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    26 | maio DE 2012

    O p d Luz

    E

    le o pai de Luzia, um crnio humano de11 mil anos, o mais antigo at agora en-contrado nas Amricas, que pertenceu aum extinto povo de caadores-coletoresda regio de Lagoa Santa, nos arredores

    de Belo Horizonte. O arquelogo e antroplogoWalter Neves, coordenador do Laboratrio deEstudos Evolutivos Humanos do Instituto deBiocincias da Universidade de So Paulo (USP),no oi o responsvel por ter resgatado esse an-tigo esqueleto de um stio pr-histrico, mas oigraas a seus estudos que Luzia, assim batizadapor ele, tornou-se o smbolo de sua polmica teo-ria de povoamento das Amricas: o modelo dosdois componentes biolgicos.

    Formulada h mais de duas dcadas, a teoria ad-

    voga que nosso continente oi colonizado por duaslevas deHomo sapiens vindas da sia. A primeiraonda migratria teria ocorrido h uns 14 mil anose ora composta por indivduos parecidos comLuzia, com morologia no mongoloide, seme-lhante dos atuais australianos e aricanos, masque no deixaram descendentes. A segunda levateria entrado aqui h uns 12 mil anos e seus mem-bros apresentavam o tipo sico caracterstico dosasiticos, dos quais os ndios modernos derivam.

    Nesta entrevista, Neves, um cientista to aguer-rido como popular, que gosta de uma boa brigaacadmica, ala de Luzia e de sua carreira.

    entrevista waltEr NEvEs

    Como surgiu seu interesse por cincia?Venho de uma amlia pobre, de Trs Pontas,Minas Gerais. Por alguma razo, aos 8 anos, euj sabia que queria ser cientista. As 12 anos, quequeria trabalhar com evoluo humana. No te-nho explicao para isso.

    Quando voc veio para So Paulo?Foi em 1970, depois da Copa. Migramos para SoBernardo, onde morei grande parte da minha vida.

    Como era sua vida?Todo mundo em casa tinha que trabalhar. A amliaera pequena. Era meu pai, minha me, eu e meuirmo, trs anos mais velho. Quando chegamos aSo Paulo, meu pai era pedreiro e minha me ven-

    dia Yakult na rua. Eu tinha de 12 para 13 anos. Umano depois de chegar aqui, comecei a trabalhar.Vendia massas uma vez por semana numa barracade eirantes do meu bairro. Meu primeiro empre-go xo oi de ajudante-geral na Malas Primicia,para azer echadura de mala. E eu odiava. Erachato, no exigia qualicao. Durou pouco. Umms depois ui contratado na brica de turbinasde avio da Rolls-Royce, em So Bernardo. Eu mebeneciei muito desse ambiente, que era rena-do, cheio de regras e de valorizao da hierarquia.Acho que desenvolvi minha excelente capacidadeadministrativa nos anos que passei na Rolls-Royce.

    Arquelogo e antroplogo da USP

    conta como formulou uma teoria sobre

    a chegada do homem s Amricas

    Mco P rcdo Zozo

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    Tive uma ormao burocrtica de pri-meira. Todos os dias, quando a gente che-gava brica, tinha um quadro da rainhada Inglaterra e a gente tinha que azermesura. Eu achava o mximo. Para quemvivia no mato, era um upgrade deglamourna vida. Tinha de 13 para 14 anos.

    O que azia?

    Comecei como ofce-boy e quando saera assistente da diretoria tcnica. ARolls-Royce no Brasil recebia as turbi-nas para azer reparos e reviso geral.Meu chee era diretor dessa parte e euo ajudava em tudo. Trabalhava oito ho-ras por dia e estudava noite. Estudeiem escola pblica e entrei na USP, embiologia, em 1976. Tnhamos um ensinomdio pblico de excelente nvel.

    Por que escolheu biologia?

