Walter Claudius Rot Hen Burg

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  1 * publicado no livro “Princípios processuais civis na Constituição”, coordenado por Olavo de Oliveira Neto e Maria Elizabeth de Castro Lopes (Rio de Janeiro: Elsevier, 2008, p. 283-319) O TEMPERO DA PROPORCIONALIDADE NO CA LDO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS 1  W  ALTER C  LAUDIUS ROTHENBURG 2  Sumário: 1) Daniela Cicarelli 2) De onde vem a proporcionalidade? (fundamentação jurídico-positiva) 3) O que é a proporcionalidade: não um princípio, mas um critério 4) Como é a proporcionalidade: os momentos do critério da proporcionalidade (adequação e necessidade) 5) Nem só de restrições vive a pr oporcionalidade: a proibição de proteção insuficiente 6) Proporcionalidade, razoabilidade e caso concreto: fundamentação e argumentação 1) Daniela Cicarelli  Há um direito fundamental de fazer amor na praia ou no mar e ser deixado em paz. Essa é uma manifestação da liberdade das pessoas, com implicações na privacidade. Quem “ousa” fazer amor na praia ou no mar expõe-se deliberadamente em certa medida e, assim, tem diminuída sua esfera de privacidade, mas dela não abdica completamente. Mesmo que o espaço seja público, não se pode devassar completamente a privacidade das pessoas, que guardam em algum grau a possibilidade de determinação sobre o que querem expor. No mais, importa verificar se há conflito com outros direitos fundamentais ou determinações jurídicas, como seria – mas não foi – se outras pessoas que por ali estivessem pudessem  justificar um atentado ao pudor (especialmente se houvesse crianças no local). Num país de longo e exuberante litoral, como o Brasil, onde há uma “cultura da praia”, cenas de amor à beira ou dentro do mar não são bizarras. É certo que o episódio folhetinesco, cujo enquadramento  jurídico numa interpretação pessoal (existe outra forma de interpretação?) – adiantei, deu-se (e a utilização desse verbo é proposital, evocativa) numa praia da Espanha, porém com personagens brasileiras: o “caso Daniela Cicarelli”, conhecida modelo e apresentadora de programa de televisão, que teve a filmagem das cenas de carícias trocadas com o namorado divulgada na Internet. 1  O presente texto retoma e desenvolve minha exposição no IV Congresso Brasileiro de Direito Constitucional e Cidadania, promovido pelo Instituto de Direito Constitucional e Cidadania – IDCC e coordenado pelo Prof. Dr. Z ULMAR FACHIN, ocorrido em Londrina (PR), março de 2007. 2  Procurador Regional da República, Mestre e Doutor em Direito pela UFPR, Pós-graduado em Direito Constitucional pela Universidade de Paris II, Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito da Instituição Toledo de Ensino (ITE) de Bauru- SP.

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1* publicado no livro Princpios processuais civis na Constituio, coordenado por Olavo de Oliveira Neto e Maria Elizabeth de Castro Lopes (Rio de Janeiro: Elsevier, 2008, p. 283-319)

O TEMPERO DA PROPORCIONALIDADE NO CALDO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS1 WALTER CLAUDIUS ROTHENBURG2

Sumrio: 1) Daniela Cicarelli 2) De onde vem a proporcionalidade? (fundamentao jurdico-positiva) 3) O que a proporcionalidade: no um princpio, mas um critrio 4) Como a proporcionalidade: os momentos do critrio da proporcionalidade (adequao e necessidade) 5) Nem s de restries vive a proporcionalidade: a proibio de proteo insuficiente 6) Proporcionalidade, razoabilidade e caso concreto: fundamentao e argumentao

1) Daniela Cicarelli H um direito fundamental de fazer amor na praia ou no mar e ser deixado em paz. Essa uma manifestao da liberdade das pessoas, com implicaes na privacidade. Quem ousa fazer amor na praia ou no mar expe-se deliberadamente em certa medida e, assim, tem diminuda sua esfera de privacidade, mas dela no abdica completamente. Mesmo que o espao seja pblico, no se pode devassar completamente a privacidade das pessoas, que guardam em algum grau a possibilidade de determinao sobre o que querem expor. No mais, importa verificar se h conflito com outros direitos fundamentais ou determinaes jurdicas, como seria mas no foi se outras pessoas que por ali estivessem pudessem justificar um atentado ao pudor (especialmente se houvesse crianas no local). Num pas de longo e exuberante litoral, como o Brasil, onde h uma cultura da praia, cenas de amor beira ou dentro do mar no so bizarras. certo que o episdio folhetinesco, cujo enquadramento jurdico numa interpretao pessoal (existe outra forma de interpretao?) adiantei, deu-se (e a utilizao desse verbo proposital, evocativa) numa praia da Espanha, porm com personagens brasileiras: o caso Daniela Cicarelli, conhecida modelo e apresentadora de programa de televiso, que teve a filmagem das cenas de carcias trocadas com o namorado divulgada na Internet.

O presente texto retoma e desenvolve minha exposio no IV Congresso Brasileiro de Direito Constitucional e Cidadania, promovido pelo Instituto de Direito Constitucional e Cidadania IDCC e coordenado pelo Prof. Dr. ZULMAR FACHIN, ocorrido em Londrina (PR), maro de 2007. 2 Procurador Regional da Repblica, Mestre e Doutor em Direito pela UFPR, Ps-graduado em Direito Constitucional pela Universidade de Paris II, Professor do Programa de Ps-Graduao em Direito da Instituio Toledo de Ensino (ITE) de BauruSP.

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2 O caso, como tantos outros, envolve conflito de direitos e pode ser resolvido com o emprego da proporcionalidade, esse importante critrio jurdico, especialmente til soluo de problemas que envolvam concorrncia ou coliso de direitos fundamentais.3 Importa, inicialmente, identificar os direitos fundamentais em jogo e seu respectivo mbito normativo.4 No caso, h o direito fundamental privacidade (encontrado em diversos dispositivos da Constituio brasileira e de modo evidente no art. 5, X: so inviolveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenizao pelo dano material ou moral decorrente de sua violao) e o direito fundamental imagem (art. 5, V: assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, alm da indenizao por dano material, moral ou imagem)5, por um lado; e por outro, o direito fundamental de informao (art. 5, XIV: assegurado a todos o acesso informao e resguardado o sigilo da fonte, quando necessrio ao exerccio profissional) e de comunicao (art. 5, IX: livre a expresso da atividade intelectual, artstica, cientfica e de comunicao, independentemente de censura ou licena) que se relacionam ao direito fundamental de expresso (art. 5, IV: livre a manifestao do pensamento, sendo vedado o anonimato). Sem prejuzo de outros enquadramentos possveis, eventualmente mais genricos, como o fundamento da dignidade da pessoa humana (art. 1, III), o objetivo de uma sociedade livre (art. 3, I) e que promova o bem de todos (art. 3, IV). As pessoas famosas, especialmente os artistas que buscam e se beneficiam da notoriedade, expem-se deliberadamente e provocam um interesse maior da populao em geral.6 O mbito de sua privacidade parcialmente diverso e protegido com menos rigor do que o das pessoas comuns: Esses indivduos, oportuno advertir [com certa severidade, DOMINGOS FRANCIULLI NETTO e THIAGO LUS SANTOS SOMBRA], conservam o direito intimidade e imagem em relao a sua esfera ntima, embora recebam uma profunda invaso de privacidade.7 certo que o direito reserva no desaparece e depende muito, para configurar-se, do contexto. Um aspecto a levar em conta a inteno dos sujeitos, que no perdem a capacidade de determinao quanto quilo que querem conservar privado. Deve ser mantida na esfera de disponibilidade prpria uma avaliao quanto ao contedo das informaes (no caso, cenas de sexo), forma de captao (cenas gravadas), ao meio e intensidade de divulgao (rede mundial de informtica Internet, com fortssima exposio).

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CLMERSON MERLIN CLVE e ALEXANDRE REIS SIQUEIRA FREIRE, 2003 : 232-234. DANIEL SARMENTO, 2000 : 99-102. 5 LUIZ ALBERTO DAVID ARAUJO e VIDAL SERRANO NUNES JNIOR, 2005 : 143-144. 6 GUILHERME DRING CUNHA PEREIRA, 2002 : 99-103. 7 2005 : 115.

