é livre cambista, especializada na produção industrial, compradora de matérias-primas e alimentos, grande investidora, favorecida até então por um balanço de pagamentos positivo, que utiliza para continuar expandindo seu comércio e investimento. Sua hegemonia é, conseqüentemente, o eixo e a chave do modelo de crescimento dependente aplicado, até então, na América Latina.

TRANSIÇÃO PARA CRISE 259

Os Estados Unidos são, pelo contrário, tradicionalmente protecionistas. Encontram-se cada vez mais superequipados em todos os aspectos. São grandes produtores de matérias-primas agropecuárias e alimentos e concorrem, nestas rubricas, com os países da periferia e, portanto, como os da América Latina. Além disso estão capacitados para a exportação maciça de artigos manufaturados. Vendem mais do que compram e vão conseguindo, por meio de empréstimos e investimentos, um enorme crédito do mundo e da América Latina. Seu balanço de pagamentos e a balança comercial são superavitários e contribuindo a acumulação de ouro e divisas para a diminuição da liquidez do sistema internacional. Agregam à sua ação comercial e financeira uma crescente tendência aos investimentos diretos, tipo enclave (América Central, Venezuela, Chile) e nos setores industriais da América Latina. Seus investimentos diretos na região pastam de 2 mil milhões de dólares em 1919 a 3 mil milhões em 1929. No mesmo período, a distribuição percentual por rúbricas dos investimentos diretos modifica-se da seguinte maneira: manufaturas, de 4 a 7%, petróleo, de 16 a 17%, eletricidade e transporte, de 15 a 25%, agricultura, de 25 a 230/o, mineração e metalurgia, de 33 a 21%. Em 1929, os investimentos diretos dos Estados Unidos em indústrias manufatureiras ascendem a US$ 230 milhões, dos quais, 53% correspondem à rubrica alimentação, 10,5% à química e correlatos, inclusive à borracha, 21 % aos metais, maquinarias e veículos, predominantemente os automóveis e 15,5% aos têxteis, papel e outras indústrias.3 Neste período aparecem as primeiras manifestações de migração de indústrias completas dos Estados Unidos para a América Latina, cuja ocorrência significativa, no entanto, se dará após 1930. Assim, diferentemente da Grã-Bretanha, enclausurada no esquema clássico de relação colonial

Page 226: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

(produtos industriais, investimentos o serviços x matérias-primas agropecuárias e alimentos), os Estados Unidos colocam-se em condições prévias favoráveis à sua inserção no processo de industrialização substitutiva de importações que viria a seguir, exercendo dominação mais diversificada e estrita sobre as estruturas sócio-econômicas que emergem na etapa contemporânea da história regional. Os investimentos britânicos na América Latina evoluem de 4 983 milhões de dólares em 1913 a 5 889 milhões em 1929, enquanto os norte-americanos no mesmo período vão de 1 242 milhões a 5 587 milhões. A relação entre os volumes de capitais britânicos e norte-americanos investidos na região passa, desta maneira, de 4:1, em 1913, a 1:1, em 1929. As mudanças ___________________ 3. Dorfman, Adolfo. La industrialización en América Latina y las políticas de fomento. p. 203 e 210.

260 FORMAÇÃO D0 ESTADO NACIONAL na dinâmica dos investimentos da Grã-Bretanha e dos Estados Unidos, refletem-se nas posições comerciais de ambas as potências.

"Antes da 1 Guerra Mundial, mais da metade do total das importações argentinas provinha dos três principais países industriais da Europa, e a Grã-Bretanha concorria com cerca da terça parte do total. Na década dos 20, entretanto, a proporção conjunta desses três países representou apenas a terceira parte do total e à Grã-Bretanha correspondeu menos de 1/5. Por outro lado, a proporção dos Estados Unidos aumentou para mais de 1/4."

"A situação nos demais países da América do Sul era muito parecida. Em 1913 as importações brasileiras totalizaram 67,2 milhões de libras, em 1927, 79,6 milhões de libras e em 1929, 86, milhões de libras. A parte correspondente à Grã-Bretanha em 1912 alcançou 24,4%, em 1927 21,2% e em 1929 apenas 19,1%. A@ porcentagens da Alemanha foram respectivamente 17,4%, 10,7 e 12, e da França 9,8%, 6,3 e 5,3. Os Estados Unidos alcançaram 15,8% 2 6 e 30, 1.

O total das importações chilenas foi de 989 milhões de pesos - ouro em 1913, 1 073 milhões em 1927 e 1 617 milhões em 1929. A porcentagem da Grã-Bretanha foi, nos anos mencionados, de 29,9%, 18,4 e 17,7. A parte da Alemanha foi, respectivamente, 24,6%, 12,6 e 15,5. As partes correspondentes à França foram, 5,5%, 5,1 e 4,4. Por outro lado, a parte dos Estados Unidos ele. vou-se de maneira constante pois foi, nos anos respectivos, de 16,7%@ 29,6 o 32,2."

"Antes da 1 Guerra Mundial, não menos de 60% de todas as importações chilenas procediam dos três principais países industriais europeus e, somente uma sexta parte, dos Estados Unidos. Nos últimos anos da década de 20, entretanto, a parte correspondente aos Estados Unidos ascendeu a mais de 30%, quase tanto quanto as partes correspondentes à Grã-Bretanha, Alemanha e França juntas."

Page 227: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

".... No México a situação foi muito parecida. Também ali os Estados Unidos encabeçavam a lista, mesmo antes da I Guerra Mundial e, após esta, melhoraram ainda mais sua posição a expensas das potências européias. O total das importações mexicanas em 1913 foi de 192,3 milhões de pesos, em 1927 de 346,4 milhões de pesos e em 1929 de 382,2 milhões de pesos. A parte dos Estados Unidos nessas importações ascendeu a 50,6% em 1913, a 67,2% em 1927 o a 69,1% em 1929. A parte da Grã-Bretanha diminuiu, passando de 13,5% em 1913 a 6,5% em 1927, elevando-se ligeiramente em 1929 para 6,7%. A parte da Alemanha diminuiu permanentemente,

TRANSIÇÃO PARA A CRISE 261 passando de 13,1% em 1913 a 8,5% em 1927 e a 8% em 1929. A parte da França diminuiu de 9,5% em 1913 para 4,9% em 1927,elevando-se ligeiramente em 1929 para 5%.4

AS MODIOCAÇOES DO MERCADO MUNDIAL

O deslocamento da Grã-Bretanha pelos Estados Unidos como eixo econômico mundial insere-se no quadro mais amplo das modificações na estrutura e dinâmica da economia internacional que também incidem sobre a América Latina.

O mercado mundial restringe-se e fragmenta-se. Os países-desenvolvidos, sobretudo os europeus, profundamente abalados e debilitados pela Guerra Mundial e suas seqüelas, lançam-se na defesa, a qualquer preço, de seus abastecimentos autônomos, produções, mercados de exportação, balanços de pagamento, moedas e níveis de ocupação e renda. Isto determina uma exasperação do nacionalismo econômico, do protecionismo e da auto-suficiência. Cada um desses países tende tanto a constituir uma economia fechada, voltada sobre si mesma e auto-suficiente, como a invadir agressivamente os mercados internos e externos dos países rivais. O dirigismo econômico generaliza-se e impõe-se, por uma forte ingerência dos Estados que operam em estreito acordo com os monopólios e oligopólios e que aplicam, cada vez mais, uma concepção ncomercantilista.

Isto se traduz, sobretudo, em unia descentralização das atividades industriais e em um retrocesso das velhas especializações. Países tradicionalmente agrários industrializam-se. Países especializados na produção industrial reequipam e desenvolvem seus setores agropecuários. As nações desenvolvidas aumentam sua produção agropastoril. Buscam produtos sintéticos como sucedâneos dos naturais. Recorrem a um novo ou reforçado

Page 228: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

protecionismo por meio dos direitos de importação e exportação, quotas, proibições, operações de compensação, subsídios, uniões aduaneiras, cláusulas de nação mais favorecida, ao que acrescentam o exercício de um agressivo dumping. Os países imperiais, como a Grã-Bretanha, concedem privilégios exclusivos aos produtos provenientes de seus domínios ou colônias. A busca do aumento das exportações combina-se com a deliberada redução das importações. As crises monetárias, inflações e desvalorizações maciças, desequilíbrios nos balanços de pagamento e o temor da hemorragia de divisas incidem também sobre as transações ____________ Sternherg, Friti. Capitalismo o socialismo?. P. 236/8).

262 FORMAÇÃO DO ESTADO NACIONAL internacionais. Criam-se blocos monetários em torno das moeda dominantes, reforçadas pelos controles cambiais e pelos acordos de compensação, ou clearing, cada uma delas com seu próprio circuito comercial. Arrebenta-se o sistema do padrão-ouro. As práticas tradicionais de financiamento internacional são abandonadas. As correntes internacionais de capitais modificam-se e se reduzem.

De maneira geral, o intercâmbio mundial sofre um forte estancamento relativo. A circulação atrasa-se em relação à produção. Aparecem modificações importantes na orientação e na delimitação geográfica das trocas, bem como na evolução da produção dos países implicados. Particularmente na América Latina, em função do lento crescimento e das fortes flutuações na demanda internacional de produtos básicos, os setores exportadores sofrem um estancamento relativo que afeta o nível de atividade, de renda e de ocupação dos grupos sociais vinculados direta ou indiretamente a eles. Os fatores críticos agem ao mesmo tempo em que se vão tornando perceptíveis os efeitos das transformações socioeconômicas induzidas pelo crescimento dependente e corno parte do mesmo.

DIVERSIFICAÇÃO E DIFERENCIAÇÃO SOCIAL

O crescimento das economias primário-exportadoras determina um grau crescente de especialização na unidade básica, a fazenda, o desaparecimento de sua tendência original à auto-suficiência relativa e maior consumo, abastecido pelo exterior e, também em parte, pela produção nacional. A isto se agregam o aumento em número e importância das atividades induzidas pelo comércio de importação estrangeiros. A divisão social e exportação e pelos investimentos es regional do trabalho desenvolve-se, adquirindo uma complexidade crescente. A expansão do Estado em tamanho e envergadura de ação atua em sentido convergente ao destes fenômenos. Juntamente com as atividades primário-exportadoras e com os grupos que as possibilitam e delas usufruem e, em certa medida, a partir de umas e de outros aparecem novas atividades e grupos vinculados à satisfação das necessidades internas e que com sua contribuição fazem aumentar a divisão do trabalho e a capacidade de absorção do mercado nacional. Tal é o caso dos pequenos e médios comerciantes, dos setores de serviços (transportes, comunicações, serviços públicos, bancos, educação), profissionais e técnicos,

Page 229: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

funcionários públicos, empregados particulares, empresários o operários industriais. Os processos de industrialização e urbanização apresentam-se como resultados, aspectos e fatores de grande importância neste quadro geral.

TRANSIÇÃO IIARA A CRISE 263

As causas e os obstáculos da industrialização já foram assinalados (capítulo V). Cabe acrescentar que a maior diversificação relativa e o impacto da 1 Guerra Mundial determinam certo avanço da industrialização. A Guerra interrompe ou debilitada vincularão entre a América Latina e a Europa. A absorção dos países desenvolvidos no esforço bélico impede-lhes, entre 1914 e 1918, de continuar proporcionando à região os insumos primários, equipamentos e bens de consumo que tradicionalmente a América Latina tinha adquirido. A produção industrial autóctone recebe, desta maneira, uma proteção indireta e a aproveita, tratando de suprir, em maior ou menor grau o deficit de abastecimento. Desenvolve-se uma atividade manufatureira improvisada, carente de insumos, equipamentos e experiência empresarial e técnica em quantidade e qualidade adequadas, sem suficiente apoio governamental e sem mudanças estruturais concomitantes que reforcem ou consolidem o processo de industrialização. Terminada a guerra, restabelecem-se pouco a pouco as correntes tradicionais de comércio exterior e ressurge a concorrência da indústria européia, agora agravada pela irrupção dos grupos norte-americanos. De qualquer maneira, a indústria nacional fixa-se e melhora relativamente no período de 1914-1925, embora este desenvolvimento tenha caráter irregular e desnivelado. Passa a existir maior complementação interna entre os diversos ramos industriais e a elaboração mais intensa de matérias-primas agropecuárias para abastecer a produção fabril. As empresas. industriais crescem em número, experiência e modernização, lançando-se, além disso, a novos campos.

A urbanização continua o processo preexistente a que se fez referência (capítulo V), reforçada pela diversificação da estrutura sócio-econômica. Estimula a industrialização (ampliação da divisão do trabalho e da capacidade de consumo do mercado interno) e é estimulado por esta. Os estabelecimentos industriais tendem, naturalmente, a radicar-se na cidade principal e em outras poucas cidades importantes, atraídos pelo desenvolvimento prévio, a proximidade do Estado, as disponibilidades de infra-estrutura, redes comerciais e financeiras e massas consumidoras, pelo acesso direto ao abastecimento exterior de matérias-primas e maquinarias e pela localização no nó central de comunicações, chave do mercado interno. Por sua vez, a indústria atrai para as cidades afluxos de população do interior e do exterior e estimula a diversificação interna da estrutura socioeconômica urbana. O desenvolvimento do Estado, de sua atividade, seu aparelho e gastos, a expansão da burocracia pública e do novo exército profissional incrementam também o número, a diferenciação funcional e a importância dos grupos urbanos.

Page 230: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

264 FORMAÇÃO DO ESTADO NACIONAL

A diversificação da economia, a industrialização, a urbanização e a expansão do Estado, estimulam ou determinam importantes mudanças na estrutura social, e4nbora estas não ultrapassem efetivamente o âmbito das grandes cidades, incidindo apenas superficialmente sobre a estrutura agrária tradicional. O processo vê-se limitado por sua localização e superficialidade e pelas descontinuidades do crescimento provenientes das circunstâncias assinaladas.

Apesar disso, a diferenciação social interna progride, manifestando-se sobretudo no desenvolvimento das camadas médias urbanas, que crescem em número e peso específico. Embora permaneçam constituindo uma parte relativamente reduzida da população e concentrem-se em uma ou poucas cidades, sua importância real cresce pelo exercício de funções especializadas, exigidas por economias, so- ciedades e sistemas políticos de maior diversificação e complexidade. Trata-se de camadas médias não-homogêneas em cujo seio podem ser percebidos dois tipos fundamentais. Uma parte compõe-se de setores residuais (Costa Pinto, Graciarena), inseridos na estrutura classista tradicional, dependentes da oligarquia por relações de clientela, ocupação e mercado, totalmente identificados com esta, que tomam como marco referencial e modelo de identificação, tradicionalista e resistentes à mudança. Outros setores, emergentes, são criados ou estimulados pelos fatores a que se fez referência (diversificação econômica, industrialização, urbanização, expansão estatal), e apresentando-se como menos dependentes e tradicionalistas, vão tomando crescente consciência de sua própria existência, força e possibilidades,e ampliam assim suas aspirações e exigências. O desenvolvimento das camadas médias emergentes encontra obstáculos no sistema tradicional o que as leva a pretender maior participação nas possibilidades e benefícios da riqueza, status, prestígio e poder e a se chocar com a oligarquia e com as camadas médias de tipo residual. Sua estratégia a este respeito não é compreensível se não se leva em conta, também, a emergência de outros grupos sociais e as mudanças culturais e ideológicas que expressam e integram a nova situação.

O crescimento e diversificação da economia, a imigração, a urbanização e a industrialização fazem aumentar o número e o peso específico das massas populares urbanas. Um importante setor destas passa cada vez mais a se constituir por grupos de trabalhador assalariados, ocupados em atividades tradicionais, no artesanato, serviços e produção fabril. A maioria dedica-se a tarefas de nenhuma precária qualificação e uma minoria a outras, de maior especialização e nível técnico.

TRANSIÇÃO PARA A CRISE 265

Page 231: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

Os novos grupos proletários, nos quais em geral ainda predominam os elementos de origem imigratoria, geram, como se viu, um sindicalismo de militantes ou de elites. A atividade sindical é relativamente reduzida, pelo número de seus participantes ativos e pelas restrições quanto aos setores incorporados a seu âmbito de atividade e influência. Inspira-se nas tradições ideológicas, políticas e organizativas do anarquismo e do socialismo europeus, às quais logo se acrescenta o impacto interno da Revolução Russa, expresso pelo surgimento dos Partidos Comunistas. Combina os movimentos reivindicatórios puramente economicistas com outros que pretendem uma transformação social e política em profundidade. A pressão ascendente do sindicalismo operário em parte coincide objetivamente com a das camadas médias e em parte é aproveitada, por estas como base de manobra e instrumento de negociação em suas relações com a oligarquia.

O novo sindicalismo operário e suas expressões políticas estruturadas aumentam sua importância e influência nas primeiras décadas do século XX, criam suas próprias organizações defensivas e ofensivas, desenvolvem alto grau de combatividade, heroísmo e vontade de mudança. Quando emerge encontra dois tipos de resposta por parte do Estado, combinadas às vezes, no caso dos novos governos de camadas médias, à repressão impiedosa (prisão, deportação, massacre) e à legislação que permite canalizar, controlar e utilizar o potencial social e político dos trabalhadores.

As massas populares e proletárias, não obstante seu peso específico e a capacidade de luta que demonstram, vêem limitados sua participação efetiva no sistema de poder e seu progresso real em todos os aspectos e níveis por uma combinação de fatores e circunstâncias, que são especialmente os seguintes: a) predomínio de formas primitivas e artesanais de produção, trabalho, vida e cultura; b) importância reduzida dos setores proletários, especialmente industriais, em números absolutos e em porcentagem, nas massas populares e na população total; c) baixos níveis de ocupação, renda, educação, consciência e organização das massas; d) considerável dissociação interna, em grupos setoriais ou regionais, e grau relativamente reduzido de interação e integração classista; e) insuficiências de liderança própria; imprecisão e falta de realismo das ideologias, estratégias e táticas; rivalidades recíprocas entre as tendências alternativas (anarquistas, socialistas, comunistas);

266 FORMAÇÃO DO ESTADO NACIONAL f) manipulação clientelística por outros grupos e partidos e pelo Estado; g) ilegalidade e repressão; h) falha e deserção das camadas médias como agentes de mudánças estruturais profundas; i) continuidade, quase intacta, do poder oligárquico em seus aspectos essenciais.

A aliança expressa ou tácita entre as camadas médias e os grupos populares baseia-se na convergência de interesses em relação ao maior desenvolvimento, ampliação da participação política e da distribuição da renda e uma legitimação de oportunidades e benefícios sociais. As

Page 232: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

camadas médias podem oferecer ao movimento operário e às camadas populares uma sério de elementos necessitados por estes: líderes, ideologias, técnicas de organização, meios de difusão, recebendo, em troca, seus votos e uma base mais ampla de manobras. Entre as camadas médias e os grupos populares se estabelece e se mantém uma relação assimétrica. As camadas médias contam, perante os grupos operários e populares, com uma superioridade real, em termos de poder econômico, influência social, nível cultural e organizativo e disponibilidade de partidos políticos na- cionais.

CLIMA CULTURAL E IDEOLOGIA

As mudanças no sistema internacional, na estratificação social e no equilíbrio entre os grupos fundamentais relacionam-se com modificações conseqüentes ou concomitantes no clima cultural e na ideologia. Estas começam a se esboçar desde os primórdios do século XX, porém é a partir da 1 Guerra Mundial, da Revolução Russa e de suas múltiplas repercussões que se configuram e se definem com maior vigor e concreção.

O modelo de crescimento dependente e superficial começa a demonstrar inconveniências e limites. Surge uma sensação de incerteza sobre as possibilidades de se alcançar efetivamente o grande futuro nacional. A ascensão das camadas médias e trabalhadoras age como fator de controvérsia e contestação. Isto se expressa e se articula através da ação de intelectuais jovens, conscientes e cultos, menos ligados, por sua origem ou sinecuras, à oligarquia e a seus governos, que reanimam e reorganizam a vida cultural, deslocando a ênfase de seus interesses e atividades, da literatura para a crítica

TRANSIÇAO PARA A CRISE 267 os e pelo social. Esta se orienta contra o cosmopolitismo, a subserviência ao estrangeiro, o sibaritismo irracional de uns poucos, o materialismo positivista e cético, a educação dogmática e sem inspiração, a asfixia e cultural e as formas opressivas e corruptas de vida política. A partir daí ela desemboca, naturalmente, em uma crítica aos responsáveis por estes fenômenos, os grupos dirigentes fechados, enquistados e hostis à renovação. A Guerra de 1914 e a Revolução Russa estimulam estas tendências críticas. Ambos os acontecimentos são vistos como quebra da ordem européia tradicional e do sistema e ideologia do liberalismo e como revelação da necessidade e possibilidade de mudanças na organização social e política, na cultura e no estilo de vida. As ideologias que vão surgindo não são precisas nem coerentes, carecem de concretização dos programas e de realismo, não se harmonizando corretamente com as práticas dos grupos implicados e com os processos reais. São "protoformas ideológicas em que coexistem elementos racionais e irracionais".5 Isto não as impede captar alguns de seus componentes fundamentais, nem as priva de impacto real e eficiência operativa que se reforçam pelo impulso inicial das camadas médias e subsidiariamente, dos grupos populares.

Page 233: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

Entre os componentes da ideologia, traduzidos em termos de reivindicações e objetivos, podem ser assinalados: o nacionalismo, a limitação do poder irrestrito da oligarquia e do capital estrangeiro, a fixação de metas de mudança sácio-econômica, em termos de desenvolvimento diversificado e autônomo, industrialização e maior justiça social, bases mais amplas de consenso e de integração nacional, ampliação da participação política, renovação institucional em diversos níveis e aspectos, maior intervencionismo do Estado, como representante e instrumento de uma sociedade nacional cujos interesses reputam-se superiores aos de qualquer grupo particular e a imagem de um destino histórico e de um papel excepcionais para o próprio país e a América Latina em seu conjunto. A eficácia desta constelação ideológica, mais ou menos difusa, torna-se evidente no movimento da Reforma Universitária e, de maneira mais geral, no surgimento de governos de camadas médias ou nos quais têm uma ingerência mais ou menos considerável.

