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MURALHA QUOTIDIANA CAPÍTULO I NERVOSISMO Aquela doença já durava há tempos, sem que se lhe visse cura ou agravamento. Um moer, uma dor de cabeça, uma rabugice constante… E tudo isto, apesar de se respirar saúde, naquela aldeia, até agora pouco atormentada por essas poluições daninhas! Quando muito, teremos que nos sujeitar à falta de higiene pelos caminhos, aonde as alimárias, sem solicitarem licenças camarárias, despejam tudo o que lhes vem aos intestinos…. Contrastando com esta falta de asseio, se levantarmos os olhos indiscretamente ao redor do denso casario, veremos os seus quintais pejados de roupa que, suspensa nos fios, alva de neve, aguarda que o sol lhe transmita algo que ainda lhe falta: o milagre de ficar enxuta, pronta a vestir ou adornar algum leito nupcial, testemunha silenciosa de toda a espécie de carícias… Os caminhos que ligavam esta aldeia ao exterior, sabe-o Deus e os seus habitantes, estavam longe de ser os melhores! Mas havia a promessa dos senhores graúdos, os engravatados, de coleiras ao pescoço, que tudo se iria melhorar. Era uma questão de tempo…. Nada de desesperar ou revoltar-se! A falar é que nos entendemos; e com calma, tudo se resolve… Sendo, em regra geral, pachorrento, o povo aldeão, também inconformismo misturado com a muita resignação. A maioria, que deixou de pensar por si, tal o hábito que não nada a fazer, é presa mais que fácil

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MURALHA QUOTIDIANA

CAPÍTULO I

NERVOSISMO

Aquela doença já durava há tempos, sem que se lhe visse cura ou agravamento. Um moer, uma dor de cabeça, uma rabugice constante… E tudo isto, apesar de se respirar saúde, naquela aldeia, até agora pouco atormentada por essas poluições daninhas! Quando muito, teremos que nos sujeitar à falta de higiene pelos caminhos, aonde as alimárias, sem solicitarem licenças camarárias, despejam tudo o que lhes vem aos intestinos….

Contrastando com esta falta de asseio, se levantarmos os olhos indiscretamente ao redor do denso casario, veremos os seus quintais pejados de roupa que, suspensa nos fios, alva de neve, aguarda que o sol lhe transmita algo que ainda lhe falta: o milagre de ficar enxuta, pronta a vestir ou adornar algum leito nupcial, testemunha silenciosa de toda a espécie de carícias…

Os caminhos que ligavam esta aldeia ao exterior, sabe-o Deus e os seus habitantes, estavam longe de ser os melhores! Mas havia a promessa dos senhores graúdos, os engravatados, de coleiras ao pescoço, que tudo se iria melhorar. Era uma questão de tempo…. Nada de desesperar ou revoltar-se! A falar é que nos entendemos; e com calma, tudo se resolve…

Sendo, em regra geral, pachorrento, o povo aldeão, também há inconformismo misturado com a muita resignação. A maioria, que deixou de pensar por si, tal o hábito que já não há nada a fazer, é presa mais que fácil para os astutos mandões, cuja desonestidade é ponto comum. Desde sempre que o fraco de espírito se limita a pôr a força dos seus músculos ao serviço do opressor, cujo sorriso forçado mendiga, qual cão, cioso das carícias do seu dono!

Ignorante parcela da Humanidade! Por quanto tempo continuarás a suicidar-te voluntariamente, sem acreditares que, unida, tens o mundo, com todos os seus parasitas na tua mão? Acorda, antes que esse letargo a que te abandonaste, resignada, te conduza ao cadafalso, desprezível e coberta de opróbrio, ante essa incapacidade de reacção! Sê forte, ao menos a bem da tua descendência que, vergada à escravidão, jamais te perdoará o desleixo, o cruzar de braços, à espera à que os santos resolvam o problema, se possível…

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Para melhor domínio, o opressor jamais se preocupou em abrir os olhos aos camponeses, a ministrar-lhes a instrução suficiente para que estes, esclarecidos e convictos do que são capazes, possam finalmente dar o grito de independência! Pudera! Voltar-se-ia o feitiço contra o feiticeiro! A astúcia é a arma mais eficaz para tiranizar, mesmo suavemente!

Há, no entanto, em todas as classes sociais, boas e más índoles: a Natureza modelou as suas criaturas semelhantes, mas nenhuma completamente igual a qualquer outra. Desde o piolho ao elefante, da formiga à baleia, o instinto de conservação e autodefesa, a sua própria identidade são-lhes indispensáveis, ao longo da vida…

Mas deixemos as divagações, para contactar com um agregado familiar: penetremos numa espaçosa habitação, com várias divisões, térreas, umas, assoalhadas, outras. Numa destas últimas é o quarto do casal, que já várias vezes fez aumentar o número da sua espécie, sem problemas de maior.

Agora, porém, o caso é mais sério: revirando-se, impacientemente, na cama, o velho Lourenço parecia debater-se com dores violentas, e era forçoso acudir-lhe, quanto antes, não fosse o caso agravar-se ainda mais!

Banhada em suores frios, incapaz de enfrentar, e muito menos de resolver aquela situação, Noémia entrava e saía, precipitadamente, olhando o marido, à espera que uma boa fada, através da varinha mágica, o curasse, ou aliviasse o sofrimento! Pobre mulher! Pouco mais sabia que ser uma boa dona de casa!

- Isaura, minha filha! É preciso fazer qualquer coisa pelo teu pai! Ele fina-se aqui, nesta cama! Por amor de Deus! E os teus irmãos, tão longe daqui! Tanto que o meu rico homem tem trabalhado, e acaba por nos morrer para aqui à míngua! Que Deus nos valha!

Isaura era uma moça esbelta, com uns olhos castanhos e penetrantes, espelho do fulgor irrequieto que a envolvia. De boa estatura, desenvolvera-se, no seu todo, numa formação harmoniosa de atleta, uma boa filha do campo, em toda a acepção da palavra. Resoluta, tímida e aparentemente agressiva, sabia agir com uma segurança invejável, na hora exacta. Por isso mesmo encarou a mãe com a seriedade do momento:

- O pai não morrerá à míngua, só por os meus irmãos não estarem. Saberei desempenhar-me da missão que me cabe, indo imediatamente procurar socorro! Talvez seja melhor levá-lo ao hospital; sempre é tempo que se ganha! Chamar um médico, enquanto ele vem e não vem, as coisas podem piorar. A mãe que o vá vestir, que eu já chamo o carro de praça. Vamos, mulher de Nosso Senhor! Mexa-se, não fique mais à espera de auxílios estranhos!

E saiu imediatamente, à procura do táxi, enquanto a mãe, sem forças, tentava cumprir o melhor que podia as ordens daquele general!

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Num e noutro caso, porém, as coisas não pareciam correr de feição: o táxi da freguesia estava a reparar, na oficina, há dias, sem que lhe dessem conserto. Isaura, malgrado a sua energia, ante a urgência do caso, começava a enervar-se, o coração a manietar o cérebro, emperrando o frio raciocínio! Tentava dominar a emoção e as lágrimas, que ameaçavam sair-lhe em caudal! A vida do pai corria perigo, e ela sentia-se impotente para lhe acudir! Já anoitecera há muito tempo, e o silêncio à volta de Isaura inspirava-lhe um terrível pavor!

Noémia, por seu turno, não conseguia levar a bom termo a missão que a filha lhe impusera! O marido, arreigado a velhos costumes, não queria arredar pé de casa, alegando que preferia morrer no seu cantinho, com o conforto da família. Lá na cidade, aonde não conhecia ninguém, desprezado, num hospital qualquer, certamente entregá-lo-iam à sua triste sorte. Ainda se tivesse uns tostões… mas, pobre como era, bem se importariam com ele! Deixassem-no ficar ali, por amor de Deus, se o queriam ter vivo um pouco mais! Aquela ideia era resoluta, inabalável, dado o enorme receio que certos camponeses mais tímidos têm acerca das gentes da cidade, dos seus hábitos, do pouco caso que fazem daqueles que levam a vida inteira agarrados à enxada!... Que lhe fizessem um chazinho bem quente, e a coisa talvez passasse, como das outras vezes! Senão…. Seria o que Deus quisesse! Para esses hospitais, longe, é que não, por nada deste mundo! Pobre do velhote, coitado! Pois que só de pensar em tal coisa, parecia morrer de susto; mais ainda que das dores físicas…

A mulher, de espírito fraco, apegada, como o marido, tão doente, aos mesmos preconceitos, não se decidia, como numa encruzilhada, em qual a melhor atitude a tomar! Se ao menos ali estivessem os filhos…. A responsabilidade seria de todos! Assim…. Que Deus a iluminasse! Os braços caíam-lhe, sem ânimo! Dirigiu-se à cozinha, para fazer o chá; mas a mão, trémula, quase nem conseguia riscar um fósforo… Exalou um longo suspiro, transparecendo, através dele, toda a fragilidade que, em momentos de angústia, dilaceram as almas menos fortes….

Indiferente aos embaraços caseiros de Noémia, o vento, fustigando com fúria a chaminé, lançava, através dela, uivos agoirentos e sinistros…

E, no seu leito, febril, o doente gemia, esperando um socorro, que nunca mais chegava…

- Oh, Noémia! Os nossos filhos! Eu preciso despedir-me deles…. Se ainda tiver tempo! Chama-os, antes que seja tarde! Tanto que trabalhei e suei, para lhes dar mais do que tive! Para não serem burros ignorantes, como o pai! Agora, que estarão a um passo de se tornarem doutores de leis, é que me vou! Bem me custa; mas que se faça a vontade de Deus! Ai, esta cabeça, que quer rebentar! Nem consigo mexer o pescoço! E ainda me querem rebolar para o hospital, não?! Para quê? Para se verem livres de mim, das minhas misérias! Estou velho, não presto para mais nada! Podem deitar-me para o lixo; mas aqui, que ainda mereço um covil, no cemitério da minha freguesia, junto dos campos aonde tanto trabalhei! Não, mulher, ninguém conseguirá arrancar-me daqui, nem à força…

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- Oh, Lourenço! Queres matar-nos a todos? A ti e a mim? Não és tu próprio que gritas, cheio de dores? Queremos, com a ajuda de Deus e dos médicos, que para isso estudaram, aliviar-te o sofrimento! Anda lá; deixa-me vestir-te! E a rapariga, que não há forma de chegar! É mesmo para se pegar de cabeça! Que demora! Fico doida; doidinha de todo! Valha-me Deus Nosso Senhor, Pai de misericórdia. E socorro dos aflitos!

Isaura, mais vigorosa que a mãe, não se deixara vencer pelo desânimo: reagindo, dirigiu-se ao telefone público, tentando uma ligação para os bombeiros da cidade; em vão. Insistiu, optando pela polícia; após algumas tentativas frustradas, devido a deficiências nas linhas, atenderam-na, do outro lado:

- Polícia, serviço de urgência; tenha a bondade…

- Eu desejava uma ambulância, para levar um doente ao hospital; se possível, com brevidade…

E deu a direcção, aguardando a resposta, que foi imediata:

- Às suas ordens, minha senhora; seguimos para aí imediatamente.

Um pouco mais tranquila, Isaura regressou a casa, julgando ir encontrar o pai já pronto para seguir, logo que a ambulância chegasse. Convicta de ter levado a bom termo a parte da missão que lhe cumpria, envolvia-a um misto de alívio e preocupação; e, malgrado o frio da noite, o seu rosto, afogueado pela pressa com que caminhava, era banhado por um leve suor frio que, porventura, ainda o tornava mais encantador…

Entretanto, no edifício da polícia, aquele chamamento foi acolhido com certo desdém:

- Ora bolas! Quem será o desgraçado que quer fazer viagens nocturnas!? E então com a miséria dos caminhos que temos! Estas câmaras também não fazem nada, raios as partam! Mas… cala-te boca, que podes comprometer este zeloso funcionário do Estado! Vamos ao trabalho, para não me chamarem molengão!

Um dos colegas, pronto a seguir viagem com o condutor da ambulância, respondeu, simplesmente:

- E lá ficou adiada a nossa partida de damas, quando eu estava quase a ganhar! Mas deixemos esta conversa fiada, que a vida desse desgraçado pode estar em perigo; e agora o nosso dever reveste-se dum carácter humanitário. Estamos para aqui a brincar com coisas sérias, e não é isso que nos ordena a solidariedade humana…

- Que belas palavras! Oh, meu caro! O inferno está cheio de boas intenções; apinhado de nobres projectos, que abortam sempre antes de atingir a realidade! Qual o nosso papel, agora? Sem dúvida, acudir a um necessitado; mas porquê? Por solidariedade humana? Qual carapuça! Porque para isso nos pagam; porque è a profissão que desempenhamos, é o caso! Eu talvez seja um bocado brusco; mas de

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hipócrita é que não tenho nada! Sempre gostei muito de chamar as coisas pelos seus nomes! Aprecio bem mais a beleza agreste duma camponesa, com a cara e o coração a descoberto, que uma lambisgóia, cheia de pinturas, a simulação do que não é; se for tomar um banho, ao desmascarar-se, afugentará o próprio diabo! É isto: quem não me quiser aceitar assim, que se lixe! Comigo é pão, pão, queijo, queijo.

- Oh, Sebastião; nem tanto, nem tão pouco. Sob o teu ponto de vista, não há gente boa neste mundo! Seremos todos demónios? É verdade que estamos cumprindo o nosso dever profissional; mas podemos juntar o útil ao agradável, ajudando os nossos semelhantes com a força dos braços, e simultaneamente com o conforto duma palavra amiga, um estímulo…

Entretanto a ambulância já se pusera em marcha, enquanto prosseguia aquele diálogo, cada vez mais entusiasmado, através do qual ambos pretendiam fazer vingar as suas ideias, invocando todos os meios disponíveis, no caso presente, a eloquência do paleio:

- Pois sim, Rui. No fundo não critico a tua forma de ser, talvez até mais humana que a minha, reconheçamo-lo! Mas púnhamos francamente as cartas na mesa: somos ambos polícias. Jurámos, ao assumir este cargo, pugnar intransigentemente pela defesa do bem público, da segurança geral ou particular de cada cidadão. Por vezes teremos de tomar atitudes enérgicas, a bem dos lesados. Supõe que cada um de nós apanha um larápio em flagrante delito: a nossa missão será prendê-lo, até segunda ordem, consoante a gravidade do caso. Muito bem: eu, com toda a minha violência, esbravejo, como um trovão: Seu gatuno duma figa: merecias que te partisse as ventas. Caminha na minha frente, para a cadeia! E tu, com uns modos muito macios, enveredas por outros rumos, na teoria: ouve lá, moço: procedeste mal; não devemos apoderar-nos do que não é nosso! Vês? Agora terás de ir comigo até à prisão, ou prestar declarações… Encontramo-nos, por fim, os dois, cada um com o seu prisioneiro, um delinquente de mãos hábeis para o ofício da rapina. Na prática, poderás mostrar-me aonde está a diferença?...

Rui olhou para o seu companheiro, que conduzia a ambulância por aqueles caminhos pedregosos, o melhor que era possível, e a sua resposta saiu-lhe, sem hesitar:

- Ambos teríamos cumprido a nossa missão, cada qual à sua maneira. Quanto a mim, acho que, advertindo com brandura aquele que praticou um erro, poderia recuperá-lo, dentro do possível! No teu caso, o desgraçado que te caiu nas unhas, juntou ao peso das suas culpas as tuas ameaças, tornando-se mais difícil de manobrar. Eis a diferença…

- Aqui está um discurso em que só há boas intenções, ou pouco mais! Dentro do mesmo ofício, eu serei ditador, e tu democrata! Para o diabo com esses vocábulos! Todos queremos ir para o Céu, para junto de Deus, aonde não haverá mais luta, mais aflições; tudo é belo! Mas, como para atingir esse fim, teremos que passar inevitavelmente pela morte, quanto mais tarde, melhor! Esta é a realidade, e daqui não podemos fugir! Como prova das minhas palavras, aqui vamos nós, aos trambolhões,

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acudir a alguém que, mesmo muito doente, não quer morrer ainda! Que mais queres para te convenceres que a vida não se resolve com pieguices? As pessoas vivem adormecidas e, só quando levam algum trambolhão mais violento, se compenetram da realidade! Dos fracos não reza a história!

Como da cidade à aldeia ainda iam umas boas três léguas, e a noite continuava muito escura, todo o cuidado do condutor era pouco, apesar da pressa que havia. Ao chegar a casa, Isaura ficou grandemente perturbada, com o ambiente que se lhe deparou; ainda nada fora feito do que destinara, em favor do doente...

- Oh, mãe, isto é inacreditável! A ambulância quase a chegar, aí, e o pai ainda por vestir! Não percebo o que se passou, durante a minha ausência….

Como uma grande pecadora, incapaz de confessar as suas faltas, Noémia nem ousava justificar-se, contemplando a filha com apreensão, num enervante silêncio. Por fim, muito a custo, achou que era forçoso explicar-se:

- Oh, filha! Eu endoideço, nesta casa! O teu pai não quer sair daqui, de forma nenhuma! Diz que o pretendemos abandonar, entregá-lo a estranhos, como coisa inútil! Fez um alarido medonho, que eu não te digo! Vai lá tu ver se o convences! Eu…. Esgotei todas as minhas forças…

A jovem sentiu um amargo desfalecimento, uma tremenda consternação, ouvindo as

palavras da mãe. Tudo fizera para vencer as dificuldades que se lhe haviam deparado, e agora, com o socorro do pai quase à porta, este recusava-se a recebê-lo! Era mesmo de se perder completamente a cabeça!... Qual a melhor reacção a tomar, num momento como aquele? Implorar? Agir com severidade? Usar um estratagema qualquer? Isaura apertava os lábios, nervosa, olhando à sua volta, como que em busca dum socorro, que não lhe aparecia. Os segundos, minutos a passar, mais lhe afligiam aquele coração, a despertar tão bruscamente para as dificuldades da vida, as realidades quotidianas, pensando que, em breve, a ambulância chegaria… Não havia mais tempo a perder! Que Deus a inspirasse!

Fingindo desconhecer as palavras da mãe, Isaura entrou no quarto do pai e, tentando aparentar uma calma que estava muito longe de sentir, perguntou:

- Então, como está o nosso doente? Pronto para seguir viagem? Um pouco mais de calma e paciência, que a ambulância está quase a chegar! Não percamos a esperança, que os médicos irão tratá-lo em condições, no hospital da cidade. Eles para isso é que tanto estudaram. Abaixo de Deus, a medicina, que está bastante adiantada, há-de aliviá-lo dos seus males…Lourenço olhava, estupefacto, para a filha, não querendo acreditar no que ouvia. As dores físicas e morais pareciam apertá-lo ainda mais, com mão de ferro, sob a qual agonizava. Como uma criança frustrada, irrompeu numa explosão de lágrimas, apavorado:

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- Também tu, minha filha! Também tu me queres entregar! Este fardo já pesa demais; não serve para nada! Que sabem os médicos das dores alheias! Morrem, como os outros! Lá se importam eles comigo!

- Oh, pai, seja razoável, por amor de Deus, ao menos em atenção ao seu sofrimento! Que ideias mais absurdas lhe moem essa cabeça! Queremos apenas o seu bem, e por isso pedimos o auxílio de quem nos possa ajudar! Iremos consigo e, se necessário, lá ficaremos até que tudo se resolva! Ninguém o quer abandonar, pelo contrário, para prolongar a sua vida é que desejamos levá-lo daqui, a fim de tratar-se convenientemente! Prefere morrer à míngua, deixando a família submersa em remorsos, no resto da vida, por não lhe ter acudido, na hora própria? Vamos, criatura de Deus! Não perca mais tempo, que os homens devem estar para aí a cair!

No meio da sua ignorância, e receio de ser maltratado, Lourenço começava a pensar que a filha talvez tivesse razão! Afinal muita gente da aldeia, que lá fora hospitalizada, voltara melhor. E, se o acompanhassem, o futuro não se apresentava tão negro. Um tanto contrafeito, acabou por ceder às instâncias da filha, concordando em vestir uma roupa mais decente…

Noémia veio então ajudá-la, agradecendo, no seu íntimo, a Deus e à filha aquele milagre, no qual nunca se atrevera a acreditar….

A atmosfera estava mais leve, sem dúvida; e o doente, sempre aos ais, sentia já uma ânsia de socorro, viesse este do lugar mais recôndito da terra! Vencido pelo desespero, agora só lhe importava que o curassem, que lhe anestesiassem aquelas dores de cabeça! Não podia mais! Por isso foi num estante que ficou pronto; e agora era a ambulância que nunca mais chegava!

Noémia olhava o marido, pronta para seguir com ele a caminho do hospital, aflita, ante a incapacidade de lhe prestar os primeiros socorros, ao menos aliviá-lo um pouco daquele sofrimento!

Isaura, tentando nervosamente manter a calma, já consultara o relógio vezes sem conta. Procurava não se trair, ante o olhar dos pais, em cujos semblantes notava amargamente a mais cruel expectativa daqueles minutos tão longos! Já era tempo dessa gente chegar! Geralmente, quando se espera, o nosso maior inimigo é a falta de calma, o receio de que o auxílio não chegue a tempo. Tudo isso aquela jovem sabia; mas, pelas suas contas, deveriam já ter aparecido. Seria impossível não terem feito caso! Maus agouros lhe cingiam o coração, aonde já era tempo de brotar uma outra espécie de amor, para além do filial ou fraternal… Mas a hora não permitia divagações, sonhos de juventude! Afligia-a, sim, uma dúvida terrível, um pressentimento macabro e pessimista, o qual, em vão, tentava repelir: porém, era mais forte, mais assustador e dilacerante, `à medida que o tempo passava: una sensação de abandono levava-a pensar que o pai talvez não andasse muito fora da razão, ao afirmar que os camponeses bem poderiam morrer à míngua, ou como quisessem! No fundo o que deles se pretende é que trabalhem de sol a sol, para matar a fome aos senhores da alta, incapazes, não só de pegar num sacho, mas muito menos de dar o valor aos que

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o manejam. Era verdade! Desgraçadamente, Lourenço, apesar da sua ignorância, tinha muita razão! A vida é o melhor livro para nos ensinar as leis que a regem, leis essas que não estão escritas em qualquer dos alfarrábios que atulham as prateleiras dos senhores. Isaura era astuta, e via tudo isto na demora da ambulância! O pai bem poderia morrer; mas esses canalhas da cidade teriam de se haver com ela! Arrasaria montanhas, se necessário, para sentir-se justiçada! E se se enganasse? Se algo imprevisto impedisse o socorro pedido de chegar com a urgência pretendida? Afinal a ambulância é conduzida por homens, e a noite estava tão escura! Chegariam, com certeza… Era forçoso manter a calma!

O silêncio da noite foi gradual e ruidosamente perturbado pelo ronco dum soberbo avião, que sobrevoou o local a grande altura. Mas que podem importar a quem viaja tranquilamente através dos ares os gemidos dum pobre velho doente? Que força ou peso poderá ter ele para modificar o rumo dos acontecimentos quotidianos, mesmo levemente? Que remédio senão aguardar, entre o sofrimento e uma réstia de esperança, que algum desconhecido por ali aparecesse, para transportá-lo aos locais miraculosos da cura, mais lenta ou rápida, ou talvez da morte….

Noémia olhava intercaladamente para o marido e filha, sem capacidade de reacção, como num letargo involuntário, esperando milagres alheios….

Uma bátega de água, mais violenta que inesperada, começava a fustigar aquela aldeia, as suas habitações, muitas delas, inóspitos casebres, infundindo terror em quem sob eles se encolhia, com o coração nas mãos, receando morrer, como o pinto na casca, a cada momento! Uma vaga ardente de fervor religioso viera alojar-se em muitos seres humanos, crédulos que a protecção vem sempre nas horas de maior aflição…

E a ambulância, como chegaria até ali? A casa de Lourenço não era das piores, longe disso! Contudo sabiam muito bem os que nela habitavam que a chuva só os poderia prejudicar, ainda mais, naquele momento de angústia….

Mas a esperança, amiga leal de todas as horas, tendo, embora, as suas fraquezas, nunca abandona os que nela confiam, enquanto estes ainda têm um sopro de vida! Por muitos males que dilacerem a Humanidade, grande parte dos seus membros ainda continua a ser capaz de dar as mãos aos necessitados, mesmo correndo grandes riscos. Há sempre quem vele pelos seus semelhantes, por dever ou solidariedade! Se os irracionais se ajudam mutuamente, porque duvidar tanto do bicho dotado de inteligência?...

Em breve, e para descanso dos seus pensamentos quase derrotistas, Isaura reconhecia que se enganara, que pensara mal de seres, como ela: uma ambulância parava à sua porta…

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CAPÍTULO II

BUROCRACIA

- Graças a Deus! Exclamou a moça, aliviada dum grande peso. - Que demora, senhores! Pensei que o doente acabava por morrer, antes que lhe chegasse o socorro! Bem sei que o tempo e os caminhos não ajudam! Mas, com a nossa aflição, os senhores imaginam, com certeza! Desculpem este desabafo! Mas vamos, que não há tempo a perder!

- Aonde está o doente? – Quiseram logo saber os recém-chegados, numa atitude que bem demonstrava o seu zelo profissional e humanitário.

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- Neste quarto, – indicou a dona da casa. – Ainda não parou de se revirar, naquela cama, com dores de cabeça! Os senhores acham que ele vai morrer? Queremos levá-lo para o hospital, mas ele recusa-se a ir, pensando que o vão tratar mal!

Noémia, tão receosa como o marido, abria-se em confidências com aqueles dois desconhecidos, atitude que Isaura reprovou, intervindo, brandamente:

- Cale-se, mãe! Estes senhores não são médicos, nem tão pouco trabalham no hospital! Não vê a sua farda? O momento não é para mais delongas! O pai sabe perfeitamente que todos queremos o seu bem!

A vivacidade daqueles olhos brilhantes electrizava o ambiente à sua volta: seria uma camponesa ou general? … Francamente, nem parecia descendente daquele casal, tão tímido e enrascado, como analfabeto!

Os dois homens, enquanto transportavam Lourenço para a ambulância, repararam na energia da filha, pensando que seria pouco normal para o sexo fraco. Deveriam estar, com toda a certeza, diante duma nova Maria da Fonte; e, por isso mesmo, todo o cuidado era pouco para evitar os golpes da sua “foice”…

Mesmo assim, um deles arriscou, após se encontrarem já todos mais ou menos comodamente instalados no veículo:

- Era muito natural que achassem exagerada a nossa demora! Mas, além do tempo e do caminho não ajudarem, tivemos de retroceder, a meio caminho, para levar um ferido em estado grave ao serviço de urgência! Afinal este acabaria por morrer, vítima da sua má cabeça: conduzindo uma motorizada em grande velocidade, não conseguiu evitar o desastre! Embateu numa árvore, caindo mesmo à nossa frente, num poço de sangue! Tivemos de tentar salvá-lo! A polícia tem uma missão tão nobre quanto espinhosa! Não paramos de avisar que moderem as corridas, mas nunca fazem caso. Quando agimos e os multamos, somos uns carrascos, e afinal servimos o bem público! Aquele…. Já lá está! E era bem novo! Uns vinte anos, se tanto! Que Deus se compadeça dele, já que os homens nada mais podem, em seu favor! Foi este o motivo da demora!

As duas mulheres ouviam, horrorizadas, aquela descrição. Que mau agoiro! O desastre fora logo de morte!

Lourenço, ao balanço da ambulância, adormecera, facto que lhe traria vantagens, ao longo da viagem: não a sentiria tanto! E as suas dores, um pouco mais calmas, pareciam finalmente resolvidas a dar-lhe algumas tréguas e repouso, de que tanto necessitava!

A noite continuava chuvosa e muito escura; mas o condutor, mais do que convicto de que da sua perícia talvez dependesse uma vida, emprega todo o esforço, sem hesitações; e a viagem, com mais este ou aquele trambolhão, seria mais curta, desta vez, e decorria sem incidentes de maior, até então…

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Por desconhecerem o tempo que iriam permanecer em terra alheia, as duas mulheres haviam-se prevenido com alguns mantimentos, para acudir às primeiras necessidades. Não iriam deixar o doente entregue a si próprio, sob o risco da sua recusa em ficar hospitalizado, se necessário. E a dormida? Este caso apresentava-se bastante mais bicudo. As posses não eram muitas para pernoitar em pensões, por mais baratas que fossem! Não conheciam ninguém na cidade, que as pudesse acolher durante dois ou três dias.

Seguiam maquinalmente naquela ambulância, fazendo contas à vida, mais do que nunca, receosas pelo futuro! Elevando o pensamento e o coração a Deus, pediam-lhe protecção!

Com a trovoada próxima das orelhas, lá vinha o ardente apelo a santa Bárbara! E lá diz o ditado: em tempo de guerra, não se limpam armas! Seria bem-vindo todo e qualquer auxílio, viesse donde viesse!

Sempre de pé atrás, Isaura achou oportuno explorar o terreno:

- A vida é muito cara e difícil, na cidade? Os senhores conhecem algum local aonde nos possamos hospedar decentemente, sem grandes custos? É que realmente não sabemos a demora que teremos, se o meu pai for internado…

Os dois homens entreolharam-se, entre surpresos e satisfeitos: era a primeira vez que a moça lhes dirigia directamente a palavra; e um deles respondeu:

- Olhe, menina: é claro que hoje em dia não há nada barato! A mínima coisa custa um dinheirão! Mas não vivemos em terra de hereges! Estamos aqui para nos ajudarmos uns aos outros, dentro do possível! Pelas suas palavras, depreendo que poucas vezes vêm à cidade…

- Sim; muito poucas, mesmo! Não há nada que pague a tranquilidade do campo! Julgo que nunca viveria com sossego, numa cidade, correndo o risco de ser atropelada, ao menor descuido! Esse burburinho constante, o buzinar dos carros e fábricas, a lançar na atmosfera tanto veneno, que nos asfixia o aparelho respiratório! Nas aldeias há muito mais saúde! Eu não me habituaria fora daqui, suponho!

- E no entanto é em busca da saúde que leva o seu pai à cidade! A doença não escolhe local nem pessoa! É mal que aflige toda a criatura, aonde quer que ela se encontre!

O facto de eu preferir a tranquilidade do campo ao bulício citadino, não significa que o hostilize! Pelo contrário, concordo plenamente que ambos fazem parte da vida. Se Deus criou o trabalho e o descanso, decerto os achou necessários e indispensáveis à subsistência humana. Do mesmo modo, fábricas e searas têm o seu lugar, desempenhando as funções para que foram criadas! Como prova de que acredito piamente na solidariedade dos homens, pedi o vosso auxílio; e não estou desiludida, mas cada vez mais crente…

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Mais uma vez os dois se entreolharam, atónitos, com aquele discurso: afinal a linda camponesa nada tinha de inculta! Desconheciam o seu grau de instrução, mas demonstrava saber muito bem o que queria. Apenas a força da juventude, o sangue a pulsar-lhe vigorosamente nas veias, lhe transmitia um optimismo pouco realista do mundo que a rodeava. Pelos vistos, as aldeias também concebiam formosura e inteligência, além da fogosidade sadia de quem ali cresce…. Naquela moça estavam impregnados todos estes dotes! Era necessário dar-lhe a conhecer as virtudes citadinas, fazer-lhe perder o enorme receio que parecia, de momento, anestesiá-la:

- Nada vos deverá inquietar. Dentro do possível, se necessário, ajudá-las-emos. Talvez este senhor não fique internado…

Noémia sentiu naquelas palavras uma espécie de alívio, um conforto moral que a fez falar:

- Oh, Sr. Guarda! Que Deus o oiça! De facto eu bem desejaria que assim fosse! Cidade, só por grande necessidade! Vir aqui de passagem, já me custa, quanto mais permanecer! Mas, se não houver outro remédio…

- Deixemos, por agora, os nossos receios, pondo em primeiro lugar a saúde do pai. Bom seria que ele acordasse! Devemos estar quase a chegar, não é, senhores?...

Um deles, olhando para o doente, depois, para aquelas duas ansiosas mulheres, tranquilizou-as, como pôde:

- Sim; na verdade, já não falta muito. O hospital, porém, fica no lado oposto da cidade, que agora está forçosamente mais silenciosa, porque é noite. Este sono não fará mal nenhum ao doente. Deixem-no em paz. A recuperar forças...

À medida que a ambulância avançava, o olhar curioso das duas camponesas excitava-se, ante um panorama totalmente diferente do seu, aquele que as embalara: agora não viam árvores nem pastos; não ouviam grunhidos de porcos, chocalhos de vacas ou a alegria da passarada. Tudo lhes parecia mais monótono, duma austeridade ou grandeza descomunais! Através de avenidas muito largas, com sinais de trânsito luminosos a cada esquina, vislumbravam prédios enormes, com janelas e varandas sem fim. Aqui e ali, gigantescas chaminés a enegrecer de fumo a atmosfera, a reduzir, sabe Deus por quanto tempo, a sobrevivência humana! Às duas recém-chegadas, o espectáculo não parecia nada cativante! Noémia sentia-se mais pequena, como que num país estranho, aonde talvez ninguém a compreendesse, mesmo falando todos igual idioma! A juventude de Isaura, contudo, levava-a a pensar doutro modo: à primeira vista, a sua pequena aldeia, aonde todos se conheciam, tudo era mais humano, menos automatizado. Os homens, na cidade, certamente seriam quase mais máquinas que seres humanos, com vida e raciocínio…dava-lhe impressão que nem água bebível haveria por ali em condições. Pelo menos até agora ainda não vira nenhuma bica, a jorrar, abundantemente… será que nas cidades até a água era comprada? Caso tivesse sede, como resolveria o problema? Não; não deveria ser tanto assim! Certamente exagerava!

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Não era numa ambulância, a caminho do hospital, que iria apreciar o bem e mal duma cidade! Nem para isso ali viera…

Desviou os pensamentos daquela paisagem que não a seduzia: mais do que nunca, e porque estavam a chegar ao local pretendido, era necessário que o pai acordasse, para ser convenientemente observado por homens que teriam obrigação de lhe atenuar o sofrimento…

Como que adivinhando o que se pretendia dele, Lourenço exalou um longo suspiro, abriu lentamente os olhos e, pouco a pouco, foi dando conta do ambiente que o rodeava. Não teve muito tempo para se arrepender, querer voltar atrás, porque entretanto já haviam chegado ao hospital…

Era um edifício enorme, com largas portas, imensos andares! Contudo, apesar do seu espaço, por onde quer que se passava, parecia tudo cheio, cada enfermo a gemer para seu canto! Mas, com boa vontade, havia sempre lugar para mais um…

Aquele asfixiante odor a medicamentos, a desinfecção, causou um enorme mal-estar aos recém-chegados! Até Isaura, que bem tentava chamar a si a maior dose possível de autodomínio, sentia-se distante, inadaptada. Via redemoinhar à sua volta uma grande quantidade de batas brancas, gente que se movia maquinalmente, sem dar atenção a ninguém. E isto ainda de noite! Quando amanhecesse, santo Deus! Nem seria bom pensar!

Antes de entrar no serviço de urgência, Lourenço teve de aguardar, sempre com dores, que submetessem a filha a um interrogatório confuso, cujo fim nunca mais chegava: o nome do pai, a idade, etc.… Satisfeita, enfim, a curiosidade, daquela empregada, que falava com ela através dum balcão envidraçado, deram-lhe um bilhete numerado, e que aguardassem a sua vez. Haveriam de chamar. Não eram os únicos. Ali tudo teria de obedecer ò ordem de chegada. Nada de atropelos!

Naquele recinto fechado havia tudo, menos o silêncio: lamentações aqui, perguntas acolá, comentários mais além, um bichanar de bocas, que endoideciam quem necessitasse de repouso. Felizmente para os recém-chegados não houve muita demora, porque os doentes não aqueciam lugar junto do médico: aquilo era um tal aviar! Graças a Deus que aquele sabichão já tinha os remédios antecipadamente preparados em série para cada doente! Era formidável!

Não sendo nada tola, a moça começava a duvidar se teria valido mesmo a pena trazer ali o pai! Mas já agora…. Não o iriam matar…

Quando as duas mulheres pretenderam entrar com o doente, não lhes foi permitido; era contra as regras da casa. Só uma, e já iam com muita sorte...

Noémia enervou-se, e a filha entrou, que sempre estaria mais à altura de falar com aquela gente. Isaura viu um médico, que lhe parecia pouco interessado na sorte dos doentes que lhe passavam pelas mãos. Lembrava-lhe um carpinteiro a consertar fechaduras, a pô-las para o canto, se não compensassem a reparação. Era novo, o diabo

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do homem, e até parecia bem disposto, com um olhar vivo, examinando pai e filha. Lourenço sentia-se mais atrapalhado que nunca. Julgou-se um criminoso, junto do juiz, como se fosse o culpado da própria doença que o afligia. Antes lidar mil vezes com o sacho, a tratar das suas terras!...

O médico leu-lhe no rosto a atrapalhação; mas não era nenhum bicho, e procurou pô-lo à vontade, com um sorriso:

- Ora vamos lá a ver este nosso amigo, de que se queixa…

“Amigo”? Ele teria ouvido bem? Lourenço não estava em si! As pessoas gradas da cidade lá se importavam com os camponeses! Será que os doutores eram diferentes? Fossem ou não, aquela familiaridade tranquilizou-o bastante. Fez um esforço enorme, e respondeu:

- Ai, Sr. Doutor! Eu acho que estou por pouco! Esta cabeça!... quer rebentar-me, com dores! Eu não queria vir incomodar, a estas horas! Elas é que me obrigaram!

- As doenças não escolhem horas para nos bater à porta, meu caro senhor! Eu vou ver se lhe consigo tratar da saúde!

E, olhando para Isaura, perguntou:

- É seu pai, menina?

- É, sim, Sr. Doutor. Trouxemo-lo, realmente, contra a vontade dele, cujo medo de vir aqui à cidade é outra doença! Julga esta gente uns papões, e foi com muita dificuldade que o convencemos! Ele não pára com dores, não só na cabeça, mas no corpo todo! Receamos até algum possível internamento…

- Vamos examiná-lo. E tenhamos calma, que aqui também há homens de bem. Faz-se tudo o que se pode, garanto-lhe, menina! Mas olhe que a medicina, bastante adiantada, reconheçamo-lo, ainda não consegue milagres! O seu pai já cá deveria ter vindo há mais tempo! Acho-o muito em baixo! É quase certo eu ter de o internar! Não vejo outra solução! Falo sem reservas, porque a minha profissão assim o exige!

Apesar de não ter papas na língua, o médico desviara-se, com Isaura, para uma certa distância do pai, não fosse este piorar, à ideia do internamento.

Lá fora, Noémia estava em ânsias, conversando com os dois polícias que, motivados pela curiosidade e um pouco de humanismo, ainda ali aguardavam o desfecho dos acontecimentos: talvez fosse necessário levar o doente de volta. Assim como assim, ainda estavam de serviço…

- Ai, senhores! Que demora! Sinto-me tão nervosa! O que estarão eles aí dentro a fazer com o meu rico homem!? Porque não me teriam deixado entrar? Ele certamente está mal!...

Um dos dois homens tentou tranquilizá-la o melhor que soube:

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- Evidentemente, minha senhora, que o seu marido não goza de boa saúde; senão, não estariam aqui. Mas dê graças a Deus da consulta estar mais demorada: é sinal que o observam com consciência. O Sr. Lourenço, mesmo na sua doença, teve sorte: conheço o médico que agora está de serviço! É muito competente e humano! Acalme-se, que tudo há-de correr bem, se Deus quiser. Não a deixaram entrar, porque as regras do hospital não permitem! Se a senhora o acompanhasse, ficaria cá fora a sua filha. Não podem entrar duas pessoas. Mesmo assim, deram-vos liberdade de escolha…

- A minha Isaura desenrasca-se melhor com essa gente. Não é por ser minha filha, os senhores acreditem; mas tenho muito orgulho nela, naquela esperteza! Não sai a esta acanhada da mãe!

Então esta beldade chama-se… Isaura!? Lindo nome, sem dúvida, a condizer bem com quem o usa! Bela demais, para a pobreza campestre! Merecia melhor sorte!...

Rui esquecera-se por alguns momentos da sua profissão; e, transformado no homem que realmente era, todo ele energia, imaginou-se, num futuro mais ou menos próximo, fazendo um lindo par com a moça encantadora que trouxera na sua ambulância. Que diabo! Um polícia, jovem como ele, também tinha o direito de sonhar um pouco, de vibrar intensamente, ante o fascínio feminino! Mas que pensamento mais absurdo, na hora em que o pai da musa que dourava os seus sonhos estava em apuros, ali, naquele quarto ao lado…

Vendo o companheiro muito absorto, foi Sebastião que replicou a Noémia:

- Sem dúvida, minha senhora; a sua filha é extraordinariamente desembaraçada. O orgulho que sente por ela é mais que justificado! Vê-se logo o que ali vai, pelo brilho intenso daqueles olhos. Desculpe a franqueza; mas se aqui permanecesse muito tempo, ficava sem ela, qualquer dia! De mim não tenha medo, que esta aliança afasta qualquer perigo ou suspeita!

- Aquilo é uma querida filha de trabalho! Nunca me deu consumições! Que Deus a leve sempre assim! As da cidade podem ser mais instruídas, mas eu não me conformo ao pensar que um dia terei que a perder!

- Oh, minha senhora! O amor das mães é o mais leal e sublime que há! Mas, por vezes, não deixa de ser um tanto egoísta! Cada um tem de seguir o seu próprio destino! Deus mandou que crescêssemos e nos multiplicássemos. Temos de obedecer-lhe, como bons filhos…A senhora também casou, também se uniu ao homem que amava, tendo para isso que separar-se dos seus pais…

Era já o outro que assim falava, tentando aproveitar em seu benefício o rumo que a conversa tomara. Mas Noémia, muito preocupada com a sorte do marido, dialogava mais para passar o tempo que para averiguar as intenções ocultas saídas da boca do seu interlocutor. Que interesse poderia ter um polícia, bem instalado na vida, com um ganho certo na cidade, numa virtuosa moça aldeã?

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Entretanto já fora minuciosamente examinado; viera ali através da casa do povo, mas até parece que pagara a consulta. O Dr. Gomes não quis arriscar um diagnóstico; mas Isaura viu-lhe no rosto algo que a assustou, e quis saber!

- É grave, senhor? Diga-me, por amor de Deus! Já chegou a alguma conclusão? Sempre temos de saber!...

O médico fixou demoradamente aquela jovem, cuja angústia começava a perturbá-lo. Diplomara-se recentemente, e com distinção, graças à sua aplicação constante. Como ainda exercia aquele ofício no princípio da sua carreira, já coroada de êxitos, via em cada doente que lhe passava pelas mãos, mais um necessitado que um cliente. Formara-se à sua custa, trabalhando, muitas das vezes, para conseguir os seus objectivos pretendidos, sem sobrecarregar os pais em demasia. Sabia dar o valor e tinha muito respeito pela pobreza e miséria humanas. Respondeu a Isaura com uma pergunta:

- Diga-me uma coisa, menina: Há quanto tempo o seu pai se anda a queixar destas dores? Para minha orientação, preciso sabê-lo!

- Bem, Sr. Doutor: assim exactamente o dia, não sei! Contudo já há uns meses acrescentados que ele não é o mesmo! Infelizmente as aldeias têm pouca assistência médica, e ele sempre teve um medo terrível de vir à cidade, arranjando todas as desculpas e mais uma: que o dinheiro era pouco, que se haveria de ir tratando com as mezinhas caseiras, e que o seu maior receio era ficar para aqui internado num hospital, abandonado, entre estranhos, sem o conforto da família.

- E é precisamente isso que lhe vai suceder. Caprichos do quotidiano! É absolutamente indispensável interná-lo, e o seu tratamento não vai ser nada breve! Que Deus lhes perdoe, pois já cá deveriam ter vindo há muito mais tempo! Grandes razões tem o pobre homem para se queixar, coitado! Falo mais por desconfianças, fruto da profissão: Preciso de mais exames, e bastante rigorosos!

O coração da jovem começou a bater-lhe desalmadamente no peito, e ela, a muito custo, tentava reter as lágrimas. Nunca lhe tinham dado ouvidos, lá em casa, e agora… iam todos sofrer as consequências inevitáveis do seu ignorante desmazelo! Que teria o pai? E quem conseguiria convencê-lo a ficar ali? Ela sentia-se exausta, vencida, desesperada, incapaz de encarar uma realidade que, repentinamente, sobre ela desabara, implacavelmente! Com um resto de forças, balbuciou:

- Por amor de Deus, senhor! Pelo que julgo entender das suas palavras, o caso é muito grave! Tem cura?

- Bem: certamente que a menina pretende uma resposta franca: pois vou dar-lha, dentro aquilo que por enquanto me é possível, à primeira vista: julgo que infelizmente um caso muito grave! Mas, como acabo de lhe dizer, só o rigor dos exames nos poderão tirar dúvidas, dar certezas, para depôs agirmos com firmeza e decisão. De imediato as análises e radiografias que ele vai fazer trarão a luz para estas trevas. Uma coisa lhe asseguro: tudo o que for humanamente possível se fará, sem olhar a despesas; está em jogo uma vida humana, que a todos deverá merecer o maior

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respeito. Antes de médico, sou homem, e jurei dedicar-me incondicionalmente a prolongar a vida a todos. Em consciência, julgo que ainda não sou perjuro. Talvez a coisa não seja assim tão complicada! Vamos ter fé em Deus, a quem toda a ciência médica se submete, por muito adiantada que esteja.

Agora temos de agir, e nada de cair em desespero! É necessário prevenir a sua mãe…quanto ao doente, vou encarregar-me pessoalmente dele, a não ser que prefiram outro médico, talvez com mais experiência… eu sou novo ainda nestas andanças. Julgo estar à altura dos acontecimentos. Mas é convosco. Caso seja forçoso operá-lo, após conhecidos os resultados que pretendo obter, sou cirurgião, estou apto para tal…

Uma enorme tristeza envolvia Isaura, dos pés à cabeça. Como filha extremosa que era, as cordas sensíveis do seu ser vibravam intensamente. Afinal não passava duma frágil rapariga, impotente para dominar dúvidas terríveis que a angustiavam. Pretendendo ver naquele médico um ser humano, um amigo a quem se pede auxílio, implorou, hesitante:

- Pois se assim tem de ser… que remédio, senão aceitar a situação! Ficaríamos extremamente gratas ao Sr. Doutor, se quisesse ter a gentileza de nos abrir os olhos, aqui! Acho que me entende: somos completamente ignorantes no que temos a fazer. Haverá certamente este ou aquele pormenor…

- Fique descansada, que vou imediatamente tomar essas providências.

Tocou uma campainha, a cujo chamado atendeu, toda sorridente e pressurosa, uma empregada, que pareceu a Isaura muito afectada, pouco natural:

- Às suas ordens, senhor doutor; tenha a bondade de dizer…

- Olhe, Leonor: o pai desta moça precisa de ficar hospitalizado. Acabo de o consultar, e cheguei a essa conclusão. Sabe, portanto, o que pretendo de si, não é verdade?

- Perfeitamente, senhor doutor. Deixe o resto por minha conta!

E acenou friamente a Isaura que a seguisse, sentando-se comodamente a uma secretária, enquanto o médico dava ordens para levarem aquele doente para uma enfermaria, e foi dar conhecimento à esposa que, muito desnorteada, acabou por se render à evidência dos factos:

- Oh, senhor doutor! Somos tão pobres! Não podemos estar aqui permanentemente! Nem sei como vai ser! Que Deus nos acuda! Aconteceu o que eu mais receava!

- Fique tranquila, que tudo se há-de resolver! Agora o mais importante é tratar do seu marido, e quanto antes! Quanto ao resto, logo se verá.

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Leonor e Isaura contemplaram-se, em silêncio, como tentando estudar-se mutuamente. Por fim a empregada do hospital, com certo ar desdenhoso, principiou com as suas interrogações:

- Como se chama o doente?

Isaura notou aquela atitude de certo modo agreste, e sentiu náuseas; respondeu, simplesmente:

- Lourenço Botelho da Costa; cinquenta e oito anos, se necessário.

- Realmente. Se é casado, o nome da esposa…

- Pois claro que é casado, com Noémia Soares da Costa; profissão, doméstica…

- Se têm filhos, quantos…

- Três: Alexandre, Filipe e Isaura Soares da Costa, solteiros.

- Profissão dos descendentes.

- Estudantes e doméstica.

- De que se queixa o doente, pode explicar?

- Dor de cabeça, e algo mais… – Grande motivo ser hospitalizado, e vir de tão longe…

Aquelas palavras fizeram ferver Isaura, que explodiu imediatamente:

- Isso também faz parte do interrogatório, ou duma curiosidade e intromissão atrevidas? Que eu saiba, o médico não a incumbiu de dar opiniões, mas tomar apontamentos. Ora cumpra o seu dever, simplesmente, que ninguém lhe exige mais nada! Nem todos os pobres são fáceis de manejar! Eu poderei não ter muita instrução, mas sei distinguir a gente educada…

Não esperando tal réplica de alguém que Leonor julgava uma pobre de Cristo, irritou-se bruscamente:

- Oiça lá, oh, moça: ponha-se no seu lugar, e meça as distâncias, vendo com quem fala. De contrário, rua!...

- A falta de educação partiu da sua pessoa, intrometendo-se em assuntos alheios ao seu raio de acção. Em que se julga mais do que eu? Não será no seu trato social, certamente…

Leonor ficou petrificada, ante a chegada do médico, que a contemplava, com o semblante tremendamente carregado. Foi-se-lhe embora toda a energia, transformada em cobarde submissão. Só tinha uma vontade: desaparecer, não ser vexada pelo médico, diante daquela velhaca, totalmente impávida…

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CAPÍTULO III

SOLIDARIEDADE

Com efeito, Isaura não se perturbou absolutamente com a chegada do doutor Gomes. A razão que lhe assistia, tornava-a dona do terreno alheio, e o seu olhar fulminava aquela petulante que jazia à sua frente, cabisbaixa, cobarde, inerte…

O clínico não pôde conter-se, e, decepcionado com a funcionária daquele estabelecimento hospitalar, vociferou:

- Oiça uma coisa, Leonor: a que vem este despropósito de se imiscuir em assuntos que não lhe dizem respeito? Suponho que a gerência não lhe paga horas extra para dar opiniões deste género! Nunca mais se atreva a insinuar seja o que for, e muito menos a tratar com modos bruscos os clientes desta instituição, pois sem eles não se justificaria a sua presença aqui. Isto já não falando na sua falta de humanismo. E quer saber mais? Nós aqui dentro não passamos de empregados, cada qual a desempenhar as funções que lhe competem; não julgo que me sirvo da minha situação para tentar dar-lhe lições de moral, que de pouco aproveitariam. Quero simplesmente exigir-lhe que respeite cada ser humano que aqui apareça, e convença-se de que esse seu desdém, essa superioridade que tentou manifestar, acabou por humilhá-la; foi o justo prémio do seu autoritarismo balofo. A sua mais que merecida recompensa; esta lição que uma jovem aldeã acaba de dar-lhe. Saiba que ela tem o meu inteiro apoio, porque não veio aqui mendigar coisa alguma, como muitas que andam sempre em busca de padrinhos, para alcançar o primeiro emprego. Percebido?!...

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Evidentemente que Leonor não respondeu. De há muito que irrompera numa convulsão de soluços, e as lágrimas caíam-lhe em caudal.

Isaura aguardava pacientemente que houvesse tempo de terminar o interrogatório, imperturbável e serena. Claro que ia tirando as suas conclusões: Aquele homem era enérgico, esclarecido, justo, formidável! De muitos assim é que a Humanidade precisava, para se remodelar totalmente…

E Gomes terminou a sua advertência, recomendando-lhe:

- Tenho dito. Espero, de futuro, não haver motivo a outros conflitos, que lhe poderão ser fatais, inclusivamente na sua manutenção laboral. E agora conclua o que estava a fazer.

Com a voz entrecortada pelas lágrimas, Leonor respondeu:

- Sim, senhor doutor! Estávamos mesmo a acabar…

O médico retirou-se, e entre ambas trocaram-se olhares de rancor, por parte da funcionária, e desprezo da cliente. O curto silêncio que se seguiu era bem elucidativo da aversão recíproca, e da guerra declarada, a partir de então.

Leonor, fazendo das tripas coração, para não se comprometer ainda mais, simulou delicadeza:

- Enfermaria, quarto particular, ou semi-privado?...

- Quais as vantagens dum quarto particular? É muito dispendioso?

- Entrega vinte contos, de entrada, pode ficar um familiar com o doente, em regime permanente, e tem visitas muito mais tempo, durante o dia…

Isaura pensou um instante: não, infelizmente não podiam! Sabia lá a demora do pai, naquele hospital! De momento, não haveria outra hipótese:

- Enfermaria. Poderá, caso queiramos, o doente ser transferido para um quarto particular?

- Logo que queiram, e haja disponibilidade, já se vê…

- Pois então, até segunda ordem, fica assente: enfermaria.

- Muito bem. Não é preciso mais nada. Às suas ordens!...

Isaura respondeu, secamente:

- Muito bom dia. Estimei conhecê-la. Com licença…

E retirou-se, porque tinha mais que fazer. Já perdera muito tempo com aquela presunçosa, que não merecia qualquer aborrecimento. Alguém lhe dera a lição, na hora própria…

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Leonor, por sua vez, que ainda não conseguira expelir a peçonha que a sufocava, quando se achou sozinha, explodiu:

- Vai-te, maldita! Oxalá que o teu pai morresse ainda hoje! Não; isso seria bom demais para a minha vingança! É bom que ele aqui fique, e tempo sem fim, para que tu mas pagues, com língua de palmo! Oh, se pagas, grande cabra! Não passas duma insignificante camponesa, com muito paleio, mas sem instrução alguma! Não tens aonde cair morta! Coisa nojenta! Querias certamente um quarto particular para o velho?! Era o que faltava! Com certeza está habituado a dormir em estrebarias! Isso era muito luxo para quem nada sabe além de cavar terra! Um quarto particular! Eu vou-te arranjar um, qualquer dia, mas no cemitério, pobre enfezado!

Estava assim a resmungar, quando Sónia, a colega que a vinha substituir, apareceu, e ficou surpreendida:

- Que cara é essa, Leonor? Viste algum fantasma? Queres devorar tudo à tua volta?

- Vai para o diabo, Sónia! Não me chateies! E sabes que mais? Já devias ter chegado. Tenho mais que fazer!

- Olhem como ela está! Mas que bicho te mordeu, afinal? Ainda não consultaste o relógio, pois não? Eu entro às oito. Faltam ainda vinte minutos. Ora vê…

- Está bem. Pois vai lá fazer horas para outro lado, que eu hoje não estou para conversa fiada!

E enxugou os olhos, que vomitavam fogo. A outra notou que algo bastante desagradável se passara, e quis saber:

- Vamos lá: não te zangues com quem nada tem a ver com os teus males, e desembucha! Aguçaste-me a curiosidade e, se desabafares, far-te-á bem. Até talvez eu te possa ser útil. As amigas são para as ocasiões. Fala….

A outra explodiu, num rompante:

- Foi aquele parvo do Doutor Gomes, que se quis armar em moralista, e deu-me uma grande sarabanda, em frente duma lambisgóia que aqui veio, e me insultou!

E desenrolou aquele manto de misérias sobre tudo o que se passara, sempre prometendo vingança. Aquilo não ficaria assim, não!

Sónia, que lhe conhecia o fraco pelo médico, não pôde conter o riso, exclamando:

- Oh, Leonor! Por amor de Deus! Não haverá por aí uma grande dose de ciúme a enegrecer-te o espírito? Andas sempre toda desfeita em sorrisos e amabilidades com o Sr. Doutor! Não esperavas essa! Que grande espiga! Dali não levas nada, minha pomba… com fel! Ele é muito arisco!

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- Se era para isso que querias meter-te na minha vida, para gozares o pratinho, melhor fora que me deixasses em paz! Ciúmes daquele “novato” inexperiente? Não tinha mais que ver! Se calhar comprou a peso de ouro o seu diploma! Desprezo-o, sabes? Se lhe sorria, era só profissionalmente; mas ele vai saber quem sou eu, daqui em diante! Não se humilha assim uma colega de serviço diante de estranhos!

- Hoje é escusado chamar-te à razão! Estás fora de ti, não atinas a nada! Um soninho tranquilo retemperar-te-á. Mas, como último aviso duma boa amiga, acho que deves tomar cuidado contigo, se não queres perder o emprego, Com esse “senhor” não se brinca…

Aquela recomendação não caiu em cesto roto: embora não o desse a entender, Leonor achou que Sónia raciocinava bem. E, como estava na hora, levantou-se, entregou o fardo à colega, e foi recuperar para bem longe desta, forças e bom senso!

Deixemo-la em paz cozer a sua veneta, e voltemos de imediato a outros personagens:

Lourenço fá fora instalado numa enfermaria, entre muitos outros doentes, cujo coro de gemidos emprestava ao ambiente um panorama de carpideiras, lamentando desgraças alheias…

De há muito que ambulância se fora, a caminho da esquadra.

Rui e Sebastião, que haviam terminado o serviço, voltaram ao hospital, agora por conta própria, na esperança de poderem ser úteis ao seu semelhante…

Voltaram a encontrar-se com Noémia, que, ao vê-los, e já sabedora da sorte do marido, se sentiu um pouco mais animada:

- Ai, senhores! Estamos metidas numa boa alhada! Nunca faltam problemas a quem é pobre! O meu Lourenço consentiu em ficar naquela barulhenta enfermaria, graças à intervenção do Sr. Doutor, que me parece um santo homem. Que era por dois ou três dias, para se tratar convenientemente; e lá o convenceu! Sabe-se lá os dias que serão! Estamos aqui entre a espada e a parede! Se o deixamos para aqui, sozinho, ele è capaz de amarrar à cabeça que nos quisemos libertar dum peso! Temos lá a nossa vidinha, os animais, que não se podem abandonar por muitos dias! Ainda se ele ficasse aqui por muito tempo….

Sebastião interveio, tentando suavizar um pouco, dentro do possível, aquela situação angustiosa de incerteza:

- É uma questão de esperarmos calmamente pela decisão do médico. Quanto ao resto, não ficará por resolver! Naquilo que pudermos, contem connosco, não como funcionários da polícia, mas apenas como pessoas amigas. A nossa profissão nada tem a ver com as atitudes que, particularmente, possamos e queiramos tomar.

Noémia, feliz na sua agonia, exclamou, cheia de gratidão:

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- Que Deus vos pague, pois que mal nos conhecemos! Ai, o meu querido Lourenço! O que se passará com ele?! Que doença será aquela, que já o afligia há tanto tempo!? E os meus filhos? Nada sabem do que se passa connosco!...

Sebastião apressou-se a tranquilizar aquela indecisa e aflitiva criatura:

- Pois avisá-los-emos, quanto antes; nisso não haverá o menor problema, pode estar bem sossegadinha!

A chegada do médico e logo atrás Isaura, com um rosto entre ansioso e conformado, interrompeu a conversa. Todos os olharam, na maior expectativa.

Noémia queria saber tudo duma vez, precipitadamente:

- Então, Sr. Doutor: que tem o meu rico homem? Vai ficar aqui internado durante muito tempo?!...

Gomes teria que dar alguma resposta; mas qual, se nem ele próprio sabia? Encarou a pobre senhora, com brandura, hesitante, no seu papel, entre o homem e o médico. O melhor seria aliar os dois:

- Olhe, minha senhora: o mais importante, agora, é a saúde do doente! Sinceramente, só lhe poderei dar uma opinião, que nunca certeza, que estas quase não existem, na medicina, quando tiver o resultado das análises e radiografias que ele já fez. É possível que haja alguma demora! Os primeiros socorros furam-lhe ministrados, no combate àquelas fortes dores de cabeça. Quanto ao resto, confiemos em Deus que não seja nada de muito grave. Pedi a máxima urgência ao analista e radiologista. Espero ter uma resposta que me oriente ainda ao longo deste dia. E agora, se me permitem, gostaria de trocar umas impressões com esta menina, no meu gabinete, uma vez que assistiu, tão nervosa, à consulta do pai.

Noémia sobressaltou-se, pensando que lhe ocultavam algo muito grave sobre Lourenço. Ele certamente estaria muito mal! Nunca fora piegas, trabalhara sempre de sol a sol, e agora pagava com o corpo o tributo ao descanso que jamais conhecera! Vergada pela angústia, balbuciou:

- Vai, minha filha! O Sr. Doutor não me acha com forças suficientes para receber o golpe final! Preparemo-nos para a desgraça!...

- Que ideia, minha senhora! Posso assegurar-lhe, por minha honra, que, neste momento, o seu marido não corre perigo algum. Não seja pessimista, e tenha fé em Deus. Nesta casa tudo se fará a bem da Humanidade, pois é para isso que ela existe!

Isaura, com certo alvoroço e receio, meditando nas palavras da mãe, seguiu o médico. Se fossem verdadeiras as suspeitas daquela esposa angustiada, a filha, mais nova, com mais força de espírito, era efectivamente a pessoa indicada para receber o choque…

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Entraram. O gabinete era espaçoso, com uma varanda que dava para um balcão, cuja vidraça permanecia quase sempre aberta, como sinal de saúde. Nas paredes não havia grande ornamentação, distinguindo-se, por cima da cabeça do médico, bem no alto, um grande crucifixo, e logo abaixo, à mesma distância, um palácio e uma cabana, donde saíam e entravam constantemente milionários e pedintes. Um pouco mais abaixo, na direcção do crucifixo, formando um quadrado perfeito, uma espada de dois gumes, bem afiada.

Respeitosamente, Gomes fez o sinal da cruz e, puxando uma cadeira, disse, indicando outra a Isaura:

- Faça o favor de sentar-se.

Esta ficara imóvel, olhando aquele desenho um tanto estranho, mas não fez perguntas. Foi Gomes quem lhe adivinhou a curiosidade, e começou:

- Antes de falarmos no seu pai, tenho outra coisa a dizer-lhe: sou insensível às amizades à primeira vista; contudo o que se passou há bocado consigo e a minha colega de serviço, surpreendeu-me muito agradavelmente. A minha admiração por pessoas corajosas é ilimitada. A menina foi íntegra, formidável! Desde logo conquistou declaradamente o meu respeito.

Isaura olhava-o, entre desconfiada e atónita: a que propósito vinha aquilo, agora? Não seria uma cilada, com certeza! Sem saber porquê, aquele médico inspirava-lhe confiança. Mas continuou em silêncio, ouvindo o seu discurso, enquanto nos corredores do hospital, roçando por vezes a porta daquele gabinete, o vaivém continuava. Não havia razão para receios: ela ali estava em perfeita segurança. Para mais se tranquilizar, refugiou-se cómoda e delicadamente na cadeira, atitude que não passou despercebida ao médico. Este, por seu turno, continuou:

- Ora assim é que é! Esteja à vontade, e desculpe se a importuno com o meu paleio. Reconheço, embora não me corrija, que sou um tagarela. Mas, quem não fala, morre sem confissão!

A moça não se conteve, e esboçou um leve sorriso:

- Também concordo! E esteja tranquilo, pois se acha que mereço ouvi-lo, é para isso que aqui estou! E, se me permite uma sinceridade, afirmo-lhe que não fiquei ressentida com a sua colega, mas que voltarei a não deixar-me espezinhar, sempre que ela ou alguém o tente fazer. Sou assim, nem parecendo filha dum casal tão acanhado! Mas também jamais esteve nas minhas intenções escarnecer seja de quem for! Mas talvez isso até seja um bem, para não sermos todos devorados vivos pelos abutres, sabe?