3 O tipo de atividade desempenhada tambm conta; assim, os lugares e fazeres que guardem pertinncia com a profisso (no caso dos artistas, que tenham relao com o mundo artstico) esto mais afetados, quer dizer, tm uma proteo de privacidade menos intensa. Deve-se considerar ainda o objeto da divulgao: um fato da vida pblica, como um flerte ou uma discusso em uma festa, so muito mais suscetveis de divulgao do que um fato da vida privada, como buscar os filhos na escola. Outro aspecto que nem sempre merece a devida considerao a forma da divulgao: uma nota nos meios de comunicao muito mais tolervel do que uma fotografia; cenas filmadas e divulgadas para o mundo todo via Internet so muito mais agressivas. ERNESTO BENDA, com base no conceito norte-americano de privacy, enfatiza a reserva dos diferentes mbitos de existncia face Sociedade em volta8, do que podemos extrair que as pessoas querem e podem ter expectativas de privacidade diferentes conforme as situaes em que se encontrem. Por conseguinte, so aspectos especficos que definem a possibilidade e a extenso da divulgao. Para solucionar o problema em foco, o critrio da proporcionalidade prope o enfrentamento de questes tais como se a pretendida proibio de divulgao das imagens contribui para a proteo da privacidade; se h outro meio de eficcia semelhante para proteger a privacidade, e que restringe menos o direito de informao e a liberdade de comunicao; se razovel o grau de restrio da liberdade de comunicao (a no-exibio das cenas, at com o bloqueio dos provedores, se necessrio) em funo do grau de proteo da privacidade. A sentena do caso Cicarelli foi de improcedncia do pedido (ao inibitria que objetiva obrigar os rus a cessarem imediatamente, sob pena de multa diria, a exibio do vdeo e das fotos dele extradas)9, infelizmente. A antecipao de tutela solicitada fora indeferida pelo juiz, mas, por meio de agravo de instrumento, foi liminarmente concedida pelo Tribunal de Justia e em seguida confirmada. Por causa do descumprimento do acrdo do agravo, um dos autores pediu o bloqueio de acesso pagina eletrnica de um dos provedores, o que tambm foi indeferido pelo juiz. Por fora de novo agravo de instrumento, determinou-se a instalao de filtros impeditivos do acesso ao vdeo..., com o esclarecimento posterior de que, na impossibilidade tcnica de cumprimento da medida, no deveria haver bloqueio do acesso ao site todo (conforme a sentena). Os rus argumentaram que os autores, quando resolveram namorar luz do dia em famosa praia da Espanha, abriram mo do direito intimidade e privacidade, em prol talvez de uma fantasia ou algo do gnero, como se tambm as fantasias dos amantes no pudessem ser protegidas de superexposio. Fundamentou o magistrado que, com os recursos atuais da tecnologia, os autores deveriam saber que suas imagens poderiam ser captadas por qualquer um e8 9

1996 : 130. Processo n 583.00.2006.204563-4, 23 Vara Cvel Central de So Paulo, Juiz GUSTAVO SANTINI TEODORO, 18/06/2007.

4 colocadas na internet. Deixaram que sua intimidade fosse observada em local pblico, razo pela qual no podem argumentar com violao da privacidade, honra ou imagem para cominar polpudas multas justamente aos co-rus. Porque nenhum segredo haveria a guardar, tambm revogou-se o segredo de justia inicialmente determinado ao processo. Infelizmente.

2) De onde vem a proporcionalidade? (fundamentao jurdico-positiva) Diante da franca admisso e ampla utilizao do critrio da proporcionalidade, a discusso a respeito de seu fundamento jurdico-normativo perde importncia e destina-se mais a satisfazer um apelo formal. No nego que o ordenamento jurdico seja por excelncia a fonte das normas, nem que a aceitao acrtica de postulados simplesmente porque so admitidos na prtica perigosa. Parece-me apenas que um postulado admitido e utilizado largamente no Direito de sociedades democrticas tenha evidente fundamentao jurdica. Todavia, que a evidncia no seja assim to tranqila, revela-o a polmica a propsito de qual seria esse fundamento. O princpio do Estado de Direito seria a matriz da proporcionalidade, segundo a jurisprudncia do Tribunal Constitucional Federal alemo.10 DIMITRI DIMOULIS e LEONARDO MARTINS, igualmente embasados em fontes alems, consideram esse princpio sob o ngulo formal, reduzido legalidade, e, assim, insuficiente para descrever o efeito e fundamentar a validade da proporcionalidade.11 Entretanto, uma compreenso mais substantiva do princpio do Estado de Direito, que inclua a promoo dos direitos fundamentais, oferece esteio jurdico para a proporcionalidade. Nessa linha, o critrio da proporcionalidade derivaria da disposio constitucional que vincula o legislador e no somente ele, tambm o Executivo e o Judicirio aos direitos fundamentais. O art. 1.3 da Constituio da Alemanha dispe que [o]s direitos fundamentais relacionados a seguir vinculam os Poderes Legislativo, Executivo e Judicirio como direito imediatamente aplicvel. O art. 18.1 da Constituio de Portugal ainda mais amplo: Os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias so directamente aplicveis e vinculam as entidades pblicas e privadas.. Num crescendo, a Constituio do Brasil dispe amplamente que [a]s normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais tm aplicao imediata (art. 5, 1), sem excluir destinatrios. [A] proporcionalidade se deduz deduzem DIMITRI DIMOULIS e LEONARDO MARTINS , como muitas vezes se afirma na Alemanha, da prpria essncia do sistema dos direitos fundamentais, garantindo seu respeito por meio de sua limitao racionalmente controlada.12 Ocorre que o critrio da proporcionalidade de to

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LUS AFONSO HECK, 1995 : 176. 2007 : 180. 12 2007 : 193.

5 larga aplicao que no se resume aos direitos fundamentais (embora seja no mbito destes que a proporcionalidade encontre maior relevncia). Por exemplo, as prerrogativas de certos agentes pblicos (juzes e parlamentares, para ilustrar) devem ser fixadas levando-se em conta a adequao e a necessidade ponderadas. Permitido seja abrir um parntese para notar que a proporcionalidade tem como destinatrio qualquer sujeito que deva fazer valer direitos (s mais das vezes, fundamentais). Conquanto a referncia mais freqente seja aos legisladores, que, ao editarem normas restritivas de direitos fundamentais, devem observar a proporcionalidade das restries, os demais rgos do Poder Pblico administradores, juzes etc. tambm devero empregar a proporcionalidade ao enfrentarem questes de direitos fundamentais. E quando em jogo direitos fundamentais na esfera particular (por exemplo, questes de famlia, contratuais, trabalhistas como a participao dos empregados nos lucros ou resultados da empresa: Constituio, art. 7, XI), de modo semelhante, a proporcionalidade funcionar como critrio de soluo, conforme apontam os citados dispositivos das Constituies portuguesa e brasileira. Finalmente, ser abordado adiante como no apenas a defesa de direitos fundamentais, em atitude de garantia contra aes indevidas, mas ainda a promoo de direitos fundamentais, em atitude de prestao contra omisses indevidas, desafia a utilizao da proporcionalidade. De volta discusso sobre o fundamento jurdico-positivo da proporcionalidade, a derivao a partir dos direitos fundamentais leva PAULO BONAVIDES ao princpio da igualdade, sobretudo em se atentando para a passagem da igualdade-identidade igualdade-proporcionalidade, to caracterstica da derradeira fase do Estado de direito.13 Radicalizando, pode-se chegar ao fundamento ltimo do critrio da proporcionalidade, situado na clusula da dignidade humana. Essa identificao parece ser fundamentalmente verdadeira, porm nessa generalizao pouco elucidativa, dado o alto grau de abstrao e impreciso do sobreprincpio da dignidade humana, conforme adverte WILSON ANTNIO STEINMETZ.14 O princpio do devido processo legal, no sentido de garantias previstas juridicamente (ANDR RAMOS TAVARES)15, apontado por importante doutrina e jurisprudncia brasileiras como outra fonte possvel do critrio da proporcionalidade.16 Enfatiza-se uma concepo procedimental, calcada no estabelecimento de formas de participao suficientemente intensiva e extensa de representantes dos mais diversos pontos de vista a respeito da questo a ser decidida, segundo WILLIS SANTIAGO GUERRA

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1996 : 395. 2001 : 165. 15 2006a : 626. 16 GILMAR FERREIRA MENDES, 1999 : 71-87.

