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GUIA

PARA

UM

SEQÜESTRO Este livro e uma ficcao. Qualquer nome, lugar e eventos

sao produtos da minha imaginacao e sao usados ficticiamente. Qualquer semelhanca com eventos do passado, locais, pessoas mortas ou vivas e uma mera coincidencia.

Fernandes de Oliveira Sousa (Fernandez) – 2016

www.arttops.com

Capa: Adriano Ficarelli

O Estudo

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Fernando discou o celular pré pago de Estevão de um telefone público. Para o primeiro dia de Agosto o tempo contrariava o inverno e prometia ser um dia quente em São Paulo. Assim que Estevão atendeu, Fernando falou seu código de segurança.

– Temos um jogo de pôquer hoje. Você quer jogar?

Estevão dirigia seu Jeep com a capota arreada e teve dificuldade em ouvir direito quem lhe falava no celular. Diminuiu a velocidade do carro e estacionou ao lado do acostamento para poder ver com quem falava. Não reconheceu o número registrado no bina do celular. Desligou e ficou aguardando.

Um minuto depois o celular tocou novamente. Era o mesmo número que aparecera no visor antes. Reconheceu uma voz familiar perguntando:

– Temos um jogo de poquer hoje. Você quer jogar?

Somente o dono daquela voz tinha o número de um dos celulares de Estevão.

Estevão respondeu:

– Hoje estou com o bolso cheio. A que horas e onde é o jogo ?

– Às 19 horas no Firenze, respondeu Fernando.

– Ok! estarei lá, falou Estevão e desligou o celular.às 18:15h, Fernando já estava no bar do restaurante escolhendo a mesa onde se sentaria logo mais. O Firenze, no bairro do Itaim, era conhecido como uma

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das melhores cozinhas italiana da cidade de São Paulo.

Fernando era viciado em chegar antes da hora em seus encontros. Às vezes exagerava. Em um desses encontros, chegou a uma pizzaria que ainda estava fechada. Enquanto a pizzaria não abria resolveu ir fazer umas compras em um shopping center que ficava por perto e mesmo assim quando voltou estava 15 minutos adiantado.

Alto, atlético, cabelos grisalhos, óculos escuros noturnos. Sua presença não passava despercebida até que ele se sentasse, pedisse um vinho e se escondesse atrás de algum livro, ou revista, que sempre carregava em sua elegante pasta de couro. Atrás dos seus óculos escuros tudo e todos eram analisados, fotografados, memorizados, contados.

Uma bengala de mogno com cabo de prata era, também, um dos itens inseparáveis nas suas saídas por São Paulo, principalmente à noite. A bengala, de fato, era uma arma disfarçada, calibre 12, que comprara na Hungria em uma de suas viagens. Só a tinha usado uma vez quando um moto-boy lhe roubara, por um instante, sua pasta. Fernando reagira instintivamente ao assalto, e o moto-boy teve suas pernas quase que decepadas pela eficácia da aparentemente inofensiva bengala. Fernando recuperara a pasta e se afastara do local antes que chegassem os curiosos e a polícia.

Estevão chegou no Firenze na hora marcada. Assim que viu onde estava a mesa de Fernando, dirigiu-se a ela e sentou-se. Cumprimentou Fernando, sem lhe dar a mão ou abraçá-lo. Este comportamento, atípico para brasileiros, foi uma das primeiras lições, entre muitas

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outras, que Fernando ensinou a Estevão quando se tornaram parceiros.

– Quando as pessoas se encontram e se cumprimentam dando as mãos ou se abraçando, chamam muito mais a atenção de terceiros do que aquelas que só se cumprimentam verbalmente.

Apesar de Fernando ser um pouco mais alto, ambos eram muito parecidos. O relacionamento de negócios entre os dois era recente, mas a amizade já durava mais de 20 anos.

Estevão, antes de o garçom vir atendê-lo e enquanto desdobrava o guardanapo de linho branco, perguntou a Fernando se iriam apostar quem pagaria a conta do jantar.

– Claro! disse Fernando. Hoje você pergunta.

– Ok! confirmou Estevão, perguntando logo a seguir: Quantos garçons homens e mulheres estão trabalhando hoje? e quantos clientes estão na casa?

– Hoje está fácil, respondeu Fernando.

Cheguei aqui às 18:15h, logo depois que o Firenze abriu. Alguns dos garçons ainda não tinham chegado. Esta é a minha segunda taça de vinho e, pelos meus cálculos, até agora temos 8 garçons, cinco garçonetes e como ainda é cedo só entraram 21 clientes na casa, sem contar eu e você.

Estevão não se deu o trabalho de conferir. Fernando estava certo, na maioria das vezes. Esse desafio já era um hábito entre eles nos encontros em restaurantes. Fernando testava Estevão e vice-versa. Quem errasse pagava a conta.

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Em outras palavras, Fernando sempre comia de graça.

O encontro, dos dois, no Firenze, era muito importante. Fernando iria fornecer a Estevão um dossiê com uma lista de nomes das pessoas que os tornariam milionários. O dinheiro esperado era tanto que valeria a pena correr certos riscos e fazer alguns sacrifícios. Fernando pediu a Estevão que, daquele momento em diante, quando se referisse às informações contidas no dossiê era para usar o código denominado “Estudo”.

Começou explicando que as informações sobre as pessoas mencionadas no Estudo foram pesquisadas nos últimos três anos e renovadas nos últimos nove meses. Os nomes estavam arquivados na ordem preferencial para uma ação de abordagem e não pela quantia de dinheiro que a pessoa tinha.

Os materiais que foram usados nos levantamentos de informações para compilação do Estudo foram todos destruídos, assim como os arquivos de hard drive, lixeira, CD, negativos de filme e disquetes. Não existia outra cópia do Estudo e as fotos das pessoas e seus ambientes eram recentes, complementou Fernando, colocando a pasta com o Estudo em cima da mesa.

Estevão guardou a pasta entre suas pernas dizendo que o melhor mesmo era memorizar todos os dados e informações contidas no Estudo. Falou que assim que chegasse em casa começaria a estudar separadamente cada nome da lista com todas as informações contidas no Estudo. Continuou dizendo que após cada abordagem executada as informações contidas no Estudo a respeito daquele caso seriam

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destruidos com o resto de quaisquer outros materiais usados para executar a missão. Até lá o Estudo ficaria em lugar seguro.

Um dos lugares favoritos de Estevão guardar dólares, documentos cartões de créditos e outros materiais sensíveis era um esconderijo secreto e seguro à prova de umidade, construído por ele mesmo dentro do canil de suas cadelas Pit Bull.

Ele tinha quatro delas, mais uma mestiça, resultado de uma experiência que um advogado amigo e vizinho fez. Quando as autoridades paulistas, acuadas pela imprensa sensacionalista, ameaçaram a proibir a criação e reprodução da raça Pit Bull, o advogado, criminalista famoso, Dr. Cassio Pauletti, inventou a cruza do Rottweiler com Pit Bull, sendo a mãe Rottweiler e o pai Pit Bull. Os filhotes saíram lindos. Uma máquina de triturar carne e ossos. Foram apelidados de Rott Bulls. Uma mistura de tubarão (pelos dentes) e urso (pelo tamanho).

Para Estevão, esconderijo é um jogo de esconde-esconde.

– Quem esconde bem não perde o jogo para o ladrão. Primeiro, só ele sabia do esconderijo. Fora ele quem o construíra pessoalmente.

Segundo, quem entraria em uma residência para assaltar e roubar algo de valor, como jóias, dólares ou até documentos e procurar, justamente, dentro de um canil cheio de Pit Bulls? A lógica seria procurar dentro da residência e não fora dela, pensava Estevão que já tivera sua residência assaltada uma vez quando logo que mudou-se para São Paulo. Na época, ainda, não criava cachorros e também não usava nenhum tipo de alarme eletrônico. Usava, como milhares de

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paulistanos, o famoso guarda de rua de bicicleta e apito. Mesmo assim, os ladrões não acharam seus dólares e jóias escondidos no fundo falso de um freezer cheio de carnes e peixes congelados na dispensa da cozinha. Acabaram levando coisas materiais, sem expressão, tais como TV, estéreo e outros eletrônicos.

Enquanto aguardavam o garçom trazer a conta, Fernando esclareceu a Estevão que no Estudo havia dez nomes de milionários e que se tudo saísse como planejado não seria necessário abordar todos eles.

– Pelos meus cálculos e se tudo correr como esperado creio que com os cinco primeiros da lista alcançaremos nosso objetivo financeiro e não será necessário abordar os outros.

Estevão disse que compreendera perfeitamente todo o plano, ao mesmo tempo que sacava a carteira para pagar, em dinheiro, a despesa do Jantar.

Fernando saiu do restaurante antes de Estevão, tomou um taxí e se dirigiu para outro encontro que estava agendado pelas imediações. Assim que entrou em sua nova residência, na Granja Vianna, Estevão verificou seus monitores de segurança, controlados pela central DVR-Digital Video Register da LG. Religou o alarme do perímetro de fora da residência, acionou a porta eletrônica que abria o canil de três de suas cadelas Pit Bull, travou as portas e portões, se certificou que as câmeras do circuito externo de segurança estavam funcionando e, enquanto tirava a roupa, conectou seu micro à Internet para verificar como estava a segurança na sua empresa de taxi aéreo.

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A Transporte Aéreo Mercúrio, também era monitorada por DVRs da LG. O cérebro central controlava 14 câmeras coloridas instaladas em diversos locais do hangar e no escritório. As imagens eram enviadas e arquivadas em seu PC, na sua residência.

Estevão se sentia confortável e seguro com essas ferramentas eletrônicas da tecnologia moderna. Recentemente instalara em sua casa de praia, em Maresias, o mesmo sistema eletrônico DVRs da LG que usava em São Paulo. Com um simples movimento no mouse do computador, a 200 quilômetros de distância, poderia ver sua casa, por dentro e por fora. Com um outro click no computador poderia ver, também, o mar azul ou até o caseiro, nadando em sua piscina, tendo toda a família para um churrasco, em plena segunda feira.

Estevão se deu por satisfeito, colocou seu pijama e se encaminhou para seu escritório residencial onde se acomodou em sua cadeira favorita de leitura, abriu a pasta e retirou o dossiê que fora impresso e encadernado pelo próprio Fernando, contendo mais ou menos umas 90 páginas.

Por trás de uma capa de plástico, transparente, estampada em letras grandes sobreposto sobre uma imagem aérea de um canavial, sobressaía o título do dossiê denominado ESTUDO DA PRODUÇÃO CANAVIEIRA.

Continuou a examinar o Estudo, notando que, nas vinte primeiras páginas e nas últimas dez, realmente, constava algumas informações sobre preparo do solo e irrigação para plantio e corte da cana de açúcar, inclusive com fotos e diagramas.

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Nas páginas do meio do Estudo, entretanto, estavam os dados, pessoais, dos dez empresários mais ricos do Brasil. Seus nomes completos, endereços comerciais, residenciais, fotografias recentes deles e das famílias, inclusive alguns telefones que eram usados por eles no momento.

Estevão, pensando no título e conteúdo do Estudo não conteve um longo sorriso ao se certificar que Fernando era mesmo uma pessoa precavida. Para tanto, arrumou um jeito bem enrustido de catalogar as pessoas que os tornariam ricos. Tentou ver algum significado com respeito ao título, mas a única conclusão que chegara é que a vida poderia ser tão doce quanto uma cana de açúcar. Com muito dinheiro, obviamente.

Folheando as páginas do Estudo, apreendeu que havia informações recentes e completas sobre cada um dos empresários detalhando seus costumes comerciais, lazer, relações com familiares, tipo de carros usados, se eram blindados ou não, aviões ou helicópteros próprios ou alugados e, principalmente quantos e quem eram os seguranças e tipo de armas usadas por estes.

Em três desses dossiês, havia informações extras sobre as amantes de alguns deles, inclusive algumas com filhos.

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A primeira da lista

Irene Lafayete Fontoura:

Advogada, viúva, acionista majoritária e presidente do grupo VÊNUS, 43 anos de idade. Seu ex-marido, Aurélio Gomes Fontoura, falecera tragicamente em um acidente de helicóptero em 2001, durante o

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percurso Rio de Janeiro a Teresopolis. Irene herdara suas ações e seu império financeiro.

Antônio Lafayete Fontoura é o único filho de Irene. Solteiro, 25 anos.

Estevão ficou um pouco surpreso quando voltou a ler o Estudo, detalhadamente, e notou que o primeiro empresário da lista não era um homem e, sim, uma mulher. Não ficara surpreso pelo fato de ela ser uma mulher, mas, sim, porque ela encabeçava o primeiro lugar na lista dos sequëstráveis.

Lembrou-se que Fernando tinha dito que os nomes contidos no Estudo estavam em uma ordem na qual os primeiros da lista seriam os mais fáceis para o plano de abordagem.

Ficou pensativo por algum tempo e se perguntou como era possível que uma das pessoas mais ricas do Brasil e uma das mais ricas do mundo fosse o alvo preferencial em um Estudo que apontava pelo menos dez seqüestráveis.

– Melhor para nós, sorriu Estevão.

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Uma Holding milionária

VÊNUS é uma Holding que congrega várias empresas, incluindo Bancos, seguradoras, financiadoras, corretora de valores, indústrias têxteis, usinas de álcool, fazendas de café, pecuária de corte e reflorestamento.

Seus diretores principais são:

Irene Lafayete Fontoura (presidente), Antônio Lafayete Fontoura (filho de Irene e vice-presidente), Dr. Moisés Rabinovitch (diretor jurídico) e Júlio Rodrigues da Silveira (diretor financeiro).

O Faturamento anual, líquido, do conglomerado VÊNUS, no ano passado fora de 231 milhões de dólares. A maioria dos lucros vieram das operações da área financeira da VÊNUS, principalmente com a desvalorização do Real diante do dólar e da alta dos juros.

Fazenda Limoeiro

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Irene nascera na região de Araçatuba, Estado de São Paulo, onde sua família tinha grandes atividades na indústria agropecuária. Mudou-se para a capital para continuar seus estudos onde se formou em Direito, no Mackenzie, onde conhecera Aurélio com quem viera se casar mais tarde. Logo depois de casada, convenceu Aurélio a comprarem a Fazenda Limoeiro, uma das melhores da região. Na época, na Limoeiro, já havia uma pista de grama para o avião do antigo proprietário que após vender a fazenda mudara-se para a Austrália. Com o correr do tempo Irene mandou asfaltar e iluminar a pista, aproveitou e construiu um hangar com espaço para estacionar mais de quatro aviões de porte médio e um helicóptero.

O local mais indicado pelo Estudo para o seqüestro de Irene era sua casa de inverno em Gramado, Rio Grande do Sul. Ali Irene chegava a sair até sem os seguranças. Poucas pessoas a conheciam e o que ela gostava mesmo era de curtir este anonimato. Pena que ia lá só uma vez por ano ou duas no máximo, pensou Estevão.

O Estudo descartou o local, pois não podiam esperar até o próximo inverno para abordá-la, passando, então, para a segunda opção que seria na sede de uma de suas fazendas no interior de São Paulo.

Até hoje, entre várias outras, a Limoeiro é sua fazenda favorita. Na Limoeiro, a Vênus engorda uma média de 10 mil bois de cruzamento industrial por ano, além de criar cavalos Quarto de Milha, sua montaria favorita. Com certeza, quando está no Brasil, Irene passa dois fins de semana por mês na Limoeiro com a família, amigos e, às vezes, sozinha.

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Estevão continuou a ler o Estudo, valorizando as informações que mostravam o que Irene gostava de fazer, ir. ver, ou se envolver quando passava os fins de semana ou feriados na Limoeiro. Na capital, Irene, realmente não tinha muito tempo para esporte ou lazer. Tinha uma personal trainner que ia a sua residência, no Morumbi, todas as terças e quintas e malhavam juntas por um período de duas horas na parte da manhã. Por motivos de segurança sua ida aos teatros, espetáculos ou cinema era limitada, apesar de a Vênus patrocinar alguns eventos culturais. Irene acabava mandando seus diretores representá-la. Em restaurantes ia com a família ou acompanhada de seus diretores.

Desde a morte do marido, no acidente aéreo, Irene e o filho abandonaram os saltos livres de pára-quedas que faziam com o pessoal do aéro-clube local. Na época era seu esporte favorito. Mesmo assim todos os meses manda um cheque para o Aéreo Clube, fundado pelo seu marido. Antônio, seu filho, nem perto do clube passa mais para não contrariar a mãe.

Irene, na fazenda, se sente mais livre e à vontade para praticar algum tipo de esporte. Adora montar seus cavalos Quarto de Milha puro sangue. Galopa e dá longas cavalgadas pelos campos e bosques da fazenda. Em outras atividades joga tennis quando tem companhia e às vezes se molha na piscina semi-olímpica quando o calor passa dos 32º.

Desde a morte do marido Irene decidira, por medo ou superstição, ninguém sabe a razão, a não voar mais de helicópteros apesar de a Vênus ter dois Augusta.

Nas viagens curtas, quando decide ir de avião, prefere o bimotor King Air C90B da Beechcraft e nas mais longas usa seu Citation X.

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Após rever três vezes o Estudo sobre Irene, Estevão decidiu que queria examinar melhor, do ar, a pista de pouso da Limoeiro. No Estudo já tinha a localização da fazenda pelo GPS, havia também uma imagem de satélite tirada há seis meses atrás onde se viam a sede, a pista de pouso e o hangar, as pastagens e o confinamento de gado. Seria o suficiente, pensou. Mas decidiu que para garantir a missão e não ter nenhuma surpresa no dia da ação era melhor dar uma sobrevoada, antes, por cima da sede e pelas vizinhanças da fazenda. Fazendo isso, conferiria os acessos pela estrada, portões, guaritas e rios. Precisava escolher um dia da semana quando Irene não estivesse por lá com seus seguranças ou algum outro curioso.

O Rei do boi

O Estudo não indicava nenhum tipo de relacionamento de Irene com namorado ou amante. Recentemente ela estivera na Costa Del Sol, na Espanha, por dez dias, convidada por uns amigos banqueiros ingleses. Lá foi vista em companhia de

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outro brasileiro, fazendo compras e em restaurantes. O Don Juan era o Daniel Rabbit, o Danielzinho. Conhecido no Brasil como o Rei do Boi.

Danielzinho é natural de Campo Grande, Mato Grosso do Sul. Com 40 anos de idade, é o maior pecuarista do país. Dono de 8 frigoríficos, um helicóptero esquilo e um Lear Jet 35, entre outras muitas máquinas modernas da sociedade globalizada. Durante parte do inverno no Brasil foge para Malagá, na Espanha, onde tem uma casa na praia.

É considerado um play-boy internacional. Nunca se casou e é um mulherengo irremediável. As revistas de fofocas já publicaram que, quando perguntado se ia se casar ou não, Danielzinho sempre respondia que só se casaria com uma mulher dez vezes mais bonita do que a miss Brasil ou outra dez vezes mais rica do que ele.

Seria Irene a pretendida?, perguntou para si mesmo Estevão.

A pesquisa do Estudo não deu mais informações do relacionamento entre Irene e Danielzinho no Brasil.

Talvez um flerte de verão, pensou Estevão.

Bom! a sorte da Primeira Dama da lista já foi lançada, concluiu.

Estava satisfeito com o belo trabalho de inteligência levantado por Fernando, lembrando que, quando selaram a parceria de risco que iria torná-los milionários, tinham dividido suas tarefas de acordo com a especialidade de cada um. Fernando ficara com

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a área de inteligência da organização e Estevão com a de ação.

Deu mais uma folheada no Estudo e parou na página sobre a segurança de Irene quando ela pernoitava na Limoeiro.

A Segurança

O Estudo indicava que somente um segurança cuidava da proteção de Irene quando ela pernoitava na Limoeiro. Ele fazia parte de um grupo de oito seguranças que Irene tinha permanentemente em São Paulo. Seu nome é Armando Melo, o Careca. Careca já fazia parte da segurança pessoal do falecido marido e era considerado de extrema confiança. Entre tantos,

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era o único segurança que ia com Irene para a Limoeiro. Serviu na PM paulista por sete anos e saiu como sargento. Faixa preta de karatê, desde que abandonou a PM, dedicou-se a trabalhar com segurança de empresários. Carregava uma pistola calibre 38. Quando ficava na fazenda, dormia em um apartamento no mesmo complexo de hospedagem dos pilotos, ao lado do hangar.

O estudo informou, também, que havia uma guarita de tijolos à vista na entrada principal da fazenda, a uma distância de mais ou menos 8 km da sede. Um guarda, armado com um revólver calibre 38, controlava a entrada e a saída de pessoas da fazenda e a cada oito horas era substituído por outro. Esses guardas particulares não iam até a sede da fazenda. Ficavam limitados à guarita da entrada e se comunicavam por interfone com a sede, anunciando e identificando qualquer pessoa que quisesse entrar na fazenda.

A casa principal não tem nenhum sistema de alarme eletrônico. O pessoal da cozinha e da manutenção habita em três casas pequenas a uns 50 metros dos fundos da sede. O administrador é o Dr. Marcílio Paes, formado em Veterinária e Administração Rural, casado, com dois filhos. Sua esposa Leila leciona Biologia em Araçatuba. A família do administrador reside em uma casa separada dos demais empregados, a mais ou menos 40 metros da casa de hóspedes. Marcílio presta contas e faz planos dos negócios da fazenda, diretamente com Irene, a cada três meses. Os dois têm um bom relacionamento profissional, e Irene, assim que desce do avião, já quer notícias de seus cavalos e de como vai indo a engorda da boiada. Dá-se muito bem com a esposa e os dois filhos de Marcílio. Os 18 peões que cuidam do gado moram em uma vila de casas, nos fundos da

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fazenda perto dos confinamentos, mais ou menos a 4 km da sede. Existem mais dois casais que moram por perto da casa da cozinheira, que trabalham no pomar e terreiro.

Estevão achou o Estudo sobre as atividades de Irene, na Limoeiro, muito claro e objetivo. Mas, para finalizar seu plano, Estevão ainda dependia dos resultados da checagem aérea que seria feita por ele mesmo, na Limoeiro. Nos próximos dias executaria essa tarefa. Isso feito ficaria apenas aguardando o serviço de inteligência do Fernando lhe comunicar quando Irene pernoitaria novamente na Limoeiro.

Essa informação viria de uma hora para outra. Teria que agir rápido.

Células

Fernando e Estevão, cada um, tinham duas células de subordinados bem treinados sob seus comandos. Cada célula era composta de 9 a 15 homens e mulheres. Nenhum dos membros da Célula A se conheciam, anteriormente à data de seu recrutamento por Estevão. Esse sistema também era aplicado com as outras três células, G, I e C. Nos treinamentos todos foram disciplinados para

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obedecerem ordens e não fazerem perguntas, a não ser algumas perguntas técnicas ou alguma dúvida sobre seus comportamentos perante uma missão quando eram notificados desta.

O pessoal da célula A, sob responsabilidade de Estevão, estava treinando em uma fazenda que ainda tinha 80% da mata original intocada. A sede fora abandonada e tinha uma pequena pista de pouso bastante rústica e esburacada, situada em uma região isolada de outras fazendas, também com áreas florestais. Havia muita caça e pesca na região. A fazenda ficava entre os rios Paraguay e Aquidaban e era cortada por outros riachos menores, situada no Município de Concepción, no Paraguai.

Local ideal para os objetivos de Estevão e Fernando. Tinham acesso somente por água e ar.

Célula A era composta por 15 membros, sendo onze homens e quatro mulheres. Estavam na fazenda Santa Guadalupe, em Concepción, há três meses, e foram treinados intensamente para abordagem de pessoas nas mais diferentes formas imagináveis. Seu treinador, Señor Oscar (sem sobrenome), aparentando uns 50 anos de idade, extremamente desconfiado, viera diretamente das FARC recrutado pelo serviço de inteligência de Fernando.

Oscar não falava português e seus comandos eram todos dirigidos em espanhol. Portanto, os membros da Célula A começaram, primeiro, apreendendo espanhol, colombiano, mesclado com um dialeto antiquenho, para depois aprenderem a lidar com armas, técnicas de guerrilha rural e urbana, e seqüestro.

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Com respeito ao idioma, Oscar sempre lembrava aos membros da Célula que o importante em uma missão era focalizar a atenção nos seus objetivos e para isso não importava se falavam português, espanhol ou portunhol.

Fazenda Santa Carolina

Estevão chegou tarde da noite na Segunda-feira em Araçatuba vindo de São Paulo de ônibus. Hospedara-se com um de seus vários documentos falsos (Alfredo Rodrigues) no melhor hotel da cidade. Tomou um banho, trocou-se e desceu para dar uma voltinha nas imediações do hotel, só para ter uma idéia geográfica de onde estava. Logo voltou e foi para seu apartamento descansar.

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Pela manhã, logo cedo, recebeu no hotel, para o café da manhã um corretor especializado em compra e venda de fazendas na região.

O Rubens Sóriso era um daqueles corretores que sabia quem estava vendendo e quem poderia comprar. Conhecia todos os pecuaristas da região. Sua biografia favorita, repetida inúmeras vezes, era que tinha trabalhado para o legendário Tião Maia, o Rei do boi nos anos 60. Rubens fora indicado pela Imobiliária Rural em São Paulo.

Pelo perfil das informações, o Corretor servia perfeitamente para os propósitos de Estevão.

A reunião fora agendada antecipadamente, pelo telefone, e Estevão tinha em mãos um envelope que a imobiliária lhe tinha passado com as localizações, alqueires, benfeitorias, preço e condições das fazendas à venda na região de Araçatuba.

Rubens se entusiasmou quando Estevão disse que representava um grupo de investidores e que eles estavam interessados em uma das propriedades que lhe fora passada em São Paulo.

Qual delas? perguntou o corretor a Estevão.

Tirando o envelope da pasta, Estevão lhe passou as informações que recebera em São Paulo dizendo que era a fazenda Santa Carolina.

Eu que passei a Santa Carolina para o pessoal de São Paulo, falou Rubens.

A fazenda interessou meus clientes e eu gostaria de dar uma olhada nela agora, se o senhor puder me

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levar até lá. Eu pago o motorista e gasolina, pois vim sem carro, propôs Estevão.

Que motorista e gasolina, que nada! respondeu o Corretor demonstrando que já estava pronto, ele mesmo, para levar Estevão até a Santa Carolina. São só 58 km daqui do hotel e estou aqui para atender o senhor, complementou.

Estevão concordou rapidamente, e os dois se puseram a caminho na Saveiro de Rubens.

Rubens era uma matraca que não parava de falar nunca e assim foram indo até saírem do asfalto e entrarem na estrada de terra que passava em frente da entrada principal da Limoeiro. Estevão, sem demonstrar sua curiosidade, fotografou mentalmente a guarita de tijolos à vista e o portão de ferro. Na volta, usaria o mesmo procedimento e mentalizaria algum outro detalhe que lhe escapara.

Quando obteve da imobiliária, em São Paulo, as localizações das fazendas à venda, Estevão, pelo mapa da região, notou que, para chegar a uma delas, a Santa Carolina, teria que tomar a mesma estrada que passava diante da entrada da Limoeiro.

14 quilômetros estrada acima saíram à direita e entraram na Fazenda Santa Carolina. Foram recebidos pelo administrador, e esse se mostrara animado com a possibilidade de ter um novo patrão. A propriedade não era muito grande, 1.380 alqueires, e o dono já tinha vendido o gado e outros animais.

O motivo da venda, segundo Rubens, era que o proprietário estava se divorciando e precisava se desfazer da propriedade antes que a esposa lhe tomasse tudo.

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O administrador da Santa Carolina ofereceu a Estevão dois cavalos, caso ele estivesse interessado em dar uma olhada nas pastagens e cercas. Estevão agradeceu e disse que gostaria de ir de carro até onde desse, pois mais tarde ou no outro dia bem cedo viria de avião sobrevoar a fazenda. Vê-se melhor lá de cima, explicou Estevão, tirando um aparelho de GPS da pasta e registrando as coordenadas da Santa Carolina.

Após uma hora de conversa que supostamente deveria ser sobre a propriedade, Estevão, que fora treinado nas Forças Especiais da FAB até para agüentar dolorosas torturas, não suportava mais ouvir as histórias de Rubens e o convidou para voltar, pois, ainda, tinha que alugar um avião e voltar para filmar a Santa Carolina do ar.

O corretor animado com a possibilidade de uma nova venda, concordou imediatamente, e ambos se dirigiram para Araçatuba. Rubens dirigia pensando que a venda já estava feita, pois quem aluga um avião é porque tem dinheiro e está interessado na coisa.

No caminho de volta para a cidade Estevão estava atento à estrada, principalmente no local da entrada da Limoeiro que seria visto de outro ângulo. Desligou-se das conversas de Rubens, só respondendo ou comentando suas histórias sobre bois, vacas e fazendeiros após terem passado meio quilômetro do portão da Limoeiro.

Chegando em Araçatuba, Estevão perguntou a Rubens se ele podia deixá-lo no aeroporto.

Ocê que manda chefe, disse Rubens ao mesmo tempo em que perguntava se ele tinha alguma idéia com quem ia alugar o avião.

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Estevão lhe respondeu que já tinha uma reserva com a Marialva Taxi Aéreo e que iria, ele mesmo, pilotar um Piper.

Rubens disse: Ocê que sabe, pois eu tenho um amigo que se eu indicar cobra quase nada.

Estevão agradeceu e lhe disse que lhe chamaria depois de sobrevoar a Santa Carolina. Comentando que, se o avião estivesse em ordem, iria hoje mesmo caso contrário amanhã de manhã, por volta das 6 horas.

Rubens deixou Estevão na companhia de taxi aéreo e se despediu comentando que o preço da fazenda era um pouco salgado, mas que o dono estudaria uma oferta um pouco para baixo. Caso ele não vendesse logo a fazenda, a esposa ia tomar a terra dele.

Estevão entrou no hangar da Marialva Taxi Aéreo e procurou por Paulo, o encarregado de sua reserva. Uma mulher o atendeu, muito amigavelmente, dizendo que Paulo ainda não voltara do almoço. Estevão lhe perguntou se podia dar uma olhada no Piper PA 18 que tinha reservado, enquanto Paulo não chegava.

Pois não, disse a mulher que o atendera, encaminhando-o a um hangar ao lado do escritório e mostrou-lhe onde estava o avião, dizendo que Paulo deveria chegar logo e que ficasse à vontade.

Estevão notou que o PA 18 era novo de fábrica e que tinha poucas horas de vôo. Pelo lado externo, fez o walkaround, verificou as asas e o material com que estas foram revestidas, verificou também o nível de combustível e óleo. Entrou no avião e ajustou os cintos, baixou um pouco o banco e pressionou o pedal

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do breque, checando a pressão dos mesmos. Nesse momento, chegou Paulo e se apresentou pedindo desculpas por não estar presente para recebê-lo.

Estevão respondeu que a culpa era dele de não ter confirmado a hora certa de sua chegada e que gostaria de terminar a inspeção do avião. Voltaria amanhã às 6 horas para voar. Hoje tinha outros compromissos, mas já queria aproveitar e providenciar o preenchimento da papelada necessária. Terminou dizendo que ficaria no máximo 40 minutos no ar, pois a Santa Carolina era logo ali.

Após um rápido lanche lá mesmo no aeroporto, Estevão alugou um Corsa para voltar novamente em direção da Fazenda Santa Carolina. Queria se certificar, sozinho, se havia outras estradas visíveis que levasse à sede da Limoeiro. Voltou tarde da noite para o hotel.

No outro dia às seis horas, verificou que a camada estava baixa e teve que aguardar a abertura do campo até as onze horas. Depois disso, partiu no PA 18 em direção à Santa Carolina. Fez notificação de vôo para vôo local na sala AIS do aeroporto de Araçatuba.

Em seu apartamento, no hotel, tinha feito o planejamento para seu vôo, alinhando as coordenadas da Limoeiro e da Santa Carolina. Para todos efeitos, quando sobrevoasse a Limoeiro na ida e na volta, estaria dentro da rota do planejamento de vôo traçado para ir até a Fazenda Santa Carolina e voltar.

O tempo estava bom, sem neblina, e o sol já estava a pique. Preparou a máquina de filmar Sony Digital e foi apreciando a vista em baixo. Após 20 minutos na rota, seu GPS indicava a chegada na Limoeiro. A atividade

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na sede era zero, nenhum movimento na pista ou no hangar, sem movimento de pessoas ou carros, não vira ninguém indo ou vindo pela estrada que vinha da guarita. Filmou todo o complexo da sede e saiu um pouco da rota indo em direção dos confinamentos. Havia muito gado espalhado pelos pastos, e, chegando na área dos confinamentos, notou bastante atividade de tratores e peões se movimentando entre os silos e os currais de confinamento. Prosseguiu, conforme planejamento, e retornou na rota da Santa Carolina.

Quando seu GPS indicou que estava no bloqueio da Fazenda Santa Carolina, fez o sobrevôo por cima da sede e na volta notou alguém que parecia o administrador acompanhado de outros dois homens acenando para o PA 18.

Estevão sobrevoou toda a fazenda por dez minutos, fazendo questão de sobrevoar a sede, no mínimo, três vezes. Da última vez, acenou lá de cima e colocou o PA 18 na rota da Limoeiro e depois retorno ao aeroporto de Araçatuba.

Por cima da Limoeiro, a sede continuava sem atividade. Estevão continuou filmando até a divisa do perímetro da propriedade que se via claramente lá de cima. De um lado era a estrada, sem asfalto, do outro um riacho de água avermelhada.

Pousando no aeroporto, de Araçatuba, taxiou até o hangar, dirigiu-se ao escritório da Marialva Taxi Aéreo, pagou a conta em dinheiro e elogiou o avião. Aproveitou entregou o carro alugado e foi tomar um café no bar do aeroporto. Pegou um taxi e voltou ao hotel. Pediu a conta e pagou em dinheiro.

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Antes de embarcar, na rodoviária local e de tomar o primeiro ônibus de volta para São Paulo, ligou para o corretor e lhe disse que assim que chegasse em São Paulo iria mostrar o filme da fazenda para seus clientes e lhe daria um retorno quando tivesse uma decisão.

Rubens quis anotar o telefone de Estevão e este respondeu que a imobiliária de São Paulo tinha todas as informações sobre ele. Agradeceu pela carona até a fazenda e desligou o telefone antes que Rubens decidisse contar outra de suas histórias.

O plano para a abordagem

Chegando em casa comparou seu filme com a imagem de satélite arquivada no Estudo e notou algumas mudanças no cenário da sede da Limoeiro e suas redondezas. Reviveu mentalmente o filme de ida e vinda da guarita da entrada da fazenda e o passeio de exploração que dera no Corsa alugado onde percorreu em volta de algumas cercas da Limoeiro no período diurno e noturno. Fez algumas anotações em códigos e resolveu que estava pronto para a ação de abordagem.

No outro dia pela manhã, chamou Fernando de um telefone público.

Fernando atendeu o celular pré-pago e escutou uma voz conhecida lhe falar.

Temos um jogo de pôquer hoje. Você quer jogar?

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Fernando respondeu:

Hoje estou com o bolso cheio. A que horas e onde é o jogo?

Estevão falou com a voz baixa, mas nitidamente:

Às 20 horas, no Paradise da Av. Nova Faria Lima.

Tudo bem! Até mais tarde, Fernando respondeu, desligando o celular.

Estevão, definitivamente, contraíra o vírus de Fernando. Chegou ao Paradise meia hora antes do horário marcado. Era sua primeira vez nesse restaurante, especializado em peixes de água doce, particularmente da Amazônia. Pediu uma mesa para dois, não fumantes, de preferência longe da passarela dos garçons, em lugar reservado. Enquanto esperava Fernando chegar, fez o levantamento do Paradise contabilizando os garçons, bartenders e garçonetes. Já tinha contado duas recepcionistas na entrada mais o maître. Depois de pedir ao garçom uma água mineral sem gás, deu uma ida até o banheiro e voltou calmamente. No trajeto, levantou quantos clientes estavam sentados.

Fernando chegou na hora marcada, com sua pasta e bengala, todo sorridente, e foi logo dizendo: Estamos apostando?

Sim. Pode mandar, respondeu Estevão.

Fernando, sorrindo-lhe, disse: OK! Vamos ver o que você viu!

Responda-me qual é a cor das blusas das duas recepcionistas da entrada? Não se preocupe com as

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roupas íntimas, de baixo. Apesar de você ter a visão perfeita, 20 x 20, pelo que eu sei, você ainda não conseguiu o Kit de visão Raio X do Superman.

Só isso? perguntou Estevão rindo.

Está bom demais para quem andou viajando muito ultimamente, respondeu Fernando, enquanto fazia um sinal para chamar o garçom.

As duas estão de blusas bege, saias marrom, sapatos pretos, e uma, a mais alta, é loira e a outra é morena clara. O conjunto me pareceu um uniforme, pois elas estão longe de serem gêmeas. Nunca estive aqui antes. Você deve saber, não? comentou Estevão sorrindo para Fernando.

Pagarei o jantar hoje com muito prazer, disse Fernando que continuava numa alegria fora do comum. Foi por isso que o escolhi para parceiro. Você cada dia que passa fica mais experto, elogiou Fernando.

Se você quiser posso lhe dar a contabilidade do local, disse Estevão.

Não é preciso. Sei que você já deve ter somado todos os Paradisianos ou Paradisienses. Seja o que for. Hoje é o meu dia de pagar o pato. Ou melhor, o peixe.

Os dois se decidiram pelos peixes do Norte. Estevão pediu um pirarucu assado na brasa acompanhado de legumes ao vapor e Fernando um tambaqui na brasa, com os mesmos legumes.

Pediram cerveja Cerpa, do Pará, para esperar os peixes amazônicos.

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Enquanto aguardavam os peixões, Estevão confidenciou a Fernando que o plano para abordagem estava pronto e que iria transferir 14 soldados da célula A para a Fazenda Buriti nos próximos dois dias. Antes da abordagem, dois dos soldados iriam para as imediações da Limoeiro e se infiltrariam em um dos capões (pequena mata de formato arredondada) da propriedade.

O meu levantamento de campo confirmou que os capões que aparecem na imagem de satélite, oito no total, são as áreas de reservas legais da Limoeiro, alguns com fontes d’água e riachos. De um dos capões entre a guarita de entrada e a sede, da fazenda, será possível observar, perfeitamente, a movimentação na residência, no apartamento dos pilotos e do segurança. Os soldados escalados são os melhores do grupo nesse tipo de camuflagem, levarão consigo binóculos infravermelhos e estão preparados para ficar cinco dias no mato. Estarão munidos com um celular internacional e rádio.

Os soldados têm três tarefas na missão:

Primeira:

Confirmar o horário de chegada do avião de Irene e quantas pessoas descem do avião, incluindo os pilotos. Se o avião decolou novamente ou se taxiou para o hangar.

Segunda:

No outro dia, pela tarde, comunicar-nos as condições do tempo e se o avião continua na sede ou algum outro status.

Terceira:

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Quando nosso avião pousar, nas primeiras horas da manhã de domingo, e exatamente cinco minutos após termos desembarcado na pista da Limoeiro, eles cortarão a rede elétrica e dois fios da linha telefônica que saem da guarita da entrada principal, junto à estrada, e vêm por campo adentro, em linha reta, em postes de concreto até chegar ao transformador da sede. Os nossos soldados estarão camuflados em um capão onde os fios passam ao lado da mata. Após o corte dos fios, eles correrão até o final da pista para nos dar cobertura daquela posição e de lá embarcarão conosco. Caso a abordagem se complete antes de 5 minutos o sub-comandante, por rádio, lhes dará a ordem imediata para adiantar a tarefa

Fiz o teste do celular comum nas imediações da guarita da entrada e deu negativo. Não há sinal nenhum. No meu filme e na imagem de satélite, não notei nenhuma antena de celular na propriedade ou imediações. Você poderia, se der tempo, ver com os inteligentes da célula I se o administrador ou outra pessoa da Limoeiro recebem sinal de celulares na sede.

A companhia de telefone que explora a área deve saber. São 43 km do centro de Araçatuba até a fazenda, mas como, na região, não tem nenhuma atividade industrial ou estradas asfaltadas indo para aqueles lados, não deve existir ainda nenhuma antena de retransmissão. Nossos soldados vão cortar, primeiro, os dois fios de telefones convencionais mais o do interfone e, logo após o início da ação, cortarão os fios da rede elétrica que sai da guarita e vai até a sede. Isto feito dificultará chamadas convencionais da Limoeiro para fora. Mas ficarei em dúvida quanto aos celulares do Careca, Irene ou outros empregados…

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Fernando interrompeu e perguntou porque não dar um celular comum para o soldado que irá acampar no mato? Ele poderia fazer um teste rápido por lá e chamá-lo no internacional.

Pensei nessa possibilidade, também, respondeu Estevão. Mas o capão fica a um quilômetro da sede e não confio nessa distância que, às vezes, faz uma diferença muito grande com respeito à recepção de telefonia celular no campo.

Se der tempo, eu o informarei, falou Fernando.

Estevão esperou o garçom abrir a segunda garrafa de Cerpa para continuar a relatar seu plano a Fernando. Assim que o garçom se afastou Estevão continuou.

Como estava dizendo, estou pronto e me decidi por levar o café da manhã para Irene logo cedo na sede da Limoeiro. O café vai chegar de avião, fumegando...

Fernando não conteve o sorriso e disse:

Já vi o cenário completo, vai virar best seller ou roteiro de cinema...

Estevão o interrompeu e continuou.

Vou simular um avião com pane de motor e descer na pista de pouso na sede da Limoeiro. Se Irene estiver acordada, ela sairá do ninho quando ouvir o barulho característico do passo de hélice de avião com mudança de seu regime. Se ela estiver dormindo, talvez acorde com o mesmo barulho. Ao pousar, fumegando, taxiarei até perto do hangar com um dos motores parado. Só desceremos do avião no primeiro instante, aparentemente desarmados, eu o Barroso e duas soldados mulheres, todos, vestidos como

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agentes florestais do IBAMA. O avião, também, terá o logotipo do IBAMA.

O restante dos soldados ficarão alerta e escondido no avião para entrar em ação assim que for preciso.

O resto é previsível com uma ou duas variações. Vai depender muito do Careca, se é dorminhoco ou não, e se terá a mesma reação de Irene quando vir o avião com problemas.

Aposto que os dois, particularmente Irene, ou até mesmo os pilotos, se tiverem acordados, quando escutarem o avião ou virem a fumaça com certeza tentarão ajudar, como qualquer outro ajudaria, os assustados agentes do IBAMA que sairão apressados de dentro do avião.

Estevão, olhando para os lados para ver se o garçom trazia o pirarucu, continuou a falar:

Creio que o fator psicológico que faz com que as pessoas ajudem as outras em uma emergência pode ser o nosso grande trunfo inicial, para não falar do fator surpresa. Acho que Irene e o segurança quando virem o avião em pane talvez, momentaneamente, voltem seus pensamentos para o dia em que Aurélio se acidentou perdendo a vida. Embora Irene e o segurança não estivessem presentes no local da tragédia, poderão se sensibilizar com os assustados agentes do IBAMA e nos abrirem as portas.

No final, tudo se resumirá na percepção e reação que o segurança de Irene terá. Pelo que sabemos é o único armado, e estou apostando que ele vai engolir a fumaça causada pela pane do avião.

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O sargento Barroso é o co-piloto e sub-comandante da missão ele e os soldados estarão bem armados e preparados para qualquer tipo de reação do Careca ou qualquer outros suicidas que aparecerem.

Com o cenário montado dessa maneira, espero não darmos um tiro sequer na Limoeiro.

Quer apostar? perguntou Estevão a Fernando encerrando a explanação de seu plano de abordagem.

Fernando respondeu:

– Já lhe disse que essa missão vai dar um best seller ou um roteiro de cinema. Concordo que não haverá um tiro sequer. Controle seus homens para não metralharem os caipiras.

– Não vou apostar nada porque a vantagem está do seu lado. Mas aposto que você terá que carregar Irene no ombro. Ela não irá de livre e espontânea vontade.

– Feito. Apostou Estevão, perguntando logo a seguir porque ele estava todo alegre hoje.

Fernando respondeu:

– Irene irá passar o sábado e domingo, 7 de Setembro, dia da nossa Independência, na Limoeiro. Levará um casal de banqueiros ingleses que a convidaram para passar dez dias na Espanha em Julho. Fique de olho no ingleses, a única coisa que sabemos é que são banqueiros.

A outra boa notícia é que Antônio, filho de Irene, não passará o fim de semana com a mãe, irá direto de São Paulo com a namorada, para participarem de um jogo de pólo em Santa Catarina.

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– Portanto, o cenário está prometendo, comentou Fernando.

– Ótimo! Até lá estaremos em posição. Se o quadro de acompanhantes não mudar, até domingo, tudo indica que vamos ter um Royal Straight Flush na mão, concluiu Estevão.

O garçom serviu os peixes e os dois pediram água mineral, sem gás, para lavar o álcool das duas Cerpas pequenas que tomaram enquanto aguardavam o jantar.

Desta vez Estevão, após terminarem a pescaria, saiu antes de Fernando e pediu à recepcionista para trazerem o seu Jeep.

Fernando, enquanto aguardava a conta, reprisou o plano de Estevão, mentalmente, e chegou à mesma conclusão de seu parceiro. Não dariam um tiro em toda a operação de abordagem. Teria que descobrir, urgentemente, se tinha ou não recepção de celular na sede da Limoeiro. Pagou a conta em dinheiro e pediu para a recepcionista lhe chamar um taxi.

Quinta feira, 5 de setembro, Estevão embarcou no aeroporto de Congonhas, em São Paulo as 7:20 da manhã no primeiro avião de carreira que partia para Presidente Prudente. O tempo estava bom e aproveitou o ambiente descontraído no ar para repassar, mentalmente, alguns itens de seu plano de ação.

Já tinha falado com o sub-comandante Barroso, pelo seu Global Star International Satelite Cellular Phone – Telefone celular internacional via satélite, para ele

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mudar 14 soldados da célula A, em treinamento no Paraguai, para a Fazenda Buriti.

Instruíra Barroso para revisar o Brasília EMB 120 e deixá-lo pronto para a missão. Os soldados ficariam estacionados na Buriti até o dia da missão. Barroso devia prepará-los para uma missão de abordagem e ainda treinar dois deles, o Rubio e o Rambo para aperfeiçoarem suas técnicas de camuflagem em ambiente de mato e pastagem verde/amarelada. Eles participariam da mesma missão, mas partiriam antes, possivelmente dia 5, sexta-feira, para fazerem o levantamento e segurarem visualmente o local da abordagem.

Mesmo falando entre eles em códigos próprios, Estevão não falara onde era o local da missão.

Ao desembarcar foi direto para a companhia de Taxi Aéreo Mirasol, onde fizera uma reserva, antecipadamente, de São Paulo.

Na Mirasol, confirmou o preço só de ida e pagou em dinheiro, não exigiu recibo algum. José Ricardo era o nome falso que Estevão usava quando fazia aquela rota. Nenhuma companhia aérea fazia vôo direto de São Paulo para Brasilândia, Mato Grosso do Sul, e Estevão estava sempre às voltas procurando qual era a melhor opção para chegar até a Buriti. Às vezes ia por Londrina e de lá continuava de taxi aéreo ou o Barroso vinha levá-lo em um dos aviões pequenos.

Desta vez José Ricardo levava duas malas grandes e uma caixa de isopor bastante pesada. A viagem foi tranqüila e rápida. José Ricardo não dava muita conversa aos pilotos com quem viajava, ao contrário, não dava a entender que conhecia ou pilotava aviões. Para sua própria segurança, ficava arredio, lia seus

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livros ou planejava detalhes das missões e materiais que iria necessitar.

No pequeno aeroporto de Brasilândia, Barroso esperava por Estevão todo animado com o cheiro de ação no ar. Era a adrenalina decolando.

No caminho para a Fazenda, Estevão deu a Barroso uma explanação real do cenário atual na sede da Limoeiro. Por enquanto, omitia o nome da pessoa a ser abordada.

Almoçou com os soldados da Célula A no galpão da Buriti onde estavam reunidos à sua espera. Após o almoço, Estevão vistoriou cada um dos soldados, fez perguntas técnicas sobre os armamentos que seriam usados, testou o reflexo de alguns deles, perguntou se alguém estava doente ou com outro problema qualquer.

Os soldados não tinham nada a declarar. Estavam ali para cumprir ordens sejam elas quais fossem. Estavam todos atentos e prontos para ação. Gostavam de ser liderados por gente como Barroso e Estevão. Entendiam que eles representavam um ideal político que todos abraçaram quando foram entrevistados e convidados a participar. Fariam qualquer coisa em nome do MOVIMENTO BRASILEIRO NACIONALISTA (MBN). Estevão distribuiu os novos uniformes de camuflagem para os soldados. É unisex, comentou, olhando para as mulheres. Calça, camisa e chapéu de pano para homem e mulher. Os uniformes foram bordados com a insígnia do IBAMA na camisa e no chapéu. Usem as suas botas pretas atuais e quero vê-las limpas como novas, comentou Estevão, terminando de distribuir o último par de roupa para uma das soldados mulheres,

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escolhida para descer com ele do avião assim que pousassem na pista da Limoeiro.Pediu a Barroso para transferir todos os soldados para sala de TV na velha sede da Buriti. Lá receberiam as instruções da missão de domingo.

Assim que todos se acomodaram na sala, Estevão colou uma imagem de satélite da Limoeiro em uma parede juntamente com várias fotos numeradas. Deixou o filme pronto para rodar na TV e falou aos soldados.

– O Código do nome da missão que realizaremos em breve é CANA DOCE e o palco da ação será em uma fazenda no oeste paulista. Vamos chegar de avião, tomar e segurar o local. A ação se resumirá em abordar uma mulher. Ela será levada para o avião conosco, e a operação não deverá ultrapassar 15 minutos, no máximo. Levantaremos vôo em seguida, e, no ar, eu e a abordada tomaremos outro destino diferente do de vocês. Estevão apontou com uma caneta lazer para a imagem, explicando que aquilo era uma foto tirada do espaço por um satélite, revelada em pequena escala. Observando bem a imagem, dava para se ter uma idéia generalizada de todo o complexo residencial, pista de pouso da fazenda, hangar, confinamento de gado nos fundos e parte das fazendas vizinhas da Limoeiro.

– Agora vocês vão fotografar com seus cérebros e memorizar cada foto mostrada aqui na parede que corresponderá a um número, continuou Estevão.

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A foto nº 1 é a pista de pouso e decolagem. Tem 1.500 metros de comprimento e como podemos ver é asfaltada. A foto nº 2 é o hangar onde ficam estacionados os aviões. Tem 3.000 m² de área construída e as portas abrem uma para cada lado sobre rodas. Não sabemos se usam fechadura ou cadeado para segurar as portas. O soldado Furlan levará o material necessário para abrir o hangar e segurará o local. Pode até ser que a porta esteja aberta. Na saída se não precisarmos de nenhum dos aviões da fazenda, Furlan furará os pneus de todos os aviões do hangar. Geralmente tem três ou quatro. Até lá o resto dos soldados inutilizarão os veículos da fazenda para que ninguém saia rápido de lá.