A Reforma universitária começa em Córdoba (Argentina) em junho de 1918. Representa uma reação à esclerose do velho sistema educacional e à rigidez social e política de um regime oligárquico não destruído pelo novo governo radical encabeçado por Hipólito Yri- ____________________

268 FORMAÇÃO DO ESTADO NACIONAL goyen, regime que faz do monopólio cultural uni de seus instrumentos de poder e conservação. As aspirações do movimento universitário buscam e encontram sua fundamentação ideológica, tanto nos ensinamentos do século XIX, na 'nova sensibilidade', na ruptura de gerações'.......... termos vagos que podiam servir - como ficou demonstrado -- a um liberalismo discreto e a uma direita complacente" (A. Ponce) quanto em aspirações não menos difusas de anti- clericalismo, antimilitarismo, democracia política e progresso social movimento reformista amplia e melhora as possibilidades educacionais, culturais e políticas das camadas médias urbanas e é finalmente desvirtuado pelos hábeis movimentos envolventes e de capturada oligarquia e pelas limitações e vacilações de seus dirigentes. Suas projeções alcançam, no entanto, o restante da América Latina e novas tendências políticas que se desenvolvem a partir de seu estímulo original, levando-o mais à frente; exemlo, o Aprismo peruano.

EQUILIBRIO DE PODER E ESTADO

A ascensão das camadas médias traduz-se numa crescente exigencia de co-participação no sistema de poder e no Estado. Isto se manifesta sobretudo na crítica ao regime tradicional, à dependência externa, o liberalismo econômico e aos privilégios e discriminações impostos pela oligarquia. Esta crítica é utilizada como forma de melhorar a própria posição das camadas médias e de atrair a simpatia e o apoio dos grupos populares. Exige-se a ampliação da

Page 234: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

participação política para todos, ou, pelo menos para os grupos urbanos, o exercício efetivo da soberania popular, a universalidade, liberdade e lisura do sufrágio, a renovação das instituições, a transformação do Estado em expressão e instrumento da sociedade, a aplicação de uma política econômica nacionalista e, sobretudo, redistribuidora da renda e dos benefícios sociais.

O conflito entre a oligarquia e as camadas médias não é demasiadamente profundo ou insolúvel. Estas aceitam, no essencial o sistema vigente e procuram apenas melhorar a sua participação no mesmo. Em lugar de uma estratégia de luta frontal a oligarquia e o capital estrangeira, para a imposição de uma mudança global, desenvolvem-se táticas reformistas para a obtenção de modificações parciais. A pressão das camadas médias não deixa, contudo, de produzir alguns efeitos significativos. O sistema de dominação tradicional debilita-se. A oligarquia sente-se ameaçada pelas mudanças e pelos grupos em ascensão. Perde a sensação fortalecedora de seu

TRANSIÇÃO PARA A CRISE 269 poder absoluto e de um consenso favorável indiscutível. Fragmenta-se em grupos rivais que, em suas lutas facciosas, procuram apoio e, alianças com setores médios e populares. O clássico sistema de bipartidarismo, que divide o jogo exclusivamente entre liberais e conservadores, entra em crise e não encontra um substituto imediato. A oligarquia sente a necessidade de ceder terreno, de 'refazer seu sistema de sustentação, de estabelecer novos compromissos e coalizões. As camadas médias conquistam, em alguns casos, o governo, em condições de exclusividade ou de co-participação, porém a oligarquia mantém seu controle substancial sobre os mecanismos produtivos, comerciais e financeiros, e sua influência direta e indireta sobre a vida cultural, a elaboração da ideologia, o sistema de poder, os organismos estatais e os processos de decisão.

A composição e o papel do Estado, sua estrutura e funcionamento, sofrem algumas modificações importantes. Por meio do sufrágio universal, secreto e obrigatório, aumenta a participação efetiva das camadas médias. Estas, com seus votos próprios e com os votos dos setores populares, enviam seus representantes ao governo, controlam-no crescentemente, usam-no na satisfação de suas próprias necessidades e reivindicações, para pagar, em parte, o apoio operário e popular e para ampliar suas bases sociais e políticas. O Estado serve-lhes para contrabalançar o poder que as oligarquias conservam por meio do controle intacto dos mecanismos fundamentais da economia, o prestígio social e a cultura. Do ponto de vista das maiorias nacionais, difunde-se uma aspiração generalizada de maior nivelamento social e de intervenciomsmo estatal, Isto se traduz no conteúdo e na esfera das atribuições governamentais.

1. Institucionalização e legalidade: As instituições tradicionais são modificadas em alguns casos, e em outros criam-se novas. A lelgislação aumenta em numero e diversidade. Surgem

Page 235: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

moderadas restrições ao livre jogo do sistema liberal: regulamentação da liberdade contratual, do mercado, das relações trabalhistas e do direito de propriedade. Coloca-se maior ênfase nos direitos sociais. A organização sindical adquire maior grau de legitimidade, embora sempre limitada. Novas constituições pretendem incorporar e sistematizar, no mais alto nível de juridicidade formal, algumas das mudanças e inovações (México, Chile).

2. Coação social: O Estado afirma-se, de maneira mais intensa e explícita, como representante da sociedade e árbitro entre as classes e os grupos. Opera como fator limitativo do poder oligárquico tradicional. Reforça o poder, a influência e as possibilidades das camadas médias, Canaliza, manipula e controla as classes po-

270 FORMAÇAO DO ESTADO NACIONAL pulares e trabalhadoras, a fim de que estas proporcionem uma ampla base, social política às camadas médias, mantenham-se em situação subordinada e não adquiram uma autonomia que possa desembocar em extravasamentos perigosos para o sistema.

A repressão está sempre pronta e é usada frequentemente. Com relação ao assunto, merece especial referência a situação das forças armadas. Sua profissionalização as converte em corpos organizados, com espírito de corpo e um papel político potencial que, com maior ou menor velocidade, começa a efetivar-se. Deixam de estar disponíveis para os fins puramente pessoais de um caudilho. Tendem a desenvolver e articular interesses próprios e a exprimir uma vontade coletiva que as defenda e satisfaça. Os regimes de camadas médias, que desfrutam de maior base política e possuem maior legitimidade, parecem estar em melhores condições de impor a subordinação dos corpos militares ao poder civil. Os oficiais são recrutados sobretudo nas camadas médias e compartem com elas as as- pirações de ascensão, desenvolvimento econômico, industrialização, equilíbrio social e autonomia nacional, como elementos que reforçam tanto suas próprias possibilidades corporativas corno a defesa nacional. Por outro lado, as tensões e conflitos da transição, os choques entre a oligarquia, as camadas médias e as massas populares, as disfuncionalidades da democracia semi-ampliada, as crises de sucessão presidencial e as tentativas de continuísmo fazem com que as classes e os partidos peçam a intervenção das forças armadas para conservar o poder ou para conquistá-lo. Elas descobrem com isto suas próprias possibilidades e desenvolvem uma tendência à tutela do poder civil. A heterogeneidade de grupos e tendências, na sociedade global e no seio da instituição e ambigüidade ideológica dos oficiais determinam que as forças armadas tendam a flutuar entre o conservadorismo e a reforma e, segundo os casos, atuem em defesa do sistema tradicional (México), reinstaurem-no, como instrumento de uma contra-ofensiva oligárquica (Argentina), expressa o descontentamento e a crescente pressão das camadas médias (Brasil) ou cumpram um papel intermediário, com definição final reacionária (Chile).

Page 236: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

3 .Educação: O Estado amplia a oferta de serviços educacionais, reafirmando seu caráter universal, laico, gratuito e obrigatório. A educação deve ser assegurada e proporcionada pelo Estado e custeada pela comunidade, por meio de impostos que atinjam a todos os setores na proporção de suas rendas. Deve ter, em principio e até um certo ponto, sentido integrador e nivelador. A educação limita o monopólio cultural e técnico da oligarquia e da Igreja, exercendo assim um papel de secularização das relações sociais. Abro

TRANSIÇÃO PARA A CRISE 271 às camadas médias Os níveis médios o superiores do ensino. Satisfaz as exigências de instrução de toda a população. Reduz seu caráter elitista, difunde os valores das camadas médias, atenuadas distâncias sociais, amplia o consenso social e reforça o equilíbrio político e a integração nacional.

4. Organização coletiva e política econômica: O Estado inspira-se em motivações progressistas, nacionalistas e desenvolvimentistas, combinadas a um sentimento vagamente social, cristalizado sobretudo em uma vontade redistribuidora. Suas funções e tarefas decorrentes são, a este respeito, as seguintes:

a) Defesa do património nacional. Promoção dos recursos internos (naturais, financeiros e humanos). b) Freio à excessiva penetração estrangeira. c) Ampliação e proteção do mercado interno. d)Abertura de oportunidades econômicas, por meio de uma industrialização, melhoria relativa das disponibilidades de ocupação, renda e condições de vida. e) Realização de serviços sociais - educação, saúde, segurança - para um público relativamente ampliado, pelo menos nas cidades, e custeadas por todos os grupos em proporção às suas rendas (com as reservas referidas ao sistema impositivo, a que se fez referência). f) Desenvolvimento da ocupação burocrática pública, em benefício das camadas médias e, sobretudo, de seus setores mais organizados e influentes; em seguida, para o cumprimento de promessas à oligarquia e para a satisfação das massas populares, cujo apoio eleitoral faz-se necessário e se requer. A ocupação burocrática ampliada é utilizada para a criação de um novo sistema de apadrinha mento e dominação de clientelas, já não controlado totalmente pela oligarquia. Os partidos de camadas médias tomam uma orientação sinecurista que combina vagas formulações políticas e ideológicas com a utilização de uma rede ampliada de relações pessoais, familiares e primárias, alunçando desta maneira o alargamento de sua base social e política. g) Outorga de concessões, contratos públicos, privilégios, em favor de grupos médios influentes, setores oligárquicos ou interesses estrangeiros. h) Redistribuição limitada da renda nacional realizada por meio de uma melhoria relativa da situação das camadas médias e populares, mesmo sem prejuízo dos grupos oligárquicos e estrangeiros.

Page 237: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

272 FORMAÇÃO DO ESTADO NACIONAL i) Interesse restrito e variável pelas atividades manufatureira: não traduzido em uma política industrializante sistemática. j) Medidas de ação indireta - proteção tarifária, política tributária, gasto público crescente - que, deliberada ou involuntariamente, criam condições necessárias para facilitar a atividade privada. k) Énfase na vontade redistribuidora da riqueza existente - conquistas sociais, elevação dos níveis de ocupação e renda, obtenção de maior segurança social - mais do que na criação de nova riqueza. l) Esboço de um controle dos monopólios, refletido na orientação nacionalista ou populista, episódios nas relações entre grupo nacionais e estrangeiros ou em lutas entre os consórcios das grande potências e que pode variar dos gestos rituais às medidas mais o menos efetivas. m ) Sustentação de níveis de atividade e renda para os grupos oligárquicos afetados por conjunturas críticas. n) Relações internacionais: A este respeito, esboçam-se durante o período duas linhas fundamentais que, em geral, estão entrelaçadas: a redefinição das orientações e das alianças externas, em função das mudanças ocorridas na economia e política mundiais (decadência da Europa, debilitamento da hegemonia britânica, ascensão dos Estados Unidos) e a pretensão a uma maior autonomia relativa no trato das relações exteriores.

ELEMENTOS PARA UM BALANÇO PROVISÕRIO

A ascensão das camadas médias durante o período que vai dos fins do século XIX ou princípios do século XX até 1930 tem todas a características de ambigüidade em sua ação e resultados.

Tal ascensão implica uma primeira quebra na vigência do tipo de crescimento dependente e do sistema de dominação oligárquica. As camadas médias aumentam sua participação, influência e poder na economia, sociedade, sistema político e cultura. Amplia-se também, embora em muito menor grau, a participação das maiorias populares. A democracia formal passa a ser, mais que antes, o fundamento e o critério de legitimidade do poder e da autoridade para decisão dos assuntos públicos. Há um certo avanço da modernização, quer pela ação deliberada ou inconsciente das camadas médias, quer pelo reajustamento induzido nos grupos oligárquicos pelas mudanças ocorridas ou que se ameaçam. A oligarquia coloca-se

TRANSIÇÃO PARA A CRISE 273 cada vez mais na defensiva, vendo-se obrigada a modificar em parte suas perspectivas e comportamentos.

A chegada ao poder determina nas camadas médias gradual modificação de suas atitudes e políticas, em relação à oligarquia e em relação às massas populares. Nas camadas médias não existe uma vontade revolucionária havendo, sim acentuada -preferência pelo reformismo gradualista. Colocam-se e, em menor grau, tentam-se realizar transformações estruturais

Page 238: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

desde que estas sejam compatíveis com a ordem tradicional. Limita-se o conflito com a oligarquia, buscando-se formas de acomodação e complementaridade com ela e com as instituições da sociedade tradicional. Trata-se de não destruir o existente e compartir seus mecanismos e benefícios por meio de compromissos negociados. As mudanças produzidas pela ascensão das camadas médias são absorvidas, passam a integrar a ordem social o a reforçá-la. As camadas médias realizam as mudanças que a oligarquia não quis ou não pôde executar, em uma verdadeira função remodeladora que contribui para diluir e desviar as mudanças mais profundas e ameaçadoras. O processo é facilitado pela flexibilidade e capacidade de manobra da oligarquia, que cede para ganhar tempo, envolve e incorpora certos setores dos próprios grupos contestatórios. Elementos das camadas médias ingressam em níveis mais altos da estrutura econômica, dos círculos sociais significativos e do poder. Identificam-se com a oligarquia, entrelaçam-se com ela por meio de nexos econômicos, sociais e familiares, adotam suas perspectivas, seus padrões de conduta e seu estilo de vida, tomam-na como marco de referência, incorporam-se ao "Estabelecimento" e o legitimam. Para os elementos e grupos das camadas médias triunfantes, o aumento, o gozo e a segura conservação do adquirido tornar-se preocupação predominante sobre qualquer outra. A própria ascensão, os progressos de situação e de participação no sistema, favorecem uma maior coesão interna das camadas médias, sobretudo entre seus setores residuais e emergentes. A oligarquia conserva intactas suas bases e mecanismos de tipo econômico, seu prestígio social, bem como importantes posições de controle do aparelho estatal (níveis superiores de administração, judicatura, diplomacia, cadeiras parlamentares, governos provinciais, forças armadas). Corrompe e suborna os líderes das camadas médias. Aproveita toda e qualquer oportunidade para contra-atacar e recuperar o terreno perdido.

À identificação com a oligarquia e com o sistema une-se, em estreita interação, o abandono, pelas camadas médias, de sua aliança, tácita ou expressa, com os setores populares o operários. A reação destes últimos contra a virada, sua pretensão a maior autonomia e

274 FORMAÇÃO DO ESTADO NACIONAL poder, como instrumentos para a obtenção de vantagens mais consideráveis o de mudanças mais radicais de sentido igualitário, a agravam a cisão e reforçam os vínculos das camadas médias com a oligarquia. O aumento das tensões sociais e dos conflitos políticas, o impacto das recessões e crises econômicas predispõem as camadas médias a promover ou aceitar o deslocamento para a direita, em prejuízo até dos governos que as representam.

Esta dupla evolução incide visivelmente na conduta política das camadas médias e em seu manejo do Estado. Estas camadas deixam de exercer um papel positivo e dinâmico - e com elas o Estado - que chegaram a controlar total ou parcialmente. O nacionalismo debilita-se, e é substituído por uma atitude complacente para com capital estrangeiro, pela aliança com a oligarquia e da ação direta - por meio de associação ou suborno - das empresas estrangeiras. Não se reivindica energicamente o controle nacional dos recursos básicos e das fontes de

Page 239: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

poder econômico (comércio exterior câmbio) nem se impõe o primado do interesse nacional na condução das relações econômicas e diplomáticas internacionais. A política exterior segue uma linha errática e oportunista.

O intervencionismo estatal atenua-se ou desvirtua-se, em comparação com as pretensões iniciais das camadas médias em sua ascensão ao poder. O Estado não é usado de modo ativo e resoluto. Não adquire posições chave na economia e na sociedade e tende a renunciar aos mecanismos decisivos ou a seu uso efetivo, permitindo que sejam utilizados pela oligarquia e em seu proveito. As camadas médias e o Estado não conseguem, ddesta maneira, exercer um controle global do processo sócio-econômico e tornam-se, definitivamente um fator decisivo de consolidação da ordem tradicional. O Estado não se converte em agente de acumulação nacional de capitais para um desenvolvimento autônoino e auto-sustentado. Seus recursos são destinados, em grande parte, para a realização de tarefas e prestação de serviços que favoreçam primordialmente os grupos mais poderosos das camadas médias e da oligarquia.

Finalmente, o Estado tende a operar cada vez menos como árbitro efetivo entre os grupos sociais. Sua ação termina por acentuar a redistribuição negativa da riqueza e poder, consolidando o seatus quo. Sua política não impulsiona e, logo em seguida, freia a ampliação decisiva da participação democrática, quer mantendo as peias tradicionais, quer criando outras novas (negação do voto aos analfabetos, fraude, repressão violenta). A incorporação dos setores populares aos benefícios do sistema resulta, de uma maneira definitiva, limitada ou insignificante, do ponto de vista geral e nos prin-

TRANSIÇÃO PAPA A CRISE 275 cipais aspectos e níveis (sistema de decisões, sindicalização, distribuição da renda, educação, saúde, previdência social).

Efetuada até agora uma análise geral da etapa de transição, toma-se pertinente complementá-la com algumas breves referências aos casos nacionais específicos. 3. CHILE: FRUSTRACÃO DA MUDANÇA

O triunfo da Revolução de 1891 implica não apenas a queda do Presidente Balmaceda mas também a liquidação de uma tentativa de desenvolvimento autônomo e diversificado e a consolidação do sistema oligárquico. O regime político-institucional é, em tal sentido, reestruturado.

Já a Lei Eleitoral de 1890, que estabelecia o voto acumulado, criava condições favoráveis para a prática sistemática do suborno. A Lei de Organização e Atribuições das Municipalidades

Page 240: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

(1891) estende e reforça a autonomia e as faculdades das comunas, tornando-as independentes do governo, colocando-as sob o controle dos proprietários de terras e da burguesia mercantil-financeira, convertendo-as no elemento básico para a gestação do poder eleitoral. O presidencialismo é substituído pelo regime parlamentarista, sem reformas na Constituição de 1833. O Congresso cal totalmente sob o controle, da oligarquia e da burguesia comercial-financeira, cujos homens são os únicos que podem desempenhar gratuitamente as funções parlamentares. Funciona por meio de uni entrechocar de partidos, facções e coalizões instáveis. Carente de responsabilidade e de eficácia para enfrentar e solucionar os velhos e novos problemas, suas funções são, entretanto, aumentadas, e predomina de maneira absoluta sobre o Executivo. Este debilita-se, torna-se mero instrumento do Congresso, vendo-se forçado a uma rotação permanente de ministros e gabinetes. Deve tolerar a ingerência direta dos parlamentares no aparelho burocrático. É incapaz de uma gestão. metódica e eficaz, tendendo à paralisação. O empreguismo e a corrupção política e administrativa adquirem intensidade sem precedentes.

O Estado é controlado e usado em benefício próprio, por uma aliança de interesses entro a oligarquia tradicional a burguesia comercial e financeira, alguns grupos intermediários em ascensão e vinculados às primeiras e as empresas estrangeiras. Esta constelação os administra o país como seu feudo privado, apropriando-se da riqueza criada e incrernentada pelo crescimento dependente e o sistema de enclave mineiro.

276 FORMAÇÃO DO ESTADO NACIONAL

A partir de 1891 e durante todo o resto do período considerado, a penetração imperialista intensificasse e acelera-se, sobretudo nas finanças e na mineração. O recurso freqüente aos empréstimos estrangeiros determina o crescenhte endividamento e possibilita a expansão do aparelho estatal, a distribuição de sinecuras -administrativas e a malversação dos fundos públicos. A riqueza salitreira é posta em leilão e açambarcada pelas empresas estrangeiras e grupos nacionais poderosos e influentes. A exploração do salitre e do cobre, impulsionada no início do século pelas condições favoráveis da economia internacional e, a seguir, pela I Guerra Mundial, expande a riqueza em seu próprio âmbito e em ramos conexos (ferrovias). Permite substituir, em grande parte, os impostos sobre os grupos dominantes como fonte de recursos fiscais. Cria a ilusão de possibilidades ilimitadas e a orgia especulativa. Debilita o espírito nacionalista e o sentimento produtivo. Reforça a aliança entre os grupos superiores de proprietários e investidores nacionais e estrangeiros.

Mantém-se o predomínio do imperialismo inglês, embora disputado pela Alemanha e Estados Unidos. O imperialismo alemão atua por meio dos investimentos no salitre, na indústria e na energia elétrica, do comércio e das colônias de imigrantes, das missões pedagógicas e militares. Sua influência, a partir da derrota militar na Europa, e debilita-se enormemente. O

Page 241: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

imperialismo norte-americano aumenta sua penetração pelos investimentos em mineração (cobre), empréstimos e comércio exterior.