6 FILHO.17 Com efeito, o critrio da proporcionalidade reclama um procedimento judicioso para sua aplicao, com especial cuidado na proteo dos direitos fundamentais em jogo. Outros dispositivos constitucionais especficos so invocados: inafastabilidade do controle jurisdicional (art. 5, XXXV), princpio republicano (art. 1, caput), cidadania (art. 1, II), habeas corpus (art. 5, LXVIII), mandado de segurana (art. 5, LXIX), habeas data (art. 5, LXII), direito de petio (art. 5, XXXIV, a)...18 Outras clusulas gerais contidas em documentos legislativosDE

oferecem

guarida

proporcionalidade. Referindo-se ao Direito Internacional, ANDR

CARVALHO RAMOS aponta trs

grandes fundamentos implcitos reconhecidos pela Corte [Europia de Direitos Humanos]: as hipteses previstas de restries aos direitos humanos baseadas no interesse pblico, as necessrias a uma sociedade democrtica e aquelas derivadas de outros direitos contidos na Conveno Europia de Direitos Humanos.19 Ainda que a abundncia de disposies expressas nos textos constitucionais, por mais ou menos genricas que sejam, no oferecesse suporte ao critrio da proporcionalidade, restaria reconhec-la como princpio implcito, que serve para densificar, reforar, outros princpios que esto agasalhados na Lei Maior, como pontua WALBER DE MOURA AGRA (2007 : 124). Atribumos ao critrio da proporcionalidade uma natureza precipuamente formal, a fornecer uma metodologia de aplicao em casos de conflito de direitos (s mais das vezes, fundamentais). Dessa caracterizao da proporcionalidade antes como critrio (formal) do que como princpio (material) decorre a desnecessidade de fundamentao no plano do Direito positivo, pois estamos no plano da aplicao do Direito (da Cincia do Direito). Ressalvada a relatividade dessa distino, que tem mais apelo explicativo do que correspondncia realidade, podemos situar o fundamento do critrio da proporcionalidade na natureza das normas que ele tem como objeto, normas de tipo principiolgico. Essa a lio de ROBERT ALEXY, para quem a mxima da proporcionalidade... infere-se logicamente do carter de princpio, quer dizer, dele dedutvel.20 No h porque sustentar uma derivao nica. Ao contrrio, a pluralidade de fundamentos normativos21 refora a presena do critrio da proporcionalidade no ordenamento jurdico. A busca de fundamento(s) normativo(s) para a proporcionalidade em dispositivos explcitos e implcitos de uma determinada Constituio vlida, contudo, como exerccio de justificao.17 18

1999 : 81. LUS VIRGLIO AFONSO DA SILVA, 2002 : 42, referindo diversos autores. 19 2005 : 142-144. 20 1993 : 111-112. 21 WILSON ANTNIO STEINMETZ, 2001 : 167; LENIO LUIZ STRECK, 2004 : 520.

7 A discusso acerca da derivao juspositiva do critrio da proporcionalidade superada pela consagrao textual em documentos jurdicos. A Constituio do Estado de So Paulo, por exemplo, preceitua que a administrao pblica dever obedecer, dentre outros, ao princpio da razoabilidade (art. 111), homlogo da proporcionalidade. A Carta dos Direitos Fundamentais da Unio Europia dispe expressamente no art. 52.1, sobre o mbito dos direitos garantidos: Qualquer restrio ao exerccio dos direitos e liberdades reconhecidos pela presente Carta deve ser prevista por lei e respeitar o contedo essencial desses direitos e liberdades. Na observncia do princpio da proporcionalidade, essas restries s podem ser introduzidas se forem necessrias e corresponderem efetivamente a objetivos de interesse geral reconhecidos pela Unio, ou necessidade de proteo dos direitos e liberdades de terceiros.22; a Carta foi incorporada ao Tratado que estabelece uma Constituio para a Europa, de 2004 (art. II-112.1)23. Em resumo, seja extraindo a proporcionalidade de algum dispositivo expresso em Constituies (ou documentos internacionais), ou de algum princpio implcito; seja extraindo-a de vrios; seja extraindo a proporcionalidade de clusulas gerais restritivas de direitos; seja extraindo-a da estrutura e dinmica das normas principiolgicas; seja a consagrao textual do prprio princpio da proporcionalidade, o importante reconhecer-lhe fundamento no Direito vigente e na hermenutica jurdica, o que hoje admitido tranqilamente.

3) O que a proporcionalidade: no um princpio, mas um critrio No considero que a proporcionalidade seja um princpio jurdico, e isso por trs razes: a) de contedo: a proporcionalidade nada diz sobre um valor fundamental projetado no ordenamento jurdico, apenas se dirige a relaes que se estabelecem entre normas jurdicas de contedo material, quer dizer, que consagram importantes valores sociais (tais normas jurdica que so autnticos princpios). Estamos a falar de um preceito de natureza formal: como aduz WILSON ANTNIO STEINMETZ, a proporcionalidade caracteriza-se por ser uma estrutura formal de aplicao das normas-princpios.24 O contedo da proporcionalidade no se refere a valores que devem orientar o comportamento das pessoas; portanto, no contm uma determinao de comportamento aos destinatrios do Direito. O contedo da proporcionalidade refere-se a como certas normas devem ser aplicadas; portanto, contm uma determinao aos intrpretes do Direito. Princpios mesmo so aqueles que dizem algo diretamente: livre iniciativa, boa-f, presuno de inocncia... A proporcionalidade apenas diz como devemos proceder quando houver conflito entre determinados direitos. Acho alguma virtude explicativa nessa distino, mas

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ANDR DE CARVALHO RAMOS, 2005 : 146. OLIVIER DUHAMEL, 2005 : 326. 24 2001 : 172.

8 atribuo-lhe uma importncia menor, mais terica do que prtica, e ainda assim relativa, pois a proporcionalidade tem um contedo mais ou menos definido e impe-se juridicamente ao intrprete do Direito, tanto que a no-observncia da proporcionalidade pode conduzir anulao do ato, da deciso. Trata-se, pois, de um critrio, uma rgua, uma ferramenta; b) de objeto: enquanto as normas jurdicas referem-se a comportamentos em geral (ex: Cdigo Comercial de 1850, art. 500: O capito que seduzir ou desencaminhar marinheiro matriculado em outra embarcao ser punido com a multa de 100$000 (cem mil ris) por cada indivduo que desencaminhar, e obrigado a entregar o marinheiro seduzido, existindo a bordo do seu navio; e se a embarcao por esta falta deixar de fazer-se vela, ser responsvel pelas estadias da demora.), a proporcionalidade refere-se s normas jurdicas, s relaes entre elas no momento de aplic-las (a proporcionalidade critrio de aplicao de normas, especialmente de princpios): a proporcionalidade um preceito (metanorma) que estabelece a estrutura de aplicao de outras normas, no dizer de HUMBERTO VILA.25 Por conseguinte, as normas referem-se diretamente a comportamentos e a proporcionalidade refere-se indiretamente a

comportamentos, pois refere-se diretamente s normas jurdicas que estabelecem os comportamentos (se bem que essa tambm uma distino relativa, eis que a proporcionalidade refere-se impositivamente como norma jurdica especfica ao comportamento que o aplicador das normas jurdicas em geral deve ter); c) de pertinncia: enquanto os princpios, em sua qualidade de normas jurdicas de primeiro grau, funcionam como comandos impositivos de condutas (so do Direito), a proporcionalidade funciona como regra de interpretao/aplicao do Direito (so da Cincia do Direito).26 Essa preciso conceitual, que se reflete no plano da linguagem, no passou despercebida a ROBERT ALEXY (1993 : 112), que recusa a qualificao da proporcionalidade como princpio, entendendo tratar-se de regra. HUMBERTO VILA qualifica essa categoria de postulado normativo aplicativo.27 LUS VIRGLIO AFONSO DA SILVA acrescenta mais uma razo, relativa (d) incidncia: O chamado princpio da proporcionalidade no pode ser considerado um princpio, pelo menos no com base na classificao de Alexy, pois no tem como produzir efeitos em variadas medidas, j que aplicada de forma constante, sem variaes.28 Assim, a proporcionalidade teria o carter de regra jurdica, no de princpio. Fica reforada a distino. De nossa parte, preferimos atribuir proporcionalidade a designao de critrio simplesmente.

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2003 : 79-80. ROTHENBURG, 2003 : 88. 27 2003 : 79-80. 28 2002 : 25.

9 4) Como a proporcionalidade: os momentos do critrio da proporcionalidade (adequao e necessidade) A compreenso e utilizao da proporcionalidade d-se por intermdio de sua anlise em momentos (aspectos, mximas ou princpios parciais, subprincpios, nveis). Essa decomposio advm da jurisprudncia do Tribunal Constitucional Federal alemo, com aportes doutrinrios. Preferimos a designao momentos, pois o termo d idia de etapas sucessivas e prejudiciais, que devem ser vencidas pelo intrprete, uma aps a outra. Como afirma WILSON ANTNIO STEINMETZ, h entre os momentos uma progresso de tipo lgico.29 O que se busca uma decomposio analtica da relao fundamental entre meio e fim (semelhante relao causa-efeito), para verificar se a interveno jurdica (s mais das vezes, uma restrio a direito fundamental) coerente e razovel em face da finalidade pretendida. Quem compreende bem os termos dessa relao consegue empreender uma utilizao correta da proporcionalidade, ainda que no siga o padro de raciocnio.