Entenderam? perguntou Estevão.

Ouviu um sim generalizado.

– A foto nº 3 é a casa principal (sede) da fazenda. É o local onde, possivelmente, estará o nosso alvo para a abordagem.

A foto nº 4 é a casa de hóspedes e possivelmente terá um homem e uma mulher hospedados na casa. Eles são ingleses e possivelmente não falam português. Até sábado à noite, checaremos com o Rubio e Rambo para ter certeza se só teremos um casal de convidados ou se de última hora haverá outras pessoas.

A foto nº 5 é casa do administrador. Ele tem uma esposa e dois filhos pequenos.

A foto nº 6 é o complexo de apartamentos onde ficam os pilotos e o segurança da pessoa a ser abordada.

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A Foto nº 7 é a mulher que será abordada. Em hipótese alguma. Deverão apontar uma arma, muito menos atirar nela. Eu, Barroso, Marisa e Júlia fomos escalados para abordá-la.

A foto nº 8, pelo que tudo indica, é o único segurança que estará de plantão no dia da abordagem. Notem que ele é careca. Mas cuidado para não se confundirem com outro que por aventura apareça na hora da ação sem cabelos. Isto é, outro careca. O Careca, geralmente, carrega uma PT. 380 ACP na cintura.

Existem outras edificações que mostrarei logo a seguir no filme, mas são um pouco mais afastadas do cenário principal e lá vivem empregados sem poder de fogo e decisão alguma.

A ordem principal é a seguinte, enfatizou Estevão, vocês estão autorizados a atirar somente sob minhas ordens ou as de Barroso. Se por ventura eu ou o Barroso, por um motivo ou outro, não pudermos dar a ordem de fogo e o segurança ou outra pessoa atirar em qualquer um de nós, vocês poderão, daí então, tomar a decisão de eliminá-los. Não atirem em hipótese nenhuma na mulher que será abordada, mesmo se ela aparecer armada e resistir à abordagem.

Estevão repetiu a seqüência das fotos três vezes. Complementou dizendo que as fotos seriam retiradas no sábado à noite e queimadas. Até lá eles poderiam examinar as fotos de perto uma por uma.

Estevão, na seqüência, passou o filme da Limoeiro na TV.

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O filme fora editado em VHS, por ele mesmo em São Paulo, e mostrava somente os lugares estratégicos para a ação. Mostrou a guarita de entrada, a pista de pouso, o hangar e o complexo residencial. Estevão focalizou e fez uma pausa onde se via o capão, onde Rubio e Rambo iam se hospedar camuflados. Ao lado do mato, um pouco à direita, viam-se os postes de concretos com os fios de luz e telefone que deveriam ser cortados.

Rubio e Rambo acenaram que tinham captado as instruções.

Voltando ao filme, Estevão mostrou outras residências de empregados e o confinamento do gado. Terminou de mostrar o filme comentando que, no sábado à noite, realizariam a última reunião sobre a missão CANA DOCE.

Até lá algum outro detalhe que estivesse faltando poderia vir a mudar um pouco o cenário, mas não muito. Continuou dizendo que a missão era relativamente fácil, do ponto de vista da defesa da mulher a ser abordada. Pelo que sabemos até agora o Careca, seu segurança particular, será a única pessoa armada. Estaremos atentos para qualquer outras possibilidades.

O soldado Furlan perguntou o que aconteceria se a mulher a ser abordada não aparecesse no cenário.

– Boa pergunta, respondeu Estevão.

– Como já disse antes, Barroso, Marisa, Júlia e eu estamos escalados para abordá-la. Desde o momento em que pousarmos na pista, estaremos todos com os olhos atentos e direcionados para duas pessoas em particular, o Careca e a mulher a ser abordada.

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Já discuti essa possibilidade com o Barroso e nos pareceu que o Careca poderá ter Somente duas opções para reagir ao evento inesperado.

Primeira:

A nossa vantagem é que estamos em uma emergência e aparentemente não oferecemos nenhuma ameaça. A reação natural dele seria de ajudar os agentes do IBAMA em apuros. No momento oportuno, decidiremos como segurá-lo.

Segunda:

Na eventualidade de o Careca se tornar cuidadoso, ele não se aproximará do avião em pane e irá na direção da mulher a ser abordada para lhe dar a devida proteção. Também nessa situação, nós quatro com a tarefa de segurá-lo teremos que encontrá-lo e fazer o devido contato. O que nos preocupa é ainda não sabermos da possibilidade de telefones celulares pegarem lá ou não. Rubio e Rambo eliminarão as linhas dos telefones convencionais assim que o nosso avião pousar na pista da Limoeiro. Os fios da rede elétrica deverão ser cortados entre 5 a 7 minutos mais tarde. Isso feito, eles irão correndo até a pista e nos dar cobertura de lá. No sábado à noite, falaremos com Rubio para ver como está o cenário na sede da fazenda e, possivelmente, até lá, por outros meios que estão sendo investigados, teremos a informação se existe ou não sinal de recepção de telefone celular na área.

Estou apostando que o sinal ainda não chega até lá, mas pode ser que a mulher a ser abordada ou o Careca tenham um celular igual aos nossos e eles poderão pedir ajuda se desconfiarem que estão sendo

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abordados por um comando. Por isso é essencial que o resto dos soldados permaneçam no avião até identificarmos que tipo de boas vindas teremos. Se a recepção for hostil e mesmo que eles peçam ajuda, teremos tempo suficiente para eliminar o Careca ou qualquer outro que oferecer perigo para a missão e tirá-la de lá em no máximo 15 minutos. Ninguém, mas ninguém mesmo terá tempo suficiente para salvá-la.

Estevão convidou, então, os soldados para irem treinar um pouco para a missão dizendo que o Barroso daria as instruções.

Barroso comandou os soldados para o galpão da fazenda onde estavam estacionados os aviões.

Vamos dar duas horas para o Rubio e o Rambo se esconderem, camuflados, na borda daquela mata que estamos vendo daqui. Barroso perguntou a Marisa se ela poderia estimar a que distância estavam da mata.

Marisa pegou o binóculos de Rambo, regulou seu mecanismo e respondeu ao sub-comandante.

Mais ou menos 850 metros.

Barroso pegou seu próprio binóculo e confirmou a mesma distância dizendo que dava nota 10 a Marisa.

Bom! disse Estevão.

– O Rubio e o Rambo irão até o campo começar um jogo de esconde e acha. Eles levarão seus apetrechos e se vestirão no mato. Os dois têm roupas específicas, mas também vão improvisar com outros materiais da natureza que eles possam usar para se incorporarem ao ambiente local. A seguir o Barroso explicará as regras do jogo.

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Barroso pediu a Rubio e Rambo para não adentrarem mais do que 50 metros na mata e não ultrapassarem a distância de 500 metros à esquerda da estrada, e disse que poderiam usar até 30 metros das pastagens em frente à mata.

Barroso entregou aos dois duas mochilas de sobrevivência para cinco dias e disse que, além de suas facas e armas de longo e médio alcance, binóculos, rádios e o celular internacional, teriam que levar luvas de borracha, uma corda de alpinista de 15 metros, dois ganchos de ferro em forma de anzol e um cortador de cabos de alta tensão.

Barroso ordenou que os dois ficassem lá por duas horas e que fizessem um levantamento aqui do galpão e redondezas.

– Após esse período quero que você me chame no rádio e me diga de sua posição camuflada o que está avistando de lá, quantos homens estão aqui, o que estão fazendo, onde está o avião, carros, etc. Resumindo! Quero um levantamento completo do que está acontecendo aqui na sede.

Depois de vocês nos chamarem no rádio, o pessoal daqui sairão para jogar.

Rambo e Rubio pegaram suas mochilas e saíram em direção ao campo do jogo e logo sumiram mata a dentro.

Enquanto isso, na sede, Estevão e Barroso instruíam o restante dos soldados a vestirem os novos uniformes dos guardiões da natureza.

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Duas horas mais tarde, o rádio de Barroso bipou, e, em código, Rubio foi falando o que acontecia na sede.

Barroso fez uma pergunta sobre a logo-marca do avião. Se estava visível ou não?

Rubio respondeu que estava visível.

Estevão pediu que Barroso lhe passasse o rádio e perguntou a Rubio quantos homens estavam armados com armas curtas.

Logo veio a resposta.

– Somente dois. Estevão com coldre no ombro e Barroso na cintura.

Estevão falou por último e alertou os camuflados em código que o outro time estava entrando em campo.

Estevão os animou quando disse:

– O jogo vai começar.

O primeiro soldado que achar um dos camuflados ganha um bônus de 200 dólares. O segundo a ser achado ganha 100 dólares. O campo do jogo está limitando entre o pasto de brachiara, 30 metros antes da borda da mata com 50 metros de profundidade mata adentro e 500 metros a esquerda da cerca de arame confrontando a mata. Vocês têm 30 minutos para terminarem o jogo. Se nenhum de vocês acharem os camuflados vocês pagam de seus soldos 10 dólares cada um ao Rambo e Rubio.

Alguns dos soldados responderam.

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– Tá apostado! Moleza! Os duzentões já são meus! Acho os dois antes dos 30 minutos! disse outro soldado.

Enquanto os soldados partiam para o ataque, Furlan, Estevão e Barroso desempacotaram a caixa de isopor que continha os kits pirotécnicos de fumaça. Era o mesmo material usado pelo aviões de acrobacia nos Estados Unidos e Europa que criavam aqueles efeitos especiais nos shows aéreos.

Estevão pediu a Furlan para testar um dos kits-fumaça no ar, sábado de manhã, que simularia a pane na turbina. Depois trocaram idéias sobre as técnicas de conseguirem uma pane no motor turbo-hélice, simulando um vazamento hidráulico na turbina. O efeito pane, arquitetado por Estevão e executado por Furlan, seria um arraso. Furlan e Barroso comentaram, entre si, que somente o Comandante poderia bolar uma aterrissagem dessas. Nem os cowboys aéreo-espaciais de Hollywood tinham filmado algo parecido.

Estevão aproveitou e fez a revisão em dois pára-quedas individuais e um outro maior de salto duplo que levaria na missão consigo no domingo. Deixou os pára-quedas soltos em uma bolsa de nylon e, no sábado à noite, iria revisá-los novamente para o salto de domingo.

Passaram-se os 30 minutos dados aos soldados para descobrirem Rambo e Rubio. Barroso usou o rádio para anunciar o fim do jogo e chamou o time dos caçadores de volta para o galpão.

Em pouco tempo, os soldados começaram a sair da mata e se dirigiram para a sede da Buriti.

Chegaram sem os dois camuflados.

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Júlia, uma das soldados mulheres, reclamou com Barroso que os 30 minutos dados não haviam sido suficientes para procurar os camuflados na mata. – Fizemos uma varredura entre os 11 soldados espalhados a cada 50 metros um do outro percorrendo a borda da mata e mato adentro, mas não tivemos tempo suficiente para procurar em todo o perímetro demarcado e encontrar os alvos, concluiu Júlia.

Barroso chamou, pelo rádio, Rubio e Rambo avisando que o jogo terminara e pediu-lhes que voltassem para a sede.

Os outros soldados olhavam com seus binóculos para ver de onde eles saíriam da mata.

Para surpresa de todos, Rubio reapareceu uns 15 metros antes da borda da mata no meio do pasto, a mais ou menos 240 metros da cerca. Acenou e veio em direção da sede.

Rambo reapareceu vindo de dentro da mata, mais ou menos a uns 400 metros da cerca.

Estevão sorrindo disse aos soldados que os camuflados tinham vencido o jogo e para não esquecerem dos 10 dólares no fim do mês. Quando chegaram foram aplaudidos pelos demais, e Rúbio foi escalado, primeiro, para detalhar sua camuflagem.

Rubio começou contando que de fato entrara na mata na mesma direção de onde saíra, mas que na ida notou uma moita grande de caraguatá (bromélia com espinhos que nasce em campos e nas bordas de mata) no meio do pasto misturada com outros arbustos. Voltou rastejando do mato, apagando seus

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vestígios, e fez uma meia cova no meio da moita e se cobriu com a vegetação local, inclusive alguns pés de caraguatá, por isso os arranhões nas mãos e rosto. No processo, expulsou um lagartão de sua toca. Viu um soldado mulher passar a uns 20 metros do seu lado direito e outro soldado do seu lado esquerdo. Esse último chegou a tocar na moita com sua arma, mas, repelido pelos espinhos, seguiu em direção da mata.

Rambo começou explicando que usou uma técnica usada pelos chimpanzés. Contou que esses, por serem nômades, todas as tardes antes do anoitecer sobem em árvores para fazer suas camas para dormirem e se protegerem de outros animais. Geralmente escolhem um local da árvore onde ha forquilhas e usam os próprios galhos e folhas das árvores para fazer a cama. Fazem isso com uma rapidez e técnica incrível, pois todas as noites repetem a cerimônia em outras árvores.

Prosseguindo, Rambo detalhou mais sobre a construção da cama de chimpanzé.

– Escolhi uma árvore difícil de escalar, pois não tinha galhos na parte lisa e grossa de seu enorme tronco. Aproveitei a corda e gancho da mochila e lacei um dos galhos no alto para subir. Antes da subida apaguei minhas pegadas no solo da mata, que por sinal é coberto de folhas secas e não deixa muito rastro. Em uma altura de seis metros ficou fácil de escalar a árvore até quase a copa. Lá os galhos se espalhavam para todos os lados. Subi um pouco mais e escolhi uma forquilha de três galhos fortes de onde dava para avistar a sede. Comecei a adicionar mais galhos e folhas vedando a visão de baixo para cima. Dois soldados se cruzaram debaixo da cama, mas esta estava bem feita. Se eu não tivesse a corda teria que

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procurar outra árvore ou me camuflar no solo da mata.

Estevão e Barroso os cumprimentaram e dispensaram todos os soldados até a hora do jantar, escalando Rambo e Rúbio para estarem prontos para viajar as 6 horas da manhã.

A Fazenda Buriti era uma fazenda semi-abandonada com uma área enorme de serrado, matas e campos. Fora arrendada por Estevão há mais de dois anos e pertencia a um espólio de uma família de Bauru que esperava na Justiça o desfecho final litigioso de uma partilha de bens de um falecido comerciante. Estevão escolhera a fazenda pela sua localização estratégica entre São Paulo, Paraná e Mato Groso do Sul e rota fácil para o Paraguai, Bolívia e Argentina. A sede e os galpões estavam em processo adiantado de deterioração, e as únicas benfeitorias que Estevão fez na fazenda foi arrumar uma pista de pouso antiga, encompridando-a para que seus aviões pudessem pousar e decolar sem perigo. Colocou algumas vigas novas no enorme galpão para escorá-lo melhor. O entreposto, no momento, estava sendo usado para suas idas e vindas aéreas ao Paraguai onde comprava seus armamentos, munições e treinava militarmente os soldados que aderiram ao MBN. Treinavam uma Célula de cada vez.

Para evitar alguma surpresa desagradável, durante 24 horas os soldados da Célula A se revezavam para vigiar a entrada da Buriti quando lá estavam, temporariamente, preparando-se para uma missão ou de passagem para outro lugar. Os aviões eram estacionados em um galpão velho que serviu anteriormente para os maquinários agrícolas do antigo proprietário. Quando eles não usavam a pista

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de pouso, esta era protegida por três cabos de aço esticados a cada 200 metros transversalmente sobre a pista a uma altura de 60 centímetros do solo. Este truque, com certeza, pararia dramaticamente alguma visita inesperada vinda pelo ar.

Para maior proteção do Movimento, Barroso improvisou um esconderijo em uma gruta, longe da sede no meio da mata, onde eram escondidos os armamentos e as munições junto com outros itens que pudessem causar algum comprometimento perante a lei e curiosos. Perto da gruta armara tendas militares camufladas para os soldados dormirem à noite. Na sede, só ficavam as coisas do dia-a-dia de uma fazenda com pouca atividade na pecuária e lavoura.

Estevão, Rubio e Rambo esperaram raiar o dia para decolarem no Beechcraft bimotor B55 1980 com rumo a Birigüi, cidade próxima a Araçatuba. O avião pequeno, mas rápido, fez o percurso em pouco tempo. Os dois soldados estavam animados com a missão e no vôo repassaram suas tarefas com Estevão.

Ao pousarem em Birigüi, tomaram um taxi no aeroporto rural e foram até a cidade onde havia uma única locadora de automóveis que já aguardava a chegada de José Ricardo. Este fizera a reserva de São Paulo antes de sair para Brasilândia. Conseguiram um Corsa relativamente novo e Estevão disse ao locador que voltaria após o almoço.

Saíram em direção a Araçatuba e de lá tomaram a estrada rumo a Fazenda Limoeiro. Ao passarem em frente à guarita da fazenda, não notaram nenhuma novidade e seguiram na direção da Fazenda Santa Carolina.

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Cinco quilômetros após passarem a entrada da Limoeiro, Estevão parou o carro ao lado de um pontilhão sob o qual passava um riacho de água avermelhada que vinha da direção da Santa Carolina e corria para a Limoeiro. Certificando-se que não havia ninguém por perto, os dois soldados saíram do carro e se dirigiram para o riacho onde desapareceram no meio dos arbustos.

Estevão continuou uns 5 quilômetros estrada acima e fez um retorno voltando para a direção de Araçatuba e de lá para Birigüi.

Chegou na locadora às 14:07 horas, pagou em dinheiro e deixou um extra para completar o tanque, dispensou o recibo oferecido pelo atendente, pedindo a ele que lhe chamasse um taxi.

Do aeroporto rural de Birigüi, chamou Barroso no celular internacional, via satélite, dizendo em código que os pássaros já estavam no ninho e que ele estava a caminho de casa.

Barroso lhe deu o OK de entendido, desligou o celular Global Star e voltou a trabalhar no avião, acessorado por Furlan, aperfeiçoando os efeitos especiais barulhentos e enfumaçados desenhados por Estevão.

Furlan era o mecânico e piloto substituto da Célula A. Eram poucos os mecânicos de aviões de médio e pequeno porte que tinham sua experiência.

Começara nos garimpos da Amazônia, onde a precariedade de peças e ferramentas condenavam aviões, ainda, em bom estado. Sua curiosidade e seu profundo conhecimento de motores, aliados com sua boa vontade e tino aeronáutico, fizeram dele um mago da selva, principalmente depois que sobreviveu

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a dois acidentes causados por pane de motores em pleno ar. Um dos desastres aconteceu nas imediações de Serra Pelada, no Pará, e o outro a 30 quilômetros de Barcelos, na margem direita do Rio Negro, Estado do Amazonas. Em ambos acidentes teve a destreza de conseguir levar o avião para a água onde, de acordo com ele, o espaço aberto criava melhores condições de sobrevivência.

Gostava de dizer que, enquanto estava descendo, a presença de espírito fazia-o lembrar-se das instruções primárias improvisadas por ele mesmo em outros acidentes. Primeiro: abrir a porta do avião antes do pouso forçado. Segundo: na água, para não afundar junto com o avião e virar presunto de piranha, sair correndo por cima d’água igual ao lagarto Jesus Cristo.

Estevão chegou no fim da tarde fazendo um vôo rasante por cima da Buriti, perguntando a Barroso, pelo rádio, se podia descer.

Barroso confirmou com um OK que a pista estava limpa.

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Show aéreo

Barroso e Furlan estavam com suas ferramentas de trabalho embaixo da asa do Brasília EMB 120. Assim que Estevão entrou no galpão, Furlan lhe mostrou o dedo polegar, sujo de graxa, com o sinal de positivo. Barroso complementou dizendo que amanhã, logo cedo, fariam o teste no ar. Hoje, já tinham testado a turbina em solo duas vezes e estavam contentes com o resultado dos efeitos.

Nesse momento o Celular Internacional de Estevão tocou. Uma voz conhecida do outro lado falou:

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– Gostaria de Falar com o Dr. Anselmo, por favor.

Estevão respondeu:

– Ele não pode atender no momento. Serve o filho dele?

– Serve! continuou Fernando, falando em um semi-código fácil de entender para alguém que esperava notícias sobre telefonia celular.

– A Dama que você visitará no fim de semana é uma comunicadora internacional igual a nós. O Sombra só se comunica na Capital. O resto dos residentes estão esperando a tecnologia chegar.

– OK! Entendido, disse Estevão, desligando o celular. Ficou pensativo por uns instantes até que Barroso perguntou se tudo ia bem.

– Sim! respondeu Estevão dizendo que o QG o chamara para dizer que a mulher que seria abordada tinha um telefone celular internacional igual aos deles. O celular do Careca é comum e só funciona em São Paulo e na sede da Limoeiro não tem sinal de recepção para celulares comuns.

– Essa nova descoberta, por um lado, é muito boa porque agora sabemos exatamente os meios de comunicação da Limoeiro para fora. Com os fios dos telefones convencionais cortados por Rubio e Rambo só restará o Celular Internacional da abordada. Portanto, teremos que impedi-la de usar o celular, e você e uma das soldados Marisa ou Júlia estão encarregados de encontrá-lo, de preferência antes que ela o use.

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No sábado de manhã, Estevão, Barroso e Furlan levantaram vôo para testar a turbina e o kit fumaça, preparados no motor da asa esquerda do Brasília 120. Após uns 15 minutos no ar e voltando em direção da pista de pouso, Furlan ligou o kit fumaça ao mesmo tempo em que mudava o passo da turbina para bandeira e avançava o passo da turbina direita, em funcionamento para simular uma situação de emergência. Os efeitos especiais funcionaram perfeitamente e Estevão pediu para que continuassem assim até ele pousar o avião. – Quando o avião tocar na pista desligue o motor esquerdo e eu continuarei taxiando com o direito até o Galpão.

Quando saíram do avião, foram aplaudidos pelos soldados que assistiam o show aéreo.

Júlia disse que o efeito foi impressionante e que, mesmo sabendo que o avião fora preparado, dava para ficar tremendo de medo. A pane parecera super real com aquela redução drástica da turbina, criando uma fumaça branca azulada dramatizando ainda mais, a descida do avião.

Furlan agradeceu os aplausos e se retirou para se limpar.

Após o almoço, Estevão, Furlan e Barroso recarregaram o kit fumaça, encheram os tanques do avião de combustível, fizeram o walkaround, e verificaram outras partes importantes na aeronave.

Mais tarde Barroso convocou todos para uma simulação de abordagem, apesar da sede da Limoeiro ser bem diferente da sede da Buriti.

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Estevão, Barroso, Júlia e Marisa fingiram sair do avião às pressas, Barroso foi para o lado da asa esquerda do avião checar o motor que ainda fumegava. Os outros três se afastaram em direção ao galpão e fingiram pedir ajuda aos soldados que se espalharam pelo local. De repente, Estevão deu uma chave de braço em um dos soldados que se aproximara para oferecer ajuda. Marisa e Júlia correram em direção à sede, sacaram suas pistolas Glok 23, chutaram a porta da sede e entraram.

Repetiram as simulações mais quatro vezes com outras variações.

Estevão se deu por satisfeito e foi conferenciar com Furlan.

Barroso ordenou aos soldados que fossem com ele até o barranco do rio Taquaruçu, que passava a dois quilômetros da sede para praticarem tiro ao alvo. Cada um daria 100 tiros em alvos parados e 200 em alvos móveis. Após o tiroteio, deviam se retirar para as barracas, limpar as armas, recarregar os pentes, jantar e descansar. Recomendou para comparecerem ao galpão às 4:30h da manhã com todos os equipamentos necessários para a missão CANA DOCE.

Os três pilotos estavam jantando na velha sede da Buriti quando o celular internacional do Barroso tocou.

– É o Rubio, disse Barroso, passando o celular internacional para Estevão.

Rubio deu as boas notícias. . Após uns 15 minutos no ar e voltando em direção da pista de pouso, Furlan ligou o kit fumaça ao mesmo tempo em que mudava o passo da turbina para bandeira e avançava o passo da turbina direita, em

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funcionamento para simular uma situação de emergência. Os efeitos especiais funcionaram perfeitamente e Estevão pediu para que continuassem assim até ele pousar o avião – O pássaro chegou ao meio dia, não voou mais e está na gaiola. A pombinha veio acompanhada só do costumeiro Sombra e dos dois voadores de sempre, mais um casal de turistas. O cenário está lindo e seguro.

– OK! OK! respondeu Estevão, falando a seguir:

– Cana Doce confirmada para as primeiras horas da manhã.

– OK! OK! entendido perfeitamente, confirmou Rubio e desligou o celular.

Estevão sorriu para os outros dois acompanhantes do jantar e disse:

– O avião da abordada chegou ao meio dia e foi para o hangar. Ela veio acompanhada somente do Careca, dois pilotos e os convidados. O cenário não mudou e nos favorece.

Estevão voltou ao galpão para dobrar seus pára-quedas e depois se retirou para descansar junto com os outros pilotos. Acordariam de madrugada e partiriam para a missão Cana Doce.

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A abordagem

Às quatro horas da manhã do domingo de 7 de Setembro, Barroso acordou e chamou o sentinela pelo rádio perguntando se tudo estava sobre controle. A resposta foi imediata dizendo que nada mudara desde a meia noite. Usou o mesmo rádio para chamar o resto dos soldados que estavam dormindo nas barracas, no mato. Barroso pediu-lhes para que se apresentassem na sede em meia hora, vestidos com o novo uniforme, e trouxessem o armamento escolhido na noite anterior.

Estevão estava se barbeando quando Barroso tentou usar o mesmo banheiro da sede. Foi para o corredor à procura de outro espelho. A aparência pessoal era um item importante nessa missão. Os profetas apregoam

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que a primeira impressão é a que fica. Estevão decidiu, então, que, ao chegarem no cenário da ação, seguiria essa linha de pensamento. Isto é, os quatro soldados que desceriam, primeiro, encenariam estarem assustados quando saíssem do avião, mas, ao mesmo tempo, não poderiam causar uma impressão negativa quanto às suas aparências.

A missão CANA DOCE tinha alguns trunfos em favor do MBN.

Começava com a genialidade criativa e técnica dos dramáticos efeitos especiais que aconteceriam no ar e na pista de pouso. Na seqüência, viriam as caras limpas, mas assustadas e, por último, o visual dos uniformes e do avião, com emblemas do IBAMA, possivelmente a caminho do Pantanal.

Esse último foi um toque iluminado de Estevão para angariar dos espectadores ajuda e simpatia aos guardiões da natureza...

Os soldados Lucas e Geraldo foram os escalados para fritarem 40 ovos e fazer café e chá com bolachas para o resto do pessoal que participaria da missão CANA DOCE.

Depois de comerem, todos foram para o galpão onde receberam as últimas instruções e fizeram a checagem de suas armas.

Barroso explicou que os quatro soldados que desceriam do avião primeiro foram escalados na seguinte ordem:

– Marisa, Júlia, Estevão e Eu. As duas soldados e Estevão se dirigirão para as bandas do hangar, Eu irei com um extintor, na mão, para o lado do motor em

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pane. Quando chegar debaixo da asa do avião decidirei se uso ou não o extintor. Nesse caminho verificarei o cenário do outro lado do avião.

Nós quatro estaremos armados, somente, com as pistolas GLOK 23 compact, calibre ponto 40 SW Austríaca, pentes de treze tiros mais um na agulha e mais dois pentes escondidos nas botas juntamente com as facas de campanha. Não desceremos com os rádios ou celulares para não levantar suspeitas.

A razão de portarmos as GLOKs menores é para escondê-las sem aparentar um volume suspeito debaixo da roupa. Os soldados Marisa e Júlia esconderão suas armas nos seus soutiens revolveiras. As blusas que elas estão usando é para enfiarem dentro da calça que mostrará, de longe, que elas não carregam nada no cinto. No avião, antes delas descerem, vão ser maquiadas para aparentarem uma cor de náusea e medo. E, para que o drama seja completo, talvez derramar um pouquinho de água nas calças, entre as pernas.

Marisa cortou as instruções de Barroso e protestou falando que, se ele e o Estevão estavam acostumados a se urinarem durante suas panes pirotécnicas, elas, também, se juntariam ao clube, de livre e espontânea vontade.

Foi uma risada generalizada e Barroso continuou as instruções.

– Eu e o Estevão levaremos nossas GLOKs dentro dos bolsos revolveiras que fica aqui pelo lado de dentro da camisa, de manga comprida, na altura da costela esquerda, debaixo da axila. Nossas camisas, também, estarão enfiadas para dentro das calças e não

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levaremos nada no cinto ou nas mãos. A não ser eu, que sairei com o extintor.

Após desembarcarmos, o Furlan é a autoridade dentro do avião. Vocês não ponham as cabeças nas janelas e muito menos apareçam na porta até eu ou o Estevão darmos o sinal de dedão polegar positivo. O Furlan, também, é o sentinela e vai ficar de olho, camufladamente, para ver o que está acontecendo lá fora. Ele dará as ordens e levará o meu rádio e o do Estevão quando vocês saírem de dentro do avião.

O cenário já foi discutido antes e cada um de vocês sabe o que fazer. Não esqueçam dos empregados que moram mais distantes da sede. Fiquem atentos.

Rubio e Rambo estão com suas pistolas compridas, GLOK 22 com supressores e com seus Rifles HK-G3–762mm-NATO, com carregador de 20 tiros. Estão com cinco pentes cada um e mais três caixas de munição. Eles nos darão cobertura da cabeceira da pista onde embarcarão na hora de levantarmos vôo. Estarão vendo nossa descida e o desenrolar da abordagem com seus binóculos Ranger Finder. Até o momento de irmos embora, serão os últimos a dar a cara. Quero-os escondidinhos lá, em caso de o cenário mudar por uma razão ou outra.

Estevão olhou seu relógio avisando que partiriam em dez minutos. A Rota, pelo ar, seria de Presidente Prudente a Penápolis, e de lá voltar para Araçatuba. Estevão instruíra Barroso como alterar as rotas e que tipo de comunicação deveria usar para confundir o Centro Brasília, órgão de Controle na área, simulando a falta de transmissão de sinal do transponder, caso mais tarde houvesse uma investigação e alguém tentasse saber qual era mesmo o avião que passara pela região, na hora da abordagem.

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O horário previsto para a aterrissagem, forçada, na Limoeiro foi calculado para as 7:54h, devido à volta que dariam para despistarem seu verdadeiro destino e para coincidirem com o horário do pessoal da Limoeiro acordando ou tomando o café da manhã.

Estevão e Barroso estavam excitados com a primeira missão da Célula A. Esperaram quase dois anos por esse dia e agora estavam a caminho para executarem a que seria uma de muitas outras missões.

O céu estava CAVOK (Clear and visibility OK – Céu de Brigadeiro), não havia previsão de chuva para o dia todo. Quando fizeram meia volta passando por Penápolis, Estevão programou o GPS com as coordenadas da Fazenda Limoeiro, corrigiu a rota e disse a Barroso que logo estariam descendo para a altitude da Fazenda Limoeiro, que estava em linha reta na rota para Araçatuba.

Ao se aproximarem a uma distância de dois quilômetros da sede da Limoeiro, Barroso iniciou o processo da pane simulada na turbina Pratt & Witney, devido a um suposto problema com o vazamento hidráulico. O efeito foi imediato, e a mudança de comportamento de ruído da turbina associada ao efeito do kit fumaça, criou uma visão dramática para quem estava sentado nas janelas laterais próximo à turbina esquerda e também para quem estava em solo.

Estevão continuou baixando a altitude, em linha reta para a direção do aeroporto de Araçatuba. Quando avistou a cabeceira da pista da Limoeiro, fez uma manobra audaciosa, mas segura, contornando um pouco para à esquerda, e apontou o nariz do avião para a pista, iniciando o processo simulado de pouso

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de emergência, deixando para liberar o trem de pouso, quando na curta final. Pediu a Furlan que, quando o avião tocasse o solo, ele usasse o máximo do kit fumaça, logo em seguida cortasse a turbina e prosseguisse mono motor para o hangar.

Furlan, com um sorriso maquiavélico na face, controlava o Kit Fumaça do Brasilia olhando para frente, onde já avistava algumas pessoas, no solo, indo para o hangar. Assim que o avião entrou no pátio do hangar Estevão gritou para todos ouvirem.

Três homens em frente ao hangar. Três mulheres e mais um homem vindo da sede em direção ao hangar. Duas crianças e uma mulher vindo da casa do administrador.

Barroso, enquanto abria a porta do avião, relembrou seus soldados para não se mexerem e continuarem escondidos.

Marisa, Júlia e Estevão desceram rapidamente e, logo atrás, Barroso com o extintor foi para o lado da turbina que ainda fumegava.

Estevão identificou o Careca atrás dos pilotos de Irene, vestido e com a camisa por fora da calça. Daquela distância, ainda não dava para ver se estava armado ou não. No fundo, notou Irene chegando ao hangar na frente de outras duas mulheres acompanhada de um homem.

Barroso resolveu usar o extintor, mesmo, vendo que não havia mais fumaça na asa. Decidiu que o jato do extintor desviaria a atenção dos espectadores.

Estevão emparelhou com as duas soldados e cumprimentou os dois pilotos e o Careca, começando

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a narrar que estavam voando para o Pantanal e que sofreram uma pane na turbina. Continuou falando e observando, de uma maneira sagaz, que o Careca estava desarmado, pelo menos na parte da frente na cintura.

– Concluímos que com a pane da turbina e do jeito que estava, não daria para chegar até o aeroporto mais próximo, o de Araçatuba, por isso decidimos contornar e descer quando vimos a pista.

O mais velho dos pilotos de Irene falou que eles estavam tomando o café da manhã quando escutou a mudança no comportamento de ruído das turbinas e saiu correndo para ver que avião era.

– Ainda bem que vocês viram a pista. Com essa turbina em pane, apesar do aeroporto de Araçatuba estar perto, não daria tempo para vocês chegarem até lá, comentou o Careca, que começara a andar em direção do avião do IBAMA, acompanhado pelo co-piloto de Irene.

Estevão perguntou rapidamente ao outro piloto se as duas agentes poderiam usar um banheiro porque estavam passando mal. Ao mesmo tempo que o piloto indicava a direção do banheiro, Estevão se virou para trás momentaneamente e deu o sinal pré-combinado a Barroso e Furlan, levantando seu chapéu, de selva, por um instante para limpar o suor frontal da cabeça.

As soldados Marisa e Júlia, com cor de cadáver em suas faces, e molhadas entre as pernas, caminharam ao lado de Estevão e do piloto até encontraram Irene, o casal de ingleses e outras duas mulheres com duas crianças em frente do hangar.

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No percurso, Estevão notara que a porta do hangar estava meio metro aberta e perguntou se o banheiro era lá.

O piloto respondeu que havia um lá, mas se as meninas preferissem poderiam usar um outro banheiro em seus aposentos.

Irene se deslocou na frente das outras pessoas presentes e perguntou ao seu piloto o que houve com o avião do IBAMA e se todos estavam bem. Estevão se adiantou e respondeu que houve uma pane em uma das turbinas, mas que tudo não passara de um susto, mas, infelizmente, as duas agentes estavam passando mal e precisavam de um banheiro.

Nesse momento, o piloto de Irene dera as costas para Estevão para empurrar um pouco mais a porta do hangar quando Marisa e Júlia, juntas, sacaram suas GLOKs e disseram a Irene para entrar no hangar com todas as outras pessoas. Simultaneamente, Estevão encostou sua pistola nas costas do piloto e pediu em voz alta, para que todos ouvissem, para não reagirem, pois havia 20 homens, armados, dentro do avião e disse que o segurança da Doutora Irene e o co-piloto também estavam sendo rendidos naquele momento.

Irene ficou pálida, amarelada, instantaneamente. A única reação que teve, ao passar pela porta do hangar, foi voltar-se para tentar se comunicar com seu segurança, mas não conseguiu vê-lo.

No hangar, havia um escritório semi-aberto entre um corredor que dava para os banheiros. Estevão pediu que todos se sentassem no chão do escritório.

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O banqueiro inglês abraçou sua esposa e quis protestar, mas suas palavras saíram em inglês e somente Irene e seu piloto entenderam o que o estrangeiro falou. Pelo menos foi o que os ingleses deduziram quando se deram conta que estavam no Brasil.

Estevão se aproximou do casal inglês e disse ao banqueiro, em seu próprio idioma, imitando um sotaque de um francês falando inglês.

– Shut up and nothing will happen to you and your wife. Now sit on the floor and don’t move your bloody ass.

Pediu a uma mulher, que deveria ser a cozinheira, para abrir a geladeira do escritório e servir água para a Doutora Irene e as duas crianças que ficaram agarradas na saia da mãe.

Nesse momento, o Careca e o co-piloto de Irene entram no hangar, com as mãos amarradas, escoltados por Barroso e mais três soldados. Barroso pediu para todos ficarem olhando para o chão enquanto passava as braçadeiras de plástico e os rádios de ouvido para Júlia, Marisa e Estevão.

Estevão mandou amarrar com as braçadeiras as mãos de todos os adultos presentes e chamou Rambo e Rubio no rádio.

– Obrigado pelo corte. Aqui o jogo esta quase no fim. Os dois jogadores principais estão seguros. Vocês estão vendo outros jogadores por perto?

Rubio respondeu:

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– OK! OK! Negativo na estrada e negativo na frente da sede, é o que podemos assistir daqui. Pego carona com você daqui a pouco no local combinado.

Estevão perguntou à esposa do administrador onde estava seu marido.

Ela respondeu que ele tinha ido ao confinamento dos bois, no fim da fazenda e voltaria por volta das onze da manhã.

Nesse momento, entraram três soldados com mais quatro empregados, já amarrados com as mãos para trás.

– São dois cavalariços que estavam encilhando os cavalos para a abordada e suas visitas e mais dois amigos do confinamento, disse um dos soldados.

Estevão pediu à Marisa para dar uma olhada no banheiro do escritório e ver se estava tudo em ordem lá. Logo a seguir, comandou um Soldado para prender a esposa do administrador com as crianças no banheiro.

Furlan falou com Estevão pelo rádio e disse que estava preparando o avião e substituindo também o logotipo. Depois disso, iria até o hangar para trabalhar nos aviões da fazenda.

Júlia e Marisa amarraram todos os presentes, com exceção de Irene. Marisa perguntou a Estevão para onde levar o resto pessoal.

Estevão pediu a Barroso para trancá-los nos apartamentos dos pilotos e deixar um soldado lá vigiando. Pediu, também, para trazerem todos os celulares que encontrassem nos aposentos.

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Aproveitou e pediu a um soldado para enfiar um envelope no bolso da camisa do Careca que, desde que fora surpreendido por Barroso e Furlan no avião, perdera a pistola e a voz.

Estevão se dirigiu a Irene e lhe disse.

– Nós viemos aqui para levá-la e discutir, em outro local, uma proposta de negócio. Ninguém vai machucá-la e gostaria que você colaborasse com o meu pessoal. Em cinco minutos, nós vamos levantar vôo e você virá conosco no nosso avião. Agora me diga, por favor, onde está o seu celular internacional?

Irene começara a se recuperar do choque inicial, e sua cor voltara levemente ao seu lindo rosto. Vestia um conjunto de calças justas e botas de couro marrom para montaria, uma blusa bege clara por baixo de um colete de seda vinho, bordados com motivos eqüestres. Seu cabelo estava bem penteado e amarrado, estilo pony-tail. Estevão não reconheceu o perfume suave que ela usara após o banho, mas sentiu que era algo muito especial e envolvente.

Irene respondeu que não tinha nenhum celular internacional e não iria a lugar nenhum com eles.

Estevão pegou um telefone na mesa do escritório e testou, rapidamente, para um sinal de linha exterior, mas as linhas estavam mudas. Voltou-se na direção de Irene e falou com uma voz convicta que sabia tudo sobre a vida dela, inclusive que ela não viajava sem o seu Global Star Cell Phone, registrado em nome da Vênus.

Estevão lhe perguntou mais uma vez onde estava o celular.

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Irene se calou, olhando para cima, e Estevão percebeu, imediatamente, que ela não falaria.

Estevão olhou para o relógio e fez um sinal para Barroso e Júlia irem até a sede em busca do celular internacional. Lembrou-os para olharem nos aposentos dos hóspedes também.

Barroso voltou em cinco minutos, com quatro celulares e outro casal de empregados que rondavam pela sede. Falou a Estevão que faltava, ainda, um casal, mas parecia que estavam fora da fazenda e até agora ninguém vira o administrador por perto.

Estevão ordenou que prendessem o casal de empregados juntamente com os outros, no apartamento dos pilotos.

Enquanto aguardava o retorno de Furlan e sob o olhar de Irene, Estevão danificou dois celulares internacionais e dois comuns. Possivelmente um dos celulares internacionais pertencia ao casal inglês, pois tinha uma marca desconhecida e estava em outro quarto da sede. Os outros três, com certeza, pertenciam a Irene, presumiu Estevão, quando sentiu o mesmo aroma do perfume sedutor impregnado nas peças dos celulares que destruía.

Furlan apareceu no hangar e rapidamente furou os pneus de três aviões e desconectou os radios. Ao chegar no quarto avião, seu intuito depredador evaporou-se no ar, deu uma volta em torno do fantasma de Glenn Curtiss acariciando suas asas de madeira e resolveu simplesmente desconectar algumas peças pequenas, essenciais para a partida do avião e as levou para fora do hangar.

Estevão olhou no relógio e disse a Barroso:

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– Vamos embora, avise os soldados pelos rádios. Já estamos aqui há 14 minutos. Caminhou até Irene e pediu, educadamente, para ela acompanhá-lo até o avião deles.

Irene respondeu que não iria a lugar nenhum.Estevão se aproximou de Marisa e Júlia que seguravam Irene pelos braços e pediu a elas que poderiam soltar a doutora. Estevão já tinha guardado sua arma. Encarando Irene de frente, quase encostou seu dedo indicador no nariz dela e disse:

– Você vai por bem ou por mal. A escolha é sua.

Irene, também, levantou o dedo para argumentar, mas Estevão a surpreendeu agarrando-a pela cintura e erguendo-a no ar, com uma força delicada, jogou-a em seu ombro como se fosse um saco de batatas. Saiu do hangar e foi em direção ao avião levando sua preciosa carga.

De todas as partes, vieram os soldados correndo e embarcaram no avião da Taxi Aéreo Mercúrio, com matrículas novas nas asas, que já acionava a turbina esquerda parada, aproveitando da vantagem de ter a turbina direita acionada. Barroso contou todos eles, inclusive Estevão que se debatia para subir a escada com a nova passageira no ombro.

Irene, por sua vez, dava coices no ar, murros nas costas de Estevão e acabou mordendo um dos braço dele, berrando que iria processá-lo, que o ato que ele estava praticando era um crime hediondo.

Assim que ele a soltou dentro do avião, ela imediatamente desistiu da luta e tentou convencê-lo

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que eles poderiam ficar na Fazenda e negociarem ali mesmo seja lá o que fosse que vieram fazer.

– É um seqüestro? perguntou Irene.

Estevão não lhe deu ouvidos. Sentou-se ao lado dela e enquanto o avião taxiava para o fim da pista para pegar os dois camuflados, Estevão lhe falou objetivamente:

– Eu já lhe disse e vou repetir mais uma vez. Não vamos machucá-la. Você tem que nos obedecer para darmos seqüência a um negócio que será proposto a você assim que chegarmos no local apropriado.

Irene implorou a Estevão: – Por favor! Fale-me o que vocês querem e vamos resolver isso aqui agora, antes de o avião decolar. Depois disso eu posso perder o controle da situação e ficará mais difícil para os senhores.

Estevão, calmo e equilibrado lhe explicou mais uma vez.

– Quando chegarmos onde vamos, você poderá resolver ou não o que queremos. Não aqui. Não agora. Pediu licença a Irene e sinalizou para Marisa e Júlia cuidarem dela, enquanto se levantava para ir até a parte traseira do avião esperar os camuflados embarcarem pela porta dos fundos.

Nesse momento o avião chegou ao fim da pista, diminuiu a velocidade e deu meia volta, quase fazendo uma parada completa para que os camuflados, que saíram correndo de trás de um cocho de sal do outro lado da cerca que protegia a pista, embarcassem. Estevão segurava a porta com uma

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mão e com a outra ajudava os camuflados a subirem com suas mochilas e rifles.

Assim que se sentaram, Estevão fechou a porta e deu o dedão positivo para a cabine. Agradeceu Rambo e Rubio pelo trabalho bem feito e comentou que a ação fora perfeita e sem violência.

Barroso alinhou o Brasília 120 na cabeceira da pista, checou os parâmetros de decolagem e avançou as manetes de potência, passa pela V1 (velocidade de decisão) e quase que instantaneamente passou pela VR (velocidade de rotação, onde ocorre a decolagem efetivamente) alçando vôo, em direção ao oeste, para Andradina. Após 20 minutos, Barroso fez um contorno e colocou o avião na rota para Avaré.

Estevão foi até a cabine falar com seus pilotos e comentar sobre a CANA DOCE que estava por acabar. Ainda tinham mais uma tarefa assim que chegassem na região de Avaré.

Estevão perguntou a Furlan sobre o combustível. Furlan respondeu que tinham bombeado até o tanque encher novamente.

Estevão usava uma técnica de reabastecimento, no ar ou no solo, que era muito usada pelos traficantes da Colômbia. Barris de plásticos cheios de gasolina eram colocados dentro dos aviões e com uma bomba especialmente adaptada, transferiam o combustível dos barris direto para o tanque do avião, quando faziam longos vôos sem escalas.

Furlan perguntou a Estevão se ele não ia perguntar nada sobre um par de pneus, não danificados, de um dos aviões da abordada.

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– Não vou perguntar para o Mago da Selva qual é o seu melhor prato, retrucou Estevão, piscando um olho para o Comandante Barroso.

– Tenho certeza que Furlan não colocou a missão em perigo por ter trocado o furo de um pneu por meia dúzia de peças, piscou o olho novamente a Barroso.

Barroso interrompeu os dois para apostar que ele sabia porque Furlan não furou o pneu de um dos aviões da abordada como combinado.

Estevão sorriu e pensou que os dois tinham combinado algo para lhe tirarem 100 dólares.

– OK! continuou sorrindo Estevão. Manda a questão.

Barroso, rindo muito, apostou primeiro e disse que as peças que Furlan tirara do avião eram caríssimas e que ele ia vendê-las no black.

– Perdeu 100 dólares, Furlan falou a Barroso.

Estevão apostou que Furlan não furou o pneu do último avião, da abordada, porque tinha dúvida sobre a performance do motor de nosso avião depois de tanta pane forçada. Se por acaso nosso motor não desse a partida, ele teria um avião no hangar de reserva para debandar com mais dois passageiros.

– Perdeu 200 dólares, disse Furlan a Estevão.

– Você terá que pagar 100 dólares a mais do que o Barroso porque estou cobrando uma multa de mais 100 dólares por falta de maior conhecimento sobre aviões. Querem apostar mais? perguntou Furlan novamente aos dois jogadores.

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– Para mim já basta, respondeu Barroso.

– OK! disse Estevão. Manda!– Vocês notaram o avião pequeno no fundo do canto direito do hangar? Pois é. Aquele avião é o CURTISS ROBIN B (1928) com asas altas de madeira original, voa até 4.343 m com alcance de 660 Km e tem um lugar para o piloto e dois para passageiros. Só restam seis originais no mundo todo. Quem sabe se a abordada comprou um dos seis sem ninguém saber. Eu só tinha visto o Curtiss Robin B através da Internet e livros de colecionadores.

Fiquei com as pernas bambas quando entrei no hangar e notei aquela Lenda descansando, pacificamente, na minha frente. Me pareceu um milagre e eu não poderia cometer um ato de furar o pneu de uma raridade dessas em perfeito estado de conservação. Seria como apunhalar meu próprio coração que está com os movimentos perfeitamente ritmados e sem uma grama de colesterol. Por isso resolvi tirar as peças, temporariamente, as quais serão devolvidas para a abordada, assim que terminarmos essa missão.

Estevão abraçou Furlan fortemente e lhe disse que pagaria os 200 dólares com muito prazer e pediu desculpas por não ter notado a escultura perfeita criada por Glenn Curtiss, pois estava muito ocupado com a abordada.

Barroso perguntou a Furlan quanto valeria um avião naquele estado de conservação.

– No mínimo, cinco milhões de dólares, respondeu Furlan, rindo dos dois.

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– Vamos voltar para a fazenda, deixar a abordada e levar o avião dela, brincou Furlan com os dois mais graduados

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O Águia e sua presa

Estevão voltou para junto de Irene levando duas sacolas grande de nylon. Pediu às duas soldados para lhe darem espaço, pois teria que conferenciar com a abordada.

Sentou-se e notou que Irene estava com a fisionomia melhor.

– Talvez ela se sentisse melhor no ar, pensou Estevão consigo mesmo. Abriu uma das sacolas e disse a Irene:

– Como você pode notar os itens dessa sacola lhe são familiar. Nós vamos saltar de pára-quedas em 20 minutos. Esse plano foi desenhado por mim porque conheço seu passado e sei que você praticou o esporte por muitos anos. Poderia ser profissional se quisesse e, no momento, pelo que tudo indica está com a saúde boa.

Tenho aqui dois pára-quedas para salto individual. Você pode escolher qualquer um dos dois. Os pára-quedas estão acoplados com pára-quedas reservas, contendo dispositivos de acionamento automático DAA, os cypres.

Peço para confiar em mim porque faço isso há muitos anos e sou um pára-quedista, profissional. Apesar de não ser conhecido no circuito nacional, já ensinei muitos soldados e oficiais no Campo dos Afonsos, no Rio de Janeiro. Recentemente, estive reforçando minhas habilidades em De Land, na Florida, e já tenho mais de 3.500 saltos.

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Já chequei os pára-quedas duas vezes. Se você não quiser usar nenhum desses dois, teremos que fazer um salto duplo. Eu irei como piloto.

O equipamento de Tandem é da Racer e fui eu quem dobrou o pára-quedas.

Irene falou aos gritos que ele era um louco e se quisesse saltar lá de cima que ela o ajudaria com chute no seu traseiro e ia rezar muito para que o pára-quedas não abrisse.

Estevão, sério, para não rir da resposta de Irene, deu-lhe cinco minutos para decidir. Levantou-se e voltou para a cabine acertar mais alguns detalhes da missão CANA DOCE com Barroso e Furlan.

A soldado Júlia resolveu passar uma bandeja com refrigerantes, água e café para os demais soldados que ouviram os gritos de Irene e estavam tirando suas próprias conclusões e, talvez, até com algumas apostas para ver quem acertaria como seria o salto do casal briguento.

Um bipe na cabine anunciou que estavam se aproximando do Clube Merlin, nas imediações de Avaré.

Estevão voltou ao banco onde estava Irene e, em pé, lhe disse: – Vamos! A hora chegou. Você já fez a escolha ou eu terei que escolher por você outra vez?