O médico vibrou, séria e intensamente àquelas palavras. Estas deram-lhe ânimo para continuar:

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- Palavra de honra, menina! Nunca gostei de tecer elogios! Mas também não os regateio, quando são justos, e vêm a propósito! Isso é falar de quem nunca gostou que lhe fizessem o ninho atrás da orelha! Não desfaleça, que chegará longe; essa lhe garanto eu, à fé de quem sou! Não tema quaisquer represálias, aqui, na pessoa do seu pai, devido a esse desentendimento com Leonor. Ela não se atreverá, porque me conhece já o suficiente para saber que, dum momento para o outro, a mando fazer as malas! Não penso duas vezes. Não mando aqui nada; mas, quando entrei, jurei a mim mesmo lutar intransigentemente contra tudo o que achasse errado. Jurei, e hei-de cumpri-lo, mesmo que por causa disso caiam sobre mim todas as inimizades! Para chegar ao que sou, lutei muito. As coisas não me caíram do Céu. Ou talvez até caíssem, porque nunca vacilei, perante as dificuldades, implorando a ajuda de Deus. Hoje reconheço que a tive, e estou-Lhe eternamente grato! Sou filho de gente muito pobre, tive uma infância miserável, com dificuldades de toda a espécie! Deus deu-me esta vontade férrea, e lutarei sempre, enquanto viver, pela promoção mais que justa dos oprimidos. Nunca me envergonharei do meu passado; pelo contrário, ele será o maior estímulo para levar por diante tudo o que idealizei, através de vários anos de luta! Estudar, medicina saiu-me muito caro, mas era a minha vocação, o meu grande sonho! E fiz poucos amigos entre os colegas de curso, devido às minhas ideias não serem maleáveis à maioria. Chamavam-me o estudante-operário, porque ocupava todo o tempo livre a trabalhar, e assim arranjar dinheiro, sem me tornar demasiadamente pesado à família, que pouco poderia ajudar-me. Nunca liguei a vexames, a sorrisos trocistas, e acabaram por deixar-me em paz. Nunca me dei com pândegas exageradas ou noitadas em cafés, a gastar a saúde e o pouco dinheiro que tinha. Não sou insensível à vida que me cerca: bem pelo contrário: gosto, como qualquer ser humano, de fazer amizades, mas escolho-as a dedo. Nisto sou muito exigente, e não me arrependi ainda. Quando me viam aparecer, trocavam olhares escarninhos: - Cá vem o nosso “sonhador”, o futuro salvador da Humanidade! O novo Cristo. Precisamos saber se também é filho dum carpinteiro! Já lhe íamos encomendando as nossas mobílias… Quando ouvi esta insinuação à religião que professo, não me contive, e esmurrei o prevaricador, no rosto, de cujo nariz o sangue saiu a jorros. Chamados à direcção, e ouvidas as nossas razões, fui castigado, mas senti-me orgulhoso, como um soldado, a quem a sua pátria reconhecesse o mérito duma grande vitória. Realmente defendi, como cristão que sou, as minhas ideias. Não obrigo ninguém a segui-las; mas não tolero que as escarneçam! Seria vil cobardia, coisa que não tenho. Já respondi, em parte, a uma pergunta que ainda não me fez, de certo por delicadeza: o significado do que aqui tenho na parede! Ainda não tirou os olhos de lá, e parece mais interessada que, dando corda a esta língua, que nunca se cansa! Mas diga-me, se não é indiscrição minha: é católica? Se não o for, não lhe terei menos amizade por isso. Não lhe peço para ser franca, porque é desnecessário! Já sei que não usa máscaras!...

- Disso pode estar bem certo! Não sei separar a boca do coração! São aliados intocáveis! Sim; realmente também sou católica…

- Esse “Também” quer dizer que já sabe o que aquele crucifixo ali representa: o estímulo à conduta que pretendo levar, o pedido de auxílio para as minhas fraquezas, pois não tenho a presunção de ser santo. Mas para isso trabalharei, enquanto viver! Os

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pedintes e milionários, ali misturados, lembrar-nos-ão que pobres e ricos, todos têm lugar na terra, e até no Céu, se o desejarem e merecerem, consoante o seu procedimento. A espada de dois gumes recorda-me que a minha grande ambição é o perfeito equilíbrio da Humanidade, o respeito integral por todo o ser que nasce. Foi por isso que estudei medicina. Jamais cruzarei os braços, à ideia cómoda e conformista de que, sozinho, não poderei modificar o mundo. Posso ser uma peça da grande máquina humana a tentá-lo. Se fracassar, se me aniquilarem pela violência, partirei convicto de ter feito um pouco de bem, o que estava ao meu alcance, e que a minha missão terminou! Se hoje temos uma nação independente, devemo-lo ao sangue de muitos mártires! Se necessário, não me negarei a ser uma vítima das ideias que me cingem! Um homem nunca foge ao peso da sua responsabilidade, das atitudes que tomou! A espada, a cortar para os dois lados, simboliza a justiça, cega, imparcial, que nunca deve olhar a preconceitos, e muito menos a classes sociais. Um crime deve ser punido com o mesmo castigo, seja ele praticado por um varredor ou príncipe. Para mim são todos iguais. Não há mais histórias!...

Isaura achou que devia tomar parte mais activa naquele diálogo, para que o notável orador descansasse um pouco, e disse:

- Se me permite uma pergunta, pois sempre gostava de saber se o Sr. Doutor concorda com castigos, especialmente se estes forem rigorosos ou violentos. A sua atitude em relação a Leonor, o que me contou dos seus tempos de estudante….

- Ora finalmente! Não gastei em vão o meu latim! Consegui uma interlocutora, com um brilhante raciocínio! Pois evidentemente que sim! Na altura própria, um castigo vem sempre muito a propósito. Violento ou não, depende do delito que se pretende punir. Deus é Pai e Juiz, simultaneamente. Provou-o o Seu Filho, quando expulsou os vendilhões do templo! Foi a chicote! Se fecharmos os olhos aos pequenos delitos, tal brandura prejudicará a todos, primeiramente aos delinquentes que, aumentando progressivamente os seus distúrbios, arruinarão a sociedade em que vivemos. E a culpa será de todos: tê-la-emos, porque não fomos capazes de dizer: -Isto está mal, para não desagradar! Tanto ladrão é o que rouba, como o que consente!...

- Sem dúvida, Sr. Doutor! Francamente, sairei daqui mais que convencida de que as suas ideias são bastante elevadas. Aliás, tem em mim a mais fervorosa das discípulas! Mas ainda não me falou do meu pai! Que tem ele, afinal? Vim pensando maduramente nas graves suspeitas da minha mãe...

- Fique tranquila, que também nisso não vos enganei! Por enquanto, não vou dar opiniões que possam estar erradas, para não criar falsas expectativas, ou forçar alarmismos. Aqui, menina Isaura, trabalha-se sempre pelo seguro, dentro do possível. Contudo, em breve me pronunciarei. Espere: com esta conversa toda, já se passou um bocado. Talvez…

A frase foi interrompida bruscamente por alguém que bateu à porta, com certa pressa. Ele respondeu:

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- Ah, é você, Sónia? De que se trata? Fale, criatura de Deus!

- É o quotidiano, Sr. Doutor! Sempre a mesma coisa! Bem sei que está na sua hora de folga. Mas o reboliço é enorme! Ninguém se entende! Se quisesse dar uma ajuda… desculpe!...

- Oh, moça! Fale duma vez! Deixe-se de pieguices! Se aqui veio, é porque precisam de alguma coisa! Não me irrite! Diga o que é, sem mais rodeios!

- Estão ali dois homens, com as tripas de fora, em cima da mesa de operações! Jogaram à facada! Alguma bebedeira, certamente…

Gomes levantou-se de um salto, saindo, precipitadamente:

- Isaura: depois falaremos do seu pai. Tenha calma! E você, Sónia, conduza esta moça para junto da mãe, que está na entrada, com dois senhores da Polícia.

- Sim, Sr. Doutor! Venha, menina: é por aqui… aquele senhor de idade, que entrou esta madrugara na enfermaria, é seu pai? Já sabem do que se queixa? Deus o melhore, quanto antes!

- É meu pai, sim, ainda não sabemos qual a sua doença. De qualquer modo, muito obrigada pelo seu interesse…

As duas entreolharam-se, num estudo mútuo e rápido. Não havia tempo para mais.

Isaura ficou junto da mãe, e Sónia voltou lentamente às suas ocupações diárias, enervantes, maçadoras! Era muito chato obedecer a um horário, às vezes, trabalhar de noite, segundo a rotação dos turnos! Mas que remédio! Não lhe iriam levar o ordenado a casa, de pé enxuto! Foi a pensar em Isaura, murmurando, com os seus botões, e um certo ar de gozo:

- Foi esta que arranhou a Leonor! Tem ventas para isso; oh, se tem! E, pensando bem, sem fugir à verdade, aquela menina presunçosa e um tanto desumana, muita gente se queixa disso, precisa dumas lições, lá de vez em quando! Só foi pena eu não ter assistido, para pôr um pouco de água na fervura, tentando uma reconciliação, ou então… atear mais a fogueira, conforme me desse na gana! Mas palavra de honra que gostava de ver a cara dela junto do “Sr. Doutor”, quando este lhe desancou os costados. Foi um bom papelinho! E ele, que nunca a olhou com simpatia, apesar dos olhinhos meigos e obedientes que ela lhe põe! Mas dali não leva nada, por mais que se esforce! Tenha lá santa paciência!

A chegada de novos doentes, sempre em bicha, veio chamar Sónia à realidade, à justificação da sua presença naquela cadeira. Lá os foi atendendo, laconicamente, impassível e desinteressada, qual máquina falante, bem afinada…

Na sala operatória, dois cirurgiões e os respectivos médicos assistentes não tinham mãos a medir, tentando, sem grandes esperanças, salvar as vidas àqueles

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brigões, na verdade, muito maltratados. Quanto aos motivos daquela querela, agora não importavam. As autoridades que se ocupassem disso, se ainda houvesse tempo! Um dos feridos, quase em estado comatoso, muito dificilmente escaparia. O outro, um pouco menos atingido, inspirava, apesar de tudo, grandes cuidados. Imediatamente compareceram no local vários dadores de sangue, cuja transfusão se fez, logo que possível. Dados os primeiros socorros, restaria aguardar que o tempo desse a resposta aos pretensos homicidas. Mais uma vez o álcool tomara parte na questão!

Isaura e a mãe estavam horrorizadas! Na sua aldeia, aonde todos se conheciam, não havia, pelo menos até agora, tanta selvajaria! Oxalá se fossem embora o mais depressa possível! Aquele ambiente continuava a não as seduzir!

Um dos guardas, quase indiferente ao espectáculo que todos presenciavam, apercebera-se daquele embaraço, e explicou:

- Ficaram muito impressionadas, não? Vê-se pela expressão do vosso rosto! Isso a nós já quase que não mexe com uma veia! Estamos bem calejados! Isto é de pouco a pouco! Quando nos excedemos na manutenção da ordem pública, e muitas vezes até em legítima defesa, chamam-nos desumanos, saltam-nos em cima! Não compreendem que somos também homens, com virtudes e defeitos, sujeitos a errar! Assim é melhor: eles matam-se, antes que consigamos chegar a tempo de os socorrer! Bebam menos! Se acabassem duma vez por todas com as tabernas, ou lhe reduzissem drasticamente os horários, evitar-se-iam muitas desgraças como esta! Eu desconfio que eles escapem, apesar dos cuidados com que os estão a tratar! Chorar depois do mal feito, não adianta! Um deles, pelo menos, só por um grande milagre!

As duas mulheres estavam caladas, absortas em meditação: afinal há sempre quem esteja pior que nós! Embora não sabendo ainda o que afligia Lourenço, não morrera a esperança de o salvar. Piores estavam aquelas duas criaturas, tão perto da morte, a inspirar a mais profunda compaixão. No seu íntimo, elevaram uma sincera e ardente prece a Deus em favor daqueles imprudentes infelizes! Já deveriam estar bem arrependidos, com certeza!...

A manhã foi-se passando, sem que algo de concreto se esclarecesse sobre Lourenço. A mulher e a filha, sentindo fome, com certo acanhamento, foram aos seus alforges,

e prepararam-se para meter alguma coisa na boca, quando um dos homens as interrompeu:

- Venham comigo. Levo-as a minha casa, aonde almoçarão muito mais à vontade, fora dos olhares curiosos de quem entra e sai…

Elas olharam-se, tímidas, hesitantes: talvez fosse melhor…

- Ah, não tenham receio! A minha Luzia não é de cerimónias. Moro aqui muito perto. Pensando nisso, já a preveni, que talvez hoje pudesse ter visitas….

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Isaura, disposta a aceitar, ainda tentou transigir:

- É muita bondade a sua! Não se incomode por nossa causa! Se afinal somos quase estranhos… pouco ou nada nos conhecemos…

- Ora deixe-se disso! Ou tem receio de acompanhar um polícia? Descanse, que não vai presa! Se formos ajudar só os conhecidos, então seria bem melhor não termos nascido! Quem me diz que amanhã não precisarei da vossa ajuda? Daqui a pouco estarão de volta! Talvez até para sabem já o que se passa com o Sr. Lourenço. Vamos lá, minhas senhoras: não percamos tempo precioso…

Ante aquela sincera generosidade, recusar a oferta seria uma ingratidão! E, lá no fundo, necessidade faz lei! Não conhecendo ali mais ninguém, uma dádiva assim parecia cair do céu! Se afinal dizem que os homens são irmãos…

As duas seguiram, quase sem falar, o polícia que, decidido, caminhava na frente, a passos largos.

Rui despediu-se, porque também sentia a barriga a dar horas. E, com um certo alvoroço no coração, bem lhe custava fugir àquele fascínio. Apelando à sua astúcia, foi desde logo jogando os seus trunfos, à despedida:

- Bem, minhas senhoras: estimo que gozem muito na companhia do meu amigo Sebastião. Ele tem uma casa espaçosa! Fiquem lá à vontade, que eu também vou às sopas. Depois passarei pelo hospital, a saber do Sr. Lourenço; talvez já tenham quaisquer informações…

- Muito agradecidas, senhor, pelo seu cuidado. Mas não se prejudique, no seu serviço…

– Não se preocupe, menina! Por acaso hoje estamos de folga, porque trabalhámos de noite…

E despediu-se, satisfeito, com a desculpa que arranjara.

Pouco depois as duas mulheres entravam em casa de Sebastião, muito acanhadas, e este falou:

- Pronto, Luzia; sempre te trouxe as hóspedes previamente anunciadas! Estavam difíceis de convencer, safa! Certamente receavam ir para o calabouço! A companhia dum polícia nunca foi das mais simpáticas…

A boa mulher sorriu; e todo o seu semblante demonstrava a mais hospitaleira sinceridade:

- Não é para, menos, com essa tua agressividade e tagarelice!

E, voltando-se afavelmente para as recém-chegadas, convidou-as a entrar, toda expansiva:

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- Sejam bem-vindas a esta casa que, desde já, podem considerar como vossa! Não façam cerimónia! Têm aqui à espera, e oxalá nos agrade, uma sopa de feijão e hortaliça, bem quentinha, muito ao gosto das gentes simples das nossas aldeias, às quais eu me orgulho de pertencer! E, caso necessitem de dormir, a casa também é grande, e não faltam para aí camas! Só lamento não poder curar já o Sr. Lourenço…

Ao ouvir pronunciar o nome do marido, Noémia percebeu de imediato que Sebastião pusera já Luzia a par do que se passara. Tão comovida estava com aquele apoio humano, que nem sabia agradecer, puxando o lenço vezes sem conta.

Foi mais fácil à filha expressar a sua gratidão, que afinal inundava a alma de ambas:

- Pois, minha senhora: por palavras não será nada fácil demonstrar-vos como estamos reconhecidas! Só pedimos a Deus surja, tarde ou cedo, a oportunidade de lhes podermos ser úteis, embora em algo insignificante que seja! Acreditem que essa seria a melhor compensação da nossa vida! Em ocasiões difíceis como esta, nem sempre aparecem almas generosas….

- Então aproveitem-nas, que nos sentimos muito felizes em poder ajudar um pouco o próximo! O meu marido, com este vozeirão e a sua farda de polícia, é realmente enérgico, mas uma excelente alma!

Sebastião deu uma gargalhada, olhando cinicamente para Luzia, que estava mesmo contente:

- Isso agora! Não venhas cá com graxas, que não mamas nada! Ainda há pouco eu não passava dum tagarela incorrigível! Não sei quem o será mais! Ficaste radiante quando eu te arranjei com quem conversar! Mas agora vamos às sopas, para que estas nossas convidadas recuperem as forças, e não fiquem desapontadas com tanto paleio e poucas acções!

Sem dúvida que se respirava felicidade e concórdia naquele lar! O casal, com um tacto fora do comum, conseguira pôr bastante à vontade as duas mulheres, e proporcionava-lhes agora uma refeição do melhor que ambas poderiam desejar. Aquela sopa bem quentinha e retemperadora de tantas energias perdidas nas últimas horas caía-lhes que nem manjar de príncipe!

Conquanto a demora não fosse muita, porque a ânsia de chegar ao hospital era tanta como a gratidão que envolvia Noémia e Isaura, à saída destas, Luzia recordou:

- Então já sabem: apesar de se desejar que o Sr. Lourenço fique bom o mais depressa possível, têm a casa às ordens, caso não se despachem!

- Que Deus lhe pague tanta maçada, D. Luzia! Nós não podemos…

Foram apenas as palavras daquela esposa, tristonha e reconfortada

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Chegaram ao local pretendido exactamente na hora das visitas: as pessoas apertavam-se pelos corredores, cada qual a falar para seu lado, e tentando ser o primeiro a chegar perto do seu doente! Que algazarra, santo Deus! Pobre de quem tivesse dores de cabeça!

No seu entusiasmo de ver os enfermos e lhes levar algum conforto no leito de dor em que jaziam, os familiares de cada um esqueciam-se que tanto barulho bem poderia prejudicá-los!

Rui já os aguardava e, todos juntos, subiram à enfermaria aonde se encontrava Lourenço. Acharam-no de certo modo taciturno; mas logo se animou, ao avistá-los. De há muito que não repousava tão sossegadamente…Bem lhe custava permanecer ali; mas, se era para recuperar a saúde… o pior é que ainda nem sabia o que tinha! Falou, falou mais do que nunca, animado com a presença de gente amiga à sua volta! Apesar de enorme, aquele quarto não conseguia conter mais gente! O pior é que a hora estava quase a terminar! Fora tão pouco tempo!...

Uma sineta, com um som metálico muito chocho, convidava já as visitas a sair.

Para que a despedida não fosse tão triste, Rui confortou o doente, com estas palavras de esperança:

- Não se aflija, Sr. Lourenço! Encare esta fase da sua vida como necessária, e verá que qualquer dia está em casa! Amanhã aqui viremos de novo, está bem?...

Os olhos do velho, estragado pela dureza da vida, do trabalho árduo a que nunca fugira, encheram-se de lágrimas, tão sinceras como as duma criança, aquilo que ele no momento era: - Eu sempre disse, e não me enganei! Deixam-me para aqui, sozinho, como traste velho, e vão-se embora! E os meus filhos? Porque não os avisaram ainda? Estão à espera que eu morra? Oh, meu Deus!

Noémia fugiu, sem forças para encarar a situação, também lavada em lágrimas. Aquilo era muito superior às suas forças!

Isaura ficou hesitante, entre dois fogos: a quem acudiria? Ao pai ou à mãe? E a ela própria, quem ajudaria a enfrentar aquele terrível embaraço?...

Todavia o relógio não pára, e dentro em pouco todas as pessoas estranhas, já haviam abandonado a enfermaria, à qual, pouco a pouco, voltou o sossego, a melancolia, e a expectativa e ansiedade pelo reboliço do dia seguinte…

Quanto aos dois brigões, continuavam vivos, sob vigilância médica rigorosa; mas as esperanças de sobrevivência eram quase nulas!

Também os familiares destes já haviam aparecido, e não faziam outra coisa senão amaldiçoar o álcool, as tabernas, e os canalhas que negociavam com os vícios e desgraças de cada um! Por essas e outras o país não progredia: seria sempre um miserável, inferior aos outros!...

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CAPÍTULO IV

O ESPINHO DA VERDADE

A vida nunca será um mar de rosas para ninguém, porque o ser humano, por mais que busque a perfeição, não baniu de si os hábitos avaros de adquirir mais e mais! É contudo esta insatisfação que o faz progredir, que já o levou à Lua, e não se cansa de novas aventuras. A ilusão tem sido sempre a mola impulsionadora dos sucessos, conquanto muitos se percam na barreira dos fracassos. É errando que se aprende, e aquele que não tiver forças nem coragem de lutar, será um vencido, antecipadamente…

Não haja quem considere a ilusão inimiga da realidade: bem pelo contrário, elas completam-se, embora se combatam, aparentemente! É o sonho quem nos conduz aos mais arrojados voos, ao tentarmos pô-lo em prática, ao serviço da Humanidade! Para que isto ou aquilo prevaleça, há sempre mártires; vítimas a lamentar, ou a agradecer os benefícios que os vindouros colherão!...

Mas, como na velha parábola do trigo e do joio, este cresce, lançado por um inimigo invisível, junto daquele, para dificultar eternamente a vida ao bom do ceifeiro! Sabemos que não há melhor bem que a saúde; mas só lhe damos o real valor se adoecemos! A esperança e o desespero, desde sempre, travam luta de morte; ao longo da vida, que procuramos prolongar indefinidamente, mesmo com a certeza de que ela um dia acabará…

Grande parte da Humanidade afirma acreditar em Deus, desejando partilhar com Ele as glórias do Paraíso; mas está agarrada à vida com tanto empenho, que considera a morte o pior dos inimigos, exactamente por não poder aniquilá-la…

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E, sendo assim, para quê tantas guerras, tanta autodestruição, se um simples terramoto, um ronco mais violento da Natureza, arrasa, em poucos segundos, cidades inteiras?! Só nessas alturas pensamos na nossa insignificância, reduzidos à miséria, e então procuramos dar as mãos, numa solidariedade forçada! Não seríamos muito mais inteligentes, se enveredássemos por sendas de ajuda mútua, em vez de usar agressividades? Sim; sabemos que todos colheríamos disso os melhores benefícios; todavia prosseguimos estupidamente nas hecatombes, insaciáveis de sangue, de vingança morte!

Se agora construímos um hospital, um bairro de casas para pobres, ou mesmo um sumptuoso para multimilionários, em breve fabricamos bombas, sucessivamente mais potentes, para destruir num ápice o que tanto suor, tempo e esforço custou…

É por essas e outras aberrações da Humanidade que os seus benfeitores não conseguem superar os problemas criados por outros tantos, os que se matam por ninharias!

E agora ali num leito, agonizantes, debatendo-se, através de socorros alheios, dois brigões buscam a todo o custo subsistir…

Mais adiante, embora no mesmo quarto, um outro ser humano, rebentado do trabalho de longos anos, aguarda que lhe digam se ainda viverá por muito mais tempo, ou poucos dias lhe restam. Os sabichões que ali trabalham, têm obrigação de o saber! Lidam com tanta maquineta…

E muitos outros, vítimas das suas moléstias, enchem por completo aquele casarão imenso, antecâmara da morte, e simultaneamente recuperação da vida! Digamos que um hospital é um purgatório antecipado na terra, embora nem todos os que por lá passem, consigam a salvação; a do corpo, é claro, porque a outra… mão estamos à altura de a discutir.

O estado de um dos que se haviam esfaqueado parecia já não deixar mais dúvidas a ninguém, e muito menos ao corpo clínico: estaria por horas, se tanto. È que, pelo menos humanamente, não é possível fazer milagres…

O outro, embora também muito ferido, dava sinais duma lenta mas progressiva recuperação. Caso escapasse, certamente iria responder em tribunal por homicida!

Agora, contudo, era mais importante salvar vidas, ou pelo menos tentá-lo, não cruzando os braços, conformadamente…

O odor a éter, a toda a espécie de medicamentos, sufocava; médicas e enfermeiras, em azáfama constante, pareciam máquinas racionais, movidas à electricidade: ninguém parava!

Júlio Miranda, um dos contendores de navalha, que já agonizava, há pouco, ante a impotência médica, acabava de dar o último suspiro...

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Com as devidas cautelas, a família foi informada, e o corpo transferido para a câmara funerária.

A partir de agora, naquele local, havia mais uma viúva e cinco órfãos, de tenra idade! Em troca da fome, porrada e demais misérias caseiras, sabe Deus o que viria! Possivelmente a mendicidade, as lágrimas e desprezos constantes!

Descrever as cenas de pranto que se seguiram, seria chamar o leitor à realidade quotidiana, de que ele só se apercebe quando é atingido directamente!

As reacções, na enfermaria, já quase nem se sentiam: é que, de pouco a pouco, alguém saía, de regresso a casa, ou para o cemitério! É tudo uma questão de hábito, mesmo as verdades que nos chocam ou horrorizam!

Lourenço, recém-chegado, e talvez por isso mesmo, sentiu fortemente aquela tragédia: totalmente lúcido, vira entrar, cobertos de sangue, aqueles dois homens, e o que acabavam de levar, saíra exactamente do seu lado! Ali não se curavam apenas doenças: também se tentava salvar assassinos! Deixou um pouco de lado os males que o haviam trazido ali, pensando naquele desconhecido que morrera há instantes! A bondade e grande competência do Dr. Gomes não puderam fazer milagres!...

E Jeremias, o outro brigão? Esse dava mostras de ainda recuperar! Era solteiro, e um pouco mais novo. Se morresse, não deixaria órfãos nem viúva! Todavia os factos não sucedem à medida dos nossos desejos, e a cada passo esbarramos no irremediável!

Enquanto agradavam ansiosamente o resultado dos exames médicos sobre a doença de Lourenço, as duas mulheres juntaram-se à família do defunto, com quem partilharam aquelas dores, tentando, através dum pouco de conforto e calor humanos, transformar o ambiente, o que era bem difícil.

Já para o fim da tarde, quase noite, o doutor Gomes reaparecia, com as novidades há tanto esperadas. Pela sua cara, não deveriam ser as melhores:

- Minhas senhoras: como eu infelizmente previa, o nosso valente camponês terá mesmo de ficar hospitalizado! Não há outra hipótese! Importa, antes de todos os problemas que surjam, procurar salvá-lo. Não desanimem, que tudo faremos, aliás, é o nosso dever, para apressar o seu regresso.

Aquelas palavras não trouxeram nenhum alento à pobre Noémia, cujo rosto ficou logo banhado em pranto e desespero:

- Ai, o meu rico homem! Nunca mais o vejo em casa! Com certeza vai daqui para o cemitério, como aquele desgraçado que esfaquearam!

Em silêncio, os olhos de Isaura procuravam os do médico, marejados de lágrimas: que significavam aqueles papéis que ele tinha na mão?! Uma esperança? A sentença de morte? Ela tremia, convulsivamente, ante aquela expectativa cruel!

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Compreendendo aquela angústia, Gomes só soube dizer o que afinal sentia, embora lamentasse o triste acontecimento:

- Coragem, criaturas de Deus! Nada de perder a esperança! Só fizeram mal em não ter vindo mais cedo! Mas não adianta chorar no molhado! Só com o fogo na seara se chamam os bombeiros! O tratamento vai ser muito demorado; mas é para atender às grandes necessidades dos seres humanos que aqui estamos permanentemente de serviço! Vamos confiar em Deus, para já, fazendo tudo o que for possível. Nada estará perdido, por enquanto! Aliás, até às vezes somos levados a enganos, apesar de todos estes aparelhómetros de que dispomos!...

A jovem, não se contendo mais, implorou, nervosa e trémula:

- Por amor de Deus, Sr. Doutor! Não somos crianças! Queremos a verdade… a verdade completa! É conveniente sabê-la já!...

- Grandes razões tem o pobre homem para não parar com dores! É bem possível que tenha um tumor na cabeça… foi o que acusou a radiografia! Pode bem, no entanto, ser benigno! Por enquanto, não há absolutas certezas! Sejamos optimistas, que è o fundamental, neste momento, para levar a bom termo as nossas pretensões! Não convém que o doente saiba de nada, para não cair em desânimo. Tarde ou cedo, era forçoso comunicar tudo à família, e tenho por princípio anunciar os perigos, para que se fuja deles, se ainda for possível…

As duas mulheres olhavam-se em silêncio: a dor apossara-se delas intensamente, aumentando, à medida que tomavam contacto com a realidade! Estaria certamente por pouco, o pobre Lourenço! Trabalhara toda a vida, sem saber o que era o descanso, para vir agora acabar num leito de hospital, talvez até sem voltar a ver os filhos e abençoá-los! Era urgente contactá-los, trazê-los aqui… fora tudo tão à pressa! Aonde estariam eles, a estas horas!?...

Era tarde; muito tarde para regressar à aldeia! Talvez não houvesse mais remédio, senão aceitar a generosa hospitalidade de Sebastião! Um pouco de repouso, e com a ajuda de amigos, algo se resolveria! Não ficariam ao relento! Para desgraça, já bastara o que lhe dissera aquele médico, de cuja companhia saíam, quase mudas e desfalecidas.

Então ele perguntou:

- Não voltam ainda hoje para casa, pois não? Têm aonde ficar?...

Sebastião, que as esperava, na companhia de Rui,

Antecipou-se, respondendo:

- Que ideia, Sr. Doutor! Claro que não irão! Ficam lá em casa! A patroa, mesmo sem cursos de medicina, lhes tratará da saúde, melhor que o amigo Gomes, pois ambas saem daí com cara de enterro! Vamos a criar ânimo, almas de Deus! O Sr. Lourenço ainda viverá muitos anos!

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Rui quase não tirava os olhos de Isaura, e a tristeza desta transmitiu-se-lhe de tal modo, que caminhava, sem dizer palavra…

O bulício no hospital continuava, com ambulâncias a entrar e sair, de pouco a pouco, e médicos a revezarem-se constantemente, num trabalho árduo, quase sem ocasião para respirar!

Gomes deixou mãe e filha, porque já o chamavam, com aflição; mas ainda disse:

- Até amanhã, minhas senhoras. Estão em muito boa companhia. Falaremos com mais calma. Tenho de ir…

Elas despediram-se, tristemente, com um amargo aceno de cabeça. Caminhavam, caladas; e Sebastião, adivinhando que o caso seria muito grave, travou a sua tagarelice.

Quase a chegarem a casa, Rui não se quis ir embora, sem a pergunta habitual daquelas alturas, posto que sincera:

- Afinal…. Que tem o nosso doente? É coisa de muito cuidado?

Isaura encarou-o com amargura e, num desabafo, como quem se liberta dum pesadelo enorme, respondeu, explosivamente:

- O meu pai tem um tumor na cabeça, Sr. Guarda! Quer coisa ainda mais grave que

esta? Estamos irremediavelmente perdidas!

Os dois homens trocaram um olhar em silêncio, compreendendo o drama que envolvia, em manto de angústia, aquela alma. Nenhum encontrava palavras de conforto, e a chegada à porta de Sebastião foi um alívio, num momento de tensão, para todos:

- Até amanhã, minhas senhoras, e que Deus as ajude! Pode haver engano! Ninguém é infalível. E tu, Sebastião, passa bem; agora não posso entrar. Cumprimentos à Luzia. Amanhã nos encontraremos, na esquadra, se não nos chamarem mais cedo, aos trambolhões. Adeus!

- Adeus, rapaz. Isto não há-de ser nada. Tudo acabará bem! As minhas hóspedes estão muito cansadas e nervosas. O despertar de amanhã, se repousarem o melhor possível, dar-lhes-á um pouco mais de tranquilidade, para resolverem a sua vida!

E entraram, sendo recebidas pela dona da casa, sempre amável e bem-humorada:

- Ora esperem que já saibam que o Sr. Lourenço…

Noémia não se conteve, num caudal de lágrimas:

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- Está muito mal, o meu rico homem! Muito mal, mesmo! O doutor diz que ele tem um tumor na cabeça! Coitado! Sempre com tantas dores, era mesmo para adivinhar-se coisa ruim! E aqueles filhos, que não sabem de nada! Se calhar já nunca mais vêem o pai com vida! Ai, queridos filhos da minha alma!

Luzia era tão fraca de coração como humana; e, vendo o desespero daquela pobre mulher, quis beijá-la, reanimá-la, mas só conseguiu chorar, convidando-as, com um gesto de olhos, a seguirem-na para a cozinha. Se não era capaz de aliviar-lhes as dores morais, ao menos não lhes faltaria com abundância de alimentos, o que já era qualquer coisa…

Sebastião conseguiu chamar a si, aos poucos, o sangue-frio, para pôr um pouco de água na fervura, e começou por dizer, já com todos sentados à mesa:

- Vamos tentar raciocinar, se pudermos, com mais calma. Sabemos que ninguém vai ao médico por desporto. Contudo não nos precipitemos! Há tumores de variadíssimas espécies, muitos deles, inofensivos que, através duma simples operação, nos deixam em paz! Porque havemos de pensar no pior? O doente está muito bem entregue, dessa podem ficar certas!

- Também os dois que jogaram à navalhada estavam, e um deles… já se foi!

- Ora, D. Noémia! Não podemos comparar a situação deles, que se agrediram violentamente, com a do seu marido. Este, graças a Deus, está inteirinho, descansando, tranquilamente, num sossego duma cama fofa, como talvez não tenha em casa….

- Mas mesmo assim, quem mo dera lá novamente, dormindo na sua, dura!

Isaura foi-se acalmando um pouco mais, e balbuciou, tristemente:

- Oh, mãe! Este golpe bem poderá não ser mortal! Ficámos transtornadas, é certo, mas o nosso clamor antecipado até parece ser mau agouro; não o sepultemos vivo! E por amor de Deus: aproveite a generosidade destas boas almas, e coma alguma coisa! Não será matando-nos a nós próprias, lentamente, que lhe daremos saúde! Pelo contrário, mais do que nunca, precisamos recuperar forças para amanhã enfrentarmos a situação, que não será nada fácil. Seria descabido ficar por aqui muito tempo a maçar….

Luzia interrompeu, vivamente:

- Não maça nada! A casa é bem grande e, mesmo sendo nossa, é de Deus, em primeiro lugar. Ele podia perfeitamente destruí-la, dum momento para o outro, se bem Lhe apetecesse! Façamos, portanto, bom uso dela, pondo-a ao serviço dos necessitados. Peço-lhes que não se aflijam, julgando incomodar. Se o meu marido as trouxe, é porque estamos disponíveis. Pudéssemos também ajudá-las no mais importante!

Sebastião concluiu a conversa da melhor maneira, desvanecendo os últimos vestígios da timidez das recém-chegadas:

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- Pois claro. Esta minha mulher tem sempre a mania das generosidades! Saiu-me uma boa santa! Às vezes leva meses a chatear-me o bicho do ouvido, quando me vejo forçado a tomar atitudes resolutas, como agente da segurança pública! Eu não tenho papas na língua, e despacho-a imediatamente: - As leis são para se cumprir! Não tivesses casado com um polícia. Sempre te mostrei o que era. Todavia, à medida que os anos passam, vou ficando também santinho como ela, mesmo com tripas azedas. A profissão de cada indivíduo nada tem a ver com o que ele é, realmente. Nascemos todos Homens: ajudemo-nos, mutuamente, dentro do possível.

O jantar decorreu dentro daquele espírito solidário, durante o qual muito se pensou no que havia a fazer, no dia seguinte. Por fim chegou-se à conclusão que o mais aconselhável seria Isaura ficar na cidade, e a mãe regressar à aldeia, porque a casa não poderia ficar entregue a si própria, durante muito tempo, com animais domésticos para tratar. Ninguém mais indicado para estabelecer a ligação familiar, que uma filha, entre os pais, forçosamente separados sabe-se lá por quanto tempo! Aquela hospitalidade sem dúvida que caíra mesmo do Céu!

Hélio e Susana, os dois filhos do casal, que já frequentavam a escola há alguns anos, ficaram muito satisfeitos com aquelas visitas; porém, um tanto acanhados, quase não haviam tomado parte na conversa, talvez achando-a séria demais, e quiseram deitar-se mais cedo…

Após um dia de tantas canseiras e emoções, a fadiga venceu declaradamente o nervosismo: Noémia e Isaura dormiram como duas justas! O descanso viera mesmo a propósito!...

Logo pela manhã do dia seguinte, sem grandes ruídos, mãe e filha saíram da cama, arrumaram minuciosamente o quarto que as abrigara, cheias de gratidão pelos donos da casa; e foi com certa surpresa que, ao abrirem a porta, já encontraram Luzia e Sebastião de pé, os filhos despachados para a escola, e um carro pronto para viajar. Foi pelo menos com essa ideia que ficaram as hóspedes, ideia essa que de imediato lhes foi confirmada, quando o homem explicou:

- É só um instante. Eu vou já à esquadra, para não contarem comigo de manhã. Tenho tudo mais ou menos em dia, já que esta noite não houve folia nos arredores, que eu saiba. Além disso, ainda estou na minha folga, posso fazer o que muito bem entender; ao longo da manhã há tempo suficiente para irmos à aldeia, e voltar, se necessário, antes da hora das visitas. Pensámos nisto, porque podem ter por lá qualquer coisa inadiável. Mas, se acharem outra solução melhor, disponham…

Mãe e filha entreolharam-se, emocionadas, com tais atitudes, e a última exclamou:

- Seria um abuso, quase uma velhacaria, aceitar tanta generosidade. Não está nenhum boi em valado. Aguardemos a manhã por aqui, e depois logo se verá…

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- Ora vejam agora esta moça! Nada de pieguices! A ideia foi apenas nossa, por isso não se acanhem com esses receios. Eu já volto. Não custa nada prevenir! É aqui muito perto. Até já.

Mal acabara de sair, outra ideia se lhe meteu na cabeça, ao encontrar o Dr. Gomes, que se encaminhava para o hospital. Apressando o passo, conseguiu retê-lo:

- Um momento, doutor. Posso dar-lhe umas palavrinhas? Não demora nada. Sei que é um dos maiores trabalhadores deste país!...

- Pois não, Sebastião! Estou às suas ordens. Não vou preso, agora, penso eu. É que seria muito despropositado, numa altura em que tenho tantos casos de vidas humanas entre mãos! Por mim, não me importava nada. Mas aquelas pobres criaturas…

- Não, não! Deixe de pregar as suas virtudes, e ouça-me, com atenção: trata-se do Lourenço: aquelas duas alminhas de Nosso Senhor estão inconsoláveis! Esse tumor é mesmo… cancro?...

- Infelizmente, tudo indica que sim! Mas ainda não há absolutas certezas; ou antes, agarramo-nos sempre às últimas esperanças de vida, mas desconfio que a realidade seja muito dura! Oxalá me enganasse; mas duvido muito, meu caro! Vou agora ter com o doente, com mais alguns colegas, a ver se aconselham uma possível operação. Até por minutos, o nosso sagrado dever é tentar prolongar vidas!

- Coitadas! Então é quase certo! Que amarga verdade, Deus do Céu! E terá muito tempo ainda para viver? Não calcula?...

- Bom: o caso ainda não está tão declarado, que se considere perdido! Vamos lutar enquanto for possível...

- Oiça agora outra coisa: eu ia agora com elas à sua terra, e viria de novo, antes das visitas; mas, vendo-o, achei que talvez pudesse abrir uma excepção à regra: elas vê-lo-iam agora; combinariam melhor a sua vida, e assim já se ganhariam algumas horas! Ou acha que pode haver algum problema?

- Nenhum, Sr. Guarda! O senhor manda! Eu, pobre e muito obediente cidadão, nada mais posso fazer, que cumprir ordens! Porque espera? Vá buscar as suas protegidas! Não estamos aqui para complicar a vida a ninguém. Eu espero-os no quarto que me destinaram para trabalhar. Conhece-o bem demais, para me deter com explicações!

Muito satisfeito com o êxito da sua lembrança, Sebastião, após ter passado na esquadra, voltou a casa, contou o que se passara com o médico, e levou consigo as duas mulheres, que agora se mostravam mais de acordo com o segundo plano que o bom homem pusera em prática.

Chegando ao hospital, aguardaram que a nossa já bem conhecida Leonor os anunciasse ao médico, com grandes etiquetas; e, todos juntos, foram para a enfermaria.

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Lourenço, sempre na expectativa, aparentava bastante sossego e calma.

Foi o médico que se lhe dirigiu, após conversa prévia com os familiares:

- Então, Sr. Lourenço: como vai essa cabeça? Sente-se melhor hoje, ou a coisa continua na mesma?

O velhote soergueu-se, vagarosamente, no leito, olhou o médico com ansiedade, e respondeu, com uma pergunta:

- Um pouco melhor, Sr. doutor! E afinal, já sabe o que tenho? Vou ficar ainda muito tempo aqui?...

Que resposta viria? O doente aguardava-a, amedrontado e inquieto, como suspenso dum abismo, prestes a cair!

Gomes rodeou as suas palavras de todo o cuidado, tentando desfechar o golpe com a máxima brandura:

- Bom, Sr. Lourenço: realmente a sua doença não é muito fácil de vencer! Vai ter que nos aturar mais algum tempo; mas tudo faremos para que a nossa companhia não lhe seja antipática! O que agora importa é curá-lo, para que volte, restabelecido, a trabalhar nas suas terras, que já o devem estar a estranhar! Foi por isso que trouxemos aqui a sua mulher e filha, antes das visitas, a fim de combinarem qualquer coisa que necessitem! Aliás elas vêm dar-lhe conhecimento dos seus planos…

O enfermo foi acometido dum tremor, que não conseguia balbuciar palavra. Por fim, gaguejou:

- Não!... Eu… eu não quero ficar aqui sozinho! Levem-me para casa, para que eu ao menos morrer em paz! Aqui, não, por amor de Deus! Levem-me!

Isaura aproximou-se do pobre velho, envolveu-lhe ternamente o pescoço, qual anjo celeste, e tentou reanimá-lo:

- Mas quem fala aqui em morrer, ou em abandoná-lo?! Nada disso, paizinho! O senhor ficará melhor, se Deus quiser, e eu estarei sempre ao seu dispor, aqui na cidade, porque a mãe tem de se ir embora, tomar conta da casa! Tudo se resolve, verá!

Aquelas palavras transmitiram-lhe algum conforto: com a filha perto de si, sempre estaria melhor! Mas, com novas preocupações a bailarem-lhe no espírito, perturbou-se; e, com certa desconfiança, quis saber:

- Ficarás aqui?... Aonde?! Temos lá dinheiro para isso! As hospedarias estão caríssimas! Sei lá quanto vamos pagar aqui!

Com grande custo, Noémia aproximou-se do marido e, entre lágrimas, tentou explicar:

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- Não te aflijas, Lourenço! Deus há-de ajudar-nos! A Isaura fica em casa do Sr. Sebastião! É muito boa gente! Têm-nos ajudado bastante, desde ontem, acredita! Nem sei como lhe agradecer! Ele está aqui...

Sebastião chegou-se para junto do leito, para tranquilizar um pouco mais o seu ocupante, dizendo-lhe:

- Não se preocupe com a sua filha! Ela está bem entregue! Em casa dum polícia, ninguém a perturba. É muito arriscado! Não será um prato a mais na mesa que leva a casa abaixo! Nem tudo está mal! Agora, para não perturbar muito esta situação, é indispensável que o Sr. Lourenço siga à risca todas as instruções do médico, está bem?

Pouco a pouco, o homem foi-se conformando com a nova situação que agora teria de enfrentar; não havia outro remédio! Era mais aconselhável seguir os conselhos de quem o tentava salvar, que deixar-se morrer à míngua. Além disso, julgava estar entre amigos…

Concordando plenamente com as ideias da mulher e filha, que eram as mais convenientes, na altura, deixou-se cair na cama, abandonando-se à sua sorte, enquanto as via sair, chorosas, na boa companhia de Sebastião e Gomes.

O bom senso acabou por imperar, graças à intervenção e disponibilidade dum homem, de quem, uma noite antes, Isaura pensara, vencida pelo desespero, muito mal quando se demoravam em acudir ao pai…

É bastante perigoso fazer juízos temerários; e a moça, no íntimo, sentia remorsos, numa vontade louca de pedir-lhe encarecidamente perdão! Mas quem não reagiria assim, num transe daqueles, vendo um pai a debater-se, indefeso, sabe-se lá, ente a vida e a morte?! Homens, ajudemo-nos mutuamente, dentro do possível.

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CAPÍTULO V

REMORSO, PRINCÍPIO DE VIDA

Pelo que ficou dito no capítulo anterior, sabemos que Lourenço Costa se conformou a hospitalizar-se, com a promessa de que a filha o visitará assiduamente: e a tristonha Noémia voltou à aldeia, para gerir a casa. Isaura, sempre muito grata e cooperante, abriga-se sob o tecto de Sebastião, aonde este, mulher e filhos, a acolhem sempre com o mesmo carinho do primeiro dia. Tudo vai decorrendo com a normalidade que, numa emergência, se pode exigir.

Rui é visitante assíduo da casa, porque se dá muito bem com o seu colega de serviço, no campo profissional e humano. Se algo mais existe naquela frequência de visitas, bom… os assuntos mais íntimos de cada um são da sua inteira responsabilidade, e não vamos ser indiscretos. Nada de precipitações, caros amigos leitores!

Mas deixemos por algum tempo estes personagens entregues a si próprios, e detenhamo-nos um pouco mais junto do segundo manipulador de navalhas que, alguns dias volvidos, está francamente recuperado, no aspecto físico. Moralmente… coitado! Jeremias torturava-se constantemente, apelidando-se de assassino; e, quando dormia, não tinha um momento de sossego: os seus sonhos eram sempre com o tribunal, sentado no banco dos réus; e, após um juramento severo, conduzido ao calabouço, aonde tudo estaria consumado! Nunca mais veria a luz do sol! É assim que se punem os assassinos!...

Os gritos daqueles cinco órfãos e viúva martelavam-lhe constantemente no cérebro, quais pancadas dum vigoroso pedreiro! Quem iria agora granjear o pão para aquelas bocas? Era horrível, a tortura do remorso! Poderia emendar-se, remediando parte do seu crime? Como, se não se pode devolver a vida aos mortos? De bom grado inverteria os papéis, se fosse possível, sendo ele a vítima! Esta, porém, jazia já debaixo da terra, servindo de pasto aos impiedosos vermes! E eram tão amigos! Aquela fora a primeira discussão de monta, cujo motivo nem sabia! O álcool, sim! Sempre o maldito álcool a descontrolar o juízo das suas vítimas! O álcool, e aqueles que o vendem, sem punição de quem de direito! Efectivamente, talvez não estivesse tudo perdido para aquele homem! Já tantas vezes pensara no suicídio, como fuga ao que lhe pudesse

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acontecer, após sair do hospital! Cobardia? Heroísmo? As opiniões divergem, sem que possamos dar-nos ao luxo de criticar levianamente cada uma delas! A vida, sendo mãe, para uns, e madrasta, para outros, é a principal responsável pelos indivíduos que vêm ao mundo: ninguém é totalmente bom ou mau: feitos do mesmo barro, temos, impregnados no nosso “todo”, uma mistura de virtudes e defeitos, que crescem em conjunto connosco próprios, que aumentam ou diminuem, consoante o meio ambiente em que vivemos! Inésia, a recente viúva, ansiava ver o marido bem vingado e justiçado; humanamente, convenhamos que toda a razão lhe assistia! Embora bastante maltratada e passando fome negra, com os filhos, preferia o espancamento diário, a que já se habituara, a ficar sozinha, com aquelas crianças expostas, a partir de então, sabe Deus a quê! E não morrera também, o outro malvado, que não faria falta a ninguém! Mas nem no inferno o diabo o queria!

Agora depois de morto, é que Júlio parecia ter todas as virtudes, transferidos os defeitos para Jeremias! Nós faremos coro com o adágio popular: “a ovelha procura a parelha!”. Envolvidos ambos na mesma querela, justo é que a culpa seja equivalente: para Júlio, terminara, na terra, o cativeiro! Quanto a Jeremias, um pouco mais novo, tinha começado a partir de agora….

Quando lhe deram alta, do hospital, aguardou em liberdade condicional o que as autoridades iriam resolver com ele. Desgraçado alcoólico! Além das acusações contínuas da sua consciência, teria de enfrentar toda a espécie de olhares e comentários, por onde quer que passasse:

- Lá vai o faquista! Que grande assassino! E anda à solta, para matar outro, qualquer dia! Não há justiça nesta terra!...

E passavam sempre ao lado, encarando-o furiosamente…

- Isto é demais, meu Deus! Eu nunca quis matar ninguém! E então ao Júlio, o meu melhor amigo! Dou cabo de mim, e pronto! Este tormento é superior às minhas forças! Sou olhado por todos como o mais miserável dos homens! E os que matam, na guerra? São heróis! Porquê? Se nem conhecem o inimigo!? Oh, mundo de enganos e de hipocrisias! Porque nasci eu? Deram-me origem, abandonaram-me, e se calhar queriam que eu fosse um santo? Uma boa trampa para isso tudo! Esmagar os oprimidos é muito simples e cómodo! Parece que todos sentem prazer nisso! Ninguém é capaz de dar a mão a um desgraçado! Eu não posso nem devo continuar assim! E ainda dizem que há inferno! Oh, se o há! Eu estou metido nele, e sem remissão! O sangue do Miranda clama vingança contra mim! Amaldiçoou-me!

Efectivamente o desespero e arrependimento de Jeremias eram tão sinceros como a sua vontade enorme de desaparecer!...

Aquele dia estava escuro, e prometia chuva para muito breve.

Caminhando como um sonâmbulo, Jeremias nada via à sua volta; falando sozinho, não notou que o seguiam:

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- Não sei o que esperam para me engaiolar! Quem há-de morrer, não esteja doente!...

As suas lamúrias foram interrompidas por um indivíduo, que lhe tocou levemente no ombro:

- Oiça lá, homem de Deus: julga que estas coisas se fazem assim, do pé para a mão? Tudo tem de seguir os seus trâmites legais. Que pressa é essa de ir para a sombra? É cansaço?!

- É o senhor, doutor Gomes? Nem o vi, desculpe lá!...

- Que não me viu, sei eu e muito bem. Parece-me um fantasma! Deve agradecer a Deus a grande oportunidade que lhe deu para se recuperar. Esse desespero não o leva a nada! Curámo-lo das feridas corporais. Quanto ao resto…é consigo!

Jeremias olhava, incrédulo, para aquele médico, que agora, antes de tudo, lhe parecia um simples homem, um vulgar cidadão, inexplicavelmente interessado pela sorte dum criminoso. Que pretenderia ele, afinal?

Brincar um pouco com a dor alheia? Se assim era, achar-se-ia o digníssimo Dr. Gomes totalmente enganado! Encarando-o com ar de desafio, inquiriu:

- Oiça lá uma coisa. Sr. Doutor: que ideia é a sua? Não seria melhor deixar-me em paz? Faria bem se me tivesse deixado morrer! Não lhe estou nada grato por me restaurar a saúde. Agora vão matar-me lentamente. Então dessem-me o golpe fatal, na altura própria, e a estas horas estaria consumado!...

A animosidade daquele desgraçado não surpreendeu nem alterou em nada a disposição de Gomes: uma onda enorme de piedade ou compreensão dele se apoderou, e dispôs-se, desde logo, a desarmá-lo, através do estímulo à recuperação:

- Quais são as minhas intenções? Ainda não adivinhou? Afirmar-lhe que a esperança só desaparece no fim da vida; uma vez que está livre de perigo, o seu dever é encarar as dificuldades que virão, com vontade suficiente para vencê-las! Convença-se duma coisa, meu amigo: ninguém é totalmente bom ou mau: nascemos todos iguais, e são os trambolhões da vida que nos elevam ou submergem! O senhor agora precisa de muita coragem e força moral para evitar mais loucuras. Seja um homem de bem, de agora em diante, demonstrando ao mundo que quem um dia caiu, também saberá levantar-se. Começar vida nova…

Aquele homem, que continuava indeciso, encarando o médico, bem gostaria de ver nele uma tábua de salvação! Algo, porém, o impedia de confiar nele, como não o fizera ainda em ninguém. Por isso mesmo lutou consigo próprio, cruzou os braços, simulando um desdém e indiferença que não possuía:

- Sabe uma coisa, Dr. Gomes? Essa história do céu e inferno, Deus e o diabo é uma treta, que não me entra nos miolos! Contam-se aos crianços, para os fazer medricas; e a alguns homens, que nunca crescem. Eu cá por mim, estou farto de

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contos da carocha! E ainda por cima, agora, que sou um assassino! E aonde está Deus e o diabo? Na imaginação de cada um, como as fadas e as sereias! Quando menos se esperar, a mesma navalha que matou um dos meus melhores amigos, talvez o único, fará o mesmo a mim próprio! Estou farto de tudo, e não terei remissão! O mundo e os que nele vivem repugnam-me! Fartam-se de falar na justiça humana e Divina! Lérias, caro doutor! Conversa fiada e trampa! Quem já se importou comigo? Sou um bêbado relaxado; todos me olham com desdém, agora, que cometi um crime, certamente já serei alvo das atenções humanas! Punir-me-ão, como mandam as leis. Quero lá saber das leis! Se são feitas por homens, não me merecem o mínimo respeito...

Aquelas palavras, arrancadas com violência e angústia a um homem desesperado, tinham o condão de ser sinceras. As realidades da vida, por vezes, transformam-nos em escravos dos mais depravados instintos! O abandono é o flagelo mais triste que pode atingir o ser humano! Precisamente a moléstia de que se queixa amargamente Jeremias! Gomes bem o sabia: lia-o tão naturalmente, que sentiu aquele problema duma forma global! Teria que ajudá-lo; mas via que as palavras, por muito eloquentes, de nada serviriam. Ele necessitava de obras, para acreditar na Humanidade. Aproximou-se dele e, com um carinho paternal, passou-lhe a mão pelos cabelos, sorrindo:

- Sr. Jeremias: o seu estado inspira-me, não um simples sentimento de piedade, mas muito mais: obriga-me a oferecer-lhe os meus préstimos, nesta hora que espero seja o início da reconciliação consigo próprio e com o mundo, que não é tão mau como o pinta. O senhor precisa também conhecer o seu lado bom! Não vou adoçar-lhe a boca com palavras bonitas: o senhor será realmente julgado por homicida; não tem dinheiro para pagar advogados de defesa; eu encarregar-me-ei, voluntariamente disso! Essa lhe juro eu, pela fé de quem sou! Não estará jamais sozinho, como possivelmente até então. Conte comigo.

A emoção apoderou-se daquele desgraçado, por cujo rosto começavam a deslizar lágrimas de felicidade. Que interesse poderia ele inspirar num médico, bem instalado na sociedade? Se até agora fora sempre marginalizado por esta… aquele homem não curava apenas as enfermidades do corpo: ia muito mais além, procurando recuperar o indivíduo, na sua totalidade! De certo estaria a sonhar! Não era verdade!

Gomes compreendeu o embaraço do seu interlocutor, esperando pacientemente que este se decidisse a falar.

Jeremias perturbou-se com o curto silêncio a que dera origem, e só achou uma forma de expressar humildemente a sua gratidão:

O senhor?!... Não! Não adianta perder tempo com um assassino, que ainda por cima é bêbado! Deixe-me entregue à minha desgraça! Sou um miserável, um caso perdido! A cada passo ouço os gritos daqueles órfãos e viúva a clamar vingança contra mim! A morte será o único meio de fugir a esta perseguição! Que interesse posso eu ainda ter na vida? Sou um desgraçado! Antes que me encerrem no cárcere, acabarei eu com tudo, amaldiçoando não só a hora em que nasci, mas mais ainda aqueles que me

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puseram irresponsavelmente no mundo, abandonando-me, quase em seguida, ao meu destino! E agora venham-me lá dizer que há Deus! Bem se importa Ele comigo! Não passo dum animal escorraçado! Que esse Deus exista para aqueles que tem a barriga cheia, está tudo muito bem! Mas para mim…o meu nome já andará por aí nos jornais, como um bandido da pior espécie, a quem é forçoso castigar, queimar vivo, se necessário! E são assim os homens: fartam-se de ensinar doutrina e, logo que lhes aparece uma vítima ao alcance das garras, dilaceram-na, impiedosamente! E queria agora o senhor comprometer a sua carreira, tomando a defesa duma fera, que sou eu!? Deixe-se de generosidades atrasadas! Fui longe demais, e não quero arrastar, num egoísmo imbecil, mais vítimas comigo! Afinal essa viúva tem toda a razão de me querer arrancar o coração pelas costas! Pois que o faça….

Aquela explosão de palavras misturadas com lágrimas e soluços como que anestesiava Jeremias, que entretanto ardia em febre, alagado por uma explosão de suores frios. O médico interveio imediatamente, dizendo:

- Bom, bom, meu amigo! Um crime não se remedeia com outro crime! Deixe o caso por minha conta! Saberei como resolver as coisas com a viúva. Tudo farei para que ela não caia na miséria, miséria essa que já lhe fazia companhia mesmo em vida do marido. Agora o senhor precisa de descansar; emocionou-se demasiado, e um calmante far-lhe-á muito bem. E pense bem nisto: qualquer católico ficaria horrorizado com a sinceridade dos seus desabafos, principalmente no que disse a respeito de Deus. Ora professando eu o catolicismo, não pretendo ser juiz de ninguém. Procurarei, sim, na medida em que o conheço, compreendo e aceito tal qual é, ajudá-lo a sair das trevas medonhas em que se encontra mergulhado! Segundo a minha fé, dir-lhe-ei por enormes que sejam os seus pecados, nunca poderão ultrapassar a misericórdia e o perdão do mesmo Deus, que o senhor, na sua revolta, julga não existir, por vezes chegando também a admiti-lo, mas desinteressado da sua sorte! Não tome estas palavras como um sermão. Pois elas têm apenas em vista demonstrar-lhe que há sempre uma força para arrepiar caminho, caso nos convençamos que andamos errados. Eu estou plenamente convicto que o amigo Jeremias ainda poderá mudar de ideias, pondo de parte a do suicídio, um crime irreparável, quando praticado na plena consciência do acto. Vamos, criatura de Deus; faça como o bom ladrão: prometa-me que, vencendo enormes dificuldades, que as haverá, poderei contar consigo! Porque não responde!?

Jeremias, ministrado que lhe foi o calmante, sentia-se a pouco e pouco adormecer por aquelas palavras; e se seguisse os conselhos do médico? Inundava-o uma auréola de esperança, jamais sentida até então! Contudo não se atrevia a abrir a boca, com receio dum possível fracasso. Tentava reagir…

Qual criança amedrontada, não viesse para aí o “papão”, aquela vítima do álcool, mesmo adulto, debatia-se num alto mar de convulsões, tentando alcançar, em ânsias de morte, uma possível esperança de vida. Para quê? Para ser torturado por remorsos, em cada dia? E porque não agarrar com unhas e dentes a última oportunidade que lhe restava? Essa tábua de salvação chamava-se Custódio Gomes. Quem era aquele homem, francamente? Um médico? Um salvador de almas perdidas?

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Naquele instante, sem dúvida que parecia ser o maior amigo de Jeremias, o substituto de Miranda, que ele assassinara! Quem sabe? Talvez para resgatar a dívida à viúva e órfãos! Era uma ideia, quiçá a única salvadora de tantos desentendimentos! Não tendo ele família, as vítimas da sua malvadez ou pouca sorte não passariam fome!

Estes pensamentos povoavam-lhe o cérebro no curto espaço de décimos de segundo! O instinto de conservação fazia sentir a sua força!

Por fim, vencendo o desânimo, encarou Gomes, uma pergunta directa:

- Sinceramente, Sr. Doutor: acha que, no meu caso, com um passado e presente que envergonham, vale a pena viver?!...

- E isso é pergunta que se faça a um médico, mesmo a um homem com qualquer profissão?! Evidentemente que sim, que é indispensável preservar por todos os meios o direito à vida, mesmo que esta nos seja madrasta! Primeiramente, e para que o senhor me possa compreender na perfeição, antes de mais, precisa de vencer a sua revolta, que infelizmente até é justificada! O resto…. Uma casa não se constrói num dia! Necessita de muita persistência e tenacidade para enfrentar os fracassos, que todos temos! Atentar contra a própria vida, como já lhe disse, é um crime, não lhe falo em pecado, porque o senhor não liga à religião. De qualquer modo, garanto-lhe que, perante Deus, o seu valor é exactamente igual ao de qualquer um! Ninguém me diga o contrário, porque lhe chamarei imediatamente mentiroso…

- Oh, Sr. Doutor; com franqueza! Essa não! Eu também já fui católico, frequentei a Igreja, e fartei-me de comédias, de códigos de boas intenções, apenas símbolos, em cada passo que se dá! Tudo aquilo é uma farsa! Entramos lá, ouvimos uma porção de conselhos, por vezes umas músicas e cânticos bonitos, que nunca se vêem transpor os umbrais dos templos. Terminada qualquer cerimónia, cada um regressa a casa, e tudo se mantém igual, sem que alguém ajude alguém! Estou farto de conversa fiada! Até quando morre um personagem importante, mesmo que em vida se estivesse nas tintas para a Igreja, em qualquer que se apregoe católico, não faltam missas por alma dele, mesmo que fosse um grande patife, enquanto viveu! E o senhor ainda me vem com essa lamúria?

Custódio ouvia com toda a atenção aquele homem, cujas palavras, embora demonstrassem bem o seu desprezo pelas aparências, continham uma grande parte de verdades, que ninguém poderia ocultar! Mesmo assim, arranjou resposta:

- Oiça uma coisa, amigo Jeremias: o senhor há pouco lamentou-se do abandono em que se encontra. Até aí, plenamente de acordo. Veio ao mundo sem o ter pedido. Os seus pais, não sabemos agora porquê, desapareceram. Isto foi aquilo que depreendi daquilo que me disse. À primeira vista, caso ainda vivam, não procederam bem. São seres humanos, que erraram, como quaisquer outros! Perdoe-lhes, se puder, e terá ganho a palma do martírio, no Céu! Seja generoso, na sua consciência, ao menos uma vez, para recomeçar…

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Aquelas palavras, ao contrário do que o médico pretendia, tiveram em Jeremias um efeito completamente negativo, e ele explodiu:

- Perdoar àqueles miseráveis? Já com esta idade, sem os conhecer? Nunca! Nunca eles me apareçam pela frente, que os matarei, sem o menor remorso! Grandes canalhas!