A estrutura sócio-econômica modifica-se e diversifica-se, pelo impulso da expansão mineira , tanto no sentido setorial como no regional. Entre 1880 e 1930, grande parte do território nacional é reclamada e ocupada pela primeira vez. O eixo da economia tendo deslocar-se da agricultura para a mineração e, em menor grau para as atividades secundárias e terciárias, do campo para a cidade. A importância da agricultura sofre uma diminuição relativa. Em 1889, o valor das exportações agrícolas ascende a menos de 7 500 mil pesos e o das exportações de minérios a mais de 55 milhões. No século XX, o Chile começa a importar trigo e carne da Argentina. Em 1912, o valor das exportações de gado é de 19 800 mil pesos, o das exportações de trigo, 7 100 mil, enquanto que as exportares de minérios sobem a 336 milhões de pesos. O peso da oligarquia de proprietários de terra dentro do bloco da classe dominante reduz-se, pela diminuição da importância da agricultura na economias nacional, pelo crescente absentismo dos proprietários rurais que se deslocam para as grandes cidades do Chile e da Europa, pela perda de muitas de suas fortunas na crise de 1907, que obriga à venda de

TRANSIÇÃO PARA A CRISE 277 terras, e pelo crescente entrelaçamento com grupos da burguesia mercantil-financeira e industrial. Esta faz investimentos na mineração itre, cobre e carvão e em indústrias não-extrativas, favorecidas pela política protecionista que se esboça a princípios do século XX.

O desenvolvimento mineiro e industrial facilita a urbanização. Entre 1892 e 1920, a população do Chile cresce em apenas meio milhão de habitantes, passando de 3,3 a 3,8 milhões, porém a população urbana passa de cerca de 27% da população total em 1875 a cerca de 43% em 1902. Este processo não tem lugar apenas em Santiago e Valparaíso, mas também em outras cidades, como Antofagasta, Iquique e Conceptión. Uma população considerável desloca-se das explorações agropecuárias do Chile meridional e central para as cidades do centro e do norte. A urbanização vê-se reforçada pela afluência da imigração que, se por sua limitação numérica não afeta demasiadamente a população global, faz crescer a das cidades, sobretudo seus setores médios. Em 1930, os estrangeiros representam 2,46% da população e 17% das camadas médias urbanas.

A expansão e diversificação da economia, da mineração, da urbanização e da industrialização aumentam o peso e influência das camadas médias, modificando o equilíbrio político, inclusive em termos regionais. A subordinação política das províncias à Santiago e Valparaíso enfraquece. O desenvolvimento do salitre no norte e da agricultura no sul reforçam a burguesia das províncias. Esta começa a disputar o terreno com grupos tradicionais, nas atividades produtivas, profissões liberais, administração pública, poder judiciário, forças armadas, direção dos partidos e do Estado. Os caudilhos provincianos tornam-se árbitros do poder eleitoral, elegem-se, ou a seus representantes, para cargos municipais e do parlamento

Page 242: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

nacional, reafirmam um sentimento regionalista e tornam-se relativamente independentes dos dirigentes e das decisões dos grupos centrais.

Como resultado do desenvolvimento mineiro, industrial e urbano, este processo inclui, além disso, o crescimento, em quantidade, importância e influência, do proletariado. A mineração do salitre, do cobre e do carvão, as obras e empreendimentos de infra-estrutura (ferrovias, estradas), a construção urbana, a indústria não-extrativa e os serviços, as migrações camponesas para as cidades e as imigrações estrangeiras desenvolvem importantes setores operários. O grosso da classe trabalhadora implanta-se no enclave mineiro, nas atividades a ele relacionadas (portos, transportes) e nos níveis semi-artesanais semiproletários das cidades. Em sua grande maioria, a classe trabalhadora é de origem nacional; a quase totalidade de seus membros

278 FORMAÇÃO DO FSTADO NACIONAL estrangeiros corresponde a peruanos e bolivianos ocupados na mineração nortista. O novo proletariado é submetido a terríveis condições de trabalho, remuneração, existência, educação e opressão, agravadas pelo processo inflacionário quase permanente. Já desde os fins do século XIX começam os trabalhadores a criar sua organizações próprias, nas cidades e regiões industriais e mineiras, combinando formas e finalidades mutualistas e economicistas (assistência, Melhoria salarial e de condições de trabalho), de aperfeiçoamento moral e cultural, sociais e políticos. As influências ideológicas dominantes correspondem ao anarquismo e ao marxismo e tendem a conferir ao sindicalisrno um esgar anticapitalista. Luis Emilio Recabarren representa, neste período, a mais alta manifestação individual de consciência, militância e vontade organizativa, o à sua influência deve-se, em 1912, a fundação do Partido Operário Socialista, transformado, depois da Revolução Russa, em Partido Comunista (1920). O movimento sindica e políticoda classe trabalhadora permanece, entretanto, minoritário, débil, dividido em seu interior e isolado das outras camadas populares, com reduzido nível de consciência e organização e afetado por dura repressão patronal e estatal, manifestada no uso corrente da dispensa arbitrária, encarceramento, deportação e massacre.

A aliança entre a oligarquia tradicional, a burguesia comercial- financeira e industrial e as camadas médias reflete-se no plano político. Uma gama relativamente extensa de partidos expressam, em maior ou menor grau, diferenças setoriais e de facção nas classes altas e nas camadas médias, chocando-se em questões secundárias (relações entre a Igreja e o Estado, educação laica ou religiosa), porém coincidindo no respeito ao sistema e aos grupos dominantes e na divisão das posições econômicas e de poder. São partidos eleiçoeiros e sinecuristas, manejados por dirigentes vitalícios que coexistem ou revezam-se nos ministérios, nos altos postos públicos e nas cadeiras parlamentares. O espectro político inclui: o Partido Conservador Liberal, o Partido Nacional, o Partido Liberal Democrático (continuação do balmacedismo), o Partido Radical e o Partido Democrata.

Page 243: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

Ao final da década dos anos 10 e durante a década dos 20, produz-se a crise do sistema oligárquico tradicional.

A Guerra de 1914 dá continuidade e reforço à prosperidade dos anos anteriores com o impulso recebido pela exploração e exportação do salitre e do cobre, o estímulo às atividades agrícolas, industriais, ferroviárias e de transporte marítimo e o aumento dos ingressos fiscais. Os preços sobem a níveis muito altos, enquanto que as

TRANSIÇÃO PARA A CRISE 279 remunerações dos trabalhadores apenas se modificam levemente. Acentua-se a concentração de riqueza.

O fim da guerra produz modificações consideráveis. O desenvolvimento da mineração, especialmente do salitre, paralisa-se, determinando uma retração econômica generalizada, desemprego em massa e uma grave crise social e política. O imperialismo alemão é eliminado pela concorrência e seu lugar é ocupado pelo inglês e pelo norte-americano, que se expande no cobre, na indústria, comércio e financiamento e luta com o segundo.

As camadas médias sofrem uma pauperização relativa, como resultado da retração econômica, do reforçamento do latifúndio na agricultura, do investimento imperialista, da concentração industrial e da desvalorização da moeda. A piora de sua situação gera nas camadas médias um estado de inquietação e agitação que busca sua expressão política. Os mesmos fatores agravam a situação dos trabalhadores, agitados além disso pelo impacto da Revolução Russa e pela difusão do socialismo marxista. A Federação Operária do Chile converte-se em organismo sindical revolucionário e, em 1921, adere à Internacional Comunista. O Partido Operário Socialista transforma-se em Partido Comunista (1920). Acentua-se a repressão contra os trabalhadores. À inquietação dos setores médios e populares agregam-se os atritos e divergências no seio dos grupos dominantes e entre estes e os interesses estrangeiros. A crise pós-bélica afeta mais diretamente os grupos do enclave mineiro e os vinculados diretamente com aquele, do que os grupos agrários. A oligarquia entorpeceu-se no gozo de sua própria dominação inquestionável. Perdeu lucidez, imaginação e energia. Carece de aptidão para perceber os desajustes e perigos que a ameaçam e para enfrentá-los. No último momento, o Presidente Juan Luis Sanfuentes e o congresso decidem decretar aumentos de salários, indenizações por acidentes de trabalho e um plano de aposentadoria para os trabalhadores ferroviários, porém estas concessões limitadas resultam tardias. A hegemonia oligárquica veio-se debilitando e sua consolidação requer um remanejamento político, alcançável por meio da ascensão das camadas médias ao poder.

Page 244: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

Esta saída expressa-se na Aliança Liberal e no Alessandrismo. Sob a condução de Arturo Alessandri Palma, a Aliança Liberal, que agrupa os Partidos Radical e Democrata e outros grupos liberais, consegue o apoio das camadas médias e de setores populares e operários. A 3 de março de 1918, a Aliança Liberal conquista a maioria em ambas as Câmaras do Congresso e, em 1920, Arturo Alessandri é ungido presidente da república, inclusive com o apoio conser-

280 FORMAÇAO DO ESTADO NACIONAL vador. Advogado de companhias de mineração e com um passado político liberal, realiza sua campanha eleitoral a base e promessas dirigidas a todos os setores. Compromete-se a fortalecer os poderes presidenciais, a outorgar maior autonomia às províncias do norte e do sul, a aumentar os impostos das grandes corporações, propriedades e empresas, a estender a legislação trabalhista e a separar a Igreja do Estado.

O primeiro governo alessandrista combina a satisfação limitada de algumas necessidades e reivindicações populares com a defesa do sistema e dos grupos dominantes. Seu triunfo reflete o relativo debilitamento do predomínio oligárquico. Por meio do alessandrismo as camadas médias obtêm maior grau de incorporação ao sistema e, Estado e usufruto das possibilidades e benefícios da economia dependente e do enclave. Esta incorporação renova, em parte, o pessoal político e administrativo do governo. Os gabinetes do Presidente Alessandri são compostos de homens das camadas médias. Além disso, a democratização manifesta-se na concessão de melhorias parciais às próprias camadas médias e a alguns setores populares: investimentos públicos, financiamento de empresas privadas, aumento dos vencimentos dos empregados governamentais, leis sociais, construção de albergues para os trabalhadores despedidos nas salitreiras.

O reformismo alessandrista é, no entanto, limitado e sem rumo. Através dele, as camadas médias não usam seu poder político aumentado para a criação de uma base econômica autônoma e dinâmica, para estimular a mobilização e incorporação dos setores populares, nem para impor-se aos grupos oligárquicos e estrangeiros. Os mecanismos fundamentais de poder e influência da oligarquia e do imperialismo permanecem intactos. Os grandes empresários nacionais e estrangeiros recebem comissões, subsídios e privilégios do Estado, enriquecem-se à custa deste e mediante a inflação e a especulação desenfreada. Os problemas vitais do país e das massas nacionais permanecem sem solução. O apoio dos setores populares e operários ao governo de camadas médias representa, ao mesmo tempo, um fator de exigências e conflitos. A repressão violenta continua sendo utilizada como meio normal de dirimir conflitos sociais. Não se avança, por mínimo que seja, na soolução da crise econômica crônica a qual, pelo contrário, chega a adquirir uma extrema gravidade.

A nova equipe governamental é medíocre e tendente à correção, comprometendo-se em operações duvidosas e escândalos retumbantes que a desprestigiam e, com ela, todo o

Page 245: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

sistema político o partidário. A crise do regime, parlamentarista, que se arrasta desde 1891, tem agravados seus aspectos principais. O congresso, sob forte

TRANSIÇÃO PARA A CRISE 281 influência oligárquica o plutocrática, mostra-se incapaz de enfrentar, e resolver os novos e graves problemas. Durante quatro anos as forças conservadoras bloqueiam no congresso a legislação reformista de Alessandri. Os parlamentares intervêm diretamente na administração pública. A sucessiva troca de ministros e gabinetes paralisa ainda mais o Executivo. A imoralidade e a corrupção generalizam-se. Nas leições legislativas de março de 1924 tem lugar e desbragada.

O desprestígio do regime parlamentarista e do governo, bem como o crítico estado da economia, são aproveitados pela oligarquia que não havia compreendido a função de reajuste e consolidação desempenhada pelo alessandrismo. A oligarquia arrasta o exército, descontente pelo atraso no pagamento de seus soldos, a uma conspiração contra o Presidente Alessandri, que o derruba por meio de um golpe armado (5 de setembro de 1924). A oligarquia e a alta oficialidade do exército e da marinha criam um junta que, embora imponha ao parlamento o decreto de leis sociais há muito postergadas, acha-se sob o controle e influência dos grupos dominantes, consagrando um representante destes, Ladislao Errázuriz, como presidente. A oficialidade jovem resiste à tentativa de regresso incondicional ao passado e seu pronunciamento de 23 de janeiro de 1925, com o apoio dos setores populares, dá origem uma nova junta o instala novamente no poder o Presidente Alessandri. Sob seu breve governo restaurado, a reforma constitucional, ratificada por um plebiscito e vigente desde 18 de setembro de 1925, estabelece o sistema presidencialista, reduz as atribuições do Congresso, fortalece e dá independência ao poder executivo. Um artigo da nova constituição submete o direito de propriedade às limitações o preceitos necessários para a manutenção e o progresso da ordem social. A Igreja é separada do Estado. Neste curto interregno de normalidade restaurada e de modificações institucionais, a Missão Kemmerer, proveniente dos Estados Unidos, visita o Chile para avaliar suas possibilidades econômicas, acentuar a penetração dos consórcios norte-americanos e o afastamento dos britânicos e contribui para a criação do Banco Central. As pressões reivindicatórias dos sindicatos continuam tendo a violência como resposta.

No mesmo ano de 1925, Alessandri, atacado pela direita e pela esquerda e incapaz de atenuar a crise econômica e a miséria generalizada, é derrubado por seu ministro da guerra, Coronel Carlos Ibáhez converte-se em presidente e instaura uma ditadura militar. Seu regime representa um reajustamento das forças e tendências em conflito e a tentativa de obter novo equilíbrio. Liquida a vigência

282 das liberdades públicas, elimina as possibilidades dos grupos democráticos do centro e da esquerda, reprime e destrói as organizas sindicais. A imposição coercitiva da ordem e da paz

Page 246: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

social garante-lhe a adesão dos grupos oligárquicos, dos investidores estrangeiros de urna parte das camadas médias e de grupos provinciais. A simpatia ou a passividade expectante são reforçadas por outras medidas de índole variada e contraditória. Prende e desterra políticos profissionais e aplica sanções a funcionários superiores acusados de atos desonestos. Exerce pressão sobre alguns membros da oligarquia. A ditadura cria e põe a seu serviço uma organização operária estatal Realiza, além disso, obras de urbanização, transporte e irrigação reorganiza a administração pública, a polícia e a educação, incorpora à economia nacional o enorme território meridional de Aisén. Para atenuar a crise na mineração, cria-se a Companhia de Salitre Chile (COSACH), na qual co-participam o governo chileno e os empresários privados, predominantemente estrangeiros, monopolizadores do nitrato e do iôdo. Esta tentativa híbrida de capitalismo Estado fracassa, pela insuficiência das vendas para cobrir os juros e dividendos de um capital inflacionado.

A ditadura de Ibáúez não consegue impulsionar o desenvolvimento nem a diversificação da economia nacional que, pelo contrário, acentua seus traços de dependência e de especialização deformante. A penetração imperialista intensifica-se. Novos empréstimos e investimentos estrangeiros incrementam o endividamento. A dívida pública duplica. Os investimentos norte-americanos crescem e tendem a deslocar os britânicos, concentrando-se na mineração ( salitre, cobre, ferro, bórax), transportes e comunicações, energia e elétrica, refinarias de açúcar, fábricas têxteis, armazenagem, comércio exterior, bancos e operações financeiras. A abundância de financiamento e de investimentos permite um desenvolvimento da dissipação, fraude e favoritismo.

A incapacidade real da ditadura em resolver os problemas nacionais de fundo e o impacto da crise mundial iniciada em 1929, a paralisação do comércio exterior e o estancamento das correntes de investimento entre os funcionários públicos despedidos, militares com soldo atrasado, desempregados e estudantes. O regime de Ibáñez desgasta-se e é derrubado em julho de 1931. A oligarquia recupera o poder, a partir da presidência de Juan Esteban Montero, porém, tornou-se um pouco mais flexível, negociadora e consciente das mudanças ocorridas. De 1932 a 1938, a segunda presidência de Alessandri tenta uma síntese entre a preservação fundamental de um sistema instável e a absorção de algumas mudanças insuperáveis

TRANSIÇÃO PARA A CRISE 283 embora a ênfase da ação e do controle político desloque-se para a direita. O triunfo da Frente Popular (1938) e a presidência de Pedro Aguirre Cerda marcam uma nova e decisiva virada na história social e política do Chile.

4. ARGENTINA: OS GOVERNOS RADICAIS

Page 247: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

Desde o último quartel do século XIX veio-se estruturando e se consolidando na Argentina - como já vimos - o regime oligárquico, aliança de interesses entre os grupos superiores dos proprietários de terras, comerciantes, financistas, dirigentes políticos e militares e o capital estrangeiro, primordialmente britânico. A aliança controla os mais importantes setores e mecanismos da economia nacional, conferindo-lhe suas características de subordinação e especialização deformante, detém uma situação de monopólio na vida social, cultural e política e fecha o caminho do poder a toda classe, grupo ou partido que não se identifique com o jogo oligárquico-imperialista.

Este processo viola inúmeros interesses e multiplica os descontentamentos e resistências, de diversas origens elassistas, setoriais e regionais, sobretudo os seguintes: a) Proprietários de terras e grandes e médios comerciantes deslocados dos círculos oligárquicos centrais; grupos afetados pelo descenso determinado pelas vicissitudes econômicas e políticas e por sua própria inadequação às novas condições; grupos beneficiados pelo crescimento econômico, porém marginais às posições superiores de status, prestígio e poder. b) Novas camadas médias, rurais e urbanas, criadas ou expandidas pelo crescimento dependente, nas quais se fundem o tronco criollos e a contribuição imigratória : pequenos comerciantes, artesãos, empresários de serviços, burguesia manufatureira (Buenos Aires, La Plata, Rosario o outras cidades), profissionais liberais, intelectuais, estudantes, empregados públicos e privados e militares. c) Pequenos e médios estancieiros, granjeiros, arrendatários e colonos. d) Trabalhadores urbanos, peões de estância e de quinta. e) Filhos de imigrantes, de primeira ou segunda geração argentina, que buscam sua plena assimilação e participação irrestrita na vida nacional. f) Setores e grupos regionais e provinciais, do litoral e da zona dos pampas (Córdoba, Santa Fé, Entre Rios) e de centros urbanos

284 FORMAÇAO DO ESTADO NACIONAL do interior, recentemente incorporados ao processo de expansão e de modernização, com um sentimento novo de pertença e lealdade nacionais e desejos de maior participação nas decisões políticas o econômicas.

Estes setores confluentes, diferentes por sua origem, situação sócio-econômica, motivações e perspectivas, apresentam urna dupla coincidência, uma negativa e outra positiva.

Do ponto de vista negativo, a frente de oposição à oligarquia é heterogênea e os setores e grupos que a compõem beneficiam-se da prosperidade determinada até então pelo crescimento dependente e sentem que o progresso econômico é possível e provável. Coincidem, portanto, em um consenso propício ao sistema e em uma indiferença a tudo que possa significar mudanças estruturais. Suas aspirações tendem às reformas moderadas, de sentido igualitarista e redistributivo, favoráveis à ascensão, ao enriquecimento e à segurança.

Page 248: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

Isto é óbvio nos grupos de proprietários de terras e mercantis e na pequena burguesia dependente e burocrática. Quanto à burguesia manufatureira, é incipiente, débil, composta sobretudo de estrangeiros não-integrados, isolada e hostilizada pelas classes altas, camadas médias e trabalhadores, incapaz de se articular organicamente, de formular um programa de desenvolvimento próprio e alternativo e de aspirar à liderança sobre os outros grupos. O proletariado é de formação recente, minoritário, isolado, com forte predominância de estrangeiros, carente de ideologia coerente, de programa realista e de direção unificada e eficaz. Em sua ação dá mais ênfase às reivindicações econômicas que as políticas. Sua agitação, entretanto, tende a se intensificar e ganha a simpatia de políticos e intelectuais das camadas médias que, solidários com elas, convertem-nas em elemento de crítica à oligarquia. O campesinato, sobretudo seus setores arren-datários e colonos, passa por períodos de agitação e luta, reduzidas no entretanto à satisfação das aspirações vinculadas à baixa de arrendamentos e custos, à melhoria dos preços e seu pagamento em ouro e às maiores possibilidades de acesso à terra; ele acata a legalidade básica do sistema e sua agitação não se cristaliza em programas de reforma agrária, desembocando em atitudes políticas de indiferentismo e conservadorismo.

Do ponto de vista positivo, as classes e grupos analisados coincidem em exigir a liquidação de marginalidade e a extensão da participação política, em graus diversos, segundo os grupos: como eleitores, por parte das massas populares, como eleitores e funcionários governamentais, por parte das camadas médias, como titulares dos altos cargos políticos e administrativos e como usufrutuários dos me-

TRANSIÇÃO PARA A CRISE 285 canismos de poder econômico e social, por parte das camadas altas, deslocadas e preteridas. A exigência de participação ampliada incorpora em sua dinâmica, com as limitações assinaladas, algumas formulações críticas sobre a estrutura e funcionamento do sistema, sobre suas deformações e abusos.

A União Cívica Radical expressa, aglutina e canalisa as posições antioligárquicas e antiimperialistas de todos os setores e elemetos atingidos e deslocados pelo regime, bem como tensões e conflitos que não encontram saída por meio dos mecanismos e canais tradicionais. De seu caráter pluriclassista provêm as características fundamentais do radicalismo, sua força e seus limites. A heterogênea composição social que exige a percepção, a expressão e a satisfação das necessidades e tendências de todos os grupos que a União pretende representar, impede e desaconselha, por conseguinte, as definições demasiadamente concretas e incisivas. Daí, como consequência, necessariamente, a ambigüidade ideológica e a pobreza teórica.