Irene aos berros, novamente, falou:

– Você é um débil e quer me matar, não sei por que razão. Já lhe respondi que não vou saltar. Vá você e tomara que acerte o alvo. O inferno. Seu demente aéreo. Olhou para os soldados, em busca de algum

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apoio, mas estes desviaram o olhar para as janelas e a ignoraram.

Estevão pegou os dois pára-quedas oferecidos para ela escolher e jogou-os para um lado. Abriu a outra sacola onde estava o pára-quedas de salto duplo e colocou entre os dois. Vestiu seu macacão de salto por cima de seu uniforme, colocando sua viseira e o altmaster III no pulso. Fez um sinal para Marisa e Júlia que se levantaram e colocaram Irene sentada no piso do avião ajudando-a, à força, a vestir um macacão de salto.

Irene mordia, esperneava, gritava, quando, repentinamente, sentiu que a pressão do ar, dentro do avião, mudara. Alguém já abrira uma das portas do avião, percebera Irene. Instantaneamente, parou de reagir e falou com Estevão em uma linguagem conhecida só por profissionais de pára-quedismo em queda livre.

– Está bem! você me convenceu. Escolho o salto duplo porque foi um estranho quem dobrou o outro pára-quedas que você me ofereceu. Já percebi que você não manda duas vezes e vai me atirar para baixo de qualquer maneira. Eu não conheço você, mas sei que se não mantiver a calma durante a descida poderemos morrer os dois lá embaixo.

Estevão sorriu e disse a Irene que ele tomaria a mesma decisão se estivesse no lugar dela. Perguntou se ela se recordava das regras de segurança e de pouso.

Irene disse que sim, que seguiria suas instruções como se estivesse na escolinha no seu primeiro dia no carrinho (primeiras instruções do pára-quedismo).

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Estevão se comportou como um verdadeiro Jump Master em saltos duplos, checando seu equipamento mais uma vez e, em seguida, ajudando sua parceira a afivelar seu harness checando os tirantes nos ombros, pernas e peito. Colocou-lhe uma viseira e perguntou se ela queria plugs para os ouvidos.

Irene respondeu que sim.

Uma luz amarela piscou três vezes indicando que estavam a três minutos do local do salto.

O casal se encaminhou para a porta traseira do avião que, já, entrara na rota de lançamento, com uma altitude de 12.000 pés, diminuindo a velocidade para 80 nós por hora e embicando um pouco para baixo, levantando a cauda.

Estevão abraçou Irene por trás que também estava segura por quatro ganchos conectando seu harness com o equipamento de Estevão.

Apesar de o GPS da cabine ter indicado o local exato do salto, Estevão decidiu fazer o PS (ponto de saída visual). Deu o sinal para Irene e entraram em queda livre, fizeram um loop e se estabilizaram de barriga para baixo. Ele logo puxou o drogue mantendo ambos estáveis. Os dois soltaram as mãos na posição selada. Após 45 segundos o altímetro eletrônico de Estevão emitiu um bipe em seu ouvido e ele checou seu altímetro de pulso, verificou a altura de comando e comandou o pára-quedas. Em segundos, o velame começou a se inflar amortecido pelo slider. Estevão fez um cheque visual verificando se as células de seu pára-quedas estavam infladas e se as linhas estavam desembaraçadas. Fez um cheque funcional com os botoques, verificando se o velame fazia as

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necessárias manobras. Estevão navegou graciosamente em direção ao alvo enquanto olhava para baixo para confirmar a direção do vento.

Avisou Irene que se posicionaria contra o vento preparando-se para pousar.

Irene despertou, de sua viagem ao passado, lembrando do dia em que perdeu seu marido em um acidente de helicóptero. No mesmo dia, fizera uma promessa para nunca mais saltar de pára-quedas. Na descida teve a doce lembrança de Aurélio abraçando-a carinhosamente na instrução do seu primeiro salto duplo AFF que fizeram em Boituva, há mais de dez anos.

Irene levantou as pernas com os joelhos flexionados, Estevão deu o flare e tocou o solo suavemente. Desconectou o harness de Irene, agradeceu-a pelo seu comportamento profissional. Recolheu as linhas com o velame e com o pára-quedas nas costas dirigiu-se para a sede do Clube Merlin.

Irene tirou seu harness e aproximou-se de Estevão perguntando se ela poderia fazer algo que estava precisando fazer urgentemente.

– Claro, respondeu Estevão.

Pensando que ela queria ir ao banheiro ou alguma coisa parecida.

Enquanto Estevão tirava o pára-quedas das costas, Irene lhe deu um tremendo tapa no rosto e ao mesmo tempo falou que ele era um prepotente desalmado que a fizera quebrar uma promessa que tinha feito em cima de um túmulo.

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Estevão, calmo, ficou preocupado se ela tinha machucado a mão com o tremendo golpe que dera. Coçou o rosto pensativo e respondeu:

– Você não quebrou sua promessa, foi obrigada a saltar comigo contra a sua vontade. É bem diferente de livre, espontaneamente, por iniciativa própria, etc. etc. Ou como você mesmo me descreveu. Um demente aéreo que ia atirá-la lá de cima de qualquer maneira. Nesse ponto você tinha toda a razão. Eu ia, mesmo, empurrá-la para fora do avião.

Voltando à sua quebra de promessa, continuou Estevão, o seu marido morreu em um trágico acidente de helicóptero. Você não estava com ele. Caso você estivesse, não estaríamos aqui tendo essa conversa agora.

Aurélio foi um dos pioneiros a organizar demonstrações do pára-quedismo moderno no Brasil. Fundou um clube, para o qual você contribui, mensalmente, até hoje. Você já se perguntou se era isso o que ele queria para você? O pára-quedismo não teve nada a ver com a morte dele. E você parando de praticá-lo não vai trazê-lo de volta.

Agora eu não sou Freud para lhe dizer o que se passa dentro dessa cabecinha linda e dura que você tem e que outras promessas mais você fez na vida. Só estou tentando lhe dizer que, com certeza, foi uma promessa feita numa hora de dor e desespero. Respeito sua decisão, mas, obrigatoriamente, não concordo com ela, principalmente depois de navegarmos juntos e, para ser franco, você foi a melhor parceira que encontrei até hoje em salto duplo. E acredite-me carreguei muitos fardos pesados e ainda estou vivo é por que a minha hora ainda não chegou.

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Chocada e surpresa com o que acabara de ouvir. Irene revidou.

– Seu desgraçado. Como é que você tem todas essas informações a respeito de mim e do Aurélio. Eu não me importo com o que você concorda ou não. Quem você acha que é para saber o que as pessoas podem fazer ou não? E quanto à minha cabeça... Olha, eu nem sequer sei o seu nome... Vá para o inferno!

– OK! OK! concordou Estevão, já, estou indo. Sinalou à Gilda para que levasse a nova hóspede para seus aposentos enquanto dobrava seu pára-quedas no gramado do Clube e retirava o alvo de lona alaranjada da grama.

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Clube Merlin

Gilda, que acompanhara, da varanda do Merlin, o Águia navegando com sua presa agarrada em direção ao ninho, agora aproximava-se rapidamente e pediu a Irene que, por favor, a acompanhasse, explicando que elas estavam em uma propriedade isolada de vizinhos.

Explicou que o local era vigiado por guardas armados 24 horas por dia e além disso havia cães muito perigosos soltos durante à noite. Continuou dizendo que seria muito bem tratada e havia uma lista das normas sobre comportamento que ela teria que obedecer.

Levou-a até a sua suíte e explicou como funcionava a banheira, chuveiro, interfone e a TV. Recomendou, outra vez, que, para sua segurança e conforto, lesse a lista, antes de fazer qualquer outra coisa. Mostrou a lista em cima da mesinha de mogno ao lado de sua cama. Gilda se despediu, trancou a porta por fora e saiu para falar com Estevão.

Estevão, ainda, estava nos seus aposentos empacotando seus pertences, preparando-se para voltar para São Paulo de carro. Antes de colocar uma roupa limpa, parou em frente ao espelho para examinar a bofetada e a mordida que levara de Irene. Dando um sorriso para o espelho, saiu para o salão de leitura do Clube para se encontrar com Gilda.

Gilda lhe ofereceu suco de laranja natural ao mesmo tempo em que perguntava por que tanto argumento com a Doutora.

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Estevão falou que a abordada estava, ainda, em estado de defesa e que ela era, realmente, uma pessoa certa de si e não ia se dobrar facilmente. O importante é que tudo correra como planejado.

– Vamos deixá-la à vontade, dentro do limite do Clube. Caso ela não grave a primeira mensagem em 30 dias mudaremos o plano de ação para a segunda opção.

O celular internacional estará ligado 24 horas por dia e os reservas também. Você poderá me consultar se tiver alguma dúvida ou problemas com a abordada. Eu manterei contato.

Se por acaso ela perguntar de mim, diga que voltarei em uma semana. Até lá ela se acostumará com as normas do Clube Merlin e espero que esteja mais mansa... Lembre-se que ela, em hipótese alguma, deverá ficar em confinamento isolado e cuidado com as mordidas, socos e pontapés. No meu retorno, trarei a filmadora digital.

Gilda chamou o restante dos soldados da Célula G, pelo rádio, e pediu-lhes para irem até o salão de jogos porque iam ter uma reunião com o chefe.

A Célula G era composta por nove soldados, seis homens e três mulheres. Gilda era a segunda em comando, depois de Estevão. Todos, também, foram treinados na Fazenda Santa Guadalupe, no Paraguai. Aprenderam as mesmas técnicas dadas às outras células e mais outras específicas que os tornaram peritos para receberem e guardarem os hóspedes abordados pelo MBN.

Gilda fora recrutada por Estevão e mudara-se de Porto Alegre para a região de Avaré em 2002. Depois de seis meses de procura, ela encontrou o lugar perfeito

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para suas novas atividades. A propriedade que fora arrendada por cinco anos e antes tinha funcionado como um spa, que mais tarde viera a falir, no momento era o local adequado para recepcionar os hóspedes milionários trazidos pelo MBN. A propriedade rural, com 40 alqueires fica nas imediações da Represa de Paranapanema, no município de Avaré, no interior paulista. É cercada por uma área verde, impressionante, com muita água.

O Clube Merlin, denominado por Estevão, era conhecido anteriormente pelas poucas pessoas locais que tiveram acesso à propriedade como um spa que viera a falir. Agora a propriedade estava sob nova direção e seus novos arrendatários supostamente tentavam criar uma raça de pôneis argentinos.

Estevão almoçou com os soldados e esclareceu que o jogo tinha começado em favor deles e que agora viria um período de espera onde todos teriam que ter paciência e muita calma. Todo o cuidado com a hóspede e outros que viriam no futuro seria essencial para o sucesso do MNB.

Perguntou se o armamento estava limpo e bem guardado e se os Pit Bulls se adaptaram à nova casa. Lembrou, ainda, que os plantões de vigia seriam a cada seis horas e que Gilda distribuiria os horários e as outras tarefas.

Enquanto isso Irene fizera um levantamento de seus aposentos que consistia em uma enorme suíte com armários embutidos, cama de casal tamanho king, geladeira pequena, interfone, TV colorida e um aparelho de DVD com uma grande variedade de filmes, documentários e concertos de músicas clássicas, MPB, jazz e rock. No quarto havia ainda uma cadeira de balanço, feita de ratan, almofadada, uma

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mesa para leitura com duas cadeiras forradas de veludo bege e outra mesa de madeira para refeições. Uma estante contendo vários livros em português, espanhol e inglês.

As paredes do quarto eram decoradas com algumas gravuras com temas da natureza e animais silvestres. No teto, em cima da cama, havia um bonito domo de vidro transparente, desenhado em forma de trevo de quatro folhas. A janela, larga, era decorada com cortina de rendas branca. Irene notou que a janela tinha uma grade de ferro retorcido, pintada de verde folha, e era chumbada por fora na parede. O banheiro era de um tamanho enorme onde havia uma banheira, modelo antigo, esmaltada de branco com os pés de águia dourados, chuveiro, duchas circulares e sauna seca. Irene também notou que a janela tinha o mesmo tipo de grade de ferro igual à do quarto.

A hóspede da suíte sentou-se na cadeira de balanço e começou a ler as normas referidas por Gilda. Não havia título na lista que totalizava três páginas.

Depois de ler rapidamente os itens da lista, Irene releu dois dos itens da lista. No primeiro,

ela estava proibida de falar com qualquer uma das pessoas do Clube sobre quem ela era, seu nome verdadeiro, seus familiares ou qualquer outro assunto relacionado sobre suas atividades fora do Clube.

O último item da lista, Irene teve que ler duas ou três vezes e ainda tinha dúvidas sobre o seu significado. De hoje em diante você terá que preparar-se para trocar, temporariamente, seu papel de Super Executiva Milionária por o de uma Super Atriz.

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Os outros itens pareciam, realmente, normas de um spa tais como: tipos de comidas, horários das refeições, se ela tinha alguma restrição quanto à açúcar, sal ou outros temperos, quais os refrigerantes diets que tomava, sucos naturais, especificação sobre o horário de tomar sol no terraço ou piscina, exercícios na academia do Clube e instruções dirigidas para o uso do interfone que poderia ser usado 24 horas por dia.

Irene abriu um dos armários embutidos e pôde notar uma variedade de roupas que supostamente eram para ela usar. Até maiôs, ou se ela quisesse ser mais avançada, para sua idade, poderia usar um biquíni branco ou preto. Fechou a porta do armário e se dirigiu a porta da suíte e tentou abri-la . A porta estava chaveada por fora.

Irene, seguindo as instruções da lista ligou o interfone.

Uma voz de homem atendeu do outro lado e Irene perguntou se poderia falar, pessoalmente, com a mulher que a trancara à chave no seu quarto. Após uns minutos Gilda bateu três vezes na porta, abriu e entrou no quarto.

Irene, mais calma, perguntou onde estava e por quanto tempo ficaria “hospedada” no Clube.

Gilda, polidamente, respondeu que não poderia responder e que ela já estava quebrando as regras do Clube.– Pois bem, disse Irene. Quanto às suas regras. Eu não entendi o último item, esse aqui, disse ela apontando o número 13 da lista.

– Aquela pessoa com a qual a senhora saltou lá de cima voltará aqui em uma semana. O nome dele é

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Yves. Ele é o nosso líder e vai lhe explicar tudo sobre nossa organização e nossos objetivos.

A senhora participará de um filme que o Yves vai produzir para a organização quando voltar. Amanhã, após o café da manhã, eu lhe darei o texto que a senhora terá que memorizar letra por letra, ponto por ponto. O referido texto é uma mensagem que a senhora mandará para seu filho e seus associados na VÊNUS.

– Meu Deus! exclamou Irene, colocando as mãos sobre os olhos ao mesmo tempo que começara a andar, em voltas, pelo quarto.

Enquanto Irene falava consigo mesmo, em voz baixa, Gilda abriu uma das portas do armário e mostrou as roupas, chinelos e sapatos. Sugeriu que ela tomasse um banho ou uma ducha e ficasse mais à vontade. Gilda se despediu, dizendo a Irene que era só seguir as regras que tudo estaria bem.

Irene abriu o frigo-bar e tirou uma garrafa de água mineral sem gás. Notou que não havia copos de vidros em cima da geladeira e, sim, um saco de copos descartáveis de plástico. Ligou a TV e para sua surpresa descobriu que funcionava com o mesmo sistema via satélite que ela instalara na sua TV, na Limoeiro.

Abriu a outra porta do armário embutido para ver o que mais continha e se viu retratada no espelho escondido atrás da porta. Irene olhou para a outra Irene com uma expressão assustada. Foi quando se deu conta que ainda estava nos trajes de montaria que vestira de manhã para cavalgar com seus convidados.

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– Aquele desalmado do Yves me fez saltar com minha botas de montaria! Eu mato aquele acrobático mental, ele ainda teve a audácia de falar da minha cabeça, pensava Irene, quase chorando, enquanto tirava suas botas e se despia de seus trajes.

Irene chamou o ramal 7 e pediu uma salada mista, sem pimentões e pepinos, com suco de acerola e um jornal ou uma revista de São Paulo atualizados.

A soldado Luiza que atendera o pedido informou a Irene que em 30 minutos o encarregado do plantão lhe levaria seu pedido, menos os jornais e revistas que só estariam disponíveis no Clube na segunda-feira à tarde ou terça- feira.

Enquanto esperava sua refeição, Irene revivia os atos de seu seqüestro. Não se conformava com a maneira como fora abordada em sua própria casa. Seus pilotos, segurança, seus empregados e principalmente ela se sensibilizaram com os pretendentes ao desastre e eles a enganaram com aquele Brasília preparado.

O executivo da VÊNUS encarregado de sua segurança, com certeza, estaria se desdobrando para arranjar mil desculpas sobre o que saíra de errado e como o Careca não percebera, de imediato, a cilada que o Yves e seus supostos fiscais do IBAMA lhe armaram.Depois das investigações, com certeza, cabeças rolariam na VÊNUS. Irene não conseguia determinar quais as cabeças que seriam decepadas.

Leu e releu aquela estúpida lista das normas do Clube.

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Três batidas na porta e uma plantonista apareceu com sua salada e o suco em uma bandeja. Após degustar a primeira refeição oferecida pelo Clube, Irene se surpreendeu com a qualidade da salada e do suco de acerola. Ou seria porque ela perdera o paladar? perguntou-se Irene.

Não conseguiu dormir à noite, tentando adivinhar quais seriam os termos da mensagem que aquela maldita bruxa mandona lhe falara a respeito. Isso é tortura psicológica. Pensava Irene.

Por que não me dar a mensagem amanhã sem me adiantar nada a respeito hoje? Não! Aquela bruxa tinha que aguçar minha expectativa e curiosidade.

Ligou a TV, assistiu um DVD do Pavarotti, gravado no Metroplitan de Nova York e outro da Diana Krall, gravado em Paris.

Acordou com a TV ligada no chuvisco e, instantaneamente, perdeu o sono prematuro.

Procurou algo útil para ler.

Não havia grande diversificação literária na pequena biblioteca da suíte, mas se interessou por um livro, aparentemente novo, titulado The house of spirits de Isabel Allende.

Às oito da manhã acordou com um dos plantonistas batendo na porta com seu café da manhã. O menu, ela já escolhera na tarde anterior e conforme as normas não poderia ser trocado, caso ela mudasse de idéia durante a noite.

Assim que terminou seu café, chamou Gilda e pediu para ela vir pessoalmente até sua suíte.

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Gilda bateu três vezes e abriu a porta com sua chave, entrando sem esperar pela resposta da Doutora Irene.

Irene estava vestida com saia longa preta e uma blusa cinza clara que encontrara em um dos armários. Não era o seu estilo, mas era melhor que usar a mesma roupa do dia anterior. Antes que ela perguntasse à Gilda sobre a mensagem que ela teria que memorizar, esta lhe passou uma pasta de plástico transparente com duas páginas.

Irene se sentou em sua cadeira e leu rapidamente a mensagem que ela não escrevera, mas que teria que interpretar como sua. Releu a mensagem e levantou-se atirando-a na cara de Gilda, dizendo-lhe que se ela queria ser a atriz que a vaga era dela.

Gilda, instruída para não prolongar discussões, deixou a mensagem na mesa de mogno e se retirou chaveando a porta.

Uma hora mais tarde, Irene chamou o ramal 7 e perguntou se poderia sair dos aposentos para conhecer o Clube.

Do outro lado da linha, uma voz de mulher respondeu que em dez minutos alguém iria escoltá-la pela propriedade.Irene saiu acompanhada de um soldado homem e uma soldado mulher que fizeram um tour completo do Clube Merlin. Os soldados somente responderam as perguntas sobre a propriedade e a conduziram aos locais onde ela estava autorizada a ir e vir.

Ficara impressionada com o canil. Não era fã de cachorros e agora muito menos. Pelo menos dez deles queriam esquartejá-la, latindo e se mordendo dentro

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do canil quando passaram nas proximidades do portão de tela de arame grosso. Irene nem sequer imaginava qual era a raça dos cães que queriam atacá-la.

Gostou da piscina e da vista que dava para o lago. Perguntou a si mesmo onde estaria. Voara mais ou menos duas horas desde que levantaram vôo da Limoeiro. Poderiam ainda estar no Estado de São Paulo ou Yves ordenara a rota do Paraná ou Mato Grosso do Sul.

Os idiotas dos plantonistas do Yves não respondiam às suas perguntas quanto aos seus nomes e local onde ela estava e quem era quem além do Yves.

À distância, notou que Gilda e outros plantonistas a seguiam com seus binóculos. Tentou ignorá-los, mas a presença deles, além dos dois colados a ela, era constante. Teria que se acostumar com aquela situação. Como Gilda explicara, a propriedade ficava isolada e ela poderia gritar à vontade se quisesse que ninguém iria ouvi-la, a não ser os cachorros do Yves.

Almoçou filé de badejo com legumes e rejeitou a sobremesa de creme de papaia. Ligou a TV no noticiário nacional para ver se falavam dela. As notícias eram as mesmas de sempre. Brasília, juros altos, a guerra do Iraque, a inflação e o desemprego, seqüestros relâmpagos e nada sobre Irene Lafayete Fontoura, ou sobre uma invasão aérea na Fazenda Limoeiro com seqüestro de sua proprietária. Nada sobre a presidente do grupo VÊNUS.

Desanimada, ligou para o ramal 7 e pediu para falar com Gilda pessoalmente.

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Após alguns minutos, Gilda abriu a porta e entrou perguntando se ela poderia ser útil.

Irene pediu para ela se sentar, pois queria ter uma longa conversa com ela. Gilda sentou-se e disse que estava pronta.

Irene primeiro perguntou o seu nome verdadeiro e se ela tinha a menor idéia quem eles estavam hospedando nesse chique cativeiro disfarçado de spa.

Gilda levantou-se para sair e recomendou-lhe ler novamente as normas do Clube, pois ela estava quebrando as regras ao tentar estabelecer uma linha de conversa proibida no regulamento. Terminou dizendo que todos no Clube sabiam quem ela era e não davam a mínima para seus milhões.

Irene não desistiu e, antes de Gilda sair da suíte, perguntou quem realmente era Yves, se ele era brasileiro ou estrangeiro, se era o chefe do bando ou se tinha outros acima dele.

Gilda, da porta, respondeu calmamente.

– O Yves estará aqui em cinco dias e daí a senhora poderá perguntar a ele o que desejar. Já está programada uma explanação melhor sobre nossos objetivos, mas isso só acontecerá quando o Yves voltar. Ele terá o prazer de fazê-lo para a senhora. É só aguardar.

Na sexta-feira, Yves chamou Gilda para saber como estava se comportando a primeira hóspede do Clube.

– Além da curiosidade pela nossa empresa e seus diretores principais, as coisas estão indo

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razoavelmente bem. Quando é que você confirma? perguntou Gilda.

– No domingo para o almoço, respondeu Yves desligando o celular.

Copper

Irene estava lendo em seu quarto quando escutou uma onda de latidos vindo da direção do canil. Era a primeira vez em uma semana que ouvira os cães latirem com tanta intensidade.

Levantou-se e olhou pela janela de sua suíte.

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Para sua surpresa, Yves estava em frente ao canil conversando com Gilda e outros três soldados. Apontava para um trailer de carregar cavalos que estava engatado em uma pick-up. Esforçou-se para tentar ver de onde era placa do carro, mas a distância não lhe era favorável. Logo a seguir os quatro se encaminharam para o trailer e desaparecem por trás deste.

Irene ficou tensa, pois sabia que Yves viera para falar com ela e, com certeza, saber se ela ia recitar por bem ou por mal aquela falsa mensagem escrita pelo seu bando de lunáticos interesseiros.

Logo a seguir, Gilda foi até a suíte de Irene, bateu três vezes, entrou e perguntou se ela gostaria de almoçar com o Yves no terraço ou na suíte.

– Ele veio para falar com a senhora e poderá responder suas perguntas do outro dia.

– Está bem, respondeu Irene dizendo que iria logo para o terraço assim que se trocasse.

Dois plantonistas a escoltaram até a varanda do clube, onde ela almoçara, sozinha, na quinta-feira. Yves já estava sentado tomando um suco de laranja.Quando viu Irene, levantou-se e a cumprimentou, perguntando como ela tinha passado a semana. Notou que a fragrância exótica desaparecera, mas a beleza dela continuava intocável.

Irene ironicamente respondeu que já tivera dias melhores antes de conhecê-lo.

Yves, sorrindo, falou que as vidas deles eram cercadas de coisas boas e ruins.

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– As coisas boas nós as queremos todos os dias e as ruins queremos nos livrar delas o mais rápido possível.

– Não entendi sua filosofia espacial, resmungou Irene.

– É fácil de entender, respondeu Yves. Eu sou a coisa ruim de sua vida e para você se livrar de mim, o mais rápido possível, terá que seguir minhas instruções. Com isso eu alcançarei meus objetivos e você os seus. Irene serviu-se de um copo de água e falou a Yves que não gravaria aquela ridícula mensagem escrita por ele. Se ele quisesse vinte milhões de dólares que fosse trabalhar como ela trabalhou para ganhar o que tinha.

Yves continuou sorrindo e comentou que ela tinha mesmo uma cabeça dura e era bastante arrogante para quem, no momento, estava em desvantagem.

– Talvez depois de eu lhe explicar quem somos o que queremos e o que sabemos a seu respeito, você mude de idéia. Aposto que sim, concluiu Yves.

Irene se levantou para sair sem almoçar quando Yves lhe disse que só voltaria novamente ao clube em 15 dias e que era melhor conversarem agora. Quanto mais ela retrocedesse mais tempo ficaria no Clube.

– A pressa é sua, acrescentou.

Irene olhou para cima, pensando que sete dias já haviam se passado e esse maldito vinha lhe dizer que voltará só daqui a 15 dias. Quem ele pensa que é? Ponderou mais um minuto e sentou-se à mesa novamente.

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– OK! disse Yves. Enquanto não chega o nosso almoço, eu vou lhe falar um pouco sobre a nossa organização.

Começou contando sobre o MBN, seus objetivos e o espaço político que iriam ocupar no futuro. Precisavam de muito dinheiro para financiar suas atividade em todos os Estados do Brasil. Ela era uma das muitas pessoas abordadas pelo movimento com a finalidade de angariar os fundos necessários para a estruturação política e financeira do MBN.

Irene perguntou a Yves se eles iam matá-la?

– Não! respondeu Yves, mas você terá que ficar conosco até que decida contribuir com a quantia que precisamos. Pode ser um mês, um, ano, dez anos. Você é quem decide.

– Você enlouqueceu mesmo com essa idéia de MBN e eu não vou gravar a sua mensagem coisa nenhuma. Primeiro, porque eu não diria aquilo ao meu filho e aos meus diretores. Segundo, os seus vinte milhões é muito dinheiro e eu não tenho essa quantia. Terceiro, a polícia deve estar atrás de vocês. É uma questão de dias para eles chegarem até você e seu bando paramilitar.

– Há! a Doutora Irene sabe de tudo. Pois bem! Deixe-me ser um pouco mais claro.

A polícia e seus negociadores estão fora do caso. Foi uma das nossas exigências deixadas com o seu Segurança, o Careca. No momento, seu filho, Antônio está aguardando a sua mensagem.

100

Por favor leia essa nota no jornal publicada dois dias após a sua abordagem, na Limoeiro.

Em dois jornais de São Paulo, Irene leu, nas colunas sociais, uma curta nota anunciando sua viagem ao exterior para tratamento médico. A foto, dos arquivos da VÊNUS, era uma das selecionadas por ela, e o pessoal da assessoria de imprensa estava autorizado a passar para a mídia.

Antes que ela esboçasse qualquer reação Yves lhe entregou uma pasta contendo provas documentais de alguns negócios que o grupo VÊNUS fizera no passado.

Entre essas provas, estava relacionado um documento sobre operações de câmbio com informações privilegiadas, vindas de diretores de alto escalão da área financeira do Governo, resultando em lucros fantásticos de milhões de reais para suas corretoras de valores e seu banco.

Em outro documento, o serviço de inteligência do MBN apresentou um documento com um cronograma da redução dramática de ICMS devido pelas suas usinas de álcool e açúcar ao Governo. A redução era resultado de propinas milionárias pagas a fiscais corruptos encarregados de fiscalizar os livros das usinas.

Yves continuou falando que sabia mais da vida dela do que seu próprio filho, família e diretores sabiam.

– Essas informações aqui na mesa são só exemplos do que sabemos. Se você quiser poderemos mandar outros documentos tal como aquele das super avaliações de suas propriedades florestais para você pegar dinheiro barato do Governo e emprestar em seu

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Banco com juros mais extorsivos do que a importância que estamos lhe pedindo para contribuir ao MBN.

Irene se levantou calada, branca de raiva e foi para sua suíte, seguida por dois plantonistas.

Yves almoçou com Gilda, e ambos planejaram o início das filmagens para dentro de 15 dias. Até lá, Irene pensaria três vezes antes de dizer não outra vez.

Irene se retirou para sua suíte e se perguntava como é que um pára-quedistinha anônimo sabia coisas que nem ela sabia a respeito da VÊNUS. Perdeu a fome, não conseguia se concentrar em nada e pensou no seu amado filho que com certeza estava encurralado, como ela, pelas chantagens do MBN.

À noite, discou o ramal 7 e pediu para falar com Yves.

A soldado que atendera o interfone lhe disse que Yves já tinha ido e só voltaria em duas semanas.

Irene queria morrer. Jogou o telefone na parede. Uivava, chorava aos prantos, praguejando todos os membros do MBN e até o seu segurança, o Careca.

Gilda, que a tudo assistia pelo monitor em seu escritório a 10 metros da suíte de Irene, não se sensibilizou. Estava atenta aos movimentos da Doutora e pronta para intervir, somente se esta ameaçasse sua própria vida.

Yves instalara duas mini-câmeras escondidas no quarto e uma no banheiro da suíte de Irene.

No outro dia, às oito da manhã, chegou seu café. O cozinheiro de plantão mandou um reforçado, pois a Doutora não tinha almoçado nem jantado no dia

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anterior. Com olheiras de tanto pranto, Irene se sentiu com apetite e devorou seu mamão papaia e um iogurte natural para depois tomar um chá de erva-mate com torradas e geléia de morango e se quisesse poderia tomar, ainda, o seu suco favorito, acerola.

Chamou o ramal 7 e pediu para sair, pois queria andar um pouco.

Gilda veio sozinha para acompanhá-la e perguntou se ela queria ver uma novidade que Yves ontem havia encomendado para o Clube. Irene respondeu que não, só queria dar uma caminhada e se possível fazer algum tipo de ginástica depois de tomar quinze minutos de sol.

Evitou passar perto do canil e se dirigiu para o lado das baias dos pôneis. Foi quando viu o cavalo Quarto de Milha, castanho, sendo escovado por um dos soldados. Seu pêlo brilhava como seda com a luz do sol. Irene se alegrou, imediatamente, perguntando a Gilda de quem era o cavalo.

Gilda lhe respondeu que essa era a novidade que ela queria lhe mostrar.

– O cavalo veio com Yves ontem.

Irene segurou-o pelo cabresto e lhe acariciou a testa e o queixo.

– Ele é muito bonito e parece manso. Será que eu poderia montar nele? perguntou Irene um pouco surpresa com ela mesmo.

– Amanhã a Doutora poderá montar, depois de fazermos uma emenda nas normas, respondeu Gilda.

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– Não estava previsto esse cenário eqüestre nos nossos planos. Estamos aguardando outros três cavalos chegarem hoje. A senhora poderá cavalgar somente em dois dos piquetes da propriedade, longe dos pôneis, sempre acompanhada de três plantonistas.

Essa será a nova regra. Se a senhora concordar poderá montar todos os dias a partir de amanhã.

Irene respondeu que ia pensar a respeito e pediu que queria ir até a academia fazer sua ginástica.

À noite, quando ordenou seu café para o próximo dia, perguntou se sua roupa de montaria estava limpa.

Depois de semanas no Clube, Irene encontrara um amigo com quem podia se relacionar sem se incomodar com as normas do clube. Precisava dar-lhe um nome já que Gilda lhe negou os papéis de transferência do cavalo, no qual, com certeza, estaria registrado o nome do Quarto de Milha puro sangue deixado por Yves.

A Doutora era uma das maiores criadoras de cavalos Quarto Milha do Brasil e tinha um olho clínico para julgar a raça. O cavalo a impressionara com seu perfeito corpo compacto e músculos massivos. O cavalo lhe lembrava a cor de cobre. Irene lembrou-se de sua amiga Susan que tinha um cavalo chamado Copper que morrera de cólicas após uma competição. Para homenagear o lindo cavalo de Susan, Irene rebatizou o Quarto de Milha de Yves com o nome de Copper.

Yves, que disse não saber nada sobre Freud, acertara na terapia para fazer com que Irene se sentisse mais à vontade e alegre durante sua estadia no Merlin.

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Duas semanas se passaram sem grandes novidades no Clube.

Irene era assídua companhia dos soldados cavalariços e perambulava grande parte do dia pelos estábulos. Para sorte de todos, não houve nenhum incidente nos piquetes determinados para Irene cavalgar. Gilda teve que ir até Avaré para comprar-lhe mais dois pares de calças para montaria, botas de borracha, cenouras para Copper e dois livros que não estavam disponíveis na biblioteca do Clube.

Estevão chegou no domingo pela manhã e encontrou Irene nos estábulos dando um banho em Copper. Irene se surpreendera com a aparição repentina de Yves e não tinha se dado conta que já passavam duas semanas desde que o vira pela última vez.Yves a cumprimentou, perguntando ao mesmo tempo se ela tinha gostado do Quarto de Milha.

Yrene, ironicamente, respondeu que até agora era a única coisa boa que ele fizera desde que o conheceu.

– Menos mal. Depois que tudo isso acabar você pode ficar com ele, se quiser, disse Yves.

– Além dos vinte milhões terei que pagar pelo cavalo também? perguntou Irene.

– Não! Considere um presente pessoal, até porque ainda você não nos doou os vinte milhões, Rebateu Yves, Logo desviando o assunto para outro tema antes que levasse outro tapa.

Os dois almoçaram juntos na varanda e desta vez Yves deixou o assunto a ser tratado para após a

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refeição. Irene estava preocupada e com saudades de seu filho. Perguntou se Yves tinha alguma notícia dele.

– Logo teremos se você decidir gravar a mensagem hoje, respondeu Yves, esperando para ver a reação de Irene.

– Se for aquele script que a sua guarda me passou pode esquecer porque eu não vou ficar na frente de uma câmara para falar um monte de mentiras, atacou Irene ameaçando levantar-se e ir para a suíte novamente.

– OK! OK! Você é muito temperamental e parece que quer ficar no Clube indefinidamente. Depois da sesta vamos voltar a conversar novamente. Se você não me der uma resposta afirmativa, eu lhe farei uma proposta que você não poderá recusar.

Irene, emburrada, disparou para sua suíte.

Após um banho morno, Irene, de fato, caiu no sono durante a leitura de um de seus novos livros que encomendara. Estava no segundo capítulo do livro Armas, Germes e Aço (O Destino das Sociedades Humanas), do escritor Jared M. Diamond.

Acordou assustada com os tiros vindos da direção da piscina. Ficara estarrecida na cama. O primeiro pensamento que lhe viera à mente fora o da polícia estar invadindo seu cativeiro e lutando com os soldados de Yves para libertá-la. Não se atreveu a mover-se da cama. Ficou ali congelada esperando seus heróis.

Cinco minutos se passaram quando Irene ouviu as três familiares batidas na porta e a chave sendo torcida

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para esquerda. Seu coração acelerou-se com a expectativa de estar livre. Não desejou outra opção.

Gilda apareceu na porta e a convidou para acompanhá-la até o gramado da área da piscina onde Yves estava lhe aguardando para terminar o assunto discutido no almoço.

Decepcionada com a imagem na porta, Irene perguntou o que havia sido aquele monte de tiros lá fora.

Gilda respondeu que os soldados treinam a cada 30 dias e hoje era o dia de tiro ao alvo.

Yves estava de pé montando uma mira telescópica em um rifle quando Irene se aproximou escoltada por Gilda e outra soldado.

– Como lhe disse durante o almoço nós temos que resolver agora sobre a gravação da mensagem. Gostaria de saber se você já está preparada para gravar?

Irene respondeu:

– Não vou gravar o seu script hoje, nem nunca.

– OK! OK! disse Estevão, convidando Irene para sentar-se na cadeira e assistir aos soldados praticarem alguns tiros.

Enquanto alguns dos soldados atiravam com suas armas de cano longo, outros atiravam com pistolas.

Yves perguntou se ela queria praticar, ou se gostava de armas.

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Não veio nenhuma resposta de Irene.

– Bem! Vejamos, comentou Yves olhando para Irene. Preste atenção para o rifle de Gilda. É um rifle Remington modelo M700 versão inox com cano de 26 polegadas Bull barrel. Seu calibre é o 308 Winchester ou o 762 da NATO. Eu diria que é mortal a qualquer distância até 1.000 metros. Essa luneta que ela está regulando é a Leopold com objetiva ajustável e regulagem paralax 12 X 36 X 40. Em palavras mais simples: Se eu estiver a 1.000 metros de um alvo eu posso regular a Leopold para ver o alvo tão claro e preciso como eu estou vendo você daqui. E nós estamos a 1 metro um do outro.

– Eu vou lhe ensinar a usar esse binóculos para você assistir a um treino muito especial. Yves deu uma breve explanação para Irene sobre o binóculos Ranger Finder. Ensinando-lhe a manusear suas lentes para medir a que distância estava, um alvo, na borda do mato, do outro lado do lago.

Irene teve dificuldade, mas acabou achando a medida aproximada de 590 metros.

– OK! OK! incentivou Yves, enquanto Gilda regulava sua luneta.

– Muito bem Doutora Irene, eu achei a mosca no mel. Aqui na minha Leopold deu 595 metros, falou Gilda olhando pela luneta do seu M700.

Irene se esforçou com o binóculos e colocou um close-up nas lentes para ver o alvo melhor. Era um desses alvos de academia de tiros onde a figura de um homem fora desenhado grosseiramente. Tinha vários círculos saindo um de dentro do outro começando no

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peito e expandindo para o resto do desenho com pequenos números entre os círculos.

– Vamos lá! disse Yves. Prepare o seu binóculo e olhe onde a Gilda vai acertar os tiros.

Gilda se posicionou em pé, com as pernas um pouco abertas e flexionadas, encostou a coronha do rifle no ombro mirou pela luneta, prendeu a respiração por sete segundos e disparou.

Irene não conseguiu ver com seu binóculo nenhum sinal de tiro na mosca do alvo.

– Nada, você errou, falou para Gilda.

– Está bem! respondeu Gilda. Vou dar mais um.

Repetiu o mesmo alvo, desta vez dois centímetros para à direita. Baixou o rifle para o chão e pediu a Irene para levantar seu binóculo e olhar entre os dois olhos não no peito do alvo.

– Sim! respondeu Irene se esforçando para ver o rosto do alvo. Estou vendo disse ela. Dois buraquinhos, um ao lado do outro.

– Não costumo errar com meu Remington, falou a Irene enquanto desmontava a luneta do rifle e colocava seu equipamento em um estojo comprido de plástico preto, almofadado por dentro.

Yves falou a Irene, com um tom de voz sério e claro:

– Antes de você voltar aos seus aposentos quero que você veja alguém. Pegou o rádio de uma das soldados que estava ao lado de Irene e falou com outro soldado

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que estava nas imediações do alvo para virar o alvo do outro lado.

Em seguida, ordenou a Irene que olhasse, novamente, com o binóculo o alvo atingido com os dois tiros.

Irene já estava de pé pronta para retornar a sua suíte. Voltou a colocar o binóculo de Gilda e olhou na direção do alvo. Focalizou o binóculo e viu um pôster de Antônio, seu filho, usando um de seus ternos Giorgio Armani, azul marinho, com um belo sorriso na face e dois furinhos de balas entre os olhos.

Irene largou o binóculo no chão, mas não conseguiu energias para falar, andar ou esbofetear novamente Yves.

Gilda e a outra soldado ajudaram Irene a se sentar novamente e uma delas lhe deu um copo de água.

Assim que ela acabou de tomar a água, Yves falou em sua face:

– Não somos assassinos. Isso aqui só foi uma demonstração de uma das alternativas que o MBN considerará caso você não grave a mensagem na próxima semana.

Depois do desabafo forçado, Yves saiu em direção ao seu carro.

Irene se isolou dos soldados por dois dias. Fazia as refeições em seus aposentos e não conseguia ânimo para ver Copper ou ir até a academia do clube se exercitar.

No terceiro dia, após tomar a decisão certa, chamou Gilda em sua suíte e pediu outra cópia do Script que

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ela teria que memorizar, pois havia rasgado e jogado a sua dentro do vaso.

Gilda lhe providenciou outra cópia dizendo que quando estivesse preparada era para avisá-la.

Irene que voltara a cavalgar pelas manhãs, também, ensaiava todos os dias durante três horas ou mais seu papel no script.

Achava mesmo tudo aquilo muito bem planejado e arquitetado. Estava em dúvidas quanto ao verdadeiro motivo da parte referente à Síndrome de Estocolmo. Perguntava-se qual seria mesmo o objetivo daquela parte. Era possível que Yves pensara que ela poderia ter um caso com ele enquanto estava sob sua tutela? E aí, ela facilitar as negociações em seu favor?

No sábado avisou Gilda que estava pronta.

Yves como de costume chegou no domingo pela manhã muito animado com a idéia de filmar logo a primeira mensagem de Irene para dar seqüência aos seus planos.

Irene estava completamente mudada e desta vez não parava de mostrar seu contentamento ao cumprimentar Yves. Irradiava uma energia positiva não demonstrada nos encontros anteriores dos dois.

Yves, pego de surpresa, ficou meio sem jeito dizendo que Gilda estava preparando o cenário e mais tarde iriam começar as filmagens.

Aproveitou a alegria momentânea de Irene para tirar de uma sacola que carregava a filmadora digital um pequeno pacote embrulhado em um papel, marrom claro, reciclado amarrado com embira. Deu o presente

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para Irene, dizendo que tivera muito trabalho para encontrar tal raridade e que havia sido extremamente difícil tentar descrever com palavras a fragrância de um perfume do qual não sabia o nome.

Nas cinco melhores lojas de perfumes que estivera, inclusive o Duty Free do aeroporto do Galeão no Rio de Janeiro, ele se tornara persona non grata. Deixara as demonstradoras todas enfurecidas e estonteadas no meio de tantos aromas esborrifados no ar e em cartãozinhos de cheirar.

– Espero que seja o seu, complementou Yves.

Irene delicadamente abriu a caixinha e lhe agradeceu quando percebeu que Yves lhe dera o seu perfume favorito. Com um sorriso no rosto, disse-lhe que gostava do Caraná-AM pela fragrância rara e exótica que exalava.

Comentou com Yves que, de fato, o perfume era muito difícil de se encontrar. Ela tivera sorte de ser incluída em um clube muito seleto de pessoas clientes, exclusivas, do Caraná-AM. O perfume é vendido somente para pessoas que contribuem para projetos sociais de uma ONG no Estado do Amazonas.

– Parece-me que são menos de 100 em todo o mundo.

O Caraná-AM é um óleo puro sem qualquer interferência de produtos químicos e de uma raridade única. Imagine que, em toda a Floresta Amazônica, a árvore que contém a essência da Caraná Branca, também conhecida como pau-rosa-fêmea, só nasce em uma pequena faixa de terra firme nas margens esquerda do Rio Negro, ao lado da área indígena Waimiri/Atroari, no Estado do Amazonas.

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O óleo da Caraná Branca, depois de extraído, é juntado a uma essência de uma orquídea rara que só nasce na região.

A ONG não revela ou vende a fórmula, secreta, para ninguém. Por isso a exclusividade do perfume.

Cada frasco do óleo é comercializado por cinco mil dólares.

Não é preciso usar o óleo todos os dias e um frasco dura em média quatro meses.

O preço não me incomoda, pois o dinheiro é doado a ONG que protege uma RPPN – Reserva Particular do Patrimônio Natural, de onde é tirada a essência da Caraná Branca.

O IBAMA, através do Ministério do Meio Ambiente, fiscaliza e protege a Reserva, certificando-se que ninguém destrua sua flora, fauna e toda a biodiversidade contida na RPPN. O decreto de uma RPPN é irreversível e espero que outras pessoas sigam o exemplo dessa ONG.

– Agora, Monsieur Yves, você vai me contar como é que você conseguiu saber o nome e onde encontrar o meu amado perfume? Se não me engano nem o meu filho sabe desse segredo. O primeiro frasco me foi dado quando fiz vinte anos de casada pelo meu falecido marido. Viciei na hora e desde então não consigo me livrar dessa dependência aromática. Confesso que sou contribuinte vitalícia da ONG que criou essa tentação vinda da floresta virgem.

– Ok! OK! Irene. Eu só contarei se você prometer que não vai perder essa alegria radiante que se incorporou

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em você, não me dar outro tapa e não repreender uma pessoa que me deu a dica. Está bem?

Irene, curiosa, prometeu que se comportaria como uma dama.

– Pois bem! começou a confessar Yves. Eu já lhe disse que sei muitas coisas a seu respeito, mas confesso que não tinha a menor idéia do tipo de perfumes que você usava. Até hoje não consigo explicar porque fiquei com aquele aroma seu impregado no meu cérebro, no dia em que a carreguei no ombro. No seu hangar eu já havia sentido o seu cheiro nos seus telefones. Só sei dizer que desde o primeiro instante que tive contato com o raro aroma meu olfato se nega a esquecê-lo.

Mas respondendo à sua pergunta.

A sua governanta, a Nina, me foi muito prestativa querendo obviamente ajudar você.

Na semana retrasada, eu a abordei na rua e lhe contei que era da polícia, pois desci de um carro da Polícia. Eu disse a ela que estávamos secretamente tentando localizar a Doutora Irene.

Nina respondeu, assustada, e disse que a Doutora estava no exterior e que não sabia quando ela voltaria e se eu quisesse mais informações era para ir até a sede da VÊNUS e procurar seu filho ou o Dr. Moisés.

Fui duro com ela e lhe contestei que a Doutora Irene não estava no exterior e que fora seqüestrada na sua fazenda em Araçatuba. A Polícia estava investigando secretamente o caso e eu precisava de algumas informações que poderiam ajudar a encontrar a Doutora Irene. Continuei dizendo que poucos

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empregados da VÊNUS sabiam da verdade e era para eles não falarem com ninguém a respeito do ocorrido. Mas, que ela era fora uma das pessoas escolhida pela Polícia porque, além de saber a versão verdadeira do ocorrido, poderia ajudar muito nas investigações policiais.

Nina não queria falar mais comigo e então eu lhe disse que se algo de mal ocorresse com a Doutora Irene ela seria uma das responsáveis por esconder evidências da Polícia.

O truque funcionou e a senhora Nina não agüentou a pressão Policial.

Ela relatou que o Antônio estivera com dois senhores estrangeiros lá no Morumbi e eles lhe fizeram um monte de perguntas. A única coisa que ela lhes disse foi que tinha preparado a sua bagagem para passar dois dias na fazenda. A roupa de montagem, ela deixava na Limoeiro; portanto, ela levara uma valise pequena. Ela saíra para o aeroporto com quatro seguranças em dois carros, e ninguém telefonara no dia do seqüestro, ou depois, para a Doutora Irene.

Após seu relato eu a convidei para dar uma olhada na viatura policial de onde eu saíra para abordá-la. Ela sem entender do que se tratava e com um certo receio me seguiu até a viatura onde mais dois homens e uma cadela estavam me esperando.

Eu contei para a sua governanta que o nome daquela cachorra era Ginger, que ela era treinada para encontrar pessoas desaparecidas ou escondidas em cativeiros. Para tanto, a Polícia precisava de algo perfumado da Doutora ou até mesmo saber que tipos de perfumes ela usava para tentar encontrá-la.

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Nina soltou o verbo, com certo receio em coçar a cabeça da Pit Bull, que lhe lambia a mão. Logo me contou que a Doutora tinha poucas marcas de perfume, mas que, no dia em que ela foi para a Limoeiro, tinha levado o perfume raro que vinha do Amazonas para ela, três ou quatro vezes ao ano. Eu lhe perguntei o nome, mas ela não se lembrava direito e me disse que o nome era parecido com Guaraná-AM.

Agradeci a senhora Nina e lhe disse se precisasse de algo mais que eu lhe telefonaria, pois tinha o número da casa da Doutora Irene. Pedi-lhe para manter a nossa conversa em sigilo.

– O resto foi fácil, concluiu Yves.

– Está bem! respondeu Irene. Você me surpreendeu mais uma vez.

– Vamos filmar a mensagem. Já memorizei o seu script.

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As exigências

Depois de várias tentativas e 43 dias após o desaparecimento de Irene, Yves preparava-se para filmar, com uma câmara digital, pela segunda vez a mensagem que a Doutora iria transmitir ao seu filho e a dois diretores executivos que comandavam seu império financeiro.

Ela estava em uma suíte isolada do resto do pessoal que ocupava o Clube Merlin. Tinha acabado de tomar um banho quente, enquanto Gilda esperava para ajudá-la com a maquiagem e o cabelo. Gilda era a soldado responsável pela alimentação e por vigiar a Doutora Irene. Prometeu a Estevão que deixaria a Doutora tão linda e atraente como no dia da sua abordagem. Lembrou a Yves que quando era jovem fizera um curso de esteticista, entre outras coisas em sua terra natal, Porto Alegre.

Yves sorriu e disse que, além das suas convicções políticas, ela tinha sido escolhida para participar do MBN por ser a melhor atiradora com armas de fogo que ele já conhecera e, também, pelos seus dotes eséticos. Tinha dúvidas quanto aos seus dotes culinários.

A roupa que a Doutora Irene iria vestir na filmagem foi comprada em outro estado. Camisa branca de manga comprida, jeans, meias de algodão brancas e um tênis

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Nike rosa claro comprado por Yves no melhor shopping da cidade.

Doutora Irene, mesmo bastante estressada emocionalmente, procurava não demonstrar seus verdadeiros sentimentos a Yves ou a Gilda. Ao contrário. Após as demonstrações olímpicas de tiro, tendo seu filho como alvo, resolveu fazer o jogo de Yves e, no processo, preservar a vida de seu filho e a sua. A comida caseira de boa qualidade, seu cavalo e os livros ajudaram-na a se equilibrar novamente.

Yves queria vê-la bem disposta, alegre e bastante descontraída. Doutora Irene já tinha lido a mensagem que lhe fora escrita pelo MBN uma dezena de vezes e achou que já a tinha memorizado.

Yves foi bastante claro e relembrou que desde o primeiro instante de sua chegada ao Clube fora notificada que este momento chegaria. Já era tempo para a mensagem sair naturalmente, e tudo aquilo era, de fato, como um teste para atriz principal em uma peça de teatro. Recomendou que ela teria que dar o máximo de si para poder conquistar o desejado papel e que no final da apresentação viriam os aplausos.... viria a continuação da vida.