    Sempre achei que o cami-nho para estudar evoluohumana era estudar hist-ria. Numa visita USP nocolegial, conheci o Institu-to de Pr-histria, que noexiste mais. O instituto oraundado por Paulo Duartee uncionava no prdio daZoologia, onde hoje ica aEcologia. Nessa visita, uiao prdio da Histria atrsde inormao sobre o cur-

    so e me disseram que, se euzesse histria, no apren-deria nada sobre evoluohumana. Descendo a rua doMato, vi numa plaquinhaescrito Instituto de Pr-his-tria, onde conheci a arque-loga Dorath Ucha. L vi as rplicas dehomindeos sseis e esqueletos pr--histricos escavados nos sambaquis dacosta brasileira. Ento disse para Dora-th: Quero azer arqueologia e estudar

    esqueleto. E ela disse: No aa hist-ria. Ou voc az biologia ou medicina.Medicina no dava porque era em tem-po integral. Optei por biologia. Foi umbom negcio. Em 1978 ui contratado,ainda na graduao, pelo Instituto dePr-histria como tcnico.

    Voc estava em que ano da aculdade?Do segundo para o terceiro, acho. Quan-do conclu a licenciatura em 1980, uicontratado como pesquisador e proes-sor. No tinha concurso. Era indicao.

    Era um instituto independente?Sim. Depois oi anexado ao Museu de Ar-queologia e Etnologia, o MAE. Na pocase azia arqueologia em trs lugares naUSP: no Instituto de Pr-histria, o maisantigo, no MAE e no setor de arqueolo-gia do Museu Paulista, no Ipiranga. Nonal dos anos 1980, os trs oram unidosem um s. Trabalhei no Instituto de Pr-

    -histria como pesquisador de 1980 a 1985.Em 1982 ui azer doutorado sanduche naUniversidade Stanord. Eu era autodidata,porque no havia no Brasil especialistanessa rea. No Instituto de Pr-histria,o material estava l, a biblioteca estava l,mas no havia quem me orientasse.

    Eles no trabalhavam com evoluohumana?

    O instituto era muito pequeno, tinhadois pesquisadores, que se achavamdonos daquilo. Quando ui contratado,outra arqueloga, a Solange Caldarelli,tambm oi contratada. Formamos um

    par muito produtivo. Trabalhamos nointerior de So Paulo com grupos decaadores-coletores, na aixa cronol-gica dos 3 mil aos 5 mil anos. Foi comela que me tornei um arquelogo. Minhatransormao de bilogo para antrop-logo sico oi autodidata. O crescimentodo nosso grupo de pesquisa comeou aexpor a mediocridade do trabalho eitono Instituto de Pr-histria e no Brasil.Isso levou a uma guerra entre ns e oestablishment. Em 1985 omos expulsosda universidade.

    Como assim?Expulsos. Demitidos sumariamente.

    O que alegavam?Nada. No tnhamos estabilidade. A maiorparte dos docentes era contratada a ttuloprecrio e omos chutados do Institutode Pr-histria pelo pessoal mais velho.

    Qual a dierena do antroplogo sicoe do arquelogo? Voc se considera oque hoje?Me considero antroplogo e arquelo-go. Na verdade me considero uma ca-tegoria que tem nos Estados Unidos ese chama evolutionary anthopologyst,antroplogo evolutivo. Mesmo entreos antroplogos evolutivos so raros osque tm uma trajetria em antropologia

    sica, arqueologia e antro-pologia sociocultural. Nesse

    sentido tenho uma carreiranica, que os meus colegasno exterior no entendiam.Eu azia antropologia sicae antropologia biolgica etinha projetos de arqueolo-gia. Quando ui para a Ama-znia, trabalhei com antro-pologia ecolgica. Sou umadas nicas pessoas no mun-do que passou por todas asantropologias possveis. Sepor um lado no sou bom em

    nenhuma delas, por outro eutenho uma compreenso dohumano muito mais multia-cetada do que meus colegas.

    O arquelogo az o trabalhode campo e o antroplogo

    sico espera o material?O antroplogo sico pode ir a campo, masno vai. Espera os arquelogos entregaremo material para ele estudar. Me rebeleicontra isso no Brasil. Falei: quero ser ar-

    quelogo tambm. Nos Estados Unidos,no nal dos anos 1980, se deniu uma reachamada bioarqueologia, composta porantroplogos sicos que no aguentavammais car na dependncia dos arquelo-gos. Aqui de maneira independente merebelei contra essa situao. E a demissodo instituto em 1985 oi traumtica porquetnhamos sete anos de pesquisa de cam-po e perdemos tudo. De uma hora paraoutra minha carreira oi zerada. A sorte que quela altura eu tinha deendidomeu doutorado.

