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-1- WAGNER, MITÓLOGO E OCULTISTA O Drama Musical de Wagner e os Mistérios da Antigüidade Prólogo de Adolfo BONILLA e SÃO MARTÍN SANTIAGO DO ESTUÁRIO 1269 Buenos Aires

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WAGNER,MITÓLOGO E OCULTISTA

O Drama Musical de Wagnere os Mistérios da Antigüidade

Prólogo deAdolfo BONILLA e SÃO MARTÍN

SANTIAGO DO ESTUÁRIO 1269Buenos Aires

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A meu médico, o doutor dom Joaquín Sanz Branco

Você, amigo nobilíssimo, iniciou-me, lá na aldeia, nos segredos musicais deBach, Beethoven e Wagner; você compartilhou comigo penas e alegrias...; Vocêsalvou mais de uma vez, com sua ciência médica, minha mulher e meus filhos.

Que menos posso fazer, pois, em honra dele, que lhe consagrar acomemoração deste livro?

Receba-lhe, portanto, como um eterno testemunho da gratidão e o lealcarinho que sabe lhe professa, há anos,

MARIO ROSO DE LUA.Madrid, Outubro de 1917

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DUAS PALAVRAS DE INTRODUÇÃO

Estou em Astúrias. Em uma de minhas excursões subi, não sem trabalho, aotopo de uma alta montanha, da qual contemplo arroubado, um panorama deimponente grandeza: lá, ao norte, a extensão infinita do mar, a cuja tranqüilasuperfície dá ao sol poente uma indescritível gama de tonalidades grisalhas, da corplúmbea da parte imediata à costa, até o mais deslumbrante branco pérola dalonjura; ao oeste, a majestosa mole dos Picos da Europa; dos outros lados, cadeiasde montanhas, de heteróclitas formas e variadas alturas; e ao meu redor, nosimensos vales que bordejam a montanha, vilarejos dispersos, prados de pereneverdor, milharais, pomaradas, caminhos, ermidas... O silêncio é absoluto: ao longecorta o ar, com repousado vôo, um corvo. Não sei por que vem à memória a cenada morte de Siegfried... Pouco a pouco, os vales vão obscurecendo-se e esfumando-se: parece que como, zangados com minha curiosidade, ocultassem-se sob umbranco e descomunal véu. Diante de mim, à curta distância, acha-se uma rocha, umde cujos extremos se prolonga atrevidamente para o abismo do vale. Coisaestranha! Uma pequena coluna de esbranquiçada fumaça se eleva com lentidão pordetrás do penhasco. É a névoa, que se vai estendendo? Mas toma corpo e figurahumana: meus olhos, alucinados, dão-lhe uma representação. Não tenho ante mima verdadeira efígie do amigo queridíssimo, Mario Roso de Luna, O Mago deLogrosan?

A ilusão não deixa de ter seu fundamento (como todas as ilusões), porqueRoso de Luna é um verdadeiro Mago (de magia branca) nisto de "reduzir à Unidadea multidão das diferenças", cobrindo e uniformizando as asperezas damultiplicidade com a varinha encantada de sua poderosa e artística intuição, amigasempre do Um. Recorde-se, por exemplo, aquele belo capítulo de seu livro Hacia laGnosis (obra importante e sugestiva, que todos deveriam ler), onde, depois de terestudado, com sério espírito de naturalista e de químico, as formas, condiçõesbiológicas e geração das nuvens, descobrindo nelas certa personalidade vital, sente-se levado a "admirar uma vez mais a sabedoria do povo celta e do escandinavo,quando, possuídos da inquestionável sublimidade deste fenômeno… faziam dasnuvens o assento do trono de Wotan, e concediam a elas uma personificação suigeneris, uma vida especial, em certo modo análogo à que em físico-química seatribuem à suas protéicas massas”. Observe-se do mesmo modo, no citado livro,como em outro capítulo, estudando também um fenômeno natural, o da neve, dálogo fim à tarefa de explicá-lo seca e cientificamente, para nos advertir como poetaque "tudo acaba em neve neste mundo", porque neve, prenhe dos mistérios damente, são as cãs, e em neve de frio, de indiferença ou de esquecimento, resolvemtodos os fogos passionais, e em neves invernais acaba a grata temporada de flores efrutos, e em neve ou cinza termina todo combustível que se queima... Certo dia, oMago contempla um Ângelus, e repara na fita onde aparece inscrita a partitura. É aQuinta Sinfonia, de Beethoven, o rei dos músicos. O Mago observa séries detriângulos hexágonos, linhas paralelas, concorrentes e divergentes, toda umageometria musical, e pensa assim:

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- Se uma fita do Ângelus é toda uma geometria... qualquer outra fita, série ousistema natural de corpúsculos ou pontos, leva em si oculta, por não adaptadasainda, as notas de uma boa ou de uma má sinfonia... Vejo desfolharem-se pela brisaas flores de uma amendoeira, e cair suas pétalas mortas, como neve, sobre a mansacorrente do rio, cuja fita instrumental vai fazendo desfilar ante minha vista; eu,surdo às secretas harmonias naturais, nada ouço, é verdade, por mediação de meuouvido físico; mas tive o capricho de levar aquela série de imagens à película de umprojetor de cinema, copiando em seguida sobre elas uma banda para o Ângelus, eapenas me dou crédito a mim mesmo quando, espantado, escuto... a música dasesferas, da água, da pétala e da brisa.... ! Deixo o rio e olho o céu... Em vez de fazerum Atlas de estrelas zodiacais, por exemplo, as assinalo, de acordo com sua posiçãoe brilho, e... ao Ângelus com elas, para ouvir também a música das esferas, nas queas Plêiades, Cassiopéia, as Ursas Maior e Menor e Pégasus, têm, graças à suaanalogia de figura, um mesmo e musical motivo... “E isto lhe faz lembrar-se dePitágoras, e de que o número é a essência das coisas, e de que a essência do númeroé a Unidade...”.

Nada tem de estranho, porque Roso de Luna é um matemático; mas não ummatemático seco e sem alma, levado ao árido deserto dos números pelo hábito deuma disciplina puramente lógica, senão um matemático metafísico, que vê nonúmero uma ordem, e na ordem um conteúdo, e neste uma vida infinita, cujaspulsações surpreendem em todas as esferas. À Matemática, e em parte à Física e àQuímica, refere-se substancialmente seu profundo livro, publicado em Paris em1909: Evolution solaire et séries astrochimiques. À Matemática toca aquele interessantecapítulo sobre O selo de Salomão (em Hacia la Gnosis), onde procura demonstrar que afamosa figura é uma verdadeira chave geométrica, e, em conseqüência, do maissintético e augusto que a sábia Antigüidade perdida nos transmitiu, porque naopinião de Roso de Luna, "o saber perdido do Egito e da Índia, alcançava a todosos problemas da ciência geométrica pura e aplicada, em um grau dedesenvolvimento, igual pelo menos ao tão alto de que o mundo ocidental modernose glorifica”. À Matemática diz respeito, igualmente, aquele livro muito curioso: Aciência hierática dos Mayas, completado por vários estudos publicados na Revistacrítica hispano-americana, onde Roso, tomando por base o Códice MaiaCortesiano, traduz seus hieroglíficos nodulares e ógmicos, demonstrando quecontêm uma teoria matemática coordenadora.

A aspiração à Unidade impulsiona o Mago a ver nos mundos vegetal e animaluma indefinida série matemático-natural, e a escrever, no estudo: Vermes, Aster,Arbor, estas significativas palavras, depois de comparar as etapas da vida doslepidópteros com as três vidas que as idéias orientais atribuem ao homem: "daí osábio princípio arcaico: o mineral se faz planta, a planta se transforma em animal, oanimal se faz homem, o homem se faz espírito e o espírito se transforma em umDeus, um dos Poderes ou Dhyan Chohans da Natureza, uma das emanações maisexcelsas da Deidade manifestada”.

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Este panteísmo, científico e místico ao mesmo tempo, do Mago de Logrosan, émais espanhol do que parece. É o panteísmo de Sêneca (em suas Questões Naturais);é o panteísmo de Abengabirol, o misterioso Avicebrón dos escolásticos; é o deDomingo Gundisalvo, o de Mauricio Hispano, o de Miguel de Molinos, e o deoutros muitos pensadores de nossa raça. E, pela lei natural da inteligência, leva oMago a identificar-se com a sabedoria da Índia, país do qual já se lembrou, comovimos, ao meditar na história das Matemáticas.

Desde então as concomitâncias da doutrina de Roso de Luna com aTeosofia, interpretada por ele de um modo bastante mais amplo que o de algunsdos chamados teósofos, que desatam as dificuldades e explicam o oculto com maiordesenvoltura que o que mostrava Sancho Pança, quando descrevia, na casa dosDuques, suas aventuras pela região celeste e seus entretenimentos com as seteCabras, sem haver-se movido do Clavilenho. Roso é um cidadão livre da Repúblicadas Idéias, e não quer que lhe rotulem de ortodoxo nem de heterodoxo, porqueprocura estar além de ambas as esferas.

Dois lugares do mundo: um atual, outro perdido, chamam poderosamente aatenção, sempre desperta e inquisitiva, de nosso Mago. É o primeiro, "um centropoderoso de atração das almas, e aonde as tradições científicas levaram mais oumenos misteriosamente aos Pitágoras da Antigüidade: aos Rubruquis e MarcosPólos medievais: aos Humboldt e Blavatsky modernos, para então retorná-lostransformados em semi-deuses do saber": o Tibet, que Roso insiste em considerarcomo o berço do povo ariano. Mais de uma vez tratamos, o Mago e eu, de umafutura viajem à Índia: sempre que em nossas conversações tocamos nesse tema, osolhos do Mago brilham com inusitado fulgor, e circulam por todo seu serestremecimentos de alegria.

O outro lugar, hoje desaparecido, é a misteriosa Atlântida de Platão, assuntofreqüente das indagações de Roso de Luna. Expor as hipóteses, as inferências, asreflexões que sobre tal tema desenvolveu, levar-nos-ia muito longe. A audácia doMago, nesta matéria, não reconhece limites: onde a chamada ciência positiva sedetém, Roso avança sem demora. Não chegou a formular a suspeita de que os sóis,que acreditamos fontes de luz própria, não sejam outra coisa "que opacoscorpúsculos dos céus, iluminados de longe por um Sol central, obscuro por ultraluminoso, qual o arco voltaico que, com seus raios, apresenta-nos aqueles outroscorpúsculos infinitesimais, falsamente luminosos por si mesmos?".

Para Roso, o Absoluto, sendo infinito e incondicionado, não pode estar emrelação com o condicionado e finito, e, portanto, não pode criar. Se tudo quevemos - escreve na página 265 do 3º volume de sua Biblioteca das Maravilhas -, desdeos esplendentes sóis e os majestosos planetas, até as fibras de erva e as partículas depó, tivessem sido criados pela Perfeição Absoluta, e fossem obra direta da primáriaenergia procedente d’Aquele, então todas as coisas seriam tão perfeitas, eternas eincondicionadas como seu Autor. Os argumentos em contrário, expostos porLeibnitz na Teodicéia, não lhe convencem. Prefere pensar com a Doutrina Secreta(1888), que a produção da Natureza visível se deve a seres imperfeitos, a deusesfinitos e condicionados, aos que a Doutrina Secreta chama Dhyans Chohans, o

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cristianismo Anjos, e o Buddhismo Devas, que representam "a unidade navariedade". Porque a Unidade segue sendo a obsessão do Mago, e ele julga que aVerdade substancial da Teosofia consiste em compreender que "o Um, o Oculto, oEssencial e Imutável, é o verdadeiro, enquanto que o variado, o fenomênico oumanifestado, é a mayávica ilusão de um dia”.

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Logicamente, o Mago, seguindo os passos da sabedoria hindu, crê certamenteque o Mundo é projeção de uma Mente (nossa ou alheia), pois, até no caso de quetivesse em si realidade objetiva, "não existe para nós mais que naquela medida emque vamos abrangendo ou conhecendo”. Mas admite, além disso, o mundo doconhecimento, o mundo que encerra todos os proteísmos do desejo, "todo oemocional não mental, e até o mental não abstrato", quer dizer, o que chama omundo astral, que o homem vê em estados de vibração morbosa, de anormalidade,mas que não compreende senão quando seu espírito, sereno, semi-emancipado,contempla "como observador tranqüilo aquilo mesmo que antes padecesse comovítima".

O Mago teve e tem essas visões, e se entregou, do mesmo modo, asemelhantes contemplações. Ele é um homem de ciência (e, em tal conceito, um dosmais completos que existem em nossa pátria): é astrônomo (em 1893 descobriu o cometa queleva seu nome; inventou então o útil Kinethorizon, instrumento de astronomia popular paraconhecer as constelações; e demonstrou a profundidade de suas idéias sobre tal matéria no livrochamado Evolution Solaire); é matemático doutíssimo (sem sê-lo teria sido Impossível daralgum passo de importância em Astronomia); é físico; é químico; é naturalista; é músico, épsicólogo (veja-se, por exemplo, sua Preparação ao Estudo da Fantasia Humana, sob o duploaspecto da realidade e do sonho); é pedagogo (aí está, em comprovação, seu Projeto de umaEscola Modelo para a Educação e Ensino de Jovens Anormais); mas é acima de tudo esobretudo um homem de fé. Leiam-se, para convencer-se disso, os dois grandesvolumes de suas Conferências teosóficas da América do Sul, onde tantas e tão originaisinterpretações há de todo gênero de fenômenos. Leiam-se, especialmente, os doisprimeiros tomos da Biblioteca das Maravilhas (O Tesouro dos lagos de Somiedo e de Gentedo Outro Mundo), donde encantam peregrinas páginas sobre o cabalismo asturiano;sobre as vias subterrâneas do globo; sobre o entusiástico projeto de fundação doprimeiro convento ou retiro teosófico, a 1.600 metros sobre o nível do mar, ondeos "devotos da Estrela" teriam que dedicar-se a seus variados estudos; sobre oJainismo na Espanha; sobre os mistérios do basco... Leia-se, Wagner, Mitólogo eOcultista, onde justifica a denominação de teósofos que ao autor do Anel doNibelungo e ao da Quinta Sinfonia aplica, por terem sido aqueles (coisa que ninguémnegará), "místicos verdadeiros que sentem palpitar O Divino na Natureza; intuitivosadmiráveis que, além das coisas, adivinham a Realidade-Única”, julgando queTannhäuser e Isabel, Tristão e Isolda, Eric e Senta, Siegfried e Brunhilda, Lohengrin eElsa, Parsifal e Kundry, são símbolos de uma idéia profundamente ocultista: a queentranha todos os mitos amorosos.

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Eu bem sei que os filósofos de ofício e os filósofos timoratos têm que acharextravagantes e infundadas algumas afirmações. Que cara farão quando lerem quePelayo ou Bel-aio é "uma sobrevivência proto-semita"; que Favila ou Fabella,devorada por um urso, "é outra lenda ao modo dos Ursinos e Wel-sungos"; que Tan-tris (Tristão) "dá-nos o nome latino de Na-tris, e Natris equivale nesta língua àgrande serpente tentadora, o Leviatã"; que Arthus "não é mais que o sânscritoSuthra ou Fio de Ouro (Suthra-atma) que enlaça nossos egos animais com nossoEgo Divino"; que Mark ou Marka é "a personificação dolorosa do Karma ouDestino sânscrito"; que Isolda (Iseo) é Ísis, "o Ideal, ou Íris da Humanidade Livreno dia de sua regeneração e apoteose"? Com que desdém acolherão estes achados,e sorrirão, das alturas de sua olímpica aridez, de semelhantes interpretações!

Não eu: porque, acima de todas essas singulares conexões, que podemadmitir-se ou rechaçar-se, acha-se o espírito da poderosa Unidade que constitui aEstrela deste mui erudito Mago, e ao qual têm que atribuir-se seus acertos e seustropeços. Ele é, como meu amigo o matemático e filósofo Diego Ruiz diria, um dospoucos entusiastas de coração que há em nossa pátria, e todo entusiasmo sincero eprofundo tem sempre algo de sagrado, qualquer seja sua inspiração. Uma santaalegria, engendrada pelo amor ao bem, que é ordem, areja todos os atos e reflexõesdeste homem, para quem "a lei higiênica, a lei moral, e a lei lógica, são partes da Leide Amor, que até os astros encadeia em suas órbitas”. Daí a simpatia com quepessoas de boa vontade olham seus esforços, a admiração que desperta o ideal queos anima, e o aplauso vivíssimo que a seu já enorme trabalho dedicamos unsquantos, a quem honra com sua amizade.

Adolfo Bonilla e São Martín - Llanes (Oviedo), setembro de 1917.

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Wagner Mitólogo e Ocultista – Capítulo I

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PRIMEIRO CAPÍTULOREALIDADES ANTIGAS E IDEAIS MODERNOS

Os Mistérios iniciáticos e a obra wagneriana - Existiram realmente aquelas instituições daMagia? - Postulado necessário - O cenário wagneriano em Bayreuth - Os primeiros festivais -Paul Dukas, Borrell e outros visitadores do novíssimo Templo musical - Paralelo inevitável - Opúblico real, e o público ideal sonhado pelo Mestre - O Teatro Modelo e o insalubre ambienteteatral de nossa época - O programa da revolução wagneriana - Apoteose integral da Arte - Amáxima força sugestiva - Como adormecer previamente à humana Besta - Adivinhações deBulwer-Lytton - Os seres invisíveis do mito wagneriano - Transcendência social em todo tempo dasrepresentações do Mistério - O que neles fora a música - O leitmotiv na vida.

A muitos estranhará, sem dúvida por agressivo e deslocado, o paralelo que otítulo desta obra venha estabelecer entre os chamados Mistérios do velho Paganismoe a obra dramático-musical que, contra todas as resistências acumuladas pelo frio ecético século XIX, levou à cabo heroicamente Richard Wagner, o colosso.

Que comparação pode estabelecer-se, com efeito, entre certas cerimônias,que se dizem mais ou menos fabulosas sempre, "filhas de um passado poucocultural e, como tais, apenas admitidas pela crítica histórica", e a obrarevolucionária, assombrosa, do gênio da moderna Harmonia musical, quem,apoiado, é verdade, em uns quantos mitos germânicos, realizou o prodígio decoroar com ela o edifício da música moderna, cujos alicerces excluíssem Bach,Mozart e Beethoven? Que pretensão ridícula é "enlaçar a quimera antiga com asábia arte moderna, tentando comparações absurdas, formulando asserçõesgratuitas e procurando em vão algo que já está descontado de consenso pelaReligião e pela Ciência, quer dizer, a reabilitação do nefando e desacreditadoPaganismo, incapaz, em sua grosseria, de medir-se com as divinas sublimidades doEvangelho"?

E, não obstante, o fato em questão de que entre o novo drama musicalwagneriano e os velhos ensinamentos dos "Mistérios" dividam grandes laços, umaverdadeira lei de herança através dos Séculos, é tão acessível para todo aquele quesem paixão estude que só mercê à inépcia ou deficiência de nossa exposição poderápersistir na dúvida. Das pobres páginas deste livro, que não pretende outro méritoque o da sinceridade com que vão formular-se e tratar de demonstrarem-se suasasserções, confiamos em que há que surgir às centenas as provas, as corroborações,as suscitações, ao menos, relativas ao princípio fundamental que lhe informa, ouseja: primeiro que existiram em todos os países do mundo, desde um passado paranós pré-histórico, certos ensinamentos iniciáticos, dados muitas vezes emrepresentações simbólico-teatrais do mais alto interesse, reservadas para umpequeno número de escolhidos e veladas cuidadosamente aos olhos do ignorantevulgo, representações estas últimas onde se ensinavam doutrinas de todas asordens: religiosa, científica, artística e histórica, muito superiores às de nossa

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enfatuada cultura; e segundo, que, depois de uma noite imensa, que se prolongounão menos que vinte séculos, estes ensinamentos iniciáticos e estas augustassolenidades chamadas Mistérios, começam de novo a se inserir no seio de nossassociedades modernas, cabendo à Wagner a honra imensa de ter contribuído pararessuscitar consciente ou inconscientemente em nossos dias, sem que nossos olhos- debilitados ainda pelas trevas de um mal entendido Cristianismo, que tambémteve e continua tendo Mistérios - se tenham dado conta ainda da ressurreição,como a que significa a vinda ao mundo do Drama musical wagneriano.

Confessamos que a primeira parte de nossa demonstração, que é,certamente, a mais difícil e que se acha, sem dúvida, muito acima de nossas pobresforças, embora já tenhamos feito algo nesta ordem desde a cátedra no Ateneu deMadrid nas vinte primeiras lições de nosso "Curso de Filosofia oriental em harmonia coma Ciência moderna" em 1913, e também nos diversos livros de nossa bibliotecateosófica. Não uma ou mais séries de conferências, senão uma obra de gigantescaerudição e de profunda exegese do Mito comparado seria preciso para isso. Porsorte, semelhante obra existe; está escrita faz uma trintena de anos, e a elaremetemos seguros de não podê-la melhorar nem em um til. É a incompreendidaobra da maior mulher do século XIX, de Helena Petrovna Blavatsky, a damaaristocrática russa que, como o Santo Buddha ou Sidartha Sakyamuni da lenda,preferiu a dura tarefa de ser redentora dos homens à principesca e vaidosa de sertida como algo régio e acima de outros mortais, dama que, não se rodeou de umdiadema real e sim, pela ingratidão humana, uma dolorosa coroa de espinhos decalúnia, ainda não receberam suas mãos venerandas a imanente coroa de mirra elouro que, como heroína, soube ganhar com esses dois monumentos de erudiçãoverdade, inexorável com a mentira ambiente, que se chamam "Ísis sem Véu" e "ADoutrina Secreta". O que Blavatsky não conseguiu da assoberbada ciência oficial,da intolerância positivista sem máscara alguma, mal poderia consegui-lo o autordestas linhas, seu ínfimo discípulo. Assim, de forma que o leitor nunca possa levar-se a engano, convidamos-lhe a que, se buscar uma demonstração completa daexistência de tais doutrinas iniciáticas, de tais cerimônias pagãs, e uma descriçãoacabada das mesmas, feche logo este livro, onde se podem encontrar quiçáindicações a respeito do que deveriam ser os ditos ensinamentos que formaramparte dos Mistérios da Antigüidade, jamais poderá achar uma escrupulosa e totalrevelação daquelas nem destas, pois nem pretende parecer vaidoso, nem passar porIniciado, nem mesmo que fosse, poderia revelá-los e levar às mentes dos leitoresuma convicção que nestes só pode ser o fruto de extensos estudos e penosas dorescom o passar do calvário da vida, já que as excelsas verdades sobre a origem e odestino do homem não podem dar-se por ciência alguma se antes não sãoconquistadas por si mesmo para ficar afinado com sua grandeza primitiva.

Digamo-lo em outros termos, e sirvam estas nossas palavras à maneira dabem conhecida "exposição de motivos", de leis e de doutrinas. Das duas asserçõescapitais a que o subtítulo de nosso livro se dedica, o segundo, o relativo à existênciae circunstâncias que rodeassem a tais ensinamentos e Mistérios arcaicos, ou há queficar demonstrado superficialmente, deixando livre ao leitor não convencido o

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caminho para que possa convencer-se disso com a leitura das citadas obras eoutras, ou têm que admitir-se aquela existência e circunstâncias dos mesmos, àmaneira de um novíssimo postulado de Euclides, base da Geometria clássica,postulado que, mais ou menos, dissesse assim: "Admitido que, existiram naAntigüidade pagã, certos ensinamentos reservados, cerimônias e solenidadessecretas chamadas Mistérios por todos os escritores clássicos greco-latinos, taiscomo Platão, Cícero, Estrabão e Sêneca, e admitido também que estas últimascerimônias disfarçavam um caráter completamente dramático-simbólico e degrande divertimento para todos os povos antigos, nós vamos tentar demonstrarneste livro que os argumentos das imortais criações musicais do colosso de Bayreuthestão calcados em quantos detalhes daquelas solenidades puderam chegar até nós,e, portanto, que ao representá-los em nossos teatros e especialmente naquele teatromodelo, criado ad-hoc como é sabido, em dita cidade alemã, não fazemos, senãocelebrar inconscientemente tais Mistérios, sequer saibamos ainda, como saberia semdúvida o vulgo grego se porventura era admitido alguma vez a suas representações,completamente alheios ao seu muito alto conteúdo científico, moral, histórico, etc.A levantar, pois, uma mera ponta deste denso véu que oculta ainda a nossos olhoso sublime ensino universal que entesouram sortes obras de Wagner, encaminha-seexclusivamente este livro.

Falemos primeiro do cenário wagneriano.Este cenário, contra o que se acredita e o que hoje se pratica, não são aquelas

tablas há séculos consagradas ao bel canto e a todas quantas frivolidades musicaispuderam sair das óperas italianas, verdadeiros exemplares de música milésia, que seem não poucas ocasiões pode deleitar, chega rara vez a instruir. O cenáriowagneriano, pelo contrário, é algo novo, criado pelo colosso para suas próprias obras;o cenário dos sagrados mistérios antigos, que, depois de intensos esforços do titã,pôde finalmente elevar-se em Bayreuth, como é sabido.

Bayreuth - diz Borrell - convence desde o primeiro instante. Cada um dosinstrumentos do pensamento humano tem seu campo de operações peculiar, noque se expressa a correspondente categoria de sentimentos ou de idéias. Assensações que Wagner desperta são, por sua vez, tão penetrantes, tão extensas, e oresultado simultâneo de todas elas fundidas em uma emoção geral, de tãoextraordinária e absorvente índole, que não há quem encontre palavras paraexpressar a equivalência. Como surpreende o poder triunfal da poesia e da música,dominando em conjunto e de um golpe a tão grande número de pessoas distintasumas das outras pela idade, pelos costumes e pelos gostos! E é que a grande arte,com tanta devoção expressa, e com tanta fidelidade traduzida, sugere idêntico graude sentimento nos ouvintes, possuídos todos de um respeito religioso. A lembrançada personalidade dos intérpretes e dos meios de realização cênica se apaga ante oespetáculo integral, porque tudo que não seja o drama permanece inadvertido. Atéa investigação crítica se amortece, e a faculdade de analisar e de reproduzirliterariamente as sensações, paralisa-se. É vão recolher as impressões pulverizadas eas submeter à dissecação. O porquê e o como escapam sempre, para permutar-se em

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epítetos admirativos. Interiormente, como sentimento, só subsiste o que se viu eouviu. Da História e da natureza da fundação se desprende seu caráter de idealismoe de finalidade exclusivamente artística, sem mescla de nenhum interesse industrial.

Uma Associação, um Patronato, facilitava os recursos para a Empresa edispunha livremente de todos os ingressos do teatro. Não se tratava, pois, deespetáculos públicos, mas sim de representações privadas que os espectadoresofereciam a eles mesmos para seu particular deleite. Tão intransigente se mostrouWagner neste ponto, que, quando em 1874, já em construção o teatro, a situaçãofinanceira chegou a ser desesperadora, e de Berlim, de Baden e de Darm-stadt lheofereciam somas importantes em troca de levar o teatro a essas capitais, rechaçousem vacilação às proposições e preferiu renunciar a tudo, antes que ver desnaturadoseu pensamento. Graças à assistência de Luís da Baviera se acabam as obras; masdos primeiros festivais resultou um déficit enorme que o Patronato primitivo senega a reconhecer; e como o teatro constitui a única garantia dos credores, Wagnerse vê impossibilitado de cumprir uma das mais importantes condições de seuprojeto: a de demolir o edifício depois de estreado O Anel do Nibelungo,impossibilidade que, pensando bem, mais deveu lhe agradar que lhe contrariar.Então se convence definitivamente de que não bastava a Associação para o sustentodas representações, e em 1882, quando estréia Parsifal, reserva as duas primeirastardes para os patrões, e nas restantes, até o número de dezesseis, abre o teatro aopúblico.

Nas palavras transcritas do melhor dos wagnerianos espanhóis, vê-se a fésacerdotal de Wagner em sua obra religiosa e redentora, criada mais para os temposainda por vir, que para nossa época positivista, fé a que sacrificou por inteiro suavida de mártir incompreendido, e que nos deixou escritas páginas de um evangelhonovo, igualmente tão antigo como o mundo, nos textos poético-musicais de suasobras.

Paul Dukas explica adequadamente o porquê da supremacia do teatro deBayreuth sobre todos outros. "É o único - diz - capaz de operar uma mudança derelação entre a ópera de Wagner e o público. Em todos os teatros, fora do deBayreuth, o público domina sobre os intérpretes e sobre a obra mesma. Aqui, aobra domina tudo, edifício, atores e concorrência, e aparece realizada, se nãoperfeitamente, ao menos do modo mais próximo à sua concepção. Bayreuth criaum novo entendimento entre Wagner e o público, e suas representações, espaçadase solenes, como devem sê-lo todas as manifestações de uma ordem superior,exercem um interesse particular, independentemente dos desfalecimentos possíveisde execução. Aqui recebemos a impressão direta deste manancial de poesia e demúsica, cujas águas, ao baixar ao mundo, turvam-se e se enlameiam. Aqui, e sóaqui, sente-se um contato imediato e completo com a obra e com seu pensamentogerador; tudo se subordina a isso, e o espectador menos submisso se deixaconduzir no sentido desejado pelo mestre. Neste fato sozinho, impossível deconseguir sobre outros repertórios, terá que procurar o segredo da longevidadedesta cena de exceção, a como profecias interessadas de outro tempo enunciavam

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uma fugacíssima vida".Pelas curtas referências que temos a respeito das representações dos

Mistérios antigos, elas não puderam ser coisa distinta, em seus elementos deapresentação cênica, pelo que, em relação ao drama wagneriano, acaba-nos de dizerPaul Dukas. As próprias funções religiosas mais solenes de nossos templos cristãos,como ecos perdidos e longínquos, mas ecos enfim, de alguns destes Mistérios, comos mágicos acentos do órgão e dos coros, com as luzes, ornamentos eexterioridades de todo gênero, as mais próprias, sem dúvida, para ir operando sobreos fiéis esses efeitos hipnóticos que acabam por afastar os de todas as misérias davida diária... Se tiverem um resto de fé. O público ideal que sonhasse Wagner para acorreta audição e assimilação integral de suas obras, como o público do templo e opúblico dos velhos Mistérios, são uma coisa mesma, descartada toda noção de falsapiedade ao uso e todos os exclusivismos que são característicos às diferentesreligiões positivas.

Em 1844, trabalhando Wagner no Tannhäuser com a certeza do fracasso semesperança, falava já do público ideal que sonhou para seus dramas iniciáticos nestestermos: "Quem de noite assiste ao teatro na cidade que habita, recém terminadas asocupações cotidianas, preocupado pelos negócios, pelos desgostos ou pelas alegriasda vida social, busca só distração e pulverização e não pode aspirar ao prazer muitopuro que a arte proporciona, nem muito menos pensar na desinteressada edificaçãode seu espírito. Se, pois, em circunstâncias normais é impossível ao públicoidentificar-se com o que ocorre na cena, devemos modificar as circunstâncias, astransformando em excepcionais e extraordinárias, isolar o espectador, lhe arrebatarda prosa da vida e lhe obrigar a experimentar uma mudança radical em sua atitudede sentir a obra de arte; e se a produção cênica merece, pelo menos, tanto respeitocomo o tecido pintado ou o mármore esculpido, é preciso que julguemos no teatrocom a mesma serenidade com que no museu se julga".Elevando estas observações à categoria de princípios - disse um autor -, Wagner,depois da estréia de Tannhäuser, em todo tempo e em todo lugar, com uma purezade consciência e uma honradez sem comparação nos anais dos revolucionáriosartísticos, resistiu a introduzir suas obras, que obedeciam já a um critério estéticopessoal, no ambiente insalubre dos teatros de ópera à antiga; até chegou asuspender a composição dos Nibelungos por não poder apresentá-los como elesonhava, apesar de que dispunha de um teatro famoso então por sua perfeitaorganização: o de Weimar, que, da mesma forma dos outros que regera, sugeriu-lheaquela célebre frase sua reveladora do imenso abismo de sua alma: "Sempre que dirijoa representação das óperas nos teatros, uma imensa amargura se apodera de meu coração". EmBayreuth, e só em Bayreuth, quer dizer, na cena expressamente criada paraexteriorizar um gênero de natureza tão original, podia coroar Wagner, portanto, seuprograma de evolução 1.

O "programa de evolução”, de Wagner, é por si só, com efeito, um gigantesco monumentoliterário, que bastaria para cimentar sua fama como escritor e que revela a religiosidade deMistérios iniciáticos, que quis dar a sua obra. E. W. Fritzsch, nos dez volumes de sua obra, que

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abrangem toda a produção literária e musical do colosso, consagra a primeira de suas cinco sériesaos escritos deste. Nessa série vemos os seguintes, onde se dá forma ao referido Programa deEvolução: A Proibição de Amar; considerações a respeito da primeira representação de uma ópera- Uma peregrinação à casa de Beethoven - Sobre a Abertura - Ver Freyschütz (para Paris e paraa Alemanha).- Sobre o estado da música na Alemanha - O artista e a publicidade - Um músicoalemão em Paris - "Virtuoso" e Artista - O "Stábat Mater", de Rossini.- Esboço autobiográfico- Relatório sobre a execução da nona Sinfonia de Beethoven - Os Nibelungos (História universal,tirada da lenda) - Projeto de organização de um teatro alemão no reino da Saxônia - A obra dearte no futuro - A Arte e a Revolução - O Estado e a Religião – Arte e o Clima - O judaísmona música - Um teatro em Zurich - Ópera e drama - Sobre a fundação Goethe - Lembrançassobre o Spontini - Comunicação aos meus amigos - Programa explicativo da sinfonia heróica -Sobre a representação de Tannhäuser - Observações sobre a representação de "O casco de naviofantasma" - Programa explicativo da Abertura do Coriolano" - Sobre a crítica musical -Explicações em forma de programa: Abertura de Tannhäuser*' - Explicações em forma deprograma: Abertura de "Lohengrin".- A abertura de "Ifigênia", pelo Giuck - Sobre as criaçõessinfônicas de Franz Listt - A música do futuro - Carta ao Heitor Berlioz - Dedicatória dasegunda edição de "Ópera e Drama" - Adeus ao L. Spohr e ao diretor de coros W. Fischer - Oteatro imperial da ópera em Viena - Epílogo explicativo sobre O anel dos Nibelungos - A arte ea política alemãs - Relatório para criar em Munique uma escola alemã de Música - Minhaslembranças do Luis Schnorz, do Carolsfeld - Uma lembrança de Rossini - Esclarecimento sobre ojudaísmo na música - Da direção - Beethoven - Sobre o destino da ópera - Lembrança do Auber -Atores e cantores - Carta a respeito da profissão teatral - Sobre o inconveniente do término"Drama musical" - Carta à Federico Nietzsche sobre a cultura alemã - Para a execução daNona Sinfonia de Beethoven - Relatório final sobre "O Anel dos Nibelungos" - O"Festspielhaus" cênico de Bayreuth - Olhada sobre a economia dramática Alemanha atual -Projeto relativo à escola dramática de Bayreuth moderno. - No que consiste o alemão? - Olhadaretrospectiva sobre os Festspields do ano 1876 - O público no tempo e no espaço - O público e apopularidade - Sobre a aplicação da música ao drama - Podemos esperar? - A poesia e acomposição - Sobre a composição do texto e da música de uma ópera - Carta aberta ao Ernesto deWeber - Religião e Arte - Para que serve o conhecimento? - Conheça-te a ti mesmo - Heroísmo eCristianismo - Introdução ao opúsculo do conde do Gobineau - "Julgamento sobre o estado atualdo mundo" - Relatório sobre a reposição de uma obra de juventude - Sobre o feminismo no homem- Carta ao Enrique von Stein - Sobre uma criação da "Iocconda" de Spohr - Introdução a umaleitura pública de "O crepúsculo dos deuses".

Caso contrário, sua obra artística, já existente à exceção de Parsifal, corriarisco de aparecer imperfeita, ou, pelo menos, incompreensível. A construção, pois,de um teatro modelo como o de Bayreuth possivelmente represente o esforço maispoderoso do Mestre, tendo sido sua carreira uma série imensa de extraordináriosimpulsos de vontade; significando para ele o princípio de relação entre a faculdadecriadora e o público, o corolário obrigado da reforma do drama e o indispensávelcomplemento prático do dramático trabalho.

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Wagner intuiu, com essa super-consciência própria dos gênios, que o futurorestauraria os vastos conjuntos de arte, ciência e magia, que se somavam eintegravam maravilhosos aos olhos embevecidos e hipnotizados do público paragravar em suas mentes, do modo mais indelével, as super-humanas realidades doSímbolo. Se alguma dúvida houver sobre isso, nada há senão consultar, entre os seusmúltiplos trabalhos, enumerados na nota anterior, sua célebre carta a FedericoVillot, onde consigna que isoladas e cultivadas à parte as diversas artes, "não podemsubstituir o ilimitado alcance - o alcance mágico ou transcendente e super-humano- que resulta precisamente de sua união", porque todas as artes, como dizia D.Gaspar Melchor de Jovellanos, "devem ter no teatro seu domicílio próprio" econtribuir nele ao grande trabalho educador, e até religioso, que o verdadeiro teatrodeve realizar, já que se são respeitáveis objetivamente todos os templos, éprecisamente por ser - dito seja com respeito - verdadeiros teatros, nos que, entremúsica, canto, arquitetura, escultura, ornamentos de vestuário, pompa e luzes,representam-se, em línguas quase sempre sábias ou perdidas, os simbolismos emistérios santos de sua respectiva religião, mistérios que, por outra forma, a Religiãoou Mitologia Comparada demonstra hoje ser de idêntico fundo tradicional,ensinando sob véus esotéricos de aparências várias a mesma Verdade TradicionalPerdida, que data dos tempos mais nebulosos e remotos da pré-história 1.

E é natural que assim aconteça, porque o sugerir grandes idéias abstratas,pouco abordáveis para as mentes ordinárias por quão mesmo são abstratas, exigeuma força máxima de sugestão, coisa que só se consegue graças às sugestõescombinadas das artes mais diversas.

"Só adormecendo a Besta, é como se pode despertar o Homem!" - Diz a sentençaocultista. E, com efeito, tudo no teatro verdade, como no templo, conspira deconsenso a esse fim com o mais admirável dos sistemas de sugestão jamais sonhadopor nenhum de tantos infelizes cúmplices do hipnotismo. Um público, nemfaminto nem farto, um público de seu selecionado, já pela arte ou pela fé - que éarte também, posto que seja aspiração e amor para o ideal inalcançável de ummundo superior, a Besta desconhecida, congregasse no sagrado recinto, recinto noqual se riscou de antemão o circulo mágico, quer dizer, procurou-se o mais castoisolamento contra a barbárie brutal dos elementos exteriores, do homem superioreternos inimigos. Preparou-se ad-hoc um local a propósito, templo da arquitetura, aescultura e as artes decorativas, com coberta contra a chuva, com paredes contra asrajadas do vento, com âmbito capaz para a respiração mais franca, com pavimentopreservador das úmidas emanações danosas do subsolo..., um ninho, enfim, qual odas aves para seus amores. Ali, ao mortal, inconsciente em sua inocência daoperação mágica a que vai ser submetido para sua sorte, lhe instala mimosamentesobre cômodos assentos, sem ruídos exteriores, sem conversações que distraiam,sem calor e sem frio, sem temores nem remorsos... Diante tem um pano de fundo

1 Para mais detalhes corroborantes de nossas asserções, veja-a obra de arte no futuro, no queWagner mesmo nos dá a mais autêntica demonstração que deles possamos gostar.

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enorme, que é um véu de mistério, um efetivo Véu de Ísis, que lhe oculta até omomento oportuno todo mundo de grandes coisas que dali a pouco vai develar oudesvelar. O instante desejado chega ao fim; fecham-se as portas para que nãopenetre o profano nem os profanos; fica cada qual imóvel em seu posto; apagam-nas luzes, e se faz um silêncio augusto, o silêncio e a escuridão, que são pais de todaHarmonia e de toda Luz. Deste silêncio mágico, qual no primeiro dia da criação,brotam à maneira de um bafo musical, que, pouco a pouco, toma corpo cominefáveis cadências, as notas misteriosas de uma orquestra invisível... Ao conjuro doprelúdio harmônico, as duas folhas do pano de fundo se abrem suaves, como seabrem as pétalas de um cálice floral para dar a luz ao mundo a policromia dascorolas naturais de perfumes, e uma cena ideal, uma cena sonhada no sonhoartístico do gênio, um raio de sol e de fogo roubado aos deuses pelo humanoPrometeu, começa a derramar em nosso ser, através de todos nossos sentidosembevecidos, o encanto celeste da sugestão integral, Véu interior do Símbolo,Sancta-Sanctorum, do divino.

... Já o homem, inconsciente de quanto não seja Aquilo, flutua em plenomundo astral, mundo da Fada-Imaginação, porque a Besta de nossa vida ordináriade cegas toupeiras sublunares adormeceu, entorpecida em todas suas paixõescontrárias à vida superior do Símbolo, pela torta soporífera que lhe serviu o Gênio,para poder descender ele um momento a nosso Inferno cotidiano, sem que osCérberos pisoteiem sua obra e, ferozes, destrocem-lhe, podendo assim nos dar,cheio de piedade, as fórmulas salvadoras que consigam restituir à nossas almas,como eternas Andrômedas ou Eurídices, ao Mundo Superior, do qual, segundoPlatão e Jesus, caímos 1.

Agradavelmente seguiríamos por este caminho de luz e de prazertranscendente escrevendo impressões que evocariam em nossos leitores artistas alembrança perfumada de outras semelhantes que acaso sejam, aos olhos de seucoração, "os poucos momentos da existência em que a vida merece realmente servivida", mas nossas páginas, nem seriam tão íntimas como as que de representaçõesteatrais, sobretudo em sua infância e juventude, guardam nossos leitores em seupeito, nem ao menos conseguiriam expressar a realidade iniciática do teatro deWagner, como a expressa, em outra ordem de idéias ocultistas, um famoso escritoringlês, Bulwer-Lytton, na passagem de seu Zanoni aonde o sábio Mejnour vai

1 Quanto não caberia melhorar a apresentação da obra wagneriana, até no próprio Bayreuth, se, seaplicassem escrupulosamente os múltiplos ensinamentos do Ocultismo, as aproximando assim maise mais ao maravilhoso conjunto astral que reinasse nas representações antigas dos Mistériosiniciáticos!Sobre isso possivelmente escrevamos aqui algum dia um livro, porque causa profunda pena, e àsvezes até asco, o ver como se profana os muito puros simbolismos de Wagner em nossos melhoresteatros, não por má fé, mas sim por frivolidade e por ignorância completa da ciência do Mito e oSimbolismo. Não há por que dizer que o efeito de tais melhoras daria às idéias do mestre umvigor desconhecido, absolutamente religioso, do que nem mesmo idéia tem hoje os públicos maiscultos.

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preparando para a iniciação em um solitário castelo napolitano seu discípuloGlyndon: Em honra à sua beleza, nos seja perdoada a extensão da citação.

“No exterior tudo está preparado, Glyndon; mas não na esfera interna -acrescentou o Mestre. É necessário que sua alma se acostume ao lugar e que seimpregne do aspecto do que lhe rodeia, pois a natureza é a origem de todainspiração fecunda. Que sua imaginação comece a acostumar-se à divinatranqüilidade da contemplação e que, sentindo aspirações cada vez mais nobres, nosilêncio dos sentidos, pareça-lhes como que ouvem a voz de sua alma e que..., poruma espécie de idealismo abstrato, elevam-lhes para as altas faculdades quecontemplam e que criam... A primeira iniciação do homem é em estado de êxtase:os conhecimentos humanos começam por meio do sonho, e durante o sonho équando se suspende sobre o imenso espaço a primeira frágil ponte entre espírito eEspírito... Olhe fixamente aquela estrela!”.

"Glyndon obedeceu. O mestre se retirou à câmara vizinha, da qual começoua pulverizar-se no ar uma fresca e saudável fragrância. Os olhos do jovem seguiamolhando a estrela que parecia ir fixando por graus sua atenção. Um momentodepois se apoderou dele estranha frouxidão, que só lhe deixava livre a imaginação,como se, se tivessem umedecido suas têmporas com alguma essência ardente evolátil. Um ligeiro tremor emotivo agitava seu corpo, à medida que a luz da estrelalhe parecia dilatar-se mais e mais, alagando todo o espaço com sua luz. Ao fim,naquela vívida e prateada atmosfera sentiu como se algo penetrasse em seu cérebro,ou como se lhe rompesse uma forte cadeia e começasse a voar pelo espaço, comum sentimento de celestial liberdade, de inexplicável delícia, como se sua almainteira, abandonando uma obscura prisão, abatesse-se sobre o mundo qual um aveprodigiosa. Por aquele âmbito luminoso e sui generis, como em um cosmorama,aconteceram obscuras paisagens, árvores, montanhas, cidades e mares... Ao modode um paciente submetido gradualmente ao sonho mesmérico, o jovem sentia em seucoração a crescente força do vasto magnetismo universal, que é a vida do Universoe que liga o átomo com o Cosmos. Uma estranha e inefável consciência de poder,uma sensação de alguma coisa grande, dentro do pó perecível, despertava nelesentimentos obscuros e excelsos, qual a esquecida lembrança de um antigo e puroser."

Logo, nos trazendo para esse mundo encantado de elementares e homensque formam toda a trama mística dos argumentos wagnerianos, segue dizendo aGlyndon o mestre Mejnour:

O homem é arrogante em proporção de sua ignorância, e sua naturaltendência é o egoísmo. Na infância do saber pensa que a criação foi formada paraele. Por muitos anos não viu nos inumeráveis mundos que brilham no espaço,como borbulhas no imenso oceano, senão tochas acesas para iluminar suas noites.Mas já o homem tem que reconhecer que elas são outros tantos mundos, maisvastos e mais formosos que o seu, e que a mesma terra sobre a que se arrasta éapenas um ponto visível no vasto mapa da criação. Mas no pequeno, como nogrande, de Deus arrojou profusamente a vida. O viajante olha a árvore, e acredita

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que seus ramos foram formados para lhe liberar dos raios do sol no verão, ou paracombustível nos frios do inverno. Em cada folha desses ramos, entretanto, oCriador estabeleceu um mundo povoado de inumeráveis raças. Cada gota de águadaquela cascata é um orbe com mais seres que homens contam em um reino. Emtodas as partes, neste imenso Desígnio, a ciência descobre novas vidas. A vida é umeterno princípio, e até a coisa que parece morrer e apodrecer engendra novasexistências e dá novas formas à matéria. Raciocinando, pois, por analogia, se não háuma folha nem uma gota de água que não seja como cada estrela um mundohabitado, o homem não pode ser em si mais que um mundo para outros seres dosquais milhões e milhões habitam nas correntes de seu sangue, vivendo em seucorpo como o homem sobre a terra. Até o infinito fluido que chamam espaço, oimpalpável ilimitado que separa a Terra da Lua e de outros astros, está tambémcheio de correspondentes e proporcionados seres. Não é um caso absurdo suporque uma folha está cheia de vida, e que a vida não existe nas imensidões do espaço?A lei do Grande Sistema não permite que se desperdice um só átomo, nem conhecenenhum lugar onde haja algo que não palpite e viva. O microscópio nos revelouseres que antes não conhecíamos, e se não descobrirmos os de um gênero maiselevado e perfeito que povoam o ilimitado espaço, é porque não obtivemos aindaos meios adequados. Não obstante entre estes últimos e o homem existe umamisteriosa e terrível afinidade: daqui os contos e lendas, nem de todo falsos, nemde todo verdadeiros, de aparições e espectros. Se estas crenças foram mais comunsentre as primeiras tribos, é porque seus sentidos eram mais perspicazes, é o mesmoque o selvagem descobrir os rastros de um inimigo invisível aos embotadossentidos de um homem civilizado, assim é menos denso para ele o véu que lheoculta os habitantes do mundo aéreo. Para penetrar tamanho véu, é preciso que aalma se sinta excitada por um extenso entusiasmo, e purificada de todos os desejosinferiores que a escravizam cruelmente ao mundo dos sentidos... Eles eram assílfides, gnomos, etc., dos rosa-cruzes; silfos, gnomos, ondinas e salamandras; elfos,duendes, trasgos, nibelungos e demais gentes do astral que profusamente convivemcom o homem em todas as obras de Wagner, desde As Fadas, sua primeiraprodução, até a última; o semi-cristão e o semi-pagão Parsifal; entidades míticas quepoderiam nos explicar mais de um mistério psicológico e físico, se a ciência atualnão fora tão cretina e se obstinasse, para seu mal, em querer viver divorciada daeterna poesia dos séculos... Silfos, gnomos, etc., enfim, que acaso exerceram umpapel tão essencial nos Mistérios iniciáticos, como exercem, embora isso nos queirainutilmente ocultar, na própria vida dos Santos cristãos, já que A Lenda de Ouro detantos ascetas e místicos aparece tão cheia deles como o estão de sóis os espaçoscelestes.

Com o exposto, o elo que une - como a parte ao todo - a este tomo, com osdemais de nossa Biblioteca das Maravilhas, terá que ficar melhor ou piorestabelecido, mas estabelecido ao fim, porque se aqui o Mago sonhado pelo Bulwer-Lytton evoca para a iniciação de seu discípulo a silfos, gnomos, salamandras,ondinas e demais habitantes invisíveis que rodeiam ao homem e que só a Magia, jáque não a ciência, pode-nos demonstrar Wagner, principalmente em sua obra

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mestra da Tetralogia, põe-nos também como Mejnour à fala direta com eles,ressuscitando aquela bíblica idade em que os deuses e os anjos falavam com oshomens. Os Mistérios tradicionais punham, com efeito, aos neófitos à fala comditos seres, em meio da sugestão hipnótica verdade - a única sugestão hipnótica quenão é patológica - de uma cena encantada, capaz de embolar aos circunstantes atéum grau muito maior que a própria cena wagneriana em Bayreuth.

Nenhum espiritualista desconhece a excepcional importância que revestiramos chamados "Mistérios" antigos. A eles deveram toda sua celebridade Sais, Menfise Tebas, no Egito; Mitra, entre os Parsis, Eleusis, Samotracia, Lemnos, Éfeso, etc.,entre os povos gregos; Bibractis e Alexis, entre os galo-druidas; Heliópolis, na Síria;Tara, na Irlanda, e quiçá Tarragona, Gades, Mérida, Andújar, etc., na Espanha.Nenhuma cidade histórica de notoriedade verdadeira deixou de tê-los em grau maisou menos excelso; de Roma, por exemplo, diz-se que teve um nome etrusco-atlante, sagrado e esotérico, cuja revelação ao profano era castigada com a morte, eem qualquer lugar que havia uma sibila ou profetisa, como as tão famosas deCumas, Eritrea ou Endor, ali havia também um mistério délfico, báquico, cabírico,dáctilo ou eleusino, que guardar aos olhos das multidões e que develar ante a vistatranscendida dos aspirantes esforçados e sinceros.

Mas, no que consistiam tais Mistérios? Não vamos fazer aqui uma de tantasdigressões históricas que, mais ou menos acertadas e incompletas sempre, conheceo leitor até pelas enciclopédias. Basta-nos recordar que homens da estatura mentalde Cícero e Sêneca falaram com o mais profundo respeito destas instituiçõesvenerandas que gozavam do privilégio de reunir periodicamente aos povos domesmo sangue sob sua tutela e ensino, por mais inflamadas que fossem diariamenteas lutas nascidas de suas recíprocas ambições políticas.

Terás que ser perfeito iniciando-se nos Mistérios perfeitos, dizia Platão emseus Diálogos. Os Mistérios e suas derivações gozavam do excelso privilégio deestabelecer vínculos muito fortes entre povos distintos na aparência. Heródoto, nolivro IV, capítulos XXXII e XXXIV, conta que os hiperbóreos enviavamperiodicamente à Delos (Δήλος, Dhilos) suas oferendas sagradas, envoltas em palhade fromentum. Tais oferendas tinham bem marcado seu itinerário religioso. Passavamprimeiro pelo país Escita e depois iam para o ocidente até o mar Adriático, itinerárioigual ao que seguia o âmbar desde o Mar Báltico até o rio Pó na península itálica.Depois seguiam para o Sul. Os habitantes de Dodona eram os primeiros querecebiam as oferendas entre os gregos. Depois desciam desde Dodona até o golfoMalíaco e continuavam até Eubéia e Caríptia. Desde a Cariptia, sem se aproximarde Andros, seus cidadãos as passavam ao Tenos e dali à Delos. "Os deliosacrescentam que os hiperbóreos tinham o costume de enviar estas oferendas pormãos de duas virgens. Uma destas foi Hiperocha, e Laodicea a outra. Para cuidar dasegurança delas, tinham-nas feito acompanhar por cinco cidadãos chamadosPerpheres, a quem ainda se rende grande comemoração em Delos; mas como estesPerpheres jamais voltassem para seu país, vítimas, sem dúvida, de seus difíceisdeveres tutelares, os hiperbóreos, temendo a repetição do fato, tomaram a decisão

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de levar até suas fronteiras suas oferendas e as confiar a seus vizinhos para queestes, de uns em outros, fossem entregando até seu destino. Os jovens delioscortaram suas cabeleiras em honra daquelas virgens hiperbóreas que morreram noDelos vítimas de seu dever religioso e as jovens delias lhes rendiam comemoraçãotambém tomando um de seus cachos de cabelo e depositando o cacheado a umfuso sobre o monumento elevado em honra daquelas vítimas que, se dizia, vieramacompanhadas pelos próprios deuses Artemísia e Apolo."

Citamos esta passagem da muito interessante obra de Alexandre BertrandLa religión de Galois - Les Druides et le Druidisme, para que se veja como em temposmuito remotos da Grécia se conservavam ainda laços religiosos comuns entrepovos tão apartados como os gregos, os escitas e os hiperbóreos, restos, semdúvida, do laço conector de uns Mistérios órficos que em tempos imemoriaishouve de uni-los.

Estas instituições dos Mistérios, cuja transcendência social, religiosa epolítica não conhecemos ainda bastante por não conservar-se delas mais quedeficientes entrevistas nos autores clássicos, desapareceram no Mediterrâneooriental, como resultado da barbárie militar de Alexandre, e no Ocidente sob a deCésar, ou melhor dizendo, ocultaram-se, fazendo-se herméticos até o início daIdade Média, quando o influxo orientalista das Cruzadas lhes ressuscitou pelomenos cem nomes, entre os quais se sobressaem a Ordem dos Templários, a Rosa-Cruz e várias outras instituições de pura ascendência maçônica e ocultista. A Igreja,sem dúvida, conservou-os sempre, embora os desnaturando essencialmente emproveito de suas tendências dominadoras e conservando até o nome que aquelestinham tido entre os primitivos gnósticos cristãos. Mistérios, continuamos chamandopor isso, ainda em nossos dias, a todo o raizame dogmático do Cristianismo: aTrindade, a Encarnação, a Transubstanciação, a Ressurreição, etc.

Pelos dispersos e deturpados dados que podem recolher-se em relação àverdadeira índole iniciática dos Mistérios, cabe assegurar que no fundo constituíamuma espécie de representação simbólica e como teatral, pela que se davam, ao vivo,os ensinamentos mais abstrusos. Eram estas representações à maneira de umafábula em ação, uma fábula real, transcendente, em cujo contido intrínseco podiampenetrar até o fundo os já preparados previamente pelo estudo, a dor e o sacrifício,enquanto que os não preparados libavam também ensinamentos, mais ou menosconfusos, mas sempre indeléveis, por rodear à representação dela de tudo que,como a meninos, podia impressionar a sua imaginação e a seus sentidos. Paraaqueles era o Mistério representado uma palpitante realidade; para estes, umdelicioso mito, nem mais nem menos que o que em grau inferior acontece com asobras clássicas do teatro: as tragédias de Shakespeare ou os dramas do Lope,Caldeirão, Tirso, Moreto e o duque de Rivas, com o que, dito seja de passagem,explica-se o como nascesse o teatro moderno ao calor dos autos Sacramentais, qualuma de tantas cerimônias do culto e representando os dramas da Religião com amais perfeita das reminiscências ou sobrevivências do Paganismo, a quem se tendiaassim a ponte para retornar à cena simbólica, porque, paralelo admirável! Se o

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objetivo for a vida do teatro que pela via do prazer ensina, a realidade exterior é emtodo tempo o magno teatro da vida que, com as experiências da dor, redime.

Filhos diretos da Magia tradicional, tomando esta palavra em seu antigoconceito de ciência superior, hoje por desgraça perdido, os Mistérios daAntigüidade abrangiam tudo: a cosmogênese, as leis matemáticas que regem aosmundos do movimento heliocêntrico e rotativo da Terra, até os ainda ignoradosroteiros do Sol em volto de outros sóis mais excelsos por ultraluminosos aos que sereferem, sem dúvida, as grandes Yugas e Manu-Antaras Brahmânicos; o relativo àface invisível da Lua, às interioridades da Terra, ao mistério dos cometas e aindiscutível habitabilidade dos astros. Para o outro pólo mítico, por dizê-lo assim,de suas cenas se agrupava toda a Antropogênese: a história do espírito, desde seudesprendimento como faísca simbólica do grande oceano de fogo ou energético doLogos Primordial, até sua apoteose no homem, através de reinos elementais einferiores, e também, por estranha lei de reciprocidade que só a matemática sagradapode explicar, através de estados verdadeiramente deíficos dos quais o homem caiuno passado, segundo as claras alusões de Platão, de Jesus e de tantos outrosiniciados em todos os tempos.

Não existe, por isso, um jogo de azar, uma dança, uma tendência cênica, umsó gênero literário em prosa ou verso, um conto, uma lenda, um mito, um ensinomoral, uma superstição ou um costume, que não tenha sua raiz na degradaçãoinevitável das transcendentais verdades dadas a conhecer com mais ou menos véus,naquelas solenidades augustas, com razão tidas pelo mais sagrado vínculo doshomens entre si, e deles com os deuses.

É de tal índole, com efeito, este vínculo das idades, que sua luz pôdedebilitar-se sob a ignorância ou a perfídia humanas sem extinguir-se jamais, poisnão há tirania nem perseguição suficiente para aniquilar na sociedade o que formaparte de sua divina natureza, como tampouco há degradação no homem capaz deapagar o que tem que imortal na humana essência. Sem nos ocupar hoje deevidenciar esta verdade na ignorante Idade Média, vamos tentar com este tomo onobre atrevimento, que bondosamente nos terá que ser dispensado, de sugerircomo nossa época, supersticiosa por um lado, embora cética e materialista poroutro, tem visto em nossos mesmos dias, sem quase dar-se conta, o ressurgimentopoderoso dos Mistérios pagãos, quando menos podia esperá-lo, e figurando nasfilas dos assistentes deles, sem eles suspeitá-lo tampouco, muitos dos maisfuribundos inimigos do velho espiritualismo iniciático, embora com igualinconsciência, repetimos, com que a massa dos povos antigos, concorresse aosditos Mistérios, para não ver em sua trama senão a casca, ou seja, o mito, adistração musical e a arte, coisa não pequena.

Durante as solenidades humanas por antonomásia, do templo de Bayreuth,dado que gozam do privilégio de atrair os homens mais cultos das cinco partes domundo, tudo nelas recorda, com efeito, aos festivais dos mistérios antigos: oentusiasmo, o respeito religioso que reina nas audições; a confusão de línguas doexterior; a silenciosa e iniciática escuridão do recinto; o brotar das notas musicais

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qual sonoro bafo que exalasse do seio da terra, produto de uma orquestra invisível;o maior esbanjamento de colorido, realismo e grandiosidades cênicas que possaalcançar a magia moderna auxiliada pela fada da eletricidade e da mecânica comprocedimentos chamados a aperfeiçoar-se ainda até um grau inaudito; as vozeshumanas, enfim, como um instrumento mais e o melhor do sonoro conjunto.Recorde o leitor, enfim, quanto sobre o particular corre escrito em livros e revistas,e assim estaremos dispensados de relatar a parte exterior dos "Festivais deWagner", para entrar totalmente na essência dos mesmos.

Será dito que tudo isto, embora em grau mais ou menos inferior, é o que sevê em todas as representações teatrais modernas, sem que por isso se ousecompará-las também com os Mistérios antigos; mas semelhante objeção estádestruída por si mesma, pois acabamos de ver que o teatro todo, como escola decostumes, é uma incipiente iniciação, para bem ou para mau, nos complexosmistérios da psique e da vida, e daqui o cuidado com que o teatro deve administrar-se e não se administra às crianças. Iniciação, dizemos, que alcança um alto grau norepertório teatral clássico de todos os países, rivalizando possivelmente com a maisalta forma da arte que sobrevivesse à ruína definitiva dos Mistérios pagãos, ou seja:a tragédia grega de Ésquilo, Sófocles e Eurípides, continuada, mas não igualada,pelo teatro romano dos séculos de ouro e precedida nas vias poética, lírica e épicapelos cantos dos bardos, tanto nos povos de ascendência celtico-druídico,hiperbóreo e gótico-lituano, quanto com as epopéias populares, das que formariamA Ilíada, assim como muitos séculos mais tarde se formou também nossoincomparável Romanceiro Castelhano do “Mio Cid”.