Irene já não argumentava mais com Yves. Obedecia suas ordens ou até dava sugestões tais como onde deveria ficar no momento da filmagem.

Depois de tomar um copo de água sem gelo, ela disse que estava pronta, e Yves começou a filmá-la com a luz natural vindo de uma janela aberta e do teto de vidro, transparente, em cima da cama. Irene sentou-se em uma cadeira de balanço ao lado da cama e começou a interpretar com perfeição o seu papel de atriz e executiva milionária.

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No fundo do quarto via-se uma TV ligada, com o volume quase inaudível, dando o noticiário nacional ao vivo do meio dia de 20 de outubro de 2003.

Após a interpretação, perfeita, da Doutora Irene, Yves agradeceu-a pela colaboração e esforço dizendo que ela, com certeza, ganhara o papel da atriz principal.

Despediu-se da atriz dizendo que iria iniciar, imediatamente, as negociações com seu filho e a VÊNUS e que logo ela estaria em casa para retomar suas atividades.

Yves recomendou a Gilda que o esquema de vigiar o Clube continuaria o mesmo. Disse que retornaria em breve e seguiu para São Paulo para editar, em seu estúdio, as imagens do cartão de memória de sua filmadora digital em um DVD.

No outro dia de manhã, embarcou em um avião comercial para Porto Alegre. Lá chegando, tomou um taxí e foi para uma agência dos Correios, no centro, e despachou via SEDEX ESPECIAL o DVD, editado, para o escritório da VÊNUS em São Paulo aos cuidados de Antônio.

Retornou no mesmo dia.

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A primeira mensagem

– Vocês aí da VÊNUS devem estar preocupados com o que aconteceu comigo, onde estou e como estou passando no presente momento. Agora não quero entrar em detalhes dos eventos que já passaram, mas sim dos que vão acontecer a partir do momento em que vocês receberem este filme. Para tanto, peço-lhes que retirem da sala, imediatamente, o nosso pessoal da segurança, negociadores e, também, a polícia que com certeza foi chamada por vocês. Não quero a polícia envolvida nisso oficialmente, muito menos extra-oficialmente. Favor colocar uma pausa no filme até que todos saiam da sala. Somente quero que assistam ao resto do filme o meu filho Antônio, Dr. Moisés e Sr. Júlio.

– Já saíram??? Estou aguardando!!

A Doutora Irene fica sorrindo para a câmara por alguns minutos sem dizer uma palavra como se estivesse esperando os indesejados a saírem mesmo da sala.

– Ok!. Vamos lá. Estou aguardando.

Na sala, além de Antônio, Dr. Moisés e Júlio, estavam dois diretores da RELEASE, Mr. Irwing Rosenberg e Mr. Edward Lloyd. O Sr. Rosenberg era um ex-coronel, aposentado, do exercito israelense, e o Sr. Lloyd, também com credenciais militares, foi da Royal British Air Force. A empresa fora contratada, anteriormente,

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pela VÊNUS para intermediar as negociações do resgate com os seqüestradores.

Até o presente momento não tinham conseguido quase nada em suas averiguações, a não ser começar uma investigação sobre os funcionários que trabalhavam nas quatro residências da Doutora Irene em diversos locais do Brasil. Concentravam as investigações na Fazenda Limoeiro e com os próprios seguranças da VÊNUS, inclusive um que estava com ela no dia do seqüestro e iriam, também, investigar outros funcionários da VÊNUS. Já tinham descartado o envolvimentos dos pilotos.

Antônio colocou em pausa o DVD que passava o filme na TV e pediu para os dois que saíssem da sala e que assim que terminasse de ver a mensagem de sua mãe os chamaria de volta.

Os senhores Rosenberg e Lloyd, sob protesto, disseram que era um erro, muito grave, tirá-los da reunião e que eles estavam ali justamente para orientá-los nas investigações e intermediação com os seqüestradores. O intermediador israelense reclamou que Antônio estava fazendo o jogo dos seqüestradores e que a RELEASE não poderia ser responsabilizada caso algo de ruim acontecesse com a Doutora Irene.

– Vocês estão nos privando de informações vitais para nossas investigações, disse Mr. Edward.

Dr. Moisés abriu a porta, e os dois, ainda reclamando, foram convidados a saírem da sala de Antônio. A secretária os direcionou para outra sala de reunião onde ficaram aguardando.

Antônio liberou a pausa do DVD novamente e continuaram a ver o filme.

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– Depois eu vou ficar sabendo se somente vocês três ficaram na sala.

– Agora, o importante é vocês saberem que estou bem e com muita disposição de viver, por isso, depois que conheci os senhores aqui presentes e seus objetivos, tomei algumas decisões que vou elucidar da melhor maneira possível:

Primeira: como acionista principal e presidente da Holding que controla todas as empresas do grupo VÊNUS e como é o meu dinheiro que terá que ir parar nas mãos desses senhores aqui do outro lado, tomei a iniciativa, de livre e espontânea vontade, de eu mesma negociar com eles o preço de minha liberdade e também algumas condições de pagamento. Essa é uma regra nova para mim e para vocês. Esqueçam quaisquer outras opções.

Segunda: nenhum de vocês estão autorizados a copiar, mostrar e/ou divulgar este filme para terceiros. Eu estou pedindo a vocês que executem minhas ordens via este filme.

Estou cem por cento certa de que esta é a melhor forma e a de menos risco para todas as partes acabar logo com esta situação. Vocês podem achar que o meu caso é um outro Síndrome de Estocolmo, mas não é nada disso. É simplesmente um imprevisto que não estava orçado nos nossos planos financeiros, mas teremos que resolvê-lo de uma forma ou outra. Ou como dizem nos filmes americanos (It’s just business). Ou seja, a minha vida por dinheiro ou dinheiro por uma vida, tanto faz... E, como dinheiro eu tenho bastante e vida somente uma, o negócio foi fechado de comum acordo com os senhores aqui presentes em 20 milhões de dólares, os quais serão pagos por vocês em quatro parcelas de 5 milhões cada uma. A última

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parcela de 5 milhões de dólares terá que ser em reais, câmbio do dia.

Os detalhes da entrega, dias e locais, serão combinados em breve. Portanto, a partir desse momento, minha vida depende mais de vocês três do que desses senhores aqui presentes.

No próximo contato, vocês receberão as condições e já podem, imediatamente, ir arrumando a quantia total exigida e separá-la em quatro lotes.

É importante lembrar que a única maneira de esse negócio dar certo é justamente seguir minhas instruções ao pé da letra e não fazerem absolutamente nada estranho ao que eu pedir, tais como anotar número e séries das notas do dinheiro a serem pagos ou ainda colocar dispositivos eletrônicos ou químicos nas embalagens do dinheiro para que os receptadores possam ser seguidos ou qualquer outro meio usado por especialistas da área. O que acabei de mencionar é coisa do passado ou para outros que querem colocar a vida de alguém em risco. Eu já cheguei no limite dos riscos, daqui para frente decido eu a minha segurança e liberdade.

Para que não haja confusão entre outros grupos e ou pessoas que queiram tirar vantagem dessa situação, sempre mandarei um filme ou um bilhete atualizado para que vocês estejam seguros que a ordem partiu de mim, que estou bem e que estarei aqui esperando vocês executarem tais ordens. Isso feito, ambas as partes desse negócio estarão protegidas, e eu voltarei para casa o mais breve possível.

Na próxima quinta-feira, dia 23 de outubro, quero ler em dois jornais de grande circulação de Porto Alegre, na seção de mensagens pessoais o seguinte anúncio:

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I LOVE YOU IRENE. VOLTE PARA CASA LOGO.

Não é necessário dizer que caso o anúncio não for publicado esta é a última vez que vocês ouvirão minha voz.

Quero, também, que vocês comprem um celular com um número novo para cada um de vocês e que somente vocês três tenham esses números. Memorizem esses números, OK? Daqui para frente estão proibidos de usarem os antigos celulares, telefones comerciais e residenciais para falar sobre mim e do assunto aqui tratado ou de futuras mensagens. Se precisarem discutir sobre esse assunto, entre vocês, façam pessoalmente ou usem os novos celulares. Em breve, eu também falarei com vocês nesses novos números.

Beijos e até breve.

Os três diretores da VÊNUS ficaram mudos por uns segundos e em comum acordo decidiram repassar o filme novamente para poderem, então, começarem a definir o que deveria ser feito. Após verem o filme três vezes seguidas, não havia mais dúvidas de que a mensagem era autêntica e que a pessoa do filme era mesmo a Doutora Irene Fontoura, a poderosa e milionária dona do grupo VÊNUS, mãe de Antônio e patroa dos outros dois diretores de um dos maiores grupos financeiros do país.

Após discussões, chegaram à conclusão que a mensagem poderia mesmo ser uma iniciativa da Doutora Irene com algumas restrições dos seqüestradores, já que o estilo da Doutora era de

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dominar uma reunião e sempre ela mesmo definir os padrões e quantias nos negócios importantes do grupo VÊNUS. Via-se aqui um padrão conhecido de seu comportamento.

Por outro lado, os três se perguntaram se os seqüestradores sabiam desse perfil autoritário e dominante da Doutora Irene. Em qualquer das hipóteses, chegaram à conclusão que seria melhor seguir as instruções do filme, já que as outras alternativas estavam proibidas quer seja pela Doutora Irene ou pelos seqüestradores e/ou ambos juntos.

Marcaram uma reunião para as oito horas do próximo dia para discutirem sobre o valor total do resgate, a maneira mais rápida e segura de conseguir tão enorme quantia em dinheiro vivo e o tempo que levariam para conseguir tal quantia.

Antônio recomendou aos dois outros diretores da VÊNUS o máximo de sigilo, isso também valia para suas esposas e filhos e ambos não estavam autorizados a comentar sobre as negociações com nenhum dos outros diretores.

Pediu ao Dr. Moisés para dispensar, por enquanto, os dois negociadores da RELEASE pedindo por favor para dizer-lhes que iriam chamá-los de volta, assim que tomassem uma decisão sobre a mensagem recebida hoje.

No fim do dia, Antônio chamou sua secretária e pediu para cancelar todos os compromissos até segunda ordem.

Ao sair do escritório não se sentiu à vontade para ir até a casa de Cristina, sua namorada, com quem havia combinado previamente um jantar. Antônio a

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chamou e sem dar o motivo verdadeiro cancelou o jantar.

Foi direto para seu apartamento, dispensou os seguranças e ligou a TV sabendo que teria uma longa noite pela frente.

Levara o DVD para casa e sozinho tentava descobrir alguma mensagem dirigida somente para ele ou qualquer outra mensagem mesmo que não aparente, mas embutida no contexto do filme.

Não conseguia ver outras opções, a não ser de que sua mãe realmente falara aquilo por livre e espontânea vontade, indicando que já tinha negociado sua futura liberdade com os seqüestradores ou que ela interpretara uma mensagem pré-escrita pelos seqüestradores.

Revendo o filme dezenas de vezes, ele não percebeu que ela estivesse lendo ou ouvindo alguém lhe ditar qualquer texto.

No meio da madrugada, telefonou para sua tia Angélica, irmã mais velha de Irene, e perguntou se sua mãe tinha feito algum curso em escola ou faculdade ligada às artes dramáticas, ou se sua mãe fizera parte de alguma peça teatral quando solteira ou mesmo logo após ter se casado.

Angélica, sem saber do que se tratava, respondeu que Irene nascera para ser uma atriz e que somente não foi porque se casara, muito jovem. Talvez depois de passar mais algum tempo do terrível acidente que ceifara a vida do seu pai, Irene teria mais liberdade e poderia seguir, se quisesse, o estrelato. – Por enquanto ela está advogando e muito bem não é?

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Mas se pensarmos bem a advocacia é uma forma de teatro, certo?

Antônio agradeceu, não entendeu nada do que sua tia, a espacial, tentou lhe falar e continuou a ver a mensagem que sua mãe lhe enviara até cair no sono com a TV ligada.

Foi acordado às sete e trinta pelo segurança que o aguardava na garagem do prédio.

Durante o percurso entre seu apartamento até os escritórios da VÊNUS, Antônio ia pensando sobre os eventos do dia anterior. Sentia que não tinha mais dúvidas de que a melhor opção, com respeito às negociações do seqüestro, seria executar as ordens de sua mãe instruídas no DVD que levava em sua pasta de negócios.

No carro, torcia para que tudo desse certo e que essa decisão seria a mesma que sua mãe tomaria caso fosse ele o seqüestrado.

Logo pela manhã, os três executivos da VÊNUS se reuniram na sala de Antônio e discutiram novamente sobre o seqüestro.

Unanimemente, concordaram que continuariam a seguir as instruções recebidas no filme.

Antônio pediu ao Dr. Moisés e ao Sr. Júlio que, em três dias úteis, queria o dinheiro disponível na sua sala.

Dr. Moisés e Sr. Júlio contataram seu banco e corretoras de valores e ordenaram que conseguissem em dinheiro vivo a quantia de 15 milhões de dólares e o equivalente a 5 milhões de dólares em Reais, usando o câmbio do dia com margem favorável ao

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Real. Ficou decidido que o Dr. Moisés cuidaria do anúncio no jornal e o Sr. Júlio ficaria responsável pela coleta do dinheiro.

Júlio, como diretor financeiro da VÊNUS, tinha o know how de como agilizar tal operação sem, entretanto, dizer o motivo de tanto dinheiro vivo aos demais diretores e funcionários que estariam encarregados de providenciar a enorme quantia.

Antônio lembrou que, se ele precisasse assinar algum documento, estaria à disposição.

Juntar essa enorme quantia em um curto espaço de tempo parecia um tarefa bastante difícil, mas não impossível já que algumas das empresas do grupo VÊNUS operavam no mercado financeiro, tais como bancos, financiadoras, seguradoras e corretoras de valores.

Dr. Moisés chamou pessoalmente os jornais de Porto Alegre e colocou o anúncio tal como mandara a Doutora Irene. Pediu aos jornais para colocarem os anúncios em negrito. Ele ainda continuava ruminando todas as informações contidas no filme e acreditava que, para segurança da Doutora Irene, era melhor mesmo seguir as instruções dadas no filme.

A polícia ficou sabendo, extra-oficialmente, sobre o seqüestro da Doutora Irene pelo segurança que dava cobertura a ela no dia de seu seqüestro. Careca comentou com outros seguranças, alguns deles ex-policiais como ele, que no momento também trabalhavam para o grupo Vênus.

No mundo dos informantes, pagos pela polícia, todos estavam cegos e surdos. Ninguém viu, ninguém ouviu, ninguém sabia absolutamente nada.

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Antônio, seus familiares e a VÊNUS não registraram nenhuma ocorrência policial sobre o seqüestro.

Ao contrário, no próximo dia ao do seqüestro foi distribuído um press release da assessora de imprensa do grupo VÊNUS dizendo que Doutora Irene tinha ido para o exterior fazer um tratamento de saúde.

Na nota, não havia informações sobre o País para onde ela viajara ou a data de seu retorno.

A RELEASE, por força contratual, não podia dar ou pedir nenhuma informação à polícia a não ser com o consentimento da VÊNUS.

Com a polícia e os intermediadores fora das negociações, ficaram somente os três executivos nomeados pela Doutora Irene capitaneados por Antônio.

Recentemente formado em Administração de Empresas pela Fundação Getúlio Vargas e empossado como Vice-Presidente da Holding VÊNUS, Antônio herdara do pai e da mãe a habilidade natural de administrar e comandar o grande império financeiro que um dia seria seu. Apesar de ter somente 25 anos, era um competente administrador, extremamente hábil e inteligente.

O jovem administrador estava bem assessorado pelo Dr. Moisés e pelo Sr. Júlio e seguia administrando da melhor forma possível os negócios da VÊNUS, enquanto aguardava a próxima mensagem de sua mãe como prometido no filme.

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No dia 31 de outubro, antes da dez horas da manhã, o moto-boy dos Correios e Telégrafos entregou um pacote endereçado ao Grupo VÊNUS, aos cuidados de Antônio. O pacote fora postado, via SEDEX, na manhã do dia anterior na cidade de Goiânia.

A secretária de Antônio o comunicou, imediatamente, que havia chegado um SEDEX de outro Estado em seu nome. Antônio já a havia instruído que qualquer encomenda em seu nome só poderia ser aberta por ele, pelo Dr. Moisés ou Sr. Júlio.

Chamou os outros dois diretores em sua sala e abriu o envelope. Notou que o envelope tinha as mesmas características do envelope anterior com a primeira mensagem da Doutora Irene.

Dentro do envelope, estava outro DVD que logo foi colocado na TV por Antônio.

A segunda mensagem

– Como vocês estão vendo eu estou bem e continuo com muita disposição de voltar logo para casa. Obrigado pelo anúncio no jornal e vamos continuar o plano já combinado. No próximo sábado, dia 1º de novembro, vocês entregarão a primeira parcela de 5 milhões de dólares.

A ordem é a seguinte:

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Dois de vocês, Dr. Moisés e Sr. Júlio terão que conseguir um automóvel Gol 2003, cor branca, modelo popular, sem alarmes e ou quaisquer outros dispositivos contra roubo.

Coloquem o dinheiro no porta malas preparado da seguinte maneira:

Cada maço de dinheiro deverá ter 10.000 dólares enrolados com elásticos. Fazer cinco pacotes de 1 milhão cada um. Os pacotes deverão ser enrolados em plástico branco transparente e colado com fita adesiva branca transparente.

Isso feito colocar os pacotes, totalizando os 5 milhões dentro de uma sacola de nylon preta. Nada mais além dos pacotes com o dinheiro deverá estar na sacola, não importa o volume.

No dia 1º de novembro, vocês dois terão que vestir calça e camisa branca, tipo médico. Os sapatos também deverão ser brancos. Não usem óculos escuros ou nenhum tipo de chapéu. Não levem com vocês ou no carro nenhum tipo de celular, page, escuta ou rádio.

Às 11:30h da manhã, vocês dois deverão entrar no estacionamento da lanchonete situada na Av. Rebouças, esquina com Henrique Shaumann. Estacionem o carro e levem as chaves com vocês para dentro da lanchonete. Peçam um lanche, procurem uma mesa e aguardem.

Boa sorte, até breve e beijos. Eu estou bem por aqui.

A Doutora Irene ficou sorrindo para a câmara por uns segundos e pegou um jornal que estava em uma mesinha ao lado de sua cadeira e começou a ler. O

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jornal é um dos maiores em circulação no Brasil. A imagem foi mostrada de diversos ângulos e, descontraída, sem se incomodar com a filmagem, Doutora Irene continuou a leitura até o momento que a câmara deu um close-up na primeira página onde, claramente, se via impresso a data de impressão da circulação do jornal.

Quarta feira 29 de outubro de 2003.

Os três executivos reviram o filme pelo menos três vezes antes de decidirem que este era autêntico e que realmente a pessoa que mandara a mensagem era mesmo a Doutora Irene. Acharam aquilo tudo muito complicado e arriscado e gostariam de terem outras opiniões.

Dr. Moisés lembrou que estavam proibidos de discutir o assunto com outras pessoas e desde a primeira mensagem recebida já tinham se comprometido, entre si, de ir adiante com as exigências dos seqüestradores e, por força das mensagens do filme, acatar as ordens da Doutora Irene.

Decidiram que a melhor saída era mesmo seguir as novas instruções.

Antônio disse aos outros dois executivos que com certeza ele fora poupado dessa tarefa porque era o Vice-Presidente do grupo e filho da seqüestrada e, se por ventura saísse algo errado, ele teria que reparar os erros.

Na sexta-feira, no fim da tarde, Antônio preparou o dinheiro tal como as instruções recebidas de sua mãe e levou os 5 milhões de dólares para o seu apartamento. Requisitou três seguranças e pediu a um deles que dormisse na sala, sem contar-lhe qual

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era o conteúdo da sacola ou por que ele teria que dar plantão a noite toda.

No sábado de manhã, antes do Sr. Júlio e Dr. Moisés chegarem ao apartamento, Antônio já havia dispensado o segurança.

Os executivos chegaram vestidos de branco.

Antônio não se conteve e para descontrair o nervosismo dos três, brincando, perguntou o que eles eram, médicos ou enfermeiros?

Dr. Moisés respondeu antes de Júlio e disse que não eram nem uma coisa nem outra. Possivelmente alvos de terroristas acostumados a atirarem em coisas brancas.

Antônio tentou tranqüilizar os dois e lhes assegurou que tudo sairia bem se as instruções de sua mãe fossem seguidas corretamente. Ficou com os celulares dos dois e lhes desejou boa sorte. Se algo desse errado, era para um deles lhe telefonar imediatamente de um lugar qualquer para o seu novo celular.

Como o apartamento de Antônio era próximo da Av. Rebouças, os dois executivos saíram para o rendez-vous dez minutos antes da hora pré-marcada.

Enquanto o Sr. Júlio e Dr. Moisés seguiam para o encontro, Antônio permaneceu fechado no seu apartamento à espera das notícias. O que mais o preocupava eram os pensamentos negativos e até preocupantes que passavam pela sua mente, tais como:

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Por um azar incrível serem roubados enquanto transportavam o dinheiro. Ou em caso de congestionamento no trânsito chegarem atrasados ao encontro. Ou um acidente envolvendo o carro deles ou até mesmo a polícia fazendo comando nas ruas e eles terem que abrir a sacola, se identificarem, explicarem o que estavam fazendo com uma sacola contendo cinco milhões de dólares. Essas possibilidades em sua imaginação o deixavam mais nervoso do que a própria demanda dos seqüestradores.

Às 11:30h, em ponto, entraram no estacionamento da lanchonete e encontraram, facilmente, um espaço para estacionar. A lanchonete ainda não estava recebendo o grande fluxo de clientes que começa a chegar após o meio dia. Um pouco nervosos e desajeitados com o novo uniforme, foram direto para o balcão da lanchonete e pediram dois hambúrgueres, fritas amigas e Coca-cola.

Não esperaram muito e já havia outros clientes atrás deles na fila do caixa, na maioria jovens e mulheres com crianças, todos decidindo o que iriam lanchar.

Após pagarem, em dinheiro, pelo lanche pedido sentaram-se em uma mesa no piso térreo.

Dr. Moisés e Júlio não conseguiram comer seus lanches acompanhados das amigas fritas. Conversavam em voz baixa e para não atraírem muita atenção, apesar do nervosismo, não ficaram olhando para todos os lados como se estivessem esperando alguém. Restringiram-se a tomar suas Coca Colas geladas enquanto aguardavam por algum acontecimento.

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Uma senhora, com uma criança de colo, que aparentemente acabara de tomar um lanche, ao passar ao lado deles derrubou sua bolsa e Júlio mais que depressa tentou ajudá-la. Esta muito sorridente reclamou que quando está com o filho no colo é difícil prestar atenção em tudo. Agradeceu-o e disse com uma voz calma e suficientemente baixa para que outras pessoas de outras mesas não a ouvissem.

– A Doutora Irene lhes enviou um envelope, que foi colocado no pára-brisa de seu Gol branco no estacionamento. Por favor, esperem cinco minutos após minha saída e dirijam-se para o seu carro.

Agradeceu a gentileza, disse até logo, e saiu pela porta da frente sem se voltar para trás, entrando em um taxi especial que a esperava um pouco à frente da lanchonete.Os dois terminaram seus refrigerantes, sempre olhando para os relógios, e saíram em direção ao estacionamento assim que os cinco minutos se passaram.

Lá chegando, notaram que havia um panfleto de imobiliária no pára-brisa do Gol e, no meio deste, um envelope. Entraram no carro, e Júlio abriu o envelope onde havia um bilhete escrito à mão com letra e assinatura da Doutora Irene.

Júlio começou a ler o bilhete, em voz alta, com as mãos trêmulas.

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O primeiro bilhete

Por favor, saiam da lanchonete agora e dirijam-se para o Motel Gay’s Haven na Rodovia Raposo Tavares KM 17, sentido capital interior. Após se identificarem na portaria, digam que estão com a suíte 24 reservada em nome do Dr. Moisés Farias. A suíte já esta paga. Ao entrarem na garagem da suíte, deixem a chave no contato e sacola com o dinheiro no porta malas, abaixem o toldo da garagem. Dirijam-se para a suíte, fiquem lá dentro, tranquem a porta e esperem novas instruções minhas. Creio que não é necessário dizer que tudo isso aqui combinado continua no mais absoluto sigilo como anteriormente.

Até breve.

Assinado: Irene Fontoura

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Quando Júlio terminou de ler a mensagem, Dr. Moisés já dava partida no Gol perguntando que horas eram.

– São doze e dez, respondeu Júlio que começara a ler novamente o bilhete para se certificar do nome e endereço do Motel.

Dr. Moisés colocara o carro em marcha e se dirigia para a saída da lanchonete, em direção à Rodovia Raposo Tavares. Nervoso, olhava no retrovisor do carro para ver se estavam sendo seguidos por alguém.

O caminho lhe era familiar, uma vez que mensalmente ia até o seu sítio em Ibiúna pela mesma rodovia.

– A assinatura, sem dúvida, é a dela, disse Júlio, e espero que a entrega desse dinheiro seja resolvida no Motel, pois se tivermos de sair de lá para outro encontro vou ter um infarto.$ 5.000.000,00 de dólares

Ao chegarem no Motel, Dr. Moisés deu seu nome e sobrenome dizendo à recepcionista que tinha a suíte número 24 reservada.

A recepcionista, com um olhar malicioso, pediu um documento de identidade e lhes passou a chave da suíte dizendo que a reserva estava paga até às 18 horas com direito a almoço. Caso eles ficassem após às dezoito horas teriam que pagar outra diária. Deu-lhes informações para chegarem até a suite, a chave e instruções de como o serviço de bar e restaurante funcionava.

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Os dois executivos agradeceram e dirigiram-se para suíte.

Dr. Moisés estacionou o Gol dentro da garagem da suíte, deixando a chave no contato e a sacola com o dinheiro dentro do porta-malas, seguindo as instruções dadas. Após se certificarem que ninguém os via, baixaram o toldo da garagem e imediatamente subiram uma pequena escada até a suíte. Entraram e fecharam a porta com a chave.

Na suíte, entreolhavam-se em silêncio sem saber sobre o que falar, o que iria acontecer e como iria terminar o desfecho da primeira parcela da entrega do dinheiro.

– Será que ficaremos, também, sem o carro, além do dinheiro? especulou Júlio.

– Tudo é possível, confesso que não tinha pensado nessa possibilidade, respondeu Dr. Moisés. Vamos esperar e ver o que acontece.

Após cinco minutos de espera, que pareceram uma eternidade, a campainha da janela giratória de serviços tocou.

Júlio que estava mais próximo do telefone atendeu pensando que era o interfone ao lado da cama. Foi quando notou que a luz da janela giratória de serviços acendeu-se e que som da campainha viera de lá.

A janela tinha acabado de girar, ficando com o lado aberto exposto para dentro da suíte. Na pequena bandeja fixa da janela estava outro envelope com um bilhete em nome de Dr. Moisés e Júlio.

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O envelope era subscrito à mão e a letra parecia muito a da Doutora Irene.

O segundo bilhete

Escrevam no verso desse bilhete, agora, os números dos três celulares novos que vocês adquiriram recentemente. Coloquem o bilhete dentro do envelope novamente e coloquem-no de volta na bandeja da janela giratória. Isso feito, liguem a TV em um volume bem alto e escolham algo do cardápio para duas pessoas. Peça ao restaurante para servirem os dois almoços às 14:30h.

Só saiam da suíte após terminarem as refeições.

Assinado: Irene Fontoura

Júlio e Dr. Moisés rapidamente seguiram as instruções e concordaram que a melhor coisa a fazer, no momento, era mesmo chamar o serviço de restaurante apesar de nenhum deles estar com fome.

Dr. Moisés pediu que Júlio lhe passasse o cardápio e depois de lê-lo rapidamente comentou que o menu da

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Gaiola dos Gays pelo menos tinha boas opções culinárias.

– Eu vou pedir um filé mignon ao ponto com salada de palmito de pupunha e água mineral com gás disse passando o menu para Júlio. Veja o que você quer pedir.

Júlio achou graça do comentário e após analisar o menu rapidamente disse que queria um filé de badejo com legumes e suco de acerola.

Ligou pelo interfone no ramal de serviços e fez o pedido para as duas refeições, dizendo que queriam ser servidos às 14:30h. Não se contendo, perguntou se ele podia ligar da suíte para fora do Motel e se alguém tinha deixado algum recado para eles.

A garçonete após anotar o pedido para os dois almoços lhes respondeu que era só discar o número nove, aguardar sinal de linha e depois o número desejado e que não havia nenhum recado para eles. Júlio agradeceu e desligou o telefone. Logo a seguir perguntou ao Dr. Moisés se era uma boa idéia ligar para o Antônio no telefone do Motel e lhe dizer o que estava ocorrendo.

Dr. Moisés respondeu, mais do que depressa, que era uma péssima idéia, pois os seqüestradores poderiam estar ouvindo na extensão, além do quê as instruções da Doutora Irene eram de comentar sobre o assunto só pessoalmente ou pelos novos celulares que no momento não estavam com eles.

– É melhor falar com o Antônio mais tarde em seu apartamento. Você já fez a bobagem de perguntar se tinha algum recado com a recepcionista. Isso não

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estava nos planos e é melhor daqui para frente pensar duas vezes antes de tomar qualquer decisão não combinada previamente.

– Você tem razão, desculpou-se Júlio, ao mesmo tempo que ligava a TV para passar o tempo e descontrair-se.

Os dois estavam ainda muito nervosos com todo o desenrolar dos acontecimentos dramáticos dos últimos dias.Após uma longa espera, vieram as refeições.

Eles foram alertados, novamente, pela campainha da janela giratória. Dessa janela não dava para ver quem estava do lado de fora e nem a pessoa de fora podia ver quem estava dentro da suíte. Esse era um sistema seguro que dava privacidade aos clientes do Motel. Para acessar a janela o garçom teria que vir pela garagem e a única coisa que via era o carro estacionado.

Pela janela giratória, passavam as refeições, serviços de bar e agora bilhetes.

– Alguns laboratórios de análises clinicas também usam o mesmo sistema de privacidade, disse Júlio ao Dr. Moisés enquanto se sentava em uma pequena mesa redonda de vidro para almoçar.

– Com nós dois aqui dentro vestidos de médicos, parece mesmo que estamos em uma clínica, comentou Dr. Moisés que também se sentou e começou a cortar o seu filé mignon.

Não pediram sobremesa e de comum acordo resolveram ir ao encontro de Antônio já que tudo tinha corrido bem e já passava das 15:30h.

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Desceram a escada da suíte e se dirigiram ao Gol que permanecia no mesmo lugar onde tinham estacionado.

Dr. Moisés abriu o porta-malas do Gol para certificar-se que a sacola com o dinheiro tinha sido levada.

– O dinheiro se foi, mas deixaram a sacola, comentou Dr. Moisés um tanto aliviado. Fechou-o e pediu a Júlio para levantar o toldo da garagem e entrar no carro.

Ao saírem, entregaram a chave da suíte à recepcionista. Dr. Moisés, por força de costume e com um rápido raciocínio de advogado, pediu um recibo. – Poderei vir a precisar dele mais tarde, pensara.

A recepcionista disse que o recibo já tinha sido entregue aos seus colegas médicos do Hospital que saíram uma meia hora antes. Eles já tinham pago a conta antecipada, ontem à tarde, quando chegaram para a noite de núpcias. – Disseram-me que hoje iriam para Porto Alegre em lua de mel. Voltem sempre disse a recepcionista, sorrindo aos dois médicos.

Júlio não se conteve e disse ao Dr. Moisés:

– Agora todos vão pensar que além de sermos médicos somos também gays.

– Isso não importa, respondeu Dr. Moisés, pelo menos tudo correu bem e terminamos o primeiro round. Vamos relatar ao Antônio tudo o que ocorreu no Mac Donalds e no Motel.

Depois é só aguardarmos o próximo round. O importante é que a Doutora Irene continua viva.

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Saíram do Motel e entraram na Rodovia Raposo Tavares rumo a São Paulo. O fluxo do trânsito na rodovia não estava carregado como de costume e logo chegaram ao Butantã, em seguida atravessando a ponte Eusébio Matoso e de lá dirigiram-se, então, para os Jardins onde morava Antônio.Esse os recebeu com um forte e tremido abraço, não conseguindo esconder seu nervosismo. Assim que fechou a porta da sala, foi logo perguntando os detalhes do encontro na lanchonete.

Dr. Moisés perguntou a Júlio se ele queria relatar os fatos.

Júlio agradeceu e sugeriu que seria melhor o advogado falar, pois tinha o melhor domínio da palavra e poderia descrever os fatos ocorridos na lanchonete e no motel com mais detalhes.

– Que história é essa de Motel? perguntou Antônio.

– Sente-se, por favor, disse Dr. Moisés, delicadamente, a Antônio.

Pediu a Júlio que servisse algo para os três beberem. Para ele poderia ser um Buchanan’s dezoito anos com gelo.

– Acho que vou precisar de um, também, disse Antônio.

Enquanto Júlio preparava os drinks, Dr. Moisés começou a relatar, calmamente, os fatos ocorridos desde o momento que entraram na lanchonete até o momento em que saíram do Gay’s Haven Motel.

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Dúvidas

Após ouvir o relato completo que durou mais de meia hora, Antônio ficou calado, pensativo por uns segundos, e olhando bem nos olhos do Dr. Moisés, perguntou:

– Você acha que o que estamos fazendo é a decisão certa?

– Como assim? perguntou Dr. Moisés.

Antônio tentou ser mais específico e adicionou.

– Nós fizemos a nossa parte. O dinheiro está pronto e não foi marcado com nenhum dispositivo de identificação. A mudança do local da entrega da primeira parcela foi opção deles. Por enquanto, tiramos os negociadores e conseqüentemente a polícia do caso. Mesmo que os nossos telefones estejam grampeados, pela polícia, já paramos de falar sobre o seqüestro nesses números. A polícia não sabe dos novos celulares em nome de terceiros que estamos usando, no momento, portanto não há muito que eles possam fazer e isso, hoje, nos dá mais liberdade de ação sem a interferência dos negociadores e da polícia.

– Sinceramente, com esses procedimentos, acredito que minha mãe corre menos risco de vida.

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Ontem e hoje recebi vários telefonemas, no meu celular, dos negociadores da Inglaterra e Israel. É a RELEASE pedindo para entrarmos em contato com urgência. Não sei se eles têm alguma informação para nós ou se é pressão contratual. Mandei um e-mail dizendo que você iria contatá-los na segunda feira.

Quando da assinatura do nosso contrato com a RELEASE, logo após o seqüestro, eles comentaram e, depois disso, aprendi a respeito, com outras fontes, que na maioria dos casos de seqüestro de pessoas milionárias ou de super executivos de grandes empresas a polícia começa a investigar o caso, para valer, após o pagamento do resgate e a libertação da pessoa seqüestrada.

Isso porque, se a polícia começar a se envolver e dar palpites durante as negociações com o seqüestro em andamento e os seqüestradores ficarem sabendo o que poderão ser presos antes de receberem o valor do resgate ou até mesmo no momento do pagamento, eles não tem outra opção a não ser descartar a vítima ou até mesmo a executá-la.

A polícia sabe desse risco, mas só param as investigações se a família ou os negociadores da família exigirem que saiam do caso.

Por outro lado, existem casos em que a polícia não é sequer comunicada. Não é feita nenhuma ocorrência e mesmo após a vítima ser libertada, depois do pagamento de resgate, a família, a própria vítima ou a empresa que emprega a pessoa seqüestrada ainda optam por não envolver a polícia.

Pelo que tudo indica estamos, por enquanto, indo nessa direção.

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Estudos e estatísticas mostram que esse tipo de comportamento, no Brasil, é resultado de comprovada corrupção na polícia e, principalmente, envolvimento, no passado, de policiais da polícia. No Mato Grosso do Sul, houve um caso em que policiais eram os próprios seqüestradores. A vítima foi executada, conhecia seus seqüestradores. Recentemente, aqui em São Paulo, houve um caso em Campinas que a segurança dos seqüestradores era feita por um policial.

No nosso caso, os seqüestradores podem terem dúvidas ou não qu`nto ao envolvimento da polícia nas negociações e entrega do dinheiro. Hoje tiveram uma prova de que a polícia está fora, já que tudo correu bem, ou seja, as instruções de minha mãe foram obedecidas, levaram o dinheiro e a polícia não apareceu.

Dr. Moisés respondeu:

– OK! Antônio, entendi o escopo de suas preocupações. Vou lhe dizer o que penso de toda essa situação, das nossas decisões e inclusive o que acho dos negociadores, principalmente, depois da entrega da primeira parcela do dinheiro.

Desde o começo deste drama e, principalmente, após termos recebido a primeira mensagem da Doutora Irene, optamos por um lado que daria aos seqüestradores quase todas as vantagens possíveis.

Isso porque o nosso único objetivo é a liberdade da Doutora Irene. E respondendo a sua pergunta inicial, a resposta é sim. Acredito que tomamos a decisão certa.

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Desconsidere quaisquer opções que poderiam ser, também, certas. Vamos nos concentrar que, agindo da maneira em que os seqüestradores nos ordenarem, teremos mais agilidade para terminar o quanto antes esse seqüestro.

Eles não querem ficar com ela indefinidamente, e nós também não queremos isto.

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A cartada máxima

Vou relacionar três exemplos de detalhes diferentes que pude observar a respeito dos seqüestradores.

Não vou incluir nesses exemplos a ação cinematográfica dos seqüestradores no dia do seqüestro simulando uma pane espetacular no avião deles que enganou a todos, principalmente nossos pilotos e o Careca. Os seqüestradores se comunicando entre eles, inclusive, em espanhol. O casal inglês convidado de sua mãe jura que o líder do grupo, apesar de falar com eles em inglês, era de fato francês. Ainda não calculei o investimento em dinheiro deles na ação. Nós já falamos muito sobre isso, logo após o ocorrido, mas é bom não esquecer a audácia e o profissionalismo dessas pessoas, sejam lá quem forem.

Primeiro:

Vocês se recordam do envelope com as exigências deixadas no local do seqüestro, no bolso do Careca e endereçado para nós? Pois é! Na lista das exigências só haviam dois itens. Lembram-se?

1 – Não avisem a polícia em hipótese alguma.

2 – A Doutora Irene Fontoura estará bem conosco, tratando de alguns negócios. Para segurança dela, é melhor vocês dizerem a todos que ela viajou para se tratar no exterior. Entraremos em contato brevemente.

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O papel que estava escrito as exigências tem uma espécie de marca d’água de um baralho com uma jogada de pôquer. A jogada é um Royal Straight Flush de ouro. Pelo que sei sobre pôquer, observei que era a jogada máxima do jogo.

Será que foi somente uma casualidade que o papel carta usado pelos seqüestradores tinha essa marca d’água, ou foi um recado que somente agora percebemos ?

– Meu Deus! Interrompeu Júlio, quase aos gritos dirigindo-se ao Dr. Moisés, tirando, ao mesmo tempo, do bolso o bilhete com as instruções para saírem da lanchonete e dirigirem-se para o Gay’s Haven Motel.

– Olha aqui! disse Júlio a Antônio e ao Dr. Moisés. Olha aqui! É a marca d’água do Royal Straight Flush.

Antônio e Dr. Moisés se levantaram para ver o bilhete com a marca d’água nas mãos de Júlio.

– Agora está confirmado o que eu estou tentando explicar para vocês, falou Dr. Moisés.

– Hoje no carro, enquanto dirigia e procurava o melhor caminho para chegar o mais rápido possível ao Motel, não prestei atenção no bilhete, muito menos vi a marca d’água, pois foi o Júlio quem abriu o envelope e o leu, em voz alta, para nós dois.

– Agora quem diz meu Deus! sou eu. Esse bilhete confirma minha teoria. Acho que é justamente isso que os seqüestradores estão fazendo conosco, falou Dr. Moisés a Antônio e Júlio. – Eles não mencionaram nada sobre a marca d’água, ou jogo de pôquer. É justamente essa a conclusão que

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eu estava chegando, hoje, após a entrega da primeira parcela do dinheiro e observar como eles operam.

Agora com este bilhete aqui está tudo confirmado. Os seqüestradores têm a jogada máxima em mãos.

– É a Doutora Irene, e nós não temos outra escolha a não ser pagar. Não existe mais espaço para blefar ou desistir do jogo. As cartas já estão na mesa.

– Se por acaso um dia, em um jogo de pôquer, vocês tiverem uma jogada dessa na mão, podem apostar até a mãe que com certeza irão ganhar. É óbvio que não quero ofender você, Antônio, mas essa é a expressão que jogadores usam numa mesa de pôquer quando se tem o Royal Straight Flush. Pelo menos era, nos meus tempos de faculdade, complementou Dr. Moisés.

– Ainda bem que concordamos em pagar o resgate à maneira deles.

Segundo:

A percepção, determinação e organização dos seqüestradores, no que diz respeito à data em que foram gravadas as mensagens da Doutora Irene é tanta que eles se anteciparam e forneceram uma prova de vida que eventualmente iríamos pedir. Por exemplo:

Na primeira mensagem que a Doutora Irene enviou dando suas instruções, ela aparece como o foco principal do filme. Agora se olharmos bem o filme vamos notar a TV, no fundo do quarto, ligada no noticiário nacional, ao vivo do meio dia, com o som baixinho. Eu já pedi uma cópia do noticiário para o

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canal 5 para termos a certeza. Na Segunda-feira, estará na VÊNUS.

Na segunda mensagem, o filme mostra a leitura da primeira página de um jornal com close-ups da sua data de publicação.

Terceiro:

Até hoje temos dúvidas se a Doutora Irene leu a mensagem, se ela a memorizou ou se falou de livre e espontânea vontade.

Esses três detalhes isolados, por si, provam que não estamos lidando com amadores iguais àquele que raptou a filha de um dos donos de uma rede de TV em São Paulo.

– O Júlio e eu, hoje, sentimos na pele a pressão das ordens dos seqüestradores, algumas delas achei até mesmo simplórias, como a do encontro na lanchonete. Um espaço quase que todo aberto onde se deu o primeiro encontro.

Mas se analisarmos bem, a lanchonete vive cheia de crianças. A mulher que nos passou o bilhete tinha uma criança no colo e em caso de um desfecho dramático, com a polícia, todos teriam que pensar três vezes antes de puxar uma arma e tentar prender alguém em um ambiente que na sua maioria são crianças.

No Motel, havia um espaço enorme, mas com diversos apartamentos privados, menos simplório diria eu. Agora só Deus sabe quantos deles estavam espalhados pelas diferentes suítes e desde quando. Se na Limoeiro eles eram mais de 20, imagine quantos viriam para o local onde seriam pagos em dólar.

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– Entendo a sua preocupação com os negociadores e pensei muito após dispensarmos o pessoal da RELEASE. Nós os contratamos justamente por ser a melhor empresa do planeta na área de negociar e resolver situações de seqüestros. A sua lista de sucesso é enorme, principalmente na Colômbia e México. O que o Júlio e eu fizemos hoje seria, entre outros, um trabalho para eles.

– Vejam bem! Até nisso, os seqüestradores se anteciparam e pediram que os tirássemos fora das negociações. Não disseram o nome da RELEASE, especificamente, mas sabiam que teríamos negociadores ao nosso lado.

– Do ponto de vista comercial para a VÊNUS o contrato com a RELEASE poderá ser cancelado a qualquer momento. Ainda não fizemos isso. Só pedimos a eles para se retirarem, por enquanto, das negociações. Essa atitude não está prevista em nenhuma das cláusulas do nosso contrato, mas não vejo aí grandes problemas jurídicos e ou financeiros.

A RELEASE, por outro lado, está fazendo um pouco de pressão, mas isso é compreensível. Esse é o métier deles e é da industria do seqüestro que ganham seu dinheiro.

Como qualquer outro tipo de negócio existem fórmulas protetoras para o mercado internacional de seguradoras que cobrem seqüestro.

Para economizarem o máximo possível em caso de terem um de seus segurados seqüestrados, foram criadas algumas fórmulas protetoras.

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Uma delas é contratarem empresas como a RELEASE cujo objetivo principal é negociar o valor inicial do resgate para o nível mais baixo possível aceito pelos seqüestradores.

Empresas como a RELEASE cobram uma porcentagem das seguradoras baseada entre o valor total da apólice do segurado, quando estipulado, e o valor de fato pago pelo resgate aos seqüestradores. Quanto mais a RELEASE diminuir o valor do resgate, mais ela ganha, e a seguradora, obviamente, mais economiza.

Dessa maneira, se tudo correr bem, a RELEASE tenta garantir que a pessoa seqüestrada seja entregue sã e salva e no desenrolar dos acontecimentos, às vezes, adquirem evidências e provas contra os seqüestradores que mais tarde são repassadas para a polícia e usadas contra os seqüestradores na justiça.

O nosso caso é um pouco diferenciado no que tange o valor do resgate e da pessoa seqüestrada.

No que se refere ao valor desse resgate, o mesmo já foi negociado e, como disse a própria Doutora Irene, felizmente temos muito dinheiro. Não estamos preocupados em rebaixar o valor do resgate ou com a seguradora, tanto porque a seguradora é uma das empresas controlada pela VÊNUS. Não ficaremos devendo nada a ninguém. – O Júlio se encarregará de como lançar este gasto inesperado.

Só nos resta, então, pagar o resto das prestações e aguardar a libertação da Doutora Irene.

Quanto ao perfil da pessoa que foi seqüestrada, Doutora Irene, cada dia que passa fica mais claro em minha mente que os seqüestradores a seqüestraram

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com plena convicção que ela era a pessoa certa para negociar seu próprio resgate, ou seja, ela sabe exatamente o que tem e quanto vale.

Caso fosse o Júlio ou até mesmo eu os seqüestrados, as negociações seriam completamente diferentes das que estamos agora engajados e aí sim a RELEASE estaria aqui no nosso lugar negociando.

Estou convicto que os seqüestradores a escolheram, de propósito, e essa maneira pode ser uma nova estratégia de eles agirem e quem sabe com ramificações colombianas, chilenas, argentinas ou até mesmo alguma organização terrorista árabe levantando fundos para suas causas políticas.

Em outras palavras. Os seqüestradores escolhem uma pessoa, que, além de ser milionária, tem que ser também a que tenha mais poder de decisão dentro da família ou na empresa. Descartam, de propósito, os filhos, netos, esposas ou os executivos de um grupo empresarial que tenham menos poder, apesar de terem algum dinheiro.

Fracamente acredito que se cumprirmos todas as instruções dos seqüestradores, estes não terão outra opção a não ser soltá-la.

É a lógica do jogo.

Se eles executarem a Doutora Irene ou qualquer outra pessoa seqüestrada, após os pagamentos do resgate, a notícia vai se espalhar e eles não poderão mais jogar com a vidas de outras pessoas que eventualmente planejam seqüestrar. Se isso acontecer ninguém mais paga e eles fecham a banca.

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– Concordo plenamente com os seqüestradores que estamos no meio de um jogo de pôquer e que alguém tem na mão um Royal Straight Flush e por cima, o naipe, é de ouro.

– É evidente que esse alguém não somos nós.

– Vamos pagar o resto das prestações e sair do jogo.

Célula C

Fernando arquitetava os planos para que a Célula C executasse o recebimento da segunda prestação de cinco milhões de dólares da VÊNUS.

Estava satisfeito com o desenrolar da primeira fase do plano quando receberam no motel Gay’s Haven Motel a primeira parcela de um total de vinte milhões de

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dólares negociados com a presidente do grupo VÊNUS.

A Célula C se comportara com perfeição na execução do recebimento indireto da primeira prestação.

– A VÊNUS, também, colaborou obedecendo as ordens de Irene, mantendo os negociadores e a polícia afastados do caso, continuou recapitulando Fernando.

Na lanchonete da Av. Henrique Schaumann, fizeram apenas um teste para ver se os dois executivos estavam sendo seguidos pelos seus seguranças ou se, previamente, esses tinham delatado o local da entrega para seus negociadores ou a polícia.

Desde as 9 horas da manhã, dois soldados homens e duas soldados mulheres, uniformizados, com camisetas brancas, calças azuis e bonés com a logomarca da Pinheiros Investimentos Imobiliários, estavam na esquina da Av. Rebouças entregando panfletos imobiliários para os motoristas obrigados a pararem quando do sinal vermelho nos semáforos da esquina. Dali tudo viam e observavam. Estavam armados somente com seus celulares clonados.Às onze horas, um par de soldados entrou com um Gol branco no estacionamento da lanchonete. Fecharam o carro, ligaram o alarme e se dirigiram para dentro da lanchonete. Os soldados estavam vestidos com roupa de médicos. Dr. Beto e Dr. Nagib pediram o lanche de frango com fritas e Coca-cola e sentaram-se no piso térreo em um canto, envidraçado, no fundo da lanchonete, ao lado da porta que dá para um terraço e para a avenida Henrique Schaumann. O local privilegiado servia para observarem o estacionamento, os carros que iam para o Drive Thru e a entrada de pedestres para a lanchonete.

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Às onze e trinta, Dr. Beto, que ainda não acabara seu lanche, recebera uma ligação no seu celular. A voz lhe era conhecida e falou:

– O casal de brancos estacionou no segundo lote e está se dirigindo para dentro. Aparentemente sem sombra alguma ...

Dr. Beto desligou o telefone e fez um sinal positivo ao Dr. Nagib que inspecionava todas as outras pessoas dentro da lanchonete. Procurava alguém com rádios, nos ouvidos, ou rádios disfarçados nos celulares. Não notara nada de anormal com a entrada dos dois médicos executivos se dirigindo para o balcão de pedidos da lanchonete. Dr. Nagib checou também os funcionários da lanchonete.

Naquele momento a lanchonete tinha um movimento abaixo do normal e era composta por clientes, na sua maioria, adolescentes e mulheres com crianças.

Dr. Beto tinha a tarefa de identificar se algum sombra seguia do lado de fora, particularmente no estacionamento, os dois médicos executivos enquanto o Dr. Nagib levantava as mesmas possibilidades dentro da lanchonete.

Quando os dois médicos executivos se encaminharam para o balcão de pedidos, Dr. Nagib se levantou e em outra fila resolveu pedir uma torta de maçã.

Quando se certificaram que a situação, dentro da lanchonete, estava sob controle e que os dois médicos executivos já estavam sentados tomando seus refrigerantes, Dr. Beto chamou, pelo celular, um de seus corretores imobiliários de semáforo para saber como estava o panorama no estacionamento e nas imediações.

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A resposta foi firme e clara:

– O dia está limpo e sem sombra. Vamos oferecer um imóvel para os médicos e pegar a estrada.

Dr. Beto desligou seu celular e, imediatamente, fez outra chamada para uma amiga, contratada, que se encontrava há poucos metros dele, terminando seu lanche. Quando a amiga atendeu o telefone celular, Dr. Beto falou em voz baixa:

– Marilene, faça o contato agora, o taxi já está na porta.