4.1) Diviso tripartida Os momentos da proporcionalidade variam em nmero e seqncia, segundo entendimentos ligeiramente divergentes. A formulao mais conhecida apresenta trs momentos sucessivos: 1) Adequao (idoneidade, conformidade) a capacidade de proporcionar, ou pelo menos contribuir para, o objetivo pretendido. No se exige aptido para alcanar efetivamente os objetivos previstos (idoneidade essa que uma prognose dificilmente consegue assegurar com certeza), bastando a possibilidade de promover ou fomentar o objetivo30, ou seja, a provvel idoneidade da restrio para proporcionar a finalidade almejada. A aplicao da adequao ao caso Cicarelli permite sustentar que a proibio de veiculao das cenas de sexo entre os namorados (esse o meio, restritivo dos direitos de informao e comunicao) mostrar-se-ia hbil a proteger-lhes a privacidade (esse o fim). Talvez seja o aspecto mais fcil de ser cumprido e mais difcil de ser criticado. Um exemplo da jurisprudncia do Supremo Tribunal Federal: este considerou inconstitucional a exigncia de atributo fsico (altura mnima de 1,60m) para concurso pblico de escrivo de polcia, pois o meio empregado (exigncia de altura mnima) no guarda pertinncia lgica com o objetivo (selecionar escrives de polcia).31 Por outro lado e mais recentemente, o Supremo Tribunal Federal admitiu limite de idade (35

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2001 : 154. LUS VIRGLIO AFONSO DA SILVA, 2002 : 36. 31 Recurso Extraordinrio 150.455-2/MS, rel. Min. Marco Aurlio, 15/12/1998.

10 anos) para ingresso na Polcia Militar, institudo por lei do Estado de Roraima, tendo achado razovel a faixa etria fixada.32 Quando o Supremo Tribunal Federal declarou a inconstitucionalidade da Lei 1.949/1999, do Estado do Mato Grosso do Sul, que institua penso mensal para crianas geradas a partir de estupro, julgou que o meio eleito (concesso de dinheiro) no guardava pertinncia lgica ao fim pretendido (manter a gravidez), se levado em conta o universo de atingidos (todas as mulheres vtimas de estupro), pois o benefcio financeiro seria irrelevante embora devido s vtimas abastadas. Veja-se a deciso: Ato normativo que, ao erigir em pressuposto de benefcio assistencial no o estado de necessidade dos beneficirios, mas sim as circunstncias em que foram eles gerados, contraria o princpio da razoabilidade, consagrado no mencionado dispositivo constitucional.33. Penso que o legislador teve em perspectiva, acertadamente, a maioria das vtimas de estupro. Ademais, pouco provvel que mulheres abastadas viessem a reivindicar tal benefcio. Assim, a legislao seria constitucional. Mas esta crtica ao resultado da deciso no invalida a discusso quanto a seu fundamento, que reside na avaliao da adequao. Outra questo que atormentava os juristas mereceu uma releitura do Supremo Tribunal Federal, que entendeu inconstitucional a exigncia de prvio depsito de dinheiro ou arrolamento de bens e direitos, para a admisso de recurso em processo administrativo.34 Foi mencionada pela Corte a violao ao princpio da proporcionalidade e, com efeito, parece-me que esse meio (o depsito prvio ou o arrolamento) no guarda pertinncia lgica com o fim (interposio de recurso administrativo), pois a restrio representada pelo depsito prvio ou arrolamento no potencialmente capaz de promover a interposio de recursos administrativos mais sensatos e melhor fundamentados: mesmo uma evidente incorreo da Administrao, combatida por um excelente recurso, requereria o depsito prvio. Se o objetivo perseguido fosse simplesmente obstar a interposio de recursos administrativos, seria um objetivo ilcito, violador da garantia constitucional de meios e recursos inerentes ampla defesa (art. 5, LV). 2) Necessidade (exigibilidade, indispensabilidade, menor ingerncia possvel, interveno mnima) o meio utilizado deve trazer o menor sacrifcio possvel para se alcanar com semelhante eficcia o objetivo pretendido. Perceba-se que a averiguao da necessidade do meio em relao ao fim complexa, pois reclama o exame concomitante de dois aspectos: a menor restrio ao direito e a maior eficcia de resultado. Ser preciso, em concreto, proceder a uma comparao entre outras hipteses igualmente

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Ao Direta de Inconstitucionalidade 3.774 MC/RR, rel. Min. Joaquim Barbosa, 25/10/2006. Ao Direta de Inconstitucionalidade 2.019-6/MS, rel. Min. Ilmar Galvo, 02/08/2001. 34 Ao Direta de Inconstitucionalidade 1.976/DF, rel. Min. Joaquim Barbosa, DJU 18/05/2007.

11 adequadas (RODRIGO MEYER BORNHOLDT)35. Subjacente idia de necessidade, especialmente no tocante aos direitos fundamentais, est a suposta equivalncia bsica entre eles36, que exige o menor sacrifcio de uns na estrita medida da melhor promoo de outros. No caso Cicarelli, os provedores de Internet que armazenavam as imagens foram instados a tirlas de veiculao, mas afirmaram que no havia como faz-lo, porque inmeras e diversas fontes reinseriam as imagens em circulao. Portanto, a retirada dos prprios provedores seria a nica alternativa vislumbrada (da porque no se poder pretender um sacrifcio menor) para obter o resultado com semelhante grau de eficcia. Ao declarar a inconstitucionalidade da legislao eleitoral que vedava a divulgao de pesquisas eleitorais por qualquer meio de comunicao, a partir do dcimo quinto dia anterior at s dezoito horas do dia do pleito (Lei 11.300/2006, art. 35-A), o Supremo Tribunal Federal deve ter considerado que outros meios menos gravosos, como o controle sobre as pesquisas, seriam suficientemente eficientes. Colhe-se da deciso que essa proibio, alm de estimular a divulgao de boatos e dados apcrifos, provocando manipulaes indevidas que levariam ao descrdito do povo no processo eleitoral, seria, luz dos princpios da razoabilidade e da proporcionalidade, inadequada, desnecessria e desproporcional quando confrontada com o objetivo pretendido pela legislao eleitoral que , em ltima anlise, o de permitir que o cidado, antes de votar, forme sua convico da maneira mais ampla e livre possvel.37 O Supremo Tribunal Federal teve por descabido o acesso a informaes bancrias (quebra do sigilo bancrio) relativas a contas CC-5 (depsitos mantidos por no-residentes em bancos brasileiros, e que podem caracterizar evaso de divisas), por no se haverem esgotado outros meios de prova no caso, o exame de material fornecido pelo prprio indiciado.38 Existiam pois, segundo a Corte, alternativas menos gravosas, com o que o meio empregado (acesso a informaes bancrias) revelou-se desnecessrio. A deciso da Justia do Trabalho em Pernambuco que no aceitava o limite de R$ 900,00, fixado pelo Municpio de Petrolina, para precatrios de pequeno valor (Constituio, art. 100, 3 e 5), foi cassada pelo Supremo Tribunal Federal, que entendeu ser essa uma competncia do Municpio, que deveria respeitar o princpio da proporcionalidade (expresso do relator), afervel, entre outros fatores, em funo da capacidade oramentria.39 Avaliou-se, penso, a necessidade da medida: o meio menos gravoso (ao Municpio) e suficientemente eficaz (ao credor). possvel criticar o mrito da deciso, pois desconsideraram-se outros parmetros, como o do art. 87 do ADCT, de 30 salrios mnimos para os35 36

2005 : 168. INGO WOLFGANG SARLET, 2005 : 105. 37 Aes Diretas de Inconstitucionalidade 3.741/DF, 3.742/DF e 3.743/DF, rel. Min. Ricardo Lewandowski, 06/09/2006. 38 Inqurito 2.206 AgR/DF, rel. Min. Marco Aurlio, 10/11/2006, com meno a razoabilidade e proporcionalidade. 39 Reclamao 4.987 MC/PE, rel. Min. Gilmar Mendes, 07/03/2007.