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    Aqui?Aqui na Biologia, mas sobre paleogen-tica. Fui para Stanord por meio de umabolsa sanduche de seis meses do CNPq.Para me manter em Stanord e em Berke-ley, eu contava com meu salrio daqui,na poca dava US$ 250, e o [Luigi Lu-ca] Cavalli-Sorza, com quem trabalhei,me pagava no laboratrio mais US$ 250.

    Ele um grande pesquisador, mas dagentica de populaes.Me perguntam por que no ui traba-lhar com um antroplogo sico, se euera autodidata na parte osteolgica. Noui porque o que o Cavalli-Sorza az ascinante. Ele une vrias reas do co-nhecimento. Na poca eu estava matricu-lado no mestrado na Biologia, quem meorientava aqui era o [Oswal-do] Frota-Pessoa.

    Que tambm da gentica.Da gentica, mas com umaviso muito abrangente doser humano. Se o Frota noexistisse, eu no teria conse-guido azer o mestrado. Elepercebeu minha situao e oimuito generoso. Quando euestava terminando o trabalhoem Stanord, o Cavalli-Sorzadescobriu que eu estava a-zendo mestrado, e no dou-

    torado. Ele olhava para mim edizia: Como voc pode estarazendo mestrado se j temdiversas publicaes, coor-dena dois projetos de arque-ologia e tem sete estudantes?No tem sentido. Vou man-dar uma correspondncia para o Frota--Pessoa sugerindo que voc aa diretoo doutorado. Hoje isso comum. Foi oque me salvou. Deendi o doutorado emdezembro de 1984 e, meses depois, ui

    demitido. A Solange Caldarelli saiu toenojada com a academia que nunca maisquis saber de carreira universitria. Euqueria voltar para a academia. A surgi-ram trs possibilidades. Uma era azerum ps-doc em Harvard; outra um ps--doc na Universidade Estadual da Pen-silvnia e uma terceira coisa, inespera-da. Quando eu ui demitido disse para oFrota que ia para o exterior. Sabia que aminha condio ia ser sempre confituosacom a arqueologia brasileira. Nessa pocaexistia o programa integrado de gentica,

    do CNPq, importante para o desenvolvi-mento da gentica no Brasil, e o Frota co-ordenava alguns cursos itinerantes. A oFrota disse: Agora que a gente ia ter umespecialista em evoluo humana vocvai embora. Eu entendo, mas eu vou teconvidar para, antes de ir para o exterior,voc dar um curso itinerante pelo Brasilsobre evoluo humana. Dei o curso na

    Universidade Federal da Bahia, na Fede-ral do Rio Grande do Norte, no MuseuGoeldi e na Universidade de Braslia. Fi-quei muito bem impressionado com oGoeldi. No ltimo dia de curso no Goeldi,o diretor quis me conhecer. Falei da mi-nha trajetria e que estava indo para osEstados Unidos. Ele me perguntou: Notem nada que possa demover voc dessaideia? Eu disse: Olha, Guilherme, o

    nome dele Guilherme de La Penha, anica coisa que me aria car no Brasilseria ter a oportunidade de criar meuprprio centro de estudos, que pudesseser interdisciplinar e no estivesse ligado

    nem antropologia, nem arqueologia.E ele me convidou para criar l o que napoca se chamou de ncleo de biologiae ecologia humana. Aconteceu tambmuma coisa no nvel pessoal que me levoua optar por Belm.

    Isso em 1985?Ainda em 1985. Um pouco antes de eudar esse curso pelo Brasil, eu me apai-xonei proundamente pela primeira vez.Me apaixonei pelo Wagner, a melhorcoisa que aconteceu na minha vida. Se

    osse para os Estados Unidos, dicilmen-te conseguiria lev-lo. Em Belm, seriamais cil arrumar um emprego para elee continuar o relacionamento. Por issoaceitei a ida para o Goeldi. S que tivede me aastar dos esqueletos. Na Ama-znia a ltima coisa do mundo que sepode azer trabalhar com esqueletos,porque eles no se preservam.