Da lanchonete para o Motel, os médicos foram seguidos de duas maneiras pelos soldados da Célula C.

Uma Van branca recolheu os corretores de semáforos e seguiu na frente do Gol pagador dos médicos executivos. Uma outra Van Sprinter da Lavanderia e Tinturaria Butantã, saiu do estacionamento, após a saída do Gol pagador e o seguiu a uma distância segura e discreta.

Logo atrás da Van, vinha o Gol branco dos soldados médicos Beto e Nagib.

Os soldados da Van Lavanderia estavam armados com pistolas Glok 23 com supressores atarraxados e em um baú de roupas sujas, levavam as armas automáticas AK 47 calibre 7.62 com cinco pentes de 30 tiros. Vestiam coletes à prova de balas, Espectra Shield nível II, debaixo de suas camisas. Se algo desse errado com a entrega da primeira prestação, eles estariam preparados para revidar qualquer tentativa de interceptação.

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Pelos rádios controlavam a velocidade e as distâncias entre eles e o Gol pagador, enquanto verificavam se estavam sendo seguidos ou não por terceiros. No percurso, para se protegerem e despistarem, revezavam-se no fluxo do trânsito.

A Van que seguia na frente estacionou a mais ou menos 50 metros passando o portão do Gay’s Haven Motel e esperou pela entrada do Gol pagador.

Minutos depois entrou o Gol pagador no motel. Três minutos mais tarde, apareceu a Van da Lavanderia que de propósito simulou um problema mecânico na entrada da rua lateral que levava ao motel, retardando o tráfico, para se certificarem que ninguém os seguia ou aos dois médicos executivos.

A Van da Lavanderia, para alívio dos poucos carros que aguardavam, conseguiu dar partida e estacionou a 30 metros antes da entrada do portão do motel. Logo atrás, o Gol branco, que fazia cobertura durante o trajeto, com os soldados médicos Beto e Nagib entrou direto no motel e foi para a suíte de número 25, também reservada antes.

Na noite anterior, os soldados Sylvio e Cláudio se apresentaram no motel como recém-casados e se hospedaram na suíte de número 23, reservada antes pelos inteligentes de Fernando. Lá se instalaram e passaram parte do tempo investigando a suíte ao lado, a de número 24, onde no próximo dia se hospedariam os dois médicos executivos. Durante a noite e parte da manhã, levantaram os funcionários e alguns clientes que entravam e saiam dos apartamentos, calcularam o tempo real que levariam para levar o bilhete da suíte 23 para a 24 e tirar o dinheiro de uma sacola e passar para outra. A

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operação toda não demoraria mais do que dois minutos.

Assim que os médicos executivos entraram na suíte, o soldado Sylvio chamou pelo celular a Van da Lavanderia e comunicou a Fernando que o casal já estava no ninho.

Fernando, então, dera a ordem aos soldados Sylvio e Claudio para procederem com a missão como planejado.

Sylvio e Claudio desceram da suíte 23, ligaram o Gol branco, abriram o porta-malas e, apenas dando um passo, entraram na garagem da suíte 24, levando uma sacola preta na mão. Enquanto Sylvio subia a pequena escada para entregar o bilhete de Irene aos médicos executivos, Claudio abrira o porta-malas do Gol, retirou o dinheiro da sacola e transferiu para sua sacola.Os soldados Sylvio e Claudio voltaram para a garagem da suíte 23, colocaram a sacola com o dinheiro no porta-malas de seu carro, levantaram o toldo da garagem e partiram com os cinco milhões de dólares.

Na garagem da suíte 25, os soldados Beto e Nagib lhe deram cobertura sem aparecerem no corredor das garagens. Aguardavam o Gol de Sylvio e Cláudio sair para chamarem Fernando no rádio e avisar que a encomenda já estava a caminho.

O soldado Nagib subiu pela escada da suíte 24, pegou o envelope com os novos telefones dos executivos da VÊNUS que estava na bandeja da janela giratória, desceu e entrou no Gol branco que já estava à espera no corredor e sairam do motel em direção à Rodovia Raposo Tavares.

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Após rememorar e analisar a entrega da primeira parcela pelos executivos da VÊNUS, Fernando tinha a convicção que eles iriam pagar todas as prestações sem envolver a polícia ou seus negociadores. As cópias que obteve com Estevão das mensagens de Irene eram perfeitas e convincentes. Mesmo assim teria que planejar uma estratégia segura para seus soldados receberem as próximas prestações.

Pelo desenrolar dos fatos e pela facilidade em receber a primeira prestação, sem resistência por parte da VÊNUS, o plano de Fernando ia pouco a pouco se concretizando, ficando claro que os diretores da VÊNUS já realizaram que o MBN tinha um Royal Straight Flush na mão.

Estevão já havia enviado a mensagem gravada por Irene aos três executivos da VÊNUS, agradecendo a Antônio, Dr. Moisés e Júlio pela entrega da primeira parcela e ao mesmo tempo dando as instruções para a entrega da segunda parcela de 5.000.000 de dólares.

Na segunda-feira tinham se reunido com o pessoal da RELEASE e colocaram os especialistas em seqüestro na espera, indefinidamente.

Antônio recebera o envelope na sede da VÊNUS, enviado da Capital, via motoqueiro às 11:37h da sexta-feira dia 7, já nos limites de seus nervos, achando que os seqüestradores estavam demorando muito para entrarem em contato novamente. Imediatamente, reuniu-se em sua sala com Dr. Moisés e Júlio para ver o DVD que acabara de receber.

Antônio comanda o DVD pelo controle remoto e aguarda ansiosamente para ver sua mãe na TV.

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A terceira mensagem

Boa tarde meu filho Dr. Moisés e Júlio.

Obrigado pela entrega da primeira parcela.

Sinto muito, se, no processo, causou algum constrangimento ao Doutor Moisés e Júlio, mas como já falamos antes, se as instruções forem seguidas, corretamente, logo logo estaremos todos juntos.

Neste sábado, dia 8, Dr. Moisés e Júlio levarão a próxima parcela de cinco milhões de dólares para a Rodovia dos Imigrantes. É para vocês dois usarem o mesmo procedimento quanto ao empacotamento do dinheiro. Usem o mesmo Gol branco usado na semana passada e também os uniformes de médicos completos. Após passarem por São Bernardo e Diadema, logo adiante tem uma lanchonete na

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Rodovia dos Imigrantes à sua direita. Parem no estacionamento da lanchonete, entrem e peçam um lanche. O horário para vocês estarem lá é onze horas da manhã. Levem seus celulares novos com vocês. Não esqueçam de carregar as baterias, OK? Lá vocês dois receberão novas instruções.

Dr. Moisés, quero que o senhor chame o RH e mande, imediatamente, os três diretores que coordenam nossa segurança para a rua. O Coronel Fonseca, Sr. Artur e o Dr. Messias estão demitidos. Pague seus direitos, mas não dê a eles nenhuma carta de recomendação.

Antônio, meu filho querido, aqui estou bem e se Deus quiser passaremos o melhor Natal dos últimos tempos juntos. Eu estou com muitas saudades. Continue calmo e administrando os nossos negócios, que logo estarei com você.

Te amo muito muitas vezes e, muitas, é muito pouco para ficar sem você...

Um beijo para você Antônio, Dr. Moisés e Júlio. Irene ficou sorrindo, para a câmara, pegou um jornal de uma mesa, em uma varanda colorida, com flores onde se via uma piscina ao fundo. A câmara deu um zoom na capa do jornal e mostrou nitidamente a data de circulação, de um dos maiores jornais do Brasil. Quinta-feira, 6 de novembro de 2003.

Antônio perguntou aos dois executivos se queriam ver novamente o DVD.

– Mais uma vez seria o suficiente, responde Dr. Moisés.

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Após reverem a mensagem da Doutora Irene, Dr. Moisés foi o primeiro a comentar que as técnicas usadas para elaborar o DVD foram as mesmas, mas com um cenário diferente.

Antônio interrompeu Dr. Moisés para comentar que sua mãe estava aparentemente bem, bonita, disposta e pelo que acabara de presenciar, estava em pleno controle, mandando seus subordinados para o olho da rua.

– Com certeza onde ela está não é um cativeiro tipo chiqueiro... argumentou Júlio.– É isso mesmo, concordou Dr. Moisés. Esses seqüestradores são sofisticados e é evidente que estão tratando a Doutora Irene muito bem, caso contrário não iriam conseguir o que desejam e uma desgraça, pior, poderia ocorrer.

Antônio levantou-se, comentando com Dr. Moisés e Júlio que achou estranho sua mãe, do cativeiro, comandar a despedida de três executivos que coordenavam a segurança do grupo VÊNUS.

– Ela é a presidente do Grupo e sabe o que faz. Pelo que tudo indica ela está sabendo de coisas que não sabemos. O que me chocou foi ter despedido o Messias, pois ele só cuida da parte de segurança institucional da empresa. O negócio dele é assegurar o sigilo de nossos contratos, parcerias, é ele quem acerta algum tipo de fiscalização por parte do governo, também cuida da área da espionagem industrial das subsidiárias da VÊNUS, comentou Dr. Moisés.

Antônio argumentou que a ordem de sua mãe podia ter sido resultado das negociações com os

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seqüestradores, que lhes contaram onde estavam as falhas, na sua segurança, no dia do seqüestro.

– O Careca está na nossa lista de decepados, mas o coitado é somente um empregado de extrema confiança que cumpre ordens. Ele não tem a visão de coordenação que deveriam ter os três despedidos aqui de cima. Minha mãe não incluiu seu nome na lista por alguma razão que depois de seu regresso saberemos.

A segunda prestação

No sábado às 10 horas da manhã, Dr. Moisés e Júlio tomaram o elevador e subiram até o duplex de Antônio que já os aguardava com três copos de água de coco geladas.

Antônio dispensara, antes, os dois seguranças que estavam no lobby do edifício e preparava a sacola com os cinco milhões de dólares quando a campainha da porta tocou.

Os médicos entraram um pouco desanimados com a chuva de última hora não prevista na meteorologia televisada. Júlio comentou que se chovesse na serra de Santos poderiam demorar para ir para outro local, caso fossem essas as instruções dos seqüestradores.

Os médicos executivos carregaram a sacola e se despediram de Antônio como se fossem realmente para uma longa viagem. Na garagem do prédio discutiram qual seria a melhor rota para chegar até a

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Rodovia dos Imigrantes. Optaram pela Bandeirantes e se colocaram a caminho.

Apesar de ser sábado, mas com a chuva forte que caía, encontraram a Bandeirantes entupida de carros por todos os lados. Com muitas manobras e buzinadas chegaram até o aeroporto de Congonhas. Depois disso o trânsito fluiu melhor e em seguida entraram na Imigrantes.

Chegaram dez minutos atrasados ao encontro e Júlio estava preocupado com o horário.

Dr. Moisés tentava acalmá-lo enquanto procurava uma vaga para estacionar. Quase deixou o carro em outro estacionamento, em um posto de gasolina, ao lado da lanchonete.

Os dois médicos executivos, encharcados, entraram na lanchonete e, primeiro, foram até o banheiro para se secar. Minutos depois, dirigiram-se para o balcão e pediram dois hambúrgueres com Coca-cola light e fritas amigas.

A lanchonete estava praticamente vazia, pois a chuva espantara os fregueses de auto-pista. Um casal que terminava o lanche saiu logo após a entrada dos dois médicos executivos.

Meia hora se passou e os médicos executivos começaram a ficar nervosos com a demora do contato.

Dr. Moisés que era mais calmo e calculista estava colocando a culpa da demora na chuva. Talvez os seqüestradores estivessem, também, encrencados com o trânsito lá em São Paulo, por isso estavam atrasados.

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Bebiam as Coca-colas geladas, mas não conseguiam abrir as caixinhas dos lanches. Júlio olhava a cada minuto para o relógio que já marcava 12:20h. Com seus nervos passando do aceitável, Júlio estava discutindo com Dr. Moisés se deveriam ou não chamar Antônio para lhe dizer que ninguém aparecera para contatá-los, quando, de repente, o telefone celular do Dr. Moisés tocou.

Era o Antônio chamando de São Paulo.

Pediu para eles voltarem para o apartamento, pois tinha recebido outro bilhete de sua mãe avisando que estava tudo sob controle.

Júlio quis saber, imediatamente, o que estava acontecendo. Dr. Moisés respondeu que Antônio tinha chamado e que era para eles voltarem para São Paulo, que tudo estava sob controle. Seja lá o que fosse que a Doutora mandou dizer em um bilhete que ele recebera agora pouco.

Os médicos executivos se dirigiram para o estacionamento, mas não encontraram o Gol estacionado onde deixaram.

Júlio pediu a Deus, olhando para a chuva que descia, que por favor somente os seqüestradores estavam liberados para roubarem o seu Gol.

Os dois voltaram para dentro da lanchonete e Dr. Moisés perguntou ao gerente da lanchonete se ele teria um número de um ponto de taxi próximo.

Júlio anotou o número e chamou o taxi especial em seu celular.

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Teriam que aguardar 30 minutos. Voltaram para a mesa e resolveram comer o lanche

Ao chegarem ao apartamento de Antônio, Dr. Moisés e Júlio relataram suas aventuras na chuva e o roubo do Gol.

Antônio lhes passou o bilhete de sua mãe que fora entregue na portaria do prédio às doze horas. Dr. Moisés notou que o papel do bilhete tinha a mesma marca d’água, de um Royal Straight Flush, dos bilhetes anteriores. Leu em voz alta para Júlio ouvir.

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O terceiro bilhete

Alô, meu filho.

Ligue de seu celular novo para o Júlio e Dr.Moisés e diga a eles para voltarem, imediatamente, para o apartamento. Diga a eles que tudo está sob controle.

Obrigado. Te amo.

Beijos

Assinado: Irene Fontoura

Júlio foi o primeiro a reclamar que os seqüestradores poderiam pelos menos avisá-los que iriam ficar a pé no meio da Imigrantes, ou melhor ainda, que lhe entregassem as chaves do carro na lanchonete.

Dr. Moisés cortou Júlio e lembrou que a tarefa deles era de obedecer as mensagens e nada mais. Enfatizou que os seqüestradores ainda tinham da Doutora Irene em poder deles. Não importa se a vista na filmagem era bonita ou não.

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– Ela ainda é uma seqüestrada que continua no cativeiro, e nós só vamos tirá-la de lá obedecendo as ordens.

– Mas é o que estamos fazendo! reclamou Júlio.

– Está bem! disse Antônio. É melhor assim. Rápido e objetivo chega de cenas duplas. Se os seqüestradores quiserem tudo hoje é só telefonarem que eu entrego todo o dinheiro. Não sei por que criaram esse esquema de parcelas, Dr. Moisés complementou.

– Deve ser por motivo de segurança ou desconfiança. Hoje notei que está havendo um comportamento padrão para a entrega, por parte deles.

Primeiro, a entrega é nos sábados. Segundo, o local escolhido é uma lanchonete, ou pelo menos nós passamos por lá. Terceiro, nós vamos vestidos de médicos e o bilhete aqui continua mostrando o Royal Straight Flush na marca d’água.

Tudo isso tem a ver com a estratégia de segurança deles. Acontece que nós já concordamos com os termos impostos por eles e pelo jeito vamos continuar assim.

Se minhas previsões forem corretas teremos mais dois sábados para entregar as outras parcelas. Isso feito a Doutora Irene estará conosco daqui há duas semanas. Ela mesmo disse que estaria em casa para o Natal.

Portanto, a notícia é boa e o jogo continua.

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Fernando ganha uma aposta e perde outra

Estevão chama Fernando em um de seus celulares para marcar um encontro. Assim que este atende, Estevão lhe fala.

– Temos um jogo de pôquer hoje. Você quer jogar?

– Fernando que estava em Brasília, respondeu.

– Hoje estou viajando, mas amanhã estarei com o bolso cheio. A que horas e onde é o jogo ?

– Às 13 horas no Restaurante Canto, na Granja Viana, respondeu Estevão.

– Ok! estarei lá, falou Fernando e desligou o celular.

Estevão, por telefone, chamou o Restaurante Canto, na Granja Viana, em Cotia, e fez a reserva para o próximo dia, dando o nome de Hugo.

Em seguida, ligou para Gilda e lhe pediu para preparar outra suíte pois logo teriam outro hóspede no Clube. Desta vez um cavalheiro. Aproveitou e pediu para preparar Irene, pois iriam rodar as duas últimas cenas no meio da semana.

Gilda confirmou e antes de desligar comentou que a atriz andava super animada ultimamente e muito feliz com o seu amigo Copper. À noite, jantou só no terraço

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toda cheirosa e depois foi contar as estrelas com minha luneta Tasco.

Estevão desligou o celular e ligou de outro telefone internacional para Barroso.Barroso, todo contente com a chamada de Estevão, já presentia que outra missão estava no ar.

Estevão convocou Barroso e o resto dos soldados da Célula A para virem, imediatamente, para São Paulo. Pediu a Barroso para reunir todos os soldados e prepará-los para um cenário urbano de cidade grande.

Estevão mencionou que Rubio e Rambo já estavam aclimatados e morando ao lado do cenário. Os soldados iam precisar de ternos, gravatas, vestidos chiques, uniformes de enfermeiros, médicos e de cozinheiros profissionais. Quando ele chegasse, discutiriam o cenário completo.

Fernando chegou ao restaurante de taxi especial. Estava pontualmente no horário e logo localizou Estevão sentado em baixo de uma ramada verde, do lado de fora do restaurante, tomando um suco de laranja.

Os dois se saudaram, de longe. Fernando colocou sua bengala e duas sacolas de compras, enormes, em uma cadeira vazia ao seu lado.

Antes de Fernando perguntar no que apostariam, Estevão tirou do bolso mil dólares em um envelope e passou para Fernando.

Fernando, sem demonstrar surpresa, o agradeceu e guardou os mil em sua pasta.

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Pelo que tudo indica eu acertei uma aposta. Não foi? Perguntou Fernando.

– É! respondeu Estevão, desanimado. – A abordada, de fato, precisou de uma carona em meus ombros. Eu deveria descontar a metade desses mil porque você não me preveniu que ela mordia, dava murros e coices.

Fernando, rindo à vontade, falou que a aposta era Somente à respeito de carregá-la ou não no ombro. Complementou dizendo que ele não apostara nada sobre os dotes instintivos de defesa da abordada. Isso era problema do estivador.

– OK! OK! Já está pago. Quer apostar hoje? perguntou Estevão.

– Eu sempre aposto! Manda, respondeu Fernando.

– OK! Vamos lá! O que tem em frente do restaurante e de onde é o recepcionista do portão?

Fernando respondeu.

– Você não consegue mesmo ficar com dinheiro no bolso, não? Hoje, pelo que parece, você está armando alguma cilada.

Com respeito à primeira pergunta, não tem nada em frente ao restaurante. Isto é. Existe um terreno vazio cheio de mato, mas na rua perpendicular aqui ao lado do Canto, Rua José Felix, se não me engano, tem uma clínica veterinária para cães e gatos. Antes da clínica, uma escola de artes e do outro lado da clínica, um salão de cabeleireiro.

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Antes de eu responder sobre o seu hombre de Cochabamba vou lhe dizer o que me ocorreu neste momento.

Você sabe que é um perigo dois negócios desses, a clínica veterinária e o cabeleireiro, em particular, estarem lado a lado um do outro!

Imagine se uma madame aqui da Granja alcoolizada, ou drogada, por engano, entrar no salão de beleza acompanhada de seu Bichon Frise e pedir uma vacina contra raiva, um vermífugo da Bayer, uma tosa, banho com xampu anti-pulgas, secagem morna e corte de unhas.

Raiva, mas raiva mesmo, vai dar no cabeleireiro das madames da Granja que além de ficar todo insultado terá que explicar ao Lulu que errou de porta e que o salão dele é o outro, ao lado.

Estevão caiu na risada, comentando que ele estava tentando ganhar tempo, pois não tinha a certeza sobre a segunda resposta da aposta.

– Está bem! Fernando respondeu.

O seu recepcionista me parece, com certeza, que é boliviano.

– OK! OK! Até agora você acertou só a metade. Poderia até ser gerente de imobiliária. Nota dez para o terreno vazio, a escola, clínica veterinária e o cãobeleireiro.

Mas, com respeito ao recepcionista. Quer dobrar a aposta? ou trocar pelos mil da pasta? perguntou Estevão, com um largo sorriso no rosto.

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– Manda os mil da pasta, retrucou Fernando.

– Parece que o seu hombre, de fato, é peruano de Arequipa, falou rindo muito Estevão.

– Como é que você sabe? perguntou Fernando.

– Cheguei meia hora antes de você e estava contabilizando o pessoal quando escutei o recepcionista falando em um dialeto com um dos garçons. Perguntei, em espanhol, se ele era boliviano. Respondeu que não. O resto da história você já pode deduzir. Não é? Se você quiser conferir na saída. É só falar com o ex-Sendero...

Fernando devolveu os mil dólares e chamou o garçom para trazer o menu.

– Pelo menos você escolhe uma das melhores carnes de São Paulo para me tirar mil dólares que já estavam quentinhos na minha pasta, reclamou Fernando, enquanto escolhia uma das especialidades do Canto.

Pediram duas picanhas à moda Canto, com arroz branco e salada de pupunha. Para beber pediram um suco de acerola e outro de laranja.

Fernando começou, primeiro, a relatar sôbre o recebimento da primeira prestação. Descrevendo que tudo saíra de acordo com o plano. Não tiveram nenhum tipo de inconveniente.

Já, na segunda prestação, uma chuva fortíssima que causou um acidente no cenário escolhido para o recebimento da segunda prestação atrapalhou um pouco os planos. Teve que usar o plano de emergência, preparado com antecedência para outro tipo de situação.

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Agradeceu Estevão pelos DVDs convincentes, pelos bilhetes de comando e os bilhetes reservas assinados por Irene.

Continuou relatando que a segunda prestação estava programada para ser entregue pelos médicos executivos na Rodovia dos Imigrantes na parte em que a pista passa por cima da Represa Billings. Seis dos seus soldados estavam em dois carros na auto-pista e mais dois em uma lancha, na água, prontos para receberem a segunda prestação que seria transportada pela lancha, veloz, até o outro lado da represa.

– Às dez e quarenta e cinco, dois carros de domingueiros, indo para Santos, se chocaram, devido à forte chuva, no local exato da entrega. O cenário ferveu de rodoviários e ambulâncias. Não tivemos outra escolha, a não ser abortar aquele cenário micado.

Decidimos, então, roubar o Gol dos médicos executivos no estacionamento da lanchonete e mandar um dos bilhetes reserva da Irene para o Antônio. No fim deu tudo certo.

O garçom serviu a picanha Canto e os dois se concentraram na carne.

Estevão, terminou seu almoço primeiro e comentou que no Clube Merlin ia tudo bem, comentando que a hóspede, finalmente, amolecera e resolvera cooperar com o MBN. Com essa nova atitude, tudo se tornara mais fácil.

– Você deve ter notado pelos filmes do DVD que realmente ela está dando o máximo de si.

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Fernando, sorrindo maliciosamente, interrompeu Estevão perguntando se as mordidas e os coices não foram uma declaração de amor ao bonitão da FAB.

Estevão, mais do que depressa, desviou o assunto e continuou relatando que no domingo faria as duas últimas tomadas com as novas mensagens. Primeiro, a mensagem da terceira prestação e logo a das doações para as ONGs e o MBN.

– A VÊNUS, a mando de Irene, fará a primeira doação, oficial ao partido do futuro e, possivelmente, já, que nosso relacionamento está em boa fase, antes de libertá-la estou pensando em pedir sua colaboração para minar a resistência do nosso futuro hóspede. Os dois se conhecem, comercialmente, e estou apostando que ela nos ajudará a convencê-lo a colaborar logo com o MBN.

Ela já leu os Estatutos do MBN e até fez algumas críticas jurídicas com respeito à afiliação dos futuros membros.

Estevão pediu uma salada de frutas e Fernando um sorvete de manga para sobremesa.

Continuou relatando que o plano para o segundo abordado da lista do Estudo estava pronto. O cenário seria em São Paulo, em um dos locais que o Estudo recomendara.

O plano consistia em surpreender todos os clientes dentro do restaurante favorito do abordado. O pessoal da Célula A, já, alugara fazia um tempo, a peso de ouro, uma casa nos Jardins que dá para o fundo do restaurante.

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– No dia da abordagem, vamos reativar um portão velho e desativado que conecta as duas residências.

Os quatros seguranças do abordado vão ficar esperando pelo patrão por muito tempo na rua.

Parte dos meus soldados estarão chiques todos, vestidos em ternos de grife e as soldados com vestidos ou conjuntos da nova moda de verão.

Eles almoçarão ao lado do abordado com suas pastas de executivos recheadas com as Gloks 23. Outros soldados virão da casa alugada pelo portão reativado. A porta da frente do restaurante se fechará por dentro. Daí, então, a lei será a do mais forte. Quem está fora não entra, quem está dentro não sai. A não ser nós, que sairemos pelo portão dos fundos via casa alugada.

O famoso e imponente Jardins vai virar um caos na hora da abordagem. Caminhões de lixo bloquearão algumas ruas e o Corpo de Bombeiros terá um fogo fácil, mas com muita fumaça de trapos embebidos em óleo, diesel queimado, para apagar na residência alugada.

– Parece-me que, outra vez, não daremos um tiro sequer.

O nosso abordado será levado, primeiro, em um carro rápido, blindado, com placas frias e depois transferido para uma ambulância. Desde o momento que sairmos da casa alugada até chegar ao Clube o abordado vai usar uma carapuça negra na cabeça, principalmente para não reconhecer o médico que irá operá-lo.

Na própria ambulância, um médico contratado removerá o chip anti-seqüestro que ele tem

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implantado no subcutâneo da perna esquerda. Uma soldada enfermeira ajudará o médico que fará uma anestesia local e com um corte simples e rápido removerá o chip. Vamos usar o chip-antiseqüestro em nosso favor. Ganharemos um bom tempo e despistaremos, definitivamente, os negociadores e a própria polícia, caso estes comecem a investigar o desaparecimento do milionário.

Depois de operar o abordado, vamos mandar o chip para a favela do Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro, e grudá-lo em um carrinho de catador de papéis.

Todo e qualquer trajeto percorrido pelo chip removido será seguido pelo satélite da Intelsecurity Chip Systems que vai concentrar a busca pelo seu cliente em um cativeiro móvel perambulando morro acima e cidade abaixo, na cidade maravilhosa.

Enquanto isso o nosso hóspede, desprovido de seu bug protetor, estará se recuperando da cirurgia no bom clima do Clube Merlin.

Fernando achou que o plano era bom e recomendou atenção redobrada com os seguranças do abordado, comentando que um deles, uma vez ou outra, enquanto o abordado almoçava, ficava dentro do restaurante conversando com os vigias da casa, também, vestidos de ternos e óculos escuros.

Estevão respondeu que essa informação também constava no Estudo e que, se por acaso um dos seguranças do abordado fosse para dentro do cenário, seus soldados degustadores da boa culinária do

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Chateaubriand Grill dariam um jeito nele no momento da ação.

Fernando perguntou a Estevão se ele tinha terceirizado algum serviço.

Na semana que vem, um médico recém-formado irá operar o nosso segundo abordado. Ele será um dos nossos primeiros terceirizados. Vai ganhar dez mil dólares para trabalhar dez minutos. Os outros três vão dirigir caminhões, ônibus sucatas, bloqueando ruas-chave, no momento da abordagem, em locais pré-levantados por Rambo e Rubio. Os motoristas ganharão três mil dólares cada um.

– E você Fernando anda terceirizando ou somente está usado os soldados da I e C? perguntou Estevão.

– Quanto à terceirização, só usamos, por enquanto, uma mãe solteira que precisava fazer urgentemente uma operação, em uma das vistas, de seu filho de um ano e meio. A mãe não tinha condições, financeiras, para pagar uma clínica de oftalmologia especializada.

Ela trabalhou um minuto, entregando um de nossos bilhetes. Ganhou um celular novo, dois mil dólares, dois hambúrgueres com fritas e Coca-cola e mais uma corrida de taxi. Deve estar rindo de mim até hoje.

Já depositei a parte dos soldados, paguei todas as contas pendentes. Aqui está o seu recibo do depósito do Baers Bank, nas Ilhas Cayman. A sua parte, em espécie, combinada previamente, está aqui nas sacolas da Tommy Hilfiger.

Fernando passou as sacolas com os dólares para Estevão e recomendou muito cuidado com os trombadinhas.

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Ao se levantar, com sua bengala na mão, disse que seus soldados estavam prontos, novamente, para receber a última prestação de Irene.

– Depois disso nos encontraremos, para outra aposta, e até lá falaremos, em código, por vias eletrônicas e pelo internacional.

Fernando pediu para Estevão pagar o almoço, alegando que acabara de perder “milão” e teria que pagar o taxi que estava à sua espera.

Levantou-se, pegou sua bengala e saiu em direção ao portão do Canto.

Irene grava suas últimas mensagens

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Estevão chegou na terça-feira, às dez da manhã. Irene estava em um dos piquetes, acompanhada por três soldados, montando seu melhor amigo no momento, Copper.

Gilda o colocou a par dos trabalhos da Célula e o levou para ver a nova suíte, recém-mobiliada, para esperar o novo hóspede.

Estevão aprovou os móveis e a segurança, entregando a Gilda mais três mini-câmeras para serem instaladas no apartamento. Passou a nova lista de normas às quais o abordado teria que se adaptar e os remédios que ele iria precisar tomar, duas vezes ao dia, para suas hemorróidas. Em uma embalagem separada, estava um anti-inflamatório que o abordado deveria tomar a cada doze horas, durante sete dias, e outros itens farmacêuticos para limpeza e curativos da inesperada cirurgia que o abordado sofreria a caminho do Clube.

Conversou com os demais soldados que estavam no Clube, deu a boa notícia dos depósitos em dinheiro em suas contas e disse que no QG as coisas iam de vento em popa.

Irene viu Estevão de longe, mas preferiu ir direto para sua suíte.

Estevão, também, a viu à distância, passando de perfil, mas estava ocupado instruindo seus soldados para se prepararem e receber o novo hóspede.

A soldado, garçonete, servia Estevão o secundo suco quando Irene chegou para almoçar na varanda do Clube.

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A primeira sensação que Estevão sentiu, antes de poder apreciar, de perto, a beleza feminina que se aproximava, foi a fragrância do Caraná-AM, invadindo um de seus sentidos que, imediatamente, aceitou aquela duração.

Irene toda feliz, pela primeira vez, apertou sua mão dizendo um bom dia e lhe deu dois leves beijos no rosto.

Estevão, infantilmente surpreso, aproveitou a deixa e lhe deu mais um, dizendo que o beijo extra era para lhe desejar boa sorte.

Irene enrubesceu, mas não perdeu o controle. Agradeceu a Estevão por ajudá-la com a cadeira e sentá-la primeiro na mesa.

Quebrada a barreira física, entre eles, Estevão lhe falou que iria filmá-la duas vezes no mesmo dia e que essas seriam suas últimas mensagens para seu filho e para os dois executivos da VÊNUS. Perguntou a ela se já tinha memorizado a terceira mensagem.

Irene respondeu que estava pronta para o estúdio, mas que não tinha recebido, ainda, o script da quarta mensagem.

Estevão respondeu que após o almoço lhe daria o script da última cena. Comentou que era também uma cena de curta duração e que ela teria que decorar o nome de algumas ONGs que se dedicavam a projetos sociais de extrema importância, mas que ao mesmo tempo tinham muitas dificuldades em levantar recursos para atingir seus objetivos sociais.

– Tudo bem! respondeu Irene.

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Estevão, ainda envolvido com os efeitos do Caraná-AM, adicionado à presença de Irene a dois metros na sua frente queria prolongar o máximo possível aquele momento de exclusividade.

Perguntou a Irene se ela gostou de Copper por estar sozinha e prisioneira ou se, realmente, o cavalo tinha algo especial.

Irene, olhando para o lado das baias, onde estava Copper, respondeu que talvez a resposta apropriada seria conhecida somente mais tarde. No momento, ela achava que era uma combinação das duas coisas.

– Agora é a minha vez ! Embora seja proibida pelas regras do Clube, gostaria de lhe fazer uma pergunta pessoal, falou Irene.

– OK! OK! respondeu Estevão. Se eu puder responder, você terá a resposta.

Irene perguntou:

– Você é casado? Tem filhos?

– Bom! Como você já está de saída e está colaborando de uma forma satisfatória com o nosso Movimento, eu vou responder a sua pergunta e adicionar algum extra.

Não, nunca me casei e não tenho filhos. Estou com 50 anos. A minha carreira militar foi bastante viajada e não tive a coragem de levar comigo algumas das namoradas que tive ao altar e depois de casar, com uma delas, dragá-la de um lado para o outro, ou deixá-la sempre à minha espera e apreensiva.

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Quando uma pessoa é militar, está sujeita a ordens superiores, e quando estas chegam você não discute. Larga tudo e muda-se para um novo lugar, que pode ser bom ou lastimável.

Saí de minha casa, com quinze anos, para estudar e depois segui a carreira militar. Desde, então, estou acostumado a ir e vir para diferentes lugares. Hoje, estou aqui e amanhã não. Por isso não me casei. Quem sabe, no futuro, eu me fixe em algum lugar e aí, sim, se tiver sorte encontrarei o meu par. Irene, curiosa e surpresa com o que acabara de ouvir arriscou fazer mais uma pergunta.

– Aquele dia, antes de saltarmos, da Brasília EMB 120, você me disse que tinha ensinado pára-quedismo no Campo dos Afonsos, no Rio de Janeiro. E agora você me diz que é militar. Isso me leva a deduzir que você é da Força Aérea Brasileira. Você é da FAB?

– Era! respondeu Estevão.

Cumprimentou Irene pela sua boa memória e disse que, eventualmente, iria lhe contar mais sobre ele. Mas hoje a missão era outra.

Estevão aponta para a mesa e disse a Irene que a lasanha estava esfriando.

Gilda iluminou o ambiente da filmagem. Estevão, usando o tripé da Sony, filmou Irene que representou, outra vez, com perfeição o script da entrega da terceira parcela de cinco milhões de dólares.

Irene não demorou mais do que três minutos para a interpretação. Não foi preciso refazer a cena.

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Curiosa, perguntou a Estevão onde estava o script da última cena.

Estevão abriu sua pasta de mão e lhe passou duas páginas impressas com fonte número 20 para facilitar a leitura.

Irene leu, rapidamente, o script e começou a rir, mas desviou o olhar de Estevão. Deu as costas a ele, caminhou até a janela da suíte, respirou fundo, olhou o por do sol que descia na direção da sua fazenda e voltou-se, novamente, para onde estava Estevão e ironicamente comentou que era fácil ser o novo Robin Hood, do terceiro milênio, com o dinheiro alheio.

Estevão contra-argumentou dizendo que a VÊNUS é que seria o Robin Hood e pelas informações que ele tinha, em mãos, o dinheiro era todo dela.

Continuou argumentando que, no fim desse negócio, ela não perderia um centavo sequer. O Sr. Júlio, seu diretor financeiro, deduziria os cinco milhões que seriam doados para as ONGs e o MBN do imposto de renda, devido ou a pagar, da VÊNUS.

– E digo mais. Com essa doação milionária e uma boa assessoria de imprensa, a VÊNUS criará um visual, novo, politicamente correto para melhorar a sua imagem institucional e é bom você incluir aí todas as empresas que constituem a sua Holding.

Não é todos os dias que se faz o bem! Portanto o papel do Robin Hood do terceiro milênio, como você bem definiu, ficará com a VÊNUS.

Nós somos, apenas, o fator que fará isso acontecer e um dos beneficiários que vai entrar no vácuo das ONGs que lutam por causas justas e nobres dentro de

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uma sociedade em que as diferenças entre as classes sociais aumentam cada vez mais entre si. Ou seja, o rico cada vez mais poderoso e o pobre cada vez mais dominado.

O MBN será uma alternativa para tentar fazer com que a fertilidade dos poucos poderosos se derrame pirâmide abaixo fortalecendo todos os seus andares, principalmente o dos milhões de dominados separados por esse abismo social.

Esse será nosso discurso no baile de debutante social-político do Brasil. Mas como seremos apenas principiantes, desconhecidos da mídia e dos concorrentes, aposto que ninguém se interessará por mais um movimento estreante.

É, justamente, isso que queremos no momento. Legitimidade sem publicidade. Apenas os órgãos governamentais competentes é que saberão que um tal de MBN fez os seus devidos registros legais.

Você será a primeira a nos financiar... legalmente, diria eu.

– Está bem! disse Irene. Não vamos mais polemizar por uma causa mais do que justa, se é que você, realmente, seguirá os objetivos sociais e estatutos do MBN.

Dê-me duas horas e depois poderá rolar o seu filme.

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A terceira prestação

Dr. Moisés recebeu o envelope postado, via SEDEX, em Brasília no dia anterior e, imediatamente, chamou Júlio em sua sala. Enquanto Júlio não chegava, chamou por celular o vice-presidente da VÊNUS, Antônio, que estava a negócios no Rio de Janeiro.

Antônio recebeu a ligação com um certo nervosismo, pois o telefone que tocava era o número especial que

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só o Dr. Moisés, Júlio e os seqüestradores tinham. A voz do outro lado lhe era conhecida e comunicou que receberam outro DVD e sugeriu que ele voltasse imediatamente para São Paulo.

Antônio perguntou se ele já havia aberto o envelope. Dr. Moisés respondeu que gostaria de abrir quando ele estivesse presente. Antônio pediu a ele ordenar sua secretária para cancelar o resto dos compromissos na cidade maravilhosa e que já estava indo para o aeroporto pegar o Beechjet da VÊNUS. Deveria estar em seu escritório por volta das quatorze horas.

A quarta mensagem

Bom dia meu Filho. Bom dia Dr. Moisés e Júlio.

Mais uma vez muito obrigado pela execução das minhas ordens na semana passada. Um obrigado extra por terem saído na chuva por minha causa. Como vocês podem ver eu estou bem e na próxima semana estaremos juntos novamente.

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A próxima entrega da terceira parcela obedecerá o mesmo padrão quanto ao dinheiro e os uniformes de médicos.

A ordem é a seguinte:

No sábado, dia 15, Dr. Moisés e Júlio embarcarão em um ônibus-leito, da Viação Motta, com destino a Ponta Porã, no Mato Grosso do Sul. Levem o dinheiro em uma sacola de cor preta, com um fita amarela atada na alça, e façam a checagem da bagagem na plataforma 27 da estação rodoviária, no terminal do metrô da Barra Funda. Embarquem no ônibus que parte às 20:00h. Os tiquetes já estão comprados em seus nomes, é só retirá-los. Não esqueçam de levarem os RGs. É bom vocês levarem uma muda de roupa para trocarem na sua volta. Tomem muito cuidado na estação, pois os trombadinhas estão sempre à procura dos incautos. No percurso, vocês receberão novas instruções. Levem os seus celulares novos.

Antônio quero que você convoque para do dia 22, às 14 horas, no Auditório, na sede da VÊNUS, os presidentes e diretores das ONGs que mais se destacam no Brasil, com projetos sociais nas áreas de saúde, amparo ao menor, educação, meio ambiente, ajuda ao desemprego e pesquisas nas áreas da agricultura, tecnologia de ponta e política.

Comunique, oficialmente, aos convocados que suas ONGs receberão, no dia 22, uma doação em reais equivalente a meio milhão de dólares, cada uma, do Grupo VÊNUS, por terem se destacado profissionalmente em suas respectivas áreas de atuação. É de extrema importância que todos os presidentes das ONGs venham acompanhados de sua diretoria e, principalmente, de suas assessorias de

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imprensa para divulgarem na mídia o recebimento das doações.

Você deverá receber, ainda hoje, a lista das ONGs eleitas a receberem o prêmio VÊNUS. O último nome da lista receberá o resto que sobrar dos cinco milhões que vocês separaram em dinheiro vivo.

Na cerimônia da doação, nossa assessoria de imprensa, deverá tirar o máximo proveito do evento, para futuramente usarmos na melhoria da imagem Institucional das empresas que constituem o grupo VÊNUS.

Mandarei outra e a última mensagem na semana que vem.

Até Lá...

Irene se despediu com um beijo para Antônio, enquanto a câmara focalizava uma imagem na TV, captada ao vivo, via satélite, mostrando um programa em São Paulo falando sobre culinária e dando uma receita de pato assado.Antônio, sem perguntar aos demais diretores presentes, se queriam rever o DVD ou não, pressionou o botão de Play novamente, para rever sua mãe toda elegante dando instruções inéditas de como distribuir seu dinheiro.

Os três, mudos, permaneceram imóveis até que o chuvisco de fim de filme apareceu na TV novamente.

– Muito bem! exclamou Dr. Moisés, encaminhando-se para a janela panorâmica de vidro, cor de esmeralda, tentando raciocinar com clareza, no último andar do edifício sede da VÊNUS. Lá de cima, apreciou por um segundo, as águas negras do rio Pinheiros que

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brilhavam com o sol da tarde, confundindo-se com o reflexo nos pára-brisas de milhares de carros engarrafados em frente a sua praia, na Marginal Pinheiros.

– Parece-me que as negociações vão terminar com um cunho social no qual nós pagaremos a conta e entregamos o Nobel. Até a ecologia vai ganhar um!

– Na Argentina, nos anos oitenta, se não me engano, aconteceu um caso semelhante onde a família de um seqüestrado bilionário teve que distribuir alimentos aos pobres. Aqui, pelo jeito, a situação é um pouquinho diferente. É dinheiro mesmo. Muito dinheiro...

– O que vocês acharam da mensagem? perguntou Dr. Moisés a Antônio e Júlio.

Júlio respondeu que, do ponto de vista fiscal, ficaria até mais fácil deduzir os cinco milhões doados às ONGs do que os outros quinze milhões pagos aos seqüestradores.Antônio demonstrou sua preocupação com a imprensa na sede da VÊNUS na próxima semana, sem a presença de sua mãe, para falar e doar montanhas de dinheiro em nome do Grupo.

Dr. Moisés sugeriu: para aqueles que perguntassem, confirmar que a Doutora Irene continuava no exterior se recuperando de uma cirurgia. Seu tratamento clínico fora um sucesso e que ela estaria de volta em, no máximo, duas semanas. Nada mais.

Júlio comentou que agora as viagens, pelo jeito, seriam para outros Estados. Perguntou ao Dr. Moisés se Ponta Porã não era aquela cidade que fazia fronteira com o Paraguai.

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– Claro! respondeu Dr. Moisés, é lá mesmo, a terra das guarânias, polcas paraguaias e do contrabando.

Eu, já, estive lá uma vez. Foi quando fomos convidados para uma festa na fazenda de um empresário aqui de São Paulo, cliente do Banco.

Ele tinha uma fazenda, na estrada, antes da chegada na cidade de Ponta Porã. Descemos de avião, na pista da fazenda, e foram dois dias de muito churrasco, polcas, guarânias e chamamés.

– Eu já estava preparado para o que viesse, mas confesso que cada dia que passa esses seqüestradores voltam a me surpreender. Agora com o prêmio VÊNUS, social, nós vamos ser matérias em todos os jornais e TV do Brasil, por isso vamos nos concentrar em preparar a casa para o evento.

Júlio demonstrou sua preocupação com o efeito dos: Eu também quero...., ou, Eu também mereço..., que poderia acontecer logo depois que a mídia divulgasse sobre as milionárias doações da VÊNUS. Com certeza, no outro dia, após descobrirem onde se escondia o fim do arco-íris, isso aqui se tornaria uma Babilônia de pedinchões.

Antônio perguntou aos dois se dava para estimar a data da libertação de sua mãe.

– Parece que os seqüestradores vão libertá-la a qualquer momento após a entrega dos prêmios VÊNUS. Até lá seguiremos à risca suas ordens.

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Os executivos viajam de ônibus

Dr. Moisés e Júlio chegaram à Estação do Metrô da Barra Funda, acompanhados por três seguranças, vestidos casualmente. O Júlio carregava uma sacola preta com uma fita amarela na alça. Os cinco se encaminharam para a plataforma de embarque do ônibus-leito com destino a Ponta Porã.

Depois de apresentarem suas passagens de viagem e RG ao motorista noturno, no portão de embarque da plataforma 27, Júlio foi até o encarregado de conferir as malas e despachar sua sacola preta, enquanto os três seguranças ficaram por perto dos dois médicos executivos.

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O encarregado das bagagens trocou a sacola de Júlio, com cinco milhões de dólares, por um boleto-recibo minúsculo, e os dois médicos executivos embarcam rumo à fronteira do Paraguai.

Os três seguranças esperaram o ônibus partir para saírem em direção ao estacionamento onde deixaram seus dois automóveis blindados.

Nenhum deles tinha a menor idéia do que o Sr. Júlio levava na sacola, muito menos porque estavam viajando de ônibus, sendo que a VÊNUS tinha mais de quatro aviões, dois helicópteros e uma dúzia de carros blindados com motoristas à disposição de dois dos mais importantes diretores do grupo.

Acharam muito estranho aquela viagem repentina dos dois diretores, principalmente quando desceram do apartamento do Antônio vestidos como médicos. O novo diretor da segurança da Holding, Sr. Francisco do Nascimento, não permitia seus subordinados fazerem perguntas indevidas, muito menos especularem sobre o comportamento da diretoria do Grupo. A nova ordem era para serem discretos e ficarem atentos a algum perigo que ameaçasse fisicamente qualquer um dos diretores, principalmente a Doutora Irene, que estava no exterior, e o seu filho, Antônio.

Os dois médicos executivos sentaram-se em seus lugares reservados e começaram a trabalhar no discurso que o Dr. Moisés faria no dia 22, quando da entrega do prêmio milionário às ONGs selecionadas pela Doutora Irene.

Na lista das ONGs qualificadas, notou que a última da lista levaria um quinhão a mais do que as outras. Desconhecia a MOVIMENTO BRASILEIRO

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NACIONALISTA – MBN, com sede na Vila Mariana, São Paulo – Capital.

Seus objetivos sociais, conforme site próprio na internet, eram mais ou menos iguais a outras ONGs ou dos profetas políticos que apregoam mais ética na política, sugerindo alternativas para o fortalecimento das classes sociais menos privilegiadas, alertando, também, os governantes e os empresários que o abismo social entre ricos e pobres, no Brasil, estava aumentando de uma maneira alarmante e que, se esse processo não fosse revertido logo, poderia causar até uma revolução civil.

Os números das estatísticas apresentadas pelo MBN eram assustadores, tais como: o número de pessoas assassinadas diariamente no País, particularmente nas grandes capitais, como São Paulo, Rio de Janeiro e outras do sudeste, índice de desemprego juros altíssimos, divida externa e interna, a baixa renda per capita da população, analfabetismo, seqüestros, roubos, corrupção, volta da inflação, o custo real para manter o Real, CPIs intermináveis sem resultados, entre outros...

Na última imagem do site, via-se o endereço da sede, o número do CPMF, e demais registros governamentais.

Dr. Moisés perguntou a Júlio se ele já ouvira falar do MBN.

Júlio respondeu dizendo que o MBN devia ser um dos muitos movimentos a favor de alguma coisa para tirar tanto dinheiro quanto pudessem de alguém. Nada mais.

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Após duas horas e meia de viagem, o ônibus-leito da Viação Motta que seguia pela Rodovia Castelo Branco, rumo ao Mato Grosso do Sul, parou por 15 minutos, para café e banheiros no Posto Rodoserve, às margens direita da rodovia.

Júlio e Dr. Moisés ficaram alertas, com seus celulares nos bolsos, desceram com os demais passageiros para tomarem um café com pão de queijo.

Nada de anormal aconteceu enquanto desceram para o cafezinho.

Após 15 minutos de parada, voltaram aos seus lugares e o ônibus continuou a viagem. Júlio ia pensando quantos dos passageiros seriam os seqüestradores, mas não se atrevia a encarar nenhum de seus vizinhos de poltrona. De madrugada, o motorista do ônibus anunciou outra parada em Presidente Prudente.

Dr. Moisés e Júlio se preparavam para descer e tomarem outro cafezinho, quando o telefone celular de Júlio tocou e uma voz desconhecida falou em nome da Doutora Irene ordenando para que os dois falassem com o motorista, explicando-lhe que eles iam descontinuar a viagem e ficar em Presidente Prudente. Precisariam tirar a sacola do bagageiro e após pegarem a sacola era para se dirigirem ao outro lado da rua onde estava um taxi branco, estacionado com um motorista de boné azul e bigode. Ele iria levá-los para um lugar seguro.

Júlio respondeu que estava de acordo e desligou o telefone.

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Relatou ao Dr. Moisés o assunto do telefonema, pegaram suas maletas de mão e foram procurar o motorista que queria saber o motivo da desistência da viagem.

Dr. Moisés interrompeu suas perguntas lhe dizendo que havia uma emergência no Hospital das Clínicas e eles teriam que voltar para São Paulo.

O homem das bagagens trocou, de volta, o boleto-recibo pela sacola com os cinco milhões de dólares e os dois médicos executivos se encaminharam para o taxi branco que os aguardava.

Quando os dois se aproximaram, o taxista abriu a porta de trás do Vectra e pediu a sacola que Júlio levava nas mãos, colocando-a no porta-malas.

Ninguém falou com ninguém, e Júlio e o Dr. Moisés discretamente tentavam ver no retrovisor a face escondida do taxista atrás do seu vasto bigode e o boné azul do time de Ronaldinho na Espanha, o Real Madrid.

Após uns 10 minutos de voltas pela cidade de Presidente Prudente, o taxi encostou em frente a uma lanchonete, ao lado de um outro taxi com placas de São Paulo e o motorista bigodudo mandou os dois médicos executivos passarem para o outro taxi que os levaria de volta para a Capital. Comentando que essa foi a última entrega deles e que a Doutora Irene agradecia muito, lembrou, ainda, que o taxi de volta para a capital já estava pago.

Os dois médicos executivos obedeceram a ordem e, rapidamente, passaram para o banco traseiro do outro taxi. Enquanto se levantava para mudar de taxi, Dr. Moisés notou uma bengala com cabo de prata, ao lado

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do assento do taxista bigodudo e se perguntou, se o taxista tinha algum problema com a perna.

Júlio também notou, quase com certeza, que o taxi do bigodudo era seguido por dois outros Vectras pretos com filmes escuros em todos os vidros, tornando impossível ver quem e quantas pessoas estavam no interior dos veículos.

O taxista paulista começou a viagem se apresentando com o nome de Richard e mostrou sua licença de taxista da Capital. Perguntou aos dois médicos como foi o seminário de que eles participaram em Prudente.

Antes de Júlio responder com uma resposta indevida, Dr. Moisés se adiantou e disse que tudo fora bem e o único problema foi que o seminário terminara muito tarde.

