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1 O lugar

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O lugar

PRÓLOGO

1.O Lugar

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Não muito longe, onde o leste se encontra com o oeste. Onde o tempo se curva, o passado e o futuro estão enlaçados no presente. Onde a magia é real. Parece longe, mas não é, são inúmeras passagens que dão acesso ao Lugar, passagens de entrada, passagens de saída e as melhores:passagens de mão dupla que deixam entrar e sair. Apenas tenha certeza que está entrando em uma passagem dupla, ou você poderá não achar o caminho de volta e não conseguir mais sair do Lugar. Falo por experiência, cheguei aqui há quase dez anos e ainda não achei uma passagem de saída.

2.Os LimitesO limite a leste é o oceano. Dali nada chega e ninguém se arrisca a sair navegando. O mar

permanentemente revolto, ondas colossais, tormentas, animais marinhos abomináveis e gigantescos fazem desistir da jornada o mais experiente dos marujos. Uma cordilheira intransponível, com picos de neve eterna ao norte, savanas desérticas, ao sul e oeste, com pouca vegetação, pouca água, habitada por animais venenosos com as mais variadas espécies de peçonhas, os terríveis perins, tudo desencoraja também a saída por terra. Assim, cercado por intempéries, está localizado este oásis, que seus habitantes chamam de O Lugar.

3.As CidadesA primeira das cidades é a maior, uma metrópole com quase 20.000 habitantes, localizada na

região central do Lugar, a doze léguas lug do oceano, é chamada de Capital. Alguns se referem a ela como O Castelo, em referência ao grande castelo de pedras da rainha guardiã. Todos passam algum dia pela capital. Lá se vende e se compra de tudo, desde dentes de perin a folhas da cajazeira sagrada, além da ótima cerveja e da deliciosa carne de gato assada encontrada nas tabernas. As outras cidades são Despen ao norte, onde são feitas as melhores espadas de toda região, Kazin ao sul, rica por sua produção de frutas e a mais distante, Kho-zy, isolada de tudo, a oeste, vizinha da tribo dos Irmãos da Folha.

Obs. Uma légua lug corresponde ao perímetro da Capital, aproximadamente 10 km.

4.As PassagensAs passagens podem estar nos mais estranhos lugares. Eu fazia uma caminhada num domingo de

manhã, em uma trilha num bosque próximo da minha casa. Imerso em meus pensamentos tropecei em

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uma raiz e caí barranco abaixo. Fui escorregando, rolando, tentando inutilmente me agarrar aos arbustos, quando me senti em queda livre, o declive acabara abruptamente em uma ravina profunda, e quando o choque parecia inevitável, apareci no meio do lago pequeno, nos arredores da Capital. Praticamente não se vê a passagem, só percebemos ao atravessá-la. Eu não sabia, hoje já reconheço alguns dos sinais de uma passagem, como o leve brilho arroxeado quase invisível, que a envolve. Infelizmente a que passei era apenas de entrada.

5.As HistóriasAs historias que vou contar são exatamente a verdade, algumas acontecidas comigo, outras

contadas por gerações e comprovadas em qualquer taberna do Lugar. Eles são muito preocupados com a veracidade de suas historias. Uma vez um contador de historias “arredondou” a conta dizendo que foi perseguido por uma dúzia de perins ao invés de onze como realmente aconteceu e depois disso, envergonhado pelo deslize, nunca mais abriu a boca, há trinta e cinco anos permanece mudo.

LIVRO I – O LUGAR

6.A ChegadaSentei-me na margem do lago, sem saber exatamente o que tinha acontecido. Molhado,

cansado, ainda sem me localizar, tentando imaginar onde eu estava e como ali havia chegado. Ao longe avistei o que parecia ser uma pequena vila com um castelo no centro. Permaneci sentado na grama verde que não era nada diferente da grama de qualquer quintal. O lago, embora bonito, parecia comum, era apenas um lago. Mas no céu, três luas violetas como nunca vi igual. O que me levou a pensar que logo anoiteceria e precisava encontrar um abrigo.

7.O Primeiro Contato-Cuidado - disse o mestre artesão, num sotaque estranho - é perigoso ficar ai, tem muitos perins1. Ele me olhava, estranhando minhas roupas; embora eu ainda

não soubesse, tênis, jeans e jaqueta de couro não combinavam com a moda local.

-Você não é daqui? - foi mais uma afirmação do que uma pergunta.

-Não, nem sei onde estou -eu respondi.-Ah... E seguiu seu caminho em direção à cidade.-Espere, você está indo para aquela cidade? Perguntei correndo atrás dele, pois ele não parava.- O que é um “perin”? Como é seu nome? Para onde você está indo? Ele continuou andando em silêncio. Falava pouco, mas me ajudou muito. Algumas vezes me

respondia, outras vezes apenas me olhava, estranhando a própria pergunta.

8.Mestre ArtesãoAlto, pesado, rosto anguloso, a barba por fazer e a sobrancelha loira espessa dão um ar de

ferocidade oposta ao seu temperamento. Sua pele é queimada de sol e suas mãos são enormes, desproporcionais mesmo. Roupa surrada em tons de cinza. Monossilábico no responder. Durante o dia está sempre em sua oficina e,à noite, numa mesa de canto, na taberna do Porco Falador.

Sua habilidade com pedras e prata é notável. Seus trabalhos são conhecidos em todo Lugar. É difícil imaginar que suas mãos grandes e calejadas possam tratar a prata com tamanha segurança e exatidão, fazendo filigranas tão delicadas. Sua especialidade são broches em prata ou osso com figuras dos seus deuses. Ele chama-se Joran, mas é conhecido por todos como Mestre artesão.

Ao chegarmos à Capital, Joran levou-me até a estalagem “A Cabeça da Rainha”. Atirou uma moeda à proprietária.

-Uma semana com comida - disse dirigindo-se a mim - e não esqueça, está me devendo uma moeda. Marcio, o artesão de couro poderá comprar seu casaco por um bom preço. Sua oficina fica do outro lado da rua.

Virou-se e seguiu seu caminho antes que eu tivesse a oportunidade de lhe agradecer.

1Perin: bolas de dentes saltadoras. Comem tudo que se move. Um perin sozinho oferece pouco perigo, porém em bando são perigosíssimos, quase imbatíveis.

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9.Estalagem “A Cabeça da Rainha”A proprietária, Vency, era simpática e atenciosa, muito bonita. Cabelos negros, longos, olhos

radiantes e um sorriso permanente. Seu corpo não demonstrava seus quarenta anos. Era uma mulher com a jovialidade de uma garota. Flor nos cabelos, vestidos coloridos, estava sempre pronta a responder minhas perguntas embora não soubesse muita coisa; a última resposta era sempre a mesma

- Procure nas tabernas, lá eles sabem tudo.Ao passarmos pelo portal de madeira da entrada encontrávamos num grande salão com

inúmeras mesas e cadeiras de madeira pesada com trabalhos de entalhe, onde eram servidas as refeições e o desjejum. O almoço era servido invariavelmente quando o sol se encontra no zênite. No lado oposto, uma escada larga de madeira com os corrimões também entalhados levava ao átrio do segundo piso de onde saiam dois corredores opostos de acesso aos quartos. Meu quarto era espaçoso, limpo, arejado e tinha uma sacada para a rua. A cama era macia e tinha um lençol alvo e um sobre lençol de algodão cru. Além da cama, ainda tinha encostada a uma das paredes, uma mesa estreita e duas cadeiras. Eu subi para descansar um pouco e logo anoiteceu, esfriando um pouco. Escutavam-se poucos sons que vinham das tabernas próximas e que foram diminuindo gradualmente, até serem envolvidos por um silêncio absoluto. A vela apagou-se. Mesmo assim quase não dormi; muitas dúvidas, muitas perguntas sem resposta.

10.O Primeiro DiaAcordei com o sol alto. Desci à sala de refeições. Ao me sentar, uma serviçal prontamente trouxe

uma bandeja com frutas: laranja, maçã, mamão e duas outras que eu não reconheci. Dispensei as frutas, mas não o pão, pesado, porém saboroso e uma bebida chamada “eujo” que lembrava a café ralo com um sabor levemente ácido. Enquanto comia, entrei numa conversa interminável com Vency, a proprietária da estalagem. Não conseguia explicar de onde eu era nem como cheguei ali, quando ela teve um lampejo - Claro, a passagem, você veio pela passagem!

Depois de outras intermináveis explicações entendi que era um portal, e que havia outros; eventualmente alguém vinha e ia-se por eles. Se havia um mapa das passagens e para onde elas transportavam?

- Procure nas tabernas, lá eles sabem de tudo.-Estranho o nome de sua estalagem, por que “A Cabeça da Rainha”?- É a efígie que temos na nossa moeda, veja - falou mostrando-me uma - é uma homenagem que

meu marido quis fazer a nossa rainha. Terminada a conversa, saí para tentar resolver minha vida. Encontrar Marcio, o artesão de couro

foi fácil, bastou atravessar a pequena rua. Como todos, a princípio, ele me olhou com aquele olhar de estranheza ao qual já estava me acostumando, depois continuou seu trabalho como se eu não estivesse ali. Mas seu comportamento mudou quando perguntei se estava interessado em comprar minha jaqueta de couro, convidou-me a sentar, sorridente, parecia outra pessoa. Chegamos a um bom acordo, as duas mangas da jaqueta por vinte e cinco moedas. O couro é muito valioso, poucos animais do Lugar têm couro forte e resistente e mesmo assim, jamais matam um animal para tirar o couro. É abominável matar sem necessidade.

Por quatro moedas paguei um mês de alojamento na estalagem, com alimentação incluída! Com ajuda da prestativa Vency, comprei roupas locais: dois pares de mocassin, calças e camisas de algodão cru. Por insistência veemente dela, acabei comprando uma camisa colorida.

-Para uma festa - disse ela. Bateu palmas como criança quando experimentei a camisa. Tudo custou mais uma moeda. Pelo

menos já podia andar pela cidade sem que me olhassem como se eu fosse um animal exótico. Segui mais tranquilo pela rua que lembrava uma feira. Uma multidão falando alto, oferecendo seus produtos. Vendiam e trocavam tudo: frutas, roupas, jóias. O povo é simples, os homens fortes, bronzeados, as mulheres quase todas loiras, muito bonitas. Sorriam quando notavam estar sendo observados. Placas de madeira penduradas traziam os nomes de pousadas e tabernas, de quando em quando uma oficina de artesão. Trabalhos em couro, metal, jóias; facas e espadas com o cabo ricamente trabalhado em prata, outros com pedras incrustadas. As casas eram na sua maioria de madeira, com dois pisos. Portas e janelas sempre abertas. As portas eram pintadas, coloridas ou com entalhes na madeira. O aspecto geral era bem rústico, porém muito aconchegante. Seguindo em frente deparei com uma construção

majestosa, toda de pedra com várias torres: era o castelo. A cidade havia crescido em sua volta.

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Resolvi encerrar meu pequeno passeio. No caminho de volta entrei numa taberna. Minha dúvida sobre o que pedir foi solucionada quando o taberneiro me atendeu - Quer uma cerveja?

Enquanto bebia revi minha situação. Não sei onde estou e nem sei como voltar. As prioridades básicas estavam resolvidas: um mês de estalagem e comida pagas. A vontade de voltar contrapunha-se à curiosidade de conhecer um pouco mais daquele povo.Precisava encontrar novamente com Joran. Pagar a moeda que havia me emprestado e também saber mais sobre este lugar e como voltar para casa. Com esses pensamentos na cabeça levantei-me e sai.

11.Taberna do Porco FaladorAndei alguns passos e parei, esquecera-me de pagar. Quando voltei, o taberneiro perguntou - outra cerveja?Sentei-me junto ao balcão. Enquanto bebia a segunda caneca disse-lhe que estava tão distraído

que sai sem pagar. - Ah.- Porque não me chamou? Você não se preocupa que as pessoas saiam sem pagar?- Claro que não, quem sai sem pagar faz como você, volta depois e paga.- Mas, e se não voltar?- Como se não voltar? Sempre voltam, pois se tem que pagar.- E se não quiser pagar, sair e não voltar mais?- Isso não faz sentido, se a pessoa comeu ou bebeu, vai pagar o que consumiu. Se beber umas

vinte canecas, provavelmente vai esquecer-se de pagar e talvez até o caminho de casa - troçou enquanto recolhia as canecas sujas do balcão - mas no dia seguinte se lembrará.

- Entendo. Mas mudando de assunto, você conhece um artesão chamado Joran?- Todos no Castelo o conhecem, provavelmente todos do Lugar. Quase todo final de dia ele

aparece aqui, senta-se naquela mesa do canto. Venha ao entardecer, poderá encontrá-lo e provar nosso delicioso gato assado.

- Preciso falar com ele agora, sabe aonde posso encontrá-lo?- Esta hora deve estar em sua oficina, siga a rua principal e vire a esquerda na alameda dos

artesãos. É na primeira via.- Obrigado, joguei uma moeda para pagar as cervejas e recebi uma infinidade de pequenas

contas de troco. - Volte à noite se puder.

12.Alameda dos ArtesãosÉ uma rua estreita, quase exclusiva de oficinas. Encontramos ali todo tipo de trabalho em prata,

pedra, couro, osso e madeira. Algumas lojas de roupa, outras de variedades e muitas de ervas, raízes e poções. Poucas tabernas, menos que na rua principal. A maioria das lojas e oficinas são estreitas e compridas com mostruário dos trabalhos na parte externa. As placas de madeira penduradas com o nome da loja, todas decoradas ou entalhadas dão um colorido especial à alameda. O que mais chamou minha atenção foram os nomes: “o Porco Falador”, “o Assobio do Morcego”, “Chifres e Dentes”, “o Ganso e a Grelha”, “a Macieira”, “a Cajazeira Sagrada”.

Subi e desci a alameda sem encontrar a oficina de Joran. Voltei à rua principal e resolvi andar um pouco, no sentido contrario do Castelo, para o sul.Fui até o final da rua. Em trinta minutos de caminhada cheguei a um portão de pedra que marca o limite da cidade.

13.Fora da CidadePassando pelo portão de pedra não se ouvia mais o burburinho da cidade, os sons agora eram do

vento, das folhas e dos pássaros. Várias trilhas se cruzavam na relva baixa. Continuando para o sul, num declive, podia avistar um bosque, não muito longe. Uma brisa suave tornou minha caminhada mais agradável. Os sons vindos do bosque eram exuberantes, nunca havia visto tamanha variedade de pássaros juntos. Ao fundo o ruído de um riacho. Reconheci Portão Sul

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alguns pássaros, outros me eram completamente estranhos, de cor e plumagens diferentes. Pendurados nas copas das arvores, uma espécie de morcego vermelho muito maior que os que eu já vira. Desci por um carreiro até o riacho. A água límpida corria lenta da margem e mais rápido no centro, entre as pedras. Sentei-me numa pedra, com os pés na água. Estava tão absorto olhando os pássaros que só notei a presença de Vency atrás de mim quando ela falou- Eu também gosto muito deste riacho. Sempre venho aqui quando quero fugir do barulho da cidade.

- É, é muito tranquilo aqui, ouvir os pássaros, o som do riacho. Na minha terra também tinha alguns lugares aonde eu ia quando queria relaxar ou pensar sobre alguma coisa. Deve ter sido o instinto que me trouxe até aqui. Precisava refletir, estou confuso, tem muita coisa na sua sociedade que eu não entendo.

- O que você não entende? Tudo é tão simples, claro.- Por exemplo, vocês não têm leis? - Que tipo de leis? Para que? Ela sempre parece intrigada com as minhas perguntas, como se fossem as coisas mais absurdas

do mundo.- Para as pessoas fazerem as coisas corretas, como devem ser.- As pessoas fazem as coisas corretas. Como devem ser. Não vejo a lógica em ter uma lei que

obrigue as pessoas a fazer o que ela já fazem. Está vendo o riacho? A água corre para o mar. Não é preciso ensinar ou mandar que seja assim. Assim é o correto.

É difícil conceber esse modo do povo agir, e eu insisto na discussão - mas não existem casos onde haja dúvida, onde duas pessoas tenham opiniões diferentes e não cheguem a nenhuma conclusão?

- Muito raramente acontece e então pedem auxilio ao Conselho dos Elderes. - São algum tipo de governantes? - Não, são anciões, sábios, dão conselhos. - E se alguém não aceitar os conselhos, achar que não está correto?- Por favor - ela responde exasperada - como alguém acharia que um conselho das pessoas mais

antigas e experientes poderia ser errado? Talvez os anciões saibam algo sobre as passagens, pensei. Mais animado perguntei-lhe - e onde

esse Conselho se encontra? Tem reuniões regulares? Se eu quiser falar com um Elder preciso marcar antecipadamente?

- Basta ir à Taberna “A Gruta” ao entardecer, eles sempre se reúnem lá para cantar, contar histórias e beber cerveja.

- Não era esse tipo de reunião que eu estava imaginando, pensei que fossem figuras reservadas, que fosse complicado falar com um Elder.

- Pelo contrário, eu falo com um todo dia - e sorrindo completa - meu marido é o mais antigo dos Elderes.

Retornamos conversando sobre a vida no Lugar. A cada resposta surgiam inúmeras outras dúvidas. Chegamos à estalagem quando o almoço estava sendo servido.

14.ElderesApós almoço Vency me apresentou a seu marido. Hermif era um homem velho. A pele enrugada

demonstrava a idade, porém seu ar era jovial e alegre como Vency, apesar de ter pelo menos uns trinta anos a mais que ela. Conversando sem pressa demonstrava grande segurança e conhecimento. Senti-me a vontade com ele, é o tipo de pessoa em quem se confia ao primeiro contato. Riu muito quando o chamei de senhor, e explicou que títulos não são usados no Lugar, que o chamasse apenas pelo nome. Quase nada me esclareceu sobre as passagens, mas conversamos bastante sobre a vida e as leis (ou a ausência destas) do Lugar.Diante de minhas infindáveis perguntas, ele explica- As pessoas mais antigas e experientes são convidadas a compor o Conselho dos Elderes. Nem todos aceitam, alguns por ainda terem muito trabalho ou por qualquer outro motivo. Ser um Elder não significa nada. Não recebemos nada por isso, não mandamos em ninguém, apenas damos conselhos. O povo nos trata com muito respeito, como trata qualquer ancião. Atualmente na Capital somos treze Elderes, mas o número é variável. Quase não temos trabalho. Pelo que me lembre, a última grande disputa foi no ano do alinhamento das três luas, na Guerra do tomate.

- Não acredito - exclamei - então vocês tiveram uma guerra?- Sim, há muito tempo atrás - e uma sombra de pesar surgiu no rosto de Hermif. Olhando pela

janela, observa a altura do sol e levanta-se.

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- Desculpe, mas agora tenho um compromisso, outra hora terei prazer em contá-la para você. E saiu rapidamente.Encontrei Joran somente no dia seguinte. Paguei-lhe a moeda agradecendo o empréstimo,

porém, sobre as passagens, quase nenhuma informação obtive.

15.A Guerra do tomateAcabei adquirindo o hábito dos lugarianos - uma parada em alguma taberna ao final do dia. As

minhas preferidas eram “o Porco Falador” reduto dos artesãos, onde servem a melhor carne de gato do Lugar e “a Gruta”, mais alegre, com a invariável música de flauta dos Elderes e a presença quase constante de Hermif com quem sempre gosto de conversar.

Nesse dia havia resolvido variar; fui com Hermif, Vency e Joran ao “Assobio do Morcego”, cuja especialidade é obviamente asa de morcego ao molho. Já tínhamos sido servidos quando Joran pediu um pouco mais de molho. - O tomate de Kazin dá um gosto especial ao molho, não acham? E pensar que um tomate quase arruinou duas cidades.

Meses haviam passado desde o dia que Hermif mencionara a Guerra do Tomate. Tinha me esquecido completamente da história.

- Eram tempos diferentes - prosseguiu Hermif - as pessoas eram mais impetuosas, menos controladas. O avô do meu avô ainda era criança. Foi no ano do alinhamento das três luas. Alguns dizem que foi justamente esse alinhamento que causou a pior colheita de tomates de toda historia de Kazin. Mas, em contrapartida um tomateiro localizado entre Kazin e a Capital, produziu os maiores tomates já vistos. Um morador da Capital, julgando que o tomateiro estava fora das terras de Kazin, colheu e comeu o maior dos tomates. Tinha quase um palmo de largura. Num ato inusitado, os Kazinianos o prenderam, causando revolta aos capitais. Hoje penso se essas alterações de comportamento não foram devido às luas, enfim, isso nunca saberemos. Um grande grupo armado saiu da Capital chegando às portas de Kazin. Com grande alvoroço Kazin se arma e prepara-se para receber os invasores. Os dois exércitos se aproximam e quando a batalha parecia inevitável, Serge Almor aparece entre as duas tropas. Completamente nu. Os dois exércitos hesitam. A quem pertence aquele homem? Ninguém arrisca a atacá-lo. Ele grita entre os dois esquadrões- Sem uniforme sou igual aos dois lados. Sou lugariano, sou de Kazin e sou da Capital -suas palavras ecoam entre todos. Lentamente abaixam suas armas. Arcos, flechas, espadas e machados são colocados no chão. Finalmente a razão, os Elderes são chamados. Com tudo resolvido, todos retornam as suas casas levando a vergonha como troféu.

- Ao menos essa guerra não teve vítimas - refleti.- Morreram duas pessoas - disse Joran - o que comeu o tomate, de diarreia e um estrangeiro que

subiu em uma árvore para ver a possível batalha, caiu e quebrou o pescoço.- E Serge Almor? Ele deve ser considerado um grande herói pelo seu povo, não?-Não - continuou Joran - ele teve um momento, um ímpeto de bravura, isso é reconhecido,

naturalmente, mas os verdadeiros heróis são outros. São aqueles que vivem o dia a dia corretamente, que não tem apenas um minuto de bravura, mas uma vida inteira de coragem e retidão. Nossos maiores heróis são nossos Elderes. São sábios, experientes, nossos verdadeiros exemplos. Se suas palavras tivessem sido ouvidas não teria existido esse confronto.

Terminamos nossa asa de morcego e voltamos silenciosos para casa.

16.Como consegui minha históriaEu sempre serei o estrangeiro, ou, como eles me chamam: Foras. Mas apesar disso, me tratam

bem, são hospitaleiros e me aceitam nas rodas de conversas e dos contadores de historias. Cada um tem uma história, e somente quanto tive a minha é que realmente passaram a me aceitar como igual. Foi a partir do dia que consegui meus primeiros dentes de perin, que estão em meu colar. Ao entrar na taberna sempre alguém me chama - Foras, conte de novo como conseguiu esses dentes de perin.

E pela milésima vez eu conto - Eu estava visitando os arredores do Lugar - comecei -o dia estava quente, próprio para um passeio e um banho no lago pequeno. Depois do banho deitei na relva para me secar ao sol. Acabei adormecendo e quando acordei já havia esfriado um pouco. Resolvi me vestir para voltar. Somente tinha colocado o sapato - na verdade, um mocassin local, bastante frágil - quando vi aquela bola espinhenta e lembrando-mede um jogo muito popular em minha terra, onde se chuta uma bola, corri e chutei o perin. Dentes voaram longe, mas ele mordeu meu pé. Ficou preso, perfurando o

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sapato e meu pé junto. Eu corri gritando, entrei na cidade, nu, com o perin grudado em meu pé, até que bateram com uma clava arrancando-o. Ele rolou rápido, fugindo da multidão que se formava. Passado o vexame, no dia seguinte, voltei ao local para buscar minhas roupas e achei os dentes espalhados.

Na taberna, o som ensurdecedor de canecas de cerveja batendo na mesa e pés no chão, alguns caem para trás de tanto rir. E cantam em coro - Foras, o chutador de perins - outros, sem notar meu constrangimento, ou sem se importar com isso, gritam - viva Foras, o pequeno!

17.Chifres e DentesPassados seis meses, ainda não tinha a mínima ideia de como voltar. Não obtive muitas

informações sobre as passagens, pouca gente sabia de sua existência, sem saber sua localização exata e sem certeza do destino. Com pouco dinheiro e já tendo vendido a jaqueta toda, precisava arrumar uma ocupação. Andando a esmo pela capital, acabei parando em frente a uma loja, “Chifres e Dentes”. Ao contrario das outras lojas, esta era abafada e sombria. Nas prateleiras havia uma infinidade de frascos, poções, plantas secas, pós de todas as cores; tudo coberto por uma generosa camada de poeira. No fundo da loja, um homem muito velho, em uma escrivaninha, debruçado sobre um pequeno livro, mal deu atenção à minha pessoa. Chega a ser irritante a impassividade desse povo! Reconheci alguns dos artigos das prateleiras: um frasco com o pelo vermelho dos grandes morcegos, alguns amuletos que lembravam muito o trabalho de Joran, um pote com dentes de perin, outros estranhos como lascas de bico de ptrix. Tentei puxar conversa perguntando o preço dos dentes de perin e sem levantar a cabeça, o Velho resmungou - uma moeda cada - cheguei mais perto para ver o que ele lia. Um pequeno livro vermelho embolorado e quase se desfazendo. Sob a luz tênue de uma lamparina pude reconhecer algumas fórmulas, em francês, que eu tenho um parco conhecimento.

Tentei ler - Matricaire, prep. Thérap. - stimulant léger, stomachit, carminatif, antispasmodique. Prep. Pharm. ET posol. - A l’int. eau distilée, 30 à 100 grammes en potion - huille essentielle, II à VI gouttes en potion - infusion, IV à X gouttes p. 1000 - A l’ext. decoction ET infusion, 10 à 30 gr. Pour 1000, enfomentations, injections.

Parece que chamei a atenção do Velho. Ele ergueu a sobrancelha e me perguntou - Você entende o que está escrito?

Olhei a capa em tecido vermelho, o titulo dourado quase sumido: Formulaire Pratique de Thérapeutiqueet de Pharmacologie. Ancien Formulaire de Dujardin-Beaumetz. Paris. 1914.

- Sim, alguma coisa eu compreendo, é um formulário de remédios.- É claro que é um formulário de remédios - impacientou-se ele - isso eu sei, quero saber se você

pode traduzir o que tem nele. O que você acabou de ler?- Matricária, preparação terapêutica, estimulante suave, stomachit- deve ser do estomago, acho.

Carminatif,nem imagino o que seja, e antiespasmódico.- Muito bem meu garoto, já é muito mais do que eu consegui. Esse livro está em minha família a

gerações sem ser decifrado. Do tempo em que o avô do meu avô era criança 2. Dizem ter sido trazido por um forasteiro quando minha família ainda morava em Despen. Se quiser me ajudar na tradução eu posso pagar pelo seu trabalho.

Fiquei de dar a resposta em um ou dois dias e sai da loja cantarolando. Acabara de ter outra ideia para sobreviver. Além da possibilidade de trabalho com o Velho, o preço dos dentes de perin era bastante alto. Eu poderia caçar perins. Bom, já tinha duas opções. Estava bem melhor do que de manhã.

18.Meios e FinsEstava ansioso para falar com Hermif sobre as novidades. Procurei-o na estalagem sem sucesso.

Só à tardinha, na “Gruta”, o encontrei com seus pares.Puxei-o até uma mesa de canto e excitado falei as minhas possibilidades. Ele ouviu-me calado e só quando terminei, com sua voz calma, porém claramente descontente, ponderou - Você fala em matar perins apenas para tirar-lhes os dentes? A morte faz parte de nossa vida, não devemos ter medo ou fugir dela, mas também não devemos causá-la sem necessidade. Tudo tem seu lugar e sua ordem, embora nem sempre tenhamos entendimento completo disso. Nem mesmo o perin que o mordeu foi morto, lembra-se? Havia muitas pessoas, mas assim que

2“Quando o avô de meu avô era criança”, sempre usam essa expressão para indicar um tempo muito antigo, perdido no tempo, não é alusão ao tempo exato.