- Essas palavras não podem ser efectivamente dum cristão, nem tão pouco eu acredito que o senhor as sinta, ou quando fosse capaz de as pôr em prática, na hora da verdade! Foram apenas um desabafo, motivado pela sua frustração! Quando se deu ao luxo de criticar a Igreja, certamente esqueceu-se de que ela é composta por homens que, mesmo cheios de boas intenções, estão sujeitos a errar. Todavia, se a sua essência for integralmente mantida, não haja dúvida que o mundo será outro! Pois bem: não poderá o senhor perdoar aos seus pais, mesmo desconhecendo as causas do seu procedimento para consigo. Eu sei que è difícil, muito difícil, mesmo; mas não impossível, se houver boa vontade, apelando para a ajuda de Deus! Humanamente, meu caro, sejamos realistas: quase ninguém o consegue! Mas partamos do princípio que deveríamos fazer aos outros o que gostaríamos que nos fizessem, e talvez pudéssemos ser um pouco mais maleáveis: na prática, se o senhor não perdoar aos seus pais, forçosamente não poderá esperar o perdão da viúva do seu amigo Miranda. Concorda ou não com esta teoria, se quiser ser imparcial? Certamente sabe rezar o Pai Nosso; a lei de Deus não se pode moldar às nossas conveniências do momento; é uma espada de dois gumes… Contudo eu não estou aqui a catequizá-lo! O senhor é adulto, tem uma cabeça para pensar e agir como lhe aprouver. Todavia o que tentei com as minhas palavras foi fazer-lhe ver que a conduta dos cristãos, se o desilude, seja o senhor honesto, e deixe o resto, que ninguém lhe pedirá contas pelos actos alheios. Prometi-lhe, e serei seu defensor, no tribunal, porque sei ir defender uma justa causa. O seu crime não foi premeditado, embora tivesse consequências trágicas. No fundo, houve uma agressão mútua, da qual qualquer um ou os dois poderiam ter morrido. O único culpado desta tragédia foi o álcool! Deteste-o. E terá ganho a partida.

Àquelas palavras, o pobre homem sentiu-se: o seu corpo tremia, dos pés à cabeça. Finalmente Gomes pusera-lhe o dedo na ferida, e a custo ele tentava suster as lágrimas;

Mas foi entre grandes soluços que balbuciou:

- Não me fale mais nesse maldito veneno! Ele é que foi a minha desgraça, a desgraça de muitos! Ele, e o abandono a que me votaram! Fizeram-me um vil assassino. Um canalha! E com a agravante de me estrear no corpo dum amigo, amigo da mesma espécie, talvez; mas que tinha uma família a sustentar! Não, não acredito na minha regeneração. Sou velhaco demais para alimentar ilusões. Mas não levarei a minha ignomínia ao extremo de ser também hipócrita! Os defeitos que tenho já me sobram, para aguentar mais um! Não posso aceitar a ajuda que o senhor tão generosamente me oferece, de mão estendida, à beira do precipício. Deixe este miserável entregue a si próprio! Por muita vontade que haja dele em recuperar-se, o mais certo será fracassar, faltar à palavra dada, ser perjuro! Nunca! Antes morrer já, que trair um amigo! …

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Apesar de experiente, como médico, em toda a espécie de emoções, aquela boa alma não deixou de comover-se: sabia que o principal fora conseguido! A ovelha tresmalhada mostrava ânsias de voltar ao rebanho! Aproveitou imediatamente:

- Amigo Jeremias: certamente que não me acha capaz de ficar indiferente a um necessitado! É precisamente neste ponto que a religião tem mais força! Deus nunca fecha as portas a quem se quer aproximar dele! A Sua sincera colaboração sempre disponível para nos acolher, mesmo que erremos a cada passo! Ele saberá levar em conta as enormes dificuldades que estarão para vir! Conte comigo, e ponha desde já todo o seu querer ao serviço da recuperação que tem em vista. Dê-me um abraço, com o qual selaremos o nosso pacto de amizade…

O pobre homem não teve coragem de recusar! Seria a maior ingratidão, absurda e mesquinha tentá-lo! A voz embargou-se-lhe convulsivamente na garganta, e só pôde balbuciar:

- Oh, Sr. Doutor! Eu sou um fraco! Um cobarde da mais ínfima podridão! Mas prometo-lhe solenemente que farei forças das fraquezas, e tudo tentarei para não o desiludir! Mesmo que precise rastejar, vencerei! Não percebo como ainda há gente tão virtuosa sobre a terra! De há muito que eu não acreditava em ninguém, medindo todos pela mesma bitola! Que engano mais mesquinho! É bem digno de mim! E terei eu ainda remédio?...

- Basta de torturas, homem de Deus! Lembre-se só que o sincero arrependimento do mal praticado é meio caminho para alcançar os objectivos! Tenha confiança!

- Sim! Com a sua ajuda, quem não a há-de ter? Talvez só agora, já adulto, eu comece realmente a viver! Preciso dum grande estímulo para não recair na lama!

- Esse estímulo será a sua grande força de vontade! Não tenha ilusões! Como seu amigo, aviso-o de que terá de lutar muito, mesmo muito, para recuperar o perdido! Graças a Deus, que julgo ter chegado ainda a tempo! Não calcula como me sinto feliz!...

A expressão do médico testemunhava fielmente as suas palavras. De há muito não expressava tanta alegria!

Jeremias partilhava-a, ainda entre incrédulo e reconhecido, sem perceber que valor poderia ter ele, um marginalizado pela sociedade, no conceito daquele médico!

Este, sim, seria um grande servidor de Deus e dos homens! Como se sentia pequeno junto dele! E Deus? Há quanto tempo não perdia uns segundos a pensar em Deus! Também Ele o abandonara? Não! Estaria errado, com certeza! Matara um homem, um seu amigo, mas a sua vida fora conservada! Deus certamente servia-se de Custódio Gomes para lhe lançar as redes salvadoras! Que ventura poder ainda cair nelas!...

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CAPÍTULO VI

AS LEIS DA JUSTIÇA HUMANA

Passado algum tempo após Jeremias ter tido a alta do hospital, e dado que foi considerado por restabelecido, apto e domo das suas faculdades mentais, foram accionados os mecanismos legais ao seu processo, que aguardavam, pendentes no tribunal. Um homicida teria que ser forçosamente julgado!

Os funcionários daquela comarca, todavia, não pareciam muito apressados: queixosa e réu não tinham onde cair mortos, por isso mesmo, agora ou logo, resolver-se-ia o problema! Criminosos e viúvas chorosas é o que não falta por aí!

Aquele caso fora enviado a tribunal pela polícia, que interviera e separara os contendores, embora não conseguindo evitar que se ferissem.

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Ouvida a junta de freguesia dos dois brigões, foi provado que nenhum deles teria posses de suportar as despesas inerentes ao processo. O ministério encarregar-se-ia da acusação, e um advogado oficioso tomaria a seu cargo a defesa do réu. Se aparecessem algumas testemunhas dignas de crédito, certamente seriam convidadas a prestar declarações. Como iria o tribunal resolver aquela questão? Certamente mandando o assassino para a cadeia! E a viúva, com os seus cinco filhos? Que benefícios teriam desta sentença?

Estas e muitas outras perguntas pairavam no ar, alimentando a ânsia dos curiosos.

Não descurando de forma alguma os seus afazeres profissionais, o Dr. Gomes seguia com o mais vivo interesse e expectativa o desenrolar dos acontecimentos, pronto para intervir, logo que necessário. Tudo faria para atenuar a dura pena que iria cair sobre o pobre Jeremias; e, como médico, tinha alguns trunfos ao seu alcance. Queria, por um lado, recuperar aquele farrapo humano e, por outro, era justo salvaguardar os legítimos direitos de Inésia Miranda! O problema não era fácil; todavia estava com grande vontade de contentar gregos e troianos, o que, nas arengas dos tribunais, quase nunca acontece.

Após algum tempo de meditação, achou que deveria procurar a viúva, e trocar com ela algumas impressões. Seria realmente o melhor, para saber como transporia os degraus do tribunal, que tem por fim julgar homens, servido por homens iguais, quiçá, por vezes, mais criminosos do que os que sentam no banco dos réus!

Ao bater à porta de Inésia, Gomes encarou com uma adolescente, de olhar esquivo e penetrante, aonde se adivinhava um misto de altivez e acanhamento simultâneos:

- O que deseja, senhor?...

A sua voz era triste, certamente habituada às privações de toda a espécie! E olhou-a com muita bondade e ternura, perguntando:

- Oiça cá uma coisa, menina: não seria possível eu trocar umas impressões com a sua mãe?...

A mocinha olhou-o interrogativamente e, limpando com mágoa os grandes olhos, balbuciou:

- Se quiser…. Ela está no quarto, com o meu irmão mais novo, muito doente, que certamente vai morrer! Não temos dinheiro para o tratar! A mãezinha não se quer separar dele um só instante! Quase não come nem dorme! É uma desgraça!

- Vou ver o pequeno, imediatamente! Com licença, menina! Sou médico, e talvez possa ser útil…

Não reparou na pobreza daquela casa, e foi entrando, ante o espanto de Almerinda, que não o deteve, porque um raio de esperança, uma longínqua esperança

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que sempre aparece, brilhava-lhe no rosto: aquele inesperado socorro certamente viera-lhes do Céu!

- Oh, mãe! Querida mãezinha! O nosso Marinho não vai morrer! Está aqui um Sr. Doutor!...

Gomes penetrou imediatamente no quarto, ante a surpresa da pobre mulher, que pouco mais fazia do que chorar! Num leito miserável, mal agasalhado por uns farrapos a que nem se poderiam chamar “cobertores”, jazia um menino, que respirava com imensa dificuldade, ardendo e, febre, que tudo indicava estivesse por horas! Uma bronquite parecia impedi-lo de respirar livremente:

- Oh, minha senhora! Como deixou o seu filho chegar a este estado!? Tem de ir imediatamente para o hospital! Eu não vinha preparado para acudir a doentes…

A mulher, já rouca de tanto chorar, vencida por um desespero cruel, deixou falar a sua alma:

- Para o hospital? Como, se nem para pão temos dinheiro!? Há gente que nunca deveria ter nascido! Eu sou uma desgraçada! Como se não chegasse perder um marido, que tão mal me tratava, Deus não lhe peça contas, vou também ficar sem os meus queridos filhos! E pensar que aquele assassino ainda está à solta! Era melhor sermos espancados de pouco a pouco, que ficarmos sem quem nos ganhe o pão para a boca! Antes pouco do que nada! Quem agora nos trará para casa esse pouco?!...

E Inésia caiu quase sufocada sobre a cama…

Por ordens do médico, Almerinda vestiu o irmão o melhor que pôde, sem que a mãe a impedisse. É bem triste e esmagadora a miséria humana, especialmente quando comparamos dois seres da mesma matéria, um esbanjando criminosamente a abundância, e outro mirrado, cadavérico, pela fraqueza…

Por mero acaso, Gomes trouxera o carro, levando de imediato a criança para o hospital, e instalando-a num quarto particular bem arejado, â sua inteira responsabilidade.

Almerinda seguiu com ele, e assistiu, nervosamente, aos primeiros socorros prestados ao irmão. As lágrimas que lhe deslizavam, em silêncio, demonstravam a amarga incredulidade que sentia pela recuperação do pequeno doente! Não fora difícil o diagnóstico: uma pneumonia!

Que sabia, porém, Almerinda, da medicina? Tinha a certeza que, se fosse possível, o médico salvaria o irmão, para logo em seguida o restituir à fome e toda a espécie de miséria! Mas ao menos viveria! Como estaria a mãe em casa, naquele momento? Talvez chorando, em busca dumas migalhas, para enganar o estômago dos outros irmãos! Aquele cérebro, ainda tão jovem, dividia-se em apreensões, qual delas a mais enervante e complicada! Será que Deus esquecera por completo a sua família? Talvez não! Aquele médico, que lhes aparecera em casa, sem que ninguém o chamasse,

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poderia muito bem ser um enviado do Céu, para lhes amenizar um pouco o sofrimento…

O soro e oxigénio, ministrados ao doente por mãos realmente sabedoras do seu ofício, davam indicações de que havia lugar para uma certa esperança, ainda que muito reservada. A respiração do pequeno já estava muito mais ritmada; e, julgando-o em relativa segurança. Gomes recomendou a Almerinda, delicadamente:

- Escute, moça: não saia daqui de junto do doente e, ao menor sinal de alarme, chame uma enfermeira. Não tenha qualquer receio ou acanhamento. Está em causa uma vida humana, além de que é para zelar pelos doentes que elas estão aqui de serviço dia e noite. Eu agora vou voltar lá a casa, para sossegar a sua pobre mãe…

A mocinha estava deveras sensibilizada com os modos daquele doutor, e exclamou:

- Pode ir descansado, que eu cumprirei à risca as suas indicações. E que Deus nunca se esqueça de lhe pagar, caro senhor!

- Está bem; deixemos agora a gratidão para melhor altura, porque não há tempo a perder. E tenha confiança em Deus, que talvez o seu irmão ainda não morra desta. Está muito doente, mas tentaremos recuperá-lo. Ele agora fica ao seu cuidado. Seja uma enfermeira dedicada…

E, antes de sair, recomendou no hospital que olhassem pelo seu doente, pois tinha um assunto de certa urgência a tratar.

Num instante o bom homem chegou a casa de Inésia que, como se previa, continuava inconformada:

- E então, senhor Doutor? O meu querido já morreu? É isso que me vem dizer, eu sei! Morreu fora de mim, sem que pudéssemos estar juntos nos seus derradeiros instantes de vida! Dizer o último adeus! e a Almerinda, como encarou ela a situação? Pobre filha, que gostava tanto do irmão! Oh, meu Deus! Que crimes terei eu cometido, para ser assim tão duramente castigada?!

Desta vez o médico já ia prevenido, e aplicou-lhe um calmante. Ela, contudo, calara-se, emocionada contigo própria, com o seu desespero, e agora só lhe restava ouvir a notícia fatal. O rosto de Gomes. Porém, parecia bastante alegre, e ele respondeu, sorrindo:

- Acalme-se, minha senhora, e tenha confiança em Deus! Vim aqui como amigo, trazer-lhe uma boa notícia! Nada de mortes!

Ela sobressaltou-se, trémula, e não o deixou continuar:

- Como, Sr. Doutor? Será possível? O pequeno já quase nem respirava! O Senhor quer enganar-me, com falsas esperanças, para me consolar!

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- Não, Sra. Inésia! Eu nunca faria tal coisa a ninguém, de modo algum! As consequências seriam bem piores! Não lhe afirmei que o conseguirei salvar, mas garanto-lhe que estou no bom caminho. Ele irá precisar dum tratamento muito intenso; mas, se a coisa não retroceder, e é preciso sempre contar com isso, tenho esperanças de êxito. Nem tudo é tão mau como se pinta! Evidentemente que, se eu não o levasse tão depressa para o hospital, a estas horas estaria morto! Com certeza foi Deus que me encaminhou para aqui, para lhe demonstrar que ainda não se esqueceu de si, minha senhora!

- Não se esqueceu?! Isso é o que o senhor pensa! Ora veja só este papel! Acaba de me chegar do tribunal, intimando-me a ir lá sem falta depois de amanhã! Ninguém se esquece de mim, como vê! Com que forças lá irei, neste estado!

O médico examinou aquele sinistro papel, que em tão má hora chegava! Lembrou-se então que ali viera propositadamente para falar com ela naquele assunto! Chegava tudo ao mesmo tempo, sem um pouco de tréguas, para manobra do raciocínio!

Realmente o mundo está tão cheio de problemas, que ninguém consegue ter mão neles! Só aquela criatura se debatia com tantos, simultaneamente, e quase asfixiava, sem soluções, que fará o resto da Humanidade! Gomes prometera auxílio a Jeremias; agora teria de acudir ao filho do homem a quem ele matara, precisamente quando o apaziguador se propunha entrar num bom entendimento com a viúva! Era muita areia para uma só camioneta! Um encadeamento de factos, que o deixavam entre a espada e a parede! Isto para não falar já na doença de Lourenço, que também não era simples, infelizmente, de resolver! Aonde acabariam aquelas complicações? Seriam todas levadas a bom termo? Isso era quase impossível! Mas pelo menos não se cruzava os braços! Apelar à calma, esperar que o tempo resolvesse algumas, era a ideia de Gomes, quando principiava a desanimar. De repente, elevando uma prece a Deus, alguns médicos ainda o fazem, concentrou-se, por momentos.

Inésia olhava-o. Atónita. Na expectativa de que o mundo inteiro dependesse daquele homem, que afinal achou um princípio de solução, uma pista talvez capaz de levar todos a um bom entendimento:

- Oiça uma coisa, D. Inésia: eu quando vim aqui a primeira vez, sem tão pouco saber que o seu filho estaria doente, pretendia fazer-lhe um pedido…. Tenho ainda essa ideia, sabe?...

- Um pedido…. A mim!?... Õ Sr. Doutor está a brincar! Quem sou eu, para que um médico possa vir a minha casa fazer-me pedidos!? O senhor é um brincalhão!...

- Por acaso até sou; mas olhe que desta vez falo muito a sério! Ao bater-lhe à porta, entrei, porque a urgência o exigia. Por momentos esqueci o que me trazia aqui, porque primeiro estava a salvar uma vida que corria grande perigo. Esta vida agora recupera, acho que vai vencer a morte, e logicamente tentemos resolver outros problemas!

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- E que posso eu influenciar a resolução dos seus problemas!? Não passo duma viúva insignificante, pobre de mim!

Gomes encarou-a com um olhar de confiança, que tentou transmitir-lhe:

- Minha senhora: convença-se duma coisa: como ser humano, o seu valor não difere em nada doutro qualquer: que adiantaria, por exemplo, eu ser médico, se não existissem doentes? Uma máquina, por muitas peças que tenha, todas lá estão porque são necessárias. Se um simples parafuso, o mais pequeno que seja, não estiver bem apertado, imediatamente a máquina deixará de trabalhar em condições normais. Partindo deste princípio, a senhora não se admire de poder vir a ser-me muito útil…. Garanto-lhe que depende apenas ou em grande parte de si o cumprimento duma palavra que eu dei! Portanto peço-lhe encarecidamente que se digne, por muito que lhe custe, a colaborar um pouco comigo!

- Mas diga, Sr. Doutor! Posso eu acaso recusar alguma coisa a alguém que quer salvar o meu filho!? Evidentemente que não! Será uma prova da minha eterna gratidão!

Mas pelo menos lutava-se; não se cruzava os braços! Apelar à calma, esperar que o tempo resolvesse algumas, era a ideia de Gomes, quando principiava a desanimar. De repente, elevando uma prece a Deus, alguns médicos ainda o fazem, concentrou-se, por momentos.

Inésia olhava-o. Atónita. Na expectativa de que o mundo inteiro dependesse daquele homem, que afinal achou um princípio de solução, uma pista talvez capaz de levar todos a um bom entendimento:

- O facto de eu me empenhar arduamente na salvação da vida do seu filho, não merece gratidão alguma. Os deveres não se agradecem, porque se fazem, ou deveriam sempre fazer-se por obrigação. Eu venho apelar para a sua generosidade, para que ambos, em pleno esforço comum, possamos redimir uma vida, cuja existência é ainda mais tortuosa e infeliz que a senhora! Certamente já adivinhou de quem se trata, não!?...

Inésia olhava aquele médico que, em vez de lhe falar com altivez ou sobranceria, após tudo o que fizera pelo filho, parecia implorar aos seus actos de generosidade. Que pretendia ele, afinal? Mesmo com o maior esforço, não o compreendia!

- Por amor de Deus, senhor! Mas explique-se! Posso eu lá saber quem é esse ser humano! E digo-lhe mais: não acredito que haja alguém tão ou mais infeliz que eu, que nem pão tenho para matar a fome aos meus filhos! Haverá pior que isto!?

- Há, sim, infelizmente! Ninguém deseja a fome, o frio, a miséria que nos atinge fisicamente! E a penúria moral!? Não será ela bem pior? A senhora acaso já se viu envolta em remorsos, capazes de enlouquecer, de obrigar a atentar contra a própria

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vida? Eu conheço alguém nessas condições, que necessita muito, mas muito do seu perdão!...

Inésia fazia esforços para raciocinar: quem seria? Só conhecia uma pessoa naquelas circunstâncias! Mas que relação podia esse infame ter com aquele médico? Mesmo assim, com certa hesitação, arriscou:

- Será…. Aquele assassino?! Mas, não! Com certeza…. Seria impossível!

- É ele mesmo, sim! Tem mais de desgraçado que de assassino, coitado! Embora lhe pareça, para já, humanamente impossível, o maior dos absurdos, é para ele que lhe venho implorar perdão! Terá certamente de ir pagar na cadeia o seu crime; mas, se ao menos lá entrasse sem o rancor da senhora, já iria meio aliviado! Afinal era tão amigo do seu marido! Ambos foram duas vítimas do álcool! Agrediram-se, e tudo acabou em tragédia, morrendo um, e escapando outro! São as desgraças do quotidiano! eu sei que é difícil, que a sua ferida ainda sangra muito; mas peço-lhe que seja um pouco humana, tentando compreender aquele infeliz! Ele está sinceramente arrependido….

A mulher não podia acreditar no que ouvia! Aquilo era um atentado contra a sua dignidade, o seu amor de esposa! Mesmo viúva, e tão maltratada pelo marido, na vida deste, ainda o estimava e respeitava! Que disparate sem pés nem cabeça o daquele doutor! Não! Perdoar ao assassino do marido? Isso era-lhe totalmente impossível! Nem que fosse o próprio Deus a pedir-lhe! Para a cadeia com esse bandido, e quanto antes!

- O Sr. Doutor certamente não sabe que esse seu pedido me insulta! Não o repita, por favor! Um criminoso dessa laia não merece o meu perdão, nem a justiça o deve conceder! Estou viúva por sua causa! O senhor ainda é novo, solteiro, não imagina o que custa perder um marido! Eu gostaria de vê-lo no meu lugar! Certamente não teria tanta generosidade! É muito fácil dar conselhos, quando o mal não nos bate à porta! O senhor porque não estudou para padre? Julgo que errou a vocação…

- De forma nenhuma, minha senhora! Sinto-me totalmente realizado! E a prova…. Bem; desculpe, mas terei de lhe dizer isto: se não fosse esta a minha vocação, eu não estaria agora tentando salvar o seu filho! E assim além de já ter ficado viúva, também essa inocente criança poderia morrer! Temos de ser uns para os outros…

Custódio usava sempre o mesmo sistema, para ele eficaz: uma bofetada, na altura própria, tem quase sempre o condão de despertar os adormecidos. Tentou o medicamento em Inésia, aguardando os seus efeitos, que não se fizeram esperar. Ela, que se mostrara há pouco tão intempestiva, via-se agora forçada à mudança:

- O senhor tem uma arma poderosa, e quer usá-la contra mim! Está no seu direito: além de esposa, já viúva, também sou mãe! é isso mesmo! Tem todos os trunfos na mão….

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- Não me force a usa-los, pois só o farei em último caso! Não deixarei de lutar pela vida do seu filho, que essa é sagrada. Todavia, em vez de ter em mim um amigo, que tudo fará para ajudá-la, não irei além de médico. Está nas suas mãos! Se assim o quer….

- Pelos vistos, o senhor é o advogado de defesa dele, pois isso nota-se à distância….

- Até os criminosos têm o direito de defesa, sabe? E, pondo tudo em pratos limpos, tanto ele como o seu defunto marido são igualmente, perante a Lei, delinquentes! Chegaram ambos ao hospital com as tripas de fora…. Tão ladrão é o que rouba, como o que consente! Eu só posso desculpar a sua intolerância, tendo em conta a dor que a subjuga. Mas não duvide que irei defender intransigentemente o Jeremias, com todos os meios ao meu alcance; com a mesma tenacidade com que tento agora curar o seu pequeno!

- Pois defenda-o! Não sei como quer eliminar os criminosos! Cuidado, para não vir a ser ainda vítima de algum deles!

- Aquele homem não é criminoso, repito-lhe! Foi apenas um agente ao serviço do álcool, dos seus malefícios e vendilhões! Estes, sim, são os maiores criminosos da Humanidade, e ninguém lhes pede contas! Se aqueles dois homens não estivessem bêbados a cair, não se matavam, nem to pouco se agrediam, sendo tao amigos! Compreenda isto, por amor de Deus, minha senhora! Use de misericórdia, se quiser encontrar misericordiosos à sua volta! Não contava demorar-me tanto. Tenho que ir ver o pequeno, que deixei aos cuidados da sua filha. Logo que queira, pode ir vê-lo! É conveniente a irmã ficar lá com ele, uma vez que a senhora tem as outras crianças. Eu pensei assim; mas deixo a seu cargo o que achar melhor. Não se preocupe com os gastos do hospital; ninguém lhe virá cobrar a conta à porta.

E despediu-se, com delicadeza, deixando Inésia absorta em seus pensamentos.

Não partia muito satisfeito, o bom do médico! As coisas não haviam decorrido a seu gosto, embora ele compreendesse que ainda seria muito cedo para se dar o milagre com que ele sonhara! O tempo talvez conseguisse o que ele, com tanta pressa, devido às circunstâncias e gravidade do momento, não pudera!

Ficando só, Inésia nada mais via ao seu redor senão a figura daquele homem, escravo do dever, um símbolo da generosidade, sem dúvida, um exemplo a seguir! O que Gomes lhe pedira era tão sublime quanto difícil de conseguir: perdoar ao inimigo!? Poucos, muito raros, mesmo, são os que têm essa força, a de vencer-se a si próprios! Inimigo! E Jeremias seria seu inimigo, na realidade? Estava certa que não! Embora trilhando muitas vezes maus caminhos, ele e o seu Júlio haviam sido sempre os melhores amigos! Aquele médico, por muito que custasse a Inésia, tinha razão! Porque não acreditar que aquele farrapo humano, prestes a ser julgado e possivelmente condenado em tribunal, estaria sincera e amargamente arrependido!? É bem possível que o remorso o torturasse ainda mais que a pena a cumprir muito em breve! Que

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ganhariam ela e os filhos com o castigo do assassino do marido? Este não ressuscitaria! Quem sabe se ele na agonia da morte, já não lhe perdoara? Que pena a alma humana ser tão cruel, afeita ao ódio e à vingança! É tão raro encontrar-se alguém sempre virado para o perdão! Mas Inésia debatia-se entre incertezas: seria acaso um sacrilégio, uma vil traição ao marido, perdoar a quem o matara!? Quantas vezes ela própria, vencida pelo desespero e maus tratos que ele lhe infligira, insensatamente lhe desejara a morte? Não; isso não tinha agora importância! Eram apenas desabafos de boca, arrancados duma alma vergastada pela violência! A dor por vezes torna as suas vítimas insensíveis à piedade! Talvez aquela pobre mulher já não acreditasse na solidariedade humana. Daí que a surpreendesse grandemente o empenho do médico, na defesa de Jeremias, no qual não via nenhum assassino, mas um homem tremendamente infeliz, a quem era necessário dar a mão. Poucos se atreveriam a recusar um pedido a um médico, um Homem com letra maiúscula, daqueles! Inésia, que tinha um filho nas suas mãos, fizera-o, não por vontade própria, mas por desejar freneticamente vingar o marido! Mas…. E se perdesse também o filho!? As palavras de Custódio bem lhe pareciam punhaladas penetrantes até ao âmago: “Se queres misericórdia, sê misericordiosa!” sem dúvida: o rancor só gera mais rancor! Tentou pôr-se na pele do réu: como ficaria ele, ali, em tribunal, no meio de tantos olhares de ódio, cada um a acusa-lo de assassino!?deveria ser terrível! E que pensariam dela, na hora em que se mostrasse benévola, caso o conseguisse fazer, disposta a perdoar àquele assassino do seu próprio marido!? Certamente chamá-la-iam de adúltera, e tudo o mais que de mais ofensivo pudesse haver! Enfrentar as más línguas, a peçonha social, era outro problema a vencer!... Mas que importância poderá ter uma sociedade mesquinha que, até então, nunca se preocupara em ajudar uma viúva e cinco órfãos, com tantas necessidades? Desprezo; desprezo total, seria a resposta mais adequada!... Os cristãos afirmam, na sua credulidade, que Cristo expirou, perdoando aos Seus algozes! E se Inésia, ainda ali bem viva, consciente dos seus actos conseguisse o mesmo? Porque envergonhas-te de fazer o bem!?Que bom seria deixar-se abrasar pela felicidade de praticar uma boa obra! Sim!... Seria inútil hesitar mais! O mundo deve começar a endireitar-se pela nossa casa!

Com os melhores propósitos, Inésia saiu de casa, sem grandes preocupaçoes de vestuário: também pouco teria por onde escolher…. A sua decisão estava tomada, e parecia inabalável.

Chegando ao hospital, pediu as informações necessárias, e conduziram-na ao local pretendido. Não foi sem enlevada emoção que o seu olhar se cruzou com o da filha; e ambas, em silêncio, agradeciam a Deus e ao médico aquele milagre:

- Oh, Almerinda: o nosso querido Marinho parece outro! Louvado seja Deus! Nunca pensei que escapasse!...

- Este médico tem sido incansável, mãe! Abaixo de Deus, devemos-lhe tudo, acredite!

- Ele é um santo, filha! Já esteve lá em casa, e veio-se embora certamente decepcionado comigo! Sou uma ingrata, e bem merecia que Deus me castigasse! Tenho

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vergonha de mim, dos actos indignos que me fazem rastejar, humilhada, perante a nobreza de carácter desse homem fantástico!

A conversa foi interrompida pela chegada de Custódio:

- Olá, minha senhora! Já por aqui? Quanta magnanimidade existe no coração materno! E depois, que acha do seu pimpolho, heim!?...

- Oh, Sr. Doutor! Por palavras não poderei agradecer-lhe nunca! Isto foi um verdadeiro milagre!

- Foi realmente um milagre, diz bem; mas de Deus, e não meu, que não passei dum humilde agente da Providência, que afinal quis proporcionar-lhe esta alegria! Fiz tudo o que estava ao meu alcance; mas agora, que o julgo felizmente já livre de perigo, devo confessar-lhe que o trouxe para aqui, desesperado, por um descargo de consciência! Não poderia cruzar os braços; mas as possibilidades eram quase nulas! A criança, afinal, reagiu; e eu, como médico, sinto-me radiante! Tão feliz, quanto pode estar quem praticou o bem, mas sendo um dever profissional! Acredite, Sra. Inésia, que não há coisa melhor! Proporcionar um pouco de felicidade a um nosso semelhante, é o que há de mais sublime e consolador!

Inésia, verdadeiramente emocionada, com as lágrimas nos olhos, concordou, exclamando:

- Tem razão, Sr. Doutor! Nunca conheci ninguém assim! O senhor consegue, através das suas obras, tudo quanto quer! Eu vim ver o meu querido filhinho, é verdade! Mas outros motivos também me trouxeram aqui: pensei melhor na conversa que tivemos e, como sempre, vi que a razão estava do seu lado. Conte comigo! A minha ingratidão era uma sede de vingança, que agora já não se justifica: vejo as coisas doutro modo totalmente diferente, e com muito mais clareza! No que depender de mim, o homem nada tenha a recear! Fique tranquilo!

Almerinda olhava para a mãe, sem nada perceber! Custódio, por sua vez, sentia-se maravilhado: não perdera tudo, felizmente!

- Eu bem sabia que a senhora iria ponderar melhor, analisando a situação mais friamente! A melhor resposta à sua prova de magnanimidade é o restabelecimento, para muito breve, do seu menino! Deus nunca se esquece de pagar amor com Amor!...

Finalmente, e após grandes tempestades, uma atmosfera da melhor concórdia envolvia aquelas enervadas criaturas, cujo sossego de espírito todos ansiavam!

Tal situação era, sem dúvida, o melhor prenúncio para encarar os momentos de tensão que se adivinhavam, no tribunal, aonde seriam ditadas leis que talvez não agradassem a ninguém! Mas a elas, justas ou iníquas, ninguém pode fugir. E, se assim não fosse, então comer-nos-íamos todos uns aos outros….

Pelas nove horas da manhã, em ponto, caso pouco habitual, deu-se início ao célebre julgamento. No banco dos réus, cabisbaixo, olhado por todos como um

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alcoólico, um assassino, estava Jeremias. Vergado ao peso da tragédia moral que o coagia, não ousava levantar os olhos para ninguém. Eram os seus sonhos maus transformados em realidade... Lá estava a viúva, prestes a pedir-lhe contas do crime! De certo a cara dela metia medo! Ele imaginava-a, sem coragem de olhá-la de frente! Tantas vezes entrara, como amigo, na casa do defunto! Oxalá terminasse depressa aquele martírio, pois na prisão ao menos estaria longe de tanta gente curiosa, ruim e corrosiva como ácido sulfúrico…

Aberta a audiência, foi dada a palavra pelo Juiz, ao advogado de acusação: doutor Gilberto Alves que, simulando uma compostura sempre usada nos -ais, deu início a um arrazoado de palavras:

- Excelentíssimo Senhor Doutor Juiz, caros colegas, minhas senhoras e meus senhores: apelo aos mais nobres deveres da Justiça, em nome da minha constituinte, a senhora D. Maria Inésia Miranda, viúva e mãe de cinco órfãos, vitimas da malvadez dum assassino, que este seja punido com a pena que o tribunal ache conveniente ê um grande perigo deixar à solta indivíduos deste '".e. Além disso, viúva e órfãos estão numa situação degradante, sem ter quem lhes granjeie o pão de calda dia. Qualquer benevolência poderá ser uma colaboração com o crime. Sugerimos vinte e cinco anos de prisão para o delinquente.

Um murmúrio ecoava pela sala, cada vez mais forte. O Juiz teve de intervir:

- Silêncio, meus senhores! De contrário, mando evacuar a sala. Pouco a pouco, a ordem foi restabelecida, e a sessão pôde continuar, palavra ao réu, este levantou-se trémulo da cadeira, que o amparava e, sem saber o que dizer, ficou impávido, diante do Juiz. Este apenas se limitou a perguntar, indiferente e mecanicamente:

- O Sr. Jeremias de Sousa é acusado aqui neste tribunal de assassino.

É ou não verdade que matou o Sr. Júlio Miranda, de quem era amigo?

- É verdade, sim, senhor doutor Juiz. Fui eu!...

Como uma criança, não conseguiu evitar a torrente de lágrimas, totalmente vencido.

Sem pestanejar, qual máquina falante prosseguiu o Juiz:

- Confirma, então, ser um assassino, Sr. Jeremias de Sousa?

- Sim, senhor doutor Juiz!...

- Tem alguma coisa a alegar em sua defesa?...

- Não, senhor doutor Juiz!

- Então porque fez aquilo, se acaba de confessar que o senhor Miranda era seu amigo?

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Sim, era, realmente; e dos melhores. Talvez... o único! Uma simples discussão, sem pés nem cabeça! Nós estávamos... bêbados!...

Novo alarido da assistência fez com que o Juiz se impacientasse, exigindo compostura.

Foi chamada a depor a queixosa, logo que Jeremias retomou o seu lugar com grande alívio, tal a pressão a que estava submetido. Encarou a viúva, vítima da sua embriaguez, e não lhe pareceu ver rancor no seu rosto. Ela caminhou, tristemente calma, aguardando as perguntas que o Juiz teria para fazer. Todos os olhares dos presentes se haviam cravado nela; e agora o silêncio e a expectativa eram gerais! Inésia, porém, sentia-se inofensiva demais para guerras: tinha um filho, doente no hospital!...

O Juiz interrogou-a:

- A senhora dona Maria Inésia Miranda pretende, na verdade, que lhe façamos justiça? Tem a caso alguma sugestão a solicitar a este tribunal?

Ela concentrou-se, respirou fundo, entre calma e nervosa, lançou um olhar ao réu e, resoluta, não deitou fora a oportunidade:

-Excelentíssimo senhor doutor Juiz: quero informá-lo, e juro dizer a verdade: malgrado a minha viuvez, não guardo qualquer rancor ao homem que matou o meu marido. E, se de facto interessa a minha sugestão a este tribunal, peço para o réu o perdão. O meu, tomo a Deus por testemunha, já este infeliz o tem! Quanto à justiça humana, às suas complicadas leis, não poderei modificá-las...

As surpresas, com muita decepção à mistura estamparam-se de repente no rosto dos circunstantes, e dos próprios magistrados que presidiam àquela sessão! É que o ser humano normalmente critica mais a nobreza que a vilania. Apenas o doutor Gomes exultava, esperando ansiosamente poder intervir. Sebastião, Luzia e Isaura, que também assistiam ao julgamento, ficaram boquiabertos, extremamente sensibilizados com aquela generosidade. Quanto ao pobre Jeremias, esse parecia acordar, ainda tonto de um sonho mau, sem acreditar no que ouvia. A emoção quase o sufocava!

Sempre atento aos acontecimentos, o médico pediu autorização para lhe ministrar um calmante, que lhe foi de imediato concedida. Jeremias suava por todos os poros!...

Após mais algum alvoroço, que o juiz acalmou, foi dada a palavra ao advogado de defesa:

- Exmo., Sr., Dr. Juiz, caros colegas, digníssima assistência: após a intervenção altamente humanitária da queixosa, juntamos o nosso apelo ao dela, solicitando que, sem infringir as regras da Justiça, esta possa, desde já, reduzir ao mínimo a sua severidade. Talvez a intenção do meu constituinte não fosse, como realmente não era matar! Atesta-o o facto de ele não só não ter negado absolutamente nada, ficando

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quase petrificado, como afirma ser o malogrado Júlio Miranda o seu maior amigo. Por fim nenhum deles estava no seu juízo normal. Queremos haver aqui argumentos e atenuantes de sobra para minimizar a pena do Sr. Jeremias de Sousa. Não houve premeditação no seu acto, pelo que tudo aconteceu num momento de loucura, que acabou por transformar-se em tragédia, em morte inevitável.

Venâncio Gonçalves, o juiz daquela comarca, remexeu-se na cadeira, olhou à sua volta, como que para raciocinar, enquanto tomava maquinalmente, como os restantes membros da sessão judicial, alguns apontamentos. Os acontecimentos enveredavam por rumos um tanto inesperados…

Em seguida foram ouvidos, como testemunhas, os dois guardas, que haviam apartado os brigões, e o condutor da ambulância, conquanto os seus depoimentos pouco adiantassem, mesmo sendo unânimes: quando lhes foi dado intervir, quase não o fizeram como polícias, defensores da segurança pública, mas foram mais agentes oportunos para levar ao hospital dois feridos em estado grave. O motivo da querela continuava, portanto, incógnito….

Aquela farsa começava a impacientar os componentes do tribunal: quando o dinheiro não circula, comprando tudo, é escusado massacrar os miolos….

Finalmente foi convidado a depor o Doutor Custódio Gomes, que fez o sinal da cruz, antes de expor as razoes que o levaram a defender o réu. Encarou aos magistrados com todo o à-vontade; e esperou as suas perguntas. O juiz não se fez rogado, desejoso de ver o fim daquilo tudo, quanto antes:

- Sr. Dr, Custódio Gomes: como homem e como médico, certamente ir-nos-á elucidar. Queira, pois, dizer somente a verdade.

- Sr. Dr. Juiz e restante assembleia: sem mais preâmbulos ou etiquetas, para evitar a saturação, que começa a ser notória nos vossos semblantes, serei breve, dentro do possível; mas devo prevenir que o caso não é tão simples como possa parecer. Venho mesmo convicto de que o meu esclarecimento será suficiente para aclarar tudo: este homem não é assassino!...

O juiz encarou Gomes com certa frieza, vendo naquelas palavras um desafio que não tolerava a ninguém, e interrogou-o novamente:

- Em que baseia as suas afirmações, tão peremptórias!?

- Nas provas que trago comigo.

- Queira apresentá-las, então!

- Às suas ordens, Sr. Dr. Juiz; se desejar consultar a autópsia do cadáver…. Elas falam por si: não houve intenção de matar. Aliás, os ferimentos, em ambos, foram mais ou menos semelhantes; só que não conseguimos salvar os dois! O Sr. Júlio Miranda teve contra si o facto de não aceitar convenientemente a transfusão do sangue, logo que chegou ao hospital. São imponderáveis, aos quais a medicina por vezes não

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consegue resolver. Posso afirmar aqui, sem quaisquer deteriorações ou receios de ter errado: tão criminoso é o que morreu, como o que está vivo, aqui, aguardando o seu julgamento, que espero em Deus e na justiça humana, possa esta sair altamente dignificada. Em nome da medicina, da solidariedade e do cristianismo, peço ao tribunal o perdão para este homem: Tomo sobre mim a responsabilidade dos seus actos, de hoje em diante.

Houve-se de novo murmúrio de vozes impertinentes, que exasperou o juiz, já mal humorado, com a conversa daquele médico, que tentava intervir quase directamente em assuntos que só a ele, magistrado, diziam respeito, e veio a explosão:

- Senhores, silêncio! Quem ousar perturbar mais aqui este julgamento, convocarei a sua saída, através das autoridades!

Dirigiu-se em seguida a Gomes, tentando fazê-lo sentir que não estava no seu terreno:

- Caro doutor: o senhor pode ser uma barra, em medicina; mas, que saibamos, não cursou Direito. As suas alusões, em forma de desejos, ao trabalho desta casa, podem trazer-lhe graves consequências!

O médico, que nada tinha de tímido, encarou o juiz com agressividade, lembrando-o:

- Sr. Magistrado: não pus ainda em causa legalidade do seu trabalho. Mas, se envereda pelo campo das ameaças pessoais, então ficarei com dúvidas se estamos todos a representar uma farsa, ou tentando, em conjunto, solucionar o problema dum cidadão, que merece todo o respeito.

Mais uma vez a assistência se excitou, em leves sussurros entusiasmada com o acender da discussão; mas manteve a compostura, receando a carranca do exaltado juiz, cujo rosto ruborizava. Fazia um esforço enorme para se manter encerrado no invólucro da autoridade que ali estava revestido. No seu íntimo, porém, sentia ânsias de esbofetear aquele médico de meia tigela, que ali ousava enfrentá-lo. Custódio continuava sereno, disposto ao diálogo, sem receio ou azedumes, aguardando um possível ataque do seu interlocutor, que não se fez esperar, mas de forma indirecta e velada:

Tem razão, Sr. Doutor. Estamos aqui realmente para agir apenas em defesa do Bem público, em geral, e de cada cidadão, em particular. Segundo as suas afirmações peremptórias, o réu não é assassino. Clinicamente, através da autópsia que me apresentou, sem duvidas que esta prova ter-se tratado dum duelo, e não dum homicídio. A partir daqui, e tendo em conta ainda o estado de embriaguez de ambos os contendores, que nos sugere, para o que sobreviveu? Possivelmente um valioso galardão….

- De forma nenhuma, Sr. Juiz. Esse ficar-lhe-ia bem melhor a si, quando brinca com assuntos tão sérios! Um dos grandes males da Humanidade é esta raramente ser

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capaz de dar a mão à palmatória! O senhor fará cumprir a lei, estou certo. Mas, se me pediu uma sugestão, aqui a tem: para castigar o réu, vítima do mundo, e dos seus males sociais, que ninguém ousa corrigir, porque há muitos interesses da grande finança em jogo, comece por punir todos os taberneiros, que negoceiam e enriquecem, servindo-se desses desgraçados, cujo exemplo aqui temos presente. Enterrar os mortos é uma obra de misericórdia; mas salvar os náufragos, recuperar os desesperados, também o é. É muito simples e cómodo condenar os indefesos, e sorrir aos poderosos, mendigando os seus favores. Pois bem, Sr. Doutor Juiz: mande aquele homem para a prisão, e prepare-se para tomar atitudes idênticas quotidianamente, porque lhe garanto que muitos exemplos virão, no mesmo género. Não atacamos o mal pela raiz, caímos no ciclo vicioso, cujas origens estão claramente denunciadas nas tabernas e em tudo quanto lá se vende. Casa sem alicerces firmes, à menor rajada de vento, desaba sobre os seus moradores! Independentemente da sentença que este tribunal trace sobre o réu, eu farei tudo o que humanamente me seja possível, para ganhar mais um cidadão, cuja conduta tomo sob a minha responsabilidade, logo que termine de espiar a sua culpa. Tenho dito.

O juiz estava farto de saber que Gomes não se deixaria levar à parede: certo de que trouxera provas concretas em favor do acusado, aquele astuto médico poderia bem recorrer da sentença, se esta fosse falseada. Não seria aconselhável desafiar um homem convicto, que afinal viera ali disposto a defender uma causa, senão justa, pelo menos em vias de recuperação. Se a própria viúva estava do lado do assassino, não adiantava arranjar mais arengas! Albarda-se o burro à vontade do dono! Não seria fácil nem conveniente deturpar as leis!

O julgamento foi interrompido por algum tempo, para que o júri deliberasse, calma e serenamente, à porta fechada.

Cá fora, sem arredar pé, a assistência cochichava, ansiosa pelo desfecho da contenda.

Este, porém, não se fez esperar muito: reaberta a audiência, o juiz, após impor novamente o silêncio, principiou pausadamente a leitura da sentença:

- Levante-se o réu o inquirido obedeceu, postando-se, cabisbaixo, em frente do juiz, que o interpelou com a mais mecânica indiferença:

- O Sr. Jeremias de Sousa considera-se culpado e arrependido do abominável crime que cometeu, matando um cidadão?

- Sim, Sr. Dr. Juiz!...

- Muito bem. Acreditando no seu juramento, cumpre a este tribunal informar o réu das deliberações tomadas a seu respeito: sem dúvida que apareceram valiosas atenuantes, que acabaram por transformar um crime de homicídio aparente, em quase simples querela pessoal. Chegámos a estas conclusões, através de documentos médicos, apresentados pelo Sr. Dr. Custódio Gomes, que provam ter o réu ter agido sob a influência do álcool, não havendo premeditação no caso. Como a própria viúva da

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vítima declarou perdoar o réu, o tribunal teve em conta todos estes pormenores, reconhecendo não dever agir com mão pesada. Todavia não poderemos, como è óbvio, atropelar as leis. Pesados em pormenor todos os prós e contras, o tribunal deliberou um ano de prisão para o réu, esperando muito sinceramente que ele se restabeleça, podendo ainda vir a ser um homem de bem, útil à sociedade e a si próprio. Em caso de reincidência, a pena será bem mais pesada, não só para ele, mas para o seu acérrimo defensor, o médico que o assistiu, dado que assumiu a responsabilidade da conduta presente e futura do Sr. Jeremias de Sousa. O procedimento deste, durante a sua detenção, poderá atenuar ou agravar a pena. Veja se consegue libertar-se dessa embriaguez, Sr. Sousa! Olhe que o Dr. Gomes confia plenamente em si……

- Assim farei, Sr. Dr. Juiz! Já antes de vir para aqui, esmagado pelo remorso, fizera essa jura! Sinceramente, acho até o meu castigo demasiadamente leve. A perseguição da minha consciência, em especial porque se tratava dum grande amigo, talvez me force a outro crime, o do suicídio, que seria uma fuga, uma libertação, uma cobardia, se quiserem!

Ouvindo aquelas palavras, o juiz sentiu uma tontura dos pés à cabeça, e mais se convenceu de que o médico estaria dentro da razão. Todavia, cumprida a sua missão, nada mais teria a fazer, dando por encerrada a audiência….

Aquela gente foi evacuando a sala, logo que terminou a questão, que tantos comentários havia gerado. Cada um dava as suas opiniões, mas só era válida a do tribunal que, desta vez, não parecera descontentar os intervenientes na contenda, facto que nem sempre acontece. A intervenção do médico, autoritária e convicta, fora decisiva no desfecho dos acontecimentos.

O tribunal ficou vazio, e com certeza a estas horas o meritíssimo juiz e seus colegas de equipa, quase já nem se lembravam do sucedido: estariam refrescando as gargantas, calma e sossegadamente à mesa dum café. Lavrada mais uma sentença, agora só teriam que pensar na do dia seguinte. Aquela já havia passado à história….

À saída, contudo, Custódio abraçou efusivamente Jeremias, com palavras de conforto e ânimo:

- Graças a Deus, meu amigo! a coisa não correu nada mal! Um ano de cativeiro, para quem pensava em muitos mais, depressa passará!

- Muito obrigado, Sr. Doutor! Juro-lhe pelas cinzas dos meus antepassados, que mal conheci, que não lhe darei razoes para que se desiluda comigo! Esta lição serviu-me, e de que maneira! Logo que me reabilitem, garanto-lhe que aquela pobre viúva não passará mais fome, nem que eu me mate a trabalhar!

Custódio limitou-se a sorrir, certo de que aquele infeliz falava a verdade, e despediu-se:

- Adeus, querido amigo. O nosso pacto unir-nos-á para sempre, enquanto estivermos vivos; conservo alegremente tal convicção…

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E, extremamente comovidos, apertaram-se as mãos….

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CAPÍTULO VII

DIVERGÊNCIAS

Sempre que este ou aquele facto apaixona as camadas populacionais, os comentários seguem-se, com maior ou menor veemência, segundo o sentir de cada um. Forçosamente o que se passara no tribunal não seria excepção: Era assunto para discussão, e prometia durar….

As diversas atitudes dos vários intervenientes na contenda eram ajuizadas à boca cheia, por onde quer que se passasse: viúva, assassino, médico, mereciam honras de primeira página, em cada dia. Só um ano de cadeia para um criminoso! O perdão da queixosa! A defesa intransigente do réu, por um médico, que nada conhece de leis! Sinceramente, é cada uma!...

Satisfeito pelo êxito da sua generosa intervenção, Custódio voltou imediatamente às ocupações do hospital, aonde havia sempre muito que fazer, não lhe sobrando tempo algum para se preocupar com os que lhe roíam na casaca. As suas poucas horas vagas eram quase essencialmente dedicadas ao amigo Jeremias que, na prisão, estava tão conformado quanto resolvido a mudar de vida, a fazer-se homem de

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bem, apesar das dificuldades que o esperavam, para tentar recuperar a credulidade humana!

E Inésia? Viúva, embora, o perdão concedido ao infeliz ao algoz da sua casa, e o regresso do seu filho à partilha da miséria quotidiana, davam-lhe um novo alento, uma vontade louca de viver, de lutar com unhas e dentes pela subsistência dos rebentos que concebera….

Bem lhe importava a peçonha das línguas perversas! Afinal aquele médico, além de lhe devolver um filho são e salvo, de não lhe levar um tostão pelo trabalho, ensinara-a a ser generosa, a usar de clemência para com o próprio inimigo, se dum inimigo se tratava! Isso era mais que importante: era sublime, tremendamente difícil de se conseguir, em especial se se procede sem hipocrisias, com a franqueza no coração! Ela ficaria para o resto da vida submetida pela gratidão àquele homem, não à palavra, mas ao exemplo que ele espalhava ao redor dos que servia, através da medicina! Antes morrer, que decepcionar, no mínimo que fosse, o salvador de tantas vidas!

Todavia, por maior bem que façamos ao próximo, não conseguimos estabelecer o equilíbrio social, contentando a todos. Há sempre alguém à espreita, em busca da primeira oportunidade, para mostrar as unhas….

A ousadia de Gomes, em plena audiência, ao enfrentar um juiz de Direito, desde logo lhe custara a antipatia daquele magistrado, que de bom grado lhe poria as unhas! Não é impunemente que se desmerece uma autoridade legalmente constituída, no exercício das suas funções! Pode custar caro ao atrevido, mesmo a um médico bem conceituado, como Custódio Gomes.

Mas deixemos todos estes personagens entregues às suas cogitações. Saiamos à rua, e oiçamos o vozeirão dos populares. O tema de conversa quase não varia de tonalidade:

- Olá, Rodolfo! Como vão, lá por casa? Não te tenho enxergado por aí! Onde te meteste? Não me digas que andas a cortejar a viúva! Está quase tísica, aquele pobre diabo! Mas olha que a filha mais velha já se comia bem! Agora é que começa a desabrochar; mas já tem cá uns olhos… mas voltando à mãe: o raio da mulher devia mesmo estar a ver o marido pelas costas! Pudera! Porrada no lombo todos os dias! Vendo bem as coisas, o outro aliviou-a dum grande pesadelo! Eu acho que tem mais a lamentar a morte do Miranda são os seus inseparáveis amigos taberneiros!

O outro ouvia-o, um tanto contrafeito: coçou desmazeladamente a cabeça, bocejou, e resmungou, por entre dentes:

- Quero lá saber disso para nada! Tomara eu que as moscas não me toquem! Para mim está tudo bem, desde que não se lembrem de me chegar a roupa ao pêlo! Bem me ralo que se matem ou esfolem, por aí!

A apatia daquela criatura, o total desinteresse por tudo quanto o rodeasse, enervava um santo; o outro sentiu vontade de agredi-lo de qualquer maneira, dar-lhe

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um murro, uma bofetada. Engoliu em seco, mas não se deu por vencido, tentando espevitar mais a curiosidade daquele casmurro:

- Não sejas parvo, homem! Para que vives tu, afinal? Não passas dum poço sem fundo, um não te rales! Pareces um terreno sem adubo!

Rodolfo sentiu os fígados azedos: encarou com agressividade o seu interlocutor, dispondo-se a dar-lhe uma lição apropriada:

- Já que insistes em chatear-me a paciência, Simão, antes que te mande definitivamente para o diabo que te carregue, escuta: é preferível ser terreno sem adubo, que tê-lo a mais para envenenar a vida alheia! Se pões essa grande actividade ao serviço da bisbilhotice, ultrapassas-me, de longe: és venenoso e prejudicial ao meio ambiente: as falas que lanças cá para fora são micróbios mais corrosivos que o ácido sulfúrico! Eu ao menos sou inofensivo: não falo mal dos outros, nem manifesto publicamente os meus desejos ilícitos! Não querias que eu te desse trela, que falasse? Ouviste algumas verdades amargas, certamente indispensáveis à tua ponderação. Para a próxima deixas-me em paz, na minha pacatez. E agora vai-te, mas vai convencido de que não sou fácil de levar à parede, mas principalmente não pertenço à tua classe. Aqui tens o que ganhaste com a tua agressão! E por hoje, já chega!

- Sempre me saíste uma grande cavalgadura imunda! Bem me apetecia partir-te essas fuças! Mas não quero sujar-me….

- Habilita-te, se podes, que talvez reproves no exame…

Aquela agressão, até então só de palavras, tomava proporções capazes de a conduzir a vias de facto: hesitantes e furiosos, os dois contendores olhavam-se em silêncio, possivelmente antevendo as consequências da imprudência que iriam cometer. A respiração de ambos tornara-se mais intensa, mas nenhum ousava lançar o primeiro ataque. Os segundos pareciam-lhes mutuamente intermináveis!

Foi quando apareceu um terceiro personagem, todo musculoso e desempenado que, vendo os dois em pé de guerra, levou o caso imediatamente para a paródia:

- Olá, camaradas! Cheguei mesmo a tempo, segundo creio! Vocês certamente esperam um árbitro. Serei imparcial, acreditem! Podem começar o desafio! Se quiserem, eu procedo à escolha de campo, para que o possível vencido não arranje depois desculpas….

Compreendendo que estavam a ser alvo de galhofa, Simão e Rodolfo abrandaram um pouco a fúria; no fundo, até desejavam aquela aparição; era uma saída airosa para ambos, que receavam medir forças, por uma coisa de nada! E, embora não afastando totalmente de si o mau humor, a temperatura baixou:

- É que este pedaço de asno irrita um santo, e bem precisava uns açoites! Mas burro velho não aprende lição!

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Fora Simão quem assim falara. Tentava assim justificar o seu estado de irritação, enquanto o outro se mantinha calado. Não tinha que dar satisfações a ninguém, o pacato Rodolfo! Fez inclusivamente menção de retirar-se; mas o recém-chegado, com muita calma, sorriu-lhe:

- Não tenhas pressa, homem! A falar é que as pessoas se entendem! Vocês não se aperceberam da minha presença, mas eu apareci por acaso. Assisti à discussão, aliás, pouco duradoura, desde o princípio; e, se me permitem, achei por bem tomar parte nela, e dar a minha opinião. Concordam?

Como nenhum respondesse, Hernâni achou que quem cala, consente, e não precisou de mais ordens para continuar:

- Pois qualquer uma das vossas atitudes está longe de ser digna de um homem de bem: o desinteresse por tudo significa um princípio de irresponsabilidade; mas agredir os ausentes que, por isso mesmo, não se podem defender, é uma torpe vilania. Não troces de desgraça alheia, que pena igual te pode vir pela porta. E depois…. Claro que serão os outros a rir! Não, não façam essas caras de enjoo. Eu não sou melhor nem pior que os outros, ou que vocês próprios. Tenho as minhas ideias, talvez um pouco mais solidárias; mas acho que devemos fazer o Bem, sempre que nos surja uma oportunidade! Tal atitude dar-nos-á muito mais alegria e vontade de viver! Vejam só a conduta do Dr. Gomes! Aquele homem veio do nada, trabalhou furiosamente para chegar ao que hoje é, e todos o consideram um modelo de generosidade, um santo homem! Espalha o amor e o bem à sua volta, cura o que é humanamente possível, e nunca esfola os miseráveis que a ele recorrem! Porque não lhe seguem o exemplo?!...

Simão encarou Hernâni com olhos incrédulos de escárnio:

- Essa é boa! Sempre ouvi para aí dizer que os santos fazem milagres! Esse médico anda sempre metido nas igrejas, andou às voltas com o Miranda, mas não conseguiu evitar que ele fosse fazer tijolo. Que grande santarrão, não haja dúvida!

E deu uma estrondosa gargalhada, ufano duma balofa e vitoriosa convicção.

Rodolfo mantinha-se silencioso, embora se apossasse dele uma maior compostura. As palavras do homem que chegara mesmo na altura própria de evitar uma cena de violência, martelavam-lhe no cérebro, como a chamá-lo a uma realidade, aonde ainda não entrara. O desdém de Simão metia-lhe asco. Aquele verme só estava bem a espalhar peçonha mesmo nos homens mais íntegros!

Hernâni, porém, não se perturbou com os desaforos de Simão; dar-lhe lições? Seria inútil, na altura. Lançou-lhe um olhar de piedade, e respondeu: - Quem vem ao mundo só para destruir, mesmo com a própria língua, bem melhor fora a mãe ter abortado, mesmo involuntariamente, quando o gerou. Terás tu capacidade para julgar os actos daquele médico, daquele homem de virtudes, fora do comum? Mesmo com graças especiais, os santos também morreram! Ninguém cá fica para semente! Se és cristão, saberás o significado que isso tem!?

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- Pois se me baptizaram! Dizem eles que todos os baptizados são cristãos! Quando me dá pela cabeça, vou à missa… os meus pais assim me ensinaram….

- Frequentaste, portanto, a catequese, em criança….

Simão começou a impacientar-se com a impertinência daquele interrogatório; contudo, ainda arranjou estômago para responder:

- Pois evidentemente! Para fazer a primeira Comunhão, crismar-me, casar…. Pelo menos nessa altura…. Era obrigação para toda a gente; senão….

- Senão…. Nem lá aparecias! É o que esse “senão” dá a entender; ou enganei-me!?...

Rodolfo, sem ousar abrir a boca, no entanto seguia entusiasticamente aquele diálogo. Os seus olhos procuravam um e outro, sequiosos pelo desfecho daquele jogo de palavras, por vezes bastante agressivas. Era quase certo que os argumentos de defesa em breve faltariam a Simão, concluía aquele que, após a chegada de Hernâni, não tomara parte na questão.

Vendo que a sorte das armas começava a inclinar-se para Hernâni, o outro azedou, e respondeu, com uma pergunta:

- Ouve lá uma coisa: vamos agora voltar às lições de catequese?! Não achas que já sou muito grande?

- Catequese? E porque não!? Nem só as crianças precisam dela! Quantos adultos andarão por aí carecidos de bons conselhos!

- Queres tu insinuar que eu sou um deles, não! Olha para isto!

Hernâni dava mostras de grande satisfação, e não pôde evitar um sorrisinho sarcástico:

- Parece que não és burro de todo! Apenas eu não quis insinuar, mas afirmar; é preciso não confundir as palavras, meu caro! Aprender até morrer, diz o ditado popular. E eu atrevo-me a acrescentar: aprender, e pôr em prática; não ser como os papagaios, que só tagarelam….

Aquele tom cómico azedou ainda mais os fígados de Simão, que tomou por um insulto as palavras do seu antagonista:

- Tens alguma coisa a ver com a minha vida? Para justificar esse médico de meia tigela, atinges-me com agressões pessoais? Grande heroísmo, não haja dúvida! Defender com unhas e dentes um faquista, um assassino miserável, que tirou a vida ao seu melhor amigo, deixando na miséria uma mulher e cinco filhos! Um ano de cadeia! Certamente! Quando vier cá para fora, matará outros! E aquela parva, ainda a pedir o perdão para o carrasco do marido! Essa é que nem lembrava ao diabo mais velho! Grande cadela! Estava mesmo inquieta para se ver livre dele, não se pode pensar outra coisa! Uma adúltera, e nada mais!

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A estas palavras Hernâni perdeu o tom cómico, transformando-se na pior das feras! Atirou-se ao outro, prostrando-o, sem grande dificuldade:

- Canalha! Eu desfaço-te aqui, verme peçonhento! Répteis como tu estão a mais, no mundo! Não abrirás mais a boca!

Rodolfo deixou imediatamente a sua apatia, e interveio, em favor do outro, que jazia por terra, indefeso:

- Deixa-o lá, Hernâni! Ainda estragas a tua vida, por causa dum imbecil que não o merece.

As palavras de Rodolfo devolveram a calma e prudência à explosão momentânea em que caíra Hernâni, cujo carácter, recto e justo, se revoltara contra as alusões infames daquele cobarde que, vencido a seus pés, nem reagia. Deixou-o em paz, com ar de repugnância desprezível:

- Vai-te, excremento da terra! Ia agora eu sujar-me em ti, porco miserável! Aconselho-te apenas a teres mais moderação na língua, pois para a próxima poderei já não responder pelos meus actos! Oxalá os adultérios não te passem lá por casa, mesmo contigo ainda vivo e são!

O outro, logo que se viu liberto daquelas tenazes, levantou-se, sem pensar duas vezes. Em vao procurara a navalha, momentos antes! O adversário não lhe dera tempo, inibindo-lhe quaisquer tentativas de movimentos. A sua expressão era terrível: vomitava labaredas, numa ânsia ridícula e incontrolada de vingança, ante aquela humilhação:

- Não te ficarás a rir por muito tempo, grande pulha! Sim! A minha vingança será mais cedo do que pensas! Declaraste-me guerra, tê-la-ás! Não olharei a meios para te liquidar, lavando a minha honra do opróbrio! Grande catequizador me saíste, a resolver os problemas com os que não têm as tuas ideologias nobres, meu amigo “cristão”! O teu exemplo vai levar-te bem longe!

No auge da revolta, com a impossibilidade momentânea de levar por diante as suas intenções, Simão acabava de ferir gravemente o seu antagonista que, em vez de reagir, em nova explosão, engoliu em seco; após alguns momentos de silenciosa apreensão, exclamou:

- Tens razão, amigo! Desculpa. Todos nós erramos! Eu não sou uma excepção! Simplesmente não tolero que insultem pessoas ausentes, por isso mesmo, indefesas, na minha presença! Levaste longe demais a tua perfídia, e eu fui aos ares! Criticaste aquela viúva por perdoar ao assassino do marido! Se ela pedisse para esse desgraçado a condenação, adiantava alguma coisa!? O defunto ressuscitaria, por acaso? Toda a gente ficou de boca aberta, porque é bem mais fácil e cómodo ao ser humano castigar que premiar! Aquela mulher, digo-to eu, deu-nos a todos um enorme exemplo de perdão e solidariedade humana! Sinceramente, não sei aonde arranjou ela forças para tanto! Eu acredito piamente que a intenção desse infeliz não fosse matar o amigo! Agrediram-se, e a medicina provou que o culpado foi o álcool, e mais ainda os que o

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vendem em excesso! Males da Sociedade, que ninguém ousa corrigir, porque os fins lucrativos estão sempre acima de tudo! A pureza dos costumes de há muito foi abolida do nosso quotidiano. Infelizmente a tendência geral é para censurar uma boa acção! O próprio Cristo, na hora da crucificação, perdoou a um dos ladroes! Ousarás tu criticar também Aquele que veio propositadamente ao mundo morrer pela tua…. Pela nossa regeneração? Se acreditas no que te ensinaram, isto não é ficção!