A ideologia do radicalismo configura-se tanto como expressão de suas bases sociais quanto como reação perante seus inimigos e competidores. Combina elementos políticos, místicos,

Page 249: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

metafísicos e morais. Dá ênfase às noções de democracia política liberal, sobretudo a necessidade de tornar efetiva a soberania popular, ao nacionalismo ao papel predominante do Estado. O nacionalismo radical reflete avanços na integração e centralização do país e do sistema político -institucional, a crescente presença de diversas classes e grupos regionais, a reação contra o espírito dependente e cosmopolita da oligar-quia e contra a pentração imperialista e a difusão, em quase todos estratos sociais, de uma xenofobia antiimigratória. O Estado é visto como encarnação do povo e da nacionalidade e como aparelho o desvinculado das classes, em relação às quais deve agir como árbitro superior. Reagindo contra a oligarquia conservadora, o radicalismo rejeita muitos de seus valores e elementos. Valoriza a tradição e subestima a modernização. Mostra-se indiferente aos problemas do crescimento econômico, atitude reforçada pela ausência ou debilidade dos agentes dinâmicos de transformação no país e no próprio radicalismo. Defende o catolicismo e mostra-se hostil à laicização. Subvaloriza ou rechaça tudo que é estrangeiro e todos os elementos e artigos provenientes do exterior. Em luta com as correntes anarquistas e socialistas, desconfia do sindicalismo operário e despreocupa-se, relativamente, dos problemas e direitos sociais.

O programa do radicalismo constitui a continuidade e luta pela realização efetiva do processo democrático-burguês, iniciado e também limitado pela oligarquia. Propõe-se a democratização do Eesta-

286 FORMAÇÃO DO FSTADO NACIONAL do, embora sem modificações estruturais. O poder político deve expressar a vontade popular. O sistema institucional deve ser respeitado, meio do cumprimento da constituição nacional e da instauração do sufrágio universal, livre, secreto e isento de fraude. As reivindicações democráticas do radicalismo incluem também a honestidade administrativa e a moralidade pública como repúdio ao materialismo e sensualismo da oligarquia (corrupção, especulação, negociatas, consumo conspícuo) o como legitimação de sua própria pretensão ao poder. As autonomias provinciais e municipais devem ser respeitadas e protegidas do centralismo imposto pela oligarquia, satisfazendo-se com esta formulação tanto as exigência dos setores regionais e populares como os requisitos de uma autêntica formulação da vontade popular em todos os seus níveis.

O programa radical mantém a indefinição perante os problemas do desenvolvimento nacional, falta compreensível em um partido que, expressa classes e grupos que dão seu consenso ao sistema vigente, às quais a prosperidade leva a dar mais ênfase à redistribuição da riqueza existente do que à produção nova.

A falta de vontade em atacar pelaa raiz os problemas essenciais da sociedade argentina, a falta de ideologia definida e de posições e soluções concretas, a mística partidária e o personalismo caudilhesco atuam como aglutinadores de um movimento perpetuamente ameaçado pelas contradições e divisões internas. O radicalismo é apresentado, não como um partido a mais,

Page 250: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

porém como um movimento que congrega a maioria dos grupos nacionais, situado acima das classes e interesses particulares, encarnação e realização da própria nacionalidade. Sua ação política aparece como cruzada da "Causa" contra o "Regime", chefiada por Hipólito Irigoyen, apóstolo de traços quase sobrenaturais. Sendo o radicalismo dotado de virtudes imanentes, sua chegada ao poder implicaria, por si só e necessariamente, o começo da "Reparação", isto é, da superação total da estrutura viciosa criada a mantida pela oligarquia.

Destas características deduz-se, de maneira indispensável, a impossibilidade de que o radicalismo cumpra uma tarefa transformadora profunda. Em seu seio e em sua direção influem demasiadamente, setores conservadores e vacilantes, sobre os quais se exercerão, como sempre, as pressões reacionárias que determinam alguns dos traços essenciais de sua fisiononiia e de sua ação política: limitação estratégica, empirismo imedialista, temor e desconfiança da mobilização das massas populares, tendência à acomodação com as forças e estruturas sociais dominantes e à reforma superficial.

TRANSIÇÃO PARA A CRISE 287

Mesmo com suas contradições e insuficiências -- e talvez devido exatamente a elas - o radicalismo luta durante vários lustros pelo poder, com grande persistência e, finalmente, o alcança. Partido clássico ou movimento de características especiais, organiza-se em bases e com estruturas e alcances amplamente populares e nacionais, embora sofra as limitações decorrentes do plurielassismo, dopredomínio de grupos sociais superiores e das condições de clandestinidade e conspiração. Vai-se convertendo, dessa maneira, na força política mais representativa, poderosa e influente. Relega à posição secundária os outros partidos oposicionistas, o Socialista e o Democrata Progressista, limitados por sua escassa base social e regional, seu caráter elitista e pelo sentimento de modernização europeizante que impregna suas ideologias, programas e modos de ação. O radicalismo proclama sua intransigência frente às regras do jogo político criadas pela oligarquia, recorrendo à crítica permanente ao regime, à rejeição de qualquer acordo, à abstenção eleitoral e à insurreição armada (1890, 1893, 1905).

A ação política do radicalismo surge do desenvolvimento capitalista dependente, de seus progressos e contradições, porém transformar-se na expressão e na afirmação de mudanças e tendências que capta e formula melhor que ninguém. Resultado e parte das transformações realizadas pelo regime oligárquico, agrega o que este não quer nem pode realizar, o objetivo de uma participação popular am pliada que estenda e reforce as bases sociais e políticas do próprio regime. O radicalismo vai, assim, ganhando apoio, simpatia ou neutralidade expectante de grupos superiores, camadas médias, setores camponeses e operários, funcionários públicos e militares. Congrega a maioria das forças sociais num grande movimento político que isola a oligarquia, debilita-a, terminando por forçá-la a abandonar o poder governamental.

Page 251: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

O triunfo do radicalismo termina por parecer inevitável a seus próprios inimigos e inclusive, chega-se a aceitar tal perspectiva como forma de canalizar, dentro da ardem tradicional, uma maré social e política em ascensão que, de outro modo, poderia desencadear convulsões revolucionárias de conseqüências imprevisíveis, possibilidade que o caso mexicano revela de maneira significativa. A oligarquia começa a sentir-se questionada e isolada dentro do país, ao mesmo tempo em que se decompõe, se debilita e divide-se internamente, perdendo a confiança em si própria. Sua configuração e sua atuação como elite aristocrática, sua rigidez e arrogância frente às reivindicações e pressões crescentes de seus setores deslocados e das camadas médias e populares, seus abusos e manobras de imoralidade e corrupção mi-

TRANSIÇÃO PARA A CRISE 288 nam seu prestígio, autoridade e a consenso relativo de que gozara até então. O crescimento econômico não continua no mesmo ritmo. Os grupos que controlam as relações econômicas externas consentes em condições menos favoráveis da comercialização. Os preços de exportação e os termos de intercâmbio deterioram-se e, com eles, a renda da terra. As atividades pecuaristas caem sob a crescente dominação dos frigoríficos estrangeiros. Setores da oligarquia começan a manifestar sua inquietação face à relação de dependência e seu efeitos negativos, e concebem, com maior grau de nacionalismo, a maneira de negociar vantajosamente com o imperialismo. Aparecem os conflitos internos no seio da classe dominante, que a enfraquecem desprestigiam e, em virtude dos quais, as facções buscam, de maneira não -infreqüente, o apoio radical contra suas rivais. O imperialismo inglês, dominante no país, percebe o debilitamento da oligarquia a ascensão da radicalismo, a necessidade de um governo consolidado sobre bases políticas mais amplas, que preserve a continuidade legal o as estruturas básicas do sistema, sirva de freio à crescente irrupção dos Estados Unidos e enfrente os problemas emergentes do já previsível conflito com a Alemanha.

Alguns grupos e representantes da oligarquia, perceptivos o oportunistas, captam a essência da questão. A heterogênea composição social do radicalismo, a existência em seu selo de setores afins com grupos governantes e de camadas médias tendentes ao conformismo e ao compromisso, as exigências puramente formais dos dirigente partidários, o abandono, desde 1905, da tática de inssurreição, tudo convence aos dirigentes mais lúcidos do patriciado (Carlos Pellegrini, Roque Sáenz Peña) que uma transação política com o principal partido oposicionista, mutuamente vantajosa, não só é necessária como também possível. Uma primeira tentativa busca o acordo entre a oligarquia e o radicalismo que divida e desgaste o segundo, ampliando e reforçando as bases da primeira. A intensidade da inquietação popular e a intransigência de Hipólito Irigoyen fazem fracassar a política do acordo formal, obrigando sua substituição pela retirada estratégica. A oligarquia abandona o governo político, conserva intactos seus privilégios e fontes de poder sócio-econômicos, submete o radicalismo ao desgaste da responsabilidade estatal, transferindo-lhe as tarefas de reajustamento e repressão dos grupos mais inquietos e ameaçadores e procura ganhar tempo até que as circunstâncias permitam-lhe recuperar o terreno perdido.

Page 252: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

Este processo culmina com a reforma eleitoral de 1912, a partir da qual iniciam-se os triunfos radicais que, passando pela conquista de cargos parlamentares e municipais e até de governos provin-

TRANSIÇÃO PAIKA A CRISE 289 ciais, colocam Hipólito Irigoyen, em 1916, na presidência da república.

A chegada do radicalismo ao governo constitui um progresso considerável. Reflete a ascensão e o fortalecimento de novos grupos sociais, especialmente das camadas médias criollm e imigratórias, apoiadas e pressionadas pelos setores populares e operários, dos quais se utiliza politicamente. Amplia a participação política. (A porcentagem da população masculina adulta dotada de direitos eleitorais cresce, de 1912 a 1916, de 20% a 60% ). Constitui também uma derrota política da oligarquia e isto, unido aos deslocamentos provocados pela guerra e suas seqüelas, atenua, parcial e transitoriamente, a eficácia da dominação imperialista.

Por outro lado, desde o momento mesmo de sua chegada ao poder, o radicalismo põe a nu as limitações fundamentais que frustarão sua ação renovadora. A relação de forças veio-se modificando, como vimos, contra a oligarquia que perdeu confiança em si próprio e em seu direito divino ao poder e que se desacreditou perante a opinião publica e as massas populares. Uma significativa maioria vota no radicalismo e recebe seu triunfo com entusiasmo delirante. Importantes setores que não sufragaram o novo governo adotam, não obstante, uma atitude de neutralidade benévola para com ele. A maioria do povo argentina espera em 1916 a "Reparação" prometida nos quinqüênios de abstenção e sublevação e teria aprovado e sustentado uma depuração revolucionária dos elementos oligárquicos entrincheirados no congresso, na administração e na justiça, implicados nos delitos e corrupções do regime.

O radicalismo vê-se freado em 1916 por seus escrúpulos constitucionalistas, pelo temor de um contragolpe oligárquico, pela resistência dos elementos radicais anteriormente incorporados às funções parlamentares e executivas e pelo medo da mobilização popular. Não cumpre a revolução política que se espera e o justifica de antemão. Respeita os regimes provinciais e as investiduras legislativas e judiciárias surgidas da violência e corrupção abertas. Legaliza, desta maneira, a oligarquia, pretendendo combatê-la e superá-la nos marcos de um regime estruturado por ela à sua imagem e semelhança.

As conseqüências desta legislação do regime oligárquico são múltiplas e de grande transcendência. O novo governo revela, desde seu início, o caráter contraditório e vacilante. A ascensão de grupos sociais, que levara o radicalismo ao poder, não encontra uma condução

Page 253: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

política adequada ao verdadeiro progresso democrático e social. A oligarquia, ameaçada porém não destruída, permanece encastelada

290 FORMAÇÃO DO ESTADO NACIONAL no parlamento (especialmente no senado), no controle dos mecanismos fundamentais da administração, justiça, forças armadas, diplomacia, além dos que possui na economia, imprensa, educação e manipulação cultural-ideológica. Destas bases obstaculiza e sabota, durante três lustros, com eficiência e legalidade, todas as tentativas progressistas dos governos radicais, ridiculariza-os e difama-os, enquanto aguarda condições favoráveis para a restauração conservadora. O radicalismo eve governar com os instrumentos herdados de um Estado liberal, estruturado em condições e para finalidades diferentes. Deve substituir a luta pelo compromisso. Não pode cumprir a prometida reparação integral. Freando-se o impulso ascendente das massas e claudicando-se perante a oligarquia, os elementos progressistas do radicalismo são debilitados, fortalecendo-se automaticamente seus setores reacionários que constituem a correia de transmissão da oligarquia deslocada e do imperialismo. O golpe de setembro de 1930 que derrubará o radicalismo do poder já está implícito na frustração de 1916.

Como um paradoxo apenas aparente, o triunfo recoloca e acentua a dialética dos conflitos que a composição multiclassista e organizaçao em forma de movimento do radicalismo, bem como a prolongada luta pelo poder, haviam atenuado ou mascarado. As contradições reforçam-se e entrelaçam-se tanto pelas realizações como pelos fracassos do radicalismo.

Os governos radicais que se sucedem de 1916 a 1930 determinam a conquista de uma maior democratização política e mudanças quantitativas e qualitativas no funcionamento do Estado. A vontade popular, apesar das limitações derivadas de unia estrutura sócio-econômica mantida intacta em sua essência, pode agora expressar-se expressar-se com maiores garantias de autenticidade formal. O Estado é concebido em teoria como um ente metafísico, encarnação suprema do povo e da nação, realizador da idéia ética. Suas funções o projeções são a ampliadas em medida considerável.

Ao Estado atribui-se, antes de mais nada, a função mediadora nos conflitos entre classes e grupos nacionais e entre estes e o país de um lado, e as grandes potências e investidores estrangeiros, de outro. Age, além disso, como instrumento para ampliar e consolidar a posição das camadas médias e para arrancar da oligarquia e dos interesses estrangeiros, sem luta frontal, pela pressão e compromisso, uma participação maior nos benefícios da economia, sociedade e poder. Tudo isso implica, naturalmente, maior intervencionismo governamental no jogo dos interesses privados.

Page 254: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

TRANSIÇÃO PARA A CRISE 291

A arbitragem entre os grupos sociais se entrelaça com a realização de uma política redístributivista, possibilitada pela relativa prosperidade do período bélico e do pós-guerra. Legaliza-se o sindicalismo e atende-se algumas reivindicações operárias. O nível de emprego elevado e mantido através do aparelho burocrático. Estendem-se os serviços públicos a cargo do Estado. O orçamento fiscal apresenta uni aumento de 80% entre 1918 e 1923.

Acentua-se o sentimento de defesa do patrimônio nacional, pelo menos da parte já compreendida no setor público (petróleo, ferrovias), buscando-se certa regulamentação dos monopólios. A esta orientação correspondem os projetos de criação de uma marinha mercante nacional (1916), de expropriação de navios do ultramar com matrículas argentinas (1918) e de intervenção estatal no comércio exterior de cereais. Todos estes projetos são rejeitados no parlamento.

AS política externa torna-se mais independente, aumenta seu sentido nacionalista e sua liberdade de manobra nas relações e negociações com as grandes potências, como resultado da base política ampliada e da crescente rivalidade entre a Grã-Bretanha e os Estados Unidos pelo controle do país. Hipólito Irigoyen consegue manter a neutralidade durante a 1 Guerra Mundial, apesar das fortes pressões externas e internas para que a Argentina intervenha no conflito. Ordena aos representantes diplomáticos a retirada da Liga das Nações, por não se admitir a Alemanha nem se reconhecer a igualdade de todos os países na condução do novo organismo. Afasta o país do sistema pan-americano, negando-se, em 1928, a firmar o Pacto Kellog. Mantém uma atitude firme perante as imposições do imperialismo norte-americano e certa simpatia para com os países latino-americanos agredidos por ele. Tenta estabelecer relações comerciais com a União Soviética.

Juntamente com estes aspectos positivos, os governos radicais mantêm basicamente intactas as estruturas socioeconômicas vigentes no momento de sua chegada ao poder. O sistema oligárquico-imperialistas é respeitado e perpetuado. O radicalismo, em cuja direção e composição social os representantes dos interesses agropecuários têm um peso considerável, respeita a constelação configurada pela grande propriedade agrária, a produção pecuária, cercalífera e os frigoríficos dominados pelos capitais ingleses e norte-americanos. O Presidente Irigoyen resiste à sanção e à aplicação da Lei de Contratos Agrários, que tende a regular os contratos de arrendamentos rurais. Outros projetos de legislação protetora de colonos e arrendatários naufragam no senado. A resistência à penetração imperialista parece mais dirigida contra os Estados Unidos, em vias de intensificar sua penetra-

Page 255: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

292 ção na Argentina (petróleo, automóveis, indústrias agropecuárias, comercialização), que contra a Grã-Bretanha, secularmente implantada no país. Os investimentos britânicos evoluem de 1 860,7 milhões de dólares em 1913, a 1 900 milhões em 1918 e 2 100 milhões em 1926 os norte-americanos, nos mesmos anos, de 40 milhões a 100 e 60(milhões, aumentando, desta maneira, duas vezes e meia na Guerra Mundial e sextuplicando-se nos oitos anos seguintes. Ambas as potências, seus grupos investidores e sua diplomacia, toleram os governos radicais enquanto estes se apresentam como expressão e como mecanismo de contenção das massas populares.

O respeito à oligarquia e ao imperialismo implica a manutenção dos fatores tradicionais de subordinação, atraso e deformação e a não criação de condições favoráveis para a acumulação nacional de capitais e sua aplicação em uma estratégia de desenvolvimento. O radicalismo adota, de fato, juntamente com uma ação política de traços populistas e redistributivistas, uma linha econômica liberal que continua colocando ênfase na produção agro-exportadora e que conta com os impostos alfandegários como recurso fiscal decisivo. Em relação à indústria, suas atitudes e decisões parecem combinar a indiferença e a hostilidade, reflexo da reduzida participação e influência da burguesia manufatureira em sua liderança e em suas bases. Carece de política industrial. Terminada a Guerra de 1914, o governo radical não tenta proteger as manufaturas, expandidas como com seqüência do conflito bélico, e apresenta um projeto de lei que reduz os direitos de importação dos produtos industriais (1918-1919). A economia nacional cresce de maneira lenta e irregular devido aos fatores determinantes e condicionantes, externos e internos, que agem tradicionalmente, e sobre os quais o governo radical não age um pretende controlar.

O processo de modernização realizado sob os governos radicais limita-se, desta maneira, à ampliação da participação popular, sem que esta se veja possibilitada e reforçada por um crescimento independente e auto-sustentado. O aumento da participação, acompanhado por unia atitude redistribucionista generalizada, na condições de reduzido crescimento econômico, torna a colocar e agrava as tensões e conflitos de grupos que o radicalismo pretendeu ignorar ou superar sob a capa de sua pretensão integradora e totalizante. O problema da distribuição de uma renda nacional que não cresce na mesma medida das expectativas aumentadas e divergentes das classes e grupos manifesta-se não apenas no nível social, mas também no político e tanto na vida nacional global como no interior do radicalismo. Uma evidência clara dos limites deste partido e de seu governo apa-

TRANSIÇÃO PARA A GRISE 293

rece rapidamente, em sua ação social e política, na atitude perante os movimentos reivindicatórios do proletariado e do campesinato, estimulados pela crise do p6s-guerra

Page 256: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

. A arbitragem paternalista e as concessões mínimas a estas classes coexistem com a repressão terrorista (Semana Tragica, janeiro de 1919); matan~as da Patagonia, 1919-1921 ) .

A oligarquia reagrupa-se depois da derrota de 1916, unificada e mobilizada por uma ideologia coerente, pela perda de posições, pelo dano a seus interesses, pelo 6dio a tudo aquilo que o radicalismo regresenta e não tarda a passar a ação. Esta combina o ataque frontal e a sabotagem sistemática da ação do governo com uma tarefa de desagregação interna do partido oficial, facilitada pelo processo aberto em seu interior. Os grupos oligárquicos buscam tanto unificar a frente oposicionista como atrair os elementos afins do próprio radicalismo . Os membros das classes superiores situados entre os dirigentes e filiados do radicalismo viram realizadas suas aspirações com o triunfo eleitoral e o controle das altas posições governamentais e partidárias. Sua intransigência debilita-se com a retirada estratégica da `oligarquia e suas manobras envolventes . As ameaças do movimento operário e camponês e das novas tendências ideológicas progressistas fortalecem os laços classistas por cima dos limites políticos, que tendem a apagar-se. O acordo entre as tendências conservadoras de políticos oligárquicos e radicais surge de maneira natural e quase imperceptível. As camadas medias ligadas ao radicalismo satisfazem-se com o aumento de sua renda, prestigio e participação e a conservação e ampliação daquilo que ja foi obtido transforma-se em sua preocupação fundamental. Os grupos altos e médios do radicalismo coincidem, desta maneira, no desejo de manter o conquistado e as posições de preeminência face as camadas operarias e populares situadas na maquinaria, nas bases e clientelas do radicalismo e que pressionam pela continuidade da redistribuição da renda e acesso ao poder e ligam-se diretamente a figura carismática de Irigoyen . A reação dos grupos altos e médios do radicalismo contra a pressão potencial e efetiva das massas concentra-se na hostilidade e resistência ao caudilho . O partido termina por dividir-se de fato com o surgimento da tendência antipersonalista encabeçada por Marcelo T. de Alvear, que ocupa a segunda presidência ( 1922-1928 ) . Esta adquire um contorno conservador liberal. Com um gabinete formado de homens pertencentes classe dominante tradicional ou muito pr6ximos dela, Alvear trata de realizar um governo caracterizado pela administração ordenada e eficiente, pela gestão honesta, legalidade constitucional, equilíbrio social e político e pela política econômica liberal favorá-

294 FORMAÇÃO DO ESTADO NACIONAL vel à oligarquia e aos capitais estrangeiros. Uma fase de prosperidade econômica, no mundo e no país, facilita seus objetivos.