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ele não ofereceu mais perigo, deixaram que ele escapasse. Vou contar-lhe uma história acontecida há muito tempo.

19.O Homem que queria ser ElderHouve uma cidade próxima a Despen, Esplendor, também chamada de Cidade das Flores. A

cidade era pequena, porém de extrema beleza. Ao nos aproximarmos, entravamos por campos com imensas plantações de todos os tipos de flores. A mistura das cores em movimento constante causado pelo vento lhe dava um aspecto gracioso, como um quadro vivo. Praticamente toda sua população vivia em função do plantio e colheita. Suas flores enfeitavam festas em cidades distantes. As casas eram brancas, com floreiras embaixo das janelas. Diziam que Sintor, o Deus dos prazeres morava lá. Exposições permanentes aconteciam nas praças públicas. Claro que tamanha quantidade de flores atraia muitos insetos, abelhas, e um especialmente ruim, o picador malhado. Um inseto de uma polegada, laranja e preto, cuja picada provocava uma vermelhidão e dor intolerável durante dois dias, e mais dois dias de coceira até que secasse.

Um homem, Xris Torben, desejava ardentemente ser Elder, porém nunca fora convidado. Nunca entendi porque ele queria ser Elder, enfim, cada qual com sua mania. Ele resolveu fazer algo que jogasse a população contra os Elderes, forçando-os a mudarem de opinião. Descobriu um veneno que mataria todos os insetos, exceto as abelhas, importantes para a polinização das flores. Foi aclamado pela população e seu veneno espalhado pela cidade e arredores. Durante três meses todos se viram livres dos insetos. Mais três meses de paz e um estranho acontecimento. Pequenos montículos começaram a se formar entre as plantações. Embora não fosse um Elder, Xris era ouvido por todos, suas sugestões aceitas sem hesitações. Até o dia do cataclismo. Os montículos se abriram e milhares de picadores malhados saíram. Aparentemente o veneno os desenvolveu, cresceram até quase cinco polegadas de comprimento. Passaram a se alimentar das flores contaminadas pelo veneno. Suas picadas agora causavam paralisia, dores atrozes e até morte em alguns casos. Muitos fugiram nos primeiros ataques. O restante, quando acabaram as flores. O único a ficar na cidade foi Xris. Conta-se que viveu na cidade abandonada até o fim de sua vida, arrastando-se devido à paralisia de uma perna. Finalmente pode ser Elder. E o pior, sua mutação perpetuou-se, até hoje ainda existem os grandes picadores malhados na região.

- Acho que você tem razão, Hermif, ainda estou impregnado de idéias de minha terra, preciso rever meus padrões e a influência cultural sob a qual cresci.

- Não, rever suas idéias não vai adiantar, vão continuar iguais sob uma capa de mudança. É preciso eliminá-las. Então você poderá enxergar o que é real. Pergunte a Joran, que é um artista, não se pinta um quadro novo sobre um velho para corrigi-lo, é necessária uma tela em branco. Só assim poderemos ter um trabalho novo, perfeito. Mas chega dessa conversa. - Taberneiro, grita, - mais cerveja... Vamos cantar.

20.Nova rotinaAcordei decidido. Tomei um copo de eujo rápido e fui ver o Velho. Não foi preciso muita

negociação. Ele foi bastante direto - Duas moedas por semana é o que posso oferecer. Pode trabalhar na tradução de manhã ou à tarde, como lhe convier.

Pareceu-me bom, gasto uma moeda por semana, economizo uma também. Essa foi minha rotina nas semanas seguintes. De manhã, na “Chifres e Dentes” tentando traduzir o livrinho empoeirado. O Velho acompanhava, dava alguns palpites. E acabávamos conversando sobre o Lugar. Eu estava muito interessado em saber mais sobre as passagens. À tarde eu dava uma caminhada até o rio ou ao lago pequeno, ou andava conhecendo melhor a capital e ao anoitecer, uma passadinha em alguma taberna. E assim o tempo ia passando lentamente.

21.Ciúmes

Picador malhado

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Já estava trabalhando na tradução há três meses; voltei cansado, com um pouco de dor de cabeça. Resolvi nem almoçar, fui para meu quarto e quando estava quase dormindo bateram na porta. Antes que eu me levantasse da cama, Vency entrou com sua alegria irradiante.

- Você anda sumido Foras. Nem foi almoçar - falou sentando-se ao meu lado.- Estou um pouco cansado. - Ah, desculpe, não queria lhe atrapalhar, pensei que você podia estar passando mal - levantou-se

fazendo menção de sair.- Não, fique, você nunca incomoda.Ela sentou-se sorridente. - Me diga uma coisa Vency, Hermif não tem ciúme de você?- Ciúme? Não conheço essa palavra, o que significa?- Vou tentar explicar. É o medo de perder a pessoa que se ama. É difícil de dar um significado

exato. Por exemplo, Hermif poderia não gostar de você vir ao meu quarto, ou de ficarmos conversando muito tempo.

- Mas por que isso? Como pode uma pessoa perder outra? - Não é perder como se perde um objeto, mas perder o afeto, não querer que essa pessoa goste

de outros.- Mas isso é ilógico, porque eu não poderia gostar de mais alguém? O que isso comprometeria

meu relacionamento com Hermif? E o que o fato de nos encontramos poderia afetar de alguma forma?- No meu mundo isso tem muito a ver com a parte sentimental e sexual. De você deixar de ser

dele.- Mas eu nunca fui dele assim como ele também não é meu. Aqui no Lugar, ninguém é dono de

ninguém. Temos um relacionamento, é bem diferente.- Eu sei, é apenas o modo de falar, mas mesmo assim ele poderia achar que você gosta de mim e

não gostar disso. Sua companhia me agrada muito, mas até evito um pouco por gostar muito de Hermif também.

- Foras, ele sabe que eu gosto de você, e não se importa nem um pouco. Deixe-me esclarecer, Hermif é um homem velho, temos um relacionamento maravilhoso, de amizade e companheirismo, mas mesmo que não fosse assim, ele jamais tentaria me prender ou impedir que eu gostasse de mais alguém - falando isso, ela levantou-se e beijou-me delicadamente nos lábios- entendeu?

Antes que eu falasse qualquer coisa ela saiu. Francamente, eu não entendi absolutamente nada. E minha dor de cabeça piorou.

22.DivindadesA taberna do Porco Falador estava quase vazia. O sol baixava e a luz arroxeada das luas

atravessava os vitrais provocando um efeito feérico. Eu e o mestre artesão bebíamos em silêncio nossa cerveja. Ele brincava passando entre os dedos um osso entalhado com a imagem de uma mulher alada.

- Bonito esse entalhe, quanto custa?- Não é para vender, é um amuleto da Deusa Aileem, é pessoal, sempre o carrego comigo.-Quem é Aileem?- Uma das quatro Deusas gêmeas. Protege nosso sono e sonhos.- É a deusa maior de vocês?- Não, é uma das Deusas, existem muitos Deuses e Deusas, nenhum maior ou menor. No início

eram poucos Deuses, depois nasceram as quatro Deusas Meninas e depois outros.- Como? Não entendi.-No inicio, eram apenas os jovens Deuses e Deusas vivendo no Lugar. Oito Deusas e oito Deuses.

Depois, a Mãe teve quatro filhas, as quatro Deusas gêmeas, as cuidadoras. Elas nasceram ao mesmo tempo, nos quatro cantos do Lugar. Athis perto do mar, Leria, onde hoje é Despen, Trosiana em Kazin e Aileem em Kho-zy, claro, as cidades não existiam ainda nessa época. Athis cuida do mar, dos rios, das plantas e dos animais, é a mais terna e amorosa entre todas as Deusas; Leria, das montanhas, das pedras, das chuvas e dos relâmpagos; Trosiana, a Deusa da noite e das três luas e Aileem, a última das irmãs, a Deusa dos sonhos.

-E quem é o pai das quatro deusas? -Ninguém sabe, e todos os Deuses ficaram tão exultantes com o nascimento que todos parecem

ser o pai. E todos cuidaram delas em sua infância como um verdadeiro pai faria.

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-E quem era a mãe? A mesma mãe dos deuses jovens?-Não... Era uma das Deusas jovens, a Mãe.-E porque a chamam de “a mãe”?-Porque ela teve quatro filhas, ora.-Ah. E as deusas protegem o povo? -Sim, o povo, a vegetação, os animais, as montanhas...-As montanhas? Por quê?-Porque são muito importantes, você já imaginou se o Lugar fosse todo plano, os rios não

correriam, não teríamos água ou seria tudo alagado.-Ah... - “sem estar muito interessado na lógica do raciocínio”- e a última deusa, Aileem, a dos

sonhos, o que ela faz?-Ela cuida dos sonhos, nos mostra caminhos e manda mensagens por eles, quando Aileem sorri,

temos um sonho bom.-Sei, e quando vocês têm pesadelos?-São apenas pesadelos, daí não é Aileem!Já se irritando, Joran continua - Aqui temos um ditado: “quando um contador fala, quem houve

se cala!”“Quando ele estiver menos irritado, preciso perguntar como as deusas gêmeas nasceram em

lugares diferentes, pensei comigo”.- Elas são as Deusas mais veneradas, mas Todos são importantes, cada Um tem a sua

característica e cada pessoa tem empatia com um ou mais Deuses. Os Deuses com maior ligação com as Deusas meninas, além da Mãe, é óbvio, são Mebo, Erlick, Gargar e Sintor.

O pequeno Mebo, o Deus perneta da sorte, foi um dos mais presentes, sempre cuidando e brincando com as quatro Deusas.

O Jovem Erlick vive escondendo coisas; colocamos um objeto aqui e quando percebemos está em outro quarto. Escondia as bonecas das Deusas meninas, depois trazia um favo de mel para compensar a brincadeira.

Gargar, o sorridente, nos faz rir de tudo, se caímos sentado na lama, antes de nos irritarmos, Gargar nos mostra a graça e acabamos rindo.

Sintor ensina o prazer dos sentidos, de um cheiro, o prazer de morder uma maçã, sentir seu sabor, o prazer de observar algo belo.

-Me parece que seus deuses homens não são tão importantes como as deusas. São apenas irreverentes e brincalhões.

-Você está enganado, as Deusas nos protegem, os Deuses nos alegram. Não apenas celebramos a vida, mas a alegria de viver.

Depois de falar mais sobre seus deuses, eu brinquei que seria bom se Aileem me ajudasse, pois sempre tive muita insônia e ultimamente estava muito pior. Joran pegou o amuleto, passou um fio por um pequeno buraco na parte superior e entregou-me - use no pescoço, vai ajudar.

Diante da seriedade de Joran e com receio de ofendê-lo, não tive alternativa, coloquei o amuleto no pescoço.

23.Morada dos Deuses-Vocês não têm igrejas, Joran, onde rezam, onde vivem os deuses?- Alguns gostam de carregar pequenas imagens de seus Deuses preferidos, mas não temos

templos ou como você diz, igrejas, para encontrá-los. Eles estão na natureza, na claridadee nas trevas, no tímido raio de luz que transpõe a floresta densa e sombria, no murmúrio dos ventos, na serenidade dos bosques, em todo lugar. Conversamos com Eles nos sonhos. Eles nos sussurram quando estamos sós. Ninguém sabe ao certo aonde eles vivem fisicamente. Alguns acham que em uma terra ligada ao Lugar por passagens, assim estariam em constante circulação entre o Lugar e sua morada. A maioria, porém, acredita que Eles vivem entre nós. Podemos reconhecê-Los na criação, em todas as coisas, nas cores, nos cheiros, na vida em geral.

- Na minha terra, a maioria das religiões tem livros sagrados, com ensinamentos a serem seguidos, aqui vocês tem algo parecido?

- Apenas uma mensagem, duas palavras. Nós chamamos de “O que foi dito”: Nunca Prejudicar. Não prejudicar os outros, não prejudicar a si mesmo, não prejudicar a natureza. Mas isso não precisaria

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ser transmitido pelos Deuses, pois é evidente a qualquer pessoa. A verdade nasce conosco, não precisa ser ensinada. Se tivermos dúvida, basta lembrar: o certo é simples e alegre.

24.Sono e SonhosPode ter sido efeito placebo, mas a partir daquela noite não tive mais insônia. Meus sonhos

tornaram-se vívidos. Toda manhã lembrava-me claramente do que sonhara a noite. Sonhava frequentemente com os deuses de Joran. Podia visualizá-los como Joran havia descrito, e em outras situações também. De todos, quem mais aparecia em meus sonhos era Aileem. Sempre na penumbra, lindíssima, quase uma menina, sua pele morena exalava o frescor da juventude, longos cabelos pretos e um par de asas negras. Outra mudança aconteceu, eu passei a acordar com melhor disposição e mais bem humorado. E com mais fome. No meu último sonho ela prenunciou - Não se preocupe Foras, eu o conduzirei aonde você desejar ir.

25.APassagem, o Mapa e o LoucoO trabalho de tradução estava chegando ao fim. Eu e o Velho conseguimos traduzir quase oitenta

por cento do livro. Ele estava exultante com o resultado, pois essa tradução o ajudaria muito em seu trabalho. Além das vendas e de poções ele fazia alguns tratamentos. Ao mesmo tempo em que fazíamos as traduções, eu repassava a ele o pouco conhecimento que eu tinha sobre fitoterapia, que ele anotava rapidamente em um caderninho ensebado.

Mesmo após o término da tradução, o Velho fez questão que eu continuasse trabalhando na loja, eu o ajudava na organização, limpeza e aprendia muito sobre poções e magia. Aprendi que magia não é uma ciência exata, mas que se executada com precisão, seus efeitos raramente falham. Demorou semanas, mas aprendi a fazer fogo usando pó-voraz. O segredo está na proporção de sal das grutas, madeira queimada e musgo mineral amarelo, também encontrado nas grutas. Sempre que saía em meus passeios fora da cidade, aproveitava para treinar. Assim como o Velho, eu também tinha um pequeno bloco onde anotava as fórmulas que aprendia. Carregava sempre comigo, junto com outro caderno onde escrevia uma espécie de diário e fatos acontecidos aqui no Lugar.

Houve um dia em que um comentário dele me deixou entusiasmado. Pelo que se sabia, apenas uma vez, um lugariano passou por uma passagem e voltou. E essa passagem ficava próxima da tribo dos Irmãos da Folha, no extremo oeste do Lugar. Ele passou a vida procurando a passagem para encontrar os Deuses e ironicamente a única passagem que encontrou o levou ao que ele mesmo chamou de “terra dos demônios”. Deixou um mapa da região da passagem, e outro de símbolos e cores. Foi a única coisa que esse pobre homem fez após voltar. Nunca mais falou nada coerente. Sempre assustado, balbuciando coisas ininteligíveis sobre essa terra dos demônios, animais de metal, casas empilhadas.

O Velho deixou-me copiar os mapas,que eram bastante rústicos. O primeiro era óbvio, uma indicação na região de Kho-zy, mas o segundo eram apenas três triângulos coloridos e ele não tinha a mínima ideia do que significavam.

26.Pequenas AleivosiasA única pessoa que demonstrava alguma curiosidade sobre meu mundo era Vency. Companhia

constante pela manhã, ela me perguntou enquanto eu tomava um copo de eujo com pão- como são as mulheres de sua terra, Foras?

- Não são muito diferentes das daqui, algumas trabalham como você, outras cuidam de casa e dos filhos.

- Usam roupas parecidas com as daqui?- Usam vestidos sim, mas também usam calças como os homens.- Que estranho, e os homens lá usam vestidos como as mulheres? - Não - respondi, sem conter o riso - mas tem uma grande diferença de vocês. Com relação ao

que usam no rosto. As mulheres se enfeitam mais. Batom para deixar o lábio vermelho, pintura para o rosto, pintura para os olhos, deixar os cílios maiores e mais pretos, tintura para mudar a cor dos cabelos e perfumes, uma infinidade de perfumes.

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- Porque isso? - Apenas para ficarem mais bonitas. - Então elas fingem ter outra pele, ou a cor do cabelo diferente do que é, ou até o seu cheiro?- É, é mais ou menos isso.- Mas vocês sabem que elas são diferentes do que aparentam e que não estão na realidade mais

bonitas do que são?- Sim.- E elas sabem que vocês sabem?- Claro. Mas Vency, aqui as mulheres também se arrumam, usam vestidos decotados, coloridos,

fitas ou flores nos cabelos.- Mas todos sabem o que tem dentro dos vestidos, não tentamos enganar ninguém fingindo ser

diferente do que realmente somos - sentenciou Vency, pondo fim a uma conversa sem sentido.

27.FestasEsse é um tema bastante apreciado no Lugar. Tudo é motivo para uma festa. As festas são

simples, mas muito alegres, são reuniões nas tabernas ou no campo à noite, ao redor de fogueiras, com música, dança e muita cerveja.

Nessa noite fui com Vency e Hermif a uma festa no pórtico de entrada ao sul. Uma grande fogueira ardia. Muitas pessoas já estavam no local e não parava de chegar mais. Comemoravam o início da colheita da cevada. Uma estátua de Liline tinha sido trazida ao local. A jovem Deusa dos grãos florescidos era muito amada também por ser a mãe de Ugg, o Deus da cerveja. Não havia um frequentador das tabernas que não carregasse no bolso uma pequena imagem de Ugg, “para não faltar”, diziam eles. Rodeando a fogueira, os primeiros grãos eram atirados em oferenda. E continuavam rodando e cantando e rodando e cantando. Já avançada a noite, os Elderes presentes se reuniram e prepararam-se para tocar. Quando tocaram, era uma música de flauta, sem letra, só melodia, muito animada, me fez lembrar o flautista de Hamelin. Durou mais de quinze minutos, e as pessoas (todas as pessoas) velhos, jovens, crianças se abraçavam e abanavam lenços ou chapéus e dançavam de um jeito muito engraçado, batendo os pés e as mãos. Depois se deixavam cair exaustos, sentados ou deitados na relva. Aos poucos, todos vão se retirando, exceto os que abusaram da cerveja e já dormem a sono solto.

28.UggAcordei com o sol alto e me permiti ficar na cama aproveitando a sensação gostosa de preguiça.

Com a tradução terminada, não tinha mais compromisso pela manhã, e nem pela tarde, pensei sorrindo. A festa foi muito boa, me diverti bastante. Voltamos abraçados e cantando. Nem me lembro de ter chegado ao quarto.

À tarde, na taberna “A Gruta”, conversando com os Elderes uma dúvida me martelava -a imagem de Ugg é extremamente parecida com a de um grande profeta de meu mundo. Alguns o consideram um deus, outros, um filósofo, mas todos concordam com sua grande sabedoria.

- Esse seu Deus bebia muita cerveja?- Uhh, acho que não. Não sei ao certo.- Eles riram - com essa barriga, difícil não ser de cerveja. E se era tão sábio, com certeza bebia.- Vocês não deviam zombar assim de alguém que pode ser um deus.- Você não entendeu, não estamos zombando. Mas se as divindades são realmente divindades,

devem ser primeiramente alegres. Não é lógico que um Deus não seja alegre. Um homem do seu mundo, chamado Niti, disse: “Não acredito em um Deus que não saiba dançar”. A verdade, Foras, está escrita em todos os mundos.

- A história – disse Talarik, o mais novo dos Elderes - nos narra que Ugg não é realmente filho de Liline, mas um forasteiro que chegou ao Lugar e foi adotado por ela. Logo que chegou aqui, não entendia nossa língua e ninguém entendia o que ele falava. A única que o entendia e conversava com ele era Liline e muito tempo passou até que pudesse se comunicar com a população. Apesar da diferença de língua, ele era gentil com todos e sempre tinha uma palavra de alento, mas era radicalmente contra todos os prazeres e levava uma vida de privações, dizendo que só assim chegaria à iluminação. Logo se tornou muito querido na comunidade, embora ninguém aceitasse essa história de privar-se dos prazeres. Não se sabe se foi por influência de Liline, ou realmente pelo sabor, acabou tomando gosto pela cerveja, e lentamente suas idéias mudaram. Integrou-se perfeitamente ao Lugar. Percebeu que a verdade estava no meio e não nos extremos. Que o prazer não é errado, e que tudo

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deve ser moderado. Ensinou aos camponeses, técnicas de cultivo e colheita de diversos grãos e fabricação de algumas bebidas. Auxiliado por Liline, seus grãos floresceram e o povo teve colheitas fartas. Foi uma época de grande abundância. Conta-se que atingiu então a iluminação que tanto almejava e nunca mais foi visto no Lugar, dizem que foi levado para junto de Liline, indo morar com os Deuses.

29.Manhã do dia 500Acordar no Lugar sempre é prazeroso. O despertar é lento, com os primeiros raios de sol

brincando sobre seu rosto e o cantar dos pássaros em sua janela. Após uma boa noite de sono, o corpo pede para sair da cama, revigorado. Hoje, sem motivo, me vieram à lembrança cenas de minha vida anterior.

Pouco mais de um ano se passara e eu raramente me lembrava da antiga rotina. Acordar as 6:00h com o despertador, tomar um cafezinho rápido enquanto me arrumava e me barbeava. Enfrentar o trânsito caótico. Chegar já irritado ao escritório. Do alto do vigésimo terceiro andar podia avistar a cidade toda, mas nem reparava a beleza da vista. O micro já ligado pela secretária e a pilhas de papéis e cartas para resolver. Um olho nos papéis, outro nas cotações da bolsa. A euforia por uma jogada, nem tão honesta, mas muito lucrativa. Um almoço rápido de quinze minutos e a volta ao escritório. O maravilhoso pôr do sol apenas me lembrava de que novamente teria que enfrentar o trânsito. Já noite, finalmente estava em casa, exausto. Um cálculo mental rápido do lucro do dia. Antes de terminar a conta já estava dormindo. Agora a última batalha, enfrentar meus demônios noturnos. Acordar de madrugada ensopado de suor. Engolir uma pílula para poder voltar a dormir. E mais um dia “vitorioso” que acabou.

Enquanto me vestia, sentindo o agradável aroma do desjejum sendo preparado na cozinha, ponderei, preciso mudar muita coisa se voltar.

30.Tarde do dia 500Logo após o almoço Hermif viajou com dois Elderes para Kazin. Gentilmente recusou minha

oferta de companhia para a viagem dizendo que estaria ocupado, e que a viagem seria rápida, trinta dias no máximo. Acompanhei-os até o portão sul e depois resolvi andar um pouco. A cidade sempre me surpreende, sempre encontro algo novo, detalhes que ainda não tinha visto. Sua arquitetura não busca o prático, mas o belo. Nas praças, os detalhes dos bancos de madeira com entalhes, pequenos chafarizes e pontes que eu não me canso de observar. Acabei na praça principal, defronte ao castelo. Muito grande e imponente, desde o primeiro dia que o vi fiquei impressionado. Mas tem algo nele que não combina com a cidade. Parece deslocado. Suas linhas são mais sóbrias, com menos ornatos. Como se fosse feita uma colagem de estilos diferentes.

31.Noite do dia 500Após a janta fiquei conversando com Vency. Falamos sobre o castelo e a rainha. - Não sei muito bem Foras. O castelo da rainha guardiã é muito antigo, não se sabe ao certo

quem o construiu. Já ouvi falar até que foi outro povo, anterior aos lugarianos. É muito anterior à capital, que cresceu a sua volta.

Quando expliquei a Vency o que era um reinado em minha terra, ela contrapôs - Aqui é totalmente diferente. A rainha não tem controle nenhum da cidade. Não somos seus súditos. É mais uma tradição. A rainha é dona do castelo, mas não da capital ou do povo. Reis e rainhas vêm herdando o castelo e o título de Guardião de uma data muito antiga. Quando quiser eu o levo para visitar o castelo, quer? É muito mais bonito por dentro.

-Claro, qualquer tarde que você esteja desocupada.Ficamos conversando até tarde, as três luas já estavam altas. Todos hóspedes tinham se retirado.

Subimos até meu quarto e quando ia me despedir Vency falou - Foras, posso dormir aqui? Não gosto de dormir sozinha.

Fechei a porta após ela entrar. Deitei-me sem acender a vela. A claridade tênue das luas expôs seu corpo enquanto se despia. Ela deitou-se aninhada ao meu lado.

Acordei entusiasmado logo aos primeiros raios de sol. O entusiasmo diminuiu um pouco ao me virar e me ver sozinho na cama. Vesti-me rapidamente e desci para o eujo matinal. O eujo transcorreu normalmente e Vency me tratava como se a noite anterior não tivesse acontecido. Conversamos banalidades e ela com seu modo meigo retira a mão quando tento tocá-la. Sua atitude me deixa

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desconcertado, e resolvi andar até o rio para colocar meus pensamentos e sentimentos em ordem. Nem a tranquilidade do meu local predileto acalmou minha mente. Esse povo tem coisas realmente incompreensíveis. Essa liberalidade é característica deles ou apenas dela? À noite, quando me preparava para dormir, ela novamente vem ao meu quarto. Desisti de entender, preferi viver o momento. E essa rotina se repetiu noite após noite, até o retorno de Hermif.

32.Passado, Presente, FuturoNa noite anterior à chegada de Hermif, ainda tentei conversar com Vency sobre o que estava

acontecendo, sobre o nosso relacionamento, o que aconteceria depois que Hermif voltasse, mas Vency evitava o assunto.

- O passado e futuro não existem, seu cruzamento nos deixa apenas o presente, porque se preocupa tanto com o que será amanhã? Não lhe basta o hoje? Você deixa de viver o agora, preocupado com o que ainda não existe. Assim você não viverá nada, nem o presente e claro, nem o futuro. Venha, apenas me abrace, não fale nada.

33.PropostasA claridade das luas já altas entra pela janela formando um quadrado de luz no chão. O sono

teima em não vir. A meu lado, na cama, o corpo imóvel de Vency é delineado pela pequena luminosidade do quarto.

- Está dormindo Vency?- Não, também estou sem sono.-Estava pensando... Podíamos ir embora daqui, tentar achar a passagem para meu mundo, ou

morar em outra cidade, ou até mesmo no campo.Ela senta-se na cama, cobrindo-se com o lençol- Foi bom estar esses dias com você, Foras, mas

Hermif continua sendo muito importante para mim. Gosto muito dele e vivemos no momento um casamento feliz, que não quero destruir em função do nosso encontro.

- Mas você havia falado que seu relacionamento com ele era apenas de companheirismo, entendi que não era um relacionamento pleno, e eu sinto sua falta Vency, a cada minuto que estou longe de você. Achei que você também me amasse, que pudéssemos viver os dois juntos. Não posso nem imaginar como vou continuar sem ter você ao meu lado.

- Não sei sobre seu mundo, e como já lhe disse, aqui ninguém é dono de ninguém. O teu amor é possessivo e o amor não é assim. Sentimos as coisas de maneiras muito diferentes. Começo a achar que nosso encontro não foi uma coisa boa, principalmente, se deixou esse sentimento em você. Sinto muito por não estar me sentindo como você em relação a nós e mais ainda, por ter deixado você nessa situação. Juro que se soubesse que isso pudesse acontecer, jamais teria permitido que passássemos esse tempo juntos. Pense melhor. Deixe o tempo passar. Eu quero que você fique bem, que sua vida volte ao normal. Perdoe-me pela perturbação em sua vida, mas não quero iludi-lo, nem mentir a você.

- Está bem, faça como quiser, não vou mais falar sobre isso - disse enquanto ela se vestia. E assim que ela saiu e a porta se fechou eu pensei “vai ser difícil manter minha palavra, acho que falei uma grande besteira”.