Rodolfo emocionara-se bastante com o que presenciara, e perguntava a si próprio porque andaria tão divorciado do mundo, dos seus problemas, se afinal fazia parte deles, como ser vivo que era. O optimismo e actividade de Hernâni influenciavam-no, e bem desejava tomar parte, qual célula renovadora, no todo em que estava inserido. Mas não seria dum momento para o outro que as coisas mudariam radicalmente!

No fundo aqueles três indivíduos, cada qual regido pelas suas ideias, não serão mais nem menos que uma sociedade, fértil em desigualdades. Virtudes e defeitos. O trigo e o joio a crescer simultaneamente, por ordem do seu Criador, que prometeu separá-los, na altura própria…

Simão, ainda que de mau humor, estendeu a mão a Hernâni, significando que o facto deste lhe ter apresentado imediatamente as desculpas, estaria esquecida a ofensa. Na prática, era uma saída airosa para a sua incapacidade de resposta à agressão de que fora alvo…

O sol já descera a rodos; portanto era conveniente pensar no trabalho, deixando para as horas vagas a conversa fiada.

Naquele local, esta não fora nada amena, convenhamos! E aquelas criaturas de Deus seguiram o seu caminho, porque o relógio de ponto è um árbitro alcoviteiro, que não se compadece com demoras!

Fora precisamente de manhã, quando a maioria da laboriosa população se dirige aos locais de trabalho, que se travara aquela discussão. Os intervenientes nela viam-se agora forçados a mexer os pés, para não terem algum desconto salarial descabido no fim do mês! A vida não está para brincadeiras de mau gosto, não! Ao menor descuido, morre o pobre do artista, e até nos funerais se gasta já um dinheirão! Já nem morrer se pode, santo Deus nos acuda! Isto é uma alegria!

E pensar que a humanidade esbanja quantias descomunais no fabrico da autodestruição! Enquanto milhares morrem de frio e fome, números idênticos desaparecem, vítimas dos cataclismos da Natureza, ainda se gastam milhares de cérebros engenhosos, num desafio cruel de invenções mortíferas, amontoando bombas, sucessivamente mais arrasadoras! Se Deus criou o homem para viver em paz e progresso, porque há-de ele degenerar a sua existência? Grande exemplo poderíamos nós ir colher aos irracionais: estes, dentro da mesma espécie, defendem-se mutuamente, se atacados por outros, mesmo de maior corpulência. Nós, os homens, que Deus criou à Sua imagem e semelhança, com muito mais responsabilidade, por

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distinguirmos o bem do mal, destruímo-nos, implacavelmente, vítimas da maior e mais desvairada ambição!...

CAPÍTULO VIII

ANGÚSTIA, QUASE REALIDADE

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Os dissabores que constantemente dilaceram os mortais, conquanto estes tentem defender-se, dentro do possível, em geral, não se compadecem, ceifando vidas, semeando luto e lágrimas….

Lourenço Costa, hospitalizado há já algum tempo, sob os cuidados intensivos do doutor Gomes, não dava mostras de grandes melhoras! Aquele corpo de camponês esforçado, que lutara numa longa vida com as intempéries, não passava agora dum inválido, cada vez com menos esperanças de sobrevivência, vítima duma enfermidade, que tudo levava a crer fosse maligna….

O médico hesitava em tentar uma operação, sem dúvida bastante arriscada, sem o consentimento da família: era forçoso não cruzar os braços e, simultaneamente, pôr a salvo quaisquer responsabilidades. As últimas radiografias, tiradas em diversas posições, desgraçadamente não deixavam dúvidas: cancro no cérebro, alojado na região da nuca, no lado esquerdo. Poucas esperanças restavam à ciência médica para arrancar mais uma vítima às garras do seu algoz implacável. Mas lutariam até ao fim, corajosamente….

Informados por Noémia do que se passava, os filhos acorreram imediatamente ao hospital, e quase lhes gela o sangue, quando vêem o pai, como uma criança, carente de protecção, lavado em lágrimas:

- Meus queridos filhos! E assim morro, para aqui, sem vos ver com um pé-de-meia; é a minha sorte! Tanto que trabalhei, que tirei à minha boca, para lhes assegurar um futuro, e agora, à beira da minha maior felicidade, é que vos deixa este pobre corpo já não vale nada! Ao menos Deus ainda me concedeu a graça de vos ver e abraçar a todos, antes de partir!...

Um coro de soluços incontidos fazia uníssono com as palavras mais angustiosas que conformadas do enfermo que, mais do que nunca, sentia necessidade de se agarrar com todas as forças à vida, para vibrar com o triunfo dos seus rebentos.

Lá num canto, desesperada, Noémia não conseguia manter-se, num choro convulsivo, de quem já espera há muito o golpe fatal! Dir-se-ia um exército irremediavelmente derrotado, ante a agonia do seu general!...

Embora de há muito habituado a estas emoções, o médico, que antes do mais era homem e cristão convicto, sentia um terrível nó na garganta, ante a sua incapacidade e impotência na resolução daquele caso. Todavia não desanimou: embora sem conseguir certamente uma cura definitiva, era urgente prolongar aquela vida até onde fosse humanamente possível, mesmo estando ela por um fio. Tentou lançar o ânimo à sua volta, alegando ao doente que nada estava perdido; e, após um calmante bastante forte, o padecente acabou por adormecer.

O médico reuniu-se de imediato com a família, e tomou a palavra:

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- Minha senhora: agora, que aqui está com os seus filhos, é forçoso que, juntos, tomemos uma decisão urgente: eu e os meus colegas, sabedores finalmente da enfermidade do Sr. Lourenço, que infelizmente não é para optimismos, achávamos bem tentar uma operação, à partida, bastante melindrosa. No entanto precisamos da concordância total dos familiares. Quanto ao doente, e como não vê melhoras, facilmente o convenceremos de que a operação é absolutamente necessária. A urgência dos factos não se compadece com demoras. A realidade é penosa, mas estamos aqui para enfrentá-la, lutando até onde nos for possível.

Mãe e filhos entreolharam-se, vencidos pela dor.! Lastimar-se pouco adiantaria! Deixar morrer aquele homem à míngua, nunca!

Noémia ainda tentou transigir, quase à toa:

- Mas…. Sr. Doutor! Não temos dinheiro! Ai, o meu rico homem, que me morre, sem voltar a casa! Eu não aguento mais isto!

E caiu, desamparada, nos braços de Alexandre, cujas forças também não eram muitas, após o choque da chegada. Filipe e Isaura nem falavam!...

Após alguma hesitação, ao longo da qual aqueles cérebros se debatiam em angustiosas convulsões, resolveu-se de comum acordo que a operação se fizesse quanto antes, e seria o que Deus quisesse! Ao menos teriam cumprido integralmente o seu dever!

O médico, se tal aconselhava, lá teria as suas razoes….

Uma intervenção cirúrgica no género raramente se levava a cabo naquele hospital. No entanto o médico não hesitou, conquanto há bem pouco tempo exercesse as suas funções. Obtivera o diploma com alta distinção, e já se distinguira em outras intervenções bastante difíceis, e tinha uma secreta esperança que Deus o ajudaria naquela, e talvez as coisas não estivessem tão feias como tudo indicava. Sendo, embora, extremamente realista, tudo faria para aliviar o sofrimento e prolongar o mais possível a vida àquele pobre camponês, que lhe merecia o maior respeito e consideração.

Um optimismo invulgar apoderou-se do médico, à medida que se aproximava a hora de intervir. Depositava toda a confiança no corpo clínico que o ajudaria naquela tarefa.

Pela manhã do dia aprazado para a operação, antes de se apresentar no hospital, assistiu a uma missa, tomando parte na Sagrada Comunhão. Assim estaria mais seguro, pondo sempre a vontade do Criador acima da das criaturas. Se não tivesse êxito, é porque não estaria nos desígnios de Deus conservar por mais tempo aquela vida! Como médico, ele não passaria dum simples instrumento ao serviço da Providência, para acudir ao seu semelhante…

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Não foi difícil preparar o paciente para a operação: no estado em que se encontrava, só tinha um fim em vista: melhorar, sem olhar a meios! Estava farto e moído daquela cama!...

Cerca das nove horas da manhã tudo estava preparado para a cirurgia; e, cá fora, a família Costa e alguns amigos olhavam constantemente para o relógio: aqueles ponteiros não andavam! A expectativa e nervosismo quase dificultavam a respiração!

Na sala operatória ninguém tinha mãos a medir, sob as ordens do doutor Gomes, que contagiava com o seu exemplo e desembaraço os seus cooperantes. O trabalho era moroso, mas foi com enorme emoção que o médico finalmente conseguiu extrair um enorme tumor, ainda palpitante de vida, que se instalara no lado esquerdo da nuca de Lourenço. Ali estava, diante de muitos olhares curiosos, a amarga e confrangedora realidade que as radiografias haviam antecipadamente anunciado! Aquele carnívoro parasita do homem foi de imediato minuciosamente envolvido e enviado a outro hospital, para posteriores exames. Quiçá, através deles, se pudesse caminhar, embora muito lentamente, para descobertas proveitosas a bem da Humanidade!? Seria certamente essa a intenção daquele médico…

E Lourenço? Ali estava, num sono prolongado, sem querer dar sinais de vida! A sua pulsação enfraquecia assustadoramente, e a calma do operador, que já suava por todos os poros, começou a ser posta à prova: tinha uma vida em perigo entre mãos, que tentava salvar a todo o custo! A operação, em si, podia considerar-se um êxito total. Todavia, agora liberto do seu algoz, o paciente inspirava grandes cuidados! Será que realmente Deus resolvera mesmo chamá-lo?! Se assim fosse, nada mais haveria a fazer.

Mas Gomes era persistente, e não arredava pé! O combate não se decidia; a medicina, neste momento, conseguia uma ligeira vantagem: Lourenço respirava um pouco melhor, e a pulsação era já mais ritmada!

Os minutos pesavam como chumbo, fora e dentro da sala de operações! O doente, após extraído o tumor, fora rigorosamente inspeccionado, e limpo de raízes localizadas à volta da nuca. Tudo se tentou, para reduzir ao mínimo os malefícios de tão maligna enfermidade!

Após mais algum tempo, a esperança reaparecia, e já se acreditava que o pobre velho ainda não iria desta….

Quando o viu em franca recuperação, a despertar dum prolongado letargo, o médico veio cá fora, e foi recebido ansiosamente:

- Então, Sr. Doutor? O meu rico homem? Ainda vive? Que demora terrível! Certamente o senhor não nos quer dar o golpe final! Oh, meu Deus! Estarei viúva!?...

Aquele médico estava deveras emocionado, não só pelos transes que passara, como ainda mais por ver a ansiedade com que dele esperavam um milagre. Procurou responder o melhor possível:

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- Não, minha senhora! Viúva, ainda não! Julgo que Deus ainda lhe vai retardar esse desgosto, por mais algum tempo. Salvo qualquer imprevisto de última hora, dentro do que estava ao nosso alcance, tudo se fez. O seu marido, após grande luta com a morte, começa a despertar da anestesia. Queira Deus as coisas continuem a despertar favoravelmente! Todavia, por muito que nos custe, devemos estar também preparados para o pior, o inevitável, tarde ou cedo! O seu marido, que nunca virou a cara à luta, que arrostou com sóis e ventos envenenou-se, ao longo da vida, com o fumo, não? Tem os pulmões numa verdadeira lástima!

- Sim, Sr. Doutor! Ele fumava muito, e tabaco rústico!...

- Pois é! Matou-se, coitado, como tantos outros, que não ligam meia às nossas recomendações. Depois vêm as consequências, como está a ver! Esperemos que Deus nos ajude e, dentro de mais algum tempo, o seu marido possa regressar a casa!

Uma sensação momentânea de alívio apoderou-se daquelas criaturas, devoradas por uma ansiedade angustiosa. A gratidão àquele benfeitor da Humanidade, que afinal ali cumpria o seu dever, era algo de impressionante, tão forte, que se transformava em lágrimas silenciosas e ininterruptas.

Aos dois filhos de Lourenço, Gomes parecia quase um ente prefeito, cheio de virtudes, a quem deveriam imitar agora, que estavam no princípio da vida….

Contudo o médico, familiarizado com aquela enfermidade, embora tudo fizesse para lhe anular os efeitos, sabia que, tarde ou cedo, tudo se repetiria. Apenas haviam sido prestados os primeiros socorros. Restava aguardar a evolução dos acontecimentos….

Por precaução, Lourenço não recebeu visitas naquele dia.

Felizmente que a casa de Sebastião era bastante espaçosa, e pôde albergar toda a família do doente, sem que esta pagasse a hospedagem.

A refeição foi triste, mas reparadora. Não faltaram palavras de ânimo, tentativas de tornar menos negro e fúnebre aquele ambiente de tensão:

- O seu marido está muito bem entregue! Aquele médico é um fenómeno, um génio, que não há outro. Quase consegue milagres! Há-de viver muito, ainda, o Sr. Lourenço! Eu agora tenho de ir até à esquadra. Mas fiquem à vontade….

Luzia, como quase sempre, perguntou-lhe, sem grande convicção:

- Demoras-te muito? Tens alguma coisa especial entre mãos?...

Sebastião encarou a mulher, entre cómico e duvidoso:

- Demorar-me!?... Não sei! Sinceramente…. Acho que não. Mas, se encontrar por aí uns olhinhos bonitos…. Bem vês: não é por mal… uma pequena, sozinha por aí de noite! Junto dum polícia amigo sempre estará mais segura, não!?...

A mulher olhou-o com desdém, já habituada aos disparates:

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- Um polícia…. Com cabelos brancos…. Quase careca…. E pensas que para aí há mais tolas, como eu, dispostas a aturar-te!? Já vais passando à história, meu velho!

Aquele ambiente fúnebre desanuviara-se um tanto. Sebastião conservava, apesar de já não ser jovem, bem vivo um espírito folgazão, pouco habitual numa farda que impõe respeito. E respondeu:

- Vai-te fiando na velhice, e depois não chores! Bom: adeus, que tenho mais que fazer! E sabes que mais? Quando eu chegar, cá estou. Como levo a chave, não há problema. Sou um escravo do dever!

Ia a sair, quando lhe aparece Rui, querendo saber do Sr. Lourenço. No fundo, talvez pretendesse mais qualquer coisa! Mas Sebastião arrastou-o consigo:

- Agora não é a melhor ocasião para cortejar a princesa! O pai deve durar pouco, coitado!...

O jovem corou levemente, mas perguntou, muito preocupado:

- Como? A operação não correu bem!? O médico é o melhor que aqui temos, apesar de tão novo! Bolas….

- Correu o melhor possível! Só que ninguém faz milagres! Extraiu um grande tumor da nuca do enfermo, que já enviou para posteriores averiguações. Um cancro, e já bastante desenvolvido! Pelo menos conseguiu mais uns dias, talvez meses de vida de mais uma vítima deste maldito cigarro! A família está inconsolável, embora iludida numa réstia de esperança! Nunca mais descobrem um medicamento eficaz contra essa moléstia! O médico culpa em primeiro lugar o tabaco; mas, se o cancro se instalou no cérebro…. Talvez dum grande trambolhão que ele tenha dado…. Bom: não é a minha profissão! Quem mete o bedelho onde não é chamado, dá sempre barraca! Mas já estás informado do estado de saúde do teu pretenso sogro! É a vida….

- Uma vida que, no fundo, não interessa a ninguém! Quem nunca nascesse! E aqui andamos nós, às vezes usando o cassetete, a pistola…. Bolas, Sebastião! Qualquer dia mudo de ofício!.. Pensando bem, este mundo não vale a ponta dum corno!

- O quê? Estás agora armado em maricas? Deixa-te lá de sonhos românticos! Um bom sopapo nas fuças, de vez em quando, até é bom! Ajuda mesmo a criar mais juízo! E alguém tem de os dar! Eu prefiro isso do que recebê-los, bolas! Apanhá-los, é muito pior, que dói um bocado!

- Ora essa! Quem vai à guerra…. Podes levar o teu quinhão! Há para aí cada besta!

- Pois sim! Mas, com um bom cassetete nas unhas, sempre é meio caminho andado! Em alguma coisa temos de ocupar o tempo, não!?

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- Quase toda a gente nos olha com desconfiança! Somos uns papões! Crê que muitas vezes me arrependo do passo que dei, jurando manter a ordem, fazer aplicar a justiça….

- E servir de cão de guarda aos senhores que nada fazem, a não ser discursar, dizer asneiras e mentiras para aí! Para mim, Rui, é o pior que tenho feito. Sempre que posso, esquivo-me! Eles enchem a bolsa, e eu exponho a pele! Vão lá para o raio que os parta! Para defender a minha casa, uma criança, uma mulher, um inválido qualquer, racho as trombas ao prevaricador, sem o menor problema. Mas lá arriscar-me por um parasita de casa cheia, que nunca trabalhou para isso!? Ah, não! Esses, quanto mais depressa forem para o inferno, mais fartura haverá para os que cá ficarem! Nem para se defenderem têm préstimo!? Pois que morram, com a sua cobardia bem atrelada!

Sebastião ficara sério, repentinamente, enquanto o colega o ouvia, muito atento. No seu íntimo, dava-lhe razão; e assim mais se convencia de que fracassara, errando a profissão….

Com esta conversa toda, e enfrentando uma noite bastante gelada, chegaram à esquadra.

A visita efectivamente foi de rotina, e nada justificaria a permanência de Sebastião no seu local de trabalho. Saíram, despediram-se, e cada um seguiu para sua casa. Já não era muito cedo, e o repouso bem apetecia.

Contudo Rui sentia-se um pouco desiludido; talvez planeasse um serão mais agradável….

Aproximando-se da sua residência, o hospitaleiro guarda viu que ainda ninguém se deitara, e quase se arrependeu de não ter levado consigo o colega de serviço. Mas ocasiões não faltariam! Pensar simultaneamente num enxoval e numa mortalha não seria muito conveniente! Nada de precipitações ou atropelos….

Entrou em casa, aonde se respirava um pesado silêncio, e deu logo as suas ordens:

- Não nos faltam camas! E esta gente precisa de descansar! Estão para aqui todos a dormir em pé! Não ouço ninguém abrir a boca! Vamos à deita, que amanhã há muito que dar ao dedo! Que cerimónias são essas?! Não era preciso esperarem por mim! Sou realmente um tagarela; mas respeitarei o vosso sono, podem ter a certeza! Como aperitivo ao descanso, vou contar-nos uma anedota, para não terem sobressaltos durante a noite. Num prédio de vários andares, o inquilino do terceiro, quando se deitava, ao descalçar-se, fazia um enorme barulho com os sapatos no sobrado. Um dia o vizinho do andar inferior pediu-lhe para ter mais cuidado, que os acordava sempre com aqueles trambolhões. O outro, pedindo-lhe muitas desculpas, com toda a delicadeza, prometeu não os incomodar mais, dali em diante. Quando no outro dia se deitou, por esquecimento, lá vem o mesmo trambolhão! Só então se lembra da sua promessa e, com todas as cautelas, pousa o outro sapato no chão, sem o menor ruído,

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e deita-se, tranquilamente. Passada mais duma hora, batem-lhe à porta, com certa brusquidão: era o vizinho que, quando o vê diante de si, lhe diz, mal-humorado:

- Oh, senhor; por amor de Deus, que demora! Descalce o outro sapato, que nós queremos dormir descansados!...

Todos riram de vontade, mesmo sem esquecer o doente que tinham no hospital. Aquele Sebastião era insubstituível, realmente! Se não nascesse, teriam de o inventar!

Alguns minutos depois, tudo era silêncio naquele lar acolhedor e hospitaleiro! Isaura e Noémia, partilhando a mesma cama, num quarto, Alexandre e Filipe, noutro, recuperavam alento, para o que os aguardava no dia seguinte….

Entretanto o Dr. Gomes e todo o seu corpo clínico estavam radiantes com o êxito do seu trabalho, sem no entanto dormir à sombra da bananeira: o doente continuou rodeado de intensos cuidados, sob vigilância permanente; embora o diagnóstico continuasse reservado, tudo fazia crer que a evolução fosse favorável. Sem optimismos exagerados, não será totalmente descabido acreditar que aquele bom velhote ainda terá mais algum tempo de vida. Oxalá Deus o permita!...

No dia seguinte já Lourenço podia receber visitas, não se aconselhando muito barulho, e em especial, nada de emoções. Quanto ao regresso a casa, de momento qualquer previsão seria prematura…

Os seus familiares, ao vê-lo, com aquela ansiedade de quem recuperara algo que parecia irremediavelmente perdido, achavam-no muito bom, com excelente aparência. O próprio Sebastião partilhava da mesma opinião. Ninguém, todavia, imaginava os suores frios que, no dia anterior, haviam banhado aquele médico, na tenaz luta que travara com a morte, cuja primeira batalha vencera; mas sabia perfeitamente que nada conseguira em definitivo.

O doente ainda não estava em condições de conversar, embora conhecendo o caloroso ambiente que o rodeava. O bom senso foi geral, e não houve muita demora junto do convalescente, cuja visão dos familiares ali todos juntos muito bem lhe fez.

A vida quotidiana, porém, mesmo para aqueles que estavam ligados por laços de sangue a Lourenço, teria de continuar…

Aliviados dum grande peso, e após demorada conversa com o médico, na presença de Sebastião, que já quase se integrara na família, decidiu-se que os dois estudantes voltariam à sua vida, preparando o caminho do futuro, e Noémia também regressaria a casa. Isaura continuaria a beneficiar da hospitalidade dos novos amigos e canalizar o intercâmbio entre o pai e a restante família, constantemente em ânsias….

O médico, por sua vez, também tinha muitos mais doentes para tratar, e poucas horas, ao longo do dia, lhe restavam para repousar. Além da criança, que recentemente arrancara às garras da morte, propusera-se transformar um alcoólico, que

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a justiça não conseguira chamar assassino. Num homem de bem. Embora espiando uma pena muito reduzida, na prisão, era de crer que ao sair fosse um homem regenerado.

Atitudes frequentes como esta, levadas a cabo por um médico, granjeavam-lhe uma onda enorme de gratidão e simpatia, provenientes das classes mais pobres. Mas, se nem Cristo, quando veio à terra, agradou a todos, não seria ele, simples mortal, a consegui-lo! A intervenção agressiva que tivera há alguns dias, no tribunal, aonde, sem quaisquer inibições, enfrentara juiz e advogados, aí, forçosamente, teria que deixar inimigos…

Custódio, porém, continuava a caminhar na vida, imperturbável, sem já se lembrar sequer de factos passados. Explodia na hora própria, mas não guardava rancor. Um cristão não o deve fazer, assim aprendera ele, em criança, na catequese da sua paróquia. Desde menino que se habituara a encarar tudo muito a sério, com grande entusiasmo pelo que lhe interessasse. Foi com aquela grande força de vontade que conseguiu chegar do nada à posição que hoje ocupa. Daí também a sua predilecção pelos oprimidos, pelos mais carentes de justiça, de solidariedade humana, ou pessoal, se necessário.

E Rui? Porque não falar também um pouco deste nosso amigo? Sem desejar, de modo algum, o mal alheio, no seu íntimo, lá muito secretamente, parecia-lhe ter na fortuna uma aliada: na verdade o rumo dos acontecimentos proporcionava-lhe alegrias até agora inconfessáveis. Naquele dia à noite apareceu em casa de Sebastião, querendo saber mais pormenores sobre Lourenço:

- Durante o dia dispus de pouco tempo; mas, segundo creio, o nosso doente vai recuperar….

Isaura olhou-o, cheia de reconhecimento; e, como lhe deveria competir, respondeu:

- Muito obrigada, senhor. Pelo seu cuidado. Que Deus lhe pague! Dentro da desgraça que nos bateu à porta, e devemos preparar-nos para o pior, foi uma grande sorte estar aquele médico de serviço à nossa chegada! Ninguém faria, num caso destes, melhor do que ele….

- Sem dúvida, menina! O doutor Gomes foi um achado! O nosso hospital e todos os que precisam dele ganharam muito! Temos cá este amigo há bem pouco tempo. Não há nada a apontar-lhe, negativamente, claro, pois no campo do bem, deve ser o campeão!

A moça entusiasmou-se, e não pôde omitir a sua opinião:

- É formidável, como médico e como homem! Uma simpatia! Cativa a todos com a maior das facilidades!

Aquelas palavras sinceras e espontâneas não tiveram um efeito nada razoável em Rui que, mesmo involuntariamente, se sentiu corar:

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- A menina parece vibrar, ao falar dele! Que entusiasmo! Como lhe conhece as qualidades humanitárias? Já teve essa oportunidade?

A moça ficou levemente embaraçada e surpreendida com aquela pergunta um tanto indiscreta; mas, controlando-se, respondeu:

- É verdade, senhor. Efectivamente, logo que o meu pai foi hospitalizado, este médico chamou-me ao seu gabinete de trabalho, aonde tivemos uma longa conversa. Aí foi-me dado conhecer a força moral, as virtudes daquele homem, um verdadeiro exemplo a seguir!...

Sebastião, que até então fizera esforços para não meter a sua colherada, não se conteve mais:

- Ora papa lá essa, seu grande mexeriqueiro! Pensavas que eras o único conquistador cá do sítio, não? Saíram-te as contas furadas, para não seres indiscreto! Ou me engano muito, ou temos duelo à vista! Não te esqueças, no entanto, que o teu dever é manter a ordem. Não penses que te pouparei a uns murros, se te apanhar em prevaricador! Já sabes que não faço excepções!...

Muito aflita, com a intervenção do marido, não fosse a moça ofender-se, assim como Rui, Luzia tentou, como pôde, pôr água na fervura:

- Oh, Sebastião; francamente, estás a passar das marcas! A Isaura pode não te conhecer o suficiente para saber que tudo te serve para a galhofa!

- Pois passará a conhecer-me! Qual é o problema? Sempre gostei de ser muito claro, para não haver mal-entendidos à minha volta!

A jovem, sempre aparentando grande calma e maturidade, respondeu:

- Não se preocupe, Sra. Luzia! Afinal de cotas o seu marido é o único, aqui, capaz de nos contagiar com a sua alegria e optimismo é caso para isso: a estas horas eu já poderia ser uma órfã, e felizmente ainda não conheço esse flagelo! Como não hei-de estar grata a Deus e aos amigos, que tanto nos têm ajudado!? Não sou de pieguices: não me ofendo com qualquer brincadeira!

Sebastião, muito despreocupado, deu uma gargalhada:

- Tanto melhor para si, pequena! Nunca gostei de amuos, sabe? Diz-se, diz-se! O remoer faz mal aos miolos. E deixe lá, que o amigo Rui, embora com um fraquinho pelas carinhas bonitas, no fundo, é bom rapaz. Mas, aqui para nós, não chega aos calcanhares do Gomes, pois não? Que acha!?...

A moça mais uma vez precisou do maior autodomínio:

- Eu!?... Não acho nada, Sr. Sebastião! Sou ainda muito inexperiente no assunto; e, para lhe ser franca, neste momento outros problemas bem mais graves me preocupam….

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- Ah, sim; todos o sabemos. Mas pode estar tranquila, quanto à saúde do seu pai, pelo menos por enquanto! E, se têm chegado um pouco mais cedo, talvez ele estivesse já livre de perigo, definitivamente! Falo com conhecimento de causa: o médico é que mo garantiu. Não vamos pensar em imponderáveis de última hora, para não nos tramarem a vida! Já era azar! Estando com sorte, é preciso aproveitá-la, agarrando-a, com unhas e dentes, antes que fuja! Não sejamos aves de mau agouro! Qualquer dia temos o homem de volta a casa, rijo, como um pêro. Estão-lhe tratando muito bem da saúde!...

- Que Deus o oiça, Sr. Sebastião, para meu sossego, e principalmente da minha mãe que, lá naquela aldeia, está sempre com o coração nas mãos, coitadinha!

Rui achou nova ocasião propícia a intervir, e venceu o seu embaraço como pôde:

- Realmente a pobre senhora deve estar mesmo aflita; mas talvez o Sr. Lourenço tenha alta em breve! Mais um pouco de paciência, e a sua família estará novamente reunida, menina Isaura…

E, sem esperar por resposta, embora um tanto contrafeito, pois desejaria prolongar eternamente aqueles breves momentos, despediu-se:

- Vão sendo horas…. Continuação de melhoras, e que Deus esteja com a boa vontade que todos desejamos, para curar o seu pai. Até mais ver, menina!

- Adeus, senhor! Muito obrigada….

O frio da noite estava cortante, no rosto do mancebo! Nada pior, após tanto calor, tanta doce expectativa!...

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CAPÍTULO IX

À PROCURA DE ATENUANTES

O contínuo girar deste planeta, entre sóis e luas, não permite grandes paragens aos que por cá andam. As soluções não caem do Céu, sem que as busquemos, e Deus não criou parasitas.

Embora não tenhamos nas mãos a vida de ninguém, vamos acreditar que aquele mirrado camponês não nos deixe ainda. Como a convalescença promete ser

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longa, afastemo-nos, por momentos, da sua vida, que está bem entregue, aos cuidados de quem tudo fará em seu benefício...

Mantenhamo-nos, contudo, no hospital, aonde uma criança esta em franca recuperação ante o olhar optimista da irmã...

Não faltará muito, segundo as previsões do médico, para que o pequeno Mário tenha alta. E depois? Será regressar a casa, comer o que houver, quando houver, e aguardar a certeza dum abandono inevitável, um fim... para tarde ou cedo! Ninguém pode viver apenas do ar...

Embora muito ocupado, Gomes não esquecera este problema, e já perdera muitas horas, em busca duma solução, que aliviasse, no mínimo, aqueles sofrimentos. Dar uma esmola, hoje, amanhã, depois, ajuda; mas não se pode fazer sempre: Acaba por humilhar o que recebe, e sobrecarregar o que dá. Não era, portanto, a solução, para uma casa de família! Talvez por isso mesmo não houvesse muita pressa no regresso ao humilde lar daquela criança, sob a responsabilidade do médico. Todavia o hospital não era no hotel...

Aquelas seis bocas teriam de ser alimentadas, de qualquer forma! Para alguma coisa existe a assistência social! Não só para encher o bucho aos comilões que lá trabalham, fazendo o que bem entendem, administrando a seu belo prazer o que não lhe pertence. Era outra luta que aquele homem enérgico se propunha travar, disposto a debelar tanta burocracia, que não conduz a lado nenhum! Tivessem todos santa paciência, mas a solução teria de aparecer! E, como hesitar é recuar, além de que as carências não se compadecem com demoras, Custódio Gomes tratou logo "de' accionar os mecanismos legais, indispensáveis a sobrevivência da família Miranda.

E foi nestas andanças que uma ideia inesperada assentaria arraiais no cérebro daquele médico eloquente: Se pudesse arranjar um emprego qualquer para Almerinda? Era uma hipótese a ponderar...

Finalmente, com grande alvoroço e apreensão, chegara a dia da alta. Mário já tinha outras cores, e era triste imaginar que, dali os dias, voltaria a partilhar da miséria familiar! E mãe lá estava reconhecida para leva-lo, bem apertado junto ao coração são e salvo...

Gomes recebeu-a, muito satisfeito, conduziu-a ao seu gabinete, com Almerinda, e começaram de imediato as perguntas:

- Quantos anos tem esta moça, toda simpática?...

- Eu, senhor doutor? Já fiz dezassete, há bastante tempo...

- Muito bem. Sabe ler? Com toda a certeza. Estudou, evidentemente...

- Tirei até ao segundo ano do liceu. Estudei à noite, apesar de todas as dificuldades. Depois, à falta de meios, tive que desistir...

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O médico ficou radiante: não esperava tanto, daquela adolescente. Animou-se ainda mais, continuou:

- Mas isso formidável! Muito melhor do que aquilo com que eu estaria a contar! Óptimo. E, como o conseguiu?!...

- Oh, senhor doutor! Foi uma luta. Uma luta, sem tréguas! Muitas vezes desanimei, porque o meu pai me batia, alegando que não havia dinheiro para desperdiçar; que o estudo só nos levava para o mau caminho. Foi-me impossível frequentar as aulas, durante o dia, para trabalhar em casa. Como não podia comprar os livros, a minha professora da instrução primária cedeu-me os da filha, que já ia mais adiantada. Ajudou-me muito, e tudo lhe devo! È uma santa, a senhora Hermínia! Que Deus lhe pague! Foi uma segunda mãe que tive!

Aquele homem sentia-se extasiado, ouvindo o relato da jovem.

- Certamente estarão admiradas, com as minhas perguntas? É natural!

Mas pensei numa coisa... não sei se vos agradaria lá muito...

Inésia quase não o deixou concluir a conversa, ansiosamente:

- Mas diga, senhor doutor. O que é? Fale, por favor!...

- Pois bem: esta mocinha gostaria de trabalhar?

As duas olhavam-no, incrédulas. Não era possível! Ele estava a brincar, com certeza! Talvez a grande necessidade as fizesse ouvir mal...

Mas … Aonde, senhor doutor? Vontade não nos falta! O trabalho nunca nos meteu medo! Porém a má reputação do meu marido fecha-nos todas as portas! .

- Está bem. Não se pensa mais nisso. É necessário e urgente não vacilar, continuando a lutar, pela. Vida fora! Contem comigo. A Sr. Inésia foi muito generosa para com o desgraçado que está na cadeia. Deus nunca se esquecerá de tão nobre acção! Já agora, os nomes e idades dos seus outros filhos.. .

- O Vítor, de quinze anos; a Helena, de catorze, a Luísa, de doze.

Quando julgávamos ficar por aqui, vem o caçulinha, o Mário, que aqui temos com três anitos, cuja vida devemos ao senhor doutor...

- Deixemos isso, agora. Um ranchinho já muito razoável. Mas antes mais que um que menos um. Todos se hão-de criar, se Deus quiser! Para começar, talvez se arranje aqui mesmo no hospital uma ocupação para esta linda pequena. Em princípio, trabalhara no serviço doméstico, donde saiu agora uma empregada.

Gomes recebeu-a, muito satisfeito, conduziu-a ao seu gabinete, com Almerinda, e começaram de imediato as perguntas:

- Quantos anos tem esta moça, toda simpática?...

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- Eu, senhor doutor? Eu já fiz dezassete, há bastante tempo...

- Muito bem. Sabe ler, com toda a certeza. Estudou, evidentemente...

- Tirei até ao segundo ano do liceu. Estudei a noite, apesar de todas as dificuldades. Depois, à falta de meios, tive que desistir...

O médico ficou radiante: não esperava tanto, daquela adolescente. Animou-se ainda mais, continuou:

- Mas isso é formidável! Muito melhor do que aquilo com que eu estaria a contar! Óptimo. E, como o conseguiu?!...

- Oh, senhor doutor! Foi uma luta. Uma luta, sem tréguas! Muitas vezes desanimei, porque o meu pai me batia, alegando que não havia dinheiro para desperdiçar; que o estudo só nos levava para o mau caminho. Foi-me impossível Frequentar as aulas, durante o dia, para trabalhar em casa. Como não podia comprar os livros, a minha professora da instrução primária cedeu-me os da filha, que já ia mais adiantada. Ajudou-me muito, e tudo lhe devo! É uma santa, a senhora Hermínia! Que Deus lhe pague! Foi uma segunda mãe que tive! Aquele homem sentia-se extasiado, ouvindo o relato da jovem.

- Certamente estarão admiradas, com as minhas perguntas? É natural!

Mas pensei numa coisa... não sei se vos agradaria lá muito...

Inésia quase não o deixou concluir a conversa, ansiosamente:

- Mas diga, senhor doutor. O que é? Fale, por favor!...

- Pois bem: esta mocinha gostaria de trabalhar?

As duas olhavam-no, incrédulas. Não era possível! Ele estava a brincar, com cezteza! Talvez a grande necessidade as fizesse ouvir mal...

Mas aonde, senhor doutor? Vontade não nos falta! O trabalho nunca nos meteu medo! Porem a má reputação do meu marido fecha-nos todas as portas!

- Está bem. Não se pensa mais nisso. É necessário e urgente não vacilar , continuando a lutar, pela vida fora! Contem comigo… A Sr. Inésia foi muito generosa para com o desgraçado que está na cadeia. Deus nunca se esquecerá de tão nobre acção! Já agora, os nomes e idades dos seus outros f ilhós…

- O Vítor, de quinze anos; a Helena, de catorze, a Luísa, de doze.

Quando julgávamos ficar por aqui, vem o caçulinha, o Mário, que aqui temos, com três anitos, cuja vida devemos ao senhor doutor...

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-Deixemos isso, agora. Um rancinho já muito razoável. Mas antes mais um que menos um. Todos se hão-de criar, se Deus quiser! Para começar, talvez se arranje aqui mesmo no hospital uma ocupação para esta linda pequena…

Em principio, trabalhara no serviço domestico, donde saiu agora uma empregada. Se der boa conta do recado, e creio bera que sim, logo se verá. De momento, é o que se pode fazer. Isto não é meu, mas quase que vos posso desde já dar uma certeza: temos de atender a prioridades. Venham daí ambas comigo, para fazermos a inscrição, na secção de pessoal, já tenho aqui os dados necessários. Poderá começar a partir de amanhã...

Inésia não sabia o que dizer! Aquilo era um sonho! Algo bom demais para ser verdade! E, quase a toa, balbuciou, entre lágrimas:

- Oh, senhor doutor! a sua bondade não tem limites, nem eu palavras para lhe agradecer! Que o Nosso Pai de Misericórdia nos sirva de fiador..

- Deixe-se de gratidões, agora, e convença-se de que a sua filha não vai receber nenhuma esmola, mas ganhar um salário, com o seu trabalho! Se este for bem desempenhado, as compensações não se farão esperar. Todos têm o mesmo direito a vida ou devemos tentar pelo menos que assim seja!

E abrindo uma porta, sem grandes cerimónias, como era seu hábito, fez as apresentações:

- Ouça uma coisa, Laura: Esta é a funcionária que, a partir de amanhã, substituirá a Julieta. Aqui tem a documentação necessária. Eu sou o responsável pela sua conduta, perante a administração.

Laura limitou-se a cumprir ordens, maquinalmente, sem dar grande importância

àquela catraia, que lhe parecia chegar do bairro da lata.

Naquele curto espaço de tempo, enquanto se fez a inscrição, o médico escreveu uma carta, fechou-a e, quando saíram, sem mais perda de tempo, e já com o pequeno em casa, Custodio Gomes mandou Inésia à delegação do Instituto de Assistência à Família:

-Diga lá à funcionária que vai da minha parte. Gostarei depois de saber a resposta o mais brevemente possível...

A mulher limitou-se a seguir as ordens do médico sem discussões, e este, entretanto, à cautela, ficara com uma fotocópia do que escrevera. Após aguardar imenso tempo, foi finalmente atendida por uma senhora toda chique, muito pintada, que mais parecia uma rainha, a dona lá do sítio;

- Ah, é você! Vá: diga lá o que quer, e veja se se despacha, que preciso de sair, e não posso perder muito tempo... com ninharias...

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Ante aquela secura quase brutal, a pobre Inésia ficou como que petrificada, sem um apoio, em terreno desconhecido, e gaguejou:

- 0 senhor doutor Custódio Gomes, que está tratando do meu pequeno, mandou-me aqui entregar esta carta, dizendo-me para esperar pela resposta, se fizer favor... Limitei-me a obedecer, nada mais...

E, sem mais palavras, embora já de mau humor, aguardou...

A mulher tomou a carta, sem o menor interesse, abriu-a, e começou a ler, enquanto mastigava despreocupadamente uma pastilha elástica. É o emblema característico que identifica as belas senhoras da “elite”!

A fisionomia daquela senhora foi-se carregando progressivamente, à medida que tomava conhecimento das pretensões ao médico. Por fim, olhando a viúva, com altivez arrogante, perguntou-lhe, descarada:

- Oiça lá: você acha que eu tenho filhos desse tamanho? Vá mas é trabalhar, que o mundo está cheio de parasitas. E pode dizer a esse médico que ele só manda no seu escritório. Na sua caserna, onde finge dar consultas. Aqui, tenha santa paciência, não dá ordens. Mais tinha que ver!..

Inésia sentiu ganas de torcer o pescoço àquele traste! Mas a sua triste condição de necessitada impediu-a de reagir. Engoliu em seco, e respondeu, cheia de pavor, humildemente:

- A senhora desculpe; eu não sei o que esta escrito nesse papel. Quanto a arranjar trabalho, bem o temos tentado, mas sempre em vão, infelizmente!

- Pois com certeza! Ninguém se quer sujeitar a aturar bebedeiras! A vida custa a todos, e não é justo ajudar quem gasta o pouco que tem pelas tabernas. Vá-se lá embora, e diga ao médico que eu nada posso fazer. Passe bem.

A mulher não se conteve mais : Aquela insolente precisava duma lição: - Pois sim. mas ao menos podia ser mais educada.. Sabe Deus como chegou

a esse ponto. Fala assim, porque tem a briga bem cheia! Mas olhe que os tempos podem mudar, grande malcriada.

Não esperando réplicas, aquela presumida quase fulminou, com um olhar de ódio e desprezo a sua interlocutora:

-Some-te da minha vista, excremento da terra! Ora não querem lá ver! Já a formiga tem catarro! Nem um tostão! Só para te envenenar, grande cabra!

- Maior cabra era a sua mãe, quando teve a triste sorte de a lançar no mundo! E paga o nosso governo a estas ladras, duma figa!...

Sem esperar pela resposta, a pobre mulher, oprimida e vingada, saiu, dirigindo-se ao consultório do médico. Levava no coração uma angústia, bem maior do que lhe

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merecia, em rancor, aquela mulher,, tão desumana, que a ofendera, brutalmente, sem que nada o justificasse! Os pobres nunca deveriam nascer, coitados! Por muito bem que se conduzam, são sempre olhados com o maior desprezo, porque os legam para condições inferiores, de submissão!

Quando chegou ao seu destino, já Gomes a esperava e, pelo seu semblante, carregado, até parecia ter adivinhado tudo o que se passara. Inésia ainda ficou mais assustada, sem se atrever a articular palavra...

- Vem muito preocupada, minha senhora? Não se amofine, por quem é…

Deixe lá, que essa Alzira não sabe, ou não mediu bem com quem se meteu!

vai arrepender-se. Chorar, amarga e tardiamente a sua mesquinhez!

A pobre mulher estava embasbacada. Como soubera Gomes das más noticias

que ela lhe trazia? Não adivinhara, com certeza. Ali havia mistério...

- Não me olhe dessa forma, querida senhora! Tudo tem explicação: entre, e oiça. Dar-lhe-ei, com muito gosto, embora lamentando o que sucedeu, todas as explicações que pretende. Sei muito bem as linhas com que me coso...

Sem perceber de nada, ela obedeceu: entrou, sentou-se e, com grande surpresa, ouviu em fita magnética toda a conversa que na pouco tivera, e viu-se fotografada, em discussão coei a sua agressiva interlocutora...

- Está agora satisfeita a sua curiosidade, D. Inésia? Pode ir à sua vida, que o resto corre por minha conta. Os filhos esperam-na. Garanto-lhe que tudo farei para lhe afastar a fome lá de casa! Essa velhaca, em breve ficará mais mansa, ou eu não me chame Custódio...

- Adeus, senhor doutor! E que Deus lhe pague tantos incómodos, por nossa causa! Amanhã a minha filha estará no hospital, à hora certa.

E creia que tudo fará para não o desiludir. Essa esmola caiu do Céu. Deus lhe pague o muito que nos tem ajudado, e a tanta gente!...

- Está bem, Ele me pagará, assim o espero! Vá em paz! Tudo irá correr pelo melhor. E, se houver novidade, cá estaremos! Adeus...

Gomes almoçou tranquilamente e, sem perda de tempo, dirigiu-se de imediato à delegação do Instituto de Assistência à Família. Subindo ao primeiro piso, Alzira avistou-o e, muito atrapalhada, fez menção de se retirar, o que não lhe foi possível, por estar a atender outra pessoa. Fez um enorme esforço para manter a calma, embora previsse querela! A intranquilidade da sua consciência segredava-lhe que se metera em maus lençóis...

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Uma outra funcionária atendeu-o, mas ele disse que só pretendia falar com a D. Alzira, e aguardaria o tempo que fosse necessário: 0 assunto era muito melindroso, e não o desejaria, resolver com mais ninguém.

A fuga da lebre era de todo impossível, coitada: estava cercada pelos caçadores, por todos os lados, na própria toca...

Por não haver outro remédio, a parasita da sociedade lá recebeu o médico:

- Às suas ordens, senhor doutor. Queira ter a bondade de dizer em que posso servi-lo, e desculpe esta pequena demora, sim?...

Aquele megera inspirava a maior repugnância a Custódio, que a encarou, sem rodeios, lançando-lhe um olhar fulminante:

- Não tenho muito tempo a perder. Os doentes esperam-me. Como não teve

a delicadeza de responder a minha carta, aqui estou aos seus pés, implorando-lhe humildemente a esmola... do que não é seu.

O sarcasmo de tais palavras feriu, qual punhalada violenta o íntimo de Alzira, que mordia os lábios, em busca de réplica, que não lhe aparecia.

Sentia que toda a força e arrogância matinais a haviam abandonado, transformando aquela funcionária publica num simples farrapo humano. Tentou defender-se, com uma mentira quase à toa, em último recurso:

- Eu, há bocado, estava muito ocupada... pretendia, com mais calma, resolver o caso. Isso não se faz, de um momento para o outro...

- Evidentemente que não, quando não e a nossa boca que está em apuros, com falta de comida... veneno, por exemplo, é mais barato, não?...

A mulher ficou aterrada! Aquilo era forte demais, para se tratar de simples insinuação! Talvez certeza, baseada em fundamentos!...Era absolutamente necessário e indispensável não se trair. Mas ... como?!...

- Que quer o senhor dizer, com isso? Exijo uma explicação, se é que a tem, que justifique uma conversa tão disparata, sem pés nem cabeça…

- Exigências, senhora burguesa proletária, só as pode fazer aos desgraçados que aqui vêm esmolar aquilo a que têm mais direitos do que quem usa e abusa discriminadamente do erário público. Terei muito gosto em dar-lhe essa explicação, aliás, vou mesmo fazê-lo, mas em tribunal. Agrada-lhe, ou receia comprometer-se? Às vezes, ou quase sempre, o peixe morre pela boca...

- O senhor não tem o direito de vir aqui propositadamente insultar-me, no meu local de trabalho, entende?... Pode sofrer as. Consequências do seu atrevimento. Eu não sou uma fulana qualquer, o que é que julga?

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- Realmente… é do pior que tenho visto. Mas deixe-se de máscaras! Mais se ridiculariza, tentando demonstrar virtudes que não possui! Afirmo-lhe sem receio nenhum de errar, que não passa da mais irresponsável das parasitas, e nem por sombras merece o salário que lhe dão. Quem não cumpre integralmente todos os seus deveres profissionais, deve dar o lugar a outrem, para o progresso do país e da sociedade. Quem não quer tempestades, não semeie ventos. Previno-a de que vou fazer tudo o que estiver ao meu alcance, para que a ponham fora do emprego. E, como é com justa causa, não conte com indemnizações de qualquer espécie. Talvez a partir de então passe a viver um pouco mais os problemas dos necessitados.

- O senhor está louco? Pensa que me intimida, com esses autoritarismos, de médico de meia tigela? Engana-se. Proceda como quiser. Estou-me nas tintas.. Tente se for capaz... faltam-lhe as provas...

Ele não se desconsertou: mediu-a de alto a baixo, com um sorriso mordaz, cujo significado era a firme certeza da vitória:

- As provas?... quanto a isso, não tenha problemas. Irão aparecer, na altura adequada, para a esmagar, sem dó nem piedade. Palavra de honra! O mal dos outros não me serve de bem. Todavia, castigar os que erram, é uma das obras de misericórdia! já perdi muito tempo consigo, e falei demais. Terá notícias minhas, quando necessário. Por agora reflicta ponderadamente no acto desta manhã, mentalizando-se que se matou pelas suas próprias mãos. Embora isso não me dê o menor prazer, ver-nos-emos mais tarde...

E desceu calmamente as escadas, muito satisfeito consigo mesmo. Sozinho, é evidente que não iria mudar o mundo, com o seu egoísmo, e tantos outros males. Todavia, à sua volta, tudo faria para fomentar a justiça social. Criava inimigos, sem dúvida; mas tal facto, em vez de o desanimar, mais o incitava à luta. Se fosse vítima de alguma cilada, Deus o compensaria, de certeza, pois sucumbira, em defesa do Bem...

Alzira, porém, e como era de prever, não ficara nada tranquila: para aquele homem falar assim, e com tanta autoridade, poderia já estar ao corrente do que se passara, e era muito capaz de lhe arranjar algum sarilho! Todo o cuidado não seria demais. 0 pior é que não conhecia bem nem mal a força das armas do inimigo! Em último recurso, se ele levasse por diante as suas ameaças, negaria a pé firme a conversa tida com a viúva. Ante a opinião pública, ocupando um lugar de benfeitora, mesmo que comprasse testemunhas, não lhe seria difícil liquidar a mulher dum bêbado, com um passado abominável, com a agravante de até ser assassino. Quanto ao médico, também não era parva, e saberia defender-se, não se entregando, de mão beijada, ao adversário… Que se lixasse aquele médico maniento!

No dia seguinte, logo de manhã, Custódio apresentou-se no Instituto de Assistência à Família,, e pediu para falar com o Sr. Carlos Lopes, chefe da administração. Como eram bons amigos, a recepção foi imediata.

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- Entre, caro doutor. Que deseja desta sua casa? É um grande prazer receber o nosso mais ilustre médico das redondezas. Diga de sua justiça...

- Lamento, caro Lopes, que o assunto que aqui me trás seja bastante desagradável. Daí o desprazer da visita. Mas, como jurei a mim próprio não deixar passar impunes certas velhacarias, chegarei ate ao fim. Era minha intenção levar directamente o caso a tribunal. E fá-lo-ei, se não chegarmos a acordo. Pensei melhor, e julguei que talvez as coisas se resolvam, sem intervenções externas. , para já, e se me permite, que possamos conversar com o máximo de segurança, para não dar trunfos ao adversário, por agora...

- Perfeitamente, meu amigo. Não seja esse o problema. Venha daí, sem hesitar, que serei todo ouvidos, e prometo à mais leal colaboração...

Passaram ambos diante de Alzira, que ficou branca, como a cal. Que grande sarilho! Aquele médico não perdia tempo, nem se contentava só com ameaças ! Teria aquela assistente social os dias contados?...

Já bem trancados no gabinete de Lopes, Gomes não perdeu mais tempo, mostrando-lhe a gravação e as fotografias. À medida que entrava no assunto, o homem ficava lívido, sem pinga de sangue. Aquilo era inacreditável. Já uma ou outra vez lhe haviam chamado a atenção para a conduta pouco digna daquela funcionária, ele repreendera-a, mas lá a ia aguentando. Agora... não teria outro remédio, senão tomar medidas drásticas. E, sinceramente, muito já ele aguentara! não se perdia grande coisa, porque uma empregada assim, só denegria o nome da Instituição. E Lopes lamentou-se:

- Oh, meu caro Gomes! Tudo isto se poderia ter evitado, e até ganharíamos tempo, se me tem contactado directamente. Podia fazê-lo à vontade, que entre nós nunca houve etiquetas nem cerimónias! Mas deixe lá, que às vezes há males que vêm por bem! Foi uma forma, conquanto agreste, de eu conhecer melhor, e aqui é praticamente uma confirmação, o pessoal que me cerca. Não tenha dúvida, que vou cortar o mal pela raiz! Já aguentei demais e, em casos destes, a tolerância seria um fracasso, um caminho aberto para constantes perturbações, Fez bem em ter vindo falar-me, antes de levar o caso para tribunal. já vai ver como as coisas se resolvem, num abrir e fechar de olhos...

E, levantando o telefone, chamou Alzira:

- Venha ao meu gabinete. Precisamos conversar. E veja se não se demora muito, porque há muito que fazer. Despache-se .

- Está muito bem, Sr. Lopes. Vou imediatamente...

Por pouco, não desmaiou! Levantou-se, cambaleante, pensando que, efectivamente, teria os dias contados! Apavorada, bateu à porta:

- Vá entrando, e feche, que a conversa é para demorar. Mas, pelo que me parece, vejo-a um pouco perturbada... muito serviço, ou outros problemas?...

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Ela mais nervosa ainda ficou, gaguejando tímida resposta:

- Nada de importância: uma irritante dor de cabeça, que espero bem seja passageira. Se não tivesse várias coisas entre mãos,, talvez ficassem em casa.

Prolongando a sua justificação, ela tentava ganhar tempo, para se senhorear um pouco do terreno, se ainda fosse possível. Mas Lopes cortou:

- Deixe lá os seus zelos, porque o assunto que me fez chamá-la é muito sério. Naturalmente até já sabe do que se trata, não? A presença deste senhor, aqui, talvez lhe diga qualquer coisa;

Pobre Alzira! Restavam-lhe poucas hipóteses de fuga ou resistência! Com que bases venderia cara a derrota. Pouco adiantaria, com certeza!...

- Realmente tive um pequeno desentendimento, ontem, com este senhor. Só não consigo estabelecer a relação entre tal facto e a minha vinda aqui! Certamente essa mulherzinha foi lhe encher os ouvidos de mentiras, de choradeiras, depois de ter-se portado grosseiramente comigo! Esta gente tem sempre a mania de inverter os termos à fracção! É hábito velho!...

- Bem, mas podemos tirar isso a limpo, se estiver interessada…

- Não será muito fácil, se cada um puxar a brasa à sua sardinha! E,, o pior de tudo, se houver más vontades contra mim, nada posso…

- Descanse, que há um meio eficaz de não deturpar verdades, e, simultaneamente, por a nu certas imprudências de língua. Garanto-lhe que não aumentarei uma sílaba. Ora tenha a bondade de se sentar, ouvir, e depois dar a sua opinião. Aqui, minha senhora, não se nega a ninguém o direito de defesa…

Envolta por uma enorme onda de terror, Alzira caiu na cadeira…

Com uma calma gélida e cortante, o homem premiu o botão de um gravador, ouvindo-se, com toda a nitidez, o diálogo travado no dai anterior. Findo este, apareceu a fotografia, e a pergunta da praxe:

- Está elucidada? Acha que levantamos falsos testemunhos? Conhece a voz que ouviu e o porte dessa funcionária? É muito correcta, na verdade, atendendo as pessoas a mastigar pastilhas elásticas! Um exemplo de educação, confirmado por um vocabulário tão eloquente. Que acha de tudo isto? Qual a resolução a tomar? Um prémio… castigo… que faria no meu lugar?...

Alzira irrompera num choro convulsivo, que talvez inspirasse piedade aos corações mais empedernidos. Todavia aqueles dois homens nem pestanejaram, numa indiferença total. Era preciso punir. O carrasco age, sem conhecer, muitas vezes, as vítimas do cutelo, que maneja, quase cegamente…

Antes que os ânimos arrefecem-se, Lopes decidiu, imperioso e seco:

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- Não temos outra saída: a gravidade dos factos exige a demissão imediata da prevaricadora. Não tenho por hábito fazer excepções…

A mulher estava transfigurada, sem conseguir balbuciar uma palavra.

O golpe atingira-a impiedosamente, como uma catástrofe natural, que chega, sem ninguém contar. A profecia do médico transformara-se integralmente numa penosa realidade! Aos poucos, Alzira foi-se controlando, e balançava, entre um ódio de morte àquele queixinhas, que viera ali esmagá-la, e um temor de perder o emprego, que lhe aconselhava à mais submissa das humilhações:

- Oh Sr. Lopes, por amor de Deus. Eu não sou rica. Preciso de garantir a minha subsistência presente e futura, como qualquer outro ser humano…

- Como aquela que ontem foi escorraçada por si, quase a pontapé, por exemplo! Ou acha que essa está a mais, no mundo? Olhe que ela tem cinco filhos, sem culpa de cá estarem. E a senhora é solteira, por enquanto… Antes de se tomar esta ou aquela atitude, pensa-se duas vezes. É preciso não esquecer que as paredes sempre tiveram ouvidos e, modernamente, pior um pouco! Sabe muito bem que esta já não é a primeira queixa contra si. Fui tolerante em demasia. 0 saco chegou aos limites e... rebentou.

- Ah, sim? Então é essa a paga que me dão de eu zelar tanto pelos interesses da casa, não esbanjando largamente o que me confiam?! Fui muito parva, em ralar-me com o que não era meu! Tenho que aprender muito à minha custa! 0 mundo está cheio de ingratidão. Mas hei-de aprender, sim...

- Sem dúvida! E é melhor começar mesmo pelo principio, perdendo mais horas a educar-se em humanismo que bem precisa! Depois volte cá, se tiver lata para isso, que talvez encontre a porta aberta. Ninguém se levanta, senão após a queda! Todavia agora o remédio é dizer adeus...

Vendo que ao bem não conseguia levar a água ao seu moinho, Alzira desmascarou-se declaradamente, tomando o rumo das ameaças:

- Ah, isso é assim?! Pois vou procurar os meus direitos! Não pensem que me comem por tola, ou que se ficarão aqui a rir de mim!

- Proceda como entender. Ninguém a proíbe de procurar os meios de defesa que achar convenientes; só que desconfio muito da sua eficácia! Mas, como

já estamos a perder tempo demais, pode ir fazendo as malas...

Alzira levantou-se, colérica, lançou um olhar de ódio a Gomes que, se pudesse, tê-lo-ia fulminado, sem apelo nem agravo:

- Canalha! vais pagar-mas, com língua de palmo, grandessíssimo pulha!

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0 médico não lhe deu qualquer resposta, e ela saiu, batendo com a porta, com toda a brutalidade que lhe foi possível. Outra imprudência a juntar às demais, que só a comprometia, piorando a situação!

Lopes olhou para Gomes, e limitou-se a sorrir:

- Mas que besta me saiu esta megera! Vai mais furiosa que o Tigre da Malásia! Deixa-a ir, coitada! Deitou-se na cama que fez! Oxalá ao menos

lhe possa servir de lição, o que eu nem acredito muito, para seu mal...

Gomes ficara muito absorto: não desejava o mal de ninguém, e ponderava já no problema de mais uma criatura que perdera o emprego. Os seus ímpetos, conquanto impelidos por um espírito de justiça, em defesa aos oprimidos, tinham vindo à superfície, esmagando o opressor. No entanto, malgrado as suas explosões, não guardava rancor. Lopes, apesar de não ter curso psicologia, apercebeu-se num ápice daquelas apreensões:

- Estás ainda a pensar naquela besta? Não me diga que os remorsos o incomodam assim tanto, por ter contribuído para praticarmos um acto de justiça!

Ela disse uma conversa certa, embora com sentido inverso: precisa de aprender muito à sua custa. Com que direito ela escarnecia aqui dos outros, afinal? Que ela seja anjo ou diabo, estafermo ou beldade, eu não tenho nada a ver com isso. Punha e dispunha aqui do que não era seu, sempre impunemente… sem tem gosto em ser desumana, que o seja, mas com o seu trabalho, com os rendimentos de que disponha. A necessidade vai ensinar-lhe a ter mais consideração e compreender bem melhor os dramas alheios…

- Assim o espero e desejo, amigo Lopes. Se não há outra solução mais justa… deixemo-la, pelo menos agora, desembaraçar-se sozinha do seu parasitismo, e tratemos, se possível, daquele pobre mulher que ontem aqui foi agredida, tão brutal, como injustamente. Isso é o mais importante…

- Não me esqueci desse pormenor, descanse. Farei, de certo, não o que seria justo, porém o que puder! Mas… e acarta que a mulherzinha trouxe? É bem provável que já esteja no caixote de lixo…

- Não me restam dúvidas. Mas joguei pelo seguro, atendendo às minhas previsões que, para o mal, quase sempre acertam. Tenho uma fotocópia…

E, levando a mão ao bolso, desdobrou o papel:

- Aqui a tem, com todas as indicações que achei necessárias. Não entendo muito do assunto, por isso, se faltar qualquer coisa, diga…

- O meu amigo é muito previdente, não há dúvida! Isto basta.

Gomes saiu, pouco tempo depois, já com a certeza de que a viúva iria receber mensalmente a pequena quantia de 5000$00, válida pelo menos durante dois anos, até

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que os filhos crescessem um pouco mais e pudessem começar a trabalhar. Com a ajuda de Almerinda, ao menos não morreriam à fome… com o filho livre de perigo, já em casa, e aquela bela notícia, Inésia tinha razões de sobra para se sentir optimista: na boca de um pobre, uma migalha tem o sabor a manjar de um rei! E a dupla gratidão que sentia pelo médico, não tinha limites: fora para ela mais do que um pai, na terra! Fora uma aparição miraculosa do Céu no seu caminho! Voluntariamente, sem se queixar, sem hesitar um só instante, serviria de escrava àquele benfeitor, durante toda a vida, por longa que fosse. Estava convicta que lhe devia tudo. Sua escrava, eternamente, não seria demais…

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CAPÍTULO X

UM REMÉDIO CHAMADO ESCÁRNIO

Alzira saíra do gabinete de Carlos Lopes disposta a remover céus e terra, para não perder aquela contenda! Nem que, para isso, tivesse de gastar ou empenhar tudo o que possuía! Por preço algum desta vida abdicaria da sua vingança! Contudo a excitação costuma ir à bola com o raciocínio.

Tratou logo de expor o caso a um advogado, que a foi sugando, empatando, sem lhe dar grande saída. Bem farto estava ele de saber que não adiantaria absolutamente nada lutar por uma causa perdida! Todavia, enquanto o belo metal fosse tinindo... bem burro seria ele, se não aproveitasse! Se afinal tirara um bom canudo para ser aldrabão, nunca lançaria fora essa chance...

Alzira começava a impacientar-se com o silêncio de Simões, o doutor de leis que escolhera, e em quem depositava grandes esperanças. E, quando lhe pediu satisfações, já de mau humor, ele sorriu-lhe, todo prazenteiro, e maquinalmente, como só estes farsantes o sabem fazer, com classe:

- Olhe, minha senhora: eu nunca lhe prometi nada. Disse que tudo iria tentar, mesmo achando o seu caso muito difícil. já perdi noites sem conta, com insónias, em busca de soluções, que não aparecem, porque está tudo contra si! Sinceramente, não vislumbro uma saída razoável...

- Ah, sim? e só agora é que mo diz, depois de comer tanto dinheiro? Vocês são todos o mesmo: uma corja de aldrabões, que vivem apenas lucrando,

na melhor forma de enganar a humanidade, sem quaisquer escrúpulos!

Sem a menor zanga ou sobressalto, Simões replicou:

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- Pois é. A senhora esta cheia de razão, segundo a sua teoria. Mas eu, como qualquer ser humano, não trabalho de graça, vocês metem-se nas alhadas, e depois querem que os advogados façam milagres, resolvendo tudo! Isso é muito bonito! Bonito a valer, não acha?

- Pois evidentemente, para isso vos pagam! Mas com quem eu me meti! 0 que você precisava agora, sei eu muito bem: duma boa dose...

- De dinheiro, se quer continuar as suas tentativas, para resolver uma simples vingança pessoal. De contrário, terminou o jogo!

- N em mais um tostão! Chego a conclusão de que os advogados, além de aldrabões, não passam de sanguessugas da sociedade!

- E concluiu muito "bem." Eles, e as assistentes sociais... venha o diabo e escolha! Só que estas, quando destronadas, mesmo com razões justas, tornam-se impossíveis de aturar. E então... solteironas...