    O que voc azia?Comecei a me dedicar antropologiaecolgica.

    E o que antropologia ecolgica?Ela estuda as adaptaes de sociedadestradicionais ao ambiente. At ento, erauma linha que os americanos trabalha-vam muito na Amaznia. Como a nos-

    sa antropologia aqui emi-nentemente estruturalista, e

    tem urticria de alguma coisaque seja biolgica, essa linhanunca progrediu no Brasil. Apensei: Brbaro, vou com-prar outra briga. Vou ormaruma primeira gerao em an-tropologia ecolgica. Grandeparte das pesquisas sobre an-tropologia ecolgica na Ama-znia era eita com indgenas.Ento decidi estudar as popu-laes caboclas tradicionais.

    Vocs publicaram um livro,no?Publicamos a primeira gran-de sntese sobre a adaptaocabocla na Amaznia, quesaiu aqui e no exterior. Colo-quei alunos que trabalharam

    comigo na Amaznia para azer douto-rado no exterior.

    Quais concluses voc destaca dessasntese?

    Estudando essas populaes amaznicastradicionais, cou claro que todo mundoque chega l, as ONGs principalmente,acha que eles tm problema de nutrio.De ato, eles tm um dcit de crescimen-to em relao aos padres internacionais.Mas nosso trabalho mostrou que na ver-dade eles no tm decincia de ingestode carboidratos e de protenas. O proble-ma parasitose.

    Como voc retornou para a USP?Em 1988, pouco depois de mudar para a

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    Amaznia, o Wagner oi diagnosticadocom Aids, e zemos um trato. Quando elechegasse na ase terminal, voltaramospara So Paulo. Vim azer um ps-doc naantropologia. Quando o Wagner morreu,em 1992, eu no queria mais voltar pa-ra a Amaznia e prestei dois concursos.

    Voc azia ps-doc em antropologia na

    USP?Sim, na Faculdade de Filosoa, Letras eCincias Humanas. A prestei dois con-cursos. Um na Federal de Santa Catarina,na rea de antropologia ecolgica, maseu queria car em So Paulo. Como euj tinha eito em 1989 a primeira desco-berta do que se tornou o meu modelo deocupao das Amricas, pensei: Tenhoque ir para um lugar em que possa mededicar a isso e voltar a meconcentrar em esqueletos

    humanos. A surgiu uma va-ga aqui no departamento, narea de evoluo. Passei emambos os lugares, mas opteipor aqui. Sabia que poderiacriar um centro de estudosevolutivos humanos que ti-vesse arqueologia, antro-pologia sica, antropologiaecolgica.

    Como teve a ideia de criarum modelo alternativo de

    colonizao das Amricas?Um dia, o Guilherme de LaPenha, diretor do Goeldi,me chamou e disse: Olha,Walter, daqui a uma semanatenho de ir a um congressoem Estocolmo sobre arque-ologia de salvamento. Preciso que vocme substitua. Eu disse: Mas assim, emcima da bucha? Ento lembrei que Co-penhague ca na rota de Estocolmo. Ne-gociei com ele a permisso para passar

    uns cinco dias em Copenhague e conhe-cer a coleo Lund. Fiz a viagem e no sconheci como medi os crnios de LagoaSanta da coleo Lund. Quando voltei,alei com um pesquisador da Argenti-na que passava um tempo no Goeldi, oHector Pucciarelli, meu maior parceirode pesquisa e o mais importante bioan-troplogo da Amrica do Sul. Propusque zssemos um trabalhinho com es-se material. Na poca estavam surgindoos trabalhos de Nide Guidon com con-cluses que me pareciam loucura, como

    dizer que o homem estava nas Amricashavia 30 mil anos. Minha ideia no traba-lho sobre os crnios de Lund era mostrarque os primeiros americanos no eramdierentes dos ndios atuais. Bom, ima-gina nossa cara quando vimos que oscrnios de Lagoa Santa eram mais pare-cidos com os australianos e os aricanosdo que com os asiticos. Entramos em

    pnico. Vimos que precisvamos de ummodelo para explicar isso.