34.As lágrimas de GargarHermif voltou e quase tudo retornou ao que era antes. Eu sentia uma sensação desagradável de

deslealdade. Apesar de gostar muito de conversar com ele, passei a evitar a sua companhia. Voltei a ajudar o Velho em sua loja. Precisava me ocupar, ocupar minha mente. Como não tinha com quem falar, ele acabava ouvindo minhas lamúrias. Com uma adaga afiada e casca de árvore, comecei a esculpir imagens dos deuses. Toscas no início, melhoraram muito com o tempo e a prática. O Velho dava algumas sugestões, “diminua as asas de Aileem, as orelhas de Gargar são mais pontudas”. Por fim ele propôs vender as estatuetas, o que para mim estava muito bom, pois eu as fazia apenas por passatempo. Um dia, enquanto me esmerava em esculpir a face sorridente de Gargar, creio que já cansado de minhas lamentações, ele me disse- não se sabe a data desta história, mas é bem interessante. Fala do choro de Gargar, o sorridente. Dizem que ocorreu apenas uma vez.

Gargar e Athis eram inseparáveis, presentes em todos os lugares, alegravam todas as festas. Parecia o par ideal: Gargar o brincalhão e Athis a amorosa. Embora Gargar andasse apenas com ela, Athis andava com todos, brincava com todos, saia com todos, porém a atenção especial era dele.

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Nessa época, o Lugar foi aterrorizado por um grande animal, Tamtu, o dragão negro. Tinha a altura de uma palmeira e a rapidez do vento. Seus caninos brancos eram maiores e mais afiados do que uma pequena adaga. Com o olho esquerdo via as pessoas e com o direito via os sentimentos. Não era mau por natureza, porém reagia violentamente a emoções. Era atraído e farejava sentimentos, sensações, e tinha reações inesperadas dependendo do tipo de emoção que percebia.

Todos os Deuses se reuniram para capturá-lo. Iniciaram uma grande perseguição. A cada movimento dos Deuses o dragão parecia percebê-los e escapava. Onde hoje é o deserto, era a floresta central do Lugar que foi totalmente destruída pelos movimentos impetuosos do dragão. Assim foi durante semanas. Como num jogo, movimentos planejados, ações, reação, ataque, fuga. Os Deuses já estavam desanimados, achando a empreitada fadada ao fracasso, quando Sintor teve a ideia de atraí-lo. Seu domínio sobre os sentidos e sentimentos era tão grande que era o único que conseguia chegar perto do dragão sem ser por ele percebido. Assim, indicando sua posição aos Deuses e facilitando o caminho de fuga de Tamtu, foram cercando-o e levando aonde desejavam. Após treze meses e um dia ele foi cercado e forçado a fugir para uma grande gruta da montanha vermelha. Mesmo com o monstro acuado nenhum dos Deuses conseguia chegar perto para capturá-lo. O temor, a indecisão, a ira, eram sentidos e a reação do dragão negro era violenta. Novamente o impasse. Após tanto tempo e destruição em seu encalço, parecia não haver como prender o dragão. Athis manda os jovens Deuses se afastarem e entra sozinha na montanha. Gargar tenta impedi-la, mas nem suas súplicas a demovem de seu intento. Após três horas de silêncio, o dragão sai lentamente da caverna. Gargar não contém seu pranto imaginando o acontecido com Athis, porém ela sai logo atrás do monstro. As lágrimas de sofrimento de Gargar transformam-se em lágrimas de felicidade e ali, no final do deserto, regado pelas lágrimas de Gargar brota uma árvore que não para de crescer. Maior do que as montanhas, uma cajazeira de tamanho descomunal. Os Deuses rodearam Tamtu, que permanecia sereno, em paz.Não havia mais medo, ira ou desconfiança, apenas o amor que irradiava de Athis. Em ação conjunta, os Deuses reduzem o tamanho de Tamtu e então sem a possibilidade de grandes estragos, eles o libertam. Eles retornam satisfeitos com o desfecho da expedição, principalmente por não ter sido necessário ferir Tamtu. Gargar sempre abraçado a Athis, agora compreendendo melhor a reação de Tamtu aos sentimentos e a importância de oferecer o que queremos receber.

Fim da história- Entendeu Foras? Você precisa enxergar os sentimentos como eles realmente são. Olhe uma pessoa alegre, ela irradia o sentimento, ela está alegre com tudo e com todos, o mesmo acontece com a tristeza, a ira, e porque o amor seria diferente? De onde você tirou essa ideia que o amor tem que ser exclusivo?

35.Cotidiano, cinco anos depoisAos poucos, fui me tranquilizando. O tempo, sem o despotismo do relógio, passa serenamente, e

como a chuva, apaga marcas que consideramos permanentes. Acostumei-me a perceber e valorizar pequenos prazeres. A música das árvores, do vento e da chuva. A dança silenciosa dos pássaros, num ritmo harmônico. O conjunto de tudo, a beleza de cores, sons, movimentos, parecia na medida exata da paz. Sorrisos calmos, a vida sem pressa. Mais vale encontrar um amigo e conversar algumas horas do que fazer um trabalho rapidamente e mal feito. Esse sempre poderá ser feito amanhã ou depois, com calma e esmero. Essa é a síntese da vida no Lugar. A não ser que seja um motivo de vida ou morte, nada tira um lugariano de uma conversa ou da taberna à noite.

As lembranças de meu mundo vão se esmaecendo. Afinal, já se passaram quase cinco anos que cheguei aqui. Minha maior dificuldade aqui, sempre foi fazer a barba, habituado com barbeador elétrico, nunca consegui me acertar com uma lamina afiada e um espelho tosco de metal; os inúmeros cortes em minha face atestam a veracidade dessa afirmação. Porém, coisas que anteriormente eu considerava imprescindível, como acordar de manhã e ler o jornal, ligar o computador, nunca estar longe do celular, assistir televisão, comer pizza, hambúrguer, transporte somente de carro, já nem passam pela minha cabeça. Nas tabernas já era aceito como igual, e ganhei alguma fama como contador de histórias, afinal sempre tinha alguma narrativa ou lenda de meu mundo, desconhecida por todos. A alimentação era mais saudável e saborosa, alguns dos seus temperos eram magníficos, os sabores indescritíveis. Passei a achar agradável caminhar. Meu peso aumentou um pouco, embora longe de ter um corpo de atleta, estava com mais músculos e menos gordura. Estava em ótima forma para meus quarenta anos. A pele queimada do sol, não fosse pelos meus olhos negros, passaria facilmente por um lugariano. Meu sono era sereno, os pesadelos desapareceram. Minha saúde estava ótima, assim como os lugarianos, nunca mais havia pegado uma gripe ou qualquer outra doença. Até minha disposição e

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humor melhoraram com o decorrer do tempo e meus sentimentos com relação à Vency estavam calmos, como que adormecidos. E a vida seguia tranquilamente.

Ainda sentia falta de ler, eram raros os livros do Lugar. Todos manuscritos, artesanais. O Velho me deixou ler os que tinha, mas eram poucos. Algumas histórias de família, outros de fórmulas. O que mais atraia minha atenção eram os mapas do Lugar, pois como sempre gostei de viajar, conhecer novos lugares e pessoas, agora estava planejando uma viagem pelo Lugar. Vency havia me dito que havia uma biblioteca no castelo, mas ainda não tinha tido oportunidade de conhecê-la. Talvez lá encontre mais mapas, roteiros ou descrições de cidades daqui.

36.O CasteloEmbora fosse Vency quem houvesse me prometido, quem me levou ao castelo foi Hermif. Uma

manhã sem nada o que fazer, saímos conversando quando ele me perguntou- você não queria conhecer a biblioteca do Castelo? Podíamos aproveitar esta manhã.

Em alguns minutos estamos passando pelo imponente portão de pedras do castelo. Entramos em um átrio gigantesco, o piso de pedras reluzentes, onde desembocam muitas portas e escadas. Hermif, demonstrando familiaridade com o local, leva-me por um corredor estreito, de pedra, escuro e úmidos até chegarmos a uma sala bem iluminada, com inúmeras estantes e livros. Quando ia começar a olhar os livros, Hermif abre uma pequena porta e continuamos por um corredor ainda mais apertado e sombrio. A luminosidade é quase inexistente. Mal vejo o vulto de Hermif andando na minha frente. Depois de muitas curvas e alguns tropeções, o corredor abre-se em uma imensa sala. A luz me cega momentaneamente e quando meus olhos se acostumam com a claridade vejo admirado a dimensão extraordinária da sala. Redonda, deve ter um diâmetro de pelo menos uns quarenta metros com altura equivalente a três andares. As paredes têm armários que vão até o teto, completamente abarrotados de livros. Escadas presas ao teto movem-se em trilhos circulando a parede e possibilitando o acesso a qualquer altura e local. No centro, em disparidade com a magnitude da sala, uma mesa simples e quatro cadeiras. A luz intensa vinha do teto, de uma grande clarabóia. Na mesa, um lampião, para leitura noturna, creio.

- Porque isso Hermif? Porque uma sala como esta, praticamente escondida?- Não está escondida de propósito, mas realmente está longe. A dificuldade de acesso é

adequada ao interesse e frequência com que é visitada.Já procurando livros na sessão de mapas, nem ouvi Hermif saindo dizendo que ia tomar um chá.

O sol já ia alto quando Hermif voltou.- Hermif - falei empolgado -toda historia do Lugar está

aqui; mapas, fatos históricos, tudo.- Claro, entendeu agora porque o título de rainha

“Guardiã”? Aqui está guardada nossa memória. Mas vamos, já é tarde e ainda quero apresentar você à rainha.

37.A RainhaSegui Hermif pelo labirinto escuro novamente. Mas desta

vez saímos em uma antecâmara pequena, porém luxuosa. O piso azul claro, parecendo mármore, porém de uma tonalidade completamente diferente. Esculturas, bustos, entalhes em madeira negra, quadros ricamente bordados como nunca tinha visto aqui no Lugar. Hermif bateu em uma porta entalhada e entrou. Eu o segui. Uma senhora de aproximadamente sessenta anos estava sentada em uma poltrona com uma xícara de chá na mão. Loira, olhos verdes, tão raros no Lugar como olhos negros, um ar de natural ascendência, deixava evidente que era uma pessoa habituada a comandar. Era alguém que não gostaria de confrontar. Seu olhar tinha a serenidade da sabedoriae mostrou-se extremamente gentil.

- Venha Hermif, sente-se, sirva-se de mais um pouco de chá, e apresente-me seu amigo, que já está ficando famoso aqui na Capital.

Hermif sentou-se e indicou que eu me sentasse também. Hermif serviu-me uma xícara de chá de folhas longas e finas, que exalava um odor agradável.

- Rainha, esse é Foras, nosso hóspede, já está na Capital há aproximadamente cinco anos.

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- Foras, já ri muito da historia de você chutando um perin.Fiz uma saudação com a cabeça, meio sem graça, sem saber exatamente qual o protocolo

deveria seguir, mas ela me tranquilizou- Fique a vontade Foras, não é necessário formalidade. Aqui é meu refúgio. Mas conte-me, você veio da Terra, não?

- Sim - respondi espantado - mas como a Senhora sabe disso?- Fácil, pelas histórias que você conta nas tabernas, comparando com o que os outros que já

passaram por aqui contaram. Embora você desconheça, já passaram muitos de sua “Terra” por aqui. Temos muitos relatos dela.

- E se me permite perguntar, o que a Senhora acha da minha terra?- Um lugar que não merece ser visitado, pelo contrário, deve ser evitado.- Não discordo muito da Senhora - já arrependido da direção que a conversa estava tomando -

mas sinto alguma saudade de lá.- Saudades de quê? Da poluição sonora? Visual? Olfativa? Ou da estranha moral de seu povo

onde a teoria é perfeita, mas praticam exatamente o contrário do que propagam. Um lugariano jamais entenderia essa contradição. Estou curiosa, diga-me do que você tem saudades? Acha sua tecnologia um fator compensatório?

Ela era muito incisiva e deixou-me sem respostas.- Desculpe-me Foras, não estou sendo uma boa anfitriã inquirindo-o assim. Não foi minha

intenção intimida-lo. Sirva-se de mais chá. E conte-me. Está realmente interessado em voltar a sua Terra?

- Estou sim, cai aqui por acidente, sem nenhum planejamento. Deixei muitas coisas em aberto. - A biblioteca está a sua disposição, pesquise o que precisar. Não será fácil encontrar seu caminho

de volta. Venha quando quiser, e se desejar uma xícara de chá, basta bater aqui. Sua companhia será bem vinda. Basta apresentar este passe e a passagem lhe será franqueada, disse-me entregando um retângulo de madeira negra com um brasão entalhado no centro e preso a um cordão. Coloquei-o no pescoço agradecendo. A sessão estava encerrada. Saímos eu e Hermif por outra porta que levava diretamente ao átrio de entrada.

Já na rua, falei - ela não fez isso apenas por me achar simpático, não é Hermif? Ele sorriu e disse - ainda tenho alguma influência por aqui.“É, pensei comigo mesmo, e essa influência me parece mais do que apenas política”.

38.Sociedades e ContrastesNa primeira semana, Hermif me acompanhou todas as tardes à biblioteca. Pela manhã eu ia à

“Chifres e Dentes”, fazia algum trabalho e treinava meus entalhes. Perguntei ao Velho aonde poderia arrumar alguma madeira negra como a do passe. Acho que faria uma estatueta muito bonita com ela.

- Não é qualquer um que consegue um desses, impressionou-se o Velho - até a madeira é rara. Ébano de Kho-zy.

Quando lhe contei sobre meu passeio ao castelo, ele me disse para ser cauteloso, a rainha era generosa e podia ser uma excelente amiga, mas não aceitava negativas e jamais perdoava um erro.

No meu primeiro dia sozinho no castelo, demorei quase uma hora perdido no labirinto de corredores estreitos para finalmente chegar à biblioteca. Porém, após três ou quatro dias, eu já andava completamente à vontade pelo emaranhado do caminho. Um final de tarde, estava sentado na pequena mesa, tentando decifrar um relato antigo sobre uma passagem de ida a uma terra estranha, que poderia ser o meu mundo, quando a rainha entrou.

- Então, Foras, encontrou algo que o ajude?Afastei o livro para cumprimentá-la. Ela sentou-se ao meu lado, comentando - tua pesquisa deve

estar muito interessante, afinal, você não apareceu nenhum dia para o chá. Mas não vim aqui para fazer reclamações. Gostaria de pedir-lhe um favor. Relacionado ao que está pesquisando. Estou interessada em fazer um mapeamento das passagens, locais, ida, volta, tudo enfim, e como você já está estudando isso, acredito que poderíamos chegar a um acordo de trabalho, o que você acha?

- Desculpe-me por não tê-la visitado, mas não quis incomodá-la por não conhecer sua agenda. Mas se não atrapalhar, adoraria conversar nos finais de tarde. E sobre o trabalho de mapear as passagens,eu aceito, à medida que pesquiso, posso ir anotando tudo relacionado a viagens pelas passagens, mas é muito demorado, às vezes preciso ler um livro inteiro apenas por conter algumas linhas sobre as passagens, outro que acho promissor, não tem nada ligado ao assunto e outros que não entendo bem a linguagem, mas não é nenhuma dificuldade intransponível. Tenho visto muitos mapas,

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mas eles não mensuram as distâncias, apenas mostram os pontos geográficos. Talvez possam ser melhorados, mas necessitariam dos valores, de um trabalho de campo.

Com um sorriso de satisfação ela falou - Tinha certeza que você era o homem talhado para esse trabalho. Sua ideia é excelente. Quem sabe futuramente você não será esse homem.

- Posso perguntar-lhe uma coisa, Senhora? Achei pela nossa primeira conversa que meu mundo deveria ser evitado, mas a senhora quer saber de passagens, alguma intenção de visitá-lo ou observá-lo?

- Meu jovem, a experiência o ensinará. Quanto mais alta sua posição, menos direito você tem a exercer sua opinião. As passagens existem, isso é um fato. Do outro lado existem mundos diferentes. Não sei sobre o futuro, se o contato entre civilizações aumentará, mas o conhecimento deve estar disponível.

- Porque a Senhora acha meu mundo tão ruim? Pela tecnologia? Acha contrária ao estilo de vida do Lugar?

Olhando placidamente em meus olhos ela falou - Vários viajantes de sua terra já passaram por aqui, e em geral são assimilados pela nossa cultura. Porém se viessem em hordas, certamente o Lugar seria destruído. Você não notou o que tem de errado em seu povo, não é? Vocês são bons individualmente, porém em grupo tudo se altera. O espírito de concorrência, o egoísmo e a ganância se exacerbam. Ainda não enxergou? Pense em sua sociedade como uma entidade viva. Ela é o mal. Ela destrói sua individualidade e seus valores pessoais, impõe valores artificiais necessários à sobrevivência dela, que vocês aceitam sem questionar. Ela transforma-os em pedaços da máquina, em “coisas” incapazes de raciocinar e ter vontade própria, e os poucos que se rebelam contra essa ditadura invisível, são descartados como inadequados.

39.Novo Trabalho na BibliotecaEra difícil contradizer a rainha, seus argumentos eram sempre lógicos; conversar com ela

instigava meu raciocínio. Habituei-me a encontrá-la ao entardecer, após minhas tardes de pesquisa na biblioteca. Sua moral e honestidade eram inflexíveis, mas ponderadas pela gentileza e respeito.Fazia citações sempre embasadas em provas concretas e, embora nunca o ostentasse, tinha um conhecimento infindável tanto do Lugar como de meu mundo. Exímia conhecedora de pessoas e caráter, avaliava com impressionante acerto ao primeiro encontro. Sua conversa era muito agradável e nossos encontros tornaram-se extremamente aprazíveis. Ao final da tarde, guardava os livros e levava a ela um resumo do dia, quando havia algo relevante. Tomávamos chá e conversávamos por algum tempo. Geralmente deixava o castelo no princípio da noite. Ao final da primeira quinzena outra grata surpresa, ela me pagou dez moedas pelo trabalho, muito mais do que eu esperava receber.

40.Noite Negra - Noite de Aileem IDurante quase um ano minha vida prosseguiu sem perturbações no Lugar. A rotina era calma e

agradável. O trabalho na biblioteca era lento e raramente encontrava citações das passagens; ao menos uma vez por semana auxiliava o Velho, mais pela conversa do que pelo trabalho propriamente dito. Os finais de tarde quando saia mais cedo da biblioteca ia às tabernas para ouvir e contar histórias. Estava muito impressionado com a sabedoria da rainha. Nossas conversas eram muito estimulantes e quanto melhor a conhecia maior era minha admiração por ela, sobretudo por seus princípios. Embora os anciões e Elderes do Lugar fossem pessoas de grandes qualidades, creio que poucos tinham o quilate da rainha. Sua moral, ética, conhecimento e ponderação eram admiráveis. Com o passar do tempo conversávamos mais a vontade. Falávamos de tudo, além de meu trabalho de pesquisa, desde o tempo e previsões das colheitas até pequenas indiscrições de pessoas conhecidas. Eram reuniões agradáveis onde nos divertíamos muito, mas nunca tive o atrevimento de perguntar sobre sua vida pessoal, embora tivesse curiosidade. Ela apenas sorria quando me via entusiasmado com a possibilidade de localização de alguma nova passagem. Meus escritos beiravam a cem paginas incluindo inúmeros mapas..

Uma noite, me despedi com um tradicional até amanhã, e ela me respondeu - creio que não deveria vir amanhã, Foras. Amanhã será a noite negra, aconselho-o a não sair de casa.

- Noite negra?- Isso mesmo. Você já notou a grande influência das luas sobre o povo do Lugar, não? Amanhã

teremos uma conjunção singular das luas. Elas estarão alinhadas afastando-se de modo que duas estarão atrás da primeira e o reflexo dessa será obscurecido, ou seja, não veremos no céu nenhuma lua.

- E qual o problema de uma noite sem luas?

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- Não é o fato de não as avistarmos, mas a emanação totalmente alterada das energias lunares combinadas. Essa energia somada das luas provoca em todos um estado de transe, se essa pode ser a palavra. Sonhos, alucinações são liberados. Por isso chamamos da noite de Aileem, a Deusa dos sonhos. Acreditamos que seja a exteriorização canalizada pela natureza, mostrando nosso lado interno, negro. A força primordial, selvagem e indomada liberando-se e levando o ser à liberdade. Não é exatamente mal, mas a emoção sem freios, sem controle. Materializada em animais. É perigoso, incontrolável.

A conversa me perturbou tanto quanto aguçou minha curiosidade. Não parecia algo do Lugar, onde tudo era sempre tão obvio e correto. Nessa tarde voltei direto para a estalagem. Queria falar sobre isso com Hermif, mas não o encontrei e estava muito cansado para sair procurando pelas tabernas.

41.Noite Negra - Noite de Aileem IIO dia amanheceu como todos os outros dias, mas ao olhar o céu, a proximidade das três luas era

evidente. Ninguém parecia dar importância a isso. O movimento da rua era o de sempre, mas a rotina ocultava a excitação crescente. Podia-se sentir no ar a manifestação das luas. Passei a manhã e a tarde analisando minhas pesquisas. Percebi um fato muito interessante. Não com relação direta sobre as passagens, mas linguística. Palavras com raízes características e distintas nas diferentes cidades e o que mais me surpreendeu, a raiz é latina, muito comuns nos escritos de Kho-zy e Kazin. Isso me abriu um leque de especulações sobre a colonização do Lugar e sua relação com as passagens e com meu mundo. Na capital ouvi inúmeras expressões de origem nórdica, o que combinava perfeitamente com o tipo físico de sua população. Fiquei em dúvida sobre a passagem pela qual cheguei. Talvez o acesso difícil não tenha trazido muitas pessoas da minha região, onde o cabelo era predominantemente preto. Quando percebi, já estava no final da tarde, e a claridade se esmaecia.

Estava pensando se sairia ou não. Mas a resposta já estava definida antes da pergunta. Quando me decidi a sair já era noite alta. Não havia ninguém nas ruas. A ausência das luas deixava um negrume intimidante. Depois de alguns minutos comecei a distinguir um pouco na escuridão. As sombras e o som do vento se confundiam com vultos, sussurros. O frio me fez apertar mais o casaco. Eu andava encostado nas paredes. Ocasionalmente ouvia alguns gritos distantes. Tudo era inusitado, assustador. Uma pessoa passou correndo por mim, parou um segundo e olhou-me. Um capuz cobria seu rosto negro, seu olhar desvairado, sorriu como um insano e correu. Tentei segui-lo, mas tropecei, cortei as mãos ao cair. Ocasionalmente outros passaram correndo, alguns gritando. Ao longe se ouvia um som ritmado, como tambores. Parecia vir do portão sul e para lá me dirigi. Após um tempo interminável, de tropeções, quedas, e entradas em vielas erradas, passei pelo portão e fiquei entre as árvores. Muitas pessoas dançavam num ritmo alucinante. Só então notei, não eram negros, todos estavam com os rostos pintados de preto. A maioria com capuzes cobrindo o rosto, alguns sem roupa, o corpo todo pintado. Estava tão entretido que não notei alguém se aproximando em minhas costas. Quase cai quando uma mão tocou em meu ombro. Virei-me assustado. Não reconheci o rosto negro, mas reconheci a voz - calma, sou eu, Joran.

- Que loucura é essa Joran?- Vamos sair daqui, está só começando, vai ficar muito perigoso. Saímos rápido dali. As pessoas com quem cruzamos estavam ficando mais agressivas. Joran

correndo empurra quem está a sua frente, quando víamos um bando, desviávamos pelas ruas laterais para não confrontá-los. Esgueiramo-nos até a estalagem e entramos rapidamente travando a porta a seguir.Nessa noite, ao contrário do habitual, todas as portas e janelas estavam fechadas. Reinava um silêncio diferente, pesado. Enquanto eu acendia uma vela, Joran invadiu a despensa para pegar uma bebida. A bebida nos aqueceu um pouco.

- Joran, o que está acontecendo? É tudo insano.- Acho que a palavra é essa mesma. Você não sabia de nada, sobre a noite de Aileem?- A rainha comentou ontem, mas não imaginei que fosse assim. Porque todos pintam o rosto de

negro?- Tradição, ou talvez algo de verdade junto. É a noite da Deusa Negra, então, pode ser

considerado uma forma de homenagem a Ela. Alguns dizem que a tinta negra diminui a influência das luas.

- E qual o seu motivo para pintar o rosto?- O óbvio, disfarça, fica mais difícil ser visto no escuro.Só agora me ocorreu que Joran não tinha sido afetado, agia normalmente.

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- Alguns, muito poucos, não são afetados, não sei por que motivo, e como deve ter reparado, você também não foi, Foras. A noite negra acontece desde sempre. As pessoas fazem coisas estranhas, que não fariam normalmente e no dia seguinte procuram agir como se nada tivesse acontecido. Nada é cobrado, pois sabemos que os acontecimentos e atitudes são decorrentes da influência lunar e não da vontade consciente. Ninguém gosta de ser questionado sobre isso, e gostam menos ainda de saber que alguém é imune ao efeito da conjunção lunar. Se fosse você não comentaria sobre esta noite. O que acontece na noite de Aileem acaba com a alvorada.

Joran aguardou um momento em que a rua estivesse deserta e saiu rápida e silenciosamente. Nada mais havia a fazer, andar pelas ruas era muito perigoso, só restava ir dormir. Nessa noite não dormi bem. Acordei muitas vezes e só quase ao amanhecer dormi realmente.

42.Retorno a rotinaNo dia seguinte todos agiam normalmente. Apenas pequenos sinais, como hematomas ou algum

objeto quebrado davam indício do ocorrido. Como disse Joran, tudo acaba com o amanhecer e a noite de Aileem já era um acontecimento do passado.

À tardinha, na Gruta, conversando com os Elderes, lembrei-me do que Joran me aconselhou e contive minha curiosidade e a vontade de inunda-los de perguntas. Vendo-me tão quieto, Hermif perguntou - o que houve Foras, não está se sentindo bem?

- Às vezes sinto-me estranho aqui. Vocês têm suas crenças, seus rituais, sua filosofia de vida, tão diferente de tudo que já vivi. Tenho muitos amigos aqui, a vida é boa, mas parece que algo está fora do lugar. Minha vida está incompleta, está faltando alguma coisa. Não estou conseguindo me expressar bem. Não sei se você está compreendendo.

- Compreendo melhor do que você pensa. O que você tem a fazer? Qual sua finalidade na vida? Foras, tanto tempo aqui e você ainda não aprendeu. O que você tem que fazer, você fará. No momento certo. Preocupar-se agora com isso é perda de um tempo precioso. Sabe o que é bom hoje? “É bom conversar com os amigos, é bom sorrir, é bom beber cerveja, é bom estar aqui agora para contar e ouvir histórias”.

Como sempre, ele estava coberto de razão. Tentei não me preocupar mais e seguir minha vida.Depois de um inverno rigoroso tivemos um período de temperatura amena e logo a seguir o

tempo esquentou muito. O verão chegou com voracidade. Os dias decorriam num marasmo completo. O calor insuportável não deixava ninguém fazer nada durante o dia, o movimento na cidade só iniciava com a chegada das três luas. Diminuí meu ritmo de trabalho na biblioteca e com frequência ia ao lago pequeno ou ao riacho me refrescar nas tardes abrasadoras. Um mergulho na água fria do rio, descansar à sombra das árvores e voltar somente ao cair da tarde. À noite conversar e cantar nas tabernas. Sem pressa o calor foi diminuindo, o vento sul trazia a promessa de uma nova colheita. Os frutos amadureciam, pássaros invadiam a cidade e os campos enchiam-se de flores. A vida reflorescia no Lugar. Com o final do mês da salamandra, a lassidão cedeu vez ao labor. A vida era simples, calma e prazerosa.

43.Novo HóspedeExceto os viajantes de passagem pela Capital, apenas eu e um Elder idoso e sem família, éramos

hóspedes permanentes da estalagem. A chegada de um novo hóspede sempre me causa um pouco de curiosidade. Ele chegou enquanto tomávamos o desjejum. Pequeno, tez bronzeada, cabelos negros e olhos azuis. Aparentava ter uns quarenta anos. Seu tipo físico demonstrava claramente que não era da região. Com cabelo comprido e barba por fazer, necessitava um banho com urgência. Vency após uma rápida conversa ao acomodá-lo em um quarto, já sabia mais sobre ele do que a própria mãe. Vendo meu interesse ela desfia seu relatório. Era um mercador que viera de Kho-zy e trazia principalmente folhas da cajazeira sagrada para vender. Sua viagem durou três meses incluída uma parada de um mês em Despen, de onde trouxe inúmeras espadas e adagas.