A fúria de Alzira manifestou-se de imediato, através duma estridente bofetada que vibrou no rosto do advogado, que quase perdeu o equilíbrio, tal a surpresa. Sentia bem vingada tal afronta, e rejubilava!

- Isto é para te ensinar a ser mais cavalheiro, seu vampiro! É assim que se pagam os insultos! Sempre quero tirar algum proveito do dinheiro que me roubaste. E agora, sim: processa-me, velhaco! Usa dos teus trunfos de aldrabão, que eu sinto a grande euforia de ter feito justiça por minhas mãos!

E, em ar de desafio, altivamente, a mulher esperava uma possível réplica.

Simões, porém ainda não reagira. Sem dúvida que poderia processá-la. Tinha a faca e o queijo na mão. Mas acalmou-se e, agarrando-a, resolutamente, antes que ela pudesse reagir, apertou-a, com frenesim, imprimindo-lhe bem nos lábios um prolongado e ardente beijo, exclamando:

- Estamos quites, minha linda gatinha arisca. Gostaste, meu amor?

E1a caíra, desfalecida, numa cadeira, soluçante e humilhada. Repentinamente, sentira uma vontade louca de lhe retribuir, tentando, a todo o custo, pôr de parte aquela ideia. Dominando as lágrimas, explodiu:

- Cão! Porco imundo! Grande miserável! Maldito sejas, coisa reles !

O coração arfava-lhe, desalmadamente! Aquela carícia, ainda que brutalmente forçada, como coisa inédita, trouxera-lhe uma doce e inebriante sensação, e dava-lhe sede para mais , muito mais! E não ousava sair dali...

Simões, percebendo-lhe a intenção, desfez-se em sorrisos: -Ah, querida! És mesmo apetitosa! Estas mesmo pedindo bis... Sentindo-se ofendida na sua dignidade feminina levantou-se, como que impelida por corrente eléctrica, saindo, e batendo furiosamente com a porta:

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- Grande pulha! Hás-de pagar-mas, com juros, bandido, nojento!

Os dias passavam, e a vida dos nossos personagens lá ia decorrendo, melhor ou pior, mas sem grandes alterações...

Foi num instante que correu a notícia da expulsão de Alzira das funções que desempenhava facto que, dum modo geral, deu alegria a grande parte da população, que se sentia quase sempre escorraçada, em especial quem vivia com maiores dificuldades. Os comentários sucediam-se, numa galhofa. E, quando ela passava, era um pagode. Ninguém as poupava:

- Lá vai a rainha destronada! Tinha o rei na barriga, mas arrancaram-no, a ferros! E que parteiro! O doutor Gomes é o cutelo dos pobres, por isso Deus o ajuda! A princesa má', ia-se rica, com o dinheiro que não era seu!!

Mas o diabo tem sete mantas e um chocalho! Está mais magra, a burguesa ! Pudera! Quem vivia num luxo daqueles, e, de repente, se vê privada de tudo, não é para menos! Mas cá se faz, cá se paga, Que Deus não dorme...

Quem pode calar as vozes do povo? Estas eram algumas bem aguçadas que, impiedosas, a cada passo feriam Alzira na sua vaidade, orgulho e pergaminhos!

Tal tormento era muito superior às suas forças! O ódio em que vivia constantemente, não lhe dava um momento ao sossego. Por culpa própria, num instante transformara a sua relativa estabilidade numa vida de autêntico inferno! Amaldiçoava furiosamente a sua má estrela, mas não ousava dar a mão a palmatória, todos seriam culpados, menos ela, é evidente!

Um dia resolveu averiguar por conta própria como vivia aquela malvada, que contribuirá para a sua ruína. Toda autoritária e soberba, dirigiu-se à casa dela, e bateu à porta, sem a mais leve cerimónia. Mário foi abrir, e ficou na verdade deveras assustado, com tamanha carranca:

- Oh, mãe, está aqui uma senhora... pode entrar?!...

- Que entre... eu estou a pôr o pãozinho no forno. Faça favor...

Alzira sentia repugnância por aquela criança tão meiga:

- Tu és, com certeza, aquele entrevado, que o Sr. Gomes ressuscitou, não? Tens mesmo aparência de raquítico, desgraçado bicharoco...

O pequeno, sem perceber nada, como aquela mulher não lhe inspirasse a menor simpatia ou confiança, correu a refugiar-se junto da mãe, que ficou muito surpreendida, com visita tão inesperada:

- Que deseja de mim, minha senhora? Estava bem longe de pensar que lhe merecesse, agora, tão tardiamente, qualquer espécie de cuidados...

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- Venho simplesmente agradecer-te o pão que me roubaste, e dar-te os parabéns pela tua brilhante vitória. Mas tem cuidadinho, porque ri melhor quem ri por último! Conseguiste os teus intentos. Muito conseguem as lágrimas das viúvas, que sabem às mil maravilhas levar a água ao seu moinho...

- Bom, se vem aqui insultar quem está muito sossegada na sua casa, aconselho-a a voltar pelo mesmo caminho, para evitar chatices a ambas.

- Ora não querem lá ver, esta reles mendiga a ameaçar-me? Eu ainda te parto as trombas, mesmo dentro da tua cocheira, e ajustamos contas, que estão há muito por liquidar! Eu não sou para brincadeiras; e toma cuidado...

E, numa atitude intimidativa de claro desafio, levantou a mão para a dona da casa que, sempre impávida, não se moveu:

- Cuidado, digo eu. Olha que te arrependes, boneca desengonçada de loiça, que nem sequer comida em condições sabes fazer, com toda a certeza. Abre os olhos, e põe-te na rua, se queres sair inteira...

À cautela, Helena tomara posição de ataque; e, vendo a mãe em véspera de apuros, não teve um momento de hesitação: antes que a intrusa pudesse reagir, vibrou-lhe um golpe de mestre na cabeça, com um pau, e o sangue logo apareceu, saindo duma pequena ferida...

Gerou-se um enorme reboliço, e Alzira perdeu os sentidos. Enquanto Inésia lhe tentava espancar o sangue, chamaram uma ambulância, e por sinal foi o nosso conhecido Rui que a conduziu ao hospital, , aonde mais uma vez estava Gomes de serviço, e não conseguiu evitar um sorrisinho:

- O1á! Esta já é minha conhecida! Quem lhe arranjou tal trabalho? Não é nada de grave. Desmaiou apenas emocionalmente. já lhe trato da saúde...

- Pois olhe, Sr. Doutor. Trouxe esta fulana da casa da senhora Inésia. Os motivos da zaragata, por enquanto, desconheço-os. Esta gente não dá um momento de sossego à polícia! Lá iremos para as averiguações, que remédio!

Alzira já estava de pé, com um penso na nuca. E, vendo Gomes a fazer-lhe os tratamentos, mais se azedou, vociferando:

- Aqui tem o resultado das selvajarias da sua protegida! Quase me matou!

- E porquê? Não me dirá? O que foi fazer lá a casa dela? De certo não lhe levou nenhuma ajuda... Mas isso, por enquanto, não me diz respeito...

A mulher saiu, engolindo em seco o seu furor. Bem melhor fora estar bem sossegadinha em casa. Como a outra a aconselhara!

Colhidas as impressões digitais e os apontamentos necessários, foram intimadas a prestar declarações na esquadra as intervenientes na contenda. Por fim, como nenhuma desejou processar a outra, a culpa foi atribuída a Alzira, por atitudes

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provocatórias, violação domiciliária. Além de que Helena ainda era menor, procedera, aflita , em defesa da mãe. Há tempos fora instaurado um processo disciplinar, embora no tribunal de trabalho, a Alzira que a forçara a perder o emprego. Agora era admoestada pela polícia, para evitar arengas. Qualquer dia, pouco faltaria para ser engaiolada. Saiu da esquadra, submetida ao peso de nova humilhação, não desejando encarar absolutamente ninguém... Aquilo era um castigo forte demais! Fechou-se em casa, vencida pelo desespero. Chorou tempo sem fim, envolta em mil pensamentos! Era ainda muito nova para dar cabo de si. Tal ideia passou-lhe pela cabeça, mas sentiu-lhe horror! Jamais seria capaz de o tentar! Desiludida com tantos insucessos, via-se forçada a pensar um pouco na sua conduta. Dentro em breve, não passaria duma pedinte, se não arranjasse qualquer coisa onde ganhar a vida. Tal humilhação, talvez a última, ela não teria forças de suportar, nunca! O remorso do que fizera, agora já lhe batia a porta, insistentemente... Quando estivera na mó de cima, fora muito áspera! Nunca imaginara que as coisas pudessem dar uma volta tão grande! Mereceria ela um castigo tão severo?. Possivelmente Deus ouvira o choro daqueles que ela, com a sua sobranceria, tantas vezes espezinhara! Que azar nunca se tornar íntima do seu antigo chefe de serviço! Como conseguira o médico, sem que ela o notasse, gravar aquela maldita conversa, e principalmente fotografá-la. Não fora ele, de certo! Enviara algum pulha bem esperto, que lhe armara a maior cilada então!

Por isso ele falara com aquele glacial à vontade! Cumpria à risca qualquer ameaça, sem pestanejar. Não adiantava continuar a luta, certamente inútil!

E se tentasse uma reconciliação?!...Ela agora teria um bom pretexto: o motivos do tratamento na cabeça. Pobre Alzira! Só lhe faltava mais esta, com os diabos! Mas, em último caso, era preferível que esmolar! 0 homem, se andava sempre metido na igreja, forçosamente, como qualquer um, teria a sua corda sensível, misturada com todos aqueles ímpetos. No fundo, até era bom sujeito, ela teria de concordar e... reconhecê-lo, amargamente...

Por muito que lhe custasse, a decisão estava tomada! Não havia outro remédio! Por humilhações bem piores já ela passara! Que verdade amarga e revoltante, quando nos toca directamente: necessidade... faz lei!...

Quando voltou ao hospital, e o médico lhe disse que não precisava mais de ser vista, ela não desperdiçou a oportunidade:

- Bom... eu gostaria de ter uma conversa, a título particular, com o Sr. Doutor, se não houvesse inconveniente. Poderá conceder-ma?

Gomes olhou-a, sem o menor rancor! Aquela humildade quase sincera ou pelo menos forçada, denunciava declaradamente a aproximação da carestia! Há, sem dúvida alguma, males que vem por bem. Daqui ninguém pode fugir...

- Às suas ordens, quando quiser. Hoje a tarde estou por minha conta.

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Se quiser, procure-me em casa, ou onde achar que seja melhor. Tenhamos em conta os imprevistos da vida dum médico, sujeito sempre a saídas repentinas. Em necessidades, não se olha a folgas, a meu ver. Se quiser...

- Perfeitamente. Estarei em sua casa, depois do almoço...

- Então, até logo, minha senhora. É um prazer, a sua visita...

Recalcando o resto do orgulho, Alzira não se fez esperar: vencido o primeiro obstáculo com menores dificuldades do que previa, com ânimo redobrado, iria chegar ao fim, com grande alvoroço:

- Como vê, Sr. doutor, fui incomodamente pontual. Apressei-me, porque não está por minha conta, e poderia ter necessidade de sair...

- Não precisa justificar-se! Vamos, sem rodeios, ao que por cá a trouxe…

Julgo não ter sido falta de saúde, senão preferia o consultório. Sou todo ouvidos

- O Senhor deve realmente ser muito generoso, estando certamente a fazer um grande esforço para não me por na rua ao pontapé. Mas serei breve, para o poupar aos incómodos de tão mau encontro! O senhor nem me odeia! Despreza-me, simplesmente, como a um animal vencido, em agonia, sem esperanças de vida!' Ora seja franco! Que grande presença de espírito. Até magoa!

- Mas que ideia a sua! Odiá-la, ou desprezá-la, porquê? Não sou mágico, nem adivinho; mas o meu contacto com os Homens, quase desde criança, tem me ensinado muita coisa: custa-lhe a dormir na cama dura que fez, não é? Paciência! Queixe-se de si própria? A senhora é a única culpada. Mas, diga da sua justiça. Em que lhe posso ser útil?... se é que posso

- Se quiser, talvez possa. O senhor pode tudo. Até pôr-me fora do emprego. Acha que fez uma nobre acção, não? Essa retumbante vitória deve ter-lhe dado uma enorme alegria! É muito influente...

- A senhora suponho, sofre de qualquer equívoco! Eu não sou dono do mundo, e muito menos do seu antigo local de trabalho. E o mais importante é que a consciência não me acusa de prejudicar o meu semelhante. Fez-se apenas justiça, e não fui eu, mas o seu chefe de serviço. A senhora exercia um cargo, para o qual não tinha preparação, ou pelo menos nunca o demonstrou. O Sr. Lopes, se não hesitou em tomar aquela atitude, é porque realmente não havia outra saída. Não me pediu para eu ser franco? Aqui tem as cartas na mesa. A sua anterior conduta deixou muito a desejar. É bom que agora comece a dar o valor ao que os outros sofrem! Veja se se habitua a considerar os necessitados como seres humanos, com necessidades iguais às suas. Nem o advogado com quem se meteu lhe resolveu o problema! Também me saiu um bom aldrabãozinho, que lhe apressou a queda no abismo! Bom, mas eu nada tenho a ver

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com o procedimento dos outros. Se a senhora aqui veio, certamente quer alguma coisa. Pois concretize duma vez por todas as suas pretensões...

A glacialidade daquele homem era cortante! Alzira sentia vontade de se retirar, e mandá-lo para os infernos. Todavia, uma vez que estava ali, já não tinha nada a perder, e abriu-se totalmente:

- O senhor de há muito que sabe o que me trouxe aqui! Estou à peneira, se exige uma confissão completa. Preciso urgentemente de trabalhar...

- Há tantos, por aí, à procura do mesmo... A vida custa a todos. Creio bem que, desta vez, não lhe posso fazer nada. A senhora, naturalmente, não se contenta com qualquer coisa. Vejo-a exigente...

- Efectivamente, se estudei, não gostaria de guardar cabras...

- Por isso mesmo o que deseja, não esta nas minhas mãos. Experimente a deixar o nome no Serviço Nacional de Emprego. Se lá não for possível, que espera de mim? Olhe, para o próximo mês o hospital vai precisar duma cozinheira porque a mais velha vai sair. Se estiver interessada...

Alzira não podia esconder o seu desapontamento. Bem sabia ela lidar com alimentos! Sempre tivera a sua criada... Agora, à falta de meios, comia em pensões baratuchas... Viu-se forçada a recusar:

- Ora, sim! Não estou preparada para desempenhar tais funções. Isso é quase um escárnio, sinceramente. Cada um é para o que nasce…

- Então, certamente a senhora errou a vocação, já que não se adaptou ao primeiro emprego! Quando a fome aperta, não nos podemos dar ao luxo de escolher! Julgo que ainda não há hipóteses de emenda na sua conduta. Não é uma recusa da minha parte: Mas realmente estou mais vocacionado para ajudar aqueles que se conformam e aceitam o que se lhes dá. Raros são os que conseguem chegar ao céu, sem passar pelo purgatório...

- Isso é na sua teoria. Eu não tenho tempo para me preocupar com essas coisas, que considero demasiado fúteis, para o meu viver...

- Pois agora, que tem o tempo mais disponível, e se confessa em apuros, seria bom que pensasse um pouco. Talvez lhe fosse proveitoso, que acha?! Vendo bem, olhe que não custa mesmo nada experimentar...

- Vejo que não nos entendemos, não vim aqui catequizar-me! Já não sou criança. Começo a pensar que perdemos tempo...

- Tem graça que eu vi isso desde o princípio. Estamos irremediavelmente inadaptados! Os medicamentos amargos também aliviam as dores. Se não os ingerimos, é connosco. Sujeitamo-nos a viajar mais cedo...

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- Muito sinceramente, vejo que a sua vontade é pouca. Será talvez melhor retirar-me, e desculpe o tempo que lhe fiz perder...

- Como queira. Mas convença-se de que as coisas não caem do Céu, e que eu não faço milagres... Não tenho tal privilégio...

- Está bem. Não se admire de um destes dias ter de assinar a minha certidão de óbito, e talvez mais cedo do que pensa.

- Alguém o fará, não se sabe quando, mas, já agora, não tenha pressa...

- Que indiferença mordaz! E é o senhor um católico praticante...

- Embora com muitos defeitos, assim me considero. E que tem isso?

- A doutrina tem, como base, ajudar os nossos semelhantes. ..

- Sem dúvida. Mas não há no catecismo , que eu saiba, nenhuma alínea que nos aconselhe a ir em chantagens emocionais. Eu, pelo menos, não conheço. Deus perdoa, mas também castiga. Ou antes, somos nós próprios que nos castigamos, se agimos mal. Essa é rigorosamente, a verdade...

- Eu já sei. Não preciso que repitam, a cada passada que dou, que fui cruel, desumana, e abusei do meu cargo, já não posso suportar mais isto.

Acho que, para castigo, bem me chega e sobra...

- Lá quanto a isso, já nada sei. Não pretendo ajuizar ninguém.

Alzira, vendo que falhara a derradeira tentativa, levantou-se, chorosa.

- Até à vista, Sr. Doutor. E oxalá que ainda não se venha a sentir moralmente responsável por um crime... um suicídio!

- Vá, tranquila, que não há perigo. Sou apenas médico, por enquanto, não trabalho em agências funerárias, pelo menos para já...

Ele acompanhou-a, até à porta, já enfadado; e depois, foi tomar um banho, reparador de energias, dando suspiros de alívio!

- Bateste a má porta, minha velha. Ainda tens muitas arestas a limar. Se pensavas que era chegar, ver e vencer, pior para ti. Cá o amigo Custódio não te pode acudir, pelo menos por enquanto! Tens de abater mais a crista, se não, voltas à mesma arrogância e entramos num ciclo vicioso! Estraga o resto que tens, e depois... Logo veremos se ficas mais mansinha!

Alzira, por seu turno, que se chegara a convencer ter recuperado, de certa forma e facilidade, o perdido, estava agora mais desolada que nunca, afrontando nova derrota. Daquele estado de espírito à entrada na vida fácil, era só um passo... Custaria apenas a tomar a iniciativa. Depois... o hábito faz o monge. Antes deitar-se com muitos, do que dar com a cabeça numa pedra, ou morrer à fome! E os seus familiares? Queria

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lá saber disso! Deus por todos, e cada um por si. Não é o que dizem? Pois que seja, com todos os diabos! A fome não se compadece com demoras; e, tarde ou cedo, transforma os espíritos mais arrogantes na submissão exigida pelo estômago. Alzira sentia-se já no fim das suas forças, mas chamava a si o último alento, para não se entregar ao primeiro, humilhada, a fim de matar a fome. Não devia muito à beleza. Mas, como qualquer ser humano, desejava a correspondência amorosa, que também não havia meio de chegar. Se, na mó de cima, não o conseguira, agora, de rastos, certamente muito pior, coitada...

Há bem pouco tempo, ninguém ousava levantar os olhos para a senhora da assistência, sempre tão soberba e altiva. Agora... que mudança tão brutal e repentina, qualquer fedelho, sem a menor cerimónia, a cortejava grosseiramente por onde quer que ela passasse:

- Olá, besuga! Estás a definhar depressa demais! Isso é larica, ou muito trabalho, no arame?... Se quisesses... talvez não te desagradasse cá o rapaz! Era uma experiência... uma consolação para ambos...

Alzira, fulminada por um rancor sem limites, tentou agredir o engraçado que, prevendo a explosão, se esquivara a tempo, com gargalhadas estridentes, e muitas vénias, amavelmente trocistas:

- Pronto, minha pomba! Não te zangues! Podes não ter vocação para o matrimónio; nem eu falei nisso, longe de mim tal ideia! mas... de vez em quando... uns derriços, talvez te abrissem o apetite! Olha: boa ideia a minha: Talvez até engordasses, daqui por algum, tempo; que dizes amorzinho? ! ...

- Ah, grandessíssimo filho duma cabra! eu fuzilo-te; mato-te...

- Que eu saiba não somos irmãos, querida Alzirinha! nem primos, sequer!

E é assim a humanidade: Jamais se atreverá a agredir os poderosos! Mas nunca hesitará em menosprezar e ridicularizar quem rasteja…

Justino era um rapaz de dezassete anos que, indiferente aos dramas alheios, escolhera aquela mulher para vítima dos seus escárnios. Mas, sem se

preocupar com o que ia a sua volta, teve uma surpresa muito desagradável, quando se sentiu agarrado com vontade por uma mão enérgica:

- Ouve lá uma coisa: não queres que eu te parta as trombas, pois não? Vê se não perturbas a ordem pública, com atitudes provocatórias a quem segue o seu caminho, sossegadamente, daqui ao calabouço, é num instante, já sabes que não penso duas vezes, para passar da palavra à acção, vê lá se atinas...

Muito atrapalhado, Justino tentou justificar-se, meio à toa:

- Pronto, Sr. Guarda... Sr. Sebastião! Eu estava a brincar! Que diabo! Também já não se pode galantear um pouco uma pequena, nesta terra?'....

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Desde que ela não aceite, evidentemente que não. Ou julgas que te é lícito chatear os outros, impunemente? Queres molho, de certeza!

Alzira não era parva, e aproveitou imediatamente a oportunidade para descarregar sobre aquele imprudente a sua cólera, desta vez, com razão:

Sr. guarda: há muito que este insolente me provoca, sem que eu lhe consinta. Exijo que seja castigado, senão estamos sujeitos à lei da selva. Sebastião olhou-a com indiferença, mas cumpriu o seu dever:

- Muito bem. Recolha as suas exigências, a que eu não dou a menor importância, e tenha a bondade de apresentar queixa na esquadra aonde serão tomadas as medidas convenientes. Eu testemunhei o caso, é certo, mas tudo se faz com a devida ordem. E tu, Justino caminha há minha frente, que desta vez tua leviandade vai sair-te mais cara do que esperavas, grande palermóide.

Cabisbaixo, o rapaz limitou-se a obedecer, amaldiçoando intimamente Alzira, o polícia e a sua imprudência, que agora lhe ia custar caro! Os olhos daquela mulher, saboreando antecipadamente o doce prazer da vingança, fuzilavam! Talvez aquela lição servisse aos demais provocadores! Toda ela era arrogância, embora soubesse que aquilo não iria remediar as suas aflições. Um tubo de escape bem pouco compensatório, na prática...

Já na esquadra, e apresentada a queixa, o irreverente galanteador apanhou um dia de detenção, para ter mais cuidado com a língua, dali em diante.

Alzira dormiu mais tranquilamente nessa noite, e até recuperou um pouco de energias, para recomeçar a procurar serviço, no dia seguinte. Com a barriga sempre mais impertinente, aceitaria o que viesse... que remédio tinha!

Com esta firme disposição, logo na manhã seguinte, entrou num supermercado, pedindo para falar ao gerente. Foi informada que ele só viria à tarde. Saíra com um caixeiro viajante, com quem iria almoçar, e a sua chegada...

Tinham muita pena, mas ninguém sabia. Talvez até nem voltasse...

Alzira muito decepcionada, encolheu os ombros, dizendo que voltaria depois, engolindo mais aquela contrariedade de muito mau humor. Como é amargo o reverso da medalha! Agora já ninguém esperava por ela, quase de joelhos, tempos sem fim, mas ela pelos outros... talvez inutilmente!...

Que remédio senão voltar depois do almoço! Era preciso habituar-se, mentalizando-se de que quem precisa é que procura. E, para mais pesada ser a sua cruz, não lhe passaram despercebidos os olhares de troça que lhe lançaram à saída, os empregados que a receberam, uns velhacos, talvez sem instrução...

Logo que ela desapareceu, os comentários mordazes não se fizeram esperar:

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- Ora vejam só a mansidão resignada da nossa digna e autoritária assistente social! Até parece que agora anda a ter aulas de civismo, quem diria! Mas que deseja ela do Sr. Azevedo? Se calhar... ser administradora da empresa, para se recuperar a si mesma e levar-nos todos à falência! Vai-te, demónio de saias, bater a outra porta! È caso para dizer: abaixo a reacção! Nem cara que se veja tem aquele traste! Não seduzes ninguém! Está-te saindo mais caro do que pensavas o escárnio que fazias dos outros, linda pequena! Deus não dorme, e tu bem precisavas desta lição! És tão bela e simpática, que nem um marido, mesmo um pobre diabo, consegues arranjar, minha infeliz!

Américo, um aos funcionários daquele estabelecimento, partia-se a rir, consigo próprio. O seu colega Serafim também achou conveniente intervir:

- Oh, pá: deixa lá a besuga em paz! Comichão tem ela, que nunca mais se coça. Talvez tu a pudesses ajudar, mesmo com ou sem sacrifício…

O outro fez um gesto de gozo, mas não se indispôs:

- Para passar um bocado, com fominha, qualquer coisa serve. E há sempre quem seja pior. Se calhar ela devorava-me com ganas, safa… Mas os clientes já estão a olhar-nos, e com razão, porque nos esperam. Vamos ao trabalho...

Alzira sairá dali a pensar, com certa mágoa, no que ouvira: o gerente fora almoçar com um caixeiro viajante, por conta da firma... do bom e do melhor!

Bela vida têm os gerentes! Às vezes, ainda melhor que os patrões que, a contas com as suas responsabilizares, nem conseguem dormir descansados... Comparou a sua sorte actual com a daquele felizardo: Em tempos bem recentes havia grande semelhança entre ambos. Mas agora...que amarga saudade! Nessa altura de fausto e pompa, nunca pensou ser possível chegar a situação tão aviltante....Que, reviravolta ou maldição caíra sobre ela, vida cruel!

E, como necessitada que busca o que carece, também disto se forçara a convencer-se, lá estava, após a reabertura do supermercado, à procura do gerente. E desta vez teve mais sorte que juízo, porque o homem acabava mesmo de chegar, e não se recusou a recebê-la mesmo com um sorriso forçado:

- Então... que deseja desta sua hospitaleira casa, minha senhora? Já sei que de manhã por aqui andou a minha procura. Lamento muito ter estado ausente. Mas é tudo para cima do pobre Azevedo que, conforme lhe é possível, lá vai tentando levar a cruz ao calvário! Não chego para as encomendas... Mas, pronto: agora aqui me tem, inteiramente ao seu dispor, naquilo que os meus fracos préstimos, é claro, porque não sou dono do mundo...

Alzira já não podia ouvir tanta cortesia, em forma de lamúria, mas teve que aguentar. Estava ali com extrema necessidade, e foi direita a questão:

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- Pois, caro Sr. Azevedo, como não deve ser novidade para si, de há muito tempo que estou desempregada, e não se vive do ar e vento. Daí que não será nada difícil saber o que quero de si: procuro trabalho...

Azevedo encolheu os ombros, pediu licença para acender um cigarro, vício que todos os mortais, em proveito próprio, deveriam pôr de lado, e fingiu-se desolado, incapaz de qualquer reacção ou movimento favorável:

- Mas a senhora... é que nós, aqui, com certeza não temos serviço que lhe agrade! Já procurou em qualquer departamento do Estado? É que lá, com um pouco de boa vontade, eles sempre arranjam mais um furo...

0 azedume começou a apossar-se da mulher, que tudo fazia para se manter, conservar calma, evitando um gesto de enfado, tão normal nela:

- Se aqui estou, senhor, é porque preciso e... necessidade faz lei! Infelizmente não estou em condições de dar-me ao luxo de escolher. A maldita vida tem destas casmurrices inconcebíveis, Estou... desesperada !

Quase logo a mulher arrependeu-se da sua imprudente confissão, pois estava a dar valiosos trunfos ao adversário. Mas era forçoso agarrar o que lhe dessem já que a sua má estrela a perseguia, sem tréguas.

Velha raposa matreira, Azevedo fingiu meditar seriamente no assunto: Bom... . assim à primeira vista... não vejo... a não ser que... Talvez na secção de empacotamento lhe pudéssemos arranjar qualquer coisa... Desta vez a orgulhosa mulher não pôde esconder a sua decepção e revolta:

- Oh, senhor por amor de Deus. Isso é mesmo vontade de fazer pouco, de escarnecer. Que diabo! Eu tenho estudos...

- E necessidades, também, segundo acaba de confessar-me, agora mesmo. Acho que deve ter em conta a minha boa vontade. Se não lhe servir...

Era uma ocasião de ganhar ou perder! Alzira,, forçada pelas circunstâncias, vencendo a repulsa, tentou uma última chance, sem convicção:

- Ao menos... sei lá... talvez numa das caixas...

Azevedo, autoritário, cortou de imediato a sugestão:

- Oh, minha senhora! Pela sua saúde! Sejamos realistas: A prudência não me aconselha a pô-la a lidar com dinheiro. Desculpe, mas o seu passado não me dá garantias! Ora essa! O melhor é procurar noutro lado…

Aquele homem, como todos os que desempenham as suas funções, recebera-a, tão amavelmente, a agora, sabedor do que ali a trouxera, virara grosseirão, chamando-lhe, de caras, ladra. Esmurrá-lo, seria deitar tudo a perder. Ir procurar serviço a outro lado, talvez não lhe dessem trela. 0 melhor, para não perder mais tempo e paciência, era mesmo aceitar, sem transigências:

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- Pronto, está bem! Aceito. Que remédio. Quando começo? hoje mesmo?

Agora era Azevedo o autoritário e desinteressado:

- Não, minha senhora; isso não é assim. As coisas fazem-se com calma. Tem de ir à secção de pessoal, preencher a papelada. Isso, para si tão habituada a estas burocracias, não deve ser novidade. Pode começar no próximo mês, segundo creio. Mas depois lhe confirmarão. E agora, que estamos entendidos, dentro do possível, boa tarde, que tenho mais que fazer...

Ela saiu, resmungando, ¦ de muito mau humor:

- Merda para isto. Mas... do mal o menos. Sempre é melhor que entrar na prostituição, contra vontade. Com tanto azar, talvez nem achasse clientes...

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CAPÍTULO XI

VERTENTE PENOSA

Ganhar uma batalha, por vezes, num rasgo de sorte, não é impossível. Pior será depois manter as posições reconquistadas, e defendê-las, contra os ataques dos inimigos que, de certo, implacáveis, não darão tréguas...

Chegara o momento de restituir à liberdade um homem que matara o seu semelhante, a quem as leis da Justiça haviam reconhecido um crime com grandes atenuantes, e cuja sentença, como vimos atrás, dera origem a muita controvérsia principalmente porque uma viúva pedira o perdão para o assassino do marido. Abnegação, perdão para o inimigo, ou ânsia de liberdade?!... Reabilitado perante as leis terrenas, Jeremias podia, enfim, ver o sol... todavia o seu pisar o chão tem pouca firmeza: cambaleia, mesmo sem ¦ cheirar álcool há mais de ano. Tudo, à sua volta, lhe inspira tanto pavor como desconfiança. Que irá agora fazer da sua vida! Remorsos do acto que cometera, já não sentia. 0 médico recuperara-o, não só física, mas já também quase moralmente. No seu juízo perfeito, jamais praticaria uma acção tão abominável, e muito menos tomando por vítima o seu maior amigo. Agora era uma terrível solidão que lhe pesava, que lhe inibia todos os movimentos, qual cadeia invisível, bem pior do que aquela de onde acabava de sair. Na prisão, ainda que atrás das grades, ao menos ainda tinha com quem conversar! Ninguém

o repelia! Era na recuperada liberdade que se sentia só, completamente abandonado, sem família, talvez sem amigos! Tivera apenas dois: o que matara, e o que o restituíra à vida, fazendo-o acreditar numa recuperação difícil, mas possível, havendo grande força de vontade. Mas esse... tão ocupado cor. os seus doentes, numa vida de sacerdócio e abnegação, com certeza não teria tempo para se lembrar daquele bêbado, porque em boa verdade o julgaria livre de perigo. Preso, ao menos ainda comia, cá fora, não se sentia com força para mendigar, procurar trabalho, receando ser logo repelido ao pontapé, como o pior dos assassinos, cuja presença e extremamente perigosa! Em tal estada de alma, pouco faltaria para afundar-se inevitavelmente no desânimo...

Efectivamente não se engana, quem afirma não ser a vida um mar de rosas: É mar, sim, com a bonança e as tempestades "de'"mãos dadas, 'aonde os incautos se afundam, a cada momento. Rosas! enquanto o seu perfume nos inebria, qual canto de sereia imaginária, ferem-nos os seus espinhos, sem Ao nem piedade, e, quantas vezes, mortalmente Eterna amálgama de ficção e realidade...

Raros são os que conseguem enfrentar com optimismo as duas faces da vida:

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Ao milionário, ambicioso e indiferente a necessidades alheias, pode faltar a saúde, e então o desespero devora-o, irremediavelmente. O pobre camponês, embora com músculos de aço, quase sempre envolto em honradez, carece, vezes sem conta, do vil metal indispensável à subsistência humana...

Haverá, como gota de água no oceano, umas almas disponíveis para acudir e minorar os males alheios, chegando a dar alegremente a vida, se necessário, em defesa de tão nobres ideais! Ao invés, muitos se ocupam, gastando energias e cérebros na invenção de invenções destruidoras! De tudo isto, sem prémio ou castigo visíveis, por aí, à mistura, graças a Deus...

Prestes a derramar a última gota do seu precioso sangue, pela ingrata humanidade, ou em vésperas de tão santa e ignominiosa imolação, Cristo pediu aos que o seguiam um pouco de sacrifício, e que orassem, com Ele e eles, carne fraca, embora espírito pronto, acabaram por adormecer...

Até numa hora tão trágica e sublime, o desânimo e a esperança, num apertado amplexo de solidariedade...

Através da nossa história, temos vindo a celebrizar um personagem que, enveredando pela carreira de médico, se notabiliza talvez ainda mais como homem justo, em constante doação aos outros. Não pensemos, no entanto. que ele tem tudo na sua mão: fraquezas e desânimos também o dilaceram, malgrado a sua têmpera enérgica; não odeia ninguém; mas, por aplicar a justiça, indiscriminadamente, vai arranjando inimigos, e dos poderosos!

A frontalidade com que defrontara, em terreno alheio, certos manipuladores das leis, desarmando-os, única e simplesmente quando assumira a defesa dum infeliz alcoólico, deixara-os bastante ressentidos, quais políticos, completamente derrotados, após árduas campanhas eleitorais...

S, quem se atreve a pisar os calos, fica inevitavelmente marcado...

Mas há coisas mais importantes, na vida de Custodio, que o absorvem por completo, não lhe dando tempo para pensar em quezílias, que até desconhece.

Mesmo agora, consultando a sua agenda, apressa-se, para ir ao encontro de alguém a quem certamente urge socorrer. Parece que Deus lhe encaminha os passos para o local exacto do mais sincero e apertado abraço:

- Venham de lá esses ossos, meu general! Vamos já comemorar condignamente o seu regresso à vida e à liberdade mais que merecida! Mas não é com essa cara de enterro! Espero não estar de novo em vias de ter que recuperar um moribundo, que encara uma vitória com ares de derrotado. Isso não é nada…

- Infelizmente, Sr. doutor, é a triste realidade! Eu continuo a desacreditar em tudo, em todos, e, pior ainda, em mim próprio! E mais uma vez o senhor me aparece, lançando-me a tábua de salvação. Perde tempo comigo!

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De repente, como por milagre, as asas da esperança esvoaçavam junto daquele homem, ainda dramaticamente traumatizado. Foi neste estado de espírito que deixou, numa explosão soluçaste, falar a alma:

- Oh, Sr. Gomes! É verdade que estou de novo em liberdade, e apenas graças a si, à sua infinita generosidade e interesse por quem nada vale! Posso

caminhar por aí, escondendo-me das pessoas, para que não fujam de mim, como réptil repelente. Não me dirá para que quero eu a vida?...

- Ora essa! porque ela é sagrada, e ninguém tem o direito de atentar contra si próprio, além de que todos têm o seu valor, e pode dedicá-la a quem dela careça. Deus não criou ninguém à toa, convença-se disso...

- Até os bêbados... os assassinos!?... não me dirá para que servem!

para serem desprezados, mais nada. Só me resta sufocar as ilusões, impedindo-as de terem voz. Sou simplesmente um homem perdido...

- Outra vez a mesma história, criatura de Deus!? Já se esqueceu do nosso compromisso? da sua palavra? não o julgo capaz de retroceder com ela...

Jeremias, ouvindo aquele apelo, sentia-se inquieto. Fazia penosos e vãos esforços para apreender o que significavam as palavras do seu dedicado amigo. este, vendo-o em dificuldades, deu-lhe a mão:

- Desculpo-o, porque todos estamos sujeitos a esquecimentos! Todavia não foi apenas a minha intervenção que lhe reduziu a pena. Outra voz mais alto se levantou, acredite. Esqueceu-se , por acaso duma viúva... com filhos... Uma e outros, coitados, precisam de subsistir, não acha?...

Fora a única e habilidosa maneira que o médico encontrara para o fazer reviver, julgar-se útil aos outos. E, ouvindo tais palavras, Jeremias sentiu-se tocado por corrente eléctrica, experimentando uma energia que julgava há muito tempo definitivamente arredada dos seus membros. Como era possível esquecer-se de tamanha dívida? Do seu resgate? Sem dúvida que continuava a ser um abominável criminoso, um egoísta insensato...

- Tem razão, como sempre, Sr. Doutor. Esses infelizes carecem urgentemente do alimento que lhes roubei, do pão quotidiano. Jamais me esquivarei ao cumprimento dum dever tão sagrado quanto doloroso e amargo! Necessidades sem conta estarão eles a passar! Mas eu, na cadeia, nada podia fazer! E agora?...

Desgraçadamente, estou na mesma. De que me servem estes braços, mesmo fortes, sem trabalho? Que mo dará? Sou um inválido, um pelintra, que ninguém aceitará, sem me olhar com rancor, ao seu serviço. Julgo que só Deus e o Sr. doutor sabem que na verdade não sou um criminoso, mas uma vítima do destino...

Que pesadelo! que calvário de torturas, subjugando uma só criatura!

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Trágico drama, de quem tenta e quer reagir, sentindo-me manietado...

Custódio avaliava a grandeza do desespero com que aquele pobre homem lutava, e tudo faria para solucionar mais aquele problema. Contudo, a questão não estava apenas em arranjar-lhe emprego. Isso não seria bicho-de-sete-cabeças. Afligia mais aquela boa alma o facto de saber que a integração de Jeremias numa sociedade egoísta não seria nada fácil: ele acabava de sair da prisão, com um crime de morte às costas, isso deixa marcas, porque ninguém tenta averiguar causas, antes de criticar asperamente actos. O passado continuaria, qual sombra sinistra a perseguir aquela vítima do álcool...

E, enquanto meditava na mais rápida solução, o médico levou o amigo para casa, familiarmente, aonde almoçaram, em sossego. Naquela altura, para desanuviar o cérebro, o melhor era dar de comer a quem tem fome.

Embora com o estômago a dar horas, o pobre homem ainda tentou esboçar, mesmo sem vontade, uma recusa. Mas Custódio arrancou facilmente maneira de lhe evitar a humilhação, dizendo-lhe que era desfeita não aceitar o convite dum amigo. Em próxima altura seria Jeremias a convidá-lo...

E, como havia necessidade de cavar o quintal, que estava muito desmedrado, e cavar o jardim, Jeremias teria serviço para o resto da semana...

0 médico, deixando em casa o seu hóspede, tratou logo que saiu de lhe procurar emprego, ligando para uma fábrica de lacticínios, e pedindo para falar ao Macedo, identificando-se, e sendo logo atendido:

- Olá, Sr. Gomes. Que deseja deste seu criado? É uma honra estar inteiramente ao dispor do médico mais ilustre destas redondezas...

- Espero que as suas palavras não sejam mera cortesia, mas sinceridade, que me confirmará, na prática, de acordo?...

Apanhado de surpresa, com aquele ataque à queima-roupa, o outro nem teve tempo de raciocinar ou esboçar uma defesa. E, para não se desmascarar, logo ali, sorriu, tentando ser o mais amável possível:

- Oh, caro doutor. Isso não e para nós, sinceramente, só não lhe serei útil, se não me for mesmo possível. Conte, portanto, comigo...

- Pois então, lá vai: tenho um amigo, de mãos a abanar, que precisa de emprego. Lembrei-me de lhe solicitar este favor, responsabilizando-me, desde já, pela sua conduta. Não lhe devo ocultar, pondo as cartas na mesa, que o passado dele não oferece muitas garantias, pelo menos às aparências sociais. Mas garanto-lhe sob palavra de honra, que ele só se quer reabilitar, e não lhe arranjará quaisquer problemas. 0 homem está muito deprimido, e se não lhe dermos a mão, sozinho, certamente não se recuperará. É tudo.

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- Oh, doutor. Pediu-me para ser sincero, e tenho muito gosto em fazer -lhe a vontade. Combinemos um encontro, por exemplo, para hoje à noite, se lhe der jeito, até poderemos jantar e... conversaremos. De acordo?

Evidentemente que as coisas não se resolvem em cima do joelho. Tudo farei para não faltar ao encontro. Então ate à noite, em sua casa...

- Adeus, doutor, e fique certo de que terei muito gosto em servi-lo.

É uma prova da minha amizade por si. Farei tudo o que for possível, creia... Como quase todos os patrões, aquele não era excepção: sabia usar o bom trato, na sociedade, fazendo a melhor cara a todos. Mas, e porque tinha a barriga bem cheia, pouco mais me interessava do que a acumulação aos lucros pessoais. Um miserável a mais ou a menos não lhe tirava o sono. Contudo não era de bom gosto deixar de atender aquele médico que, senão, sem dúvida, boa criatura, às vezes tornava-se… incómodo! E poderia, nunca se sabe, vir a precisar dele. Com a saúde não se brinca! Em último caso, um empregado a mais também não e que lhe iria arruinar o negócio. Mas quem seria esse amigo do médico, cujo passado não era de fiar? Recebê-lo de pé atrás, não seria imprudência. Complicações ou arengas na sua firma, para desestabilizar, isso é que não queria, tivesse Custódio santa paciência! Ali não era nenhum santuário, para reconverter pecadores ! Ali, apenas o trabalho...

Precisamente à hora marcada, o médico tocou à campainha duma linda casa:

- Olá, doutor. Entre, não faça cerimónia. A casa, mas modesta, e sua. Esteja a vontade. Sempre respeitador aos horários, muito bem...

- Alem de não querer fazê-lo esperar, estou de serviço, esta noite, no hospital. E, se o caso não fosse urgente, tê-lo-ia adiado...

_ Oh, meu amigo! Mas.. se o caso é de vida ou de morte, quem, melhor

do que um médico da sua estirpe, pode solucioná-lo? Não serei eu, certamente.

- Nada de brincadeiras , meu caro. Nem só de medicamentos e operações vivem os doentes, Há-os, com outras enfermidades. Esta, por exemplo, cura-se com o pão, que se compra com o dinheiro, ganho através do trabalho, sabe?

por isso é que recorri aos seus bons ofícios. Essa fábrica progride a olhos vistos, para seu bem, e da comunidade, parabéns!

- É um facto, meu amigo, mas tira-me muitas horas de sono, para mantê-la, com cabeça. 0 menor descuido... é a morte do artista! E, pelas suas informações, esse mouro de trabalho tem tido uma conduta muito duvidosa...

- É verdade. Mas julguei que não se tivesse esquecido que tomei sobre mim a responsabilidade da sua conduta, para sua informação, saiu hoje da prisão, e vive mais só do que se continuasse lá dentro, cheio de vergonha e medo injustificado de encarar os seus semelhantes.

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Macedo encarou o seu interlocutor com visível assombro e certo enfado:

- Ouça lá, doutor: não me vem para aqui com ideias de desestabilização , pois não? Quem é esse malandro? Não me diga que se trata do... Jeremias...

- Acertou em cheio. É ele mesmo, que me diz, amigo Macedo?...

- Que vá bater a outra porta, meu amigo! Não lhe posso ser útil! Acho que o senhor até nem se devia meter nessas obras de misericórdia, já tem uma vida tão ocupada… Receio muito que essa generosidade ainda o comprometa...

- Até hoje, ainda não me arrependi, e espero que tal nunca me aconteça. 0 Senhor tem o direito de aceitar ou não uma proposta, com a qual se comprometeu quase prontamente, há bocado, cheio de mesuras. Mas os seus conselhos, que julga serem avisos de amigo, não passam da mais vil e torpe intromissão, grosseria essa que me obriga a responder-lhe com outra, que pelo menos tem o condão de ser verdadeira: 0 senhor, talvez porque nunca passou necessidades, tanto se lhe dá ver pedintes ou milionários. Nem se dá ao trabalho de acreditar na reabilitação de alguém, porque isso não influi em nada na sua firma. Nem tão pouco se dá ao luxo, mesmo que por desporto fosse, de medir os transes que levaram um ser humano a este ou àquele procedimento. É consigo! Habituou-se a ver números, e pensa que viverá eternamente. Mas isso, meu caro, garanto-lhe que se engana. Todo o porco tem o seu natal, Enfim, não lhe vim aqui pedir esmolas, mas trabalho. E, como não nos entendemos, não me é licito roubar um tempo precioso e inútil que estou a gastar consigo, aos meus doentes. 0 Homem não há-de morrer à fome, se Deus quiser? O mundo não se resume à sua petulância, que oxalá dure sempre! Felicidades e votos para a sua empresa...

E já fazia menção de retirar-se, quando Macedo, mesmo contrariado, tentou retê-lo, retrocedendo um pouco nas suas intransigências:

- Oh homem, acalme-se, bolas! Bem poderia conduzir-se com mais diplomacia! As moscas não se apanham com vinagre! Assim nada conseguirá de ninguém!

Uma mistura de cólera e impaciência sacudiu o médico, que explodiu logo:

- Eu nunca fui de meias palavras, nem nasci engraxador. Se vocês pagam, recebem muito mais trabalho do que o dinheiro que desembolsam. No fundo, salvo raríssimas excepções, são todo o mesmo excremento. Não aceitou a minha proposta, que lhe expus francamente, retiro-me. Se lhe arrancassem a cabeça, certamente sentir-se-ia muito escandalizado caso eu me recusasse a fazer-lhe o tratamento. E, no serviço de urgência, é tudo gratuitamente. Os médicos também comem e vestem, sabe? É claro que eu não faria tal coisa, mas, se antes de si me chegasse lá um pedinte, ah, isso não tenha a menor dúvida que o seu nome não anteciparia a sua consulta à dele. Propus-me desde criança seguir o exemplo das árvores e fontes que, respectivamente, dão a sua sombra e matam a sede a toda a gente. Daqui não recuarei um passo, porque não pactuo com quem já e bafejado pela sorte em detrimento dos que nada têm. Se não

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me detivesse, já este sermão inútil não o incomodaria. E, como as minhas garantias não lhe dão a segurança necessária, vou procurar crédito mais limpo em outra parte...

O Jeremias tem braços mais robustos que os seus para ganhar o pão de cada dia.

Ao menos podia dar-me o prazer da sua companhia para jantar. Foi isso

que combinamos, e não faltava a sua palavra, de que tanto se preza...

- Jante com a sua hipocrisia social, que o prazer não é partilhado. Não estou habituado a cultivar etiquetas, só para ficar bonito aos olhos da sociedade, à qual, felizmente, nada devo. Hei-de penitenciar-me pelo pecado do orgulho. Mas tudo o que sou devo ao meu trabalho, ao meu suor. Não nasci como muitos, com os seus problemas todos resolvidos. Talvez por isso dê mais valor aos necessitados, pois não me considero melhor ou pior que os outros: Só me resta dizer-lhe adeus, e creia que foi vantajoso para mim, embora a disposição que me fica seja o espinho da rosa, conhecê-lo… sem máscara!...

Aquela insolência perturbou bastante Macedo, que lhe respondeu simplesmente:

- Nunca tolerei incorrecções. Nos cursos de medicina deveria haver um código de boas maneiras, para atender melhor a clientela. Passe bem...

Custódio saiu daquela casa, simultaneamente desiludido por não conseguir nada para o seu amigo, e satisfeito por ter dito umas verdades amargas a um cínico, que só se fazia cortes para cultivar precisamente o que são todos os endinheirados. mas isso já não o preocupava. Teria de arranjar novas vias ; pois se falhara a primeira tentativa, não era caso para desanimar. Talvez a ponderação fosse melhor que a pressa, para aconselhar.

Para não fugir aos seus hábitos, Custódio mais uma vez refez os inconvenientes de mais um desagradável encontro, com um banho reparador. De seguida, pediu que lhe servissem o jantar, tendo de novo por companheiro o seu jardineiro improvisado, que agora parecia um pouco mais refeito. Ao longo da refeição, conversaram alegremente, esquecendo as agruras da vida...

Até melhor situação, Jeremias não passaria fome nem frio, muito menos. humilhações, na medida em que prestava um serviço a quem o recebera em casa.

A noite foi relativamente tranquila, no hospital: salvo um ou outro gemido mais doloroso, prontamente atendido, não houve acidentes de monta, para sobrecarregar serviço de urgência. E até Custodio teve uma brilhante ideia:

- Ora bolas! Eu com o remédio mesmo ao alcance da mão, e perdendo tempo com pedantes, que médico das dúzias sou! Que Deus me perdoe, e a esta cabeça tonta e impulsiva, que não se lembrou mais cedo... há muito que aqui temos falta de maqueiros! Está mesmo a calhar um serviço para aquele pobre homem! Bom acho que desta vez não encontrarei tantos obstáculos, na administrarão do hospital, embora

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santos caseiros não façam milagres! Confiemos que seja esta a excepção que confirma a regra, e o provérbio falhe. Nada de desânimos!

Na manhã seguinte, o optimismo e alegria do médico desmentiam que ele tivesse passado uma noite em claro. Era o resultado do prazer que sente quem julga estar à beira de arrancar uma criatura do abismo, resgatando-a. Iria abrir-se, finalmente, a porta da salvação… assim seja…

Logo que possível, reuniu-se com a administração, da qual também fazia parte, apresentando o problema. Não foi muito fácil, porque realmente o seu hóspede não gozava de muito boa fama: Esta, consultada na secretaria, identificava-o como perturbador da ordem pública. Todavia, limadas algumas arestas, e se o médico se responsabilizava, o pretenso maqueiro entraria ao serviço, já no inicio do próximo mês. As macas não paravam, dia e noite, infelizmente...

Como criança que alcança o brinquedo mais ambicionado da sua vida, a satisfação de Custódio não tinha limites! E foi neste estado de espírito que com muita humildade, entrou numa igreja, para agradecer ao seu Deus mais aquela extraordinária prova da sua misericórdia:

- Muito obrigado, Senhor, por terdes olhado com bondade para mais um dos Vossos filhos. Era outra ovelha perdida, sem culpa própria. Fazei que ela se reencontre, o que espere esteja prestes a suceder! Ajudai-a, meu Deus, que bem precisa! E assim, não cairá irremediavelmente no abismo! Sou, um vosso humilde servo, sou o fiador de Jeremias, que não será ingrato...

Antes de levar certezas, o médico não ousaria lançar esperanças vãs no coração do amigo. Mas agora, que já as tinha, não podia passar mais um instante sem as transmitir a Jeremias, que as recebeu, comovidamente;

- Sr. Doutor: mais ao que com palavras, juro-lhe que leu agradecerei, com actos! Agora, sim: aquela viúva, enquanto eu viver, tem o futuro garantido!

E as lágrimas, em torrente silenciosa, eram a resposta mais sincera daquela alma agradecida eternamente, ao seu benfeitor. Este ria, triunfante:

- Então, meu caro? Isso são lágrimas de felicidade, eu sei. Também a sinto, creia! Mas agora, pensemos no futuro, que disparate. No presente, queria eu dizer… o futuro... esse, está nas mãos de Deus, que olha por todos nós. A Sra. Inésia vai mantendo a sua casa, com muitas dificuldades, é verdade, mas já esteve muito pior! A filha mais velha trabalha também no hospital. E, apesar de ainda ser relativamente nova, desempenha cabalmente as suas funções.

- Ah, a Almerinda... coitada! Tanta pancadaria que o pai lhe dava, sem motivos: Que Deus lhe perdoe, e a mim, que o matei, numa querela estúpida? Àquele maldito álcool... tantos males que faz, e continua impune, por esse mundo fora! Nunca mais! Nem cheirá-lo! Deus me livre!

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- Ainda bem que assim pensa! Procure sempre abominá-lo, e ajudar os outros a fazer o mesmo, evitando-lhes os efeitos maléficos...

- Pobre de mim! Bem o desejaria, de todo o coração! mas... quem me daria crédito? Ridicularizar-me-iam, rindo-se dum bêbado, a querer armar-se em santo!

- O seu testemunho, precisamente por isso mesmo, tem muito mais valor: Fala com a experiência do mal que o atingiu, e do qual felizmente se libertou, com os propósitos firmes de não voltar a cair noutra, graças a Deus!...

E a si, também, Sr. Doutor. Devo-lhe a vida, física e moral, mais do que uma vez. Tais coisas nunca mais as esquecerei, por muito que viva.

- Deixemos isso, agora. Daqui, a quatro dias seremos colegas de serviço. 0 Senhor verá que tudo vai mudar, e para bem melhor…

- Quase me parece um sonho, um maravilhoso conto de fadas. É bem verdade que ninguém sabe para o que nasce! E o que ainda me espera no mundo?!...

- Uma maca, para transportar doentes, de pouco a pouco. E olhe que há dias sem um momento de lazer... Infelizmente este hospital está sempre cheio. São mais os que entram do que os que saem. Logo verá, quando for chamado a intervir. Quantas vezes, a meio da mais tranquila das noites…

Tal como Alzira, no fim do capítulo anterior, também Jeremias agora via o seu problema em francas vias de solução. Ambos recomeçavam nova vida, cada um com um passado muito duvidoso. Qual deles conseguirá resgatar-se mais cedo? Sigamos a história, que há mais personagem cujos destinos continuam bastante incertos. Não seja eles também seres humanos à deriva…

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CAPÍTULO XII

DIVERSAS TONALIDADES

Agora que começamos na vida, transpondo e torneando, com maior ou menor dificuldade, os obstáculos que foram aparecendo, é nosso dever não os deixar entregues à sua sorte e apalpemos a adaptação de cada um...

Almerinda, qual flor viçosa que é, sente-se mais útil, mais responsável pela sua família! Lembrava-se a cada instante da má vida, e necessidades passadas e isso dava-lhe forcas para trabalhar com mais afinco, e ser agradável a todos. Depressa conquistou

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muitas simpatias à sua volta. Fora do local de trabalho, dedicava-se, de alma e coração, aos estudos, aonde voltou a receber precioso auxílio da D. Hermínia, tanto em material didáctico, como em explicações,. Quase nem descansava, a pequena, para aproveitar ao máximo...

Não passou muito tempo, e já Victor, irmão dela, trabalhava no hospital, como paquete. Não usufruía de grande salário, mas, de grão em grão... Como Almerinda, cumpria integralmente o seu dever. Tudo isto, graças a Gomes...

Aquela alma benigna transformava, pouco a pouco, o hospital, no ganha-pão dos infelizes. E a verdade é que, até então, a sua obra não lhe dera a mínima razão de arrependimento! A força invisível que exercia sobre os amigos, coagia-os, no bom sentido, a entusiasmarem-se pelas suas tarefas.

Na casa da Sra. Inésia já se comia com regularidade, e mais duma vez, por dia... Não se entrava em exageros, mas comia-se...

Helena transformara-se numa linda e activa mulher, toda enérgica; e Alzira que o diga! A mocinha ajudava a irmã, sempre que o serviço apertava, com uma vivacidade, que nem parecia ter ressurgido da miséria, quase esquecida!

Podemos afirmar, sem o menor receio de errar, que uma completa transformação se operara, quase repentinamente, naquela casa...

Quanto a Alzira, a necessidade de viver, após repetidas frustrações, obrigava-a agora, apesar dos estudos, que tanto apregoava, a cumprir, rigorosa e diariamente um horário, escondida numa secção de empacotamento, ainda que dum luxuoso supermercado. Quase nunca se lhe via um sorriso nos lábios.

Tal procedimento para com os colegas, depressa lhe granjeou grossa onda de antipatia de todos, e os comentários não tardaram:

- Oh, Cândida: a nossa recente colega será afónica, ou simplesmente... nem sei que lhe chamar... talvez... mula voluntária?!...

- Era Odete quem assim falava, sem nunca deixar de trabalhar. A outra, troçando, sem papas na língua, a rir de vontade, respondeu:

- Olha, pergunta-lhe! Mas acho que deve ser as duas coisas juntas... Tenho uma peninha dela, que não imaginas. Esqueci-me do lençol, para enxugar o pranto! Sua majestade sente-se ridicularizada, entre nós, coitada. É pena.

Agora o seu palácio já não tem trono, nem vassalos submissos. Tudo se foi! Calaram-se, porque entretanto Alzira entrou, como sempre, de trombas. Efectivamente aquela “senhora de sociedade”, cujo trabalho era agora bem pouco produtivo, fazia esforços penosos para ficar horas a fio desempenhando tarefas muito inferiores à sua condição social. A cada passo, cerrava os dentes, com uma vontade louca de fugir dali. Mas para onde? Pagava bem caro a sua desumanidade, com tantos necessitados, que nunca lhe haviam merecido a menor compreensão! Que remédio, senão ir tolerando

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aquele fardo, com a vaga esperança de aparecer coisa melhor! Que humilhação! ganhar um magro salário como uma insignificante operária, e ter de renunciar a toadas as extravagâncias!

E Jeremias? esse, embora olhado com certa desconfiança, conformava-se, achando o facto natural, e procurava cumprir tudo rigorosamente, fiel ao seu compromisso, com Custódio Gomes. Aliás, em seu próprio benefício, teria de fechar os olhos e ouvidos a muita coisa, para conseguir a sua total recuperação, e viver de si mesmo, dentro do possível, sem ser pesado aos outros...

Para que o autor não caia no ridículo, criando mitos, aonde sempre deixa transparecer os seus anseios, em que o sonho duma índole e vida melhores, se sobrepõe às duras realidades, terá de se vergar a estas, que só assim levará a bom termo a veracidade do seu relato. Que nos desculpe o leitor mais optimista; mas não estamos no reino da fantasia. à nossa volta à gente que se move e luta por objectivos, que na maior parte das vezes, não obtém! por culpa própria, resultante de exageradas ambições, ou interferências externas quantos desejos morrem à nascença, quase sem criar raízes!...

Assistimos, sem dúvida, com entusiasmo, à tentativa desesperada e sincera de reabilitação dum alcoólico, que agora se dedica de corpo e alma ao trabalho, na ilusão de reencontrar uma dignidade, que talvez nunca teve.

Todavia, só o receio de encarar os seus semelhantes, de ver neles juízes, sempre prontos a apontar-lhe a primeira falha, era um tormento bem difícil de suportar! Não havia muitos Gomes naqueles sítios, infelizmente!...

Desejava também repartir o seu salário com a viúva, em cuja casa, outrora tantas vezes entrara aos tombos! Agora, porém, julgava um sacrilégio transpor a porta duma habitação que ele, desgraçadamente desvairado, mutilara. Inésia estava no direito de o receber ao pontapé. Pretendia, malgrado os poucos recursos com que fazia face a vida, ajudá-la, a todo o transe; era seu dever. No entanto, não ousava sequer aproximar-se. Manietava-o, com algemas de bronze, o recente e abominável passado! Pensou muito na forma de resolver aquele problema: era colega dum casal que tornara órfão; podia chegar facilmente à fala com Almerinda ou o irmão, sem lhes profanar a casa; quiçá, junto dos filhos, tivesse melhor aceitação do que aos pés daquela que tão generosamente o perdoara... Que angustiosa amalgama de confusões!....

Na azáfama quotidiana, através dos corredores do hospital, cruzavam-se, vezes sem conta, aquelas três criaturas; contudo, desempenhando tarefas bastante diferentes, raramente se proporcionava esta ou aquele oportunidade de, mesmo sem interromper o serviço, quaisquer palavras...

E, dando mais ouvidos à ponderação, a que cargas de água iria Jeremias repartir o seu salário com Inésia? Apesar das rectas intenções que o bom do homem possuía, como interpretaria ela tal intenção? Tal tentativa do resgate duma dívida sagrada? Os malditos preconceitos sufocam a Humanidade...

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Talvez o amigo Custódio, com a sua perspicácia, lhe pudesse dar um bom conselho! Não hesitou em consultá-lo. 0 médico em nada se surpreendeu, antes, ficou radiante, pois de há muito, como que adivinhava o motivo secreto das preocupações do amigo, que ansiava por cumprir fiel e integralmente a palavra dada. Com uma amável palmadinha nas costas, replicou-lhe:

- Ora deixe-se dessas generosidades, pelo menos por enquanto! Nunca se deve agir debaixo de pressão. Realmente a ocasião não é muito propícia. Deixe correr um pouco mais o tempo, e logo se verá. As coisas já estiveram bem piores com eles, coitados! Convença-se duma coisa, Jeremias: Deus pode tardar, experimentar a paciência das pessoas, mas, quando Lhe sabemos pedir com confiança, nunca falha! Por enquanto, vá vivendo como pode, que o seu salário não é ainda muito famoso. Um convalescente não pode assumir a responsabilidade dos cuidados doutro. Disto se ocuparão aquele que, aparentemente, gozam de saúde, saúde moral, que a física vai bem graças a Deus…

- Por quem é, Sr. Doutor. Eu não me queixo de ganhar pouco. Cá me hei-de desenrascar. Há quem esteja bem pior! Se vivo só, sem encargos familiares, qualquer coisa me serve, já com aquelas seis bocas, a coisa é diferente. Eu ainda não actuei, porque receio ser mal interpretado, sei lá...

- Bem o sei. E por isso mesmo, se me pediu um conselho, dou-lhe o que me parece mais razoável. Não tenha pressa e, agindo com prudência, estou bem certo de que não lhe faltarão oportunidades para mostrar a sua generosidade.

- Mas não se trata de generosidades, por amor de Deus. Eu não me esqueço do que lhe prometi, quando me deu, a mão, na hora mais difícil da minha vida. Além de bêbado e assassino, não quero também ser perjúrio. Tomei Deus por testemunha que tudo faria para jamais faltar aos meus deveres de honra...

- Lá iremos, com calma. Mas é preciso preparar o terreno, antes de semear... Jeremias olhava para o seu interlocutor com certa perturbação: É possível que o médico tivesse razão, como sempre, já falara com ele, por não se sentir muito seguro. De qualquer modo, algo lhe pesava ainda na consciência! Tentou acomodar-se, entre dúvidas, seguindo, embora contrafeito, o parecer de Gomes. Sem dúvida que o saber esperar era uma grande virtude...

Almerinda, que se tornara colega de serviço do assassino do pai, não lhe guardava rancor, certa de que se tratara dum triste acidente. Jeremias olhava-a, sempre com um enorme receio de ser acusado, e não ousava trocar com ela quaisquer impressões: Ainda não se libertara totalmente do terrível remorso.

E, mesmo na altura em que o médico se encontrava num dos seus exames ao velho Lourenço, com Isaura sempre inquieta e atenta ao mínimo pormenor, entrou Almerinda, levando a Custódio um café reconfortante. Ele apresentou-a à filha do doente, e bem depressa ficaram excelentes amigas. Eram quase da mesma idade, e o sangue, jovem, refervia-lhes nas veias...

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Dali em diante, sempre que havia um bocadinho livre, Almerinda ia ver o doente, que não dava mostras de recuperação, e lá conversava com a filha: Uma órfã, tentando alentar alguém, cujo estado de espírito se começava a conformar à ideia de o ser, também, muito em breve! É que às duras realidades da vida, por muito que nos custe, ninguém poderá jamais fugir...