    O que vocs fzeram ento?Alguns autores clssicos, dos anos 1940e 1950, como o antroplogo rancs PaulRivet, j haviam reconhecido uma simila-ridade entre o material de Lagoa Santa eo da Austrlia. S que o Rivet props umamigrao direta da Austrlia para a Am-

    rica do Sul para explicar a semelhana.Mais tarde, com o avano dos estudos degentica indgena, principalmente como trabalho do (Francisco) Salzano, couclaro que todos os marcadores genticos

    daqui apontavam para a sia. No haviasimilaridade com os australianos. Pen-samos ento em criar um modelo queexplorasse essa dualidade morolgica.No queramos cair em desgraa como oRivet e comeamos a estudar a ocupaoda sia. Descobrimos que l, no nal doPleistoceno, tambm havia uma dualida-de morolgica. Havia os pr-mongoloi-des e os mongoloides. Nossas populaesde Lagoa Santa eram parecidas com ospr-mongoloides. Os ndios atuais soparecidos com os mongoloides. Foi da

    que surgiu a ideia de que a Amrica oiocupada por duas levas distintas: umacom morologia generalizada, parecidacom os aricanos e os australianos; e ou-tra parecida com os asiticos. Nosso pri-meiro trabalho oi publicado na revistaCincia e Cultura, em 1989. A partir de1991 comeamos a publicar no exterior.

    Voc ento ormulou esse modelo antesde examinar o crnio da Luzia.Dez anos antes. No Brasil vrios museustinham acervos da regio de Lagoa San-ta. Mas, como eu era o enant gtdaarqueologia brasileira, no me davamacesso s colees. Por isso ui estudara coleo Lund. S passei a ter acessos colees no Brasil a partir de 1995,quando algumas das pessoas que colo-

    cavam barreiras morreram.Um dos crnios que eu tinha

    mais curiosidade de estudarera o da Luzia.

    J tinha esse nome?No. Eu que dei. A genteconhecia como esqueleto daLapa Vermelha IV, nome dostio em que oi encontrado.O stio oi escavado pela mis-so ranco-brasileira, coor-denada pela madame Annet-te Emperaire. O esqueleto daLuzia oi achado nas etapas

    de 1974 e 1975. Mas a mada-me Emperaire morreu ines-peradamente. Com exceode um artigo que ela publi-cou, no tinha mais nada es-crito sobre a Lapa Vermelha.

    No artigo ela alava que o crnio eraantigo?Madame Emperaire achava que haviadois esqueletos na Lapa Vermelha: ummais recente e outro mais antigo, datado

    de mais de 12 mil anos, antes da culturaClovis, ao qual pertenceria o crnio daLuzia. S que o Andr Prous (arquelogorancs que participou da misso e hoje proessor da UFMG) revisou as anota-es dela e percebeu que o crnio era doesqueleto mais recente, que estava cercade um metro acima. Luzia no oi sepul-tada, oi depositada no cho do abrigo,numa enda. Prous demonstrou que ocrnio tinha rolado e cado num buracode uma raiz de gameleira que tinha apo-drecido. Portanto, o crnio pertencia a

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    esses restos que estavam na aixa dos 11mil anos de idade. Madame Emperairemorreu acreditando que tinha encontra-do uma evidncia pr-Clovis na Amricado Sul, o crnio que apelidei de Luzia.

    Onde estava o crnio da Luzia quandovoc o examinou?Sempre esteve no Museu Nacional do

    Rio de Janeiro, mas as inormaes no.O museu era a instituio parceira damisso rancesa.

    O povo de Luzia era restrito a LagoaSanta?Lagoa Santa uma situao excepcio-nal. No artigo sntese do meu trabalho,que publiquei em 2005 na revistaPNAS,usamos 81 crnios da regio. Para se teruma ideia de como so rarosos esqueletos com mais de

    7 mil anos no nosso conti-nente, os Estados Unidos eo Canad, juntos, tm cinco.Temos o que chamamos deossil power no que se ree-re questo da origem dohomem americano. Estudeitambm algum material deoutras partes do Brasil, doChile, do Mxico e da Flridae demonstrei que a morolo-gia pr-mongoloide no erauma peculiaridade de Lagoa

    Santa. Acredito que os nomongoloides devem ter en-trado l em cima por volta deuns 14 mil anos e os mongo-loides por volta de 10 ou 12mil anos. Na verdade, a mor-ologia mongoloide na sia muito recente. Imagino que, entre umae outra, no deve ter mais do que 2 ou 3mil anos de dierena. Mas puro chute.