Um banho e roupas limpas fizeram uma transformação fantástica. Vency trouxe-o até minha mesa para apresentá-lo e conversarmos enquanto ele comia.

- Pretendo ficar umas duas semanas, até vender toda minha mercadoria, depois vou a Kazin comprar algumas encomendas de ervas e raízes. Mas antes verei o que posso conseguir por aqui.

- Posso apresentá-lo ao Velho, dono da “Chifres e Dentes”, ele tem uma boa quantidade de ervas e poções.

- Ótimo- ele me respondeu - amanhã poderemos ver isso, agora vou dormir e quando acordar, beber toda cerveja da Capital.

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44.Ressaca, Culpa e FugaAo anoitecer, saímos, eu e Benunes, o Khozyano. Primeiro fomos ao Porco Falador, depois ao

Assobio do Morcego e seguimos nossa “movida madrileña”3por todas as tabernas que eu conhecia. Eu estava com espírito e disposição para acompanhá-lo, beber e beber e beber, porém no vigésimo ou trigésimo caneco, não me lembro mais, eu desisti. Bem, não foi exatamente uma desistência, estava mais para um desmaio. Na manhã seguinte tinha a impressão que todos os canecos estavam chacoalhando em minha cabeça. Acordei bem tarde e desci, após um banho frio. Ao encontrar com Khozyano, declinei de seu convite para uma nova noitada, mas marcamos para o dia seguinte encontrarmo-nos com o Velho. Eu estou destruído; como ele consegue estar inteiro e pensar em repetir a dose de ontem? Preferi ficar na hospedaria. Comi sem muito apetite um pouco do almoço requentado, enquanto observava Vency limpar as mesas. Ainda meio atordoado, conversei um pouco com Hermif, que veio sentar-se em minha mesa. Seus olhos sempre serenos, agora pareciam arder, seu olhar era incriminador. O azul profundo transformou-se em vermelho. Os caninos brancos desgastados pelos anos cresceram, tornaram-se pontiagudos. Um sorriso sardônico deformou sua face. Vency gargalhava rodopiando numa dança alucinada. Hermif rodava a minha volta me acusando, gritando. Outros hóspedes gritavam. A cacofonia invadia meu cérebro. A sala girava numa velocidade vertiginosa. Dedos e faces girando e me incriminando. Eu, aterrorizado, suava, me encolhendo na cadeira. Até que por fim tudo acabou. Eu estava em meu quarto, deitado em minha cama ouvindo um solo de Gerry Mulligan. Que sonho louco. Que horas serão? Será que já está amanhecendo? Preciso me levantar para trabalhar. A música insistente ao fundo. O som no meu ouvido. A música falava - Como está você? Você está bem?

Abri os olhos. Estava deitado no chão, cercado por Hermif e Vency que me abanavam.-Ele está melhor, está acordando. Pode me enxergar Foras? O que está sentindo?-Estou bem - falei, ainda sem saber exatamente onde estava. Lentamente fui tomando

consciência do que aconteceu.- Você ficou me olhando de forma estranha e depois caiu desacordado - disse Hermif,

preocupado. Subi as escadas para o segundo piso, auxiliado por Hermif e Vency. Eles puseram-me na cama,

deram-me algumas gotas para beber e antes de voltar a dormir meus últimos pensamentos foram “ Não posso mais ficar aqui, preciso voltar para o “meu lugar” ou acabarei ficando louco, ah, e não abusar tanto da cerveja”.

45.ConviteRaios do sol já alto acompanhados pelo som dos pássaros e da agitação habitual da cidade

invadiram meu quarto. Após dezoito horas de sono, despertei revigorado. Minha primeira providência do dia após comer, foi localizar o khozyano e levá-lo até o Velho. Passaram dois dias negociando e com exceção de uma pequena adaga, Benunes vendeu toda sua mercadoria, conseguindo inclusive encontrar nas prateleiras da “Chifres e Dentes” suas encomendas de ervas e raízes. Com um bom lucro e podendo antecipar em quase dois meses sua viagem de volta, queria comemorar. Fomos novamente ao Porco Falador, mas agora com mais moderação. Muito agradecido pelos negócios satisfatórios, ele me presenteou com a adaga que restou do seu estoque. Era uma bonita peça, com cabo de osso e estanho.

- Essa adaga não veio de Despen, note os desenhos na proteção do punho, é um trabalho dos Irmãos da Folha, raramente aparece uma dessa a venda. A extremidade de estanho do cabo pode ser removida e, se adaptada a uma haste longa esta adaga transforma-se em uma lança.

Concordei com ele, realmente, a adaga era um trabalho primoroso. Nunca havia visto uma como esta. Guardei-a cuidadosamente enrolando no pano que a protegia e agradeci muito a Benunes pelo presente. Enquanto bebia sua cerveja, ele me contou sobre seus planos imediatos. O retorno a Kho-zy deverá repetir o mesmo caminho da vinda. Desenrolou um mapa da

3Parodiando o costume dos habitantes de Madri que saem em animadas caminhadas noturnas parando de bar em bar para beber.

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região e em mostrou: da Capital, bordejando o deserto até Despen, seguindo o rio de Despen até sua nascente e dai ao sul até Kho-zy. Quando sugeri que atravessasse em linha reta da Capital a Kho-zy ele estranhou meu desconhecimento da região - Ninguém atravessa o deserto, precisaria de no mínimo trinta dias, impossível levar tanto mantimento e água, isso sem contar qualquer eventualidade, como ataque de feras. Apenas poderia carregar o que coubesse em uma mochila e um madron com dois alforjes.

O madron era extremamente resistente ao calor, bebia pouca água e sua força era suficiente para carregar uns quarenta quilos. Suas orelhas largas e grandes proporcionavam uma audição extremamente apurada. Suas pernas fortes e curtas mantinham um trote lento, porém regular, por grandes distâncias. Obedientes, dóceis, eram os animais ideais para longas viagens, talvez o único animal do Lugar que conseguia ficar imóvel ante um ataque de perins. Lembrava um grande mastim, pesando aproximadamente uns oitenta quilos, embora sem pelagem. Seu couro, como o dos lagartos, impedia a perda de água pelo suor. Na vinda trouxera dois madrons, mas um morreu no deserto, vindo de Despen e o sobrepeso dos dois alforjes quase matou o segundo. Porém, para o retorno, sem tanta mercadoria, um apenas seria mais que suficiente. Com apenas um madron não muito carregado, e sem precisar grandes paradas, estimava a viagem em dois meses. Percebendo meu interesse pela viagem, ele diz que seria muito mais agradável viajar acompanhado, e eu teria possibilidade de conhecer as cidades de Despen, Kho-zy e a tribo dos Irmãos da Folha.

- Você mostra tanto interesse em conhecer as cidades, essa é a oportunidade Foras. Vou ficar mais dois dias, até providenciar suprimentos para a viagem. Se até lá você resolver, será um prazer ter a sua companhia.

Lembrei-me do mapa do louco, a passagem era bem próxima dos Irmãos da Folha, seria a chance de confirmar a sua veracidade, além de conhecer as cidades e outras regiões do Lugar. A oferta era tentadora. E no íntimo já havia me decidido a acompanhá-lo.

46.DespedidasAs primeiras pessoas com quem falei sobre a viagem foram Hermif e Vency que de imediato me

incentivaram muito. Hermif ponderou, serão quatro meses de ida e volta, mais um ou dois meses de paradas. Seis meses passam rápido e você finalmente terá uma visão mais completa do Lugar.

- E se você encontrar a passagem, vai voltar para seu mundo? - Perguntou Vency.- Não sei, Vency, ainda não tenho tudo decidido, vou deixar as coisas correrem, seguir o fluxo. A resposta não a agradou muito, e com um jeito de desdém ela saiu deixando-me com Hermif, a

planejar a viagem. Conforme já havia conversado com Benunes, separei cinco moedas para os gastos com suprimentos, levaria dez moedas comigo e o restante, setenta e cinco moedas, pedi a Hermif que guardasse para mim. Deixei três moedas para meus dois taberneiros preferidos, que trabalhavam na “Gruta” e no “Porco Falador”.

Ao despedir-me do Velho, ele deu-me uma pequena lista de ervas, para trazer de Kho-zy se tivesse oportunidade e uma quantidade razoável de pó-voraz, dizendo que nunca se sabe o que acontecerá ou o que será preciso em uma viagem dessas.

Consegui convencer Benunes a retardar em três dias a sua partida para tentar concluir meu trabalho na biblioteca. O que ele aceitou de bom grado, podendo assim “conhecer” melhor as tabernas da Capital. Organizei os mapas e textos referentes às passagens para entregar à rainha. Devolvi-lhe o meu passe e ela disse que estaria a minha disposição novamente quando ou se eu voltasse. E me presenteou com um bastão da mesma madeira negra, dizendo que seria bom para ajudar na caminhada. O bastão tinha dois metros de comprimento e uma polegada de diâmetro, era leve e muito resistente. Contei a ela sobre minha teoria ainda não completamente elaborada da colonização do Lugar, e estranhamente, ela não demonstrou nenhuma surpresa e também não rejeitou de imediato como era seu costume quando notava algum erro no raciocínio. E quando ia saindo ela falou sobre algo que eu desconhecia, “pense na passagem não apenas como um vórtice espacial, mas também temporal”. Antes que pudesse indagar sobre as infinitas dúvidas que surgiram em decorrência dessa nova informação, ela já havia se retirado.

Joran foi o último de quem me despedi. Vi em seus olhos rudes uma ponta de inveja. Seu espírito aventureiro ansiava por novidades. Cheguei a convidá-lo, certo que Benunes não se importaria, mas

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seus compromissos o impediam de sair da Capital agora. Enquanto conversávamos, ele fez um entalhe no bastão, onde encaixava perfeitamente a adaga, transformando-se em uma poderosa lança.

Na véspera do meu último dia na Capital resolvi dormir cedo para poder aproveitar melhor o dia seguinte.

Nessa noite vi Aileem. Em pé à minha frente, a figura de uma quase menina irradiando inocência e candura. Tocou afetuosamente em minha mão, me disse - Sua história ainda não está completa. A água do rio segue seu ciclo e retorna ao rio.

Sentei-me na cama, confuso com a visão e quando ia falar-lhe, sua imagem pareceu desfazer-se em fumaça. Seu modo era meigo, mas suas palavras soaram como um vaticínio. Continuei sentado no escuro tentando compreender o que acabara de escutar.

47.Último dia na CapitalA manhã estava fresca. Caminhei sem pressa, me afastando do centro em direção ao sul. A

proximidade da viagem estava me deixando ansioso. Enquanto Benunes se ocupava dos últimos preparativos, resolvi ir até o rio. Sentei-me numa pedra, o murmurar da água correndo tem um efeito calmante, me ajuda a raciocinar. As palavras da rainha não saiam da minha cabeça, se a passagem é também temporal, mesmo voltando a terra, voltarei ao meu tempo? Se ela soubesse mais, com certeza me teria dito. Acabei viajando em meus pensamentos; e se voltasse à idade média, ou um tempo distante assim, ou no futuro. E se voltasse a terra e retornasse para cá novamente, voltaria para a época atual? Pelos relatos do louco, ele foi e voltou aparentemente na mesma época. Isso tudo estava me causando muita apreensão. Meus pensamentos foram interrompidos por um pequeno barulho. Voltei-me ao ouvir o leve som dos passos de Vency chegando. Ela sentou-se ao meu lado. Olhou-me de um modo triste, e sua voz pareceu abatida - vi você descendo para o rio e o segui. Queria me despedir, não sei se o verei novamente.

- Foi bom você ter vindo. Você era o único motivo que quase me fez desistir da viagem.- Mesmo assim, você vai viajar, tentar voltar para seu mundo. Os outros motivos devem ser bem

mais importantes.Que capacidade fantástica essa das mulheres de sempre nos colocar na defensiva. Fazer-nos

sentir mal, como se tivéssemos agido errado para com elas. Isso não muda em mundo nenhum.- Não Vency, não é isso, não se muda de vida por um acidente como aconteceu comigo. Só

poderei decidir sobre meu destino depois que resolver as coisas inacabadas que deixei para trás. - Uma mulher?- Não, um filho.O silencio que se seguiu foi meio constrangedor, mas logo me lembrei de contar a ela sobre meu

sonho, ou visão, não sei bem o que foi.- O que você acha disso Foras? Que foi Aileem avisando que você vai voltar?- Não sei, e falando de algo que devo fazer? Porque minha historia não está completa? O que

falta? No meu mundo, há muito tempo atrás, havia numa cidade chamada Delfos,um oráculo que fazia previsões, mas eram sempre dúbias. Parece esse sonho. Aonde inicia o ciclo? Aqui ou em meu mundo? De onde eu saio, e para onde eu volto? Vou voltar para meu mundo? Ouse o início for considerado aqui, saio e volto para cá para fechar o ciclo? Sabe o que me impressionou? A sensação de realidade da visão, quase pude tocá-la. Não foi a primeira vez, mas a de ontem foi sem dúvida a mais intensa.

Ela me olhando enquanto eu falava, faz um jeito que não consigo resistir. Os lábios entreabertos exalando sensualidade. A respiração ofegante, lasciva. De repente, nada mais importava, apenas ela, provocante, oferecendo-se. Aproximei meu rosto, mas antes que nossos lábios se tocassem ouvimos uma algazarra e risos de algumas pessoas que subiam o rio. A magia do momento quebrara-se e como o ruído aumentava indicando que logo chegariam até nós, ela levantou-se e correu de volta para a cidade. Permaneci um pouco sozinho, maldizendo minha sorte, dei-lhe tempo para que chegasse à cidade e depois a segui. Terminei o dia andando pela Capital, sem rumo, ruminando meus pensamentos. Veio uma vontade imensa de desistir da viagem. Só voltei à estalagem ao anoitecer. A janta correu silenciosa e logo a seguir nos recolhemos para dormir.

LIVRO II – A VIAGEM

48.A Partida

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“Porque toda viagem precisa começar de madrugada”? A luz ainda se escondia e as luas estavam altas quando Benunes bate na minha porta. Levantei-me praguejando, sonolento. Meu humor melhorou um pouco após lavar o rosto. Minhas poucas roupas já estavam na mochila ao lado do bastão. Vesti uma roupa leve e por conselho de Hermif um manto mais pesado por cima. Sobre a mesa deixei um buque de miosótis que havia colhido de manhã. Vency entenderia. Ao descer ao salão de refeições, encontrei a mesa posta, e junto a Benunes, Hermif e Vency que vieram se despedir. Comemos com calma, conversamos amenidades e enfim estávamos prontos para a jornada. Despedidas costumeiras, algumas lágrimas de Vency e saímos para o ar gelado da noite lugariana. O madron grunhiu feliz ao sentir nossa presença. Com dois alforjes relativamente leves no dorso, ele seguiu-nos com seu passo sossegado. A cidade dormia quanto a deixamos.

49.Na estradaQuase duas horas de caminhada rumo ao norte foi o tempo necessário para vermos os primeiros

raios de sol entre as copas das árvores. Parece que todos os pássaros despertaram juntos, o chilreio matinal era imenso, mas não desagradável. Caminhávamos em silêncio, seguindo a trilha na mata densa. Com o sol a pino paramos em uma clareira, a beira de um riacho para comer.

- Seria bom se a viagem toda fosse assim, mas logo sairemos da floresta, aproveite bem a água Foras, só encontraremos novamente uma fonte a três dias de viagem.

A trilha nos levava ao norte desviando lentamente para oeste. As árvores foram tornando-se menores, mais escassas até que ao anoitecer estávamos praticamente em terreno aberto.

- Hoje ainda teremos uma noite tranquila, mas daqui para frente sempre teremos que estar atentos aos perins. A parte tranquila da viagem acabou.

Acomodei-me como pude na base de uma árvore. Sem fogo para aquecer - fogo atrai perins - somente o manto era insuficiente para espantar o frio. Acordei tremendo e dolorido. Benunes já estava de pé brincando com o madron - muito bem dorminhoco, vamos levantando, um dia longo nos espera.

O segundo dia foi muito pior que o primeiro, minhas pernas já doloridas reclamavam o tempo todo e como já não tínhamos a proteção da floresta, o calor nos flagelava. O terceiro e quarto dia, embora parecesse impossível, foram ainda piores. Benunes e o madron pareciam não sentir cansaço. O terreno agora era árido, com raras árvores. O sol escaldante. Quando ventava era ainda pior, pois trazia areia que grudava em nossos corpos suados. Subir e descer morros também não era agradável, embora ainda tivéssemos a trilha para seguir.

- Pelo menos tivemos algo de bom, não encontramos nenhum perin. E depois desse morro à nossa frente, tem um pequeno oásis. Água fresca, e um tempo maior de descanso.

50.PerinsA terra estava rachada pelo calor e falta de umidade, apouca vegetação era rasteira e ressequida.

A trilha poeirenta ia até o morro onde se podia ver seu serpentear entre as pedras. O madron andava a nossa frente quando estacou. Ficou como uma estátua, lembrando um cão perdigueiro ao farejar sua presa.

- Perins - disse Benunes - não se mova. Não fale. Não respire.Eu, é claro, obedeci. Ficamos os três com cara de idiotas, parados no meio do nada. Sem ver coisa

nenhuma. - A trilha na montanha fica a uns cem metros, se chegarmos lá fica mais fácil, perins não gostam

de áreas pedregosas.- Está vendo algum, Benunes?- shhiiiii.Depois de quase dez minutos parados, meus músculos já começavam a doer quando vi um

pequeno movimento.- Na frente, Benunes, ao lado da pedra. Seu mimetismo era perfeito, quase invisível no ambiente árido. - Outro, do lado dele. Outro, atrás, meu Deus, são dezenas.Numa contagem aproximada, devia haver uns cinquenta perins a nossa volta.- São muitos entre nós e o morro, não conseguiremos passar, seremos estraçalhados antes de

chegar. E se ficarmos aqui, uma hora acabaremos nos movendo e chamando atenção deles. As opões não são boas. Mesmo que nos separássemos, seriamos todos pegos, eles são muitos e muito rápidos. O que precisamos é uma distração, ou um milagre, algo que chame a atenção deles para outro lugar.

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- Já sei! Magia!- Deixe de besteiras Foras. Precisamos algo real.- Só preciso pegar algumas pedras do chão. - E vai atirar pedrinhas neles? - Não, confie em mim, só preciso pegar algumas pedras, vou dar a distração que precisamos. Se

fizer um grande barulho eles irão atrás, ou apenas de movimento?- Eles seguem o barulho também. Certo, vamos tentar o que você quer. Mova-se muito

lentamente, o mais devagar que você puder. Com a mão direita segurava o bastão, comecei a mover a esquerda lentamente em direção a

mochila que estava pendurada em meu ombro direito. Muito lento, aproximando, sempre lento, cruzando pelo meu abdome até tocar no fecho. Impossível abrir o fecho com uma mão apenas. Enfio a mão pela borda lateral e tiro dois pacotes de pó voraz. Agora o mais difícil, me abaixar e pegar as pedras. Como uma dança desengonçada meus joelhos começam a se dobrar. Um milímetro por segundo. A dor aumenta a dificuldade. Câimbras parecem dilacerar minhas pernas. Um movimento um pouco mais rápido e a reação dos perins é imediata, farejando, buscando o que se move. Imobilizando, eles também aquietam. Com as pernas semi dobradas, a mão direita sustenta todo o peso do corpo. Minha mão está lívida de tanta força apertando o bastão para impedir que o suor a faça escorregar. A mão esquerda a alguns centímetros do chão. Pareceu uma eternidade, mas finalmente, minha mão toca o chão podendo apoiar e aliviar a carga da direita. Com o corpo apoiado posso soltar os sachês e abri-los com cuidado para não deixar cair o seu conteúdo. Pego pedras pequenas, do tamanho de uma unha e encho os dois sachês misturando as pedras com o pó. Prendo-os embaixo do meu joelho para poder puxar o fio e fechá-los. Com os dois saquinhos fortemente amarrados, começo a levantar. O movimento é tão complicado quanto foi para abaixar. Nunca imaginei que um movimento tão pausado fosse tão difícil. E doloroso! Em pé, passo alguns minutos descansando para então iniciar a troca de mãos, a força da direita é muito maior. Preciso atirar o sachê com ela. Enchi lentamente o pulmão de ar, calculei um ângulo de quarenta e cinco graus para atingir a maior distância possível e atirei com toda força que podia o primeiro sachê para a esquerda. O movimento violento atraiu imediatamente os perins que vieram saltando para onde eu estava. Estático, vi os perins se aproximando como uma onda enquanto o saquinho de pó-voraz descrevia uma parábola no ar. O barulho dos dentes é aterrorizante. Eu me preparava para fugir, o que seria inútil, quando o esperado estrondo com muita fumaça aconteceu. Foi mais forte do que eu imaginara, erguendo uma nuvem de poeira. Os perins mudaram sua direção, agora saltando ainda mais rápido e dirigindo-se para o local da explosão. O khozyano começou a correr para o morro, eu e o madron seguimos atrás. Os perins já haviam parado, e novamente voltado sua atenção para nós. Atirei o outro sachê e continuei correndo sem olhar para trás. O segundo estrondo atraiu novamente os perins, dando-nos tempo suficiente para chegar ao inicio do morro e escondermo-nos entre as pedras. Suado, dolorido, eu mal conseguia andar, foi preciso que Benunes me auxiliasse.

Do alto do morro pudemos observar os perins rodeando as duas crateras abertas pelas explosões e do lado oposto, fora da visão dos perins,nosso destino imediato, um pequeno agrupamento de árvores.

51.Oásis O Oasis devia estar a menos de meia légua, em situação normal, menos de uma hora de

caminhada, mas agora, uma eternidade. Descemos o morro pelo lado oposto e procurando andar na maior velocidade possível, dentro de nossas limitações, levamos quase duas horas para chegar. Virei meu bastão com a ponta da adaga formando uma lança para me defender ao avistar um pequeno perin, porém sozinho, ele nos ignorou quando passamos. Ao entrarmos no oásis, Benunes pediu que eu enchesse nossos odres com água da pequena fonte de pedras. No alto da maior das árvores havia uma casa rústica, aberta, sem portas ou janelas, utilizada por todo viajante, segundo ele me contou. Enquanto eu pegava água ele tentava içar o madron até a casa da árvore por uma espécie de elevador grosseiro suspenso por uma corda. A altura impedia o ataque de perins. Ao subir na casa improvisada, deixei-me desfalecer. O sono e o cansaço eram maiores do que a fome.

Acordei na manhã seguinte com o cheiro de ovos fritos, o khozyano havia encontrado um ninho de ptrix. Ptrix são aves muito grandes e rápidas,quase da altura de um homem. Não conseguem voar, mas são os únicos animais que correm mais rápido que os perins. Muito pacíficas, desde

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que não sejam incomodadas, seus bicos imensos e poderosos bem como suas garras são temíveis. Nem os perins aventuram-se a atacá-las.

Era a primeira refeição quente desde que saímos da Capital. Pareceu-me um banquete. Enquanto comíamos, ele perguntou- que mágica foi aquela das explosões?

- Pó-voraz, muito apertado e misturado com pedras. Ao bater no chão, a fricção das pedras faz pegar fogo e como não tem espaço, ele explode. Na verdade não tinha tanta certeza se iria funcionar, mas também, não tínhamos nenhuma outra opção, não é?

-Foi uma ideia fantástica, e sabe o que mais? Poderíamos amarrar o sachê na ponta de uma flecha, iria bem mais longe.

O próximo passo, pensei consternado, será a fabricação de um revólver ou uma granada; já quase arrependido do que fiz eu disse - gostaria que você não falasse disso com outras pessoas, você não imagina aonde isso poderia chegar.

- Mas é uma invenção genial.- Com invenções geniais como essa, estamos quase destruindo meu mundo. E se Aileem tem

algum propósito para mim, certamente não será destruir o seu. Essa é uma história que deverá ficar longe das tabernas.

A contragosto Benunes concordou e ficou resmungando - essa seria a melhor das histórias, nunca conheci alguém que tivesse escapado de cinquenta perins.

Naquele momento, comecei a ter certa simpatia pelos reacionários.

52.Rumo à EsplendorAbrindo um mapa no chão, Benunes apontou onde

estávamos- aqui é um ponto-chave, se seguirmos a norte acompanhando um pequeno rio que deságua no rio do norte logo à frente, iremos para as ruínas de Esplendor ou se seguirmos para noroeste, pelo deserto, vamos direto para Despen. O caminho pelas ruínas é mais longo, porém mais fácil, com menos risco de perins e com mais pontos de parada. Na vinda, vim direto de Despen e o longo trecho pelo deserto acabou matando meu segundo madron.

- Eu tenho todo o tempo do mundo. Voto por um trecho mais seguro.

- Mesmo assim, a viagem não é fácil, serão mais quatro dias no deserto até chegarmos ao rio, uma semana até as ruínas, e uma jornada complicada pelas montanhas até Despen.

- Certo, sem problemas, mas eu só peço uma coisa, vamos descansar hoje e sair amanhã. Minhas pernas estão pedindo mais repouso.

Ficamos combinados de sair na manhã seguinte. Como não tínhamos nada a fazer, além de conversar e vendo que Benunes ainda estava um pouco emburrado com a ideia de manter segredo sobre nossa fuga dos perins, comecei a contar a ele sobre meu mundo, do progresso e da tecnologia. Boa parte do que falei, ele não entendeu, mas o pouco que compreendeu o deixou atônito. A possibilidade de uma bomba destruir cidades, ou a bomba atômica destruir todo o mundo era algo inconcebível para ele. Era difícil para ele imaginar homens provocando tamanha destruição e não só a destruição em si, mas a poluição radioativa pós-bomba, tornando uma região inabitável. A poluição era outro tema que o confundia.

- Se sabem que esses gases estão matando o planeta, porque não param de fazer essas máquinas que os produzem? - Porém ficou fascinado quando falei de carros, submarinos, aviões e viagens aéreas, naves espaciais e viagens interplanetárias, de conhecer outros mundos. Ele ficou entusiasmado, não parava mais de falar- Imagine só, sair de Kho-zy e chegar ao mesmo dia na Capital, uma viagem de meses. E esse submarino que pode viajar por baixo d’água, não importa a tempestade, você não pode afundar, por que já está afundado - observou, divertindo-se muito.

- Você não gostaria de ter esse avião, para fazer a viagem rápido assim? E se souber que ele produz a poluição que vai tornar o ar irrespirável, ainda assim vai querer esse veículo?

Isso o deixou calado e pensativo.

53.Seguindo o rio

Ptrix

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Saímos do oásis antes dos primeiros raios do sol. Em direção ao norte, rumo ao rio. O dia foi extremamente cansativo e monótono, a paisagem era sempre igual, o terreno plano, seco e com muita areia. Ao anoitecer procuramos acampar entre pedras, sem fogueira para não atrair perins, e consequentemente, comida fria. Os dois dias seguintes foram uma repetição deste. Mais calor, mais areia, mais cansaço, com a diferença que na terceira noite a água acabou. No quarto dia após deixarmos o oásis, a paisagem começa a se modificar, de raros arbustos secos, começam a aparecer pequenas árvores e avistamos uma mata ao longe. O khozyano mostrou ser um bom conhecedor do caminho, quatro dias, como ele disse e com sol a pino, chegamos numa pequena mina d’água, a nascente do rio. Saciada a sede e com os odres novamente cheios, prosseguimos margeando o riacho que lentamente ia engrossando. Ao findar do dia, a vegetação já era exuberante e o riacho agora se tornara um rio. Numa curva, onde o rio formava uma enseada com uma pequena praia foi nosso ponto de parada. Com a mudança do cenário, mudaram também os problemas. Agora o que nos incomodava, além do calor úmido eram os insetos, uma infinidade deles, de todos os tamanhos e qualidades, rastejantes, voadores, e com os mais variados venenos. Picadas ardentes, coceira, vermelhidão, o suor abundante grudava nossas roupas no corpo e atraia mais insetos. Banhar-se no rio era perigoso pela presença de cobras e sanguessugas. Em terra, os piores insetos eram as aranhas cascudas, pequenas, sem pelos, muito rápidas e venenosas. Felizmente sua cor vermelho-fosforescente facilitava sua visualização ao longe. Quase cheguei a desejar o deserto novamente. Nem o madron conseguia caminhar tranquilo, coçava-se, sacudia-se, incomodado pelos insetos. Foram sete dias de tormento até chegarmos às ruínas. Acampamos numa pequena elevação cerca de uma légua das ruínas. O terreno alto e descampado nos proporcionava uma boa visão da região e das ruínas, bem abaixo.