Além disso, e como se nisso se entrevisse já um novo mundo de arte, amúsica, que constituiu uma parte essencial dos Mistérios pagãos e o mais alto ramoda Matemática (integrada, como é sabido, por Aritmética, Geometria, Astronomia eMúsica), foi herdada pelo Cristianismo em tanta plenitude, que durante uma idade amúsica toda, fora de algumas manifestações do erotismo trovadoresco e licencioso,é religiosa, ao incomparável canto plano eclesiástico. Deste canto e das formasartístico-dramáticas que a melopéia eclesiástica medieval ostenta, brotou, como ésabido, a ópera moderna, pelo progressivo desenvolvimento artificioso e estético deuma vez daquela arte, a monodia passou à diafonia e à polifonia, enfim, que alcançasua perfeição no Motete, do qual nasce a Fuga, que aponta já como tal emJosquin Deprés, e é tomada em conta por didáticos como o dominicano Tomás deSanta Maria (1565), e haveria de cristalizar em definitiva e em sua mais perfeitabeleza com o J. S. Bach século e meio depois. Da mesma fonte fluíram no gêneroinstrumental as diversas classes de música de concerto: dos contrapontos atados aotema cantollano, passando pelos lientos, ricercari, fantasias, diferencias e pelas toccatas edivertimientos, formas transitivas e de teste, até chegar à sonata e à sinfonia que selevantam como fábrica de arquitetura musical acabada em Haydn, Mozart, erecebem de Beethoven aquele último toque que as arremata em um edifício deestética ideal, onde o espírito campeia e vive dominando as formas sonoras maisviris e grandiosas, quem com sua intuição de gênio, quem em sua última ou NonaSinfonia com coros, o cantar com Schiller a celeste voluptuosidade pagã, tem aberto

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caminho, segundo confissão do próprio Wagner, para o advento do dito DramaLírico.

Todavia, apesar do muito bem que se tem escrito, não foi observado overdadeiro alcance filosófico da ciência moderna da Harmonia, em que é segurosuperamos a todos os povos antigos, ao menos aos gregos, que, ao que parece sóconheceram a melodia, ao mais com os naturais recursos de uníssonos, oitavas,terceiras e quintas. Por isso ainda continuamos dizendo que a música, artematemático-psicológica de bem combinar os sons e o tempo, é o meio mais segurode despertar puras emoções, intensos sentimentos, idéias transcendentes, nobres eaté heróicos propósitos, e, enfim, toda a avassaladora policromia do sublime,principalmente se, se associa com outros elementos integradores da expressãoartística.

Nada mais certo que isto, mas é muito possível, entretanto, que tenhamosdesatendido a verdadeira gênese psicológica e até ocultista que preside à criaçãomusical. O compositor inspirado é, com efeito, um mago, um Prometeu (em grego,Προμηθεύς "premeditação"), que em seus delíquios artísticos, em suas evocações aoideal transcendente, no paroxismo, enfim, de suas dores e de seus esforços comohomem, roubou aos céus da Beleza uma jóia mais de seus tesouros inesgotáveis,para dá-la a seus semelhantes. Quer dizer, que a sucessão de notas da composiçãomusical inspirada não é mais que a casca envolvente daquelas emoções que, emanálogas circunstâncias e não de outro modo, podem assim ser transmitidas aoutros, através do espaço e do tempo, mas que, em realidade, exigem para suadevida apropriação pelos ouvintes, repetimos, o germe ao menos de estadossemelhantes aos que presidissem à criação musical... Triste destino o docompositor, obrigado a amassar sua obra, para que seja fecunda, com pedaços deseu próprio coração, ao par que com o intenso esforço de suas próprias idéias,cumprindo a custa de si mesmo aquele preceito de Horacio do si vis me flere...!

A vida nos oferece diariamente múltiplas corroborações desta gênese dopensamento-emoção causado pela música. A menos que evoquemos nossopassado, notaremos com surpresa que todo momento psicológico dele está ligadocom um fragmento musical, concordem ou não com ele, mas absolutamenteidentificado com ele por misteriosas leis de associação nascidas da fada fantasia, atéo ponto de que tantas vezes como voltamos a ouvir aquela música outras tantasbrotarão do fundo de nosso inconsciente aquelas lembranças, como se as cenasantigamente vividas por nós tivessem, por estranha conexão organo-psíquica, umaligadura, um esqueleto, um fundo de quadro naquelas fugazes notas da música.Deixemos aos capacitados para afundar neste imenso mar de nosso inconsciente atarefa de esclarecer as causas internas de semelhante fenômeno. Nós o trouxemosunicamente a conto porque esta secreta lei é a que, em sentido inverso, preside atoda a obra musical de Wagner. Nela, com efeito, cada situação cênica, cadapersonagem da obra está caracterizado por um leitmotiv ou motivo musical típico,até o ponto que pressentimos virtualmente a aparição de cada personagem e aíndole da cena que se aproxima desde que soam as primeiras respectivas notas na

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orquestra, existindo assim, como é sabido, o motivo, por exemplo, dos elementosprimitivos do Cosmos: água e fogo; o motivo da Mãe-Terra; o da Renúncia, oAmor, a Redenção e o Aniquilamento, o do Ouro do Reno, os dos deuses, oshomens, os gigantes, os anões, as ondinas, etc., etc.

Em outros termos, o colosso de Bayreuth realizou à inversa, até nos maismínimos detalhes de sua obra musical, a lei a que nos referimos, porque, assimcomo na vida associamos inconscientemente os fatos dela às notas musicaisouvidas ao acaso naquele momento, na obra de Wagner se associamconscientemente sempre determinados motivos musicais a cada situação da vidacênica que com eles vai se produzir. Inútil é acrescentar que à eleição desemelhantes motivos musicais presidiu, além disso, uma seleção de profundatécnica musical, a par de uma prodigiosa intuição filosófico-artística, contribuindomais e mais para consolidar o laço entre a frase musical e a idéia pela cenarepresentada. Assim, por exemplo, toda cena que de longe ou de perto roce com anatureza, aparece apoiada no divino motivo dos elementos primitivos, sem prejuízode associar a ele, dentro do glorioso acoplamento que permite a ciência moderna daharmonia, todos outros motivos relacionados com ela, e este é sem dúvida um dosméritos maiores da concepção wagneriana, porque neste entrecruze de diversosmotivos parece viver-se todo o entrelaçar penelópico das opostas idéias que a cadainstante lutam em nossa existência.

A música, que até os dias de Wagner foi uma arte nativa, tão formosa comovaga e indefinível pela própria amplitude de sua abstração mesma, passa a ser assim,bem empregada, uma arte didática mais concreta, uma arte auxiliar, por dizê-loassim, da filosofia e de suas múltiplas derivações de exposição ideológica, porque aferida emotiva que deixa de modo indelével em nosso inconsciente é a par oarraigar-se para sempre de uma idéia fundamental, de um ensino: aquela mesmaidéia ou ensino que o compositor-filósofo quis gravar na mente de seu auditório. Oque outro contido real tem, por exemplo, dentro de seus inevitáveis egoísmos,chamado-los hinos nacionais ou os ares regionais, alguns de tão muito remotaorigem pré-histórica como o Gerni-kako-mastreia basco ou os cantos norsos,bretões, gaélicos ou andaluzes e a infinita variedade de fados, jotas, baladas,malagueñas, etc., etc.? A alma inteira dos povos parece ter cristalizado neles paraperpetuar-se assim através dos séculos.

Por isso, Iniciados como Pitágoras deram tão suprema importância à músicaque, com os hinos órficos e védicos primitivos, é provável fosse a alma inteira dosMistérios pagãos. O bardo ambulante, as Valas, Veledas e Woluspas nórdicas, orecitador grego que, ao som da harpa ou da lira, cantasse homérica epindáricamente as façanhas dos deuses e os heróis, o trovador medieval, todosaqueles, enfim, que associassem a uma melodia musical uma concepção mítica oupoética, fizeram o que hoje com análogo vigor realizou Wagner: gravar com letrasde fogo em nossos corações e nos de nossos sucessores enquanto o mundo sejamundo, os incompreendidos ensinamentos da lenda e do mito, esse arquivo daciência tradicional, que compreende e encerra, segundo Platão, a Religião, a Ciência

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e a Arte tudo junto.Estabelecendo assim o vínculo secreto que em todo momento pode unir

uma idéia ou um sentimento com determinada composição musical, o corolário ésingelo: a música, como todos nossos meios científicos ou artísticos de expressão, éuma arma de dois fios, e se uma música canallesca, da que tanto abunda hoje pordesgraça, pode ser um instrumento mais de depravação em ouvidos pecadores, umamúsica transcendental como a de Wagner ou seus precursores, cuja verdadeirafiliação nos levaria muito longe, constitui o meio - mais prodigioso que pode idear-se para estereotipar aos mais altos ensinamentos em prosa ou verso, e se estesensinamentos são, por exemplo, as da Filosofia Tradicional das Idades, por outronome Ocultismo, a maneira musical de apresentá-las associadas integralmente àsinfinitas seduções da cena constitui uma verdadeira Magia, paralela, quando nãoidêntica, a que nos diz foi empregada durante a representação dos Mistérios hácentenas de séculos.

Não se trata aqui de ponderar uma vez mais os méritos técnicos e emotivosda música wagneriana, demasiado conhecidos já pelos verdadeiros escolhidosmusicais, classe que aumenta cada dia, nem tampouco de demonstrar aTranscendência do vínculo que pode ligar em uma síntese suprema a essa trilogiada Idéia, o Sentimento e a Harmonia, mas sim de evidenciar, pela análise mesmados argumentos das obras de Wagner, e muito especialmente do Anel do Nibelungo,ou seja, sua Tetralogia, quão oculto raizame filosófico se encerra nela. Seobtivermos isto, ficará plenamente justificado o título deste trabalho, que quer verna epopéia musical, impropriamente chamada "Drama lírico", que com tantasolenidade se representa anualmente nos "Festivais de Wagner", o começo de umapossível ressurreição nada menos que dos Mistérios Antigos.

Perdoe o leitor se à magnitude da empresa não corresponde nem de longe ainsuficiência do que, por imperativo categórico de um dever de investigador, vê-seobrigado a tentá-la. Nos mitos das obras de Wagner, com efeito, acham-secompendiados os mais valiosos tesouros da Filosofia tradicional, com toda aprofundidade de conceito que ela tem e que não foi devidamente compreendida atéhoje.

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CAPÍTULO IIA MAGIA E OS MISTÉRIOS INICIÁTICOS

O que poderiam ser os Mistérios Antigos? - Seus ensinamentos noturnos -Doutrina do Evangelho - As orgias pitagóricas e os fatos maravilhosos - ONormando e os Mistérios da Magia Caldéia - Como o homem cria, a imagem daDivindade que pulsa nele - Doutrinas de Jâmblico, de Apolônio, de Bautista Porta eoutros - Como morreram Numa, Sócrates e Juliano - Plínio e os Druidas -Ensinamentos de Heródoto e de Blavatsky - Como e por que a Religião Primitivase fez secreta. Gnósticos e filaleteos de todos os tempos - Os bardos - O luminárioiniciático da Grécia e Roma - Glórias perdidas da idade Média - O Drama teológicoe seus autos Sacramentais - Tempos modernos - Intuições de Gluck e de Weber.

Mistério, segundo a tradição e a etimologia, é "toda coisa oculta, ou melhor,sacra, que não pode ser entregue à todos, porque certamente a profanariam".Designaram os povos antigos com este nome, as Orgias sagradas de Samotracia edos Cabires, das que se ocuparam Pausanias em seu Bocoticis e Apolônio em seusInterpres. Havia Mistérios maiores e menores. Os menores se davam no Eleusiscada cinco anos e deles trataram os cristãos Eusébio e Clemente da Alexandria 1.Havia-os também em vários outros países, até o ponto de que não houve povoproto-histórico que não os tivesse. O Mysterium latino é o grego Teletai, ou perfeiçãoem sabedoria e conduta, e esta palavra vem por sua vez, de Teleuteia ou Morte, semdúvida porque a morte é a suprema e mais misteriosa síntese da vida e porque emnossa vida física de bestas mais ou menos sentimentais e racionais, um só é ocaminho para a inefável verdade da morte, em que, como nas cerimônias dosMistérios, acaba, ao fim, a mentira da vida comum. As regras dos ditos Mistérioseram guardadas geralmente em segredo para os profanos, com o piedoso fim deque eles, por carecer do devido freio para suas paixões, não aumentassem osestragos destas com os conhecimentos superiores obtidos na iniciação que com osmesmos se recebia, à maneira como certos secretos, o do sexo entre eles, não se dáaos impúberes, para não lhes abrir antes de tempo os olhos, até que a evolutivarealidade da vida os abra quando já tiverem desenvolvido convenientemente arazão, contrapeso natural contra os infinitos riscos que do sexo provêm.

As mais sublimes cenas dos Mistérios tinham lugar de noite sempre. A vidado espírito interno é a morte da natureza exterior; e a noite do mundo físico denota

1 "Furte digo Liberum cum Semele natum, non eum, quem nostri majores augustae, santequeLiberum cum Cerere, et Libera covecraverunt, quod quale fit, ex-mysteriis intelligi potest, diz delesCícero no livro II Do Naturae, capítulo 24, e no livro II, cap. 14, De legibus, acrescenta:"Essência ergo aget Iacchus, Eumolpidaeque vestri et augusta illa mysteria, se quidem sacranoturna tollimus? E mais adiante acrescenta:“Nam mihi cum multa exímia, divinaque videnturAthenae tuae peperisse, atque in vitam hominum attulisse, tum nihil melius mysteris, quibus ex-agresti, immanique veta exculti ad humanitatem, et mitigati sumus”.

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o dia no espiritual. Dyonisus, o sol da noite, foi por isso adorado com preferência aHélio, o sol do dia, porque como disse Castelar falando da "Morte e os mortos", umdia eterno na Natureza, como um dia eterno no homem, isolar-nos-iam, o primeiroda Criação, e o segundo do Criador. Nos Mistérios se simboliza a condiçãopreexistente do espírito (νσμs) e da alma (θνμσαδα); a queda desta na vida terrena noHades (a Hela escandinava; a região de Perséfone ou mundo sublunar), as misériasdesta vida, a purificação da alma e sua restituição à divina bem-aventurança, ou seja,sua reunião com o espírito... Platão denomina epopéia, ou visão pessoal, àcontemplação perfeita das coisas que por intuição aprendemos na Iniciação dosMistérios, que são já verdades e idéias absolutas.

"A vós - diz Jesus a seus discípulos no capítulo XIII, V. 11 e 13 de SãoMateus - lhes foi concedido o privilégio dos Mistérios do Reino de Deus; mas a eles-ao vulgo dos poloi de Platão - não lhes é permitido. Por isso lhes falo por meio deparábolas, para que vendo, não vejam, e ouvindo, não ouçam." Uma obra inteira emuito formosa tem escrito a senhora Annie Besant a respeito de "O cristianismoesotérico e seus mistérios menores", onde o leitor poderá convencer-se daexistência das representações semi-teatrais, chamadas Mistérios entre cristãos,como entre pagãos, e ver numerosos detalhes a respeito das iniciações cristãs nosprimeiros séculos de nossa era.

Os bons léxicos latinos normalmente trazem indicações valiosas a respeitodos Mistérios menores do paganismo, nos que o Mysta ou Mystes presidia àssagradas orgias noturnas do culto mistagógico, onde, sem apartar-se da lei natural,porque nada tem de sobrenatural no Universo senão simplesmente dedesconhecido ou oculto, realizavam-se admiráveis operações mágicas às quedenominou milagres o vulgo.

Os Miraculum 1 ou seja, prodígios, não eram em modo algum o que oscristãos chamaram tais milagres, ou seja, supostas suspensões de leis naturaisimutáveis, senão o itinerário menor (o minusque iterum do livro 25, cap. VIII de Lívio).A envolvente externa ou casca dos sublimes ensinamentos nos Mistérioscomunicada. Por isso diz Hargrave Jennins em sua obra Os Rosa-Cruzes e seusMistérios, que "as clássicas práticas iniciáticas dos Mistérios gentis e seus múltiplosensinamentos podem ser todas reconciliadas entre si e com as hebréias e cristãs eharmonizadas em um só tronco sintético: a Magia Eterna".

Tempos virão - e por acaso não estão eles muito distantes - em que sobre abase da obra musical moderna, que começou com Bach, Haydn e Haendel eculminou com o Mozart, Beethoven e Wagner, restaurem-se os sepultadosMistérios iniciáticos da Antigüidade, com a nova linguagem universal da música e a

1 Miraculum, miraculi em singular. Miraculae em plural, que não tem que confundir-se com aMiracula: ae da má magia, "a meretriz de disforme face"; o monstro pavoroso, de que falamtambém os léxicos latinos: a Besta Bramadora, enfim, dos Livros de Cavalaria. Todo prodígioproduzido sem espiritualidade ou com intenção egoísta, é má Magia, separada da boa, como dizBlavatsky, só por um simples mau pensamento de injustiça ou de egoísmo.

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velha linguagem do símbolo, em meio de gigantescas representações dramáticas, deque são uma divina antecipação essas quatro pedras fundamentais de Tristão e Isolda,O Anel do Nibelungo, Os Mestres Cantores e Parsifal, pedras tiradas da grandepedreira iniciática que fora cegada no Oriente mediterrâneo pela barbárie militar deAlexandre; no Ocidente, pela de César, e na América, pela de Cortês e de Pizarro;mas cujo fogo arde secreto ainda em espera que povos mais cultos que os nossoslhe reanimem.

A existência da moeda falsa, diz H. P. Blavatsky, pressupõe a da legítima, eas degradações puníveis que se conhecem com o nome de magia, hoje supõemtambém a existência da Magia como ciência pura e excelsa por antonomásia. Estamagia, superior conhecimento das leis naturais, rodeou sempre às representaçõesdos Mistérios pagãos e várias vezes citamos em obras anteriores as palavras doFrancisco Lenormant, quem no prefácio de sua clássica obra La magie chez lesCaldéens, et lhes origine accadiennes, diz: a história de certas superstições constitui umdos mais estranhos capítulos e a par dos mais importantes do espírito humano emseus desenvolvimentos. Por extravagantes que tenham podido ser os sonhos damagia e da astrologia, por longínquas que encontremos hoje, graças a nossoprogresso científico, as idéias que as inspiraram, elas exerceram sobre os homens,durante longos séculos e até uma época muito próxima a nós, uma influência muitoséria e decisiva para ser menosprezada por quem se dedique a escrutinar as facesdos anais intelectuais da Humanidade. As épocas antigas mais excelsas aprovaram aseus prodígios. O império das ciências ocultas, herança da superstição pagã,sobrevivendo ao triunfo do Cristianismo, mostra-se todo-poderoso na IdadeMédia, até que a ciência moderna conseguiu dissipar os enganos. Uma aberraçãoque dominou todos os espíritos durante tanto tempo, até dos mais nobres eperspicazes; da qual não se livrou nem a própria filosofia em certas épocas, taiscomo a dos neoplatônicos alexandrinos, quem lhe deu posto de honra em suasespeculações, não deverá jamais ser excluída com desprezo do quadro geral dasidéias e de suas evoluções: "A Magia que conhecemos não é mais que a combinaçãoda antiga religião turânia com o mazdeísmo, sobre quem exerceu uma influênciaconsiderável, e por isso a Media foi sempre turânia de alma e de costumes." "AMagia, enfim, diz Plínio, é um dos assuntos em que convém fixar bem osconceitos." O título de mais enganosa das artes, gozou de maior crédito entre todosos povos e durante todos os tempos; não é de sentir saudades, pois, o supremoinfluxo por ela adquirido, toda vez que sintetizou em si as três artes supremas oumais poderosas sobre o espírito humano. Nascida da Medicina - da Matemática,diríamos nós - é indubitável que, sob o pretexto de cuidar de nossa saúde, foideslizando algo assim como outra medicina mais Santa e profunda. Em segundolugar, às mais sedutoras promessas uniu a mola impulsora da religião, problemasobre o qual o gênero humano andou sempre às cegas. Por cúmulo, à magia seincorporou a arte astrológica, e é indubitável que todo homem está ansioso porconhecer seu futuro e suspeita que tais conhecimentos podem deduzir-se com amais rigorosa exatidão dos céus mesmos. Assim, encadeando os espíritos pelo ditotriplo laço, a magia se engrandeceu até o ponto de que até hoje em dia prevalece

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sobre um grande número de povos e manda em Oriente até aos reis dos reis: ut et inOriente regibus imperet." Plinio, Historia Nat., Cap. XXX, págs. 1 e 4 do tomo II; pág.322 da tradução de Littré.) E no livro IV, cap. XXII ao XXIV, pondera Plínio àMagia em seu profundo e sugestivo alcance científico e moral, já que "homenscomo Pitágoras, Platão, Empédocles, Demócrito e cem outros o tiveram queabandonar tudo por ela, até o mais querido, cruzando os mares e terras maislongínquos para iniciar-se nela, e sendo, por causa dela, em todas partes desterradose perseguidos".

Fazemos estas citações, que poderão considerar-se pouco pertinentespossivelmente, para demonstrar que a Magia, em grau superior a nossas artes atuaisnascidas de nossa ciência, podia contribuir com seus estranhos quanto naturaisprodígios a operar o encanto, a total absorção hipnótica de todos os sentidos,durante a representação do Mistério, deixando assim livres e sublimadas asfaculdades superiores do homem, qual hoje, como sempre acontece com todas assugestões dos narcóticos, a cena ou a palavra eloqüente e, em geral, de tudo quepossa adormecer a nosso ser inferior, despertando ao anjo que dorme em nossoInconsciente.

Como Deus cria, diz sabiamente ‘Ísis sem Véu’, de Blavatsky, assim cria ohomem, empregando, com efeito, uma intensidade volitiva suficiente. As formascriadas pela imaginação passam a ser subjetivas e se chamam alucinações, emborapara seu criador sejam tão reais como para qualquer o são os objetos visíveis.Concentrando mais intensa e inteligentemente a vontade, as formas se concentramtambém até chegar a fazer-se objetivas e visíveis. O homem que assim aprendeu osegredo dos segredos é um Mágico (Ísis, I, 123). O materialista não pode objetarnada a isto, porque considera o pensamento como matéria. Concedendo-lhe oengenhoso mecanismo imaginado pelo inventor, as cenas fantásticas nascidas nocérebro do poeta, a brilhante obra grafite pela imaginação de um artista, aincomparável estatua cinzelada no éter pelo escultor, os palácios e castelosconstruídos no ar pelo arquiteto, todo ele, embora subjetivo e invisível, deve existir,porque os constitui matéria formada e moldada 1. Quem poderá dizer, pois, quenão existam homens de vontade tão irredutível que não possam arrastar estes vagosdesenhos da imaginação ao mundo visível, envolvendo-se na dura casca dasubstância grosseira para fazê-los tangíveis? Semelhante homem é um mágico semdisputa.

Apolônio e Jâmblico sustentam que "não do conhecimento das coisas exteriores, massim da perfeição da alma interna, ensinada nos Mistérios, depende o império do homem que aspiraa ser mais que outros homens” 2. Assim chegaram eles, graças aos Mistérios, até umconhecimento de sua própria alma semelhante ao que dela possuem os deuses. Dos

1 Matéria astral, verdadeiramente.2 Bulwer-Lytton, "Zanoni".

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poderes mágicos conseguidos por este modo faziam um uso altruísta com toda asabedoria alcançada pelo estudo esotérico da ciência hermética herdada de seusantepassados. Um provérbio persa diz: "quanto mais obscuro está o céu, tanto maisbrilham as estrelas". Assim no negro firmamento da Idade Média começaram aaparecer os misteriosos Irmãos da Rosa-Cruz que tinham, como os templários, seusMistérios iniciáticos. Não formavam associações nem construíam colégios;perseguidos em todas partes como bestas selvagens, quando caíam em mãos daIgreja eram queimados sem escrúpulo. Muitos destes místicos, por seguir o queensinavam alguns manuscritos conservados secretamente de geração em geração,realizaram descobrimentos importantes que ainda em nossos dias de ciências exatasnão seriam desprezados. Roger Bacon pertencia de direito, senão de fato, à ditaFraternidade que compreende a quantos estudam as ciências ocultas aprendidas nosMistérios. Na história legendária deste frade, como na antiga comédia do RobertGreen, diz-se que tendo sido levado diante do rei lhe pediu "que mostrasse algo de suaciência mágica ". Bacon agitou sua mão, e imediatamente "ouviu-se uma música tãoadmirável que não havia jamais ouvido outra igual nenhum dos presentes". Agitou de novosua mão, e "subitamente se difundiu um tão delicioso perfume como se todos os mais ricos edelicados do mundo houvessem sido preparados pela arte mais suprema"... Comentando oanterior, observa T. Wrigtt em suas "Narrações de Bruxaria e Magia", que tais feitoseram o provável resultado de um conhecimento superior das ciências naturais,postas todas à contribuição nos ritos dos Mistérios como sempre tem sustentado osherméticos, magos, astrólogos e alquimistas, e não é sua culpa o que as massasignorantes tenham atribuído todos estes fenômenos à influência de um discutíveldiabo. Em presença das horríveis torturas com que a Inquisição castigava a todosaqueles de quem suspeitava que se dedicassem à magia negra ou à branca, não éestranho que estes filósofos não fizessem demonstrações de seus poderes nemdessem a conhecer sequer que os possuíam nem celebrassem seus Mistérios. Pelocontrário, seus próprios escritos provam que para eles a magia "não é mais que aaplicação das causas naturais ativas às coisas passivas ou sujeitas, por meio dasquais se produz com efeitos terrivelmente surpreendentes, mas, entretanto,naturais”.

Bautista Porta, em sua Magia Natural, cataloga as fórmulas para produzirefeitos extraordinários pelo emprego dos poderes ocultos da Natureza. Embora os"mágicos" acreditassem com tanta fé, como os modernos espíritas, em um mundode espíritos invisíveis, nenhum deles pretendia produzir seus efeitos por meio desua direção ou com apenas sua ajuda, porque tais práticas são genuínas da MagiaNegra. Sabiam muito bem quão difícil é reter as criaturas elementais uma vez quelhes tenha aberto a porta. A magia dos antigos caldeus, como a magia incipiente denossa ciência moderna, era um profundo conhecimento dos poderes doselementos. Unicamente quando o adepto desejava o auxílio divino em assuntosespirituais ou terrestres, era quando devia comunicar diretamente por meio de ritosreligiosos com as puras essências espirituais. Todos estes espíritos que permaneceminvisíveis e que comunicam com os mortais, despertando seus sentidos internos

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como na clarividência, clariaudiência, inspiração e êxtase podiam ser evocados poreles só subjetivamente, e como uma conseqüência da pureza de sua vida e da prece.Os homens que possuem tais conhecimentos e exercitam estes poderespacientemente, trabalham por algo superior a vangloria de uma fama passageira.Sem procurá-la, obtém a imortalidade, essa imortalidade que alcançam sempreaqueles que trabalham para o bem de uma raça, esquecendo-se de si mesmos.Iluminados pela luz da verdade eterna, estes rico-pobres alquimistas fixavam suaatenção nas coisas que permanecem além da visão comum, reconhecendo só comoinescrutável a Primeira Causa sem encontrar nenhuma outra questão comoinsolúvel. Atrever-se, saber, querer e guardar silêncio, era sua regra constante; o sercaridoso, não conhecer o egoísmo e carecer de ambição, eram neles espontâneosimpulsos. Desdenhando os proveitos do comércio mesquinho, as riquezas, o luxo,a pompa e o poder mundano, sua aspiração era a ciência como a mais satisfatóriade todas as aquisições. Consideravam a pobreza, a fome, o trabalho e os mausentendimentos dos homens como coisas sem importância ante o lucro de seusideais. Eles que podiam ter dormido em régios leitos consentiam em morrer juntoaos caminhos e nos hospitais antes que envilecer suas almas satisfazendo a profanaavareza de todos aqueles que tentavam triunfar de seus votos sagrados. As vidas deParacelso, Cornélio Agrippa e Philaletes são muito bem conhecidas para querepitamos a antiga e triste historia 1. (Ísis, I, 131.)

1 Os indiscutíveis encantos da chamada vida boêmia (tomada na muito alta significação da lendado Judeu Errante, não na degradada e viciosa em que se tomou pelos poetas decadentes) têm umaimensa e oculta relação com este ponto. Encerrado o homem em triste cárcere de barro, comoinsígnia Platão, e com ela encadeado a um pequeno raio terrestre, o espírito humano nunca é maislivre relativamente que quando viaja e "percorre mundo". Embora a vida sedentária, oculta eretirada dos homens é um grande auxiliar da Magia, esta vida está acostumada ter um esplêndidoprólogo nas viagens de grande raio que de ordinário precedem como vemos no H. P. Blavatsky, e,em geral, em todos os grandes homens, vizinhos já aos Portais da Iniciação.

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Juliano - diz Blavatsky - morreu pela mesma causa que Sócrates. Ambosdivulgaram, um consciente e outro inconscientemente (pois o sábio grego não erainiciado)1, o sistema heliocêntrico que formava parte do mistério solar que seensinava durante a Iniciação. Neste mistério não se velava precisamente overdadeiro sistema solar, senão o que se referia à constituição do Sol. Sócrates foicondenado à morte por juizes terrenos e mundanos; Juliano morreu violentamente,porque a mão que até então lhe tinha protegido lhe retirou seu amparo, deixandoentregue à seu destino kármico. Para o estudante de Ocultismo há uma muitosugestiva diferença entre os dois gêneros de morte. Outro memorável exemplo dainconsciente divulgação de segredos relativos aos mistérios oferece o poeta Ovídio,que, como Sócrates, tampouco estava iniciado. O imperador Augusto, que assim oera, comutou-lhe misericordiosamente a pena de morte pela de desterro a Tomos,no Ponto Euxino. Esta repentina mudança do até então ilimitado favor imperial,serviu de tema à especulação dos eruditos não iniciados nos Mistérios, quem citapassagens do próprio Ovídio para insinuar que o poeta se inteirariainvoluntariamente de alguma grave e odiosa imoralidade do Imperador. Entretanto,ignoram que a revelação aos profanos, de qualquer parte dos Mistérios, trazconsigo a pena de morte, e em vez de estimar em seu verdadeiro valor omisericordioso ato de Augusto, aproveitaram-se dele para desfigurar seu carátermoral. As palavras do poeta não constituem prova, pois não era iniciado e não lhepodia explicar qual era sua culpa. Há exemplos comparativamente modernos depoetas que em seus versos revelaram parte do conhecimento oculto, de modo queos mesmos iniciados lhes supuseram companheiros deles, e lhes falaram do assuntorevelado. Isto demonstra que a sensibilidade poética se transporta além dos limitesdos sentidos ordinários, até ver o impresso na luz astral.

1 Para nós há dois Sócrates. Um, o personagem histórico que bebeu a cicuta, e o outro, o simbólico,o dos Diálogos de Platão, que em sua cabeça punha sempre os ensinamentos de seu próprioMestre, ao que aludia, portanto, daquele modo velado.

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Na Luz da Ásia há duas passagens cuja leitura sugeriria a qualquer iniciadode primeiro grau a presunção de que Edwin Arnold, autor de dita obra, era iniciadonos mistérios himalaios e, entretanto, não era assim 1.

Como Wotan fazia brotar o fogo sagrado mágico ao velar entre encantos emistérios o divino corpo da Walkyria Brunhilda, assim os sacerdotes hebreusfaziam brotar também o fogo sagrado nos Mistérios que celebravam no templo.Muito curioso é, a este tenor, a passagem do capítulo I, livro II, dos Macabeus, quetranscrevemos no capítulo IV do tomo II desta Biblioteca (De Gente do outroMundo).

Os druidas, sacerdotes dos celtas, praticavam, ao dizer de Plínio, a Magia eos Mistérios em suas profundas criptas, conforme comprovam também César ePomponio Mela. Os das Gálias, como os da Espanha, em cem cavernas pré-históricas, cujo verdadeiro objetivo e cujas pictografias que recordam às doscódices Maias, são hoje o desespero dos arqueólogos, ensinavam os segredos doUniverso, o harmonioso progresso dos corpos celestes, segundo a doutrina

1 Além das citadas obras de Blavatsky, "Ísis" e "A Doutrina Secreta", e de A. Besant, "OCristianismo Esotérico e os Mistérios Menores", existe no Ocidente uma bibliografia, se nãomuito abundante, ao menos escolhida, a respeito destas obscuras matérias. As principais obras quepode consultar o leitor que não se satisfaça com os presentes apontamentos, são as seguintes:Diálogos de Platão, tradução do B. Jowett, mestre de Oxford (embora estreita e cretina);Alexandre Wilder, Neoplatonismo e Alquimia; M. J. Matter, mestre do Estrasburgo, Historiacrítica do Gnosticismo; Estanislao Julién, Viagem dos originais budhistas, Memórias daSociedade de Antiquários da França, em especial os artigos de Müster; Diógenes Laertio, Vidado Demócrito; Glauvil, Sadducismus Triumphatus; Creuzer, Introdução aos Mistérios báquicos eeleusinos; Hargrave Jenings, Falicismo; Cory, Fragmentos antigos; São Clemente da Alexandria,Stromateis; Alyer, Cabala; Piazzi Smith, Origem das Medidas; Eliphas Lévi, Dogma e Ritualda Alta Magia e História da Magia; Ragon, Ortodoxia Maçônica, Maçonaria) Oculta e FastosIniciáticos; R. H. Mackenzie, Real Enciclopédia Maçônica; o Arcebispo Laurente, O livro deEnoch; obras de Kircher e de Cornelio Agrippa; Arnaldo de Vilanova, Glossário filosófico;Raimundo Lull, Ab Angelis Opus Divinum de Quinta Essentia; Árias Montano em todas suasobras, especialmente em seu Opus Magnum; Francisco Arnufi, Opus de Lapide, TABUAEsmeraldina e Transmutação dos metais; Fabre d'Olivet, em suas numerosas obras; JuanMeursius, Denarius Pythagoricus; Taylor, Mistérios eleusinos e báquicos; Amadeo Fleury,Analogias entre São Paulo e Sêneca; Pneumatología, obra de ortodoxia católica, pelo Marquês DeMirville; Lampridio, Adriano; Vida de Apolônio da Tyana, pelo Filostrato; King, Os gnósticose seus sobreviventes; Ralston Skinner, Simbolismo; o cristão autor Seldeno, em seu Paganismo eJudaismo; o Dr. Carpenter, em seu estudo sobre O Livro dos Mortos, egípcio; Maimónides,Tratado da Idolatria; Kenealy, O Livro de Deus; Rossi, Roma subterrânea; Sinnett, OBuddhismo esotérico; as diversas versões e comentários do Talmud e demais livros religiosos;Bentley, Astronomia inda; Francisco Galton, Faculdades humanas, etc., etc.Mas a todas estas obras é preferível, para os Mistérios, a leitura direta dos clássicos gregos elatinos, quando, iniciado já o leitor nas idéias gnósticas, teosóficas e ocultistas, sabe ler já entredelineia em ditos clássicos antigos.

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heliocêntrica dos Mistérios, que se mantinha secreta para o vulgo; a formação daTerra, ao teor de ensinamentos que não desdenharia hoje nossa ciência geológica e,sobretudo, o que vale ainda muito mais, a imortalidade da alma e a séptuplaconstituição do homem, regendo a seu corpo físico, único visível, na mais perfeitaconcepção psicológica, que ainda hoje ignoram nossos sábios. Os iniciados druidas,coroados de carvalho, reuniam-se à luz da Lua para celebrar seus mistérios maiores,principalmente na Lua cheia – Páscoa - da primavera, quando tudo se dispõemagicamente a renascer sobre a Terra. Eles, enfim, por vias oraculares que nos sãodesconhecidas, mas que não fossem ao próprio Terah, pai de Abraham, com seuTerafin, nem aos magos, celebradores de Mistérios por todo mundo de então,conheciam, conforme repetidos autores, a maneira de ficar à fala com os seresastrais que povoam a face da rainha da noite.

Impossível falar dos Mistérios, sem copiar Blavatsky, quem em várias seçõesdo terceiro tomo d’A Doutrina Secreta nos informa extensamente a respeito deles.Para o Blavatsky, embora a aparição destas instituições seja objeto de tradiçãohistórica em relação às nações antigas, sua origem deve remontar-se aos tempos emque começasse a decadência atlante, quando já resultava perigoso comunicar aosperversos os segredos da Natureza. A Antigüidade deles pode coligir-se da dopróprio culto de Hércules nos Mistérios do Egito, porque, segundo Heródoto, "nãoera grego este deus Hércules, como afirmavam os sacerdotes saitas, senão um dosdoze deuses maiores, procedentes dos oito deuses originais, uns dezessete mil anosantes de Amasis", pois era o Bale-rama ou Bale-deva dos arianos (o filho da Walaescandinava), que aparece ora como Wotan, ora como Siegfried, na Tetralogia deWagner. Uma passagem do Mahabharata é dedicada à história de Hércules, eDiodoro Sículo nos ensina que nasceu na Índia, é o mesmo que na Grécia lherepresenta com pele de leão e clava. Krishna e Baladeva são senhores da raça kûlade Feri, e daqui Herikul-es ou, por contração, Hércules. Sabido é, por outra parte,que a infância de Hércules era uma das passagens mais curiosas das cenas ourepresentações dos Mistérios.

"Na idade de ouro atlante não houve Mistérios, porque "os homens não tinhamproduzido ainda o mal naqueles dias de felicidade e de pureza, pois sua natureza era mais divinaque humana", conforme ensinam sabiamente todas as religiões. Mas, ao multiplicar-se rapidamente o gênero humano, multiplicaram-se também as idiossincrasias decorpo e mente com todo seu cortejo de debilidades. Nas mentes menos sãs ecultivadas arraigaram exageros naturalistas e suas conseguintes superstições. Nasceuo egoísmo ao nascerem paixões e desejos até então desconhecidos - qual acontecedeste modo na puberdade do homem -, mercê ao qual a Humanidade abusou deseu poder e conhecimento tão freqüentemente, que, ao fim, foi preciso limitar onúmero dos conhecedores. Assim começou a Iniciação e assim começaram osMistérios, ocultando-se seus ensinamentos em cada país sob o Véu das diversasreligiões que foram nascendo sucessivamente. “A necessidade de encobrir a verdade pararesguardá-la de possíveis profanações se fez sentir mais e mais, e assim, o véu, tênue ao princípio,foi fazendo-se cada vez mais denso, até que, por fim, converteu-se em Mistério”. Estabeleceram-se estes em todos os povos, permitindo-se que nas mentes profanas arraigassem

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crenças esotéricas, inofensivos mitos, quais rosados contos de meninos, com suacaterva de deuses secundários, até que, já na quinta raça, ou ária, alguns sacerdotespouco escrupulosos se prevaleceram de seu saber em seu proveito egoísta. Desdeentão, as singelas crenças das pessoas foram objeto de tirania e exploração religiosa.Desde aquele dia, para salvar de contagio às verdades primitivas, elas foramabsolutamente reservadas aos Iniciados e tomaram carta de natureza Os Mistérios eseu cerimonial. "Dividamos para dominar", haviam dito aqueles ardilososperversos. “Nos unamos para resistir", responderam os Iniciados nos quatropontos cardeais do globo" 1.

Os Mistérios, como instituição sagrada, foram anteriores aos hieróglifos, quedeles emanaram como escritura hierática e oculta. Constituíram a primitivafilosofia, que serviu de pedra angular à moderna, e, como tal, embora não pareciaensinar ciência alguma concreta, nem dogmas, ritos nem disciplinas, era, por umlado, ciência de ciências ou polididáctica, e, por outro, a Religião natural porantonomásia, sem véus nem exoterismos. Os nobres preceitos que ensinaram osIniciados das primitivas raças se propagaram pela Índia, Egito, Caldéia, China,Grécia, os países ocidentais e América. Tudo que há de nobre e puro na naturezahumana, todas suas faculdades e aspirações divinas, foi fomentado, e seu código deética, apoiado no altruísmo, chegou a ser universal, como proclamação daFraternidade humana, único dogma digno de ser tido por tal desde o Confúcio,Buddha e Jesus até a Revolução francesa, com o qual, como Platão diz no Phedro,atribuindo a Sócrates: o homem iniciado está seguro de ir em companhia dos deuses.

Depois de ocupar-se a exímia autora "das provas do Sol-Iniciado" e de outrosinfinitos vestígios de Mistérios, que por sua extensão não podemos tratar aqui,ocupa-se do declínio dos mesmos no mundo até seu desaparecimento no Orientepela barbárie militar de Alexandre, e no Ocidente, pela de César. Sobre este últimoponto, o grande Ragón nos ensina que Alexis, a Tebas dos Celtas, a cidade da Cóte-d'Or, junto ao St. Reine, foi a tumba da iniciação druídica e da liberdade das Galias.Seu colégio sacerdotal inteiro foi degolado pelas hordas de César, e a cidadearrasada. Igual sorte coube ao Bibractis, a êmula de Menfis, Atenas e Roma, acidade que foi alma das primitivas nações da Europa, cujo colégio druida contavacom 40.000 alunos de Filosofia, Literatura, Gramática, Jurisprudência, Medicina,Astrologia, Arquitetura e Ciências Ocultas; cujo anfiteatro, circundado de colossaisestatuas, com capacidade para cem mil espectadores. Havia também seu Capitólio eos templos do Jano, Plutão, Proserpina, Júpiter, Apolo, Minerva, Cibele, Vênus eAnubis, com seus augustos e incompreendidos simbolismos. Suas muralhasciclopes como as de Arles e Tarragona, e, enfim, suas bibliotecas, com livros tãopreciosos como aqueles de Numa que se guardavam no Capitólio em sagradodepósito, em urna de pórfido, para ir a eles nos momentos de calamidades eperigos públicos, livros sibilinos que o Senado fez, ao fim, queimar, "porqueguardavam os segredos da religião estabelecida...", Nem mais nem menos que logoe sempre se realizasse sucessivamente por César, pelos cristãos e pelos árabes com

1 Doutrina Secreta, T. III, sec. 28, pág. 224 da edic. Espanhola.

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a Biblioteca da Alexandria, e com todo livro ocultista ou rebelde, pela Inquisição,pública ou oculta, de todos os países, depois de dar morte ou perseguir sem tréguaaos gnósticos ou filaleteos de todos os tempos.

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Sepultados os Mistérios arcaicos, sua doutrina sobreviveu nos bardos detodos os povos, espécie de músicos-poetas, a quem ainda foi lícito, sob o duplo véuda poesia e da música, continuar ensinando as mesmas doutrinas iniciáticas envoltasna roupagem da ficção poética. Seus sugestivos cantos, que arrastavam atrás delesàs hipnotizadas multidões, eram a Verdade da fábula a que aludimos na Introduçãodesta Biblioteca, Verdade retornada entre os homens sob a roupagem da Mentira erecebida com infantil aplauso por aqueles mesmos que antes rechaçassem aVerdade nua, já que sempre foi privilégio da divina faculdade imaginativa de todosos artistas, a de poder dizer onde quisessem, sem riscos persecutórios, todosquantos ensinamentos salvadores rechaçou eternamente em prosa nossa Bestapseudo racional.

Ao par que os bardos com seus cantos, seguiram sobrevivendo outrossimbolismos iniciáticos, tais como as danças sagradas, mímicas ou coros, das quetantos rastros ficam até hoje entre os povos selvagens, danças como as de bascos ecântabros pré-romanos; romances pantomímicos e gestos ou cantos heróicosfragmentários, como os que mais tarde compuseram sublimes epopéias sintéticas,poetas ilustres do tipo de Vyasa ou de Hornero, poemas coletivos e anônimoscomo os de nosso Romanceiro, com seus Arjunas, seus Aquiles e seus Cede.Aquelas festas, com efeito, como das bacantes romanas, foram sempre verdadeirasfestas de loucos, conforme as chamasse - em sua grosseira cegueira para todo seusecreto simbolismo, por muito degradado que ele já estivesse - o Concílio toledanodo ano 633. Pouco a pouco, e aproveitando os restos do teatro grego-Romano -outra instituição derivada das representações dos Mistérios, embora deles tivessema chave perdida -, formaram-se, em nosso país, qual em tantos outros, aquelasfestas cortesãs e cavalheirescas de antes do século XIII, que chamaram a atenção,com justiça, a historiadores como o conde de Schack 1, festas já muito complexas epomposas, com música, canto e aparelho dramático, sem lhes faltar nem ashistórias dialogadas e pantomímicas dos velhos histriões, nem os cantos religiososmais profundos.

Estes cantos religiosos, a sua vez, resto possivelmente o mais prezado dosque se empregassem nos Mistérios, conservou-os a Grécia em cantos ainda nãobem estudados, tais como os Hinos Órficos e Homéricos, o Ialemos, o Canto deAdonis, o Lino, o Scephos, o Lityertes, o Hornos, os Cantos cípricos, etc. A mesmaRoma conservou entre suas ruínas estes cantos, de onde os exumou o paciente

1 História da Literatura e da Arte dramática na Espanha, tomo I, tradução do E. Mier.

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trabalho dos arqueólogos modernos, como Klausen, Lanz, Grotefend, Marini eHermann. O monumento mais antigo deles é o Hino dos Irmãos Arvales, aFraternidade iniciática de Arba ou Árvore sagrada, exumado em 1778 na sacristia de SãoPedro, de Roma, e que começa com a célebre frase Enos lares juvate... Enos MarmorJuvato: Triumphe, triumphe! Sobre a qual tanto terei que investigar ainda 1.Semelhantes cantos oscos ou vasco-italianos, como os de nossa Vascônia, foram osverdadeiros antecessores da poesia e da dramática latinas em mãos de etruscos(heteroscos), sabinos, ausonios e ligures, antes que seus sábios clãs fossemavassalados pelas gente da má lei chamados úmbrios. Tais cantos, ou versos sálios aosque Varrón aludiu, vinham de uma Antigüidade muito remota ou quase atlante,prova-o o fato de que Quintiliano chegou a duvidar, como diz Cantú, de que osmesmos sábios entendessem seu próprio canto, nada estranho por outra parte,porque os próprios bardos irlandeses pagãos começavam sempre seus poemasdizendo que foram cantar as glórias de deuses e povos antiqüíssimos nos que já nãoacreditavam, ao modo de como nos acontece com o próprio paganismo e comaqueles versos sibilinos intraduzíveis conservados pelo Terencio Scauro (DaOrtographia), que dizem:

Cume Poinas Leucesiae Practexere MoutiQuolibet Cunei Do His Cunte Tonarem 2.

1 O enigma destas frases é grande, em que pese a seus cegos intérpretes. Seria demorado de contarpor que elas se relacionam com o Eno, ns, enan (sair da água nadando, como Quetzalcóatl, Jonas,Moisés e tantos outros Cabires); com o Enéias troyano, também "farelo de cereais das águas" emseus infinitos naufrágios, antes de poder fundar a Cidade-Eterna, e até com a Ennoea ou Ennoia,a "Mente purificada" dos ophitas, a Sophia gnóstica ou "Espíritu-Santo" flutuando sobre aságuas astrais. É muito curioso o observar deste modo o que todos os redentores tenham tido que serrelacionados em seus ocultos simbolismos com coisas lunares ou da água, como a Vesica-Piscis,signo que servia de mútuo reconhecimento aos primitivos cristãos. Para mais detalhe veja-se GenteDo Outro Mundo, último capítulo sobre O mistério dos jinas.

2 Em outro dos tomos desta Biblioteca, que consagraremos à escritura ogâmica, aos códices maias eaos numerais do Gaedil irlandês, estudaremos mais em pequenas quantidades o relativo arapsódias ou bardos e às primitivas doutrinas que eles cantavam em meio de gente pagãs já, e que,portanto, haviam já perdido tais doutrinas atlantes da remota época do esplendor daquele grandecontinente. Ali veremos os Tuatha do Danand e aos Firbolg, povos dos que nada sabe aindanossa pré-história, reproduzindo o argumento da epopéia indostánica e a grega, com caracteres quese aproximam dos de nosso Romanceiro, sem dúvida por tratar-se de gente galegas, galaicas ouornamentos que emigraram da Atlântida, como as de nosso país, e formando nele povos tãonumerosos que chamaram a atenção dos clássicos, como Estrabão, Diodoro Sículo, Heródoto eoutros muitos. Então se compreenderá quão sábia é a afirmação de Blavatsky, de que "aAtlântida seria o primeiro continente histórico se, se emprestasse mais atenção às lendas e tradiçõesdos povos".

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De entre os sempre tendenciosos e sectários ensinamentos de César Cantútiramos, entretanto, estas confissões que o transmontano historiador pôde fazer,dentro de sua ortodoxia:

O primeiro fundamento dos Mistérios foi o segredo, o qual se observou comtanto cuidado, que a curiosidade erudita não pôde descobrir nunca a respeito delessenão uma ou outra cerimônia exterior. Os Mistérios em honra do Demeter ePerséfone - ou seja, do Sol e da Lua, dizemos nós - foram recebidos peloseleusinos, que participaram exclusivamente deles, até que, vencidos pelosatenienses, tiveram que comunicar a estes suas cerimônias. Posteriormente foramos Mistérios comuns a todos os povos da Grécia, convertendo-se em um laço denacionalidade. Os homens mais ilustres em letras e armas desejavam ser iniciadosneles, pois sempre se conservaram limpos de contaminação, e o dia depois decelebrar se reunia o Senado ateniense para examinar se tinham introduzido nelesalguns abusos. Cícero os qualifica de "o maior benefício que Atenas tinha proporcionado aRoma, porque neles aprendia o homem, não só a viver contente, mas também a morrer tranqüilo,confiando em um futuro melhor" (De legibus, II). No Eleusis se cantava este hino aoOrfeu: “Contempla a natureza divina; ilustra seu entendimento; domina seucoração; caminha pelas vias da justiça”.

"Estas doutrinas se foram dando à medida dos graus, e nunca claramente,senão com certas fórmulas proverbiais e concisas que ficavam ininteligíveis para oshomens de mente pouco cultivada. Pausanias diz: "os sábios da Grécia encobriamseus pensamentos sob fórmulas enigmáticas, para não expô-los abertamente (VIII,Arcádia, 8), e que a concisão era o caráter do ensino religioso" (Beoz 30). SãoClemente da Alexandria, no livro V de seu Stromateis, acrescenta: "Todos osteólogos gregos e estrangeiros revelam as causas das coisas e ensinam a verdade pormeio de enigmas, símbolos, alegorias, metáforas e outras figuras semelhantes”.Heródoto venerava as orgias e Platão confessa: "Eu não me atrevo a alegar aqui adoutrina ensinada nos Mistérios, dado que no mundo estamos colocados em umposto e que não podemos lhe abandonar sem permissão." Quando o cristianismocombatia à idolatria, os defensores desta tratavam de vindicá-la, manifestando queas doutrinas ocultas eram distintas das vulgares. Olimpodoro, em um comentárioao Fédon, diz: "Nas cerimônias sagradas se começava pela purificação pública(καθαρσαι πανδμοι); depois vinham as purificações mais secretas (απο μρητοτεραι); emseguida aconteciam as reuniões (σνντασπ); depois, às iniciações (μνησαs), e, porúltimo, às intuições (εττοτττειαι). As virtudes morais e políticas correspondiam àspurificações públicas; as virtudes purificadoras que nos separam do mundoexterior, às purificações secretas; as contemplativas, às reuniões; as mesmas virtudessortes dirigidas à unidade, às iniciações; finalmente, a expressão pura das idéias, àintuição mística.

Por todo o exposto, pôde muito bem dizer Platão que "o objeto dosMistérios é levar as almas a seu princípio, ao estado primitivo, e ao final, isto é, àvida do IO-Pithar, de quem descenderam com Baco, que é quem as conduz. Demodo que o Iniciado habita com os deuses, segundo o grau de divindades que

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presidem aos iniciadores. Recebem-se duas classes de iniciação: as deste mundo,que são, por dizê-lo assim, preparatórias, e as do outro, que constituem ocomplemento das primeiras. A Filosofia e a Mitologia concordam. Quem se dedicaà contra gosto ao estudo da primeira não colhe frutos, quão mesmo o que nãopassa do grau vulgar da iniciação. Quando Sócrates diz que a alma está mergulhadano lodo, quer dizer que se abandona e cede a coisas exteriores, e, por dizê-lo assim,faz-se corpo; e quando diz que a alma é recebida entre os deuses, deve entender-seque vive do mesmo modo e sob as mesmas leis que os deuses mesmos".

A poesia cristã, ou, por melhor dizer, as dispersas inspirações provenientesdos restos dos Mistérios do Cristianismo, produziu - diz Revilla - notável númerode hinos religiosos de caráter semi-épico, semi-representável nos últimos tempos doImpério romano e em toda a Idade Média. Nos séculos III ao V, distinguiram-seneste gênero Atenágoras, São Clemente de Alexandria, São Gregório Nacianceno,Sinesio, São Ambrosio, São Gregório o Grande, Prudêncio, São Próspero,Fortunato, Orencio, Draconio, Juvencio, Clemente, Ausonio, Sedulioy, na IdadeMédia São Bernardo (1031-1153), Santo Tomam (1227-1274), São Sorte (1221-1274) e cem outros. Os povos nórdicos desenvolveram mais e mais as lendasreligioso-iniciáticas dos Eddas ou Veddas escandinavos, nas quais se inspirouWagner, e os povos mediterrâneos associaram seus restos de mistérios pagãos ecristãos na epopéia da Divina Comédia, tão apta para fazer dela um drama musical,como o próprio Fausto de Goethe em nossa época, tema épico-lírico este último,que não escapou à perspicácia nem aos projetos artísticos de Beethoven nem deWagner.O drama teológico, cópia degenerada da representação iniciática, existiu em todosos povos. A maior parte dos dramas hindus, como O Anel de Kalidasa, pode contar-se neste gênero. O Prometeu, de Ésquilo (que pôde custar a vida a seu autor), étambém um verdadeiro drama teológico. O teatro moderno nasceu neste gêneroartístico, como é sabido, com os autos sacramentais, mistérios e milagres, como osdramas alemães da monja Hrotswitha (S. IX) e a Dança da Morte, e foi levado àmaravilhosa perfeição, entre nós, por Calderon de la Barca, seguindo o brilhantecaminho antes traçado por Gómez Manrique, senhor de Villazopeque e tio dogrande Jorge Manrique, por Rodrigo de Cota, Fernando de Rojas, Juan de laEncina, Gil Vicente, Bartolomé de Torres Naharro, Lope de Rueda, Navarro,Cervantes, Agustín de Rojas, Pedro Navarro, os irmãos Correia, o CardealEspinosa, Francisco Rojas, O Mágico prodigioso 1 e outros dramaturgos célebres maisou menos contemporâneos do ilustre autor de A Vida é Sonho.

Nosso amigo D. Julho Milego, em sua linda obra O Teatro em Toledo durante os séculosXVI e XVII, detalha a gênese religioso-dramática de nosso teatro, apoiando-se no Masdeu,Schack, Méndez da Silva, Agustín de Rojas, Luis Cabrera, Lope da Vega, Cañete, AsenjoBarbieri, P. Mariana, Cervantes e outros. Os senhores Amador de los Rios, Ticknor, Dozy,Herder, Huber, Ochoa, Fernández Espino, Janer, ensinaram-nos, por outra parte, como todos osgêneros poéticos começaram sendo populares e lendários - como ecos dispersos de verdades antigas

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perdidas- e como a poesia lírica e a épica aparecem unidas na Antigüidade na cena de umaverdadeira dramaturgia, herdada, sem dúvida, dos tão repetidos Mistérios, e em que a idéiareligiosa transcendente, acima do cristianismo e do paganismo vulgares, dá lugar ao gênero literáriomais elevado de todos, não só por seus ensinamentos, mas também por constituir uma síntesesuprema de todos nossos meios de expressão artística, hoje agigantada por uma música que excedefacilmente a toda ponderação.Sobre as danças pode ver-se também o capítulo VI, terceira parte, do tesouro dos lagos deSomiedo.

Em mãos de muitos destes autores, entretanto, o drama religioso degenerouem paródias ou farsas, para dar origem ao gênero cômico e de sainete, profanoprotesto em mais de uma ocasião contra a degradação do gênero religioso que antesservisse para representar com o natural cortejo teatral de mímica, danças,ornamentos, canto e música os diversos mistérios cristãos, tais como o Natal, aEpifania, a Paixão de Nosso Senhor, a vida da Virgem Maria, as dos diversosSantos, a Eucaristia, etc., nos quais mais de uma vez aparecessem a malícia dasmímicas e atelanas pagãs que dessem glória aos hispano-latinos Porcio Latrón, seusdiscípulos os dois Balbos e os dois Sênecas, Floro, Juliano e Voconio, e que nãoforam desconhecidos para São Isidoro, o iniciado autor das Etimologias.

O auto sacramental é a mais genuína forma da ópera primitiva, seguida emnossa época por Gluck, Weber e demais precursores de Wagner, porque nele houvequase sempre música, e em sua ação alegórico-fantástica alternavam emesplêndidos conjuntos seres sobrenaturais super-humanos e sub-humanos, homense personificações míticas de idéias abstratas, constituindo verdadeiras epopéiasrepresentáveis, com as quais estavam estreitamente unidos os dramas simbólicos eas comédias de espetáculo e magia e até a própria tragédia de Thespis, gênerodramático grego assim chamado em suas origens, por causa das festas do Baco edos hinos religiosos ou ditirambos que se cantavam, dançando antes de sacrificarsimbolicamente um bode. A igreja, com os autos sacramentais, era um verdadeiroteatro, assim como hoje um teatro como o de Bayreuth, é um verdadeiro templo noqual nos iniciaríamos em mais de uma verdade oculta, se não fôssemos ainda tãorotineiros e positivistas, e no qual sem dúvida alguma terão que iniciar-se nossosnetos, quando a Mitologia comparada for develando mais e mais os altosensinamentos que se ocultam atrás dos mitos.

O elemento mais vital dos autos sacramentais, ou seja, a parte religioso-lendária, assim que eles degeneraram teatralmente com as peças e a comédia,passou muito em breve a outro gênero literário, de menos aparato exterior, e porisso de mais amplitude psicológica e sabor mais delicioso: a novela, que é o teatrodos que já "viveram a vida", e não se deixam deslumbrar pelas exterioridadescênicas. Esta tomou no século XIV e até antes a forma de Livros de Cavalaria,aspecto erudito das lendas pagão-cristãs, formadas, sobre elementos primitivos, noseio dos monastérios por anônimos monges, conhecedores muitos deles dastradições iniciáticas refugiadas no segredo de seus cenóbios. Disso, entretanto,

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assim como no sentido impresso a este gênero de idéias tradicionais pela Crônica dasfaçanhas dos filósofos e outros livros do renascimento arábico-oriental, não nospodemos ocupar aqui.

Por outro lado, a música da Antigüidade, albergada nos templos e em suasrepresentações teatrais do drama religioso, sentiu a necessidade de tender seu vôopor campos mais abertos, ao começar o Renascimento, e, portanto, se,degenerando este drama religioso nas frívolas peças, passou da igreja ao teatro,enaltecendo-se, seus elementos musicais cênicos passaram finalmente ao órgão eaté antes que este se fizesse comum nos templos, da igreja às câmaras dosmagnatas, aos instrumentos de salão, violões de preferência e harpas ao princípio,sem omitir os similares de tecla do órgão predecessores do cravo e as violas de arcoque, mais tarde vencedoras e autônomas, criaram o quarteto e o gênero de chave,dando lugar a essa casta música redentora que, despontando em Johann SebastianBach, culminou em Beethoven e em Wagner. Os elementos iniciáticos do autoreligioso, dispersos de novo ao decair este gênero, tornaram a reunir-se, através deum verdadeiro calvário de frivolidade de cantores de ópera e de árias amorosas, nodrama mítico tradicional que o grande Gluck soube ressuscitar com todo seuperfume de encantos e de lendas. Este novo horizonte é já, como se vê, o dosprecursores musicais de Wagner, e antes de nos ocupar dele em novos capítulos,precisamos falar da música como novo elemento entre nós, que já em nossos diasconstitui, por seu prodigioso meio de expressão, uma verdadeira linguageminiciática.

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CAPÍTULO IIIA MÚSICA, COMO LINGUAGEM INICIÁTICA.