Ao término do governo alvearista, Irigoyen volta à presidência baseado em uma popularidade aumentada que se manifesta em um formidável apoio eleitoral de massas (1928). Seu segundo período é efêmero. O país transformou-se, ao mesmo tempo em que novas situações críticas não tardam a eclodir. Os volumes e os preços das exportações argentinas se reduzem, enquanto aumentam os preços das importações, diminuindo a capacidade de compra do país. A contradição entre a democratização política e as pressões distributivas de um lado, e o lento crescimento econômico, de outro, acentua-se ainda mais. A oligarquia já não oculta sua

Page 257: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

impaciência perante esta situação e sua irritação transmite-se às camadas médias ou é compartilhada por estas.

Por seu lado, nem o caudilho nem seus partidários aumentaram a capacidade política para enfrentar novas e mais críticas situações. Irigoyen envelheceu e intensificou o sentido autoritário e exclusivista de sua condução. A incapacidade, a desorganização e a anarquia generalizam-se na administração pública e no partido. A ideologia radical, não se modificou e o seu programa renovou-se de maneira assás insuficiente. Continua um partido que acredita em sua mágica capacidade de transformação pela simples presença no governo e que pretende acaudilhar e mobilizar de maneira limitada as massas populares, dentro dos marcos de um sistema tradicional e de um Estado liberal. Ameaça os grupos dominantes, provocando-lhes alarme e ódio, sem privá-los de poder para resistir e contra-atacar. As próprias inovações progressistas que o radicalismo propõe-se introduzir (nacionalização do petróleo e de outros recursos e serviços públicos, convênio comercial com a URSS) inquietam não apenas à oligarquia mas também aos grupos de interesses britânicos e norte-americanos. O golpe decisivo provém da crise mundial que explode em 1929. Esta põe fim à fase de prosperidade pós-bélica, afeta duramente a economia argentina, revela suas limitações e a falta de aptidão partidária e de mecanismos estatais para enfrentá-la e superá-la e agudiza as contradições sociais preexistentes. A oposição agora engloba a as garquia, os interesses estrangeiros, as camadas médias, os intelectuais e estudantes, os partidos restantes, a grande imprensa e as forças armadas. A ofensiva oposicionista desgasta o governo e o partido radical e termina por confundir e paralisar as massas que aqueles não tiveram a preocupação de esclarecer, organizar e mobilizar, A 6 de setembro de 1930 o golpe militar encabeçado pelo General José F. Uriburu encerra quase sem luta a experiência política das camadas

TRANSIÇÃO PARA CRISE 295 médias ligadas ao radicalismo e abre uni segundo ciclo oligárquico que se prolonga até o advento do regime peronista.

5. BRASIL: SURGIMENTO E CRISE DA REPUBLICA OLIGÁRQUICA

Durante o ciclo cafeeiro a economia brasileira cresce e diversifica-se (capítulo VI). Novos grupos sociais surgem e expandem-se, inserem-se na estrutura tradicional e modificam-se, refazem o equilíbrio Político. O Império sobrevive às condições que o geraram. Velhos e recentes conflitos entrelaçam-se para desgastar o sistema monárquico, revelar seu obsoletismo e, finalmente, destruí-lo.

O eixo econômico e social desloca-se cada vez mais das plantações setentrionais de produção tropical (açúcar, algodão, fumo, cacau)e do patriciado rural para as terras cafeeiras, pecuárias

Page 258: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

e industriais, as regiões urbanizadas e os novos setores agro-exportadores de São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul. A velha oligarquia nortista sente-se afetada por sua decadência e pelas tendências antiescravistas de Pedro 11 e do governo imperial e vai retirando seu apoio a estes, Os novos grupos hegemônicos do centro e do sul, em plena ascensão, não se sentem plenamente representados nem expressados no Império e desinteressam-se pelo regime. Sua neutralidade quase hostil entronca-se com o descontentamento das camadas médias. Estas, que vêem limitadas suas possibilidades pelo sistema tradicional - que tem no Império sua expressão política - crescem em número e importância como resultado da expansão cafeeira, da urbanização e do começo da industrialização. Entre as ca- madas médias difunde-se, sobretudo, a ideologia liberal, secular, anti-autoritária e republicana, estimulada pelas lojas maçônicas e pelos intelectuais influenciados pelo pensamento de Augusto Comte. O catolicismo esclarecido e tolerante de Pedro II provoca um rompimento com a Igreja, preparado há muito tempo e desencadeado pelo conflito a respeito da situação da maçonaria, cuja forma de solução pelo governo não satisfaz nem o clero nem as lojas maçônicas. O Império irrita tanto os conservadores como os liberais; os primeiros, por não serem suficientemente retrógrados e autoritários, e os segundos, por o serem em demasia. A República começa a ser vista por todos os setores como uma possibilidade favorável aos seus próprios interesses. As forças armadas e a abolição da escravatura têm papel central na resolução da crescente crise política.

296 FORMAÇÃO DO ESTADO NACIONAL

A expressão funcional, social e política mais importante das camadas médias é exercida pelas forças armadas que constituem a principal possibilidade de ocupação e ascenso para aquelas. Seu número peso e influência aumentam a partir da Guerra do Paragual (1864 ).

A partir de então aumentam e reforçam seus efetivos (serviço militar obrigatório), sua oficialidade, seus estados-maiores e quadros técnicos e seu conhecimento da realidade nacional. Adquirem uma mentalidade de feição positivista e um sentimento de superioridade como elite orgânica e modernizante em uma sociedade e um Estado que muito recentemente vão-se consolidando e emergindo do atraso. Tendem a converter-se em um corpo estranho dentro do aparelho imperial que satisfaz suas principais reivindicações mas que as teme e cuida de limitar sua atividade política. Para os chefes e oficiais, a Republica poder de decisão. A opinião pública, que cada vez mais deixa de sentir-se representada pelo Estado imperial e pelo velho sistema de partidos, tende a buscar na organicidade articulada das forças armadas um canal de expressão e influência.

O grande estopim da mudança política é o problema da escravidão, a cuja decadência como sistema produtivo e tipo de organização social já se fez referência (capítulo VI). Nos fins da década de 1880 sua liquidação parece inevitável. Pedro II favoreceu a alforria dos escravos e

Page 259: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

a abolição total do regime, Quando esta se consuma (1888), o velho patriciado rural, sobretudo os fazendeiros do norte, não perdoam o Império e colocam-se abertamente contra clã Seu desaparecimento é produzido pelas forças armadas, por meio do golpe militar de 1889, encabeçado pelos Generais Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto, com o apoio do setor cafeeiro e das camadas médias, a complacência dos fazendeiros tradicionais e em meio à passividade popular. A mesma constelação de classes proporciona o fundamento e a dinâmica do sistema político que emerge com a abdicação do Imperador Pedro II.

A nova ordem não se constitui, entretanto, de forma imediata automática, sem desequilíbrios e reajustamentos. As dificuldades econômicas multiplicam-se e perduram. O tesouro foi esvaziado pelos gastos do Império em custear a operação abolicionista sem danos excessivos para os proprietários de escravos. O déficit fiscal agrava-se com a duplicação do número de oficiais militares e navais e com aumento de seus soldos. As emissões monetárias, determinadas pela penúria de recursos estatais, acentuam-se, como meio de redistribuição de renda entre as classes e favorece uma desenfreada especulação com terras e empresas. O crédito internacional do Brasil e o va-

TRANSIÇÃO PARA A CRISE 297 lor de sua moeda, reduzem-se de maneira considerável. O sistema econômico semicolonial e o incipiente capitalismo devem ser readaptados às novas condições do imperialismo. As dificuldades e tensões econômicas fragmentam a frente social e política que derrubou o Império. Por meio das forças armadas, as camadas médias tentam impor sua hegemonia, ou, pelo menos, manter a paridade de forças com os velhos e novos grupos oligárquicos. Controlando o Exército, Deodoro da Fonseca estabelece uma ditadura militar de fato, governo por decreto e convoca uma assembléia constituinte. Por obra desta, mas sem consulta popular, promulga-se a Constituição de 1891, segundo o modelo norte-americano, que cria os Estados Unidos do Brasil, república federativa de 20 estados. Os direitos estaduais são formalmente reconhecidos, porém o poder executivo central recebe poderes quase ditatoriais, sendo diminuta a participação eleitoral da população. A Igreja é separada do Estado. A Assembléia Constituinte, na qual predominam os representantes da classe dominante, é dissolvida por Deodoro da Fonseca. Este é deposto, por sua vez, por Floriano Peixoto o qual, em reação legalista, restabelece a Assembléia, mas tenta simultaneamente uma espécie de ditadura tendente não à realização de mudanças estruturais porém à imposição da república federativa sobre as bases de uma economia liberal. As velhas oligarquias das produções e regiões atrasadas, herdeiras da tradição imperial, e os novos grupos hegemônicos, que têm seu eixo no setor cafeeiro, temendo transformações mais profundas, reconstituem a unidade classista, afastam os representantes das camadas médias, forçam Floriano Peixoto a entregar o poder a um dos seus, Prudente de Morais e, utilizando a maquinaria política e institucional já existente, consolidam seu próprio regime.

A República Oligárquica é construída essencialmente no período de 1893-1910 sob os Presidentes Prudente de Morais, Manoel de Campos Salles, Francisco de Paula Rodrigues Alves

Page 260: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

e Affonso Penna. Um sistema institucional particular é estruturado e usado como instrumento de uma política econômica específica.

O governo federal é fortalecido e converte-se em importante centro de decisões econômicas. Cria mecanismos destinados a privilegiar e fortalecer o setor cafeeiro (imigração de mão-de-obra européia, sustentação da demanda e dos preços). Mitiga a tendência estrutural ao desemprego, ampliando o aparelho governamental e o número de empregados públicos na administração e nos órgãos legislativos nacionais, estaduais e municipais.

A centralização vem acompanhada e se entrelaça com uma tendência inversa. A integração do país não se completa. A lealdade

298 TRANSIÇÃO PARA A CRISE para com a região ou estado prevalece sobre a lealdade para com a nação e o Estado central. Por meio da chamada "política dos governadores", os estados recebem amplos poderes autônomos e seus governos são entregues às oligarquias locais que os dirigem e os utilizam, por intermédio de seus caudilhos, como domínios privados, complena liberdade de ação e forças militares próprias (a milícia de São Paulo chega a ser tão forte quanto o exército federal). Os caudilhos o as máquinas políticas locais manipulam o eleitorado ou desvirtuam suas decisões por meio da fraude. Suas mutáveis alianças decidem as eleições e determinam o exercício rotativo da presidência da nação, especialmente entre os chefes dos estados mais importantes, Paulo e Minas Gerais, com a concorrência do Rio Grande do Sul. O poder da classe senhorial vê-se notavelmente reforçado por meio deste sistema. O governo federal é mero reflexo e instrumento das oligarquias estaduais, de seus caudilhos e governadores, e sua intervenção dá-se a pedido e a serviço daqueles.

O Estado federal que emerge desta solução política orienta essencialmente sua política econômica à promoção e defesa do setor cafeeiro e da borracha, de suas exportações e preços, afetados pelas fortes flutuações do mercado mundial. O café não tarda a entrar em uma fase crítica de superprodução, determinada pela euforia dos produtores e pela crescente concorrência internacional (América Cent Colômbia, Venezuela, Índias Orientais Britânicas e Holandesa). Caem os preços e os excedentes não vendidos acumulam-se. Nas condições de ampliação do eleitorado e de sufrágio universal (salvo os analfabetos), resulta para a classe dominante mais difícil transferir a crise do café para a maioria da população. Sem abandona política de emissões e desvalorização, favorável aos grupos agro- portadores, o Estado, desde os princípios do século, torna-se comprador em grande escala dos excedentes de, café, acumula-os, mantêm seus preços e revende-os em conjunturas mais favoráveis. Esta política, que beneficia os produtores e comerciantes nacionais e a estrangeiros, é custeada por meio das emissões, do déficit fiscal e do financiamento externo. A renegociação dos antigos empréstimos tomada de outros novos, garantidos pelas rendas alfandegárias, fazem-se sobretudo com a Grã-Bretanha e os Estados Unidos, estreitando a aliança da classe senhorial

Page 261: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

com o imperialismo. Embora, em 1906 o Brasil restabeleça o padrão-ouro, seu endividamento externo agrava-se, e torna-se permanente. Tudo isto incide sobre outros aspectos da política econômica, confere-lhe uma orientação abertamente liberal, leva-a a manter- o clássico esquema de troca das exportações primárias por produtos manufaturados e desalenta o progresso da in-

TRANSIÇÃO PARA A CRISE 299 dústria. O governo federal contribui na satisfação dos interesses cafeeiros solucionando a escassez de mão-de-obra por meio da promoção direta da imigração européia. À crise do café soma-se a da borracha, bruscamente deslocada no mercado internacional pela concorrência das Indias Orientais Britânicas e Holandesas, que liquida o monopólio brasileiro do produto. Neste período, que vai de 1898 a 1910, o Brasil soluciona várias disputas fronteiriças com países limítrofes, aumenta seu prestígio internacional e fortalece seus vínculos de dependência com os Estados Unidos.

Entre 1910 e 1930 estende-se uma etapa de crise social o política. O crescimento econômico torna-se cada vez mais irregular, em função das vicissitudes da exportação e do impacto limitativo e deformante da dependência externa. Após o efeito negativo inicial, a I Guerra Mundial permite ao Brasil vendas consideráveis de alimentos à faminta Europa. As exportações de café recuperam-se provisoriamente. Prossegue a ocupação territorial, amplia-se o mercado interno desenvolvem-se o transporte (ferrovias, estradas, portos, navegação de cabotagem) e a rede bancária. Parte dos capitais acumulados desloca-se para a indústria favorecida pelo conflito bélico e que estimula a urbanização e é estimulada por esta. A estrutura social modifica-se, aumentando e agitando as camadas médias e populares, criando um estado de inquietação que não encontra uma fácil saída política.

Com efeito, o regime oligárquico ao desvirtuar e bloquear a saída eleitoral impede a manifestação institucional dos conflitos . A pressão social comprimida busca outros canais: o fanatismo religioso e o banditisnio organizado no campo, a insubordinação de políticos e militares das camadas médias.

A intromissão das forças armadas e dos grupos de oficiais na atividade política veio-se acentuando desde a instauração da República, manifestando-se em levantes armados, manipulação de eleições e acordos com os caudilhos políticos. Na década de 20 o fenômeno adquire um outro aspecto particular. As camadas médias em expansão, com fisionomia liberal e modernizante, ao verem fechado o caminho da participação e do governo por um patriciado que exerce um rígido monopólio do poder, exercem, através de seus líderes (Ruy Barbosa) intensa e sistemática ação de tipo ideológico e político sobre as forças armadas. Esta pregação encontra fértil terreno na jovem oficialidade militar, recrutada em sua maioria nas camadas médias e imbuída de um sentimento liberal e progressista de vanguarda. Convertem-se então

Page 262: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

em grupo de pressão e pretendem exercer um papel, de tutela sobre as decisões do poder, civil e uma função, de árbitro

300 FORMAÇÃO DO ESTADO NACIONAL entre os grupos sociais. Nasce, desta maneira, o fenômeno do tenentismo mobilização política e militar de jovens oficiais, funcionara públicos e profissionais liberais que, na década de 20, promovem uma série de sublevações militares, regionais e estaduais, entre as quais se destaca a experiência da coluna encabeçada pelo Capitão Carlos Luis Prestes, mais tarde fundador e dirigente do Partido Comunista.

O tenentismo constitui uma mobilização antioligárquica das camadas médias, por meio de seus setores e representantes mais radicais. A base social da qual surge impõe ao movimento seus traços essenciais e suas limitações insuperáveis. Expressão de grupos intermediários e dependentes, o tenentismo carece de ideologia própria e de um programa de autêntica transformação. Aproxima-se mais do radicalismo romântico do que de uma tendência revolucionária. Realiza uma análise superficial dos problemas brasileiros e formula reivindicações modestas. A crise das estruturas globais da sociedade brasileira é imputada quase exclusivamente aos vícios do sistema político oligárquico. As soluções propostas reduzem-se à obtenção da democracia formal, por meio do cumprimento dos princípios liberais da constituição, da autenticidade do sufrágio popular e do acatamento de seus resultados, da moralização administrativa e judiciária. O tenentismo não pode superar a tendência à subordinação à oligarquia proveniente do caráter dependente dos setores sociais em que se nutre e recruta. Carece de vocação de poder para criar um novo regime político que corresponda às suas aspirações e necessidades e às das massas populares. Desconfia destas e, se em parte deve levá-la em conta e alcançar sua simpatia, no fundo tende a impedir sua mobilização autônoma, fazendo uma revolução antes que elas a façam por sua conta. Condena-se a si próprio ao isolamento político, que tratará de atenuar mediante a aliança com grupos oligárquicos descontentes.

Durante toda a década de 1920 o tenentismo esgota-se em uma série de tentativas insurreicionais abortadas. A República Oligárquica resiste e anula seus assaltos ao poder, sem fazer concessões. A pressão interna faz-se sentir efetivamente quando se defronta com o impacto de uma catástrofe externa. A crise de 1929 provoca desmoronamento da política de defesa do café e com ele o colapso incoercível da estrutura econômica tradicional, agravado pela retração dos investimentos e empréstimos dos Estados Unidos.

A classe dominante divide-se. O setor cafeeiro debilita-se. Separam-se do bloco oligárquico grupos de São Paulo, Minas Gerais Rio Grande do Sul, interessados na ampliação de suas possibilidades na reforma do regime que garanta sua consolidação e perduração.

Page 263: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

TRANSIÇÃO PARA A CRISE 301

A aliança destes elementos oligárquicos divergentes e de político E militares das camadas médias tenentistas, reforçada pela simpatia passiva das massas populares e de todos os descontentes, consegue apresentar-se como a Nação encarnada em luta contra um patriciado decadente e opressor. Esta conjunção de forças conflui, em outubro de 1930, sobre o Rio de Janeiro, depõe o Presidente Washing Luiz, impede a posse de seu sucessor, Júlio Prestes, eleito fraudulente tamente e coloca em seu lugar o Governador do Rio Grande do Getúlio Vargas.

O sistema oligárquico entra em profunda crise e com ele a República senhorial e a rotação da presidência da república _entre São Paulo e Minas Gerais. O processo analisado é o resultado de uma transação. Como causa e produto dela, as camadas médias, ideológica e politicamente desorganizadas e imbuídas de um sentimento predominantemente pragmático, conseguem derrubar o regime, porém não chegam a controlar o novo sistema de poder, imposto de cima para baixo e exercido daí para a frente pelos novos grupos oligárquicos dos quais Getúlio Vargas é o mais destacado representante. Sua ditadura de 15 anos (1930-1945) constitui a primeira tentativa de reajustamento e transformação que, partindo da periferia, impõe-se ao centro e logo irrompe em outras regiões e que, portanto, adquire características nacionais. A política do varguismo pretende conservar o sistema, introduzindo-lhe modificações indispensáveis ao seu equilíbrio e progresso. Respeita as posições e os privilégios fundamentais da oligarquia e do imperialismo, porém exerce, por meio do Estado, uma arbitragem que fixa os limites do poder e da ação dos grupos dominantes, nacionais e estrangeiros. Também por meio do Estado promovem-se alguns processos parciais de desenvolvimento mudança social, novos empreendimentos industriais e um maior grau de incorporação controlada das massas populares, o reconhecimento a legalização de algumas de suas necessidades e direitos. No varguismo está o início e a chave da crise contemporânea do Brasil, que será analisada em obra que se seguirá a esta.

6. A REVOLUÇÃO MEXICANA

O ano de 1910 é, simultaneamente, a data em que o Porfiriato celebra com pródiga magnificência, junto com o centenário do grito de Dolores, sua perduração durante 34 anos e em que começa o seu desmoronamento. Ainda que poucos dos contemporâneos percebam isto, a mão da História já escreve nos muros os sinais de condena-

302 FORMAÇÃO DO ESTADO NACIONAL

Page 264: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

ção. A prosperidade de que o regime se jacta não atinge a imensa maioria dos mexicanos, submetidos a uma exploração e uma opressão ilimitadas, famintos e nus, privados das condições mínimas de consumo, moradia e educação e dos mais elementares direitos. A submissão da maior parte e a aceitação interessada da minoria começam a desaparecer na década de 1900. O descontentamento difuso e subterrâneo dos intelectuais, dos operários o camponeses vai adquirindo evidência e articulação. A crítica dos intelectuais, profissionais e políticos das camadas médias já se expressa abertamente, dirigindo-se contra os aspectos mais repulsivos do Porfiriato. A inquietação e os protestos dos trabalhadores urbanos e rurais é estimulada pela ação de agitadores anarquistas e socialistas muitos dos quais de origem espanhola, que promovem a organização sindical e os movimentos grevistas e tendem às formulações o atividades de tipo político(Grupo de Ricardo Flores Magón). Grupos liberais surgem em todo o país e aparecem os primeiros tentames insurreicionais. A repressão policial e militar, as prisões o massacres dificultam o progresso dos protestos, mas não conseguem extingui-los, nem impedir que se manifestem também no campo. Guerrilhas camponesas operam, por volta de 1910, nos estados meridionais de Morelos e Guerrero, sob a direção de Emiliano Zapata o no norte, Pancho Villa inicia uma atividade semelhante. Ao mesmo tempo, a equipe dirigente envelheceu, esclerosou-se não deixa que novos homens, novas idéias e técnicas surjam e encontrem campo de ação. A política de Porfírio Díaz, tendente a dividir e a enfrentar os membros de seu regime e os gr sociais para melhor reinar, impede que seus próprios partidários unam-se de maneira orgânica e eficiente em defesa do regime. Pelas mesmas razões e pelas características gerais do Porfiriato, o exército está desmoralizado e carece de combatividade nas situações em que não tenha superioridade. Os investidores e os governos dos Estados dos o da Grã-Bretanha ressentem-se das manobras de Porfírio Díaz - que tenta jogar uns contra os outros e adota certas atitudes de nacionalismo defensivo - chegando a considerar que o regime já esgotou suas possibilidades e tomou-se inconveniente e perigoso. A simpatia e a esperança da maioria nacional e até dos investidores estrangeiros deslocam-se para um homem novo na política mexicana, cuja ação focaliza todas as resistências contra o Porfiriato, tornando-se fator desencadeante de sua derrubada.