12 Municpios enquanto no fossem publicadas as respectivas leis, e o da Constituio do Estado do Piau (que mais pobre do que Pernambuco), de 5 salrios mnimos. A considerao desses parmetros; o valor do limite fixado (R$ 900,00) em relao ao salrio mnimo (que era ento de R$ 360,00, ou seja, aquele limite correspondia a menos de 3 salrios mnimos); e a capacidade de um dos principais Municpios de Pernambuco autorizariam decidir pela violao da proporcionalidade, por no ser necessria a fixao de limite to estreito. 3) Proporcionalidade em sentido estrito deve ser razovel, proporcionada, a restrio imposta, em relao ao objetivo pretendido40, exigindo-se um sopesamento entre a intensidade da restrio ao direito fundamental atingido e a importncia da realizao do direito fundamental que com ele colide e que fundamenta a adoo da medida restritiva, sopesamento que busca atingir um grau timo de realizao para todos (LUS VIRGLIO AFONSODA

SILVA)41; trata-se do princpio da justa medida (WILSON

ANTNIO STEINMETZ)42, que visa ao equilbrio da interveno estatal em determinado direito fundamental (ANDR DE CARVALHO RAMOS)43. Essa avaliao para o caso Cicarelli levaria discusso sobre se o grau de afronta ao direito de privacidade das pessoas envolvidas (invaso de privacidade em grau mximo, por revelar cenas de sexo) suportvel em relao ao grau de restrio do direito expresso e informao pblica (restrio tambm em grau mximo, pois significaria a proibio de divulgao das cenas mediante a suspenso de exibio dos prprios provedores). O Supremo Tribunal Federal considerou desproporcional a fixao do prazo de priso por at um ano de depositrio infiel que, estando preso h mais de 90 dias, havia vendido o bem: a priso por tanto tempo seria intil para compelir o devedor a apresentar o bem.44 Em polmica deciso que representou a mudana de jurisprudncia da Corte, declarou-se inconstitucional a proibio contida no art. 2, 1, da Lei 8.072/1990, sobre crimes hediondos, de progresso no regime de cumprimento da pena privativa de liberdade, que deveria, portanto, ser executada integralmente no regime fechado. Dentre outros fundamentos, o Supremo Tribunal Federal considerou desrespeitada a proporcionalidade com que se deveria medir o princpio da individualizao da pena: art. 5, XLVI, da Constituio.45

4.2) Diviso quadripartida40 41

GILMAR FERREIRA MENDES, 1999 : 72 e 87. 2002 : 40 e 44. 42 2001 : 154. 43 2005 : 136. 44 Habeas Corpus 87.638/MT, rel. Min. Ellen Gracie, 04/04/2006. 45 Habeas Corpus 82.959/SP, rel. Min. Marco Aurlio, 23/02/2006.

13 Uma diviso mais detalhada e muito didtica, em quatro passos sucessivos, oferecida por DIMITRI DIMOULIS e LEONARDO MARTINS, preocupados com a precisa qualificao da proporcionalidade como critrio jurdico seguro e o mais objetivo possvel para solucionar questes de direitos fundamentais.46 1) constitucionalidade do fim importa verificar se o propsito perseguido pela restrio a direito fundamental compatvel com o ordenamento jurdico, ou seja, a licitude do propsito perseguido; do contrrio, o que se tem um objetivo constitucionalmente inaceitvel. Ofereo como exemplo a legislao sobre impenhorabilidade do chamado bem de famlia (Lei 8.009/1990), que protege um patrimnio mnimo essencial vida digna (LUIZ EDSON FACHIN47) da execuo de credores, sendo compatvel com a Constituio: dignidade (art. 1, III), direito moradia (art. 6), impenhorabilidade da pequena propriedade rural (art. 5, XXVI), proteo famlia (art. 226). Em sentido contrrio, a proibio privada de que homossexuais freqentassem academias de musculao: ainda que, de fato, se verificasse que eles afastassem provveis usurios (o que altamente duvidoso), as academias no poderiam negar-se a admiti-los, pois isso contrariaria a vedao de discriminao contida no princpio da isonomia (art. 5, caput e XLI). A virtude, em termos de racionalidade, de se admitir um primeiro momento de exame relativo licitude do fim est em rechaar desde o incio propsitos incompatveis com o Direito vigente. Mas esse exame tende a ser muito bvio. Quando no, ou seja, quando a desconformidade do objetivo da restrio para com o ordenamento jurdico no for to evidente, ela somente revelar-se- como resultado do exame completo da proporcionalidade; portanto, surgir ao final do teste de proporcionalidade e no desde o incio. Essencialmente, a compatibilidade com o Direito vigente uma relao que tem de estar presente em cada momento do exame da proporcionalidade. Assim, para ilustrar, no se pode dizer juridicamente adequada uma medida restritiva (por exemplo, o impedimento de que ndios circulem por rea onde realizadas pesquisas agrcolas, que corresponde ao territrio por eles tradicionalmente ocupado), ainda que seja certo que essa medida promova de maneira tima uma finalidade constitucionalmente almejada (aumentar a produtividade agrcola com incentivo pesquisa e tecnologia: art. 187, III), se o (outro) propsito da Constituio , claramente, garantir aos ndios os direitos originrios sobre essas terras (art. 231). 2) constitucionalidade do meio consiste em verificar se as formas empregadas na restrio a direito fundamental so compatveis com o ordenamento jurdico, ou seja, a licitude do meio utilizado. So simples os exemplos: utilizao de provas ilcitas para combater a impunidade (violao ao art. 5, LVI, da46 47

2007 : 198-223. 2001 : 3.

14 Constituio); utilizao da tortura para obter confisso ou como punio (violao ao art. 5, XLIII e XLVII, e), estabelecimento da pena de morte para reduzir a criminalidade (violao ao art. 5, XLVII, a) todas elas medidas efetivamente aptas a alcanar finalidades previstas no Direito vigente, mas incompatveis com os padres jurdicos. Reitera-se a crtica anterior: esse exame da compatibilidade do meio restritivo com o ordenamento jurdico ou bvio e ento pouco importante ou no evidente e ento mais complexo e envolve uma avaliao global da proporcionalidade. Sendo assim, tambm a compatibilidade do meio restritivo com o ordenamento jurdico tende a revelar-se como resultado do exame completo da proporcionalidade e no uma etapa inicial; a licitude deve ser verificada em cada momento do teste da proporcionalidade e no apenas nas fases iniciais. A relao entre o meio empregado e a finalidade almejada a prpria adequao; portanto, o exame da conformidade dos elementos desta ao ordenamento jurdico (licitude do fim e licitude do meio) indissocivel do quando no esgota o exame da prpria adequao. 3) adequao para DIMOULIS e MARTINS, importa se, comprovadamente, a restrio capaz de proporcionar o resultado pretendido; eles destacam o carter prtico que esse exame deve ter, ao buscar uma conexo fundada em hipteses comprovadas sobre a realidade emprica entre o estado de coisas perseguido pela interveno e o estado de coisas no qual o propsito puder ser considerado realizado.48 Ressaltam tambm que, em caso de dvida sobre a adequao da medida deve ser respeitada a vontade do legislador ordinrio, ainda que no seja possvel, em razo das circunstncias, comprovar com certeza quase matemtica a adequao. De modo mais geral, o interessante e avanado nessa perspectiva o crdito que se d realizao de experincias jurdicas. 4) necessidade avaliado se no h outro meio de realizar a restrio com menor sacrifcio e igual eficincia. DIMOULIS e MARTINS apontam para uma vantagem desse exame, que traz dinmica ao controle de constitucionalidade e relaciona-o aos fatos reais e mudana social. Advertem tambm que se tem de proceder a uma exaustiva pesquisa e descrio dos meios adequados e de seu impacto, para se poder decidir sobre a necessidade de adotar o meio escolhido.49

4.3) Diviso bipartida Perceba-se que DIMITRI DIMOULIS e LEONARDO MARTINS no incluem a proporcionalidade em sentido estrito entre os momentos do critrio da proporcionalidade. Concordam eles que falta uma medida objetiva, cientificamente comprovada para a ponderao, e que a legitimao preferencial dos legisladores (o espao de conformao normativa) no deve ser usurpada pelo Poder Judicirio, visto que48 49

2007 : 206-207. 2007 : 216 e 219.