A outrora, bela cidade de Esplendor, hoje abandonada e com a ação devastadora do tempo, lembrava um campo de batalha, como se tivesse sofrido um intenso bombardeio. Apenas pedaços de paredes brancas se mantinham em pé, invadidas por trepadeiras e vegetação rasteira. Alguns anos mais e nada restaria. Apesar do aspecto desolado era possível perceber que fora uma cidade bem traçada. No centro, uma grande praça com um anfiteatro, de onde saiam ruas como os raios de uma roda, se afastando até a periferia.

54.RuínasMesmo sem muita vontade Benunes me acompanhou para uma visita às ruínas. Era difícil andar

entre os escombros e a vegetação que cresceu desordenada. A caminhada era lenta em direção ao centro. A região mais externa certamente fora a zona residência. À medida que avançávamos para o centro, as construções eram maiores e, diferentemente da capital onde praticamente todas as casas são de madeira, aqui grande parte da cidade fora construída em pedra. É claro que ter uma pedreira ao lado da cidade ajudou muito. Na entrada para a praça central passamos por um portal de pedras semidestruído. O arco superior havia caído e as laterais com grandes fissuras não resistiriam por muito mais tempo. Ainda era possível ver nas colunas pedaços de escultura de Leria, a jovem Deusa, protetora das montanhas e Sintor, o Deus da beleza. O anfiteatro virou uma piscina de lodo, sujeira e entulhos. Na concha acústica sobraram vestígios de trabalho na pedra, com motivos florais. Mesmo devastada, Esplendor ainda demonstrava o amor de seus antigos habitantes pela arte e pela beleza.

Meu pensamento vagava pelo passado, o que fora Esplendor em sua fase áurea, quando senti uma dor aguda, dilacerante, na panturrilha direita. Um inseto laranja e preto, de meio palmo de comprimento estava grudado em minha perna. A perna fraquejou e cai com um grito enquanto Benunes rapidamente com sua adaga cortou a cabeça do inseto, que mesmo morto permaneceu grudado em minha perna. Cuidadosamente ele soltou da minha pele os dois aguilhões laterais e o ferrão entre elas.

- Se não tirasse os ferrões, com certeza você perderia a perna. O picador malhado é um dos insetos mais venenosos que existe.

A dor era intensa e eu mal conseguia encostar o pé direito no chão. Um vermelhão formou-se quase de imediato ao redor da picada. Apoiado em Benunes e mancando, encerramos nosso nefasto passeio. Ao chegarmos ao acampamento, minha perna já estava toda vermelha, quente, edemaciada, com quase o dobro da grossura. A última coisa que percebi antes de perder a consciência foi ver Benunes mexendo com algo no fogo e pensei “Que droga, eu aqui morrendo de dor e ele se preocupa com comida”.

55.Febre

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Foi um período tenso. Imagens indo e vindo. Um martírio com fogo e perins. Todo meu corpo arde em chamas. Os perins se grudam em mim provocando muita dor. Só consigo alguns minutos de alivio quando o Velho passa um unguento em minhas chagas. Meus amigos, Hermif, Vency, Joran e até a rainha, me ajudam a escapar do inferno. O Velho, numa barca, cruza o rio de fogo levando até a saída, mas cobra uma moeda de cada um. Eu peço a Hermif minhas moedas, mas ele as tinha esquecido em casa. Todos saíram e eu fiquei na margem. Os perins vêm me buscar e recomeçar o tormento. Todos se dissolvem em fogo e apenas Benunes está ao meu lado.

- Onde estão todos, Vency, ela estava aqui?- Somos apenas nós dois Foras, eu e você. Você esteve delirando. - O que aconteceu? Eu apaguei por quanto tempo?- Quatro dias. Estava queimando de febre, só hoje diminuiu. Minha perna doía muito. Puxei o pano que a cobria, a visão não foi das melhores. Minha perna

estava roxa, inchada, no local da picada a pele havia rachado, estava ainda mais escura, quase negra e soltava uma secreção amarelada com odor fétido. Benunes coou umas folhas tiradas de um caldeirão e colocou sobre a ferida me fazendo gritar de dor.

- Desculpe, mas preciso fazer isso duas vezes por dia. Apesar do aspecto atual, sua perna já esteve muito pior. Você teve muita sorte, a primeira por estar vivo, a segunda por ainda estar com sua perna. Os unguentos têm ajudado bastante. Você deveria agradecer a Mebo, o Deus perneta da sorte, deve ter sido ele quem me fez comprar os linimentos e unguentos, e principalmente calêndula e aloé para infecções; eu não queria, mas o Velho insistiu para que eu comprasse, sem isso não teríamos como tratá-lo. Você consegue mexer a perna?

Eu tentei e senti uma dor atroz. - Não, dói muito, e o pé está dormente, não tenho nenhuma sensibilidade nele.- Mesmo com essa melhora, não creio que você possa andar antes de uns cinquenta ou sessenta

dias. O caminho daqui até Despen é praticamente todo montanhoso, você não conseguiria nem mesmo comigo ajudando, então, só nos resta ficarmos acampados aqui até a sua melhora.

56.Convalescença e conversasNão confiei muito na avaliação de Benunes, mas depois tive que admitir, ele conhecia muito de

poções e unguentos. Quase não tive mais febre e minha perna melhorava lentamente. Ainda não conseguia andar e dependia do Khozyano para tudo. Passávamos a maior parte do dia conversando, quando eu não tinha febre. Benunes era um ótimo ouvinte e adorava saber coisas de meu mundo. Tudo o interessava, histórias, lendas, relatos da sociedade, da nossa cultura.

- E você não sente saudades de tudo isso que me contou?- Tenho sim, de algumas coisas. Lá existem paisagens maravilhosas, e a arte, não tenho como

descrever, a música, e a dança. Desde que cheguei ao Lugar pensei muito sobre saudades. Vivendo aqui todo esse tempo, eu passei a enxergar saudade assim “como as ondas formadas por uma pedra que você atira na água. A saudade vem em ondas e quando você acha que passou, vem uma nova onda, mas cada uma é menos intensa do que a anterior. A não ser que você atire outra pedra, ela acabará”.

- E das pessoas, não sente saudades?- Hoje eu sinto muitas saudades. Da capital, dos amigos que deixei lá, e principalmente da Vency.- Você chamava por ela sempre que a febre subia e delirava. E o que você vai fazer? Você diz que

gosta dela, mas está se afastando.- Não sei. Até agora, não sei o quanto ela gosta de mim, ou se ao menos gosta de mim. Já pensei

muito sobre isso, sobre o rumo a tomar. Qual é o nosso caminho, o que percorremos até agora? Ou o que percorreremos? Existe uma poesia que eu gosto muito, escrita por um homem chamado Antônio Machado, que conta“... Caminhante, são tuas pegadas o caminho e nada mais; caminhante, não há caminho, se faz caminho ao andar...”. Tenho uma sensação, acho que nunca mais vou vê-la. Quer saber? Talvez isso seja realmente o melhor que possa acontecer. Afastar-me, nunca mais ouvir o nome dela. Vou viver minha vida e ela que seja feliz com o marido.

Ele não falou nada, percebeu que o assunto não estava aberto a discussões. Pelo menos no momento. Passado alguns minutos ele pergunta- e quem é Jon? Você também falava muito esse nome quando delirava.

- Jon? Ah... João.É o meu filho. É por ele que eu preciso voltar. Ele tinha quinze anos quando cai aqui. Estava morando com a mãe, não tínhamos um relacionamento ideal e como não dei noticias, ele deve pensar que eu o abandonei ou que não me importo com ele. Preciso voltar e explicar tudo a ele.

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Ver como estão economicamente. Em meu mundo isso faz uma grande diferença, lá o dinheiro é essencial.

- Você não morava com eles?- Não.-Por quê?- Nós vivemos juntos por cinco anos. Depois começaram as brigas, desentendimentos. A

justificativa foi “incompatibilidade de gênios”. Tivemos uma separação amigável e continuamos sendo amigos.

- Mas vocês não namoraram, não procuram se conhecer bem antes de se casar?- Claro que sim, nós namoramos durante seis meses.- Então, resumindo, demorou só cinco anos e seis meses para você perceber que era

incompatível com ela?- Falando assim parece ridículo, mas isso é bastante normal em meu mundo, no início tudo é

maravilhoso, cada um quer fazer a vontade do outro, mostrar só o lado bom.- E depois começam a mostrar o lado negro, ironizou Benunes. Desculpe o sarcasmo, mas depois

de algum tempo vocês começam a agir normalmente, ser o que realmente são, não é isso?- É, é isso mesmo.- Não sou grande conhecedor da natureza humana, sou apenas um comerciante, mas me parece

bem claro, tudo que tem de errado em seu mundo, está ligado à falsidade, desonestidade, mesmo que com boas intenções. Vocês se preocupam tanto em criar uma “imagem” boa, que depois, a própria imagem criada torna-se o problema. Se vocês se mostrassem como realmente são, tudo seria bem mais simples.

Lembrei-me do que a rainha havia comentado sobre a sociedade e suas exigências.- E depois, se for ao seu mundo, o que pensa fazer?- Com tudo resolvido, penso em voltar para cá. Gosto daqui, é um bom lugar para se viver. Mas

são muitas as dificuldades com relação às passagens. Achar uma que seja de ida e volta, ou apenas de ida e tentar reencontrar a passagem por aonde vim. E tenho outra preocupação, o que a rainha me falou sobre o tempo variar nas passagens, enfim, são muitas dúvidas. Como quase não existem relatos sobre as passagens, nunca terei certeza antes de usá-la. Isso está me deixando muito apreensivo. Mas apesar de todos os obstáculos, aqui aprendi outra coisa, bem diferente do que costumava fazer antes, não adiar, resolver tudo rápido é menos doloroso. E eu já me demorei muito.

57.VacinaQuando falava sobre as “maravilhas” de meu mundo, cirurgia, transplantes, me veio uma ideia.

Não sou perito em medicina, mas valia a pena experimentar. Já se passaram oito dias do acidente, minha perna melhorava muito vagarosamente e a dor ainda incomodava muito.

- Benunes, você conseguiria capturar um picador malhado vivo?- Acho que sim. Posso tentar. A dificuldade será aonde colocá-lo.Foi fácil fazer algo parecido com um coador de café. Com um

graveto flexível, juntando as pontas e amarrando cerca de um palmo para formar o cabo, e um círculo na outra extremidade. O mais difícil foi costurar uma manga de camisa fina no círculo. Costura era uma habilidade que nenhum de nós possuía. Mesmo assim, ficou funcional. O diâmetro da boca era de quase quinze centímetros, suficiente para caçar um picador.

Benunes desceu para as ruínas e cerca de meia hora depois volta como inseto.Enquanto ele mantinha o picador preso com o pano, deixando apenas o ferrão exposto, eu encostei a ponta da adaga e uma gota de veneno escorreu nela. Libertado o picador, coloquei a gota do veneno em um pequeno frasco e completei com água, chacoalhando bastante para diluir. Como não tínhamos muitos frascos, eu desprezava a maior parte do liquido, enchia novamente com água e chacoalhava bastante. Repeti essa operação umas dez vezes para deixar o veneno bem diluído. Com um pouco de receio bebi um pequeno gole. Não tinha gosto de nada.

- Então?- Nada. - Talvez demore um pouco para fazer efeito. Desanimado, nada mais podia fazer a não ser aguardar.

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58.Efeito tardioNa manhã seguinte acordei muito bem. Quase sem dor. A perna desinchou bastante e estava

sem secreções. Animado, tomei mais um gole do remédio. A melhora foi espantosa. Com mais dois dias já estava pisando quase sem dor. A perna já tinha a coloração normal, apenas um pouco avermelhada ao redor da ferida que estava quase fechada. Benunes estava impressionado e eu mais ainda.

- Tome uma dose também.- Por quê? Eu não estou doente.- Porque pode servir como vacina, caso você venha a ser picado, deve minimizar o efeito do

veneno.Meio desconfiado, mas vendo minha rápida melhora, ele acabou tomando uma dose também.Reavaliando meu tempo de convalescença, calculamos que com mais dois ou três dias já

poderíamos continuar a viagem. Pude notar que Benunes, embora tenha tido todo cuidado com minha saúde, estava aliviado por não ter que ficar mais dois meses parado aqui.

59.TúmbalesAo final da tarde, vimos um pequeno grupo se aproximando. Cinco homens. Mesmo à distância, a

capa e o capuz preto os identificavam facilmente.- São Túmbales, disse Benunes, os monges nômades. São uma espécie de Elderes, muito sábios,

dedicam-se apenas aos estudos. Estão em permanente peregrinação em busca de novos conhecimentos. São os únicos que atravessam o deserto, dizem que têm o poder de produzir água, entre muitos outros, porém são muito reservados e não divulgam seus segredos.

Eles chegaram silenciosos e nos cumprimentaram com um maneio de cabeça. Eram todos altos, magros, a pele de uma palidez doentia, que mal se notava, pois estavam cobertos com uma grande capa, e o capuz negro escondia o rosto. Vendo minha perna coberta pelo pano, um deles se aproximou e perguntou - você machucou a perna?

- Tive um encontro não muito agradável com um picador malhado.- Posso ver? - E tirou o pano ante que eu tivesse tempo de responder. Vendo o estado da lesão,

quase sã, achou que já se haviam passaram várias semanas do acidente.- Foi há exatamente oito dias.- Impossível, com apenas oito dias sua perna ainda estaria muito infeccionada, então deve ter

sido outro inseto.- Não - interferiu Benunes - foi um picador malhado sim, eu mesmo o retirei da perna dele. E a

perna estava horrível, só melhorou depois que começou a usar um remédio especial, eu nunca tinha visto uma melhora assim antes, e olhe que já vi muitas picadas de picador malhado. Esse remédio foi produzido com técnicas do mundo dele.

- Que remédio, posso ver?- Claro - e estendi-lhe o frasco.Agora todos os Túmbales nos rodeavam, interessados na história. Olhando com curiosidade o

pequeno frasco, que foi passado de mão em mão, aberto e cheirado por todos. - Você poderia nos ceder um pouco desse remédio?- Melhor do que isso - intrometeu-se Benunes novamente - ele pode ensiná-los a fazer.Mesmo com toda a discrição e impassividade própria dos lugarianos, e ainda mais acentuada nos

Túmbales, podia-se notar o entusiasmo deles. Quietos, tomaram nota, enquanto eu explicava o procedimento, interrompendo somente para sanar alguma dúvida.

- Mas usou o próprio veneno? E porque tão diluído?-Sim, existe uma linha de cura que fala que o objeto causador servirá para a cura do mal que

produzir. Sobre a diluição, eu tinha receio que o veneno em quantidade pudesse piorar meu estado, a ideia era produzir no meu organismo apenas um estímulo para a cura.

- Você era um curador no seu mundo?- Não, na verdade não entendo muito de curas, o que sei é superficial, nem sabia se teria um bom

resultado, foi apenas uma tentativa.Terminado meu relato, eles se afastaram e passaram o resto da tarde e entraram a noite

conversando em voz baixa.

60.Mapa da água

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No dia seguinte fui conversar com os monges enquanto eles se preparavam para prosseguirem sua jornada. Seguiriam para norte, além das savanas, tentando ultrapassar a cordilheira numa viagem de aproximadamente um ano. Seria uma viagem árdua, pouca água e muitos animais pelo caminho.

- Os piores são os perins, não?- Os perins são inofensivos, basta ficar imóvel.- Sim, mas por quanto tempo?- Algumas horas, um dia, o tempo que for necessário.- E água? Esse é outro problema, não?- Sim, é verdade, mas temos muitos mapas de minas e córregos subterrâneos. Toda viagem é

planejada levando-se em conta, primeiro, a existência de água.- Ah, deve ser por isso que pensam que vocês criam água por magia.Eles se divertiram com essa fantasia. O monge que havia olhado minha perna, disse que o

raciocínio tinha alguma lógica, pois ninguém atravessa o deserto. E devem imaginar que quem o faz tem algum poder secreto. Mas na verdade não existe segredo nenhum, apenas saber a localização da água, nada mais. Benunes havia me dito que eles eram muito zelosos de seus conhecimentos, porém atendendo ao meu pedido ele me mostrou uma representação do deserto e dos locais de água, eram quase cinquenta possíveis paradas, a maioria delas escondidas ou de acesso difícil. E o melhor, permitiu-me copiar o mapa. Quando perguntei o que encontrariam ao norte, pois no meu mapa só tinham savanas e terminava nas montanhas, impassível ele me disse- é o que queremos saber, se nos encontramos novamente, daqui a um ano lhe contaremos.

Silenciosamente, como chegaram, eles se foram. Assim que eles partiram, Benunes não parou mais de falar. Ele não parece ser realmente um lugariano; pequeno, inquieto, fala demais e é extremamente curioso. Imagino que quando viaja sozinho ele converse com os madrons. Eufórico era pouco para descrevê-lo vendo o mapa da água. Para um viajante, esse conhecimento é a maior das riquezas.

- Veja Foras, aquilo que você falou sem saber, agora pode se tornar realidade, viajar de Kho-zy à Capital diretamente pelo deserto, uma viagem de apenas um mês, ou até menos. Com a localização da água, isso é perfeitamente possível. Que sorte você ter sido picado, nossa viagem atrasar e encontrarmos os Túmbales.

Não gostei muito dessa última declaração, mas ele sequer reparou.Ele continuou - Você tem algo de especial, nunca soube de alguém a quem os monges tenham

cedido informações assim.- Eles ficaram agradecidos por eu ter-lhes ensinado como produzir o remédio, deve ter sido

apenas isso. Esses monges devem ter algum treino especial ou você acha que eles estavam zombando quando falaram de ficar um dia inteiro imóvel?

- Na verdade Foras, sabe-se muito pouco dos Túmbales, existe muita especulação. Por estarem em constantes viagens pelo deserto dizem que existe um mosteiro oculto por lá. Nesse local eles teriam seus ensinamentos e treinamentos. Mas também falam coisas desabonadoras deles, que raptam crianças dotadas para criarem dentro da sua ordem. São conversas sem coerência, pois que eu saiba, nunca ninguém viu um monge cometer um ato censurável. Apesar de se chamarem monges, a ordem não é religiosa, é uma confraria de estudos e aprimoramento pessoal. Já ouvi comentários que possuem uma biblioteca do tamanho de uma pequena vila.

61.MontanhasResolvemos descansar mais uma tarde e sair na manhã do dia seguinte. Quando acordei,

Benunes já estava em pé. Apesar do longo tempo que permanecemos na colina, o único vestígio de que ali estivemos era a grama pisada. Como era seu hábito, ele já havia enterrado todo resíduo que produzimos.

Nosso plano de viagem para Despen não tinha muita opção. Subir a cadeia de montanhas até o planalto a oitocentos metros de altitude. A segunda etapa seria mais simples, dois ou três dias por estrada até Despen.

Mas subir não era tão fácil. Embora não corrêssemos mais perigo com os perins, e o clima fosse ameno, a força física despendida era imensamente maior que no terreno plano. Eu já não sentia nenhuma dor na perna, mas a dormência me fazia coxear e andar um pouco mais devagar. O bastão negro foi de grande ajuda, pois andava apoiado nele. A doença me deixou enfraquecido, meu ritmo era lento, e precisava fazer paradas regulares para descansar. À medida que subíamos, a trilha desapareceu

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e logo estávamos subindo pedra a pedra. O madron é bom saltador e Benunes subia facilmente, eu era o peso morto do grupo. Estava de mau humor, sentindo pena de mim mesmo, sem vontade de conversar, me esforçava até os músculos da perna doerem, a dor absorvia minha atenção. Eu fazia um esforço desmedido tentando manter o ritmo. As paradas agora só eram possíveis quando a montanha apresentava algum platô. Ainda não havia escurecido quando chegamos a um desses platôs, e resolvemos interromper a marcha do dia. A vista a quinhentos metros de altura era magnífica, mostrando toda a planície de savanas, as ruínas de Esplendor e, mais adiante, o rio parecendo apenas uma linha azulada. Água não faltava, pois escorria em filetes pela encosta rochosa, porém só tínhamos comida para mais dois dias. Com sorte em dois dias estaríamos chegando ao planalto. A parada de dez dias nas ruínas não fazia parte de nossos planos e consumiu muito de nossos víveres. Nessa noite dividimos o pouco de carne seca e farinha. A temperatura noturna caiu muito. Uma inesperada pancada de chuva, embora rápida, deixou-nos encharcados. Ao amanhecer uma neblina irritante impediu os tão esperados raios de sol. Durante a subida, Benunes colhia alguns cogumelos que salvariam nossa próxima refeição. A dificuldade da escalada se acentuava. Benunes sem reclamar, retardou seu passo e ainda assim muitas vezes tinha que voltar para me auxiliar em alguma pedra mais íngreme. Eu alternava entre não ter fôlego ou mal conseguir andar pela dor nas pernas. Minhas pernas doíam não pelo ferimento, mas pelo esforço. Quando a dor aliviava, o fôlego faltava. A sensação que eu tinha, era que não aguentaria dar mais nenhum passo, meus pés pesavam toneladas. Quando paramos ao anoitecer, cada músculo do meu corpo doía. Nessa noite comemos o que restou da carne com os cogumelos. Afortunadamente não choveu. Mal me lembro do terceiro dia de escalada. Tive tontura em varias ocasiões, uma das quais resultou em uma queda com um corte no antebraço e varias escoriações. A fome torturava tanto quanto as dores. Cheguei a imaginar como seria um pernil assado de madron. Ao entardecer a encosta atenuou e pegamos uma pequena trilha. Uma hora depois, com o sol já posto, estávamos no alto do planalto. Abrigados em uma pequena gruta, exaustos, pudemos passar a noite aquecidos por uma fogueira. Era bom saber que no dia seguinte voltaríamos a andar em terreno plano.

62.Nana LiDormir no chão, enrolado em uma capa, não é exatamente o que se chama de um sono

reparador, mas só o fato de acordar seco e aquecido já era uma bênção. Levantamos com o ar fresco da manhã, e sem desjejum; só nos restava enfrentar a estrada. Seguimos em ritmo lento pela trilha com destino à Despen. O sol já estava quente no meio da manhã. Aproveitamos a sombra de umas das grandes árvores, tão comuns na região. Benunes subiu e colheu alguns frutos de casca dura e espinhosa, com uma polpa branca, macia e doce, que abrandou nossa fome. Lembrei-me já de ter visto essa fruta no desjejum na estalagem de Vency, e me arrependi de nunca tê-la experimentado, pois é realmente muito gostosa. Quando falei em levarmos alguns, ele disse não ser necessário, pois logo chegaríamos à casa de um amigo. Em pouco mais de uma hora, saímos da trilha em direção a um bosque onde, escondida pela vegetação, encontrava-se uma grande casa de madeira.

-É aqui, a casa de Nana Li - disse Benunes. Mas ninguém apareceu quando ele chamou. Subimos o alpendre. A porta estava apenas

encostada, Benunes empurrou e entrou.- Entre Foras, eu conheço bem Nana, ele não vai se importar.Apesar de grande, a casa era simples com um cômodo apenas, as camas eram separadas da sala

central por uma cortina. No centro havia uma mesa grande e rústica de madeira com muitas cadeiras e num dos cantos um fogão de lenha e outra mesa estreita e mais comprida. Nas paredes, adagas, espadas, arco e flechas penduradas. A parede oposta era repleta de prateleiras. Ali ficavam roupas, utensílios e comida. Comemos o que tinha: pão, queijo, carne seca e cerveja quente. Comi saboreando cada pedaço, há tempos não tinha uma refeição decente. Satisfeitos, alimentamos o madron e resolvemos descansar e esperar por Nana. Benunes fez um curativo no corte que eu tinha no braço enquanto me falava da família Li.

- Estranho, eles devem ter ido a Despen, mas em geral Nana vai à cidade com seus dois filhos adolescentes, e sua esposa fica cuidando da casa e da menina. Provavelmente está tendo alguma festa. Quando acontece isso, a família vai toda. Ele foi um grande companheiro de festas. Fizemos muitas viagens juntos antes dele se casar.

À tardinha, fizemos outra refeição e resolvemos dormir em camas para variar. Pela manhã retomamos nosso caminho. Benunes deixou um recado avisando que ali estivemos, e colocou uma moeda na caixa que eles guardam suas economias, pelos gastos que fizemos, visto que ainda

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carregamos víveres para a continuação da viagem. A despreocupação com bens materiais e a confiança na honestidade geral, ainda que comuns no Lugar, sempre me impressionam.

63. DespenO trajeto até Despen foi relativamente fácil. A trilha alargava-se, sinal de uso mais habitual.

Frequentemente víamos casas e plantações ao longe. Nossa marcha poderia ser mais rápida não fora minha fraqueza, que melhorava dia a dia, e o coxear da perna direita. Na manhã do terceiro dia avistamos Despen. Do alto tínhamos uma visão da cidade toda, cercada de montanhas, ao fundo de uma depressão. O rio do norte divide a cidade em duas, e forma diversas ilhotas que do alto podemos observar mais claramente, justificando o epíteto de cidade das pontes. O clima estava frio e a caminhada, poder-se-ia dizer até que foi agradável. O caminho até a cidade era um declive acentuado, pavimentado de pedras. Logo estávamos entrando na pequena e arborizada cidade. Pontes de todos os tamanhos e estilos eram encontradas com frequência devido aos inúmeros braços do rio. Embora bem menor do que a Capital, suas ruas eram mais largas e com fileiras de árvores em ambos os lados. As casas eram semelhantes, de madeira, em sua maioria com dois pisos. Bandeirolas pelas casas, praças e atravessando as ruas, de uma árvore à outra, davam um tom alegre de festa, que depois viemos saber, tinha acontecido no dia anterior.

A população predominante era claramente de descendência oriental. Olhos levemente puxados, cabelos pretos lisos e pele clara. Em menor número, podia-se observar uma grande variedade de raças.

O que mais me chamou atenção era que alguns tinham as orelhas pontiagudas. Apesar de nosso péssimo aspecto, sujos e barbudos, quando passávamos nos cumprimentavam com um maneio de cabeça ou apenas sorriam. As mulheres, como na Capital, usavam roupas muito coloridas e enfeitando a cabeça algumas usavam guirlanda de flores, outras apenas flores presas ao cabelo. E sempre, sempre sorrindo.