O problema da linguagem nos Mistérios - Os quatro portais da Iniciação e alinguagem matemática de Aritmética, Geometria, Astronomia e Música - O ontemmusical e o hoje - P. Cesari e sua história da Música antiga - A Música e osescritores clássicos - As oito classes de instrumentos sonoros da China - O scié das50 cordas, ou o, o ken, a sauringa, a vina ou ravanastron, o djian, o ometri, etc., etc.Instrumental de egípcios, hebreus e gregos - Os modos ou tons clássicos e a lira -Música para Iniciados? - A fábula grega da Harmonia - Etimologias da palavramúsica - As primitivas danças - O poder hipnótico musical - Remédio das paixões econsolo de tristes - As obras de Cerone e de lhe Chorem - A Harmonia das Esferas- A Magia e a força do som - A lenda do Kung-tzeu - O leitmotiv wagneriano, comoalma de todas suas obras - O moderno papel da orquestra - As letras dospergaminhos hebreus são notas musicais - O devanagari ou sânscrito, língua dosdeuses - A Magia tântrica e mântrica - A antiga Harmonia musical da prosódiarítmica - A complexidade da métrica latina - As palavras e a musicalidade dosperíodos - Ensinamentos da Física - A música gráfica.

A transmissão dos segredos iniciáticos, grandes ou pequenos, aos candidatos,além dos elementos cênicos, teve obrigatoriamente que valer-se de uma linguagem.O problema da linguagem e suas origens é, pois, fundamental no estudo dosMistérios. Mas, qual pôde ser esta linguagem? Houve acaso nas origens, no berçoda Humanidade, uma linguagem única na qual fossem dados aos primeiros homensos elementos da Religião-Sabedoria ensinada nos Mistérios?

Em outros tomos desta Biblioteca veremos que assim foi: que existiu umalinguagem universal e sagrada na qual eram transmitidos aos discípulos os segredosda Iniciação. Hoje mesmo, entre o caos ou Torre de Babel das diferentes falas domundo, Max Müller pôde comprovar que existiram um tronco ario, um troncosemita e um tronco turânio comuns, a cujos três troncos se podem referir semexceção quantas línguas falaram, falam e falarão os homens ao longo da História.Dando por boa, pois, a classificação de Max Müller, que não o é em absoluto, assimcomo em seu lugar veremos, a possibilidade de uma linguagem universal primitivacomeça a desenhar-se na ciência do grande filósofo inglês.

Além desta linguagem universal perdida, que foi provavelmente simbólica ematemática, o homem possui ainda hoje mesmo uma linguagem universal: aderivada da Matemática e do número, até o ponto que da mesma forma quechineses e japoneses se entendam por escrito, não obstante ser diferente sualinguagem falada, porque seus sinais ou símbolos fonéticos são os mesmos naescritura, todos os homens podem entender-se, e de fato se entendem, qualquerque seja sua nacionalidade, mediante a Aritmética, pois, certamente, sejam quaisforem nossas raças, opiniões, tendências, história, etc., não há mais que um modouniversal de numerar, de somar, subtrair, multiplicar e dividir, quanto ao essencial

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destas operações se refere.Não falemos tampouco de cem outros elementos de comunicação não falada

ou não articulada entre os homens, verdadeira linguagem universal, como a dascores, a música, as onomatopéias e interjeições, etc. Basta para nosso objetivo, nomomento, consignar que a linguagem da Matemática é universal.

Mas a esta linguagem da Matemática não lhe atribuiu ainda todo seuverdadeiro alcance transcendente o estéril positivismo contemporâneo. Averdadeira Matemática pitagórica não consistiu tão somente no conhecimentovulgar dessas admiráveis operações numéricas com as que regramos todos nossasvivências na produção, circulação, distribuição, mudança e consumo das riquezas,que diria a Economia Política; nem sequer naquelas outras mais dignificadas edifíceis com as que construímos nossas pontes, vias, máquinas, artefatos de todogênero, com as que realizamos mais ou menos a beleza ideal do famoso cânon deproporção em Arquitetura, Escultura, Pintura, Arte coreográfica, Artes aplicadas,etc., etc.; nem, enfim, naquelas outras operações de cálculo com as que, nas asas denossas faculdades mais excelsas, tendemos nosso vôo de deuses por todo o âmbitoda terra e, novos titãs, arrancamos seus segredos ao céu e ao abismo.

Não. A Matemática pitagórica, sem deixar de conhecer a Aritmética universalnumérica e algébrica, sem deixar de ir infinitamente mais longe que nós emGeometria, pois que os nomes isolados de Pitágoras, Euclides, Arquimedes, Papus,etc., são pronunciados com igual respeito hoje em dia como nos sábios tempos doAteneu, o Panteão e o Cerâmico, sem esquecer, do mesmo modo, como podedemonstrar-se, a fusão do ramo numérico ou abstrato com o ramo geográfico ouconcreto no que hoje chamamos Trigonometria e Geometria analítica, e semdesconhecer tampouco o admirável Cálculo infinitesimal, que Leibnitz aprendeuem seguida às suas secretas intuições árias, em cujo país já fora sempre conhecido,deu maior amplitude ao grande tronco matemático, único capaz de nos orgulhar desermos homens, porque "a Aritmética, a Geometria, a Astronomia e a Harmonia ouMúsica eram, sucessivamente, os quatro portais que, segundo os pitagóricos,conduziam ao Templo da Iniciação, em cujo pórtico logicamente, portanto, nãopodia escrever-se mais que o famoso "ninguém entre que não saiba Geometria".

Comparem leitores, o ontem com o hoje, em relação a este assunto. Hoje,nossa educação vulgar supõe o conhecimento "das quatro regras"; muitos avançam aoresto das operações aritméticas de frações, proporções, taxas de juros, companhia,ligação, etc; todo homem de carreira está obrigado, embora nem sempre cumpra, ai!com tamanha obrigação, a conhecer a Álgebra, a Geometria e um pouco deTrigonometria... Daqui para acima é necessária a chamada especialização emengenharia, militar, etc., para só então chegar aos Cálculos diferencial e integral,Analítica, Descritiva, etc., mas até estes especialistas, chegados à Astronomia que é oterceiro dos quatro portais, detêm-se, enquanto o vulgo, no fundo, despreza aAstronomia, embora diga que a admira, com aquela malfadada quadra atribuída a

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nosso satírico que começa: "o mentir das estrelas"...1 Quanto ao quarto portal dessasenda, ou seja, a Música, ainda que todas as meninas de nossa geração saibamesmurrar o piano, com vistas meramente à dança e a suas ulteriores derivações, eainda que não poucos digamos gostar dos concertos e óperas sem elevar comfreqüência nosso nível musical interior acima de mais ou menos discutíveis e àsvezes canallescas zarzuelas, o verdadeiro culto pela música, quer dizer, pelo quemerece com justiça o nome de música, está verdadeiramente por desenvolver, salvoentre uma ínfima minoria, pois o freqüente tocar aqui e lá em lugares públicos, maisque culto musical é um crime de lesa arte, porque não é o cultivo da música pelamúsica, senão a profanação execrável da música como pretexto de reunião, de bate-papo e de vício.

1 Não falemos de como a parte mais baixa do vulgo despreza à música com frases como as de "issoé música", para o que é falso ou nada vale; "lhe vir a um com música celestial", etc., etc.

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Vejam, em troca, umas quantas páginas extraídas da lindíssima obra de P.Cesari, História da Música antiga 1·:

"A música é uma idealização da linguagem natural de paixões e sentimentos",disse Spencer; um cálculo misterioso e incompreensível do espírito, segundoLeibnitz; que faz ao que a possui virtuoso e franco, segundo Gervasoni, pelo qualem todos os povos antigos - em lembrança dos Mistérios iniciáticos e dos cantosdos bardos - a tem em um conceito divino, como um dom inapreciável quedevemos aos Imortais. O hebreu Filon de Bíblos a chama "leite, que alimenta a alma".São Isidoro conta que na Antigüidade era tão vergonhoso não conhecer a músicacomo ignorar as letras do alfabeto. Ateneu e Plutarco testemunham que a músicaera introduzida nos banquetes gregos, não para incitar os comensais à desordem,senão para lhes recomendar a moderação.

Os funerais dos homens ilustres eram acompanhados por flautas einstrumentos metálicos, segundo Sêneca, Plutarco, Tertuliano e Valério Máximo.Clemente da Alexandria diz que os etruscos usavam maravilhosamente muitosinstrumentos, dos quais se recordam ainda os jogos de sinos (carrilhões) e astrompas, como em Jericó os israelitas; os acádios empregavam o flautim e o pífano;os sicilianos, o polidas; a lira, os cretenses; a flauta, os lacedemonios; a trompa, ostrácios; o tambor e o violão, os egípcios; os árabes, os pratos. Os chineses e hindustinham até oito classes ou famílias de instrumentos sonoros: de metal, pedra, seda,bambu, púcaro ou cabaça, terra, pele e madeira. Sua oitava, como a nossa, contacom doze semitons iguais e sua escala primitiva é a mesma escala pentafônica usadaentre os antigos hindus e que conserva ainda restos na Escócia, Irlanda e Galícia.Dito popular chinês qualifica a música, de acordo com o quadrivium ou tétrade dainiciação pitagórica, como a ciência das ciências; a suprema Matemática, da qualtodas as demais têm sua origem. O famoso kin chinês e seu, mais perfeito, ché ouscié de 50 cordas, é de tal importância como elemento de expressão musical, que P.Amiot de Tolón, conhecedor do piano moderno, em sua obra Comentario del libroclásico de la música de los antiguos, diz que não existe na Europa instrumento que selhe possa preferir. É o antecessor da já degenerada lira grega, e sobre seu tampovão escritos os sagrados cânones da música. Têm os chineses um instrumental nãoinferior em qualidade e variedade ao de nossa orquestra moderna, hajam ou nãochegado eles, em outros tempos, coisa que ignoramos, à grandeza da polifoniaorquestral de nossos dias. O ki-phé é um alaúde de grandes dimensões e cordas deseda; o ghe-kiem e o bac-kim, violões circulares de resonador metálico; o sam-jiam,timbal de pele de cobra e cordas de tripa; o ho-jiam, violino de bambu, com arco decerdas; o di-jiam, violino análogo, de palma real ou noz de coco, para sons maisgraves, a modo de nosso violoncello. Entre seus instrumentos de sopro podemcitar o kienen ou bisem, feito de barro, em forma ovalada; o lo, flauta de bambu; oschieng ou realejo e órgão de lingüetas livres; o Ayaa e o toa-tché, espécies de gaitas defole e oboés, com boquilha e campana móvel, de latão; o siao, flauta grande

1 Tradução e notas do Manuel Walls e Merino. Madrid. F. Fé. 1891.“Contraste cruel para nossa cultura atual que rodeia de música atos frívolos, de ruído e de vício”!

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transversal ou horizontal; o schieng ou keng, antigamente feito sobre uma espécie desonora cabaça; o conhecidíssimo tam-tam; o king ou fonolito, feito com pedrassonoras; o piag ou xilofone, construído com tabletes de madeira; jogo de sinos,tambores de diversas classes, etc.

O mais antigo e apreciado dos instrumentos hindus é a vina com sete cordas.A sauringan tem uma história muito interessante. Ravana, um dos heróis doRamayana, rei de Lanka (Ceilão), criou o bin, depois chamado ravanastron, de ondese originaram com o transcurso dos séculos, e depois de inumeráveistransformações, as diferentes espécies de viola que inundaram a Itália no séculoXVII, e de onde nasceram, em seguida, os instrumentos do quarteto e do quintetode cordas atuais (primeiro violinos e segundo, viola, violoncelo e contrabaixo), almada mais excelsa expressão dos tempos modernos ou música de câmara, nas mãos deMozart, Haydn, e, sobretudo, de Beethoven. Ao ranavastron sucedeu o ometri, com asmesmas perfurações elípticas de nossos violinos; a sauringan ou sarinda sucedeu aoometri, e ela foi importada pelos expedicionários da primeira Cruzada (1099) àEuropa, para logo, no século XIII, ser transformada em viola. O gondok dos aldeõesrussos, o rabel ou arrabel espanhol e o cruth dos irlandeses, são outros tantoscongêneres da sarinda.

Entre os instrumentos egípcios se contam a lira, a harpa, o violão, a trompa,a flauta, o sistro, o atabaque e outros muitos. A Gênese aponta a Jubal, filho deLamech e de Ada, como patriarca dos instrumentistas de corda (cítara) e de vento(órgão), em especial do kinor (harpa) e do hugab dos baixos-relevos de Tebas. Notempo de David, o famoso rei harpista, quatro mil levitas cantores e tocadoresserviam no templo 1. O sciofar era uma singela flauta. Josefo conta que nas bodas dorei Salomão, Ron a filha de Vaphres, rei do Egito, entoou-se o Cântico dos Cânticospor quarenta mil harpas, duzentas mil trombetas de prata e outras tantas vozes decoro 2.

Sabe-se que os árabes antigos eram muito amantes da música, e quecontaram com grande variedade de instrumentos adequados ao par com um alfabetodeterminante ou regulador dos sons. Entre os intervalos musicais dos árabes háalguns que nós desconhecemos e dos que nos seria impossível fazer uso, poiscontam, além dos semitons, os quartos de tom, o que faz inarmonia a nossosouvidos, sem dizer por isso que o seja, com efeito, pois a música européia temaberto novos roteiros antes tidos por inarmônicos com Wagner, e não pôde aindaarremedar ou traduzir a imensa amargura dos cantos árabe-andaluces.

"Quantos tratados se tem escrito a respeito da Harmonia entre os gregos,

1 Bastante menor é o pessoal dos melhores teatros de ópera do mundo moderno.

2 Ao lado desta enorme massa instrumental e coral parecem nada os duzentos ou trezentosinstrumentistas e cantores que estamos acostumados a consagrar à magna Nona Sinfonia, deBeethoven, a pedra miliaria musical dos tempos modernos.

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inclusive o de Gervasoni e "Pitágoras e a Filosofia pitagórica", de Chaignet, padecem deuma confusão enigmática, demonstração evidente de que nos falta a chavefundamental para compreender os restos que nos foram legados a respeito datécnica e o espírito da complicada música deste grande povo. Tinham os gregos atéquinze modos ou tons, cujos nomes conhecemos todos, sendo os principais, dograve da corda lichanos-hypaton, ao agudo; o dório, para os assuntos solenes; o jônio,para os mais plácidos; o frígio, para tudo o que era passional, terrível e violento, e olídio, para o doce e amoroso. A notação grega nos é conhecida pelo tratado doAlípio (360 anos a.C.), cujos manuscritos se conservam em Oxford, Roma eBolonha. Os pitagóricos tiveram uma teoria numérica da omofonía, diafonia e antifonia,e de Cláudio Ptolomeo, na Alexandria, diz-se que descobriu pelo cálculo averdadeira índole do tom maior. Os filósofos-legisladores gregos, que como maisou menos iniciados nos Mistérios menores de seu país tinham que estar de acordocom o quarto grau ou portal da preparação matemático-pitagórica, poetas-músicos,ditaram severas regras, nomos ou leis ali aprendidas, a respeito da composição,reputando-se delito sua alteração ou descumprimento. Tais eram os nomos eólido,colóbido, cepión, jerace, pítico, cômico, datílico, jámbico, hipatoide, em suas três tendênciasgerais que recordam à famosa tríade psicológica hisdostânica de tamas (inércia,escuridão, ignorância), rajas (paixão, movimento, força) e satwa (Paz, triunfo,repouso), ou seja, a sistáltica ou restringente da obscuridade, o temor ou a tristeza; adiastática, sedutora ou expansiva, e a mesa ou mésica, de quietude e de paz.

"O som da flauta animava os banquetes gregos com adequadas árias, taiscomo a comos para o primeiro prato e as di, tri e tetracomos para os sucessivos. Ohedicomos expressava o prazer da mesa; o oingras, os aplausos dos convidados, e ocanto calínico, o triunfo dos bebedores 1.

1 O leitor que medite a respeito destes dados da Antigüidade não poderá menos que convir emconsciência, que, embora tenhamos tido a um Beethoven e a um Wagner (quem há devido a seusprofundos estudos da Antigüidade musical clássica toda sua grandeza, como eles mesmos oconfessam, uma Antigüidade que tinha tal riqueza de léxico e de finalidades e estilos musicais,não podia menos de ser em quase tudo, especialmente em refinamentos sentimentais e culturais,muito mais elevada que em nossa época. Vemos, com efeito, algo semelhante aos banquetes gregosainda em nossos mais metidos banquetes dos reis da Europa? Preside a nossos modernos ágapesliterários esse espírito de aprimoramento próprio daqueles ágapes? Dá-se à música séria toda adevida importância matemática e educativa que a concedessem os gregos? - Muito tememos que nosseja desfavorável o paralelo."Caminhamos para uma música para os iniciados? - Diz sabiamente Alvaro Arciniega em seusmuito interessantes artigos sobre A Revolução na Música, publicados na Liberal de Madrid-, Atendência apaixonada para o original, hoje tão em voga, nos fazia suspeitá-lo. Referimo-nos àmúsica de programa, tão cultivada por um grande número de autores."Chegamos a uma época em que toda preocupação parece residir, não na melodia e seus meios deexpressão, senão, sobretudo, no sujeito da obra. O desejo de dar à arte dos sons ambiente novoparece ter chegado a seu máximum. Semelhante tendência não é nova; começou pela polifonia

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exagerada, chegou-se ao abuso das dissonâncias para dar nas descrições mais fantásticas, e hojefebris, dentro desse caos da originalidade, depois de tanta novidade mais ou menos frutífera, eprecavidos talvez pela iminente queda no que Amiel se adiantou a chamar música louca, chegou-sea dar vida e cor a elementos primitivos: A. a dança e à mímica. Isto é o que nos parece que sevislumbra nos modernos bailes russos. E talvez nesta adaptação de elementos primitivos a esta artede hoje, cheio de desejos ultramodernos, esteja o maior acerto e a maior originalidade. A idéiamusical ficará dessa forma mais diáfana e será fácil apreciá-la com toda claridade. "Sob esteaspecto nos parecem um grande acerto as novas tendências do Arte russa. Mas deixemos paramelhor ocasião estas manifestações de uma música genuinamente oriental, e procuremos hojeindagar algo mais sobre o poema descritivo.A estética musical marcou um limite à música descritiva, do qual não poderá evadir-se por muitoque se esforce. A música será sempre o que foi: arte do sentimento. Não será nunca o que não podeser: arte representativa, de imagens reais. Admitamos o que Engels chamou a imitação daimpressão, mas não vamos mais longe, porque seria temerário. E mesmo assim e tudo, a imitaçãoresultará muitas vezes obscura, já que os objetos não impressionam a todos do mesmo modo nemsão exteriorizados da mesma maneira. A música, mais que descrever o que faz é expressar; querdizer, mais que a representação de elementos objetivos, chega a pôr de manifesto os elementossubjetivos, de tal modo, que o verdadeiro artista comunica sempre a sua obra a expressão exata deseus sentimentos pessoais. Por isso tratávamos de nos explicar com este fato a existência dasdiversas escolas musicais e de admitir nelas uma característica própria perfeitamente definida. Émuito lógico que se o artista puser em sua obra aquilo que existe nele de mais íntimo, esta maneiraíntima de ser, seja filha do ambiente, e o ambiente ideológico ou artístico da Rússia, França ouAlemanha, dista muito de parecer-se.A música é a projeção exterior de nossas idéias íntimas - disse Wagner ao expor sua doutrinaartística -. Para projetar estas idéias ele, que foi um grande dramaturgo, foi ao drama, e suasidéias poéticas, que concordavam exatamente com as musicais, deram origem a um tudo harmônicoe sublime; por isso sua obra está cheia de realismo.

Estas idéias, sabiamente materializadas pela forma, darão origem à obra de arte. E aquiestá precisamente a única música descritiva possível: Simetria, relações meramente artísticas,prazeres do ouvido, não constituem a beleza musical. As matemáticas são inúteis para a estéticada música. A beleza musical é espiritual e significativa, tem pensamentos, sim, mas pensamentosmusicais. (Hanslich.)Esta significação não pode estar nessas relações meramente artísticas, realizadas por procedimentosque, como o contraponto ou a instrumentação toda, não constituem por si só a essência da estética;é, pelo contrário, a inspiração ou o sentimento o solo e único manancial dessas idéias musicais.

"Sotérico, em seu discurso do Onesicrates (diálogo do Plutarco, De música,XI), diz que as formas da Ritmopea apresentavam nos antigos uma variedadesuperior à nossa. Os músicos de hoje preferem as melodias, os antigos preferiam osritmos.

"Para os gregos o ritmo poético musical das canções tinha decisivaimportância, assim, para eles, como modernamente para Wagner em seu dramalírico, a música, mais que irmã da poesia ou do argumento, era sua humilde

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servidora. O nomo orthio se dizia que era de maravilhosa eficácia nos combates edos nomos saiu a poesia lírica, épica e dramático-sacra, continuadora da tradição doOrfeu 1.

Conta a fábula grega que Harmonia, maravilhosa ninfa tocadora de flauta, foitransformada em serpente, naya ou deusa, por seu marido Cadmo - o importadormítico também do alfabeto -, por ter trazido a arte musical da Fenícia à Grécia. DeAnfião se conta que com tal doçura tocava a lira doada pelo Hermes (Mercúrio),que só por seu encanto mágico se elevaram sem mãos humanas os muros de Tebas2. Orfeu, com sua lira prodigiosa, amansava (hipnotizava) aos animais ferozes, moviacom seu ritmo as folhas da selva - recordem-nas chamas manométricas e sensíveisde nossa física atual - e até detinha os rios em seu curso com sua fórmula deconjuro musical ou mantra de:

"Cantu tártara flebiEt tristes Erebi DéosMovit, Nec timuit stygisJuratos Superis lacus"

"Orfeu desceu com sua lira às regiões infernais (Orco) e conseguiu enternecerde tal modo, com efeito, a Plutão e Proserpina, que concordaram a lhe devolver asua já morta esposa Eurídice – símbolo do Espírito supremo do Homem, sepultadoem seu cárcere de barro, da que pode lhe libertar, entretanto, o poder, mágico daMúsica -. Os primeiros poetas gregos e celto-druidas foram elevados à categoriados deuses, e um chefe destes poetas foi o imortal Homero, cuja Ilíada não é maisque um agregado dos restos escassos da Antigüidade sábia que em seu tempo seconservavam. Os mensageiros de paz dos povos aborígines da Hélade sabe-sepreparavam os ânimos com a lira ou a cítara, como pacífico prólogo àsnegociações. Agamenon, ao partir para o sítio de Tróia, deixou junto à sua esposaClitemnestra cantores virtuosos que a mantiveram no caminho da fidelidade, e amesma coisa realizou Ulisses com Penélope, a sua. Antigénidas, cantando, avivavao ânimo de Alexandre, e Hornero, coroado de triunfais louros, percorreu, como

1 O renascimento de todos estes estudos se deve ao holandês Meibonius (século XVII), com seuAntiquae musicae autores septem Graece et Latine (1652) dos que Cesari tirou estes dados.

2 Tomada ad-pendem-literae, esta fábula é ridícula; mas em sua profunda significação não pode sermais sábia. Quem dúvida, com efeito, sobre o poder de inibição que exerce a música adoçando ostrabalhos mais penosos? Por que cantando o lavrador, o caminhante e o artífice não se dão contada escravidão do trabalho?Daqui a formosa poesia do Gabriel e Galan, que começa:"Ara e canta lavrador...” etc.

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bardo errante, todos os povos de fala grega, cantando ao som de sua lira 1 .Alguns pretendem que a palavra música vem da greco-latina musa, e outros, da

oriental moxaj, investigar. P. Kircher, seguindo Diodoro Sículo, quer que sejaderivada da egípcia mos ou mox, em cujo caso deveríamos chegar a uma sinonímiade precioso valor com o Mox, o caudilho tepaneca ou maya-quiché com este nome,reverenciado também como Votam entre os aborígines do México. De qualquermodo, a música é tão antiga como o homem, e não há povo algum do planeta quenão a conheça mais ou menos e não a empregue nas ocasiões mais solenes da vida,como se uma intuição secreta, superior a todo raciocínio, fizesse-lhe compreendero segredo matemático e de Magia que detrás de toda música jaz oculto para ovulgo.

A música, unida ao canto e à dança, expressou desde a Antigüidade quantohá de super-animal na humana natureza: do prazer e a alegria não físicos, até a Magiae a Religião. Houve danças primitivas nos dois continentes, que com razão seacreditaram derivadas de misteriosas danças astronômicas explicativas dos segredosdos céus, ou seja, do movimento dos planetas, e de outros ensinamentos dosMistérios, nas mais famosas cidades daquela época. Em todos os povos pré-históricos, que foram muito cultos contra o que se obstina em acreditar nossaciência pré-histórica (tais como os tartésios, druidas e norsos), as leis religiosas ecivis, os decretos e proclamações, as façanhas de deuses e heróis, a História e aReligião toda, enfim, estavam escritos em verso, como os Vedas, arianos e asBíblias, semitas, e eram cantados e até dançados em público por numerosos coros.Se, se estudassem mais a fundo certas passagens de Grieg e as diversas áriasescocesas, russas e húngaras que instrumentou Beethoven em seus melhoresquartetos de cordas, assim como o zortzico basco, o fado português e algumasproduções da clássica Andaluzia, quiçá poderíamos coligir algo do que deveu ser aMúsica em passadas épocas de cultura, quando coroava, acima ainda daAstronomia, o magno edifício pitagórico da Matemática, épocas que precederamem muitos séculos aos tempos de barbárie e de queda, únicos que hoje conhecenossa Pré-história.

Assim pôde Plutarco dizer que os lacedemônios cuidavam mais da música

1 A primitiva lira grega tinha três cordas, que logo foram quatro (tetracordio). Terprando doLesbos, o instrumentador dos poemas de Hornero, criou o heptacordo, e por realizar tamanhadesrespeitosa reforma na lira clássica (ou melhor, como inovador revolucionário musical ao estilo deBeethoven), foi condenado a morte; mas o povo, enlouquecido pela beleza suprema da reforma,salvou-lhe, lhe aclamando como herói. Pitágoras acrescentou uma oitava corda (e acaso criou aoitava musical) com o octocordio. Leme, o milesio, alterou a lira pitagórica ulterior de onze cordas,chegando possivelmente ao magadis, de vinte, e ao epigonion, de quarenta, verdadeiro piano jáquanto a sua extensão musical, com sustentados e bemóis, criando assim o gênero cromático (decromos, colorido). Olimpio ainda dividiu em dois o semitom, criando o gênero enarmónico outemperado e os cantores que conseguiam lhe fazer apreciar em seu imperceptível matiz eram muitoestimados.

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que do alimento, e dizer Cícero que Temístocles, o grande político, tinha caído nomenosprezo de seus contemporâneos por haver-se visto obrigado a confessar emum banquete - no que, como em todos, passasse de mão em mão a lira - suacompleta ignorância na arte de tanger dito instrumento. Macróbio acrescenta que secortejavam com música os enterros, sublime prática de Ocultismo! Para que a almado morto pudesse romper melhor as ligaduras de seu corpo e ascender mais rápidapara a Fonte originária de todo encanto matemático-musical. Licurgo fezobrigatório em suas leis famosas o estudo da música, e Xenócrates da Calcedônia,segundo Laertes, dizia que era ela o melhor auxiliar da Filosofia, ao par que Platão,em seu Banquete, e Aristóteles, em sua Política, reputam-na indispensável para aeducação da infância e da juventude 1.

Marciano, Estrabão, Plutarco e Clemente de Alexandria se estendem emconsiderações verdadeiramente ocultistas, sobre o poder hipnótico que a músicaexerce na maioria dos animais, e é célebre, segundo Tzetze, a fábula de Arion eMethimore a respeito dos peixes influenciados pela música. Ela se empregousempre com grande êxito no tratamento das enfermidades nervosas, e Madame Jaëltem escrito um livro a respeito Da Música e a Psico-fisiologia. Boudelot conta quecerto médico salvou a uma senhora, enlouquecida por contrariedades amorosas,mediante hábeis cantores, e é célebre sobre este assunto a obra de César Vigna,diretor que foi do manicômio de São Clemente, em Veneza, titulada Intorno allediverse influenze della musica sul físico e sul morale, sendo sabido que David acalmavacom as notas de sua lira os delírios persecutórios do rei Saul. A obra de Descuret,Medicina das paixões, narra eloqüentes casos de cura pela música; mas o caso maisextraordinário, sem dúvida, do íntimo, secreto e inefável laço matemático ou super-humano 2 que pode criar-se entre nosso ego (sobretudo quando na infância não estápoluído com a matéria) e o mundo exterior que nos rodeia é o seguinte que traztambém Ferrari: "O ária a Suíça hei ranz de vaches, toque montanhês - e ocultista -que se emprega para reunir os rebanhos dispersos pela tempestade, exercia talinfluência nos recrutas suíços, lhes excitando de modo tão irresistível ao prantodesesperado, à deserção e ao suicídio pela nostalgia do ausente país natal, quehouve necessidade de proibi-la severamente no exército francês, para evitarverdadeiras epidemias de psicopatia coletiva.1 Cesari, obra citada.

2 As curiosas obras do Cerone, O melopea e mestre, Nápoles, 1613, e de Lorente, O porquê damúsica, Alcalá de Henares, 1672, são obras semi-astrológicas nas relações e coincidênciaspitagóricas da música, a fisiologia e a matemática. Impossível hoje as ler com nosso critériomoderno. Discutiu-se então, conforme nos ensina Cecilio Roda, o problema de se as avesverdadeiramente cantarem, optando pela negativa Cerone e Salinas (Francisci Salinae Burguensis,De musica libri septem, Salamanca, 1577), e pela afirmativa Nasarre (Escola de Música,Tarragona, 1724) e o P. Kircher. "Consagraram-se infolios, não só ao canto plano, mas tambémaos chamados cánones enigmáticos, verdadeiras chaves iniciático-musicales, algumas das quais,como a do tabuleiro do xadrez, desafiaram a pacienzuda habilidade do sábio mestre do Bérgamo,e foram célebres a polêmica entre o P. Estar acostumado a e o organista Real do Rio, que durou

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dez e seis anos, e a que provocou durante cinco anos o mestre natural de Barcelona FranciscoValls, por ter colocado um silêncio interrompendo a ligadura entre a preparação e o ataque em suamissa Scala Aretina. Avempace e Averroes reproduzem a doutrina platônica, e Leão Hebreu apitagórica da harmonia das esferas, enquanto que os místicos como Frei Luis de Granada, Muitomau do Chaide, os Pais Arriaga e Niremberg a olham de um modo espiritual, já incompatívelcom os secos cânones dos primeiros contrapontistas ulteriores, como "refecção et nutrimientosingular da alma, do coração e dos sentidos... Que levanta a força intelectual a pensar,transcendendo as coisas espirituais, ao bem-aventurado e ao eterno". Fr. Luis de Leão, enfim,celebra a música do Salinas:

"A cuja são divina minha alma, que em esquecimento está sumida,Volta a cobrar o tinoE memória perdida de sua primeira origem esclarecida 2.1”(Cecilio Roda, “A evolução da música”, discurso de recepção, na Real Academia de Belas artes deSão Fernando, 1906).P. Ulloa, também, em sua Música Universal (1717), dá-nos um precioso tratado a respeito dasmodalidades do ethos em suas relações fisiológicas com o fígado, esse órgão do astral, cujaverdadeira missão começa já a ser de novo compreendida do momento em que lhe chama por algunsespecialistas de enfermidades hepáticas... "O pano de lágrimas...", Das lágrimas que não choramos olhos.Entre nós um excelente musicólogo, D. Francisco Vidal e Máscara, foi publicado na revista ACidade Linear, de nosso pitagórico e sábio amigo D. Arturo Soria e Arbusto, um Tratado daMusicoterapia, muito digno de estudo em todas suas partes, e especialmente no relativo à poesialírica galaico-portuguesa e demais de nossa Península.

2.1 Cecilio Roda, "A evolução de la música", discurso de recepção, en la RealAcademia de Bellas Artes de San Fernando, 1906.

Coisa análoga ocorre com a harmônica de fole galega, a flauta pastorilvalenciana, o violão andaluz, etc., fonte íntima, sobretudo para os seres de grandesentimentalidade de doces lembranças e saudades do longínquo país nativo. Quemnão conhece, por experiência própria, esse fenômeno terrível da nostalgia doslugares em que nossa infância correu?...

Desde épocas mais remotas, os filósofos tem afirmado, o singular podercurativo da música sobre aquelas enfermidades cuja origem mediata ou imediataradica em tristezas, atonias e depressões do espírito. Kircher nos dá em seu OedipusEgiptiacus detalhada descrição do instrumento que ele forjou em suas extravagânciasde sábio, para experimentar a influência hígida, restauradora e tonificadora, daverdadeira música, porque o som tem certa oculta propriedade magnética que operauma verdadeira interferência com as vibrações morbosas ou inarmônicas dosnervos do organismo, coisa que não deveu ignorar Asclepiades, faz vinte séculos,porque nos diz que para aliviar-se da ciática tocava uma trombeta, e seu prolongadosom, fazendo vibrar as fibras nervosas, produzia a cessação da dor, poder davibração sustentada nas coisas chamadas inertes está já fartamente comprovado

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pela física, não só com essas admiráveis taças venezianas de muito puro cristal quese quebram instantaneamente tão logo recebam, à distância, uma vibração musicalintensa ao uníssono perfeito com seu diapasão sonoro, senão com essas notasenérgicas saídas das cordas de um violino, e que mantidas constantemente,demonstrou-se que podem até derrubar um muro, qual se derruba deste modo umaponte de ferro, quando seus aros e suportes se destemperam sob o passo rítmico euniformizado de um exército. Demóstenes afirma de igual modo que muitasenfermidades podem curar-se por meio dos melodiosos sons da flauta. Mesmerusava a harmônica, descrita por Kircher, para suas célebres curas magnéticas, e oescocês Maxwell ofereceu demonstrar à várias Academias, que certos meiosmagnéticos que tinha ao seu dispor podiam chegar a curar algumas enfermidadestidas por incuráveis, tais como a epilepsia, a loucura, a hidropisia e até as maispertinazes febres palúdicas. A Bíblia, enfim, recorda a demolição das muralhas deJericó, coisas que se encaixa perfeitamente ao que têm dito, ao poder vibratório dastrompetistas, e Saul conta que, quando o espírito maligno lhe assaltava, chamava oDavid, para que, tangendo sua harpa, afastasse daquele Rei o espírito maligno quelhe obcecava, como já havemos dito 1.

Nada do que antecede é, entretanto, tão profundamente psicológico, como aseguinte lenda chinesa, símbolo admirável do enorme grau de intuição e de magiaadivinhatória a que podem chegar os espíritos atentos e tenazes por intermédio damúsica:

"Conta a lenda que Kung-tseu, o filósofo legislador, o Moisés ou o Licurgochinês, grande observador da tradição, teve notícias a respeito de um maravilhosomúsico, conhecedor de quantas profundidades de harmonia se contam dos antigos.Visitou-o e inscreveu-se em seguida entre seus discípulos. O asceta lhe recebeucom nobre deferência e lhe falou eloqüentemente da música, como do maisprecioso dos dons celestes, porque com ela podemos acalmar nossas paixões;gostar dos prazeres mais tranqüilos e honestos, nos sobrepondo triunfantes à nossaherança de animalidade. Depois de semelhante dissertação teórica tomou o ascetaseu chin ou d'zain, e com ele demonstrou magistralmente a aplicação das teoriasexpostas, executando um ária do Mahatma Ven-vang. Absorto ao escutá-la Kung-tseu, houvera dito que sua alma inteira passou a identificar-se com a harmoniadaquele chin celeste e primitivo. "Basta para a primeira lição" - disse-lhe o asceta -.O discípulo, já de volta à sua casa, repetiu sem trégua aquela divina melodia porespaço de dez dias consecutivos - Sua interpretação em nada difere da minha - lhedisse assombrado o mestre ao ouvi-lo - e tempo é já de que vos exerciteis em outra.- Oh, bendito Instrutor! - Replicou-lhe Kung-tseu -; lhe suplico pelo que maisameis, que postergue por algum tempo sua ordem, porque ainda não me apodereipor completo da idéia do compositor maravilhoso - Bem - respondeu o gimí-asceta-; lhe concedo cinco dias mais para que a encontre - Fenecido que foi este prazo,Kung-tseu compareceu de novo ante seu mestre, e lhe disse tímido e confuso: "-

1 De outros casos semelhantes relativos ao poder mágico da música está enche a Bíblia.

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Começo a vislumbrar na sagrada obra do Mahatma algo assim como se olhasseatravés de uma densa nuvem os raios do sol. Peço-lhe, pois, outros cinco dias mais,e se ao expirar esse prazo não conseguir meu objeto, considerar-me-ei inepto para amúsica, e jamais voltarei a me ocupar dela - Concedo-lhes isso uma vez mais! -Exclamou comovido o asceta virtuoso.

Alvorecia apenas o quinto dia dos assinalados como último prazo, quando,ao despertar, encontrou-se Kung-tseu como transformado em outro homem, porcausa de suas ofegantes meditações. Voou à casa de seu instrutor e, lhe abraçando,disse-lhe contente: "Vosso discípulo encontrou finalmente o que procurava. Soucomo um homem que, posto em um topo eminente, abrange com seu olhar osmais longínquos países. Vejo na música tudo aquilo que depois da música se devever; mas que, entretanto, só um entre um milhão alcançam perceber. Locupleto nasemoções nascidas da composição, pude remontar até a mente mesma do Mahatmaque a obra compôs, e já ela não tem secretos para mim, como tampouco me é umenigma, como antes, sua própria personalidade: vejo-lhe, ouço-lhe e lhe falo... É umpersonagem de média estatura, com a cara um pouco alargada; de cor morena,olhos grandes impregnados de sem igual doçura; seu semblante é nobre e muitosuave sua voz; tudo nele inspira, em suma, amor, ciência e virtude. Não tenhodúvida alguma de que assim foi em vida o maravilhoso Ven-vang!.. - Assombradoentão o asceta ante semelhantes vidências transcendentes, filhas da energia devontade e da força mágica do verdadeiro amor, caiu prosternado ante Kung-tseu,lhe dizendo: - Vos haveis encontrado por vos mesmos o estreito Atalho: são overdadeiro Mestre que nada tem já que aprender de mim!... Me aceitem, pois, porseu humilde discípulo!..."

Quem não tratou uma vez mais de imitar ao grande Kung-tseu evocando aosanto de Beethoven e ao sempre sacrificado Wagner, em todas suas dolorosasodisséias, ao escutar religiosamente atônito as terceira sinfonias, quinta e nona, oquarteto em dó sustenido menor, a Sonata 14, 29 e 32, etc., de um, e os motivosverdadeiramente cosmogônicos do outro nos tema dos elementos primitivos, daprimavera, da ave da selva, da redenção, da justificação, e, em suma, todos os seusdramas?... Neles e em outros tais temas, a Humanidade futura tem lançadas as basesde sua glorificação apoteótica em séculos e sociedades muito mais perfeitas das quefacilmente possamos formar idéia em nossos dias de catástrofes militares e de lutasfratricidas.

Voltando para a música; como linguagem iniciática, recordemos aqui acriação wagneriana do leitmotiv, com cujas notas breves e constantes, qualverdadeiros mantras védicos, chegou-se pelo colosso de Bayreuth a fotografar ou aestereotipar concretamente as idéias e os personagens, acabando assim com asuposta vagueza da música, e fazendo dela uma superior palavra evocadora.

"A música de Wagner, diz Rogelio Villar, está apoiada no chamado leitmotiv,motivo típico, motivo condutor, que consiste em "um desenho melódico curto,fácil de aprender e de recordar", o qual pode ser modificado em sua textura, em seuritmo, em sua harmonização e orquestração sem desnaturalizar seu significado

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primeiro. Por isso, como obra de um gênio essencialmente musical, tem a músicade Wagner um selo característico, personalíssimo, singularmente nas partesharmônica e instrumental, das quais foi Wagner um verdadeiro criador. Quanto àparte contrapontística, de onde emanam muitas das belezas de sua música, bempode ver-se sua filiação nas obras de Bach, sem as quais não se concebe a Wagner,do mesmo modo que sem o Beethoven não se compreende a grandeza, aintensidade dramática das concepções wagnerianas, pois até o famoso leitmotiv foiempregado em uma forma elementar por Beethoven, Schubert, Weber,Mendelssohn e hoje por Schumann: é a última forma de variação, e na músicaproduz essa vagueza característica da forma bíblica versicular, empregada poralguns filósofos e literatos; espécie de mosaico encantador, umas vezes lampejos demuito delicadas harmonias e de melodias incomparáveis, outras de sonoridadesimitativas e matizes surpreendentes. Em uma palavra: um simbolismo dos sons. Amaneira de entender Wagner o drama musical empregando o leitmotiv, em nada separece com a de Cacini e Peri, nem à feita por Gluck e Berlioz, embora todosperseguissem uma mesma idéia; o enlace, a compenetração da palavra e da música"poética" e "esteticamente" falando. Wagner, por meio do leitmotiv, traça o caráterde uma cena, manifesta o estado psicológico de um personagem, lhecaracterizando, às vezes, com um acorde, com um ritmo. Os temas aparecemvariados, desenvolvidos em diferentes formas, unidos por partes sinfônicas ou"episódios", conforme o exigem as múltiplas situações dramáticas, personificandouma passagem do poema. Os motivos mais essenciais são objeto de variadastransformações com elementos tirados deles mesmos, enriquecidos com notas depassagem, de floreio e outros artifícios harmônicos, tendo uma significação simbólicae convencional, umas vezes material, outras psicológica, segundo a idéia que tratade representar. Quando vão aparecer os personagens ou quando estes vão atuar nacena, anuncia-nos isso sempre a apresentação do motivo que os caracteriza, jádesenhado pela orquestra e em diferentes instrumentos, já indicado pelas vozes,confundindo-se em muitos momentos da obra e enlaçando-se entre si, com o quetais combinações causam certa vagueza sedutora e mística que é característica damúsica wagneriana. As modulações por meio de alterações inesperadas erepentinas, novas e surpreendentes; o gênero de fuga, as maravilhas de contraponto,o uso freqüente dos acordes dissonantes e outras fórmulas harmônicas, tais comoapogiaturas, retardos e resoluções excepcionais, produzem uns contrastesmaravilhosos, uma riqueza de cores e de timbres que causam intensa emoçãoestética e um efeito verdadeiramente sobre-humano.

A orquestra desempenha na obra wagneriana um papel importantíssimo, nãose limitando a simples fórmulas de acompanhamento, sem a descrever, comentar eexpor simbolicamente, sem o auxílio da palavra nem do gesto, as situações salientesdo drama, obtendo efeitos de sonoridade tenros, delicados, brilhantes ou vigorosos,e novos timbres pelo emprego do corne inglês, do clarinete baixo, das tubas etrombeta baixo, produto do conhecimento que da técnica musical tinha o grandereformador.

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"Os prelúdios das obras de Wagner têm por objeto preparar o espírito doespectador, lhe apresentando os mais importantes motivos que ouvirá durante osrespectivos atos. São páginas musicais de grande beleza, quão mesmo os finais, quepodemos qualificar como sublime síntese dos temas que aparecem neles."

Quanto antecede faz verdade o fato de que "de todas as obras do homem,como diz Aseglio, a mais maravilhosa e inexplicável é a música, Compreendo apoesia, a pintura, a escultura, as artes imitativas, enfim, acrescenta este autor...Havia modelos para imitar, e a Humanidade os imitou... Compreendo a ciênciacomo filha da experiência dos séculos, porém, aonde fomos a procurar a música?Ela é todo um mistério... Como se explica a influência da melodia e da harmoniaem nossas faculdades morais? O que dizem suas notas quando lhes inspiram o belo,o bom e o grande? Será acaso a música uma reminiscência, uma língua perdida daqual esquecemos o sentido, conservando só a harmonia? Será ela a língua primitivae também a do futuro?...”1.1 Com Wagner se começou a construir uma linguagem análoga: os diversos temas musicais, comoo do Graal, o da lança, o da dor, o do arrependimento, o da ferida, o da má magia, etc., etc., paranão falar, mas sim de sua última obra, equivale às relativamente pouco numerosas raízes delínguas, como o sânscrito ou o hebreu. As guias temáticas de sortes obras são, pois, algo assimcomo um dicionário. Tais raízes musicais, ao modo de como com as outras raízes gramaticaisformam as palavras e as frases ao tenor das regras respectivas de flexão e de sintaxe, vão formandonos diversos instrumentos da orquestra, seja por flexões, seja por essa sintaxe musical ou cânon,que se denomina "Composição e Harmonia", as diversas frases orquestrais que caracterizam acada um dos momentos sucessivos da ação dramática desenvolvida com eles.

Estas frases inspiradíssimas são toda uma adivinhação da harmonia divinaque tinha o perdido senzar, a língua sagrada original, da qual se diz que é uma pálidareminiscência o intrínseco conteúdo musical do sânscrito, "a língua dos deuses" ouDevanagari, conteúdo musical que apenas podemos julgar pela maravilhosa métricaclássica latina. O filósofo Ahrens, demonstrou desconhecer a música, acrescentaBlavatsky, ao dizer que as letras dos pergaminhos hebreus são notas musicais. Noidioma sânscrito as letras estão sempre dispostas de tal modo, que possam tomar-setambém por notas musicais para um verdadeiro canto, e assim, desde a primeira atéa última palavra dos Vedas suas letras são notações musicais reduzidasinseparavelmente à forma de escritura. As letras do sânscrito se pronunciam, ou,melhor dizendo, cantam-se segundo as regras das antigas obras tântricas, que aschama, repetimos, Devanagari ou linguagem dos deuses. E como cada letracorresponde a um número, o sânscrito oferece um campo muito mais vasto deexpressão, e excede em perfeição ao hebreu, que, embora segue o mesmo método,tem que aplicá-lo com muitas limitações. Os hindus distinguiam, pois, comHornero, entre "linguagem dos deuses" (música) e a linguagem dos homens(palavra), e por isso, quando se cantam as poesias humanas, a música tremula, eabsorve, enquanto que a palavra empalidece, até o ponto de poder-se entender as

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obras cantadas, até com linguagem estrangeira que nos seja desconhecido, e depoder-se fazer Romanzas sem palavras ao estilo de Mendelssohn e de outros.

"Confiar à Música a expansão de nossos sentimentos, diz Cesari, é inato nohomem, ou, pelo menos, é legendário, e se encontra universalmente estabelecidodesde os mais remotos tempos, assim nos povos mitológicos, de cuja primitivaexistência nos dá notícia a fábula religiosa de todas as crenças, como nas atuaistribos selvagens das regiões ainda bárbaras. A Natureza mesma é a grande mestradeste ensino. Cada manhã, ao despertar do novo dia se abrem as flores ao beijoantes da alvorada para escutar os alegres gorjeios das aves canoras apregoando emcoro a beleza infinita da vida que renasce ao calor paternal do sol nascente.

O homem, na solidão do estudo ou da meditação, ao conceber abstraídoalguma idéia prazerosa, se expande inconscientemente entoando algum de seuscantos mais favoritos. Nas cerimônias religiosas de todos os tempos e de todos osritos, nos fatos de guerra, nos festins, nas procissões, nas celebrações das festas dequalquer ordem, e até nas plácidas horas do repouso; é sempre a música aencarregada de elevar o espírito, de acender o valor, de despertar o entusiasmo, deavivar o esforço, de alegrar o coração ou entreter a alma, assim no templo como nocampo de batalha, assim nas buliçosas comilonas como na tranqüilidade da sesta.

"É que a música tem sobre todas as belas artes o privilégio de impressionarmais diretamente nossa sensibilidade de um modo expansivo ou intensivo, sendopor isso pelo que todas as solenidades reclamaram o poderoso auxiliar dosencantos sublimes ou dos sonoros esplendores da música para obter a importânciae o realce devidos à sua celebração. Quanto maior importância se deu em cada festaà parte musical, até sendo muitas vezes secundária, maior solenidade teve o ato;porque a música é o melhor, mais adequado, mais belo e mais impressionantecomplemento da fascinação e quão única por si mesmo satura de gozo o espíritoatraído com admiração ou arroubo pela magnificência ou a novidade doespetáculo."

# # #Causa verdadeira pena ver como certos críticos musicais modernos tratam à

música da Antigüidade, seja greco-latina, seja védica, qualificando-a de elementar,timidamente melódica, limitada em suas origens a sustentar as vozes cominstrumentos tão singelos como o aulos e a cítara, sem sair das relações numéricomusicais tão elementares como o uníssono, a oitava, quinta e quarta, como se viudepois na Idade Média com o canto plano ou eclesiástico, que é acompanhado aouníssono ou ao pedal no órgão de Escoto (século IX) e às quartas e quintas no deHucbaldo (século X) até que aparecem o discantus do século XII, os fabordones noséculo XIII e toda a polifonia amalucada dos mais extravagantes contrapontistas,tão admiravelmente criticados por Wagner em seus Mestres Cantores.

Se ditos críticos se referissem ao que sabemos da Europa, e ao ponto concretoda música instrumental, com certa dureza tratada pelo próprio Platão, estariampossivelmente corretos, porque desde a queda do Império Romano até os dias deBeethoven e de Wagner, a música instrumental foi saindo do caos medieval, para

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chegar com estes colossos e com outros autores passados e futuros, a um princípiomágico ou de verdadeira adivinhação da Natureza e da Psique, que nos assombra enos subjuga. Ao o que com as simples doze notas da escala cromática se pôdechegar à estupenda expressão do drama lírico mediante o instrumental muitocompleto da orquestra moderna, não quer dizer que não se pôde realizar nostempos mais remotos da grande cultura perdidos a que vamos aludindo em tantoslugares desta obra e até em impérios proto-históricos do Oriente, que, respeito atão difíceis matérias são pontos menos que desconhecidos, um ideal de harmoniade outro modo ou por outra via que pelo modo e caminho seguido em nossostempos. Pensar prematuramente o contrário equivaleria a sustentar, em outraordem de idéias, que, pois os incas não tinham anais escritos como os nosso empapel ou em pergaminho, não tinham anais de maneira nenhuma, sendo assim,como é sabido, levavam por nós que não por letras, suas mais minuciosas contas dehistória, de fazenda, de exército, etc., e o que é mais incompreensível para nós, asidéias mais abstratas de sua religião e de sua ciência.

A remota Antigüidade, a julgar por todos os indícios, chegou a possuir nostempos pré-históricos do nascimento das línguas sábias, um conceito de harmonia,tão profundo pelo menos como o de nossos dias, exteriorizado não porinstrumentos musicais como na atualidade, mas sim pela voz humana, oinstrumento musical por excelência, e não só em forma coral mais ou menospolifônica, senão na excelente e para nós quase incompreensível forma interna deuma prosódia rítmica que apura as maiores exigências da coordenadoriamatemática, ciência a que de um modo intuitivo e emocional chega o compositorinspirado, combinando em melodias e harmonias as simples doze notas da escala eos harmônicos vários a que dão lugar os timbres dos diversos instrumentos.

Não vamos, para justificar nossa asserção, à língua sânscrita que, com suamaior riqueza de letras, sua mobilidade inflexiva que permite declinar ou conjugartodas as palavras, e suas regras musicais de eufonia, denominadas sandhi ou ligadura,dão lugar a uma flexibilidade pasmosa e extraordinária, que bem pôde fazer umaverdadeira música do sonoro verso dos Veda. Possuímos, além disso, centenas demanuscritos a respeito da música, os quais nunca se traduziram nem mesmo nosmodernos dialetos hindus. Alguns deles têm quatro mil e oito mil anos,demonstrando que a divina arte se conhecia e estava sistematizada em tempos emque as modernas nações da Europa viviam ainda como selvagens.

Basta-nos abrir uma gramática latina para justificar a asserção que antecede,errônea para muitos, e nos convencer de que o ideal de harmonia, que hoje vamosconquistando mediante a música instrumental, buscou-se e achou antigamente, poroutro caminho, mediante a poesia falada e escrita, o qual, finalmente, nada dizcontra os modernos procedimentos, como nada implica, em geral, para acapacidade de um edifício, a natureza do material empregado, desde que secumpram as respectivas regras da arquitetura quanto à sua solidez e proporções.

Ninguém ignora a complexidade artística da métrica latina. Para começar,contava esta com uma prosódia riquíssima que empregava dois tempos, ou partes

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de compasso que poderíamos dizer, na pronúncia das sílabas largas, um na dasbreves e um ou dois nas indiferentes. Estes tempos de pronúncia métrica, entravam nafrase poético-musical do latim com tanto ou mais rigorismo que na simples frasemusical moderna entram, verbi gracia, as negras ou as colcheias, e do mesmo modo queda composição musical nossa surgem infinitas combinações, surgiam naquelaoutras tantas. Não há senão recordar, por um lado, chamado-los pés métricos simplese compostos, desde duas até seis sílabas, e por outro sua maneira especial desomar-se em cada verso.

Quando se lê sem prejuízos o relativo aos pés métricos se vê apurada acoordenadoria matemática: o espondeo reúne duas sílabas longas; o pirriquio, duasbreves; o coreo ou troqueo, uma longa e uma breve, e o yambo, uma breve e uma longa;três largas dão o pé moloso; três breves o tribaco; uma longa e duas breves, o dáctilo;duas breves e uma longa, o anapesto; uma breve e duas largas, o baguio; duas longas euma breve, o antibaquio; longa, breve e longa, formam o pé crético, e, ao contrário,breve, longa e breve, o anfíbraco. Tamanha coordenadoria se completava com os péscompostos de quatro a seis sílabas: dispondeo, proceleusmático, dicoreo, diyambo, coriambo,antipasto, grande e pequeno jônico, peões e epitritos. Semelhante conjunto de medidasmusicais se completava com as cesuras que ligavam a um pé com o seguinte dentrodo mesmo verso.

Despreocupando-nos de rotinas, não podemos menos de reconhecer, pois,duas coisas: uma, que em línguas sábias, como a latina, a grega, a lituana ou asânscrita, as palavras não eram só, como são hoje em suas bárbaras línguassucessoras, expressão mais ou menos completa do pensamento, senão um componente musical doperíodo: umas sílabas-notas, regidas na poesia além disso, pelo número. Assim, por exemplo,na métrica latina, cada pé pode ser considerado como uma nota, pois, que gastamatematicamente um tempo bem definido, e entram, além disso, certo número eclasse delas em cada espécie de verso. Outro princípio certo é que estas espécies deverso equivalem, quanto à métrica ou medida, ao compasso musical moderno.

Em relação a este último, a variedade da métrica latina assombra. Assim ohexâmetro admite seis pés, dos quais o quinto tem que ser necessariamente dáctilo, eespondeo o sexto, ficando os quatro primeiros, dáctilos ou espondeos, ao arbítrio dopoeta, cujo ouvido musical dará assim ligeireza à expressão, empregando osprimeiros, e majestade se usar os segundos, como quando vai cantar as proezas dosheróis. O pentâmetro, com seus dois dáctilos finais e cesuras; o senario yámbico, com seusseis pés, nos que alternam seis sílabas breves e seis longas; o escazante, o dimetroyámbico, o glicónico, o asclepiadeo, o folencio, o grande e o pequeno arquíloco e os doiscoriámbicos, o arcaico pindárico, o feracracio, o anapéstico, e outros muitos que podem ver-se nos clássicos, completam o conjunto orquestral de nossa língua-mãe, com umavariedade musical quase infinita, para a que não contamos, entretanto, com outroselementos prosódicos nada desprezíveis, por sua vez, nascidos da diversidade dossons consoantes.

Um leitor frívolo se sentirá inclinado a tratar tudo o que antecede comodeliciosas fantasias; mas podemos expor o problema em termos tão científicos e

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concretos que não nos seja permitido duvidar a respeito de nossa asserção relativa àque a Antigüidade sábia pôde realizar o ideal da harmonia, mediante a palavrafalada rimada (mantras), com tanta perfeição, ao menos, como mediante osconjuntos orquestrais pretendem realizá-lo em nossos dias.

Sabemos pela Física, que dois sons não podem diferenciar-se mais que porsua intensidade ou amplitude vibratória; por seu tom ou número de vibrações emcada unidade de tempo 1, e por seu timbre ou número de harmônicos produzidospela nota emitida.

1 Sabido é que a diferença entre o som musical e o ruído não consiste mais que na maior oumenor harmonia que guardam entre si as vibrações com que agitam ao ar (mais possivelmente aoéter) as moléculas dos corpos tiradas de sua posição de equilíbrio; mas entenda-se bem que taisvibrações hão, de ser em número de mais de 32 e de menos de 72.000 por segundo, pois as queestejam fora destes limites são silêncio absoluto para nossos ouvidos, enquanto que outros seres deouvido melhor organizado poderão acaso sentir como sons as vibrações que nós denominamoseletricidade, calórico, luz, etc, que são parte essencial, ou música pitagórica dos mundos.

Duas cordas de longitude, diâmetro, densidade e tensão idênticas soam ao uníssono, querdizer, que suas vibrações estão em relação de 1 a 1. O uníssono, pois, é o som mais harmônico e oque mais logo se fixa, portanto, nas mentes das multidões. Vem depois a oitava, em que asvibrações das duas cordas, seja por sua longitude, por seu grosso, por sua densidade ou por suatensão, estão em relação de 2 a 1. Em seguida vem a quinta, em que a relação de vibrações é como3 a 2, e a quarta, em que dita relação é como 4 a 3. Por último, os intervalos musicais quemedeiam entre a tônica ou fundamental, a quarta, a quinta e a oitava, encheram-se intercalandooutras quatro notas e se tem formada assim nossa escala musical, cujas notas e relações numérico-vibratórias com aquela tônica são:

dó ré mi fá sol lá si dó1/1 9/8 5/4 4/3 3/2 5/3 15/8 2/1

A relação vibratória de cada nota com a que precede pode obter-se dividindo entre si asfrações respectivas, de onde nos resultam as seguintes relações:ré/dó=9/8

mi/ré=10/9

fá/sol=16/15

sol/fá=9/8

lá/sol=10/9

si/lá=9/8

dó/si=16/5

Como se vê há algo de irregular, numericamente falando, e de violento, possivelmente,nestas relações, coisa que ainda não preocupou bastante à Filosofia porque semelhantes relacione sepodem respectivamente seriar assim:

(1 + 1/8; 1 + 1/9; 1 + 1/15) (1 + 1/8; 1 + 1/9) (1+ 1/8; 1 + 1/15)relações com as quais se podem formar os três grupos que marcam os parênteses.

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Estes espaços ou relações se chamam tons pelos músicos; o tom maior(do a ré; fá a sol; la a si) equivale a 9/8; o tom menor (de ré a mi e de solà lá) equivale a 10/9, e o semitom maior (de mi a fá e de si a dó) a 16/15Cada tom está dividido mediante sustenidos e bemóis. Sustenir uma nota éaumentar o número de vibrações as multiplicando pelo quebrado 25/24 ebemolizar uma nota é diminuir suas vibrações as multiplicando pela relação inversa, ou seja por24/25. Entre o sustenido de uma nota e o bemol da seguinte medeia, como se vê, uma ligeiradiferença que se chama coma pitagórica, de valor igual a 625/576 suprimida em instrumentoscomo o piano, e que foi objeto de inflamadas discussões entre os doutos.