15 nem ele, nem a doutrina, so detentores de uma balana de preciso que permitiria medir e ponderar direitos.50 Discordo desses fundamentos, pois acho que possvel, necessrio mesmo, que se faa a ponderao dos direitos em jogo, pelos operadores jurdicos. Acho tambm que a democracia comporta e recomenda uma relao dialtica de desmentidos entre Legislativo e Judicirio.51 A possibilidade de avaliao da atuao de outros atores constitucionais apresenta problemas de funcionamento e de legitimidade, no contexto do relacionamento entre os Poderes de Estado, mas uma (nova) realidade que precisa ser francamente enfrentada, conforme adverte NVITON GUEDES.52 Somente a dinmica do processo democrtico e a seriedade das instituies, com interferncias recprocas, oferecem possibilidade de solues aceitveis. Concordo, contudo, com a veemente advertncia que DIMOULIS e MARTINS fazem quanto a tais perigos. E concordo ainda o que mais importa ao presente ensaio com a desconsiderao da proporcionalidade em sentido estrito, que no se sustenta como categoria autnoma. Os momentos da adequao e da necessidade do conta de todos os aspectos da proporcionalidade. Outras pretendidas divises no passam de desdobramentos dessas duas ou inserem-se em alguma delas. Sendo a adequao uma anlise da relao entre meio e fim, a compatibilidade do propsito perseguido com a Constituio (licitude do fim) a se insere. Assim tambm a compatibilidade do meio empregado com a Constituio (licitude do meio), e que pode ainda ser proposta em relao necessidade, que avalia comparativamente (em funo do propsito almejado) o grau de afetao dos direitos em jogo provocada pelo meio restritivo. No creio, pois, que o aspecto da proporcionalidade em sentido estrito tenha autonomia. Trata-se de um fator relacional, de sopesamento, que mede a intensidade e, assim, j considerado em cada um dos momentos anteriores (da adequao e da necessidade). A adequao, em sua formulao negativa, aponta para uma pretensa inidoneidade absoluta (o meio nunca seria adequado para a promoo do objetivo); e, em sua formulao positiva, requer a apresentao de diversas alternativas. Em ambas as formulaes, trata-se de uma avaliao ponderada, como reconhecem diversos estudiosos, pois importa encontrar formas para medir sua relao [do meio] com o fim almejado (grau de adequao) (DIMITRI DIMOULIS e LEONARDO MARTINS)53; o que tambm assevera ANDR RAMOS TAVARES: So pesadas e comparadas, numa perspectiva jurdica, as desvantagens do meio em relao s vantagens do fim.54 Ora, essa necessria ponderao entre meio e50 51

2007 : 226-232. ROTHENBURG, 2007 : 430-439. 52 In JACINTO NELSON DE MIRANDA COUTINHO, 2003 : 87-88. 53 2007 : 220. 54 2006a : 666.

16 fim prpria do que boa parte da doutrina considera proporcionalidade em sentido estrito, mas que se realiza no momento mesmo da adequao. Suponhamos, para ilustrar, que o escoamento da produo agrcola de uma regio do interior possa fazer-se por vrios meios de transporte, mas desde j se exclui a aviao (com construo de aeroporto), que exige um investimento muito alto, no capaz de transportar um volume grande de carga e provoca severo impacto ambiental. Restam as estradas, que j existem mas devem ser ampliadas, a ferrovia, que existe mas est desativada, e um ambicioso projeto de hidrovia. Uma avaliao da finalidade revelaria conflito entre a livre iniciativa e a poltica agrcola, por um lado, e a proteo ambiental, de outro, todos eles ligados a direitos fundamentais e todos objetivos lcitos. Uma avaliao dos meios partiria do descarte das alternativas area e aqutica (esta, por demandar uma radical inovao de elevados custos, inclusive de tempo). Desde logo foi preciso comparar e ponderar. Ainda preciso decidir se o transporte ser rodovirio ou ferrovirio, a partir do resultado anterior, segundo o qual ambas as modalidades so adequadas. Avaliar agora qual o meio menos gravoso e mais eficiente j ingressar no exame da necessidade. Tambm e talvez mais fortemente, a necessidade no consiga ser satisfeita sem que se proceda a uma medida de grau. Na realizao do exame da necessidade apontam DIMOULIS e MARTINS h o problema da mensurao do impacto ou gravidade dos meios. (...) [Um dos problemas ] saber qual entre os meios propostos o menos gravoso para o titular do direito (grau de intensidade).55 Somente dever ser considerado necessrio o meio que menos afete os direitos em jogo e que alcance o objetivo com uma eficcia satisfatria, e nessa ponderao j se concentra a proporcionalidade em sentido estrito. Se o que se pretende com o exame da proporcionalidade em sentido estrito oferecer uma pauta racional de aplicao do Direito em caso de conflito, ento a proporcionalidade em sentido estrito nada acrescenta, pois a exigncia de realizao de testes sucessivos para uma avaliao rigorosa da relao entre meios restritivos e finalidades almejadas satisfeita com o emprego dos momentos da adequao e da necessidade. Ademais, a proporcionalidade em geral (em sentido amplo) no se resume a uma estrita avaliao de meios em relao a fins: ela compreende sobretudo na lcida observao de JUAREZ FREITAS que estamos obrigados a sacrificar o mnimo para preservar o mximo de direitos.56 Se o objetivo eliminar o quanto possvel avaliaes subjetivas, ento a proporcionalidade em sentido estrito prova contra si mesma, pois o mais aberto (suscetvel de apreciao subjetiva) dos aspectos. O problema no est no subjetivismo, que humano, necessrio: No se pode, est dito, erradicar jamais uma salutar dose de subjetividade, porquanto a liberdade, felizmente, trao inextirpvel no ato humano55 56

2007 : 220. 2001 : 232.

17 de julgar (JUAREZ FREITAS).57 Mas o problema acentua-se quando se concentra num aspecto (a proporcionalidade em sentido estrito) a maior carga de subjetivismo, ao invs de dilu-lo e acompanh-lo de outras consideraes mais objetivas (adequao e necessidade). Tem-se, portanto, de realizar ponderao (sopesamento), que deve ser feita no caso concreto, mesmo que isso acentue o espao de conformao do Direito pelo aplicador, especialmente o Judicirio. A atribuio de pesos (valores) diversos aos direitos em jogo indispensvel, mas ocorre j na avaliao da adequao e, sobretudo, da necessidade da medida adotada. Essa avaliao sempre concreta e dinmica, como observam CLMERSON MERLIN CLVE e ALEXANDRE REIS SIQUEIRA FREIRE: por se estar diante de relao axiolgica mutvel que outorga primazia axiolgica a uma relao especfica, podendo inverter-se em situao diversa.58 O direito privacidade de Daniela Cicarelli e seu namorado deveria prevalecer, por ser mais importante na espcie, com sacrifcio do direito de expresso e informao. Circunstncias diferentes possibilitariam uma ponderao diversa: por exemplo, se fossem fotos mais discretas, o direito privacidade deveria ceder; se os provedores oferecessem uma alternativa eficaz para evitar a divulgao, no deveriam ser retirados do ar. ROBERT ALEXY afirma que, enquanto a adequao e a necessidade seriam avaliaes feitas com relao s possibilidades fticas (las mximas de la necessidad y de la adecuacin se siguen del carcter de los principios como mandatos de optimizacin con relacin a las posibilidades fcticas), a proporcionalidade em sentido estrito seria uma avaliao feita com relao s possibilidades jurdicas (De la mxima de proporcionalidad en sentido estricto se sigue que los principios son mandatos de optimizacin con relacin a las posibilidades jurdicas.).59 O mbito das possibilidades jurdicas esclarece ALEXY determinado pelos princpios e regras opostos.60 Arrisco com alguma leviandade a seguinte objeo: por se tratar de problemas concretos de conflito entre direitos (fundamentais, s mais das vezes), ser artificial a distino entre os planos ftico e jurdico, pois ser sempre necessrio considerar a realidade ftica (que, de todo modo, integra o fenmeno jurdico). Mas essa realidade ftica ser filtrada pela dimenso jurdica.61 E, assim, j no plano conceitual, no se sustenta a distino. Especificamente quando se considera a adequao, importa que a medida (por exemplo, restries divulgao de informaes a respeito de algum), alm de objetivamente (faticamente) hbil a propiciar ou promover determinada finalidade (no caso, a tutela da privacidade), seja lcita (juridicamente vivel).57 58

2001 : 238. 2003 : 242. 59 1993 : 112-113. 60 1993 : 86. 61 FRIEDRICH MLLER, 2005 : 42-45; ANDR RAMOS TAVARES, 2006b : 63-67.