O taxista Richard continuava insistindo em puxar conversa com os dois médicos dizendo que se fosse por ele todos dormiriam no hotel e seguiriam viagem amanhã, mas os seus outros colegas médicos insistiram, primeiro, para esperar vocês em frente daquela lanchonete barulhenta e depois levá-los, hoje mesmo, direto para São Paulo.

– Juro que não entendi direito esse seminário. Dois chegam. Dois voltam, mas negócio é negócio...

Dr. Moisés perguntou quanto que seus colegas pagaram pela corrida e que horas eles chegaram?

Richard respondeu que a corrida havia sido combinada ontem, ida e volta, e ele havia cobrado quatro mil reais em dinheiro.

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– Só quando chegamos aqui à meia noite foi que eles me disseram que quem voltaria seriam seus colegas de seminário. Júlio agradeceu ao motorista e perguntou se ele estava em condições de dirigir outras seis horas– Claro, respondeu o Richard. Já tomei mais do que um litro de café e estou 100% acordado e, pensando bem, é melhor ir direto só assim trabalho amanhã à tarde. O Vectra é zerinho e tenho que pagar minhas prestações em dia, se não o banco me toma o carro.

A última cena

No dia 20, às onze horas, um moto-boy da Fast-Dellivery entregou um envelope na sede do edifício da VÊNUS, na Marginal Pinheiros. O envelope estava endereçado aos cuidados de Antônio Lafayete Fontoura.

Antônio, Dr. Moisés e o Sr. Júlio estavam reunidos com a assessoria de imprensa do Grupo, discutindo as estratégias para o grande prêmio VÊNUS que seria distribuído no Sábado, quando a secretária de Antônio lhe comunicou que acabara de chegar outro envelope marrom.

Os três diretores dispensaram os assessores temporariamente e foram para a sala de Antônio verificar o conteúdo do envelope.

Antônio mencionou aos demais que, sem dúvida, deveriam ser as últimas ordens de sua mãe. Ficou surpreso quando abriu o envelope e encontrou dois

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DVDs, com indicações anexadas, sobre qual DVD eles deveriam ver primeiro.

Comandou o controle remoto para iniciar o DVD nº 1 e sentou-se para ver, novamente, sua mãe na TVA.

A quinta mensagem

Bom dia Antônio, meu filho. Bom dia Moisés e Júlio.

Obrigada mais uma vez por toda a colaboração de vocês três. Espero que a viagem ao interior de ida e volta não tenha sido muito cansativa para o Dr. Moisés e Júlio.

Como vocês estão vendo eu estou muito bem, com boa saúde, muita disposição e super animada para, a semana próxima, voltar às minhas atividades e, principalmente, estar com você Antônio.

O DVD número dois é para vocês mostrarem no dia 22, durante a entrega do prêmio VÊNUS. Tirem uma cópia do DVD e entreguem para cada uma das ONGs que receberem o prêmio. Esse gesto facilitará seus assessores de imprensa.

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Um beijo para você Antônio e um abraço para Moisés e Júlio.

Até breve.

A câmara deu um zoom no rosto sorridente de Irene e desviou para a TV, ligada no fundo de uma sala, onde, naquele momento, mostrava ao vivo uma reportagem sobre a libertação de um empresário seqüestrado há mais de sessenta dias. O Repórter entrevistava os familiares da vítima, já que o empresário, seqüestrado, se negava a falar com a imprensa alegando estar muito emocionado e abatido. A filha deste relatava à imprensa que seu pai fora torturado, maltratado e perdera uns vinte quilos. Ela ainda contou aos repórteres que, após quarenta dias de muitas negociações, acabaram pagando a metade do valor do resgate originalmente pedido pelos seqüestradores. Não quis revelar quanto foi o bote dos seqüestradores.

Antônio perguntou se os dois diretores queriam ver mais uma vez o DVD de número um, ou passar para o de número dois.

Júlio respondeu, primeiro, para passarem para o segundo DVD e que depois poderiam rever o de número um.

– Como queiram! falou Dr. Moisés.

Antônio retirou o DVD de número um e colocou o de número dois em play.

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A boa samaritana

Eu gostaria de agradecer a todos os representantes das entidades ganhadoras do prêmio VÊNUS pelo trabalho, de extrema importância, que os Senhores e Senhoras, com suas equipes, desenvolveram visando uma melhoria de vida para o povo brasileiro.

No momento atual, vossas entidades e muitas outras, bem intencionadas, estão sofrendo sérias dificuldades para conseguir recursos para a execução dos indispensáveis e necessários projetos sociais, científicos, ecológicos, políticos, entre muitos outros, já desenhados. Mas enquanto a economia de nosso país continuar patinando nessa lama de incerteza, com dificuldades de encontrar uma bússola adequada para norteá-la, projetos iguais aos seus ficarão esquecidos nas prateleiras à mercê dos ácaros.

Nós, da VÊNUS, tomamos a iniciativa de lançar, hoje, um desafio a outros grupos empresariais que atuam no Brasil, brasileiros ou estrangeiros, e até mesmo aos cidadãos preocupados com o bem-estar de suas famílias, a contribuírem financeiramente ou até

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mesmo colaborarem fisicamente para que projetos iguais aos das entidades aqui presentes sejam executados para o bem de todos aqueles que compõem os diversos andares de nossa sociedade.

Na seqüência, meu filho e vice-presidente do Grupo VÊNUS, entregará aos Senhores e Senhoras o prêmio em dinheiro, equivalente a quinhentos mil dólares, em nossa moeda nacional.

Peço mil desculpas aos Senhores e Senhoras por não estar presente nesse dia histórico. Como vocês bem sabem eu estou aqui, bem distante, recuperando-me de uma intervenção cirúrgica que, graças a Deus, correu bem. Assim que o meu médico me liberar, no mesmo dia, estarei a caminho da minha amada São Paulo.

Para terminar, gostaria de acrescentar que por trás de uma ação sempre existe uma razão.

A razão da VÊNUS é para mostrar aos brasileiros que nós não mediremos esforços para contribuir com projetos e idéias que assegurem um destino promissor às nossas futuras gerações.

Muito obrigada.

Vestida com um conjunto de linho bege, sapatos de salto altos, combinando com a bolsa marrom clara, usando um colar de esmeraldas colombianas trabalhado com ouro branco. O relógio Cartier, de ouro, no pulso, mostrava que o horário da filmagem ocorreu à tarde ou de madrugada. Irene, linda, usava uma maquiagem suave, batom branqueado, combinando com a sombra. O cabelo era escovado tipo Channel. Irene continuava sorrindo para a

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câmara, esbanjando uma beleza de dar inveja em muitas misses de 20 anos, até que a imagem, na TV, se transformou em um chuvisco eletrônico.

Os três mudos se entreolharam, e finalmente Dr. Moisés quebrou novamente o silêncio e pediu para ver mais uma vez o discurso milionário, politicamente correto, da Doutora Irene.

Após verem pela segunda vez o discurso generoso de sua mãe, Antônio perguntou aos dois diretores suas opiniões.

Dr. Moisés respondeu que, honestamente, ele era da opinião que a situação poderia, no final, favorecer a VÊNUS e suas empresas. O Júlio repitiu que, do ponto de vista fiscal, seria muito mais fácil deduzir os cinco milhões doados às ONGs do que abater da apólice de seguro ou de despesas do próprio Grupo.

– A própria Doutora Irene já se antecipou para tirarmos o máximo de proveito possível no que se refere em ajudar financeiramente essas ONGs, trocando essa ajuda pela reestruturação da imagem institucional da VÊNUS e das nossas empresas associadas.

Contrataremos uma nova agência, dinâmica, de publicidade para melhorar nossa imagem perante aqueles brasileiros que de uma maneira ou outra usam ou compram os nossos produtos. Enquanto isso a concorrência vai ficando para trás...

Antônio concordou com Dr. Moisés e esperou uma reação de Júlio.

Júlio também concordou que, comercialmente e institucionalmente, apesar dos custos bastantes

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elevados e não planejados, a VÊNUS sairia na frente no fim dessa inesperada aventura.

O segundo da lista

Estevão recebeu Barroso e os soldados em um sítio alugado anteriormente na cidade de Atibaia, ao norte da Capital. O sítio era daqueles que se aluga em beira de estradas para festas e convenções.

Já estavam reunidos há mais de três horas discutindo o plano de ação que fora denominado OPERAÇÃO CULINÁRIA.

Estevão relatou aos soldados que o Rambo e Rubio deveriam chegar a qualquer instante. Os dois já estava trabalhando nas imediações do cenário nas últimas quatro semanas. Tinham colocado uma escuta no telefone que recebia as reservas no restaurante preferido do abordado. Ele almoçava no Chateaubriand Grill uma ou duas vezes por semana. O imóvel onde ficava o restaurante era um dos milhares que o abordado alugava na capital. Possivelmente tinha um bom desconto quando lá ia, ou quem sabe lhe davam a comida de graça.

Os dois soldados, também, elaboraram três rotas de fugas, alternativas, a partir da casa alugada.

Estevão alfinetou, na parede, a foto do abordado e de mais quatro seguranças que sempre o

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acompanhavam, enquanto detalhava o cenário completo da missão.

No cenário da ação, uma vez ou outra, principalmente quando o seqüestrável se sente perseguido, seus seguranças, um ou dois, entram dentro do restaurante e ficam conversando com os seguranças do Chateaubriand Grill.

– As soldados Marisa e Júlia carregarão suas Gloks 23 compact ponto 40, na revolvera de coxas, com dois carregadores extras em suas bolsas. Este é o motivo das saias longas e rodadas com a blusas bem decotadas. Os outros clientes soldados, usando ternos Giorgio Armani, levarão suas Gloks 22, calibre ponto 40 em duas maletas executivas, super na moda, costuradas com couros de jacaré ecológicos (criados em cativeiros), também, com dois carregadores extras. Já o Rambo e Rúbio e mais quatro soldados, quando entrarem pela cozinha, vestidos de cozinheiros e garçons, estarão armados com as HK-MP5 9 mm, com quatro carregadores extras em seus largos bolsos dos uniformes de cozinheiros e chefe.

Barroso e eu chegaremos, também, com nossas Gloks escondidas. Vamos entrar 30 minutos antes do abordado. Os clientes soldados, com suas namoradas chegarão 10 minutos após o abordado. Não usaremos rádios e sim os celulares clonados, especificamente para essa missão. Os rádios serão usados a partir do momento que sairmos da casa alugada atrás do cenário. Todos sairemos por lá em dois automóveis e dois furgões. Rambo e Rúbio serão os últimos a saírem e já sabem o que fazer para despistar algum aventureiro que queira nos seguir.

A ação não deverá demorar mais do que cinco minutos, no máximo.

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Marisa, Júlia e Barroso estão escalados para atender os seguranças dentro do restaurante. Elas irão na frente com seus decotes sensuais. Eu atendo o abordado, auxiliado por Rambo. Se os seguranças do abordado acompanharem o patrão, ficarão ao lado do caixa também. Portanto, serão três ou quatro. Rúbio, Ernesto e Arine fecham a porta do restaurante por dentro e seguram o local até sairmos. O restante dos soldados controlarão os clientes e demais empregados.

Quando o Rambo e Rubio entrarem pelo quintal, receberemos o telefonema codificado. Ao passarem pela cozinha e copa, ordenarão a todos para se deitarem no chão, enquanto dois dos soldados amarram as mãos com as algemas de plástico. Um soldado cuida a retaguarda. Oito pessoas deverão estar na cozinha, entre o chefe, cozinheiros e lavadores de pratos.

Quero atenção redobrada com algum cliente, que, como nós, poderá estar armado ou, na hora H, dar uma de herói e tentar chamar ajuda.

O Rubio, na sua saída, retirará o vídeo do monitor de segurança que registra somente a entrada e a saída de clientes

Hoje, Barroso, Marisa, Júlia e eu vamos degustar a melhor carne dos Jardins para, mais uma vez, levantar o local por dentro e certificarmo-nos de que nada mudou com respeito à segurança.

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O Rei dos imóveis

Alvaro Djalma Filho não nasceu em berço de ouro. Ao contrário, veio de uma família de classe média. Seu pai era dono de duas imobiliárias, no tempo em que a Avenida São João era cobiçada pelos comerciantes paulistas.

O Sr. D. Filho, como era conhecido, abandonou os estudos no segundo ano do Científico, no Colégio Piratininga, aos 19 anos e, convocado pelo pai, começou a trabalhar em período integral na imobiliária, adicionado com os fins de semana onde dava plantão nos casarões de dois e três andares dos anos 40 e 50 que seriam logo borrados dos bastidores históricos, para dar espaço aos prédios, modernos, de apartamentos e de escritórios comerciais que mudaria para sempre o antigo visual romântico e histórico da cidade de São Paulo.

Trabalhando vorazmente e conhecedor dos melhores lotes e imóveis de São Paulo, D. Filho construiu um império incorporador, construtor e imobiliário na Capital, Santos e Guarujá.

Discreto e tímido não era conhecido da mídia modista, que sobrevive graças aos novos ricos, apesar de a logomarca de sua empresa estar espalhada em todos os bairros da Capital e da baixada santista. Há pouco

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tempo, ameaçou processar uma revista que o colocou entre as cem fortunas do Brasil.

O seu relacionamento comercial sempre foi tramado com lobistas especializados em zoneamento, autoridades judiciais, banqueiros, e diretores das caixas estaduais e federais.

D. Filho era também conhecido pelos familiares como Sr. Alvarento. Seu ex-genro o batizou com a nova alcunha por ser um tremendo sovina. D. Filho o expulsou da incorporadora após três meses de estágio.

Para tomar a decisão de comprar um carro blindado e andar com quatro seguranças, foi preciso uma tentativa de seqüestro mal sucedida que o ajudou mais tarde, talvez por medo, a se cuidar melhor. No embalo, um amigo, seqüestrável, o convenceu a colocar um chip anti-seqüestro no corpo.

Dizem as más línguas que a filha e o marido, na época, estavam por trás do falido seqüestro.

Maria, filha única com dois filhos, divorciada do caçador de dotes que perdeu a batalha para o Sr. Alvarento, não se conforma com a maneira simples de vida do pai, que a proíbe de se meter em seus negócios e rejeita a idéia de comprar mais do que um terno há cada cinco anos. O sovina lhe dá uma mesada de pai de classe média todos os meses, além de pagar a escola dos netos.

Quando chega a época de Natal, D. Filho sempre chora nos braços da amante, reclamando de não ser amado pela filha e os netos e acaba confessando que ele, realmente, não sabe gastar o que ganha com a família ou com quem quer que seja, mas aposta

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qualquer quantia que ninguém sabe fazer o dinheiro crescer como ele.

– Tenho fermento nas mãos! Gaba-se à Glorinha.A amante, Glorinha, ex-secretária e recentemente promovida a Vice-Presidente, com muitos beijos, abraços e pouco dinheiro, é a espiã do Rei. É a única que sabe onde o rico amado guarda a chave e o segredo do cofre particular. O enorme cofre fica escondido em um fundo falso, do banheiro privativo, no fundo do escritório. Na fortaleza, os dólares, empilhados, se embolaram, deformando as milhares faces de Benjamim Franklin. Lá se encontram os documentos valiosos de caixa dois e lista de propinas pagas a políticos e fiscais que dariam uma CPI tão longa como Os Lusíadas de Camões.

Glorinha não está amparada, legalmente, como Maria que é filha legítima de D. Filho, juntamente com a mãe, inválida, e os dois netos.

Vive de seu salário e ganha por ano um ou dois presentes do amante, além de viajar de vez em quando para o Guarujá acompanhando o D. Filho em alguns negócios e lazer.

D. Filho já passava dos sessenta e oito. Glorinha preocupada com sua vida futura, uma vez que era vinte anos mais nova que seu amado, consultara vários advogados, secretamente, sobre a possibilidade de vir a ter direito, ou não, na fortuna do amado, caso algo repentinamente acontecesse a D. Filho.

Todos os advogados consultados foram da mesma opinião, ou seja, opinaram que ela era apenas a amante de um homem rico e como não conviviam maritalmente, pois não moravam juntos. Ela não teria

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uma boa notícia nos tribunais, caso o amado viesse a falecer e ela reclamar de algum direito.

Os advogados consultados a alertaram que o amante era casado e domiciliado com a esposa. Pela lei brasileira, a esposa, filha e os netos eram os legítimos herdeiros legais.

Nenhum advogado soube dizer se D. Filho tinha um testamento ou não. Um dos advogados consultados lhe sugeriu mover uma ação, por assédio sexual, antes de um desfecho mais dramático na relação trabalhista e amorosa entre os dois.

Glorinha sofreu várias tentações para abrir o cofre grande e secreto de D. Filho, mas ao mesmo tempo sentia um medo mortal cada vez que se aproximava do patrimônio não declarado do amante, principalmente, quando ele não estava por perto. Algum pressentimento catastrófico a afastava do local.

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D. Filho é o novo hóspede

Sábado, dia 22 de novembro, às seis da manhã, Estevão chega no Clube Merlin de ambulância.

Seu paciente, anestesiado, dormia profundamente e não sentiu quando os quatro soldados o transportaram, em uma maca, para sua nova moradia.

Logo depois, Estevão e Gilda saboreavam o café da manhã, juntos, enquanto conferenciavam sobre o perfil do novo hóspede do Clube.

Estevão reportou a Gilda que dois dos sombras do abordado que estavam de plantão, dentro do cenário, reagiram quando o patrão fora abordado. Um levou dois tiros na mão esquerda e o outro levou um tiro no ombro direito. Ambos devem estar bem, mas com muita dor e com falta de alguns pedaços de ossos causado pelos projéteis ponto 40 das Glocks de Barroso e Marisa.

Foi uma cena cinematográfica de heróis teimosos.

Os dois sombras, mesmo tendo armas apontadas para eles, de todos os lados, tentaram sacar seus revolveres 38, Smith & Wesson, canos curtos. Barroso derrubou um, e Marisa, o outro. Júlia desencorajou outros dois seguranças que trabalhavam no cenário, mas não eram empregados pelo abordado.

Depois disso, tudo correu bem, foi como faca quente na manteiga. Todos os presentes se comportaram como anjinhos, receando a mão do mais forte.

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Não houve nenhum contratempo depois do tiroteio ou durante a escapada pelos Jardins. O abordado, antes de vir para a direção oeste, foi estripado de seu bug eletrônico, viajando de ambulância na Via Dutra, sentido Rio de Janeiro.

– Após a cirurgia fizemos o retorno e voltamos em direção a São Paulo. A Rodovia Castelo Branco estava um tapete e completamente deserta. O cirurgião clandestino deu um sedativo ao abordado, e ele deverá dormir, sonhando com seus milhões, até o meio dia.

Yves perguntou como estava se comportando o resto dos soldados. Antes de levantar-se da mesa perguntou por Irene.

Gilda olhou para cima, maliciosamente, e respondeu que ela estava muito bem! Reportou a Yves que tudo ia cem por cento com os soldados, já adaptados à rotina do Clube. Irene estava sob controle e andava muito feliz consigo mesma. Não deu mais trabalho a ninguém. Montava o Copper todos os dias, fazia ginástica, lia tudo que encontrava pela frente e não queria devolver um DVD que haviam alugado para ela em Avaré.

– Qual DVD? perguntou Yves.

– Casablanca. O original! Com Humphrey Bogart e Ingrid Bergman, falou Gilda, comentando que Irene já devia ter visto o filme pelo menos cinco vezes na última semana. – – Até eu, que me considero durona, engoli, silenciosamente, algumas lágrimas no primeiro dia que vi, pela primeira vez, o filme a convite da Doutora.

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– Ela, ainda, não sabe que você está aqui, estava esperando-o para o almoço no domingo.

O horário de Irene levantar-se, no Clube, fora estabelecido, por ela mesmo, às oito da manhã. Como de costume, fizera seu breakfast light, na varanda do Clube e logo a seguir caminhou até as baias para dar o rotineiro passeio com Copper em um dos piquetes gramados do Clube.

De longe, antes de chegar às baias, notou que algo diferente estava para acontecer. Sua rotina era acompanhada, diariamente, por três cavaleiros. Um seguia na frente, Copper no meio e dois outros cavalos logo atrás.

Ao se aproximar da veterinária, notou que só Copper e um outro cavalo baio estavam selados. Quando entrou na sala para perguntar a um dos plantonistas o que estava acontecendo, deu de cara com Yves, sentado em um banco de madeira, colocando suas botas de montar.

Surpresa, Irene deu um bom dia acanhado sem saber o que fazer e para onde olhar. Yves levantou-se, veio ao seu encontro e cumprimentou-a apertando sua mão e lhe dando os dois beijos tradicionais, um em cada lado da face.

Irene, trêmula, segurou a sua mão e lhe deu mais um beijo, na face, dizendo que o extra era para dar sorte.

Yves, sorrindo e balançando a cabeça, respondeu que realmente ia precisar de muita sorte depois que ela fosse libertada nos próximos dias.

– Por que? perguntou Irene.

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– Eu tenho o poder sobre você agora e aqui. Mas depois de eu libertá-la e se você quiser, poderá desafiar-me, respaldada pela lei, ou fora dela, e aí teremos uma situação que um de nós irá, realmente, precisar de muita sorte.

Até o momento me sinto um ganhador, solo, da Mega Sena.

– Yves! você me deixa nervosa com essa maneira de querer prever o que farei ou não quando sair daqui. No momento, a única coisa que eu quero é estar com meu filho e ser livre, novamente, para ir, pensar e decidir quando e o que sobre a minha vida e meus negócios.

O seu MBN e seus objetivos, no momento, são secundários. Ainda não me decidi a respeito do seu futuro partido e quanto a você, em particular, já tomei uma decisão e estou aguardando o momento oportuno para lhe falar.

– OK! OK! Hoje você vai ter uma companhia diferente em seu passeio, matinal, indicando o cavalo baio e depois apontando o dedo indicador para seu próprio peito.

– Ah! Eu pensei que você só era um cowboy do ar. Não imaginava que você sabia andar a cavalo. Você sabe? Ou eu terei que lhe dar a primeira aula hoje? E pelo jeito vamos só nós dois. Você não tem medo de eu fugir em disparada? perguntou Irene.

– Acho que não vai ser preciso. No caminho, contarei um pouco sobre minha infância e parte da minha adolescência onde fui criado, na fazenda de meus pais montando matungos diariamente. Nunca tive um puro

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sangue, perfeito, igual ao Copper aqui ao lado, mas mesmo assim dava os meus galopes.

Hoje as selas, os cavalos e costumes são diferentes.

Naqueles tempos os capatazes e peões usavam um Colt Cavalinho ou Smith & Wesson niquelado, acompanhado com uma peixeira, no cinto, depois veio o canivete suíço. Hoje em dia, os capatazes foram promovidos a administradores e levam no cinto um celular Nokia ou um Motorola.

Às vezes, eu penso nessa transformação rápida do homem rural e vislumbro um panorama cômico em que um administrador, preparando-se para castrar uma boiada que o espera no brete, leva à mão ao cinto para tirar o canivete, mas só encontra o celular, o qual, imediatamente, é sacado da bainha para ligar, dali mesmo, para a sede da fazenda, a uns 50 metros, e pedir para um dos meninos, que assiste televisão, trazer o seu canivete que a última vez que usou, no ano passado, deixara em uma das gavetas da cômoda de cerejeira em seu quarto.

Irene não achou graça da piada de Yves e montou em Copper sem a ajuda de ninguém.

Yves montou, em estilo índio americano, sem colocar o pé no estribo, e perguntou a Irene porque ela se aborreceu. – Parece que você não gostou da minha visão tecnológica com respeito ao capatazes modernos, comentou Yves.

Irene respondeu, na defensiva:

– Isso é uma bobagem! O meu administrador sempre usa o seu canivete suíço, autêntico. Eu mesma é que

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dei para ele de presente e comprei-o em uma das viagens que fiz a Lugano.

– OK! OK! Eu não pude conferir isso no dia da sua abordagem porque ele não estava lá . Mas, uma coisa eu sei com certeza, ele ainda usa o seu canivete porque lá na Limoeiro vocês não têm recepção para telefonia celular. Aposto com você que quando o sinal chegar lá, o Dr. Marcílio trocará o seu suíço, de aço, por um plástico eletrônico montado em Manaus.

Irene, que acordara bem-humorada, estava fumegando por dentro com o Monsieur-sabe-tudo de sua vida e de seus empregados. Bateu as botas em Copper para um galope mais rápido e testar, realmente, se o Cowboy Espacial poderia acompanhá-la em uma corrida.

Yves, firme ao seu lado, sentiu, levemente a fragrância do Caraná-AM misturado com o cheiro de grama, suor de Irene e odor dos cavalos.

De fato fazia um tempo que não cavalgava e estava admirado com a postura ereta de Irene em cima do Quarto de Milha. Enquanto galopava pensou que Irene poderia competir na Festa do Peão, em Barretos, que com certeza levaria a taça de ouro.

Ao voltarem para os estábulos, Irene, mais calma, perguntou a Yves onde ele tinha conseguido Copper.

– É uma longa história, mas vou torná-la a mais breve possível.

Como já lhe disse antes, não sou um assassino. Gosto muito de animais e das pessoas, também.

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A única coisa que matei na vida e que quase me levou junto com ele, foi um urubu com qual me trombei quando descia a 200 quilômetros por hora, em salto livre, estilo Free Flyer, (de cabeça para baixo) antes do meu pára-quedas abrir, em uma das demonstrações de pára-quedistas no Campos dos Afonsos. Bati no agente funerário, ou ele bateu em mim, nunca iremos saber.

Sei muitas coisa sobre você. É o que faço nesses últimos tempos. Ando por ai xereteando a vida de alguns milionários, e nessas xereteações aprendi que você cria cavalos, Quarto de Milhas, e gosta de montá-los.

Para tornar sua estada aqui mais agradável pensei que um cavalo especial poderia ajudá-la e, principalmente, preencher os seus longos dias de solidão.

Tenho uma amiga, americana, no Colorado, que é uma das maiores criadoras de Quarto de Milhas dos Estados Unidos. Dei-lheei um telefonema e disse que precisava, urgente, de um cavalo muito especial e manso. A Mrs. Thora Hanson me mandou o seu cavalo em três dias.

– Muito bem! disse Irene.

Agora, eu, gostaria de saber quando é que você vai mandar o meu cavalo para a Limoeiro? E quando é que vou dar alta de sua agradábilissima clínica para pacientes tristes e solitários?

– Hoje à tarde o seu filho, Antônio, entregará os prêmios VÊNUS às ONGs escolhidas pelo MBN. Depois de assistirmos à entrega dos troféus milionários, você escolherá o local que gostaria de ser libertada. OK? E

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quanto ao Copper, você é quem sabe qual o dia que gostaria de recebê-lo na Limoeiro ou em outro haras qualquer.

Irene pensou, por um instante, perguntando, desconfiada, a Yves onde é que iriam assistir à entrega do prêmio VÊNUS.

Yves respondeu que poderiam ver no salão social do Clube, juntamente com Gilda e sua equipe que estariam acompanhados de um novo hóspede que havia chegado hoje cedo de São Paulo.

Continuou explicando a Irene que o presidente do MBN iria, como os outros presidentes das outras ONGs, receber pessoalmente o prêmio VÊNUS e que sua assessoria de imprensa iria filmar, também, todo o evento e transmitir ao vivo, via vídeo-fone, para nós aqui no Clube.

Gilda e o técnico já estão instalando os monitores para a recepção e logo vamos testar como está a imagem.

Irene, surpresa, foi tomada por uma alegria eufórica com a possibilidade de ver Antônio, ao vivo na TV, depois de quase três meses sem ouvir a sua voz, ou vê-lo de perto.

Aproximou-se devagar de Yves e lhe perguntou se a história do vídeo-fone era verdadeira ou outra piada como a do canivete.

Yves, sorrindo, respondeu que graças às maravilhas da tecnologia moderna eles poderiam ver a entrega dos prêmios VÊNUS, de qualquer lugar do planeta. Inclusive na Clínica dos tristes e solitários.

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Irene se aproximou mais de Yves com o corpo trêmulo e abraçou-o pelos ombros, enquanto olhava para todos os lados à procura dos plantonistas que sempre a espreitavam, como se ela fosse fazer algo de errado.

O beijo quente, úmido, com cheiro amazônico durou uma eternidade até que Copper, com ciúmes ou talvez protegendo a sua melhor amiga, deu uma mordida suave, no traseiro de Yves, fazendo com que ele largasse sua presa momentaneamente.

Os dois riram juntos e voltaram aos beijos, apaixonados, como se fossem dois namorados, de 15 anos, escondidos dos pais.

Yves, segurando, entre as suas mãos, aquele rosto de Deusa, que logo partiria, falou:

– Beijemo-nos até que sua liberdade nos separe.

Após os beijos espremidos em um voluptuoso silêncio nos braços de Yves, Irene teve um surto de choro que foi preciso que sua nova paixão lhe trouxesse um copo d’água, da geladeira da veterinária, para acalmar os soluços em cascatas.

Yves preferiu não perguntar nada a Irene. Sua cabeça também estava às voltas com aquele sentimento raro, nunca antes compartilhado com outra mulher.

Acompanhou-a até a sua suíte, deu-lhe um beijo na face, saiu para o corredor e chaveou a porta pelo lado de fora. Resolveu ir à procura de Gilda.

Irene, trancada em sua suíte, com lágrimas nos olhos, tentava visualizar o rosto e os olhos verdes daquele

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homem, alto, moreno, maduro, por quem se apaixonara loucamente.

Gilda, toda sorridente, relatou a Yves que fizeram um teste, positivo, no monitor pequeno do salão de jogos e agora iam instalar o receptor no telão da Sony.

Yves perguntou como estava o novo hóspede.

– Está almoçando em sua suíte. Já tomou os remédios e, ainda, está um pouco assustado. Você quer falar com ele agora ou depois do almoço? perguntou Gilda.

– Após o almoço e antes da entrega dos prêmios, respondeu Yves, saindo em direção dos seus aposentos.

Tomou um banho frio para espantar os cupidos que flutuavam por todos os cantos de seus aposentos, mandados pela mãe. Os anjinhos lhe davam flexadas, tocavam harpas em seus ouvidos e lhe apontavam o caminho do altar onde a Deusa das formosuras e dos prazeres, vestida de branco transparente, entrava montada em Copper, preparada para enterrar, de vez, a sua viuvez no limbo do passado.

Irene também tomou um banho e muito nervosa não decidia o que usar para o almoço com Yves. Finalmente optou por algo simples. Jeans e uma blusa amarela com os confortáveis Nike. Chamou Gilda para ajudá-la no cabelo e maquiagem.Gilda perguntou como ela queria o visual. Irene lhe deu a oportunidade de escolher entre conservador e um pouquinho mais moderno. Gilda optou pela segunda escolha.

Gilda passou um hidratante antes da massagem. Depois aplicou a base. Enquanto esperava secar a

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base, Irene perguntou a Gilda se o teste da transmissão tinha dado certo.

Gilda respondeu que sim, enquanto passava um pó compacto facial para a base absorver o produto. Em seguida, com a ponta do dedo, passou uma sombra salmão na pálpebra e o rímel nos cílios. Nas bochechas passou um blush tom rosado e por último um batom combinando com a sombra.

Ao sair da suíte, Irene passa o seu Caraná-AM nos pulsos, atrás das orelhas e um gota entre os seios.

Yves, servido pelos soldados garçons, já estava no seu segundo copo de suco de laranja quando sentiu a fragrância do Caraná-AM. Com certeza Irene não o usou hoje de manhã, pois ele só percebeu o aroma no campo, depois de ela suar um pouco.

– Estou me sentindo melhor depois do chuveiro massagem, disse Irene ao se sentar na cadeira que Yves gentilmente oferecera. Mas o meu apetite rotineiro se esvaiu nos estábulos. Estou completamente sem fome.

Acho que estou querendo resolver tudo o que passa pela minha mente agora, mas não consigo processar os resultados de uma maneira favorável a um relacionamento duradouro entre você e eu.

– Pare com essa mania de Executiva Profissional. O que está acontecendo entre nós não foi programado por um computador que, com um toque no teclado, faz aparecer, instantaneamente, no monitor os resultados desejados. Vamos dar um tempo ao nossos dias futuros e logo descobriremos a melhor maneira de resolver esse nosso novo relacionamento.

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– Eu também, procurei, na ducha fria, afugentar alguns pensamentos que me tentavam, de uma maneira deliciosa, a apaixonar-me para sempre por você, declarou Yves com muito custo.

– OH! Yves! Quer dizer que você, também, pelo menos está admitindo que poderia estar apaixonado.

– Acho que sim. O meu único receio é que minhas células defensivas ainda apostam na possibilidade de você estar planejando em dar o troco. Fingir-se de apaixonada e depois me cortar a cabeça.

– Você é, realmente, um desconhecedor do amor, em todos os sentidos, falou Irene, com uma cara de dó, de seu inexperiente Monsieur-sabe-tudo.

Yves, também, perdera o apetite e olhando no relógio, disse a Irene que tinha uma reunião com o novo hóspede e que a veria logo mais no salão de jogos do Clube, onde assistiriam a entrega dos prêmios VÊNUS.

Irene quis saber quem era o novo hóspede que ficaria em seu lugar.

– É um paulista, chamado Álvaro Djalma Filho, respondeu Yves, esperando para ver sua reação.Irene não se conteve e começou a rir tão gostosamente que Yves também teve que rir daquela alegria espontânea que não parava de se alegrar.

Irene, com muita dificuldade, conseguiu perguntar se era o D. Filho, em pessoa.

– Sim, respondeu Yves. É ele mesmo.

A nova gargalhada de Irene chamou a atenção dos plantonistas que a espreitavam à distância. Continuou

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a rir estrepitosamente até que se engasgou por falta de ar. Yves teve que socorrê-la, novamente, com outro copo d’água.

Esperou até que o ataque de risos de Irene se enfraquecesse para lhe perguntar por que tanta graça.

Irene, ainda, tossindo desafiou Yves a apostar, com ela, que o Sr. D. Filho não iria contribuir para o seu partido com nenhum centavo.

– OK! OK! respondeu Yves, todo contente com a possibilidade de ganhar mais uma aposta no período de duas semanas.

– O que é que você quer apostar? perguntou o profissional em desafios.

Irene, ainda rindo, propôs a Yves:

– Se o Sr. D. Filho lhe pagar o que o seu partido pedir a ele, você me paga um jantar em Paris. Viagem e hotel por minha conta.

Se o Sr. Alvarento não lhe der um centavo, você me paga só dez por cento do valor que o seu partido pediu a ele.

– Está bem assim! ou você quer nominar os prêmios? perguntou Irene.

– Não entendi bem a sua aposta e por que o nome de Alvarento? perguntou Yves, rindo de Irene.

– A aposta não muda! E se eu lhe contar porque o D. Filho tem outro nome você não vai querer selar a aposta.

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– Está selada, de qualquer maneira, falou Yves enquanto se encaminhava na direção da suíte de D. Filho.

Yves bateu três vezes e entrou, sem se anunciar, na suíte do novo hóspede.

D. Filho estava vendo TV e pareceu não se preocupar muito com a presença de Yves em seu quarto confortável com vista para o lago e os campos do Clube Merlin.

Yves perguntou se ele já tinha lido as normas do Clube, como ele estava se sentindo e se precisava de alguma coisa.

D. Filho respondeu que já tinha dado uma olhada nas normas e que para ele estava tudo bem. Calculista, quis saber exatamente o que estava acontecendo e para quem os seqüestradores iriam pedir o resgate.

– Eu gostaria de falar sobre isso amanhã, depois que o Senhor descansar um pouco mais da viagem e cirurgia, respondeu Yves.

Hoje eu quero convidá-lo para assistir a uma entrega de um prêmio muito especial, em São Paulo, que tem tudo a ver com o motivo da sua presença aqui no nosso Clube. Também está hospedada, aqui no Clube, há mais de onze semanas, uma hóspede que talvez o Sr. a conheça. Ela será libertada amanhã.

Eu vou lhe mandar dois plantonistas daqui a dez minutos para ajudá-lo chegar até o salão de jogos. OK? Já arrumamos um lugar confortável para o senhor.

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D. Filho concordou com Yves, acenando um sim com a cabeça e desviou o olhar para o chão. Pensava rapidamente quem seria esse seco senhor a lhe dar ordens, onde estaria e quem era essa outra hóspede que estava de saída. Seria também uma seqüestrada? Pensou até na filha, Maria. Seria ela? Havia dias que não falava com ela e tampouco lembrava-se da última vez que a vira. Com certeza, no fim do mês passado, no dia da mesada dela e dos netos...

O prêmio VÊNUS

Só não estavam no salão de jogos os dois soldados escalados para vigiarem o portão de entrada do Clube Merlin.

Irene fora a primeira a se sentar em frente ao telão que chuviscava, aguardando a chegada das imagens da Capital.

Gilda e seu novo hóspede, acompanhado de outros dois plantonistas, entraram no salão, vindo da ala leste do Clube.

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D. Filho não a reconheceu imediatamente. Havia algum tempo que não a via pessoalmente, e não se lembrava qual revista, da ante-sala de seu escritório principal, que trazia a foto dela na capa. A foto era de Irene Fontoura, a toda poderosa presidente do Grupo VÊNUS.

D. Filho perguntou, baixinho, a Gilda se a senhora, bonita, sentada na poltrona da frente não seria a Doutora Irene Fontoura.

– Sim, é ela mesmo, eespondeu Gilda, acrescentando que a Doutora iria embora no outro dia.

D. Filho perguntou há quanto tempo ela estava “hospedada” no Clube.

– Há exatamente 76 dias. E se o Sr. se lembra das regras, é só essa informação que lhe posso dar, no momento. Caso o senhor quiser saber de algo mais, a esse respeito, pergunte ao senhor Yves. Está bem?

Naquele momento, Yves entrou pela porta principal do salão e se encaminhou para o lado de Irene onde se sentou confortavelmente ao lado da patrocinadora dos prêmios VÊNUS.

Irene, alegre, segurou a mão de Yves, sem tirar os olhos do telão que começara a transmitir algumas imagens de dentro do auditório Aurélio Fontoura, no terceiro andar do imponente edifício envidraçado da Marginal Pinheiros, em São Paulo.

A imagen, muda, focalizava o palco do auditório decorado com bandeiras do Município, Estado e a mais amada por todos os brasileiros, a verde e amarela, azul e branco.

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O cameraman começou a dar uma virada para a esquerda, e a imagem da tela se encheu com um auditório lotado de pessoas, todas sentadas, alegres, bem vestidas, conversando umas com as outras. Ao fundo, via-se a imprensa filmando, fotografando, entrevistando.

Repentinamente, saiu o som do burburinho TV afora e Irene se arrepiou toda com seus pensamentos sendo transportados a São Paulo para desejar boa sorte ao seu amado filho.

O mestre de cerimônia anunciou o dia histórico da entrega dos prêmios VÊNUS. Agradeceu a todos os presentes por terem comparecido e apresentou o Dr. Moises Rabinovitch, diretor jurídico, que faria um breve histórico do Grupo VÊNUS.

– Boa tarde Senhoras e Senhores.

A VÊNUS é uma Holding cem por cento Nacional e controla várias empresas de diferentes atividades comerciais e industriais no Brasil e Mercosul. O saudoso Aurélio Gomes Fontoura fundou a primeira empresa do Grupo quando tinha 20 anos. De lá para cá, o Grupo VÊNUS não parou de crescer e hoje o conglomerado é dirigido pela Doutora Irene Lafayete Fontoura e seu filho, Sr. Antônio Lafayete Fontoura.

A Doutora Irene não está presente, mas na seqüência vocês assistirão sua mensagem aqui na tela, panorâmica, do auditório. Logo após a mensagem da Doutora Irene, o Vice-Presidente do Grupo VÊNUS, Senhor Antônio Fontoura entregará os prêmios aos distintos administradores dessas organizações não governamentais, por nós eleitas, que souberam escolher seus objetivos com muito trabalho e responsabilidade. Muito obrigado.

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O som da TV é tomado por aplausos e o cameraman deu um close-up no próximo candidato a subir ao palco.

Na tela apareceu Antônio, sorridente, acompanhado da namorada, tia e da sua avó, cumprimentando alguns estranhos.

Irene apertou forte a mão de Yves e lágrimas escorreram na sua maquiagem moderna, recentemente esculpida por Gilda. Despreparada, não tinha levado consigo seu nécessaire quando foi raptada. Yves levantou-se, também sem lenço, e pegou um guardanapo de papel de cima de uma das mesas e passou para Irene secar sua triste alegria.

Nesse momento, Irene foi transportada para o telão do Clube e ela estremeceu ao ver a sua imagem no telão. Yves segurou suas duas mãos e lhe deu um beijo, na testa, de parabéns na frente de todos os soldados e do novo hóspede que a tudo assistia e se recusava a querer compreender o que estava acontecendo.

Após a breve mensagem de Irene, todos os soldados aplaudiram, juntamente com os presidentes e diretores das ONGs, jornalistas, diretores da VÊNUS e seus familiares.

Quando D. Filho, animado, com tantas palmas ia, também, começar a esquentar suas mãos, os aplausos cessaram. Sem graça, sorriu para Gilda que o observava com um dos olhos.

A TV mostrou a imagem de Antônio Fontoura subindo para seu début ao palco social da vida. Alegre, vestindo um smoking novo, dirigiu-se à platéia, sem o

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discurso no bolso, e começou a se comunicar, publicamente, com os brasileiros, pela primeira vez.

– Boa tarde Senhoras e Senhores.

Como vocês viram, na tela, minutos atrás, a presidente do Grupo VÊNUS, Doutora Irene Fontoura, fez o nosso discurso, portanto não vou tomar o vosso tempo com mais oratórias.

As senhoras e os senhores viram que a Doutora Irene me pediu para entregar às suas Instituições os prêmios equivalentes a quinhentos mil dólares em moeda corrente nacional. O nosso Real.

É muito pouco dinheiro, vocês não acham?As risadas de concordância e aplausos no auditório chegaram rapidamente ao Clube Merlin, pegando Yves e Irene de surpresa.

– Muito bem! continuou Antônio.

Agora! As senhoras e os senhores que concordaram comigo que os quinhentos mil dólares doados aqui, nesse momento, é pouco dinheiro, então, por favor me respondam se as dezenas de milhões de dólares depositados na Suíça e em outros paraísos fiscais, em nome de homens que ocupam ou ocupavam cargos públicos no Brasil, recentemente, é muito dinheiro ou não.

A ovação, em pé, no auditório, foi instantânea.

O cameraman teve dúvidas para onde dirigir o foco da câmara. Tentava focalizar, no auditório, o público delirante e, ao mesmo tempo, o corajoso empresário que falava publicamente sobre corrupção e desvio de dinheiro do povo brasileiro. Finalmente decidiu-se pelo

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executivo de 25 anos que acabara de entrar, sem querer, na vida política brasileira, sem saber que, também, algumas de suas empresas contribuíram, como muitas outras brasileiras e multinacionais, para engordar os depósitos de certos homens públicos no exterior.

O inocente Antônio Fontoura aguardava a euforia dos espectadores da platéia se acalmar para continuar a entrega dos prêmios.

Quando todos cessaram os aplausos e se sentaram, Antônio continuou seu desabafo, improvisado, falando que se sentia orgulhoso em poder entregar o prêmio VÊNUS a tão distintos merecedores e que esperava que esse gesto, histórico, servisse de exemplo para que outras empresas também contribuíssem com a motivação de pesquisadores, cientistas, protetores da natureza, saúde, educação e, por que não mencionar, também, daqueles que desenhavam o futuro do país.

Antônio foi aplaudido mais uma vez e auxiliado pelo mestre de cerimônias, chamou a primeira ONG para receber o Diploma VÊNUS e o milionário prêmio em dinheiro.

Ao mesmo tempo, Júlio apareceu no palco, escoltado, por quatro seguranças armados, com revolveres calibres 38 e escopetas calibres 12. Eram os protetores do Banco de Irene que carregavam, em um carrinho de quatro rodas, uma pilha enorme de Reais, em notas de 50 e 100, empacotadas em plástico transparente.

Uma a uma, as Ongs subiram ao palco para receber os seus milhões, seguidas da imprensa que tudo via e filmava.

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O diretor financeiro, Sr. Júlio, pediu aos ganhadores do prêmio VÊNUS um minuto de atenção.

Todos no auditório e palco ficaram calados a espera de novas instruções.

Júlio falou aos presentes que, devido à violência e à falta de segurança na maioria dos bairros de São Paulo, o Banco do Grupo VÊNUS poderia, se as ONGs assim quisessem, deixar o dinheiro depositado no próprio Banco ou a VÊNUS transportaria a importância em seus carros- fortes, blindados, para onde os ganhadores determinassem.

A discussão foi generalizada entre as ONGs ganhadoras. Após deliberarem, todas, com exceção do MBN, concordaram com o perigo que rondava a maior cidade da América Latina, por isso decidiram não desfilarem por São Paulo com aquela montanha de dinheiro, optando pelo depósito em conta corrente. Duas das ONGs já tinham contas com o Banco de Irene, o que facilitou as tramitações.

Enquanto as assessorias de imprensa das ONGs filmavam seus diretores assinando os formulários das aberturas de contas, o pessoal do MBN empacotava o seu prêmio em quatro sacolas de nylon pretas.

Houve diversas seções para fotos,individuais e em grupo após a entrega dos prêmios e cada um dos representantes das organizações não governamentais declamou um relato sobre seus objetivos e agradeceu pela importante contribuição ora recebida.

Dr. Moisés encerrou a cerimônia, agradecendo, mais uma vez aqueles que se destacaram pelos projetos, tão necessários, para o desenvolvimento do Brasil.

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Convidou todos para irem até o salão nobre onde seriam servidos os aperitivos.

O telão do Clube Merlin mostrou todos do auditório se levantando em meio a aplausos e se dirigindo para os corredores que levavam para o hall de entrada, onde seriam servidos os cocktails.

Ao chegar no hall social, o representante do MBN perguntou ao Sr. Antônio Fontoura se ele poderia dar uma entrevista ao seu repórter.

– Será um prazer, declarou Antônio.

Antônio apareceu, sorridente, no telão do Clube Merlin.

Irene ficou eufórica vendo seu herdeiro chegando até ela no telão.

O repórter do MBN perguntou o que levou o Grupo VÊNUS a tomar a decisão de contribuir com uma soma bastante elevada para várias organizações não governamentais.

Antônio, calmo e confidente, respondeu que a Doutora Irene já tinha dado essa resposta em sua mensagem, mas que ele responderia assim mesmo.

– Eu sou formado em administração de empresas e ultimamente tenho trabalhado muito para equilibrar as contas do Grupo VÊNUS. A crise financeira, globalizada, que também afeta o Brasil, já atingiu, no coração, as organizações não governamentais, que não possuem um fluxo de caixa constante, igual ao das empresas de grande porte.

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As ONGs são as primeiras a não conseguirem recursos para tocar seus pprojetos sociais. Como você bem sabe, a maioria delas sobrevive de doações e parcerias mesquinhas para executar seus necessários projetos. Por isso nós da VÊNUS, com um fluxo de caixa ainda em condições razoáveis, e pensando nas futuras gerações, decidimos fazer essa doação.

O repórter perguntou, em seguida, por que a comparação entre a quantia doada e o dinheiro da corrupção que sai para fora do País.

– É simples, respondeu Antônio. Com um sorriso de deixar amarelados os garotos propaganda de pasta de dentes.

Hoje a VÊNUS doou, em dinheiro, a importância equivalente a cinco milhões de dólares os quais serão de extrema utilidade e importância para a implantação de diversos projetos sociais. Agora o Senhor imagine o que essas organizações não governamentais e o próprio governo poderiam desenvolver e implementar com as dezenas de milhões de dólares que saem do País, frutos de corrupção, para render juros no exterior em nome de meia dúzia de intocáveis.

O repórter agradeceu ao patrocinador do evento e o cameraman mostrou mais uma vez o burburinho na ante-sala do auditório e congelou sua imagem em uma escultura de bronze do fundador do Grupo VÊNUS.

Irene, alegre e nervosa, largou a mão de Yves e se dirigiu até o bar para tomar um copo de água natural.

Yves foi ao encontro ao novo hóspede, Sr. D. Filho, e lhe comunicou que viajaria no outro dia. Sugeriu que

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eles almoçassem juntos no domingo para discutirem sua estadia no Clube.

D. Filho, ainda confuso com aquele sonho real, concordou que o encontraria para o almoço na varanda do clube às 13 horas de domingo.

Yves reencontrou Irene e a convidou para dar uma caminhada pelo bosque do Clube.

Irene aceitou a sugestão e os dois partiram em direção ao mato.

Yves perguntou a Irene o que ela achou da entrega dos prêmios.

– Foi muito boa. Mas quando é que vocês vão parar de escrever o nosso discurso? perguntou Irene.

– Como assim? responde Yves.

O discurso e a entrevista do Antônio foram completamente políticos. Você não deveria tê-lo envolvido daquela maneira. Ele é tão jovem e inexperiente. Eu gostaria que você preservasse as decisões dele. Está bem? pediu Irene.

– Se você está se referindo à comparação que ele fez entre o dinheiro doado e o da corrupção, sinto muito, mas o parâmetro não foi idéia nossa. Pelo jeito partiu dele mesmo ou de seus diretores. A única interferência nossa, com respeito à doação, foi o seu discurso, que, por sinal, foi muito aplaudido e politicamente correto.

Irene, que estava preocupada com a possibilidade de Antônio estar seguindo ordens do MBN, agora ficara surpresa com o modo espontâneo e objetivo de seu

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filho se comunicar. Ponderava consigo mesmo se isso era bom ou ruim.

Yves pareceu adivinhar os pensamentos de Irene, comentando que Antônio teria um futuro político brilhante se quisesse seguir por esse caminho de turbulências e céu de brigadeiro.

– Ele ainda não leu os nossos estatutos e objetivos sociais, mas sua linguagem é como se já estivesse diplomado pelo MBN. Quem sabe, mais tarde, quando a sociedade nos abraçar de vez, ele queira nos representar e chegar até topo do Planalto

– Não! Yves, por favor, ele é tão ingênuo, deixe-o fora disso. Eu vou ajudá-lo, já estou doutrinada. A única coisa que não estava em meus planos foi essa paixão ardente que sinto dentro de mim. Não sei por que fui me apaixonar pelo homem que me seqüestrou...

Com tantos marmanjos atrás do meu dinheiro e de mim, fui gostar justamente de você. Ainda não tenho a menor idéia o que vou dizer ao meu filho e aos meus diretores, quando os vir.

Yves continuava o passeio, de mãos dadas com Irene, por entre as árvores. Respirou fundo, inalando o Caraná-AM misturado com o cheiro de eucaliptos silvestres que tentavam competir com o olente amazônico e falou, em tom sério, para Irene: – Eu não tenho o mesmo problema seu, mas no seu lugar eu esperaria um pouco mais para dar qualquer tipo de explicações a quem quer que seja. Primeiro, você terá que ter certeza do que realmente você quer da vida. Na hora que você souber isso, o resto virá naturalmente.