64.O taberneiro escritorNa rua principal, segui Benunes até a estalagem de Sin-Cler. Habituado a hospedar-se aí, ele

entrou pelos fundos e prendeu o madron. No átrio o dono o esperava de braços abertos.Sin-Cler, o taberneiro era um homem baixo, gordo, provavelmente mais de cem quilos, careca,

com uma trança comprida. Muito alegre, quase esmagou Benunes com seu abraço.- Olá Benunes, como foi a viagem? Chegou antes do esperado.- Os negócios foram bons. Vendi toda mercadoria e já estou voltando. Deixe-me lhe apresentar

meu amigo, Foras, ele vai comigo à Kho-zy.- Foras, este é o único taberneiro escritor que eu conheço. Quando passei aqui estava fazendo

um novo romance, não é?Já acomodados em uma mesa, perto da lareira, tomando cerveja, Sin-Cler nos conta.- Estou bem adiantado no romance, é sobre um homem muito íntegro, ele é Elder em uma cidade

onde as pessoas altas desprezam as de estatura baixa. Era a descrição que tinha feito quando você passou por aqui, está lembrado? Mas agora tive outra ideia: ele descobre que é descendente dos baixos, seu avô era um alto e sua avó uma baixa. A verdade o corroe por dentro e sua integridade o impede de oculta-la. Quando ele revela sua linhagem, a população passa a evitá-lo, mesmo sendo alto, apenas por ter sangue do clã dos baixos. Ele não fica bem nem entre os altos e nem entre os baixos. Esse é um resumo do drama. O que acharam?

- Não disse, Foras? Ele tem alma de escritor. Quem mais poderia pensar numa situação dessas, onde uma pessoa desprezasse outra por ser diferente fisicamente? Eu entendo que isso é uma fantasia, mas mesmo assim, a ideia é absurda. Imagine isso aqui em Despen, se a maioria desprezasse quem não tem olhos puxados, ou os que não têm cabelos pretos e lisos ou a pele clara.

- Ora - disse Sin-Cler - eu falei de diferença de tamanho, uma coisa evidente, e não de uma simples diferença de cor de cabelo ou pele. É uma diferença mais acentuada, incapacitante, por exemplo, os baixinhos não conseguem pegar uma coisa que está no alto. Eu sei que na realidade isso jamais aconteceria, mas é muito divertido criar essas situações contraditórias, impossíveis. E você Foras, o que achou?

- Bem, não acho tão irreal assim essa situação.Um silêncio tomou conta do ambiente, como se eu tivesse falado uma heresia.- No meu mundo acontecem algumas circunstâncias bem parecidas com o que você escreveu. Em

geral são as maiorias que não gostam das minorias, brancos e negros, pobres e ricos, bonitos e feios,

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pessoas de diferentes religiões. Eu mesmo conheço algumas pessoas que não gostariam de andar ao meu lado hoje apenas pelo meu coxear. Houve tempos passados onde pessoas eram vendidas como escravos, como mercadoria. Esse preconceito já gerou muito ódio, violência e até guerras.

Os dois me olhavam pasmos, como se não acreditassem no que ouviam.Sin-Cler se levanta, pega o calhamaço de manuscrito e, solene, atira-o no fogo da lareira - Se

houver a mínima possibilidade do que eu escrevi influenciar apenas uma pessoa, mesmo que em mil anos, esse é o melhor destino para meu livro. Acho que vou escrever sobre uma cidade onde os madrons sabem falar, é mais plausível.

65.Chin, O Pequeno ElderContinuamos conversando amenidades, até a hora do almoço, quando Sin-Cler, ciente de nossas

aventuras e desventuras, nos brindou com um festim. Depois do relatório minucioso, desde nossa saída da Capital, foi a vez do taberneiro colocar Benunes a par das novidades de Despen. O grande alvoroço local foi a festa para a indicação de Chin, o mais novo Elder de Despen e de todo o Lugar. Com apenas três anos de idade, Chin foi escolhido pelo conselho dos Elderes Anciões. Aparentemente uma criança normal que gosta de brincar, comer doces e chora quando contrariado, mas suas decisões sempre surpreendem a todos, inclusive os próprios Elderes. Comenta-se que até os Túmbales o convidaram para que os acompanhasse.

- Aqui em Despen -me explica Sin-Cler -temos um sistema um pouco diferente da Capital. Quando um Elder é inquirido e tem alguma dúvida sobre uma questão, reporta para avaliação do conselho dos Anciões, composto pelos três Elderes mais antigos, que ponderam e aconselham sobre o assunto. Com a morte de um dos conselheiros, inusitadamente eles chamaram o pequeno Chin para assumir a posição de prior.

Deve ser uma criança extraordinária, pensei, e muito interessante conversar com ela. O significado literal de Elder é ancião, antigo, e é até contraditório uma criança tão nova ter sido escolhida. Imaginei se teria a coerência e a lógica de Hermif, ou da rainha, com quem tanto gostava de conversar.

Entre conversa, petiscos e cerveja, fomos até o entardecer. Finalmente o cansaço nos pegou, já estava escuro quando fomos para o quarto e após um banho, ambos caímos em sono profundo, deleitados por poder dormir em uma cama novamente.

O ar frio da manhã de Despen entra pela janela acompanhado dos primeiros raios de sol e do chilreio dos pássaros. As duas refeições somadas a uma noite de sono tiveram um efeito revigorante. Acordamos bem dispostos, com fome leonina. Após o desjejum falei com Sin-Cler que gostaria muito de conhecer o pequeno Elder.

- Nada mais fácil - respondeu-me - ali na praça, vê aquela criança brincando sozinha? É ele.

66.Jogo de pedrinhasEra uma criança graciosa, cabelos pretos lisos, olhinhos puxados, e um grande sorriso no rosto.

Agachado, brincava com pedrinhas coloridas num jogo estranho. Quando me viu ao seu lado falou- Eu sou Chin, quem é você?

- Me chamo Foras, não sou daqui, vim de muito longe. Soube que você teve uma grande festa ontem.

-É... Teve muito doce. - Queria conversar um pouco com você, posso?- Mas já estamos conversando. Não quer brincar?- Eu não conheço essa brincadeira.- É fácil - ele animou-se - tem que ir passando as pedrinhas, de buraco

em buraco, só pode uma de cada vez, até cair no buraco que está a outra pedra da mesma cor.

Não entendi bem, mas tentei jogar enquanto conversávamos. - O que você faz como prior?- Não sei bem, acho que é para ajudar as pessoas.Quando perguntei se ele ensina a verdade às pessoas, ele tirou o sapatinho, me mostrou e disse -

serve só para mim. A verdade não é minha. Procuramos as respostas juntos.- E quem ensina o que é certo ou errado? Os Elderes, os Deuses?- Devemos evitar o mal, fazer o que é certo por ser certo e não para seguir ordens de homens ou

Deuses.

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- Mas como reconhecer o mal? Ele Existe?- Claro que existe, e tem nome, chama-se medo. Ele impede a pessoa de fazer coisas novas,

obriga a fazer tudo sempre igual. Liberdade é não ter apego e daí não existirá o medo.- Por quê? Não entendi.- Quanto mais apegado, mais medo você tem de perder. Medo de perder suas coisas, medo de

errar, medo de ser criticado, medo de não ser considerado inteligente ou engraçado ou querido pelas pessoas. Medo de morrer, de perder a vida.

- O que é a morte? O que acontece depois dela?- Se eu lhe pedir para procurar um objeto que você não conhece, como você o procurará? Não

dá, não é? Você tem que conhecer para procurar. Você só poderá “conhecer” se experimentar. Faça o que você gosta, com prazer e bem feito, assim você viverá bem e morrerá bem.

- Mas eu só posso aprender pela observação e experiência? E estudando ou analisando?- Você sabe como nossa cabeça nos engana? Pelo raciocínio. Você só pode raciocinar usando

conhecimento antigo, conhecimento que já tem, ou seja, você nunca vai conhecer algo novo dessa maneira. Para você realmente aprender o novo, você tem que perceber, é com o ato de ver, livre de julgamentos, apenas observando. O que é certo e verdadeiro será óbvio, você não precisará perder horas e horas de raciocínio, acontecerá de imediato. E você perdeu!

- Perdi o que?- O jogo. Acabei de completar minha última pedra.Quando me levantei para ir, ele estendeu a mão dando-me algumas pedrinhas coloridas e disse -

leve com você para treinar, você joga muito mal.Eu fiquei realmente impressionado, às vezes esquecia que estava conversando com uma criança,

parecia dialogar com um velho Elder e o interessante era sua forma de falar, em nenhum momento expressava arrogância, ele apenas falava o que sabia, era um desejo real de transmitir seu conhecimento e ajudar. E apesar da pouca idade demonstrava uma segurança impressionante, que poucas vezes observei em adultos. E me veio outra duvida à cabeça, por que isso acontecia? Como uma criança podia ter tamanha coerência e conhecimento? Mas isso nem os moradores de Despen, nem os Elderes me esclareceram. Talvez os Túmbales o fizessem.

67.Raciocínio ou percepção?Saí dali pensando nas palavras do pequeno Elder. Raciocinar? Ver? Estava tão distraído que não

reparei Benunes chegando. Sempre alegre, ele me carregou para uma taberna.- Vamos almoçar Foras, a taberna Perin-Perin tem todas as especialidades de Despen. A taberna era pequena e aconchegante, com apenas cinco mesas. Uma lareira ao fundo

mantinha o ambiente aquecido. O taberneiro, Orin, atendia o balcão e as mesas enquanto sua esposa cozinhava. Pequeno, pele muito pálida e orelhas pontudas, me lembrava personagens de historias de elfos e duendes. Vinha do clã de Sharpir, uma pequena comunidade ao norte de Despen. Faziam as melhores espadas de Despen. Logo que sentamos, ele nos trouxe duas canecas de cerveja.

- A primeira é por conta da casa, é uma tradição - oferece Orin. O malte avermelhado e encorpado combinava bem com o clima frio de Despen. Depois que fomos apresentados ele disse - o que achou da cerveja? Bem melhor que aquela coisa aguada da Capital, não acha? Depois das espadas e adagas, a cerveja é a nossa maior especialidade.

As perguntas eram retóricas. Antes que pudesse responder, Orin havia já iniciado outro assunto. Mas ele tinha razão, a cerveja era ótima. Agora falava das adagas, espadas e lanças. Ele era um apologista de Despen. Só se calou quando mostrei minha adaga. Pediu-me para vê-la. Pesou-a na mão, e elogiou-a sem muita convicção - é, é uma bela adaga, os Irmãos da Folha também as fazem bem.

- Fazem bem? Indignado, Benunes continua - Essa é a melhor adaga que você já teve na mão em toda sua vida Orin.

- Tenho que admitir, é uma boa adaga. Bonita mesmo. Interessantes os desenhos na proteção do punho e o pontilhado abaixo dele.

Pela primeira vez, olhei com mais atenção e reparei que abaixo das filigranas havia uma linha de pontos muito pequenos. Pareciam pontos, mas olhando bem de perto se podia notar que eram uma serie de pequenos triângulos.

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Na hora me veio à cabeça o desenho dos triângulos do louco. Ele encontrou a passagem perto da tribo dos Irmãos da Folha, tinha que haver uma ligação. Enquanto Benunes e Orin discutiam, eu comecei a desenhar a sequencia dos pequenos triângulos. Então eu gritei - É claro, como o pequeno Elder disse, agora percebi, não é raciocínio, é entendimento, basta enxergar.

- O que tem o pequeno Elder a ver com a adaga? Os dois me olhavam sem entender nada.

68.A chaveProcurei ansioso o mapa do louco na minha mochila. E comparei com o desenho dos triângulos

que acabara de fazer. Bingo! Ali estava. - Não estão vendo, os triângulos?Olhem as três luas, imaginem uma linha ligando-as, formaria o

desenho de um triangulo. E quando as luas se movessem mudariam a forma do triangulo, como nessa sequência que está desenhada na adaga e também como no desenho do louco. É a chave para a abertura da passagem. Notem, essa série que marquei é exatamente a mesma do mapa do louco. É uma marca de tempo, provavelmente quando a passagem se abrirá.

◤ ▼ ◥ ◢ ▲ ◣ ◤ ▼ ◥ ◢ ▲ ◣ ◤ ▼ ◥ ◢ ▲ ◣- E por que no mapa ele pintou os triângulos de cores diferentes, roxo e rosa?- Não faço a menor ideia, mas terei que descobrir. Também temos o mapa da localização

aproximada da passagem. Quando a encontrarmos talvez tenhamos a resposta.- Localização aproximada? Foras, aquele mapa é muito pequeno, a área é de aproximadamente

umas quatro léguas quadradas.- Quatro léguas lug? Isso equivale a quatrocentos quilômetros quadrados, é uma área e tanto

para procurar. - Talvez...- Talvez o que Benunes?- Talvez os Irmãos da Folha saibam algo.Mesmo sem todas as respostas, eu estava muito animado com a descoberta que havia feito. Não

conseguia ficar parado pela excitação. Passamos o resto do dia passeando e conhecendo melhor Despen. Andamos por praças, tabernas e lojas. Na última loja que estivemos, “Lâminas Branka”, havia uma grande quantidade de espadas e adagas, com ampla variedade no tamanho, forma e adornos. Akelli, a proprietária da loja era exímia conhecedora de lâminas, desde sua fabricação até a utilização. Conhecida antiga de Benunes, já haviam feito muitos negócios anteriormente. Ficamos muito tempo conversando e resolvemos continuar a conversa na taberna de Orin, quando ela fechasse a loja.

69.AkelliSaímos andando a esmo e eu, impaciente, apressava Benunes para seguirmos viagem e procurar

a pista da passagem. Diante da minha ansiedade ele retrucava- mas Foras, o melhor das viagens são essas paradas, dormir em camas limpas, comer e beber, namorar.

Já estava escuro quando passamos pela taberna de Orin, e Akelli estava na porta nos esperando. Ao entrarmos, não encontramos nenhuma mesa vaga e até o balcão estava cheio. Resolvemos ir à outra taberna.

Andávamos os três por uma pequena praça com inúmeras pontes sobre um braço calmo do rio, quando ouvimos um grito.

Nana Li com a esposa e os filhos acenavam do outro lado da praça. Todos abraçaram Benunes, mas a alegria maior foi da pequena, que se atirou ao seu pescoço chamando-o de tio. Após as apresentações sentamo-nos na praça para conversar. Acabadas as festas de Despen, a família Li já se preparava para voltar. Todos queriam contar as novidades e falavam ao mesmo tempo. Algum tempo de conversa e eles levantaram-se para voltar à estalagem, pois a pequena já dormia nos braços da mãe. Acedendo a insistência de Nana Li, Benunes os acompanhou, para conversarem um pouco mais.

Continuamos, eu e Akelli, no caminho iluminado pelas três luas cheias. Andando à minha frente, contra luz, seu contorno era emoldurado pelo brilho das luas. Era alta e esguia, porém com pernas e braços fortes. O vestido justo realçava seu quadril arredondado e seus seios firmes. As proporções de seu corpo eram perfeitas. Os olhos castanhos amendoados davam um ar exótico a seu semblante elegante. Os cabelos negros ondulados esvoaçavam com a brisa noturna. Aos trinta anos, Akelli estava no auge da beleza.

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Apressei o passo para alcançá-la. Eu estava curioso por que uma jovem bonita cuida de uma loja de armas e ela contou-me que herdou a loja do seu pai, mantendo a tradição da família Branka, há cinco gerações. Aprendeu com seu pai tudo sobre lâminas e também sobre luta e defesa pessoal. Sempre se esmeraram para melhorar a qualidade das lâminas, obter o metal perfeito e suplantar o clã Sharpir, seus eternos concorrentes. Mas se refere à concorrência como saudável, estimulando-os a melhorar, não havendo hostilidades entre eles. Sempre que possível, se ajudam, com informações e descobertas de melhores ligas. Esteve para casar, mas seu noivo morreu em um acidente nas montanhas. Desde a morte de seu pai, mora com a filha de quatro anos, na casa nos fundos da loja.

- Pronto, essa é minha vida. Nada mais simples.- E o que pretende fazer? Continuar com a loja?- Sim, e ensinar tudo que sei à minha filha. Torná-la uma armeira como eu, claro que respeitando

a sua vontade, mas isso não será um problema, pois ela adora manusear armas. Ao contrário de você, já tenho minha vida definida. E como nossa noitada de cerveja não deu em nada, quer vir à minha casa? Tenho aguardente de batata.

Akelli era muito atraente, mas eu não esperava esse convite. O convite me trouxe à lembrança Vency, saudades, possibilidade de relacionamento, mas como relacionar se eu iria embora logo, e a filha dela? Devia estar em casa. A situação seria constrangedora.

- Vai ficar pensando quanto tempo? Não lhe propus casamento. Você é divertido e poderíamos passar uma noite agradável, só o convidei para dormir comigo.

Ela puxou-me pela mão e assim que atravessamos a praça estávamos em frente à sua loja. Eu a segui por um corredor externo, até a porta da casa. Notando que eu entrei tentando fazer o maior silêncio possível ela me diz - estamos sozinhos, minha filha está passando uns dias na casa do tio, na fazenda.

Dentro da casa, nem nos lembramos da aguardente. Esqueci todas as preocupações e dúvidas. O desejo era intenso e recíproco. Fomos tomados por uma paixão avassaladora e o sexo foi a liberação das emoções contidas, represadas. Depois, nos deixamos ficar deitados, exaustos. Dormimos abraçados. Acordei antes de Akelli e passei um tempo contemplando sua feição serena enquanto dormia. Sua pele morena era tão suave que não resisti a acariciar seu corpo, porém isso fez com que ela acordasse. Espreguiçou demoradamente e me vendo perguntou - dormiu bem?

- Maravilhosamente bem, e você?- Como uma pedra. Nunca acordo tão tarde. O sol já está alto - dizendo isso, levantou-se,

preparou o desjejum, voltou ao quarto e, calmamente e sem pudor, vestiu-se enquanto eu a admirava ainda deitado. Sem o estorvo das roupas, seu corpo revelava-se magnífico. Tinha a beleza de uma deusa de ébano. Fizemos o desjejum na cama, sem pressa, aproveitando mutuamente a companhia. Ainda divagava em meus pensamentos quando Akelli disse- se quiser pode ficar deitado mais um pouco, mas eu tenho que ir abrir a loja.

Sem graça, levantei-me rapidamente e me vesti a tempo de sairmos juntos. Na porta, um beijo rápido de despedida quando ela perguntou - nos vemos à noite?

70. Segunda noiteEncontrei Benunes me esperando no átrio da estalagem.- Como foi a noite? Nem responda, pelo sorriso estúpido estampado em sua face, já posso

imaginar. Akelli é uma moça admirável. Sabia que vocês se dariam bem. - Realmente, ela é uma ótima companhia, mas...- Mas o quê? - Não sei, parece que estou fazendo algo errado, que não estou agindo correto com ela.- Ela cobrou alguma coisa? A noite não foi boa?- Não, ela não cobrou nada e a noite foi perfeita.- Então, deixe de besteiras, eu a conheço bem, ela é muito franca, se

algo incomoda-la, ela lhe falará.Esperei Benunes fazer seu desjejum e saímos, ele para fazer seus

negócios, comprando material para levar a Kho-zy, e eu procurando uma capa ou manto quente, pois embora o clima estivesse ameno, à noite a temperatura caia muito. Achei capa longa, de fios finos trançados, fresca no verão e quente no inverno, com um capuz para chuva, perfeita para a viagem. Minha imagem não era das mais simpáticas, com essa capa escura,

Foras

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o capuz enterrado na cabeça, a barba comprida que não corto desde o início da viagem, o bastão na mão, e o constante coxear. Mas isso não me preocupava. Não buscava simpatia. Imerso em minhas dúvidas, a aparência era irrelevante. Descansei a tarde e pouco antes do escurecer encontrei Benunes conforme havíamos combinado, na taberna de Orin. Com sua habitual loquacidade ele me colocou a par do que estava fazendo, que Nana Li e a família foram embora pela manhã, depois começou o relato do que faltava para a viagem, aonde era mais barato, a qualidade, e falava e falava e falava... Suas palavras pareciam distantes... Provisões... Muito peso... Madron, até que ele gritou - FORAS, você não escutou uma palavra do que eu disse. Saia daqui Foras, o corpo tem que estar onde a cabeça está. Vá ver Akelli de uma vez. Vou jantar com Sin-Cler, e conversamos amanhã cedo, certo?

Nem terminei minha cerveja; sai imediatamente, sem me importar com seu olhar zombeteiro. Enquanto estava indo para a casa de Akelli pensava “Gostaria que Vency estivesse aqui para me ver com Akelli. Eu queria causar-lhe ciúmes estando feliz com outra". Mas quando a porta se abriu e vi Akelli, meu pensamento foi só para ela. Sua companhia era extremamente prazerosa. Junto dela eu me esquecia de Vency. Conversamos enquanto ela preparava o jantar. Falamos de tudo, da vida dela e da minha, brincamos com minha inaptidão culinária quando tentei ajuda-la e como castigo, tive que limpar tudo que derrubei no chão. Eu estava realmente feliz. Terminado o jantar, passamos o resto da noite na cama. As roupas voaram livres antes de chegarmos ao quarto. A cama era tudo que queríamos. Nossos corpos se enroscaram em um ritmo harmônico. O contato da pele, o compasso da respiração ofegante, tudo em sintonia até a explosão dos sentidos e o deleite do desfalecer.

Depois, permanecer colados, admirando o contraste produzido pela sua pele negra com a minha clara. Demoramo-nos em silêncio, o entendimento dispensava as palavras. Podíamos ouvir claramente nossa respiração, agora mansa.

- Depois que meu noivo morreu, você é o primeiro homem com quem fico. Já faz quatro anos. Eu não esperava me relacionar com ninguém novamente. Não fique preocupado, não estou falando de relacionamento estável, mas apenas do momento. Conhece-lo foi uma coisa boa que aconteceu na minha vida. Por que ficou tão calado Foras? Já disse que não precisa se preocupar.

- Não, não é isso. Estava distraído, pensando como tudo aqui é tão simples. - No seu mundo sexo é diferente? Mais complicado? - E me olhou de forma divertida esperando a

resposta. - O sexo é exatamente igual, o relacionamento que é diferente. Em alguns lugares, uma mulher

ficar com um homem como fizemos ontem e hoje, sem um compromisso, significaria a perda da honra.- Sabe o que eu penso? Que devemos honrar a nossa necessidade de ser feliz. Você me faz feliz

neste momento, isso basta.- E se eu fosse casado?- Se você fosse casado, ao invés de ir para Kho-zy, você voltaria para sua casa.- E se estando em casa, ficasse com saudades de você?- Se tivesse saudades, você viria me ver. Ora Foras, pare de perguntar o óbvio. Lembrei-me das palavras de Hermif “Sabe o que é bom hoje? É bom estar aqui agora”.Permanecemos abraçados até o sono chegar. Era bom estar ali.

71. Última noiteMais três dias se passaram que eu mal vi Benunes. Encontrávamo-nos rapidamente pela manhã e

às vezes ao entardecer em alguma taberna. Já era nosso sexto dia em Despen, quando ele me disse- amanhã de manhã iremos embora, já está tudo preparado.

- Tão cedo assim? Você disse que gostava dessas paradas.- Realmente eu gosto, mas já se passaram seis dias. Todas as compras já foram feitas, tanto do

material para venda como das provisões para a viagem. Embora goste muito da sua companhia, se você não quiser seguir viagem, eu entenderei perfeitamente. No seu lugar eu também teria muita dúvida.

- Não, não há dúvidas, ainda que me agradasse ficar, tenho que continuar minha jornada. Eu sinto que estou muito perto de descobrir o segredo das passagens. Vou aproveitar a tarde para me despedir de todos, Orin, Sin-Cler, o pequeno Chin e por último verei Akelli. Saímos ao alvorecer?

Depois das despedidas, no meio da tarde, fui até a loja de Akelli.- Que surpresa boa, ver você aqui, achei que só o veria em casa à noite. - Quero aproveitar todo tempo perto de você. Ao ouvir isso, um ar de tristeza tomou seu rosto - quando você viaja?- Amanhã cedo.

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Passado alguns segundos, a tristeza esvaneceu e mais animada ela começa a guardar tudo que está sobre o balcão.

-Você está certo, vamos aproveitar todo o tempo que temos. Ajude-me a fechar a loja.Em tempo recorde estava tudo arrumado e guardado. Os vizinhos apenas sorriram quando nos

viram fechar a loja com sol ainda alto. Em casa, enquanto eu esperava na sala, ela foi tomar um banho. Nas paredes viam-se magníficas espadas. Observava uma grande espada, de quase três quilos, um metro e meio de comprimento, chamada de espada de duas mãos, porque é muito pesada para ser empunhada apenas com uma mão. Distraído, não notei que Akelli chegou, até o momento que ela me abraça por trás. Vendo meu interesse pela espada ela comenta - essa espada foi forjada por papai. Acho que nunca existiu outra assim. O peso e o equilíbrio são exatos. Depois de pronta, ela foi mandada para a Capital especialmente para Mestre Joran desenhar as filigranas na lâmina. Chega de armas, vamos falar de coisas menos agressivas, mais carinhosas.

Dali fomos para o quarto, eu sentei-me na cama e ela deitou-se com a cabeça apoiada em meu colo. Passei um tempo assim, acariciando seu rosto, seus cabelos.

- Não sei se você voltará, mas se voltar, sempre terá um lugar em minha cama para você. - Isso se você não tiver casada ou comprometida, brinquei.- Por que você insiste em ser tão burro? Eu falei que SEMPRE terá um lugar para você na minha

cama, entendeu?Por que perder tempo discutindo bobagens? E realmente, não discutimos mais. Puxei-a para

junto de mim e beijei seus lábios carnudos. O tempo passou voando. Só reparei quando as três luas já estavam altas.

- É hora Akelli, preciso ir.- Deixe-me algo seu, para me lembrar de você e tê-lo sempre comigo.Tirei minha adaga da cintura e entreguei-lhe.- Não posso aceitar essa adaga, é muito valiosa.- Justamente por isso, quero dar-lhe algo que tenha valor para mim também. Fique com ela, sei

que você realmente a aprecia. Despedidas são sempre melancólicas. Não deixei que Akelli se levantasse. Preferi assim, me

despedi ali e sai sozinho. Enrolei-me na capa ao sentir o vento frio em meu rosto. A cidade estava em silêncio, o que era bom para ponderar sobre os últimos acontecimentos enquanto caminhava sem pressa. Nunca fui bom analista de relacionamentos, só pude concluir que minha vida está cada vez mais confusa. Demorei mais que o habitual para chegar até a estalagem. Ao chegar, encontrei a estalagem toda escura, passei pelo átrio vazio. No quarto, Benunes dormia profundamente. Acomodei-me em minha cama procurando não fazer barulho.

72. Rumo a Kho-zyPela primeira vez levantei antes de Benunes e quando fui acordá-lo ele simplesmente me disse

que não havia pressa. Iríamos fazer o desjejum, rever os planos de viagem para então sair. Ele faz isso de propósito, para me irritar. Meu humor não estava dos melhores, entre a tristeza de deixar Despen e a irritação de ter acordado cedo sem necessidade, resolvi andar um pouco para me acalmar. Encontrei Chin brincando com as pedrinhas coloridas, fez festa ao me ver - pensei que já tinha ido embora.

- Era para ter ido mesmo, mas meu companheiro de viagem está atrasado.- Quer brincar um pouco?- Acho que não pequeno, estou muito irritado para me concentrar nas pedrinhas.- Venha, deixe fluir, deixe a raiva sair com as pedrinhas.Acabei concordando, sentei-me no chão e começamos a jogar.- Você está jogando melhor, mais atento ao jogo. Atenção é a palavra chave para tudo na vida.

Fique atento ao que faz e fará bem. A atenção expõe o que é ilusão e o que é realidade.- Não é ilusão a viagem, não é ilusão eu ir embora querendo ficar.- Lembra-se que falei da posse e do medo. Isso também acontece com o prazer. Ele fica gravado

na memória e seu pensamento quer prolongar isso. E o medo volta novamente, medo de não obter o prazer. E o medo traz a agressividade, a raiva.

- Não sei se voltarei, mas se puder, gostaria de passar um tempo aqui, conversando com você. Tudo que você fala é muito instigante. Quero conversar mais sobre o medo.

- Faça isso. Quem sabe eu possa lhe ensinar melhor, você ainda não joga tão bem, perdeu novamente.