18 Antes disso, a prpria promoo da finalidade deve ser avaliada em termos jurdicos: a adoo de uma criana por um jovem que se mostra zeloso e responsvel, mas menor de idade, promove objetivamente os interesses da criana, porm essa no uma promoo juridicamente vlida. Diga-se isso tambm da necessidade, um aspecto ao mesmo tempo ftico e jurdico. Talvez o nico modo vivel de evitar as chuvas torrenciais em determinada regio fosse uma interveno drstica no ambiente natural (a terraplanagem de uma serra ou a devastao de uma mata); o reassentamento forado da populao parece inconcebvel. Todavia, embora factvel, seria juridicamente vedada uma interveno daquelas, que teria conseqncias desastrosas para a natureza e violaria do direito fundamental ao ambiente ecologicamente equilibrado (Constituio, art. 225). Em suma, no h como separar as possibilidades fticas das jurdicas e, ento, no vlida a distino entre os momentos da adequao e da necessidade que estariam referidos s possibilidades fticas, na perspectiva de ALEXY , por um lado, e o momento da proporcionalidade em sentido estrito, por outro. Na prtica, nem sempre possvel distinguir analiticamente os momentos da adequao e da necessidade, que se imbricam. Eles apresentam-se com mais facilidade no plano acadmico, como mtodo de explicao, do que no plano concreto, como mtodo de aplicao. Os testes aos quais as medidas restritivas de direitos devem submeter-se, e que servem de fundamentao satisfatria para as decises, podem ocorrer globalmente, e o mais importante que sejam feitos rigorosamente, mesmo que no se consiga situ-los precisamente em determinado momento. Dou como exemplo a deciso do Supremo Tribunal Federal que, por maioria, no achou inconstitucionalidade na Lei 8.906/94 Estatuto da Advocacia, art. 1, 2 (Os atos e contratos constitutivos de pessoas jurdicas, sob pena de nulidade, s podem ser admitidos a registro, nos rgos competentes, quando visados por advogados.), por considerar que a referida norma visa proteo e segurana dos atos constitutivos das pessoas jurdicas, salvaguardando-os de eventuais prejuzos decorrentes de irregularidades cometidas por profissionais estranhos ao exerccio da advocacia, alm de minimizar a possibilidade de enganos ou fraudes. Interessam aqui os votos vencidos62 e, a meu juzo, acertados, os quais tinham por inconstitucional o dispositivo impugnado, que teria carter eminentemente corporativista e violaria o princpio da proporcionalidade, porquanto a medida interventiva nele prevista mostrar-se-ia inadequada, haja vista a ausncia de qualquer relao plausvel entre o meio utilizado e objetivos pretendidos pelo legislador, bem como desnecessria, em razo da existncia de inmeras outras alternativas menos gravosas para os interessados, no que diz respeito boa elaborao dos atos constitutivos das pessoas jurdicas.63

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Ministros Marco Aurlio, Gilmar Mendes, Joaquim Barbosa, Carlos Britto e Cezar Peluso. Ao Direta de Inconstitucionalidade 1.194/DF, rel. Min. Maurcio Corra, 18/10/2006.

19 Ora, se nem adequao e necessidade so to diferentes assim, para que acrescentar ao caldo um complicador desnecessrio, a proporcionalidade em sentido estrito?

5) Nem s de restries vive a proporcionalidade: a proibio de proteo insuficiente O critrio da proporcionalidade foi concebido como tcnica de soluo de conflito entre direitos (sobretudo os fundamentais) que implica restrio. Essa importante perspectiva tem um acento negativo, pois o que se busca uma proibio de excesso, quer dizer, a maior promoo possvel do(s) direitos(s) em jogo, em face de uma restrio a menor possvel. O negativo est na proibio de atuao desmedida. A proporcionalidade pode mais, no entanto. Uma dimenso positiva, expressa pela proibio de proteo insuficiente (Untermaverbot), liga-se exigncia de atuao bastante. Estamos no contexto de algum dirigismo constitucional, em que so impostas atuaes em prol de direitos (s mais das vezes, fundamentais), importando que se busquem mecanismos jurdicos de combate e superao indevida omisso (inconstitucional). A dimenso positiva (de proibio de proteo insuficiente) da proporcionalidade j suficiente para diferenci-la da mera idia de proibio de excesso.64 Assim, os promotores dos direitos em jogo (principalmente as autoridades pblicas, legisladores cabeceira) esto obrigados a uma ao, no podem deixar de alcanar limites mnimos (PAULO GILBERTO COGO LEIVAS)65 e, em certas situaes, devem esforar-se por atingir medidas timas. Exemplificando: no seria proporcionada, nesse sentido, apenas a matrcula dos filhos em boa escola, se os pais, em situao de conforto econmico, no oferecessem reforo especializado de aprendizado, desde que este se mostrasse necessrio; o edital para restauro de um prdio histrico que deve transformar-se em museu poderia ser impugnado por violao proporcionalidade, se no previsse condies de acesso a pessoas com mobilidade reduzida. Trata-se, portanto, de estender o alcance do critrio da proporcionalidade a situaes que demandem, no uma tcnica focada no controle das restries a direitos, mas uma tcnica focada no controle da promoo a direitos. A perspectiva negativa, centrada no combate a atuaes indevidas, completada pela perspectiva positiva, centrada no combate a omisses indevidas. Com efeito, como ressalta DIETER GRIMM, isso representa uma adaptao do princpio da proporcionalidade funo positiva dos direitos fundamentais, j que a proibio de ir longe demais

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LUS VIRGLIO AFONSO DA SILVA, 2002 : 27. 2006 : 76.

20 (bermaverbot) e a proibio de fazer muito pouco (Untermaverbot) so o mesmo mecanismo, visto por diferentes ngulos.66 Encontra-se uma meno ao duplo vis da proporcionalidade, que inclui, ao lado da proibio de excesso, a proibio de proteo deficiente, no voto do Ministro RICARDO LEWANDOWSKI (relator), do Supremo Tribunal Federal, que afirmou a constitucionalidade da Lei 9.534/1997, a estabelecer a todos a gratuidade do registro civil de nascimento e da certido de bito, para alm do comando constitucional art. 5, LXXVI , que contempla apenas os reconhecidamente pobres.67 PAULO GILBERTO COGO LEIVAS refere a adaptao do critrio da proporcionalidade, em seus trs momentos tradicionalmente admitidos, atuao em prol dos direitos fundamentais prestacionais (sociais): a adequao imporia o descarte do meio que no consiga alcanar o objetivo proposto, e a busca de outros meios adequados; a necessidade imporia a realizao do objetivo exigido, com o sacrifcio menos intenso das posies jusfundamentais colidentes; a proporcionalidade em sentido estrito imporia uma rigorosa ponderao, considerando os graus de satisfao ou no-satisfao alcanados pelos meios adequados e necessrios.68 O paralelo tem a virtude de demonstrar que o critrio da proporcionalidade uma ferramenta de aplicao dos direitos fundamentais em geral, em situao de concorrncia ou conflito, seja por causa da defesa (proteo) que reclamam os direitos, seja por causa da promoo que demandam. As crticas que se possa fazer anlise tripartida da proporcionalidade estendem-se: no se v autonomia, nem praticidade, na considerao da proporcionalidade em sentido estrito, aspecto que j absorvido pelos momentos anteriores. Quanto ao aspecto da necessidade especificamente voltada ao dever de promoo dos direitos fundamentais, penso que deveramos acentuar, no o menor sacrifcio imposto aos demais (objetivo, contudo, que deve sempre ser perseguido), mas o maior benefcio obtido pelo(s) direito(s) fundametal(is) cuja promoo se intenta; de qualquer sorte, menor sacrifico com maior proveito so facetas indissociveis do processo dialtico de mxima efetividade dos direitos fundamentais. Um exemplo. Uma pessoa, com base no direito fundamental social (prestacional) sade (Constituio, art. 196), requer que o Estado providencie uma cirurgia para correo de problema ortopdico. H trs alternativas viveis: a cirurgia, de resultado mais imediato, mas alto custo; a fisioterapia, de resultado mais demorado, mas de baixo custo; tratamento analgsico, de resultado imediato e baixssimo custo, mas que oferece apenas um paliativo. A avaliao mdica de que o problema ainda no muito grave e pode ser contornado por algum tempo com o emprego paliativo de

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2007 : 161-162. Ao Direta de Inconstitucionalidade 1.800/DF, 11/06/2007. 68 2006 : 77-6.

21 analgsicos, fornecidos gratuitamente pelo Poder Pblico em postos de sade. Porm, o problema tende a agravar-se e pode atingir, em alguns anos, gravidade tal que somente a cirurgia poder corrigi-lo. Como o problema ainda no muito grave, uma fisioterapia intensa pode resolv-lo, com alguma demora e um pouco de desconforto ao paciente. A cirurgia, que se faria necessria dentro de alguns anos, igualmente eficiente desde logo. O tratamento lenitivo base de analgsicos no se mostra adequado, pois no capaz de resolver o problema de sade com eficincia; ademais, o paciente quer resolv-lo o quanto antes, e sua expectativa muito importante em termos de direitos fundamentais. Perceba-se que essa avaliao de adequao sempre concreta, mas e por isso mesmo no prescinde de alguma ponderao. A cirurgia no necessria, pois existe outro meio relativamente menos gravoso (a fisioterapia, que demanda mais tempo, porm compromete menos recursos pblicos sempre escassos e potencialmente faltantes a outras pessoas em situao de maior gravidade, e submete o paciente a um desconforto suportvel) e com eficincia (benefcio) equiparvel. Veja-se como o exame da necessidade envolve ponderaes, inclusive o grau de razoabilidade da expectativa do paciente. Concluso: proporcionalmente mais indicada a fisioterapia, sendo desproporcionais o tratamento analgsico ou a cirurgia.