A matemática nos ensina, além disso, que a sucessão de sons que possamentranhar a composição musical mais complexa, não é mais que série de casos decoordenadoria entre notas iguais ou diferentes, já por sua altura (tom), já por seuvalor respectivo (medida). Pode demonstrar-se, repetimos, que a linguagem métricalatino, e, em geral, o de todas as línguas soube, não cedem à orquestra moderna emriqueza de expressão harmônica, senão que, a orquestra e as línguas referidas nãodiferem filosófica e matematicamente, senão no modo de expressão, qual umamesma idéia dita em dois idiomas diferentes, mas em ambos do mesmo valorintrínseco. Precisemos mais o conceito:

a) Quanto à intensidade, embora a voz humana não seja tão forte como aorquestra, nem como quase todos os instrumentos que à orquestra integram, ésabido que pode ser indefinidamente reforçada, mediante a soma de várias vozes,como se viu sempre nos coros e mais nos históricos que citamos antes. Por outrolado, a intensidade não é um fator essencial da expressão artística, seja musical, ouverbalmente realizada.

b) Quanto ao tom, o costume de ouvir nossas próprias línguas nos embotoua percepção de um detalhe muito interessante que os sábios estudos do Helmholtzdestacaram. A nenhum homem vulgar terá passado pela mente o que as vocaistenham um valor musical distinto e, entretanto, dito físico demonstrou com seusressonadores que cada vocal se acha separada da seguinte pelo intervalo de umaoitava, sendo a mais grave de todas as notas o U, que pronunciada pelos alemães donorte, equivale pelo número de suas vibrações ao si bemol2 e seguindo as demaispor esta ordem:

U O A E Isi bemol2 si bemol3 si bemol4 si bemol5 si bemol6

O número redondo de tais vibrações é de 450, 900, 1.800, 3.600 e 7.200, eaté dado caso de que tão singela relação musical não medeie nas vogais das demaislínguas, é de supor que tampouco têm que ser elas muito complicadas, por quantona maior parte das línguas conhecidas se acham vozes iguais ou semelhantes. Em

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outras, como na sânscrita, dotadas de sete vocais breves e outras tantas longas, têm-se, por conseguinte, tantas tônicas fundamentais como as que mostra o piano aocomeço de suas sete escalas, e como por outra parte o aparelho bucal permitetrocar o tom de cada letra, a possibilidade musical de produzir todos os sons ficacomprovada, como se pode apreciar com as chamas manométricas, mediante cujasfiguras, ao ser elas afetadas por vocais diferentes, puderam ser distinguidas entre sipor Koenig e ser apreciados o tom e até a diferença de timbre de cada indivíduo.

c) Em relação ao timbre, o caso de cada voz humana é o mesmo que o decada instrumento, como o é também o caso da multiplicidade de timbres na massacoral, embora não ele seja tão rico como o da orquestra, possivelmente porque omesmo hábito nos impede de apreciar sua verdadeira riqueza. Helmholtzdemonstrou que o timbre se deve a maior ou menor riqueza de harmônicos, cujaprodução se expressa assim: se dividirmos uma corda sonora em 1, 2, 3, 4, 5... npartes, os sons respectivos destas partes produzem uma série de notas musicais quesão, do grave ao agudo: dó tônico, dó em oitava, sol, dó, em segunda oitava; mi,sol, si, dó, etc., e se tendo várias cordas temperadas para dar esses sons se faz vibrar amais grave, sua vibração se transmite às demais, e ao vibrar a primeira todas vibrampor simpatia, embora não se as toque, o que significa que o primeiro som encerra,além do seu próprio, outros sons superiores, conhecidos com o nome deharmônicos. As figuras que resultam da comparação de dois sons pelo métodoóptico do Lissajou, deixam também entrever algo relativo aos harmônicos comorelações numéricas que podem traduzir-se em figuras geométricas com essaGeometria Analítica não bem estudada que usa em suas mágicas operações a mãeNatureza 1.

Há além da voz humana que canta, a que fala, mediante o mecanismoadmirável das línguas mortas. Precisamente aqui é onde estriba a parte misteriosa,quase iniciática, das línguas sábias, quem, bem as diferencia de suas degeneradassucessoras, se prestam a uma coordinatoria na sucessão de sons, a uma métrica tãorica como a que com as notas musicais se escreve no pentagrama. O paralelismo éperfeito: a composição musical pode constar de vários estilos, como o poema daAntigüidade, igual ao atual, encerrava quase sempre diferentes gêneros de versos. Aestrofe deste equivale ao compasso daquela, e haverá várias classes de estrofescomo há várias classes de compassos: de dois, três, quatro versos ou tempos.Dentro de cada verso, ou parte do compasso poético, o pé e suas respectivas sílabas

1 E dois sons uníssonos produzem uma elipse quando não são simultâneos, e uma reta (elipse deperfil) quando o são. Dois sons em oitava produzem na tela a figura de um oito, que se deformaaté apresentar-se de perfil como uma parábola. A metade de alguma destas figuras se reproduz naquinta em forma apioidal (ou de pêra), como a metade de outra das figuras da quinta se reproduzna quarta em forma arriñonada, ou como de feijão. Destas figuras musicais, à forma de diversosfrutos e ainda às formas e leis de certos astros (Tourner) não há mais que um passo emcorroboração da indiscutível existência da "Música Pitagórica" ou Harmonia das Esferas.

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equivalem ao conjunto de notas no pentagrama. Assim, dando à sílaba breve ovalor de uma semifusa, a sílaba longa e o pé pirriquio valerão uma fusa; o pé coreo e oyambo durarão o que três semifusas e o espondeo o que uma semicolcheia. O molosointroduzirá ou dará a esta, mercê a suas três sílabas longas, um ponto musical, e odispondeo será a representação da colcheia, etc.

Além disso, cada verso dará diferente amplitude ou capacidade às notas-silabas: assim o hexâmetro repartirá a parte de um compasso entre notas-sílabasequivalentes a vinte e quatro breves, artisticamente distribuídas entre a longa e doisbreves do dáctilo e as duas longas do espondeo; o pentâmetro reparte seu âmbito musicalentre os vinte espaços breves que lhe formam, gastando-os em dois dáctilos ouespondeos seguidos de pausa longa, e depois em outros dois dáctilos com outra pausa,que, com a primeira, forma um espondeo também. Música seleta seria sem dúvida adestes dois versos, comparados com a simplicidade, por exemplo, do cenárioyámbico, no que alternavam as breves com as largas, com essa afetação com o queem muitas passagens musicais alternam as colcheias com as negras.

As diversas modalidades expressivas da música, que tanta vida artísticainfundem na composição, têm sua correlação no latim, não só com o jogo dosacentos, incompletamente herdados por nossa língua, mas também na sintaxesuperior com aquela infinita policromia dos relativos quantus, qualis e quod; osdemonstrativos hic, iste, Ule; ipse, is, idem; os numerosos interrogativos,determinativos, comparativos e superlativos; as duas formas passivas do futuro deinfinitivo relativas à necessidade e a simples probabilidade; a variedade dasconjunções de diferentes empregos, embora de idêntica significação; os estilosdireto e indireto; os finais em usus e em dus, e, enfim, toda a complexidade daconstrução e da dicção, que, qual longínquo eco, vemo-la repetir-se com um "malinstrumental" em nossa, entretanto, tão formosa língua castelhana. O golpe de morteatirado pelo "sermo vulgaris", origem das línguas romance ulteriores, à clássicaharmonia musical latina se deveu, entre outras coisas, à supressão, tanto doelemento interno dos pés musicais, como do externo da versificação comocompasso ou medida, coisa idêntica ao que ocorreria na arte musical seprescindíssemos do compasso e igualássemos o valor de todas as notas. As línguasmodernas assim formadas perderam quase todo o valor musical de suaspredecessoras, ficando como algo, musicalmente, sem relevo. Graças ao hábito écomo nos apropriamos, com mais ou menos inconsciência, do espírito das diversaslínguas, e do convencionalismo de suas palavras, nas que pouco ou nada fica já doespírito musical e filosófico que antes tivessem elas, porque dito espírito, como acor, a forma e o número, é um longínquo reflexo da linguagem universal perdida,que desapareceu quando este se separou da Matemática e acabou por operar-se adestruição inarmônica e descompassada da obra do músico, poeta das vozesinstrumentais, como o poeta é o músico da voz humana, essa voz cuja magia nãoestá ainda começada a estudar em nossa ciência psicológica.

Os raciocínios que nos antecedem levam para um terreno misterioso, talcomo o da origem das primitivas linguagens hierática e hieroglífica, cuneiforme,

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ogâmico, maia, etc., etc., invadindo um terreno quase proibido hoje para o homem:o da Magia tradicional, assunto que não já mereceria capítulo à parte, senão umamuito completo biblioteca.

Se, por exemplo, consideramos o verso hexâmetro latino que diz:Haec ubi dicta, cavum conversa cúspide montem,Vemos nele quatro elementos, ou seja: a) várias vogais que, conforme os

princípios do Koenig dão distintas notas umas das outras, embora sempre à oitavaou ao uníssono; b) várias consoantes que dão distinto timbre às vocais com as quaisestão unidas, à maneira do também diferente timbre que imprimem à mesma notadiferentes instrumentos; c) duas classes de valores para a sílaba; d) duas classes devalores internos para o pé (dáctilos e espondeos), embora iguais exteriormente.

Em relação às vocais, de igual modo que em música se pode substituir umaoitava por outra, podem-se intercambiar elas em línguas, como o árabe ou ohebreu. Cabe, pois, que prescindamos das vocais por um momento, as elidindo,como nas famosas fugas-passatempo. Se logo prescindimos também dasconsoantes, ficarão ainda, ao modo como ficam no filtro do químico as substânciasinsolúveis, aquelas relações de quantidade do verso, às que podemos representar,havida em conta sua diferente duração, empregando pontos para as sílabas breves etraços para as largas, com o que o verso chamado nos daria esta expressãosimbólica de suas cadências:

Isto é já, a bem dizer, uma como telegrafia do Morse, ou sistema de pontos eraias não alheio a certos sistemas arcaicos da América, a respeito dos quais hoje nãopodemos nos ocupar.

Mas, existe algo, entre os documentos do passado, capaz de nos mostrar umpouco parecido a estes curiosos esqueletos de entonação e medida? - Sem disputa -.Ao seu devido tempo nos ocuparemos deste problema em nossa Biblioteca.

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CAPÍTULO IVOS PRECURSORES DE WAGNER

A música dos séculos XV e XVI - Morais, Vitória, Ramos de Pareja, Zarlino,Palestrina, etc., etc - Os grandes organistas e clavecinistas - As especializações doséculo XVIII - A Academia Bardi - Os dois formidáveis inimigos daquela música -O Palácio do Sol - Vaidades pseudo-musicais - A escola revolucionáriahamburguesa - A revolução de Gluck, a Arte grega e a Academia florentina - Amúsica milésia e a música como servidora da poesia - Sebastian Bach, Haendel,Haydn, Cherubini e Solmbert - Mozart, soberano - A revolução beethoveniana ewagneriana - Carlos Maria Weber - Os sucessores de Wagner - Chopin e Schumann- Os acontecimentos históricos e a obra dos gênios - O nacionalismo na música.

Desde que Guy d'Arezzo, em 1026, criou nossa escala musical, dando àsrespectivas notas os nomes das sílabas iniciais da primeira estrofe do Hino a SãoJoão, que diz:

Ut quedan laxi, resonare fibrisMira gestorum, famili tuorum,

Solve polluii, labii reatumSante-Ioannes,

a música foi elaborando-se com lenta evolução. Seria, pois, injustiça notória a defalar da prodigiosa criação musical de Wagner se antes não consagrássemosalgumas linhas em honra de alguns de seus predecessores, sem os quais a obrawagneriana não se explicaria, como não cabe que nos expliquemos esse outroprodígio da radiotelegrafia Marconi sem os precedentes fundamentais delaassentados pela físico-matemática de Maxwell e de Lorde Kelvin, e sem aquelesoutros precedentes dos físicos precursores.

Wagner, a bem dizer, teve como predecessores a todos quantos se ocuparamde música religiosa ao sair da noite medieval com o Renascimento, e aos quaisdevemos consagrar a comemoração de um breve, embora desordenada, lembrança.

"A atividade intelectual que desperta o Renascimento – diz Cecílio Roda -não pode, pelo menos, chegar à música e de encarnar-se em uma direção bela, emum artista que, utilizando os materiais que ela põe ao seu dispor como médio, nadamais que como médio, expressa a fé de crente e sua esperança em Deus. Palestrina,sem mais recursos que as vozes sozinhas, inicia essa tendência. Mais que às regras,atende à expressão; mais que demonstrar o que sabe, aspira a fazer ver o que sente;mais que escrever combinações pedantescas de notas, inspira-se no texto, nutre-sedele, e saturado de sua expressão, verte-a no papel. Com ele se alinham todos osgrandes artistas espanhóis do século XVI: Morais, que lhe precede; Guerrero, seucontemporâneo; Vitória, seu continuador, e nossa Espanha figura então na primeira

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fila deste movimento estético 1.1 Arteaga cita os seguintes: Vitória, Morais, Guerreiro, Francisco Soto, Bartolomé Escobedo,Pedro Heredia, Antonio Calasanz, Francisco Talayera, Antonio de Touro, Pedro Ordóñez, JuanSánchez do Tineo, Francisco Bustamante, Miguel Paramatos, Cristóbal da Ojeda, TomamGómez da Palencia, Juan Paredes, Gabriel Gálvez, Rafael de Focinha, Silverio da Espanha,Pedro Guerreiro, Gabriel o Espanhol, Diego Lorenzo, Francisco de Prioresa, Diego Vázquez deConcha, Bartolomé da Corte Aragonesa, Antonio Carleval, Jerónimo da Navarra, Pedro daMontoya, Abraham da Perto, etc. Veja-se também As revoluções do teatro musical italiano,Veneza, 1785.Com referência aos grandes organistas espanhóis, o P. Luis Villalba descobriu em um manuscritodo arquivo do Escorial toda uma escola de excelentes e geniais compositores ignorados ou logo quevislumbrados, como Francisco da Peraza, Bernardo do Clavijo, Sebastian Aguilera da Heredia,Ximénez, Perandreu, Joan Sebastian, Serrano, Tafalla, Torrijos e outros do XVI e XVII (Ummanuscrito de música do Arquivo do Escorial: A Cidade de Deus vol. extra grande). Ascomposições de quase todos estes mais algumas outras dos mais renomados organistas do XVIII eXIX desfilaram pela primeira vez ante uma concorrência internacional de professores compositoresna conferencia-concerto que com ocasião do primeiro Congresso Nacional de Música Sagrada deudito Pai na Catedral do Valladolid, onde se revelou aos próprios e estranhos toda a grandeza daescola orgânica espanhola. Os tatos e obras dos três primeiros, editados com algumas das peças queo insigne didático Tomás da Santa Maria inserida na Arte de tanger fantasia, formam o primeirovolume publicado de uma Antologia de organistas clássicos espanhóis (Madrid, 1914), econstituem a escolhida coorte que ao redor de Cabeçudo sustenta a grandeza da arte espanhola.Nas Saladas de Flecha o mesmo P. Villalba mostra no faiscante compositor Mateo Flecha umaspecto interessante da veia musical satírica e cômica, que permuta ao divino a melopea picaresca, edá caráter muito humano ao divino naqueles poemas burlescos e jocosos, embutido heterogêneo queao redor do mistério do Natal de Jesus Cristo se tece (A Cidade de Deus, vol. lix), e nas Dezcanções espanholas dos séculos XV e XVI (Madrid, 1914), aparecem peças tão notáveis como oromance mourisco Ai meu Alhama! Que teve que proibir o conde da Tendilla para evitar motinsem Granada; a célebre canção de Natal (Madrigal) Olhos claros, serenos, da Cetina, posto emmúsica por seu contemporâneo e patrício Pedro Guerreiro, irmão maior do outro famoso Guerreirodiscípulo de Morais, e canções de natal (Heder que hoje se diria) do Juan Vázquez.Não queremos deixar de citar o estudo sobre um tratado inédito de música do século XV (1482)que se publicou na Cidade de Deus, de grande valor para conhecer o estado da música práticanaquele tempo na Espanha, os artigos sobre o Felipe II tocador de viola, Costumes musicais emtempo de Cervantes e a Conferência concerto que em 1910 deu no Escorial, onde se revelaramvárias cantigas do Alfonso X o Sábio, das que o P. Villalba traduziu, harmonizado e publicadovárias entre as mais formosas.

Bartolomé Ramos de Pareja, em sua Música Prática, descobria o sistema dotemperamento igual; Zarlino encontrava o acorde maior dividindo em 1/1, ½, 1/3, ¼,1/5 e 1/6 a corda vibrante, e o acorde menor aumentando-a em análogasproporções, e Salinas ressuscitou os pés da poesia latina aplicando-os à música".

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À época, e depois destes autores, a florescência do Renascimento deu na artemusical professores notáveis no órgão, o cravo e o clavicordio, os reis de então,cujos nomes convém, superficialmente, recordar.

Êmulos mais ou menos ilustres do incomparável Giuseppe PierluigiPalestrina (1514-1594), foram-no: Baltasar Donati, da Cremona (1535-1603),insuperável no madrigal e nas canções de Natal; Guillerme Byrd (1538-1623),organista de São Paulo, de Londres, e da capela real, quem, em união de seu mestreTallis, ostentou a primeira patente como impressor de música e foi chamado peloFetis "o Palestrina inglês", por sua inspiração e fecundidade, pois somente emCambridge existem 70 obras suas para cravo e órgão; Leonardo Lechnez (1554-1604), mestre de capela do conde Federico Hohenzollern e organista do rei daBaviera; Tomam Morley (1557-1606), eminente contrapontista inglês, sucessor doByrd; John Bull (1562-1628), o Liszt de seu tempo; Miguel Praethorius (1571-1621),mestre de capela do duque de Brunswick; Cláudio Monteverde (1567-1643), daCremona, o primeiro que se atreveu a implantar em música as dissonâncias, oacorde de sétima dominante e as demais tonalidades modernas, homem, enfim, aquem Riemann considera como o pai da instrumentação; Champión doChambionére, primeiro clavecinista de câmara do Luis XIV e mestre do Angleberte do Couperin o Velho, e outros muitos.

No século XVII temos já aos célebres Corsi, Ariosti e Zipoli; a MarcoAntonio Cesti (1620-1669), mestre de Capela do imperador Leopoldo I da Áustriae um dos mais típicos autores de cantatas e óperas; ao José Lulli (1633-1687), oaperfeiçoador da giga; ao Marais (1656-1728), o mestre de quintón, viola de amor eviola da gamba, e com os que se começavam a desenhar os primeiros quartetos equintetos de corda modernos, a parte mais delicada, como é sabido, da música; aoadmirável Corelli (1653-1713); ao Andrés Campra, o sucessor de Lully e oprecursor de Rameau; ao Desmarets (1662-1764), e ao Francisco Couperin (1668-1733), o representante mais ilustre de uma grande família de artistas que, qual a dosBach na Alemanha, ilustrou a história da música na França por espaço de doisséculos; ao Monteclair (1666-1737), o clavecinista de Luis XIV; a Caldeira (1670-1736), autor fecundo de 66 óperas e 29 oratórios; ao Juan B. Buononcini (1672-1743), de Módena, cujas óperas gozaram de tanta celebridade que quase trataram,embora em vão, de competir com as de Haendel entre o público de Londres; à LuisClerambault (1676-1749), organista do Luis XIV e cujos minués se fizeram célebrespor todas as Cortes da Europa; ao exímio Vivaldi; ao Destouches (1672-1749), aoMouret (1682-1738), Marcelo (1686-1739), Durante (1684-1755), Teleman (1681-1767), Matherson (1681-1764), Porpora (1686-1770), Daquin (1694-1772), e outrasmil figuras de primeira ordem como clavecinistas, quem, embora incorreram nãopoucas vezes nos delírios de Pitoni e outros célebres extravagantesconfeccionadores de missas até de doze coros e de fugas até de sessenta e quatrovozes, são credores, pelo menos, a que lhes recorde com veneração e carinho, jáque sobre os velhos e roídos pergaminhos de alguns deles, perdidos em mais deuma ocasião em templos de ínfimas aldeias, libaram homens como Rameau, Bach,Haendel, Haydn, os dois Scarlatti e Beethoven as mais puras belezas clássicas, entre

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o caos de suas missas, oratórios e opera, por isso todos, em quantidade mais oumenos infinitesimal, podem ser considerados como precursores do colosso deBayreuth, embora não poucas de suas raridades e pedanterias fossem fustigadasnaquela implacável sátira de Os Mestres Cantores.

Não foi menos abundante em músicos o século XVIII que seu séculopredecessor, e a lista dos contrapontistas de órgão e cravo que demos em relação aeste século XVII, podia ser prolongada com os Pugnani, Dittersdorf, Boccherini,Pergolesi, Bruni, Clementi, Humel, Auber, Field, Czerny, Meyerbeer, Donizetti eMoscheles; mas o século XVIII está muito cheio com os esplendores daqueles sóisde primeira magnitude que se chamaram Haendel (1685-1759), Johann Sebastian Bach(1685-1760), Gluck (1714-1788), Felipe Manuel Bach (1714-1788), Haydn (1732-1809), Mozart (1756-1821), e em parte Beethoven, até o ponto de que ao lado delesparece irreverência falar de nenhum outro.

Por outro lado, muito mais especializados já neste século XVIII os diversosramos musicais que o foram ao nascer nos séculos anteriores, mais que historiar aevolução da música em geral, até chegar a Wagner, devemos nos limitar a dar umaligeira idéia de como foi nascendo o drama musical através de quantos obstáculoslhe opusera a rotina de não poucos músicos célebres de então, obstáculos dos quehoje, não obstante, apenas permanecem na lembrança.

Sobre tão interessante extremo, ouçamos a autorizada voz de nosso saudosoamigo D. Cecílio de Roda, o crítico musical melhor que tivemos nestes últimosanos na Espanha. Para isso copiaremos de seu interessante discurso de recepção naReal Academia de Belas artes de São Fernando (1906) alguns fundamentaisconceitos.

O Renascimento, que tinha produzido uma corrente estética dentro damúsica erudita, devia iniciar outra mais interessante ainda.

Foi em Florença, na Academia do Conde Bardi. Os que a ela concorriam,poetas, músicos, artistas, propuseram-se a renovar aqueles maravilhosos efeitos quea música produzia segundo os escritores gregos, nas tragédias de Ésquilo, doSófocles e do Eurípides, valendo-se de médios bem distintos dos recomendadospelos teóricos em seus curiosos receituários. A tentativa deu por resultado aprimeira representação de uma ópera em 1594: a Dafne, de Rinuccini, posta emmúsica pelo Caccini e pelo Peri. Tanto nela como nas obras que imediatamente aseguiram, vê-se o propósito completo de imitar à Antigüidade. Poesia, música emímica se fundem em uma arte única, como antes tinham vivido unidas na poesialírica coral e na comédia Ática; sua construção olhe como a modelo aos nomospíticos em honra do Apolo; os assuntos, os livros se tomam sempre da mitologia edas fábulas helênicas; a cada personagem aplicam constantemente um grupoinstrumental como inseparavelmente unido a seu caráter, e até em seu afã de imitarem tudo aos gregos, tentam mover a voz nos intervalos e giros característicos dosgêneros cromático e enharmónico. É a ressurreição da arte grega, assim que a artegrega podia ressuscitar-se. Dele não tinham ficado documentos, senão descrições;não tinham ficado textos, senão referências, e os imensos vazios do modelo se

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aplicaram às suprir com boa vontade. Sua base é a declamação, a inteligênciaperfeita do texto, o realce expressivo dos sentimentos, quando palpitam na açãodramática, e por isso deixam a palavra falada quando não a move um interesseafetivo, ou a reforçam com um ligeiro acompanhamento se, se desembrulhar commais interesse, ou a fazem cantar nos momentos mais passionais.

A nova arte, desprezado pelos professores, que nem sequer lhe concediam ahonra da discussão, ia encontrar se com um formidável inimigo. A música até entãonão tinha tido mais que um: a ciência; agora ia ter outro mais perigoso ainda: adiversão frívola, ramificada em duas manifestações distintas: a faustuosa dospríncipes e magnatas, de um lado, e a vulgar e pedestre das multidões, de outro. Asintenções artísticas da camerata do conde de Bardi transformaram-se bem logo emanseios de esplendor e de faustosidade. As representações que se verificam nospalácios, tocavam os limites do maravilhoso, e ali era de ver o campo de Darío comos elefantes que levavam torres cheias de soldados armados; o encher-se de água osalão e avançar por aquele mar um navio levando na proa riquíssimo tronopreparado para os soberanos, e no meio uma grande mesa onde, finalmente,jantavam quarenta pessoas servidas por tritões; o avançar pelos ares um imensoglobo em forma de mapa-múndi sem que se vissem os artifícios que o sustentavame moviam, e ao chegar ante César partir-se em três pedaços, mostrando em seuinterior uma orquestra inteira de hábeis músicos sobre um fundo de diversos ecoloridos metais, entre os quais abundava o ouro; o representar o Palácio do Sol,com luzes tantas que os espectadores não podiam suportar seu brilho. E claro está,neste trem de maquinarias e invenções a música tinha que concluir por ser o demenos, por converter-se em escrava do aparato, por coadjuvar ao entretenimento edistração dos senhores, destruindo a ação e manifestando-se em forma deintermediária e de acompanhamento de bailes. E se a música corria dessa maneira,não há o que dizer como andariam, a poesia, a arte cênica e o sentido comum, alionde na Pérsia antiga voavam com pólvora medeia Cidade do Persépolis; ondeAlcibíades aparecia guiando uma limusine na moda, e onde Freei recebia de seuamoroso Praxiteles um riquíssimo relógio de recente fabricação.

"Caccini, Peri e Monteverde não tinham conseguido ressuscitar a arte grega,mas sua tentativa havia dado um fruto positivo: a melodia. Seus sucessores, oscompositores artistas, preocupam-se por igual do sentido da letra e da criaçãomelódica; sua arte é uma arte de transação, na qual a linha cantável vai cada diaadquirindo encantos maiores, perfume mais penetrante, consistência mais robusta.Cavalli, Legrenzi, Scarlatti, Pergolesi e outros muitos nomes que estão na memóriade todos, trabalham nesta arte de fusão dentro da Itália; os franceses, desde Lully eRameau até Gretry, fundam uma arte nacional; os alemães começam com Keiser ecom a escola hamburguesa a lançar os alicerces da arte que haveria de ilustrar osnomes de Mozart e de Weber, e nesta produção de quase dois séculos, a melodiavai ganhando terreno, afirmando-se, constituindo-se em soberana absoluta. Areação contra o frívolo gozo sensual se apresenta com Gluck, quem, olhando aondeos da Academia florentina, à arte grega, procuraram seus assuntos na mitologia ouna lenda, prescindindo de adular as paixões do público e à vaidade dos cantores.

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“Trata”, são suas palavras, “de reduzir a música à sua função verdadeira, que não é outrasenão a de secundar à poesia para fortificar a expressão dos sentimentos e o interesse das situações,sem interromper a ação nem esfriá-la com ornamentos supérfluos, já que a música deve adicionar àpoesia o que adicionam a um desenho correto e bem composto a vivacidade das cores, e o acordefeliz das luzes e as sombras que servem para animar as figuras sem alterar os contornos".Aparecem então, entre uma porção de defensores do drama lírico no século XVIIIos dois jesuítas espanhóis Esteban da Arteaga e Juan Andrés.

O público não aceitou - como havia de aceitar? - a reforma de Gluck 1.Contra ele elevou-se a frivolidade das óperas de Piccini, e embora os mais cultos,Grimon, Rousseau, etc., foram passando-se ao partido do drama lírico, a maiorparte seguiu obstinada a seus cantáveis, passos de bravura e alardes de agilidade. Oscompositores italianos seguiram monopolizando tudo, vencendo à Mozart emViena, como antes haviam derrotado à Haendel em Londres, decidindo-se pelalaringe e desprezando a arte, preferindo o argumento exagerado com música damoda, ao drama sério; mas, quando os alemães começam a tirar deles a conquistaque tinham alcançado e começam a cultivar a melodia, esta nova arte que juntavaao perfume melódico o sentimento estético, reinicia-se a contenda. Ao começar oséculo XIX a ópera italiana continua desenvolvendo-se amparada por uma porçãode nomes já esquecidos, enquanto que a arte de transação se enriqueceu com asóperas do divino Mozart, quem, entretanto, tem que submeter-se a escrevê-las emitaliano.

O gosto do público começa a evoluir lentamente. Já em fins do séculoXVIII, os mesmos compositores italianos Sachini e Salieri tinham tomado algo daarte de Gluck; agora, Mozart é o que reina entre eles como soberano, o modelo doqual todos procuram tomar algo artístico para combiná-lo sabiamente com oproduto industrial. Constituem o furor de então o cantabile spianato e a agilidade

1 Acreditam haver dito o suficiente a respeito da personalidade do Cristóbal Gluck (1714 -1787),o grande revolucionário da música dramática, de quem Wagner mesmo se considerou o descendenteartístico mais direto. As cinco admiráveis tragédias poesias líricas de Gluck: Alcestes, Orfeu,Armida e as duas Ifigênias, e em especial o prefacio-arie te-ariete que lançou ao dar ao público aprimeira de “sortes obras, e que continuou depois ao dar a luz a ópera Paris e Helena, recordamnão pouco a valentia com que um século depois ia lançar se contra as rotinas e prejuízos musicaisde seu século o colosso de Bayreuth. O caráter antiartístico da ópera italiana com seus gorjeios,fiorituras, nota spianatas e demais criancices do bel canto, ficou literalmente pulverizado pelo autordo Alcestrs, com o credo dos novos ideais e do moderno teatro. Há pessoas, diz, que porque têmdois olhos e duas orelhas se acreditam com direito a julgar em belas artes. Em uma obra do gênerodo ária, por exemplo, do Orfeu, Che farol senza Euridice, a menor mudança de tempo ou deexpressão pode convertê-la em uma canção de marionetes. Uma nota mais ou menos sustentada,um reforço de som, o não observar bem o compasso, ou adicionar um simples gorjeio, pode destruiro efeito de toda uma cena..." Raniero do Calsabigi (1715-1795) foi o libretista predileto deGluck, a quneste atribuía uma grande parte de suas idéias sobre a reforma da ópera. Seu som ospoemas do Orfeu e do Alcestes.

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vocal. Rossini se decide por cultivar a segunda, por fazer cantar todos ospersonagens no frívolo sentimento do mais profundo desprezo pela letra; Belliniresponde com o cantabile sentimental.

Segue a, evolução da ópera com Verdi, que integra a ela um temperamentofogoso; com os franceses Auber, Herold, Adam e Halevy; com o Meyerbeer, enfim,que à frivolidade rossiniana opõe, quase sempre, a grosseria do efeito mais empoladoe original... E surge o terceiro fôlego de reforma. A doutrina de Wagner não fazmais que reproduzir a dos florentinos e a de Gluck. Faz da ópera uma arte decompenetração e de fusão, no qual a música não é o atrativo único, senão aservidora da poesia, fundidas ambas na individualidade do amor; arte apoiada nadeclamação, deixando à orquestra o cumprimento da missão efetiva..., o mesmo,em suma, salvo alguma variante de detalhe, o que haviam proclamado Caccini,Doni, Gluck, Arteaga e Juan Andrés... Wagner fez cair ao chão todo oconvencionalismo da ópera usual. Acabaram-se as árias, os padrões; desapareceramos gorjeios e as agilidades..., a ópera italiana e o cantor à antiga; expulsos daAlemanha do Norte e da França, só vivem e reinam em países de cultura inferior,naqueles onde a diversão e o passatempo risonho constituem o pasto único docritério artístico.

Voltando para os mestres do século XVIII, aos precursores maisqualificados de Wagner, além de Gluck, os homens, enfim, que realizaram namúsica o que a Enciclopédia não pôde realizar nos demais ramos do saber, oprimeiro que encontramos é ao Jorge Federico Haendel (1685-1759), o prodigiosoorganista a quem Beethoven chamou o mestre incomparável, o mestre dos mestresna suprema arte de produzir com poucos meios os mais assombrosos efeitos. Oadvogado-músico, discípulo de Mattherson, de Corelli e dos Scarlattis, autor deinumeráveis óperas, entre as quais sobressaem Rinaldo, chegou, entretanto, à culturacontrapontística de seu contemporâneo e homólogo Bach, a quem não logrou aconhecer nunca. A totalidade da produção de Haendel ocupa cem volumes daedição monumental do Clirysander, e é o fruto direto do maravilhoso polígrafoMattherson, verdadeiro iniciado hamburguês, de quem se diz que foi teólogo,jurisconsulto, poliglota, filósofo e músico, em cuja última especialidade abrangeupor sua vez todo o saber polifônico, porque compunha admiravelmente, tocavatodos os instrumentos da orquestra de então, cantava com magnífica voz de tenor,escreveu oito óperas, vinte e quatro oratórios, uma missa, suítes, etc.; dirigia, enfim,óperas e dava lições de solfejo, contraponto e canto. As sarabandas e variações desteúltimo sábio, verdadeiro precursor de Bach, e suas maravilhas religiosas de órgão,foram o obrigado precedente daqueles famosos largos que imortalizaram Haendel.

E o que dizer, que não seja pálida pintura, daquele outro prodígioenciclopédico musical, pai da música moderna, que em vida se chamou JohannSebastian Bach?

"No século XVIII - diz Cecílio Roda - a música volta a ser bela com Haendele com Bach. Em ambos há uma grande elevação de sentimento; em ambos aciência fica obscurecida pela intensidade espiritual. Bach, sobretudo, penetra nos

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textos bíblicos para acentuar musicalmente sua intenção e sua expressão; trata asvozes com uma soltura maravilhosa, sem preocupar-se mais que da emoção;introduz na orquestra as combinações mais atrevidas, e quando segue as correntesde sua época, quando em seus salmos, oratórios e missas adota o patrãoconsagrado, suas fugas e seu estilo se caracterizam por uma fluidez, por umafacilidade, por uma jocosidade extraordinária, e assim, enquanto seus predecessoresescreviam no condensado e duro estilo dos escolásticos, ele empregava oprimoroso e solto dos místicos. Era na música o que em nossa história literáriatinham sido P. Granada, Santa Teresa ou São João da Cruz".

Mais de cem anos fazia que o nome patronímico de Bach havia saído daescuridão, quando nasceu em Eisenach (1685) o gênio que haveria de lheimortalizar 1. Órfão aos dez anos, seu irmão maior Juan Cristóbal lhe ensinou oclavicordio. Com precoce audácia estudou aos célebres professores Froberger,Fischer, Kerl, Pachelbel, Buxtehude, Burnhs, Baehm, Reincke e outros organistas.Vendo que seu irmão não lhe permitia folhear o caderno que continhacomposições deles, furtou-lhe e lhe copiou à luz da Lua em seis meses! Mas,descoberto em sua piedosa fraude, lhe foi arrebatado sem comiseração o caderno,que só pôde recuperar à morte de seu irmão. Dietricht lhe iniciou nos segredos doórgão, e bem logo pôde vingar, sem sabê-lo, na corte de Dresden, ao grandeRameau das afrontas que a este causara Marchand em Paris, vencendo-o. Leopoldode Weimar lhe fez seu mestre de Capela, e ante o velho Reincke improvisoudurante uma hora sobre o coro Super flumina Babylonis. Abraçou-lhe o octogenário e,com lágrimas de emoção, disse-lhe: "Temi que minha arte musical morressecomigo, mas hoje vejo que contigo vai renascer mais pujante que nunca”.

... E tão pujante! tanto que aquele jovem colosso era nada menos que aprimeira pessoa dessa trindade Bach-Beethoven-Wagner, que enche com sua glóriadois séculos, e da qual emanou toda a ciência musical de nossa época! Bach sucedena corte de Leipzig ao grande Kulman, e na apoteose de sua glória, a sala palacianade Potsdam se transforma em um Parnaso verdadeiro... Três anos depois fica omestre completamente cego, como Beethoven ficou em sua última épocacompletamente surdo, e do mesmo modo que Beethoven recuperou o ouvido um

1 Se disposta a sérias meditações filosóficas este mistério das famílias verdadeiramente ilustres, semos ridículos títulos de uma meramente herdada e nominal nobreza. A história conta, com efeito, àscentenas estas famílias, estas inflorescências em cacho de homens das mais complexas aptidões,enlaçados através dos tempos, não só pelo mero vínculo do sangue, mas sim por um secreto espíritomais ou menos manifesto de genialidade, que lhes serve de laço conector e chamariz através de suasmais distintas aptidões... Médicis, Borgias, Couperines, Bach e cem outras destas dinastias, sejada luz, seja das trevas, aconteceram-se assim, dando lugar, no meio do segredo ocultista que issoencerra, a triste aberração das casas nobiliárias, nobiliárias pelo mero feito da herança física, masnão da herança do espírito. Não sempre se apresenta, entretanto, aquele fenômeno, que,generalizado, traria a pior das tiranias: a tirania dos gênios. Mas bem acontece de ordinário, queo gênio não tenha efetivos sucessores consangüíneos, como se vê em Beethoven, no Napoleão, emWagner e em tantos outros.

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instante em sua agonia para dirigir a orquestra invisível da tempestade que recolhiao último suspiro de sua alma atormentada e tempestuosa, Bach pouco antes demorrer, em 1750, recuperou a vista de repente.

A verdadeira glória de Bach, como a de Beethoven e até a de Wagner, épóstuma. A maioria de seus contemporâneos não viram nele senão ao organistasábio e ao hábil improvisador. Sua Paixão, segundo o Evangelho de São Mateus, esteve aponto de perder-se, como tantas obras do mestre, esquecida durante um século. ÀMozart cabe a glória de ter trazido à luz o grande compositor, pai da músicamoderna, como a Wagner cabe também a glória de ter salvado do menosprezo aparte última e melhor da obra de Beethoven: seus quartetos finais e sua NonaSinfonia.

A existência de Bach pode dividir-se em três épocas, segundo os autores,épocas que correspondem exatamente à sua residência nas três capitais alemãs deWeimar, Coethen e Leipzig. "Na primeira amplia e aprofunda sua educação técnica;estuda as obras italianas do Vivaldi, Legrenzi, Frescobaldi, etc.; cultiva omecanismo do órgão até seu completo domínio e escreve 50 fugas admiráveis paraeste instrumento. Na ínfima capital do Coethen, falto de atmosfera e de recursos,sem mais música que a do singelo coral calvinista acompanhado por um órgãodeficiente, Bach se dedica inteiramente à arte de câmara e de orquestra, e aliescreve, entre outras obras imortais, o primeiro caderno de seu Cravo bem temperado1, suas Invenções e suas Suítes francesas e inglesas. Finalmente, em Leipzig, acha Bach ocenário que necessitava e ali, como mestre de Capela, compõe suas maismonumentais obras: os Oratórios da Paixão, a Missa em Si, os Corais, as Cantatas e osOfícios que maior glória lhe proporcionaram.1 Feito para demonstrar as vantagens do temperamento igual, defendido pelo espanhol RamosCasal, e que suprime a chamada coma pitagórica.

Real e verdadeiramente, em Johann Sebastian Bach começam todos os gênerosmusicais modernos; mas as diferenciações ulteriores destes aparecem nele aindaapagadas e com seus esboços confusos, pois estava reservada ao seu filho FelipeManuel Bach a glória de deslindar a Suíte da Sonata e do Concerto, e é sabido que aSuíte primitiva com suas partes essenciais de Alemana, Corranda, Zarabanda e Jiga, esuas acessórias intercalares Gavota, Pasapié, Chacona, Bourré, Menuetto, etc, quase foiuma nova criação nas mãos do mestre da Fuga, e que abriu passo a todos os ares dedança ulteriores, meras variantes da suíte, até chegar a valsa moderna de Weber, doChopin, de Strauss e outros 2.2 O cravo é um verdadeiro instrumento de cordas, que soam dedilhadas ou beliscadas por umapluma de corvo atalho em triângulo, e remplazada mais tarde por uma tira de couro. Pertence,pois, à família das harpas e descende em linha reta do virginal e da espineta, que não eram outracoisa que clavecines minúsculos e rudimentares. Além disso, o cravo possui vários pedais (segundoos modelos); uns que jogam o papel dos do piano moderno, e outros, parecidos com os registros doórgão, que fazem possível a variedade da classe de som e aumentam a extensão do teclado.Se em construção e em mecanismo difere tão radicalmente do piano, o trabalho artístico do que o

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toca, é também muito outra da do pianista moderno. Os fabricantes de clavecines variaram osmodelos até o infinito; eram verdadeiros artistas iniciados nas leis da acústica e cada diainventavam um aperfeiçoamento e uma reforma. O clavecinista necessitava e precisa conhecer afundo seu instrumento, arrumar a cada instante os delicados detalhes do mesmo e estar sempreatento a suas menores e freqüentes desarrumações; em uma palavra, acha-se em comunicação tãodireta com seu instrumento, como pode está-lo o violinista com seu stradivarius. Por isso, e emgeral, a execução no cravo é menos mecânica, mais pessoal, mais íntima que no piano. Até houveclavecinistas que se fabricaram eles mesmos seus instrumentos.Se te ouça uma peça escrita para cravo executada neste instrumento e depois no piano, no segundocaso encontramos a audição surda, cinza e monótona. Ao piano, somente pôde adaptar-se, emestrito sentido artístico, a música de cravo que tem caráter de órgão, como por exemplo, as fugas deBach. Diz Schweitzer, falando sobre o particular:"Com o piano ganhamos em amplitude, mas perdemos o timbre de instrumento de corda, tãocaracterístico do antigo cravo. A mudança No caráter da sonoridade, não beneficia em nada asobras de Bach, que reclamam um timbre claro e metálico. Quando escrevia suas sonatas de cravo eviolino, as sonoridades dos dois instrumentos eram inteiramente homogêneas; hoje sãoabsolutamente diferentes e se repelem, sem fundir-se jamais."Claro está que, à inversa, em nenhuma ocasião poderá o cravo competir com o piano nas obrasescritas para este. A partir de Beethoven a música entrou em uma nova era, cuja conseqüênciapode dizer-se que foi o piano e em que o artista necessita um instrumento que possua qualidades derobustez capazes de responder a essas expansões particulares que parecem não ter conhecido osséculos precedentes.

Francisco José Haydn (1732-1809) é outro dos patriarcas da Arte, e overdadeiro criador da música instrumental moderna. Somente de sinfoniasescreveu 118, e 83 quartetos, nos quais brilha o plácido gênio do mestre. Quarteto eSinfonia ficaram enquadrados nele definitivamente na forma ampliada da sonata decâmara, e sua influência foi grande, tanto no Mozart como em Beethoven. Com suaCriação estendeu também os limites do poema sinfônico, e sua alma nobre voouaos céus aqueles por ele cantados entre os estampidos contínuos dos canhõesfranceses que sitiavam a Viena em 1809... Haydn, como Haendel e comoBeethoven, eram verdadeiros ascetas da arte, abnegados sob pesada cruz de seuincompreendido ideal, tão acima dos de seus contemporâneos.

E chegamos ao divino Wolfgang Amadeo Mozart, o menino prodígio, sem cujaobra maravilhosa não pode explicar-se a de Beethoven, sobretudo na primeira fase.Ninguém tão célebre e tão mimado como ele nas Cortes européias; ninguém comoele tão docemente delicado e aprazível como os sonhos ainda juvenis entre os quaisa morte lhe surpreendera... Em música religiosa só Haydn e Haendel podemcomparar-se; em instrumentação de conjunto ninguém como ele até então; emsonatas e sinfonias só pôde ser superado pelo colosso Beethoven, sem o qualtampouco se explicaria. A ópera do novo estilo começa já em seu Dom Juan, nosEsponsais de Fígaro e na Flauta Mágica, e é tão imenso o catálogo de suas obras, quealcança até 800 de todos os gêneros conhecidos, da cantata Elogio da amizade e asóperas A clemência de Tito, o Rapto, Idomeneo e outras das quais apenas se recorda o

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nome, até os mais delicados quartetos de câmara e a mais pura música religiosabebida na inesgotável fonte de seu mestre J. S. Bach, a quem ressuscitara...

"A música instrumental de Mozart tem hoje em dia um sabor arcaico comoda idade de ouro - diz Lenz - Um grande número de suas sonatas envelheceram já, enos parecem como brinquedos infantis; mas as sonatas escolhidas para piano eviolino as colocamos acima das homólogas de Beethoven. Mozart deixou 33sinfonias: seis fixam ainda a atenção dos artistas; destas seis, duas são produções deprimeira ordem e o serão sempre: a sinfonia em dó com a fuga e a em sol menor. Suafantasia para piano, a quatro mãos, e a fantasia e sonata em dó, serão novassempre, como a grande serenata para treze instrumentos de sopro e alguns de seusquartetos. Nos três colossais tomos do M. Oulibischeff sobre Mozart, há amplamatéria de estudo a respeito deste precursor, com o único defeito de que paraengrandecer ainda mais a figura de seu herói, tratou em vão de rebaixar a deBeethoven injustamente".

A biografia do divino, desenvolvida através de meros trinta e cinco anos,ocuparia muitas páginas e nada novo acrescentaria ao que o público ilustrado jáconhece. Ouvir suas obras equivale a evocar aquela época galante em que reis,magnatas e cortesãs, cheios de hipocrisia e de vícios, queriam viver uma vidaarcadiana ou pastoril em seus Trianons, dançando minués e pavanas sobre umaimensa mina carregada de pólvora por seus desacertos, mina que explodiu, ao fim,com a Revolução francesa. Recordar sua vida e seus triunfos é visitar aquelasCortes, nas que o menino prodígio e sua irmã Maria, quase tão boa pianista comoele, enchiam de orgulho a um pai, possivelmente excessivamente duro em suasexigências para com os meninos, como duro fora deste modo o pai de Beethoven...Também o fracassado Mozart, como todos os gênios, teve sua vida rodeada denada explicáveis feitos do oculto, e por mais que a crítica cética tenha queridodesvirtuá-lo, sua própria morte se viu precedida pelo estranho encargo de sua Missado Réquiem, que, conforme suas premonições foi cantada, com efeito, em seusfunerais 1.

Quatro anos depois de Mozart, nascia em Florença Luigi M. Cherubini(1760-1842) il cherubino, que disseram os venezianos ao ouvir suas primeirascomposições, toccante meno ao suo nome dalla dolcenzza de suoi canti. A partir de 1802, emque se estreou sua Lodoiska, no Teatro Imperial de Viena, o êxito de suas Duas

1 A lenda mozartiana refere, com efeito, que certo dia entraram em seu gabinete de trabalho doiscavaleiros misteriosos que lhe encarregaram e pagaram uma Missa do Réquiem. O músicoempreendeu em seguida a composição da obra com entusiasta e estranho ardor. Ao acabá-la pareceser que disse a seus íntimos: "-Esta música será logo entoada em meus funerais." Efetivamente,poucos dias depois voava a mundos melhores aquela alma de menino, a quem alguns piedosossinceros acreditassem acompanhada em sua ascensão triunfal por aqueles dois anjos, seusdesconhecidos eleitores da Missa célebre. Diga-o que se queira, nós acreditam que estas coisas estãointimamente relacionadas com a lenda nórdico- asturiana da Huestia (pág.157 de nosso livro Otesouro dos lagos de Somiedo ). Díccse por esta lenda que uns meses antes de sua morte o homem"anda na Huestia", quer dizer, pode receber semelhantes e visitas astrais.

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Jornadas, O Monte de São Bernardo, Medea, A Hospedaria Portuguesa, e, sobretudoFaniska, foi tão grande que Haydn, Mehul e outros lhe reputaram como o primeirocompositor dramático de sua época. Segundo expressa Wilder, foi o músicocontemporâneo seu a quem mais admirou e em quem mais se inspirou Beethoven.Em 1813, diz Roda, foi nomeado diretor do Conservatório de Paris e só depois deestrear, em 1833, sua última ópera Alí-Babá, quando já contava setenta e três anos,dedicou-se a cultivar a música de câmara, em que Fetis não pôde achar imitaçãoalguma de Haydn, Mozart nem Beethoven. Outro crítico lhe considera, por suaobra total, como o representante da esquerda entre o idealismo clássico e omoderno romantismo, lhe chamando mestre da forma, quase tanto como Mozart eBeethoven. Este lhe considerou até o ponto de que, segundo Seyfried, chegou adizer: "estou tão identificado com Cherubini em sua Missa do Réquiem, que sealguma vez escrever uma missa deste tipo tomarei nota de muitas coisas dele".

Depois de Cherubini, Beethoven; depois do músico italiano e francês, omúsico alemão incomparável, o primeiro como artista, o único como músico antecuja vida de dores e privações todas as de outros gênios musicais empalidecem,como ante a luz do sol de todos outros astros.

Antes de consagrar ao colosso de Bonn o capítulo à parte que merece comoprecursor de Wagner, no sentido musical mais genuíno, fecharemos o presentecapítulo dedicando umas linhas à Weber, o outro precursor mais imediato deWagner, tanto no sentido musical como no dramático.

Carlos Maria Weber (1786-1826) é um dos mais puros modelos que podeachar-se de originalidade, de paixão, de poesia fantástica v de honradez artística.Apesar de sua deficiente educação técnica, chegou a criar um estilo personalíssimoe a fundar uma verdadeira escola de música dramática que influiupoderosissimamente no ideal artístico de Richard Wagner. A orquestração deWagner poderá ser a de Beethoven, agigantada pelo progresso da época e pelasmaiores exigências do âmbito dramático; a lied de Wagner, salvo outros precedentesanteriores, até em Bach, poderá ter herdado a ternura do autor de Rosemonde 1,mas é inegável que nenhum drama lírico se aproximou, musicalmente falando, aosdramas líricos do criador do Anel do Nibelungo, como essas magistrais obras quechamamos Freyschütz, Euryanthe e Oberón, qual no sentido revolucionário da velhacena italiana, ninguém esteve mais perto, como vimos, de ditos dramas líricos, queas obras de Gluck (Alcestes, Orfeu, as duas Ifigênias e Armida).

Na sucessão dos gênios ao longo da história, é comum ocorrer, caso que sepresta às mais sérias meditações filosóficas, de que a um gênio malogrado, morto

1 Franz Petcr Schubert (1797-1826) é o mestre da lied, como Bach o é da fuga e Beethoven dasinfonia. Os ‘Heder’ ou baladas de Schubert não têm rival, e neles a poesia bucólica aparecerodeada de todos os encantos anacreónticos dos gregos. Os restos mortais de Schubert descansam nocemitério do Vachring, a dois passos dos do Beethoven, e, como diz um autor, se em vida nãoconseguiram encontrar-se nunca, a morte igualitária uniu a estes dois gênios: encarnação da músicainstrumental, o um, e criador da poesia lírica cantada, o outro.

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na flor de sua idade, sucede imediatamente outro que parece ser, por lei oculta, seuherdeiro mais direto: tal o caso de Mozart com o Beethoven: tal o caso deEspronceda com Zorrilla; tal o caso de Weber com Wagner... A tuberculose cortou emflor a vida de Weber, quando o jovem apenas se havia começado a produzir, e,entretanto, com apenas o Freyschütz se pôde encher a glória de um homem!...

Ao nos ocupar da vida de Wagner relataremos algumas passagens quemostram aquele laço de herança psicológica ao que acabamos de aludir. Resta, pois,só terminar o perfil artístico deste precursor tão admirável.

A abertura de Freyschütz (o caçador furtivo) é o mais sólido fundamento daópera nacional alemã e está considerada pela sã critica como uma obra clássica, semprecedentes determinados, nem mesmo no Alcestes, de Gluck. A abertura de Oberoné um drama lírico, apoiado na novela de Huon de Burdeos, relativa ao Rei dos Gnomos ea sua esposa Titânia, personagens que já tinham figurado antes na comédiafantástica de Shakespeare, O sonho de uma noite do verão, obra sobre a qual caiu depoisa célebre fantasia de Mendelssohn. Preciosa, outra das óperas de Weber está calcadana novela de Cervantes A Gitanilla. O arqueiro Freyschütz que, em um rasgo desupremo atrevimento, faz pacto com o diabo, é um parente muito próximo doDoutor Fausto, cantado em verso pelo Goethe, de maneira que ambas as obras sãoreflexo fiel da eterna lenda da curiosidade do saber e do conhecer que deu volta aomundo e, de modo que ambos os autores são expressão idêntica em distintasformas de arte, de uma mesma idéia de titanismo desesperado e rebelde contra ocárcere de nossa vida sublunar, por isso se diz, com razão, de Weber, que deudireito de cidadania nos domínios da arte ao panteísmo alemão, eco não sempre fieldo sábio panteísmo hindustânico, e aos vigores realistas e descritivos da escolaliterária romântica, formada pelos mais ilustres literatos do século XIX.

Este último ponto concreto da escola romântica merece atenção especial,porque nele está o ponto de partida da Nona Sinfonia, de Beethoven, por um lado, eda citada obra de Weber, por outro, com o que não terá que acrescentar até queponto semelhante escola é também um dos mais imediatos precedentes da obramusical e literária de Wagner.

Recordemos que o renascimento universal que precedeu à RevoluçãoFrancesa teve no campo da poesia lírica na Inglaterra a Richardson, Goldsmith,Yung, o autor das Meditações Noturnas, que chegou a cantar misticamente aos astros,como outras tantas "casas de devoção"; Percy, o reabilitador das muito docespoesias populares inglesas; Macpherson, o evocador de Ossian e dos bardosirlandeses; Burne, o das baladas incomparáveis que esperam ainda a um novoSchubert para instrumentá-las; os poetas lacustres Walter Scott e Tomam Moore;Coleridge, o restaurador dos Eddas escandinavos, e, enfim, Lorde Byron. A poesialírica alemã seguiu vitoriosa estes rastros com a Mesiada, do Klopstock; com Lessing,o imitador de Shakespeare; com o Wieland e seu Oberón; com Herder, o develadorda poesia hebraica utilizada em seguida por Halevy, Meyerbeer e Mendelssohn;com o incomparável Goethe e com seu Fausto, e, enfim, com o Federico Schiller, o

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atormentado, o humilde, o incompreendido precursor, em poesia, pelo que emseguida seria Beethoven, em música, porque como diz Leixner 1: "Quem, depois deter ouvido uma das sinfonias deste, lê as cartas de Schiller sobre a educação estética,não poderá menos que reconhecer que o idealismo alemão jamais alçou tão alto etemerário vôo como naquelas obras-primas".

Em Silvana, ou A Filha do bosque, de Weber, aparece como que o desenho astraldaquela misteriosa cena inicial de A Walkyria, quando se mostra entre as trevas danoite o cedro imenso, em cujo tronco se lavrou a cabana do odioso Hunding, otiranizador de Siglinda, e o matador de Sigmundo, como nesses preciosos contos defadas e de ogros que entusiasmaram Wagner em sua infância, como entusiasmarama todos. O Cruzado, de Weber, é quase o esquema literário de Tannhaüser, e não há oque acrescentar de quão maravilhoso modo de alquimia musical umas cristalinasnotas do clássico Convite à dança, de Weber, passaram a ser, pela mão do mago deLeipzig, as mesmas notas mágicas do Pássaro de Siegfried, revelador do tesouro doNibelungo.Como se vê, a alta significação de Weber na música vai unida à história da 2 ópera,

Otto Von Leixner, Nosso Século, tradução e notas de D. Marcelino Menéndez e Pelayo - JuanScherr, Germania, dois mil anos de História alemã - O teatro de Schiller, ensaio crítico pelo E.Lickefett e English.

2 Reflexo deste romantismo literário ao que antes aludíamos, foi a alma deliciosa e doentia dopolonês Chopin (1810-1849). Em cada uma de suas obras, já sejam Estudos, Balidas,Polonesas, Sonatas, Mazurkas, Valsas, Prelúdios ou Scherzos, pôs Chopin toda a sensibilidadede sua alma sonhadora. Já expresse a melancolia, o desespero ou o desconsolo, suas inspirações sãosempre distinguidas: é sempre um poeta. As valsas, do Federico Chopin, são, mais que música debaile, pequenos poemas escritos no estilo romântico do grande poeta do piano, tão rico de idéias etão característico de fatura, como difícil de ser interpretado. Luis Schneider diz deles que sãotraduções artísticas de sensações e sentimentos nascidos sob a influência da valsa. Não são dançaspropriamente sortes, senão idéias que assaltaram à mente de um artista, como lembranças dasvisões do baile, entre o torvelinho dos vestidos de seda, as ondas de encaixes, o choque harmoniosodas cores e o deslumbrante brilhantismo das jóias. Melancólicos e amorosos, poéticos e sonhadores,apaixonados e dolorosos, têm um caráter mais novelesco ainda que romântico... Poderia jurar-seque sua companheira Jorge Sand colaborou neles. Sua fatura é aristocrática; ninguém os superou, eprovavelmente perdurarão Frente aos embates do tempo. "Respeito a seus Estudos, Schumann osjulgou assim." Ouvi-os quase todos, interpretados pelo mesmo Chopin. Imagine uma harpa celestedirigida pelo melhor artista: entre arabescos fantásticos e os românticos rubatos, percebe-se sempreum som fundamental grave e uma delicada e contínua nota aguda. Tal é a característica do jogopianístico do Chopin. Não é de sentir saudades, pois, que as obras que mais me gostaram que estacoleção fosse precisamente as que ouvi executar a ele mesmo. Os prelúdios são verdadeiras visõesastrais tidas pelo Chopin durante a estadia do mestre no Monastério da Valdemosa (Mallorca), àmaneira das melhores lendas do Bécquer, escritas no Monastério da Veruela. "São obras-primas -diz delas sua companheira Jorge Sand -, muitas das quais trazem para a memória visões de

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monges mortos e ecos dos cantos funerais que acossavam a sua imaginação; outros são melancólicose suaves... Compunha-os nas horas de sol e de saúde, entre o sonar das risadas dos meninos quejogavam sob a janela, o longínquo som dos violões e o gorjeio dos pássaros na úmida folhagem."Mas "nenhuma das composições do Chopin - diz seu biógrafo e comentarista F. Niecks -sobrepuja às baladas, nem em mestria da forma, nem em beleza e conteúdo poético, revelando nelastoda a força de seu poder artístico." Schumann, ao falar delas, diz que devem sua origem aospoemas do polonês Mickiewier, e às lendas que este poeta referiu diretamente ao Chopin... Acélebre Marcha fúnebre da Sonata em se bemol menor (op. 35), enfim, foi executada ao órgão odia dos funerais do Chopin. Madame Andley diz, referindo-se a esta comovedora cerimônia:"Nunca poderei esquecer a emoção que senti quando, ao apresentar-se na escalinata da igreja daMadalena, o corpo sem vida do grande poeta do piano, outro poeta do órgão, Mr. Lefebure-Wely,entoou a célebre Marcha fúnebre. O escolhido auditório se estremeceu de tristeza, e vi brilhar maisde uma lágrima nos olhos do mestre."

mais que às composições puramente instrumentais, e embora algumas destascontinuem figurando no repertório de todos os pianistas, em especial Concertstück, oConvite à dança e as Sonatas, a maior parte apenas aparece uma ou outra vez, e isto,além do mais, a título de curiosidade, nos programas dos concertos, porque ainspiração de Weber, como diz Roda, reclama, geralmente, pela liberdade eindependência da música para a cena, e sua disciplina nem sempre advém com aausteridade do molde usado para o tipo sonata. As idéias melódicas do autor deFreyschütz sugerem mais que o monocromático timbre do piano, os matizes etimbres dos instrumentos de orquestra, parecendo até aquelas obras escritas parapiano, que são adaptações ou reduções de obras instrumentais, nas quais terãogrande papel, sobretudo, o clarinete e a tromba.

Como Wagner em sua infância não mostrava predileção por nenhuminstrumento, nunca se pensou que chegaria a ser o que depois foi, diz nosso amigoVera em seu estudo sobre o colosso. Só a custa de infantil esforço conseguiuinterpretar mal e mal no piano duas peças de Weber: a célebre Iungfernkranz deFreyschütz e a romanza Veb-immer Trem uma Redhichkeit. Mais tarde enamorou-serapidamente de Weber, quem, a partir de 1817, era mestre de capela do teatro daÓpera, de Dresden, e assistiu às representações de Freyschütz, em 1822, que lheentusiasmaram em grau supremo. Foi tanta então sua admiração pelo mestre, queconsiderou como sua própria a perda que, com a prematura morte deste, em 1826,experimentasse a arte. Então Wagner quis seguir os rastros do mestre e contratouum professor, o qual lhe surpreendendo um dia no momento em que o jovemWagner se dispunha a tocar de cor a abertura de Freyschütz com uma péssimacolocação, teve que dizer ao discípulo: "Talvez algum dia chegue a ser qualquercoisa, menos a ser um músico..." História eterna a do gênio, frente aos talentos,mais ou menos discutíveis, de seus contemporâneos!

"Weber - diz a admirável obra do Lenz sobre o Beethoven - é o valorosocampeão do piano moderno, que conseguiu emancipar a este instrumento, ao queBeethoven abriu os segredos de sua alma e Mozart confiou mais de uma obra prima,do reino unido do órgão e do cravo para fazer o piano solo. Apaixonado por tal

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instrumento, empreendeu Weber sua emancipação definitiva. À Weber se deve adécima em lugar da tímida terceira nos baixos, maneira rica de fazê-losharmoniosos; à Weber, também, essa calorosa invenção, esse tesouro de amor, defé e de santo entusiasmo, para o qual capacitou daí em adiante ao piano, lheprivando de todo motivo de inveja para os instrumentos de orquestra. Mozarthaveria dito ao piano: habeas corpus; Weber lhe disse: habeas animam! Weber não seiguala à Mozart nem à Beethoven, mas sua música de piano é um grau superior adeles desde que engrandeceu os recursos do instrumento e lhe suprimiu aquele arde inferioridade com que antes parecia pedir esmola à orquestra. Considera-se comfreqüência às sonatas para piano de Mozart como cartões de quarteto, e às deBeethoven como cartões de sinfonia, enquanto que as quatro sonatas de Weber sãoa mais bela expressão do piano como instrumento; em outros termos, o piano deMozart é o cravo aperfeiçoado de Haydn, o piano de Beethoven a conquista daorquestra pelo piano como instrumento revolucionário e terrível. O pianoamoroso, o amável piano de Weber, exagerado em seus meios, chegou a ser opiano moderno. Por isso a importância da música de piano de Weber não foiconhecida até depois de sua morte; e alguém pode, por outro lado, apreciar até queponto esta compendiada orquestra de gabinete de trabalho pôde facilitar acomplexa composição dos conjuntos orquestrais do colosso de Bayreuth? À Liszt sedeve também o ter feito triunfar o nome de Weber, como o de Wagner,inscrevendo as obras daquele à cabeça de seu repertório de concerto. Oscontemporâneos de Weber não tinham alcançado a compreender a importância desuas décimas da mão esquerda nem a das rápidas figuras de suas oitavas, que foi oprimeiro em empregar. A transcrição que para piano fez Weber de seu Freyschützlevantou em seu tempo um protesto geral; ela pertence à história do instrumento...Weber chamou inutilmente a quase todas as portas das cidades alemãs... Weber,entretanto, pôs em música todo um povo; o que distinguirá eternamente aFreyschütz de qualquer outra ópera, é que é a Alemanha em música e não um merolibreto. Está no caráter e nos destinos do povo alemão de encontrar-se a si mesmono fundo de todos os costumes domésticos da quase totalidade dos povoseuropeus; daqui, partitura a um lado, o êxito universal daquela típica obra...