Francisco Madero, pertencente a uma rica família de fazendeiros e industriais do norte, idealista bem intencionado e ingênuo, lança-se à luta sob as palavras de ordem de liberdade, democracia,sufrágio efetivo e não-reeleição e apresenta, em 1910, sua candidatura

TRANSIÇÃO PARA A CRISE 303 à presidência do México. Porfirio Díaz triunfa nas eleições deste ano e inaugura seu oitavo período. Detido e logo a seguir exilado no Texas, Madero publica, em outubro de 1910 seu Plano de San Luis de Potosí, exigindo a renúncia de Porfirio Díaz e a realização de eleições honestas. Todos os descontentamentos, ódios e rebeldias contra o regime congregam-se inicialmente em torno de Madero. Sua ação desencadeia as forças sociais comprimidas pelo Porfiriato: campesinato faminto de terras, operários influenciados pelo anarquismo e socialismo, nacionalistas irritados pela entrega ao capital estrangeiro, camadas médias liberais fatigadas pelo continuísmo opressor e os ambiciosos deslocados dos

Page 265: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

círculos de poder. Em maio de 1911, as manifestações populares na cidade do México obrigam finalmente Porfirio Díaz, acossado e isolado, a apresentar sua renúncia e a exilar- se. Em 7 de junho, Francisco Madero entra triunfalmente, na cidade do México e em novembro é o presidente da república.

A Revolução Mexicana não faz mais que começar. Surge, como resultado de uma aliança de fato entre a burguesia representada por Madero, as camadas médias, os trabalhadores urbanos e o campesinato (Zapata, Villa) contra um sistema baseado na fazenda, na dominação estrangeira na estratificação social polarizada e rígida, no clericalismo e no despotismo oligárquico. A coincidência na deter- minação do inimigo combina-se com a divergência de objetivos finais. Para a burguesia e as camadas médias trata-se de reajustar e modernizar o sistema tradicional, de maneira que amplie suas possibilidades de acumulação, ascensão e poder. Os camponeses querem terra a qualquer preço e os trabalhadores aspiram a um maior grau de justiça e participação. Através de acidentadas alternativas e diferentes etapas, a burguesia conquista e conserva a hegemonia do processo.

Sobre Madero e seu governo não tardam a exercer-se as mais variadas e contraditórias pressões. Os camponeses exigem a obtenção imediata da terra e a liberdade a eles prometida e pelas quais se insurgiram. Seus atos de violência provocam o pânico e exigências de ordem e segurança por parte dos fazendeiros. Numerosos grupos e indivíduos demonstram abertamente suas pretensões de poder político e militar e de riqueza, ou suas aspirações de conservação do possuído e disfrutado até 1910. As forças conservadoras, sobretudo as provenientes do Porfiriato, mantêm-se fortes e operantes na burocracia estatal, nos órgãos locais de governo, do exército federal, da Igreja e da imprensa. Sua pressão é reforçada pela diplomacia dos Estados Unidos que, para a proteção da vida, propriedade e influên-

304 FORMAÇÃO DO ESTADO NACIONAL

cia dos grupos investidores e comerciais norte-americanos, intervêm abertamente na política mexicana.

Madero está singularmente incapacitado para enfrentar as forças e os conflitos que sua intervenção e triunfo desencadearam. Membro das classes altas, influenciado pelos familiares e por amizades da mesma origem, carece de espírito revolucionário e de vontade do poder. Não tem consciência da profunda fratura que se produziu na sociedade mexicana, nem do conseqüente confronto entre os grupos que pretendem a volta ao Porfiriato, os que rejeitam o regime derrubado e os que querem marchar em direção a uma profunda transformação

Page 266: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

estrutural. Sua concepção e seu programa não vão mais além da implantação no México de um sistema político de feitio democrático-liberal. Tem uma confiança exageradamente otimista na aptidão das instituições republicanas e da juridicidade na resolução dos seculares problemas de um país que não conheceu até então outras regras que não fossem as da polarização social extremada e do despotismo das classes dominantes e do Estado que elas criaram e controlaram. Madero rejeita tudo o que signifique exercício do autoritarismo de cima para baixo, violência ou ilegalidade. Espera que a ação de novos homens puros regenere o país. A questão social deve ser resolvida pelos métodos constitucionais. As terras arrebatadas aos camponeses às comunidades indígenas devem ser restituídas mediante processo judiciários.

Partindo dessas premissas, Madero fracassa em dar solução rápida ao problema agrário, pretender dissolver os exércitos revolucionários e destruir o movimento de Zapata, ganhando a desconfiança e o ressentimento dos camponeses em armas. Zapata sente-se traído lança seu Plano de Ayala - pelo qual os camponeses devem recuperar imediatamente suas terras e, inclusive, tomar parte das fazenda -- e mantém seu estado de insurreição. Enquanto debilita dessa maneira suas bases populares, Madero contemporiza com as forças conservadoras. Deixa intactos seus mecanismos de poder e influência acredita neutralizá-las apenas com a conciliação, o exemplo e o respeito à lei, As forças conservadoras opõem-se ao maderismo de suas posições na administração pública central e local e da Igreja, atacam- no e desprestigiam-no do congresso e pela imprensa, sem que o presidente faça algo para limitá-las ou destruí-las. A diplomacia das grandes potências, sobretudo a dos Estados Unidos, acusa o regime revolucionário de colocar em grave perigo os interesses dos investidores e comerciantes. O exército federal do Porfiriato é respeitado e adulado. Os próprios partidários de Madero mostram-se insatisfeito, com as conquistas da revolução até este momento, dividem-se, debi-

TRANSIÇÃO PARA A CRISE 305 litando a coesão da equipe governamental. As conspirações e os levantes multiplicam-se (Irmãos Vásquez Gómez, Pascual Orozco, Félix Díaz), com a simpatia cúmplice do embaixador norte-americano Henry Lane Wilson, decano do corpo diplomático. Em fevereiro de 1913, o General Victoriano Huerta toma o poder, força a renúncia de Madero e assassina-o, faz-se eleger presidente com o apoio dos fazendeiros, da Igreja, do exército federal e dos grupos investidores estrangeiros.

A guerra civil renasce e desenvolve-se com toda a violência por todo o país, durando até 1920. Devido ao assassinato de Madero, contra a ditadura de Huerta e pela continuidade do processo revolucionário mobilizam-se vários exércitos encabeçados pelos caudilhos constitucionalistas: Emiliano Zapata, autêntico líder agrário; Pancho Villa, que combina a insurreição camponesa com o oportunismo político; Venustiano Carranza, expressão da burguesia e das camadas médias; Alvaro Obregón, aliado de Carranza, dotado de consideráveis aptidões políticas e sentido social; e um grande número de caudilhos regionais e locais. Idealistas sinceros, movidos pela imagem de um projeto transformador, peões famintos de terra e sem nada a perder, operários sindicalizados e politizados, aventureiros e ambiciosos de

Page 267: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

riqueza e poder, generais improvisados, todos estes elementos combinam-se e misturam-se em uma confusa e flutuante frente única. Sua combatividade orienta-se contra o exército federal, os fazendeiros, os altos funcionários e o clero, considerados como bases e responsáveis pelos regimes de Díaz e Huerta. O México torna-se um caos sangrento. Os generais formam exércitos, combatem com o inimigo e, entre si, trocam rapidamente de lealdades, fuzilam indiscriminadamente, emitem moeda, enriquecem-se por meio da pilhagem e da extorsão, apoderam-se das mais ricas fazendas, em troca de proteção impõem tributo aos proprietários de terras e investidores estrangeiros e habituam-se ao luxo e aos prazeres. O governo central desaparece, a economia nacional paralisa-se, chegando a escassear os abastecimentos de gêneros mais primários. Esta fase da guerra civil somente se conclui com a convergência de esforços e capacidade combatente dos chefes constitucionalistas e pela intervenção dos Estados Unidos. O exército constitucionalista chega a contar com 100 mil soldados e 500 generais. O Presidente Woodrow Wilson coloca-se resolutamente contra o governo de Huerta, retira-lhe o reconhecimento bloqueia o comércio exterior do México, permite o aprovisionamento de armas aos exércitos rebeldes e toma Veracruz, com a marinha norte-americana, em abril de 1914. Huerta vê-se encurralado, renuncia e vai para o exílio. Carranza e Obregón entram

306 FORMAÇÃO DO ESTADO NACIONAL

na cidade do México (julho de 1914) e o primeiro é consagrado presidente com o apoio do segundo.

O derrocamento de Huerta não dá fim à guerra civil; surge uma nova fase na qual, após intentos frustrados de acordo, enfrentam-se Carranza e Obregón, de um lado, Zapata e Villa, de outro, e em que a anarquia mantém-se e agrava-se. Carranza se fortalece com o apoio de Obregón que representa não só um elemento decisivo de eficácia militar como também a adoção, por sua influência, de uma política social que amplia e consolida as bases do regime revolucionário. Obregón canaliza o apoio militar dos setores operários por meio dos "batalhões vermelhos" que reforçam as fileiras do carranzismo. Decretam-se leis sobre a distribuição de terras. À supressão formal dos chefes políticos, que atuam como tiranetes local agrega-se a criação de um regime municipal com funções de auto- governo. A peonagem é legalmente suprimida e inicia-se o processo de proteção e sindicalização dos trabalhadores. Em desafio aberto ao clero, implanta-se o divórcio. A legislação reformista contribui para o triunfo de Carranza, que em março de 1915 entra na capital e logo se projeta no mais importante acontecimento institucional da Revolução: a Constituição de 1917.

Promulgada a 5 de fevereiro de 1917, a Constituição cristal algumas das mais profundas aspirações das forças revolucionárias assenta as bases para um novo equilíbrio de poder, para a continuação posterior de algumas reformas e para a consolidação do regime que vai

Page 268: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

emergindo em meio às convulsões da luta. Estabelece um governo representativo, fundamentado na divisão de poderes. Substitui o continuísmo por um governo de forte predomínio presidencial, submetido a regras precisas. As disposições de cunho federalista descentralizam - pelo menos em teoria - poderes consideráveis, passando-os aos governos estaduais e municípios autônomos. Proclamar se direitos e garantias individuais, a supremacia do interesse nacional sobre o individual, o nacionalismo e o controle estatal sobre os recursos naturais. O direito de propriedade é restringido. O Estado tem o inteiro domínio sobre o solo, as águas e o subsolo (minerais e combustíveis). A propriedade rural e as concessões mineiras ficam sujeitas a limitações. Surge assim a base legal para o confisco de fazendas, a criação de novas comunidades indígenas sob a forma do ejido, a nacionalização de recursos naturais e serviços públicos. O direito de propriedade de estrangeiros é também limitado. Os direitos trabalhistas e sindicais de negociação coletiva e de greve recebem consagração constitucional. O poder e o funcionamento da Igreja são drasticamente reduzidos.

TRANSIÇÃO PARA A CRISE 307

As reformas constitucionais e legais do carranúsmo afetam os fazendeiros e empresários nacionais, o clero, os investidores estrangeiros e, durante vários anos, levam o governo mexicano a urna situação de conflito crônico com os Estados Unidos. Proporcionam-lhe em troca o apoio do campesinato, do proletariado urbano a dos intelectuais progressistas e exercem uma profunda influência em outros países latino-americanos, alguns dos quais adotam em suas constituições e regimes jurídicos muitos dos seus elementos. Não se deve ignorar, no entanto, que as reivindicações camponesas e operárias triunfam em princípio apenas no papel e que a Constituição é, no fundo, um programa de reformas a longo prazo, multas das quais, inclusive, não se concretizaram até os dias de hoje ou foram desvirtuadas.

De qualquer modo, o carranzismo triunfa sobre seus principais inimigos. Villa retira-se da luta e Zapata é assassinado em 1919. O governo e seu chefe, entretanto, não perduram muito tempo mais. Dez anos de revolução esgotaram o povo e os recursos do México. A economia ficou caótica e paralisada. A administração carranzista é corrupta e incompetente. Os chefes políticos e militares aproveitam-se do processo revolucionário e de suas leis para enriquecer e aumentar seu poder, abusando dele. O lento e limitado cumprimento das reformas sociais irrita os camponeses, os operários e os ideólogos revolucionários. O Presidente Wilson é o porta-voz de todos os protestes dos investidores e comerciantes norte-americaiios contra a Revolução e a pressão dos Estados Unidos sobre o governo mexicano aumenta. Em 1920, ao pretender Carranza designar seu sucessor, Obregón assume e canaliza os descontentamentos acumulados, levanta-se contra Carranza, que é derrotado e assassinado em maio deste ano o ocupa a presidência do México.

Page 269: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

Termina a primeira fase da revolução. Sob os governos de Obregón e de Elías Plutum CaUes estende-se um primeiro período de pacificação e reconstrução (1920-1934). A tarefa é dificílima. A revolução dota há mais de uma década a nela todos os lados combatem "com a crueldade e o desespero característicos de uma rebelião agrária, deixando uma herança de receio, ódio e violência" (A.N. Hansoa), afetando os principais setores da economia. A produção agropecuária reduz-se drasticamente e o volume da produção manufatureira cai, de um número-índice de 47 em 1910, para outro, 35,7 em 1921. (1937 = 100). O censo de 1920 registra uma queda de população que alcança cerca de um milhão de habitantes. O equilibrio sóci-econômico e político do país modificou-se profundamente. "A classe dos proprietários de terras - escreve Daniel Co-

308 FORMAÇÃO DO ESTADO NACIONAL sío Villegas - que possu a 60% a 70% da riqueza nacional total, desapareceu; grandes grupos profissionais - o pessoal executivo e político, o exército, o corpo de professores universitária foram quase totalmente substituídos; novas classes sociais com decisivo poder político emergiram, na forma totalmente nova do proprietário coletivo da terra do operário industrial, de um exército popular e de uma nova classe média superior, tão nova, tenra e frágil que nem um só dos mil milionários existentes no México tinha a sua riqueza há 20 ou 30 anos atrás ... Nem um dos grandes diários sobreviveu. Somente dois entre 50 bancos subsistem sob o novo regime" (Citado por Hanke, Lewis. México and the Caribbea 101).

Os governos de Obregón e Calies expressam simultaneamente a cclosão da energia popular liberada pela Revolução, a exigência de cumprir limitadamente as promessas contidas em suas formulações ideológicas e políticas - especialmente a Constituição de 1917 - e a necessidade de canalizar e equilibrar as forças desencadeadas e conflitantes. A Revolução começa a criar e institucionalizar a nova ordem política e o Estado, busca às cegas uma nova política econômica e contribui para cristalizar o inédito sistema de relações sociais do qual qual ela mesmo emerge.

Uma nova equipe dirigente, mais definida em sua composição em suas orientações, embora de origem heterogênea e com características peculiares, ascende e consolida-se. Compõem-na líder militares, camponeses, sindicais e intelectuais surgidos das entranhas do processo revolucionário, identificados com ele e com suas reivindicações e dispostos a aproveitá-lo. Surgidos de urna luta recente contra a pobreza, a opressão e a dependência, chegam subitamente ao poder sem uma preparação psicológica, intelectual, política e administrativa para exercê-lo à altura dos desafios e responsabilidades, se uma ideologia e um sistema de valores que lhes permita resistir à, tentações que aparecem ante seus olhos ávidos. Esta equipe saberá combinando cada vez mais o uso da violência mais ou menos legalizada com a suavidade, a austúcia e a habilidade de manobra e de gestão; o próprio enriquecimento e a satisfação de alguns interesses fundamentais da nação.

Page 270: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

O novo regime político estrutura-se sobre a base e conforme o eixo da supremacia e despotismo do presidente, moderadas pelo princípio da não-reeleição, pelo assassinato (Carranza, Obregón) e pelo consenso ativo e passivo outorgado pelos setores nos quais o sistema global apóia-se. O titular do poder executivo federal e sua equipe reorganizam o aparelho estatal, estendem e reforçam suas atribuições

TRANSIÇÃO PARA A CRISE 309 e mecanismos. O presidente assume a chefia suprema da Revolução, convertida no grande mito mobilizador e justificador da vida nacional e o Partido Nacional Revolucionário, financiado pelas cotizações dos funcionários públicos, e que integra as facções políticas e os caudilhos num movimento único. O partido oficial triunfa necessariamente em todas as eleições. O presidente controla a administração federal, o congresso, os governos estaduais e municipais e contribui, juntamente com o partido, na designação e eleição do sucessor no cargo executivo supremo. Ao término de seu mandato, Calles cede outra vez o poder a Obregón, eleito em 1928 e somente o assassinato deste leva-o a governar outra vez por meio de três testas-de-ferro (Emilio Portes Gil, 1928-1929, Pascual Ortiz Rubio, 1929-1932 e Abelardo Rodríguez, 1932-1934), cuja designação impõe ao Congresso. Este se limita basicamente a ratificar formalmente as leis preparadas pelo presidente e pelo partido. A justiça, embora perca relativamente seu caráter arbtirário e adquira uma certa independência relativa, segue, nas linhas gerais, a política do executivo federal. O México converte-se, de fato, em um Estado de partido único, no qual as forças políticas oposicionistas podem subsistir formalmente, com a tolerância e beneplácito do governo, porém carecendo de força real e de institucionalização efetiva. A legalidade formal coexiste com o recurso normal à violência desapiedada contra os recalcitrantes e rebeldes.

Esta concentração de poder político no centro presidencial baseia- se em uma ampla coalizão de forças sociais e políticas.

Os caudilhos e os caciques regionais e locais, bem como os políticos oposicionistas, perdem o poder e a influência que tinham no passado. São submetidos por meio da oferta de funções limitadas, honras e possibilidades de enriquecimento, ou, então, desaparecem da vida pública.

O apoio e a subordinação das forças armadas consegue-se como resultado da união pessoal da função militar e presidencial (Obregón, Calles e, a seguir, Cárdenas e Avila Camacho), pelo aumento do número de generais e de suas remunerações e pela tolerância de sua corrupção, pelo oferecimento de privilégios e concessões, pelo desaparecimento gradual das condições sociais que engendraram o caudilhismo castrense (liquidação do latifúndio tradicional, adesão camponesa à Revolução). Ao mesmo tempo, o número de soldados sistema é reduzido.

Page 271: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

As forças armadas são profissionalizadas, burocratizadas e colocadas sob o controle do partido oficial. Os pronunciamentos são implacavelmente reprimidos.

310 FORMAÇÃO DO ESTADO NACIONAL

O governo consegue o apoio do campesinato e dos trabalhadores urbanos. Realiza-se a reforma agrária, ainda que de maneira limitada e gradual. Aumenta o acesso dos camponeses à terra, porém cuidando-se de não transtornar o sistema de fazenda e mediante a aplicação da legislação reformista por funcionários corruptos que toleram ou- promovem a concentração latifundiária de generais, políticos e novos empresários. O sindicalismo operário vê-se estimulado pelo Estado, mas também integrado neste. O governo favorece a Confederação Revolucionária de Operários Mexicanos (CROM), brinda- lhe o apoio do exército, da polícia e dos tribunais dando-lhe um poder quase absoluto sobre trabalhadores e empresários. Luis Morones, principal caudilho da CROM, chega a ser Ministro do Trabalho e Indústria do Presidente Calles. Os sindicatos conseguem melhorar as possibilidades organizativas e reivindicatórias, o nível das remunerações e as condições trabalhistas e de segurança social de importantes setores operários. Em troca disto, passam a depender do presidente e do partido governamental, perdem autonomia corporativa e política. As organizações rivais da CROM são perseguidas e aniquiladas. Os dirigentes oficiais podem obter sanções e até o fechamento de empresas, às vezes em defesa dos trabalhadores, outras como meio de extorsão e de extração de tributo de seus proprietários. O Estado utiliza o poder sindical, porém toma cuidado em limitá-lo ocasionalmente, para impedir que seu excessivo fortalecimento o torne perigoso à sua hegemonia e ao equilíbrio de classes em que se baseia.

Um novo empresariado começa a esboçar-se. É constituído pelos homens da Revolução, integrantes do governo ou ligados a este, que se aproveitam das conseqüências socioeconômicas do processo iniciado em 1910: liquidação do latifúndio e das relações sociais tradicionais, restrição à ingerência estrangeira, possibilidades de enriquecimento, ampliação do mercado interno pela melhoria da situação dos camponeses e operários e um crescente intervencionismo estatal.

A concentração dó poder político nas mãos dos novos grupos dirigentes e o novo sistema de relações e de equilíbrio entre as classes supõem, exigem e determinam uma forte ingerência do Estado na economia e na sociedade, que, por sua vez, reforça essa concentração o esse sistema. O Estado mexicano deve enfrentar novos problemas, assumir tarefas inéditas, recorrer a instrumentos criados ou modificados para tanto, como sé indica a seguir.

Page 272: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

Os mecanismos e recursos de governo devem ser ampliados o reforçados. Consolida-se o tesouro fiscal. Funda-se um Banco Nacional com funções de emissão e, mais tarde,. um Banco Nacional de

FORMAÇÃO DO ESTADO NACIONAL 311 Crédito Agrário. O Estado reserva para si alguns monopólios por exemplo, o monopólio sobre as exportações de prata).

Com as alavancas de comando, os mecanismos institucionais e os recursos de que vai sendo dotado, o Estado deve assumir rapidamente a tarefa de alcançar a recuperação da estropiada economia e dar continuidade ao seu desenvolvimento. A reforma agrária, que vai convertendo o México em um país de pequenos proprietários camponeses, é acompanhada pela realização de obras de irrigação. Busca-se a restauração da produção mineira e industrial. Restaura-se e amplia-se a rede de estradas, transportes e comunicações, em parte pela iniciativa estatal e em parte permitindo-se investimentos estrangeiros nestes setores, sobretudo no período anterior à grande crise.