6) Proporcionalidade, razoabilidade e caso concreto: fundamentao e argumentao Uma das utilidades do critrio da proporcionalidade reside na possibilidade de aplicao especfica do Direito aos casos concretos. No dizer de PAULO BONAVIDES, com a introduo do princpio da proporcionalidade na esfera constitucional, o constitucionalismo mergulhou a fundo na existencialidade, no real, no ftico...69 A generalidade do Direito fundamental, mas no consegue dar conta da necessria conformao do Direito s especificidades das situaes vividas. Para completar um sistema baseado em normas genricas, que carecem de interpretao para poderem atuar, num processo dialtico de afetao do texto pela realidade concreta e vice-versa, importante a considerao do caso, do problema, do contexto, enfim, uma aproximao tpica. Isso porque a formulao genrica e textual da norma, dada pelo legislador (as normas em forma verbal fixa), nem sempre suficiente: nem sempre a justificao por deduo basta por si mesma (NEIL MACCORMICK)70. O critrio da proporcionalidade atua, em termos metodolgicos, como uma exigncia da tpica, apta a fornecer argumentos insuscetveis de serem retirados diretamente do sistema, nas palavras de RODRIGO MEYER BORNHOLDT.71 Diramos ns que a

69 70

1996 : 385. 2006 : 73 e 93. 71 2005 : 163.

22 tpica participa do sistema, pois possibilita que as normas, em sua aplicao concreta, sejam integradas ou corrigidas. A proporcionalidade fornece abertura para a considerao das particularidades, ao mesmo tempo em que procura estabelecer parmetros de racionalidade que conduzam essa aplicao tpica do Direito. Na lio de DIMITRI DIMOULIS e LEONARDO MARTINS, a proporcionalidade caracteriza-se como uma forma de resposta a problemas concretos e conflitos envolvendo direitos fundamentais que apresenta a vantagem de ser particularmente aberta a concretizaes nacionais, sem deixar de ser racional.72 ANDRDE

CARVALHO RAMOS afirma que esses graus de intensidade da interveno e os diferentes pesos das

razes justificadoras devem ser explicitados pelos tribunais em marcos argumentativos ostensivos e transparentes, justamente para evitar qualquer crtica sobre eventual decisionismo e arbtrio sem reflexo.73 Trata-se mesmo, como enfatiza ANDR RAMOS TAVARES, de uma exigncia de racionalidade.74 Sendo exigncia de racionalidade, a proporcionalidade haver de ser manejada com rigor e sensibilidade. Da a advertncia de que no deva a proporcionalidade resumir-se a uma invocao de efeito, porm vaga, que causa viva impresso, mas nada esclarece, apenas um topos, com carter meramente retrico, e no sistemtico, como afirma LUS VIRGLIO AFONSO jurisprudncia do Supremo Tribunal Federal.75 Para traduzir essa dimenso a um tempo prtica, concreta e ajustada da proporcionalidade, utilizase com freqncia a idia de razoabilidade. Tenho a impresso de que se trata, com freqncia e talvez sem cuidado, de mera troca de palavras para traduzir a mesma idia. As distines so superficiais e talvez residam na origem e respectivo contexto cultural (enquanto a proporcionalidade teria origem alem, a razoabilidade teria origem inglesa); entre gnero e espcie (enquanto a proporcionalidade seria mais ampla, a razoabilidade corresponderia apenas a um dos aspectos daquela: a adequao ou, quem sabe, at a proporcionalidade em sentido estrito); na relao estabelecida (enquanto a proporcionalidade exige a relao de causalidade entre meio e fim, a razoabilidade exige a relao das normas com suas condies externas de aplicao, sem que haja entrecruzamento horizontal de princpios HUMBERTO VILA76). No me convence a alegao de que haveria diferena estrutural entre proporcionalidade e razoabilidade, e que o teste sobre a irrazoabilidade muito menos intenso do que os testes que a regra da proporcionalidade exige, destinando-se meramente a afastar atos absurdamente irrazoveis; bem como72 73

DA

SILVA ao criticar a

2007 : 178. 2005 : 140-141. 74 2006a : 657. 75 2002 : 31. 76 2003 : 102-103.

23 que [a] regra da proporcionalidade , portanto, mais ampla do que a regra da razoabilidade, pois no se esgota no exame da compatibilidade entre meios e fins (LUS VIRGLIO AFONSO DA SILVA)77. A razoabilidade um chamamento sensibilidade e ao bom senso do jurista, que deve esforar-se por captar a expectativa jurdica da comunidade, conforme o pensamento de AULIS AARNIO: somente os valores que possam lograr um consenso representativo na comunidade so aceitveis como critrio de deciso (SAMANTHA CHANTAL DOBROWOLSKI)78. Interessante aplicao da razoabilidade provavelmente traduzindo o aspecto da necessidade foi realizada pelo Supremo Tribunal Federal em mandado de segurana impetrado contra ato do Presidente da Cmara dos Deputados e do Diretor do Departamento de Pessoal dessa Casa, que havia reajustado os proventos da impetrante em obedincia a deciso do Tribunal de Contas da Unio, que considerou ilegal a incorporao de quintos pela impetrante, em razo da falta de um dia para o implemento do tempo exigido para a aquisio da vantagem, tendo-se determinara a devoluo dos valores percebidos. O Supremo Tribunal reconheceu a boa-f da impetrante e determinou a restituio das quantias descontadas; reconheceu, mais, o direito incorporao da vantagem, ao fundamento de que, em razo de a impetrante ter trabalhado no dia da publicao do ato de sua aposentadoria e em dias subseqentes, o tempo de exerccio de fato da funo pblica, por gerar conseqncias, inclusive para fins de responsabilizao por condutas ilcitas, deveria ser contado.79 O Supremo Tribunal Federal referiu-se razoabilidade talvez como adequao ao no admitir que, em concurso pblico, se levasse em considerao o tempo anterior de exerccio justamente na mesma atribuio em disputa: Mostra-se conflitante com o princpio da razoabilidade eleger como critrio de desempate tempo anterior na titularidade do servio para o qual se realiza o concurso pblico.80. Em outras ocasies, a razoabilidade vem sendo invocada. Ao declarar a inconstitucionalidade de diversos dispositivos da Lei 9.096/1995, que estabeleciam clusula de barreira aos partidos polticos, condicionando-lhes o funcionamento parlamentar a determinado desempenho eleitoral e conferindo-lhes diferentes propores de participao no Fundo Partidrio e de tempo disponvel para a propaganda partidria (direito de antena), o Supremo Tribunal federal entendeu violado o princpio democrtico e, especialmente sob a invocao da falta de razoabilidade por parte da lei, o art. 17, IV, da Constituio: funcionamento parlamentar [dos partidos polticos] de acordo com a lei.81

77 78

2002 : 29 e 33. 2002 : 120. 79 Mandado de Segurana 23.978/DF, rel. Min. Joaquim Barbosa, 13/12/2006. 80 Ao Direta de Inconstitucionalidade 3.522/RS, rel. Min. Marco Aurlio, DJU 12/05/2006. 81 Aes Diretas de Inconstitucionalidade 1.351/DF e 1.354/DF, rel. Min. Marco Aurlio, 07/12/2006.

24 A exposio de pessoas famosas em local pblico autoriza, em princpio, o exerccio do direito informao popular. Contudo, detenhamo-nos nas particularidades do caso Cicarelli. As pessoas famosas em questo afirmaram que no pretendiam exibir-se; estavam fazendo amor. O local pblico era uma praia. As imagens foram captadas por meio de filme e fotos detalhados. A divulgao ocorreu na Internet, vale dizer, em escala mundial. Normas jurdicas muito genricas no conseguem apreender tantas facetas do real. Tcnicas de aplicao do Direito tais como o critrio da proporcionalidade permitem uma maior aproximao. Aproximam o Direito, para afastar as cmeras, que obtiveram um grau de aproximao e indiscrio indevido.

Concluindo A proporcionalidade uma ferramenta til e importante para o Direito, particularmente na soluo de problemas que envolvem direitos fundamentais: um tempero no caldo dos direitos fundamentais, que, como revela o caso Cicarelli e mantendo a metfora culinria , ajuda que fiquem gostosos.

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