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Despedi-me novamente do pequeno Elder e voltei à estalagem bem mais tranquilo. Benunes comia sozinho, com vários mapas espalhados pela mesa. Sentei-me em sua mesa e enquanto tomava um copo de eujo ele começou a falar, qual caminho faríamos, qual caminho alternativo, as dificuldades, etc. O plano inicial era seguir o rio do norte até sua nascente e dali seguir ao sul até Kho-zy. Com tudo resolvido, pegamos o madron, os alforjes, que estavam um pouco mais pesados que na primeira etapa da viagem devido a algumas espadas que seriam levadas para Kho-zy, e saímos pelo lado oeste da cidade. O sol ainda baixo, não nos aquecia o suficiente para tirarmos as capas. Seguimos em passo um pouco mais lento que o habitual, meu claudicar era fator limitante de nossa velocidade. Naquela ocasião o bastão de ébano também foi de muito auxilio.

- Nessa marcha que estamos agora, Foras, acredito que vamos fazer o trajeto em quinze ou vinte dias. A boa notícia é que não teremos tantos problemas, o percurso não é muito acidentado, e acompanhando o rio não nos faltará água.

O início da viagem é sempre interessante, até começarem a doer todos seus músculos. O madron ia sempre a nossa frente num passo lento e cadenciado não parecendo sentir o peso dos alforjes. Seguíamos em terreno plano, com a relva ainda úmida do sereno. Seguíamos em direção oeste mantendo sempre a nossa esquerda a floresta frondosa nos indicava a presença do rio. Quando o calor aumentasse, seguiríamos por dentro da mata. À medida que nos afastávamos da cidade o terreno ondulava em pequenas colinas. A nossa direita a cordilheira com os picos nevados tinham um aspecto majestoso. Com o aumento do calor, descemos em direção à mata e o rio. A trilha era pouco usada, havia muitos cipós e galhos obstruindo a passagem. Benunes com um facão ia limpando o caminho, para ajudar, ele me passou um marchete.

- Use isso, vai ser melhor que tua adaga, ela é muito pequena para cortar os cipós. - Eu precisava mesmo falar com você sobre a adaga. Acho que você vai ficar aborrecido. Eu queria

deixar alguma coisa minha com Akelli e dei a ela a adaga. - Há quantos anos você está aqui no Lugar, Foras?- Pouco mais de nove anos, por quê?- Tudo isso e ainda não aprendeu como pensamos. Se lhe dou um presente ele é seu, certo?- Claro.- Se ele é seu, você pode fazer o que quiser com ele, e não precisa ficar melindrado. Eu lhe dei e

não vou ficar cuidando do que você vai fazer com ele. Se foi útil para você fazer um presente a alguém, ele cumpriu sua função, que era servir-lhe.

Após alguns metros a trilha alargou-se dispensando o uso dos facões. Dentro da floresta, com a trilha relativamente limpa, estava fácil de caminhar. Raros raios de sol atravessavam a copa das árvores e o ambiente mantinha-se agradavelmente fresco. O madron instintivamente reduziu sua marcha para acompanhar meu passo. Mesmo com a parada maior para almoçar e paradas regulares para descanso, mantivemos um bom ritmo até a noite.

73. Morcegos à noite e chuva de diaAssim que escureceu acendemos uma fogueira em uma pequena clareira. O madron estava

inquieto e começou a ganir de uma forma estranha. Tanto eu como Benunes ficamos alerta, pois o madron sempre é o primeiro a perceber qualquer perigo. Da escuridão vinham sons agudos, como um assobio muito fino, que foram aumentando gradualmente. Quando o som já era ensurdecedor fazendo latejar nossos ouvidos, algo passou voando sobre minha cabeça. Pouco tempo depois passou novamente, e mais uma vez. Eu percebia os vultos, mas eram muito rápido para vê-los no escuro. Logo era uma infinidade. Benunes atirou-se no chão e eu o imitei. Ele arrastou-se ate perto de mim - são morcegos vermelhos, a fogueira está atraindo-os, passe-me seu bastão para que possa espanta-los. Assim que eu me levantar, você se afasta até as árvores. Quando atacados eles soltam esse pelo vermelho que causa uma coceira terrível.

Com movimento rápido no ar o bastão atingiu dois ou três morcegos, que caem com uma nuvem de poeira vermelha. O Khozyano sai rapidamente debaixo e repete o movimento, atingindo e saindo ao caírem mais alguns morcegos. Mais um ataque e os morcegos fogem em uma revoada agora sem assobiar, o barulho é apenas do bater de asas. Benunes pega os morcegos caídos, foram nove atingidos. Raspando com uma lamina na região ventral, retira parte do pelo carmim aveludado e coloca em um frasco. O próximo passo foi esquartejar os morcegos mortos. Com espetos improvisados de galhos, logo estávamos assando na fogueira varias asas.

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- Esses morcegos vieram a calhar, a janta foi melhor do que esperávamos, não achou Foras? Sem contar que enchi um frasco de pelo vermelho. Esse pelo é muito comerciável. Em geral os morcegos se alimentam de frutas, mas em bando grande como esse, acabam atacando animais e até mesmo pessoas.

Ao terminarmos de comer, abrimos um buraco para enterrar os restos dos morcegos, para não atrair predadores maiores. Depois do susto, a noite se mostrou tranquila. Dormimos sem interrupção até o amanhecer. O dia iniciou nublado, escuro e os tímidos raios de sol não chegavam até o interior da mata. Mantivemos a mesma trilha do dia anterior até o meio da manhã, porém a mata foi tornando-se gradativamente mais fechada até praticamente obrigar-nos a sair para terreno mais aberto. Uma chuva fina e fria acompanhou-nos durante quase todo o dia. Antes do anoitecer encontramos uma caverna e resolvemos parar, pois ali era o melhor lugar para passarmos a noite. A caverna era pequena, quase uma reentrância na rocha, mas serviu perfeitamente. Pudemos acender o fogo e estávamos protegidos da chuva e do frio. Não aconteceu muita alteração na viagem até a nascente do rio do norte. Depois de sete dias de caminhada em terreno relativamente plano, os acidentes geográficos eram apenas colinas de pouca elevação, chegamos à nascente. A chuva, ou pelo menos uma garoa fria esteve presente diariamente. Creio que me saí melhor do que o esperado. Acompanhei bem o passo de Benunes, ainda que não fosse tão extenuante.

74. Dúvidas- Foram nove dias de jornada bastante fácil, agora teremos que descer para a planície. Lá será

mais quente, com mais risco de animais, mas nada insuperável. Acha que a perna está boa para a descida, Foras?

- Acredito que sim, o único problema é a lentidão com que me movo, mas não sinto dor nenhuma. Vamos acampar e começar a descida amanha cedo?

- Não, vamos iniciar já. Logo abaixo, com umas duas horas de descida, existe um platô que é abrigado do vento e chuva, o melhor lugar para passarmos a noite.

A parte ruim das descidas e subidas é dormir sobre pedras. Acorda-se com o corpo moído. Eu imaginava que descer seria fácil, mas é tão difícil ou mais do que a subida. O risco de queda é grande. Como sempre, o madron e Benunes tomaram a dianteira, eu segui não muito atrás. O bastão me ajudava muito, para apoiar nas pedras de baixo, facilitando os passos. Talvez esteja me acostumando com a caminhada, o fato é que quase não senti dor e embora mancasse, também não atrasei muito a viagem. Era noite alta e faltavam apenas uns cem metros para chegarmos ao pé da montanha quando Benunes resolveu parar e quando interpelei se não valia mais a pena terminarmos agora a descida ele esclareceu que nesse final havia muitas cobras e escorpiões entre as pedras, além do trecho ser excessivamente íngreme; era de bom alvitre ser feito com a luz do dia.

Acomodamo-nos para essa última noite na montanha. Já estava quase dormindo quando Benunes teima em manter conversação.

- Então Foras, quem será? Vency ou Akelli?- Não sei. Akelli é sensual, me atrai muito, é amiga, me aceita sem nenhuma cobrança, além de

ter um corpo espetacular. A Vency não é tão bonita, mas também é uma companhia muito agradável e tem alguma coisa nela que me atrai que eu não sei explicar direito, me faz querer estar ao lado dela sempre. Com ela tenho sentimentos conflitantes. Paixão e raiva. E tem outro detalhe, eu não estou no controle total, não basta eu resolver. Nem tenho certeza do que as duas pensam.

- O lógico seria você ficar com Akelli, entretanto essas coisas não têm lógica. Vency é muito sedutora, pelo pouco que vi, acho que é exatamente isso que ela faz com você: Seduz. Há algum tempo atrás eu viajava muito para Despen, e tinha uma quedazinha pela Akelli. Nunca tivemos nada, mas acabei conhecendo-a muito bem e nos tornamos bons amigos. Acho que Akelli seria ideal para você. É inteligente, companheira e notei que gosta muito de você. Ah, e é desimpedida.

Não falei mais nada e assim acabou o assunto. Claro que Benunes tinha a melhor das intenções e provavelmente estava correto em sua análise, mas...

Apesar do cansaço o sono demorou a vir.

75. Finalmente Kho-zyMais um amanhecer, mais um dia de viagem. Estávamos apenas a cinco dias de Kho-zy.

Aproximava-se o final de nossa jornada. A trilha agora era ampla, indicando a passagem frequente de pessoas por ali. À medida que avançávamos a natureza tornava-se exuberante. Muitas flores pelo caminho. A floresta era cheia de sons e fragrâncias. Árvores frondosas nos davam sombra durante o

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caminhar. Quase sem cipós e gavinhas, dando a impressão de ter sido limpo de todo mato. A aparência era de um bosque bem cuidado.

O trecho desde a nascente até Kho-zy foi a parte mais amena de toda viagem. A trilha serpenteava pela floresta, passando por riachos e lagos. Ao seguirmos viagem pela manhã, sempre enterrávamos o lixo e os restos da fogueira, sem deixar no local, vestígios de nossa passagem. Agora parecia o óbvio a fazer, essa sempre foi a atitude de Benunes desde o inicio da viagem. Quando acordava antes dele, já começava a recolher o lixo para enterra-lo.

- Já estamos no território dos Irmãos da Folha. Eles protegem Lymbra, a floresta, assim com ela os protege, pelo menos é o que dizem. A partir daqui você é sempre observado. Eles são indiferentes e evitam mostrar-se, desde que você não agrida a floresta. Se pegar essa trilha que entra na floresta, a um dia de viagem encontrará a tribo. Ao sul para onde seguimos, estaremos a Kho-zy em dois dias.

Na última noite antes de chegarmos, depois de comermos em volta da fogueira, senti uma grande melancolia e aproveitei enquanto Benunes alimentava o madron para andar um pouco sozinho. Os raios de luar pouco iluminavam dentro da mata. Andei no escuro, e com alguns tropeços acabei chegando a um riacho. Sentei-me encostado em uma árvore, escutando o ruído agradável da água corrente. Sentado ali, lembrei-me do riacho da Capital, onde gostava de ir para espairecer. Meus pensamentos pareciam ter vida, gritavam dentro da minha cabeça. De repente tudo pareceu sem sentido. A viagem, a procura da passagem, até o tempo que passei na capital. O que estou fazendo nesse mundo? De que adiantaram os relacionamentos e amizades se eu os abandonei e tentava ir embora? Quanto mais me aproximava de um possível final, mais angustiado ficava. A ideia de ir e não mais voltar me atormentava. Quando voltei, Benunes já dormia, me acomodei próximo ao calor da fogueira e logo o sono veio. Antes do sol nascer ele já estava de pé, me acordando. A proximidade com sua cidade o deixou irrequieto e excitado. Falava sem parar. Saímos mastigando um pedaço de carne seca, Benunes seguiu em um passo acelerado, eu mancando ia ficando para trás. A cada dez minutos tinha que pedir a ele que me esperasse.

- Chegaremos a tempo de almoçar em Kho-zy. Vou encontrar os amigos e tomar um tonel de cerveja para tirar toda poeira da garganta. Só paro quando cair “borracho”.

- O que você disse?-Que vou beber toda cerveja que encontrar pela frente.- Não, depois disso.- Que vou beber até cair bêbado.- Não, você não falou bêbado.- Ah, borracho, é a mesma coisa que bêbado.- Eu sei, muitas palavras que você diz são de raiz hispânica. É uma das línguas faladas em meu

mundo. Acho que Kho-zy foi fundada por pessoas de meu mundo, de uma região específica onde se fala essa língua. Na verdade, acho que toda população do Lugar veio de meu mundo, com algumas exceções. Há muito, muito tempo atrás.

- No tempo que o avô de meu avô...- Sim, no tempo que o avô de seu avô era criança. Imagine, existem alguns portais em meu

mundo, são portais de difícil acesso, mas mesmo assim, pessoas acabam passando por ele, e não tem como voltar. Certo número de pessoas que vieram de um mesmo local e se agruparam, formaram pequenas vilas que cresceram e viraram as cidades do Lugar. Mas devem ter pessoas e animais de outros mundos também. Não temos ninguém em meu mundo com orelhas pontudas, como o clã dos Sharpir,assim como não temos perins, madrons e morcegos vermelhos. Deve haver muitas passagens, há muitas histórias de pessoas que desapareceram sem deixar vestígios. Talvez até o triângulo das Bermudas seja uma grande passagem, não para cá, ou teríamos navios encalhados por todo canto, mas para outros mundos.

Benunes escutava atento. Ele só silenciava quando eu falava de meu mundo. Tinha verdadeira fascinação por minhas histórias. Mas nem minhas historias o calaram quando percebeu a proximidade da cidade. Apressou o passo e me esperou no alto de uma colina - Corra Foras, venha logo.

Do alto da colina avistamos Kho-zy.

76. Kho-zyAo longe, a simpática Kho-zy, com suas casinhas coloridas e ruelas estreitas. Devia ter em torno

de uns cinco mil habitantes. A forma da cidade lembrava muito Esplendor, várias ruas convergindo para a praça central. Ao entrarmos na cidade, todos cumprimentavam Benunes.

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- Você é bem popular aqui, não?- A cidade é muito pequena, todos se conhecem - ele conta modestamente.Seguimos até a praça. Lá existem apenas duas estalagens, “Repouso de Kho-zy” e “O Gato

Pelado”, porém inúmeras tabernas. No centro da praça, em posição de destaque, há um grande totem de madeira com seis metros de altura, com certeza influência da tribo, com vários deuses representados em um trabalho primoroso de entalhe. Foi necessário quase um ano com o trabalho de todos os artesãos da cidade. Depois de contar um pouco sobre a cidade, Benunes me levou direto à taberna “Cerveza Caliente”, onde foi recebido com muita festa. O madron, já acostumado a essa rotina, deitou-se próximo à entrada.

- Vamos tomar umas cervejas Foras, depois nos acomodamos em casa. Apesar do nome da taberna, a cerveja era fria. Muitos chegaram à nossa mesa, querendo saber

de Benunes coisas sobre a viagem, historias e também se trouxe mercadoria da Capital. - Trouxe muitas ervas e raízes da Capital e espadas de Despen, mas hoje só quero cerveja.Depois do segundo caneco começaram a cantar. Eram músicas locais, com estrofes pequenas e

refrão marcante, depois de escutar duas vezes já estava cantando junto com todos. A altura da cantoria era proporcional ao número de canecos bebidos. O taberneiro, solícito, trouxe também carne de gato. A carne era saborosa, mas não tinha a sutileza dos temperos da capital. Depois de servir-nos, o taberneiro sentou-se conosco para cantar. Com a experiência dos excessos antigos, resolvi parar e descansar, mas nessa hora, ninguém conseguiria tirar Benunes da mesa. Sai sem ser notado. O sol estava baixando, logo anoiteceria. Ao lado da taberna entrei na estalagem “O Gato Pelado”. Fui instalado num quarto no piso superior. Era pequeno e limpo, o ideal para mim. Pedi também que providenciassem um banho quente. O banho revigorou-me por alguns minutos, mas assim que me deitei para experimentar a cama eu caí num sono profundo, sem sonhos. Abri os olhos com Benunes me chamando - já é manhã preguiçoso, acorde.

Olhei para ele com o sono ainda embaçando minha visão e pensei “É ótimo que todos confiem em todos aqui, mas chave na porta não faria mal nenhum”. Descemos para o desjejum e Benunes contou que dormiu no quarto ao lado. Embora tenha sua casa, depois de tanto tempo fechada ela deveria estar muito suja e ontem não tinha condições nenhuma para limpá-la. Ao redor da praça estavam as duas estalagens e quase todas as tabernas da cidade. Nas ruas laterais encontravam-se as lojas comerciais. Na rua do último anel, estava a casa de Benunes. Pequena com apenas um cômodo, parecia uma miniatura da casa de Nana Li. Duas redes num dos cantos mostravam a influência importante da tribo sobre a cidade, no centro uma mesa e quatro cadeiras, no lado oposto um fogão, ao lado um depósito de madeira e na parede oposta à entrada havia uma grande prateleira fechada que ia do chão ao teto. Eu o ajudei a limpar tudo. Assim que guardou toda mercadoria que trouxe ele começou a fazer um inventário da viagem, das compras e vendas, porém toda hora era interrompido por alguém que queria comprar algo, ver o que veio de novo, ou apenas conversar. Resolvi dar uma volta pela cidade enquanto ele atualizava suas anotações. Benunes era um khozyano típico. A estatura em geral não era muito alta, todos tinham cabelos negros, olhos azuis e a tez bronzeada. Se os homens eram fisicamente sem características marcantes, com as mulheres acontecia o inverso, eram sem exceção, belíssimas. A pele trigueira e os olhos azuis faziam um conjunto sem igual. Saias com corpete expunham melhor suas medidas. As saias sempre coloridas e as blusas brancas sem mangas, com generosos decotes emolduravam sua beleza. Era impossível passar por uma sem segui-la com o olhar. Uma atitude comum aqui no Lugar, as mulheres ficavam radiantes quando notavam estar sendo observadas.

77. Uma passagemQuando voltei de meu passeio, Benunes ainda fazia suas anotações. Uma jovem mexia numa

panela no fogão. Notando meu olhar de interrogação Benunes nos apresentou - Esta é Catria, minha namorada, veio ajudar com a comida, afinal, nem eu nem você vamos muito bem nesse quesito.

Ela me cumprimentou com um grande sorriso e continuou cuidando da panela que exalava um odor irresistível. E realmente, a comida estava deliciosa, um ensopado de carne com legumes. Como eu não fiz menção de me retirar depois do almoço, ela se despediu, declarando ter um compromisso em casa.

- Acho que ela queria ficar a sós com você - falei, meio incomodado com o que ocorreu. - Não, ela sabe que eu tenho que fazer esse inventário. Vamos nos encontrar à noite.- Muito bonita ela. Você está de parabéns. Se bem que não vi uma mulher que não fosse no

mínimo linda, aqui em Kho-zy. Parece que juntaram aqui as mulheres mais bonitas do Lugar.

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- Por mais atrativos que a Capital ou Despen tenham, jamais me mudaria daqui, esse é o melhor dos argumentos - concluiu Benunes e voltando a suas anotações, já estou quase terminando o balanço,já deu para ver que a viagem foi bem proveitosa. Deu um bom lucro, mesmo depois de separada a mercadoria para levar aos Irmãos da Folha.

- Eles também fizeram encomendas?- Na verdade, quem precisou deles fui eu. Levei muitas folhas da cajazeira sagrada deles para

comercializar, e como eles não usam dinheiro, eu os pago com ervas e poções, que eles pediram em troca. Justamente as que comprei do velho, na Capital.

- E quando pretende entregar a encomenda?- Pensei em descansar hoje ir amanhã. O que você acha? Serão dois dias de caminhada até a

tribo. Você vai querer ir junto, não é?- Claro que vou, a viagem toda foi praticamente motivada por essa visita.Passado quase duas horas ele terminou o cálculo e saímos para arejar. Ao invés de irmos a

alguma taberna, como achei que ele faria, saímos da cidade. Andamos quase meia hora na mata e chegamos a um lago com uma cascata. Era um recanto muito bonito, só com o som dos pássaros e da água caindo. Entramos no lago nadamos até a queda d’água. Benunes continuou e sumiu dentro da cascata, achei que ele tivesse mergulhado e fiquei esperando que ele aparecesse quando ouvi seu chamado-venha Foras, atravesse a água.

Nadando através da cachoeira cheguei a uma pequena abertura que dava acesso a uma grande gruta. Sai da água e fui até onde Benunes se encontrava. A gruta expandia-se num grande salão. A única luz vinha da água formando sombras bruxuleantes e fazendo brilhar pontas de cristais que pareciam sair da parede. Próximo a uma parede lisa, ele me esperava.

- Pegue uma pedra e atire naquela parede. - Peguei uma pedra do chão e joguei. A pedra sumiu antes de bater na parede.

- É uma passagem, exclamei admirado.- Sim, é uma passagem de ida e volta. Mas não para o seu mundo.- Como pode ter certeza disso, você a atravessou?- Não atravessei, mas já presenciei um morcego vermelho vindo por ela, e você disse que não

existem morcegos vermelhos no seu mundo.A curiosidade quase me impeliu a atravessar, mas depois pensei que do outro lado a passagem

podia estar num lugar de grande altitude ou de difícil acesso, complicando o retorno, e desisti. - Primeiro preciso achar a passagem para meu mundo, quem sabe um dia a gente atravesse esta.Os olhos de Benunes brilharam com a possibilidade de uma nova viagem.

78. A tribo dos Irmãos da FolhaEu estava perplexo. Finalmente uma passagem de ida e volta, mas para onde? E teriam outras?- As pessoas de Kho-zy sabem dessa passagem?- Sim, mas ninguém se interessa em atravessa-la.- Você é diferente Benunes, é o único Lugariano curioso que eu conheço. Não sei como não

atravessou a passagem.- Eu vinha aqui quando era criança, passava horas e horas olhando a passagem, imaginando o

que existiria do outro lado. Sonhava com outras terras e outros mundo. Depois de algum tempo, comecei a viajar e acabei abandonando a ideia de atravessar a passagem.

Voltando à cidade fomos direto à casa de Benunes pegar roupas secas e depois para a taberna do “Madron Borracho”. Já estava entardecendo e o sol coloria a cidade com um tom dourado. Na taberna, Benunes me apresentou a alguns amigos e dois canecos depois, se retirou. Não sem antes me avisar que deixaria uma rede pronta para quando eu fosse dormir, mas eu declinei da oferta apesar dos seus protestos. Certamente ele vai querer privacidade esta noite. Na mesa com os novos conhecidos tentei saber sobre as passagens, se havia mais alguma, mas nenhum deles sabia ou se interessava. Mais alguns canecos e resolvi descansar para a jornada do dia seguinte.

Como de costume, de manhã, Benunes estava em meu quarto me acordando. Desta vez viajamos apenas nós dois, sem o madron, pois a mercadoria a ser entregue cabia em uma mochila. Saindo da cidade, três quilômetros ao norte a trilha se dividia, à esquerda era o caminho por onde viemos de Despen e à direita entrando pela mata, foi o caminho que seguimos. A trilha era larga e limpa e a caminhada fácil, mesmo coxeando eu conseguia manter um bom ritmo na caminhada. Aparentemente esse coxear vai ser meu companheiro permanente. Com pequenas paradas para descansar, que

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Benunes determinava dizendo estar cansado em função da noite anterior mal dormida, mas que eu tinha certeza, eram feitas pensando em mim, andamos até o anoitecer. Chegamos a uma grande clareira, com uma cabana circular, sem paredes, apenas com cobertura de folhas e cinzas no centro indicando o local de fogueiras anteriores. Depois de tanto tempo viajando, eu já estava perito em fazer fogueiras. O local era um ponto de parada, mantido pela tribo para viajantes como nós. E foi ótimo para passarmos a noite. Sempre que olhava para a mata, no escuro, parecia ter alguém, ou alguma coisa observando. O dia seguinte foi uma repetição do primeiro, e antes de escurecer estávamos chegando. Tive a mesma sensação da noite, às vezes me virava e parecia que algo moveu os arbustos. A floresta limitava nossa visão. Ao entrarmos na clareira a paisagem impressionava. A cajazeira sagrada era uma árvore secular, imponente. Seu diâmetro era de seis metros e sua altura de dezenas de metros, não se via a copa. Ao contornar a cajazeira nos encontramos em frente à aldeia. A sensação de estar sendo observado durante todo o trajeto era real, pois assim que entramos na aldeia uma criança nos avisou que o xamã Corvo-que-vê-no-escuro nos esperava. Alguém o avisou de nossa chegada. A aldeia era formada de pequenas cabanas com cobertura de folhas semelhante ao ponto de parada. Os nativos eram negros, altos, tinham a musculatura desenvolvida, seus cabelos muito eram muito curtos ou raspados, tanto os homens como as mulheres. Todos usavam uma espécie de bata curta, muito fresca e que não tolhiam os movimentos. Ao passarmos, eles nem sequer nos olharam, continuaram seus afazeres como se fossemos invisíveis. Um dos Irmãos da Folha saiu da floresta, as nossas costas, com certeza era o que estava nos seguindo. Acompanhamos o menino até a barraca do xamã. Quase dois metros de alegria nos receberam com um grande sorriso. Sua idade só era notada por seus cabelos curtos totalmente brancos. Como eu, ele também trazia um bastão de madeira negro.

- Benunes, sua presença honra o Povo4.- E eu estou honrado por estar entre o Povo - e olhando para mim, cochichou- ritual de boas-

vindas. - Corvo-que-vê-no-escuro, este é Foras, um amigo.- Amigo de amigo é amigo. Sua presença honra o Povo.- ah... E eu estou honrado por estar entre o povo.- Sentem-se, a casa é de todos - nos sentamos no chão, em almofadas - é bom vê-lo em paz,

amigo Benunes. Muitas luas se passaram.- É verdade, a viagem foi longa, mas trouxe toda encomenda. Abrindo a mochila entrega as ervas e poções e um presente. Entregando o pequeno frasco ao

Xamã explica - é um contra veneno para o picador malhado. Basta tomar algumas gotas por dia. Reduz muito a inflamação e a dor. Foi feito pelo amigo Foras.

Quando segura minha mão para agradecer, ele fecha os olhos, fica em silêncio por alguns segundos e fala-Eu sinto uma força envolvendo-o. Mesmo não sendo deste mundo foi aceito por Djamiá.

Passando do sério ao alegre ele nos leva ao centro da aldeia onde está sendo acessa uma grande fogueira.

Quase toda a tribo sentou-se em volta da fogueira. Ao som de tambores foi servida a comida e bebida. Era um momento de alegria, de celebração. As luas estavam altas quando Corvo nos levou à cabana onde passaríamos a noite. Antes que ele saísse eu perguntei - Corvo-que-vê-no-escuro, quando tocou minha mão, você falou que Djamiá me aceitou. Quem é Djamiá?

- Djamiá é a consciência do universo, o fluxo da vida.- É uma deusa? Como os deuses do Lugar?- Assim como a grama cresce e morre sem ter conhecimento dos insetos ou das pessoas, assim

não temos conhecimento dos atributos divinos de Djamiá, apenas sabemos que é a natureza, o universo, o Todo. Somos parte do Todo. Por isso somos importantes, mas não mais do que os animais ou as plantas.

- Em todas as cidades do Lugar existe a crença aos mesmos deuses, a fé é aceita em todo o Lugar. O Povo não acredita neles?

- São dedos da mesma mão.- Corvo-que-vê-no-escuro, um amigo, me contando historias dos deuses do Lugar, disse que a

cajazeira sagrada foi criada durante o episódio da perseguição ao dragão Tamtu. Essa é uma historia dos deuses do Lugar e não dos Irmãos da Folha. É o mesmo motivo pelo qual o Povo venera a cajazeira?