Ampliam-se as fontes de trabalho e melhoram-se relativamente o nível de vida e de produtividade da força de trabalho, suas condições de renda, segurança saúde e educação. A empresa privada recebe a proteção direta ou indireta, representadas pelos gastos e investimentos do Estado, a construção e operação, por ele, de parte da infra-estrutura e dos serviços públicos, o oferecimento de crédito oficial e a recuperação gradual da paz social no campo e na indústria urbana.

O Estado mexicano evidencia neste período muito mais interesse na reforma agrária e na produção mineral do que na industrialização. A necessidade do planejamento para o desenvolvimento é reconhecida más recentemente e de maneira incipiente, no apagar das luzes do período callista. "Os termos 'plano econômico' e 'planejamento econômico' apareceram no vocabulário político mexicano nos meados dos anos 30... No outono de 1933, em meio à grande depressão, a hierarquia superior dos dirigentes pós-revolucionários, sob a pressão de intelectuais mais jovens, formulou o chamado Plano Sexenal. Este se inspira, em parte, na política de intervencionismo estatal que surgia nos países ocidentais mais desenvolvidos como resposta à crise econômica mundial e, em parte, no pouco que se sabia às ocasião, no México, sobre, o planejamento soviético dos começos dos anos 30.

"O Plano Sexenal era um plano econômico apenas no nome. Constituía, na realidade, um esboço geral da política econômica a ser seguida depois da mudança de administração de 1934, orientado, em primeiro lugar, para tirar o país das sérias dificuldades de origem externa e, em segundo lugar, para estimular o desenvolvimento econômico segundo os delineamentos

Page 273: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

assinalados ao término da luta revolucionária pelo Presidente Calles (1925-1928), que continuava ainda em 1933, detendo o poder efetivo. O Plano foi elaborado con-

312 FORMAÇÃO DO ESTADO NACIONAL juntamente pelos técnicos do governo federal e a Comissão do Programa do Partido Nacional Revolucionário (PNR) e foi ratificado pela segunda convenção do PNR celebrada em dezembro de 1933. O fato de que o futuro Presidente, Lazaro Cardenas, não participara ativamente em sua preparação, sugere tratar-se principalmente de um documento político preparado pelo grupo de Calles".6

O Estado mexicano deve redefinir e regulamentar a conflituosa matéria das relações econômicas e políticas com os investidores estrangeiros e com as grandes potencias. Ai se combinam duas tendências relativamente opostas . De um lado, o México esta impregnado de um forte sentimento nacionalista, em parte reativo e em parte construtivo, originado pela secular ação da Grã-Bretanha, França e, sobretudo, dos Estados Unidos agravado pela permanente ingerência imperialista durante o processo revolucionário. Este nacionalismo e, alem disso, utilizado deliberadamente como elemento ideológico de unidade e mobilização nacionais. Por outro lado, o governo mexicano desenvolve um sentido de reformismo e equilíbrio em sua ação social e política e a grave situação do pais o impede de levar a luta contra as grandes potências a seus limites extremos.

Os choques e conflitos tornam-se particularmente graves nas relações com os Estados Unidos, cujo governo demonstra uma insistente preocupação pelas vidas e interesses dos cidadãos norte-americanos no México e hostiliza sem tréguas e política e a legislação nacionalistas, especialmente nas questões agraria, mineira e petroleira, exercendo também uma permanente pressão política e diplomática, reforçada pelas campanhas dos grandes diários . O México e, em troca, defendido nos Estados Unidos pelos grupos protestantes e maçônicos que simpatizam com o anticlericalismo dos governos revolucionários e pela Ameriaan Federation of Labor, favorável a CROM e ligada aos seus dirigentes. O Presidente Obregbn somente e reconhecido em 1923 e sob seu governo chega-se a um acordo com as companhias petroleiras. O conflito agrava-se nos anos de 1925 a 1927 e ameaça transformar-se em guerra aberta . Em 1927, o Presidente Calvin Coolidge nomeia embaixador no Mexico a Dwight W. Morrow, vinculado ao grupo J . P. Morgan and Company, que consegue um acordo com Calles . Em virtude desta transação, a distribuição de terras e limitada, a legislação sobre a propriedade nacional do subsolo nao se aplica a empresas atuantes antes de 1917 e a tensão reduz-se. __________________ Wionczek Miguel S. - Plamación formal incompleta: el caso de México. In. Hagem Everett E., ed Plamación del desarollo económico p, 189

FORMAÇÃO DO ESTADO NACIONAL 313

Page 274: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

A educação constitui uma das primeiras prioridades e um dos mais importantes êxitos do Estado mexicano no período analisado. A necessidade e importância desta tarefa são evidentes. O Estado mexicano necessita superar o atraso e a deformação cultural, herança do passado, especialmente do período porfirista, elevar o nível das maiorias marginalizadas, integrar o país, elevar a produtividade da população, reforçar as possibilidades de desenvolvimento econômico, criar ou fazer vigorar lealdade ao poder político central e elabora difundir uma ideologia unificadora e mobilizadora.

A ação educacional começa a alcançar êxitos consideráveis, sobretudo devido à obra do Ministro José Vasconcelos. Trava-se uma luta gigantesca contra o analfabetismo e o atraso cultural, principalmente no campo, conduzida com imaginação e criatividade. Aumenta o número de escolas e mestres. Surge um milheiro de estabelecimentos educacionais rurais de novo tipo, concebidos como núcleo permanente que serve à vida global das comunidades indígenas e reforçado pelas missões pedagógicas móveis. A Universidade transforma-se em foco ativo de ebulição cultural e ideológica. Por meio de todos os seus instrumentos e em todos os níveis, a transformação cultural dá ênfase ao sentimento nacionalista e à tradição revolucionária, como partes integrantes de um mito -único e que congrega classes e etnias atenua os conflitos, suscita e canaliza as energias populares. O sentimento de continuidade do passado combina-se com a projeção futuro e com a crença nas características e possibilidades excepcionais do povo e do país. Os antecendentes pré-colombianos e as contribuições hispânicas são encarados como os componentes da futura raça cósmica por cuja boca falará o Espírito. O Estado promove além disso, a arte nacional, especialmente a pintura e a música.

As relações com a Igreja ocupam parte importante das preocupações e atividades políticas do Estado neste período. Apesar da tradicional religiosidade do povo mexicano, em muitos dos seus setores difundiu-se um ódio contra a Igreja, por sua identificação com a oligarquia, com o Porfiriato e com o governo de Huerta e por sua hostilidade ao processo revolucionário. Este, além disso, debilitou as classes e as estruturas sócio-econômicas, políticas e culturais em que se baseia e se nutre o poder da Igreja, exerce uma ação secularizado difundindo a irreligiosidade em vastas camadas da população. O princípio da supremacia estatal que, como se viu, tende a se afirmar como resultado e componente ativo da transformação geral, acrescenta outro elemento decisivo de conflito. Este se dá principalmente pela aplicação dos dispositivos anticlericais da Constituição e das novas leis e pela enérgica expansão da educação federal. Obregón expulsa

314 FORMAÇÂO DO ESTAI@O NACIONAL o representante papal e é em seguida ssassinado por um fanático religioso. A crise mais grave produz-se sob o governo de Calles que desterra sacerdotes, fecha conventos e escolas religiosas e acusa a Igreja de traidora. O clero abandona

Page 275: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

o exercício público de suas funções desde julho de 1926. A luta ura vários anos e alcança, de ambos os lados, alto grau de violência. Em 1929 chega-se a um acordo, no qual tem papel ativo o embaixador norte-americano, Morrow.

O governo de Elías Plutarco Calles, exercido diretamente por este e por intermédio dos três representantes mencionados, dura uma década. No apagar de suas luzes, no entanto, anunciam-se mudanças que marcam o fim desta etapa e o começo de outra nova. A insatisfação com o regime caltista veio crescendo, tendência que se pode atribuir à situação econômica e à própria atuação da equipe governamental.

"A restauração gradual de um governo relativamente estás estável trouxe consigo certa estabilidade econômica e, em algumas áreas, um avanço. Entre 1925 o 1929, a produção do chumbo duplica-se, a de zinco triplica-se e a de cobre aumenta em 1/3, enquanto que o índice de produção manufatureira sobe de 35,7 em 1921 para 71,5 em 1930 (sobretudo como resultado da substituição de importações). A produção agropecuária, no entanto, não apresenta uma tendência definida e a de petróleo cai desastrosamente. Por volta de 1930 h baixou a 6 6 285 mil metros cúbitos, menos que a cifra de 1916 e apenas um pouco maior que uma quinta parte da cifra correspondente a 1921, o ano culminante. Esta queda deve-se em parte à exploração desordenada dos poços por companhias estrangeiras, para satisfação da grande demanda dos princípios da década de 1920 e em parte ao rápido desenvolvimento da produção, a baixo custo, da Venezuela."

"A depressão mundial de 1929 a 1933 afeta duramente o IV, México, como a todos os países muito dependentes da produção primmária. A produção de chumbo cai de 248 401 toneladas métricas em 1929 para 118 693 em 1933; a de zinco, de 174 050 a 89 339 e a de cobre, de 86 559 a 39 825. O índice de produção industrial baixa de 71,5 em 1930 a 57,1 em 1933. k produção agropecuária sol um severo retrocesso, do qual não se recupera completamente durante uma década. A indústria do petróleo tem seu pior ano em 1932, quando sua produção chega somente a 5 216 melros cúbios".7 _________________ 1 Hanson, A. H. Public Enterprise ant Economic Development. p. 131.

TRANSIÇÃO PAPA A CRISE 315

Ao impacto da situação econômica agrega-se o produzido pela burocratização, pela corrupção e arbitrariedade do grupo governamental callista e as alternativas de sua política. A distribuição de terras reduz-se, agravando-se a concentração latifundiária, e com isto o descontentamento dos reformadores agrários e de importantes setores camoneses. Limita-se

Page 276: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

o poder sindical, desmantela-se, a CROM e aniquilam-se outras organizações gremiais, ao mesmo tempo que surgem outros dirigentes operários de orientação marxista (Vicente Lombardo Toledano). O mal-estar difunde-se também entre os dirigentes educacionais, pela lentidão no progresso da escolarização, a baixa remuneração dos mestres e malversação de fundos destinados a fins pedagógicos por parte dos grupos políticos integrantes do regime. A exigência de que a Revolução continue estendendo-se e aprofundando-se e de que seu programa original seja efetivamente aplicado e cumprido generaliza-se. Designado por Calles como su- cessor, Lázaro Cárdenas torna-se porta-voz do clamor popular e,uma vez no poder rompe com seu criador, deporta-o e imprime a seu governo (1934-1940) um enérgico impulso que o converte na última grande maré da Revolução Mexicana.

Para toda a América Latina e especialmente para os países examinados, o ano de 1930 marca o fecho do processo de crescimento dependente, de hegemonia alogárquica indiscutida e de construção do Estado Nacional. Após esta data fatídica começa a crise estrutural praticamente permanente que se estende até os dias de hoje. Através dela, a economia, a sociedade, o sistema político e o Estado dos países latino-americanos sofrem consideráveis transformações e, aos velhos conflitos agravados agregam-se e entrelaçam-se outros novos, sem que a crise estrutural encontre, até agora, uma solução autêntica e perdurável. A natureza o papel e a estrutura do Estado na sociedade latino-americana durante o período iniciado em 1930 constituem o objeto do segundo volume desta obra.*

______________ * O autor publicou, em 1972, sob o título Aspectos políticos de la planificación en America Latina, Bibl. Científica, uma obra que trata de alguns problemas relacionados com o papel do Estado na planificação. (N. da T.)

Bibliografia

ALVEREZ, Juan, Las Guerras Civiles Argentinas y el Problema de Buenos Aires en la República, Buenos Aires, 1936.

ARGUMENTS (Revista), número especial dedicado a La Bureaucratie, Paris 4e., année, N. 17,ler trimestre,1960.

BAGU, Sergio, Economia de la Sociedad Colonial - Ensayo de Hiastoria Comparada de América Latina, Buenos Aires, El Ateneo, 1949.

Page 277: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

BAGU, Sergio, Estructura Social de la Colonia , Buenos Aires, El Ateneo, 1952.

BAGU, Sergio, La Realidad Argentina en el Siglo III. Argentina en el Mundo, México-Buenos Aires, Fondo de Cultura Económica,1961.

BAGU, Sergio, Evolución Histórica de la estratificación Social en la Argentina, publicação interna do Departamento de Sociologia , Universidade de Buenos Aires, 1961.

BAIROCH, Paul Revolución Industrial y Subdesarrollo, México, Siglo XXI,1967.

BALANDIER, Georges, Anthoropologie Politique, Paris, Presses Universitaires de France, 1967.

BALESTRA, Juan, EI Noventa, Buenos Aires, Farina, 1959.

BALLESTEROS Y BERETTA, Antonio, Historia de Espana y su Influencia en la Historia Universal, Barcelona, P. Salvat, 9 tomos, 1918-1941.

BARÁN, Paul A and SWEEZY, Paul m. Monopoly Capitalism- Na Essay on the American Economy and Social Order, Peguin Books,1966.

BARÁN, Paul A ., La Economia Politica del Crecimiento, México-Buenos Aires Fondo de Cultura Económica,1959.

BARRACLOUGH, Geoffrey, Na Introductión to Comtemporary History, Middleesex, peguin Books,1967.

BENDIX, Reinhard and LIPSET, Seymour Martin, Editors), Class, Status and Power - Social Stratification in cComparative Perspective, Nova Iorque, the Fre Press, 1966 ( Second Editioan).

Page 278: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

BEYHAUT, Gustavo, CORTÉS CONDE, Roberto, GOROSTEGUI h. Y TORRADO S., Los Inmigrantes en el sistema Ocupacional agentino, em DITELLA Torcuato S. e outros . "Argentina, Sociedade de Masas", op. Cit.

BLAU, P. M.,La Burocracta en la Sociedad Moderna, Buenos Aires, Editorial Paidós, 1962.

BODENHEIMER, Edgar, Teoria de1 Derecho, Mexico-Buenos Aires, Fondo de Cultura Economica, 1963 (3a dición).

BOURRCARD, Francois, Poder y Sociedad en e1 Peru Contemporáneo, Buenos Aires, Sur, 1967.

318 FORMAÇÃO DO ESTADO NACIONAL BUARQUE DE HOLANDA, Sergio, História Geral da Civilização Brasileira, São Paulo, 1960.

BURGIN, Miron, Aspectos Economicos del Federalismo Argentino, Buenos Aires, Hachette, 1960.

BUSNICHE, Jose Luis História Argentina, Buenos Aires, Solar/Hachette, 1965. CARDoso, Fernando H., Cuestiones de Sociologia del Desarrollo de America Latina, Santiago de Chile, Editorial Universitaria, 1968.

CARDOSO, Fernando H., y FALETTO, Enzo, Dependencia y Desarrollo en America Latina (Ensayo de lnterpretacion Sociologica), Instituto Latinoamericano de Planificación Econ6mica y Social, Edição preliminar limitada para circulação interna, Santiago de Chile, outubro de 1967.

CARR, Raymond, The Mexican Revotion, en: "History of the 20th Century", Chapter 9, Londres, 1968.

CÉSPEDES DEL CASTILHO, Guillermo, La Sociedade Colonial Americana en los Siglos XVI y XVII, no tomo m de "Historia Social y Economica de Espana y America"; dirigida por J. Vicene Vives, Barcelona, Editorial Teide, 1957.

Page 279: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

CERRONI, Umberto, Marx y el Derecho Moderno, Buenos Aires, Jorge Alvarez, Editflr, 1965.

CIRIA Alberto y otros, Los Reformistas, Buenos Aires, Editorial Jorge Alvarez, 1968.

CLAUDE, Henri, Ou va I'imperialisme americain, Paris, Editions Sociales, 1950.

CoLE, G. D. H., Introduccion a la Historia Economica, Mexico-Buenos Aires, Fondo de Cultura Econ6mica, 2a edición, 1963.

COMISION ECONOMICA PARA AMERICA LATINA (CEPAL), Analisis y Proyecciones del Desarrollo Economico - v. EI Desarrollo Economico en la Argentina, Mexico, Naciones Unidas, 1959.

CEPAL, El Desarrollo Social de America Latina en la Posguerra, Buenos Aires, Solar-Hachette, 1963.

CEPAL, Economic Survey of Latin America, 1949, Nova Iorque, 1951.

CONSEJO FEDERAL DE INVERSIONES, Bases para el Desarrollo Regional Argentino, Buenos Aires, 1963.

CORNBLIT, Oscar, European Inmigrants in Argentine Industry and Politics (Em (CLAUDIo VÉLIZ, "The Politics of Conformity in Latin America", op. cit.)

CORNBLIT, Oscar, GALLo, Ezequiel y O'CONNELL, Arturo A., La Generacion del 80 y su proyecto: Antecedentes y Consecuencias, em Revista "Desarollo Economico", 1, 4, Buenos Aires 1962.

CORTEs CoNDE, Roberto y GALLo, Ezequiel, La Formacidn de la Argentina Moderna, Buenos Aires, Fditorial Paidos, 1967.

CHAUNU, Pierre, Historie de l'Amerique Latine, Paris, Presses Universitaires de France, 1964.

Page 280: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

CHEVALIER; Frangois, The Ejido and Political Stability in Mexico (Em CLAUDIo VÉLIz, "The Politics of Comformity...", cit).

DEAS, Malcom, Porfirio Diaz, em `'History of the 20th Century", Chapter 9, Londres, 1968.

DELGADO, Oscar (editor), Reformas Agrarias en la America Latina Procesos y Perspectivas, MexicoBuenos Aires, rondo de Cultura Economica, 1963.

DEL Rio, Jorge, Politica Energetica Argentina y los Monopolios Electricos, Buenos Aires, Catedra Lisandro de la Torre, sem data.

DEUTSCHER, Isaac, La Revolution Inachevee 1917-1967, Paris, Roberto Laffont, 1967.

DI TELLA, Torcuato 5., GERMANI, Gino GRACIARENA, Jorge y colaboradores, Argentina, Sociedad de Masas, Buenos Aires, Editorial Universitaria de Buenos Aires, 1965.

BIBLIOGRAFIA 319

DONOSO, Ricardo Breve Historia de Chile, Buenos Aires, Editorial Universitaria de Buenos Aires, 1963.

DORFMAN, Adolfo, La Industrializacion en la America Latina y 1as Politicas de Fomento, Mexico-Buenos Aires, Fondo de Cultura Economica, 1967.

DUVERGER, Maurice, Methodes de la Science Politique, Paris, Presses Unversitaires de France, 1959.

DUVERGER, Maurice, Sociologie Poli.. tique, Paris, Presses Universitaires de France 1966.

Page 281: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

DUVIGNAUD, Jean, Introduction a la Sociologie, Paris, Gallimard, 1966.

EDWARDS BELLo, Alberto, La Organizacion Politica de Chile, Santiago, Editorial del Pacifico, Edicion, 1955.

EYZAGUIIRRE, Jaime, Fisonomia Historica de Chile, Santiago, Editorial del Pacifico, Segundo edicion, 19S8.

FALS BoRDA, Orlando, Violence and the Break-Up of Tradition in Colombia, en CLAUDIo VELIZ, "Obstacles", op. cit.

FERNS, H. S., Gran Bretana y Argentina en el Siglo XIX, Buenos Aires Solar/Hachette, 1966.

FERRER, Atdo, La Economia Argentina, Mexico-Buenos Aires, Fondo de Cultura Económica, 1963.

FEUERLEIN; W. E., Dolares en America Latina, Mexico, Fondo de Cultura Econ6mica, 1944.

FRIEDMANN, Wolfgang, Law in a Changing Society, Londres, Penguih Books, 1964.

FRONDIZI, Silvio, La Realidad Argentina, vol. I, Buenos Aires, Editorial Praxis, 1955.

FURTADO, Celso, de l'oligarchie e l'Etat Militaire, en Le Bresil, op. FURTADO, Celso, Subdesarrollo y Estancamento em America Latina, Buenos Aires, Editorial Universitaria de Buenos Aires, 1966.

FURTADO, Celso, Formação Econômica do Brasil, Rio de Janeiro, Editora Fundo de Cultura, 1959.

FURTADO, Celso, Dialectica del Desarrollo, Mexico-Buenos Aires, Fondo de Cultura Economica, 1965.

Page 282: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

GALLETTI, Alfredo, La Realidad Argentina en el Siglo XX. I. La Politica y los Partidos, Mexico-Buenos Aires, Fondo de Cultura Economica, 1961.

GALLO, Ezequiel y SIGAL, Silvia, La Formación de los Partidos Políticos contemporaneos: La U.C.R. (18901916), em Revista "Desarrollo Econ6mico", III, 1-2, Buenos Aires, 1963.

GARCIA, Antonio, La Estructura Social y el Desarrollo Latino-americano (Replica a la Teoria del Nuevo Contrato Social de W. W. Rostow), em "El Trimestre Econ6mico", México, janeiro-março de 1963.

GARCÍA, Antonio, Las Clases Medias y la Frustración del Estado Representativo en America Latina, em Revista "Cuadernos Americanos", Mexico, N° l, de 1967.

GARCIA, Antonio, Colombia, Esquema de una República Señorial, en "Cuadernos Americanos", novembro-dezembro de 1961.

GARCIA, Antonio, Bases de la Economia Contemporanea, Capitalismo y Feudalismo en la America Colonial Espanola, Bogota, Edic. RFIOC, 1948.

GARCIA, Antonio, Reforma Agraria y Economia Empresarial en America Latina, Santiago de Chile, Editorial Editorial Universitaria, 1967.