Mais tarde, em Paris, quando sua vida havia afundado na pobreza, na misériae na tristeza, a audição de Freyschütz de seu favorito Weber lançou na alma deWagner um novo sopro de idealidade. “Oh, minha esplêndida pátria alemã, quantote amo, porque em teu solo nasceu Freyschütz! – Exclamou - Quanto amo ao povoalemão, que adora Freyschütz, que crê ainda nas maravilhas da mais cândida lenda eque, chegado à idade madura, ainda teme os terrores misteriosos e doces que fazemtremer seu coração como na infância! Oh, encantador sonho alemão, sonho dosbosques, sonho das noites, sonho das estrelas, da Lua, do campanário do lugar dotoque de recolher! Feliz quem pode lhes compreender e acreditar, sentir, sonhar eexaltar-se com vós!"

Franz Peter Schubert (1797-1826) é o rei da lied, nele que superou ao mesmoBeethoven, com ele que não se levou em morte mais que um ano, e com ele quetem de comum um imenso fundo de celestial ternura. É também o precursor dos

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miniaturistas como Mendelssohn, Schumann, Chopin, etc., e teria sido um sinfonistae um quartetista colossal, se sua vida, de verdadeiro malogrado, não tivesse sido tãocurta, como o provam os dois tempos de sua Inacabada e seu Quarteto em ré menor,que chegaram a ser clássicas nos concertos. Sua vida, fugaz e sem incidentesbiográficos, tem um não sei o quê que a enlaça com a do Chopin. O canto do Cisne,Rosemonde e outros Heder semelhantes são imperecíveis. Como a Beethoven, foram-lhe negados quantos postos oficiais pretendeu, patente inconcussa do gênio.

Roberto Schumann (1810-1856) é uma das naturezas mais eminentementepoéticas que há na história da música. Primeiro jurisconsulto, depois músico,perdeu a razão, por desgraça muito antes que a vida. Como todos os gênios, não foicompreendido nem mesmo pelos gênios seus continuadores, pois seus EstudosSinfônicos, dedicados à Chopin, nem sequer mereceram que o grande polonês osabrisse..., coisa que Schumann esteve muito longe de fazer com Brahms. É umverdadeiro músico-poeta com grande alma descritiva. O temperamentomarcadamente lírico de Schumann lhe tem feito mestre na lied. Sua biografia estácheia de episódios sentimentais e de dramáticas ocorrências, a cuja contagem nãopodemos descender. Muitas de suas obras só são comparáveis com as deBeethoven mesmo.

Sairíamos dos moldes deste modesto capítulo se nos detivéssemos estudaraqui o colossal desenvolvimento wagneriano e ultra wagneriano da música russa,desde Tchaikowsky até Borodín. Ela põe, com efeito, uma vez mais o problema donacionalismo na música, problema que, por desgraça, haverá de intensificar-sepassada a guerra.

Preferimos sobre isso copiar os profundos conceitos de Dom AlvaroArciniega, em seus estudos sobre A revolução na Música.

Considerávamos - diz este autor - em nosso artigo anterior, Beethoven comofruto da Revolução francesa, e, de uma maneira geral, inclinávamos-nos a acreditarna influência de todos os acontecimentos históricos nas obras dos gênios.

No que à música corresponde, víamo-la manifesta e clara em todo o trabalhode Chopin, no romantismo de Schumann, nos conceitos democráticos de Berlioz eaté na unidade imperiosa de Wagner. E nestas notas, cheias de juventude e defôlego, parecia-nos ver algo muito em harmonia com o temperamento de suasraças.

Porque, sendo a música um dos meios mais evidentes de expressão, porforça tem que acontecer que nos fale, com suma galhardia às vezes, de múltiplosaspectos. E sirí chegar ao extremo daquele impressionista que acreditavareconhecer em um acorde dissonante da Sinfonia heróica todo o incêndio deMoscou, sim reconheceremos que nela palpita freqüentemente certo estado decaráter nacional que faz às obras imperecíveis e a seus autores imortais.

Eis aqui o caso de Strauss.É indubitável que um dos aspectos mais sugestivos da Alemanha moderna se

acha refletido na obra deste músico; suas composições, cúspide musical da escola

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alemã atual, são também o trabalho de toda uma geração.Não é este o único exemplo de nacionalidade musical. Apresentam-no

também, e acaso de uma maneira igualmente sugestiva, César Franck e Debussy naescola francesa; Borodin e Rimsky-Korsakow, entre outros, na russa. E que distintase reflete através de suas obras essa nacionalidade! Que diferença entre a modéstia ea abnegação das Beatitudes ou entre a melancolia e o fatalismo do Pelleas eMelisandra e toda a obra irônica do autor da Sinfonia doméstica! E, apesar destesantagonismos, Strauss nos mostra profundamente idealista como poeta e comomúsico. Nada reflete tanto seu temperamento como o final de seu poema sobre oQuixote. Strauss, cuja obra não desfaz ofensas nem endireita ofensas, tem grandesanalogias com nosso herói nacional. Compenetrado o músico com o novelista,obcecado de uma vez pelo fidalgo manchego, também ele soube sentir o herói e irà batalha. Mas sua luta, mais egoísta, foi também menos humanitária e menosnobre. Por isso, acaso, chegou a desprezá-la.

Mas o aspecto mais sugestivo, aquele que absorveu grande parte de sua obra,achamo-lo na influência preponderante do Nietzsche. Richard Strauss, que unia aum temperamento musical uma alma grande de poeta; Richard Strauss, cuja obranos mostra, apesar de tudo, seu aspecto sentimental muito eloqüente e marcado,não soube livrar-se dessa filosofia de sua pátria.

"O caso não é novo nos anais da música. Wagner já nos mostra issoclaramente em seu período revolucionário e pessimista. Sob este aspecto, a obra deStrauss merece um detido estudo, que não podemos lhe consagrar por falta deespaço. Sim diremos, entretanto, que essas idéias têm feito do músico um tecnicistaformidável e que, mercê a este domínio da orquestração, em suas obras, pletóricasde matizes e robustas em sonoridades, fazem-se ver a energia e o colorido e toda apaixão com que o autor tratou essas idéias. Zarathustra é, por isso, uma das obrasmais significativas do enorme músico, já que nela se mostra e revela todo seuespírito individualista. Daqui que criamos que o mérito da obra de Strauss se achamuito mais patente em seu caráter expressivo que no puramente descritivo. Este émais objetivo e, certamente, mais material; aquele, pelo contrário, encerra umcaráter mais subjetivo e é patrimônio da alma do artista. Sob este conceito, um dosenganos de Strauss acreditam vê-lo em sua tendência preponderante ao estudo doeminentemente descritivo. Algo disto ocorre também com o resto da músicamoderna.

"E não batizemos este fato com o pomposo título de ultra modernismo,nem sequer lhe qualifiquemos de modernismo, porque isso não será nuncaelemento de mérito suficiente para designar toda uma manifestação moderna daarte. O moderno na obra de Strauss não se encontra por este lado. Este caráterdescritivo o conhecemos desde que a música existe. A dança primitiva, como todosos distintos aspectos que por então adquire a música em união com a poesia, sãoprovas evidentes e terminantes do que dizemos. E, se logo que separada, pareceadquirir aduladoras promessas no Haydn, Haendel e Mozart, bem logo gotejará emforma atávica para apresentar-se nos em Beethoven obcecado pelo Destino; em

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Wagner, mística até o sublime. É, pois, a idéia poética em seus múltiplos aspectos aque caminhou inseparavelmente com a música, idéia poética que em certosmomentos, chegou até a concepção filosófica. Boa prova disso é o Fausto, deBerlioz; Zarathustra, de Strauss, e a influência que em toda a tetralogia de Wagnerexerceu Schopenhauer.

A diferença estriba unicamente nos assuntos desta descrição. Econvenhamos que assuntos como o da Sinfonia doméstica não poderão,certamente, por si só dar à música o caráter de ultra modernista. Equivaleria atomar como fim desta arte moderna uma tendência sem importância alguma. Se aobra de Strauss se reduz à perfeita imitação do balido das ovelhas ou a da viagemno Clavilenho, sua música, sob o aspecto mecânico, poderia qualificar-se deadmirável; sob o aspecto artístico, não chegaria nunca a ser genial.

Mas não; a obra de Strauss apresenta outros mais elevados aspectos, que sãoos que em justiça podem lhe dar o título de moderna. Essa forma com que o autorsoube tratar aos clássicos constitui, sem dúvida, o caráter mais genuíno dessagigantesca figura alemã. Strauss, sob este aspecto, é, além de um músico novo, umartista revolucionário não igualado no pentagrama desde o Beethoven e Wagner.Seu imenso talento lhe levou a engalanar suas idéias, fortes e robustas, com acriação de timbres e sonoridades que constituem um dado à parte na história damúsica.

Nada mais falso, por conseguinte, que esse dogmatismo que cria nasubordinação do pensamento à forma. Em sua obra, a inspiração pulsaconstantemente, e essa inspiração, profundamente clássica muitas vezes, acha-seexposta com tal liberdade de pensamento, com tal originalidade harmônica e taldomínio orquestral, que só pode conceber-se em um temperamento genial. Se aarte for a perfeita materialização da idéia pela forma, e se uma das dotes maiselevadas da arte é criar, a concepção de Strauss não deve nos deixar dúvidasrespeito a sua grandeza.

Este espírito criador e este músico revolucionário - voltamos a repeti-lo -representa um dos aspectos mais eloqüentes da Alemanha de hoje. Não são ascenas bíblicas que subjugassem ao Franck as que, nem sequer por um momento,mereceram a atenção de Strauss. Sua obra é a de um apaixonado do Nietzsche. Ena Zarathustra, como em Dom Quixote, e em Uma vida de herói, como em DomJuan, brota constantemente sua idéia filosófica.

"É o mesmo caso de Wagner sob um aspecto distinto. Já no Tannhaüser nosanunciava com sua abertura o formidável combate entre o espírito e a matéria queperturbou todo o século XIX; já seu autor, com seu espírito revolucionário,indicava-nos a influência do materialismo intransigente do Feuerbach; já toda suatetralogia, com seu pessimismo latente, mostrava-nos a influência preponderantedo Schopenhauer.

Mas há uma diferença capital entre os aspectos filosóficos destes dois gêniosda música, que tantos laços de união aparentam ter. E é que todo o materialismo etodo o pessimismo que sobre Wagner influíram vêm a terra graças à preponderância

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de suas esperanças consoladoras. O hino de glória ao amor metido no ocaso dosdeuses acabará de coroar-se no Parsifal. A idéia mística, que fervia na alma dopoeta, será a que lhe outorgará o triunfo.

Não é assim a vitória com que Strauss pode vangloriar-se. A risada frenéticado homem, superior na Zarathustra; a brincadeira de seu idealismo em DomQuixote; o modo sarcástico de todas as aventuras do Till, não são senão um delíriopatriótico de uma nação forte que confia em sua força, a dilaceradora desilusão deuma vitória custosa e fatal em que palpitou uma vontade de ferro, a ironia mordazde um heroísmo triunfante cheio de desprezo para todo o existente...

"E assim é o poeta, e assim é o músico, e assim é também toda a obra destecolosso."

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Wagner Mitólogo e Ocultista – Capítulo V

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CAPÍTULO VBEETHOVEN 1

Beethoven-Laocoonte - Beethoven, taumaturgo - Beethoven, mártir. – O calváriodos gênios - Os retratos do Mestre - Ironias do Destino cruel - Beethoven,Hornero e Milton - A grande madrasta. – Ascendência espanhola do grandemúsico? - Os professores de Beethoven - Beethoven, genuíno precursor do dramalírico - Amarguras do colosso - A Noite Espiritual de todos os místicos - O músico-filósofo ao longo de sua vida - Blavatsky e Beethoven - O livre pensador e oteósofo revelado por suas próprias palavras - O testamento do colosso - A místicaalegria transcendente cantada na Nona Sinfonia - O Pai-Deus, de Beethoven. – Osque não puderam compreender ao místico - Beethoven, herói entre os heróis -Beethoven e seus biógrafos - As Doutrinas orientais e Beethoven - Beethoven, afuer de filósofo, é o maior dos músicos do mundo - Escritura ogâmica do Mestre? -O rei da lied e o titã da Sinfonia juntos no mesmo cemitério - O ciclópico conteúdoda obra beethoveniana - O rebelde e o público - A revolução esperada por suamúsica - Bach, Haydn e Mozart, como precursores do colosso - A idéiabeethoveniana rompendo quantos moldes querem oprimi-la - As três fasesevolutivas do gênio - As resistências dos doutos - Os concertos espirituais, de Paris- Um pouco de historia a respeito das obras de Beethoven - Suas sinfonias, sonatas,trios, quartetos e demais composições. – A Nona Sinfonia - Alguns dos sucessoresdo Mestre. – Beethoven decidindo o futuro inteiro de Wagner, da infância desteúltimo.

"Beethoven - diz o grande crítico russo W. de Lenz - não é meramente umhomem, senão a personificação de todos os homens, com seus defeitos, seus méritos,seus infortúnios, suas sortes e, sobretudo, suas esperanças. De Beethoven a últimapalavra não se disse, nem se dirá jamais. Ele não habita este submundo: sempre noseleva às regiões superiores nos fazendo saborear suas delícias celestes..., E sua típicapersonalidade se resume por inteiro no cruel dualismo – dualismo de titãs - entre omérito, as ardentes aspirações do homem, e a sorte miserável que com freqüênciaagrada a Deus a nos outorgar neste submundo... Beethoven é apaixonado;Beethoven exige; há muito de Laocoonte em Beethoven, daquele humano símboloda luta homérica do homem rodeado seu corpo de serpentes, quando tenta pelacentésima vez esforços libertadores" 2... "Quando tiverem a alma profundamente

1 Nosso fraternal amigo da Pontevedra, dom Javier Pintos Fonseca, publicou a seus gastos estecapítulo em 1915, com ligeiras variantes de adaptação e sob o título de Beethoven, teósofo, emelegante edição privada, hoje esgotada, que, como obséquio, foi repartida pelo autor e o editor a seusamigos.Seja, pois, esta nota notório testemunho de gratidão eterna do autor a tão generoso e nobilíssimoamigo, místico e artista este, como bom filho da doce Galo-Grecia ou Galícia.2 W. do Lenz, Beethoven et é trois styles, édition nouvelle avec um avant- propos, etc., pelo M. D.Calvocoressi. Paris. I.egonix, 1909.

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agitada - acrescenta J. F. Carbonell -, ouçam o Beethoven. Ele serenará suatempestade. Sua dor, dúvida ou desconsolo, seus sentimentos obscuros, confusosou sombrios, farão ressaltar duplamente todos os tesouros de majestosa pureza quese encerram na sobre-humana música de Beethoven. Depois, ao recordar que o queacabam de ouvir é a inspiração recebida por um de seus semelhantes, esquecerãotodos os crimes e enganos da Humanidade, até aqueles de que tenham sido vítimasdiretas; seu coração se encherá de uma piedade imensa e lhes sentirão orgulhososde ser homens..."

"Chamo Beethoven herói e mais que herói - diz Romain Rolland em suasVidas de homens ilustres, ao ocupar-se da vida de Beethoven 1 -, porque eu nãotenho por heróis aos que triunfaram pelo pensamento ou pela força, senão aos queforam grandes de coração... A vida destes homens, quase sempre foi umprolongado martírio. Seja por que um trágico destino queria forjar suas almas nabigorna da dor física e moral, da enfermidade e da miséria, ou que assolasse suasvidas e rasgasse seus corações o espetáculo dos sofrimentos e vergonhas sem nomeque torturavam seus semelhantes, é o certo que comeram o pão cotidiano da prova,e foram grandes pelo valor, porque também o foram pela desgraça. Que não sequeixem tanto os que são desventurados, porque os melhores de entre os homensestão com eles. Nos nutramos do valor destes homens, e se nos sentimos débeis,repousemos um momento nossa cabeça em seus joelhos. Eles nos consolarão, poisdestas almas sagradas brota uma corrente de força serena e de bondadeonipotente... À frente desta legião heróica, demos o primeiro posto ao forte e puroBeethoven."Não se eximiu Beethoven da triste lei de todos os gênios: a de que toda sua glórianão é no fundo, senão uma concatenada dor rodeada do falso nimbo da sorte. Onascimento do prodigioso artista em Bonn, em 17 de dezembro de 1770, de paispobres ungiu-lhe já com o óleo da pobreza e do sacrifício que lhe acompanharamaté o sepulcro. Como o divino Mozart, teve também um pai músico: Juan VãoBeethoven, tenor da capela do eleitor de Colônia, e um avô, mestre de capela destemodo do príncipe de Bonn. Sua primeira desgraça foi a de não achar em seus pais,ao nascer, aquela terna afeição que semeia de rosas de ilusão o primeiro caminho deespinhos da vida. Achamo-nos, com efeito, em presença de um moço naturalmenteteimoso e rebelde a toda orientação, defeitos agravados pelo tratamento de um paibrutal e dado à embriaguez: "Sempre é brusco - havia dito dele Cherubini -. Suafisionomia até, desde a infância, era severa e imponente 2."

Tradução do Juan Ramón Jiménez, terceira edição, 1915.

2 Schindler fez a estatística dos retratos de Beethoven pintados do natural, e contou quatro: Oprimeiro, um bolo feito por um anônimo pintor e conservado pela família; o segundo, o devido aoSchimon (1819); o terceiro, pelo Stieler (1821), e o quarto, pelo Vadlmülleí (1823). Existem,além disso, de sua estranha e difícil fisionomia, outro retrato devido ao Moehler, outro ao Heckel(1815), e o mais parecido do Letronne (1814). Há, enfim, um desenho de A Ruelle; ummedalhão, do Gatteau (1823); uma miniatura do Hornement (1802); um retrato do Joeger,

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chamado já pelo Breuning; meia dúzia de gravuras, uma litografia confie corpo inteiro do Teycek(Praga, 1841); a máscara em gesso, do Klein (1822), e a que Danhauser tirou de seu cadáver em1827, da qual Fortuny fez uma água forte notabilíssima. A cor pronunciada da tez do Mestre; osrastros de varíola que faziam ainda mais arruda sua fisionomia; sua larga e desordenadacabeleira; sua frente larga e espaçosa; seus olhos grandes, de penetrante olhar; seu nariz um poucodesenvolvido; a firmeza das linhas de sua boca; a forma de sua barba quadrada, cujas últimaslinhas se perdiam nas voltas de sua incomensurável gravata na moda, retratavam toda a varonilenergia de sua alma. Era desço de estatura, e seus dedos quadrados não pareciam feitos para aligeireza maravilhosa que no piano tinham. (Víctor Wilder, Beethoven; seus dias de glória e desofrimento; tradução do Marañón e Medina.)

"Era Beethoven baixo e escuro - diz Romain Rolland -, de traços sadios, decompleição atlética; tinha a cara grande, cor de almagre; a testa poderosa e avultada,os cabelos muito negros, extremamente espessos e arrepiados, nos quais o penteparecia não ter entrado nunca; seus olhos brilhavam com tão prodigiosaintensidade, que se faziam donos de quantos os olhavam; mas quase todos seenganaram sobre a cor destes olhos. Como flamejavam com resplendor selvagemem um rosto obscuro e trágico, acreditava, geralmente, negros; mas não eramnegros, mas sim de um azul cinzento, segundo Kloeber, que pintou seu retrato porvolta de 1818: "Formosos olhos faladores, às vezes doces e joviais, outrasemboscados, terríveis e ameaçadores, como diz o Dr. W. C. Müller"; olhospequenos e profundamente escondidos, que a paixão ou a cólera dilatavambruscamente fazendo-os girar em suas órbitas e refletindo com maravilhosaverdade todos seus pensamentos, ou voltando-se freqüentemente para o céu, comolhar melancólico... O nariz do Mestre era chato e grande, verdadeira cara de leão;delicada a boca, com o lábio inferior avançando sobre o outro; temíveismandíbulas, que podiam quebrar nozes com seus dentes; no queixo, à direita, umacovinha profunda que dava ao rosto uma estranha assimetria. Sorriabondosamente, diz Moscheles, e ao conversar, cobrava quase sempre um aspectoamável e alentador. Em troca, seu rir era desagradável, falso, rápido e violento, "a risada deum homem que não está habituado à alegria, porque sua expressão ordinária era de nostalgia etristeza incurável". Rellstab diz (em 1825) que teve que dominar-se, apelando a todassuas forças, para não chorar ao ver "seus doces olhos e sua dor penetrante"... Nosimpulsos de inspiração súbita, que repentinamente lhe atacavam até nas ruas, suaface se transfigurava, "os músculos do rosto lhe inchavam, injetavam-se as veias,tremia-lhe a boca, os selvagens olhos resultavam duplamente temíveis, lhe dando oaspecto de um mago possuído por todos os demônios que tivesse evocado: qualuma cara de Shakespeare, de Ossian, como aponta Kloeber, ou de Rei Lear, comoBenedit diz..."

Beethoven, como todos os redentores, os christos, não teve infância nemjuventude. O terrível estigma do trabalho e da dor se gravou sobre ele quase desdeos primeiros balbucios: os inocentes prazeres do lar lhe foram negados, pode dizer-se, do berço até o sepulcro, e as lágrimas vêm involuntariamente aos olhos quandoa gente lê em suas biografias aquelas passagens nas quais o menino infeliz,

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dormindo nas cruéis noites do inverno alemão, era arrancado ao calor de sua camapela violência de um pai e de um professor bêbados, para dar à altas horas da noitea lição musical, que a intemperança daqueles dois compadres não tinha tido porbem dar durante o dia... Como essas piedosas imagens que às vezes se vê nosaltares católicos, o tenro infante trazia já, pois, sobre seus ombros o pesadomadeiro redentor de sua cruz, que era sua música, uma música, ai! que estevecondenado a fazer e a não ouvir dos trinta anos até o dia de sua morte... Beethoven,surdo, e nos dando, entretanto, mundos de harmonia celeste, como Hornero,Milton e Bach, cegos, e nos dando, não obstante, suas paisagens divinas, são algosuper-humanamente trágico que nos mostra com bárbara eloqüência, como há doishomens em nós: o físico, joguete quase sempre de uma Natureza ímpia, madrastamais que mãe para os grandes, e o astral-mental, o homem de pensamento e deimaginação; o homem, enfim, chamado a sobreviver a seu corpo e capaz de criarinfinitos mundos hiperfísicos com outro sol que ele com seus olhos materiais vê,com outras notas que as que seus ouvidos materiais percebem: essas insondáveistrevas, trevas ultra luminosas, acima de nossa gama perceptiva; esses insonorossons com os que a vida cósmica palpita e que são produzidos sem cessar pelosastros quando giram pelo éter sem limites...

Não é este o lugar de fazer uma biografia minuciosa do músico,principalmente quando sobre ele existem verdadeiras bibliotecas escritas em todosos idiomas do mundo 1. Só queremos recordar alguns pontos salientes de sua vidaabnegada e laboriosa de verdadeiro virtuoso no mais evangélico sentido da palavra.

Os primeiros professores de Beethoven foram seu pai, e Pfeiffer, diretor deorquestra. Van der Eden lhe ensinou logo o cravo, e Neefe lhe iniciou, sem hesitar,nas obras de Bach e de Haendel e lhe fez nomear, quando contava apenas trezeanos, seu auxiliar de capela. Dois anos antes já tinha começado a escrever sonatas, eArtaria acabava de publicar três ensaios de quartetos.

1 Nas notas das Sonatas e Quartetos de D. Cecilio de Roda, que tanto nos guiaram nestesbosquejos, há excelentes nota bibliográficas do mais completo e moderno que se escrito relativo aoBeethoven. Também copiamos nestes capítulos ao F. Clement em seus Músicos célebres, e aoHeitor Berlioz, em suas Sinfonias de Beethoven, e encontrado outra boa bibliografia na obritaBeethoven, do Ramírez Anjo. Os melhores livros de consulta menos modernos som os do Breuning,D'Indry, Marx, Moscheles, os três do Nohl, os dois do Schindler, o do Dr. Wegeler, e, sobretudo,o do Thayer, por sua riqueza de informação; e o do W. Lenz, por seu aticismo e seu culto aomestre, culto só igualado por nosso compatriota Mateo H. Barroso. O tema beethoveniano é, comose vê, inesgotável, e ainda não produziu tudo o que tem que produzir quando se investigar, maisem pequenas quantidades, a respeito dos precursores espanhóis de sua alma e de sua música,porque, como diz muito sabiamente este último e queridíssimo amigo nosso, Eudwig, avô deBeethoven, foi natural do Amberes, e provável filho daquelas famílias espanholas que viveram noFlandes, nos últimos dias da dominação da Espanha naqueles territórios. Além disso, seu muitonegro cabelo e suas paixões acusam sua filiação espanhola, como também a denotam asbrincadeiras que seus companheiros de colégio lhe faziam de menino, lhe chamando o españolito.

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O conde do Waldstein, logo imortalizado pela célebre sonata que leva seunome (a sonata Aurora ou opus 53), e Maximiliano Federico, arquiduque da Áustria,eleitor de Bonn e irmão da infeliz Maria Antonieta, eram grandes protetores dasbelas artes, como todos os príncipes alemães de então, e se interessaram pelo jovemmúsico, lhe concedendo socorros pecuniários. O segundo lhe tinha nomeado seumestre de capela, e o primeiro enviou a Viena, onde foi apresentado à Mozart,então no esplendor de sua glória. O autor de Dom Juan, por triste e própriaexperiência desconfiava dos meninos-prodígio; mas Beethoven, com esse inatoorgulho do gênio, que é centelha divina, teve que ornar com tais e tão deliciosasvariações improvisadas um tema dado no ato por aquele, que Mozart pronunciouestas proféticas palavras: "Ou muito me engano, ou este moço encherá o mundocom o som de seu nome." – O mesmo aconteceu anos mais tarde a Wagner, comoveremos, com o espírito profético de seu moribundo padrasto Geyer... que haveriade dizer ao autor de A flauta mágica, que aquele adolescente à sua frente, seria ocontinuador e aperfeiçoador de sua obra: o criador da Sinfonia, entrevista tãosomente em toda sua grandeza integral e instrumental por Bach, por Haydn e porele mesmo com seu Apolo e com seu Júpiter!...

Discípulo diligente do ancião Haydn, não simpatizou muito com o jovemBeethoven em seu rebelde, embora nobilíssimo espírito, com o caráter de metodistainglês do autor de A Criação, e conhecidas são do público ilustrado suas anedotascom este. Scheneck e o grande Albrechberger lhe adestraram em contraponto e fuga,enquanto que o delicado Salieri lhe instruía em canto e música dramática. Teve, emsuma, sete professores, dos quais três possuíam em grau eminente os segredos dacomposição. Além disso, nos salões vienenses do príncipe Lichnowsky, do condeRasumoffsky, embaixador da Rússia; do barão de Swieeten, diretor da Bibliotecaimperial; da princesa Cristina de Thun; do conde de Brunswich, dos príncipes deErdoly e dos barões Glechenstein e Pasqualati e outros geniais artistas que, emdistintas épocas, honraram-se, protegendo ao gênio da sinfonia, pôde surpreendertodos quantos secretos de técnica e de arte musical encerravam em si artistas comoo violinista Schupanzigh; os violoncelistas Kraft e Weisz, o clarinete doFriedlowsky; o cornetim de Pouto e a flauta de Scholl. O cavaleiro Seigfried nãoacha palavras com que expressar a perfeição nunca superada que alcançasse em taismãos a execução das obras primas do colosso. Ainda se esmeram nas imitações emnossos dias, quartetos como o Tcheco, o de Berlim, o de Rossé, de Viena, e osespanhóis, que alternam nos programas da Filarmônica Madrilena e em outrosmuitos lugares, para nossa honra.

Maravilhosas páginas têm escrito Wegeler, Schindler e Lenz sobre o triplomérito do mestre, como compositor, improvisador e pianista. Antecipando-se neletambém a Wagner e a seu leitmotiv, símbolos de personagens e idéias, Beethovenimprovisou cem vezes no piano, sem pincel nem palavra, verdadeiros retratosmusicais dos homens e das coisas. Rebelde a toda estreita lei, como legislador atítulo de gênio, suas execuções, discutíveis às vezes no terreno da rotina

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metronômica, eram, conforme nos conta seu discípulo Ries, simplesmenteprodigiosas e personalíssimas.

De 1793 a 1800 se estende a única época relativamente feliz de Beethoven.Luta, como improvisador, com Woelf e com outros, vencendo-os, apesar do poucoexeqüível que seria sem dúvida para os dilettanti vulgares seu gênio titânico eextravagante, tão estranho, sem dúvida, como sua figura. Acha para suas obras umauditório dedicado, goza com os carinhos que inspira, antes que os padecimentos einsipidezes azedassem seu caráter, naturalmente desconfiado e taciturno. Com apensão, além disso, de eleitor de Colônia não lhe curvam os apuros pecuniários quelogo escureceram o resto de seus dias. Durante esta época escreveu todas as obrasque se conhecem como seu primeiro estilo.

Com o século XIX, o século da rebeldia contemporânea, começa paraBeethoven a série de amarguras que envenenaram sua alma até a morte: a conquistafrancesa da Alemanha Renânia, sua pátria; a queda e morte do arquiduque, seuprotetor, suas múltiplas contrariedades amorosas que lhe negaram sempre a sortede constituir um lar, e, sobretudo, as ingratidões de seu sobrinho Carlos, seuspleitos e a iniciação de sua terrível surdez... Não há necessidade de maisprecedentes para nos explicar seu caráter e seu gênero de vida no futuro. Suaresignada grandeza, entretanto, sobrepõe-se a todas as misérias que lhe cercam, eseu espírito remonta até os céus da arte, onde tudo é felicidade e harmonia... 1.

Todas estas dores, todos estes desenganos imerecidos do gênio completaramsua iniciação ocultista, e, depois da breve faísca de sorte quando o triunfo dosaliados contra Napoleão, e sua apoteose de A Vitória do Wellington, as sombras deseu mísero existir se entrevam em termos que não há possivelmente noite da almamais obscura que a sua. Essa noite espiritual, que alguém descreveu com estesincomparáveis termos:

Entre os perigos que se opõem à marcha triunfal dos verdadeiramente

1 Dada à maneira de pensar e de escrever dos tempos modernos, maneira que não censuramos, masque tampouco queremos seguir, nada mais improcedente possivelmente que nossa aparentedesordem de mesclar aos dados científicos considerações de índole mais ou menos psicológica eemotiva - A que mesclar as modalidades da história e do caráter de Beethoven, em um estudo,como este, dos precursores de Wagner? - Dir-nos-ão muitos -. Acreditam, entretanto, Estar narazão. Por ligados que se achem, com efeito, os homens ao longo da evolução das idéias, masinternamente ligados se acham pelas secretas leis da Psique, e se for indubitável que sem a obra deBeethoven a de Wagner não teria podido existir, também é indiscutível o fato de que aquela obranão foi senão o fruto dos dores do homem, porque tudo o que tem que grande no mundo saiu queesse ventre fecundo da vida, que se chama Dor. Falar, pois, dos dores do surdo imortal é tãocientífico precedente da obra do autor de Parsifal, como falar dos atrevimentos sinfônicos daquele, épreparar o estudo da revolução realizada por este com o drama lírico. Pensar o contrário, é termuito cretinos pontos de vista.

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grandes, não há nenhum tão deprimente por sua natureza, nem tão fatal por seusefeitos, como esse que se chama "noite espiritual", sombra de desalento que flui sobrenosso coração e nossa mente, e que nos envolve com seu véu sombrio, apagandotodas as lembranças da paz anterior e todas as esperanças de um futuromelhoramento. Assim como uma densa neblina se derrama sobre as grandescidades, penetrando por todos seus rincões, imergindo quantos objetos nos sãofamiliares, interceptando toda perspectiva, como se nada restasse já ao perdidoviajante, senão ele e a angustiosa atmosfera que lhe rodeia, assim também, de ummodo parecido, a névoa da noite espiritual cai sobre nós. Todos os pontos dedescanso que em nossa marcha tivemos desaparecem então; a senda se desvanecena sombra, perdidas as tochas que lhe iluminavam, e os seres humanos aparecemcomo verdadeiros fantasmas que aqui e lá emergem das trevas, aproximam-se uminstante e tornam em seguida a desaparecer. Sente-se então o homem perdido: umaterrível impressão de isolamento lhe toma e a ninguém vê a seu lado para atenuarsua solidão. As figuras humanas que lhe sorriram se desvaneceram; as vozes queantes lhe deram alentos permanecem mudas, e até o amor humano que até entãolhe acariciava se converte em uma glacial sensação de horror. Seus amigos e apoiosse encontram rechaçados longe dele; nenhuma só palavra que lhe anime chega atéele, desde o negro silêncio. Se pretende avançar, sente a vertigem do precipício eum surdo bramido de ondas de incalculável profundidade, cuja lonjura pareceintensificar o silêncio com o mais total aniquilamento. O céu lhe está velado, assimcomo a terra; apagar-se-ão o sol, a lua e as estrelas, e chega a imaginar-se o homemcomo que suspenso sobre um abismo sem fim, e como se estivesse a ponto de cairno vazio, porque a tênue chama de sua própria vida, como que simpatizando com asombra universal, trata de apagar-se também. O horror da profunda noite seestende, enfim, em torno dele, paralisando toda energia, sem nem dar lugar àesperança. Deus e a Humanidade lhe abandonaram: Está sozinho, eternamenteSozinho!...

"O testemunho dos grandes místicos prova que este quadro não éexagerado. Não existem, com efeito, gritos de humana angústia mais amargos queos que nos chegam como lamentos desde essas páginas em prosa, verso ou música,nas quais as nobres almas esgotaram suas provas sobre a terrível senda. Buscaram apaz, e se encontraram no meio do combate; a alegria e a tristeza foi sua parte; avisão beatífica, e a noite da tumba lhes rodearam... Que almas menores ou maisjovens não hajam ainda sofrido a prova, e olhem incrédulas às vezes até suapossibilidade mesma, opondo suas opiniões do que deveria ser ao feito brutal doque é, nada prova senão que a hora não lhes chegou. O menino, em suainconsciência feliz, não pode medir em toda sua épica grandeza o esforço dohomem; nem o pequenino, que se amamenta tranqüilo sentir a aguda angústia queao materno peito penetrou... É admirável o considerar como as Potências da Noite,que, com as Potências do bem e da Luz, rivalizam neste submundo, podem chegara afugentar com uma só de suas rajadas todos os tesouros espirituais que o esforço

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e a perseverança reuniu..." 1.Beethoven, ao sentir tão cruelmente os rigores dessa Noite espiritual, foi

abrindo os olhos de sua intuição ao supernaturalismo misterioso que rodeia a nossaexistência. Foi um ocultista, enfim.

Vejam o músico-filósofo ao longo de sua vida. Sobre sua mesa de trabalhotem constantemente à vista a inefável Neith, à suprema Ísis egípcia, com a inscriçãode punho e letra do mesmo, que reza misteriosa: "eu sou a que foi, é e será, enenhum mortal levantou meu Véu". Uma ponta dele, entretanto, foi erguida pelocolosso musical, como outra ponta foi erguida anos depois por aquele outro colosso dador e do êxodo constante, qual o judeu da lenda; por H. P. Blavatsky, enfim, comseu famoso livro Ísis sem Véu... O Véu do Mistério - Véu da deusa que domina alémdas regiões sublunares da negra deusa Kali do Desejo e da Morte - preocupouigualmente ao músico e a aristocrata boêmia, como também preocuparia ao colossode Bayreuth, a Wagner, o mais direto herdeiro de Beethoven, quando quis darnome a seu nascente Parsifal algo assim como "As tribulações do Buddha para obter asuprema liberação", coisa raramente dita por quantos biógrafos de Wagner quiseramincluir Parsifal, como veremos, no leito de Procusto de um Cristianismo vulgar muitoinferior à sublimidade do Evangelho.

Embora pareça, ou seja, digressão, diremos que multiplos traços de carátersão comuns a Beethoven e à fundadora da Sociedade Teosófica. Ambos se viramsozinhos, abandonados, caluniados e incompreendidos. Ambos tinham asinceridade por alimento, até o ponto de lhes ser impossível o disfarçar suasopiniões e sentimentos. Violentos, os dois, de linguagem quanto puros de intenção,"impulsivos e doces, desordenados e distraídos, ofendem seus amigos e searrependem lealmente de suas violências; são suspicazes e desconfiados, masigualmente inocentes e desprendidos até a privação absoluta, com grandezas degênios e ingenuidades de meninos".

Vejamos se não há o paralelo.Blavatsky ia embarcar certo dia para os Estados Unidos com o dinheiro

estritamente necessário para a passagem, quando encontrou no cais uma mulherdesolada que com seus dois bebês ia reunir-se na América do Norte ao seu marido,e a quem lhe acabavam de roubar quanto tinha. Blavatsky, compadecida, troca suapassagem de primeira classe por quatro de terceira, e parte com eles... Quem sabeem que condições são transportados os emigrantes armazenados como bestas decarga em pequenos armazéns, captará a magnitude de semelhante sacrifício. Veja-seagora o que de Beethoven dizem seus biógrafos. Em um concerto dirigido por esteem 1813 em favor dos feridos na batalha de Hanau, enviou-se a importância de seuhonorário como diretor: ele o devolveu indignado: - Digam - acrescentou - queBeethoven não toma jamais nada dos que sofrem. Em um dos dias de grandeapuro, falto do mais indispensável, liquidou com o editor Hofmeister o pagamento

1 Annie Besant, A noite espiritual. Revista Sophia, de Madrid. 1904.

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de algumas obras; retorna à sua casa, onde recebe a notícia da miséria de um artista,desconhecido para ele, voa à pobre morada, e nela deixa quanto seu bolso continha.Rasgos semelhantes se contam por dúzias em sua vida.

Como verdadeiro teósofo, quer dizer, como livre pensador, também comohomem profundamente religioso acima de todos os credos vulgares positivos, seusautores favoritos eram Platão, em sua República; "Sócrates e Jesus foram meusmodelos", diz em seu caderno de conversações... "A lei moral em nós, e o céuestrelado sobre nossas cabeças", estava acostumado a dizer parafraseando aofilósofo de Koenigsberg. O retrato de Marco Junio Bruto (Brutus), como protótipo dasúltimas virtudes romanas, figurava em preferencial lugar em seu escritório.Consagra a Napoleão republicano sua Terceira sinfonia; mas ao saber em seguida quese fez coroar imperador, rasga a dedicatória e lhe chora morto já na colossal marchafúnebre de dita sinfonia. Moscheles acabava de escrever na partitura do Fidelio:"Fim, com a ajuda de Deus", e lhe devolve o manuscrito com esta anotaçãoverdadeiramente deífica, síntese de todo o ensinamento do Oriente: "Oh, homem,ajuda-te a ti mesmo!" Zeloso do ideal de Verdade, Beleza e Bem, não perdoou nunca aMozart que tivesse comentado com sublime música as rufianescas aventuras deDom Juan... Passa horas e horas de inconsciência sábia sobre os velhos saltérios docanto gregoriano para libar neles inspirações para suas duas obras mais gigantescas:a Missa em ré e a Nona sinfonia com coros; trata em seus últimos dias de pôr música aosrebeldes coros do Fausto de Goethe, essa epopéia sem igual do titanismocontemporâneo, e para sua Décima sinfonia, cujo segredo musical teve que levar-se,por desgraça, à tumba; depois de uma bacanal e uma salmodia religiosa, sonha emum terceiro tempo sobre "a conciliação do mundo pagão com o espírito dacristandade", tendência de suprema síntese religiosa que cabe no coração e nacabeça de um verdadeiro teósofo, ou seja, daquele que pretende a suprema síntesedo pensamento religioso universal, acima de todas as religiões esotéricas, qual ecofiel de uma verdade científica, aparentemente perdida faz tempo para aHumanidade.

Por isso em seu diário e em seu testamento se vê o verdadeiro místico, querdizer, ao homem religioso-científico de espírito gigante e transcendido sobre asimpurezas da vida. Quando sua surdez lhe isolou absolutamente de todo o externo,"supera divinizado a região das águias, eleva-se às mais altas nuvens e lança da altura seu cantode amor à Humanidade dos tempos futuros: o hino imortal à Alegria transcendente, o mais beloresplendor dos deuses", ao mesmo tempo em que escreve em seu diário com aresignação de um verdadeiro santo: "Resignação, resignação absoluta com seudestino! A partir de agora não viverás para ti, senão para outros. A partir de agoranão há mais felicidade para ti que tua Arte: Oh, Divindade, me conceda força paravencer a mim mesmo...!" "Já nada me retém à vida!" - Acrescenta em outro lugar -.E, como Cristo no Monte das Oliveiras, trata de afastar de seu lábio o amargocálice, e conclui: "Oh, Deus, me socorra! Você vê meu afastamento dos homens...!Não, minha infeliz situação nunca acabará...! Não tenho outro meio de salvaçãoque o de continuar no mundo... Trabalhando te elevarás às alturas de tua arte: umasinfonia mais, uma tão somente, e então, fora, fora de tanta vulgaridade...!" Que

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mais necessitava Wagner que este modelo vivo para criar seu Sigmundo e seuSiegfried e para achar vibrante as rebeldes notas do humano tema da justificação...?Jó mesmo, em ponto a resignação rebelde, se vale a paradoxo, não chegou a maisaltura paciente que o criador da Sinfonia.

"Beethoven - diz Federico Kerst em seu Beethoven, the man and the artist, asrevelated in his own words (tradução inglesa de Henry Edward, 1916) - era um homemprofundamente religioso, embora não um crente em nenhuma religião positiva,contra o que temerariamente se atreveu a insinuar algum biógrafo (Pedrell, entreeles). Nascido sob a fé católica, alcançou desde muito jovem um critérioindependente nos assuntos religiosos. Teve de jovem seu período de racionalismo;mas em seus últimos tempos, quando compôs sua grande Missa em ré, em honra deseu querido protetor o Arquiduque Rodolfo, tratou, embora em vão, de obter oposto de mestre de Capela, quando o Arquiduque foi nomeado Arcebispo deOlmütz. A forma e dimensões de sua Missa saíam dos moldes do ritual, porque aliberdade foi sempre o princípio fundamental da vida de Beethoven. Seu livrofavorito era o de Sturm, Betrachtungen über die Werke Gottes in der Natur (Deus naNatureza), que ele recomendava aos párocos para que eles repartissem com o povo.Via a mão da Divindade nos mais insignificantes fenômenos naturais, rasgo deperfeito Ocultismo, e aquele era para Beethoven o Princípio Supremo a quementoasse um hino na parte coral da Nona Sinfonia sob as palavras da ode de Schiller.As relações de Beethoven com a Divindade eram à maneira das de um menino parasua mãe, a quem confiava todas suas penas e suas alegrias. Diz-se que certa vezquase não escapou da excomunhão eclesiástica por haver dito que Jesus não erasenão o mais puro dos homens e um hebreu. De Haydn, tão ingenuamentepiedoso, conta-se que sempre lhe qualificou como ateu... Suas últimas palavras aseus amigos, depois de ter recebido a extrema-unção, parece foram as clássicas de"Plaudite amici, comœdia finita est ", frases que uns autores repugnam comosatiricamente alusivas ao ato, e outros, como uma mera lembrança socrática, pois ogrande filósofo grego foi um de seus autores prediletos."

Modelo de místico lirismo teosófico são as páginas de seu testamento, emcujo final diz a seus irmãos: "Ensinem seus filhos a cultivar a virtude; ela, e não odinheiro é a que dá a verdadeira sorte; falo-lhes por experiência, porque ela mealiviou em minha miséria. O amor à virtude, com o amor à minha arte, salvou-mecontra a tentação de pôr fim aos meus dias".

"Beethoven - diz Mateo H. Barroso em sua obra A Nona Sinfonia de Beethoven- é, não somente o músico maior que existiu e o mais puro artista, senão o generosocoração ferido de todos os infortúnios, que se faz mais forte que eles e dedica suavida às gerações futuras: "a pobre Humanidade". Herói entre os heróis, maior que seutempo e que suas dores, eleva seus braços de gigante para abraçar os tempos e oshomens que têm que vir... Abordar o conhecimento deste homem sublime éassociar-se a um vasto mundo com suas insondáveis paisagens estelares, as faunas efloras maravilhosas, as trevas, os fulgores e as paixões de seus seres. Sua vida é oalicerce de onde surge a obra; sua grandeza como homem é a origem de sua

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grandeza como artista. Sublime modelo! Porque não viveu para ele, senão paraoutros homens, e esta renúncia de si mesmo foi o dever que se impôs e realizou.Sua obra colossal, inesgotável para a análise, produz o estupor do infinito. Animadade divino sopro, leva em si vida e juventude imperecíveis; é a idéia em sua formauniversal; nos fala da vida eterna... A música de Beethoven não é motivo de estudoexclusivamente para os técnicos; nela encontram o filósofo, o pensador e o artistaimenso acampo de exploração; porque não é músico de formas, mas sim de idéias;nada é improfícuo nela; cada nota tem seu significado; cada silêncio, uma emoção.Beethoven mesmo dizia que a música é uma revelação mais sublime que todasabedoria e toda filosofia. Ela é a única introdução imaterial ao mundo superior dosaber, esse mundo que rodeia ao homem e cujo significado interior não se percebeem conceitos reais e a parte formal daquela é simplesmente o necessário - veículoque revela por meio de nossos sentidos a vida espiritual."

Como os ascetas do Tibet ou de Tebaida, viveu Beethoven, com curtosintervalos, isolado do mundo durante os dez últimos anos de sua vida. Ninguémignora a paixão que concebeu então pela Natureza, paixão da qual tantos rastrosdeixou em suas obras, especialmente em sua Pastoral ou Sexta sinfonia. Identificadocom os ventos e as tempestades, eco fiel das que eternamente agitavam sua alma,escreve: "meu reino está no ar; minha alma vibra com os murmúrios do vento", e lhe vêpermanecer fora do que chamamos realidade, em plena solidão campestre diasinteiros, e ali, sob um abeto, qual Napoleão sob o salgueiro da Santa Helena, oumelhor ainda, como o Buddha celeste sob a Árvore do Conhecimento, estático lhesurpreende o pincel de Kloeber para legar à posteridade o mais genuíno dosretratos do Mestre. O Drama lírico que recebe sua consagração em Richard Wagner,seu continuador e seu discípulo, de onde desceu do céu a inspiração sem igual deseu prólogo a Nona Sinfonia.

O livro do Kerst, antes citado, a respeito de "Beethoven, o homem e o artistarevelado por suas próprias palavras", é um monumento literário de que escolhemos asseguintes, que revelam quantos Santos há nos altares com menos motivo que o altoe abnegado músico: "Bendito seja aquele que subjugou todas as paixões e acoderápido ao enérgico cumprimento de seus deveres sob todas as circunstâncias, sempreocupar-se do êxito, porque o motivo da ação do justo deve repousar no fato emsi, jamais no resultado favorável ou desfavorável, sem que o homemverdadeiramente digno de tal nome resuma suas determinações volitivas naesperança da recompensa" (parágrafo 363); ou quando acrescenta: "Procurem umasilo único na Sabedoria; sede bons e industriosos, com ânimo alegre, pois aquelecujo ânimo decai é infeliz, enquanto que o homem verdadeiramente sábio não sepreocupa do bem nem do mau deste submundo, mas sim de conservar livre eintenso o uso de sua razão e nada é tão precioso como dito emprego em todos osassuntos da vida..." Para encontrar algo semelhante a estas e outras sublimidadesterá que ir aos preceitos orientais de "A Voz do Silêncio" e "Luz na Senda", passandoantes pelos livros de Salomão. Por isso podemos afirmar que se a frase musical deBeethoven é para Wagner "o modelo eterno da melodia", sua frase filosófica é irmãgêmea da de Spinoza ou Leibnitz e, graças a estes é como o pensamento do músico

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filósofo pôde transbordar veloz em quartetos, sonatas e sinfonias.Convencido de sua missão, disse do gênio: "ainda não se fixaram seus

verdadeiros limites, lhe dizendo: chegará até aqui, nem um passo mais" (parágrafo250); e da independência altiva que lhe caracterizou sempre, são boa prova asseguintes frases de seu livro: "Liberdade e Progresso formam parte integrante, tantodo mundo da Arte como da criação universal" (parágrafo 249), e mesmo que averdadeira arte seja açoitada sempre, sempre encontra asilo, ao fim. Por acasoDédalo, encerrado em seu labirinto não inventou as asas que o levariam de novoaos céus da liberdade? E em um supremo ímpeto de genial heroísmo prorrompianaquela imprecação de - "Me mostrem a senda em cujo topo espera o louro davitória – a Senda da Iniciação e a Liberação -, prestem aos meus mais elevadospensamentos o aura do sublime; tragam piedosos a eles verdades de eternaduração!” (Parágrafo 353). Por isso sua insígnia foi sempre a da "firmeza nos temposmais adversos" (parágrafo 355), porque "o valor, sendo sensato, obtém, ao fim,quanto deseja, porque a força como unidade, prevalece sempre sobre o espírito damaioria, constantemente dividida", e porque, enfim, "embora os poderosos daTerra possam administrar postos, honras e benefícios, jamais puderam conseguircriar grandes homens cujo espírito se eleve acima do nível ordinário em que aquelesjazem pelo qual os mais respeitados pelo vulgo são os mais desprezíveis,entretanto" (parágrafos 356, 357 e 358).

A este precioso ramalhete que precede, Romain Rolland acrescenta ainda asseguintes frases do Mestre:

- "Jamais me vingo de ninguém - escreveu à madame Streicher - Quandovejo obrigado a ir contra outros, não faço senão o estritamente necessário para medefender ou para evitar que se faça o mal".

Quando o poeta Grillparzer, ao lhe ver pela última vez em 1826, dizia-lhe,lamentando-se dos duros tempos de monarquia reacionária que imperavam: "Ai, seeu tivesse a milésima parte de sua força e de sua firmeza!".

Beethoven contagia de alegria ao poeta desolado.- As palavras estão presas; mas as notas, felizmente, estão ainda livres.

Freqüentemente fala do dever que tem de "velar com sua arte pela Humanidadefutura", "pela pobre Humanidade”, lhe fazendo todo o bem possível, lheinfundindo valor, despertando-a e flagelando sua covardia.

O Dr. Müller diz, em 1827, que "Beethoven se expressava sempredescaradamente, até em público, sobre o Governo, a justiça e a aristocracia. APolícia sabia; mas tolerava tais críticas e sátiras como delírios inofensivos, e nãoincomodava ao homem cujo gênio resplandecia de maneira tão extraordinária".Suas simpatias políticas pareciam estar então com a Inglaterra, e seu caráter delutador eterno se reflete, quando disse:

- "Sinto-me feliz cada vez que venço qualquer coisa”. (Carta à AmadaImortal.) - "Queria viver mil vezes a vida... Não sou para uma vida tranqüila." (A.Wegeler, 1801).

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"Beethoven - diz Schindler - me ensinou a ciência da Natureza, e me guiounesta aprendizagem como no da música. Era o poder elementar da Natureza, nãosuas leis, o que lhe maravilhava."

"Il n'y a pas de regle - acrescenta - qu'on ne peut blesser à cause de Schoóner. (A buscado melhor.) - "A música deve fazer resplandecer o fogo da alma dos homens." -"Nada há tão formoso como receber do divino seus mais esplêndidos raios ederramá-los sobre a Humanidade." - "Quando o Espírito me fala e escrevo o queele me dita, penso em um violino sacrossanto”. (Schuppanzigh) – A liberdade e oprogresso são o fim da arte, como da vida toda. Não somos tão fortes como osvelhos professores, mas o refinamento da civilização tem feito livres muitas coisas(Ao arquiduque Rodolfo.) - Nunca corrigi minhas composições uma vezterminadas, convencido de que toda mudança parcial varia o caráter de umacomposição. (A. Thomson) - A música religiosa deveria ser executada só por vozes,menos o Glória ou qualquer outra passagem desta ordem. Por isso gosto assim daPalestrina. Mas é um equívoco o lhe imitar sem possuir seu espírito nem suasconcepções."

"Woltuen wo man kann,Freiheit über alies lieben,Wahzheit nie, auch sogar amThrone nicht verleugnen."

(Fazer todo o bem possível, amar à Liberdade sobre todas as coisas e nuncatrair a Verdade, embora for por um trono.)

(Folhas de Álbum, de Beethoven. 1792).- Desventurado - diz em outra parte - o que não sabe morrer! Quando eu

tinha quinze anos, sabia já - Nada lhe digo de nossos monarcas e suas monarquias,escrevia Beethoven a Kauka durante o Congresso de Viena. "Para mim o impériomelhor de todos é o do espírito, primeiro de todos os reinos temporais e eternos." -"Penso com Voltaire que umas picadas de mosca não podem deter um cavalo emseu fogoso galopar." - "Não arrebatarão os imbecis a imortalidade a nenhum aquem Apolo a tenha já concedido” -"Amava Beethoven aos animais piedosamente.A mãe do historiador von Frimmel dizia que, durante muito tempo, teve aBeethoven um ódio involuntário, porque, quando ela era menina, tirava-lhe ele comseu lenço todas as mariposas que ela pretendia caçar."Um ser que assim se expressa e que põe sua vida ao nível de seus pensamentos éalgo mais que um simples homem : Por isso sua Morte teve um rasgo ocultista que

Outro detalhe ocultista de Beethoven: Sir Rivet Carnac, coronel ajudante do S. M. britânica, emsua célebre memória Cup-Mark ás an archaic form of inscription, da que nos ocuparemos ao falarda escritura pré-histórica por pontos e raias, chamada ogâmica ou ogâmica, aponta que o Mestre,em seus últimos tempos, quando já não estava verdadeiramente neste submundo, fazia no camposeus apontamentos musicais em seu Scrap-book empregando, não os habituais signos dopentagrama, senão outros tão estranhos como indecifráveis, uma espécie de criptografia hieroglífica,

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ao modo como raias e pontos, com a que também contraiu o hábito de cobrir às vezes as portas ejanelas de seus domicílios. Ninguém soube a ciência certa, até o dia, que classe de signosconvencionais poderiam ser estes, porque sobre isso carecemos de mais antecedentes. Os últimoscadernos autógrafos que se conservam, tal como o estudado e possuído por D. Cecílio de Roda,relativo a temas, principalmente dos últimos quartetos, são de notação ordinária, embora muitoabreviada e difícil.

recorda a do Simeão Ben Jocai, o comentador, mais que o autor, do admirável Zoarou Livro do Esplendor.

Deste rabino iniciado se diz que, depois de ter escrito essa maravilha daverdadeira cabala judia, viveu doze anos no isolamento e o deserto, e foi arrebatadopor um relâmpago...

Por um relâmpago também foi arrebatado Beethoven, novo Elias levado nocarro de fogo da tempestade... Ouçam os biógrafos.

O escrupuloso Kerst nos diz, com os apontamentos de Thayer à vista, que"pouco depois das cinco da tarde de 26 de março (1827), quando o Mestre jazia noleito de morte, desde vários dias e sem dar amostras de sentido, sobreveio derepente uma densa escuridão seguida de uma repentina chuvarada... Na cabeceirado moribundo só estavam, naquele momento, sua irmã e seu grande amigoHuttenbrenner, porque Schindler e Breuning tinham ido ao cemitério de Wachringpara procurar lugar ao futuro cadáver do Mestre. O chuvarada passou, deixandocoberto o chão de água e de neve, quando, repentinamente, fulgurou um muitovivo relâmpago, seguido de um trovão pavoroso. Beethoven, cujos olhos estavamquase fechados, incorporou-se de repente e, cheio de majestade ultra terrena,elevou solenemente seu braço direito como general que dirige um exército, ou maiscomo diretor de uma imensa orquestra: a orquestra dos elementos em seu maissublime paroxismo, e naquela atitude dir-se-ia que desafiava à morte... Tudo passouem um instante: braço e corpo caíram pesadamente um momento depois: o heróihavia falecido, levado em asas da augusta tempestade aquele seu incomparávelespírito."

Schubert e Beethoven, repousando no mesmo cemitério vem, não longe deMozart, cuja morte também se destacou por um formidável aguaceiro, parecemtodo um símbolo da música do século, que lhes deveu o verdadeiro lied, averdadeira melodia e a orquestração verdadeira, que tinham que ser integrados e emmagna síntese postos aos pés do Mito tradicional pelo esforço titânico de Wagner.

# # #Vindo já ao conteúdo da obra do mestre de Bonn, diremos acima de tudo,

com Cecílio Roda, que Haydn e Mozart trabalharam no velho sentido sem outro fimque o entretenimento nem outro patrão que o da forma; o primeiro escreve para ospríncipes que lhe pagam, o segundo para o público; os dois vertem constantemente

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no pentagrama sua própria maneira de ser: a sorte tranqüila, mesclada com umjovial humorismo, o primeiro; a graça e o sentimentalismo de um temperamento dedelicadeza e ternura, o segundo; mas sempre na forma mais pura. Beethoven segueseus passos a princípio; mas, espírito independente, não concorda em divertir aninguém. Pletórico de idéias quer encarnar em cada obra uma idéia distinta: aheróica, a épica, a trágica, a dolorosa, a íntima. A música não é para ele um motivode diversão, senão uma expansão intencionada; nas notas não se encerra a intençãofrívola ou o propósito geral que permite o jugo de outros elementos; mas, poucorevolucionário em seus procedimentos, não tenta destruir nem derrocar a tradição;transige com ela, aceita-a, e só quando lhe estorva dá um rodeio para não chocar defrente com ela. Sua arte é ao princípio juvenil e ardorosa; tem toda essa risonhaconfiança da juventude impetuosa. Depois é uma arte de tristezas, de dores, delutas; uma arte que avassala e que domina, sempre influenciado por um pessimismodilacerador. Em suas últimas obras, isolado por sua surdez, sua alma se agiganta,cresce até adquirir proporções inconcebíveis; vive uma vida de concentraçãointerior, de intensidade espiritual; e tudo isso, sua resignação, suas visões, suaconfiança no mais à frente, exterioriza-se, sai ao mundo pela única válvula quetinha ficado naquele espírito sem igual. Essa evolução pôde operar-se em sua almano transcurso de uns quantos anos; mas nem os contemporâneos nem ossucessores o advertiram. Continuavam julgando com o critério frívolo da música dediversão; continuavam aplicando a régua às medidas da forma, e não encontrandonem o um nem o outro, declararam em seu dogmático atavismo que as últimassonatas, que os quartetos finais, eram raquíticos de forma, adoentados de melodia,de sua melodia! Delírios de um extraviado ou febris exaltações de um doente.

O trabalho intermediário em Haydn e em Mozart, sendo eles autoresclássicos; sua maneira de desenvolver uma idéia e esgotar nela os recursos damelodia, a harmonia e o ritmo, não está isenta de fadiga e, em ocasiões, mostra essamonotonia que é o resultado de todo preceito da escola, por perfeita que ela seja.Em Beethoven, à inversa, a idéia não sucumbe jamais; pelo contrário, é a forma aque se mostra impotente, porque a idéia transborda por ela até rompê-la. Daqui asformas novas de seu segundo e terceiro estilo. Fetis, em sua Biografia dos grandesmúsicos, mostrou uma das facetas mais características do mestre, observando que oque lhe distingue de outros é a espontaneidade dos episódios, pelos quais suspendeo interesse que antes fizesse nascer para lhe substituir por outro tão vivo comoinesperado. Esta arte insuperável lhe é peculiar. Estranhos na aparência, aoprimeiro pensamento, atraem certamente a atenção por sua originalidade; emseguida, quando o efeito causado pela tal surpresa começa a debilitar-se, Beethovensabe retroagi-los à unidade de seu plano, fazendo assim ver o fim que no conjuntode sua composição harmônica a variedade depende da unidade... Como Napoleão,Beethoven é já algo inverossímil; tomar-se-ia às vezes por um verdadeiro mito, epara compreender todo o alcance de seu gênio é preciso ficar na posição de umcompositor cujos contemporâneos fossem Haydn e Mozart, a cujo nível ficou deum golpe já em sua juventude só com seus três primeiros trios.