4O Povo: autodesignação dos Irmãos da Folha

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- Nós não veneramos uma árvore. A distinção entre profano e sagrado, foi criada pelos homens. Toda a natureza é sagrada, e não apenas detalhes ligados à crença ou fé. Você viu a cajazeira. Seu aparecimento remonta à origem do Povo. Junto a ela o Povo se instalou e cresceu. Suas folhas são curativas. Em um tempo passado, sua madeira nos aqueceu. Se você notar bem, verá resquícios do tempo em que morávamos em seus galhos. Cabanas eram feitas no alto para nossa proteção e sobrevivência. Nós respeitamos a árvore mais antiga do Lugar. Para quem está ligado à natureza como nós, essa árvore é um ícone, um símbolo da consciência de Djamiá.

79. O EloAcordar na floresta sempre é diferente, mais agradável. O gorjeio das aves, ruídos dos insetos, o

vento nas folhas. Os sons tem vida. O desjejum de frutas e sucos servido pelos Irmãos da Folha foi muito saboroso. Depois saímos caminhar pelo bosque com o xamã. Ele estava interessado em meu bastão de ébano, uma madeira quase exclusiva da floresta da tribo. Enquanto ele o examinava, contei-lhe que havia ganhado da rainha e que tinha me ajudado muito na viagem, principalmente no tempo que minha perna doía mais, quando me apoiava nele. Continuamos caminhando e conversando. O caminho pelo bosque era todo florido, luminoso.

- Vocês levam uma vida bem aprazível aqui - comentei.- Não é o local, é o nosso interior que torna nossas vidas agradáveis ou desagradáveis.- Mas aqui, na tribo, nas outras cidades do Lugar, é muito diferente de meu mundo, as pessoas

tem mais honra, são mais honestas e há ausência de violência.- Você tem razão, aqui raramente ocorre violência. - Raramente?- Só sei de uma ocasião, não a presenciei, foi muito antes de eu ter nascido. Houve um homem,

Caitan, que encarnava o mal. Nós pensávamos que a natureza muito raramente erra,mas de tempos em tempos ocorressem exceções que necessitariam ser corrigidas e que nós fazemos parte desse todo teríamos obrigações com ele. Esse homem foi aprisionado para extinguir o mal. Ele era antropófago, morava em uma cabana entre Kho-zy e a tribo. Matou inúmeras pessoas, quando foi pego havia matado e devorado uma família, restando apenas a filhinha pequena, que havia assistido toda atrocidade.

- Esse homem foi condenado à morte?- Não, não admitimos matar um ser humano. Em nenhuma hipótese. - Qual foi a pena do assassino?- Foi formado o Elo, uma ligação mental entre todos os Elderes do Lugar e os anciões da tribo dos

Irmãos da Folha. O elo não é apenas associação entre os anciões, mas também com Djamiá, o espírito da natureza. Com essa força, a memória do assassino foi retirada e ele mandado por uma passagem apenas de ida a uma terra isolada, sem outras passagens e sem possibilidade de retorno.

- E como esse elo funciona?- Você não imagina o poder criativo do pensamento, e quando efetuado por muitos, em

uníssono, sua força é aumentada exponencialmente. Quando a egrégora é formada, não existe mais controle consciente. Apenas o fluir com a vida, sem resistência. O elo só é formado em situações emergenciais, raramente acontece. Em toda minha vida nunca presenciei um.

- E se vocês errarem? Condenarem a pessoa errada? Pelo que disse não acontece um julgamento.- Sim, é verdade, não há julgamento. Nós vemos... os pensamentos. Não existe a possibilidade de

erro.- Como assim? Ver o pensamento?- Nós vemos “todos” os pensamentos. De todas as pessoas no Lugar. É claro que é superficial, e a

partir de certo ponto, quando houver indícios, aprofundamos a ”leitura”.- Então vocês sabem de tudo sobre todos?- Não, as informações obtidas no Elo esvaem-se após o Elo ser desfeito. Mesmo assim, pagamos

um alto preço por isso, tudo tem seu preço. O desgaste é imenso e permanente, nenhuma pessoa resistiria a um segundo Elo.

- Por que apagar a memória do culpado?- Para dar a possibilidade de que ele se regenere, que tenha um novo começo. Mas pelo risco de

qualquer falha, ele é enviado para longe.- E o que aconteceu com a criança que sobreviveu?

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- Com a criança a dificuldade foi muito maior. Para evitar o trauma causado pela violência, foi apagada sua memória referente ao incidente. Essa intervenção é muito mais delicada e perigosa, para não mexer com a memória geral da criança.

- No fundo, tudo aconteceu para o bem, a ação foi justificada.- Foras, tenha em mente que uma ação que precisa ser justificada, provavelmente está errada.- Então, vocês acham que a ação foi errada?- A ação preventiva seria o correto, porém não aconteceu. Esse episódio foi uma lição. Devido a

nossa arrogância, ousamos julgar a natureza e pior, tentamos melhora-la. Finalmente aprendemos que a natureza tem sempre razão e também que o mal não pode ser eliminado. O mal deve existir, em equilíbrio com o bem. O mal e o bem são faces da mesma moeda.

- Talvez seja esse o equilíbrio entre nossos mundos, um sendo o avesso do outro.- Talvez...Continuamos andando lentamente em silêncio. A luz mortiça do bosque nos dava sensação de

paz. Falei a ninguém, sem perceber - parece que estou em um templo. Corvo-que-vê-no-escuro respondeu- você ESTÁ em um templo!

80. Última viagem-Corvo-que-vê-no-escuro, tive um motivo especial para

vir aqui. Estou à procura de uma passagem para voltar ao meu mundo. E acredito que ela deve estar próxima da tribo - tirei o mapa do louco de minha mochila e mostrei-lhe.

Ele olhou com atenção por alguns segundos e ponderou - a localização é a leste da tribo, isto está obvio. Olhem esses sinais, os dois losangos, logo que as flechas viram à direita, parecem ser um atalho pelas montanhas. Aqui, no centro, envolvendo o que deve ser a passagem, parecem ser raios. Deve ser o vale da morte, uma região plana no meio das montanhas, extremamente perigosa por estar sempre atingida por raios. Pelo que se sabe, ninguém até hoje entrou e saiu vivo de lá.

- A pessoa que fez o mapa conseguiu isso.- É, pensando bem, tem lógica, o único modo seguro de

chegar ao vale seria por um acesso entre as montanhas, pois a outra maneira seria escalando-as, coisa praticamente impossível, pois não sobreviveria aos raios. Isso será um grande problema para você: achar esse caminho entre as montanhas. Eu particularmente nunca soube que isso existisse. E com certeza também ninguém entre o Povo deve saber, ou eu seria informado. Se a proporção do desenho for correta, esse atalho ou túnel está exatamente a leste da cajazeira. Pode ser o seu ponto de partida para a procura, que não será fácil. Os três triângulos coloridos são a posição das luas, também é obvio, mas não sei qual o significado das cores.

- Eu não achei tão obvio assim, só descobri isso vendo um trabalho em uma adaga feita aqui, onde tinha uma sequência da posição das luas. As cores também me intrigam. Já pensei muito sobre isso e não cheguei a nenhuma conclusão.

Resolvemos voltar a Kho-zy para preparar a nova expedição. Acertamos com o xamã que voltaríamos à tribo em sete dias, quando as luas estariam se alinhando conforme o desenho do mapa, e usaríamos a cajazeira como ponto de partida. Antes de sairmos, ele me pediu se podia deixar o bastão sob seus cuidados até nosso regresso. Embora achando estranho o pedido, eu concordei. O retorno a Kho-zy ocorreu sem incidentes. Benunes se prontificou a fazer os preparativos, comprar o que fosse necessário. Como a água é abundante na região, não seria preciso carregar grande quantidade, resolvemos estipular a nova campanha em dez dias e com ponto de apoio na tribo, poderíamos estender por mais dez dias se necessário, mas nesse caso, provavelmente já não teríamos as luas favoráveis. Três dias foi o tempo necessário para Benunes preparar tudo e matar a saudades de Catria, que não ficou muito satisfeita ao saber que sairíamos novamente em viagem. Acabou concordando com a garantia que não ficaríamos fora mais de trinta dias. Benunes tem alma de aventureiro. Eu estava ansioso por achar a passagem, mas ele... Ele estava eufórico. O desconhecido é sua paixão. Interessante, fui ficar amigo da pessoa menos representativa do Lugar. Eu estava um pouco preocupado em prejudicar o relacionamento dele com Catria, mas ele garantiu que não seria problema. Tinham um

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acordo bastante razoável. Como ele viajava constantemente, o relacionamento durava apenas o tempo que ele estivesse em Kho-zy. - Os reencontros são deliciosos - brincou Benunes. Terminados os preparativos, e com dois dias de caminhada retornamos à aldeia, desta vez com o madron carregando nossa bagagem. Antes de sairmos, Corvo-que-vê-no-escuro sabendo da adaga que tive, me presenteia com outra, muito semelhante. A lâmina era trabalhada e o punho ao invés de osso como a primeira, era de ébano. Tinha a mesma qualidade da primeira e encaixava perfeitamente no bastão. Agora entendi porque ele pediu para ficar com o bastão enquanto fomos a Kho-zy. Criei uma grande conexão com Corvo-que-vê-no-escuro e ele tentou ajudar de todas as maneiras possíveis. Graças ao seu grande conhecimento da região nos sugeriu pontos de parada e locais para abastecimento de água. Saímos da aldeia com uma pequena comitiva composta pelo xamã e dois Irmãos da Folha, que nos guiaram até o final da floresta.

81. PântanoNosso destino era a cadeia de montanhas que víamos no horizonte, para atingi-la precisávamos

atravessar um pântano de aproximadamente mil metros de largura, com algumas ilhotas, vegetação rasteira e árvores secas retorcidas com aspecto doentio e um pouco mais distante um campo irregular de cerrado com colinas não muito altas e de quando em quando um pico rochoso mais elevado.

Enquanto os Irmãos da Folha voltavam para dentro da floresta, nós nos dirigíamos ao pântano. Retiramos o que não podia ser molhado dos alforjes do madron e dividimos nas duas mochilas. Tivemos alguns momentos de hesitação e finalmente entramos na água. O fundo lodoso prendia nossos pés. A cada passo afundávamos um pouco, até a água atingir nossa cintura. O madron nadava de uma forma desajeitada, acompanhando-nos. O odor fétido subia do lodo e invadia nossas narinas. O cheiro impregnava nossas roupas. Nosso plano era atravessar o charco direto, mas tivemos uma comichão que nos fez sair para a ilhota mais próxima. Só quando puxei a perna da calça para coçar notei uma grande quantidade de sanguessugas grudadas. Contendo a repulsa retiramos os vermes de nossas pernas com a ponta da faca e depois os que haviam pegado no madron. Demoramos um pouco, mas como não houvesse outra opção nos preparamos para entrar novamente no charco. Benunes foi à frente e estava com água nos joelhos quando vi uma serpente nadando em sua direção. Era verde, de meia braça de comprimento. Tirei a adaga da ponta do bastão e com um movimento rápido passei o bastão por baixo e atirei-a longe. Apesar de Benunes não falar nada foi evidente sua satisfação ao notar que não matei a serpente. O que parecia ser uma travessia fácil estava se tornando mais complicada do que esperávamos. Felizmente afastando-se das margens e das ilhotas quase não havia sanguessugas, porém não podíamos nos afastar muito para não atingir profundidades maiores. Em alguns pontos o nível da água chegou ao nosso pescoço obrigando-nos a pegar as mochilas com as mãos e carrega-las sobre a cabeça. O lodo segurava nosso passo que já era muito lento. O tempo estimado no início de umas duas horas alongou-se até o meio da tarde. Chegamos à terra firme, exaustos e imundos. Subimos em uma colina mais alta e de lá avistamos um pequeno rio, que foi nossa parada seguinte. Quase anoitecia quando chegamos ao rio. O cheiro de pântano impregnado em nossa roupa era tão intenso que entramos na água gelada apesar do frio e infelizmente o resultado não foi dos melhores. Saímos da água ainda fedendo e tiritando de frio para no escuro procuramos gravetos e fazer uma fogueira. A fogueira foi bem vinda, até o madron chegou perto para se aquecer, e a comida mesmo morna pareceu um banquete, afinal foi a única refeição do dia. Acordamos de manhã com o sol. A base da cordilheira estava a não mais de uma hora de caminhada. A primeira etapa da jornada estava vencida. Em terreno seco, a caminhada foi rápida e agora só restava descobrir o acesso para ultrapassar a montanha.

82. O sonho, a chave e a passagemAndamos de manhã até a noite sem achar nada. Embora a caminhada não fosse cansativa, era

desestimulante procurar algo que não conhecíamos. Seguimos acompanhando as montanhas, sempre procurando uma abertura, um buraco ou qualquer acesso para o interior da cordilheira. O pior de tudo era a monotonia: acordar, andar, comer, andar, comer, dormir, acordar e começar tudo de novo. A busca resultou infrutífera, já estávamos na noite do nosso sétimo dia de procura e ainda nem sequer um sinal diferente. Porém esta noite aconteceu algo diferente. Sonhei novamente com Aileem. Ao contrario das outras vezes, não estávamos na penumbra, e sim em ambiente aberto iluminado pela luz do sol. Ela me falava - Está chegando a hora da definição. Venha, fique comigo, eu o levarei - seu corpo brilhava com uma tonalidade arroxeada. Ela não parecia sólida, dava a impressão de transparência, de ser etérea. De repente começou a crescer, cada vez mais, atingindo o tamanho de uma casa e aumentando,

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seu brilho discreto mudou para verde e ela repetiu -Venha Foras, agora, não tenha medo - Eu caminhei em sua direção, porém meu corpo atravessou sua imagem e eu comecei a cair. Nessa hora eu acordei com o sonho vívido em minha mente. Agora ficou tudo muito claro. Só faltava achar a passagem. Acordei gritando- agora entendi, só precisamos achar a passagem.

Benunes me olhava com um ar atoleimado de recém-acordado enquanto eu repetia o sonho e o interpretava.

- A imagem de Aileem simbolizava a passagem, as cores não se referem às luas e sim à passagem, entendeu?

- Não.- Tudo bem, quando encontrarmos a passagem você verá.O sonho me estimulou. As peças estavam se encaixando. Só faltava a mais difícil, como chegar

até a passagem. Cheguei a pensar em escalar as montanhas, mas eram altíssimas, e pelo relato de Corvo-que-vê-no-escuro poderia ser fatal.

O oitavo e nono dia foram iguais, muita procura e nenhum resultado. O décimo dia amanheceu com uma garoa fria, que nos fez ser mais rápidos no desjejum e iniciar a jornada do dia. Já estávamos quase sem víveres e pela tarde iniciaríamos o retorno até a tribo para reabastecer. A garoa irritante permaneceu toda a manhã. Durante todos esses dias que procurávamos como passar pelas montanhas, para o madron foi um período de férias. Ele nos acompanhava, sempre próximo, brincando e correndo atrás de pequenos animais. Com o sol quase a pino, resolvemos encerrar nossas buscas. Somente nesse momento percebemos a ausência do madron. Não tinha muitos lugares aonde ele podia estar. À oeste tinha apenas o cerrado aberto com grande visibilidade, o madron só poderia estar na base da montanha, entre as pedras. Depois de quase uma hora procurando, já começávamos a imaginar se ele não teria se afastado mais, quando ouvimos seu grunhido característico. O som era próximo, parecia sair do chão, mas não o víamos. Realmente, o som saia do chão, por isso não o encontrávamos. Escondido entre uma parede da montanha e arbustos, um buraco de um metro de diâmetro; o madron devia estar perseguindo algum animal quando caiu.

Alguém teria que descer e amarrar o madron para poder içá-lo. Preferi eu descer mesmo com as reclamações de Benunes. Amarrei uma corda no meu peito, abaixo dos braços e com ela passando ao redor de uma árvore, Benunes me descia lentamente. A profundidade não era muita, cerca de dois metros e meio, mas como era muito escuro não avistávamos o fundo e o madron. Assim que meu pé tocou o chão ele veio correndo, fazer festa e me lamber. Acendi uma tocha, e pude ter uma visão melhor, o buraco parecia se alargar e continuar formando um túnel. O fogo da tocha oscilava em direção ao fundo, se havia corrente de ar, havia saída. Parece que havíamos encontrado o acesso. Seria praticamente impossível achar esse buraco se não fosse por essa eventualidade. Assim que Benunes desceu seguimos o corredor estreito e escuro. De quando em quando existia uma fenda ligando à superfície, podíamos ver um leve feixe luminoso no alto. Às vezes o túnel se abria em um salão com estalactites e estalagmites, mas acabava voltando a estreitar. Ao menos não se bifurcava, não tínhamos problemas em escolher o caminho, só podíamos seguir em frente. Andamos mais de três horas para avistarmos a saída do túnel.

Cercado pelas altas montanhas estava um vale, não muito extenso, com vegetação luxuriante. No céu, nuvens carregadas e raios que caiam ininterruptamente. A cordilheira devia ter grande quantidade de magnetita ou hematita para atrair tantos raios. Entramos na pequena floresta com certa dificuldade devido à ausência de trilhas ou caminhos. Em pouco tempo atingimos uma clareira que devia ser o centro da mata. Uma nascente de água formava um lago de águas límpidas. Quando me abaixei para lavar o rosto percebi pouco acima do nível da água o leve brilho arroxeado. A passagem fica exatamente sobre o lago. Sentei-me no chão, sem quase acreditar. Finalmente, a passagem, as luas em perfeito alinhamento, só faltando esperar a coloração.

83. Decisão Afinal, ali estava a passagem. E agora? O que fazer? Estive esse tempo todo tão preocupado em

decifrar o mapa e descobrir a localização da passagem que praticamente não pensei sobre o que faria após encontra-la. Voltar para casa. Mas algo dentro de mim dizia que minha casa não era mais lá. Benunes tinha recusado meu convite para me acompanhar, disse que caso ficássemos presos em meu

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mundo, ele ficaria deslocado; embora tivesse muita curiosidade, não quis correr o risco de ficar num mundo que jamais se adaptaria. Eu sabia que ele estava com a razão.

Comecei a me preparar, afinal, foi para isso que vim até aqui. Deixei a capa, vesti apenas a camisa e calça de algodão cru e o mocassin. Era a roupa mais aceitável que eu poderia usar para chegarem meu mundo. Entreguei o bastão à Benunes. Tirei o pacote com meus manuscritos e entreguei lhe a mochila. Nada mais que ela continha me ajudaria fora daqui. Sentamo-nos olhando o lago e seu brilho, a cor era difícil de ser vista, era preciso firmar bem a vista para percebê-la.

- Guardarei seu bastão e seus pertences, independente do tempo que demorar. - Você é um bom amigo Benunes, nossas viagens juntas foram inesquecíveis. Não se esqueça de

fazer um mapa mais detalhado desta passagem, principalmente da entrada do túnel que é praticamente invisível, e mandar para a rainha. E cuidado com as cobras do pântano na volta.

- Olhe Foras, a cor, está mudando. Ah, agora entendi, a passagem muda seu brilho. Está ficando esverdeado. As luas estão no alinhamento. Tudo está exato. É hora.

Um tom esverdeado muito tênue começou a aparecer. Quanto tempo demoraria até mudar de cor novamente? Será que todas as passagens mudam de cor como essa?

A maioria dos locais do Lugar inspiram muita paz e tranquilidade. Este não. Os raios caindo sem parar sobre a face interna da montanha. As nuvens escuras, ameaçando temporal. Aqui parece tudo muito tenso, prestes a acontecer um cataclismo.

E se eu não conseguisse mais voltar? Olhei a lagoa, o brilho quase invisível em tom verde. O tempo estava passando e eu me perguntando se realmente queria voltar. Precisava decidir agora. Imerso em meus pensamentos,voltei a realidade quando ouvi Benunes chamando - a cor está se esmaecendo, vai mudar novamente Foras. Pule agora ou você vai perder a entrada.

EPÍLOGO

84. O livro O flash o incomoda, ele não consegue raciocinar com a luz em seu olho. Tenta não demonstrar,

afinal, hoje é dia da sua festa. Os repórteres o cercam. Todos ávidos por uma entrevista. - João César Passos, com apenas uma semana e essa vendagem fantástica, esse será seu maior

sucesso?- É o que todo escritor espera, que seu livro mais recente seja o seu maior sucesso. - Você não acha que o estilo ficou muito simplista? Tendendo para o infanto-juvenil?- O estilo é mais simples realmente, importando mais o conteúdo, e os números mostram uma

conexão maior com o público, não acha?- Uma última pergunta João, como foi essa transição, sair do romance intimista para ficção

fantástica, qual a ligação, existe algo de autobiográfico? - Na verdade, não existe nenhuma ligação, muito menos conotação autobiográfica. “O Lugar”

veio pronto, foi uma epifania, aconteceu, não acredito que farei algo semelhante novamente. Agradeço a todos vocês, amigos, que me prestigiam. E agora, por favor, aproveitem a festa.

Pegou uma taça de champanhe do garçom que passava e foi até a sacada. A noite está muito agradável. Ele divaga, deveria estar mais feliz, não é qualquer escritor que tem um grande sucesso aos vinte e sete anos. Seus dois primeiros livros tiveram uma aceitação apenas razoável, “O Lugar” certamente ultrapassará ambos folgadamente. A crítica foi toda favorável e ele estava liderando a lista dos mais vendidos nacionais há uma semana.

Maria Luiza, sua noiva, entra na sacada reclamando - Não seja antissocial João, vamos voltar para dentro, estão perguntando por você, hoje a festa é a sua. E por que você disse aquilo? Que não faria outro igual? Você sabe que precisa ter cuidado com o que fala, esse pessoal adora distorcer tudo, sempre acham um motivo para criticar, mas deixe, já está feito mesmo, vamos aproveitar. Ah, antes que eu me esqueça, autografe este, é para Marcia, do escritório, prometi levar-lhe amanhã.

Entram e ele procura uma caneta, com o livro na mão. Na contracapa, sua foto mostrando seu melhor ângulo. “Os olhos e cabelos negros curtos e ligeiramente ondulados que puxei de meu pai, sobrancelhas grossas, rosto fino e o queixo levemente proeminente. Minha mãe sempre disse que eu era uma cópia do meu pai. Apenas o nariz vinha dela, bem feito, com linhas suaves, quebrava a aspereza do conjunto”.

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Entrega o livro autografado a Malu e continuam conversando amenidades com os amigos e comensais. Já passava das duas da manhã quando o último convidado se despediu. Ambos estavam exausto. Malu o ajudara muito com todos os preparativos da recepção, foi a mais profissional da noite, cuidando de tudo, de olho em todos os detalhes, seu papel oscilava entre gerente e rainha. Recusou carona, afinal ele já estava em casa e a essa hora não havia trafego. Depois que ela saiu, João foi para o quarto/escritório, o único lugar limpo da casa.

85. A verdadeDa última gaveta da escrivaninha tirou uma caixa onde guardava cuidadosamente um calhamaço

de velhas folhas com uma escrita elegante. A origem da história e do livro. Não precisou alterar muita coisa, apenas mudou alguns detalhes para deixar mais comercial. Seu pai escrevia bem, mais uma qualidade que herdou dele. Demorou quase um ano para decidir-se a publicá-lo em seu nome.

Sua revolta de adolescente acabara muito antes de saber a verdade. Mesmo jovem era bastante realista com as atitudes de cada um e mesmo não aceitando, respeitava-as.

Às vezes passava horas imaginando o que aconteceu naquele dia. A passagem prestes a fechar. A dúvida, não, a dúvida não, a certeza que lá era verdadeiramente o seu lugar. E nesse momento de certeza que não voltaria mais, seu pensamento foi para o filho. Escreveu rapidamente o nome e endereço e atirou o manuscrito pela passagem.

Mas uma coisa ainda o incomoda muito, não poder dizer-lhe que conseguiu seu intento. Que o manuscrito chegou às suas mãos. Era tão improvável, mas aconteceu. Já se passaram dois anos.Um casal em férias achou o pacote e vendo seu nome e endereço,fizeram a grande gentileza de trazê-lo, chegando a desviar de seu percurso para isso. Sem isso, João jamais saberia o que aconteceu com seu pai. Mais uma vez relê a folha derradeira do manuscrito.

“Querido João,Espero que algum dia você possa me perdoar.Queria com esse escrito explicar a você o que aconteceu.Talvez depois de ler você entenda porque eu desisti de voltar.Nunca me conformei com a ideia de um futuro pré-determinado,Mas acredito que meu ciclo é todo aqui. Eu preciso fazer meu caminho.É aqui que os sonhos se realizam.Com amor, do teu pai.”PedroPassos

FIM

- Há quanto tempo você esta aqui Foras?- Vinte e cinco anos.- Lembro-me bem a primeira vez que você passou por Kho-zy. Naquela época fiquei um pouco

irritada com você por monopolizar tanto a atenção de Benunes. Ele o seguia como um madron.

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- Não Catria, você está enganada. Ele foi o maior amigo que tive aqui, adorava conversar e saber coisas de meu mundo, mas tinha decisão própria. Quando o convidei para voltar à Terra comigo, ele recusou. Se ele tivesse aceitado, provavelmente teríamos ido. Então, na verdade, foi ele quem influenciou minha decisão.

- Acho que você tem razão, mas o fato de vocês dois viajarem sempre, realmente me incomodou, as permanências de Benunes em Kho-zy sempre foram menos demoradas do que eu gostaria.

- Viajamos muito durante quase cinco anos, circulamos o Lugar uma dezena de vezes, a procura de passagens, fazendo comércio, foi um tempo muito bom. Descobrimos inúmeras passagens, atravessamos algumas, conhecemos mundos diferentes. Fico feliz por ele, por ter feito isso. Seu maior desejo era esse, conhecer o desconhecido. Só depois de sua morte eu me acomodei aqui na Capital. Voltei a trabalhar com a rainha, passei a escrever sobre as passagens, suas localizações, seus destinos, e com a experiência das viagens pude realizar também um projeto antigo que era mapear e medir as distâncias do Lugar, e é o que eu faço até hoje. Hoje muitos viajantes vem tomar opiniões e discutir percursos comigo antes de empreender uma jornada longa. Eventualmente vou a Despen rever o pequeno Elder, que já não está tão pequeno. Recentemente fui convidado para fazer parte do conselho dos Elderes e embora muito honrado com a lembrança, declinei o convite, pois ainda não me considero experiente o suficiente para esse cargo.

- Benunes sempre falava de seus dois amores, o que aconteceu, com quem você ficou?- Com nenhuma delas. Na época que a conheci, Akelli estava estabelecida em Despen, e eu não

queria me fixar em lugar nenhum, a última vez que passei por lá, há alguns anos atrás, ela estava casada e feliz. E Vency, bem, já estava casada, durante algum tempo nos encontramos, depois fomos nos afastando naturalmente. Depois que Hermif morreu ela casou novamente. Vency não era mulher de ficar sozinha.

- E você nunca pensou em voltar ao seu mundo?- Uma vez Corvo-que-vê-no-escuro me falou que é o nosso interior que torna nossa vida

agradável ou desagradável. Se ele tivesse conhecido meu mundo, certamente mudaria de opinião. Eu amo este Lugar, é aqui que pretendo morrer. Naquela primeira viagem, quando estava prestes a voltar, era por meu filho, mas ele já era adulto, pouca coisa mudaria se voltasse. Só naquele momento, tendo a possibilidade de atravessar a passagem e voltar ao meu mundo, eu entendi o que era fechar meu ciclo. Tudo ficou muito claro para mim. Eu não podia ficar aqui por não ter alternativa. Precisava achar a saída e aí sim, ficar por opção.

Ficamos em silêncio alguns minutos. Catria abaixa a cabeça, cobre o rosto com as mãos, não consegue evitar as lágrimas.

- Sinto tantas saudades dele. - Eu também Catria, eu também. Agradeço a você que tenha vindo de Kho-zy até a Capital para

honrarmos os dez anos de sua morte. Agora vamos tomar uma cerveja, certamente ele gostaria que fizéssemos isso.

Ela encosta a cabeça em meu ombro e voltamos abraçados, devagar devido ao meu coxear, nos afastando do riacho em direção à Capital.

Agora sim,

Fim