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Se sua paixão transformar-se em amor já é um bom sinal.

Veja eu, por exemplo.

Acho que estou apaixonando por você, também. Mas essa paixão não vai parar o meu avião se arremetendo. Você já viu que o outro hóspede me espera para negociar e outros virão depois deste. Pelo menos por dois anos estarei ocupado com essa atividade do MBN, dando uma de espião e Robin Hood, ou de chantagista, ladrão e de bandido, se, por acaso, algum de nossos parceiros resolverem virar a casaca e nos denunciarem.

Eu, com certeza absoluta, às vezes terei que enfrentar situações em que vidas humanas estarão em jogo e nem isso me fará parar o que já comecei. Para mim isso é um vício com tempo determinado para curar. Já lhe disse que serão dois anos.

Para nós do MBN, é uma aposta, política, que sabemos que vamos ganhar, porque temos a vantagem de saber e provar os podres de todos aqueles que têm muito dinheiro nesse país.

O jogo político no Brasil, por trás dos bastidores, é como numa jogatina de pôquer. Nós do MBN vamos entrar no jogo para valer. Cada vez que tivermos um Royal Straight Flush na mão e, ainda por cima, do naipe de ouro, apostaremos tudo o que temos!

Você tem razão em estar preocupada com o Antônio, porque hoje, na sua oratória improvisada, ele não sabia dos males que eu sei sobre suas empresas. No futuro, se for preciso, eu o ajudarei a reverter qualquer respingo sobre o incidente de hoje. Creio

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que isso vai passar batido, mas seria bom que o próximo smoking dele seja de teflon.

Eu já sou um homem vivido e já vi a morte de perto diversas vezes. Ela já não me assusta mais. Não que eu queira acelerar esse processo, mas para mim a vida é também um jogo. Quando ganho, ganho mais coragem de ir um passo a mais. Até hoje ainda não perdi... – OH! Yves, você vai me matar, antes da hora, com essas suas idéias de criar um Brasil novo. Por favor, vamos embora juntos. Vamos tirar umas férias e ir para a Europa ou Nova York. O Antônio cuida dos meus negócios e a Gilda dos seus. Na volta você se decide. Está bem?

Yves terminou a caminhada colocando o seu dedo indicador sobre os lábios sedutores de Irene, pedindo silêncio.

Abraçou-a contra uma árvore e a beijou-a loucamente, sob a sombra dos eucaliptos, que não conseguiam roubar o aroma do Caraná-AM que exalava daquele corpo trêmulo. Ali mesmo, em cima do gramado, arfantes, um despia o outro com o mesmo desejo veemente.

Sentaram, deitaram, deitados rolaram, gemeram de bruços, de costas, de lado, por cima, por baixo. E de todas as partes, daqueles corpos esculturais, brotavam paixões, até que lentamente recuperaram a lucidez. Irene, desenviuvada para sempre, suada, molhada, estremecida, esperava outra investida daquele que seria o seu segundo e verdadeiro amor.

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Yves com o coração ritmado, na mesma velocidade que quando caía em queda livre, abraçou Irene, novamente, recomeçando aquela alucinógena, excitante e apaixonante aventura.

Já era noite quando voltaram para o Clube. Irene foi direto para sua suíte e com muito receio passou em frente ao canil, onde meia dúzia de Pit Bulls tentavam mordê-la por entre os vãos do alambrado.

Yves, disfarçando, acompanhou dois soldados que davam ração para os cachorros. Perguntou por onde andava Gilda. Um dos soldados respondeu que ela deveria estar jantando com o novo hóspede.

Yves sentou-se ao lado dos dois e disse para uma das soldados garçonetes que queria um suco de laranja. Perguntou a D. Filho como é que estava a perna e se a comida era de seu gosto.

D. Filho respondeu que Gilda e a garçonete o estavam atendendo muito bem. Aproveitou e perguntou a Yves se ele queria conversar à noite em vez de amanhã na hora do almoço.

Yves sugeriu o café da manhã.

D. Filho falou que estaria preparado e pediu para Gilda acompanhá-lo a sua suíte. Gilda fez sinal para que dois soldados viessem ajudá-la a levar D. Filho para seus aposentos. Na saída, pediu para Yves aguardá-la.

Yves interfonou para Irene e perguntou o que ela queria para o jantar e se poderiam jantar juntos em sua suíte.

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Irene gostou da idéia e pediu uma salada de salmão com pupunha e suco de acerola, natural, sem gelo.

Enquanto Gilda não vinha, Yves foi até a sala onde estava os monitores e tirou três pecinhas que controlavam as mini-câmeras da suíte de Irene. A última cena que viu, no monitor, foi Irene ensaboando-se por entre as pernas e axilas.

Gilda chegou sorridente dizendo que quase mandou os soldados atrás dele, pois demorou muito para voltar.

Yves respondeu que estava se apaixonando por Irene e lhe entregou as três peças das mini-câmeras para Gilda guardar. Perguntou como estava se comportando o D. Filho e o que ela achara da estréia do MBN na mídia.

Gilda falou a Yves que não estava surpresa com o romance, pois desde o primeiro instante quando vira os dois descendo de pára-quedas no Clube pressentiu algo no ar.

Quanto ao D. Filho, parecia estar apavorado e não parava de se ajoelhar em seu quarto, rezando o tempo todo. Parecia que iria ser mais fácil convencê-lo do que a Doutora cheirosa.

– A nossa estréia foi muito boa na TV e me parece que você já tem um, candidato natural, a candidato para quando chegar a hora certa. Não? riu Gilda, perguntando logo a seguir se o romance não iria interferir nos planos futuros do MBN.

– Quanto ao nosso novo hóspede amanhã lhe comunicarei o nosso estilo e hoje à noite eu faço o script de sua primeira mensagem.

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Com respeito ao meu envolvimento com Irene, não deixarei, em hipótese nenhuma interferir com os nossos objetivos políticos. Irene terá que fazer o que for melhor para ela. É uma decisão exclusivamente dela e eu não vou influenciá-la a meu favor. Vou jogar limpo com ela e esperar para ver o que vai dar.

Primeiro vem o MBN, depois Irene. O resto é simplesmente o resto.

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A última noite de Irene no Clube Merlin

O jantar, na suíte, seria à luz de velas cor de mel. Gilda improvisou rosas vermelhas, do jardim, misturadas com flores silvestres, recém-colhidas, e as arranjou no vaso de cristal da mesa onde os dois apaixonados jantariam.

Yves, para facilitar a vida do cozinheiro, ordenara a mesma salada light de salmão de Irene e resolveu provar o suco de acerola.

Tomou uma ducha fria, fez a barba, colocou um par de calças e camisa, de algodão puro, e um side walk sem meias. Optou por não colocar a sua colônia, Live Jazz, do seu xará francês, para não interferir com o Caraná-AM de Irene.

Ela estava vestida com uma saia branca, curta, acima do joelho e uma blusa, rosa clara, quase transparente, sandálias brancas e amarrara o cabelo estilo pony tail.

Recentemente amada, em sua profundidade, ela estava radiante, expelindo sua viuvez nos campos de Avaré, longe de casa. Seu Caraná-AM continuava esvaindo tentações.

Yves bateu três vezes na porta, como mandava a regra do Clube, e entrou sem se anunciar. Irene o recebeu com um abraço apertado, seguido de um beijo calado, cada vez mais demorado, cada vez mais extasiada.

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Ali ficaram grudados pela mesma paixão, não programada, mas inevitavelmente atraídos um ao outro por suas peles imantadas de solidão e desejos.

Yves quebrou aquela ternura de carinhos para dizer a Irene que trouxera um simples presente e que se ela gostasse poderia ficar com ele.

– O que é? perguntou Irene.

– É um CD do Luiz Miguel que contém alguns boleros antigos e outros novos.

No tempo de Academia, na Força Aérea, sempre íamos a alguns bailes e, naquela época, o bolero era muito popular. Mas nunca consegui encontrar a mulher para sonhar, acompanhado de tão lindas músicas. Agora que achei essa mulher, os boleros estão démodés, mas espero que aceite essa viagem ao passado e ao futuro como prova de que, realmente, me apaixonei por você.

Irene desembrulhou o pequeno presente e perguntou qual das músicas seria a dela.

– São todas suas, responde Yves sorrindo, mas creio que a terceira veste melhor a mulher por quem me enamorei.

Irene abriu o CD e procurou a terceira música, La Gloria Eres Tú, de José Antônio Mendez. Correu para o Sony e colocou o CD com uma rosa vermelha no centro para rodar no estéreo nipônico.

Enquanto Irene programava o aparelho para tocar o CD na terceira música, três vezes seguidas, Yves abriu o champanhe Veuve Clicquot Ponsardin. A única decente, que Gilda encontrara em Avaré para

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ocasiões especiais no Clube Merlin. Yves serviu as duas taças espumantes e esperou a música romântica selar para sempre aquele momento único na vida de dois adultos que, pelas forças do destino, se cruzaram.

Gilda não estava escalada para o plantão daquela noite, mas não resistiu à tentação de ver a abordada, em seu cativeiro, jantar com seu chefe e este jurando paixão de pé juntos a uma das mulheres mais rica e bonita do Brasil. Ela mesmo serviu as saladas e os sucos enquanto escutava Luiz Miguel incendiar aquele ninho de apaixonados que esqueceram do mundo lá fora, vivendo o momento, recuperando o tempo perdido e não se preocupando com o futuro.

Yves sutilmente teve que indicar a direção da porta para que Gilda acordasse de seus sonhos latinos e fosse cuidar de suas responsabilidades em outro lugar. Lá fora, sentiu-se tentada em colocar aquelas três pecinhas de volta no monitor que controlava aquele quarto voluptuário.

Irene quebrou o silêncio após três rodadas de La Gloria Eres Tú e duas taças de champanhe para agradecer a Yves por ter-se lembrado que ela não era só uma executiva milionária, mas também uma mulher de carne e osso sujeita a se apaixonar inesperadamente. Sem dúvida, essa era a sua situação agora.

Perguntou se esse era o tipo de música que ele gostava.

Yves disse que, desde o dia da abordagem, desenterrou os boleros por sua causa, mas que o gosto dele era variado e não era influenciado pelas 100 vezes ao dia das rádios promotoras de cocô.

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Constantemente e, principalmente, no trânsito caótico de São Paulo, escutava muito Mark Knopfler tocando Sultans of swing, Once upon a time in the west e Private investigations. Pretty woman com Roy Orbison, Layla e Alberta com Eric Clapton. Já era fã do Santana antes de sua ressurreição.

– Minha preferida dele, ainda é, Oye como vá. Da Diana Krall toca-me muito a Just the way you are. Tenho, também, a original de Billy Joel. Do George Benson, sou tarado pela This mascarade e On Broadway. Do Sting, gosto de quase todas. Private dancer da Tina Turner é minha favorita porque me faz lembrar uma Go Go dancer nos Estados Unidos que dançou só para mim, em um de meus aniversários quando lá passei. Dos brasileiros, gosto muito da Elis Regina, Caetano, Tom Jobim, Rita Lee e do Chico Buarque. Esse último não grava mais. Parece-me que perdeu seus talentos, juntos com os militares, quando liberaram o Brasil à Democracia. É uma pena!

Como você pode notar, vou do bolero ao rock, de vez em quando descubro algo novo que me interessa.

Irene agradeceu pela franca exposição de seus gostos musicais e confessou que ele acertou, no alvo, com o Luiz Miguel. Ela tinha um disco dele, mas não lembrava do La Gloria Eres Tú, que agora ficará gravado para sempre em seu coração.

Parecia que a letra da música se encaixava bem no relacionamento dos dois, a única reclamação era que não queria ser uma ilusão. Ao contrário, queria que isso continuasse o mais real possível.Yves respondeu que a ilusão e a realidade às vezes caminhavam lado a lado e que era difícil separá-las, mas que ela poderia estar certa de que ele faria o

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máximo de esforço para tirar bom proveito dessa incerteza.

Yves chamou a soldado garçonete para tirar os pratos e trazer dois sorvetes de cupuaçu, seu favorito.

Enquanto aguardavam a sobremesa, Yves perguntou a Irene, que o abraçava incansavelmente, o que ela sabia sobre o novo hóspede.

Irene disse a Estevão que o Sr. Alvarento era cliente do Banco há muito tempo.

– É o mais conhecido, pão duro, no mercado financeiro de São Paulo. Não sei quem lhe deu o nome de Alvarento ao Sr. Alvaro.

A história é a seguinte.

Nos anos 70, quando a sua esposa, diabética, ficara paralítica, o Sr. Álvaro contratou uma enfermeira, Srta. Eva, para cuidar da esposa enferma. Dessa, contratação, nasceu um romance entre patrão e empregada.

Após dois anos, sem nenhum progresso, otimista, com a doença que até hoje, mata aos poucos, a senhora Djalma Filho, os dois amantes se cansaram de cuidá-la, tiraram uma férias de sete dias e voaram até Nova York para se libertarem dos olhos que os vigiavam da cama hospitalar. Sr. D. Filho, como é conhecido agora, nunca acreditou em cartões de créditos e tampouco em travellers checks do Amex. Na histórica viagem e com medo de ser roubado, levou vinte mil dólares, em dinheiro, nas sete cuecas que usaria na viagem. Eva costurou nos

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bolsos, adaptados, o dinheiro para as esperadas compras.

Lá chegando, foram direto para o Harlem, sem saber que era o bairro mais perigoso e pobre de Nova York. Fizera a reserva do hotel em uma das agências de viagens em São Paulo. Para fechar o melhor pacote, na época, escolhera, sem saber, um hotel situado naquele bairro degradante e em transformação.

Constrangidos, mas nem tanto, D. Filho e Eva não se arriscavam a perambular, a pé, pelo bairro nova-iorquino à noite.

No primeiro dia, na Big Apple, foram ao Empire State Building e passearam pela 5ª Avenida. Eva, que se intitulara a guia da viagem, encantou-se com os casacos de peles, perfumes, botas, bolsas, vestidos e com tudo que via na rica e perfumada avenida.

D. Filho, quando averiguou os preços das pretendentes compras que Eva se disporia a fazer, quase teve um infarto na esquina da 5ª Avenida com a Rua 46.

No outro dia, após falar em castelhano, mal hablado com um dos recepcionistas portoriquenhos do Holliday Inn, D. Filho descobriu a América.

Aquele latino, amigo, que sabia o valor do dólar lhe deu o endereço de um Goodwill Store (Lojas tipo do Exército da Salvação) onde as roupas usadas eram doadas por familiares daqueles que perderam um parente com o armário cheio. Os preços eram atrativos e variavam entre um a dez dólar por peça.

D. Filho, arrastando Eva, pela mão, depois de percorrerem mais de onze Goodwill Store em Nova

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York e Nova Jersey voltaram para São Paulo com oito malas cheias de roupas e outras quinquilharias cheirando a funerária.

D. Filho ao chegar em casa, orgulhoso, contabilizava o dinheiro que nunca saíra de suas cuecas. Totalizou dezenove mil, seiscentos e vinte e sete dólares, suados, mas que, graças a Deus, não desbotaram, devido à boa qualidade da tinta usada na casa da moeda em Washingotn DC. Yves riu muito da história verídica de Irene e perguntou se o D. Filho ainda continuava duro na queda com seus dólares ou se estava mais amolecido.

– Parece que continua o mesmo, respondeu Irene, comentando que sua ex-secretária, agora, vice-presidente e amante, tinha procuração para tratar de alguns negócios com o Banco dela. A procuração é com poderes limitados, e, no fim, D. Filho tem que comparecer para finalizar as transações.

Não sei se você sabe. Ele tem uma filha, legítima, divorciada. Ele a vê somente uma vez por mês quando dá uma mesada mesquinha para ela e os netos se manterem afastados de seus negócios.

Com o nosso banco, ele fez muitos negócios e sempre honrou todos os compromissos. No momento, não sei se existe alguma pendência de suas empresas ou não com o banco.

– Olha, Yves, eu não quero falar de negócios hoje. Está bem! Eu quero ficar com você e saber mais de você e do nosso relacionamento. Depois que eu for embora você fala com o D. Filho e pergunte a ele, pessoalmente, sobre seus negócios. Está bem?...

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– OK! OK! meu amor. Vamos dançar um pouquinho. OK?

Irene, que não esperava tal proposta, se animou com a idéia de movimentar-se, lentamente, colada ao corpo de Yves, ao som de Luiz Miguel, já, estava programado para tocar a noite toda.

Após dançarem, agarrados, até à meia noite, foram para o leito, despindo-se aos poucos, redescobrindo o caminho do prazer. Na cama, amaram-se a noite toda. Só paravam para recomeçar. Recomeçavam para não parar. E assim amanheceram, dormindo, abraçados, exaustos, mas felizes com a esperança de encontrarem uma fórmula duradoura para suas paixões.

Yves acordou primeiro. Vestiu-se, sem fazer ruído, beijou Irene na testa, que sonhava profundamente com os cavalos que tivera em sua infância feliz. Saiu para o encontro de D. Filho. Não chaveou a porta atrás de si.

D. Filho esperava, ansiosamente, por Yves. Estava acordado desde as seis da manhã e já tinha feito a sua simples terapia para se recuperar da cirurgia forçada.

Yves o cumprimentou pela mão perguntando se tudo corria bem e se ele já tinha lido a mensagem que seria filmada e depois direcionada a sua vice-presidente, a senhora Glorinha.

– Sim, respondeu D. Filho. Mas francamente acho que os senhores estão exagerando quanto à quantia pedida e às condições.

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Em primeiro lugar eu não tenho esse dinheiro todo. Em segundo, só eu é que tenho acesso às contas das minhas empresas e se eu não estiver lá para assinar os documentos e os cheques, ninguém vai conseguir retirar um centavo para o Senhor.

A Glorinha só tem poderes para assinar cheques em conjunto comigo. Sozinha, ela não assina nada, e a minha filha não participa em nada nas empresas.

Yves falou ao Sr. D. Filho que o MBN sabia de todos esses detalhes, mas que o dinheiro que eles estavam interessados não era o dinheiro, legal, depositados em bancos, em nome de suas empresas. O MBN queria os dólares que estavam escondidos no fundo falso de seu banheiro, no escritório da Avenida Paulista.

– Se não me engano em um cofre muito grande e pesado que foi colocado lá, em 1982, quando o senhor construiu o prédio próprio. Pelo que sabemos essa é a cópia da nota fiscal e da garantia do produto.

Yves lhe passou duas fotocópias, sendo uma da nota fiscal com o valor pago pelo cofre BERNARDINI, datada de 1º de abril de 1982 e uma outra com a garantia do fabricante.

Yves o analisava, enquanto D. Filho olhava, incrédulo, para aqueles documentos esquecidos ao tempo. Nervoso com o mágico, sem cartola, na sua frente, que sacara do bolso aquela prova da compra de sua caixa de segredos e com a possibilidade de alguém, além da Glorinha, ter a combinação exata de certos números que manuseados corretamente, para direita e para a esquerda, acompanhada da chave, verdadeira, abrir o seu escondido BERNARDINI, onde estavam guardados, entre outras coisas, mais de 30 anos de seu caixa dois, D. Filho começou a soluçar.

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Finalmente encarou Yves nos olhos e perguntou quando foi que a Glorinha tinha lhe passado os documentos.

Yves respondeu que os documentos vieram de outras fontes, as quais ele não podia revelar, mas que era interessante saber que a Sra. Glorinha também sabia da combinação e tinha a chave do cofre.

– Agora para nós se tornarão mais fáceis as negociações falou, encarando D. Filho nos olhos. Vamos precisar refazer a mensagem, já que Sra. Glorinha sabe do segredo e com certeza a quantia, em dólares, dentro do cofre.

– Um momento! Sr. Yves. Um momento, por favor.

Eu perguntei se ela tinha lhe passado os documentos fiscais. Eu não disse que ela tinha acesso ao cofre. Ela sabe onde está guardada a combinação e uma chave falsa que não abre o cofre. Só quem abre o cofre sou eu e a chave verdadeira, acho que a perdi, no dia que vocês me seqüestraram. A minha esposa guarda uma outra com suas jóias, no envelope original, nunca foi usada e talvez ela nem se lembre que é uma chave de um cofre. Ela está muito doente.

Yves, imediatamente, pressionou D. Filho dizendo não acreditar que ele perdera a chave. D. Filho tentou engolir a língua solta e maldita que tinha que falar demais. Relutando e quase chorando, disse que, de fato, perdera a chave na hora do tiroteio no restaurante, juntamente com um chaveiro de ouro.

Captando a atenção de D. Filho, Yves começou o seu jogo da verdade, colocando ainda mais pressão sobre o seu hóspede.

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Primeiro, falando e demonstrando com provas contidas em um dossiê que Gilda colocara em cima da mesa, sobre os negócios sujos de suas empresas, envolvendo corrupção e propinas milionárias para liberação de alvarás e mudanças no zoneamento em alguns bairros de São Paulo e da baixada santista, onde ele tinha vários imóveis já construídos e outros em planejamentos. Falsificações, aluguéis e venda de avaliações de imóveis, super valorizadas, para dar em garantia contra empréstimos em bancos estatais e federais. Sonegação de impostos municipais, estaduais e acertos milionários, como os dos recolhimentos de impostos federais em todas as obras executadas pelo seu grupo incorparador e construtor.

– Nós sabemos tantas coisas sobre o senhor, sua família e amantes, que vai ser difícil o senhor acreditar como é que sabemos tanto a seu respeito, inclusive coisas íntimas que o tempo já o fez esquecer.

Por exemplo, sabemos até do dinheiro que o senhor levou nas cuecas para Nova York e trouxe de volta.

Segundo, disse Yves, mentindo. Eu sei exatamente quantos milhões de dólares o senhor tem em seu cofre. O resto dos documentos e outros valores que o senhor tem lá nós não vamos encostar a mão. Se sumir alguma coisa, o senhor poderá perguntar à Glorinha, OK?

O senhor deu a ela, o mais importante, o mais difícil, Que é justamente o segredo. A chave, um bom chaveiro ou um ladrão de cofre faz uma, em meia hora, igualzinha a sua perdida no restaurante.

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Nós não sabíamos que o senhor contara o segredo da porta do galinheiro à raposa.

Senhor D. Filho, eu vou viajar e na minha volta nós vamos gravar a mensagem para a senhor instruir a Sra. Glorinha a nos entregar o nosso pedido, OK? Até a minha volta, em uma semana, o senhor terá tempo suficiente para memorizar a mensagem. Daqui a pouco, Gilda vai lhe trazer o novo texto readaptado. Agora que sabemos o que não sabíamos antes, o texto ficará mais interessante.

Yves ainda comentou que mudaria, então, a quantia pedida inicialmente pelo MBN por uma porcentagem dos dólares escondidos no cofre. E se por acaso ele não tivesse dinheiro algum, no cofre, que ele seria libertado no mesmo dia e não precisaria contribuir com nada para o MBN.

D. Filho tentou argumentar sobre a porcentagem mencionada por Yves no cofre, mas Yves já se levantava para atender seus soldados que de longe a tudo assistiam.

Irene acordou sem a presença de seu homem na cama, olhou para o relógio que marcava 9:15h. Assustada, levantou e olhou pela janela da suíte para ver se via Yves pelo pátio do Clube. Com sorte, avistou-o conversando com seis soldados ao lado da piscina. Tomou um rápido banho, não vestiu a roupa rotineira para montar, resolveu colocar algo leve e confortável. Arrumou-se e saiu à procura de seu amado.

Ficou muito feliz em encontrar na porta um bilhetinho com a letra de Yves dizendo que a porta não estava chaveada e que ela poderia sair quando quisesse.

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No corredor, deu de cara com D. Filho. Os dois sem jeito se cumprimentaram. D. Filho perguntou se poderia lhe falar em particular.

Yrene perguntou à Gilda e a outro soldado que escoltavam D. filho se isso era possível, já que não estava nas regras do clube alguma informação específica sobre esse tipo de comportamento.

Gilda chamou Yves no rádio e perguntou se os dois hóspedes poderiam falar em privado.

Yves respondeu que sim.

Gilda perguntou onde os dois gostariam de conversar.

Irene sugeriu o salão de jogos e os dois hóspedes se encaminharam para o salão onde tinham se visto na tarde anterior.

Irene se sentou em uma das mesas sociais e perguntou se ele estava bem e sobre o que gostaria de conversar.

D. Filho, nervoso, quis saber se ela estava no Clube na condição de seqüestrada. – Sim, respondeu Irene.

Hoje o Yves vai me libertar e eu ainda não escolhi para onde quero ir. Talvez vá para a minha casa ou a de meu filho. Na hora de sair daqui, vou decidir-me.

– Você pagou? Quanto foi que eles tiraram de você?

– Paguei. Mas não vou discutir as condições e quanto foi com o Senhor ou qualquer outra pessoa.

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Para mim isso, já, faz parte do passado. A questão não é o dinheiro e sim quanto dele se desfazer quando estamos com o rabo preso.

Aqui aprendi algumas coisas e vou voltar para São Paulo, tocar os meus negócios e a minha vida. Em dois ou três meses recuperarei o dinheiro.

O senhor viu, ontem, a entrega daqueles prêmios milionários aqui no salão. Não foi? Pois é, eu considero aquele evento, apesar de ter custado caro, um bom investimento. Obviamente que toda a quantia será dedutível do imposto de renda. No fim, vamos tornar nossos produtos mais atrativos ao público, apoiando causas nobres e politicamente corretas. É só isso que o Senhor quer saber? perguntou Irene.

– Acho que sim, mas eu não tenho menor idéia de onde estou e receio que eles irão me matar.

Irene sorriu e disse que o local era fantástico e que ela, também não tinha a menor idéia onde estavam.

– Quanto ao seu medo de que eles irão lhe matar. Esqueça! A única coisa que eles matam por aqui é urubu.

Não se preocupe! Faça que nem eu. Negocie profissionalmente. É apenas uma questão de dinheiro. E nisso somos todos iguais...

Eu conheço o senhor e o meu banco já fez negócios com suas empresas. Faça o melhor possível, e se o senhor estiver com problemas de liquidez, o meu banco poderá lhe adiantar o que for preciso. O senhor tem crédito garantido com o Grupo VÊNUS.

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Lembre-se que dinheiro nós faremos, de novo, e rapidinho, principalmente, se o MBN emplacar...

Irene encontrou Yves nas baias instruindo dois soldados para prepararem Copper para viajar no próximo dia. Abraçaram-se ali mesmo, e Copper, segurado por um dos soldados não o mordeu, desta vez.

Yves perguntou se ela já tinha tomado o café da manhã.

Irene o puxou pela mão em direção à varanda do Clube, dizendo que o seu café estava sendo servido, mas que ela precisava de companhia.

Yves perguntou a que horas ela gostaria de partir e para onde.

Irene, brincando, disse que não ia partir. Resolvera ficar no Clube até ser expulsa pelos cachorros.

Yves, sorrindo, concordou com a idéia e disse que após o almoço ele teria que voltar para São Paulo para trabalhar.

Irene perguntou quantos Ilustres membros receberiam no Clube nos próximos meses.

Yves, ainda sorrindo, falou que por motivo de segurança não podia responder à sua pergunta, mas, para segurança do MBN, o Clube Merlin, após as negociações com o Sr. D. Filho, seria desativado.

Irene, desapontada, disse que queria ir para a casa de seu filho nos Jardins.

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– Você quer chamá-lo e dizer que está a caminho? pergunto Yves.

Irene começou a chorar, impulsivamente, e com muita dificuldade conseguiu falar que adoraria falar com seu filho.

Yves fez um sinal para Gilda trazer o telefone verde.

Gilda trouxe um telefone internacional e perguntou se a conversa seria feita via Rio de Janeiro ou Porto Alegre.

Yves respondeu que qualquer das opções estaria bem.

Gilda ligou para um número de um telefone celular no Rio de Janeiro e pediu em código uma transferencia para outro celular em São Paulo.

Antônio estava em seu apartamento quando seu celular especial tocou. Nervoso, atendeu o celular, notando que o bina indicava uma chamada vinda do Rio de Janeiro.

– Alô, Antônio...

Antônio estremeceu todo ao reconhecer a voz de sua mãe vinda do celular. Emocionado, sentou-se e tentou entender, em meio aos soluços, a voz rouca de sua mãe dizendo que ela o amava muito e estava a caminho de casa.

Enquanto soluçava, Yves lhe passou um papel escrito – 20:00 horas em seu apartamento.

Irene voltou a falar com Antônio comunicando que ela estava bem, mas muito emocionada em falar com ele. Pediu para ele esperá-la em seu apartamento às vinte

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horas. Deu-lhe mil beijos e passou o celular para Gilda.

Gilda saiu para levar o celular de volta ao escritório enquanto Yves se sentou ao lado de Irene tentando consolá-la. Abraçando e encorajando-a para tomar seu café com leite, o pão doce caseiro mais o suco. Falou a Irene que tudo acabara, que ela era uma hóspede livre e após o almoço ela seria levada para São Paulo.

Irene voltou a chorar, novamente, desta vez no peito de Yves, pedindo-lhe para abandonar tudo aquilo e partir com ela, para sempre. Sugeriu que ele poderia trabalhar com ela, na VÊNUS, ser o presidente se assim o quisesse. Ela daria um jeito para que todos o aceitassem e o respeitassem.

Yves a beijou com suas lágrimas escorridas, doces e salgadas, dizendo que ela teria que esperar dois anos. Depois disso, eles poderiam ficar juntos para sempre. Até lá, quando fosse possível, eles se encontrariam, secretamente, em locais seguro para ambos.

Irene não o largava e se negava a aceitar, no momento, aquela sugestão aventureira de encontrar-se com seu amado só de vez em quando. Ela o queria só para si, o tempo todo, para sempre.

Almoçaram juntos, pela última, vez no Clube Merlin. Desta vez, sentaram lado a lado e, quando não seguravam os talheres, davam-se as mãos.

Irene pediu a Yves para mandar Copper direto para a Limoeiro, especificando o tipo de ração que ele estava habituado, no Clube, para não estranhar outra quando chegasse lá. Queria os papéis do cavalo para registrá-lo na Associação Brasileira de Criadores de Quarto de Milha.

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– OK! OK! respondeu Yves lhe dizendo que o cavalo seguiria amanhã de manhã com o frete terceirizado e segurado. Quanto aos papéis, seguirão junto com o cavalo. Já providenciei a transferência para o seu nome, uma vez que tenho todos os seus dados para o cadastro.

Irene perguntou se ele ia levá-la para São Paulo e do que iriam. De carro ou de avião?

– Parece que você seguirá de ambulância, deitada em uma maca bem macia, com ar condicionado, e eu a acompanhando como seu médico particular, a caminho de uma clínica para ricos e famosos em São Paulo.

– A brincadeira é muito boa, mas gostaria de saber como vou, para vestir-me apropriadamente, falou Irene séria.

– Já lhe disse, Irene. Vamos de ambulância. É uma Sprinter grande, super confortável. Serei o seu médico e você poderá usar o que quiser. Sugiro alguma coisa prática. É para a sua própria segurança. Só assim ninguém a reconhecerá e quando chegarmos no apartamento de seu filho você poderá descer um pouco antes, ou melhor ainda, você desce na frente do prédio só assim se confirmam os boatos de que você estava se recuperando em algum lugar.

– Só espero que, de fato, seja uma ambulância confortável e com o ar condicionado funcionando. Está bem? falou Irene, aceitando o seu novo e inovador meio de transporte.

– Prometo cuidar de você como se fosse minha única paciente. No caminho faremos os planos de como,

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onde e quando vamos nos ver no futuro. Vou lhe dar um número de um celular internacional que só você terá acesso. Falaremos somente o necessário. Você vai me chamar pelo nome código de Ás de Ouro. Quando você ligar e por acaso eu não atender, é porque eu devo estar trabalhando. Assim sendo, você deixa um recado e quando eu puder, ligo de volta. Na ambulância, eu vou substituir aquele seu telefone internacional que quebrei na Limoeiro.

Sugiro que você, também, por enquanto, deveria ter um nome código. Quer escolher ou eu escolho?

– Você deveria, mesmo, vir trabalhar comigo. Você é um ótimo planejador. Não preciso me preocupar com nada. Quando penso em alguma coisa. Zaaaam! você já providenciou. Zaaam! você já fez. Parece até o Super Homem. Por favor, Yves, vamos morar juntos em São Paulo. Está bem?..Esqueça o resto!

– Logo, logo, respondeu Yves, sugerindo o código para seu nome de Lady Amazonas. OK! Tem tudo a ver com você, cavalos e o Caraná-AM.

Às 17:00h, chega a ambulância de Irene.

Após o almoço Irene preparou sua pequena valise de viagem e resolveu seguir o conselho de Yves. Gilda lhe fizera uma maquiagem simples e escovara seu cabelo. Irene colocou uma calça jeans, blusa branca e decidiu-se por um par de tênis Nike branco.

Estava alegre por estar livre novamente, voltar para sua casa e seus familiares. Estava triste por deixar o lugar, romântico, onde se apaixonara pelo seu seqüestrador.

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Quando partiu, todos os plantonistas vieram se despedir. Nenhum usou máscara, nenhum a ameaçou. Todos sorridentes lhe desejaram boa sorte. Estavam tão confidentes de que ela não iria denunciá-los que essa idéia às vezes a assustava.

O Senhor D. Filho a tudo assistia da varanda do Clube. Gilda lhe fazia companhia. Antes de entrar na ambulância, Irene lhe acenou à mão.

D. Filho e Gilda acenaram de volta.

Yves já a esperava dentro da ambulância, literalmente vestido de médico. O estetoscópio lhe caia no peito e sua maleta, de cor bege, tinha uma cruz vermelha em cada lado. Só Deus e Yves sabiam que tipo de armas estariam dentro daquela maleta médica.

A ambulância era novinha. Na parte de trás onde carregavam os pacientes os vidros eram opacos e não dava a ninguém a possibilidade de ver o que quer que fosse dentro da ambulância. Essa técnica dava aos passageiros enfermos toda a privacidade. Na parte da frente, dois soldados enfermeiros estavam prontos para levar de volta a primeira contribuinte do MBN.

Irene, à vontade, perguntou a Yves se era para deitar-se ou se poderia ir sentada na cama-maca.

Yves respondeu que em qualquer posição ela era muito tentadora, mas que se ela deitasse, ele, também, poderia acomodar-se ao lado dela para desfrutarem da viagem.

Seguiram abraçados até chegarem em São Paulo. Só diminuíram a velocidade quando dos pedágios da Rodovia Castelo Branco.

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Irene, emocionada, dividida, sabia que ficaria arrasada ao se despedir de Yves. Para alegrar-se, metade dos seus pensamentos estavam no adorado filho.

Com os faróis ligados, luzes piscando, usando o som da sirene francesa a todo o vapor, aliada à força das cruzes vermelhas estampadas nas laterais e no teto da ambulância chegaram, aos Jardins, em São Paulo sem encontrar resistência do costumeiro trânsito caótico mesmo sendo domingo.

Yves alertou Irene que, por motivo de segurança, ele mudara os planos e iria deixá-la em um hotel, nos Jardins. De lá, ela chamaria Antônio e ele viria buscá-la.

Irene não gostou muito da idéia, porém concordou com a precaução de Yves.

A ambulância silenciou seu choro dramático e estacionou. Um dos soldados enfermeiros avisou Yves que eles haviam chegado ao hotel.

Os dois namorados beijaram-se, longamente, e Yves mais uma vez bebeu aquelas lágrimas doces e salgadas que alimentariam sua solidão até o próximo encontro.

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Fernando e Estevão celebram no Rio de Janeiro

Fernando chamou seu sócio e amigo.

– Temos um jogo de pôquer hoje. Você quer jogar?

Estevão, que se preparava para ir dar uns tiros no clube de campo, respondeu ao amigo:

– Hoje estou com o bolso cheio. A que horas e onde é o jogo?

Fernando, que já se encontrava no Rio de Janeiro há mais de três dias, sugeriu:

– No Restaurante Lagostinha, Barra da Tijuca – Rio de Janeiro – 21 horas.

Estevão, desempacotando suas armas, respondeu:

– OK! estarei lá.

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Fernando, como sempre, madrugava nos seus encontros, principalmente quando ia a restaurantes ou a outros lugares parecidos. Não se incomodava se ia encontrar alguém ou não. O importante para ele era satisfazer aquele desejo e poder de controlar tudo e todos ao seu redor, pelo menos, por alguns instantes. Quando Estevão entrou no badalado Lagostinha, Fernando já tinha feito o levantamento completo do local, inclusive das imediações do restaurante.

Estevão, ao entrar, na área reservada para não fumantes, inalou, fundo, o cheiro apetitoso dos frutos do mar que fugiam da cozinha para os salões do restaurante. Estevão, sentando-se, parabenizou Fernando pela escolha do local do encontro.

Fernando concordou, comentando que a ocasião era especial e que isso merecia um local exclusivo.

Estevão deu os parabéns, pela segunda vez, a Fernando pelo brilhante début do MBN na sede da VÊNUS.

Quis saber como a diretoria atual do movimento se comportou com a estreia política no mundo da mídia e, principalmente, se estavam contentes com o dinheiro em caixa para ir tocando legalmente o Movimento.

– Eufóricos, diria eu, respondeu Fernando.

Já estão em processo adiantado para abrirem escritórios em Brasília, Rio de Janeiro, Recife e Minas Gerais. Logo começarão o trabalho de filiação de novos membros e multiplicação do potencial político.

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Quando entrarem os recursos do segundo abordado, a diretoria do Movimento abrirá outros escritórios representativos no Norte e Sul do país. No momento em que repassarmos a contribuição do quinto abordado, o Movimento terá escritórios representativos em todo os estados da União. Daí, então, é só escolhermos os candidatos. E por falar em candidato, gostei muito do discurso, improvisado, do milionário herdeiro da VÊNUS.

O garçom, vestido a rigor, interrompeu a reunião para anotar o pedido para aquela mesa, reservada, em lugar privativo da sala de não fumantes. Anotou uma entrada de caranguejos do Alaska e frutos do mar à moda Lagostinha, para dois. Uma jarra de suco de acerola, gelado, sem açúcar. Os dois amigos já saboreavam um Scotch Buchanan’s 18 anos, para celebrar o primeiro sucesso completo do MBN. – E você Estevão? O que me conta da colaboração, integral, da Irene, no Clube, e como anda o novo hóspede desprovido de seu bug, eletrônico?

– Ah!...Irene! Irene! Está difícil, para mim, falar sobre ela agora.

Vou, tentar, ser mais específico e objetivo possível para descrever o que se passou no Clube e as conclusões que, ainda, não estão definidas sobre a sua colaboração repentina após um período de não cooperação.

Primeiro, como eu já lhe mencionei no almoço passado, em São Paulo, Irene se decidira a colaborar. Creio que a virada aconteceu quando ela ficou com medo da pressão exercida sobre ela, com Gilda praticando tiro ao alvo em uma foto inversa, tamanho

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pôster, de seu filho Antônio. A ordem foi minha, com intenção de amolecer sua resistência inicial.

Três dias depois, Irene começou a colaborar sem restrições.

Segundo, Irene realizou que, para sair do Clube, teria que obedecer nossas ordens, à nossa maneira, e então começou a colaborar. Coloque-se aí que ela também se deu conta, que o rabo dela e o da VÊNUS estavam presos conosco, independente do dinheiro a ser doado.

Terceiro, fingiu estar apaixonada por mim, colaborando da melhor forma possível conosco, para se ver livre logo e depois dar o troco.

– Ah! Ah! Ah! Fernando! caiu em uma risada, franca e sincera, desafiando Estevão, imediatamente, com uma nova aposta, de que ele seria convidado para ser um dos padrinhos dos noivos. Apostou, ainda, que o resultado era uma combinação dos três fatores, e o que mais pesou, na decisão de Irene, foi o rabão preso da VÊNUS.

– Como você é meu amigo, eu não quero ofendê-lo em qualificar o tamanho da rabo dela, por isso o da VÊNUS.

Tem mais! Eu lhe falei, um tempo atrás, que os tapas, mordidas e os coices eram uma declaração de amor, ao bonitão ex-Ás de Ouro da FAB.

Essas meninas, do interior, criadas em fazendas, educadas na capital e donas de milhões, são um perigo para nós, no limite de nossa liberdade.

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Começam nos dando tapas e terminam no altar nos segurando pelo cabresto.

Fernando ria sem parar, enquanto Estevão, sem graça, esperava o surto das gargalhadas extasiantes de Fernando chegarem ao fim.

– OK! OK! Fernando, você tem um ponto ou dois ganhos, mas o pior é que eu, realmente, me apaixonei pela nossa hóspede. Não posso dizer que é perdidamente, pois ainda não sinto falta da minha cabeça. Tanto é que estou aqui e vou ir até o fim com o nosso plano. Depois disso, se ela quiser, poderemos subir as escadas...

– Esta aposta, já ganhei! falou Fernando, rindo mais ainda, enquanto levantava-se para fazer um discurso privado ao amigo.

Vou ser o padrinho! Se você não me convidar, não serei aquele, covarde, que nunca se levanta, na Igreja, quando o Padre pergunta: Se há alguém aqui contra a união dessas duas almas, que se manifeste agora, ou cale-se para sempre.

Lá eu serei um herói, o mais corajoso dos brasileiros vivos. Levantarei do banco de madeira, da mais famosa casamenteira de São Paulo para falar a verdade, nada mais do que a verdade. Em frente de todos, na Igreja Nossa Senhora do Brasil.

Jurarei que você é um caçador de viuvinhas milionárias. Jurarei que fui eu quem lhe apresentei tão rica e bonita oportunidade. Jurarei que não estou levando os meus vinte ou trinta por cento de comissão, a qual todo e bom corretor brasileiro tem o direito, quando apresenta um bom negócio. Jurarei que você a ama. Jurarei que você é um

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desequilibrado, devido aos mais de 3.000 saltos de pára-quedas, onde, nas descidas, todas computadas, perdera suficiente oxigênio para alimentar o Hospital das Clínicas, inteirinho, com o precioso ar da vida. Jurarei que graças a você o Brasil terá um novo futuro. Um futuro em branco, azul, amarelo e verde. Jurarei que cada vez que você entrar com outra VÊNUS, de branco, nas Igrejas do Brasil, me levantarei para dizer a verdade, nada mais do que a verdade...

Estevão, interrompendo o inflamado discurso, disse que Irene tinha uma irmã, mais velha, e quem sabe o herói, corajoso, estaria interessado em ser seu concunhado. Isso arranjado estaria paga a comissão pretendida.

Riram, riram e riram mais, como todos os brasileiros que riem de tudo e de todos, até da desgraça alheia. O garçom reapareceu com o prato boreal de causar muita inveja aos siris enlameados da baixada santista. A perna do crustáceo alaskiano, da mesma cor de um redneck, era tão longa que ultrapassava a bandeja, larga, de inox.

Devoravam a entrada, rapidamente, enquanto na cozinha o chefe colocava vinho branco, importado, na frigideira que marinava aquela mistura apetitosa de frutos do mar, a qual tornou o Lagostinha um dos restaurantes mais famosos e caros do Rio de Janeiro.

Alimentado, Estevão continuou a reportar as atividades do Clube Merlin no que dizia respeito ao segundo abordado.

Comentou com Fernando que o Senhor D. Filho andava muito assustado e passava a maior parte do dia de joelhos, rezando ou confessando. D. Filho

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confidenciara a Irene que tinha medo de ser executado.

– Aposto que ele gravará sua mensagem em menos tempo do que Irene levou para gravar a dela.

– Eu apostei que vou ser padrinho. Não aposto mais nada hoje!

– Sei até quantos gatos estão comendo peixe, nos latões de lixo, atrás do restaurante. Mas o que eu quero mesmo é ser padrinho de casamento. A última vez que entrei em uma igreja foi para prender um padre comunista. Agora que vivemos em uma sociedade justa e democratizada quero ser padrinho de casamento. Quem sabe quando lá estiver aproveito e confesso meus pecados...

– OK! OK! Está apostado, concordou Estevão.

Reportando a seguir que em uma semana mudaria os soldados da Célula A para Porto Alegre, Furlan, Rambo e Rubio já estavam nas imediações do cenário, finalizando os últimos detalhes da missão denominada MATE QUENTE, tratando dos detalhes da abordagem do terceiro nome da lista mencionado no Estudo.

O homem, um dos mais ricos do sul do Brasil, estava planejando passar três dias em Punta Del Este, no Uruguai.

Fernando, ao se despedir de Estevão, perguntou como ele queria receber o resto da sua parte, proveniente das contribuições da VÊNUS. E que estava prontinho para coletar os velhos dólares do Senhor D. Filho.

Estevão, sorrindo, respondeu que poderia ser igual ao da primeira vez.

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– Metade lá fora e a outra, cash, de preferência em São Paulo.

D. Filho grava duas mensagens

Yves chegou cedo ao Clube Merlin. Seu coração batia desanimado sem a presença de Irene no local. Confessara à Gilda que ainda bem que, logo, o local seria descartado e não precisaria mais relembrar, em loco, de Irene. Gilda que viera recebê-lo no portão do Clube lhe desejou sorte com sua livre presa.

Na sede do Clube, convidou D. Filho para tomarem o café da manhã juntos. Este, aparentemente, mais aclimatado ao Clube respondeu que seria um prazer.

Enquanto esperavam as panquecas, pedidas por D. Filho, Yves perguntou se ele já estava pronto para gravar a mensagem.

Sim! Respondeu D. filho, comentando que, de fato, perdera a conta de quantos milhões havia no cofre escondido e que nos últimos dias tinha feito uma retrospectiva de seus atos e estava pronto para repartir os dólares do Cofre. Confessou ainda que, honestamente, não sabia exatamente, porque guardava tanto dinheiro escondido. Vício com certeza! Exclamou melancólico o ex Alvarento.

OK!OK! Concordou Yves, entusiasmado com a decisão acertada do novo hóspede do clube. Depois do café vamos filmar, aqui mesmo, no terraço. O dia está bonito e não precisaremos da luz artificial.

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A primeira mensagem

Bom dia Glorinha.

Em primeiro lugar quero que saiba que estou bem e entre amigos. Minha saúde está ótima e estou tomando meus remédios, exatamente como mandou o médico. Espero que tudo esteja bem na Incorporadora e construtora. Estou contando com você para ir tocando os negócios até o meu retorno.

Aqui, onde estou, o trabalho é pouco. Para não ficar enferrujado, realizei alguns negócios e vou precisar de sua ajuda e a da minha filha, Maria.

Quero que você telefone, hoje, para ela e peça para vir até o meu escritório, amanhã, ao meio dia, para uma reunião de negócios.

Mariazinha deverá vir acompanhada de seu advogado. Não quero seu ex-marido por perto. Peça a ela, por favor, para trazer o envelope, marrom, lacrado, estampado com o número dois (2) que está na cômoda onde a mãe dela guarda suas jóias.

A pauta da reunião será explicada na mensagem gravada, que você receberá amanhã. Nessa importantíssima reunião, não está autorizada a entrada ou escuta de nenhuma outra pessoa, a não ser você, Maria e seu advogado. Estão proibidos de assistirem a reunião os nossos advogados e o pessoal da minha segurança. E, nem pensar na polícia ou na

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minha seguradora anti-seqüestro. Quero esse pessoal longe de mim e das minhas coisas.

Depois eu lhe explico pessoalmente a razão disso tudo.

Um abraço do D. Filho e até breve.

Após declamar, naturalmente, o script do MBN, a imagem mostra D. Filho tomando seu suco de maracujá, sentado em um terraço, ensolarado, cheio de plantas. A câmara dá um zoom no Senhor D. Filho, que no momento, pega um jornal para ler. O zoom da câmera termina focalizando a data de um dos Jornais de maior circulação no estado de São Paulo – Domingo 30 de Novembro de 2003.

A Senhora Glória da Assunção Pires, Glorinha, vice-presidente do maior grupo construtor e incorporador de São Paulo acabara de ver, a mensagem, na TV-DVD Panasonic, de seu presidente e amante.

Ela e dois diretores do departamento jurídico, os mais confiáveis do Senhor D. Filho assistiram, pelo menos, três vezes ao DVD no salão de reuniões na sede do grupo incorporador e construtor.

Ficaram todos intrigados por não terem recebido nenhum pedido de dinheiro em troca da liberdade de D. Filho, seqüestrado violentamente, há quase três semanas, enquanto jantava em um dos restaurantes mais caros dos Jardins.

Dr. Murilo, diretor jurídico do grupo, fez algumas perguntas a Glorinha.

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Primeira: se os seqüestradores tinham telefonado exigindo alguma quantia e como foi enviado o DVD.

Segunda: se ela sabia o que continha nesse envelope referido pelo Presidente.

Terceira: queria saber se Glorinha tinha alguma idéia porque o departamento dele estava sendo descartado da reunião de amanhã. Glorinha, demonstrando curiosidade, respondeu ao Dr. Murilo que ninguém chamou pedindo algum dinheiro pelo resgate e que a seguradora, com autorização dela, colocou uma escuta no telefone da Diretoria e na residência do Presidente. O envelope marrom, endereçado a ela, contendo o DVD foi entregue pelos serviços de moto-boy. Não tinha menor idéia sobre o conteúdo do envelope marrom, lacrado, na residência do Presidente. Tampouco sabia porque o Presidente excluíra ele e os outros diretores da reunião de amanhã. Mas, que ela, como vice-presidente, iria acatar as ordens do Presidente tal como ele pedira.

– Lembrem-se que Mariazinha é a filha, única, e herdeira legal de D. Filho.

Dr. Sergio, segundo em comando, no departamento jurídico sugeriu chamar o pessoal da seguradora para dar uma olhada na autenticidade do DVD e fazer uma checagem se o mesmo fora montado ou não.

Glorinha contestou a sugestão contra-argumentando que D. Filho já deixara claro para não envolver a seguradora no caso. Sugeriu esperar até amanhã para verem o resultado da reunião com Mariazinha e seu advogado. Depois disso decidiriam falar, ou não, com

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a seguradora e com o Delegado que investigava o seqüestro.

A segunda e última mensagem de D.Filho

Bom dia Maria, Bom dia Glorinha, Bom dia Dr. Reynaldo.

Como vocês podem notar eu estou bem e em poucos dias estarei de volta às minha atividades.

Hoje é um dia muito importante nas nossas vidas e quero deixar claro que o que vou pedir a vocês é de todo coração.

Glorinha, o advogado da Mariazinha, Dr. Reynaldo, vai lhe apresentar uma procuração, passada em cartório, ontem, por mim, a qual dá a Maria todos e quaisquer poderes para me representar perante todas as empresas do nosso grupo incorporador e construtor. Vocês duas, juntas, estão com poderes ilimitados para ir tocando os negócios e, principalmente, realizar algumas tarefas que pedirei agora.

Como eu nunca confiei, totalmente, em ninguém, inclusive, em você Glorinha, nesse momento gostaria de corrigir alguns dos meus erros.