Há, sobretudo, em Beethoven um fenômeno que convém particularizar, é

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que nele existem três Beethoven completamente distintos entre si; como Rafael eRubens, Beethoven tem um primeiro, um segundo e um terceiro estilo, direçõesprogressivas de seu pensamento e transformações capitais de seu gênio, como seabrangesse três encarnações sucessivas ou fizesse ele sozinho o trabalho sucessivo detrês concatenados gênios, e por isso o lugar ocupado por Beethoven na história daHumanidade pode ser assemelhado ao de Shakespeare, ao de Cervantes ou ao deMichelangelo. "Seu pensamento é severo, como o de Moisés de Buonarotti, semdeixar de ter por isso a graça de Sanzio, e dando à individualidade seus justosdireitos, arrasta-lhe, entretanto, o elemento panteísta, e sabe assim exclamar: Allistrue! (O tudo conspira dos mistérios teológicos)." Por isso seja o espírito deBeethoven um abismo cuja profundidade aumenta cada dia.

Os seis primeiros quartetos, os trios para instrumentos de cordas, a primeirae segunda Sinfonia, o Septimino e as sonatas Patética, Pastoral, ao Luar (SonataOp. 27 n. 2), e Aurora, são para todo mundo a flor mais fina de seu primeiro estilo,mozartiano ainda. As restantes sinfonias, exceto a última; os cinco quartetos (opus59, 74 e 95); a sonata Appassionata e a de Kreutzer, O Grande Trio em Si Bemol (op.97); as sonatas para piano e violino (op. 30) dedicadas ao imperador Alexandre e asaberturas de Leonora, Prometeu e Coriolano, o mais delicioso de seu segundoestilo, no que o mestre, como diz Lenz, despreza já os amaneirados jardinsmozartianos, porque lhe são necessários vastos parques e a silenciosa linguagem daselva, em que as mais ínfimas cabanas serão transformadas por ele em castelos. Avida do músico será como este novo roteiro algo extra-humano não aprendido aosPoderes da própria Natureza. Ele assim se dará sua lei, princeps legibus solutus est...Mas, como todos os tesouros do mundo deixam sempre um vazio no humanocoração, nosso herói sente ao fim de seus dias a necessidade de uma terceiratransformação, a partir da Sinfonia com coros (Nona), na qual é preciso pôr aquelainscrição do telescópio de Herschel: Coeli monumenta perrupit. O adágio destasinfonia, que poderia denominar-se o sagrado ágape da música instrumental e osseis últimos quartetos, não são senão o quadro da vida do justo e a lembrança desua passagem pela terra, lembrança confusa, como o são todos os dessa coisa tãofrágil e múltipla a que chamamos humana existência uma vez que ela vai deixandoos anos para trás. O mestre escreveu suas cinco últimas sonatas de piano (op. 90,101, 106, 109, 110 e 111) nesse estado de mística revelação que informa a suaterceira maneira, manifestação de uma vida estranha acima da existência corrente,em que, com sua surdez, não via já aos homens tal e como eles são, mas sim comoele sonhava que fossem.

Beethoven esculpiu todas estas últimas suas obras na viva carne de suaslembranças dolorosas; mas não sem oferecê-los, resignado, em holocausto daHumanidade, e com um formidável desenvolvimento de todos os recursosescolásticos... Há muito de Paracelso o taumaturgo, neste Beethoven no ocaso.

Entretanto, aconteceu-lhe o que a todos os gênios que se antecipam aos seuscontemporâneos: não foi compreendido senão pela metade e por poucos entre eles.Daqui noventa por cento de suas amarguras, como aconteceria depois à Wagner. A

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rotina e o preconceito se atravessaram em seu caminho, e os técnicos, essestécnicos das Juntas de Salamanca e dos Mestres Cantores, foram os maisformidáveis inimigos da obra beethoveniana, a qual sepultaram no esquecimentosem a intervenção ulterior de outros gênios, por um lado, e dos humildes, poroutro.

"Nos últimos dias do mestre - diz seu entusiasta admirador Heitor Berlioz -se executaram em Paris somente fragmentos das Sinfonias, com exceção, é obvio, daNona, que teria passado à posteridade como obra da decrepitude ou da loucura senão a tivesse salvado heroicamente Wagner, para tornar verdade o dito de que só ogênio pode compreender ao gênio. Hababenek, o diretor da Ópera, para satisfazeraos hommes de goût, caciques musicais horripilantes, viu-se obrigado a fazer nelascortes monstruosos, sem os quais não teria sido dispensada a elas, a honra defigurar nos programas daqueles "Concertos espirituais". No primeiro ensaio daspassagens tachadas com o lápis vermelho, Kreutzen tinha fugido tampando osouvidos, e teve necessidade de toda sua coragem para continuar escutando o quefaltava por ouvir da Sinfonia em ré, ou seja, da Segunda. Para isso, afinal, teve queintercalar o allegretto da Sétima Sinfonia... Poucos anos mais tarde, a heróica minoriaque decifrou o titã através das mutilações e transtrocas dos ditos concertos,fundava a Sociedade do Conservatório, na qual o titã se revelou já por completo anteaquele outro público verdade, cansado das guloseimas e frivolidades da música italianade ópera, que desde então foi declinando, como tudo que é fictício na Realidade ena Arte"... Triste missão dos gênios de todos os tempos a de antecipar-se sempre aseus contemporâneos, recebendo por seu espírito revolucionário toda classe deinjustiças, desprezos e amarguras como verdadeiros Cristos!...

Contava Beethoven perto de trinta anos quando compôs sua primeirasinfonia. Nesta idade, Mozart havia escrito a maior parte das suas. O estilo domestre de Salzburg tinha, pois, que influir nesta sinfonia, que inaugurava ainsubstituível série do mestre de Bonn, com acerto chamada "as nove musas".

Inoportuno seria nos estender em grandes detalhes sobre elas, quandopodem ver-se de índole belamente crítica nas obras de Berlioz, do J.G.Prud'homme, e em tantas outras. Mas há entre elas coisas que o amador não podeesquecer jamais, tais como o larghetto muito elegante da segunda, a terceira, quarta,quinta, sexta e sétima, todas completas, em especial o allegretto desta, o allegrettoscherzando da oitava e todos os tempos da Nona. São, enfim, todas elas, as NoveMaravilhas do Mundo da Música.

* * *

A Sinfonia Heróica equivale, diz W. de Lenz, ao descobrimento de um estilosinfônico então desconhecido. É a ruptura declarada de Beethoven com o velhomundo das sinfonias anteriores e o começo de uma nova era para a orquestra.Projeto, panorama, estrutura das idéias, tudo é novo nela; mas como toda audaztentativa de inovação em arte, não tem nem a perfeição de detalhes, nem a unidade,nem a ponderação de forças que se encontram já desde a quarta sinfonia até a

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nona. Estas sinfonias, última palavra da arte instrumental de hoje, só puderam serpossíveis graças à Sinfonia Heróica, onde Beethoven combateu rudemente com oinfinito... Bem ao contrário de Haydn e de Mozart, não se conhece de Beethovennem um quarteto nenhuma sinfonia medíocre, e só a partir de 1827 foi quando oConservatório de Paris, depois das predicações no deserto de Hoffmann, decidiu-sea tocar em um concerto a Sinfonia Napoleônica.

A Quarta Sinfonia é a sinfonia do amor. Em seu segundo tempo, depois doassombroso crescendo do primeiro, ouvem-se verdadeiros arrulhos de pombas... AQuinta Sinfonia, pelo contrário, é o destino misterioso do homem; suas quatro notasiniciais, três breves e uma longa, são "a chamada do Destino à nossa porta", e estakármica sinfonia de tal modo encarnou nos corações de nossa época, que nenhumaoutra, quase nem mesmo a Nona, até sendo de construção mais ciclópica e perfeita,deixou rastro mais indelével. A Pastoral é a passagem de música descritiva maisgigantesca que se conhece com seus cinco tempos de "Sensações agradáveis do campo","Junto ao arroio", "Festa aldeã", "A tempestade" e "Ação de graças depois da tormenta" quepoderia, como a Nona Sinfonia, ser cantada por coros. A Sétima Sinfonia é paraWagner a mais genial e alegre apoteose da dança, mas mais nos parece, como todorespeito, a descida de Beethoven aos infernos, como Orfeu, Pitágoras, Perseu, Jesus,Dante e todos os outros Iniciados. As escalas ascendentes da introdução parecemnos afundar em um mundo inferior de amalucados e farsantes elementais cujasdanças grotescas parecem burlar-se das dores da Humanidade. Os dáctilos e espondeosdo tremendo allegretto são, em troca, a personificação destas mesmas dores emTântalo, Prometeu ou Sísifo; a cidade de Dite, em que já não há redenção possível,enfim. Ao acabar o terceiro tempo, um canto religioso, objeto de possívelredenção, deve consolar aos desolados condenados...

E chegamos assim, de sublimidade em sublimidade, à incomparável NonaSinfonia, cujo julgamento resumiu Wagner somente com estas palavras: "Somos tãoingênuos que continuamos escrevendo sinfonias, sem nos dar conta de que a última faz tempo quefoi escrita." Sem o precedente, com efeito, dela e da Missa em ré e dos últimosquartetos, as mais colossais obras de Wagner, tais como o Parsifal e a Tetralogia,talvez não tivessem chegado a ser o que por ela foram. Da composição daquela, aodizer dos biógrafos, saiu Beethoven como que transfigurado e rejuvenescido. Tinhabebido na taça dos deuses o sagrado licor de Soma, que dá a imortalidade e direitoa um posto no "Banquete" dos heróis de Walhalla!...

É de interesse para o propósito fundamental deste livro, que permitamos nosdeter um momento a respeito da gênese literário-musical da última sinfoniabeethoveniana.

Já dissemos no capítulo anterior, ao falar de Weber e da literatura romântica,que Federico Schiller, o Goethe dos humildes, dos atormentados, o precursor doHeine, tinha exercido sempre com suas doces e misteriosas poesias grandeinfluencia na mente de Beethoven. "Quem depois de ter ouvido uma das sinfoniasdeste ler as cartas de Schiller sobre a educação estética - diz Lickeffett - reconheceráque o idealismo alemão jamais alçou tão alto, tão temerário vôo como naquelas

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obras 1.1 Lickefctt, O teatro de Schiller, tese doutoral.

O músico soube enlaçar seu destino com o poeta, e do consórcio de duasartes tão supremas surgiu O Hino da Humanidade, que é como sempre deveriachamá-la letra e a música da Nona sinfonia. Mas há muito que anotar respeito dela,que ainda não se disse, preocupados os escritores e o público pela sublimidade dapartitura.

Em 1784 - acrescenta Lickeffett - Schiller entabulou estreita amizade comquatro admiradores: Koerner, pai daquele que em seguida seria célebre bardo daguerra da Independência; Huber e suas duas companheiras, as irmãs Stock,residentes em Leipzig. Aceitando sua hospitalidade generosa, o poeta abandonouManhein para sempre, povoado onde lhe amarguravam a vida múltiplascontrariedades e obrigações pecuniárias, como em seguida à Wagner. Em poucosdias se achava já Schiller no melhor dos mundos, ao lado de seus novos amigos, emmeio da mais perfeita e franca das intimidades que podem fazer que o homembendiga à Humanidade da qual forma ínfima parte, em lugar de amaldiçoá-la. Agenerosidade e amor daqueles homens afastaram do poeta todos os baixoscuidados da existência, lhe deixando viver no puro céu de seu excelso espíritodurante aqueles mais tranqüilos anos de sua vida, qual não os tinha experimentadoo infeliz nem mesmo em sua própria infância. Este calor fraternal; esta amizadeperfeita; esta atmosfera para quanto tem de verdadeiramente humano e não animalno homem inspirou, pois, ao nobre Schiller as estrofes imortais de seu hino À alegria(An die Freude), cujo verdadeiro título é À Voluptuosidade, no mais muito puro,transcendente e originário sentido da palavra: não no degradado que temposposteriores lhe dessem.

Não é insignificante este sério assunto: Voluptuosidade, em língua latina, émais que alegria ordinária, porque é alegria transcendente e pura; voluptuosidade emlíngua românica é algo baixo, quase obsceno... A primeira é alimento dos deuses edos grandes místicos, porque equivale a êxtase, amor transcendente, delíquiodivino; a segunda é indigna até dos homens..., pois convém não esquecer nuncatratando-se de assuntos elevados que em todas quantas palavras das línguasneolatinas se faz referência aos incompreendidos conceitos filosóficos daAntigüidade sábia, foi voltado simplesmente ao reverso seu primitivo significado, para fazerverdadeiro aquela profunda asserção hermética de Blavatsky, de que "os deuses denossos pais são nossos demônios". Quer dizer, que respeito a tais palavras, embora seconservasse o corpo, ou seja, a forma, perdeu-se do modo mais lastimoso oespírito. Por isso todas as palavras neolatinas de dita índole filosófica, como filhasque são de uma língua erudita perdida cujo espírito se perdeu também, são meroscadáveres, e como tais cadáveres têm que ser consideradas e reconstituídas a seusignificado original pelo verdadeiro filósofo. Tal sucede com a palavra"voluptuosidade", "voluptuoso" e seus afins 2.2 Qualquer dicionário das línguas neolatinas deve dizer assim: "Voluptuoso, voluptuosa: adjetivoequivalente a mole, brando, efeminado, sensual, libidinoso, lascivo, etc. Diz-se da pessoa dada aos

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deleites carnais, e se estende a todo aquilo que inclina e provoca a eles, ou os fomenta. O lúbrico,obsceno, impuro, torpe." "Voluptuosidade", substantivo feminino. Qualidade, condição dovoluptuoso. Brandura, afeminação, corrupção de costumes, libidinosidade, sensualidade. Emmitologia é uma divindade alegórica, que se representa sob a figura de uma moça, formosa e nua,coroada de flores e tendo na mão uma taça de ouro, em que bebe uma serpente. Outros a pintamtendida em um leito de flores, ardente o rosto, lascivo o olhar e agarrando um globo de cristal comasas ou um caduceu... Em uma palavra, o protótipo do mal, a baixeza e o vício..." Tal é amedalha neolatina.Vejamos agora o reverso nos clássicos, quer dizer, seu nobilíssimo significado antigo."Voluptas, voluptatis, feminino, Volutta, agradarei, wollust, wolgefalen, volupté, plaisir, deleite, etodos os sinônimos de ij'Sovri' laetitia, praeter modum elata ex-opinione pressentem alicuyus boni;omne vão quo gaudemus. Dicitur tão de animo quam de corpore: tum de bona voluptate, tum demá. Omne vão, quo gaudemus, voluptas est UT omne quo offendimur dor (Cícero, 2. Fim C.37). Voluptatis verbo omnes qui Latine sciunt, duas cabeça de gado subjiciunt, laetitiam inanimo, commotio- nom suaven jocunditatis in corpore (ib., 1. 2, C. 4) . Divinus Prato escammalorum voluptatem appelat, quod ea vede licet homines capiantur, UT hamo pesque (ib. I, doSen., C. 13)", etc. (Calepinus, septem limguarum.)O contraste, como se vê, é absoluto. Voluptas, em sua etimologia erudita, significa exatamente ocontrário que em línguas neolatinas, viciadas em sua origem graças a um sentimento religioso,respeitável sem dúvida quando é sincero, mas incapaz por sua própria essência de abranger todo ofundo da sublime profundidade Pagã antes dos dias de sua degradação. Por isso em sua acepçãoantiga a personifica como uma deusa casta e pura, nascida do ou«culo divino da alma humana emseu Ego-Superior, Faísca da grande Chama da Divindade ou Logos. Em tal sentido, únicoverdadeiro, equivale a emoção transcendente mais que a alegria singela; a elevação super-humanada alma; deleite divino, epopéia, êxtase, amor supra-sensível e místico, compenetração íntima com aDivindade que pulsa em nós, que diria Schopenhauer, ou a tira de posto, no magno banquete dosdeuses, que Platão diria; o estado de transfiguração de Jesus no Tabor; estado que às vezespressentia Santa Teresa, >' do que o grande Plotino desfrutou só seis vezes em sua vida.

Com aquela primitiva significação transcendente tomada, a sublime ode deSchiller "An die Freude", "A voluptuosidade de Deuses", o suposto canto anódino “àalegria" adquire desconhecido vigor, e um relevo excelso, como acontece semprequando aos bons aços damasquinos se limpos da ferrugem dos séculos, porqueaquela composição do melhor dos líricos alemães parece um hino arrancado aosVeda ou aos Eddas sagrados, não sendo de estranhar, portanto, que Beethoventomasse por tema de inspiração musical para a mais ciclópica de suas obras, onde,pela primeira vez na história da arte, faz-se elemento sinfônico à voz humana,como prólogo verdade do moderno drama lírico wagneriano. Seja-nos, pois,permitido glosar a divina ode, ode do êxtase mais legítimo, o êxtase único do Amorà Humanidade, assim, com maiúsculas.

"Oh voluptuosidade, a mais bela refulgência divina, filha de Elíseo. Ébriosde emoção ousamos penetrar em seu santuário cantando: - Seu mágico eflúvio ataos Santos laços que o trato social, desumano e cruel, ousara romper um dia...Todos os homens são irmãos; todos são UM sob sua égide protetora!"

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E o coro responde:"Miríades de miríades de seres que povoam o mundo e povoam, sem dúvida,

os Céus sem limites; facetas inúmeras de um só, único e incomensurável Logos, euvos aperto contra meu coração!... Um imenso abraço para o Universo inteiro!Irmãos, meus irmãos, alegrai-vos; tudo se une e tudo conspira ao Santo Mistério, eaqui em nosso ser e lá e acolá, depois da abóbada estrelada, um Pai-Mãe amigoproteje a todos!... Que tudo que pulula no âmbito da Terra e do Espaço renda suacomemoração à simpatia do grande mistério teleológico!... Ela, em progresso semfim, eleva-nos até os astros - per adspera ad astra, onde existem, sem dúvida, maisexcelsos mundos!

Como Krishna, como Buddha, como Jesus, como a Revolução francesa,Schiller e Beethoven, unidos pelo divino laço de uma arte sem fronteiras, nãohastearam outra bandeira que a do único dogma humano: A Fraternidade Universal!

# # #

Duas palavras não mais a respeito de outro dos aspectos relativamentemenos estudados de Beethoven. Sua obra para instrumentos de corda: seus trios equartetos.

Aos vinte e três anos estampou Beethoven seu opus nº 1 sobre o cadernodos três trios para piano, violino e violoncelo dedicados ao príncipe Lichnowskyseu protetor, quem levou sua nobre paixão até o ponto de arruinar-se pela música.À noite de estréia assistiu o ancião Haydn que os elogiou muito, lhe aconselhandoapagasse certas temeridades do terceiro que hoje a crítica reconhece como muitosuperior aos outros dois. Os seis quartetos que depois vieram (opus 18) pertencemtambém à primeira época do Mestre em que seu estilo aparece influenciado por F.M. Bach e por Mozart, com arquitetura de Haydn, mas em todos, especialmente nosegundo tempo do primeiro e no primeiro tempo do quarto, o desenvolvimento émais amplo; o interesse crescente; as idéias escapam do velho padrão da músicapara humanizar-se; os episódios surgem inesperados, e um silêncio, uma notaisolada, um acorde estranho, dão, quando menos se espera, essa impressão deintranqüilidade e de angustia característica da alma gigante do Mestre.

Os cinco quartetos centrais (opus 59, 74 e 95), ou da segunda fase do gêniode Beethoven, são simplesmente colossais e superiores em tudo, a quanto podiahumanamente esperar-se de meros quatro instrumentos. Eles são a obra mais perfeitae sóbria da música, sem excetuar às próprias sinfonias, e até as superam, todavia, osseis últimos, que chegam a um limite verdadeiramente insuperável (opus 127, 130,131, 132, 133 e 135). A importância intrínseca deles é maior que a das sinfonias,embora estas, por seu grandioso quadro, seu mais fácil acesso ao vulgo musical, suapotência dinâmica e sua estupenda grandeza, serão sempre a glória mais definitivade Beethoven. O famoso trio em si bemol (opus 97), chamado “o touro Farnesio” damúsica de câmera por suas dificuldades de execução, é também uma verdadeirasinfonia, como sinfonias em um só tempo são também as grandes aberturas, tais

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como Prometeu, Coriolano, e, sobretudo, Leonora (núm. 3), Sem contar com seusmagistrais Concertos... Quando Beethoven, em 1802, disse a Czerny: "Estou muitopouco satisfeito comigo mesmo; a partir de agora vou empreender um novocaminho"; projetou seus seis primeiros quartetos, que lhe deixaram tão satisfeito,que escrevia a um de seus amigos: "Estou convencido de que só quartetos seifazer", e assim como na plena perfeição de sua primeira orientação escreveu osditos seis primeiros quartetos, e em pleno auge de seu segundo ideal produziu oscinco seguintes, agora, quando sua arte última se assentou já nas empíreas regiõesda Nona Sinfonia, da Grande Missa e das cinco últimas Sonatas, volta a vista para oquarteto e confia as últimas vibrações de sua alma.... A música deles parece como sede propósito desprezasse toda aparência bela, para reconcentrar-se na profundidadee na essência mesma do sentimento. A melodia abandona todo sentido cantável,para encarnar em breves motivos, fora de todo sentido melódico tradicional: ostemas, os períodos intermediários e o trabalho temático se fundem em umaigualdade de tinta, em “pó de melodia”, que despreza todo convencionalismo.Desaparece o supérfluo harmônico para aproximar-se de Bach, mais por razõesinternas de direção artística, que por deliberado propósito de imitação; cadainstrumento canta seu próprio canto; mais que cantar, recita, declama, fala,objetivando-se a intenção criadora na profusão de títulos e indicações expressivasde toda espécie que tendem a tornar inconfundível o propósito da emoção. Comodiz Lenz, são estes quartetos "o quadro da vida do justo; místicas revelações de suapassagem pela Terra".

Para penetrar na interioridade destas obras, tem que se colocar o ouvinte emestado de recolhimento e de abstração. "Milhares de pessoas ficarão sem asentender", dizia Beethoven mesmo, e como respondendo à sua profecia sedestacaram duas correntes de opinião: a dos que, não as penetrando, julgam-nasdelírios de um cérebro doente, incompreensíveis e não belas, explicando suasharmonias estranhas e suas combinações rítmicas, como conseqüência de suasurdez, e os que, tendo chegado a assimilar essa arte, declaravam-no o mais elevadode quantos a música produziu. Para estes últimos, hoje quase a totalidade, só pelaamortização de seus sentidos externos podia Beethoven encarnar em uma arteseparada do humano suas amargas dores e suas celestes alegrias 1.

O próprio Wagner, ao estudar a última arte de Beethoven, se expressa assim:"Logo o mundo exterior se apaga para ele completamente... O ouvido era o sóórgão pelo qual o mundo podia lhe perturbar, porque o mundo tinha morrido, hátempo, para seus olhos. O que via o sonhador enlevado quando caminhava peloformigueiro das ruas de Viena, olhando fixamente ante si, com os grandes olhosabertos, vivendo unicamente na contemplação de seu mundo interior deharmonias?... Um músico que não ouça! Pode ninguém imaginar um pintor cego?...Ele assim, sem estar turbado agora pelo ruído da vida, escuta só as harmonias desua alma, e continua do fundo de seu ser falando com um mundo que nada pode já

1 Das "Notas para as audições", dos Concertos na Sociedade Filarmônica de Madrid.

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lhe dizer... Um mundo que vive em um homem! A essência do mundo convertidaem um homem que respira! Agora a vista do músico se esclarece em seu interior.Agora projeta seu olhar sobre as formas que, iluminadas por sua luz interna,comunicar-se de novo a seu ser íntimo. Agora é a essência mesma das coisas a quelhe fala, a que lhe mostra à tranqüila luz da Beleza. Agora compreende a selva, oarroio, a pradaria, o éter azul, as massas alegres, o casal apaixonado, o canto dospássaros, o passar das nuvens, o rugido da tempestade, a voluptuosidade de seurepouso idealmente agitado. E nesse momento, esta serenidade maravilhosa,convertida para ele na essência mesma da música, penetra em tudo o que vê, emtudo o que imagina. Até o lamento, elemento natural de todo som, suaviza-se emum sorriso: no mundo volta a encontrar sua inocência de menino...Cresce e cresceesta força geratriz, do inconcebível, do jamais visto, do jamais realizado, que porsua mesma força se concebe, vê-se e se realiza. Todas os dores da existênciafracassam contra a enorme tranqüilidade de seu jogo com a existência mesma:Brahma, o criador do mundo, ri em seu interior porque conhece a Ilusão, a doceMaia que em tudo existe."

# # #Depois de falar dos quartetos de Beethoven, quem pode deixar de consagrar

uma lembrança à suas nobilíssimas sonatas que são o canon misae do pianomoderno? 1.

"Há um reino, um reino ideal, no qual Mozart, Beethoven e Weberestenderam suas asas para consolar o gênero humano das amarguras de hoje, paranimbar de formosuras o dourado ontem e para infundir nobres esperanças para oamanhã. Suas inspirações são nossos próprios prazeres e dores", diz Lenz aoentregar-se ao estudo crítico das sonatas do Mestre, e acrescenta: "As sonatas de

1 "Antigamente sonata significava música per suonare, ou para ser executada por instrumentos dearco, a diferença da toccata para instrumentos de teclado e da para canto ou cantata. Logo,entretanto, chamou-se sonatas a obras escritas para violino ou para chave. Semelhantes peçasestavam formadas por um só tempo e um tema único que se trabalhava em estilo fugido. Nosséculos XVII a XVIII trocou a forma da sonata, e adotou a variedade de tempo da suíte,embora conservando a combinação de temas que se derivava da fuga. O plano da sonata do FelipeManuel Bach consistia em expor um tema, trabalhá-lo com arrumo a combinações de contrapontoe reexponerlo a modo de peroração. Este é o primeiro tempo da sonata, que ordinariamente vaiprecedido de um curto prólogo para fixar a tonalidade. O tempo central se desenvolve geralmenteem forma de canção, ou em forma de variações. O terceiro tempo recorda a estrutura do primeiroou adota a forma de rondou, quer dizer, de um curto motivo que alterna invariável com outrosdistintos. Tal é o plano do gênero. Haydn lhe acrescentou o minueto, aumentando a travação dostema. Beethoven, a sua vez, infundiu-lhe espírito dramático, e os fragmentos dos tema se convertema sua vez em novos elementos melódicos, até o ponto de constituir suas principais sonatasverdadeiros cartões de sinfonia. Desde o Beethoven, pois, a forma da sonata ficou definitivamenteestabelecida." - Notas da Filarmônica Madrileña.

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Beethoven são comparáveis a uma vasta sala de pinturas, nos representando todo oamor, toda a felicidade que Deus permite esperar a toda criatura humana. Elasdemarcam a acidentada corrida que o homem percorre aqui sob: decepções,esperanças e êxitos...".

Toda a vida do mestre pode ver-se ao longo da série de suas trinta e duassonatas para piano, sem falar das para piano e violino, tão distintas das de Mozart,embora às vezes possivelmente não superiores, para piano e violoncelo, etc.

O protótipo da música mozartiana, a serenata verdadeira de violão, é aexcelente Sonata Patética (op. 13); a melhor mostra de seus sonhos juvenis é Sonataao Luar (op. 27, núm. 2) ; o alvorecer de suas dores a Sonata XIII (op. 26), com suamarcha fúnebre; o finalizar de seu primeiro estilo a Sonata a Waldstein,impropriamente chamada A Aurora (op. 53), e o vitorioso tremular de seu segundoestilo a complexa e difícil Appassionata (op. 57); a prova melhor da nobreza de seupeito, onde sempre germinou toda semente de bem e nunca a da ingratidão, suasonata conhecida pelos adeus, a ausência e a volta, de seu protetor o arquiduqueRodolfo (op. 81). O terceiro período tão misterioso e fundo de seu estilo se vê, asua vez, na estranha Sonata XXVIII (op. 101), no grimório da fuga da XXIX (op.106), cujo primeiro tempo glosa às vezes em dor de místico, algumas das maisamorosas frases de antigamente quando sua Quarta sinfonia. As complexidades,enfim, de seus quartetos refletem deste modo nas três últimas sonatas, sobretudona XXXII (op. 111), em que, depois da ferocidade de leão do primeiro tempo, ocisne morre cantando uma balada seráfica: a arieta com que aquele piano imortalemudecesse para sempre...

* * *Ocupar-nos dos continuadores da obra de Beethoven, alguns deles

contemporâneos de Wagner, levar-nos-ia muito longe. Além disso, por notáveisque eles sejam, terá que repetir aquilo de que o gênio não tem descendência.

Entretanto, seria injustiça notória não mencionar sequer Berlioz e Brahms.Heitor Berlioz (1803-1896), o artista famoso e audaz inovador, como diz Roda,abandonou a carreira de Medicina para ingressar no Conservatório, onde teve quepermanecer pouco tempo: sua imaginação vulcânica não podia amoldar-se àsestreitas leis de uma educação musical metódica. Sua acidentada vida jamaisconheceu grandes êxitos; mas, como Liszt, fez mais que bastante propagando evulgarizar a música de Beethoven na França. Seu mérito maior como compositorconsiste em ter enriquecido com novos efeitos a paleta instrumental, como se vêem suas duas sonoras páginas A Condenação de Fausto e a Sinfonia fantástica, peloqual, embora em vida tivesse muitos caluniadores, alguns chegaram a lhe considerarcomo Wagner da França 1.

Estas sonoridades, verdadeiramente onomatopéicas, nas que tão superior foi Wagner aoBeethoven, unidas à nota tenra ao par que enérgica deste último e ainda mais dolorida e maisneantista, se couber, é a característica, como é sabido, da moderna escola russa, com o melancólicoTchaikowsky (1840), o discípulo de Wagner e de Schumann tão açoitado pela reação, à cabeça.

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O andante patético, a Sinfonia patética e quantas obras escrevesse este contra a velha escola dosDargomijsky e os Glinka, foram a norma para a inspiração já mais épica, entretanto, deprofessores notáveis como Borodín em seus Estepes do Ásia Central e em sua Sinfonia de 1812,onde a sonoridade wagneriana vista através do Cin, Rimsky Korsakoff e Mussorgsky alcançoutanto relevo. "Na solidão da noite se ouça o tangido de lento e longínquo sino. Ao extinguirem-sesuas vibrações parece chegar até nós a salmodia do órgão preludiando um austero canto. Amonacal procissão de mortos em vida desfila solenemente pelo velho claustro, entoando um canto defé e de grandeza desaparecida. Ao extinguir o canto, o postludio do órgão e o tangido dos sinosvoltam a levar nosso espírito à solidão do silêncio e da melancolia..." Esta suíte do Borodín, é umsímbolo inteiro da moderna escola.

O hamburguês Juan Brahms (1833-1897) é um dos mais típicos discípulos deBeethoven. Suas obras - diz Riemann – como obras íntimas, ganham muito quandose conhecem a fundo e se olham de perto, familiarizando o ouvinte com a novidadede sua harmonia e de suas combinações rítmicas, quase sempre inspiradas natendência beethoveniana dos últimos anos, tendência adotada também por Wagnerao tirar do ritmo dos acompanhamentos todo caráter de precisão e relevo. Cria deemano professora estados de alma e sua rica paleta possui, não só as tintassombrias que constituem as características da grande arte contemporânea, mastambém essas outras docemente harmoniosas, reflexo de uma claridadesobrenatural que penetra na alma até suas profundidades mais íntimas, enchendo ade paz e adoração, estado devocional que fez admirar tanto à obra de Beethoven. Oentusiasmo de Schumann ao ouvir por primeira vez ao jovem Brahms foi tal, queescreveu em Nuevas Vias: "Freqüentemente aparecem novos talentos musicais;espíritos escolhidos. Sempre esperei que entre eles saísse algum que concentrasseem suas obras a mais alta expressão da época e nos trouxesse a perfeição magistral,não por um desenvolvimento gradual de faculdades, senão de repente, qual brotouMinerva da frente de Júpiter... Chegou este homem: chama-se Johannes Brahms...Apenas se sentou ao piano, começou a nos descobrir paisagens maravilhosas, nosatraindo insensivelmente a um círculo cada vez mais mágico. Adicionem um jogogenial que transforma o piano em uma orquestra inteira, com vozes que gemiam ougritavam de alegria... Tocou sonatas delas, ou melhor, sinfonias disfarçadas; Hedernos que se pressentia a poesia sem conhecer as palavras, cantando em todas elasuma grande profundidade melódica; peças soltas de piano de uma natureza meiodemoníaca na mais graciosa forma; sonatas de violino, quartetos... E cada coisa tãodiversa das outras, que parecia dever-se a uma fonte distinta. Logo, ao final,reuniam-se todos esses mananciais em uma corrente grandiosa para formar umacatarata coroada por pacífico arco íris, rodeando-a brincalhonas mariposas ecanoros rouxinóis..." Os músicos, com Weingartner à frente, ainda discutemBrahms, apesar da célebre frase de Bulow a respeito dos três bês (Bach-Beethoven-Brahms) que no julgamento deste compendiam toda a história da músicainstrumental. Seu lied, de qualquer maneira, é primoroso à Schumann, e sua obra depiano é do mais orquestral e menos pianística que se conhece.

Entre os sucessores, já mais modestos, de Beethoven, não podemos

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esquecer tampouco ao muito suave Mendelssohn."Mendelssohn - diz Lenz - pertence por inteiro à música instrumental: está

adscrito ao campo tão intensamente lavrado por Beethoven e, digno filho dopensamento deste, conjura seu espírito com aquela frase de Hamlet: "a worthypioneer!... Mendelssohn é um gênero; ele criou idéias que logo pôde expressar na línguade Beethoven... O espírito de Mendelssohn está infiltrado do célebre Thomas-Schule,de Leipzig, no qual o Paracelso do cravo, J. S. Bach, fora um dia o cantor. Por issorara vez se eleva dessa atmosfera confinada da aldeia alemã e é a mais freqüenteexposição do exclusivismo do lar, em suas notas doces, tenras e genuinamentehebraicas... A partitura do Sonho de uma noite do verão é talvez sua obra mais original.O scherzo e a marcha do entreato foram assimilados às mais belas produções dogênero, e estas esplêndidas partes igualam a quanto Beethoven tem de exuberante ede imprevisto: o sopro shakespeariano passou pela abertura, sem dúvida...Mendelssohn, enfim, ocupa um lugar sem competição na música de câmara por seusmuito formosos quartetos.

Por último, entre os críticos musicais de nossos dias se discutiu um pouco arespeito de Rust, como precursor ignorado de Beethoven.

Federico Guillermo Rust nasceu em Vorlitz, em 1739. Depois de acaloradapolêmica, Vicente d'Indy proclamou a suas sonatas romo muito superiores às deMozart, suas contemporâneas. A moderna Alemanha lhe proclama "o mais típicoprecursor de Beethoven". Sua obra musical, catalogada por Mendel, é extensa: 48sonatas, óperas, melodramas, concertos, etc. Aparece já nele o leitmotiv. Várias"Sociedades Rust" existem hoje, e seu neto o professor W. Rust exumoupiedosamente muitas das ditas obras do êmulo de J. S. Bach.

Terminemos, pois, com este longo capítulo dizendo que a influência decisivaque exerceu Beethoven no desenvolvimento do espírito musical do futuro criadordo drama lírico está descrita por nosso amigo D. Francisco Vera, em "Wagner e suasobras", quando, depois de falar da que antes exerceu Weber na infância do mesmo, edo fracasso total de seus professores de piano e de violino, acrescenta: "Com ospéssimos informes do jovem estudante, por todos seus professores de música, qualnão seria a surpresa de seu pai ao lhe ouvir dizer, um dia, que "queria sermúsico"...!” Houve, entretanto, tal firmeza em suas palavras, brilharam seus olhostão intensamente e adquiriu seu rosto tal expressão de seriedade, que o pequenoRichard pareceu crescer em um instante, alcançando a altura moral a que se chegaquando o mais profundo convencimento dita nossas palavras. Esta súbitadeterminação de Richard Wagner obedecia a uma causa perfeitamente justificada.Quando sua família retornou de Dresden, em 1827, estabelecendo-se em Leipzig, ofuturo gênio assistiu aos concertos de Gewandhaus, ouvindo em uma das ocasiões aabertura de Egmont e uma das sinfonias de Beethoven. A impressão que lhe produziua sinfonia do sublime surdo foi o "levante-te e anda" que despertou o gênio latente que

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em Wagner dormia 1. O pequeno Richard ficou enlevado e mudo sem poderpronunciar uma só palavra; seguia os compassos da orquestra sem compreender asérie de emoções que embargavam sua alma; dissera-se que no mais oculto de seuser, nisso que os modernos chamam “consciência intermodal”, agitava-se todo ummundo de inéditas e sublimes harmonias que, ao mágico conjuro da musabeethoveniana lutavam por sair ao exterior... Aquele menino, aquele embrião dofuturo autor de Parsifal, soube acoplar-se ao gênio de Beethoven; e assim como esteestava surdo para os ruídos exteriores, porque sua percepção acústica era de tãodeliciosa sensibilidade que só lhe permitia ouvir as sublimes harmonias de outromundo superior, aquele pareceu ficar surdo de alma, mas no fundo dela, nos maisíntimos retiros de seu eu, pulsava uma infinita orquestração de silêncios sonoros, desilêncios áureos, como os cantados por Maeterlinck, silêncios harmoniosos esublimes que depois dessa gênese interna cristalizam, e as notas surgemmaravilhosas e geniais, com algo de misterioso que atrai, que subjuga, que faz que oauditório se esqueça de tudo que o rodeia, ligando-o tão intimamente às notas quechegam a seu ouvido, como ficou Wagner à Beethoven, o qual então quis ser"Beethoven ou nada".... Como os da orquestra, o jovem Wagner teve seu silênciofecundo, porque nele vibrou o germe da música, porque nele se condensou aprimeira partícula da riquíssima mina de seu gênio musical... E então Wagner quisser músico, e foi.

1 A veneração religiosa que Wagner sentiu por seu precursor musical está escrita em caracteresindeléveis em múltiplos de trabalhos seus. No catálogo das obras de Wagner, que abrange dezgrandes volumes, na edição do E. W. Fritzch (Leipzig, 1871-1883) achamos os seguintessugestivos títulos: Uma peregrinação à casa de Beethoven (1840-41) - Sobre o estado da músicana Alemanha - Relatório sobre a execução da 9ª Sinfonia, com seu programa (1846) - Programaexplicativo da "Sinfonia heróica" (1852) - Programa explicativo da abertura de "Coriolano"(1852) - Beethoven (1870) - Para a execução da 9ª Sinfonia (1873).

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CAPÍTULO VIWAGNER E SUA OBRA

O ambiente teatral em que nasceu o Mestre – O filólogo se desenha depois dodramaturgo, e o músico, enfim, depois do filólogo – A iniciação de Wagner nassublimes obras de Beethoven - Dois efetivos teósofos – O cálice do Ideal – Oeterno trabalho do gênio - A família de Wagner. – Schopenhauer e o calvário dojovem Wagner – O primeiro matrimônio de Wagner. – O mestre em Paris – Alenda do holandês errante – Primeiras produções wagnerianas - Seu famoso Credoartístico - O mundo das prima-donas e dos partiquinos - Em que estado de abjeçãocaiu a música na época de Wagner - A Religião do Teatro - As orquestras - Wagner,republicano - Sua saída de Dresden – Como, no crisol da dor, se elaboram as obras-primas – Jó e o tema humano da Justificação – "Depois da Verdade com ânsia ímpia..." –Matilde Wesendonk – Wagner, o incompreendido – O santo protetor Liszt - Anosde suprema angústia - Wagner e o rei Leopoldo da Baviera - Os maiores inimigosda obra wagneriana - Meyerbeer, Rossini, Auber e Berlioz - Paris e o fracasso deTannhaüser - Bruckner e Strauss, como sucessores de Wagner.

Bem contra ao que o mundo acredita, em Wagner, como em Beethoven, ofilósofo ainda supera ao músico, por maior que este último seja. Ambos sãomúsicos a título de filósofos, e não filósofos a título de músicos, como o provam osdetalhes que reportamos no capítulo anterior quanto à magna obra literária deWagner, que em seguida estudaremos, obra a qual em vão se pretende eclipsar comuma música a que o próprio Wagner considerou sempre escrava da poesia e daidéia: "ecce ancilla domini", como é dito na A Anunciação 1.

1 Entre a infinita bibliografia de Wagner, são recomendáveis como raras as seguintes obras:Bouffon Stewart Chamberlain, Richard Wagner Mit Zahbreichen portrat, Sahfimiles.Illustrationen und Beilagen. München, Verlagsanftalt, 1896, in-4. Tristan und Isolde, vonRichard Wagner-Vollotandiger Klavierauszug von Hans Bülow, Leipzig, Breitkopy Alaitel, S.d., P. in-4, musique et chant. O Vaisseau Fantóme. Opera em 3 atos de Richard Wagner.Tradução francesa de Xales Nuiter. Paris, Flaxland, S. d., G. in-8, musique et chant, dem.-Chag. Parsifal. Version française do Víctor Wilde. Partition pour chant et piano, réduite par R.Kleinmichel. Paris, Scholt, S. d., In-4, musique et chant, demi-chag., Tr. Rouges. Lohengrin.Opera em 3 actes et 4 tableaux. Tradutcion francaise do Ch. Nuitter. Ouvelle édition conforme aRepresentation De l'Opéra de Paris. Paris, Durand, S. d., G. in-8, avec 1 figure, chant etmusique, demichag. Eles maítres-chanteurs do Nürenberg. Poéme et musique de Richard Wagner.Versão francaise do Alfred Ernst. Partition pour chant et piano réduite par R. Kleinmichel.Paris, Scholt, S. d., In-4 br., Musique et chant. L'anneau du Nibeloung. L'or du Reno. AWalkyrie. Siegfried, poeme et musique de Richard Wagner; version francaise do Víctor Wilder.Paris, Scholt, S. d., 3 vols P. in-4, dem.-Chag. Rouge, dois ornei, tr. Rouges. Louis II et R.Wagner, par Edmond íazy, Paris. Libraire Perrin et Compagnie.

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Tão certo é isto, que a vocação originária do futuro criador do drama líricofoi literária, não musical: e mais que literária, lingüística, qual se requer em um tãogigantesco comentador dos Eddas - os Vedas da Escandinávia - como fora depoisWagner em seu Anel; em um tão excelso buscador de lendas e mitos primitivosderivados dos Eddas, perdidos depois das trevas medievais, com Wagner resultouser em todas suas demais criações, inclusive nos Mestres Cantores, osmester-singer da tradição poético-musical herdada do verso latino, ao que emcapítulos anteriores também aludimos.

Por isso seu primeiro ambiente foi o do teatro; seus antecessores menoslongínquos foram melhores literatos e atores que músicos, e por isso, enfim,quando sua mãe o enviou a um renomado colégio de Dresden, o Kreuzschule,sobrevieram nele imediatamente provas de uma grande facilidade para as línguasantigas, lhe considerando seus professores como um filólogo de grande futuro, e,no resto de sua vida, foram seus favoritos os estudos lingüísticos, chave, segundoBlavatsky, da maioria dos enormes segredos ocultistas, como o comprova a grandequantidade de obras deste ramo do saber humano que Wagner possuía em suabiblioteca. Apaixonado pelos clássicos gregos aos onze anos, antes que Weber eBeethoven fecundassem sua vocação literária com a faísca criadora da expressãomusical, ele mesmo afirmava que seria poeta... E quem duvida que o fosse ao graumais excelso, ainda mais como filósofo do que como literato? Certamente; contra oque normalmente acontece aos músicos genuínos, fez-se por si todos osargumentos de suas obras, tirando-os da Teosofia tradicional, quer dizer, daLingua-Religião-Sabedoria primitiva, perdida antes que alvorecesse o quechamamos História.

Dissemos de Beethoven e agora o repetimos de Wagner; que qualificar aambos de teósofos, não quer dizer que fossem seguidores conscientes das doutrinasdadas ao mundo ocidental pela abnegada H. P. Blavatsky, nem crentes neo-cristãoscomo alguns teósofos alemães modernos. O colosso de Bonn faleceu em 1827, ouseja, três anos antes de nascer a fundadora da Sociedade Teosófica, e mal podia teradmitido em toda sua primitiva integridade idéias que não foram divulgadas comocorpo de doutrina na Europa e na América até 1877, data da primeira obra deBlavatsky, Ísis sem Véu. Quanto a Wagner, apenas pôde conhecer esta obra em suavelhice - de fato não a conheceu – ainda menos A Doutrina Secreta, publicada em1888, uns anos depois do falecimento deste.

Chamamos, pois, teósofos a Beethoven e a Wagner da mesma maneira quehistoriadores como Cantú chamam teósofos a Alberto Magno, Flamel, Agripa,Spinoza, Paracelso ou Swedenborg, como partidários da unidade substancial daespécie humana, com um critério transcendente e abstrato, teológico e panteísta,acima de todos os credos exotéricos; místicas verdades que sentem palpitar odivino na natureza; intuitivos admiráveis que no além das coisas pressentem aÚnica-realidade, a Força-Inteligência ou Logos que ao Cosmos anima.

O gênio aspira ao ideal: ao Inalcançável sempre. A Ele eleva, cheio de inspiradaunção, o frágil cálice de seu organismo psico-físico, e o Ideal, que está acima noscobrindo, desce a consagrar o cálice, ora instantâneo e destruidor como desce o

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raio da nuvem; ora manso e fecundo como cai a chuva outonal sobre as árvores.Baixa assim a inspiração do céu do abstrato; cai assim o humano cálice consagrado,e aquele Prometeu ladrão do divino Fogo, consegue então, à custa sempre de suatranqüilidade e até de sua vida, acrescentar uma melhora, um progresso efetivo paradar a seus irmãos menores: os necessitados, os míseros do eterno vale "fundo eobscuro" do vaticinador salmantino.

Dispondo sem dúvida para seu titânico trabalho de músico e poetadramático, restaurador, em parte, dos Mistérios antigos, o Destino ou Karma,proporcionou a Wagner desde sua infância um adequado campo de influências quepreparasse na escolástica tabula rasa de sua mente o indelével fundo cênico precisopara seu trabalho, trabalho que não era outro, em essência, que o de restaurar asrepresentações dramático-musicais, verdadeira introdução aos Mistérios Menoresiniciáticos, pois, segundo suas próprias palavras, sua eterna aspiração foi a de criarum teatro tão vigoroso como o grego clássico, que, como é sabido, não representana evolução histórica da arte em obras como a Trilogia de Ésquilo, o Édipo, etc.,senão a degradação, já nos tempos históricos, dos referidos Mistérios: sua cascateatral e emotiva, enfim, sem os profundos ensinamentos científico-religiosos queconstituíram o conteúdo íntimo destes últimos.

"Wagner - diz nosso amigo D. Francisco Vera, em sua muito lindamonografia do colosso 1 - nasceu destinado para o teatro. Seu pai era muitoaficionado à arte de Tália e várias vezes tomou parte nas representações teatrais quedavam os aficionados de Leipzig. Schiller era seu autor predileto, e assistir àrepresentação de algum drama do ilustre autor de Guillerme Tell, era para Wagner paitodo um acontecimento... Morto este, sua viúva casou com Geyer, grande pintor emelhor cômico, a quem o próprio Weber fez cantar alguma de suas óperas. Alémdisso, Geyer foi autor dramático, e suas obras obtiveram invejáveis êxitos... RichardWagner, como se vê, cresceu em um meio artístico que exerceu marcadíssimainfluencia em seu espírito. Seu pai, seu tio Adolfo, seu padrasto Luis Geyer foram,pois, depositando em sua alma infantil o germe que mais tarde haveria deconverter-se em doce e saboroso fruto. À idade em que os meninos apenasconhecem o teatro somente de nome, Richard o freqüentava com assiduidade,assistindo às representações em que tomava parte Geyer, ouvindo as conversaçõesque se desenvolviam nos bastidores e inteirando-se pouco a pouco de toda a tramainterior que passa inadvertida para o público. Quando sua mãe não lhe deixava ir aoteatro, o pequeno Wagner chorava furiosamente... Rosália, Luisa e Clara, suasirmãs, também tinham se dedicado à arte cênica... Assim se compreende que aosonze anos começou a escrever um drama cujos quarenta e dois personagensmorriam e ressuscitavam com uma facilidade assombrosa, aparecendo comofantasmas logo que tinham deixado de existir, para desaparecer imediatamente, edeixar vazio o palco..."

1 Wagner, sua vida e suas obras, publicada pela Casa editorial Hispano-Americana, de Paris,1913.

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A tradição ancestral do espírito de Wagner como músico, estava mais oculta.Até a segunda geração anterior a Richard, os Wagner foram humildes professoresde escola e organistas de pequenos vilarejos, e quanto à terceira parte de suasaptidões, a que olhe à cultura clássica, alma de toda sua obra como poeta, convémnão esquecer tampouco que seu pai Federico Wagner era advogado, dotado de umaimensa cultura, como o demonstra o catálogo de sua biblioteca privada, rico evariadíssimo, especialmente nas grandes obras da Antigüidade Clássica, e que seutio Adolf Wagner gozou fama de grande comentarista e excelente tradutor dosclássicos, com um idealismo tão sem limites, que talvez lhe privasse de umamerecida notoriedade. Fiel a esta herança de aptidões, mostrou-se certamente omenino Richard como um lingüista precoce que, apaixonado pelos colossos daAntigüidade que estava chamado a ressuscitar um dia em nossos tempos, jáconhecia tosquio, Sófocles e Eurípides aos doze anos; traduzia a Odisséia a seumodo, e escrevia sobre ela um poema. Soberanamente ocultista é também a cenaque Vera nos refere em que seu padrasto Geyer, à véspera de sua morte, ao ouvirtocar as duas únicas partes de Weber que constituíam todo seu repertório de piano,disse à sua mãe em voz baixa: "Chegará talvez a ser músico?" - O moribundo tinhalido, com efeito, nessa luz astral tesoureira do passado e do futuro que, qual um marsem bordas, perto da triste ilha de nossa vida física, todo o futuro do músico-poeta... Anos depois ouvia, com efeito, Wagner a Voz sagrada e poderosa doDestino que lhe dizia: "levante-te, e anda..." A voz do Pai-Beethoven em suakármica Quinta Sinfonia!

Tão grande foi o entusiasmo de Wagner ao ouvir a sinfonia de Beethoven,que, como havia dito, decidiu-se a ser músico; mas "não com a intenção deexpressar na linguagem dos sons suas emoções internas - como fizeram Beethovene seus precursores -, mas sim porque - são suas próprias palavras - considerou a músicacomo um incomparável instrumento para transmitir ao drama calor e vida 1”. Aqui está, pois, oponto de partida diferencial entre a obra dos dois colossos, obra que, entretanto, nofundo é uma: a de procurar para as grandes coisas da alta filosofia, toda umalinguagem matemática pura, que, atualmente, é-nos inexeqüível; uma linguagemmatemática inconsciente, e como inconsciente, mais sublime, como temos visto que é amúsica.

Devido à lei de luta entre as forças do Bem e as do Mal, que mantêm comsua antitética dualidade o equilíbrio do mundo, semelhante propósito titânico nãopodia encontrar senão a mais cruel, desumana e tenaz oposição por parte destasúltimas, o que explica por si só o calvário de Wagner, como o de todos osinovadores, e a poderosa vontade que aquele grande discípulo de Schopenhauer,em seu Mundo como Vontade e como Representação, sua obra favorita, teve quedesenvolver até ver representado seus dramas líricos no teatro de Bayreuth, exprofesso construído pelo mesmo, qual um templo de Eleusis, para celebrar os

1 Lichtenberg, Wagner.

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Mistérios iniciáticos da Idade Moderna, a grande e até inadvertida revolução de nossosdias.

Primeiro, as asperezas da técnica, espécie de abracadabra que assustou atantos espíritos; logo e sempre a luta com a vulgaridade ambiente, de um lado, ecom as míseras necessidades pecuniárias, de outro. O grande renunciador soubevencer tamanhos obstáculos, entretanto, cumprindo até o fim de sua vida aquelemagnífico credo artístico que pôs nos irreverentes lábios do protagonista de suaobra autobiográfica, Um músico alemão em Paris, e cujo texto literal diz:

"Acredito em Deus Pai, em Mozart e em Beethoven, assim como em seusdiscípulos e em seus apóstolos. Acredito no Espírito Santo e na verdade da Arte,una e indivisível. Acredito que esta Arte procede de Deus e vive no coração detodos os homens iluminados pelo céu. Acredito que quem saboreou uma só suavez sublimes doçuras, converte-se a ela e jamais será um renegado. Acredito quetodos podem alcançar a felicidade por meio dela. Acredito que no julgamento finalserão oprobriosamente condenados todos os que nesta terra se atreveram acomercializar com esta arte sublime, à qual desonram por maldade de coração egrosseira sensualidade. Acredito, pelo contrário, que seus fiéis discípulos serãoglorificados em uma essência celeste, radiante, com o brilho de todos os sóis, emmeio dos perfumes e os acordes mais perfeitos, e que estarão reunidos por toda aeternidade na divina fonte de toda harmonia. Oxalá me seja outorgada tal graça!Amém."

Recordemos, rapidamente, alguns de seus momentos mais formosos derenunciador e de mísero atormentado pelo Destino.

Casa-se muito jovem com uma mulher vulgar, Guillermina Planer, reversoprático e egoísta da impenitente idealidade de Wagner, com a qual o eterno pleitodo Amor e o Interesse tomou corpo até acabar em divórcio. Apesar dos laços doencanto matrimonial, a matéria foi vencida pelo espírito, e o grande sacrificadorealizou suas primeiras renúncias, preferindo seus incertos triunfos futuros em Paris- triunfos que teriam sido tremendas derrotas, se não fosse porque triunfou sobreelas por si mesmo - à sua vida, relativamente desafogada, de diretor de orquestraem Magdeburgo, Kónígsberg e Riga. Embarca, pois, cheio de ilusões legítimas paraVille-Lumiére, metrópole que foi para ele mais tarde, ao deixá-la, "a cidade cheia deenormidade, de ruído e de lama", e chega a estar a dois dedos do naufrágio paraque em sua mente tomasse realidade, como se disséssemos, a maravilhosa lenda doHolandês Errante... Chega à Meca francesa de seus sonhos, e ali recebe Meyerbeer esuas perfídias de matreiro rabino egoísta, amém dos sabidos assédios da fome comque mais de uma vez pôs à prova a grande metrópole a quantos gênios foram embusca de seu amparo para não receber senão o batismo de sangue das humanasinjustiças e acerar os músculos morais de sua vontade de neófitos para sua lutaulterior com o Destino... Compõe Wagner sua Fadas, sua Proibição de Amar e seuRienzi, enfim, e a primeira destas obras é rechaçada com indignação por Hauser,empresário do teatro de Leipzig, grande amigo do rabino Mendelssohn,qualificando-a, "além do repugnante de sua tendência, como absurdo engendro deum desatinado cérebro que desconhecia absolutamente os segredos da cena". A

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Proibição de Amar é ensaiada por sua vez em Magdeburgo; mas no momentosupremo da estréia, aquele desgraçado diretor de quatro ou cinco orquestras deteatros alemães, que foram sucessivamente quebrando umas após as outras para vê-las afundar na miséria, vê que os atores não sabem os papéis, e quando no diaseguinte, ou da segunda representação, mal os aprendem, os atores vão à cenabrigando uns com outros e acabando a representação em um verdadeiro campo deAgramante. Quanto ao Rienzi, o vulgaríssimo diretor Scribe, de Paris, não dá aWagner sobre sua representação, senão vãs e enganosas palavras para seudesalento... Inocente esperança a do homem de gênio, protótipo sempre fiel de umgrande menino! Como pretender que nos teatros daquela época, onde sótriunfavam os cantores de ópera eunucos e o frívolo canto de prima-donas e departiquinos, pudessem tornar-se naturais, sem luta, as lendas-verdade sobre fadas,duendes e trasgos, lendas capazes, se estudadas a fundo, de revolucionarduplamente todo nosso equivocado direito penal, toda nossa não menos falsapsicologia e, sobretudo, nossa tão discutível poesia? Como admitir também de bomgrado os varonis acentos de liberdade civil e política, que são alma do Rienzi, donobre tribuno romano, retratado magistralmente por aquele cabalista admirável,discípulo do semi-mago Eliphas Levi, que se chamou Sir Bulwer-Lytton?

Tem-se dito, com razão, que a primeira obra do gênio é, em germe, sua obraúltima e definitiva, e assim aconteceu com Wagner, porquanto seu futuro Anel doNibelungo e seu ensaio dramático As Fadas entranham o mesmo fundo ocultista, queveremos quando nos ocuparmos delas, e este fundo eminentemente ocultista, tinhaque ser rechaçado e até açoitado por aqueles fariseus e saduceus do bel canto quetinham conseguido prostituir desde há dois séculos a solene música religiosa dePalestrina, Bach, Haydn e Haendel, e desvirtuado a natural tendência religioso-simbólica das primeiras representações musicais no teatro, espécies de autossacramentais de Caldeiron e Lope de Vega postos em música, dramas dos quais não sepodia passar logicamente senão ao drama lírico de Gluck e suas mitologias, atravésdo espírito de fundo unitário que enlaça, contra o que costumam acreditar osvulgos, ao Cristianismo e ao Paganismo, qual pretendesse um dia enlaçá-los o gêniosintético de Beethoven, ao preparar, depois do Hino à Humanidade futura, sua inataDécima Sinfonia.

Da mesma forma que nos dias de Wagner, acontece ainda em nossos dias,onde, em teatros de primeira ordem, como os de Paris, Viena e Madrid, ainda secontinua executando o repertório franco italiano mais brega de Donizetti, Auber,Carnicer e Puccini, meio coonestados em sua insignificância, e para que nãochoque, com alguma representação, muito de vez em quando, já que não de obrascomo o Fidelio, de Beethoven, de obras do repertório wagneriano, mas estasúltimas com vistas sempre mais aos italianismos remotos de Lohengrin que àsgrandezas de Tristão, e mais ao espírito pseudo-cristão de Parsifal, a grande obrabuddhista de Wagner, que ao pagão Anel do Nibelungo, e, sobretudo, que sua semigual Walkyria, onde, como veremos logo, um dos mitos cristãos prediletos doscrentes está tratado com mão de mestre em sua pureza mais prístina na Mãe Siglindae na Virgem Brunhilda...

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E é que o teatro, em verso ou em música, é, sem dúvida, como tantas vezesse disse, a escola dos costumes, a instituição que mais pode realizar nos forçososparênteses de nosso trabalho cotidiano o ideal clássico do delectando pariterquemonendo, e convém a todo custo, portanto, para os fins retardatários dos Poderes doMal a quem antes aludia, lhe prostituir o mais possível, e lhe afastar quanto possívelseja de sua significação primitiva iniciática entre gregos e romanos, falseando asmais nobres paixões, pervertendo os mais depurados gostos, afastando do teatro -coisa impossível, porque só cantam a doce lenda e o profundo e entusiastamisticismo - tudo que à lenda, que é véu do Mistério, possa-se referir, e assim, dequeda em queda, descender até a sentina da opereta bufa, aos dançantes canallescos eàs zarzuelitas frívolas, quando não grosseiramente imorais, que estão afundandocom o que possa ficar do gosto francês e espanhol, até nivelar, em perfeitaapoteose de bestas, sobre as festas de touros, as rinhas de galos e as brutalidades doboxe... Assim vai o mundo! 1.