    Dois ou 3 mil anos so o sufciente para

    mudar o entipo?Foram o suciente para mudar na sia.Hoje est mais ou menos claro que a mor-ologia mongoloide resultado da exposi-o das populaes que saram da rica,com uma morologia tipicamente arica-na, e se submeteram ao rio extremo daSibria. Meu modelo no totalmenteaceito por alguns colegas, inclusive ar-gentinos. Eles acham que o processo demongolizao ocorreu na sia e na Am-rica de orma paralela e independente.No vamos resolver o assunto por alta

    de amostras. Mas, em evoluo, a gentesempre opta pela lei da parcimnia. Vocescolhe o modelo que envolve o menornmero de passos evolutivos para expli-car o que encontrou. Pela regra da par-cimnia, meu modelo melhor do queoutros, que dependem de ter havido doiseventos evolutivos paralelos e indepen-dentes. Mas h oposio ao meu modelo.

    De quem?Dos geneticistas. Mas acho que no d paraenterrar o meu modelo com esse tipo dedado. No h razo para o DNA mitocon-drial, por exemplo, se comportar evoluti-vamente do mesmo jeito que a morologiacraniana. Onde geneticistas veem certahomogeneidade do ponto de vista do DNA,posso encontrar entipos dierentes.

    Tambm tem o argumento de que teriahavido uma s leva migratria paraas Amricas, j composta por uma po-

    pulao com tipos mongoloides e nomongoloides como Luzia.

    Existe essa terceira possibilidade. Masteria que ter havido uma taxa de deri-va gentica assombrosa para explicar acolonizao dessa orma. Por que teriadesaparecido um entipo e cado ape-nas o outro? Das opes ao meu modelo,acho essa a mais raca.

    Mas como voc explica o desapareci-mento da morologia de Luzia?Na verdade, descobrimos nos ltimosanos que ela no desapareceu. Quandopropusemos o modelo, achvamos que

    uma populao tinha substitudo a ou-tra. Mas em 2003 ou 2004 um colegaargentino mostrou que uma tribo me-xicana que viveu isolada do resto dosndios, num territrio hoje pertencente Calirnia, manteve a morologia nomongoloide at o sculo XVI, quandoos europeus chegaram pelo mar. Esta-mos descobrindo tambm que os ndios

    botocudos, do Brasil Central, mantive-ram essa morologia at o sculo XIX.Quando se estuda a etnograa dos bo-tocudos, v-se que eles se mantiveramcomo caadores-coletores at o m dosculo XIX. Estavam cercados por outrosgrupos indgenas, com os quais tinhamrelao belicosa. O cenrio oi esse. So-brou um pouquinho da morologia nomongoloide at recentemente.

    O que voc acha do trabalho

    da arqueloga Nide Guidonno Parque Nacional Serrada Capivara? Para ela, o ho-mem chegou ao Piau h 50mil, talvez 100 mil anos.Mas cad as publicaes? Elapublicou uma nota naNatu-re nos anos 1990 e estamosesperando as publicaes.Eu e a Nide omos inimi-gos mortais por 20 anos. Unsanos atrs, a gente umou ocachimbo da paz. J estive

    no Piau algumas vezes e atpublicamos trabalhos sobreesqueletos de l. No parquehavia as duas morologias decrnio. muito interessan-te. Tive uma boa ormaoem anlise de indstria da

    pedra lascada. A Nide abriu toda a co-leo ltica para mim e o Astolo Araujo(hoje no MAE). Sa 99,9% convencidodo ato de que houve ali uma ocupaohumana com mais de 30 mil anos. Mas

    tenho esse 0,1% de dvida, que muitosignicativo.

    O que seria preciso para acabar coma dvida?A Nide deveria convidar os melhoresespecialistas internacionais em tecnolo-gia ltica para ver o material e publicaros resultados das anlises. Se ela estivercerta, teremos de jogar tudo que sabe-mos ora. Meu trabalho no ter servidopara nada. Mas, graas a Deus, no s omeu, o de todo mundo. n

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