Estavam elas, um dia, muito entretidas, no quarto do doente, em amena conversa, quando bateram à porta, que se abriu, de imediato: Era Rui, que, sempre muito solícito e optimista, as saudou, amavelmente:

-Bom dia, menina Isaura! Não sabia que tinha visitas... desculpe, se chego fora do tempo. Mas passei e... gosto sempre de saber do Sr. Lourenço! Espero que esteja melhor... pelo menos agora, pelo que vejo, dorme sossegadamente!

- Obrigada, pelos seus cuidados, Sr. Rui! Isto... se vai... é muito lentamente! Começo a perder as esperanças; e é com as poucas forças, se ainda as tenho, que procuro incutir no espírito da minha pobre mãe um optimismo que ninguém sente. A desconfiança dela bem me atormenta, com as suas perguntas constantes e embaraçosas: - “Porque não vem ele de novo para casa? Certamente essa doença não tem cura! Oh, filha, que te diz o Sr. Doutor”!?... São momentos muito penosos e difíceis, para qualquer ser humano ! Não preciso de lhe apresentar Almerinda. Devem conhecer-se, pois são da mesma terra...

- Na verdade conheço este senhor, sim. Há muito tempo. É polícia...

- Quer dizer que a má fama corre depressa, não é menina? Chega longe! Esta minha profissão faz sempre, com que me olhem com desconfiança, não sei porquê... Tantas reservas mereço! Serei acaso algum papão?...

Antes de ser polícia, era homem, e jovem, ainda! Como tal, o seu olhar penetrava as duas moças, qual delas a mais formosa, aguardando uma possível réplica, que não se fez esperar, da parte de Almerinda, mais optimista, no momento, e não menos inquisidora, também:

- Bem... tudo depende de quem se deixar papar! Às vezes, vontade não vos falta. Só que a caça nem sempre se vos torna presa fácil...

Rui animou-se, pois não esperava aquela resposta tão pronta:

- Sim. Mas também depende do caçador! Ele pode sentir-se mais incentivado, à medida que aumentam as dificuldades de captura...

- Está bem. Mas terminou a minha hora de descanso; e, como funcionária exemplar, tenho de ir à vida. Adeus, Isaura, e melhoras do seu pai. Ature o Sr. guarda, que hoje parece muito bem-disposto para a brincadeira! Aliás, talvez isso até seja vantajoso, como sabem, tristezas não pagam dívidas.

- Adeus, Almerinda! Muito grata, pelos seus cuidados...

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Rui sentia o coração bater com mais força, ante a possibilidade de ficar uns momentos a sós com Isaura. Lourenço dormia, e já saíra o médico. À medida que convivia com aquela moça, o coração impelia-o para ela, e esperava um momento em que pudesse sondá-la. A moça, porém, mantinha a mesma posição, à cabeceira do pai, quase sem levantar os olhos, por vezes tristes, para o rapaz. Tendo aquela melancolia, ou mais, angústia, ele, tentou animá-la, mas atabalhoadamente, porque também se sentia vencido pela amargura:

- Oh, Isaura! Não desanime! Aflige-me vê-la com essa cara! Talvez ainda não esteja tudo perdido! 0 Dr. Gomes já tem feito grandes prodígios, verdadeiros milagres, acredite! Ele continua a lutar., com energia...

Isaura encarou-o, tristemente comovida e grata:

- Milagres! Só Deus! E nós quase nunca os merecemos! Esta doença não perdoa a milionários, quanto menos a um pobre camponês! É esperar pela hora, que estará...por dias, sabe-se lá… cada vez mais próxima! …

As ideias românticas que o guarda acalentava foram-se desfazendo, por concluir que não era aquela a ocasião mais apropriada para fazer propostas sentimentais alicerçar, quiçá, sobre a areia, um futuro...

Abandonou os seus propósitos, pois não levaria ao extremo um egoísmo que, num momento daqueles, teria muito de desumano. Limitou-se ao que lhe servira de pretexto à visita, muito embaraçado e comovido:

-Vão sendo horas; tenho de me retirar, para que o Sebastião não se lembre de me arranjar para ai algum processo disciplinar. Muito sinceramente, as melhoras do seu pai. Os meus cumprimentos, quando ele acordar.

- Agradeço-lhe todo o apoio moral que nos dá, nesta hora tão difícil! Que Deus lhe pague! E, sempre que se queira dar ao incómodo duma visita, será bem-vindo. Todos os meus lhe ficarão muito gratos. Até sempre, senhor!

Rui saiu, macambúzio. Ainda não fora desta! Se alguém se antecipa... Mas ela não parecia nada predisposta a quaisquer galanteios.

Não teria quaisquer dúvidas, se necessário, a bater-se, num duelo. Mas seria muito mais agradável resolver as coisas, sem sangue, evitando atritos!

Que ideias angustiosas tinha aquele mancebo a devorar-lhe o cérebro, e talvez sem a menor justificação. Nem consultara levemente o coração da jovem, que até poderia estar já comprometido, levantando tempestades em copos de água...

Efectivamente, Isaura, fresca como flor campestre que era, mas também ser humano, continuava livre, qual ave, embora com penas, como ela... Não havia ocasião para sonhar com futuros risonhos, quando se tem o homem que nos deu o ser às portas da morte com a esperança cada vez mais débil! O doente, em cada dia que passava, malgrado os cuidados intensivos do médico, enfraquecia, a olhos vistos:

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Perdida a primeira batalha, voltava agora o inimigo voraz, de dentes cerrados, indiferente aos golpes que recebia, com ganas de devorar a sua vítima, que ainda esbraceja, mas se sente cada vez mais manietada, praticamente indefesa, já ninguém tinha ilusões...

Custódio Gomes, cuja dedicação profissional e mais ainda humana era inabalável, sabia que lutava por uma causa perdida, e comparava, nos seus momentos de desânimo, a pequenez humana com a vontade e desígnios do Criador! Pouco mais havia a fazer! O pobre Lourenço já quase não suportava os medicamentos, progressivamente menos eficazes, por saturação. Acordou, poucos momentos após a despedida de Rui; e, vendo a filha sempre vigilante e incansável, relanceou a custo os olhos pelo quarto e balbuciou, quase sem forças:

- Ai, querida filha da minha alma! Eu estou nas últimas, e tu não arredas pé! Mal dormes, não comes, em condições, e dás cabo de ti! És um anjo que me concede Deus, nos últimos momentos! Só não quero que fiqueis nesse estado, querida filha! A dedicação também tem limites! Oxalá que Deus me levasse, quanto antes! Acabava-se o sofrimentos para todos, uma vez que isto já não tem mais remédio. Ninguém cá fica, e chegando a sua hora, é partir...

A pobre moça, diante do pai, ouvindo-lhe palavras tão conformadas quanto angustiosas tremia convulsivamente: as lágrimas, amargas e silenciosas, corriam-lhe em caudal! E não estar ali ninguém, para lhe dar a mão!...

Indiferente às emoções e dramas daquele hospital, continuava o bulício da vida, cá por fora, ininterrupto:

Naquele talho, repleto de gente, os funcionários não chegam para as encomendas, enquanto se discute, com vibração, entusiasmo e descontentamento, as subidas constantes e sempre mais acentuadas do custo de vida:

- Qualquer dia vamos comer pedras, e assim já roubaremos, duma vez por todas a freguesia aos dentistas. O pior é que, depois, o estômago não consegue fazer bem a digestão .Isto vai mesmo por uns caninhos... " _

- Oh, homem; tudo tem solução rápida: Vais a uma oficina, encomendas uma dentadura de aço, e não haverá penedo que resista! já terás facilitado o trabalho ao aparelho digestivo... Que dizes à minha ideia?

Interveio uma terceira personagem, mais azeda, naquela questão:

Vocês fazem humor negro com coisas muito sérias. Não sei como conseguem ainda encarar tudo a rir! Eu, cá, se pudesse, arranjava uma bronca, que esses cabrões, que têm todos os direitos, tivessem também o de passar fome!

Volveu o primeiro, que entretanto já fora servido com mais ossos que carne, apesar de deixar naquele talho um dinheirão:

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- Pois sim! Vou ganhar muito em largar gadelha! Pouca já me resta, ainda ficava mais careca, e eles escarneciam-lhe, sem vender mais barato...

0 último a entrar em cena, redobrando de fúria, encarou o outro cota ar de desafio, já descontrolado, porque fervia em pouca água:

Pois é claro! De comodistas e cobardes, como tu, é que nós precisamos, para que as coisas, quando mudarem, como há bem pouco tempo, seja sempre para pior! Ninguém se levanta, preferindo ser espezinhados, todos, como os cães, servilmente. Um só, nada pode! Vocês metem-me nojo, sabem. Grandes asnos!

Sebastião também entrara. Comprava qualquer coisa, e ouvia, impávido e sereno, o desabafar daquele chefe de família, cuja veneta e razão venceram as mordaças. Não meteu a colher, limitando-se, como os outros, a mero espectador. Prevendo algum funesto vendaval, que pudesse fazer perigar a boa reputação daquele talho, um dos funcionários interveio, com forçada energia:

- Meus amigos: querem travar-se de razões? Façam-no ali, no lado de fora. Aqui, trabalha-se! Ninguém os cá chamou; bolas! Ia eu agora perder a clientela, por vossa causa, ou quê? Tenham mas é juízo, que idade para isso não vos falta! Aquelas palavras, saídas à pressão, conseguiram os seus objectivos: os dois linguareiros que se preparavam para uma agressão mútua, ante o receio de muitas donas de casa, que também vinham procurar qualquer coisa que se cozinhasse, ponderaram, e saíram do talho, sossegadamente, embora olhando-se com um certo rancor, significando que adiavam o seu ajuste de contas...

E o serviço, momentaneamente perturbado, prosseguiu, sem mais altercações. No registo civil, quase lado a lado, enquanto um parzinho, com o Céu no olhar, se preparava, legalizando os últimos retoques para o seu próximo casamento, um outro casal, encarando-se com feroz azedume, tratava do divórcio, que parecia demorar uma eternidade a libertar alguém do inferno! Mais adiante, intercalando o muito serviço com igual conversa fiada, uma empregada, toda pintada e alheia ao que fazia, passava uma certidão de óbito a uma senhora, toda chorosa, enquanto mais além, na mesma comprida sala, lá num canto, um homem aguardava que lhe registassem um filho, que viera ocupar o lugar deixado pelo último defunto da terra... ali, debaixo do mesmo tecto, do lado de dentro do balcão atendiam-se seres humanos, cada qual com as suas necessidades! A renovação constante da Natureza, misturando venturas e dores...

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CAPÍTULO XIII

GIGANTES MUTILADOS

O mal dos outros não nos serve de bem, é verdade! Mas ajuda-os, ao menos uma vez, na vida, a reconhecer que todos somos feitos da mesma matéria: os que nascem em berço de ouro, ou palhoças! Quando menos se espera, caem as torres mais intransponíveis, aos olhos dos incrédulos...

Física ou moralmente, no melhor da nossa tranquilidade e desprezo pelos problemas alheios, por vezes surpreendem-nos calamidades, que nunca achamos possível tivessem o atrevimento de nos bater à porta! E abrimo-la, pois que remédio! Mas que descaramento mais absurdo vir agora o infortúnio incomodar-nos, sem quaisquer cerimónias, dando-nos de beber, em vez de champanhe, o mais amargo fel, conquanto em taças de prata Ai, Santa Bárbara! Se agora não troveja, porque nos obrigas a lembrarmo-nos de ti?!...

Aquele jantar, de há muito que fora combinado: nele tomariam parte alguns comerciantes do local, levando, aqueles que quisessem, alguém, das suas relações mais

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íntimas. Estava-se perto do Natal e, com o pretexto da confraternização, muitas garrafas ali se despejariam...

Como bom coadjutor e padrinho das aldrabices diárias, em que, normalmente, muitas empresas atiram para o charco aqueles que as serviram com dedicação, o já nosso conhecido advogado Simões também recebeu e aceitou de bom grado o convite, para alegrar o ambiente, com as suas anedotas picantes. Até o advogado da Comarca lá estaria, num festim, preparado com toda a pompa...

Macedo parecia o mais entusiasta e dinâmico, como um general optimista, sempre habituado a dar ordens e ser imediatamente obedecido. Azevedo também lá estaria, em representação da firma onde parasitava, que o patrão, o velho Timóteo, embora ainda vivo, de há muito batera as botas, e agora não passava dum verbo-de-encher, atirado para o canto, como traste inútil, a que se respeita, apenas para ir sugando afanosamente... Evidentemente que o mais presunçoso dos bancários, o Horácio, célebre em poligamia, não poderia ficar esquecido: era um amigo que mexia com as massas alheias, dispondo livremente delas, como propriedade sua, e a quem todos, ou uma grande parte, vergavam o joelho, para cair nas suas boas graças, assim exigia a necessidade...

Os folguedos começaram muito cedo, em plena hora de trabalho. Mas, para manter as firmas em laboração constante, lá estariam os que menos lucravam delas, a tratar do seu expediente... Nunca se enganou quem disse: “trabalham cães para ladrões… Eis a verdade e força dos adágios populares...

Não vamos prolongar a discussão de tão suculentas comezainas. Seria fastidioso, tendo ainda o desplante de fazer crescer águas na boca ao leitor menos favorecido pela bolsa. O narrador, muito familiarizado com a miséria, bem lhe da o valor! Permitam-lhe este desabafo que, por ser verídico, justifica o à-vontade com que de si próprio fala e sente. Limitar-nos-emos a dizer que os felizardos estavam nua quinto piso, em quarto bem espaçoso e alcatifado, sempre luzidio, mas que agora começava a sentir-se alvo de maus tratos, Do campo da higiene, como os vários cinzeiros já não chegassem, aceitava o chão tudo o que lhe lançavam! Até escarros! É assim na intimidade, os senhores da “elite”, os tais que a todos olham com superioridade, reduzem-se à sua balofa condição, e muitas vezes ultrapassam a verdadeira compostura. Agora era um desafio de quem bebe mais, quem consegue ser maior em ridicularizar-se a si próprio e aos que o rodeiam. De há muito se perdera o autodomínio, e com grande dificuldade se mantinha ainda um pouco de equilíbrio!

Assim se festejava ali antecipadamente o natal! O redemoinho que movimentava aquelas cabeças, fê-las perder tudo, à sua volta.

Eram berros, roncos para vomitar, e uma ponta de cigarro que chamuscava a passadeira, por azar, num canto mais escondido, perto dum fogareiro, que queimava um

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resto de gás... pairava no ar, sem que ninguém o pressentisse, a sinistra presença da tragédia, talvez até da morte, sabe-se lá...

Para evitar incómodos vindos do exterior, a porta do quarto fora fechada por dentro. À respiração já não era indiferente um cheiro a queimado: alastrava um princípio de fogo, na passadeira, que se propagou rapidamente... Um dos convivas, sem dar grande importância ao acidente, atirou uma garrafa de cerveja, ao acaso, para local distante; esta, batendo na boca do fogareiro, aparou-lhe a chama, deixando o gás a derramar, livremente... Quase de imediato ouviu-se uma explosão e, antes que houvesse tempo para a fuga, logo outra, ainda maior! O incêndio era a trágica realidade, e o desfecho daquela orgia, de resultados imprevisíveis, no momento, e cujo motivo era, mais uma vez, o álcool! 0 Pandemónio de gritos e atropelos que se seguiu, mais dificultava a fuga, às possibilidades de êxito numa confusão diabólica! Nem um espírito esclarecido para abrir a porta, cuja chave não aparecia...

Facilmente detectado, por fora, houve quem acudisse de imediato ao sinistro, não só arrombando a porta, como chamando logo os bombeiros, que não se fizeram esperar. Aqueles abnegados soldados da paz já ali estavam, cumprindo integral, pronta e eficazmente o seu dever. No entanto na evacuação para o hospital, temia-se que houvesse vitimas a lamentar! Tudo sucedera no curto espaço de alguns momentos. O fogo foi facilmente apagado...

Pouco depois confirmava-se que aquela Comarca acabava de perseguir o seu ilustre Juiz de Direito, receando-se também pela sorte de Simões, o advogado.

Jeremias tinha, nesta ocasião, oportunidade de mostrar-se não só reabilitado, como em especial, muito competente, nas suas funções. Por capricho da sorte, ou mera casualidade, conduzia agora na maca, muito maltratado, embora completamente lúcido, o nosso conhecido Macedo, a quem o Dr. Gomes, muito atarefado, recebeu, no serviço de urgência. Não pode conter uma exclamação de surpresa, com aquela repentina visão:

- Oh, amigo Macedo! Em que condições lamentáveis me chegam aqui, trazido por um antigo alcoólico, agora totalmente recuperado, a trabalhar honestamente!

As dores do recém-chegado eram muitas, e o seu cérebro ainda não estaria em condições de apreender aquela alusão. Mais do que isso sabia o astuto médico que, apesar da sobrecarga de serviço, para o qual foram chamados mais alguns dos seus colegas, ainda arranjou tempo para a mordaça, cuja resposta foi um profundo lamento de angústia e dor, numa súplica humilhada:

- Por amor de Deus, doutor. Acuda-me. Eu sofro muito. Estou cheio de dores! Serei generoso, acredite, depois, se me conseguir devolver a vida, sem qualquer defeito. Não me meto noutra. Maldito beberete. Salve-me!

- Tudo farei para isso; não estou aqui para outra coisa, mas não pense que me engana, como da primeira vez, quanto à sua generosidade! Agora... essa fortíssima dose de alcoolemia é que não joga nada a seu favor...

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Após os primeiros socorros, havia, infelizmente, um morto a lamentar com o cérebro atingido pelas duas explosões. A morte fora quase acto contínuo. Aquele desgraçado não ditaria mais nenhuma sentença, justa ou iníqua, para o momento, não interessa. As autoridades na matéria limitaram-se a assinar a certidão de óbito ao cidadão Venâncio Gonçalves, vítima de explosão...

Por seu turno Simões continuava em perigo de vida, sob cuidados intensivos, cheio de queimaduras, que muito lhe dificultavam a respiração cutânea. Também fora bastante atingido, como aliás, quase todos, num recinto fechado. E, se os socorros, vindos do exterior não têm sido prontamente eficazes, a esta hora haveria muito mais vítimas a lamentar…

Horácio também tivera o seu quinhão, bastante melindroso, por sinal: Fora atingido em cheio no baixo-ventre, perdendo imediatamente os sentidos.

Fazer para já o rescaldo daquele acidente, seria demasiadamente precoce;

Além dum morto, ainda havia muitos feridos, quase todos com gravidade.

Apenas Azevedo, por se encontrar, na altura da explosão, mais longe, e bem perto da porta, logo que esta foi arrombada, safou-se, pelos seus próprios meios embora muito ferido, pois também era, na altura, o mais lúcido, ali.

Tratado convenientemente, foi o primeiro a ter alta com pensos aqui e ali. Na hora fatal, deitara-se num canto e, depois... salve-se quem puder!

Dum momento para o outro, e sem que ninguém o pudesse prever, alguns poderosos senhores daquela cidade haviam sofrido um pesado revés, Nem sempre acontecem destas! Mas quantas vezes nos deitam na boa cama que fazemos...

Por muito adiantada que esteja a medicina, a nenhum ser humano é permitido fazer milagres, salvo intervenção Divina. O dinheiro e a presunção não resolvem todos os problemas, e a Natureza não olha a etiquetas sociais, ou altos cargos: É a única justiceira cega e implacável, quando age...

Por muito que lhe custasse, Macedo, além de lhe ser amputada a perna direita, e ter em gesso o braço do mesmo lado, sabe-se lá por quanto tempo, ficaria com uma cicatriz no rosto, possivelmente para o resto da vida.

Custódio Gomes e as restantes colegas nada puderam fazer para evitar esta mutilação. Física, e moralmente, aquele comerciante era um farrapo humano, tão fraco, quanto aniquilado, sem vigor para reagir à adversidade!

Aqueles que viveram sempre na abundância, quando o infortúnio lhes bate à porta, geralmente é muito mais difícil encará-lo, normalmente reagem com a revolta que os submerge, ante a impossibilidade do regresso àquilo que eram. Humana e socialmente é-lhe impossível tolerar a nova e forçosa situação.

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Horácio estava cego, com as narinas bastante deformadas. Mas talvez fosse viável uma recuperação, conquanto bastante difícil.

O pobre advogado fora vítima dum valente trambolhão, um derrame interno, e várias costelas fracturadas.

Muito mais lesões havia, a enlutar a burguesia local. Mas a vida continuava, apesar de tudo: nas montras e vitrinas daquela cidade, com todo o seu comércio, se podiam ver luzes, brinquedos, de variadíssimas qualidades e preços: Era a alegria, o bulício exterior, anunciando a proximidade do Natal...

Do quarto aonde continuava Lourenço, Isaura vira, horrorizada, chegarem tantos feridos, e o morto. Num hospital, estamos mais directamente ligados aos dramas quotidianos, para melhor nos convencermos de que ninguém é completamente feliz, neste verdadeiro vale de lágrimas. Depressa, ou com lentidão, para ricos ou pobres, a morte sempre chega, e talvez seja bem pior, quando aparece de surpresa, como um ladrão que destrói, implacavelmente!

Mais por cortesia que decerto por afinidade, choviam as visitas aos ricos internados: era da praxe inquirir como suceder ao senhor fulano de tal, como fora possível suceder tão horrível desastre, e mostrar toda a solidariedade, não só às vítimas, mas principalmente aos familiares, e à sociedade. Era indispensável ir aparecendo, sabe-se lá o dia de amanhã...

Evidentemente que não se falava noutra coisa: e, como sempre, as opiniões divergiam: indiferença, quase rancor ou comiseração, segundo os benefícios ou razões de queixa que havia, em relação aos sinistrados; humanamente, lamentamo-los. Todavia, como narrador, a nossa opinião para aqui é a menos válida. Tendo em conta que, dum modo geral, a humanidade é egoísta, ninguém conseguirá, jamais, contentar a todos, por muito que o tente...

Segreda-nos o bom senso que privemos os leitores de comentários mais ou menos desagradáveis sobre este acidente, pois em muitos deles ressaltam desumanidades que não passam de ressentimentos muito recalcados de quem vivia, à falta de meios, e necessidade de trabalho, subjugado às vítimas da explosão. Por um princípio a que não poderemos fugir, teremos forçosamente de ser mais compreensivos para quem se debate, no dia-a-dia, com muitas e muitas dificuldades; não, porque também façamos parte desse número; mas, porque é lógico pensar que quem vive constantemente oprimido, será mais desculpável a sua atitude de se ver vingado por uma mão invisível, contudo mais poderosa que a dele. Justificar-se-ão os vexados, alegando que Deus não dorme. Sem pretendermos entrar em polémicas, permitam-nos discordar: pessoalmente julgamos que nem Deus nem o diabo terão, em princípio, influência nas nossas decisões: É muito cómodo e normal dizer-se: Deus não quis, o demónio tentou, e assim por diante, francamente! Se queremos que nos considerem adultos, assumamos as nossas responsabilidades, sem sacudir águas do capote. Assim, teremos mais credibilidade, e evitaremos de andar às turras com a nossa consciência. Ser-nos-á impossível remediar males alheios; mas estes não nos servem de bem. Que

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nos fique de aviso, porém, não sermos donos do mundo, quando caminhamos, soberba e altivamente, pode a terra abrir-se-nos debaixo dos pés, e depois? Seremos tragados, inevitavelmente, sem hipótese de fuga...

Não forçamos ninguém a acreditar em prémios ou castigos extra-terrenos. A verdade, porém, é que, tarde ou cedo, os reveses sempre aparecem...

Aquela tragédia, tal como sucedeu, não poderá ser atribuída a Deus ou ao diabo, mas à imprudência dos que tanto tempo levaram a preparar o lauto banquete. ... Brincando.com o fogo, queimaram-se, simplesmente...

Simões, se escapasse, tão cedo não teria alta do hospital. E era contra estes que choviam as maiores injúrias, como resultado das patifarias que praticara, legalizando-as, através da sua digna profissão. Nem entre os próprios colegas de ofício gozava de grande simpatia, por usar e abusar da sua velhacaria, através da qual tinha por clientes os mais graúdos do meio.

Quando soube do sucedido, Alzira, em princípio, regozijou-se: aquele Velhaco pagava agora, com a falta de saúde talvez a vida, o que lhe roubara, e o escárnio que fizera quando ela, revoltada, lhe pedira contas. Bem feito!

Canalha! Não vexaria mais ninguém, se fosse desta para melhor, o bandido!

Mas, depois... pensou extasiada, no beijo que ele lhe dera: com violência, embora, fora tão delicioso! Que sensações! Como seria possível transformar, tão repentinamente, ódio em amor!? Não. O que ela sentira, naquela altura, não fora, de certo, o amor, com toda a sublimidade que lhe reconhecemos: quando muito, desejo, volúpia! Que pena ele não ter repetido aquela beijoca mais, muito mais vezes! E se o fosse visitar? Afinal reconhecia não lhe guardar já rancor! Talvez ele precisasse de um pouco de afecto, de apoio moral! Só agora, reduzida a um salário insignificante, arranjava tempo para pensar nos outros e, mesmo assim, por afinidade, em si própria. Quando já não temos quaisquer ilusões, por mais que a imaginarão toque o absurdo, tudo lhe serve para tábua de salvação: importa é evitar o naufrágio, sem olhar a meios, quanto mais dar-se ao luxo de escolhê-los. Aquela ideia, ao princípio mera hipótese, acabara por se transformar em obsessão. Não hesitou mais: iria vê-lo! Afinal, já fora uma assistente social, mal compreendida, talvez… o passado recente envolvia-a num misto de boas e mas recordações simultâneas!

Todavia, ainda desta vez, a boa estrela não brilhou para aquela irrequieta criatura: chegou realmente ao hospital, mas perdeu o seu tempo, e as passadas, porque o doente, dado o estado crítico em que se encontrava, tinha vedadas as visitas. Alzira bem protestou, mas não modificou as ordens internas que ali reinavam, sem fazer excepções a ninguém, salvo autorização superior. Voltou a mulher pelo mesmo caminho e, de passagem, ao dar com os olhos em Almerinda, sempre atarefada, sentiu-lhe ódio ou repulsa, nem sabia! Aquela sirigaita nojenta, órfã dum bêbado, ali a trabalhar! Que desaforo! e tudo por causa dum médico de meia tigela, que talvez melhor faria, sendo

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director de alguma casa do Gaiato! Ai, que se ninguém abres olhos, qualquer dia este hospital é um abrigo de mendigos...

E saiu, para que a sua fúria não a comprometesse. Levava na cabeça a ideia, ou antes, a certeza de que ali estavam todos doidos.

E o seu advogadozinho? Se morresse? Coitado! Tinha uns lábios tão saborosos! De qualquer maneira, não desejaria nem por sombras… estar junto dele, na hora da explosão! Longe fosse tal agouro, safa...

Além da cegueira, a que já fizemos referência, que vitimara Horácio, após esforços baldados dos médicos, ficara também completamente inutilizado o seu aparelho genital. Parece que na realidade a Natureza caprichava em castigar, no 1ocal exacto, aquele sedutor que tanto mal já fizera! Nunca mais poderia exercer as suas funções, nem tão pouco aliciar esta ou aquela...

Custódio Gomes andava muito pensativo: Dera o melhor do seu esforço para recuperar as vítimas, mas bem pouco conseguira. Embora continuando a prestar-lhes assistência hospitalar, não tinha ilusões de que estava perante factos consumados. Restava-lhe a possibilidade de sarar feridas. Mas, recuperar indivíduos, de certo não estaria nas suas mãos, porque era apenas um homem!

Pouco a pouco, Macedo foi-se compenetrando do que lhe sucedera, e agora, acobardava-se, no seu leito de angústia, não desejando ver ninguém. 0 Melhor até, seria desaparecer, que enfrentar as humilhações futuras. Prostradas as suas mazelas, começava a convencer-se que o dinheiro não era tudo, na vida. Quem lhe devolveria a perna? Teria agora que depender dos outros, a partir de então. Aquilo era terrível! Os seus subordinados, que sempre se apressavam a obedecer-lhe, agora, considerá-lo-iam um inválido, sem mais préstimo para nada! Não suportaria tão pesado fardo por muito mais tempo. Como era possível que um empresário tão respeitado e afamado, naquele meio, chegasse ao cúmulo do desespero?!... Aquilo era um sonho mau, um absurdo muito cruel!

Num dos muitos momentos de grande descontrole, enquanto Gomes, pacientemente, lhe fazia o curativo, explodiu violentamente:

- Que Deus lhe perdoe, doutor! Era escusado ter-me deixado neste estado! Agora... não passo dum aleijado... dum perneta. Não sei para que serve essa vossa maldita medicina! Eu pagar-lhe-ia muito bem, se me curasse... o médico encarou-o, entre calmo e complacente:

- Amigo Macedo: eu não costumo negociar com a saúde ou vida de ninguém.

Limito-me a ganhar o meu salário, para subsistir, como qualquer outro. Se não me apressasse a cortar-lhe a perna, teria já assinado duas certidões de óbito, em vez de uma. Se mereço reparos, por assim ter procedido, não serão da minha profissão, e muito menos, consciência. Aqui, faz-se o que se pode, não o que se quer. Há milagres que não se conseguem, nem através do dinheiro, embora eu compreenda a sua dor, o

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seu abatimento moral, desastres destes, temo-los aqui, a cada passo, e sucedem a muito boa gente. São sempre de lamentar. Todavia, como não faço excepções, chamarei tudo pelo seu nome: vocês foram apenas vítimas da embriaguez, duma irreverência ilimitada. Pessoalmente, eu teria maior pesar, se estivessem construindo qualquer edifício., ou trabalhando, no verdadeiro sentido da palavra. Não sou contra os divertimentos, longe disso. Contudo, entre tantos comilões e bebedolas, não haver uma cabeça com uma réstia de bom senso, que previsse consequências... aqui têm o resultado. Muitos outros como o senhor, estão agora aqui, ou já em casa, amaldiçoando aquele banquete. E cá fora, tanta gente a morrer à fome. Nunca pensou nisso, pois não? O doente sentiu uma revolta contra tais palavras, que considerou um insulto à sua dignidade, e tal atrevimento não ficou sem resposta:

O Dr. Gomes está a exceder os limites da sua competência, dando opiniões que, além de serem desumanas, brutais, mesmo intromete-se era assuntos que não lhe dizem respeito. Eu faço o que muito bem quiser da minha vida.

Vá lá catequizar o diabo que o carregue. Sou maior e vacinado. Não tenho que lhe dar contas dos meus actos. Vá com essas teorias ou lições de moral para as profundas do inferno, se é que ele existe. Você não passa dum charlatão presunçoso, com a mania de santinho. A tratar um doente dessa maneira, tem já abertas, de par em par, as portas do Paraíso. Um grande cínico é que você me saiu, ouviu? A mim não me engana, com essas lérias manientas.

O médico olhou Macedo, entre cómico e complacente: era bem melhor vê-lo assim, agressivo, a mostrar os dentes, sem máscaras. Talvez lhe fizesse bem aquela efervescência de vencido, para não amuar...

- Eu nunca fui negociante, e em geral são esses que levam a vida enganando tudo e todos, sorrindo com os lábios, e roubando, com as mãos. Considero-me um cidadão livre, e não peço satisfações a ninguém, para expressar as minhas opiniões, por muito que elas doam aos presumidos. Finalmente, como médico, cumpre-me tratar-lhe das mazelas, o melhor possível. Se fosse santo, como pretende insinuar, com o seu sarcasmo, melhor para ambos: para mim, porque estaria mais directamente em contacto com Deus; para si, porque o devolveria, são e escorreito, à sua vida quotidiana, tentando insuflar-lhe no coração mais um pouco de compreensão e tolerância para certos problemas 'alheios. A propósito: não sabe quem o transportou para a sala de operações, quando chegou aqui, todo partido, pois não veio numa maca, disso apercebeu-se, certamente. Talvez isto lhe sirva para meditar um pouco, ao menos nas suas horas vagas: aquele alcoólico, que não teve lugar na sua empresa, para não arranjar lá sarilhos, ou mau ambiente. Olhe, ele aqui, como eu já previa, é um exemplo de trabalho. Todos lhe chamavam assassino, porque teve a infelicidade de agredir, numa questiúncula um amigo, à navalhada. E agora? A quem vamos acusar da morte do juiz, e dos vossos ferimentos? Eu asseguro-lhe que o assassino é dramaticamente o mesmo, bem conhecido de todos: chama-se apenas. Álcool. Este bicharoco é bastante caprichoso, sabe? Destrói pedintes e milionários, com a mesma descontracção e atrevimento, sem que o punam. E aí tem a prova. Mas descanse, que há mais quem se

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queixe da mesma doença. Sem vos querer desejar mal algum, julgo que, a partir de agora, vocês terão mais tempo para dar mais valor às carências de outrem. A resignação é o remédio mais eficaz, de doravante. Muito sinceramente lhe digo que um mutilado não é um inválido! Não lhe adiantará nada entrar em desesperos. Convença-se de que nada pode contra o irremediável, preparando-se para encarar um futuro menos risonho que o passado. Mas paciência. Fiz o que estava ao meu alcance, meu amigo.

Se duvida, pois procure outro médico, da sua confiança. Tem esse direito...

Macedo debatia-se no desespero do homem cheio de vida que, de repente, verifica a sua incapacidade, sem estar devidamente preparado para enfrentá-la. Não é fácil, efectivamente. A rispidez daquele médico mais o chamara à amarga realidade. Talvez fosse mesmo essa a intenção de Gomes. Era duro, superior a forças de Macedo, o que lhe cairá em cima, inesperadamente…

Mas havia mais vítimas, e todas da alta sociedade. Tarde ou cedo, cada um tem de carregar a sua cruz! Nem todos, porem, consegue levá-la ao calvário!

Horácio, a quem a partir de então, seria indiferente qualquer presença feminina, estava de rastos, no seu quarto particular. Tão precoce e abruptamente via terminadas tantas e tão belas conquistas...

E a gerência bancária? Gravemente comprometida, para ele, de certeza! Sabia lá qual o estado em que voltaria daquele hospital! Era um farrapo, um inconformado! Mil vezes a morte! Assim, já ninguém troçaria mais dele! Como invejava a sorte de Venâncio! Esse, pelo menos, nunca mais serviria de escárnio a ninguém! Fora-se, de vez! Não era tanto a invalidez, senão ainda os comentários irónicos que ouviria, dali em diante...

Efectivamente não se enganara, pois aquele acidente saiu nos jornais, dias consecutivos, com todos os detalhes e lamentações, era forma de solidariedade às vítimas. Não eram quaisquer pobres diabos, não, senhor!

Mas... a voz do povo... ninguém a cala! Manifesta-se, sempre que pode, irreverente, talvez maléfica, mas sem quaisquer mordaças;

- Pois é! Estava reunido o governo, sem pensar nas fúrias da oposição! Por pouco, não havia uma limpeza geral! E depois, são os outros que bebem! Fecharam-se a cadeado, para estarem mais à vontade! Saiu-lhes o tiro pela culatra! Bom... antes eles, que eu, salvo seja! Lagarto, lagarto…

- Puxa, Gilberto! Até parece que rejubilas, com o mal dos outros! Isso é crueldade! Não inspiravam grandes simpatias, nenhum, lá isso...Mas,.. E já reparaste, que, se fôssemos, nós as vítimas, poucos mais, além das nossas famílias, nos lamentariam. Quem daria importância ao caso? Morríamos, enterrávamo-nos, e pronto, éramos defuntos.

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- É verdade. Infelizmente tens razão. Perante a humanidade, valem os nomes, nunca a honradez, o trabalho. E é assim a vida: enquanto uns se matam,

Numa labuta diária outros gozam regaladamente o que não lhes custou nada a ganhar. Porém, quando menos esperam, vão-se, num ápice, desta para melhor!

Na cova... acaba-se tudo! Mas custa ver estes cabrões, que não cumprem horários, passeiam à nossa conta, têm as casas ricas e cheias, e ainda nos olham com desdém, ao ver o suor a cair-nos em bica! Que Deus nos perdoe! Mas é bom que de vez em quando sucedam destas, para saberem que o mundo não é só deles! Bem se ralam com as necessidades que passamos, esses pulhas duma figa. Levam carninha para os seus cães e gatos, e nós, nem ossos...

- Aí, não se ralam, não. Se nos arranjam um emprego, até parece que lhes devemos a vida, quando afinal ficam com as coisas feitas, em troca duma ninharia que nos atiram, quase de esmola. E é ir calando o bico...

- Isto é como tudo: quando se ergue qualquer edifício público, durante o tempo que demorou a obra, nunca se pensa no esforço dos operários, que ali gastaram muitas energias, arrostando com sóis e ventos. Vem a inauguração, lá esta o senhor presidente, o senhor ministro, ladeados por uma corja de parasitas, a lamber-lhes submissamente as botas, em busca dum sorriso deles! Vem a rádio, a televisão, os jornais... e fica célebre o nome dum personagem que nunca carregou com um bloco, ou um saco de cimento. Achas acaso que isto está bem? Porquê chorar, quando as suas leviandades lhes pregam destas partidas? Temos os nossos filhos e mulher, em casa, quase tísicos, a morrer de fome, e, no entanto, trabalhamos todos os dias, como escravos...

O outro ficara mais sério, ouvindo o calor quase frenético daquelas palavras. Gilberto sentiu-se mais leve, desabafando, e Sérgio lá bem no fundo, embora com receio de se manifestar abertamente, acabava por lhe dar razão. Aquilo era verdade, embora injusta, mais clara que a água cristalina. E assim se libertava das cadeias constantes, a voz dos oprimidos. Sabia que jamais seria ouvida por alguém, mas manifestava-se, era gente...

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CAPÍTULO XIV

O INEVITÁVEL

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Qualquer ser vivo tem por missão, e normalmente ponto de honra, logo que exista, crescer, reproduzir-se e, mais dolorosamente, dar lugar a outros. Por vezes consegue-se prolongar mais ou menos a vida; mas, eternizá-la nunca! Os progressos da medicina têm sido evidentes. Mas há sempre mais a fazer, se viemos do pó, a ele forçosamente tornaremos...

Gomes, sempre lúcido e convicto das realidades, lutava ainda, cada vez com menores hipóteses! A boa vontade não chega para resolver todos os problemas, mesmo os mais dolorosos! O doente que lhe está confiado, dia a dia, era mais esqueleto. Até os médicos, mesmo bons profissionais são homens, e desanimam, quando se esgotam os recursos...

Os olhos e coração de Isaura, desde há muito que se haviam familiarizado com as quotidianas lutam, esperanças e dores dum hospital, aonde, a cada instante, se ouvem gritos de angústia! O ambiente como que a anestesiara, preparando-a para um duro golpe, do qual já ninguém duvidava! Além de ser mulher, pertencer teoricamente ao sexo fraco, embora dê provas constantes da sua energia, era, antes de mais, uma filha extremosa e dedicada: as poucas lágrimas que ainda lhe caíam, eram quase sempre silenciosamente conformadas...

O médico contemplava-a, mudo, sem se atrever sequer a enganá-la, mesmo com as melhores intenções, lançando-1he infundadas esperanças no coração! Não estava por conta de Lourenço; mas, particularmente, tinha ao menos o humano direito de preferência ou, quando muito, simpatia...

Não adiantará nada prolongar aqui descrições dolorosas, monopolizando as atenções da Humanidade sobre a sorte dum pobre velho que, apesar de tudo, já cumpriu a sua missão. Deixa descendentes, um nome limpo, posto que humilde, o que nem todos conseguem. Seus familiares, amigos, campos e enxada, irão chorá-la, sentindo-lhe a irreparável falta! Aquele montão de pele e ossos, pasto dum inimigo insaciável, pouco mais tem com que o alimentar: morrerão ambos, rum combate horrendo, se que ninguém os possa apartar! Era tristemente verdade: o pobre Lourenço Costa, precisamente porque era pobre, nunca mais voltaria a sua modesta habitação! Os ricos, mesmo depois de mortos, usufruem de regalias vedadas à maioria: Transportar um defunto ao seu querido torrão natal, é tão difícil ou dispendioso, quanto mais longe dele esteja o local aonde faleceu! Aquela família não poderia com tais despesas..

Sebastião era homem enérgico, como lhe impunha a sua profissão; mas, corno qualquer criatura, tinha a sua corda sensível: dedicara-se aqueles amigos, recebera Isaura em sua casa, e agora quase também chorava, solidariamente, a

dor dela, disfarçando aquela mágoa com ausências maiores em casa, protestando muitos afazeres e complicações, na polícia.

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Mais alguns dias se passaram, e o doente foi transferido para outro local, agora sujeito a cuidados intensivos. O coração era cada vez menos ritmado, a respiração mais compassada! Já não conseguia receber alimentos!

Quando muito, pelo menos as terríveis dores duma agonia sempre lúcida, através de fortíssimas doses de drogas em forma de remédios, os clínicos lá conseguiam insuflar-lhe que lhe iam prolongando a letargia! Talvez para dramatizar mais os últimos momentos, mantinha-se presente...

Veio um sacerdote, que trazia, através da Extrema-Unção, a derradeira esperança, a promessa, para os crentes, do reencontro, na vida além-túmulo. Humanamente, nada mais se poderia fazer! Vencia, enfim, a lei do mais forte: o cancro consumira tudo; e Lourenço, já sacramentado, passava, em estertor, de agonizante a defunto, precisamente numa altura em que, na igreja próxima, os suaves acordes dum órgão acompanhavam um coro de fiéis a celebrar a Ressurreição de Jesus Cristo! Era quase meia-noite de sábado de Aleluia! Que coincidência! Terá o defunto voado com o Rei ao universo, ao Paraíso?!... Noémia, pesadamente caída numa cadeira, soluçava, como a viúva que era, a partir daquele momento…

Já sem poder articular palavra, o marido ainda conseguira, através de gestos, abençoar os filhos, amargamente mudos, à sua volta!

Quase de resignação era o aspecto daquele que partia embora levasse consigo a mágoa de não ver os rebentos lançados na vida que sonhara para eles, tantas e tantas noite de insónia, sonhando acordado, com o sucesso deles, tão bons alunos que eram! Eis o espinho da rosa que plantara, e não conseguira colher.

Para que tornar mais fúnebre um acto que, queiramos ou não, afinal faz parte, do quotidiano, pois não conseguiremos remediar o irremediável...

Muito triste e amargurado, como se dum pai se tratasse, Custódio Gomes apressou-se a passar a certidão de óbito. No dia seguinte, o quarto já estaria disponível, para outro doente... A vida não pára!

Não seriam mais três órfãos e uma viúva a mudar o mundo...

Quando soube daquele falecimento, Leonor que desde o primeiro dia detestara Isaura, comoveu-se, sinceramente: na sua leviandade de pretensa burguesa, fora muito agressiva com a moça, arriscando-se e a ser expulsa do emprego; mas, no fundo, como todos , tem também qualquer coisa de bom. Hesitou ainda bastante. Mas achou melhor lançar fora ressentimentos, e decidiu-se afinal.

Extremamente condoída, encaminhou-se para o local aonde todos velavam o defunto. Gomes olhou-a, sem pestanejar, e ela dirigiu-se, resoluta, à filha de Lourenço, embora sem conseguir ocultar um certo receio:

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- Aceite, se puder, os meus. mais sentidos e sinceros pêsames! Não aqueles pêsames da praxe, mas de quem lamenta o acontecimento. Posso beijá-la, Isaura? Não te ruía receio, que lancei fora toda a peçonha...

 jovem sentiu-se tocada, e agradeceu, retribuindo, o cumprimento: mais uma vez, como tantas, o drama humano, com toda a sua força, a fomentar a paz, a pôr de lado rancores, tão agrestes como recíprocos...

Também Almerinda já ali estava, esta, como boa amiga, talvez mais compreensiva daquela dor, há bem pouco sofrida por ela, naquele mesmo hospital. Mudam as personagens, mas a cena repete-se, indefinidamente… já fora Júlio; agora era Lourenço. Amanhã seria outro qualquer! Estamos todos de passagem.

E, quando partimos, por muito agarrados que sejamos, tudo cá fica! Riquezas, poder, etc.! Até as terríveis sedes de vingança se acabam na sepultura... Quase diria que aquelas duas jovens, que por pouco não se agrediram fisicamente, na sua primeira entrevista, estariam agora ali, lamentando a perca dum pobre homem que, dentro de algumas horas, iria a enterrar...Apenas um brado nos sai, dramático e sincero, da alma. - Oh, como é grande a nossa pequenez!...

O médico ficou agradavelmente surpreendido com a atitude de Leonor: Parece que, se numa altura lhe dera um merecido raspanete, agora ela carecia – dum estímulo semelhante à sua nobreza de carácter. E é na hora própria que as acções têm valor. Por isso a saudou, efusivamente satisfeito:

- É assim mesmo, pequena. Deus, afinal, como sempre faz, indicou-lhe o melhor caminho! Convença-se de que ódio não nos leva a nada. Verá que, de agora em diante, vai andar mais leve, sem esse peso, chamado rancor, no íntimo! Lá porque está na força da juventude não julgue que será eterna. Hoje mesmo, ninguém lhe garante que não vai fazer companhia a este pobre homem!

A moça olhou-o, visivelmente horrorizada, exclamando de imediato:

- Credo, Sr. Doutor! Longe vá o agouro, não me queira tanto mal, por amor de Deus! Eu ainda tenho um ataque do coração, por sua causa, aqui!

- Eu, querer-lhe mal?! mas que ideia! Também não o queria ao Sr. Costa, Deus bem que o sabe. Perdi dias e noites à sua cabeceira, rezei muito, na esperança, de ser ouvido. Mas Deus não lhe quis conservar a vida. Ele sabe melhor do que nós o que faz! E a Sua vontade pode mais que todas as nossas juntas. E a vida não nos pertence. Temos o sagrado dever de conservá-la, mas a morte não escolhe idades, nem olha a condições sociais. Que ao menos essa seja imparcial, no meio de tantas desigualdades, injustiças e silêncios!...

Rui, Sebastião e a família, como seria lógico esperar, ali estavam, todos indissoluvelmente unidos pela dor, que mais solidifica a amizade...

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Por uma derradeira questão humanitária, Gomes, como médico, e Sebastião, como polícia, empenharam-se, junto de quem de direito, para que o defunto fosse sepultado na sua aldeia. Vencidas todas as barreiras, o cortejo fúnebre pode seguir, sem mais entraves. Não fora nada fácil ultrapassar tantas burocracias! Contudo, sendo Lourenço tão querido na sua terra natal, teve uma enorme onda de simpatia, à chegada ao féretro. Houve missa de corpo presente, e a aldeia em peso, por assim dizer, quis dar o último adeus ao homem que na constante paz e silêncio duma conduta árdua e honesta, tinha agora, como única recompensa, o retorno à vala comum, mais perto do seu agregado familiar! Para os descendentes, deixava, como herança, o testamento da honradez, no amor ao trabalho. Para matar a fome, isto não era muito, infelizmente! Mas há tesouros fabulosos, que não se encontram nos cofres dos milionários: Por exemplo, o de granjear a amizade pelo que se é, e não pelo que se tem! Noémia e os filhos, para se consolarem, no seu desgosto, sentiam-se compensados, tendo aquela aldeia em peso lastimar e acompanhar Lourenço a derradeira morada! Agora teriam o dever de conservar aquele nome limpo e, se possível, legá-lo aos vindouros. Como normalmente a boa árvore produz igual fruto, de certo não seria difícil! Eles prometiam-no solenemente, e assim o esperavam.

O funeral foi na segunda-feira de Páscoa, já pela tardinha, com bastante atraso, motivado pela demora em conseguir que fosse na aldeia. Aquele Último adeus decorria sob uma atmosfera pesada: Comentava-se o desaparecimento a medo, com o maior respeito, e quase em surdina:

- Era uma santa criatura, este Lourenço! Um escravo do trabalho, que nada devia à preguiça! Que Deus se lembre de tão nobre alma! Nunca mais se conseguem vencer estas moléstias ruins, e tanto que se as estuda…

- Pois é, Genoveva! Para que valeu ele matar-se tanto, pobre coitado!? Esfolava-se dia e noite, para ver aqueles filhos formados, e agora... morre à beira de realizar o seu sonho, como Moisés, às portas da terra prometida...

E não era tão velho, assim! Mas Deus achou que chegara a sua hora...

- Certamente irá pedir-Lhe por nós todos, que cá ficamos, aguardando a chamada! Que Deus nos perdoe, mas não tenho pressa nenhuma de ir, não!

- Vejam só a compostura daquela mulher e filhos! As lágrimas caem-lhes,

em caudal, e quase nem lhes ouvimos um gemido! Isto é amargamente sublime!

A temperatura estava ligeiramente abafada, quando entraram no cemitério.

Quatro homens vigorosos haviam transportado o esquife, sem canseiras: Geralmente nas aldeias não se usam meios de transporte para estes casos. Ali estava uma cova aberta, junto da qual chegava um sacerdote, devidamente paramentado.

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Era o momento culminante... a despedida! Todos os fortes têm a sua fraqueza: Isaura cambaleou, ao tentar abraçar o caixão do pai, com desespero:

- Adeus, querido paizinho, da minha alma! Eu., não posso mais!...

O médico amparou-a, docemente: já previra aquele desfecho, após tanta consternação, mantida em silêncio, nervosamente! Era a explosão inevitável duma alma corajosa, mas filial, que o peso da angústia vergara…

Pelo contrário, Noémia, recobrando forças não se sabe aonde, exclamou:

- Oh, Sr. Doutor! Salve a minha querida filha, por amor de Deus! Isso já seria um castigo demasiadamente severo, a que eu não resistiria. Ela é tão nova, tão dedicada... Ainda está na força da vida, da juventude...

Os olhos de Rui não conseguiram ocultar a sua inquietação, devorando os movimentos do médico, num misto de gratidão e ciúme: se, por um lado, desejava ardentemente ver Isaura livre de perigo, lamentando não ter estudado medicina, por outro, irritava-o ver aquele homem tocar um corpo que tanta amava, sem que ninguém o tentasse impedir. Ai, os complicados corações humanos:

Gerou-se enorme mas momentânea confusão, mas o médico pôs imediatamente cobro ao incidente, recuperando a moça. Os irmãos estavam boquiabertos, sem capacidade de reacção, hesitando entre o socorro a Isaura e o último adeus ao pai. Este acabava finalmente de descer ao túmulo, que outros seres vivos principiavam a cobrir com terra, lindas flores, e fervorosas orações...

Humanamente, tudo estava consumado. Para quem acreditar na vida eterna, misturada com angustiosa saudade, ficará a esperança…

Aquele distinto médico, que agora seguia, cabisbaixo, para casa da família enlutada, analisava o combate que empreendera: a consciência de nada o acusava! Vencera, com êxito, várias batalhas, mas perdera a guerra! Aquele feroz inimigo da Humanidade, até hoje, não nos consta que derrotasse eficazmente: ele volta, volta sempre, cada vez mais encarniçado, e mata...

E, prosseguindo a lei da vida, que tem de continuar para os que cá ficam, a multidão, com uma série de sentidos pêsames, foi-se lentamente dispersando, para voltar à luta do pão quotidiano, da subsistência...

Restavam os mais íntimos, de momento, os amigos incansáveis, que vieram da cidade, a quem Noémia preparou uma refeição reparadora e farta.

As forças eram poucas; todavia a gratidão supriu essa falta...

E, pouco a pouco, com Sebastião de novo no comando, das operações, alguém teria de o fazer, mesmo a custo, retomou-se o diálogo:

- Pois é, minha senhora. Tem de encarar a realidade tal como ela se nos apresenta. Gostei muito de vos conhecer a todos. Só lamento que fosse em tais

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circunstâncias, e não termos conseguido recuperar o seu marido! Esta moça já nos tinha habituado à sua presença, lá em casa: Era já como se pertencesse a família! Lá ia suportando, que remédio, a minha tagarelice, sem azedumes...

No fundo, foi mais uma amizade que as misérias da vida proporcionaram. Só espero que a hospedaria não lhe fosse pesada. Demos o que tínhamos...

A jovem olhava, tristemente, agradecida aquele corpulento homem, sem grande vontade de conversar. Longe dela o querer ver-se livre dele, todavia só lhe bailava no cérebro aquela cova aberta, o caixão do pai a descer, suspenso em cordas, a terra a cair-lhe em cima, com um som cavo e fúnebre... Porém, indo buscar forças à sua dor e fraqueza, venceu aquela sensibilidade, que quase poderia ser egoísmo, enxugou o rosto, e balbuciou, simplesmente:

- Oh, Sr. Sebastião; tal como a D. Luzia e os meninos: sabeis todos muito bem que nunca mais os esquecerei! Tudo o que me fizeram, não só proporcionando-me um tecto e alimento, que nunca quiseram que eu pagasse, são favores que só Deus poderá compensar! Por os meus préstimos à vossa disposição, pode ser conversa fiada e comum, conquanto não menos sincera! Isto porque sei que em nada estarei a altura de vos ser útil. Evidentemente que falo em nome de todos cá de casa, mas foi mais a mim que aturaram, dia e noite.

O médico achou que deveria intervir, para salvar Isaura naqueles embaraços, pois o seu coração assim o exigia, e não pode calar-lhe a voz:

- Olhe, menina: o mundo não pára de dar voltas, Sabe Deus se nós todos ainda não iremos precisar de si! Esta aldeia é muito pacata, óptima para uns bons momentos de repouso. Aquele bulício da cidade dá-nos cabo dos nervos! Sempre que tenhamos disponibilidade e nos apeteça, far-vos-emos uma visita, e com todo o gosto, não é, Sebastião?... Que acha da sugestão?...

Enquanto este concordava, com um gesto afirmativo de cabeça, a tristeza e meiguice aos olhos de Isaura como que se transformou, com um novo brilho:

- Mas, com certeza, senhores. Teremos o maior dos prazeres nisso! Porém as vossas ocupações não o permitem. Médico... polícia... sempre ocupados... Isso é uma forma delicada de fazer com que pensemos que ainda temos préstimo para alguma coisa, o que vos agradecemos. Sempre generosos, estes amigos!

Rui, que ouvira as palavras ao médico com certo azedume, vendo nelas uma certa aproximação entre ele e a moça, achou oportuno meter logo a sua colherada, pois não estava disposto a sair derrotado da contenda secreta:

- Ora, ora! Quando se quer, e havendo boa vontade, arranja-se sempre um bocadinho livre para os amigos! Não é, caro doutor? O senhor acaba de fazer agora isso mesmo. É um herói, como paladino da solidariedade humana…

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- Exactamente, amigo Rui. O senhor exagera, nas suas últimas palavras. Quanto ao princípio, sem dúvida: fá-lo-ei sempre que tenha oportunidade! Se Deus mandou trabalhar, não sermos parasitas, também nos deu o descanso, para a recuperação de energias, senão rebentávamos. É, o nosso prémio. Além disso, acho que todos concordam, acho este lugar, no fundo dum vale, rodeado por montes a pique, um paraíso de sossego, com excelente panorama aos olhos.

É destes contrastes da mãe Natureza que nós precisamos, para desanuviar o cérebro, respirando o ar puro, sem odor a medicamentos e gasolina queimada! A caruma dos pinheiros, o cantar dos galos, os camponeses madrugadores, a cavalo, a caminho dos seus campos, esta ribeira que atravessa a aldeia de cabo a rabo. Confesso que nunca me senti tão entusiasmado, meus amigos. A Isaura pode acreditar mais uma vez em mim. Não há no que lhe disse mentira alguma para lhe dar préstimos, já os demonstrou de sobra, não carece deles, em forma de esmolas. É uma moça cheia de boas qualidades, físicas e morais... A jovem sentia-se corar, envaidecer, mas já tinha a certeza de que o homem não a galanteava, por simples prazer: dizia o que sentia. Tanto melhor. Mas não teve tempo de agradecer, porque mais uma vez Sebastião, para evitar um duelo de palavras, pois bem sabia as linhas com que se cosia principalmente o seu colega de serviço, cortou o mal pela raiz, com uma pancada seca:

- Pronto, amigo Custódio, Como médico, já eu estava fartinho de conhecer os seus predicados. Como bucólico, francamente… é outra faceta a ter em conta! Estamos em contacto directo com um poeta, cujas musas são as belezas campestres! Bolas, mas até é verdade! Eu nem me tinha apercebido. Sou muito bruto, não há dúvida, sempre de cassetete nas unhas! Estamos entendidos: Com esta pensão às nossas ordens, o ar puro destes campos a rejuvenescer-nos os pulmões, vivemos mais cem anos e um dia, sem contar com o do funeral...

Terminada a refeição, como já não era nada cedo, seguiram-se as despedidas, salpicadas de certa mágoa, comum a todos. Sem dúvida que um elo de enorme solidariedade unira profundamente aquelas criaturas. Era prova disso um acenar triste de vários lenços para aqueles ocupantes do carro que começava a descolar, para levá-los à cidade, aonde, no dia seguinte, continuariam a sua labuta, a rotação da faina quotidiana...

A mãe estava inconsolável, pensando como era possível o marido já não estar ali, e procurou refúgio nas palavras à toa que lançou à filha:

- Aqueles senhores foram do melhor que encontramos, na vida. Até nem parecem gente da cidade! Enfim, minha pobre filha: nada podemos contra a vontade de Deus! Só tenho remorsos de ter levado o meu rico homem tão tarde ao médico! Mas ele era muito teimoso, coitado! Nós... mal sabíamos...

- Oh, mãe! A morte arranja sempre uma desculpa! Que lhe adianta torturar-se? fizemos o que foi possível. É o fim de nós todos! Julguei também estar perto do meu, quando vi aquele caixão descer a cova. Eu, só o que queria, era ir com ele... nunca

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mais me separar dum homem que nunca me maltratou. Se o médico não estivesse ali presente… se não me acudisse…

- Ai, filha. Cala-te. Por amor de Deus! Nem sei as agonias que senti, naquela nora! Mas o Sr. doutor actuou imediatamente, ate parece que já sabia...

Alguns dias depois, Alexandre e Filipe, envoltos em pesado luto, regressaram aos seus estudos, redobrando de ânimo, para levar ao fim, com os maiores êxitos de que fossem capazes, aquilo a que se haviam proposto. Se o pai estivesse no paraíso, abençoá-los-ia, ficaria radiante, não dando por má ocasião os muitos sacrifícios que fizera por eles! Era preciso apressar, porque a mãe e irmã agora, mais do que nunca, estavam muito sós e tristes...

Na verdade elas estavam praticamente entregues a si próprias, e quase não saíam de casa, consolando-se, mutuamente, como era possível...

Aqui é quase nulo o barulho dos motores, já um pouco em desuso, ainda se ouve aqui e além um carro de bois, guinchando, carregado de milho, no tempo da apanha. É para os animais, pachorrentos e cheios de força, não adormecerem pelo caminho, arrastando toneladas, sem o mínimo protesto ou lamentação... É bem menor a poluição, e são os passarinhos que enchem os ares, com as suas melodias apaixonadas, indiferentes aos bons ou maus momentos do coração humano! Estes, sim, sem quaisquer preconceitos, podem amar-se livremente, que ninguém os critica. E também escolhem os seus pares, com muito amor...

As fontes, dispersas pelas ruas, substituem em grande parte a água canalizada e mais choca, das casas citadinas. Aqui é tudo mais natural, sem artifícios: Até as pessoas que, menos habituadas à patifaria, são geralmente bem mais participativas na dádiva mutua, no sofrer e gozar com os amigos, as suas dores e venturas, na mais sincera das divisões...

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CAPÍTULO XV

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CONTROVÉRCIA

Agora, que nada mais poderemos fazer por Lourenço, a não ser pedir ao Criador que o receba em paz na Sua Santa Glória, ocupemo-nos doutros seres que, continuando a lutar pela melhor subsistência possível, buscam o seu pão, através dum trabalho árduo, mas quase sempre desempenhado sem azedume s...

Apesar duma conduta exemplar de recuperarão, Jeremias ainda não conseguia ver nos seus semelhantes criaturas com que pudesse contar! Julgava que o olhavam com desconfiança, com reservas, por um passado pouco digno, sem garantias. Era doloroso, mas teria de acostumar-se a eterna companhia da solidão! E os homens foram concebidos para a partilha do afecto...

Em casa de Inésia Miranda também a vida havia melhorado consideravelmente, embora se estivesse ainda muito longe do essencial ou indispensável.

Gomes, não sendo nenhum manequim, regressara à sua vida diária um tanto apático. Os últimos acontecimentos haviam-no transtornado imenso, quando

fora impotente, após tantos êxitos, para salvar uma vida. Era homem completo e, conquanto bastante religioso, até então, não fizera voto de castidade. Não tivera ainda tempo para se apaixonar, tão pouco, amar, levemente...

Para ele, o convívio com aquela camponesa, alegre e jovem, fora uma experiência simplesmente de admiração: quando a surpreendera em viva discussão com Leonor, achara-lhe uma alma gémea, resoluta, como a dele próprio, sem papas na língua, mesmo em terreno alheio. Se todos assim procedessem, haveria muito menos hipóteses de se por a pata em cima seja de quem for. Conheceu bem poucas daquela qualidade, pois a maior parte verga-se ao chicote, simbolizando ovelhas submissas! Fora sempre como um general, que o médico a considerara. Não lhe sobrara tempo para vê-la, como mulher! Todavia, quando a reanimara, no momento da descida ao túmulo do pai, sentira bater-lhe o coração, descompassadamente, qual avezinha, que luta por se manter incólume, ante o perigo. E, só quando percebeu os olhares e palavras de Rui, quase agressivas se convencei de que também era um homem, igual a muitos outros. Desposar uma rapariga modesta, com poucos recursos, talvez sem grande instrução, para ele não constituía o menor problema: bastaria unicamente o amor recíproco. Também ele viera do nada, andara de pés no chão, e hoje, todos o pinavam com respeito, admiração, talvez até gratidão e amor... Sem vaidade, era apenas realista, e não pôs de parte a ideia duma disputa, se necessário, com o agente da segurança publica: as armas seriam a língua o procedimento, a tenacidade e persuasão. Não possuía outras. Ela escolheria...

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Ignorando completamente a devotada paixão que despertara em dois corações, a cujos donos, duma forma ou doutra, devia gratidão, Isaura, como flor fresca e viçosa, com uns olhos tristes e pisados pela amargura da orfandade, sentia-se inconsolavelmente só: Conhecera e adaptara-se perfeitamente a um outro ambiente, do qual reconhecia agora que não desgostara, e começava, não havia quaisquer dúvidas, a sentir... saudades, vontade de voltar...

O carinho em que aqueles amigos, cada um a sua maneira, a envolveram, procurando a todo o custo minorar-lhe o sofrimento, era uma dádiva, um apelo a que não deixasse morrer, cair no esquecimento tão belas amizades...

E, como geralmente os olhos duma mãe nunca se enganam, bem depressa Noémia notou que a filha já não era a mesma: algo a mais do que a dor de órfã havia, a ensombrar-lhe o semblante. Não ousou, contudo, ser indiscreta...

Por seu lado, também Rui andava em brasas, â procura duma forma de reaproximação. Nunca o tempo lhe pareceu tão longo e monótono! Felizmente, quando regressara da aldeia, anotara o endereço de Isaura. E se lhe escrevesse? Mas a que propósito? Ela ainda estava muito combalida, para receber declarações de amor! E se o outro se antecipasse? Bolas! Se calhar o médico nem sequer tinha ideias na moça! Em luta aberta, defendemo-nos melhor do que numa emboscada! E talvez fosse mesmo este o caso presente...