1 Nosso amigo Gómez Carrillo, com o aprimoramento característica de todas seus Aladascrônicas, domina com vôo de águia o problema, ao dizer em uma destas a respeito Da Religião doTeatro, respondendo a Cavia:"Nenhuma ilusão galante entra na enfermidade moderna do teatro. É um mal artístico. Os quevivem uma vida sedentária encontram no que vêem na cena uma exaltação tal de idéias, desentimentos, de paixões e de beleza, que chegam, pouco a pouco, a não poder suportar avulgaridade da existência cotidiana sem adorná-la com algo da existência artificial do teatro. Tudoestá nessa sede de ideal. Cada povo tem seus paraísos artificiais. No Oriente exige o ópio; noOcidente, a literatura. E o que é o teatro senão a mais brilhante forma da literatura, a queapresenta as quimeras em ação, a que converte nas verdades visíveis os sonhos, a que encarna emseres vivos as paixões mais estupendas? Me crie você, mestre Cavia, esse mal da histrionitis quevocê assinala é um mal muito generalizado, muito universalizado, pode dizer-se... Porque os atoressão, em todas partes, a representação viva da grande religião do teatro.O teatro, com suas imagens exaltadas, produz-nos uma embriaguez incurável. Vendo-nos noespelho embelezador da cena, encontramo-nos melhores e maiores. Os dramaturgos podemempenhar-se em ser cada dia mais vulgares e mais burgueses. Não importa. A existência, atéburguesa e vulgar, resulta, quando a contempla entre as luzes do alpendre, muito menos detestávelque vista na monotonia da rua e do lar. O que procuramos nos espetáculos é o contrário do queacreditam procurar. "A realidade - dizemos -, hei aí a grande arte." Mas a realidade não existe.A realidade não existe senão na realidade. Na literatura há sempre acerto, interpretação, visão.Não lhes lembram da anedota que contava Lavedán a uns

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amigos? Um dramaturgo que era cenógrafo surpreendeu um dia um desses dramas de família queem sua rudeza trágica fazem tremer aos que os presenciam. Com uma fidelidade notarial, copioucada frase, apontou cada gesto, fotografou cada atitude. Logo, com o que em tempo do EmilioZola llamóse uma "fatia de vida", fosse a um empresário e o decidiu a representar sua obra.Quanta esperança tinha posto o pobre ingênuo naquela tragédia sem embustes, semconvencionalismos, sem literatura! "É mais forte que Shakespeare e que Sófocles!" - Gritava. Echegou a noite da estréia, e a gente não aplaudiu. "O pior de tudo - disse então o dramaturgocontando sua aventura ao Lavedán - é que eu tampouco aplaudi... Na cena, parecia falsa minhaobra, que era, entretanto, a vida verdadeira sem retoques." E adicionou: "É uma triste coisaconfessá-lo, mas não há outro remédio: a arte é incapaz de reproduzir a realidade lhe conservandosua força. O teatro, como a novela, não se alimenta mas sim de mentiras, de enganos, de quimeras,de fantasmas, de sonhos."É certo. Só de ideal vive a arte. Mais, a que nos queixar disso? O mal não está em que sejaimpossível levar o real às pranchas ou às páginas de um livro. O mal está em ter ouvido comcomplacência aos falsos apóstolos que fizeram acreditar que a arte é a cópia da realidade."O teatro real, o teatro de vida, o teatro sem embuste existe. É a vida mesma. É o formidávelcenário no qual todos representamos um papel fastidioso e longo e monótono, repetindo sempre asmesmas palavras, chorando pelas mesmas penas, nos enganando com as mesmas ilusões, noschateando com o mesmo chateio. E este teatro, pelo general, é tão pouco agradável, que todos nossosesforços tendem a não assistir a suas representaçõesCom verdadeira atenção, senão nas épocas em que alguma paixão grandiosa, pessoal ou coletiva,faz que a monotonia desapareça. Oh! Não são os homens da Revolução francesa, nem os homensda Comuna, os que têm necessidade de cem teatros e de cem estréias. Para eles, como para osfranceses, os ingleses, os alemães, os italianos e os russos deste tempo, o cenário da existência basta.Mas em nações como a nossa, tranqüilas, ponderadas, ordenadas, corteses, "neutros" e laboriosas,o que passa na rua e nos lares não basta a nos divertir, menos ainda a acalmar nossa sede deilusão. Porque, no fundo, esta é a palavra: “sede de ilusão".

"Os filósofos mais recentes o reconhecem. "Pode dizer-se - escreve Gabriel Tarde- que asociedade atual, que está no topo da cultura, acha-se sedenta de ilusão; as necessidades sensitivasdos homens se fazem cada vez mais tirânicas, ao mesmo tempo que os meios das satisfazerdiminuem com a paz e a riqueza. A religião não tem já seu poder antigo. Terá que procuraroutras religiões de prazer. Agora bem; entre estas religiões laicas de que fala o filósofo francês, umadas que mais votos tem é, sem dúvida nenhuma, o teatro. Eu o havia já sentido confusamente hámuitos anos, ao notar em minha alma o endeusamento dos atores e a divinização das atrizes; masnunca como hoje me tinha dado conta da força de meu próprio entusiasmo. A política, a literatura,as relações sociais, os deveres, todo me deseja muito menos importante, em meu primeiro movimentode curiosidades, que o teatro. "Uma estréia... Uma nova atriz... Um teatro que se inaugura...,Exclamo ao ver as colunas cobertas de anúncios de espetáculos. E no ato sinto cantar em meusouvidos os nomes prestigiosos dos deuses e das deusas de nossa época, dos divinos histriões e dashistrionas mais divinas ainda... Porque, ao fim e ao cabo, se algo ficar ainda de ideal no mundo, aeles e a elas o devemos."

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Vimos, antes da partida de Wagner para Paris, rechaçadas suas três primeirasproduções, ora pela vulgaridade das pessoas, ora pela própria mão do Destino. Se adiscórdia dos atores na própria cena frustrou a representação da Proibição de Amar,no Magdeburgo, a quebra mais estrepitosa caiu sobre a Empresa do Teatro doRenascimento, em Paris, tão logo tentou pô-la em cena. Aos míopes amantes da fadaCasualidade na história, brindamos estas coincidências que, como era natural, nãopodiam menos de continuar ao longo da vida do bardo açoitado. Quando quis pôrmúsica a seu Navio fantasma, calcado sobre a lenda do holandês errante, um editorgostou de do argumento e lhe pagou... Para encarregar a um vulgar artista que lhepusesse em música. Quando instrumentou uma zarzuela de Dumanoir, o público aassobiou estrepitosamente... Quando quis consagrar ao Beethoven uma extensabiografia e bibliografia, teve que ficar reduzida esta a uma curta novela: Umaperegrinação à casa de Beethoven, porque nenhum editor era natural! Considerouprático o consagrar o mais simples tomo a uma vida tão insignificante como a doautor da Nona Sinfonia... Quando se estreou sua abertura do Cristóvão Colombo,reiterou seu fracasso, graças às péssimas condições da orquestra... Em troca, onegro pão que comeu em seu desterro parisiense deveu a trabalhos tão desonestose magistrais como a de arrumar a partitura de A Favorita, para cornetas de pistão;ao compor romanzas incolores para os salões, e arrumar, para diversos instrumentos,melodias tiradas das óperas de Vieux-temps, Habeneck, Auber, Halevy e Donizetti!

Até o tardio, mas completo triunfo de seu Rienzi, em Dresden, que lhearrancasse das tristezas parisienses para lhe levar nada menos que de diretor aoteatro Real daquela corte, não serve senão para lhe fazer renegar mais e mais apéssima orientação do gosto musical de sua época, defeito que reputou incorrigível,e para que dali a pouco tivesse que escapar para a Suíça, açoitado, não como terrívelrevolucionário musical que era, mas sim como um não menos temívelrevolucionário político, por seu discurso de Conciliação das tendências republicanascom a realeza, e por sua amizade com Bakunin... Seu anjo tutelar na terra, aquelepianista sem rival, aquele místico de verdade que acabasse seus dias no seio de ummonacato sempre artístico e que em vida se chamou Franz Liszt 1, tendeu-lhe, pelacentésima vez, sua mão protetora e lhe salvou possivelmente da morte, lhesubministrando um falso passaporte que lhe permitiu refugiar-se em Zurich, paraali continuar seu trabalho prodigioso mais revolucionário que outra qualquer.

O implacável Destino, essa Nêmesis vingadora encarregada especialmente deperseguir e pôr sem cessar à prova as virtudes dos homens, não se conformou comas cruéis torturas infligidas ao colosso em sua vida juvenil: outras mais duras lhepreparava ainda: a dos dramas íntimos nos quais naufragaram tantos homens demérito.

1 Liszt - diz Lenz - não exerceu influência por suas composições, que são o daguerreótipo de seuprodigioso mecanismo. Sua maneira foi espontânea sempre: fazia valer todos os estilos, pois todosse os para familiares a funda cultura de seu espírito... É o poeta, o inspirado poeta que parecenascido do instrumento mesmo.

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Como a Beethoven, o amor ideal se apreciava em lhe atormentar, lhefazendo ver que ele, a bem dizer, é fruto inexeqüível neste submundo.

"Quando Wagner saiu de Dresden, banido por suas opiniões políticas - dizVera -, nenhuma lágrima brotou dos olhos de sua esposa, a vulgar GuillerminaPlaner, mas o músico não a esquece em suas solidões da Suíça. Nisto a vida deWagner tem muitos pontos de contato com a de Napoleão. O desterrado de SantaHelena tem sempre uma lembrança para Maria Luisa, a qual não quis compartilharcom o vencedor de Marengo as tristezas do árido penhasco inglês, e enquantoNapoleão sofre as amarguras do desterro, sua esposa se arrojava, em Parma, nosbraços de um tenor italiano sem mérito algum."

Aquela mesma esposa, vulgar e egoísta, que não quis seguir a Wagner aodesterro quando aquele se via sozinho e açoitado, não demorou, entretanto, emunir-se de novo assim que melhorou em Zurich sua situação econômica, mas afamosa "solidão de dois em companhia" de que falou nosso Campoamor, era umconstante obstáculo para os idealismos do autor de Lohengrin, e uma desafinadanota de protesto dado pelas tiranias e inércias retardantes do Destino contra todosos revolucionários desejos e todos os sonhos do músico-poeta.

A vida dos gênios tem coisas muito estranhas e dolorosas aos olhos dafilosofia. Diria que é lei inexorável a de que só a dor pode engendrar as obras-primas, e que a têmpera das grandes almas, como a têmpera do aço, não pode seradquirida sem o brutal contraste do frio com o fogo... Assim como a correnteelétrica não pode dar calor senão quando suas impetuosidades se chocam comresistências interpostas a seu caminhar, nem pode dar luz a lâmpada incandescentesenão quando suas energias intensas se vêem forçadas a circular aprisionadas pormuito tênue arame de platina, essa outra eletricidade vital e transcendente dosgênios, idêntica a que no Cosmos chama Fohat a literatura sânscrita, não podeirradiar suas luzes no mundo se não tiver brotado do choque rude da pederneirabrutal da realidade externa com o humano aço do coração temperado pela dor, que,finalmente, tudo potencial elétrico ou dinâmico não pode nascer, senão dodesequilíbrio, e todo diamante tem que cristalizar sob a crueldade mineral das pressõesmais tremendas... Isto, que também é uma das facetas do grande tema humano daJustificação que estudaremos a seu tempo, demonstra ao filósofo, sem deixar lugara dúvidas, como há uma lei oculta, em virtude da qual, quando no paroxismo dador, da rebeldia ou do esforço se chega ao limite, ou ao que com seu conceitográfico tirado da química poderíamos chamar o estado crítico das almas esforçadas,estas rompem ao fim o círculo de ferro que as aprisionava saltando a uma novadimensão, quer dizer, criando uma realidade nova por verdadeira obra de Magia: realidadeque nos símiles que formulamos é, respectivamente, a eletricidade psíquicatransformada por sua vez em obra eterna do gênio para benefício das geraçõesfuturas, filhas, por certo, daquela mesma ímpia geração que ao gênio crucificasse...

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À luz deste princípio oculto, êmulo quanto à sua dilaceradora amargura dagrande frase de Balart, quando diz:

Atrás da verdade, com ânsia ímpia corri desalentado;e uma vez alcançada,o que daria por não havê-la alcançado!

Explicamo-nos a razão de ser, digamo-lo assim, de quantas amargurasexperimentou Wagner, porque cada uma delas nos deu uma obra prima. Seus sonhosinfantis nos deram, As Fadas; o despontar do sexo, A Proibição de Amar; seussentimentos revolucionários e tribunícios, o Rienzi; seu quase naufrágio nas costasnorueguesas, O navio fantasma; sua vida em Paris e suas primeiras rebeldias contra oKarma, seu Tannhaüser; as belezas incomparáveis da Suíça e as neves de suasmontanhas, ao branco e puro cisne de Lohengrin; sua desgraçada paixão por MatildeWesendonk, o drama dilacerador de Tristão e Isolda; seus profundos conhecimentosda música medieval e contrapontística, reunidos com a ironia cruel de sua existênciaem protesto contra as velhas rotinas da arte de seu tempo, cristalizaram em seusMestres Cantores; sua obra sintética, ramalhete imarcescível de tradições e lendas, nosdeu a Tetralogia e, finalmente, seus desejos de liberação dos obstáculos deste mundomiserável, suas lutas constantes e a pureza de seu eterno ideal ao longo de sua tãoacidentada vida, e suas feridas ao Anfortas relativos ao sexo, deram vida àssublimidades religiosas de Parsifal. A muito brilhante faceta do gênio de Wagner,que se chama Tristão e Isolda, onde o amor, o desespero e a ternura transbordam, secorresponde, enfim, como antes indicamos, com o idílio de Richard Wagner eMatilde Wesendonk, idílio duplamente culpado aos olhos, ai! de nosso critériomoral, mas contra o que poucos são os que "poderiam atirar a primeira pedra", eque aos olhos piedosos da História é merecedor possivelmente daquele perdãodivino outorgado por Jesus à Madalena "por que tinha amado muito..." 1.

Wagner, incompreendido sempre, não era feliz em seu matrimônio pelavulgaridade egoísta de sua esposa: Matilde, alma grande, incompreendida tambémcomo a de Siglinda em A Walkyria, tampouco podia ser feliz com seu marido, ricocomerciante de sedas embora um tanto artista. Um sopro da fada Primavera; umaconfusão assaz humana do mundo supremo da arte, nele que devemos nos unirtodos como irmãos, com o mundo inferior do sexo que rodeou de espinhos nossavida e elevou as paredes do cárcere de nosso corpo, provocou a tempestade edesenvolveu aquele drama íntimo da Colina Verde dos Wesendonk, em Zurich, e do"Asilo", que dizia o criador de Tristão, asilo instalado ali perto da Colina Verde pelasolicitude do casal Wesendonk...; Que é tristemente impossível a homens emulheres conviver na terra, "como anjos no céu", conforme disse também Jesusquando lhe apresentaram os fariseus este insolúvel problema, e não parece serpossível tampouco que seres de sexo oposto simpatizem entre si naquele mundo

1 A esta muito inteligente e espiritual mulher, terrestre reflexo da imortal igreja, e a seus célebresHeder, base da dilaceradora elegia de Tristão, consagramos umas quantas páginas no tomo I destaBiblioteca, onde pode as achar o leitor (O tesouro dos lagos de Somiedo , pág. 133).

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transcendente da Arte, evitar que a besta aprisionada não queira seguir, grosseira, ascastas e libérrimas leis que são o exclusivo patrimônio dos espíritos...

Vejam como o próprio Wagner descreve ao seu amigo e protetor Lisztaquele seu retiro, onde o drama rapidamente se desenvolvesse, retiro do qual, aoscinco anos, saiu logo açoitado por essa deusa da fatalidade que apenas nos permite,como ao Judeu errante da parábola, breves picos de felicidade nos flagelando com seulátego de negreiro que nos empurra sempre, sempre, ao largo do caminho:

Zurich, 8 de maio de 1857."Por fim, chegou a hora de te escrever, queridíssimo Franz. Passei um mês terrível, que

parece ter deixado seu posto a uma situação muito agradável. Há seis dias ocupamos a casa decampo que conheces, ao lado do hotel dos Wesendonk. À extraordinária simpatia e afeto destafamília devo a mudança; mas passei antes por muitas tribulações; a instalação da casa (que émuito linda, como nunca poderia desejá-la melhor) tomou-me muito tempo. Além disso, minhamulher caiu doente, e tive que impô-la um papel completamente passivo, tomando para mimsomente todos os transtornos da mudança. Durante seis dias vivemos no hotel, e, por fim, foi feito otraslado com um tempo muito mau e um frio glacial, tanto que não pude conservar meu bomhumor, senão me dizendo que esta mudança de residência era definitivo.

"Tudo está arrumado segundo nossos desejos e necessidades; tudo se acha em seu lugar.Meu gabinete de trabalho está disposto com o pedantismo, a afetada elegância e as comodidadesque sabes que tanto eu gosto. Minha mesa está ao lado de uma grande janela, de onde tenho aformosa vista do lago e dos Alpes; gozo de uma completa calma, de uma absoluta tranqüilidade.Um lindo jardim, que já tem bom aspecto, dá-me suficiente espaço para passear e encantadoreslocais de repouso, e à minha mulher proporciona agradáveis ocupações e lhe afugenta suas idéiasmelancólicas a meu respeito; uma horta, sobretudo, que há um pouco mais longe, é objeto de suamais tenra solicitude."

Matilde, a gentil discípula de Wagner, que, aos seus vinte e quatro anos de idade,escutava o Mestre "como Brunhilda a Wotan"; "a proprietária da Colina Verde,apaixonada pelo ideal, via estender-se ante ela a vida e o mundo como a aprazívelcorrente de um rio. Querida e admirada por seu marido, jovem, mãe feliz, vivia noculto do Belo, na Arte e na Vida, igual ao do Gênio do qual não tinha visto aindaexemplar mais poderoso pela vontade e a imaginação criadora". O drama real,inspirador direto da Morte de Isolda, ficou extremamente esfumado por suaverdadeira protagonista, Matilde Wesendonk, artista de excepcionais méritos 1,

Matilde Wesendonk (1831-1902) foi uma genial artista. Em seus preciosos Contos hácomposições poéticas intercaladas, de verdadeiro mérito. A mais célebre de suas poesias é a liedTraüme (sonho) que Wagner instrumentou, e que se publicou, com outras da mesma autora, sob otítulo de Cinco poemas para uma voz de mulher, ou seja: O Anjo, Lhes detenha, Noestufa, Sofrimentos e Sonhos. Ao terceiro e ao quinto destes poemitas os denomina WagnerEstudos para o Tristão e Isolda. Em efeito; lembre-os lúgubres que acompanham à canção Noestufa, reproduziram-se exatamente no prelúdio do terceiro ato, e a melodia de Sonhos serve detema à passagem do dueto do segundo ato, passagem denominada de ordinário o hino de noite, que

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corresponde às palavras: "Noche de êxtase! Noche de Amor! Descende e nos proporcione osupremo esquecimento do viver. Acolha-nos em seu seio e nos leve longe do mundo." A curiosa eequivocada teoria ocultista das almas as gema, tem um caso célebre, sem dúvida, no RichardWagner e Matilde Wesendonk.

com estas singelas palavras estampadas em suas Lembranças: "Richard Wagneramava seu "Asilo". O abandonou com dor e tristeza!... Mas seu abandono foivoluntário. Por quê? Inútil pergunta! Como testemunho desta época temos suagrande obra Tristão e Isolda. O resto fica no mistério e em um respeitoso silêncio"...

As paixões, puras ou não (nenhuma o é), são o acicate do gênio; mas o gênioas supera, ao fim, como a águia supera as névoas invernais para banhar-se no clarosol das alturas. Com um supremo gesto heróico, rompe Wagner, ao fim, com asvulgaridades de sua mulher e com os encantos daquela ilha de Calipso da ColinaVerde e do Asilo, para restituir-se ao mundo a quem se devia por sua obra, e assim,em poucos meses, habita sucessivamente Veneza, Milão, Lucerna e Paris, onde lheaguardava a terrível prova de amargura da estréia de seu Tannhaüser, um dos maioresfracassos que o mau gosto e a inveja puderam jamais lhe proporcionar.

Não foi o público o maior inimigo da obra wagneriana – diz Foutullo - aofim e ao cabo, este, sempre inconsciente e frívolo, rechaça por atavismo todo onovo, igualmente em arte como em qualquer outra manifestação da atividadehumana. Os maiores caluniadores de Wagner, os que com mais encarniçamento lheperseguiram, foram, quais tinham que ser? os profissionais de sua época; os quetinham conseguido escalar, à custa de adular os instintos plebeus da multidão, asaltas cúpulas de uma glória efêmera que a História quase lhes nega hoje.

"Meyerbeer, o flamejante autor de cem obras enfadonhas, dizia que a músicade Wagner lhe atormentava, que era um ruído nada mais, querendo lhe aplicar afamosa frase napoleônica. Ele, que jamais em sua música fala à alma; ele que nuncasoube dar a sensação exata de um estado afetivo! Pressentiu Meyerbeer a futuraglória de Wagner e o desmoronamento de sua reputação artificiosa, e lhe vendendofalso amparo quis lhe anular por quantos meios teve a seu alcance. A popularidadedo autor de Hugonotes era então enorme; a Europa musical padecia verdadeira febremeyerberiana. Tratava amigavelmente a todos os reis, príncipes e magnatas da época,e de suas amizades, de seu ascendente sobre o povo, de seu influxo material emoral sobre a crítica e de seu dinheiro judaico se valeu para lhe desacreditar eescarnecer. Foi ele que preparou aquele fracasso ruidoso de Tannhaüser na Ópera,fracasso que pela forma extemporânea e grosseira em que se levou à cabo, fez quealguns periódicos, que não comungavam certamente no credo wagneriano,protestassem em nome da educação e das boas formas. "Meu fracasso em Paris, dizWagner, me foi proveitoso, e um triunfo, devido os meios que empregou contramim um antagonista que estava oculto e para o qual eu era uma inquietaçãoefetiva."

"Rossini, o criador do Barbeiro de Sevilha, a única obra que de sua copiosaprodução vai vivendo, também padeceu da obsessão wagneriana. Seu ódio ao autor daTetralogia lhe fez conceber uma Missa de Réquiem executada na Notre Dame de Paris.

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Seus amigos e admiradores, que então formavam uma legião, foram à catedralparisiense, acreditando que iriam se deleitar ante uma obra francamente rossiniana,digna irmã do Stabat-Mater, com todos seus efeitos de teatralidade; mas, ohdesilusão! O público não pôde suportar aquela inundação de notas, que sesucediam umas às outras, em estrepitosas sonoridades, sem coesão nem sentidomusical. "- Mas, mestre, que classe de música é essa?”- Perguntavam-lhe seusadmiradores -. "Essa é música wagneriana – respondia-lhes -; o que os loucoschamam música do futuro." Rossini confundia infelizmente, por ignorância ou por máfé, as criações geniais do autor dos Mestres Cantores, com aquelas lucubrações deseus imitadores que encobriam sua impotência melódica com a roupagem decombinações labirínticas tanto na parte harmônica como na instrumental. Com aMissa do Réquiem, Rossini se propunha a fazer uma grotesca caricatura de RichardWagner; e enquanto a figura deste, à medida que se afasta mais se agiganta, a deRossini está sofrendo um verdadeiro crepúsculo. De suas obras ninguém se lembra;o mesmo Barbeiro agoniza lentamente na cena lírica. De Auber, outro dosfuribundos caluniadores de Wagner, não merece o trabalho de ocupar-nos. Era tãopouca coisa!..." 1.Berlioz foi também inimigo irreconciliável de Wagner. Os dois perseguiam ummesmo ideal; eram sonhadores e românticos; mas estas qualidades se acentuavamcom mais intensidade no autor de Lohengrin. Além disso, possuía este acima doautor da Condenação de Fausto sua enorme cultura; sua tripla personalidade de poeta,filósofo e músico, pois tinha lançado ao mundo as leis sobre as quais tinha quefundar uma nova estética da arte lírico-dramática. Não era possível a luta. Berliozsucumbiu, porque quis elevar-se até o Gênio e o Gênio lhe esmagou, aniquilou-o.Se Berlioz tivesse tido uma idéia de seu próprio valor, se, se tivesse circunscrito acriar suas obras admiráveis sem que aninhasse em seu peito o verme da inveja,Berlioz teria ocupado um lugar mais destacado na história da música 2.

Vera, ob. Cit.Se em Berlioz influiu algo o patriotismo francês para manter eterno dê- pego para o colossoalemão, a bem que se equivocava, como se equivocaram tantos outros. Copio, com efeito, de umperiódico: Os alemães julgados por Wagner.Ninguém exaltou mais que Richard Wagner, com seu gênio, o espírito alemão, o gênio alemão, aalma alemã; assim, desde que se declarou a guerra foi inumeráveis vezes amaldiçoado como um doscorifeus mais ilustres do germanismo. Entretanto, um wagneriano de larga data, M. MauriceKufferath, membro da Academia Real da Bélgica, antigo diretor do teatro da Monnaie, publicana Revue Bleue textos extremamente curiosos, dos quais resulta evidentemente que as idéias dogrande músico, para o fim de sua vida, estavam em notória oposição com as de seu filho Siegfried eseu genro H. S. Chamberlain... Evaporada bem logo a embriaguez da vitória alemã, diz, Wagnerse inquietava em uma carta publicada em 1884, ante as conseqüências da guerra "criminalmentedesencadeada" em 1870: Não foi possível conquistar as fortalezas, senão as desmantelar... Não seevocam nem se aplicam mais que os direitos históricos, as reivindicações históricas, que de um modosemelhante se fundam sobre o direito de conquista...

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"Em 1876, a propósito de uma informação sobre o tema "O que é um alemão?", Deu Wagnersua opinião nas Feuilles de Bayreuth, declarando-se angustiosamente incapaz de achar umasolução. "O patriota alemão pronuncia constantemente o nome de seu povo com veneração deconvencido... É muito estranho na Inglaterra e na França ouvir falar das virtudes inglesas efrancesas; nós, os alemães, não cessamos de elogiar a profunda fidelidade alemã, etc.Desgraçadamente, um número infinito de casos nos demonstrou que esta vaidade não estácompletamente justificada... Nenhum outro grande povo se encontrou, como os alemães, emsituação de levantar-se si mesmo uma glória fantástica." Este sentimento "pode conduzir àsviolências mais irremediáveis e mais perigosas para a ordem social". "Não terá que fazer-seilusões! É inútil que enganemos a nós mesmos! Obtivemos a unidade nacional; mas o que vamosfazer?”Ainda em 1882, o grande músico assinala o crescimento incessante dos armamentos e aameaça que isso entranha contra o direito de gente, "a ausência de Estado jurídico que caracterizaNossa situação, a energia mais brutal das forças naturais mas baixas postas artificialmente emação". De tal sorte, Wagner prévio a grande catástrofe que tinha que fazer saltar no ar ao mundointeiro e que arrastaria infalivelmente a toda a família universal."Estas visões pessimistas são tão mais dignas de se ter em conta quanto que não provêm de umincompreensível, como Schopenhauer, nem de um doente, como Nietzsche, mas sim de um artistagenial que chegou em vida à glória e à apoteose..."

Schumann tampouco foi muito admirador de Wagner, e seus julgamentossobre ele foram muito inconstantes: tanto achava a música de Lohengrin frívola,pesada e sem significação alguma, como via brilhos geniais na de Tannhäuser.Wagner lhe leu em Dresden, um dia, seu Lohengrin, e parece ser que à vista doargumento Schumann desistiu de uma obra que tinha projetado sobre O Rei Artus,com a qual guardava certo fundo de identidade.

De todos os profissionais da época, só Liszt, o autor insigne das rapsódias,destaca-se nobre e desinteressadamente, defendendo as teorias Wagnerianas comuma fé e uma abnegação verdadeiramente apostólicas. A Arte deve a este grandecompositor uma gratidão eterna. Ele sozinho teve que lutar contra a estultícia dopúblico, a ignorância de uma crítica assalariada, e além do mais, contra todalinhagem de lendas, absurdas e canalhas, que a inveja de seus companheiros iaforjando ao redor da figura de Wagner.

Tal ódio se tinha a Wagner na Alemanha, que seus compatriotas de Parisforam os que mais contribuíram para o fracasso da formosa ópera na capital daFrança, para afirmar uma vez mais o dito do adágio de que ninguém entre os seus éprofeta. O grande revolucionário musical, embora tivesse a seu lado personalidadescom a excelência de Charles Baudelaire, aquele que falava "das sinfonias das cores e dosperfumes", tinha o contra de todos os críticos musicais e literários daquele tempo,bem de acordo com o bon vivre de uma vulgaridade talentosa e ilustrada, tais comoTeófilo Gauthier, Catulo Mendes e Julio Janin, além desses golpes baixos do ofício quetanto depreciaram aos olhos da posteridade as figuras de Rossini e de Meyerbeer, e

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dos quais Wagner, músico formidável aos olhos dos menos perspicazes, não podiase evadir" 1.

No ano de 1861, depois do fracasso de Tannhaüser em Paris – diz o mestreBorrell em uma de suas conferências - começou para o colosso de Bayreuth operíodo mais triste de sua vida. Às preocupações morais de sua ruptura com suamulher, unem-se as de natureza econômica, que dificultam e reprimem a existênciado compositor nesta época. Vem em seguida o ponto trágico, a etapa crítica daexistência de Wagner, com todos os horrores da insuficiência de meios para viver evendo-se precisando errar pela Europa como alma penada, perseguido porcredores, e chega, finalmente, à transição violenta e inesperada da miséria aopoderio, transição interessante e original, sem precedentes na história de algumartista.

Nos últimos meses do ano 1863 a situação era já insustentável.Falto de recursos, abandonado por todos, sozinho enfim, chega a pensar no

suicídio e, como salvação momentânea, o doutor Wille lhe oferece sua magníficacasa de campo em Zurich. Ali permanece alguns meses, aparentemente tranqüilo;mas, repentinamente, em um dia de fevereiro de 1864, prepara sua partida para odia seguinte, e diz a seus hospitaleiros amigos: "Pelo conteúdo das cartas que acabode receber, entrevejo a possibilidade de montar alguma de minhas obras emStuttgart e Hannover. Estou preparado para a partida; mas, com a vênia de vocês,penso deixar minha bagagem, para voltar logo e lhes perguntar se lhes será grataminha vizinhança permanente. Com o que me produzam essas representações,alugarei uma casa por aqui perto, e nela, em todo o inverno próximo, acabarei OsNibelungos e Os Mestres Cantores." "Mas, poucos momentos depois - diz a senhoraWille -, como despedindo-se de uma rajada salvadora de esperança, exclama comdesalento, dirigindo-se a mim: - Estes sonhos de felicidade não hão que cumprir-se!Ah, senhora! Amiga minha! Você ignora a extensão e a profundidade de meussofrimentos! Meu único futuro é a miséria!"

Vinte e quatro horas depois de Wagner partir de Zurich, apresenta-se na casado doutor Wille o barão do Pfeistermeister, secretário privado do novo rei daBaviera, Luis II, com encargo especial de procurar Wagner e lhe conduzir àpresença de S.M. A ordem real, assinada pelo próprio soberano, não dava lugar adúvidas, pois dizia textualmente: "Venha à Munich, Richard Wagner, continuarseus trabalhos de composição".

Chegou Wagner à Munich - continua dizendo Borrell - em princípios demaio de 1864, e desde o primeiro dia gozou do amparo omnímodo do Rei.Desprovidos, protetor e protegido, de habilidade e de experiência do mundo,lançaram-se em seguida a uma série de aventuras de regeneração artística que sechocavam contra os costumes e feriam os conhecidos interesses adquiridos. Fecharamo Conservatório para reorganizá-lo sobre as bases do projeto ideado por Wagnerem Dresden; criaram uma escola de Canto, tão benéfica para a arte em sua partetécnica, como irrealizável em sua administração e em sua marcha; investiram

1 Vera. Obra citada.

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grandiosa soma em representações experimentais de Tannhaüser e de Lohengrin e,sobretudo, na estréia de Tristão e Isolda, admiravelmente interpretado efervorosamente acolhido; imiscuiram-se de vez em quando nas misérias miúdas dacorte; fizeram política para conseguir seus fins, todo isso sem diplomacia e semmanter as aparências, até conquistar antipatias, e ódios. Para que odescontentamento chegasse a seu cúmulo, mesclaram-se no assunto a paixãopolítica e a intransigência religiosa. Os escritos de Wagner sobre as religiõespositivas, suas adesões públicas às teorias do Schopenhauer, a recente dedicatóriade um de seus livros a Feuerbach, o grande positivista que acabava de declarar-seateu, colocaram-lhe em oposição a todo o partido ultramontano e parte de populaçãocatólica. Os republicanos, a sua vez, o consideram como um trânsfuga; osdinásticos e a gente de palácio, como um arrivista; a Imprensa, por adular a uns e aoutros, atacou aquele estado de coisas, e o povo murmurava contra os dispêndiosruinosos de palácio; exageraram-se, enfim, de um modo tão extraordinário asexcentricidades de Wagner e de seu protetor, que até chegaram a fazê-losresponsáveis por quantas calamidades ocorriam no reino, e tanto cresceu oencarniçamento, que em dezembro de 1865, vendo o Rei que Munich apresentavaesse aspecto ameaçador que precede a todos os grandes cataclismos, onde o povotoma a justiça em suas mãos, não encontrou outra salvação o Rei que assinar umdecreto expulsando Wagner da Baviera. Este ao sair de Munich – acompanhado atéa fronteira pelo Rei e como nobre protesto da atitude dos seus -, procurou amparona sempre neutra Suíça e se estabeleceu na vila de Triebschen, perto de Lucerna,onde tranqüilo, feliz e secretamente protegido pelo rei Luís, entregou-se ao trabalhocom toda sua alma e entrou na época definitiva e gloriosa de sua produção artística.

"Luís II da Baviera, ao subir ao Trono contava dezenove anos de idade.Muito se falou sobre o caráter estranho deste Príncipe sonhador, que parecepersonagem vivente de um conto de fadas ou de uma lenda medieval. Desprezandopor inverossímeis algumas das odisséias que lhe atribuem sem causa justificada, efazendo notar que até a de sua morte por suicídio fica hoje muito seriamente emdúvida, atribuindo-se sua morte a uma desgraça casual acontecida por tentar o Reilivrar-se da espécie de seqüestro em que vivia, é evidente, entretanto, que nanatureza de Luís II havia algo de anormal, de visionário, de envolto em nuvens eem sonhos místicos. Com tais disposições de temperamento, pode conceber-se ai0mpressão que nele produziu uma representação de Lohengrin presenciada aosdezesseis anos de idade, e o interesse que certamente adquiriu o autor desta lenda eesta música cheia de aroma místico e de êxtase sobrenatural. Leu mais tarde opoema Os Nibelungos, e o prefácio-programa no qual Wagner evocava a figura de umsoberano ou de um prócer que lhe protegesse na empresa de fundar o teatro ondese pudesse representar convenientemente a trilogia, e ao chegar ao final do prólogo,a pergunta que o mestre formulava a si mesmo com desilusão: “Mas este Príncipe,encontrar-se-á”? Luís da Baviera viu nela um aviso do destino e sonhou atocontínuo com a glória imperecível que prometia o escritor que realizara o milagre."Eu sou esse Príncipe", deve dizer-se; e, com efeito, ao dia seguinte de suaproclamação, saía de seu Palácio um emissário real com a missão de procurar

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Wagner e conduzi-lo à Munich... Não foi das mais fáceis a tarefa do embaixador.Ignorante por completo de onde pudesse achar o poeta-músico, buscou em Vienaprimeiro; soube ali que os credores tinham feito impossível sua vida na capitalaustríaca. Voltou a Munich, onde, segundo todos os indícios, devia encontrá-lo eonde o buscou inutilmente a Polícia. Por uma confidência de um discípulo seinteirou de que um ou dois meses antes tinham visto Wagner na estação de Zurich.Ali se dirigiu Pfeistermeister e ali conseguiu averiguar, não com pouco trabalho, aestadia de Wagner no sítio Mariafield. Mas ao chegar à casa de Wille achou a gaiolavazia. O pássaro acabava de abandoná-la, voando para Stuttgart. Por fim, ao cabode quinze dias de pesquisas, deu com ele nesta última cidade, onde se achavainstalado na casa do mestre Eckert, diretor do teatro Real de Wurtemberg.

Reproduzimos Borrell longamente para que fique claro aos nossos leitores ofundo astral que rege os destinos dos gênios. Quando Wagner tem já delineadas suasduas obras-primas da Tetralogia e Os Mestres Cantores, esquece a paixão de MatildeWesendonk; quando triunfou, finalmente, sobre este obstáculo, sobrevém-lhe acatástrofe musical da vaia ao Tannhaüser em Paris, e quando se aproxima o amparodesse Rei da Baviera, a quem astralmente pressentisse Wagner, a miséria mais cruel tratade levá-lo ao suicídio, e de cidade em cidade o vai empurrando, qual Judeu errante,sob o látego implacável dos Poderes Negros, como se tratasse isto de tornarimpossível a busca e captura do herói no momento em que seu protetor augusto subiaao Trono de seus antepassados.

E o que dizer deste jovem sonhador, verdadeiro joguete do destino, quepreparava a glorificação de Wagner depois do seu muito triste calvário? Êmulodaqueles magnatas russos, húngaros e alemães, maiores mil vezes como artistas quecomo reis, e protetores anteriormente do desventurado Beethoven, Luis II daBaviera, perturbado possivelmente em suas elevadas faculdades mentais, pôde,mercê talvez a esta mesma anormalidade, pressentir o grande destino de suatambém nada invejável vida, destino que era o mesmo que sonhasse um momentoao ler Wagner, segundo o sábio princípio dos árabes, do qual costumam rir,néscios, nossos presunçosos alienistas, principio segundo o qual os loucos e osmonomaníacos estão, como as crianças, mais perto da divindade, precisamenteporque os poderes do mal e os elementais que lhes obcecam lhes previnem, até emvida, a volta à mansão eterna, enquanto aqui embaixo vegetam anormais seuscorpos doentes...

O que a meus olhos mais se destaca na vida e obra de Wagner – diz o citadoprofessor espanhol -, é a arrogância, a altivez. Não uma altivez íntima e austera,não; como podia ser austero quem viveu, como ele mesmo nos refere em suaautobiografia, em perpétua luta com os homens e com a prolongada carência derecursos, até que venceu a aqueles e assegurou sua existência pela força e firmezade seu gênio? Sua altivez foi orgulhosa pela fé que tinha em seu talento;aristocrática, pelo aprimoramento de seu gosto, e soberba, pelo despeito dascontrariedades que sofria... Estes sentimentos se retratam em sua obra musical.Talvez se possa assegurar que nos milhares de nuances que a integram não há umavulgar; todas são nobres. E é singular que não sendo originais muitos deles, ao ser

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por ele empregados lhes deu tal intensidade e os dotou de brilho tão pessoal, quefoi difícil aos compositores que lhe sucederam usá-los sem perigo de parecerimitadores. Baste recordar o mordente circular de quatro notas, antigo já no tempo deTartini, do qual se apoderou Wagner, lhe intensificando pomposamente. Como estecaso há vários na obra wagneriana; bem entendido, que ninguém tinha empregadoesse e outros movimentos com a amplitude e eficácia que só seu gênio foi capaz dealcançar.

"No mesmo berço da nova arte, a dois passos da cena onde conseguiu suaemancipação fundamental, e até mais perto da moradia em que o divino artistapôde à última hora saborear das carícias da glória e os gozos da vida íntima, ali, emsua verdadeira pátria artística, quis o colosso descansar para sempre. Quem caminharsob as frondosas alamedas do Parque público de Bayreuth, tropeçará, a pouco quecaminhe, por um estreito trecho do terreno, fechado por modesta grade de ferropintada de negro. Dentro do recinto, à flor do chão e quase coberta de pedra, veráuma laje muito singela de granito, sem adornos, sem emblemas e sem inscrição denenhum tipo. É a tumba de Wagner. Os murmúrios da selva e o canto dos pássarossão as únicas harmonias que deleitam seu sonho eterno."

Um personagem bem curioso, dos tantos que, como figuras secundárias,destacam-se ao fundo do grande quadro da vida de Wagner, foi Bruckner.

Anton Bruckner (1824-1896) era um admirador entusiasta de Wagner e desuas obras. Desde que ambos se conheceram em Munich, em 1865, ao estrear oTristão, sua mútua admiração se transformou em intimidade. Algumas anedotas, nãocomprovadas, mostram esse entusiasmo recíproco. Bruckner, espírito ingênuo,singelo, de uma ingenuidade sem igual, não se apresentava a Wagner sem ser defraque, para não aparecer indigno de sua presença. Wagner, quando passeava comsua filha Eva e encontrava Bruckner, saudava-lhe invariavelmente com estaspalavras: "Mestre Bruckner, sua futura!".

Bruckner, segundo o mestre Roda, foi só um compositor. Exceto a música eda composição, ignorava tudo. Da reforma de Wagner não pôde compreender maisque sua tendência musical, nada de sua revolução estética; em outros aspectos dosconhecimentos humanos, até das práticas sociais, tinha uma concepção tãorudimentar, que quase poderia qualificar-se de nula. Filho de um infeliz mestre deescola, aos quarenta anos produziu sua primeira obra, e aos quarenta e dois estreousua primeira sinfonia, sem êxito algum. Ao estrear a segunda atraiu sobre si todosos ódios dos discípulos de Brahms; Hanslick qualificou suas composições deverdadeira vergonha musical. Entretanto, Bruckner, o mestre do adágio, como lhechamam hoje, escreveu sem ambições e sem vistas à publicidade, desprezando aosseus impugnadores, em uma calma solene de olímpico romantismo, por isso suassinfonias, quase livres de forma e mais poesias líricas que épicas, à Schumann,obcecam e atraem quando chegam a ser compreendidas. Coetâneo, pois, deWagner, é um dos seus primeiros continuadores no que à orientação musical serefere.

Pecaríamos também como injustos se ao final deste capítulo nãoconsagrássemos umas palavras a esse grande discípulo de Wagner que se chamou

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Richard Strauss. Desejosos em todos estes pontos de alta crítica musical de nãodizer nada nosso, por nossa incompetência no assunto, cedamos para isso a palavraa nosso compatriota D. Álvaro Arciniega, que diz de Strauss:

"Richard Strauss é, antes de tudo, um músico realista. Este realismo - aBeethoven umas vezes, outras a Wagner – o levou a cultivar a música clássica. Nãovamos expor agora os inconvenientes desta música; baste-nos dizer que é indício deum esforço extraordinário que o autor realiza para desenvolver um assunto, umargumento qualquer, sem ir para isso à ajuda da representação cênica ou àdeclamação. Não é coisa fácil deduzir até que ponto chegou a conseguir tudo isto opoema sinfônico; mas certamente compreender que os casos de verdadeiro êxitodeveriam ser muito raros. A explicação sucinta; o autor que cultiva o poemasinfônico, ao tratar de fazer com ele música descritiva, deve reunir, sob pena deincorrer na mais absurda das pretensões, duas grandes qualidades: umtemperamento de poeta e um domínio de técnica extraordinário. A difícil pretensãode expor com meros sons o caráter de um personagem ou de vários, é empresa pordemais temerária e só realizável por temperamentos capazes de harmonizar essasduas qualidades. Um exemplo disso nos subministra Wagner: Os murmúrios da selva,não são por acaso os encantos de um dia da primavera, cheio de luz e de vida, emque as árvores, ao mover suas folhas ritmadas com o canto dos pássaros e o ruídodos arroios, entoam um hino à Natureza? Não acredito que seja necessário, paranos precaver disso, assim para compreender o resto da obra wagneriana, que nosexplique ou represente. Tudo nos diz por que essa obra possui o mesmo interesse ea mesma grandeza em concertos que é representada. "Não lhes fixem tanto nacena, escutem", dizia o músico de Bayreuth a um de seus acompanhantes, porqueno fundo de suas notas sublime era onde o colosso tinha posto toda sua alma,saturada de pensamentos elevados e de idéias gigantes.

Este mesmo realismo é de chamar a atenção na obra de Strauss. Vemo-lorefletido em todos seus poemas sinfônicos: em Zarathustra o desenvolvimento doespírito livre através das “idéias religiosas e das aspirações supremas, dos gozos epaixões, da ciência, da alma liberada de seus desejos" (Nietzsche); em Morte eTransfiguração, a luta horrível de um ser contra a morte, através das lembranças deuma vida que passa...; Em Dom Quixote ou em Till Eulenspiegel, o capricho sutil, maselevado a seu grau máximo; em Uma vida de Herói, o poema cheio de heroísmo, decor e de vida, no que se respira constantemente um ambiente beethoveniano: "amais admirável batalha que jamais se foi descrita em música", disse umcomentarista. Eu diria a única capaz de produzir uma impressão estranha degrandeza e de terror. É verdadeiramente surpreendente esta força criadora domúsico alemão, uma das facetas mais características de sua obra. O realismo de umMussorgsky é algo sutil e picaresco; o de um Stravinsky, um tanto poético; só o deStrauss nos parece brutal e egoísta: por isso, sem dúvida, é o mais humano. Umcrítico sapientíssimo, ao analisar o poema sinfônico Zarathustra, acreditou ver nele"o progresso do individualismo depreciativo de Strauss”.

A meu modo de ver, este espírito de soberba se vislumbra em todas suascomposições. Observemos-lhe em alguns de seus heróis: "Guntran", o enviado de

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Deus para salvar o povo da tirania dos grandes senhores, o inimigo da forçatriunfante e sonhador de uma Humanidade livre, vem ao fim a cair no pecado docrime pelo amor. A esperança de uma redenção pela fé, signo de seu escudo, foieclipsada ante a fatal realidade; o herói, longe de purgar seu delito, eleva-se altivoem tom de protesto para proclamar com desdém o triunfo da personalidade livre.Este herói de epopéia, defensor de uma vontade não escrava, acrescentado em seuorgulho pelo triunfo, nos aparece de novo em Hendenleben. E aqui Strauss, com umalarde temerário só nele concebível, desenvolve sua autobiografia, e maishumanamente realista não se detém sequer em sonhos de redenção. O poema étambém representativo da luta do homem superior, pletórico de vaidade, que aoacabar, vencedor, despreza seu triunfo.

"E para que seguir? Toda sua obra, a glosaríamos da mesma forma. Eu nãosei até que ponto Strauss será o sucessor de Beethoven e de Wagner nestes cantosde vitória; mas não duvido que eles são, em parte, origem de numerososantagonismos despertados na música contemporânea, até o ponto de que odebussismo ou a arte russa não parecem ser senão a reação protestante dessaencarnação do espírito alemão. O fato não é novo e o será cada vez menos seconsiderarmos que tudo isso não é mais que um dos aspectos - o musical - dessaluta de ideais nacionais hoje, mais que nunca, em conflito. Daí a existência deescolas tão diferentes e características como a francesa, a russa ou a alemã. A artede um César Franck, dócil e humilde, pleno de esperança e de resignação, ou de umStravinsky, profundamente libertador, não harmonizarão jamais com a arteindividualista de Strauss ou com a pessimista de Mahler. Todo isso tende,indubitavelmente, a dar complexidade a esta arte tão singela em suas origens,embora não por isso menos verdadeira. Caminharemos até uma música parainiciados?"

Não sabemos, acrescentaremos nós, mas é indubitável que com todas estascoisas caminhamos, pela via musical, para uma arte integral que sirva de base àsverdadeiras iniciações filosófico-artísticas, iniciações fundadas nos Mistériosantigos, tal e como sonhamos nesta obra, segundo os ensinamentos transcendentaise simbólicos que vamos ver derivar-se dos míticos argumentos de todas as obras docolosso de Bayreuth.

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Wagner Mitólogo e Ocultista – Capítulo VII

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CAPÍTULO VIIAS PRIMEIRAS PRODUÇÕES SIMBÓLICAS DE WAGNER

A enorme cultura clássica e musical do mestre - Desde Ésquilo e Sófoclesaté Gluck e Weber - Wagner estuda Shakespeare e traduz a Odisséia - Influênciasdos contos de Hoffmann e das Mil e Uma Noites em seu cérebro juvenil - Oargumento de As Fadas - Influências de uma possível lenda nórdica de Psique - Aobra As Fadas, como precursora literária e musical de A Walkyria - As bodas e AProibição de Amar, como precursoras de Tannhäuser em letra e música - O dualismosexual da obra wagneriana desde sua origem - O Rienzi, de Wagner, e seu precursoro Rienzi, de Bulwer-Lytton - O argumento novelesco do Rienzi, tribuno - Osbecchini (coveiros) da peste de Florença - A obra do discípulo de Eliphas Levi -Rienzi, como primeiro germe do Anel do Nibelungo - O judeu errante e O NavioFantasma - A lenda do Holandês errante - O divino consórcio entre a Alma humana eseu supremo Espírito - Erico, Senta, Daland, as Tecelãs e demais personagens-símbolos - Tannhäuser: Seu argumento, seu alcance, seu simbolismo.

É tão vasta, tão colossal e tão complexa a obra de Wagner em poesia e emmúsica, que, fora de meia dúzia de nomes qualificados, como os de Spontini,Gluck, Mozart, Beethoven e Weber, não podem particularizar-se todos os músicospredecessores e contemporâneos deles que influíram mais ou menos na produçãowagneriana, porque já em 1839, quando só tinha vinte e seis anos, Federico Pecht,que lhe tratou, dizia do mestre que "sua familiaridade com as produções musicaisde todos os tempos era tal, sendo tão jovem, que parecia incrível. Conhecia osantigos italianos Palestrina, Pergolese, Paisiello e outros, tanto quanto os velhosalemães. Graças a ele, aprendi a compreender e admirar a fundo a Johann SebastianBach. Dedicava-se a Gluck, ao pitoresco Haydn, ao gênio de Mozart, dasparticularidades dos clavecinistas franceses, tais como Lully, Boieldieu, Auber, e,sobretudo da maravilhosa arte de seu favorito Weber, de Beethoven e da elegantemúsica de salão de Mendelssohn. Com tal entusiasmo cantarolava as melodias detodos estes mestres, que até hoje me ficaram gravadas no coração conformeWagner soube me fazer senti-las." (Suplemento a Allgemeine Zeitung, de 22 de marçode 1883)

Vimos anteriormente que a firmeza ancestral de Richard Wagner foi maisfilosófica e poético-dramática que genuinamente música, e o mesmo aconteceucom sua vocação nos primeiros anos de sua vida. O futuro harmonista, criador daorquestração moderna, parecia ter nascido para a filologia ou para o teatro, e, semdúvida alguma, a razão oculta de sua missão sobre a terra, missão que ele teve quecumprir com vontade indomável, foi a ressurreição do drama clássico com tudoque o dito drama herdou dos Mistérios Iniciáticos. Para isso necessitou, sim, damúsica, e a ela acudiu, portanto, decidido, "não com a intenção de expressar pormeio da linguagem dos sons - como ele mesmo nos diz - suas emoções internas,

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mas sim porque considerou a música como um incomparável instrumento paratransmitir ao drama calor e vida".

Assim, começou Wagner sua vida intelectual revelando os clássicos, os quais,iniciados quase todos nos Mistérios menores da Grécia e Roma, sabiam, como tais,dar todo sábio valor à lenda e ao mito. Por isso veio a parar nosso herói, deÉsquilo, Sófocles e Eurípides gregos, a Gluck e Weber modernos, através deinfluências da literatura dramática antecessora destes, influências que não sedeterminaram satisfatoriamente ainda. Por isso, o primeiro que escreveu o jovemRichard Wagner foi um donjuanesco e napoleônico drama fantástico, no qual, seu autorainda como recém vindo do mundo astral, que nós diríamos desempenhava o papelnaquele seu infantil argumento astral que no físico. Por isso, também, seu primeirotema de tradução escolar foi um estudo a respeito dos doze primeiros cantos daOdisséia, e pouco mais tarde, ou seja, por volta dos treze anos, escreveu já umpoema, depois de aprender o inglês, movido, diz-se, pelo único desejo de lerShakespeare em seu idioma nativo.

As obras fantásticas de Gluck e de Weber, os contos macabros de Hoffmanne os maravilhosos das Mil e Uma Noites, logo prepararam na imaginação vulcânicade Wagner o juvenil argumento de As Fadas, que é sua primeira produçãodramático-musical. Eis aqui como o mesmo Wagner expõe o dito argumentodaquele drama precursor da gigantesca Tetralogia, drama que por certo não chegoua ver representado em toda sua longa vida."Uma fada - diz - renuncia à imortalidade, a fim de poder enlaçar-se com o homema quem ama; mas, para adquirir o dom inestimável de ser mortal como ele, a fadatem que submeter-se a terríveis condições, cuja inobservância por parte de seuterrestre amante haverá de reduzi-la de um modo fatal à desgraça. O amantefracassa, efetivamente, na prova que consiste em o amante não rechaçar de nenhummodo à fada, embora esta, sob o disfarce a que possa forçá-la o Destino, chegue atéa aparecer-se o como infame e cruel... A fada então fica convertida em pedra; mas atiram, ao fim, deste triste estado os cantos amorosos e as lágrimas de seu bemamado, as quais, recolhidas pelo rei das fadas, em união de sua amada e comoprêmio ao seu heroísmo, passa a gozar das delícias transcendentes do mundosobrenatural no qual a fada vivia." Vejam aqui já a lenda nórdica de Psique, sem otema semita da curiosidade como diria Bonilla São Martín, lenda nórdica que, comomais sóbria e mais pura, está certamente mais perto em tempo e em ensinamentos àFonte Primitiva do Saber Perdido, ao que tantas vezes aludimos neste livro. Trata-se,com efeito, não de um simples conto de Hoffmann 1, mas sim da mais completa

Wagner, como Gluck e como Weber, adivinhou com suprema intuição o misterioso fundo deverdade que pulsa em todas as lendas. Desde sua primeira juventude, dizem seus biógrafos,devorou com fruição os admiráveis Contos fantásticos, do Hoffmann, nos que estes outros beberamtoda sua inspiração de precursores do drama lírico. A obra inteira de Wagner, não é, com efeito,senão uma coleção de contos do grande sonhador, aumentados, melhor compreendidos e postos emprodigiosa música, como veremos o fazer o estudo particular de cada um. Se igual a conheceu o

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Miserere e o Réquiem daquele, tivesse alcançado a ler a nosso Gustavo Adolfo Bécquer, oresultado teria sido o mesmo, porque as maravilhosas Lendas do cantor de Las Andorinhas,também mereceriam um Wagner que as pusesse música, embora farta música têm elas em si comsua deliciosa poesia em prosa.Este caráter ocultista das lendas do Bécquer, que aguarda um Wagner espanhol, para sermusicalmente interpretadas, está tratado mais em pequenas quantidades em nossa obra De gentedo outro mundo, capítulo IX, consagrado ao mistério dos jinas.

alegoria ocultista sobre o mistério do Homem, mistério no qual o Espírito humano,uno com a Divindade, perde sua prístina pureza e cai ao enlaçar-se com a Bestahumana, para constituir por sua união com esta última o Homem de fogo e delama; o pensador ou maná que há de salvar-se, restituindo-se a sua origem pela meravirtualidade do próprio sacrifício. A fada da primeira obra de Wagner, não é, pois,senão o germe de outro de seus grandes símbolos: de Siegfried-Brunhilda, quedesenvolveremos ao nos ocupar de A Walkyria, obra, esta última, a que a mente jáamadurecida do agora novel compositor, teve que levar não só aquela idéia, tãoaltamente dramática, mas também até alguns dos temas de sua música... Aquelarepugnância, pois, do diretor Hauser para com a obra As Fadas, não era tampoucosenão o germe da que depois haveria de desencadear-se contra O Anel do Nibelungo,e a que ainda sentem os fariseus modernos contra sua simbólica letra, elogiem ounão sua música.

Por natural contraste de todas as juventudes vigorosas nas que brigam lutasem quartel o materialismo brutal do sexo e o idealismo divino do amor mais puro,A Proibição de Amar, reflexo de outra opereta de Wagner, intitulada As bodas que suairmã Rosália lhe fez rasgar por seu excessivo sensualismo, parece ceder um ponto àcorrente da ópera frívola e positivista no fundo, de italianos e franceses. Bem logo,entretanto, deixa pressentir os germens de Tannhäuser, em sua letra como em suamúsica, tanto que ao adorador da Vênus sensual, protagonista das duas obras,acaba por compreender as sublimes vantagens do verdadeiro Amor, que é todorenúncia e sacrifício. A orgia de Tannhäuser e a da Proibição de Amar são uma mesmacoisa, salvo as naturais diferenças e progressos de Wagner jovem e Wagner homemjá amadurecido. "Quem compara A Proibição de Amar com As Fadas - diz o mestreem suas autocríticas - sentirá saudades do contraste e da mudança tão radical que seoperou em mim, mas da conciliação e compenetração recíproca destes dois estilos,devia resultar minha subseqüente personalidade artística." Terrível mistério dosexo, que, embora seja causa de todas as dores e todas as desgraças que pesamsobre a pobre humanidade terrestre, também é o incentivo maior da vida, o fôlegofecundo que assegura a perpetuidade da espécie em luta eterna com os Poderesinferiores deste submundo, e até a base da moralidade mesma possivelmente, comoo prova a inata perversidade dos eunucos! Sem tal contraste, apontado pelo próprioWagner, não haveria este podido chegar à influência teatral mais íntima, nem àenergia genuinamente humana que à todas suas obras anima, obras filhas doprofundo conhecimento do coração do homem que adquiriu em suas, às vezes, tãodiscutíveis aventuras amorosas, das quais A Proibição de Amar parecia ser um

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verdadeiro vaticínio: o de seu amor à Matilde Wesendonk, amor, como todos osverdadeiros amores, sempre proibido pelos inescrutáveis decretos do Destino...

Rienzi, de Bulwer-Lytton, e Rienzi, de Wagner, são um canto de rebeldia eredenção só superado pelo de Siegfried. O plebeu, nobre, eloqüente, cujo heróicocoração e vontade de ferro lhe leva, ao fim, até a ver-se chefe tribunício de Roma,sonha restaurando, sob um regime de justiça, de ordem e de democracia, todo ovelho esplendor do Império de Remo e Rômulo. Unindo para isso, com efeito, acaridade cristã mais pura, com a justiça igualitária mais severa, acaba antes com oregime feudal dos concatenados crimes dos Colonna e sua simbólica Nêmesisvingativa; dos Orsini e seu Urso; dos Frangipani e sua hipócrita Caridade; dosSavelli e sua Cobra. Humilhados estes, que como bons aristocratas da tirania,perdoam-no tudo menos a justiça e a democracia, pagam-lhe com negra perfídia,despertando as iras do Papa, o qual excomunga Rienzi e o faz sair fugitivo paraFlorença, Hungria e Praga, onde o imperador Carlos, temeroso do Vaticano e de seuRaio, e não querendo indispor-se com a Sede Apostólica e não por ser em Avignonmenos hipócrita, egoísta e temível, entrega preso Rienzi, segundo uns, ao Papa, ou oobriga a ir, segundo outros, peregrinando solitário desde a Praga até Avignon. Umavez naquela cidade francesa, o homem que era o orgulho da Roma republicanamedieval, êmula freqüente da muito gloriosa Roma dos Coriolanos, Gracos e Marios,é confinado em dura prisão, de onde sai graças à astúcia galante de sua própriaesposa, a fiel Nina, que solicita do cardeal arcebispo de Toledo, D. Gil deAlbornoz, homem vicioso e político como todos os Papas e Cardeais de então, aliberdade de seu amado. As cenas que antes sucederam representando a peste deFlorença são, na obra original de Bulwer-Lytton, verdadeira imagem das deShakespeare, e nelas, Adriano Colonna, o amante de Inês, irmã do tribuno, e oúnico Colonna justo que restava no mundo, triunfa, finalmente, pelo amor e pelarenúncia sobre todos os horrores da epidemia, entre aquelas seduções ao Calipso, eaquelas cenas macabras com os becchini, ou "coveiros-fantasma" de tantos e tantosmortos que ninguém se atrevia nem a olhar 1. O nobre tribuno, enfim, sonha com

1 Estes becchini da espantosa epidemia de peste bubônica que assolou a Florença e ao mundo em1348, têm não pouco de astral e de misterioso. Quando o estrago chegava, com efeito, a seu maiorauge e os pais abandonavam aos filhos, os avaros a seus tesouros, e todas as noções maiselementares de propriedade, de justiça, de caridade e de civismo tinham cedido o posto ao pânico atéo ponto de que ninguém se atrevia a enterrar nem a tocar aos mortos, hei aqui que, sem saber deonde, apareceram umas gentes silenciosas enlutadas, encapuzadas, com uma máscara até a cinturaque só tinha três buracos na cara para olhos e boca. Estes becchini penetravam como sombras emtodas as partes, sem temor algum à epidemia e sem que nenhum deles se soubesse que fora vítimadela, consagrados a sua só missão de enterrar aos mortos. Os críticos os consideram gentepatibularias acima de toda apreensão; eu, não sei por que ligo suas estranhas personalidades comas de certos monges-espectros que se estiveram acostumados a mostrar nas grandes catástrofes e dosque falaremos em seu devido lugar, tais como aquele monje-fantasma que levou a distintos povos daExtremadura a célebre proclama do prefeito de Móstoles contra Napoleão, e do que nos ocupamosno capítulo IX de nossa obra De gente do outro mundo.