Glorinha, caso você tenha tentado abrir o meu cofre, do meu banheiro, na minha ausência, deve ter percebido que a chave não funcionou. Quero que saiba que a chave que deixei junto com os números do segredo para abrir o cofre é falsa.

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O Cofre tem somente duas chaves. Uma delas está comigo e a outra deve estar, agora, em poder de Mariazinha que a encontrou no envelope lacrado na minha casa.

De hoje em diante, Mariazinha ficará responsável pelo cofre até o meu retorno. Favor inutilizar a chave falsa.

O Dr. Reynaldo tem uma lista de Organizações não Governamentais, as quais deverão receber algumas doações, em dinheiro, em nome do nosso grupo incorporador e construtor.

Glorinha, quero que você e Maria comandem essas doações e contratem uma assessoria de imprensa. A melhor que vocês acharem, para divulgar as doações. Essas doações serão deduzidas do imposto de renda devido ou a pagar do nosso grupo. O diretor financeiro, Dr. Mário, deverá organizar os devidos recibos e outros documentos necessários. Dr. Reynaldo, também, tem as minhas instruções, por escrito, e as entregará a vocês, orientando como proceder com a entrega dos prêmios para as referidas ONGs.

Peço a vocês duas para abrirem o meu cofre, na frente, do Dr. Reynaldo e dividirem os dólares que tenho lá, economizados para momentos iguais a este, da seguinte forma:

Primeiro, do total geral contado, entregar 60% para o Dr. Reynaldo pagar um compromisso que aqui assumi.

Segundo, Mariazinha levará consigo e investirá, como ela quiser, para ela e os meus netos 20% do total.

Terceiro, A doação para as ONGs será dividida em partes iguais do total de 15%.

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Quarto, os 5% restantes, do total, gostaria que você Glorinha aceitasse como um presente meu que há muito tempo merecido está.

Em hipótese nenhuma, o Dr. Reynaldo poderá ler ou copiar qualquer documento que esteja dentro do cofre.

Não quero que os outros diretores, de nosso grupo, saibam, de uma maneira ou outra, sobre a divisão aqui estabelecida. Vamos manter o segredo entre nós da presidência, vice-presidência e a família. Entendido? Quando da minha volta, ao escritório, eu explicarei aos demais diretores que Mariazinha agora tem todos os poderes e estará trabalhando conosco na Empresa.

Glorinha e Mariazinha! Eu já ia esquecendo de lhes pedir um outro favor.

Quero que vocês comprem uma passagem, de 1ª classe, de ida e volta para Nova York em nome da Sra. Eva Moraes Atílio. Façam uma reserva de um mês no Waldorf Astória Hotel, em Nova York para ela. Comprem, para a Senhora Eva, a quantia de cinqüenta mil dólares em travelers cheks para suas despesas de viagem. Diga a ela que é o presente de natal que nunca lhe dei. Até breve e tenho certeza absoluta que vocês obedecerão as minhas ordens como pedidas. Est[a bem?

Um abraço para vocês duas.

Mariazinha! cuide bem de sua mãe. Se vocês tiverem dificuldades em encontrar a Sra. Eva, a minha esposa tem o endereço dela.

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Até breve!

Os três se entreolham, desconfiados. Glorinha foi a primeira a sair atirando, dizendo que nunca passara pela sua cabeça a vontade de abrir um cofre que não lhe pertencia. A idéia de ela ficar sabendo onde ficava a combinação dos números e a chave, que agora se sabia que era falsa, foi do próprio D. Filho.

– Eu nem sabia que tinha dólares lá dentro. Todo esse tempo imaginava que fossem só os documentos das empresas.

Maria comentou que a culpa não era dela e que esse era o estilo de seu pai. Não confiava em ninguém, como ele mesmo disse.

Dr. Reynaldo, para divergir a atenção das duas, sugeriu reprisar o DVD para tirar uma dúvida de um dos pedidos que não ficou muito claro em sua mente.

Glorinha concordou e imediatamente apertou o sinal de replay no aparelho de DVD, enquanto pegava um lápis e papel da mesa de reunião para anotar as porcentagens ordenadas por D. Filho. Após verem novamente D. Filho na TV, Glorinha e Maria pediram ao advogado que evidenciasse os itens mencionados na mensagem.

Dr. Reynaldo dependurou sua bengala na guarda de uma das poltronas e tirou da pasta um envelope com duas cópias originais de uma procuração, entregando uma cópia a cada uma das senhoras presentes. Logo a seguir, entregou a cada uma delas, uma lista das ONGs contempladas para receberem a generosa

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doação e uma metodologia escrita, à mão, pelo próprio D.Filho com instruções de como, exatamente, queria que as ONGs e a imprensa fosse notificada da doação e o local programado para o evento.

Nenhuma das duas procuradoras de D.Filho notaram a marca d’água do Royal Straight Flush, de naipe de ouro, nas páginas que indicavam as ONGs ganhadoras dos prêmios D. Filho e das instruções escritas de próprio punho pelo empresário filantrópico.

Glorinha, que nada podia fazer ante as evidências apresentadas, e super curiosa para ver quantos dólares havia naquele cofre, que ela não conseguira abrir com aquela maldita chave falsa, sugeriu que fossem até o escritório de D. Filho para verem o esconderijo. Pediu, pelo interfone, para a secretária de D. Filho, Sra. Matilde, que abrisse o escritório do Presidente, lhe apresentou Maria, filha de D. Filho. Explicou à secretária que a Senhora Maria, daquele momento em diante estaria usando o escritório do pai e ficaria no lugar do Presidente até a sua volta.

Maria agradeceu à Matilde e pediu que ela se retirasse, pois os três iriam continuar a reunião no escritório do Presidente. Glorinha pediu para colocar todas as chamadas e compromissos em espera até o próximo dia e chaveou a porta do escritório do Presidente por dentro.

Glorinha os conduziu até o banheiro privado de D.Filho para ver onde era escondida a chave falsa do cofre. Seguindo Glorinha no amplo escritório, Maria e Dr. Reynaldo, foram até o enorme e completo banheiro onde ela puxou, com força, a peça de metal dourada da tampa do porta papel-higiênico. O porta papel-higiênico se soltou da parede com papel higiênico e tudo, onde na cavidade da parede de tijolo

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estava, em um envelope de plástico, a chave e a combinação do tesouro.

Mariazinha pediu a chave e perguntou onde ficava o cofre.

Glorinha entrou no enorme box de vidro do chuveiro e, com um aperto em uma torneira falsa, a parede do banheiro correu para um outro lado, desaparecendo prédio adentro.

O suntuoso BERNARDINI, pintado de verde claro, estava lá à espera de alguém que conseguisse abri-lo com a combinação certa e a chave autêntica. Caso contrário, ele não cederia, facilmente, às marteladas furos de brocas ou a um corte de três mil graus do oxy-acetileno.

Mariazinha e Glorinha, suadas, com a emoção de abrirem aquela fortaleza de dois metros de altura por um e cinqüenta de largura, tentaram primeiro ver se a chave falsa funcionava. Pediu à Glorinha para ler o número da combinação.

Glorinha que já havia memorizado os números, após o seqüestro do seu Presidente, rodou o botão para o zero, parando completamente; em seguida, deu três voltas para esquerda e parou no número 7; voltou para à direita duas vezes e parou o número 9; deu outra volta para à direita e parou no número 3; voltou para esquerda parando no número 5. Pediu para Mariazinha tentar a chave falsa. Essa colocou a chave falsa e girou para direita. Nada aconteceu. Girou para a esquerda. Nada!

Dr. Reynaldo que a tudo assistia recomendou para que Mariazinha não forçasse a chave. Esta poderia quebrar dentro da fechadura. Sugeriu que seria

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melhor usar a chave verdadeira. Se a combinação que Glorinha usou com esperteza fosse a certa, a outra chave deveria abrir a porta sem forçá-la.

Mariazinha experimentou sua chave Bernardini, virando-a para a direita. A fechadura obedeceu e pediu mais uma volta. Mariazinha deu mais uma volta e escutou um barulho de desbloqueio que veio de dentro do cofre. Pegou a maçaneta grande e torceu para a esquerda e a porta cedeu facilmente. Foi preciso as duas puxarem, com muita força, para abrirem os duzentos quilos, só de porta, da legalmente violada fortaleza de D. Filho.

Ácaros se divertem com os milhões de D.Filho

A primeira coisa que apareceu foi uma cortina improvisada com uma toalha de banho grande que foi

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logo puxada por Mariazinha e jogada em um canto do banheiro.

Realmente, a cena depois disso se tornou cinematográfica. As duas procuradoras de D. Filho, parecendo pedreiros desconstruindo uma parede, de tijolos à vista, começaram a tirar, aos montes, os pacotes com notas de cem dólares empilhados, arquitetonicamente, até o teto do cofre.

Do lado esquerdo, em duas prateleiras de aço, havia vários envelopes e algumas caixinhas de metais. Nenhuma das procuradoras deu importância ao conteúdo restante do cofre. Estavam determinadas em tirar aqueles tijolos de dinheiro que começaram a empilhar, no solo do vasto banheiro, para, depois então, dividirem a massa.

O trabalho de tirar todos os pacotes de dólares do cofre não demorou muito e o Dr. Reynaldo teve que dar algumas dicas para as procuradoras, na hora em que começaram a contar o dinheiro.

Ele lhes disse que, aparentemente, o dinheiro estava separado em maços de mil dólares e juntados em pacotes de dez mil. Um ou outro pacote estaria arrumado de diferente forma e ele iria ajudá-las a separar esses pacotes irregulares dos uniformes.

Sugeriu a elas só para contarem as cabeças dos maços e a quantia de pacotes. Providenciou uma folha de papel para Mariazinha e ele. Glorinha já tinha suas anotações.

Após três horas de contabilidade e muita saliva nos dedos, chegaram a um total aproximado de US$16.580.000,00 (dezesseis milhões, quinhentos e oitenta mil dólares). Mariazinha, tonta, de tanto

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espirrar o rico ácaro impregnado nas notas de cem dólares e de contar sua riqueza, repentina e independente, sugeriu um descanso de 15 minutos para tomarem água e usarem o banheiro feminino. Depois fariam uma rápida conferência nos pacotes amontoados por todo o banheiro. Glorinha concordou com a sugestão e convidaram Dr. Reynaldo a se retirar, juntamente, com elas para o breve descanso. As duas não deixariam aquele advogado, manco, misterioso, sozinho com os seus dólares.

Mariazinha fechou o banheiro e a porta do escritório de seu pai com a chave. Todos os três beneficiários se dirigiram, novamente, para o salão de reuniões, no outro lado do corredor. No caminho, por trás das divisórias, onde se via uma dezena de burocratas trabalhando, ninguém se atreveu a fofocar sobre o tema da reunião, muito menos querer saber sobre o que estavam discutindo, ora na sala de reunião, ora no escritório do Presidente. Alguns dos funcionários, com bastante tempo de casa, reconheceram a filha de D. Filho, agora mais velha.

As procuradoras de D. Filho tomaram suco de maracujá gelado e foram para os banheiros. Dr. Reynaldo aproveitou e ligou para o seu motorista de taxi que o aguardava e lhe disse que ele e seu ajudante poderiam subir às dezoito horas com duas sacolas, vazias, número três. Seu nome estaria na lista dos autorizados a entrarem no andar da Presidência.

Recuperadas e de mãos lavadas de todo aquele cheiro de dinheiro embolorado, as procuradoras estavam ansiosas para voltarem ao caixa forte.

Na passarela do corredor entre o salão de reuniões e a sala do Presidente, outra vez foram observados

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pelos funcionários que nunca poderiam imaginar que a poucos metros de seus cubículos de trabalho estava uma montanha de dólares envelhecidos, mas que com um pouco de pano úmido e um bom secador de cabelos as milhares faces de Mister Benjamim Franklin voltariam a sorrir, de cara limpa.

Acostumada a trabalhar dez horas por dia por um minguado salário, Glorinha refizera os cálculos de seu presente uma dezena de vezes enquanto tirava aquele cheiro de dinheiro velho de suas mãos. Sua parte seria mais ou menos de US$ 829.000,00 (oitocentos e vinte nove mil dólares). Trabalhava com D. Filho havia sete anos anos e a única coisa que conseguira comprar com seu salário fora um apartamento de dois quartos, em Pinheiros, e um carro novo a cada três anos. Devia a metade de seu apartamento para o Banco, mas o carro já estava quitado. Enquanto esperava Mariazinha abrir a porta do escritório do Presidente, pensara que já era tempo de receber o bônus que D. Filho sempre prometia dar-lhe um dia.

Mariazinha também era rápida no gatilho e já sabia exatamente quanto seria a sua parte. Agradecia a Deus por ter sido aproximada de tão competente e inteligente advogado que só falava com ela, pessoalmente, proibindo-a de falar ao telefone sobre duas reuniões que tiveram na semana passada. Torcia para que, na recontagem dos pacotes, aumentasse, mais ainda, o dinheiro nunca usado.

Voltaram ao banheiro milionário e desta vez, somente, contaram os pacotes já separados de dez mil.

Em uma hora de recontagem, foram unânimes em totalizar US$ 40.000,00 (quarenta mil dólares) a mais no tesouro de D. Filho.

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Dr. Reynaldo ajudou as duas procuradoras a repartirem os dólares e sugeriu que a parte que iria ser doada às ONGs deveria ser trocada em reais para não terem problemas com o fisco.

Separou os US$ 2.493.000,00 (dois milhões quatrocentos e noventa e três mil dólares) para a execução de projetos das ONGs premiadas. Em seguida separou a parte dos 60% pedida por D. Filho para saudar seus compromissos e colocou em um lado separado no banheiro que cheirava a ricos fungos.

Pediu a Glorinha que autorizasse seus dois estagiários a subirem para lhe dar uma mão com tão importante e pesada tarefa.

Mariazinha pediu também a Glorinha para providenciar dois sacos de plástico de lixo, não transparente, para levar, naquele dia mesmo, sua parte.

Enquanto Glorinha procurava alguém do setor de limpeza para trazer meia dúzia de sacos de plástico pretos, interfonou para a segurança da portaria, liberando a subida de dois estagiários do escritório do Dr. Reynaldo. O advogado sugeriu, em voz baixa, para Mariazinha que os documentos do cofre poderiam garantir, se ela assim quisesse, até a cadeira de presidente do Grupo. Seria interessante que ela, em outra ocasião, sem comentar com Glorinha, antes do regresso do Pai, levasse para um lugar seguro os documentos. Agradeceu Mariazinha por ter trazido a chave verdadeira do Cofre e a alertou, mais uma vez, que os telefones dela, de sua mãe e da empresa estavam grampeados. Após a entrega dos prêmios às ONGs, o seu pai seria libertado imediatamente e ele mesmo negociaria com a seguradora e a polícia. Tudo

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daria certo no fim. Até os seguranças baleados receberiam um bônus especial em dinheiro.

A volta ao poder

Irene recebeu seu filho com muita emoção e aos prantos.

Estava acomodada, na suíte presidencial, no Maksoud Plaza Hotel. Fora reconhecida pelo gerente de plantão, quando entrara no lobby do hotel, com sua pequena valise de mão. O esperto gerente a convidou para esperar suas visitas na suíte. Cortesia da casa, oferecera ele, orgulhoso de receber, em seu hotel, uma das mulheres mais ricas do país, sem reserva

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prévia e vestida casualmente. No lobby do hotel, pelo menos duas revistas a tinham na capa como a nova benemérita dos projetos sociais do Brasil.

Antônio, também, muito emocionado não largava sua mãe dos fortes abraços e beijos que ela lhe dava sem parar. Dr. Moisés e Júlio assistiam emocionados ao encontro materno. Júlio não resistiu e, aos soluços, quase levou consigo o valioso e inteligente advogado aos prantos.

Ali ficaram se olhando, todos cheios de lágrimas, cheios de alegria, cheios de alívio. Até que Irene desabafou comentando que não comentaria, no momento, sobre o seu seqüestro. Somente mencionou que fora muito bem tratada e queria ir para casa celebrar, a sós, com seu filho o retorno de sua longa viagem.

Todos, emocionados, concordaram com a idéia. Irene teve que ir ao banheiro, antes de sair, para retocar sua maquiagem borrada pelas lágrimas dela e de Antônio. Enquanto isso, Antônio perguntava, em voz baixa, o que eles acharam de sua mãe ter sido entregue em um outro lugar não combinado.

Dr. Moisés respondeu rapidamente que fazia parte do jogo.

– Nós pagamos o que eles pediram, e como eles ainda tinham Irene nas mãos, resolveram entregar em um lugar neutro e seguro.

O jogo acabou! Agora vamos tomar mais cuidado, e quando a Doutora Irene se recuperar, decidiremos como agir. Vamos todos para a casa descansar e celebrar um final feliz...

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Irene saiu do elevador panorâmico, abraçada com o filho e logo foi cercada por oito seguranças que a aguardavam no lobby do hotel. Ela avistou o gerente do Maksoud e lhe deu um sinal para que se aproximasse. Apresentou o filho, Antônio, agradeceu pela gentileza prestada. Antônio lhe passou o seu cartão de visita da VÊNUS e saiu, de mãos dadas, com sua mãe em direção à porta.

Entraram em um blindado, importado, com dois seguranças e foram para a casa, seguindo outro blindado e seguidos por mais um, lotado de seguranças. Irene, emocionada, não notou a ausência do Careca.

Sua mãe e sua irmã a esperavam ansiosamente na mansão do Morumbi. As duas sabiam o tempo todo do seqüestro de Irene, mas, em nenhum momento, comentaram fora do círculo da família o ocorrido. Sofreram juntas, caladas, o retorno de Irene. Para aqueles que perguntavam de Irene, a resposta era a mesma que a imprensa paulista havia publicado.

A festa dos quatro durou até as três da manhã e Irene não deixou ninguém ir embora para suas casas. Todos dormiram na residência de Irene. Nina, assustada e feliz, com o regresso da patroa, providenciara os drinks e enquanto arrumava a cama para os hóspedes familiares pensava se a cadela daquele policial, amigo, teve alguma coisa a ver com o retorno da Doutora.

Irene, que agora se encontrava livre e em seu território, amargava, silenciosamente, as saudades de Yves, sozinha, em seu vasto quarto. Não dormira o resto da madrugada, sabia que não queria esquecer aquele homem que acendera nela, novamente, a vontade de amar e ser amada.

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Passou dois dias em casa se aclimatando e pensando em como encarar sua família, particularmente seu filho e seus dois diretores que tanto a ajudaram a resolver um capítulo emocionante e dramático de sua vida. Resolveu seguir o conselho de Yves e não abrir o jogo com ninguém, sobre a sua nova paixão, até que ela decidisse o que realmente queria da vida.

Antônio mudara-se temporariamente de volta para sua antiga suíte na casa de sua mãe, colocando-a a par dos negócios da VÊNUS.

Irene convidou a namorada de Antônio para um jantar a três e se sentiu renovada com o romance dos dois jovens. Aproveitou a oportunidade para dizer que voltaria ao trabalho no outro dia de manhã. Antônio quis lhe sugerir mais tempo para ela descansar, mas, no meio do conselho, mudou de idéia quando sua mãe pediu para ele indicar onde ele via cansaço nela.

Na quarta feira, cedinho, ligou para a Limoeiro e acordou o Dr. Marcílio para saber se seu novo cavalo chegara bem de viagem. O veterinário, ainda com voz de dorminhoco e surpreso com a voz da patroa, respondeu que o cavalo estava bem e foi colocado em uma baia especial para quarentena. Hoje, ele iria fazer todos os testes de prevenção veterinários para depois estabelecer o estábulo permanente.

Irene, rindo, disse que o cavalo estava muito bem de saúde e que ela já conhecia seus hábitos, mas se ele quisesse fazer uns testes e se estes não fossem machucar seu cavalo que poderia fazê-los.

– Caso contrário, deixe Copper do jeito como ele chegou. Está bem?

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– A Doutora é quem manda, concordou o veterinário, perguntando a seguir onde ela tinha conseguido o campeão americano.

– Que história de campeão é essa? perguntou Irene, intrigada.

Dr. Marcilio imediatamente se deu conta que a Doutora não tinha visto os papéis do cavalo. Continuando a conversa, perguntou se ela tinha lido as revistas que publicaram reportagens sobre Copper, anteriormente chamado de Fast Sagittarius. O cavalo, desde os dois anos de idade, tinha ganho todos os concursos de que participara.

– Aqui na fazenda temos em duas de suas revistas a foto dele na capa. No ano passado, foi o campeão nacional americano.

Irene, irradiando alegria, pediu para o Dr. Marcílio formatar um dossiê completo sobre o Cavalo e mandar, naquele dia mesmo, para São Paulo via SEDEX antes das dez horas. Caso não desse tempo, ela mandaria um avião buscar o dossiê.

– Use a Internet e vá na origem do Cavalo, parece-me que o nome da antiga proprietária é a Sra. Thora, do Colorado. Tenho quase que certeza que foi ela quem exportou Copper para o Brasil.

Mãe e filho saíram escoltados para o trabalho. No caminho Irene perguntou ao filho por onde andava o Careca e quem era o novo diretor da segurança da VÊNUS.

Antônio respondeu que o Careca tinha se demitido, mas o Dr. Moisés preferiu dispensá-lo, com salário

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integral, até que ela voltasse. Quanto ao novo diretor da segurança, veio muito bem recomendado e foi escolhido entre cinco candidatos, é um ex-oficial da FAB.

Irene, receosa, em aprofundar mais o assunto, perguntou como estava as posições do Banco em relação ao dólar...

Assim que chegaram no moderno edifício envidraçado na sede da VÊNUS, Irene notou a mudança no procedimento da segurança na empresa. Animada, subiu no elevador privado da diretoria acompanhada de seu filho e dois seguranças.

Irene foi direto para sua sala e sentou-se, novamente, em seu trono. De lá, avistava o Rio dos Despejos, a engarrafada Marginal Pinheiros, os bairros do Real Parque, Morumbi e a favela Paraisópolis. Um pouco mais à direita, o Palácio do Governo.

Dr. Moisés e Júlio a esperavam no salão de reuniões. As secretárias, nervosas, aparentavam uma sobrecarga de trabalho, caminhando rápido, com salto altos, de um lado para outro.

Irene agradeceu aos dois diretores pela ajuda, altamente profissional, e pediu para que se sentassem. Antônio acomodou-se ao lado direito de sua mãe e os outros dois no lado oposto da mesa de granito pérola, vindo do nordeste.

Dr. Moisés lhe passou um relatório, minucioso, de todas as atividades do Grupo, desde a sua partida inesperada da Limoeiro, em 7 de setembro de 2003, até a última sexta-feira, 28 de novembro de 2003.

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O Sr. Júlio lhe passou, também, o seu relatório financeiro e, em uma pasta à parte, a contabilidade, intrigante, dos vinte milhões de dólares gastos com seu seqüestro.

Antônio assistia, em silêncio, a explanação dos dois diretores e quando Irene se deu por satisfeita, pedindo até o próximo dia para digerir os dois relatórios, Antônio perguntou qual seria a linha de ação com respeito aos seqüestradores, negociadores da RELEASE e a polícia.

Irene, aparentemente, sem demonstrar nenhum nervosismo respondeu que, por enquanto, iriam agir como se nada tivesse acontecido. – Paguem os negociadores e cancelem o contrato. Quanto à polícia não vamos incomodá-la com outro B.O. de um seqüestro já resolvido e, com respeito ao nosso dinheiro, no ano que vem, vamos recuperá-lo trabalhando com mais cuidado.

Dr. Moisés, sorrindo, acolheu, prontamente a sábia decisão de sua presidente. Ao mesmo tempo imaginava como teriam sido as negociações e chantagens que Irene teve que resolver sozinha em seu cativeiro.

Passou para a quarta pauta da reunião que tratava da nova imagem da Senhora Irene Lafayete Fontoura perante a sociedade brasileira. Havia uma pilha de jornais, revistas e vídeos das reportagens que veicularam a entrega das doações milionárias às ONGs eleitas pela VÊNUS, como exemplo de instituições que se dedicavam a desenvolver projetos visando a melhoria de vida do povo brasileiro. Havia, também, centenas de telegramas e e-mails de políticos, empresários e autoridades paranabenizando-a pela nobre iniciativa. Uma fila

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enorme de repórteres esperavam seu regresso do exterior para entrevistá-la.

Irene, orgulhosa, agradeceu ao Dr. Moisés e ao Júlio, novamente, pela colaboração e dedicação ao Grupo, acenando com um aumento em seus bônus anuais.

Antônio apresentou a quinta pauta da reunião, colocando na mesa, em frente de sua mãe, o dossiê do novo Diretor de Segurança Institucional, comentando que ela teria a última palavra sobre a contratação, definitiva, ou não do novo diretor.

Irene, apreensiva, abriu uma pasta azul do departamento de R.H. e começa a ler as informações sobre seu novo diretor.

Major Francisco do Nascimento – 58 anos – aposentado da Força Aérea Brasileira – FAB. Casado, pai de três filhos e avô de 4 netos.

Recomendações foram dadas pela Presidência da República, FAB, Ministério da Defesa e duas multinacionais nas quais deu assessoria na área de segurança até ser contratado pela VÊNUS.

Especialista na área de segurança eletrônica, espionagem industrial, proteção a militares de alta patente e, ultimamente, a presidentes de multinacionais. Estagiou na Inglaterra, USA e Espanha. Falava fluentemente inglês e espanhol.

Irene, aliviada ao ver a foto do Major, pediu para ter uma reunião a sós com o Major Francisco, assim que terminassem a pauta do dia.

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Estevão ganha outra aposta, mas paga o jantar

O Major Francisco do Nascimento entrou no suntuoso escritório da presidente do Grupo VÊNUS e foi recebido por Irene com um sorriso estampado no rosto.

O major, acostumado, com altas patentes, se sentiu à vontade para sua primeira entrevista com a presidente. O salário era o dobro do que ganhava nas multinacionais e o escritório da VÊNUS ficava a cinco quarteirões de seu apartamento.

Com o dossiê do Major Francisco na sua frente, Irene perguntou se ele poderia ser mais específico quanto a sua resposta, no formulário do RH, sobre como ele ficara sabendo da posição aberta na VÊNUS.

– Na resposta, o Senhor disse FAB, comentou Irene, olhando nos olhos de Francisco.

O Major, corrigindo sua resposta, respondeu prontamente que fora, indiretamente, através da FAB,

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ou seja, um ex-colega de Asas do tempo em que trabalhavam juntos no serviço de inteligência da FAB.

– Eu poderia saber o nome de seu ex-colega de Asas? perguntou Irene.

– Eu vou responder a sua pergunta por dois motivos, respondeu o Major com a voz firme. Primeiro, é um direito seu, e, principalmente, porque trata-se de sua própria segurança. Segundo, a pessoa que me recomendou, autorizou-me a mencionar seu nome, uma vez que ele previu que a Senhora poderia questionar a minha escalada até aqui. Não sei se a Senhora o conhece pessoalmente, ou não, mas ele geralmente não detalha as razões de seus pedidos.

Essa pessoa é o Coronel Aviador Estevão Montes do Amaral.

O Coronel pediu baixa da FAB em 1999. De vez em quando jantamos juntos e colocamos os assuntos em dia. No mês passado, preocupado, com sua inadequada segurança, ele me recomendou a posição sem garantias de que eu conseguiria ou não o emprego que eu não estava procurando.

O Major Francisco continuou a explicação à sua Presidente, dizendo que no mundo dos serviços de Inteligência, sejam eles militares ou civis, a comunidade faz favores uns aos outros.

– Estou aqui pagando um favor que devia ao colega e, sem dúvida, atraído pelo dobro do meu salário de onde estou de saída.

O meu dever, de agora em diante, é protegê-la a todo e qualquer custo e essa proteção obviamente se estende ao seu filho, a familiares e às empresas.

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Enquanto esperava pelo seu retorno já fiz uma varredura completa nos telefones da VÊNUS e das suas residências. Achamos um grampo em duas linhas da VÊNUS e em uma linha telefônica da sua residência, no Morumbi. Já trocamos os números e é melhor daqui para a frente, para falar com a família, usar os celulares. Use os telefones convencionais só para negócios comerciais.

A presidente agradeceu ao Major pela sinceridade e objetividade de sua resposta dizendo que estava pronta para receber as novas instruções sobre a sua segurança e a de seu filho.

– Em outra ocasião gostaria de saber mais sobre o novo sistema de segurança a ser implantado nas empresas do Grupo.

Os dois selam o contrato com um aperto de mão e antes de o Major se retirar, Irene perguntou se ele também praticava o pára-quedismo.

Francisco que não esperava pela pergunta, respondeu que fez uns cem saltos em toda sua carreira na aeronáutica. Nada que se comparasse a Estevão, o Ás de Ouro da FAB.

Irene, trêmula, acompanhou o Major até a porta. Não tinha mais dúvidas de que Yves era o mesmo Ás de Ouro da FAB ou o Coronel Estevão Montes do Amaral.

Irene com as recentes notícias sobre Fast Sagittarius e Estevão, não resistiu a tanta emoção e decidiu chamar seu Ás no celular especial, recebido de presente, em sua viagem de ambulância pelo interior paulista e ruas da Capital.

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O telefone celular internacional de Estevão tocou três vezes até que foi atendido.

Irene perguntou:

– Poderia falar com o Ás de Ouro, por favor?

Estevão respondeu:

– Quem gostaria?

Irene, emocionada, respondeu rindo e chorando:

– É a lady Amazonas.

O Ás de Ouro, confidente, começou a falar sobre o que estava pensando.

– OK! OK! Lady Amazonas eu estava justamente pensando em você nesse momento. Gostaria de lhe comunicar que ganhei uma aposta recentemente, e estou de partida para Paris. Você gostaria de me encontrar lá? Pelo que entendi eu pagarei o jantar....

Lady Amazonas lembrou-se da aposta sobre o D. Filho e respondeu rindo, enquanto chorava.

– Que dia e onde é o encontro?

O Ás de Ouro respondeu:

– De 14 a 21 de dezembro, no Four Seasons Hotel George V, ao meio dia. Se você concordar eu faço as reservas.

Lady Amazonas falou, sem os soluços:

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– Estão confirmados a data e o local. Até lá, meu querido Ás.

Estevão, sorrindo, desligou o celular e voltou a se concentrar no ESTUDO, em que finalizava os últimos detalhes da missão MATE QUENTE.

Irene, ainda emocionada, desligou o celular e chamou Antônio no interfone convidando-o para almoçar juntos e saber o que ele gostaria de planejar para o Natal.Dois áses se encontram

Eles se conheceram em 1983, em Langley, Estado da Virgínia nos Estados Unidos. Ambos participavam de um treinamento de seis meses sobre Inteligência e Contra Inteligência na sede da CIA – Central Inteligência Americana. O treinamento fazia parte de um convênio assinado previamente entre os governos do Brasil e dos Estados Unidos.

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Fernando Costa de Mauá

Nasceu no Rio de Janeiro em 1953. Seu pai foi engenheiro civil do Exército e foi para a Reserva com a patente de General.

Fernando cresceu em destacamentos e vilas militares pelo Brasil afora. Como nunca residiu por longo período de tempo em lugares fixos, seus amigos de infância e adolescência foram temporários.

Aos 15 anos, foi para o Colégio Militar e de lá, com as melhores notas da turma, colocou-se em primeiro lugar na admissão para a Academia Militar de Agulhas Negras, onde, brilhantemente, após sua graduação, seguiu recebendo promoções até chegar a patente de Tenente Coronel.

Sua carreira no exército se concentrou na área da Inteligência.

A mando do Exército, esteve em Israel, Inglaterra e nos Estados Unidos aprendendo e aperfeiçoando seus treinamentos em espionagem e contra-espionagem, Contra Terrorismo, Combate à Guerrilha Urbana e Rural.

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No Brasil, foi o criador de um método denominado Técnicas de Sobrevivência na Selva, o qual o Exército brasileiro exportou para o exterior. Reestruturou e modernizou, secretamente, o serviço de inteligência do Exército antes de pedir baixa, voluntária, em julho de 1999.

Sua última tarefa no serviço secreto do Exército foi fazer um levantamento dos grupos que reivindicam terras e moradias, organizações estudantis, sindicatos, alguns partidos políticos de esquerda, centro e de direita, e, para seu próprio benefício, levantou a vida dos empresários mais ricos do Brasil, entre eles políticos corruptos e corruptores.

Fernando usou, como cobaias, esses setores da sociedade para treinar seu pessoal da Inteligência.

Seus amigos de fardas se surpreenderam com a notícia repentina de que ele, Fernando, estava saindo do Exército. Era difícil acreditar que deixava uma brilhante carreira inacabada.

Para os poucos que se atreveram a perguntar o motivo da baixa voluntária, Fernando respondeu:

- Meu Pai e eu já contribuímos bastante para a Instituição. No momento não acho espaço para crescer. Não me refiro chegar até General, isso seria até fácil. Mas não é o que quero. Para fazer o que eu quero tenho que sair do Exército e lá fora estarei livre para agir à minha maneira.

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Estevão Montes do Amaral

Nasceu em Campo Grande, Estado do Mato Grosso em 1954. Filho de fazendeiro. Passara sua infância na fazenda de seus avós onde estudou seus primeiros livros. Sua mãe lecionava na escolinha da fazenda para ficar mais tempo com o filho. Estevão teve uma infância sadia, alegre, com muito estudo e atividades ligadas ao cotidiano do interior, lidando com gado, cavalos e colheita de café.

Em seu aniversário de sete anos, seu padrinho, Arlindo, lhe dera de presente o primeiro avião. Um brinquedo de madeira envernizada, com asas, que guarda até hoje entre os troféus que recebera ao longo de sua carreira. Desde esse dia, Estevão, nunca mais parou de pensar em aviões.

Sua visão de 20 x 20, perfeita para quem quisesse seguir a carreira de piloto civil ou militar. Aos 16 anos, iniciou o seu curso para piloto privado no aero-clube local. De lá para a Academia da Força Aérea Brasileira, em Pirassununga, no Estado de São Paulo, foi um pulo rápido e ambicioso para um caipira do interior.

Apreendeu inglês e francês com facilidade, apesar de preferir o inglês como idioma. Sua carreira na Força Aérea Brasileira não tinha limites.

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Iniciou seu treinamento na Força Aérea Brasileira – FAB, voando o Uirapurú (aeronave triciclo, de treinamento fabricada pela Neiva), apesar de ter iniciado sua carreira anteriormente com o CAP-4 (aeronave convencional, fabricada pela Companhia Aérea Paulista).

Teve uma rápida passagem de treinamento pelo AT-6 (aeronave de treinamento americana incorporada à FAB após a II guerra mundial).

Mais tarde teve, também, oportunidade de, como piloto de caça, voar o Xavante e o F 15. Em 1990, foi para Brasília onde começou a trabalhar na área da Inteligência da FAB. Foi um dos primeiros a reclamar que os vôos civis e militares no norte do Brasil estavam completamente desprotegidos. Sugeriu a instalação de radares em pontos estratégicos da Amazônia.

Sua idéia serviu, mais tarde, para outras patentes desenharem o projeto SIVAM.

Para eliminar a dependência do Brasil com os franceses, na área de infra-estrutura aeronáutica e do lobby brasiliense daqueles que os apoiavam no Brasil, trabalhou secretamente para que uma companhia norte-americana, ganhasse a concorrência para as instalações do SIVAM na Amazônia.

Em maio de1999, após a morte de seu pai, subitamente pediu baixa da FAB para surpresa de seus superiores e dos poucos amigos de asas.

Estevão, após sua saída abrupta da FAB, viajou para os Estados Unidos, onde visitou shows aéreos e

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exposições de armamentos. Esteve em Los Angeles onde pilotou alguns jatos de propriedade dos Warbirds. Esteve em cinco diferentes locais para saltos de pára-quedas sendo o último em De Land, capital mundial do pára-quedismo, no Estado da Flórida onde fez uma reciclagem técnica sobre novos equipamentos e saltos.

Antes de regressar ao Brasil, visitou alguns conhecidos dos velhos tempos que conhecera quando estagiou na CIA.

Chegando ao Brasil, estabeleceu-se em São Paulo onde começou sua própria companhia de taxi aéreo. Nos fins de semana, anonimamente, praticava um ou outro de seus esportes favoritos, pára-quedismo e tiro ao alvo.

Os seus negócios com a companhia de taxi aéreo corriam razoavelmente bem. A atenção era redobrada em épocas eleitorais quando seus aviões não paravam nos hangares. Não era nada fácil receber dos políticos que contratavam seus serviços. Após as eleições, aqueles que ganhavam, pagavam com benesses; já os perdedores, poucos parcelavam o que podiam pagar e o resto dava o balão.

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O convite

Era um domingo de fim de mês. Estevão dispensara seu caseiro e estava só em casa, aproveitando a chuva para lavar o canil de suas quatro Pit Bulls e uma Rott Bull (mestiça de Rottweiller com Pit Bull). No momento, as cinco cadelas eram a família de Estevão.

Ginger, músculos e corpo perfeito, cor de mel, era comparada com um cavalo quarto de milha.

Mask, branca com uma mancha negra em um dos olhos. A mais feroz e esperta da casa. Assassina convicta de outros cães que não fossem de sua raça ou família. Atacava seres humanos não reconhecidos, também.

Jaguá e Pantera, filhas de Ginger com Beethoven. Estavam com um ano e meio, seguindo a trilha da mãe.

Spanky, a mestiça brazina escura que durante à noite se tornava invisível. Treinada para defender a casa de qualquer estranho, a qualquer custo.

Depois de várias tentativas com raças diferentes de cães para guarda, Estevão se decidiu pela raça Pit Bull. Para obter melhores resultados com a segurança e limpeza da casa, só criava fêmeas.

Havia uma frente fria em todo o Estado de São Paulo e os locais para salto de pára-quedas, com certeza, estariam fechados. Poderia ter ido praticar tiro ao

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alvo, mas resolveu se auto-escalar para passar o dia em casa.

Ficou surpreso quando a campainha do portão tocou. Não esperava ninguém. Foi até a cozinha e olhou em um dos monitores que controlava o portão da rua.

Alguém do lado de fora, na calçada, usava um guarda-chuva, óculos escuros, boné americano e uma sacola na mão. Impossível de ser reconhecido pela câmera fixada no canto do muro alto, do lado direito do portão. Esta câmera transmitia a imagem da frente da casa, na calçada e parte da rua. Fernando comandou um zoom em outra câmara colorida LG que ficava do lado esquerdo do portão, mas a única coisa que conseguiu ver em seu monitor foi um guarda-chuva molhado cobrindo o rosto e ombros de quem tocara a campainha.

Estevão ligou o interfone e perguntou quem era.

– Aqui é o Verde Oliva, que também pediu a conta recentemente.

Estevão se surpreendeu, com alegria, quando reconheceu a voz vinda pelo interfone. Respondeu que já iria abrir o portão, mas antes tinha que prender seus animais.

Ao abrir o portão do muro alto, Estevão saudou Fernando dizendo que não fora ao salto de pára-quedas por causa do mau tempo, mas que a chuva lhe trouxera uma ótima surpresa.

Fernando respondeu que com chuva era mais fácil encontrar as pessoas em casa, principalmente quando o caseiro estava de folga.– Como é que você sabe? perguntou Estevão.

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– Não sabia. Deduzi quando você teve que prender os Pits e veio abrir o portão, respondeu Fernando.

Os dois se encaminharam para a sala de estar e Estevão lhe perguntou porque ele não tinha telefonado antes, para avisar que viria.

Fernando não lhe respondeu. Tirou de uma sacola de nylon duas caixas que entregou a Estevão dizendo?

– São dois presentes para você. Quando nos encontrarmos no futuro, ligarei antes.

Estevão abriu as caixas e notou em que em uma delas havia um telefone Celular Motorola, pequeno, de dobrar. Na outra caixa havia outro telefone um pouco maior com uma antena que saía em ângulo do lado do aparelho.

– Para que isso? Perguntou.

– Bem! depois que eu relatar o motivo da minha visita aqui, sem aviso prévio, e se você aceitar o convite que vim lhe fazer, você terá que começar a usar esses aparelhos para nossa própria segurança.

O Motorola é um-pré pago comprado em nome de um Acerola no Rio de Janeiro e o outro é um Celular Internacional via satélite, registrado no Chile, em nome de outro Acerola. As contas são debitadas automaticamente em bancos nos nomes dos Acerolas.

O truque, no futuro, é não usar o telefone pré-pago nas imediações de sua residência ou escritório. Caso haja uma investigação por qualquer motivo, as companhias de telefone identificam as antenas que

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transmitem ou recebem as chamadas. E da antena para a sua casa é um pulinho, explicou Fernando.

– Já sei disso, falou Estevão, apontando um Nokia desligado em um móvel da sala dizendo a Fernando que aquele tinha as mesmas manhas do Motorola e que era só para receber e chamar, longe de casa.

Continuou explicando que, de vez em quando, tinha que chamar algumas namoradas comprometidas com outros, além dele. Uma delas é a ex-esposa de um investigador da Policia Federal.

– Esse pessoal, como você bem sabe, é viciado em grampos telefônicos.

Na maioria das vezes, só ligava o celular em shopping centers ou a caminho do trabalho para chamar ou ler os recados da caixa postal.

– Vejamos! continuou falando Estevão, olhando nos olhos do amigo. Estou recebendo a ilustre visita de um recém-ex-militar da inteligência que não gosta de anunciar seus planos dominicais por telefone convencional. Ganho de presente mais dois telefones celulares novos.

A visita é para me fazer um convite...

OK! OK! Sou todo ouvidos, vamos ouvir o misterioso convite.

– É uma história parecida com a sua no que se diz respeito à minha baixa voluntária do Exército, continuou Fernando.

No fundo, dentro de nós, somos bastante parecidos. Temos os mesmos ideais políticos, gostamos de viver

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bem, somos da mesma idade, sabemos muito sobre poucos e poderemos ensinar a outros o que sabemos.

Vejo com clareza e objetividade que fora das Forças Armadas poderemos criar e fazer coisas que não poderíamos nem pensar antes, se estivéssemos ainda nos quartéis.

Acho que descobri uma fórmula para aproveitar nossas experiências militares de uma maneira prática, objetiva e bastante compensadora, tanto no sentido financeiro como no sentido idealístico.

– OK! Já estou quase que convencido, comentou Estevão.

Fernando continuou:

– Vamos criar um movimento político novo. Não será, obviamente, de esquerda e nem tampouco muito à direita. No primeiro instante, o movimento será clandestino e armado. Depois o movimento evoluirá e terá força e rumo próprio. Poderíamos chamá-lo de MOVIMENTO BRASILEIRO NACIONALISTA, o MBN. Ou, mais tarde, de PBN ou simplesmente PB. Até lá, os mais fervorosos afiliados conseguirão uma denominação mais do que apropriada.

Nós, obviamente, ficaremos com a parte militar do Movimento. Não vamos participar, oficialmente, do MBN. Já tenho os Acerolas que farão isso. Você, se quiser, pode indicar alguns também.

Eu e você conhecemos pessoas e poderíamos recrutar outras para formar e treinar as células iniciais do movimento. Para começar, eu comando duas, e você, duas. Elas serão bem pagas, com contas e nomes falsos no Brasil e no exterior. Obviamente, como você

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bem sabe, elas não vão se conhecer entre si. Depois essas células vão se multiplicar até que o movimento esteja bem estruturado, com capital e representatividade em todos os estados da União. Isso feito, os membros das células se afiliarão ao partido, até lá, legalizado, que se engajará democraticamente no sistema eleitoral colocando seus constituintes no poder.

Estevão interrompeu Fernando para fazer um comentário.

– É exatamente o que esquerda fez, no Brasil, para chegar até onde está agora. Eventualmente, ou quem sabe, nas próximas eleições conquistem o Planalto de uma vez por todas. Agora que saíram da clandestinidade e substituíram suas armas por ternos e gravatas Giorgio Armani. Inteligentemente, começaram a usar os microfones e a TV para entrarem em nossas casas com suas barbas, já, grisalhas. Mas o objetivo continua o mesmo dos anos 60.

O topo do poder.

– Concordo com você, disse Fernando. Mas nas décadas de 60, 70 e 80, em nome da democracia, eles, também, começaram, na clandestinidade e fizeram até alguns seqüestros. Mais tarde, com a abertura política e o fim da guerra fria, a esquerda e a imprensa conseguiram minar a resistência dos militares e ganharam a simpatia do povo no grito, nas ruas e na TV, ou pelo microfone como você bem colocou. Em plena democracia, até hoje, culpam, a ditadura pelos maus que afligem o Brasil, do Arroio ao Chuí, não contabilizando que já estão em plena democracia, quase que o mesmo período que o governo militar

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ficou no poder. Naquela época, pelo menos, existiu planejamento para o desenvolvimento.

Até os políticos que nasceram e cresceram à sombra dos militares, hoje posicionados entre a direita e a canhota, também culpam os militares angariando votos dos eleitores amnésticos.

O poder é ascendente e só levará a um lugar, onde tanto a direita como a esquerda querem permanecer.

O topo do Planalto... Brasília.

A minha previsão é de que quando a esquerda ganhar totalmente Brasília, pela TV, sem dar um tiro sequer, usando a arma mais poderosa do novo milênio, o microfone, eles ficarão embriagados pela altura nunca alcançada e logo ficarão sem o oxigênio necessário para permanecer no topo.

O oxigênio poderá faltar, na hora em que os brasileiros começarem a perceber que a esquerda, que antes andava de Lada, passou a dirigir BMWs, usar celulares digitais fosforescentes, ternos Giorgio Armani e sorrir de aparelhos nos dentes, igual às recentes estrelas do futebol brasileiro. Nessa hora, realizarão que o povão continua tão pobre quanto antes ou até mais.

Nesse momento nós estaremos prontos para entrar em ação e logo, o mesmo povo, alegre, desprovido de memória e sedento de novos mocinhos na TV, apoiará uma opção nova no cenário político brasileiro. Apoiará o MBN na TV.

Por outro lado, o MBN não precisará da ajuda dos militares para chegar ao topo, e a esquerda terá

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dificuldades em ter a ajuda que precisará deles para nos combater.

Hoje, a esquerda está se movendo para a direita, e a direita para não despencar do topo vai para a esquerda. O truque, então, é usarmos os mesmos meios, iniciais, que a esquerda usou para se estruturar politicamente. Aproveitar, também, as técnicas militares que aprendemos nesses últimos anos de quartéis. Copiar o know how metodológico dos recentes evangelistas para arrebanhar novos seguidores, que por sinal, é muito melhor do que a da Igreja Católica que, no momento, perde o mercado. Não esqueçamos que em 64 a Igreja apoiou os militares, mas depois virou a casaca. E, para finalizar, negociar com os maiores empresários do Brasil e prometer a eles o mesmo ovo de ouro que tanto a Direita e a Esquerda prometem.

Nós não vamos fundar mais uma religião. O Brasil já está cheio delas e tampouco vamos sair por aí distribuindo livrinhos colorado do Mao ou os dos intelectuais Marx e Lennin. A Esquerda, também, já fez isso, muito menos vamos levar mais outro General para a presidência em cima de um tanque de guerra. Esse filme nós já assistimos. E só vai ter reprise quando o Tio Sam autorizar.

Hoje o Planeta, em fase de globalização, é outro, e existem meios mais fáceis para arrebanhar simpatizantes para uma causa política, principalmente quando os governantes e as classes dominantes não conseguem realizar o sonho de um povo que, no momento, sobrevive de forró, futebol, carnaval e cachaça.

O que salva ainda os brasileiros é que, por enquanto, somos considerados o último povo alegre do Planeta.

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Essa situação nos coloca em primeiro lugar na fila dos esperançados, e, para que essa alegria restante não morra de vez, precisamos criar um novo remédio.

O MBN poderá ser essa injeção animadora para os brasileiros que também sonham com emprego, dólar, carros importados, saúde, educação, saneamento básico, aposentadoria digna, Nike, Mac Donalds, entre outros vários delírios de primeiro mundo que prometeremos incorporar na dieta dos viciados em comer forró, futebol, carnaval e cachaça.

A minha ambição não é o topo, mas confesso que gostaria de iniciar um movimento político, novo, que chegue até lá um dia e, obviamente, ser muito bem pago pelos meus serviços.

Se começarmos a agir agora, em três anos o Movimento estará dando seus primeiros resultados políticos e econômicos.

Herdei um milhão de dólares em cash de uns colombianos que prendemos em Tabatinga. A quantia era o triplo disso, mas, como bom dominicano, reparti o bolo com as demais autoridades locais, para fins sociais. A minha parte quero investir no MBN.

Já sei quem tem o resto dos recursos. O que você acha? perguntou Fernando a Estevão.

– Bom! Você me fez um tipo de proposta para parceria que não se responde mais tarde. Você já sabia que eu diria um sim quanto ao idealismo.

Eu, também, tenho algumas economias escondidas e posso usar a companhia de taxi como contribuição inicial ao Movimento.

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Como a parte financeira não ficou bem clara, terei que fazer duas ou três perguntas, OK? falou Estevão.

– Manda! disse Fernando.

– Primeiro. No que se diz respeito ao topo, também não tenho intenções nenhuma de ficar no Planalto. Como é sabido, já andei por lá trabalhando, mas o clima é muito seco para minha pele.

Quando faço vôo de grande altitude, o ar, também seca a minha pele. Entre o Planalto e voar, prefiro o último.

Segundo. Quanto tempo ficaremos engajados no Movimento e quanto será a minha parte? E para ser honesto, não entendi a parte dos Acerolas, perguntou Estevão.

– Ah! Você, sempre objetivo. Por isso, disse-lhe que nossos pensamentos são iguais, comentou Fernando.

Pelos planos que elaborei eu diria que precisaríamos de dois a três anos para recrutar, armar, treinar e acomodar as quatro células iniciais. Com elas preparadas, partiríamos para a ação, imediatamente, e dentro de mais dois anos, no máximo até 2004, viriam suficientes recursos para nos pagarem e continuarem se multiplicando em direção ao topo.

Meus planos são para sairmos fora mais ou menos nesse período com aproximadamente trinta milhões de dólares, cash, cada um. Não é uma quantia astronômica, mas seria uma aposentadoria bem merecida, sem levar em conta que, durante os quatro ou cinco anos desse engajamento, estaríamos em pleno êxtase, fazendo aquilo que mais gostamos.

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Creio que isso, também, vale alguns milhões de dólares.

Para terminar, quero lhe explicar que o Acerola é um Super Laranja. Criei dúzias deles espalhados pelo Brasil e pelo Exterior.

Recentemente, cientistas descobriram que para encontrar a mesma quantia de vitamina C, achada em um copo de suco de acerola, são necessários sete copos de suco de laranja.

– Quando começaremos? perguntou Estevão.

AUTOR: Fernandez

OBRA REGISTRADA: GUIA PARA UM SEQÜESTRO

REGISTRO Nº 289.223

PROTOCOLO 2003SP-4065 EM 30-05-2003

REGISTRADO EM 5/06/2003, NO LIVRO 523, FOLHA 383

ROMANCE – Publicado em ingles nos USA em 2014