GARCIA, Juan Agustin, La Ciudad Indiana, Buenos Aires, Editorial Universitaria de Buenos Aires, 1964.

GEORGE, Pierre, Les Grands Marches du Monds, Paris, Presses Universitaires de France, 3a edition, 1961.

GEORGE, Pierre, Qu'est-ce que l'Urbanisme?, "Annales de 1'Universite de Paris", N° 3, Ano 1966.

Page 283: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

GERMANI, Gino, Estructura Social de la Argentina, Buenos Aires, Raigal, 1955.

320 FORMAÇÃO DO ESTADO NACIONAL

GERMANI, Gino, Politica y Sociedad en Epoca de Transicion - De la Sociedad Tradicional a la Sociedad de Masas, Buenos Aires, Editorial Paidos, 1962.

GERMANI, Gino, ? Pertenece America Latina al Tercer Mundo? em Revista "Aportes", Paris, N° 10, outubro de 1968.

GERMANI, GINO, y SILVERT, Kalmari, Estructura Social e Intervencion Militar en America Latina, en Dt TELLA, Torcuato e outros, "Argentina, Sociedad de Masas", op. cit.

GERT, H. y WRIGHT MILLS C., CaGERMaNi, Gino, Politica y Sociedad Aires, Editorial Paid6s, 1963.

GERTH, H. y WRIGHT MILLS, C., Fram Max Weber; Essays in Sociology, Nova Iorque, Oxford University Press, 1958.

GIBERTI, Horacio, Historia Economica de da Banaderia Argentina, Buenos Aires, Raigal, 1954.

GIBERTI, Horacio, El Desarrolto Agrario Argentino, Buenos Aires, Editorial Universitaria de Buenos Aires, 1964.

GIL, Federico G., Instituciones y Desarrollo Politico de America Latina, Buenos Aires, Instituto para da Integración de America Latina, 1966.

GONZÁLEz CASANOVA, Pablo, La Democracia en México, Mexico, Ediciones Era, Segunda edición, 1967.

Page 284: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

GONZALEZ CASANOVA, Pablo, Mexico: The Dynamics of an Agrarian and Semicapitalist Revolution (Em PE-Sociales en el Desarrollo de American...", op. cit.)

GONZÁLEZ NAVARRO, Mexico: The Lop-Sided Revolution, em CLAUDIO VELIZ, "Obstacles

GRACIAREMA, Jorge, Poder y Clases Sociales en el Desarrollo de America Latina, Buenos Aires, Editorial Paid6s, 1967.

GRAMSCI, Antonio, Notas sobre Maquiavelo, sobre Politica y sobre el Estado Moderno, Buenos Aires, Editorial Lautaro, 1962.

GRAMSCI, Antonio, Los Intelectuales y la Organizacidn de la Cultura, Buenos Aires, Editorial Lautaro, 1960.

GUERRINI, Daniel, O'u va le peuple americain, Paris, Rene Julliard, 1950.

GUNDER FRANK, Andre, Mexico: Modelo "Tipos de Revolucion Burguesa, en Revista "Arauco", Santiago de Chile, N° 62, março de 1965.

GUNDER FRANK, Andre, Capitalism and Undervelopment in Latin America - Historical Studies of Chile and Brazil, Nova Iorque e Monthly Review Press, 1967.

GURVITCH, Georges, ET Concepto de Clases Sociales, Buenos Aires, Nueva Visión, 1967.

HAGEN, Everett E. (Editor), Planeaci6n del Desarrollo Economico, Mexico-Buenos Aires, Fondo de Cultura Econ6mica, 1964.

HALPERIN DoNGIII, Tulio, Argentina en el Callejón, Montevideo, Arca, 1964.

Page 285: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

HANKE, Lewis, Modern Latin America Continent in Ferment: Volume I: Mexico and the Caribbean, Volume IIb: South America, Princeton Toronto, Londres, D. Van Nostrand Company, Inc., second edition revised and elarged, 1967.

HANSON, A. H., Public Enterprise and Economic Development, Londres, Routledge' and Kegan Paul Ltd., Second Edition, 1965.

HARDOY, Jorge E., Aspectos de la Urbanizacion de America Latina, Buenos Aires, Cuadernos del Centro de Estudios Urbanos y Regionales, 1966, edigao mimeografada.

HARDOY, Jorge E., .EL Modelo Clásico de la Ciudad Colonial, Hispanoamericana, Buenos Aires, Centro de Estudios Urbanos y Regionales, junho de 1968 (Edigao mimeografada).

BIBLIOGRAFIA 321

HARING, C. H., The Spanish Empire in America, Nova Iorque, 1952.

HAUSER, Philip M. y otros, La Urbanizacidn en America Latina, Lieja, UNESCO, 1961.

HENRIQUEZ URENA, Pedro, Historia de la Cultura en la America Hispânica, Mexico-Buenos Aires, Fando de Cultura Econbmica, Tercera edicidn, 1955.

HERRERA, Amilcar O., La Ciencia en el Desarrollo de America Latina, en Revista "Estudios Internacionales", $antiago, Ano 2, N° I, abriljunho, 1968.

HERRERA, Felipe, Disunity as an Obstacle to Change en CLAUDIO VELEZ, "Obstacles...", op. cit.

HERRING, Hubert, A History of Latin American, Nova Iorque, Alfred A. Knopf, second edition revised, 1965.

Page 286: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

HOBSBAWM, E. J., The Age or Revolution 1789-1848, Nova Iorque, Mentor Books, 1964.

HOROWITZ, Irving Louis, Three Worlds of Development - The Theory and Practice of International Stratification, Nova Iorque, Ogford University Press, 1966.

HOROWTZ, Irving Louis (Editor), The New Sociology, Nova Iorque, Oxford University Press, 1965.

HUMPEREYS, R. A., and LYNcx, John, Editors, The Origins of the Latin American Revolutions, 1808-1826, Nova Iorque, 1965.

IRAZUSTA, Julio, Influencia Economica Británica en en Rio de la Plata, Buenos Aires, Editorial Universitaria de Buenos Aires, 1963.

JAGUARIBE, Helio, Desarrollo Economico y Desarrollo Politico, Buenos Aires, Editorial Universitaria de Buenos Aires, 1964.

JAGUARIBE, Helio, The Dynamics of Brazilian Nationalism, em CLAUDIO VÉLIZ, "Obstacles...", op. cit. D

JOSET, Julio Cesar, Ensayo Critico del Desarrollo Económico-Social de Chile, Santiago de Chile, Editorial Universitaria, 1955.

JONHSON, John J., Los Militares Latinoamericanos como Grupo Competidor Politico en la Sociedad en Transici6n em SHILS, Edffiards e outros, Los Miditares, ap. cit.

JOHNSON, John J., La Transformación Politica de America Latina, Buenos Aires, Solar/Hachette, 1961.

KAHL, Joseph A. (Editor), La Industrializacion en America Latina, Mexico-Buenos Aires, 1965.

Page 287: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

KAPLAN, Marcos, Economia y Politica del Petróleo Argentino (1939-1956), Buenos Aires, Editorial Praxis, 1957.

KAPLAN, Marcos, Origenes de la Politica Petrolera Argentina (1907-1916), em Revista Fichas de Investigacidn Economica y Social, Buenos Aires, Ano I, N° 4.

KAPLAN, Marcos, Los Gobiernos Radicales y el Petróleo (1916-1922), en C.E.S.A., Boletin del Cenutro de Estudios Sociales Latinoamericanos, Buenos Aires, fevereiro-março de 1955.

KAPLAN, Marcos, La Crisis del Radicalismo, Buenos Aires, Editorial Praxis, 1958. KArLAN, Marcos, Problemas de1 Desarrollo y de la Integracion de America Latina, Caracas, Monte Avila Editores, 1968.

KAPLAN, Marcos, Estado y Urbanizacidn en America Latina, I. El Periodo Colonial, en Revista Colegio de Economistas de Mexico, N° 2, julho, 1968.

KAPLAN, Marcos (en colaboracion con BAsALDUA, Raul O.), Problemas Estructurales de America Latina y Planificacidn para el Desarrotlo, Buenos Aires, Bibligrafica Omeba, 1968.

KORN, Alejandro, Influencias Filoósoficas en la Evolucion Nacional, Buenos Aires, Editorial Claridad, s/f.

LAMBERT, Jacques, Amerique LatineStructures Sociales et Institutions

322 FORMAÇÃO DO ESTADO NACIONAL Politiques, Paris, Presses Universitaires de France, 1963.

LA PALOMBARA, loseph (Editor), Burocracy and Political Development, Princeton University Press, 1963.

LE BRESIL, número colectivo de la Revista Les Temps Modernes, Paris N~ 257, outubro, 1967. Ha. edição espanhola: Brasil Hoy; Mexico, Siglo XXI, 1968.

Page 288: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

LEFEBVRE, Henri, Critique de la Vie Quotidienne, I. Introduction. II. Fondements d'une Sociologie de la Quotidiennete, Paris, L'Arche Editeur, 1958-1962.

LEFEBVRE, Henri, Position: Contre les Tchnocrates - En finir avec l'humanitefiction, Paris, Editions Conthier, 1967.

LEFEBVRE, Henri, Sociologie en Marx, Paris, Presses Universitaires de France;. 1966.

Le Probleme des Capitales en Amerique Latine, Colloque International du Centre National de la Recherche Scientifique, Toulouse, 24-27 fevereiro 1964, Editions du C.N.R.S., Paris, 1965.

LEWIS, W. Arthur, Teoria del Desarrollo Economico, Mexico-Buenos Aires, Fondo de Cultura Econ6mica, 1958.

LIPSET, S. M. y SOLARI, A. E. (Compiladores), Elites y Desarrollo en America Latina, Buenos Aires, Editorial Paidos, 1967.

LYNN SMITH, T. (Editor), Agrarian Reform in Latin America, Nova Iorque, Alfred A Knopf, 1966.

MACKENZIE, W. J. M., Politics and Social Sciencie, Penguin Books, 1967.

MANDEL, Ernest, Traite d'Economie Marxiste, Tome I, Tome II, Paris, Julliard, 1962.

MARCHAL, Andre, Systemes et Structures Economiques, Paris, Presses Universitaires de France, 1961.

MARIATEGUI; José Carlos, Siete Ensayos de Interpretacidn de la Realidad Peruana, Lima, Amauta, 1952.

Page 289: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

MARSAL, Juan F., Cambio Social en America Latina - Critica de Algunas Interpretaciones Dominantes en las Ciencias Sociales, Buenos Aires, Solar/Hachette, 1967.

MARTIN, Jean-Marie, Industrialisation et Developpement Energefique du Brasil, Paris, Institut des Hautes Etudes de l'Amerique Latine, 1966.

MARX, Karl, Oeuvres Choisies, Choix de Noberf Guterman et Henri Lefebvre, Tome I, Tome II, Paris, Gallimard, 1963.

MATTHEWS, Herbert L. (Editor), The United States and Latin America, The American Assembly, Columbia University, Second Edition, 1963.

MAYER, K. B., Clase y Sociedad, Buenos Aires, Editorial Paid6s, 1961.

McGANN, Thomas F., Argentina, Estados Unidos y el Sistema Interamericano, 1880-1914, Buenos Aires, Editorial Universitaria de Buenos Aires, 1960.

MEYER, Gerald M., y BALDWIN, Robert E., EI Desarrolo Economico, ' Masiri, Aguilar, 1964, p. 357.

MELLAFE, Roland, La Esclavitud en Editorial Universitaria de Buenos Aires, 1964.

MERCIER VEGA, Luis, Mecanismos del Poder en America Latina, Buenos Aires, Sur, 1967.

MESMER, Theodore C., The Public Sector in Latin America: Its Role in the Process of Economic Growth, en Economia Latinoamericana, Washington, Volumes I, N° 1, 1963.

Mexico - 50 anas de Revolucion. l. La Economia, Mexico-Buenos Aires, Fondo de Cultura Economica, 1960.

Page 290: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

MIJARES, Augusto, La Evolucion Politica de Venezuela, 1810-1960, Buenos Aires, Editorial Universitaria de Buenos Aires, 1967.

MILIBAND, Ralph, Marx and the State en The Socialist Register 1965, A Survey of Movements & lohn Saville, Londres, The Merlin Pres

BIBLIOGRAFIA 323

MORSE, Richard M., Latin American Cities: Aspects of Function and Structure, en JOHN FRIEDMANN and WILLIAN ALONSO (editors), Regionat Development and Planning, Massachussetts, The M.I.T. Press, Second Printing, 1965.

MUNIS, G., Jalones de Derrota: Promesas de Victoria, Editorial Lucha Obrera, Mexico, 1948.

MYRDAL, Gunnar, Teoria Económica y Regiones Subdesarroladasi Mexico-Buenos Aires, Fondo de Cultura Economica, 1959.

ODDDNE, Juan Antonio, La Formacion del Uruguay Moderno - La Inmigracion y el Desarrollo Economico-Social, Buenos Aires, Editorial Universitaria de Buenos Aires, 1966.

OFICINA DE. ESTUDIOS PARA LA COLABORACION ECONOMICA INTERNACIONAL (OECEI), Argentina Económica y Financeira, Buenos Aires, 1966.

OLIVEIRA MARTINS, J. P., História de la Civilizacidn Iberica, Madrid, Editorial Mundo Latino, sem data.

OLSON, Paul R. y ADDISON HICKMAN, C., Economia Internacional Latinoamericana, Mexico, Fondo de Cultura Económica.

ORTIZ, Ricardo M., Historia Econ6mica de la Argentina, Buenos Aires, Editorial Raigal, 1955.

Page 291: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

OTS CAPDEQUI, Jose Maria, EI Estado Espanol en las Indias, México, El Colegio de Mexico, 1941.

PARRY, J. H., The Spanish Seaborne Empire, Londres, Hutchinson, 1966.

PENA, Milciades, Claves para la Historia Argentina: La Revolucion del 90, en Fichas..., Ano I, N° 6, junho 1965.

PETRAS, James and ZEITILIN, Maurice (Editors), Latin America - Reform or Revolution? - A Reader, Nova Iorque, Fawcett World Library, 1968.

PIIILIP, Andre, Histoire des Faits Economiques et Sociaux de 1800 à nos jours, tomes I et II, Paris, Aubier, Editions Montaigne, 1963.

PICON-SALAS, De la Conquista a La Independencia, Mexico-Buenos Aires, Fondo de Cultura Econ6mica, Segunda Edicion, 1950.

PINTO, Anibal, Chile, un caso de Desarrollo Frustrado, Santiago, Editorial Universitaria, 1962.

PINTO, Anibal, Politica y Desarrollo, Santiago, Editorial Universitaria, 1968.

PINTO, ROGER et GRAWITZ, Madeleine, . Methodes des Sciences Sociales, Paris, Dalloz, 1964.

PIRENNE, Henri, Historia Economica y Social de la Edad Media, Mexico-Buenos Aires, Fondo de Cultura Economica, 1947.

POULANTZAs, Nicos, Preliminaires d l'etude de l'hegemonie dans l'Etat em Les Temps Modernes, Paris, novembro 1965, N° 234.

Page 292: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

PUIGGROS, Rodolfo, Historia Critica de 1os Partidos Politicos Argentinos, Vollimenes I, II, III, Buenos Aires, Editorial Jorge Alvarez, 1965 y 1967.

PUIGGRos, Rodolfo, Historia Economica del Rio de la Plata, Buenos Aires, Editorial .Siglo Veinte, 1948.

PRADO JUNIOR, Caio, Historia Economica do Brasil, São Paulo, Editora Brasiliense, 1945.

PYKE, Frederick B., Aspects of Class Relations in Chile, 1850-1960 (em PETRAS and ZEITLIN, Latin America.. , cit.).

PYKE, Frederick B. (Editor), The Conflict Between Church and State in Latin America, Nova Iorque, Alfred A. Knopf, 1967.

QUIJANO, Anibal, Dependencia, Cambio Social y Urbanizacidn en Latinoamerica, Naciones Unidas, División de Asuntos Sociales, Santiago de Chile, novembro de 1967. QUIJANO, Anibal, El Proceso de Urbaizacidn en Latinoamerica (Esquema de un Marco de Revision

324 FORMACÃO DO ESTADO NACIONAL

de la Problematica), CEPAL, Division de Asuntos Sociales, junho de 1965 (Edição mimeografada).

RICHARDOT, Hubert, et SCHNAPPER, Bernard, Histoire des Faits Economiques, Paris, Dalloz, 1958.

RIPPY, J. Fred, La Rivalidad entre ,Estados Unidos y Gran Bretana por America Latina (1808-1930), Buenos Aires, Editorial Universitaria de Buenos Aires, 1967.

Page 293: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

ROMERO, Jose Luis, Las Ideas Politicas en Argentina, Mexico-Buenos Aires, Segunda Edicion, 1956.

ROMERO, Jose Luis, La Edad Media, Mexico-Buenos Aires, Fondo de Cultura Econamica, 1949.

SÁNCHEZ-ALBORNoZ, Nicolas y MORENO, Jose Luis, La Poblacion de America Latino-Bosquejo Historico, Buenos Aires, Editorial Paidós, 1968.

SAUVY, Alfred, La Bureaucratie, Paris, Presses Universitaires de France, 1956.

SCHNERB, Robert, Libre-Echange et Protectionnisme, Paris Presses Universitaires de France, 1963.

SEGALL, Marcelo, Cinco Ensayos DiaLecticos - Desarrolo del Capitalismo en Chile, Santiago de Chile, 1953.

SHILS, Edward y otros, Los Militares y los Paises en Desarrollo, Buenos Aires, Pleamar, 1967.

SILVA HERCZOG, Jesús, Greve Historia de la Revolucion Mexicana, 2 tomos, México-Buenos Aires, Fondo de Cultura Economica, 1960.

SILVERT, Kalman H., La Sociedad Problema - R,eacción y Revolucion en America Latina, Buenos Aires, Editorial Paidós, 1962.

SIMONSEN, Roberto C., Historia Economica do Brasil (1500-1820), São Paulo, Companhia Editora Nacional, 4a ediqao, 1962.

STAVENHAGEN, Rodolfo, Seven Fallacies about Latin America (em PETRAS AND ZEITLIN "Latin America...", op. cit.)

Page 294: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

STERNBERG, Fritz, ?Capitalismo o socialismo?, Mexico-Buenos Aires, Fondo de Cultura Economica, 1954.

SUNKEL, Osvaldo, El Marco Hist6rico del Proceso de Desarrollo y de Subdesarrollo, Santiago de Chile, "Cuadernos del Instituto Latinoamericano de Planificaci6n Economica y Social", Santiago de Chile, 1967.

TORRESS RIVAS, Edelberto, Integracion ded Desarrollo Social Centroamericano, Preliminar Mimeografado, Santiago de Chile, "Instituto Latinoamericano de Planificación Economica y Social", abril de 1968.

UNESCO, Aspectos Sociales del Desarrollo. Economico en America Latina, Volumenes I y II, Edição Preparada por EGBERT DE VRJEs e JOSE MEDINA ECHAVARRÍA, Lieja, 1962.

URQUIDI, Victor L., Viabilidad Economica de America Latina, México-Buenos Aires, Fondo de Cultura Económica, 1962.

VÉLIZ, Claudio (Editor), Obstacles to Change in Latin America, Londres, Nova Iorque, Toronto, Oxford University Press, 1965.

VÉLIZ, Claudio, (Editor), The Politcs of Conformity in Latin America, Oxford University Press, 1967.

VILLALOBOS Sergio, EI Comercio y la Crisis Colonial, Santiago, Ediciones de la Universidad de Chile, 1968.

VILAR, Jean, Histoire de l'Espagne, Paris, Presses Universitaires de France, 1958.

VITALE, Luis, Latin America: Feudal or Capitalist? (Em PETRAS AND ZEITLIN, "Latin America...", op. cit.)

Page 295: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

VITALE, Luis, Interpretación Marxista de la Historia de Chile, Tomo I, Santiago de Chile, Prensa Latinoamericana; 1967.

WEFFORT, Francisco C., Le Populisme, em "Le Brasil", op. cit.

WEFFORT, Francisco C., Classes Populares e Desenvolvimento Social (Contribuição ao Estudo do `Popu-

BIBLIOGRAFIA 325 lismo), Preliminar Santiago, "Instituto Latinoamericano de Planificación Economica y Social, febrero de 1968, mimeografado.

WERNECK SODRÉ, Nelson, Formação Histórica do Brasil, São Paulo, Editora Brasiliense, 1964.

WERNECK SODRÉ, Nelson, Evolucion Social y Econ6mica del Brasil, Buenos Aires, 1964.

WEYMULLER Frangois, Histoire du Mexique, Paris. Preses Universitaires de France, 1953.

WIONCZEK, Miguel S., Planeacion formal incompleta: El caso de México, em Everett E. Hagen, "Planeación del Desarrollo...", op. cit.

WIONCZEK, Miguel S., El Nacionalismo Mexicano y la Inversion Extranjera, México, Siglo XX/, 1967.

WRIGTH MILLs, C., La Imaginación Sociologica, México-Buenos Aires, Fondo de Cultura Económica, ... 1961.

WRIGHT MILLs, C., The Marxists, Nova Iorque, Dell Publishing Co., 1962.

WRIGIIT MILLs, C., (Editor), Images of Man The - The Classic Tradition in Sociological Thinking, Nova Iorque, George Braziller, Inc., 1960.

Page 296: visionvox.com.br€¦  · Web viewMARCOS KAPLAN Formação do Estado Nacional na América Latina Tradução de Lygia Maria Baeta Neves Revisão técnica de Fanny Tabak. eldorado

ZEA, Leopoldo, America Latina y el Mundo, Buenos Aires, Editorial Universitaria de Buenos Aires, ... 1965.

ZEITLIN, Maurice, The Social Determinants of Political Democracy in Chile (em PETRAS AND ZEITLIN, "Latin America...", op.cit.