Alguns meses se passaram, e o tempo corria aquelas três almas inquietas. Cada uma, ansiosa, em silêncio, e a vida, indiferente, decorria...

Jeremias continuava hóspede de Custódio Gomes, e notou que este já não era tão expansivo. Não hesitou em perguntar-lhe, inquieto:

- O Sr. Doutor sente-se mal... cansado, talvez. Devia tirar umas férias! O senhor é um homem, não uma máquina. O excesso de trabalho dá cabo de si.

Aquela admoestação chamou à realidade o interpelado: Até aquele pobre homem se apercebia das suas inquietações! Mas iam as, coisas, realmente! Era forçoso reagir, fingir uma descontração que não sentia, e sorriu:

- Mas que ideia, meu amigo! Os médicos, mesmo sendo homens, não têm direito a descanso! Há sempre que fazer, dia e noite! Há tantas doenças, que às vezes desconhecemos, ficando completamente. esgotados! Somos de carne e osso, eis a realidade! Mas eu não estou doente, talvez triste, sei lá...

Estavam neste diálogo, quando uns toques à porta os interromperam. Jeremias foi abrir, e houve uma surpresa mútua, um silêncio momentâneo, que Gomes estranhou, porque não vislumbrou, donde estava, o que se passara:

- Que se passa? Quem quer que seja entre, não faça cerimónia…

E a visita, um tanto retraída, obedeceu: Era Inésia, que tentou desculpar-se, olhando à sua volta, como em busca de um possível esquivanço:

Page 157:  · Web viewAo ouvir pronunciar o nome do marido, Noémia percebeu de imediato que Sebastião pusera já Luzia a par do que se passara. Tão comovida estava com aquele apoio humano,

- Não sabia que estavam… parece que não vim na melhor altura, desculpem. Retiro-me imediatamente, e voltarei depois, com mais calma…

Mas que ideia, minha senhora! Esta porta não se fecha para ninguém, muito menos para os amigos, Entre, diga da sua justiça, e esteja à vontade...

- Trazia-lhe aqui uma i

frutazinha, lá do quintal, Sr. Doutor! Está tão madurinha, tão apetitosa, que faz mesmo crescer aguas na boca...

O médico exclamou, sinceramente satisfeito, esfregando as mãos:

- Oh, belo! como vê, enganou-se! Chega até na melhor das alturas: Acabámos mesmo agora de jantar, e .que boa sobremesa. Muito obrigado...

Enquanto jeremias ficava, petrificado, lá num canto, aquela viúva, ante o agradecimento do médico, estava tão feliz, encantada, mesmo!

Em certas circunstâncias , o saber aceitar chega a ser uma dádiva! Gomes não necessitava de tal oferta, talvez arrancada à boca aos filhos. Mas, fazê-la sentir isso, quando ela ali viera propositadamente com uma humilde prova da sua gratidão, seria crueldade. Facilmente a compensou da generosidade:

- Eu por acaso tencionava passar pela sua casa, para deixar-lhe lá algumas batatas e couves fresquinhas, cá do quintal. Os pequenos bem precisam de vegetais, legumes, com muitas vitaminas! Não o fiz mais cedo, porque ando sempre muito cheio de serviço, como sabe. Há sempre um bocadinho para os amigos, mas ainda não me tinha calhado. Já pedi diversas vezes aqui ao Jeremias. Mas ele escapa-se sempre. Ainda o despeço do serviço, por desobediência...

Diz que a senhora, se lá o apanha, ainda o corre à paulada. Que disparate!

Num instante aquele homem astuto recuperara a energia, o bom humor; e, através de um ardil muito bem urdido, já dispunha as coisas para uma reconciliação total. A casualidade jogava a seu favor, e aproveitou-a...

- Ora essa! Ele sabe bem aonde é a casa. O passado, passou... Não há motivos para receios! Mas o Sr. Doutor não se incomode connosco. Tem-nos feito

tanto... Nós é que o devemos abençoar eternamente, em nome de Deus...

- Deixe-se dessas coisas! Eu é que devo agradecer ao Pai do Céu ter-me concedido a vida do seu pequeno, que estava mesmo por um fio. Mas qualquer dia temos ali um atleta. E quanto a si, senhor incrédulo, está a ouvir? Se não fosse desobediente, eu já lhe tinha dito há muito que lá fosse. Anda-me sempre a moer o juízo que vos quer ajudar, que quer pagar dívidas não sei de que... Eu arranjo-lhe uma oportunidade, e ele foge a sete pés com o rabinho à seringa, como um menino mimado, com medo dos papões, que nem sequer existem! Ande lá, toca a ir levar à família do seu maior amigo o que lhe pedi. Ou quer que eu punha tudo fora, porque

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se perde? Isto prepara-se aqui, num instante... mãos à obra, senhor hortelão, que se faz tarde, e a barriga não gosta de esperar...

A mulher, sempre teimosa, ou antes, acanhada, não queria aceitar:

- Já lhe disse... não se incomode, Sr. doutor. Não vim aqui para isso!

A Almerinda logo deve-me trazer alguma compras, lá da cantina..

Ora, ora! Mas o que daqui for é mais fresquinho! Este nosso amigo tem

um bom lombo. Além disso, não é muito longe, dispensa a boleia: poupa-me mais tempo, pois daqui a momentos tenho de ir fazer a noite, no hospital...

Dali a pouco, ante o olhar muito agradecido da mulher, saía Jeremias, bem carregado, a caminho duma casa, aonde já não entrava, há imenso tempo. Enquanto o médico, radiante, via o amigo hesitar, pensava, lá consigo:

- Isto afinal vai mesmo a caminho! E mais fácil do que eu pensava, até! Qualquer dia estarão refeitos. Era mais que tempo, na verdade. Gostaria de ver a enorme atrapalhação daquele pateta, entrando lá, e os olhares da Inésia! Coitado! Às vezes, não me queria na sua pobre pele! Certamente ainda pensa que a porta lhe vai cair em cima. Bem gostaria de estar de parte...

Apanhado naquela ratoeira, Jeremias não teve outro remédio e, não se podendo esquivar, lá fez das tripas coração. Um tanto emocionado, penetrou na casa aonde nunca mais veria o seu maior amigo, aquele inseparável camarada da boémia, que fizera de ambos miseráveis farrapos humanos! Pousou as encomendas, reprimiu as lágrimas e, sem mais conversas, já se dispunha a sair. Mas Inésia interpôs-se, fechou a porta, e conteve-o, tranquilamente:

- Para quê tanta pressa, homem de Deus? Aqui... ninguém te quer mal! As desgraças andam sempre debaixo dos pés! Eu odiei-te, é verdade. Mas na verdade parece que Jesus por vezes permite as desgraças para depois saber tirar o bem delas, em favor de outros! Aquele médico fez-me compreender que a culpa foi de ambos. O meu homem morreu; tu, escapas-te. São caprichos do destino!

Que se há-de fazer?... Tive um filho à morte, e aquele santo homem restituiu-me, são e salvo! Escusamos de nos evitar, sempre desconfiados, olhando-nos, como inimigos! Quando pedi o perdão para ti, no tribunal, foi com plena consciência, a senti-me invadida duma alegria ilimitada! É bem mais difícil vencermo-nos a nós próprios, que esmagar um poderoso inimigo! É um verdadeiro herói quem o consegue! O médico fez-me acreditar piamente na tua recuperação, e ela é um facto; Acredita: valeu bem a pena a minha total renúncia à vingança!

O homem não sabia bem o que responder: Sentia grande vontade de recuperar uma paz de espírito que de há muito o abandonara. Já que lhe enviavam generosamente uma tábua de salvação, não deveria desperdiçar tal oportunidade:

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- Olha, Inésia: para um criminoso que quer arrepiar caminho mesmo à custa dos maiores sacrifícios, sem falar na luta contra o exterior, na qual é alvo dos maiores desprezos, o pior inimigo, que nem na cama nos deixa em paz um só instante, é a consciência! A esta nunca poderemos fugir: tortura-nos, como o maior dos carrascos. Só não me suicidei graças aquele homem extraordinário, que passa a vida a curar-nos corpos e almas. Senão, de há muito que eu teria buscado na morte a tranquilidade, ou sei lá... as penas eternas...

Todos me repelem, pronto, é sina que já vem do berço! Até os meus pais, que

nunca conheci! Cresci, como um cão, sem eira nem beira, mas escapei! Um homem, entregue a si próprio, sem um carinho, uma palavra amiga, sempre levando pontapé, acaba procurando refúgio na maldita bebida e, com os marginais, e bem mais fácil fazer camaradagem! Transformado em valdevinos, julga que esquece ou resolve os seus problemas, e apenas arranja mais complicações para cima de si! Quem me deu a mão? A delinquência, evidentemente! Bem melhor seria que me atirassem ao rio, quando vim ao mundo, aonde tudo me é recusado! Que me perdoe aquele santo médico, pois tudo lhe devo! A igreja proíbe o aborto! Olha que viver, sem ninguém que nos cuide, é bem pior que ser morto antes de nascer!

Inésia, ouvindo, extremamente comovida, aquela amarga confissão, recordava os maus tratos a que fora sujeita pelo marido, outra vítima do álcool, e não pode conter as lágrimas. A tragédia era mais que sua: Era, infelizmente, universal!... E, entre soluços, ela exclamou, angustiosamente:

- Pois, sempre que queiras, terás esta humilde casa ao teu dispor. Aqui, podes estar certo, ninguém te criticará nem atirara em rosto nada deste mundo! . Os infelizes sentem-se menos sós, quando repartem mutuamente a sua desgraça! Por isso, unidos, talvez arranjemos mais forças para a suportar! Aqui, repito, ninguém te quer já mal nenhum. Não duvides, porque a verdade esta á vista.

Jeremias sentia-se extremamente comovido, ante a sinceridade com que a sua interlocutora, farrapo, como ele, se expressava:

- Só Deus sabe com que ânsias e há quanto tempo alimento esta ambição!

o fundo, os remorsos já não me afligem tanto, pois nunca me passou pela cabeça praticar uma acção daquelas ! Todavia continuo sem coragem para vos encarar a todos, e principalmente para me atrever a frequentar esta casa. Imagino os comentários que não seriam. É preciso respeitar o teu nome....

- Lá quanto a isso, nada me ralam. Nas minhas aflições, antes ou depois da viuvez, nunca ninguém me acudiu! Se o médico ca te mandou, estou a vontade. Até que... resolvêssemos casar... o problema era nosso, unicamente...

Ao ouvir aquelas palavras, o homem ficou com cara de parvo! Se tal facto sucedesse, cairia como uma bomba, naquele meio! Era uma afronta! Um desafio audacioso à opinião pública! Bem poucos se atreveriam a tal, com certeza!

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A mulher tinha razão: quem quiser agradar a todos, não o faz a ninguém! Para o inferno com todos os preconceitos, que só nos manietam, impedindo-nos de dar um passo! Estar de bem com a nossa consciência, não prejudicar os outros,, eis o melhor dos lemas, para reger uma vida, independentemente desta ou daquela intuição religiosa, que ate poderá nem existir...

Bem mais renovado, Jeremias deixou aquela casa, precisamente quando Almerinda entrava, com algumas compras, as que eram possíveis, para pobres.

Diante daquela aparição, a moça não pode ocultar a sua surpresa:

- Muito bem, Sr. Jeremias! Estava muito longe de o imaginar aqui, agora! Bons olhos o vejam! Ao tempo que não nos aparece. Mas já se vai?...

- Pois é, pequena; vim num recado do Sr. Doutor, mas já estou de saída. Ele certamente até estranhou toda esta demora, e com razão...

Não se preocupe, que ele já está no hospital, e até tão bem disposto, como já não o vejo, há tempos! Desde que o Sr. Lourenço morreu, nem parece o mesmo! E dizem que os médicos não têm coração, que são máquinas! Aquele tem sofrido, e bastante, pois devia ser bem amigo da família...

- Está bem. Mas tenho lá o quintal para arranjar, sabes?

- Ora. essa! Daqui a pouco é noite. Semanas e meses não lhe faltam! Assim como assim mora lá... está sempre por sua conta, nas horas vagas...

- Pois precisamente por isso mesmo preciso de pagar a minha hospedaria, que, apesar de estar já a ganhar, ele até agora ainda não quis nada…

E saiu, francamente satisfeito, leve e optimista, como nunca! Mais uma vez devia ao seu benfeitor a alegria em que se achava mergulhado...

Ficando sozinhas, mãe e filha entreolharam-se, por momentos, em silencio, muito incrédulas. Por fim, foi Almerinda quem falou: - Mas... que diabo veio aquele pobre diabo aqui fazer? Anda sempre tão triste, no hospital! Não fala com ninguém, e não pára um instante, no trabalho!

- Trouxe-nos tudo aquilo que ali vês, que o Sr. Gomes nos mandou...

Aposto que o fez de propósito, para o forçar a vir cá a casa, para nos ver todos

de bem, uns com os outros. Coitado: só queria que o visses, tão atrapalhado: Mal depôs a carga, queria logo retirar-se. Fui é que o aguentei! Não é menos infeliz do que nós! Os pobres estão sempre mais sujeitos às calamidades do mundo! Não se podem defender, tudo lhes cai em cima, minha filha!

- Como lhe disse, mãe, ele, lá no serviço, é um mouro de trabalho. Que formidável transformação, para quem o via. Merece bem o respeito de todos!

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Fora realmente coroada de êxito a armadilha de Custódio Gomes. O à-vontade, a princípio tímido, depois, bem mais acentuado, foi unindo o assassino à família da vítima! Por trás, manobrando na sombra, o dedo do astuto médico, traçando bons caminhos, aplainando todas as dificuldades...

Feliz de quem lança nos alicerces dum templo a primeira pedra com que foi atingido: Não são todos que conseguem transformar um algoz, um inimigo,

aos olhos do mundo ou da lógica, num futuro companheiro, que partilhe o resto dos seus dias ! Jeremias via cada vez mais próxima a oportunidade de resgatar uma dívida. Só que as coisas tomavam um rumo bem mais suave do que, em principio, pudesse jamais imaginar. A aceitação com que o honravam, era tão sincera, para quê duvidar de quem sofria tanto ou mais do que ele?...

Um dia o nosso recuperado cobrou ânimo, venceu as hesitações, e falou a Inésia que, com toda a calma e paciência, o escutou:

- Olha, mulher: como era de prever, os comentários desta gente redobram de mordacidade. Embora isso não me comova, precisamos conservar limpo o teu nome. Se não somos jovens, pois tanto melhor. As decisões que tomarmos serão mais responsáveis. Se não te parecer um sacrilégio, se os teus filhos me aceitarem, gostaria de substituir-lhes, na prática, o pai que lhes roubei. Era uma forma de nos trazer a tranquilidade que, talvez por cobardia, até agora, não ousamos enfrentar. Estamos a meio da vida; não somos velhos...

Inésia não respondeu, de imediato: era um caso que pedia muita ponderação. Bem poderia criar um conflito familiar, se bem que cada ser humano seja dono da sua vida. Porque não refazer a sua vida? A mulher não era de pedra...

A nível caseiro, não apareceram obstáculos, Inésia acabou por aceitar. Não era uma jovem de vinte anos, sequiosa por conhecer novas sensações. Mas a vida é para se viver, ou pelo menos, tentá-lo, uma segunda vez...

Calar as vozes da murmuração é tarefa impossível! Quando se soube do próximo casamento, os comentários sobre o assunto, por onde quer que se passasse, eram constantes, mordazes, servindo para a maior chacota:

- Isto é inédito, oh, Celestino! Tal coisa, nunca vi, na minha vida! Ele mata o marido, passados tempos é absolvido, e... agora, casa com a viúva! Romântico, sem dúvida. Este vale mais que o Romeu e a Julieta. É diferente...

- Na verdade, amigo Bernardo, esta vida é uma caixinha de surpresas.

Tal coisa não lembrava ao diabo! Ela não se fartou da porrada que levou do primeiro, que gastava tudo na bebedeira! E os filhos nem abrem o bico!

- Chamar-se-á a isto... conquistas pela força... mata-se o galo, para se tomar conta do seu poleiro. Este mundo está perdido, não tem remissão!

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- Oh, homem: rei morto, rei posto. Deixa lá viver aqueles pobres diabos! Parece que o segundo alcoólico se emendou. O médico arranjou-lhe um tachinho, no hospital, e lá se vai desenrascando! Não há razão de queixa do seu trabalho. Enfim, alguém tem de fazer boas obras, corrigir os que erram, que nós estamos muito ocupados para isso. Não é fácil alguém levantar-se, após tamanha queda, Mas , faça-se-lhe justiça: o homem tem sido um herói...

- Lá isso, é verdade, ninguém o contesta. Mas, daí até deitar-se na cama, com a mulher da sua vítima, essa, nem nas profundas do, inferno, junto do diabinho. Ele não consegue inventar tanto, julgo eu. Os de cá são piores... Aqueles perdões todos, no tribunal, de certeza, que já traziam água no bico. Realmente bem estranhos pareceram a toda a gente que assistiu ao julgamento!

- Que se desenrasquem. São maiores e vacinados. Desde que não me venham

cá bater à porta, podem derriçar, até cair de podres, que já faltará pouco...

Os dois comentadores separaram-se, ainda com sorrisos trocistas nos lábios, como convém à critica destrutiva, seguindo ambos a sua vida...

O próximo casamento não tardou muito: foram convidados para testemunhar a cerimónia, Sebastião e a esposa, por parte da noiva; Custódio e Isaura, que hesitou muito em aceitar, pois não via motivos para a escolha, por Jeremias. Este é que se mostrou muito interessado e insistente, até que a convenceu. Tais convites não se rejeitam, e o médico fez questão de se ocupar com a despesa: a festa seria em casa do agente de segurança, aonde havia muito espaço para se pular, e até, em último caso, cair à vontade...

Evidentemente que os convites eram extensivos aos familiares: viriam também Noémia e os dois filhos. A morte de Lourenço, embora passados apenas alguns meses, para que pudesse estar esquecida, ou anestesiada a dor, em tão curto espaço, não impediu a comparência dos Costas num acontecimento que prometia a felicidade a um próximo casal. Seria egoísmo, involuntariamente, talvez, entrincheirarem-se na sua angústia, e ingratidão recusar um convite a quem tanto deviam. Se tal fizessem, não dariam a vida a Lourenço....

Não havia outro tema de conversa, naquela cidade: o casamento duma viúva com o assassino do marido! Aquilo era demais! Deus perdoara ao bom ladrão, à mulher adúltera, aos próprios algozes; mas poucos Lhe seguiam o exemplo, e. a maioria até criticava duramente quem o fizesse! De qualquer maneira, mesmo pertencendo à escumalha da sociedade, a publicidade celebrizava as núpcias mais controvérsias, de há muito tempo, a essa parte! Todos aguardavam o dia com grande interesse e muito maior curiosidade…

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CAPÍTULO XVI

ATAQUE CERRÁDO

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Chegou, finalmente, o grande dia! Em si, aquele casamento nada teria de especial: Era mais um homem e uma mulher que se uniam, como tantos outros...

O principal atractivo era, sem dúvida, a vida passada, os antecedentes e a relação agressiva havida entre os dois cônjuges, e a grande curiosidade das línguas mundanas, sempre prontas a cortar, quais facas bem afiadas... Era mister saber-se se, malgrado a pequenez financeira de ambos, teriam um grande acompanhamento, bonitas ofertas, o que logo se confirmou. E a maior surpresa, talvez despeito dos curiosos, era constatar o luxo com que se cobriam os noivos que, tão garridamente, pareciam ter rejuvenescido...

- Vejam só o diabo da viúva! Já ultrapassou, embora em pouco, os quarenta! Mas parece uma rainha! Raios a partam! e os filhos , todos vaidosos, ali! Coitado de quem morre! Se foi escandaloso, no tribunal, ela pedir o perdão deste bandido, não sei o que se há-de chamar, agora, ao facto de se atrever

a entrar com ele na igreja! E, a Religião consente-o! sinceramente...

Era Lucília quem assim falava, deixando voar livremente a peçonha linguareira que sempre a envolvera, estava longe de ter uma conduta exemplar, mas certamente não conseguia ver-se ao espelho. Tornara-se já de há muito célebre , nas redondezas, pela perversidade do seu paleio. E, apanhando uma vítima a jeito, mais uma vez punha em prática tal eloquência...

Um tanto mais escrupulosa, talvez para se fazer santinha, ou não dar tanto nas vistas, a vizinha Zélia tentou pôr água na fervura, mesmo simulando:

- Oh, rapariga, deixa-os lá- Eu, realmente também nunca vira uma heresia destas. Que Deus Lhes perdoe. Mas isso é tudo lá com eles. Até o bêbado recuperou o bom humor! Andava sempre de trombas… ela não se fartou da porrada que levava do primeiro! Ou então... não pode passar muito tempo sem um homem...

- Lá isso... é muito difícil para nós todas, sabemo-lo muito bem! Mas quem a queria, com cinco filhos? Só mesmo um bêbado, igual ao marido, claro!

A igreja encheu-se, não só de curiosos, mas também de muitos convivas.

E… viva o luxo! Até o organista da paróquia se prontificou a colaborar,

gratuitamente: era tão pobre como os noivos. Mas, sabendo ao que se passara, não hesitou em aplaudir o arrojo daquelas duas criaturas, porque desprezava, com ferocidade, as críticas sociais, com a sua intromissão maléfica e destrutiva nas vidas alheias: Era a personificação do radicalismo.

Terminada a cerimónia religiosa, durante a qual, e apesar do muito que se falou, os santos ou imagens destes, não caíram dos altares, saíram todos:

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A casa de Sebastião ficou cheia: um colorido de juventude de ambos os sexos emprestava grande animação à festa! Casada em segundas núpcias, Inésia nem parecia um dos felizes protagonistas do que ali se passava! Estaria, a fazer bem ou mal?!... Arranjar um padrasto para os filhos, na maioria das vezes, não dá bom resultado! Que Deus a ajudasse; e o defunto, caso a visse, lá na Eterna Morada, a compreendesse e.. perdoasse, se pecava contra ele...

Pelo contrário, Jeremias parecia uma criança exuberante, que alcançou o brinquedo com que sempre sonhara: já sofrera muito, no tribunal, na cadeia, na solidão, entre remorsos... aquilo era bom demais, para ser realidade... Até a tolerância... talvez agrado dos enteados... era um sonho, sem dúvida, do qual jamais desejaria acordar! Casar numa igreja, com missa, órgão e tudo! Passara, de repente, de mendigo a príncipe! Ele, que nunca dera confiança a padres nem a sermões! Mas lá diz o Evangelho: Há mais alegria com a recuperação dum pecador, dum transviado, que com o regresso ao Céu de muitos justos. Com estes já Cristo contava, na prática, poderia Jeremias finalmente resgatar a sua dívida, para com o malogrado Miranda, conquanto de forma pouco habitual!

A boda foi abundante em comes e bebes, em vivas e mais vivas aos noivos.

E, como à sombra do doente, come toda a minha gente, o anfitrião não se esqueceu do mínimo pormenor: Havia ali música para todos os gostos, e muita gente ansiosa por se divertir, ao som dos ritmos mais lentos ou apressados. Entre os muitos convivas, lá estava, como velho amigo da casa, o nosso conhecido Rui, com uns olhos que a ninguém ocultavam as ânsias que lhe iam na alma. Até Leonor, e outras colegas do hospital, disseram presente, porque o noivo as convidara. Marília, recentemente formada em letras, também viera: era a filha de Hermínia, a professora que tanto ajudara Almerinda, nos seus estudos. Aqueles dois quarentões haviam juntado à sua beira grande parte da fina flor citadina, que não se cansava de sorrir, aplaudir...

E agora, para não fugir às regras, o casal foi intimado a dar os primeiros passos de dança: faziam-no, tímidos, desajeitadamente... talvez pela primeira vez na sua vida... Pobres diabos! A indiscrição de Sebastião surpreendeu-os, nos seus embaraços, com uma fotografia, mesmo em cheio! Era de todo impagável, aquele homem! Não havia mais remédio senão prosseguir...

Seguidamente o mesmo personagem, sempre com ar de palhaço, arrastou Noémia., para a folia,, que não se pôde esquivar. Embora muito prazenteira, Luzia mantinha-se sentada, sem mostrar grande vontade de entrar em cena. Mas o marido na dança seguinte, foi buscá-la, como se lhe fizesse um grande favor.

Ela nem se ofendeu, porque estava farta de saber com o que contara sempre. -Tudo começara com uma valsa bem convidativa: o Danúbio Azul...

Precipitadamente, vendo só inimigos à sua volta, sem quaisquer motivos,

Rui não perdeu um segundo, e antecipou-se aos demais:

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- A Isaura concede-me esta dança, por favor… venha...

A moça quase receou aquele olhar inquieto; mas não teve dúvidas, e lá foi, quase de rastos meio atarantada com aquelas pressas todas.

Pouca sorte, porém, para o mancebo, porque a valsa já ia no fim...ele engoliu em seco, e pediu-lhe ficasse na próxima, Desta vez era um tango. “Serei feliz, com teu amor”... Até parecia provocação. Nada mais a propósito...

Ele enlaçava-a, ternamente, mas ela mantinha sempre uma certa distância. Que irritação! Visivelmente atrapalhado, ele queria dizer-lhe tantas coisas, e, sem ser dos mais tímidos, o facto e que não se atrevia a abrir a boca... Por fim lá se decidiu, com o coração aos pulos e a voz trémula:

- Oh, Isaura! Tanto que eu desejava este momento! Desculpe, se isto a incomoda! Mas a verdade é que tenho vivido doido, inquieto para lhe falar! Oh, não, por amor de Deus! Porque me evita? Não tenha receio de mim! Quero-lhe bem demais para lhe causar mal! Não sou um conquistador das dúzias, não.

Gosto de si, e muito. Quase desde que a vi! Se lhe falasse levianamente, de há muito que o teria feito. Quem ama, sabe esperar, mas… só com a certeza de que é correspondido! E, devorado por dúvidas que haverá mais alguém interessado no mesmo, vejo-me forçado a atirar-lhe as palavras quase de enxurrada.

A moça, porque não dizê-lo? Sentia-se enlevada: era a primeira declaração de amor que lhe faziam, e assim à queima roupa, ardentemente. Chamou a si todo o sangue frio e, simulando uma calma que não sentia, respondeu:

- Na verdade, Sr. Rui, quase nem me deixou respirar! Mas que pressa! Estas coisas não se resolvem assim, aos trambolhões! Carecem de muita ponderação. Não me olhe dessa maneira, que realmente chego a ter medo de si! Não tenciono ficar para tia. Concretamente, por enquanto, tenho o coração disponível. Mas o que cá me vai no intimo, peço-lhe licença para ficar comigo...

- Por amor de Deus, Isaura, não seja cruel! As suas palavras trouxeram-me, simultaneamente, um grande alívio, e igual decepção! Se, por um lado, não está comprometida, por outro, eu não lhe mereço o menor interesse... É isso?

- Não quero magoá-lo. Longe de mim tal ideia. Mas, neste momento, dar-lhe quaisquer esperanças, permita-me a franqueza, seria enganá-lo, simplesmente. Tal embuste nunca partirá de mim! Não vejo grandes hipóteses, sinceramente!

Rui desfaleceu: aquela entrevista redundava num fracasso! Quase soluçou:

- Pois é. Sucedeu o que eu já previa! O outro chegou primeiro; Por isso anda todo satisfeito, porque sabe tê-la já conquistado. Ah, maldição!

- Mas qual outro, não me dirá? Repito-lhe que estou livre .. .

O jovem polícia quase não se controlava, e precipitou-se:

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Não me faça falar! Sabe muito bem de quem se trata! Ainda há pouco me dizia desejar ser honesta, comigo, e agora, já me vem com evasivas?!...

Isaura sentiu o sangue subir-lhe impetuosamente nas veias:

- Por muito que eu lhe deva, isso não lhe dá o direito de ser deselegante comigo nem eu admito a ninguém que me insulte, impunemente. Não temos intimidade que lhe permita essas liberdades de vocabulário. Lá na esquadra deviam ministrar aos necessitados aulas de civismo. Permita-me que me retire, e demos o assunto por encerrado. Com tais ímpetos só piora a situação!

E nem lhe deu ocasião para se desculpar: sentou-se novamente, mesmo a meio da dança, procurando ocultar aquele incidente aos que a rodeavam. Rui engolia em seco, muito furioso consigo próprio:

- Bolas! Que rapariga mais arisca! Aqui está como um sonho tão lindo se desfaz à partida! O outro galo já lhe arrastou a asa, era de prever! Se isto fosse um amor passageiro, pronto! O pior é que eu adoro-a! E não desistirei assim, não! Isso é que era bom! Afinal que diabo de polícia sou eu? Mas isto nada teria a ver com profissões! E também não era preciso ficar tão ofendida, que não me portei tão mal como isso. É muito senhora do seu nariz!

Por sua vez, Filipe estava muto feliz, dançando com Almerinda, que parecia uma avezinha, transbordante de ternura, nos seus braços, que não se faziam rogados, para apertá-la constantemente. Ali, parece que a sede de carícias era mútua! Não havia tempo para se preocuparem com mais ninguém. 0 momento era unicamente deles, e havia que aproveitá-lo como pudessem...

Alexandre também não ficara sossegado: enlaçara Leonor, que toda se derretia, em evoluções continuas e doces, toda satisfeita da vida...

Enfim, cada um à sua maneira, procurava tirar o melhor partida daqueles momentos inesquecíveis e inebriantemente deliciosos: quase tudo atravessava a época risonha da juventude, sempre ébria de novas sensações...

Helena também já não dispensava o seu pé de dança; e, toda desengonçada, tirava a barriga de misérias! Assim como assim, Deus quando dá, é para todos, além de que ocasiões daquelas não se têm todos os dias.

Apenas Custodio Gomes ainda não se manifestara: assistia aquelas euforias, aparentemente compreensivo e calmo embora, como homem, estivesse também com vontade de partilhar do que por ali se desenrolava. E, muito naturalmente, sem se apressar, dirigiu-se a Isaura, convidando-a:

- Estará disposta a desenferrujar um pouco essas pernas!?...

Por muito que se controlasse, a jovem levantou-se, e nos seus olhos havia um intenso brilho de felicidade. O coração é um bichinho insubmisso, que ninguém governa,

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comandando, mesmo em silêncio, o resto do corpo. Realmente dava mesmo para desenferrujar, aquela marcha trepidante!

Contudo, tal movimentação não atemorizou aqueles dois seres, cheios de sangue na guelra: pelo contrário, mais espevitou ainda as suas energias.

Involuntariamente, passaram junto de Rui que, naquele momento sem par, se sentara junto de Sebastião, já lhe havia contado o incidente, com a moça, E levou logo a repreensão normal, que o colega não as poupa a ninguém:

- Foste um grande palerma. Agora, meu velho, queixa-te unicamente da tua burrice. És um precipitado. Sabes muito bem que não se apanham moscas

com vinagre! Além disso, foste muito incorrecto com aquela simpática.

O rapaz ficara azedo, com as admoestações do colega, e bem lhe apeteceu mandá-lo para o inferno. Mas amuou. Ao ver passar a deusa dos seus sonhos toda feliz, em outros braços, vociferou, rangendo os dentes:

- Ai, a minha pistola! Era num instante: pum! Sebastião olhava-o, entre trocista e compreensivo:

- A pistola? Mas para quê? Se não a tens, empresto-te a minha. O que se passa, agora? Descobriste acaso algum ladrão, em minha casa?...

Ainda mais furioso, o outro explodiu, sem rodeios:

- Oh, e que ladrão! Dos mais perigosos! Sabe apoderar-se, |bastante de nós todos, do melhor que há, aquele cabrão duma figa. Mas eu racho-o!

- De corações, não?... É muito velhaco, aquele amigo! Mas olha que o mundo é dos espertos, sabes? Eu não vejo irregularidades no jogo...

A conversa não agradava nada ao rapaz, que só via aquele casal evoluir, vezes sem conta à sua volta, numa ternura frenética! Bem melhor seria nem ter vindo ali! Até pedira e pagara generosamente a um colega para o substituir, porque estava de serviço. E para que? Aquela humilhação encheu-o de ódio, toldando-lhe a visão. O raciocínio como que se lhe atrofiara. Eis senão quando... de repente... teve uma ideia luminosa:

- Vou deixar de ser burro, e é já! Para grandes males, grandes remédios! E porque não pensei nisto mais cedo. Não se rirão de mim, sacanas do diabo!

E, na próxima oportunidade, levou Leonor consigo, a quem arrastou, numa dança louca: era ela o bode expiatório dos seus males! E, sem o saber, a rapariga bem se prestava ao jogo, retribuindo, sempre mais e mais, aquelas sequiosas caricias, aonde no fundo também havia mais entusiasmo que coração!

Calmamente sentado na sua cadeira, Sebastião partia-se todo a rir, seguindo as venetas do seu colega, que não parava de ziguezaguear.

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- Não podias ter escolhido coisa melhor, querido amigo! Essa pequena

tem cá uma febrezinha, que não acalma, com qualquer supositório! Felizmente o teu ofício ensinou-te muito bem a usar o cassetete. Nunca pensaste ter assim tanto serviço gostoso, felizardo! Faz o diabo, paga João Ferreira, realmente!

Nem essa freguesa sonha os motivos por que está a ser tão amachucada! Amanhã bem me podes ouvir, na esquadra, seu esfomeado duma figa!

A festa, cada vez mais divertida, durou até às tantas. Ali ninguém se preocupava com canseiras, muito menos com as tarefas do dia seguinte...

Houvera constantes trocas de pares: ali, ninguém se comprometia. Mas o que ficava no íntimo de cada um... quantos projectos, quais castelos de espuma, alicerçados na embriagues dum entusiamo irreverente...

Algo passaria, talvez. Mas também raízes ficavam, duradouras, inevitavelmente. Muito amor, o sonho, a esperança...

Isaura, envolta no manto acolhedor da juventude, julgara ver nos olhos do médico, sempre compenetrado, o que os lábios do homem não lhe haviam revelado! Também já seria muita mistura, logo no mesmo dia, duas declarações! Às vezes as palavras não são necessárias, se os tímidos impulsos ao coração

não têm coragem suficiente para revelar! Porém todo o cuidado é pouco, para, no auge da cegueira, ou credulidade, não ir em ondas revoltas, bem capazes de conduzir ao naufrágio: melhor agir com prudência, na defensiva...

E a antiga assistente social, agora balconista? Pobre Alzira! Bem que tivera conhecimento de tudo, mas era evidente que ninguém se lembrara dela! Seguia disfarçadamente o desenrolar aos factos, revoltada contra a marginalização a que fora votada! imaginou-se, como muitas outras, naquele baile, volteando, bem apertada contra o peito do seu atrevido advogadozinho. Mas ele continuava hospitalizado, sem esperanças de grandes melhoras

. Quase nem podia receber visitas! Certamente seria má vontade, embirração do corpo clínico, que Gomes manipulava, a seu belo prazer, o velhaco. Pensando em tudo isto, ela amaldiçoava tudo, à sua volta: quando fora senhora, só a procuravam, por interesse, para resolver os seus problemas, e nunca por afeição! A culpa; fora dela, que a todos olhava, como escravos. Agora continuava, mais que nunca, a amargar a solidão, sem amigos nem dinheiro, pelo menos o indispensável para as suas estravagâncias, para poder viver decentemente, como gente! Só por orgulho, quando andara em busca de emprego, não dera em prostituta! Mas agora, acabava por invejar a sorte de quem o é! Nunca fora amada, como mulher, na totalidade! Ao menos que a buscassem, e o seu corpo servisse de pasto ao brutal prazer dos famintos! Certamente andaria com a bolsa sempre mais recheada!

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Até aquele santinho de pau carunchoso do médico a recebera com altivez, sem o respeito que uma senhora merece! E ainda por cima não lhe arranjara serviço. Mas andava sempre a matar-se pelos outros, que nem sabiam para que serve uma caneta! E, ainda dizem que o suicídio não é solução! Se é! E a

melhor de todas. Acaba-se tudo, mais ninguém nos chateia... E a coragem para dar cabo de si? Maldita a hora em que viera ao mundo! Antes abortasse!

Ela não; a mãe, que tao estupidamente a parira! Agora também se revoltava contra os pais, que já nem sequer existiam! Bem escusavam de a ter fabricado,

ou então, fizessem-na mais atraente, que não custava nada...

As leis de trabalho concediam a Jeremias alguns dias de descanso, aos quais ele se privou, atendendo às carências de pessoal, existentes no hospital, naquela altura: Os deveres sociais para ele já eram mais importantes que uma lua de mel. Não lhe faltaria tempo para estar em casa, com a esposa. Longe já iria o tempo das ilusões amorosas: O trabalho era a única forma de resgate à vida dissoluta que o levara à marginalização! Jamais esqueceria a promessa

de reabilitação feita, entre lagrimas, a quem o salvara...

No auge da fúria, querendo consomar a sua vingança íntima, Rui levara

Consigo Leonor, sempre prestável, e disposta a leal colaboração., num carro, em alta velocidade. Esquecera-se completamente do seu cargo. E, sabendo-se

em sitio seguro, descontrolou-se totalmente, dando largas aos desejos

que o dilaceravam: se tinha ali uma companheira ao dispor, porque desperdiçar aquela ocasião soberana? Ela nada recusou, numa dádiva mútua! Nem os arrepios da perda da virgindade a perturbaram um só instante! Ela, porém, não via Rui, mas Gomes, a acariciá-la! Sem que ambos soubessem das mazelas íntimas um do outro, consomavam um acto físico, entusiasta, sem no fundo se

pertencerem! Ladrão que rouba a ladrão... nenhum deles teria que se queixar! Aquilo foi um gozo sem reservas, ate caírem, fartos! Acabariam por adormecer, após tanta euforia, desmazeladamente, no carro...

Quando acordaram, já um tanto mais refeitos, voltaram ao mesmo, sem noção das noras. Agora, porém ,no meio dos seus desvarios, um princípio de compromisso: Aquilo era delicioso, por isso ficariam noivos...

Com os fatos todos enrodilhados, o senso reaparecia, e com ele um pouco de vergonha: Tinham ido longe demais, e a sua imprudência bem poderia trazer consequências. Mas, na altura, tais coisas nunca vêm à cabeça...

A escuridão da noite encobriu-lhes o impudor, e foi com grande alívio que, principalmente Leonor, após tão inesperadas emoções, se sentiu aconchegada entre os lençóis, embora com o corpo trémulo, sequioso e dorido!

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Custódio dançara com Isaura: não ficara indiferente aos seus atractivos; mas apenas lhe perguntara como iam as coisas, lá na aldeia, após a norte do pai. Era bastante cedo para lançar as redes, por isso procurou, com antecipação, explorar sábia e cautelosamente o terreno:

- Pois é uma falta irreparável, Sr. Doutor! Mas contávamos com ela,

e talvez isso acabe por ser uma vantagem. Uma morte repentina é muito pior, que pode dar origem a outras! Vamos vivendo, que remédio!

Mestre no assunto, o médico verificou já estarem criadas as condições acessíveis À germinação doutros sentimentos. E, calmamente, tentou a sua sorte:

- Desde que o seu pai foi confiado aos meus cuidados, a Isaura deve conhecer-me o suficiente, julgo eu, para ter uma opinião formada a meu respeito. E, se assim for, mais fáceis se tornam as coisas: não vou repetir-lhe a minha história, desde pequenino. Normalmente nunca tomo decisões, sem as meditar. E cheguei há muito à conclusão de que seria muito feliz, se tivesse a dita de a fazer minha companheira, enquanto durassem as nossas vidas. O meu oficio jamais seria obstáculo a qualquer união que me agradasse. Desde já, caso lhe surjam esses receios, deite-os fora, que são infundados. Somos apenas dois seres humanos, que um dia, assim o espero, passaremos da terra ao Céu! Não reconheço a ninguém superioridade sobre quem quer que seja.

A jovem sabia que aquele homem era um símbolo da honestidade. Talvez até lhe caísse do paraíso. Não se deslumbrou, limitando-se a um encolher de ombros. Não estava nenhum boi em valado! Nem ela tão carecida, que se precipitasse. Era um caso para pensar…

Gomes não se surpreendeu. Claro que ela não lhe iria dizer que sim, toda impetuosa, logo de pancada. Mas o facto de não ter levado uma recusa formal, já era uma doce esperança. E, todo optimista, esperou…

CAPÍTULO XVII

RESCALDO EM VÁRIOS TONS

Nunca haverá no mundo duas criaturas perfeitamente iguais, mesmo nascendo gémeas, muito semelhantes, nas feições. O mesmo sucede com a vida de cada um:

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com maior sorte ou azar, forçosamente terá lágrimas para verter, sorrisos para se aliviar e alegrar quem o rodeia…

O polémico casamento que há pouco se realizara dera origem à melhor confraternização, e dizia-se que talvez traçasse alguns destinos. Era a lei imutável da vida: o contacto um pouco mais íntimo de vários jovens, até então desconhecidos, fomentava atracções, sentimentos mais ou menos fortes, consoante o entusiasmo, volubilidade ou constância dos diversos intervenientes na questão! Este, mais impetuoso, aquele, mais ponderado, normalmente todos preferem a vida partilhada às amarguras da solidão, já que o peso desta é geralmente fardo que sufoca as suas vítimas, sem dó nem piedade.

Fora já praticamente ao findar aquele memorável baile, que Custódio Gomes se resolvera consultar o coração de Isaura, no tocante a um possível casamento. Ela sempre tivera a máxima consideração pelo médico, admirava-o muito, pela sua frontalidade, e a gratidão da moça era ilimitada por tudo quanto ele fizera por Lourenço. A jovem, porém, via-o apenas como um ser superior, muito distante dos problemas vulgares do mundo. Não o julgava capaz de pensar em constituir família. Via-o sempre muito cavalheiro e atencioso, com ela, mas também com as outras pessoas, era feitio natural de quem nascera para fazer o bem. Alem disso, havendo tanta mulher bonita, na cidade, até no local de trabalho dele, certamente inquietas por um sorriso significativo, porque era ela, a Isaura, a preferida? Sinceramente, sentia-se vaidosa! Não perdeu, contudo, o autodomínio: não estava preparada para responder assim de repente a um assunto tão sério. Ele, por seu turno, também não a forçara…

Quando Noémia o soube, já na aldeia não pôde de forma alguma esconder a sua satisfação, o seu orgulho materno, exclamando:

-Oh, querida filha! Eu gostaria de ter-te sempre junto de mim, enquanto viver! Mas o teu futuro?! Não devo ser egoísta. Acho que este é o melhor dos homens, e devemos até agradecer a Deus Nosso Senhor…

Isaura não levou muito a bem aquele entusiasmo da mãe, posto que repleto das mais puras intenções, e, encarando-a, respondeu:

-Oh, mãe! Por favor, modere a sua euforia! Tudo isso pode ser e é muito verdade. Mas eu encaro o casamento em perfeito pé de igualdade. Não vá ele pensar que o aceitaria por gratidão, ou qualquer coisa parecida…

É necessário que os pés estejam bem assentes no chão. Sem a certeza do amor mútuo, eu nunca darei um passo destes. Não se brinca com o fogo, senão… queimamo-nos. Se ele estiver muito interessado, não desistirá. Também o Rui me cortejou, como a mãe já sabe. E o que pensa dele?

Noémia meditou alguns instantes, antes de responder:

-Sei lá!… também é muito bom rapaz. Mas tu espantaste-o duma maneira tão agressiva, que ele agarrou-se à Leonor, cá com uma fúria… depois saíram ambos, comendo-se gulosamente com uns olhos… Ah, mas o médico é muito mais delicado, e tem outro futuro, bem vês … Se podes escolher…

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O diálogo foi interrompido por Filipe, que gozava umas curtas férias, tranquilamente na pacatez daquela pequena aldeia:

-Que estão estas duas rabugentas para aqui a conspirar? Venho cheio de fome, mas sempre lhes darei uma notícia, porque não sou de segredos, e as coisas não se fazem debaixo da cama. Vou pedir namoro à Almerinda. Aquilo é uma bela besuga, e enquanto novo é que se goza a vida. Tem um emprego muito razoável, no hospital, e eu, em breve, também trabalharei. Que dizem?

Nenhuma respondeu. Parece que a novidade não causou muita surpresa. A mãe encolheu os ombros, como se aquilo não lhe dissesse respeito:

-Só espero e desejo que te conduzas com a decência e o respeito que deves ao honrado nome de teu pai. Se assim for, tudo bem…

O rapaz levou o caso para a paródia, como habitualmente:

-Ora, ora! Umas beijocas bem repenicadinhas, de vez em quando, que mal fazem? Sabem tão bem!... Inquieta da vida anda ela por umas carícias cá do rapaz! Vocês, as mulheres, são muito engraçadas! Fazem-se sempre muito caras, e no fundo, se não vos ligamos meia, amuam…

Isaura encarou cinicamente o irmão, não deixando de sorrir:

-Parece que falas já com uma experiência de velho! Quem tiveste por professor? E vocês, o que são? Enquanto não conseguem o que querem, não nos deixam a porta. Se vamos logo na conversa, somos presa fácil, umas levianas. Se nos defendemos, não dando trela, passamos a peneirentas! Por esta ordem de ideias, não sei quem será realmente mais engraçado! Com essa mania da conquista, tudo o que vos vem a rede, é peixe nem sempre filho…

Noémia estava muito séria: embora pertencendo ao sexo feminino, mais lhe apetecia, naquela altura, assumir o papel de árbitro:

-Vocês não tencionam arranhar-se pois não?! Já pensaram ambos que quem desdenha, quer comprar? Sem uns ou outros, o mundo não seria habitado. Se gostas da moça, tenta a tua sorte. Mas nada de gozos: ela nunca nos abandonou um só momento, na doença e morte do teu pai, sabes muito bem…

Ele desfez-se ainda mais em sorrisos prazenteiros:

-Oh mãe! Ainda mais me ajuda! Ela fez isso, precisamente para, num futuro o mais próximo possível, ter a honra de ser sua nora. Não sabia?..

Não havia hipóteses de ralar a sério com Filipe. Este retirou-se para o quarto e, antes que lhe passasse a febre, tratou de escrever a Almerinda: Não sabendo a sua direcção de casa, recorreria ao hospital. Não se atrapalhava.

Após ligeiros progressos, no seu leito de dor e enfermidade, Simões tinha a situação agravada; malgrado os intensos cuidados dos médicos. As lesões de que fora vítima não eram

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para brincadeiras, agora mostravam-se dispostas a vencer a medicina. Aquele cérebro maquiavélico muito dificilmente voltaria a ocupar-se de processos jurídicos, nos quais sempre alguém saía prejudicado. Jovem como era, nunca aquele advogado imaginara ver-se forçado a deixar assim tão abruptamente os livros, aonde lixava o parceiro…

Quando Alzira soube do agravamento da situação, voltou ao hospital, pediu informações mais precisas, e obteve-as não lhe foi concedida novamente a permissão para uma visita, pequena que fosse. Que má vontade!

Em pouco mais duma semana, esfumavam-se as ultimas esperanças. Simões era já um cadáver! A segunda vítima daquele nefasto festim…

Descrever mais um funeral será desnecessário e monótono. Rodearam-no, alguma dor, quase exclusivamente a dos familiares, bastante indiferença, e porque negá-lo? Aqui e ali, senão regozijo, pelo menos uma sensação de alívio: Eram muitos aqueles a quem as perfídias do advogado haviam atingido impiedosamente, na carne! Prejudicado mesmo ao ponto de perderem emprego, o sustento de muitas bocas. E tais crimes não são nada fáceis de perdoar…

A excepção à regra era, evidentemente, Alzira, que se sentia desesperadamente inconsolável! Aquela paixão secreta, mesmo sem compromisso entre ambos, era uma ilusão fictícia que, mesmo assim, lhe alimentava o espírito sonhador de mulher nunca amada. Agora… nada mais! Um baixar de braços, a derrocada! E só um beijo que ele lhe dera! Que fatalidade! De certo todos os espíritos malignos a perseguiam com maior ferocidade do que a haviam protegidos em outros tempos! Também, se ele escapasse, não devia preocupar-se com ela. Mesmo assim…

Macedo, estando livre de perigo, enfezado na sua inconformação e revolta, tinha a sentença cortada: passaria o resto da vida numa cadeira de rodas, amaldiçoando, com as forças que os pulmões lhe concediam, a sua má estrela. Porque deixara ela de brilhar tão estúpida e repentinamente?...

Passados os ímpetos que haviam levado Rui às cenas atrás descritas, com Leonor, cujas consequências, até ao momento, eram desconhecidas, ele sentia-se muito abatido: Que cabeça a sua! E aquela parva, sofrendo da mesma enfermidade, que nem opusera a menor resistência! Estava doida pior que ele, quase! Oxalá não estivesse prestes a enfrentar algum sarilho dos demónios! Bolas! Como agente da manutenção da ordem, mais do que ninguém, teria que responder pelos seus actos, caso não lhe apetecesse casar Boa alhada, sem dúvida!

A moça, pelo contrário, não parecia nada preocupada: Consumara um acto de amor, ou na altura, de loucura ou desejo, até às ultimas consequências, acalentando a esperança de através duma conquista fácil, conseguir um possível enlace, a breve prazo como solução lógica do problema…

Passados alguns dias, vinha a dúvida: estará ela grávida? Começou a apertar o cerco ao autor da façanha, apelando para o seu bom senso, a confiança que nele depositara, ao entregar-se-lhe, sem reservas, e, finalmente a situação profissional de ambos: bom seria resolver as coisas, quanto antes, para evitar murmurações! Se se amavam tanto…

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Rui encarava aquela situação como um pesadelo, sentindo-se entre a espada e a parede, começando a perder já a paciência:

- Os diabos levem esta bruxa! Que maldita sanguessuga! E a minha cabeça, também. Que febre me acometeu, naquela noite! Descontrolei-me, completamente! Mas agora… ela vir falar-me em amor… Que sacrilégio! Naturalmente não vou ter outro remédio, senão pagar uma dívida, e estragar o meu futuro!

Todo furioso e empertigado, acabou por confiar-nos seus problemas a Sebastião que, como de costume, é claro: gozou o pratinho:

- Quando a cabeça não tem juízo… a vingança vai sair-te cara, pelos vistos! E, se não agires com prudência, poderás até ver-te na contingência de procurar outro emprego: já pensaste bem nisso, de miolo frio?

Bolas! Mas o que tem a minha vida profissional com esta arenga dos demónios? Julgo que ainda sou dono dos meus actos!...

Sebastião irritava um santo, com aquela carona de parodiante, que não se alterou mesmo um nadinha, quando resolveu responder:

- Dono dos teus actos?... Não sei lá muito bem! Olha que, se assim fosse, não andarias agora para aí a desgraçar-te todo! Sinceramente, nesta altura, acho que o melhor que tens a fazer, meu caro, é ir imprimindo os convites para o próximo casamento. Aproveita a minha sugestão, que já adiantas tempo…

- Vai-te lixar, Sebastião! Vês aqui um tipo, um amigo, suponho, com as calças na mão, e brincas, simplesmente, com esta porcaria!...

Ora essa! Não me digas, agora, que queres que eu te vista, também! Se calhar foi mesmo por não as teres no sítio indicado, que te encontras em alhadas! A pequena não é tão antipática assim, que diabo! Não te serviu perfeitamente para a ocasião? Se comeste a carne, agora rói os ossos, que não fazes mais do que a tua obrigação. E, para evitar muitas despesas, aproveita tudo duma vez: casas e… baptizas. Acho que és católico…

Sob a figura um tanto agreste e gozona que Sebastião aparentava, era, antes de tudo, um homem justo, um escravo do seu dever, não só profissional, mas solidário e humano. Sabia perfeitamente que as aventuras do colega nada tinham com o serviço. Incutira-lhe a ideia na cabeça, para o amedrontar, para o fazer sentir que não devia esquivar-se às responsabilidades. No fundo, agia com boa intenção. Mas isto implica novas arengas. Casar, apenas para cumprir juramentos fáceis, sem amor, e depois encerar diariamente uma vida de inferno, caso não haja entendimento, fica pior a ementa que o soneto, para ambos!

E era precisamente isso que Rui temia. Sabia estar apaixonado por Isaura, apesar da corrida que esta lhe dera. E mais: que o médico também sofria do mesmo mal e, para azar, era correspondido por ela, quase de certeza! Amar e não ser amado também não são coisas simples de suportar. E, duvidoso, respondeu:

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- Cuidado! Ainda não há, suponho eu, certezas! E, com um pouco de sorte, talvez as coisas não estejam tão feias, como agora parecem…

- Pois sim, transforma agora o cancro em simples tumor, de origem desconhecida! Com aquela fúria toda que a arrastaste daqui, não esperavas outra coisa. Não havia guarda-redes que resistisse a esses remates impetuosos! Bom: ela trabalha no hospital, tem o bem na sua mão. Logo que queira, tira todas as dúvidas, se teimas em que elas ainda existam. Sempre gostarei de ver-te, todo babosão, a desempenhar o papel de papá. Há-de ser bem cómico…

As certezas, porém, não se fizeram esperar: a semente lançada em terreno bem fértil começava a germinar! O mais naturalmente possível…

Transformando as suas verdadeiras preocupações em motivos de orgulho. Leonor rodeou o suposto ou pretenso noivo de doçuras, o convidando-o para irem ao teatro, aonde poderiam conversar, bem mais calmamente. Ele, porém, tentou desculpar-se, fazendo tudo o que estava ao seu alcance para não explodir:

- Oh, pequena: Hoje não me dá jeito nenhum. Não sei a certeza mas parece que estarei de serviço. Não te importas que fique para outro dia?

- Ora, ora! Havendo boa vontade, dá-se sempre um jeito! Mas o pior é que tu parece que procuras evitar-me! É isso, já não gostas de mim. Sou uma infeliz! Só servi para tapar buracos, para as horas vagas, e pior ainda, para substituir outra, num momento de loucura e vingança! És muito cruel!

Foi o fim! Rui não pôde mais! Era superior às suas forças. Talvez ouvisse verdades que não lhe agradaram, e a situação piorou bruscamente:

- Sabes uma coisa? É bom não me chateares muito, porque essa perseguição, esse armar-te em vítima, irrita-me os bofes! Que me pareça, não te forcei! O entusiasmo foi mútuo. Não me venhas com amores, pois mal nos conhecíamos. Houve uma atracção física, mútua, sei lá, um descontrole. Talvez uma cilada tua!

Tiveste uma boa maneira de levar a água ao teu moinho! Ou julgas que eu não sei… toda a gente sabe, que morres de amores pelo médico! No fundo, pensando bem porque não julgues que eu sou parvo, o mais certo foi termos representado ambos uma comédia. Mas não seja esse o problema. Pagarei a minha dívida, se é o que exiges, e não há mais discussões. Marca a data….

A jovem sentiu uma onda de fúria abanar-lhe todo o corpo. Chicoteada no seu orgulho de mulher, talvez futura mãe, os olhos vomitaram fogo:

- Grande pulha! Merecias que eu te cuspisse nas trombas! Descansa, que não vou morrer com a tua falta. Não serei a primeira mãe solteira, que sobrevive. Saberei trabalhar sozinha, para um filho de pai indigno! Se pensas que te vou implorar, de joelhos, enganas-te, redondamente. Tens razão, fomos dois. Não só tu, a representar uma farsa: Fui levada por um prazer momentâneo, porque sou mulher, tenho entranhas, necessidades fisiológicas, como

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todas. Mas saberei assumir as responsabilidades da minha loucura, pois na verdade sempre sonhei com mais altos voos! Nunca gostei de polícias manientos…

- Sendo assim, tanto melhor, não precisamos de ficar zangados. Ambos nos satisfizemos, estamos quites. Assim, cada um poderá seguir a sua vida, tranquilamente, e sem remorsos. É talvez mais honesto, do que nos aturarmos contra vontade, enquanto não formos desta para melhor. Não achas, pequena?

- Não passas dum canalha. Nem o meu desprezo mereces, tal a tua baixeza de sentimentos. Ai, filho. Antes nascesses antecipadamente órfão.

E, vibrando-lhe uma estridente bofetada, ela não pôde conter mais uma explosão de lágrimas, que no fundo eram a sua fraqueza e frustração.

- Sou realmente uma desgraçada! Nunca tive sorte neste mundo! Ainda me mato, e acabou-se tudo! Oh meu Deus! Para o que eu estava guardada.

Quem não se arrepende das suas leviandades? Rui era, no fundo, boa pessoa. Fora agressivo contra a sua vontade, precisamente porque buscava soluções que não apareciam. Mas aquelas lágrimas, sinceras, na altura, produziram de imediato um volte-face na sua atitude e, sem a menor hesitação, deu a mão à palmatória, emocionado, sem o menor ressentimento.

- Oh Leonor! Tens razão de estar melindrada! Eu fui uma grande besta. Perdoa-me se puderes. Mas essa situação tem-me deixado doido! Não sou o aventureiro que acabas de achar em mim! Vá lá querida, façamos as pazes… com um beijo, por exemplo. Acredita que estou francamente arrependido…

- Vai-te, sedutor das dúzias. Não cairei pela segunda vez. Sempre duvidei de mudanças repentinas. Juras assim fazes tu a todas, pelintra!

E não lhe deu mais trela, indo-se embora, antes que o seu ânimo pudesse vacilar novamente, pois sentia já a generosidade do coração a perdoar…

O rapaz limitou-se a segui-la com um olhar inexpressivo de quem não sabe realmente o que quer. Aquilo é tão vulgar! Mas existe a consciência… É bem mais cómodo viver um espectáculo na plateia que no palco! As desgraças alheias, por muito que nos penalizem, são bem menos pesadas que as nossas!

O rapaz sempre fora honesto. Até então lidara com delinquências, problemas de vária ordem, mas nunca se vira num labirinto daqueles! Casar! Era uma solução, em princípio, cómoda que, sem amor, poderia estragar-lhe o resto da vida, pois uma união a dois é bem mais sublime que o simples problema sexual. Leonor não era uma formosura rara, todavia, sendo bem formada moralmente, talvez as coisas se pudessem encaminhar no bom sentido. É preciso saber tolerar, para que também nos aceitem, tal qual somos….

A jovem, ao deixá-lo entregue a si próprio, sem lhe dar tempo para mais justificações, tinha em vista mergulhar no remorso, era mais uma desforra, que propriamente uma vingança. Não era amada, também não amava. Correr o risco de andar sempre às turras, ao

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longo da vida, naquele momento era mais vantajoso, que desperdiçar um trunfo, já que nunca fora muito galanteada… Ele havia de voltar, pedir-lhe perdão, de joelhos, e então… seria esmagado, com a maior indiferença, se necessário, com crueldade. Saberia fazer-se cara até que o domesticasse. Se o amor viesse, depois, com o convívio, diário, tanto melhor. Senão… ao menos não ficaria para titia…Entretanto Almerinda, com grande surpresa, recebeu mesmo uma carta de Filipe, dando-lhe a entender que gostaria de fazê-la partilhar da sua vida. O rapaz não era de grandes hesitações, e acrescentava tê-la adorado, naquele inesquecível baile. Acalentava a esperança de que ela lhe guardasse um poucochinho de amizade. Se não lhe desagradasse, poderiam trocar correspondência…Quem, no viço da mocidade, não sentirá os impulsos vibrantes do coração? O entusiasmo de novas experiências? A jovem não fugiu à regra. Silenciosamente, erigiu castelos dourados no cavalgar impetuoso da sua imaginação. Deveria responder, de imediato, ou ficar quieta, aguardando uma segunda tentativa? Esta ideia seria mais prudente mas o rapaz ficaria na dúvida sobre a recepção da carta. Respondeu-lhe pois com a maior simplicidade, sem aludir às intenções do conteúdo do que recebera, aceitando, sem quaisquer compromissos, a manutenção da correspondência. Não via nisso o menor inconveniente, e por enquanto pelo menos, era totalmente dona da sua vontade….

Quando falou à mãe no assunto, essa não se atreveu a contrariá-la, nem tão pouco o desejava após casar segunda vez até ao momento, em boa hora, fora tão criticada, quando dera aquele passo, que se julgava incapaz de formular opiniões, até à própria filha. Como qualquer outra, Almerinda era livre e consciente, decerto não iria precipitar-se. Unindo-se caso tudo fosse por diante, a uma família pobre e honesta, estava em pé de igualdade, e o namoro responsável serve precisamente para o conhecimento mútuo, sendo leal…

Não interviria em nada, enquanto não lhe dessem motivos para tal

- Ele parece-me muito bom moço, mãe. Dançou comigo quase todo o baile. Era tão gentil. Nada fez que merecesse reparos. Simpatizo com ele, realmente…

- Vê-se de caras, pequena. Não precisas de te confessar. Julgo que saberás bem o que fazes, como tomar conta de ti, mesmo sozinha…

- Pois evidentemente que sei. Não sou criança. A mãe pode ficar tranquila da vida, que não lhe arranjarei quaisquer problemas.

Alexandre, dada a sua aplicação nos estudos, e bom comportamento, a todos os níveis, facultaram-lhe uma bolsa de estudos nos Estados Unidos, aonde foi completar um curso de electrotécnicas. Noémia chorava aquela ausência e, simultaneamente, sentia uma enorme vaidade com os êxitos do filho. Oxalá longe do seio familiar, e num país tão liberal, não perdesse as boas qualidades! Que Deus o levasse pelos melhores caminhos!

A prece ardente daquela mãe não ficou esquecida, pois o rapaz mandava notícias praticamente todas as semanas: estava feliz: os estudos decorriam o melhor possível, e tencionava terminar depressa o curso. Se não houvesse complicações, poderia vir à terra nas próximas férias que tivesse…

Isaura, conquanto nutrisse uma enorme simpatia, talvez mais, por Custódio, não se atrevia a dar-lhe a resposta que ele tanto ambicionava. Ser esposa dum médico tem as suas

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responsabilidades, e ela, após muitos dias de hesitações, resolveu pôr as cartas na mesa. Sendo, embora, indiscrição vamos aqui divulgar uma missiva que ela lhe mandou…

- Caro Sr. Doutor. Não deverei ocultar-lhe a surpresa que me causou a sua proposta. Jamais poria em causa a sinceridade com que se me dirigiu. Entretanto julgo melhor não me precipitar. Sem ter o dom da palavra, respondo-lhe com lealdade a tudo quanto me disse: guardo-lhe muita gratidão e estima, bem no fundo do meu coração: tudo o que fez pelo meu pai, jamais cairá no esquecimento! Amá-lo foi coisa que nunca me passou pela cabeça. O senhor, com o andar dos tempos, ficaria desiludido: Sou uma rapariga sem instrução, incapaz de alinhar consigo, ajudá-lo, nas suas necessidades, nas canseiras quotidianas. Talvez não esteja preparada para discutir consigo este ou aquele problema. Possivelmente saberia preparar-lhe um bom jantar, mas isso é muito pouco, para um benfeitor da humanidade. Com a maior das facilidades encontrará uma companheira digna, que melhor possa partilhar na totalidade do seu dia a dia. Não veja nisto uma intransigência ou má vontade da minha parte. Devo confessar-lhe que procurei que os meus sentimentos não interferissem nesta resposta. Não sou ambiciosa, mas realista. É necessário distinguir amor de generosidade. Nunca duvidarei de si um só instante! Contudo, quando um dia casar, se o fizer exigirei recíproca partilha de sentimento. É um direito que me assiste…

Jamais aceitarei, seja de quem for, mesmo de quem eu muito ame, a menos esmola de carinhos. Acerca de mim própria, para lhe ser sincera, não me atrevo a confessar as confusões que me vão na alma. Julgo ser ainda muito cedo para me pronunciar. Como sabe, sou muito impulsiva, e receio dar uma resposta de tanta responsabilidade sob pressão. Sou a eternamente reconhecida:

Isaura Costa

Quando recebeu aquela carta, sem grandes primores técnicos de literatura tal não era necessário para se ver a sinceridade que ali vinha impressa, o médico mais apaixonado ainda ficou. Não lhe importavam bonecas de sala! Também era camponês, preferia a singeleza ao artifício. Haveria de conquistá-la! Era tempo de dispensar empregadas, entregando as tarefas caseiras a quem lhe pertencesse! Que outro sonho mais delicioso teria, que o de confiar à sua futura companheira, tudo o que fosse seu! Um médico também tem esse direito! É de todos, está certo, foi esse compromisso que assumiu, quando lhe deram o diploma. Mas, como homem que também era, ambicionava que a deusa linda a quem tanto queria o chamasse (seu), carinhosamente. E ele pareceu adivinhar, nas entrelinhas, que Isaura não lhe era indiferente. A perseverança tudo alcança. Não perdeu muito tempo a pensar; no próximo fim de semana, que não estaria de serviço, salvo algum imprevisto, iria à aldeia, na esperança de obter uma resposta concreta, cara a cara, de homem para mulher…

Entretanto, após o casamente de Jeremias com Inésia, esta deixou de ter direito ao subsídio mensal de 5.000$00, que usufruía. Já não era viúva, naturalmente o segundo marido assumia a responsabilidade do agregado familiar. E, pelo menos financeiramente, ela nada

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perdera, com a troca. Não viviam com luxos, a casa continuava modesta. Mas a alegria da compreensão mútua tudo suplantava. Álcool e tabaco, eram coisas que ali não cabiam. A aceitação recíproca fizera-se sem reservas. Às vezes a vida prega-nos boas e más partidas, e tanto lhe dá para enterrar como elevar um indivíduo aos píncaros…

Almerinda e Filipe haviam chegado a um bom entendimento, e em boa verdade agora já não podiam passar um sem o outro. Felizmente não lhes apareciam muitos obstáculos pela frente. Eram uns felizardos, aqueles pombinhos!

A Alzira, qual a sua sorte? Continua revoltada, sem querer dar a mão à palmatória, incapaz de reconhecer os erros do passado. Acabou por não tolerar mais os colegas de serviço, e quase não hesitava em abandonar aquele emprego. O salário não compensava o seu constante mau humor, motivado, única e simplesmente por haver naquela secção quem ganhasse mais, com menos instrução. Para o inferno com aquela humilhação, e todos os que o rodeavam! Corja de imbecis, que não paravam, todo o dia, sempre às gargalhadas!

- Isto é demais! Não nasci para andar envolvida com tal escumalha, que nem o nome sabe assinar! São uns porcos! E, se chego uns minutos atrasada, tenho de ouvir repreensões destes marginais! Vou-me pôr a mexer, e não dou satisfações a mais ninguém. Antes só, que mal acompanhada. As putas nunca morreram de fome! Pelo contrário, levam vida mais regalada do que muitos que dizem trabalhar honestamente. Quando me chegar o tédio, certamente não será maior do que este agora que me rodeia! E pensar que devo tudo isto àquele maldito médico! Ah cão! Se eu te pudesse lixar!...

A volúpia do rancor exacerbado, com o seu séquito de ódios e vinganças, assentara arraiais e agora concentrava todas as energias de Alzira. Ver aquele homem esmagado, mesmo sem olhar a quaisquer meios, era a sua única meta a atingir. Algum ponto fraco ele havia de ter! Não era invulnerável, com certeza! Urgia armar-lhe uma cilada, torpe, mesquinha, não interessava, mas quanto antes…

Diz-se que os filhos das trevas, por vezes, são mais sagazes que os da luz. Só que Alzira, com a sua fúria, mal raciocinava!

Por fim, achou por bem ir falar com ele. Se o agredisse, ao menos por palavras, já ficaria mais aliviada. E, quando se cruzaram, no caminho, é evidente que ela não desperdiçou a soberana oportunidade:

- Olá, senhor benfeitor da humanidade! Como tem passado? Qual o lugar que pretende ocupar, no paraíso? Perto do Criador, não? Mesmo à sua direita…

Custódio olhou-a, com mais piedade que rancor. Hesitou por momentos, mas achou que ela merecia uma resposta mesmo gozona que fosse:

- Agora deu para me provocar, é? Acho que perde o seu tempo. Eu não me preocupo com discussões fúteis! Há muito que fazer, sabe? Se precisar de mim, estou ao seu dispor, como médico ou como homem. De contrário… bom será que deixe de se intrometer no meu caminho, senão…

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- Senão… senão o quê? Esbofeteia-me, é? Você devia era ter sido padre. Ao menos não errava tanto a vocação. Com essa mania das pregações, o mundo convertia-se num instante! Mas o bom pastor dá a vida por todas as ovelhas, não só pelas boas. Foi isso que ouvi no Evangelho. O senhor não me deu a mão, quando eu mais precisava dela. Afinal, não passa dum charlatão, como os outros. Soube arranjar trabalho para uma porção de miseráveis. A mim, porém, deixou-me entregue a minha sorte, apesar de lhe ter pedido ajuda directamente. Que eu saiba, isso não é dum bom cristão pelo menos dos que praticam a caridade…

O médico começou a azedar mas controlou-se:

Afinal o que deseja de mim? Não pretende catequisar-me, pois não? Mas como resposta, sempre lhe direi: Cristo foi o maior democrata que passou pelo mundo. Veio cá para morrer por nós, quer que nos salvemos, mas não obriga ninguém a nada. A senhora não aceitou o serviço que lhe arranjei, lembra-se? Preferia escolher, foi lá consigo. Não faço milagres! Se já resolveu o seu problema, encantado da vida. E agora, que quer?

Alzira olhou-o, com um ódio descontrolado, e explodiu:

- Que mais quero? O raio que o parta! Julga que aquilo era trabalho para mim? Junto de tantos analfabetos? A partir de agora, as coisas mudam: Decidi entrar na prostituição. Talvez assim ande com a barriga mais cheia. Já há muito tempo que o devia ter feito. Queres ser o primeiro cliente, querido? Como qualquer ser humano, terás as tuas necessidades, não?...

Custódio tinha pouco para responder. Olhou-a, tristemente, tentando viver aquele problema: nem os maus têm culpa de o ser. Deve haver sempre uma causa! Um porquê… um motivo qualquer que se desconhece…

- Oh mulher! Tenha pena de si própria! Não cave a sua total ruína! Há quem esteja bem pior, e conforma-se. Nunca é tarde para voltar ao bom caminho, basta um pouco… aliás, muito vontade, e consegui-lo-á…

- Vá para o diabo, com os seus sermões teóricos. Ponha-os em prática… A propósito: somos ambos solteiros… não quer casar comigo? Eu podia servir-lhe, além de boa esposa, de secretária, e seguiria os seus bons conselhos. Olhe… talvez até desistisse da ideia da prostituição, sabe?

Aquelas palavras que pretendiam ser cínicas, tinham bem mais de macabro: o ranços daquela mulher quase assustava o seu interlocutor, que compadecido, já não via nela uma inimiga a abater, mas um ser humanamente degradado, que carece, antes de mais, de compreensão, talvez de amor:

- O casamento não resolveria este problema. Deixe-se de tais sarcasmos. Se não gosta do seu ofício, procure valorizar-se, para que, através dele, possa recuperar o que perdeu. Desculpe, mas tenho um bocado que fazer. Já me atrasei bastante, aqui. Até à vista. Com licença…

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- Vocês são todos os mesmos! Das palavras aos actos vai muita distância. Pois suma-se da minha vista. Mas saiba que resolvi abandonar o emprego. Não tolero aquela canalha, à minha volta. Não sou tão desajeitada, como isso. Alguém há-de querer comprar-me. E, se me desgraçar, devo-o ao mais generoso dos homens, a um insigne médico, que também é excelente pregador. Ele conseguiu que me expulsassem do emprego. Faz parte da sua bela cristandade…

- Aí há um engano, minha senhora. São muito tardias e mais inúteis ainda tais chantagens. Evoca agora um passado, pouco lisonjeiro, para quem prevaricou: Isso só complica mais esta já dramática situação. Eu quero ajudá-la, a senhora recusa… escusamos perder mais tempo nisto, não acha?

E afastou-se, enquanto ela o seguia, ainda com mais ódio no coração. Restavam-lhe duas hipóteses, já que não conseguia retroceder: suicídio ou prostituição. Optou pela segunda, mais cómoda. Que lhe importavam os comentários?

Não pusera de parte os planos de vingança! Aquele médico, tarde ou cedo, havia de pagá-las! Sentia-se mais abandonada que nunca! Até o seu querido advogadozinho, galanteador como poucos, lhe fora raptado. Nem o deixaram ver, no seu leito de agonia! Era uma desgraçada, um farrapo humano, corroído pela revolta… Chorou longamente, praguejou, amaldiçoou tudo e todos, mas não se atreveu a retroceder, retomando o emprego que abandonara! Pensava… não, tinha a certeza que o inferno, se existisse, se não fosse conversa da padralhada, era na terra, e ela entrara nele há muito tempo. E não encontrava a porta da saída, cada vez mais confusa e baralhada. Aquilo teria de acabar de alguma maneira! Nada é eterno! Mas Talvez endoidecesse, antes de ver o fim das coisas, que nunca mais se resolveriam a seu favor. Cabra de vida!

E se tomasse veneno? Era num instante… mas iria sofrer horrores, se calhar, antes de morrer! Não, antes deitar-se com todos. Seria até uma distracção, fingir que os amava ou que era nada! Quando a realidade não nos sorri, podemos, à falta do melhor, substituí-la pela ilusão…

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CAPÍTULO XVIII

DESVELO DE AMIGO

Alzira perdera a segunda que travara directamente com Custodio Gomes. Haviam sido ineficazes todas as armas que usara. Devorava-a um ódio tão intenso, que eram impossíveis as tréguas com o mundo e consigo própria! Apenas a sede da mais cruel vingança lhe anestesiava um pouco aquele vulcão incandescente cuja lava lhe queimava o cérebro.

Talvez seguindo, qual sinistra sombra, os passos do médico, lhe conseguisse arranjar alguma armadilha diabólica. Atingi-lo de morte, era o único objectivo, a desforra assim seria completa. Nem lhe passava pela cabeça a futura prisão, muito menos a falta que aquele homem de bem fazia à comunidade! Era urgente que ele desaparecesse, independentemente dos meios usados…

- Ah, grande cabrão! Não me estragaste a vida? Pois amor com amor se paga! Enfio-te um balázio nesses miolos… Bom seria arranjar um cúmplice. Mas posso ser traída. Procurarei desembaraçar-me sozinha, que é mais seguro. Tenho um revólver, que me vai finalmente ser útil! Oh, se vai! Bem me ralo com consequências! Estou agindo em legítima defesa. Faço justiça por minhas mãos, sem recorrer aos pulhas dos advogados! Vou pôr-te de maneira, que não farás mais operações a ninguém nem a ti próprio! É só escolher a oportunidade!

E, do pensamento às acções, foi um ápice! Rondar o hospital, como qualquer pessoa, não levantava a menor suspeita independentemente da hora! E, sendo mulher, tanto melhor! Num instante se dispara um tiro…

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Realmente o facto de pertencer ao sexo feminino facilitava a tarefa! As senhoras, normalmente, não se ocupam de atentados…

Só a Jeremias aquilo não pareceu natural, e confiou, cheio de pavor em casa, à mulher, algo de suspeito:

- Olha, Inésia. Ou eu me engano muito, ou anda mouro na costa. Aquela víbora não sai das redondezas do hospital, sempre com uns ares de quem quer pregar peça! Tenho-lhe seguido os movimentos, e desconfio que o Sr. Doutor é o alvo das suas infernais intenções! Ah, mas eu mato-a…

A mulher ficou de todas as cores, cheia de alvoroço:

- Ah, cabra maldita! Eu desfaço-a! Não me admiro mesmo nada! É uma serpente vingativa, que uma vez tentou agredir-me, mesmo aqui em casa. Temos que prevenir o nosso querido benfeitor, antes que seja tarde, não achas?...

- Bom, eu posso estar enganado, e arranjar sarilhos escusados. O melhor é ficarmos de olhos e ouvidos bem abertos. Vou prevenir o Vítor e a Almerinda. Qualquer deles é bastante esperto. Não tiraremos os olhos dessa maldita megera!

- Olha lá, Jeremias: talvez não fosse má ideia prevenirmos o Sr. Sebastião. Além de bom amigo, sempre é uma autoridade. Pode agir…

- Tens razão. O seguro morreu de velho. Tantos receios nos dá uma simples mulher, cujas intenções nem sequer conhecemos ao certo…

- Simples, não. Muito perigosa. A ira pode causar problemas irremediáveis! Está em jogo a vida do melhor homem do mundo, não percamos tempo…

- Longe vá o agouro mas é esse o nosso maior receio: as ciladas, por não contarmos com elas, são sempre o pior que há…

Os dois filhos mais velhos de Inésia foram postos ao corrente da situação, prometendo a maior cautela e sigilo. Seria a melhor prevenção.

Custódio de nada suspeitava, e isso era o pior para ele. Desprevenido, poderia efectivamente ser mais uma vítima da surpresa.

Disse a Jeremias, à entrada do hospital, que iria dar um passeio à aldeia no próximo domingo, resolver o problema mais importante da sua vida: Pedir Isaura em casamento. Haverá coisa mais maravilhosa?...

Sentada ali, tranquilamente num banco, Alzira não perdera uma só palavra daquela conversa. Seus olhos refulgiram de contentamento, e retirou-se de imediato, passando mesmo em frente dele, provocante:

- Boa tarde, doutor. Desejo-lhe muita sorte na sua empresa amorosa…

- Que Deus a oiça, mulher. Foi a resposta alegre do médico.

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- Deus não ouve os agentes do inferno, Sr. Doutor.

Era a voz colérica de Jeremias que assim falava! O pobre homem parecia uma pilha de nervos, todo trémulo e descontrolado:

- Deixe-me ir consigo, por amor de Deus, Sr. Doutor. Prometo-lhe que não serei indiscreto, descanse. Levo comida, e fico sempre no carro. Oh meu Deus! É preciso evitar uma desgraça. Já não tenho dúvidas!

Custódio olhava aquele homem assustado, com cara de parvo:

- Mas o que se passa, meu amigo? Parece que receia uma nova guerra mundial? Até hoje, eu nunca precisei de guarda-costas.

- O senhor tem inimigos. Talvez não os conheça mas tem-nos. E bem perigosos. Parece incrível, sendo tão boa pessoa, mas é verdade!

- Deixe-os lá! Isso é fruto da sua imaginação! Não fiz mal a ninguém… Acalme-se, por favor! Não faço qualquer objecção em que vá comigo, dar um passeio, se quiser; com muito gosto. Mas, por necessidade, não vale a pena… Adeus, meu amigo, que estou cheio de pressa, e atrasei-me bastante…

Alzira saiu dali rejubilando, com prazer da vingança:

- Anda lá que eu vou proporcionar-te a mais deliciosa lua de mel, querido! E com antecipação! Quem será essa Isaura? Bem gostaria de a conhecer! Alguma princesa encantada… ou santa, para te ajudar, nas boas obras! Eu arranjo-te uma Isaura! Ela virá, sim e mais depressa do que pensas, para contemplar o teu cadáver! Chegará a tempo de te fazer companhia mas… no enterro…

Era sexta-feira, e não havia mais tempo a perder, nos preparativos de ataque e defesa, em que cada parte tentava, é óbvio, vencer a outra.

Confirmavam-se reais as suspeitas de Jeremias, que apenas desconhecia os planos de Alzira! Urgia aniquilá-los, antes que o mal se consumasse! Correu a casa de Sebastião, logo que saiu do trabalho. Luzia recebeu-o:

- Que cara é essa, Sr. Jeremias? Aconteceu alguma coisa!...

- Por enquanto, ainda não D. Luzia. Mas talvez esteja perto disso! O seu marido, ainda demora? Eu queria falar-lhe, quanto antes, mas era em particular, se não houver inconveniente. Ai, oxalá ele chegue, meu Deus do Céu!

- Deverá estar mesmo por ai a cair, suponho eu. A não ser que… Girou a chave na porta, e ela acalmou aquele homem inquieto:

- Pronto, ei-lo, que chega. Tranquilize-se, homem de Deus. Mas Jeremias não ligou, e agarrou o outro, pelo casaco:

- Ouça-me, num instante, Sr. Sebastião! É muito urgente…

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Muito surpreendido, o polícia sacudiu-o, num rompante:

- Que diabo! Deixa-me ao menos dar uma mijadela, que venho muito apertado. Senão é nas calças. Some-te daqui, diabrete, que não te enxergo…

- Oh desculpe! É que nem me apercebi dessa aflição, com a que trago!

Já de regresso, bem mais aliviado das suas agonias, Sebastião perguntou, bem pouco assustado, e no tom cómico do costume:

- Afinal o que há? Parece que o mundo vai já cair, não?...

- Por favor, senhor guarda, não brinque! Estou muito aflito, e quero evitar um crime, que ainda nem sei como vai ser levado a cabo…

- Então, nada feito. Para um médico ser eficaz, o doente tem de dizer donde lhe dói! Eu estou na mesma, contigo. Quem precisa dumas bofetadas?

Jeremias arrastou-o para um quarto, e contou-lhe a história.

- Ora, ora! Um elefante, com medo duma ratazana. Parece impossível! E vens tu, a cem à hora, pedir-me socorro! Vai mas é dormir descansado, e não ligues a histerismos. A suposta vítima não está nada preocupado, pois não?...

- Tal como nós, que nem sabemos se existe. Não estarás a fazer as coisas feias demais? Mas, lá por isso, não custa estar de olho aberto, não vá o diabo tecer alguma. Fica descansado, que tomarei nota do assunto…

Jeremias foi-se embora, um tanto mais aliviado; e quando a mulher souble do que se passara, felicitou-o, enquanto lhe crescia o ódio por Alzira:

- Foste um herói. Não fazemos mais que o nosso dever defendendo, com unhas e dentes, o homem que nos salvou do abismo! Essa maldita não levará a sua avante! A polícia está prevenida, trata-lhe da saúde! Até eu o faria! Mas é muito melhor assim! Ela pagará tudo junto…

Ocupado com os seus doentes, Gomes esqueceu completamente as preocupações do amigo, dormindo muito descansado da vida, aquela noite, durante a qual teve os mais deliciosos sonhos de amor com a sua querida Isaura! Sim, estava confiante que, muito em breve, poderia chamá-la sua… muito sua, unicamente sua e… que felicidade para todo o sempre!

A pérfida Alzira não era já a mulher furiosa, com loucos desejos de vingança: achada a solução ideal, o instinto do mal devolvera-lhe o raciocínio. Foi imediatamente e com todas as cautelas inspeccionar o caminho, desde a casa do médico até a estrada, com todos os detalhes. Nunca se apercebeu que era seguida por alguém interessado em destruir-lhe os planos! E, toda eufórica, encontrou um óptimo esconderijo, para a emboscada. Era só espreitar, levantar o braço e… disparar… Se errasse o primeiro, voltaria à carga. Mesmo no carro, Gomes seria facilmente atingido, perderia o controle, estampava-se e, se não morresse logo, o resto seria bem mais fácil.

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Mas a que horas iria o fidalgo pedir a dama? Alzira não tinha outro remédio senão madrugar, e o pior é que o tempo não andava nada seguro, infelizmente! Mas valia bem o sacrifício, para saborear depois o néctar inebriante da vingança, que já se lhe afigurava quase certa…

Sebastião, apesar de muito batido no combate à criminalidade, não deu importância de maior àquele caso: achara Jeremias muito excitado, com a imaginação a trabalhar demais. Pelo sim, pelo não, mandou vigiar discretamente a casa de Alzira, mas só durante o dia, por descargo de consciência…

Todavia o ladrão tem hora! Na madrugada de domingo, ela encaminhou-se para o seu esconderijo, bem enrolada num grosso casaco, aguardando, alvoroçada, os acontecimentos, sem saber o tempo que esperaria, nem tão pouco se teria êxito. Já não estava tão confiante… à medida que clareava, o movimento ia aumentando, mas o médico, não havia meio de passar! Era necessário não perder a calma nem a paciência! O revólver, bem escondido, estava pronto para colaborar lealmente no crime. O relógio não andava!

Jeremias não insistira em ir com o amigo: Talvez lhe fosse mais útil, vigiando-o, de longe, para lhe acudir, caso fosse preciso.

Na noite de sábado para domingo, não conseguiu pregar olho: Alta madrugada, levantou o enteado, e em silêncio, saíram de casa…

À cautela levavam consigo dois bons cacetes, para o que desse e viesse. Gomes ainda devia estar deitado, pela escuridão da casa.

Ao contrário, Alzira já saíra e, por imprudência ou precipitação, deixara uma janela meio aberta. E eles voaram, apavorados…

Rapidamente chegaram ao local aonde a mulher se escondera, e ali ficaram, mudos e quietos a ver no que paravam as modas…

Cruzavam-se veículos, quase sem interrupção, mas Custódio não aparecia! Os nervos apoderaram-se cada vez mais da pretensa criminosa, tanto quanto inexperiente, cujo coração batia com ímpetos assassinos.

Lá ao longe, numa curva, todo descontraído, e de vidraças escancaradas, aproximava-se o nosso médico, que foi visto, em primeiro lugar, pelos dois homens, e de pois… por ele… atrás, um outro veículo seguia os movimentos do primeiro, sem que este lhe desse importância… Aqueles curtos segundos interromperam a respiração da mulher, pronta a disparar, e dos dois homens que, muitíssimo alarmados, descobriram-lhe a arma…

Quase simultaneamente com o disparo, ouviram-se umas violentas cacetadas, vários gritos, uma travagem brusca, e a confusão que normalmente sucede a estas barafundas! A ambulância da polícia ultrapassara Gomes, que ainda tivera a suficiente lucidez para travar. E sem perda de tempo, tentava estancar o sangue duma ferida… se levasse o carro fechado, certamente não teria qualquer problema porque a paulada de Jeremias, não conseguindo impedir o disparo, mudara-lhe bastante a direcção. E o médico só foi atingido, porque se

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apercebera da ratoeira, e o próprio esboço da defesa fora-lhe fatal! Já o conduziam, a velocidade precipitada a caminho do hospital…

Jeremias perdera completamente o auto domínio, e torturava ferozmente aquela malvada, cujo revólver caíra, e já estava nas mãos doutro agente da segurança. Já conseguiram arrancá-la às mãos do antigo alcoólico, quase sem vida! Vítor aplicara-lhe uns golpes que, numa mulher, eram cobardia. Mas era muito jovem, e as circunstâncias toldaram-lhe o raciocínio próprio carro do médico, levado por um dos guardas, conduzia a criminosa ao hospital, aonde já chegou praticamente em estado de coma, sem inspirar a mínima compaixão a ninguém. Seria um alívio que os internos a tratassem, quanto antes.

Custódio fora ferido no ombro: a bala apanhara uma veia, mas saíra pelo outro lado, sem melindrar os ossos. Em princípio não havia razão para alarmes. Foi grande a consternação e solidariedade em volta daquele santo homem: Como era possível quererem matar a quem vivia salvando os outros? Aquela mulher estava louca! Não se perderia mesmo nada, se fosse desta para melhor! Apesar disso, no mesmo hospital em que se tratava dum ferido ligeiro, também em outro local bem próximo, o dever urgia zelar com tratamentos intensivos uma assassina frustrada. Mesmo com poucas esperanças de a salvar, fazia-se o que era possível, já que estava em jogo, apesar de tudo uma vida humana.

Sebastião apressou-se em ir à aldeia buscar Isaura e Noémia. Regressou, com todo o cuidado, contou-lhe a história da visita frustrada que acabaram por não ter, assim como os motivos do passeio, logo pela manhã.

- Esta pequena anda a desinquietar os corações da cidade, ou de quem lá mora… isso não se faz. Mas descansem, que o homem não corre perigo! Eu devia ter ligado um pouco mais às apreensões do Jeremias. Mas nem me ralei com as fúrias daquele monstrozinho, que também não deve escapar desta. Apanhou umas boas cacetadas nas trombas! O homem parecia uma fera! E só não lhe arrancou o coração, porque os guardas intervieram! Aquele médico tem em Jeremias um amigo fiel e mais dedicado do que todos os cães juntos! A sua intervenção foi eficaz, e só não a impediu completamente de levar a cabo os seus pérfidos intentos, porque estava escondido a alguma distância, e a serpente não hesitou! Tenho de reconhecer que, nesta arenga, apesar de polícia, sou o mais culpado, pois deveria ter agido imediatamente, mas todos erram…

Quando pararam junto do hospital, a moça nem tinha coragem de sair do carro! A cambalear, ocultando o rosto!

Os dois feridos continuavam a ser assistidos. Alzira, por quem ninguém esperava recuperações, não estava pior. Já o mesmo não sucedia com o médico, cuja ferida apesar de convenientemente tratada, mostrava tendências para infectar, e a febre mantinha-se bastante elevada. Era caso para confirmar que as aparências iludem! Custódio estava numa dormideira, que preocupava todo o corpo clínico. Casos muito piores, já haviam sido resolvidos sem dificuldade. Estado emocional do ferido, apanhado de surpresa, incrédulo sobre os receios do amigo, agora lutasse contra ele próprio. Não havia outra explicação! Uma responsabilidade enervante lutava contra os médicos que o assistiam!

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De repente, Inésia, como doida, sem obedecer a ordens, entra no hospital aos gritos, ameaçando queimar Alzira, se ainda estivesse viva, num desespero feroz, atropelando todos os que a tentavam deter, em vão:

- Como se atrevem a receber e tratar aqui essa amaldiçoada? O lugar dela é no inferno! Digam-me aonde ela está, que eu própria me encarrego de a mandar para lá. Queria matar o melhor dos homens, que só faz bem, porquê? Porque é Satanás em pessoa! E ainda tentam salvá-la. Estão todos completamente doidos, aqui. Isto é pior do que um manicómio de pasmados!

O marido bem tentava acalmá-la, mas só complicou ainda mais aquela já tão embaraçosa situação, porque ela berrou sem lhe dar ouvidos:

- Tu também foste uma besta enquanto não a mataste, duma vez….

Almerinda interveio, também apelando ao bom senso materno:

- Por favor, mãe! O Sr. Doutor não está tão bem como parecia! Tenha ao menos piedade dele, e deixe por enquanto a outra em paz…

Tais palavras foram uma punhalada no ânimo da mulher, que deu um enorme grito, e caiu imediatamente por terra, sem sentidos!

Era mais uma acha para a fogueira que, tomando grandes proporções, ameaçava transformar toda aquela dedicação em tragédia…

Parece que todos os desastres estavam combinados para aquela altura!

Após algum tempo, Inésia foi reanimada, e convenceram-na a acalmar-se, pois todo o sangue-frio era pouco para encarar tamanhos reboliços. Ela aceitou a admoestação, mas não arredou pé, presa à sorte do homem que tanto bem lhe fizera! Se necessário, daria a vida por ele, sem hesitar.

Quanto ao marido, chorava pelos cantos, como uma criança, e foi dispensado do serviço, para melhor deixar correr o pranto e a dor…

Rui também apareceu, a inteirar-se da situação. A força da solidariedade humana suplantava declaradamente todas e quaisquer rivalidades amorosas! Acima de tudo, sem espíritos mesquinhos, ele reconhecia uma grande injustiça caíra sobre aquele homem de bem! A tenacidade das trevas não se dá por vencida, e escolhe sempre as vítimas mais generosas para actuar! Renunciaria à paixão que Isaura lhe inspirara, se isso fosse necessário ao restabelecimento de Custódio! Talvez Leonor, que também não era feia, com o decorrer do tempo, conseguisse fazê-lo esquecer aquela paixão que o envolvera com tanto ardor e frenesi! Assim, não faltaria ao seu dever, e ela que o aceitara, sem reservas, se realmente ficara grávida, não enfrentaria o mundo sozinha! Ambos haviam acedido a um prazer momentâneo, cada um desforrando-se à sua maneira, de insucessos secretamente amorosos. Mas, após porem cartas na mesa, até nisso estavam quites! Quanto a Isaura, que Deus a fizesse muito feliz, caso o seu coração, como tudo levava a crer, já estivesse ocupado com o amor do médico. Também é uma vitória, talvez a mais difícil e saborosa, reconhecer a derrota! E eles,

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no fundo, Isaura e Custódio, eram bem dignos um do outro, porque não aceitar a realidade do que todos os olhos viam!? Este nosso planeta é tão grande e pequeno, simultaneamente, consoante o pintamos. Que as bênçãos do Céu, generosamente, caíssem sobre médico e camponesa, ambos filhos de Deus…

Não havia momento mais oportuno para uma sincera reconciliação! E Rui, que já conhecia bem os cantos à casa, o hospital, não teve dificuldades em percorrer aqueles corredores, e encontrar quase satisfeito, Leonor:

- Então, pequena? Estás mais calma? Há dias não me quiseste ouvir mais! Tinhas razão, eu disse-to. Não podemos errar uma vez, na vida, pelo menos. Gosto de ti, e achei muito a tua falta, durante este tempo todo, sabes?!... Se ainda for da tua vontade, começaremos já a tratar da papelada, e casaremos no mais curto espaço de tempo. Já o perdemos demais, querida!

Ela não estaria a sonhar, com certeza. Sentia-se lúcida, bem acordada! Olhando-o, entre comovida e ainda desconfiada, replicou:

Fizeste o mal, brincaste com o fogo, e querias fugir com o rabinho à seringa, seu polícia duma figa! É assim que queres manter a ordem, patife? Sei lá se posso acreditar em ti. Já me enganaste uma vez, podes muito bem repetir a façanha. Quem faz um cesto… não quero favores! Se vens só para pagar uma dívida, sempre pensando na Isaura, volta pelo mesmo caminho, que não vou atrás de ti! Não faltam besugos por esse mundo fora…

Mas ele não esteve com mais conversas. Entusiasmara-se, mas agora, bem mais sinceramente que da primeira vez. E antes que ela fugisse, de novo, tapou-lhe os protestos, a boca, com um ardente beijo, que ela, enlevada, acabou por retribuir. Era para aquele coração, ainda há pouco tão desiludido, um renascer de esperanças! Que o sol brilhe para todos, cujo direito à vida partilhada, aos sonhos de felicidade, é inalienável. Não tenhamos dúvidas, mesmo os mais incrédulos: É isto que Deus deseja para os seus filhos… Quando, porventura, os deixa entregues a si próprio, é para que lutem e procurem, sem intervenções alheias, o destino que mais lhe convém…

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CAPÍTULO XIX

GALARDÃO CAMPESTRE

A letargia de Custódio Gomes, assim como aquele febrão, não havia forma de passarem! A robustez daquele médico estava a ser posta à prova por um ferimento que, em princípio, não parecia inspirar quaisquer cuidados.

Todavia, após alguns sobressaltos, a situação achava-se, ou tudo levava a crer que estivesse perfeitamente controlada. O doente repousava sossegadamente num quarto, aonde foram permitidas a visita a permanência de Noémia e a filha. Esta, junto ao leito do enfermo, quedara-se, num silêncio enervante, em consultas constantes ao relógio e aos movimentos de Custódio.

O tempo não passava, e aquele homem permanecia imóvel, com a respiração bastante calma. Como permite Deus que estas nobres almas padeçam tanto?...

Vem debatia-se, entre a esperança e o desespero, pois não entendia nada de medicina, tentando reter as lágrimas: E se ele morresse! Não, que horror! Deus não o permitiria! Ela, embora sem ter conhecimento das intenções do médico, sentia remorsos mesmo indirectamente, para o resto da vida! Não desejava, sob a emoção comandava: para quê fechar os olhos e ouvidos à verdade?

Um profundo suspiro do paciente, fez com que todos o olhasse, presos de angustiosa expectativa! Seus lábios entreabriram-se, num murmúrio imperceptível e fraco, no despertar confuso dum sonho de mau agouro:

- Isaura… minha querida! E assim te deixo, sem uma certeza… na força da vida! Que Deus… se compadeça de mim!...

A jovem estremeceu, como ao contacto de corrente eléctrica, e não se conteve mais, com o coração em doida cavalgada:

- Custódio… meu amor! Não morrerás! O mundo, em geral, e a tua Isaurinha, muito em particular, precisam muito de ti. Não te dispensamos! Deus é bom e justo: não permitirá a consumação dum acto tão abominável! Nós iremos ser ainda muito, muito felizes. É agora que começamos a despertar…

E, sem mais hesitações, apertou-lhe ternamente uma das mãos entre as suas, mantendo aquele gesto por tempo indefinido. Mais do que nunca, ela se convencia depender muito das atitudes que tomasse, a salvação daquele homem! Porque hesitar, se afinal não mentia, nem a si própria? Não só a solidariedade humana, mas também um amor impetuoso,

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e principalmente este, a queimava, naquele momento! Bem quisera sufocar os sentimentos, julgando-se em plano inferior ao homem que dizia amá-la. Todavia, por tudo quanto já falara com ele, sem quaisquer intenções, quando Lourenço fora internado, ficava com garantias mais que suficientes de ser tido em perfeito pé de igualdade! Isto aumentava-lhe consideravelmente às forças para corresponder com todo o entusiasmo a um amor sublime e inebriante…

Todavia Gomes não recuperara totalmente: despertava, com lentidão dum atordoamento, a que os carinhos de Isaura, por muito pródigos que se manifestassem, não poderiam ajudar grandemente. Contudo o alívio do médico que o assistia já não mostrava dúvidas: a crise fora vencida, felizmente para todos. Restava que os minutos seguintes fizessem o que faltava…

Instantes depois, o doente recuperava a lucidez, e foi tomando consciência do que se passava à sua volta. Quando viu Isaura, sozinha, tão perto de si, os olhos quase lhe saíram das órbitas.

- Mas… é ela! A deusa dos meus sonhos! O amor sigiloso de toda a minha vida! Que radioso despertar! Como é isto possível? Devo ter mergulhado cegamente nos belos abismos encantados da ilusão…

A jovem, com lágrimas convulsivas de felicidade a banhar-lhe o rosto, cingiu-lhe freneticamente as mãos, balbuciando, com doçura, como quem conseguia reaver um fabuloso tesouro que julgara irremediavelmente perdido.

- Não é ilusão, meu amor! Eu sou, se o quiseres, a tua realidade, a companheira dedicada ao quotidiano comum! Eu sou a mais feliz das mortais…

Noémia não conseguia abrir a boca: contagiada pela felicidade do momento, acariciava os fartos cabelos da filha, com um olhar complacente e até deliciado! Vencidas todas as angústias da mais cruel incerteza, era tempo de festejar, o regresso venturoso à vida…

Deixemos, discretamente, aquele casal de pombinhos, entregue à sua felicidade, e voltemos à assassina frustrada: continua em coma, sem grandes alterações, mas permanecem os cuidados médicos à sua volta.

E que contas irá Jeremias prestar, da sua atitude? O pobre homem, tão preocupado está com o amigo, que nem se lembra que pode estar novamente com mais um processo judicial em cima das costas… E, como é reincidente, pior para ele! Mas tem grandes atenuantes: agiu em defesa de alguém, tentando evitar um crime! Faltara-lhe o tempo para raciocinar! Tudo isso teria certamente de ser levado em linha de conta. Talvez pudesse redimir…

Sebastião, que estava a par de toda aquela tramóia, não hesitaria, de certeza, em se armar em defensor do antigo alcoólico.

Estas hipóteses, tendo em vista as previsões pessimistas sobre a vida de Alzira deixavam Jeremias em maus lençóis, pelo menos a partida…

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Quando soube do estado crítico da antiga assistente social, Custódio não teve mais sossego, para saborear o seu recente idílio: necessitava ver urgentemente aquela infeliz, caso fosse ainda possível salvá-la. Pobre mulher! Não chegaria, certamente, a entrar prostituição por falta de tempo… Contudo o morrer é bem mais terrível, quando se parte desta vida, impenitente. Inconsciente, de pouco lhe valeriam os derradeiros sacramentos! Custódio não duvidava da competência dos seus colegas, mas ansiava por sair daquele leito, e ver, com os próprios olhos, a doente! Reconfortado com a presença de Isaura, e principalmente com as doces palavras que lhe ouvira, já se sentia com forças para retornar o trabalho. Nada de pieguices, era o que ele pensava.

Recomendaram-lhe prudência, mas foi num instante, enquanto chegou junto daquela que tentara matá-lo! Efectivamente pouco havia a fazer: Aquela vida só existia ainda, por estar ligada a uma máquina! A mulher sofrera uma hemorragia cerebral. O médico ficou petrificado, ante a dureza da realidade! A sua primeira reacção foi ajoelhar ali mesmo, e elevar ao Deus em que acreditava piamente a mais fervorosa prece, pela salvação duma irmã, prestes a dar contas ao nosso Criador, Pai clemente, mas também… juiz!

Extremamente comovida com tal atitude, Isaura ajoelhara também ao lado daquele homem, que não tinha vergonha de manifestar em qualquer sítio onde se encontrasse, as suas convicções religiosas! E, mesmo em silêncio, para Deus isso chega e sobra, juntaram ambos as orações, sublimemente…

E, por mera coincidência ou algo sobrenatural, não nos atrevemos a opinar, o facto é que, volvidos alguns momentos, Alzira expirava! Até parece que aguardava vítima, para receber o seu perdão! Quanto ao de Deus… de seus desígnios são insondáveis: não nos compete sequer tentar aprofundá-los!...

Era uma nódoa terrível, aquela morte, a ensombrar a felicidade de Isaura e do Médico: em nada haviam contribuído para tão trágico desfecho, mas, inevitavelmente, sentiam-se ligados a ele, como que obrigados a pagar uma dívida de consciência, mesmo não contraída! Não seria remorso, porque este só se tem do mal que se pratica, e nem um nem outro sequer sabiam das pérfidas intenções da recente defunta! Mas a consciência às vezes só testemunhou um facto consumado! A impossibilidade que há, neste momento, de dialogar com os mortos, é o espinho cravado bem no fundo do coração daqueles dois seres humanos, cuja tranquilidade só viria através duma tentativa de reconciliação! Não iriam atormentar-se sem ganhar nada, com culpas que afinal não tinham! E a força da juventude, a voz sonora do amor falou mais alto:

- Minha querida Isaura! Deus quer dar-nos a felicidade à custa de grandes sacrifícios! Não lhes fujamos, e tê-la-emos, como quem passara muita sede à beira de água! Juntou ao amor que lhe tinha a devoção que mais uma vez lhe devotava, só vê-lo deveras preocupado com a morte de Alzira, para além-túmulo:

- Ali, meu amor! Nem quero recordar mais as horas terríveis que passei à tua cabeceira, sabendo-te, por minha causa, em perigo de vida! Agora… que sensação de alívio! Sinto-me mais que compensada. Completamente feliz! Enforcar-me-ei por ser aquela camponesa alegre e desempenhada com quem sempre sonhaste! Tudo farei para que não te

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arrependas um único dia da tua escolha! Sem a instrução que merecias, tentarei arranjar outras compensações!

E, timidamente, caíram nos braços um do outro, antes mesmo que os lábios se tocassem, os corações pulsavam descontroladamente..

Era a lei da vida, leal, sem mentiras ou tabus; a união da carne e o espírito, em verdadeira comunhão. O pecado ou crime só existe na premeditação ou, quando muito, nas más intenções de cada um…

Deviam ambos a felicidade presente e talvez futura, à extrema dedicação de Jeremias. Este, por seu turno, sentia-se eufórico, orgulhoso, por ter resgatado mais uma dívida de gratidão! Tal facto só vem confirmar aos supostos donos do mundo, que até o ser mais mesquinho e aviltante nasceu para fazer alguma coisa, para ter a sua utilidade! Quem diria que um bêbado, um assassino, ultrajado pela opinião pública, tivesse salvo a vida ao melhor médico daquela cidade! Mas é assim que o pobre paga a quem lhe dá a mão, nas suas agonias ou necessidades, à beira do abismo! Quanto aos poderosos, por mais que alguém se sacrifique a dar a vida por eles, é sempre uma obrigação: não merecerão qualquer recompensa. E haja quem conteste esta amarga verdade!

Lá diz o adágio popular: Amor, com amor se paga… às vezes!...

Foi encontrada na caixa do correio da casa de Alzira uma carta da entidade patronal que lhe exigia uma indemnização de dois meses de ordenado, por ter abandonado o emprego sem o respectivo aviso prévio.

Tomando conhecimento do facto, Custódio fez questão de legalizar a situação, pagando a dívida. Para não dar muito nas vistas com a publicidade, evitou questiúnculas, dizendo que devia à defunta quantidade semelhante.

Indirectamente, o médico sentiu-se mais aliviado, perdoara-lhe a tentativa de assassínio, resgatava agora a Alzira uma nova divida… a consciência não o incomodava mais! Poderia e deveria entregar-se e retribuir de coração aberto e livre, os carinhos de Isaura, todo feliz, sem quaisquer reservas…

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CAPÍTULO XX

O VÉRTICE DA PIRÂMIDE

Custódio restabeleceu-se completamente e, sem perder tempo, voltou às suas funções, porque o hospital não lhe dava tréguas, era evidente.

Jeremias e Vítor aguardaram em liberdade um julgamento não fora possível ilibá-los daquele contratempo, pois haviam causado a morte a um ser humano, um mostrengo, ruminava a opinião pública…

Todavia, como agiram em defesa doutrem, a polícia testemunhou a favor deles, no tribunal, sempre com Sebastião ao leme!

- Estes homens agiram à pressa, para salvar uma vida, talvez a mais preciosa, em termos de que ela própria tem salvo muitas. E, como a defunta estava armada, agrediram-na, para não serem também varados por alguma bala… Não havia outra hipótese, senão arriscavam-se a ir para os anjinhos, o que talvez não lhes interessasse muito, naquele momento. Eu assisti, ninguém me contou. Do contrário, engaiolava-os, imediatamente aos dois.

Analisando rigorosamente o caso, os réus acabaram por ser absolvidos por unanimidade, porque as atenuantes eram bem mais fortes que a atitude momentânea. E Jeremias, de antigo delinquente, passava finalmente a herói, a defensor intransigente das boas causas. Na natureza tudo se transforma….

Rui apressou-se, que o tempo não se compadece com demoras e, em poucos dias, semanas, mesmo um mês e tal, estaria casado.

Após mais algum tempo, para ter a certeza se era realmente amada como julgava amar, Almerinda aceitara a corte a Filipe, e agora, estavam noivos, sonhando um mundo de felicidade, que jamais terminará…

Inésia estava muito feliz, porque o seu benfeitor ficara sem defeito, daquele atentado, não lhe ocultando a sua satisfação de regozijo pela morte de Alzira, após tanto mal que não se cansara de semear!

- Acredite, Sr. Doutor: juro-lhe pela minha felicidade, que estou radiante, com a entrada daquela amaldiçoada nas profundas do inferno! Não prejudicará mais ninguém! Teve afinal, a paga mais que merecida, o que nem sempre acontece com os que vêm ao mundo apenas e só para fazer mal aos outros…

Custódio olhou-a entre horrorizado e compreensivo:

- Oh, minha senhora! Por amor de Deus! Afaste esse rancor do seu coração. Devemos ter pena também e principalmente, dos maus. Ela foi uma infeliz, acabando vítima da sua má

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cabeça! Roguemos antes a Deus, pela sua salvação. Todos vimos cá o seu castigo, para o qual contribuímos, mas em favor da justiça… Já pensou na tragédia dela, se morreu em pecado mortal? Não se esqueça que Cristo deu o ultimo suspiro, implorando ao Pai o perdão para os Seus algozes! É nisto que está baseada toda a minha fé, por isso serei sempre cristão! Amar os inimigos é extremamente difícil, quase impossível, mesmo. Mas tentemo-lo, dentro das nossas fraquezas de homens, não lhes querer mal! Esquecer… Já será um bom princípio. A senhora, por exemplo, nunca pensou em hoje estar casada com um homem que, embora involuntariamente, deu a morte ao seu marido. E, pelo que julgo, é bastante feliz com ele! No fundo, Jeremias acabou por ter mais sorte, porque lhe restou tempo para arrepiar caminho! Mas a pobre Alzira, se morreu impenitente, que Deus seja Pai dela, bem antes de juiz…

Inésia ouvia aquele homem extraordinário com devoção. Junto dele, ela era um ser ínfimo, sem capacidade de ver o bem que sabe ser generoso. Pela segunda vez, levava uma lição de nobreza, que tudo faria para não cair em saco roto! Custódio, antes de dar as suas lições, principiava por pô-las em prática, e isso era o mais importante, porque o exemplo arrasta…

A mulher, como primeira reacção, saiu, de imediato encaminhando-se para a igreja, aonde, sinceramente arrependida, orou por Alzira, vencendo o furor de ressentimentos que, naquele momento, realmente já não levava a lado nenhum! À piedade Divina, nada é impossível, se Cristo morreu principalmente pelos mais pecadores, o Seu Santo sacrifício não seria vão, e de certo intercedeu junto do Pai por mais uma pobre alma! Que descansasse em paz…

Passadas todas aquelas emoções, Custódio Gomes voltou à sua ponderação: Será que Isaura gostava mesmo dele, ou fora levada, por razões humanitárias a afirmá-lo? Nada de confusões! O assunto era muito sério, para se decidir, sob pressão! Procurou a moça e, como era seu hábito, falou-lhe com toda a franqueza, pois antes decepar uma perna, que ela nos levar a maus caminhos:

- Ouve uma coisa, minha estrela! Preciso que me respondas a umas coisas, mas sem emoções, e com a maior das calmas. Serás mesmo capaz disso?

Isaura, com o seu instinto apurado de mulher, em tais situações, como que adivinhou as preocupações do noivo, e antecipou-se-lhe, graciosamente:

- Oh, meu querido! Ao menos uma vez na vida, não te ponhas com esses ares de filósofo! Se Deus nos criou com tudo o que temos, deixa falar a Natureza! Dúvidas, dúvidas sem nexo, as que te afligem! Embora ainda não vivamos em comum, o que ansiosamente desejo, e para muito breve, creio não me enganar, se te disser que te conheço o suficiente para te amar, como mereces! Na dádiva total, sem entusiasmos repentinos de solidariedade ao desastre que te sucedeu! Estarei, acaso algo errada, nos meus cálculos? Ora desembucha! Não sejas tontinho! Olha que as aldeãs são muito sabidas! Ou queres que eu também comece a duvidar da tua carta, tão sincera e amorosa, à qual só não respondi logo, aceitando o teu namoro, por mero acanhamento. Acreditei. Exijo o mesmo!

O médico não ocultou à noiva a sua surpresa, maior alegria e alvoroço

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- Muito bem, minha jóia! Vejo que nos entendemos às mil maravilhas! Aprender até morrer! Na verdade, embora eu, desde há muito, me sentisse loucamente apaixonado por ti, não teria dúvidas em recalcar o coração aos pés, se tal incerteza me atormentasse! Não, fá-lo-ia, mesmo que para isso tivesse de renunciar à partilha da vida com alguém! Sou muito realista,e não me arriscaria a casar com alguém, que só nutrisse por mim estima e amizade por muito profundas que fossem! Nem a gratidão me demoveria a dar tal passo! Ele só se justifica, havendo mútuas certezas de amor! Apenas este consegue unir dois seres para toda a vida, que terão de enfrentar, com muitos dissabores à mistura! A lua de mel não se eterniza, mas a compreensão pode durar, se houver boa vontade de quem se assumiu como marido e esposa! Não tenho a menor dúvida que o entusiasmo momentâneo conduz ao tédio e à inevitável destruição!

Isaura contemplava-o, com uma doce ternura: não poderia aspirar a maior felicidade terrena! E quem contribuíra para ela? A doença do pai, que todos haviam chorado. Não há dúvida: Deus sabe tirar o bem até do mal! Com um tacto digno de inveja, conseguiria acalmar-lhe a tempestade que se levantara no íntimo perturbado.

Ele era o seu amado, a outra parte da sua vida!...

Custódio, porém, não tivera muito tempo para saborear os encantadores sorrisos da sua Isaura: foi chamado à pressa ao hospital, pois algo de grave se passara com Leonor: discutindo com Rui, antes da reconciliação de ambos, tivera um desgosto sério, e tentara destruir a semente de vida que nela havia principiado a germinar! Não o conseguira, mas agora iria sofrer as consequências! Começou a perder muito sangue, e os factos precipitaram-se! O médico, apanhado de surpresa, acudiu-lhe, com todo o seu saber, mas não pôde evitar, por muito que o tentasse, mais um aborto! Vá lá, que chegara a tempo de salvar, ao menos a vida de Leonor. Não se perdera tudo…

Logo que se restabeleceu, a moça não pareceu muito desgostosa: escapara com vida, e agora sentia-se liberta de futuras responsabilidades! Já não precisava de agir com pressas demasiadas. Começaria tudo de novo…

Rui já se ia habituando à ideia da paternidade, mas também não se comoveu muito, pelo contrário: chamando tudo pelo seu nome, sem hipocrisias, talvez se julgasse, como Leonor, com um peso a menos sobre os ombros…

Aquele acontecimento surpreendeu todo o pessoal do hospital, que desconhecia as intimidades da sua colega. Todavia, como casos semelhantes já são tão normais, ninguém se preocupou mais com quaisquer comentários.

Tremeram de novo um pouco as afeições entre Rui e Leonor, mas o rompimento não se concretizou. Entraram numa espécie de contrato, onde tentaram que imperasse a tolerância mútua, em pratos mais limpos, o resgate da dívida…

E, para que não houvesse arrependimentos mútuos, algum tempo depois o casamento era um facto consumado, para o bem ou para o mal…

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Alexandre também havia regressado dos Estados Unidos, e, já com o seu curso, alcançado com distinção. Não perdera tempo…. Como já se correspondia com Marília, a filha da professora Hermínia, propôs-lhe ficarem noivos, e foi bem sucedido. Como os factos iam decorrendo, dará ao leitor a ideia que estamos num conto de fadas. Mas, se virmos bem, em parte, é mesmo a lei da vida…

A moça já trabalhava, e ele facilmente também arranjou um bom emprego.

Noémia, algum tempo após a sua viuvez, via-se na contingência de ver sair os três filhos pela porta fora, quase simultaneamente. Embora ainda nenhum deles já tivesse data marcada, parece que todos se apressavam em construir família, sendo Isaura talvez a primeira a tomar a iniciativa, salvo algum contratempo de última hora, fértil, no dia a dia.

Mas era a lei da vida, não havia nada a fazer! A mulher dava graças a Deus por ainda se sentir com boa saúde, para se defender, caso nenhum dos filhos a pretendesse levar consigo. Mas estes pesadelos eram a longo prazo, talvez até nem tivessem, sabe-se lá, o mínimo fundamento…

Jeremias, após tantas contrariedades, na vida, experimentava agora uma extrema felicidade: quem diria! Já não era muito nova: em meia idade, Inésia estava grávida; e todos lá em casa, aguardavam com o maior entusiasmo e ansiedade, o aparecimento do novo rebento, na família: que Deus o enviasse em boa hora, e principalmente, são, e sem defeito físico! Bem bastam os que se apanham, de toda a espécie, quando se cai neste vale de lágrimas!...

Antes do seu enlace, Almerinda teria mais um irmãozinho. Que giro!

Seria injusto da parte do narrador, com a história prestes a chegar ao fim, deixar entregues a si próprios mais alguns personagens que lhe deram vida.

Os senhores da alta, que haviam tomado parte no lauto banquete, do qual já se lamentavam dois mortos, juiz e advogado, não ficaram apenas com este revés inconformado com a sua incapacidade reprodutora, Horácio achara um único meio de fugir aos escárnios sociais: o suicídio, através dum veneno que ingerira, sendo encontrado a estrebuchar, pouco depois.

Macedo, de tanto pensar no que era e passou a ser, desesperara, e a solução foi interná-lo, carente de lucidez. Num hospício, onde se mantém, sem muitas esperanças de grandes restabelecimentos. Certamente acabaria por ali mesmo os seus penosos e inconformados dias. Pobre homem!

Azevedo tivera mais sorte: e, passado algum tempo, voltara às suas actividades normais. Ao menos este pouco mais tivera que aquele susto….

Já há muito tempo refeito da enfermidade que o pusera às portas da morte, o pequeno Mário, em plena actividade escolar, era dos melhores alunos da sua classe, e o que, com mais entusiasmo, aguardava a chegada do seu irmãozinho!

Estaria mesmo a aparecer… A criança, louca de alegria, contava os dias que faltavam para o nascimento do novo rebento!

Page 201:  · Web viewAo ouvir pronunciar o nome do marido, Noémia percebeu de imediato que Sebastião pusera já Luzia a par do que se passara. Tão comovida estava com aquele apoio humano,

Até Jeremias, nos poucos momentos que lhe restavam do trabalho, procurava, com grande pertinência, um pouco mais de instrução: ainda não era muito velho, e o saber não ocupa lugar. Por isso mesmo, matriculou-se numa escola nocturna, sentindo-se muito mais realizado e satisfeito, mil vezes do que quando era boémio, repelido por toda a gente; e, sempre que tinha a menor oportunidade, com a palavra e o exemplo, não se cansava de apregoar os incontáveis malefícios do álcool. Melhor do que ninguém, um escravo pode testemunhar o sabor da liberdade! Nada tinha contra os taberneiros. Compreendia que precisavam de ganhar a sua vida. Mas podiam exercer a profissão com um mínimo de honestidade, não vendendo mais bebidas a quem já estivesse embriagado.

Na sua ignorância e boa-fé de resolver tudo pelo melhor, o bom homem não discernia que o problema era bastante complicado: para ser atacado pela raiz, muito se teria que fazer. Mas a iniciativa competiria às autoridades competentes na matéria. E modificar uma sociedade de consumo, mesmo no bom sentido, não nos parece tarefa nada fácil! Todavia bom seria que não cruzássemos os braços, lutando cada um como pudesse, que todos lucrariam com a mudança!

Quanto a Inésia, prestes a ser mãe, também fizera o propósito de se ir tentando libertar do rancor que votava a quem a prejudicasse. Era-lhe extremamente difícil, mas desejava agradar a Gomes e, pouco a pouco, com a vida a correr-lhe melhor, foi ganhando ânimo; se um homem de carne e osso, como ela, perdoara a quem o tentara assassinar, porque não lhe seguir, se possível, o exemplo? Sem esforço, claro que nada se consegue.

Completava-lhe a felicidade dias depois, a vinda ao mundo duma criança do sexo masculino, lindo, como os anjos, e muito rechonchudo.

Jeremias parecia uma criança, doida de alegria! E quase implorou para que ao bebé fosse dado o nome de Júlio, em homenagem à muita estima que tivera por aquele que, sendo o seu maior amigo, desgraçadamente matara.

Fácil seria adivinhar quem apadrinhou o baptizado: Custódio e Isaura, muito felizes da vida, quase em vésperas doutra cerimónia, esta matrimonial, que os ligaria para toda a vida, perante Deus e os homens!

Grande parte dos funcionários do hospital contribuíram com lindas ofertas para o bebé. Partilhava-se sinceramente da felicidade dum colega de serviço, cuja conduta, da qual em princípio se desconfiara tanto a todos conquistara, com a sua generosa honestidade e, mais ainda, apego ao trabalho.

Sempre trocista, Sebastião, quando apanhou Rui a jeito, desfechou-lhe, à queima-roupa, em ar de desafio, chegando o lume à gasolina:

- E então, caro colega sempre desististe do duelo? És um imbecil! Olha que o teu rival talvez nem saiba manejar uma arma! E tu andas sempre de pistola nas unhas, meu traste! Mesmo assim, tiveste sorte! Só espero que te dês bem com a substituta! Não lhe arranjes mais sarilhos, para evitarem esses abortos incómodos. Prejudicam a saúde, e até podem matar. Bom, se calhar, nem tinhas jeito para ser pai! Não conseguiste a pequena desejada! Que chatice!

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O outro nem sequer se zangou, de tão habituado que estava aos rompantes do colega. Com um sorrisinho conformista, respondeu

- Tens razão, patife. É preciso também saber perder. E olha que às vezes, é bastante difícil! Aquela Isaurinha enchia-me as medidas. Mas, com receio de que outros, antes de mim, poderem apoderar-se do seu coração, precipitei-me, acabando por estragar tudo, se é que já não estava mesmo estragado, à partida! Ela foi muito arisca, se calhar já com outros sonhos!

- Guardado está o bocado para quem o há-de comer! Depressa ou devagar, não irias conseguir nada, porque o médico foi o eleito….

- Está bem…. Quando as feridas não são mortais, há sempre a esperança da cura! A Leonor há-de contribuir, assim o espero, para o restabelecimento! E, já agora, que esses dois pombinhos sejam sempre muito felizes!

- Ora bem bom que raciocinas com os miolos no seu lugar! Nada melhor que a conformação, o constante poder de renovar, para se vencer, na vida! Se nos convencermos que não servimos para nada, é um passo para o suicídio! E, por essa ordem de ideias, acabava-se esta nossa boa Humanidade. Ora tu, com a enorme energia que demonstraste, após aquele memorável baile. Não me parece que tenhas vontade de fazer já as malas para o outro mundo….

- Evidentemente que não! Além de que tenciono deixar cá alguns descendentes, faço muita falta para manter a ordem; e, antes de mais, ouvir aqui as tuas baboseiras. Quem mais teria pachorra para tal!?...

Era mais que justo: O doutor Gomes tirou as suas férias, porque estava muito perto do acto que considerava mais importante, da sua vida….

Isaura, exultante de alegria, bordara, ela mesma, passando muitas noites em claro, o seu próprio enxoval! Mas chegava a tempo….

Para tornar tudo mais pitoresco, o casamento seria realizado na aldeia da moça. Desde há muito que a sua casa vinha a sofrer grandes reparações, e Gomes tinha o maior gosto em passar num sítio sossegado, a sua lua-de-mel….

Ele adorara aquele bucolismo! Como seria delicioso acordar, entre carícias, ao som melodioso da passarada, sem os incómodos arranque dos motores, o odor à gasolina queimada, o apitar constante de tantos veículos! Em sua substituição, ouvir um cavalo acelerado, os galos madrugadores, uma badalada solitária, no campanário!...

Os chocalhos dos rebanhos, a caminho dos pastos…

Logo pela manhã, as trindades, o tocar à missa, chamando os fiéis, mesmo durante a semana, os que pudessem, tomar parte naquele constante renovar do sacrifício de Cristo. E, após levarem a cabo as suas devoções quotidianas, recomeçarem uma azáfama, que nunca pára….

Page 203:  · Web viewAo ouvir pronunciar o nome do marido, Noémia percebeu de imediato que Sebastião pusera já Luzia a par do que se passara. Tão comovida estava com aquele apoio humano,

Que pena não poder usufruir daquele sossego, eternamente! Engolir uma caneca de leite fumegante, acabado de sair das tetas da vaca, que pachorrenta, se põe à inteira disposição do seu dono, que conhece pela voz….

E por fim, o mais importante: ter nos braços, totalmente sua, como sempre ambicionara, a mais ardente, extremosa e dedicada das camponesas, que respirava saúde e energia: a sua querida Isaura, que jamais se cansaria de acariciar, com toda a desvelada ternura de que fosse capaz! Era, sem dúvida, o galardão, a melhor camponesa que Deus lhe concedia, para o compensar de algum bem que, por acaso, tivesse feito aos seus semelhantes! Julgava-se até indigno de tanta ventura. Mas Deus sabe o que faz, melhor do que nós o que dizemos! Aquele jovem médico sentia-se eternamente grato ao seu Criador a quem não se cansava de orar pelos benefícios recebidos!

À tristeza da órfã, passando pela conformação, e após algum tempo, seguia-se a ventura da noiva, que segue a caminho do altar, radiante, e disposta a fazer eternamente feliz o homem que a escolheu, modesta camponesa, entre tantas ilustres citadinas, que bem melhor brilhariam nos quartos de sala….

Podem todos os cépticos escarnecer, mas é uma verdade incontestável: quando vivido mutuamente, com a mesma intensidade, o amor é o mais belo sentimento humano! Talvez por isso mesmo seja o que mais origem dá a murmurações, porque raros são os que rejubilam com a felicidade alheia! Se olharmos para o Céu, vemos as avezinhas acariciarem-se ternamente, à vista e às claras, indiferentes aos olhares de quem as rodeie. Todos os seres da Natureza o fazem. E o ser humano, o que tem o dom da inteligência, emprega-a na maledicência, usando, constantemente a historieta do velho, do menino e do burro….

Sem pretendermos ser juiz das causas alheias, muito menos de consciências, julgamos não fugir à verdade, se afirmarmos que Isaura e Custódio, que já regressam da igreja, marido e mulher, são o símbolo exemplo vivo dum casal ternamente comprometido, através do optimismo, expresso nos seus semblantes! Ali não se vislumbra a menor semente de futuros desentendimentos…

Queira Deus, pai de misericórdia, ouvir as ardentes preces do modesto narrador, a quem cumpre testemunhar fielmente os factos: que as bênçãos celestes cubram o novo casal, dando-lhe sempre forças para enfrentar com alegria as agruras de que a vida se compõe! A agreste muralha quotidiana, que tanto amachuca quem esbarra contra ela, por imprudência ou ignorância. É que ela é impossível de transpor, e faz muitas vítimas. Mas, com a ajuda Divina, aquelas duas almas certamente continuarão disponíveis para o bem…

E que os outros casais que se preparam para a mesma união, sejam também altamente bafejados por idêntica auréola de felicidade, para que, tarde ou cedo, a Humanidade se convença que Deus quer a todos da mesma forma, não criando filhos e enteados! Por vezes, na nossa angústia, emoldurada de razão, mesmo sabendo que somos fracos, pensamos ter sido abandonados. Porque ocultar tal verdade? Quando milhões morrem diariamente à fome, e outros passeiam todo o ano, rodeados de iguarias e todo o luxo, que

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pensar de tais injustiças?! Quem levantará a sua voz contra elas!? E valerá a pena!? Até hoje, ainda não!...

Que este desabafo, julgamos que a propósito, não ofusque o brilho da luminosa estrela que resolveu iluminar e incendiar os corações dos dois esposos: a sua alegria, pelo menos, contagiara a todos, no bom sentido…

Apesar de espaçosa, a casa de Noémia acabou por tornar-se exígua para albergar tanta gente que, vinda da cidade, rumara àquela aldeia. É verdade: nunca se vira tanto automóvel, em bicha, à procura de estacionar no sítio mais conveniente, para não embaraçar o trânsito. Também não haveria problema de maior, porque as carroças e cavalos sempre conseguem passar por nesgas de terreno, e além disso, era festa; festa essa em que toda a gente queria, senão colaborar directamente, pelo menos felicitar os seus componentes…. Um dia inesquecível, que todos recordariam por muito tempo…

Sebastião e Luzia apadrinharam Isaura, e Custódio Gomes escolheu, sem hesitar, Jeremias e Inésia, sentindo-se maravilhado…

O baile durou, transbordante de entusiasmo, até às tantas. E aquele médico iria ter finalmente, uns dias de descanso, que bem merecia, pois raras eram as noites que, até então, dormira de um sono só! E lá estava o provérbio, a confirmar a verdade do nosso povo, cuja voz dizem ser a de Deus:

Mais vale tarde, que nunca!...

FIM 1