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uma nova era de restauração romana, frente às maldades dos nobres italianos e seusassalariados bárbaros condottieres: luta, canta, apaixona-se, arrasta por sua arrebatadaoratória tudo o que por seu valor sereno e por sua abnegação exemplar, às massas -essas massas ignorantes que acabam sempre por preferir Barrabás à Jesus -, massasque o perdem, por último, o entregando a seus inimigos, os quais o queimam vivoentre os esplendores de seu palácio, pela mão de seu servidor mais fiel, o jovemÂngelo Villani, a quem o Destino, como a Édipo, tinha-lhe levado primeiro a ser oassassino de seu próprio pai, e lhe levava agora a ser, contra seu antes amadoprotetor, a arma de toda a sanha cruel encerrada na citada vendetta...

Detenhamos-nos um momento mais sobre o caráter ocultista desta modernatragédia grega de Rienzi.

Sir Bulwer-Lytton, seu autor - embora não tenha conhecido as doutrinasorientais, somente a cabala semi-cristã, semi-judía, semita por pressuposto sempre - éum dos mais admiráveis escritores ocultistas. Suas obras todas merecem ser lidascom atenção. Os últimos dias da Pompéia, Rienzi, Zanoni, A casa encantada e outrasvárias preciosas novelas, têm cenas que arrepiam o cabelo do leitor mais positivista,com o calafrio do superliminal e o sublime que nos cerca, mundo no qual nospermitimos a pequena vaidade - que é covardia no fundo - de não acreditar... até oexato momento do perigo. Poucos homens, com efeito, conheceram melhor queBulwer-Lytton as dobras mais ocultas da psique humana, porque a Rosa-cruz e aTemple ocidentais tinham para ele poucos secretos, como discípulo que era deEliphas Levi, o ocultista cristão-rabino autor de Dogma e Ritual da alta Magia.Embora notoriamente inferior, e não sempre correto em suas doutrinas, a ironia doautor de Zanoni é quase tão fina como a própria de Montaigne ou a de Blavatsky.É, em suma, Bulwer-Lytton um sereno historiador e um escritor tão épicodramático que com todas suas novelas se podem fazer outros tantos dramas líricosde acabada índole ocultista, como o é no fundo a tragédia de Rienzi.

Esta tragédia de Rienzi, como a de Siegfried, é a tragédia da redenção, porqueestá escrito, como diz Zanoni, que só quem se sacrifica pode salvar, ou comoensinou também Ibsen em seu célebre drama Um Inimigo do Povo: "unicamente égrande o que está sozinho", como acabou só, diante do Pai Celestial, Cristo noMonte das Oliveiras, em cuja cena se inspirou também Beethoven, para comporseu melhor Oratório. Não poucos temas, com efeito, que veremos agigantadosimediatamente na Tetralogia, já aparecem aqui neste primeiro drama genuinamentewagneriano do Rienzi: o tema literário da perfídia de Alberico é equivalente ao dosnobres romanos inimigos do tribuno, o das seduções das filhas do Reno e Gutrunaa filha do gibichungo, no Crepúsculo dos Deuses, e o do jardim encantado de Klingsor noParsifal; são seduções como as daquelas viciosas damas de Florença, que em meiodos horrores da peste, tratam, em vão, de fazer fracassar o idealismo sublime deAdriano Colonna, quando procura entre os mortos à sua Irene; o tema humano daJustificação no Lohengrin é aquele mesmo solilóquio de Rienzi em seu cárcere deAvignon, modelo de filosofia; o tema de Wotan viajante é o êxodo de Rienzi de

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Roma à Hungria e da Alemanha à França; o tema de Brunhilda e o tema da Ninasalvadora como o tema da traição familiar de Mimo, e o da traição familiar deÂngelo Villani e o sono redentor, enfim, de Siegfried, aquele outro sonho de romanão Rienzi, que quer trazer para Roma e até ao mundo a própria Idade de Ouro doreino da justiça, sem contar, ai! com que semelhante era passou já, parapossivelmente não voltar senão depois dos séculos sem conta que abrangem asyugas árias, e o ousado redentor que sonhe antecipando-os, já tem aparelhado, poreste mero feito, o mais vergonhoso suplício, com a dor, além disso, de veresterilizado seu sacrifício mesmo, pois os próprios a quem tratar de salvar serão osprimeiros em lhe trair, lhe vendendo. A eterna manada dos carneiros do Panurgoamaldiçoa muito logo do dom da rebeldia, fogo roubado do céu pela mente dodivino Prometeu e que não é, em mãos daqueles coitados, senão o mais funesto dosmales da Pandora: o dom mais maldito de quantos exista...

Por isso o coração humano - graças à inata, embora confusa lembrança quetem de sua origem celeste quanto da segurança instintiva de retornar a ele, quePlatão diria - acaba por encontrar o tédio nos deleites dos sentidos, e porcompreender ao par a esterilidade do sacrifício redentor operado às cegas porperigoso ato entusiasta que, embora nobre paixão, é paixão ao fim. Entrega-se decheio então o homem em braços da lenda, qual o prisioneiro distrai com a lendaseus ócios e até se esquece de seu cárcere de hoje evocando doces lembranças doontem ou áureas esperanças para a liberdade do amanhã. Assim depois do veto atodo ato entusiasta, A Proibição de Amar, e depois do espetáculo dos inúteissacrifícios ao Rienzi, que castigam à quantos sintam desejos redentores de liberaçãosocial das massas, tem que vir, como último refúgio, a lenda consoladora doholandês errante do casco de navio fantasma, lenda que, ao modo da lendauniversal do judeu errante, tampouco foi devidamente aquilatada em seu alcanceextraordinariamente ocultista.

"O Navio Fantasma - diz nosso amigo Vera em sua linda biografia de Wagner- é o poema do oceano. Em sua abertura está condensada toda a obra: é umaabertura-argumento como a de Tannhäuser. A orquestra começa rugindo como as ondasde um mar tempestuoso, e, no meio do ruído ensurdecedor da música, quedescreve uma tormenta, ouça-se uma voz, triste como um soluço e lânguida comoo gemido de uma menina doente, voz que acaba por triunfar depois de uma luta,fazendo que a abertura acabe em uma doce e suave melodia... Quando se levanta opano de fundo, é de noite e se vá a quão marinheiros acabam de largar o âncora. Ocapitão está desesperado, porque a borrasca lhe surpreendeu no momento em queia voltar para sua pátria. De repente, um vendaval interrompe seu canto e apareceum navio de que descende um homem. É um holandês pálido e desencaixado,criatura eternamente errante, condenada a navegar sem trégua, enquanto nãoencontre uma mulher que lhe seja fiel até a morte. Para procurar essa mulher, só lheestá permitido, além disso, ao peregrino, o pisar em terra um dia cada sete anos."Que soe a trompetista do anjo e os mundos caiam no abismo, porque não posso

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encontrar o repouso senão na morte universal", exclama fatídico. Então Daland, omarinheiro norueguês se aproxima e lhe saúda. Tem ele uma filha chamada Senta, etambém Ana, que acaso possa amar ao holandês. Os dois navios partem, e terminao primeiro ato...

"No ato segundo aparece Senta rodeada de umas tecelãs que acompanhamseu trabalho cantando; mas à Senta não agrada esta canção, e com os olhos fixos naparede fronteira, contempla enlevada o retrato-aparição de um homem grave,estranho, enlutado tudo. Então canta à filha de Daland uma balada que produzcalafrios. Nela se refere a história do holandês errante e pede ao céu que apareçaaquele homem, porque lhe será fiel... Nem suas companheiras, nem Erico, seuprometido, consegue fazê-la desistir de sua loucura, que a levou até o extremo deprometer que amará ao holandês para libertar o de seu horrível tortura e castigo.De repente empalidece Senta e lança agudo grito: ante ela está o holandês errante, ocondenado eterno!... A orquestra cala e o solene silêncio só é interrompido pelosbatimentos do coração do coração da linda moça. Aceita heróica Senta ao maridofatal que lhe oferece seu pai, jura lhe ser fiel até a morte, e, em uma cena admirável,benze ao holandês, quem, de joelhos, contempla extasiado a sua prometida...

No terceiro ato, Erico continua amando, entretanto, a Senta, e esta sente, denovo, despertar o amor humano para ele, amor que acreditava para sempredormido, mas, no momento mesmo em que vai cair nos braços de Erico, aparece oholandês... - Ao mar, ao mar! - Exclama o mísero errante, vendo que não há paraele redenção possível e que está condenado a um navegar eterno e sem rumo. Fogeem seu navio de velas cor de sangue, fatídico e sinistro, para continuar suainterminável peregrinação através dos mares: mas Senta lhe salva: sem atender aosrogos de seu pai nem de seu prometido, sobe ao alto de uma rocha e se precipitaenlouquecida no abismo dizendo: - Amo-te e te serei fiel até morrer! -. Então seafunda no mar o casco de navio do holandês e este, acompanhado de Senta,aparece triunfante entre as nuvens. O amor lhes salvou e a orquestra tem então umtremor apaixonado, uma enlevada melodia de redenção...Fenos aqui de novo no holandês errante com a lenda nórdica de Eros e Psique,como em As Fadas, mas também mais filosófica ainda nestas que na fábula doApuleyo e mais próxima, portanto, à Fonte primitiva. Do mesmo modo que vimosem As Fadas e veremos também no amor transcendente de Siegfried e Brunhilda, oholandês errante representa a nosso divino Espírito imortal que só pode descenderum momento a este submundo nos fugazes instantes do êxtase, nos que a Almaracional do homem a quem aquele telha e alimenta como o sol à terra, cega demístico Amor, fica paralisada ao lhe receber. Daqui o detalhe de que o eternoperegrino holandês só possa tocar em terra um dia cada sete anos 1, já que

Esta fugacidade dos supremos momentos ocultistas e até humanos ordinários que podem,entretanto, às vezes, decidir de nossa desgraça ou fortuna futuras está admiravelmente representadaem todos os mitos. Tal, por exemplo, aquele cavalo encantado que habia que extrair da mansão

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misteriosa enquanto davam as doze badaladas da meia-noite; tal o-"Mateo, me siga! -" Do Jesus;tal, em suma, o momento chamado heróico, que salvou ou perdeu a tantos homens e povos.

é tão estranho o verdadeiro êxtase ou visão epóptica da mente transcendida, que ogrande Plotino só pôde lhe conhecer seis vezes em toda sua vida. Os livros doOriente simbolizam este inefável consórcio místico do Espírito e a Alma racionaldo homem, equiparando, aquele ao sol e esta à terra, porque assim como os raiosfecundos que pulveriza em seu torno o astro rei são perfeitamente estéreis,entretanto, de não cair em uma terra fértil, em cujo seio possam fecundar osgermens de vida que estão aguardando suas carícias, e assim como os dois lados,também, de um ângulo podem ser indefinidamente prolongados, sem que por issodemarquem superfície alguma, a menos que uma terceira linha os enlace formandoo divino triângulo, símbolo de todas as teogonias, do mesmo modo o Espírito,Mônada ou Ego Supremo do homem, um e coeterno com a Divindade abstrata deonde emanasse, está condenado a ‘erraticidade’ inconsciente do não-ser, e ao eternomovimento abstrato que é equivalente à inércia em suma, a menos de tomar terra,de ligar-se com uma Alma pensante e amante, e constituir o Fio de Ouro dapitagórica Dúada, símbolo transcendente do sexo, como vimos em anteriorescapítulos, mas do sexo sem as ulteriores degradações introduzidas no conceitoprimitivo pelos povos semitas, e que só se referem, por desgraça, ao sexo físico.

O capitão que confronta a borrasca é, por sua parte, o símbolo do homem,do discípulo a quem se narra a sábia lenda para lhe inculcar seus conceitostranscendentais, por isso é pai e senhor de Senta, como o homem pode ser o de suaprópria alma, alma que pode salvar-se com o holandês, o Eros nórdico, oucondenar-se com Erico, personificação de nosso ego animal, eterno tentador eeterno obstáculo para que nossa alma - como espelho intermediário, que olhandopara cima, pode refletir o céu e olhando para baixo, o abismo -, possa ser salva efeita consciente, ao fim, nesse mundo divino do Espírito. Até seu nome do Daland,Dá-lant, Ad-lant ou At-lante (do Ad e pulsem, "o primeiro nascido") é simbólico,por si mesmo, como todos quantos, consciente ou inconscientemente, usouWagner nos personagens de suas obras, sem dúvida porque com tais nomeie teveque achá-los nas tradições nórdicas originárias. O nome de Senta ou Semta,contração possivelmente de Semita, resulta de outras versões da lenda, e docaderno primitivo de apontamentos de Wagner, que levou originariamente o daAna ou Anuas, quer dizer, a primeira matéria, a água, o mar, a Eterna ilusão, enfim.Por isso também a astral balada de Senta, que produz calafrio ao ser ouvida, é aevocação mística que dirige a Alma ao Espírito, ou seja, em termos ocultistas asuprema invocação, mantra ou sacrifício eucarístico de Hotar ou sacerdote namágica cerimônia do Soma, e o eixo, portanto, sobre o que tinha que girar,logicamente, todo o aparelho sinfônico da obra em seus dois motivos temáticos dainfinita angústia da Alma subindo até o êxtase e a excelsa sensação de Paz que doEspírito descende em recompensa. Por isso pôde dizer Wagner em sua"Comunicação a meus amigos", que antes de fazer a partitura do casco de naviofantasma tinha posto inconscientemente nessa parte capital da balada de Senta, os

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germens temáticos da partitura inteira, e ao ir fazer a composição se encontrou coma surpresa de que a imagem temática de dita balada se estendeu como uma espéciede rede por toda a obra, graças a sua intuição de artista.

A tormenta cruel e prolongada que assalta ao atlante Daland, e que lhepermite ver o holandês terrível, lhe privando de restituir-se a sua pátria nativa,como pretendia, é o eterno símile de nossa vida neste mundo, em luta sempre comos elementos, ou Poderes inferiores, do berço até o sepulcro. Daqui que se opresente ao Daland precisamente o holandês, no dito instante em que retorna adescansar em sua pátria, qual em literatura ocultista se diz que no supremomomento da morte astral, ou segunda morte do homem, e antes de empreender suaMente ou Alma uma nova peregrinação sobre a terra, tem por um momento ainefável e clara visão de seu Espírito divino.

As tecelãs que acompanham Senta em seu trabalho sobre "o tecido daexistência", não são senão as parcas greco-latinas, as Nornas, logo, do anel doNibelungo, as fadas, enfim, que tecem e destelhem esse tecido do Penélopechamada vida física, e em que cada fio de cada nosso ideal, estendido desde nossoser até o mundo objetivo se tem que cruzar e atar com prazer ou com dor - sempreo tau e a cruz.- com esses outros fios transversos que de antemão nos tem játendidos ao nascer nosso carma ou destino. Aquelas tecelãs eternas acompanham ajovem alma peregrina cantando sempre para apartar sua atenção com a magia dosom das de outro modo insuportáveis baixezas e misérias de nossa vida mesma...Quem canta, sua pena espanta, que diz o adágio, como todos, sábio.

A lenda, em suma, do holandês errante ou do judeu errante é absolutamentenórdica e proto-semita, como quantas inspirassem a Wagner, porque semitaequivale a dizer peregrino, e daqui essa frase escultórica da Bíblia, chave por si sóela do mistério inteiro de nossas dores e esperanças enquanto vivemos aquiembaixo: "Peregrino será em terra estranha!" Porque este ínfimo planeta, que emnada se pode comparar com os outros colossos do sistema, Júpiter, Saturno,Netuno e Urano, não é na verdade nosso próprio mundo, mas sim mais bemacima, o cárcere temporário de Platão, o "vale fundo e obscuro", ao que, comooperários da Eternidade e do Cosmos, descende nossa alma um dia, para retornarlogo a nossa Casa de Descanso durante a noite, não só a noite larga do períodointermediário entre os dois nascimentos, mas também até a divina e restauradoranoite de inconsciência e de sedativos sonhos que fisiologicamente temos queguardar entre o trabalho físico, intelectual e moral cotidiano que nos enobrece;porque cada dia nascemos fisicamente, ao despertar; e cada dia, ao dormir,morremos...

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Resta-nos neste capítulo falar de Tannhäuser, outra das obras capitais deWagner, que é todo um mundo de ensinamentos ocultos; mas antes daremos oargumento resumido dessa muito galharda obra de redenção e de rebeldia, primeiradas grandes criações do poeta e do músico.

A primeira cena de Tannhäuser representa o interior do palácio encantado deVênus, cuja deusa aparece recostada em augusto leito de amores, tendo aoTannhäuser em seu regaço. Rosada claridade da aurora ilumina o âmbito da vastagruta, cujos limites se perdem no fundo entre náyades, sílfides, sereias e mil outrasninfas que entoam deliciosa canção de amor, a cujos acentos crescem sem limites oardor dos múltiplos casais amorosos que ali desfrutam do inesgotável amparo dadeusa da formosura. Um grupo de bacantes, em desordenada dança, atravessa abáquica mansão, feitas coro pelos ecos das sereias; e no paroxismo da embriaguez,os casais amorosos vão se tender languidamente sobre o ribazo. As bacantesdesaparecem pelo fundo, de onde começam a estenderem-se gradualmente densosvapores, que acabam por ocultá-lo tudo menos a parte do proscênio, no qual,Tannhäuser e Vênus continuam enciumados seu interminável diálogo de amor.

Tannhäuser levanta a cabeça estremecendo-se, como se despertasse de umsonho. Vênus lhe prodigaliza uma vez mais suas carícias, e aquele se leva a mão àvista como tratando de reter a imagem sonhada.

- Estava sonhando com o alegre tangido dos sinos - diz Tannhäuser -.Quanto tempo faz que não as ouço?.. . Não posso medir o tempo que permaneci aseu lado, Oh, deusa! Dias, meses, já não os há para mim, pois nem vejo o sol, nemas belas constelações do céu, nem a florido grama, cujo fresco verdor anuncia achegada do verão; nem ouço já o gorjeio dos rouxinóis, mensageiros da primavera.É acaso que não tenho que voltar a ver nem ouvir jamais estas coisas?... Ávido deprazer, Oh, Vênus! Outorgou-me, a mim, a um mortal, deleite que negasse aospróprios deuses! Mas, ai! Se um deus pode amar sempre, eu me vejo submetido àmudança. Depois dos gozos, desejo as penas, e tenho que fugir forçosamente deseu império. Deixe-me, pois, Oh, deusa! Partir.

Vênus, aterrorizada, trata em vão de lhe deter, redobrando o feitiço de seusencantos; mas, imponente, em um arrebatamento de cólera, diz-lhe ao fim:

- Parte, vete, traidor, não te detenho! E, posto que é livre, te seja outorgadopelo Destino o lucro da triste insensatez que pretende. Volta ao lado dos homensde frio coração; volta junto a suas vazias, negras e lúgubres crenças, que obrigaramaos deuses da alegria a fugir até o morno e profundo seio da terra. Parte, iludido,em busca de uma salvação que não poderá encontrar jamais! Atrás, mendigo; meuimpério, que só se abre aos heróis, fechado está para sempre aos escravos!

Ouça um estrépito horrísono, e Vênus desaparece.Tannhäuser se encontra transportado então a um ameno vale, sob o azul do

céu. À direita, ao longe, mostra-se a cidade de Wartburgo, a própria cidade que forarefúgio do Lutero açoitado, e mais à frente, Herselberg. No proscênio se mostra aimagem da Virgem Maria. Ouvem-nas tosquias de um rebanho e a flauta doce dopastor, celebrando a Maio florido. Pelo lado da cidade também se ouça o canto dos

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peregrinos que vêm de romaria, caminho de Roma. De um bosque vizinho vãosaindo o landgrave Herman e os cavaleiros cantores em traje de caça, quem sesurpreende ao tropeçar com o Tannhäuser, ao que reconhecem atrás de sua largaausência. Tannhäuser, estremecido para lhes ouvir pronunciar o nome de suaamada Isabel, vai com eles até a sala dos cantores do Wartburgo, da que se abrangeum panorama esplêndido. Isabel entra na sala agitada e gozosa e entre ambos sedesenvolve uma sublime cena de amor. O landgrave ordena, depois que entraramtodos os professores cantores, que comece a festa em honra do ausente que volta, eintrigado como eles a respeito da causa da ausência de Tannhäuser, submete-lhes oproblema de que a averigúem pela mágica arte do canto, prometendo, comoprêmio ao que o obtenha, a mão da Isabel.

Levanta-se Wolfram do Eschenbach e entoa um canto, ao estilo“cavaleiresco”, à verdadeira natureza do amor como nascido da virtude e o amordivino 1. Os ouvintes aplaudem entusiasmados a este e a outros cantar que seacontecem, todos com igual espírito.

Tannhäuser se levanta rapidamente e, como despertando de um sonho, cantaa voluptuosidade pagã sem temores, dizendo que do amor só conhece o gozo,como fiel amante que foi no regaço de Vênus; e no meio do escândalo de todos osconcorrentes, fora de si, sublime em seu canto à deusa do Amor, diz-lhes:

- Pobres mortais que nunca conheceram amor, partam, corram à montanhade Vênus!

Damas, cavaleiros, cantores, todo mundo, enfim, escandalizam-se até oinexprimível e caem furiosos sobre o imprudente, lhe enchendo de insultos emaldições, chegando até querer lhe matar. Só Isabel, vítima de seu amor, não seescandaliza; antes bem, obriga a todos a deter-se; mas, extenuada pelo medo e oesforço, cai desvanecida. Ante o heroísmo de seu sacrifício, Tannhäusercompreende, em um instante de lucidez, a enormidade de seu pecado, para o quenão há perdão no mundo, como não seja pelo Romano Pontífice. Cheio decontrição sincera, alista-se, pois, o pecador no número dos peregrinos que vãopartir para a Cidade Eterna. O resultado de sua peregrinação está compendiadoneste parágrafo com o que à volta dela diz o herói a Isabel e Wolfram que lheaguardam no caminho:

"Cheio de ardor, procurei o caminho de Roma. Um anjo, ai! Tinhadesarraigado deste coração insensato o cego orgulho do crime. Queria expiar esteorgulho na humanidade, queria implorar a salvação recusada para adoçar a esse anjoa amargura das lágrimas que vertesse por mim. O caminho que tomava a meu ladoo mais contrito dos originais parecia-me muito suave; quando este pisava a brancagrama, procurava eu as pedras e os espinhos para sentar nelas minha nua planta;quando ele refrescava seus lábios na fonte, bebia eu nos ardentes raios do sol;quando ele dirigia piedoso suas preces ao céu, vertia eu meu sangue em holocausto,

1 Aparece já aqui um dos personagens principais dos futuros Mestres cantores de Nuremberg.

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e enquanto ele se albergava na hospedaria protetora, tendia eu meus membrossobre a neve e o gelo. Fechando os olhos ante o espetáculo de suas maravilhas,percorri como um cego as encantadoras planícies da Itália, tudo, tudo para adoçar opranto de meu anjo bom; cheguei a Roma; prosternei na soleira do Santuário,amanheceu; dobraram os sinos, ressonando cânticos celestes em espera do perdãodevotado: vi aquele que representa a Deus na terra e a todos os fiéis fincar ante eleo joelho no pó; vele outorgar o perdão a milhões de pecadores, lhes indicando logoque se levantassem absolvidos e contentes. Depois me aproximei, afundada minhafrente no pó; me acuse, me golpeando o peito, das criminais voluptuosidades queseduziram meus sentidos, do desejo que nenhuma mortificação tinha apaziguadoainda; implorei-lhe, roguei-lhe que me libertasse destes laços abrasadores, e ele medisse: "Se compartilhou o criminal deleite, se inflamou seu coração no fogo doinferno, se esteve no palácio de Vênus, condenado está sem remissão. Assim comoeste bastão que em suas mãos vê já não voltará a adornar-se de fresco verdor, assimvocê, na infernal fogueira, não voltará jamais para ver florescer para ti a salvação. Aestas palavras, caí sem sentido, aniquilado, exânime, e ao voltar em mim, a noitecobria a deserta praça. A meus ouvidos chegavam de longe contentes cantos emação de obrigado: aqueles cantos me encheram de horror. Fugindo desse hino dafalacioso promessa, que penetrava em minha alma com o frio da morte, me afastedelirante, espantado, e me vi impelido outra vez para o lugar onde tantasvoluptuosidades tinha gozado. A ti volto, pois, Oh tenra Vênus, seduzido outra vezpelo feitiço de suas noites encantadoras! A seu corte vou para que sua imortalbeleza me sorria por toda uma eternidade...!"

Ao conjuro de Tannhäuser uma ligeira nuvem vai cobrindo por graus a cena.Nela despontam rosados resplendores, e em seus âmbitos começam a insinuarem-se de novo os tentadores contornos de fadas e ninfas. Wolfram, estremecido, tratade conjurar todo aquilo; mas a própria deusa Vênus se mostra, ao fim, para arrastarnovamente ao cuidado a seu regaço. Já vai levar se o quande Tannhäuser ficasubitamente imóvel. Ouviu ao longe cantos funerais entoando um hino de paz emmemória da mártir Isabel, que morreu por ele de amor. Vênus se vê assim detida, ese afasta com todo seu séqüito de prazeres. Com ela se vai também todo seumundo de estranhos gozos, deixando lugar unicamente ao desesperado dor deTannhäuser, ao encontrar-se de repente ante o cadáver de sua amada, a quem ele,ímpio, imolou. Não podendo resistir àquela dor, cheio de amargo remorso, caidesabado sobre o cadáver da Isabel, e morre; mas, Oh, prodígio da Redenção peloAmor! Ao mesmo tempo todos os secos cajados dos peregrinos aparecemsubitamente floridos, proclamando assim o milagre dos milagres; é, ou seja, que oscrimes do Amor só pelo Amor podem e devem ser redimidos, à maneira da Fêniximortal chamado a renascer eternamente de suas hirtas cinzas... Juntos os doisamantes, penetram na Região Imortal da felicidade sem nuvens e sem dores, ouseja, no Devachan, no Céu.

A alma inteira da obra de Tannhäuser se encerra nas próprias palavras com queo herói escandaliza a farisaica assembléia dos Mestres cantores, congregados parauma festa sem espírito: - Oh, vós, pobres mortais, os que nunca conheceram o

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Amor! - Diz-lhes, porque, com efeito, só quem como ele gozou um tempo dasdelícias transcendentais do palácio de Vênus, a deusa do Amor, é quem podecompreender o imenso de nossa queda no mundo que habitamos, cárcere de ilusãosobre a que Platão, de acordo com o universal ensino, tem escrito. Pobres mortais,por quanto não gostaram ainda, ou, melhor dizendo, esqueceram ao nascerbebendo um gole da água do Leteo, a delícia do Elixir de Vida; do licor Amrita,Soma ou Néctar que dá aos homens iniciados a imortalidade dos deuses, ou seja,ainefável Voluptuosidade pagã!

Porque convém recordar aqui, como já demonstramos ao nos ocupar dessecanto à divina Volutas, volutatis, que entranha a ode de Schiller instrumentada porBeethoven em sua Nona sinfonia, que aquela Voluptuosidade enlevada e sublime,não é nem tem nada que ver com o degradado e ignorante espírito que lhe atribuemhoje as línguas neolatinas, nem Vênus a deusa é símbolo tampouco da grosseiraunião sexual pela que o homem de carne vem ao mundo, senão a Vênus Afrodita, aVênus-Maya, a do Sublime Amor, a quem degradaram depois os povos da ÁsiaMenor e os greco-romanos, transformando-a em pecadora Vênus Citerea, VênusMilytta e até Vênus Fricatrix, que já não é Vênus humana senão animal, e adegradaram com igual impiedade a como em nossa hipócrita religiosidade, ao usode dissimulados, degradaram-se em nossos dias os sublime símbolos doEvangelho... Em suma, que o herói de Wagner, ao morar um tempo nos paláciosde Vênus, não tem feito senão habitar espiritualmente o que o hindu chamariaDevachan, o egípcio Amenti e o cristão Céu, ou seja, a divina região onde ohomem mora durante todo o período que medeia entre dois sucessivosnascimentos, ao tenor de todas as religiões do Oriente, inclusive o cristianismo, se,se afundar em sua exegese histórica e em algumas típicas passagens da Bíblia.

Tão certo é isto, que o Tannhäuser se diria calcado de certas lendas doChaco argentino relativas à eterna inquietação da alma humana, que quando jazaprisionada neste mundo suspira pelo mundo superior, onde, mais ou menosinconscientemente, recorda que viveu, e, pelo contrário, assim leva certo temponaquele sublime mundo, começa a sentir as nostalgias deste nosso mundo, aomodo como o herói Tannhäuser sente também a nostalgia dos sinos e dos pradosfloridos deste último mundo; quer dizer, vê-se forçado pela cíclica lei natural adescender a ele para empreender um novo trabalho e receber depois um novoprêmio para seu esforço, porque não cabe dúvida alguma de que toda a ordemnatural, apoiado na lei harmônica dos contrários integrados, exige essas alternativasde ascensão e descida que se chamam verão e inverno, atividade e descanso,calórico ou energia radiante e energia ou calórico latente, vigília e sonho, vida emorte, etc., etc. Por isso Tannhäuser deixa ao fim ela adorado região venusta evolta entre os mortos vivos, apresentando-se uma vez mais a esse concurso deesforço que se chama existência, em asas do amor para Ísis, Isolda, Isabel ou Ísis aFormosa, que se para a má Magia pode representar o morto sentido da união

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sexual, para a Magia boa não representa senão a divina Enoia, a Dama ideal, acontraparte celeste dos desejos cavalheirescos de seu pensamento 1.

Pelo mesmo que se trata da Morada dos Imortais e até dos jinas, quer dizer,do Céu, Vênus diz ao Tannhäuser que seu império, fechado hermeticamente paraos escravos, só se abre para os heróis, doutrina que logo veremos desenvolver-seno mito das Walkyrias, huríes encarregadas de despertar e manter o valor guerreirono coração dos heróis, esse valor guerreiro em pró do Ideal, ao que estãoconsagrados também todos os cantos do Bhagavad-Gita, cantos pelos que Krishna,oficiando da Vênus-Sukra, ou da Walkyria, aviva a seu discípulo Arjuna para a luta,não para uma mera luta material, mas sim mais para essa luta integral ou em todosos campos que o homem que aspira para o Ideal se vê forçado a manter do berçoaté o sepulcro.

Só assim, como diz o texto wagneriano, é como podemos nos pôr muitoacima do mundo vulgar das vazias crenças esotéricas, que se forem boas para asinfantis mentes dos escravos, dos pequenos de espírito, resultam já imprestáveispara aqueles que, como Eva, de Psique, de Fausto, de todos os heróis, enfim, dahumana curiosidade e do ideal desejo, procuram, como procurava Wotan em suamente, uma nova ordem desconhecida...

Além disso, por um pouco muito intencionado do sempre intencionadoWagner, o concurso onde aparece já pela primeira vez na obra wagneriana o“cavaleiresco” Mestre-Cantor Wolfram de Eschenbach, verifica-se nada menos queno Wartburgo, o castelo imortalizado por aquele grande rebelde que em vida sechamou Martín Lutero, e sob a presidência de um personagem simbólico: Her-man, "Senhor-Homem" que poderíamos dizer, atendida a característica de tãofarisaico conclave, emblema da Humanidade inteira, que se escandaliza e rasga suasvestimentas sempre que os místicos, ao estilo de Tannhäuser, falam-lhes de nossaverdadeira e perdida pátria, que é o Céu. Ao ouvir a assembléia ao jovemTannhäuser, cujo só delito, como o da Madalena, não era senão o de ter amadomuito, tem-lhe por blasfemo e ímpio em grau tão superlativo, que julga ser sóperdoável tamanho pecado pelo mesmo Romano Pontífice, que tampouco lheperdoa.

Mas escrito está que o verdadeiro místico, cujo reino, como o de Jesus,nunca foi deste submundo, jamais acha onde reclinar sua cabeça exornada deespinhos, assim nem no próprio Pontífice acha eco a incompreensível linguagemtranscendente de seu amante coração; é mais, em vez de um piedoso consolo e umaabsolvição não menos piedosa ali onde pecado não havia, acha o errante peregrinovenusto o mais cruel dos sarcasmos, simbolizado naquela frase de "antes floresceria

1 Mais adiante veremos desenvolver-se esta idéia do Mito Cavalheiresco, no que o campeão nãoprocura outra coisa que a ioga, a união mística suprema, que lhe é revelada no êxtase. Para acorreta compreensão destes conceitos, conviria que o leitor meditasse a respeito das idéias deBlavatsky sobre o particular, expostas no capítulo I, 4ª parte, do tesouro dos lagos de Somiedo.

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o seco bastão em que seu corpo fatigado se apóia, que fosse perdoável seu crime".O místico não se rende, entretanto, e com essa galhardia rebelde, titânica, de todosos escolhidos, eleva-se irado contra a sentença cruel, e de novo invoca a Vênus eseu Palácio de divinos encantos, quer dizer, deseja voltar para sua celeste primeirapátria, coisa que não consegue, como não a conseguiremos tampouco nenhum doshomens, sem que a contraparte mais excelsa de nosso ser, a Enoia ou Isabel mítica,não desça dos céus para nos receber ao modo como Eros, depois do Banquete dosdeuses, modelo do simbólico Banquete de Platão, recebe a sua mística amadaPsique, porque "os crimes do amor só o amor os redime".

Tannhäuser e Isabel; Tristão e Isolda; Erico e Senta; Siegfried e Brunhilda;Lohengrin e Elsa; Parsifal e Kundry são, pois, variado-los símbolos da idéiaprofundamente ocultista que preside a toda a criação literária de Wagner, idéiaeternamente única em meio daquela sua variadíssima policromia, idéia que não éoutra senão quão mesma entranham todos os mitos amorosos, de Magia Negra, se,se tomarem, como revestem tomar-se, no morto sentido sexual; de Magia Branca,pelo contrário, quando lhes atribui seu verdadeiro sentido transcendente, acimadeste mundo e de suas misérias contínuas.

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CAPÍTULO VIIILOHENGRIN

O Swan-ritter, ou Cavaleiro do Cisne - Elsa e o eterno tema humano da Justificação- Luta do Bem com o Mal, no mundo - Argumento da obra. - O canto doMontsalvat - O inviolável Secreto dos segredos - Jó, e outros justos que no mundoforam - A eterna solução imprevista. - Os Dhyanis industânicos e os Lohengrin eHélias do Ocidente - Os salvadores - Bonilla São Martín e o livro de A GrandeConquista, de Ultramar (o ultra-mare-vitae.) - A lenda da Isomberta e seus setefilhos - O torneio da vida - O eterno Cisne e as teogonias - Etimologiasconcordadas com os nomes de Lohengrin - Conexões com o mito de Parsifal e comoutros muitos - O poema do Wolfram do Eschenbach - Tradições americanas eescandinavas - A lenda de Psique - Lohengrin e o panteão industânico e chinês - Omundo dos Arats - O mito de Lohengrin e a primitiva Religião-Sabedoria -Sobrevivências ocidentais das tradições relativas aos salvadores e aos jinas.

Wagner coloca a ação de seu célebre drama lírico Lohengrin na cidadecomercial de Amberes, em meados do século X, o século do grande renascimentofilosófico e político que seguiu aos terrores apocalípticos do milênio, que foram opesadelo da Europa Bárbara, sucessora das glórias de Roma e da Grécia. Seguindoo caminho poético de canto de Swan-ritter ou Cavaleiro do Cisne, do bardoConrado de Wurzburgo, e do poema anônimo do século XIII, que os irmãosGrimm, em 1816 e antes Goerres, em 1813, haviam já publicado, supõe Wagnerque Federico Telramondo, conde brabanzón, tem sob sua tutela aos dois filhos dopríncipe de Brabante, Godofredo e Elsa. Desejoso o conde de usurpar aquelesEstados, acusa perfidamente à Elsa de ter envenenado a seu irmão. O rei Henriqueremete o pleito ao julgamento de Deus. Então, como surgindo ao mágico conjuroda dor de uma inocente menina caluniada (tema eterno da justificação), umcavaleiro misterioso, Lohengrin, vem pelo Escalda em uma casquinha conduzidapor um cisne e aceita o combate pela Elsa contra Federico. Elsa lhe promete, sevencer, ser sua esposa, mas Lohengrin formula antes a condição absoluta de quenão lhe interrogará a respeito de sua pátria nem de seu nome.

Chegado o momento do duelo, o Cavaleiro do Cisne vence ao condeFederico; mas Ortruda, mulher de este, com a eterna perspicácia feminina, adivinhaque de semelhante secreto depende o mágico poder do cavaleiro, e, para podersurpreender este segredo, afronta publicamente a Elsa pela ignorância em que viveem relação à verdadeira condição social de seu amado. Ferida assim Elsa no maisdoloroso de sua vaidade e sua curiosidade de mulher apaixonada, pede aoLohengrin, a mesma noite de bodas, que lhe declare seu nome, pátria e ser, porqueteme que algum feitiço letal possa lhe arrebatar a seu amante. Naquele momentopenetram na câmara nupcial Federico e os seus, para dar morte ao Lohengrin, maseste mata a seu inimigo e diz a Elsa que diante do rei lhe revelará quanto ela desejasaber. Em efeito, comparece ao dia seguinte Lohengrin ante o monarca, os nobres

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e os vassalos, reunidos solenemente em Assembléia, e confessa sua condiçãoceleste: declara vir do Montsalvat sagrado e ser filho de Parsifal, rei do Graal, depoisdo qual anuncia sua partida abandonando a Elsa por ter faltado a seu juramento emasas de uma insana curiosidade. Antes de partir faz oração, e o cisne de suacasquinha, desencantado de sua secular condição de ave condutora do cavaleirosalvador, permuta-se no jovem Godofredo, o irmão de Elsa, ocupando seu lugar apomba simbólica do Graal, que arrasta veloz a casquinha em que Lohengrin voltapara sua pátria nativa.

- Há ao longe, canta Lohengrin no final desta sublime cena, um mundoinacessível, um lugar sagrado chamado Mont-Salvat. Ali se eleva um temploindestrutível, cujo brilho não tem igual na Terra. Em seus muros, como o Santodos Santos, conserva-se com mistério um copo augusto que os anjos (Dhyanis)entregaram à piedosa guarda dos homens mais puros. Uma pomba (hamsa),cruzando o espaço, acode cada ano a renovar seu esplendor. É o santo Graal! Eleinfunde em seus cavaleiros inextinguível ardor. Quem tem a glória de servir ficainvestido de um poder sobre-humano (Magia) e, seguro da vitória, tem em seupotente emano a sorte dos malvados. Mesmo que tenha que transladar-se alongínquas comarcas para proteger o direito menosprezado e a virtude ludibriada,seu poder subsiste e sua força é sagrada, enquanto seu titulo e condição sejamignorados de todo o mundo (segredo ocultista). Mas tão sublime! e maravilhosoMistério não deve oferecer-se ao olhar dos mortais: nenhum dos nossos evita asevero lei e, ao tirar o chapéu seu incógnito, tem que partir. Pois bem, aberto o véuque ocultava a seus olhos, tenho que seguir a lei do Santo Graal: Parsifal é meu pai;sua é a coroa; eu sou Lohengrin"

O argumento da presente obra de Wagner é, como todas as suas, umcompleto curso de ocultismo e filosofia. Sua alma inteira cifra no terrível problemado destino humano, destino que, enquanto permanecemos sobre a terra, é de épicaluta com os elementos inferiores do homem e do mundo, com a maldade, a dor e ainjustiça, que tal é e não outro, o verdadeiro conteúdo essencial oculto sob aroupagem poética e simbólica de todas as epopéias. Godofredo e Elsa, Elsamy,Elisa, Elisa-beth, Isabel e Isomberta 1 são o primeiro casal humano, que herda, nãoo império de Brabante, senão todo o direito de senhorio sobre o Planeta, onde têmque lutar para consolidar sua hegemonia celeste com todos os poderes elementarese do mal, simbolizados poderes que nos tendem armadilhas contínuas para lavrarnossa queda na egoísta maldade do Telramondo.

Godofredo sucumbiu, e a necessitada Elsa está a ponto de sucumbirtambém, quando seu pleito, falto já de todo auxílio humano, é submetido aojulgamento de Deus. Tal é o vigoroso tema da justificação, alma de toda oração ouprece, e também, em certo modo, de toda blasfêmia, tema que lhe veremos elevar-

1 Elisa, primeiro filho (ou filha) do Javán e neto do Jafet (Gen., C. X), tronco «Je oshabitantes das ilhas Elisae ou Ilhas Afortunadas (Canarias).

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se gigante na prodigiosa Walkyria, e que se contém por inteiro naquela titânica frasedo Víctor Hugo, que diz: - Que culpa tem o homem de que Deus não tenhaigualado suas forças com as do tentador? Ou aquela outra de Jó, quando, privado jáde tudo humano auxílio, diz cara a cara ao próprio Jehovah que lhe repreendia porsua integridade rebelde: - Senhor, Senhor, vocês são grande, mas eu sou justo! -";Idéias, enfim, que inspiraram ao sociólogo Bakunin a frase de entrada de suafamosa obra: "A característica do homem é a rebeldia"; mas entenda-se bem, arebeldia heróica contra um destino cruel que nos mantém aferrolhados naquelaergástulo a que alude Platão em sua República, não a rebeldia do crime, que tantospontos de secreto contato guarda com a negra mão da reação homicida que a armae impulsa.

A aparição de Lohengrin como paladín da justa causa humana da Elsa,simboliza o descida das invisíveis (e às vezes bem visíveis) amparos, que chegamsempre ao homem nos paroxismos de suas angústias, quando de seus lábios saiu jáo -"Eli, Eli (ou Hélias, Hélias), lacma sabatani! - Lohengrin, Lohengrin, por que meabandonaste! - Que sai dos lábios de todos os humanos cristos, crucificados peloegoísmo e a injustiça alheia, sendo certamente muito de notar deste modo o comoJesus no Olívete, e logo na Cruz, igual à desamparada Elsa no Lohengrin, invoca aoPai, ao Gurú, ao Cavaleiro Hélias ou Elle, quando "o filho do homem não tem jánem dónd,e reclinar sua cabeça", e quando o angustiante drama da luta do homemcom seu destino terrestre lhe têm a ponto de sucumbir.

Semelhante momento nos apresenta com mais ou menos intensidade, massempre com grande freqüência na vida. É a solução imprevista nos problemasinsolúveis - grandes ou pequenos, da existência; a contínua obra mágica dosPoderes superiores (vulgo Providência) atuando sobre o mundo, embora o mundocético e materialista de nossos tempos se obstine em fechar covardemente seusolhos espirituais a tamanha luz; solução imprevista que o mesmo faz triunfar àmatemático Poincaré, por exemplo, lhe dando a chave das funções fuchsianasquando já me desesperava para encontrá-la, que faz triunfar ao Colombo naqueledia em que, falto já ao parecer de todo auxílio humano, chama, pobre e faminto, àsportas do Monastério da Rábida; solução imprevista, enfim, que salva secretamentetantas honras e tantas estoque comprometidas pelos ímpios vivires de nossa épocapositivista, vivires nos que, só mercê a semelhantes milagres efetivos, obtêm malcomer e pior vestir nossas Elsas a nossos Godofredos necessitados, ora do campo,ora no seio das grandes urbes... E quantas mais destas soluções imprevistas,casualidades tidas como casualidades por nossa ignorância vaidosa, amparossalvadores ao bordo do suicídio ou da afronta, não receberíamos se fôssemoshomens de maior fé, não a pueril fé religioso-positiva que nos quer impor à forçapelos comerciantes a título eclesiástico, e que salvar podem, entretanto, aospequenos de espírito, senão a fé integral na divina condição do homem; em suamissão augusta sobre um astro como a Terra, a que temos que dominar ao fim eassenhoreando-nos dela como deuses que todo o conquistam pela virtude e pela

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ciência; fé consciente, filha do estudo filosófico, fé na alta amparo de quantos de láencima nos apóiam, sob a forma, ora de próvidas leis naturais, ora de seressuperiores dirigindo nossa evolução, como nós dirigimos a dos seres que são a suavez inferiores; ora, enfim, como emana, lareiras, penates ou pitris, sombras tutelarde nossos mortos queridos, sombras que se for muito duvidoso que possam serevocadas por nenhum artifício medianímico, é muito lógico que o devam e possamser no seio de nosso coração pelos eflúvios de um santo carinho vencedor da mortemesma! Semelhantes amparos ou soluções imprevistas se apresentariam semprecomo a tutela dos pais sobre os filhos, se não fosse porque é bem que o homem, àmedida que balança na evolução, vá acostumando-se à independência e àresponsabilidade como únicos meios de robustecimento, já que não pode haverrecompensa nem triunfo sem esforço e sem luta. Lohengrin, como seusequivalentes míticos em todas as epopéias e lendas, é o divino titã humano, que,cansado do céu como tantos outros rebeldes pelo grande delito de querer ampararcom seu esforço à Humanidade necessitada, retorna, depois de seu esforço, à pátrianativa, ao Graal, ao berço de sua infância 1.

Quanto ao Cavaleiro do Cisne, o Hélias ou Elias proto-semita da obra deWagner, não se ocultará à perspicácia de nossos leitores que era dessa linhagem desemi-deuses chamados Dyanis-Choans ou Swan-ritters, vencedores da mortemesma, que aparecem nas mais apartadas teogonias e que na própria Bíblia mosaicasão transportados às regiões celestes em carros de fogo, ou sob a visão de um carrode fogo, como Elias, Enoch, Jano, o deus jina e o profeta Ezequiel, preparadosassim, longe dos mortais, mas dispostos a retornar à Terra quando sua alta missãoassim o exija. Mas mesmo que descendam mais de uma vez para auxílio do mundo,é tão impuro, letal e comprometedor ainda o contato semi-animal dos homenssublunares, os homens do Hades, os mortos vivos daqui embaixo de que falam oslivros sagrados de todos os países, que aqueles Instrutores ou Salvadores não nos

1 A proibição da lei do Graal, relativa a que nenhum de seus heróis revele aos profanos sua pátrianem seu nome, concorda com o famoso sigilo sacerdotal, com a palavra secreta maçônica e tambémcom a proibição terminante que existia no Bramanismo, relativa aos segredos da Guhya-Vidya oumagia dos poderes do som (Aether) e da harmonia (mantram). "Nunca seja permitido, diz oAlfabeto egípcio do Toth-Hermes, recitar em alta voz certos feitos históricos terríveis para nãoevocar da luz astral com a Palavra, os poderes relacionados com eles..." "Em memorando ao ruimde Roma", etc, que diz o provérbio castelhano, pois em Ocultismo é axiomático que o verdadeironome mágico das coisas as evoca e as volta redivivas. De tudo isto, que se encontra em milexemplos do Folclore universal, acaso provenha, por isso os doutos chamam sobrevivência ancestral,que, todavia seja tido quase por uma desonestidade na dama francesa o dar son petit nom ou nomede pilha, igual a ainda vemos entre os abipones, tasmanios, peles vermelhas, negros africanos e, emgeral, todas as tribos primitivas. Os poderes do mal, acreditam podem ser em certo modo atraídosem seu dano por dito nome, como os poderes do bem também podem ser atraídos me- diante aYajna, "a palavra perdida", recebendo impulso pelo poder da vontade, bem instruída na ciência"três vezes sagrada" ou Traividya.

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podem revelar como tais, segundo a lei do Graal, sem que tenham que partirimediatamente, ora porque seu excessivo e visível amparo nos privaria do méritodo próprio esforço pessoal e livre, ora porque a mesma Humanidade, dormidaainda no regaço de Maia, quer dizer na ilusão infantil de seus próprios enganos,rechaçá-los-ia como rechaçou sempre à verdade nua, imolando-os, se puder, qualsempre tratou que fazer com todos os redentores, grandes ou pequenos, notranscurso da História. Por isso as terríveis verdades da Iniciação (a Merkabahsemita) deram-se em todo tempo com excepcional secreto e parcimônia, envoltas,ainda em nossos próprios dias de cultura e liberdade, na fabulosa roupagem dosmitos, pérula protetora de suas verdades transcendentes e inefáveis que deveriamser ensinadas cientificamente nos Templos, qual antigamente acontecesse dasépocas mais remotas até os tempos lutuosos de Alexandre e de César. O mesmoCristianismo, deixando a um lado o ensino de Jesus, copiou assim ao Paganismoseus mais sublimes ensinamentos, como na fábula de Fenelon a Mentira furtasse àVerdade as suas 1.

A parte de Lohengrin de Wagner que faz referência ao Santo Graal, convémreservá-la para quando de Parsifal nos ocupemos. Deste modo há outra porçãomuito profunda e cosmogônica da lenda primitiva do Cavaleiro do Cisne que ocolosso de Bayreuth não incluiu em sua partitura, como tampouco o está nos poemasque servissem de apóie para esta; mas sim em certos livros e mitos espanhóis queconvém mencionar, e sobre a que temos feito extensos comentários em algumas denossas obras teosóficas 2.

1 Podem ver-se estes no capítulo dos Mitos e no de Astrologia e Astronomia de nossas"Conferencia teosóficas na América do Sul".

2 Por isso diz com sua habitual sabedoria Helena Petrovna Blavatsky em sua obra gigantetitulada Ísis sem Véu, que as provas que nela apresenta a respeito da sabedoria dos antigosensinamentos, acham-se pulverizadas em todas as Escrituras das antigas civilizações. Os Puranas,O Zend-Avesta, os clássicos antigos e até a mesma Bíblia, quando se lê entre linhas, despojando ade seu sentido sensualista literal, estão saturados dela; mas poucos são os que se tomam a moléstiade recolher feitos que são tidos por fabulosos e confrontá-los uns com outros à luz da Mitologiacomparada. A causa disso é que todos os grandes sucessos do mundo foram registradossimbolicamente e que a mente dos homens mais peritos na ciência jaz nublada por multidão derotinas e conceitos positivistas preconcebidos. "A mitologia é feito histórico, o que a parábola àmoral." Por isso Platão dizia também no Phédon e no Górgias, e nós o repetimos varias vezes,que os mitos são veículos de grandes verdades, bem dignas de ser procuradas. Eles são a vida daIntuição, como a mais excelsa das faculdades da mente, embora a fantasia coletiva, ao multiplicá-los até o Infinito, diminuiu-os e localizou, despojando-os quase sempre de sua grandeza filosóficaprimitiva, ao modo do chão terrestre com as mais venerandas ruínas que, ao as sepultar, asconserva em seu seio durante o inverno dos séculos, em espera de melhores épocas que as retornem àluz do dia, as fazendo florescer de novo como sob o eflúvio de uma nova primavera psíquica decultura.

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Primeira sorte parte da lenda do Cavaleiro do Cisne, ou Lohengrin espanhol,está contida nos capítulos XLVII ao CLXXXVIII do livro I da Grande Conquistade Ultramar (tomo XLIV da Biblioteca de Autores Espanhóis, publicada por D.Pascal do Gayangos), da que seguidamente nos ocuparemos seguindo ao Sr.Bonilla.

O relato que daquela se faz diz assim:A infanta Isomberta (Ísis-Bertha? - Ísis-Bithosf), filha do Rei Popleo e da

Rainha Gisanca, não querendo acessar ao desejo de seus pais que a apressavam paraque contraísse matrimônio, foge deles, e entrando em um barco que achadesamparada, navega vários dias até atracar a um deserto, onde desembarca e ondeestá a ponto de ser devorada por uns cães de caça, dos que a liberta o CondeEustáquio, cuja é aquela terra. O Conde se apaixona pela Infanta e se casa com elacontra a vontade de sua mãe, a qual, aproveitando a ausência de seu filho, chamadopelo Rei Licomberte o Bravo para que lhe ajude em certa guerra, lhe faça acreditar,quando a Infanta dá a luz, que pariu sete cães de caça de uma vez, sendo assimeram sete formosos meninos, a quem, conforme cada um nascia, vinha um anjo elhe punha um colar de ouro ao pescoço. O Conde escreve que guarde os cães decaça até que ele retorne; mas a pérfida mãe falsifica também sua carta e faz outraem que se ordena matar a Isomberta com os sete infantes que dela nasceram, deconformidade com uma lei do Reino, segundo a qual, se alguma mulher dava a luzem um parto mais de um filho, era acusada de adultério e condenada a morte.

O cavaleiro em cuja guarda estavam Isomberta e os infantes os abandona emum deserto, a fim de não ser ele, senão a vontade de Deus a que os mate. Umaserva acode e dá de mamar aos infantes, a quem recolhe um ermitão, que os cria eeduca.

Quando o ermitão viu que os meninos andavam e podiam lhe acompanhar,deixando a um em casa, saiu a pedir esmola com os outros seis. Chegou aosouvidos da Condessa, mãe de Eustáquio, a estranha nova do ermitão quemendigava com os seis formosos meninos e, suspeitando algo, mandou lhe chamar,adquirindo logo a convicção de que se tratava de seus netos, pelo qual fez de modoque ficou com eles, sob pretexto de lhes dar educação. Um dia, estando em suacâmara, chamou dois escudeiros, e, tendo ante si aos seis meninos, ordenou aaqueles que lhes tirassem os colares de ouro e os degolassem. Os escudeiroscomeçaram por lhes tirar os colares; mas, apenas o tiveram feito, quando osinfantes se converteram em cisnes e lhes escaparam voando, saindo por uma janelada habitação. A Condessa dispôs que um ourives desfizesse os colares, se por acasoneles se encerrava alguma virtude misteriosa, e que fabricasse com os mesmos umataça para sua mesa. Assim que o ourives fundiu um colar, o ouro começou acrescer, e teve matéria bastante para fabricar com ele sozinho a taça, guardando-osoutros cinco, sem que a Condessa soubesse.

Depois de dezesseis anos de ausência, o Conde Eustáquio voltou para suaterra e se inteirou de todo o ocorrido; mas foi forçoso, para cumprir as leis do país,que sua mulher fosse condenada por adúltera, por causa de ter dado a luz mais de

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um filho, se não havia cavaleiro que a defendesse e vencesse em batalha aoacusador. Deus inspira então ao ermitão para que envie à infante que fica, a fim deque lute por sua mãe. O infante vence ao cavaleiro da acusação, e é reconhecidocomo filho do Conde, o qual manda emparedar à pérfida sogra, e faz logo trazerpara os seis cisnes, cuja existência era conhecida do ermitão. Ficam-nos colares aoscisnes, e à medida que vão recebendo, vão-se tornando em homens; mas como umdos colares tinha sido fundido, o cisne a quem corresponde fica em qualidade detal, embora seu entendimento seja racional e se veja que, como os outros, é filho doConde. O moço que lutou por sua mãe recebe de Deus a graça de vencer em todasas batalhas que se façam contra proprietária inocente, e aquele seu irmão quepermaneceu cisne, a de lhe guiar a todos os lugares onde tais batalhas tinham queter efeito. Por isso o moço toma após o nome de Cavaleiro do Cisne 1.

1 Na alegoria grega, Isomberta é a esposa do Tíndaro e a mãe de Castor e Polux, dotados doprivilégio de viver e morrer por turno (Ilíada e Odisséia). Por isso assume a forma de um cisnebranco quando se une ao Cisne Divino (Brahma-Kalahansa), e é assim, Leda, a formosa filha doÉter e mãe da Água, a Ave mística dos seis Ovos de Ouro e o sétimo de Ferro do Kalevalaescandinavo, em seus significados múltiplos. A mesma noite se une com seu marido e com o Zeus,nascendo da primeira união César (o homem Mortal), e da segunda, Polux (a origem dosImortais). Para que não nos tache de excessivamente duros para as religiões, renunciamos a fazerneste ponto o inevitável paralelo entre a fábula grega e o que se conta sobre o nascimento doBuddha e do Cristo.Quanto à alegoria do Conde Eustáquio e de Lohengrin, que se ausentam a um mundo superior,de que retornam às vezes em socorro dos mortais, bem pode dizer-se que ao enraizado de tal crençaentre os povos mexicanos deveu Cortês boa parte de seu triunfo. Na primeira carta de este aoImperador (parágrafos 21 e 29) transcreve Cortês o relato de Moctezuma, que lhe disse: "Pornossos livros sabemos que, embora habitemos faz tempo estas regiões, não somos indígenas, massim procedemos de outras terras muito distantes. Sabemos também que o caudilho que conduziu anossos antepassados (Quetzalcóatl, o Hércules e o Lohengrin nahoa) retornou ao seu país nativo evoltou a vir para levar-se aos que tinham ficado aqui; mas os encontrou unidos já com as filhasdos naturais (recorde a Gênese com "os filhos de Deus e as filhas dos homens"), tendo numerosaprole e vivendo em uma cidade construída por suas mãos; de maneira que, ignorada sua voz, teveque tornar-se sozinho. Nós - acrescentava - estivemos sempre na inteligência de que seusdescendentes viriam alguma vez a tomar posse deste país, e, suposto que vêm das regiões onde nasceo sol, e me dizem que faz tempo que têm nossas notícias, não duvido de que o Rei que vos enviadeve ser nosso senhor natural."No mito grego, Hércules se apresenta como paladino da honra do Juno. Esta deusa lhe adota lheacontecendo sob sua saia, de igual modo que na tradição castelhana vemos, depois da morte dossete Infantes da Lara, que Dona Sancha adota ao filho que seu marido tinha tido com uma filhado Almanzor. No Foro Velho da Castela rege esta forma de adoção também.A grande conquista de Ultramar, edição de D. Pascal Gayangos, libero I, cap. LVI. Bonillaadiciona, com muito bom critério, que muitos de suas passagens filosóficas se relacionamestreitamente com a teoria sobre o origem do mal que constitui o núcleo (incompreendido aindapara certos sectários religiosos) da grande tese maniqueísta que deu margem a tantas discussões

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teológicas até a época de São Agustín, e que tem conseqüências no admirável tratado de DecotoEurígena, De divisione Naturae.O fundamento principal da grande conquista é, segundo Bonilla, a Historia da terra de Ultramar,do Guillerme de Tiro (morto em 1184), obra escrita em latim e traduzida pouco depois em línguafrancesa; mas a lenda do Cavaleiro do Cisne não consta, segundo o Conde do Puymaigre, nooriginal latino.Segundo uma versão da lenda localizada no Cléves, o Cavaleiro do Cisne se chama Helie ouHélias. É um enviado do céu que a fins do século VIII salva à princesa Beatriz, "da ilustrefamília dos Ursinos, patrícios romanos". (Bonilla, Mito de Psique, pág. 57).

E sob este título fenece a aventura já conhecida contra o Duque Rainer daSajonia, que deve ser o Telramondo da lenda wagneriana de Brabante.

Comentada já a parte fundamental das lendas bávaras, nas que se inspirou aobra de Wagner sobre o Cavaleiro do Cisne ou Lohengrin, convém particularizar asenormes concordâncias que dita ópera guarda, mercê a aquelas lendas, com o mitouniversal, relativo a certos seres super-humanos (deuses, heróis, anjos, dhyanisprotetores, etc.) dos diversos panteões religiosos, em íntima conexão com aHumanidade e com seus destinos. Assim se evidenciará mais e mais o caráterocultista da obra do músico-poeta e adquirirá ela todo o relevo que merece.

A história do Cavaleiro do Cisne (Sivan-ritter) - diz o sábio catedrático deHistória da Filosofia e acadêmico Dr. D. Adolfo Bonilla e São Martín, em sua obraO mito de Psique - Um conto de meninos - Uma lenda simbólica e um problemada Filosofia -, forma parte do livro francês do século XIV A conquista de Ultra-mar (não de um ultramar americano, então desconhecido, mas sim do ultra-marevitae, ou mundo superliminal e ultra-terrestre, que é o que débito, certamente,subentender do verdadeiro nome de seu original latino). Este ciclo “cavaleiresco”da conquista de Ultramar 1 tem, segundo Bonilla e São Martín, cinco ramosprincipais, que são:

1 A grande conquista de Ultramar, edição de D. Pascal Gayangos, libero I, cap. LVI. Bonillaadiciona, com muito bom critério, que muitos de suas passagens filosóficas se relacionamestreitamente com a teoria sobre o origem do mal que constitui o núcleo (incompreendido aindapara certos sectários religiosos) da grande tese maniqueísta que deu margem a tantas discussõesteológicas até a época de São Agustín, e que tem conseqüências no admirável tratado de DecotoEurígena, De divisione Naturae.O fundamento principal da grande conquista é, segundo Bonilla, a História da terra de Ultramar,de Guillerme de Tiro (morto em 1184), obra escrita em latim e traduzida pouco depois em línguafrancesa; mas a lenda do Cavaleiro do Cisne não consta, segundo o Conde do Puymaigre, nooriginal latino.Segundo uma versão da lenda localizada no Cléves, o Cavaleiro do Cisne se chama Helie ouHélias. É um enviado do céu que a fins do século VIII salva à princesa Beatriz, "da ilustrefamília dos Ursinos, patrícios romanos". (Bonilla, Mito de Psique, pág. 57).

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1ª, A Canção do Antioco; 2ª, A Canção de Jerusalém (Eros-alein? Sacerdotede Eros); 3ª, Os Cativos, quer dizer, os seres humanos, "os eternos prisioneiros" daRepública de Platão, quem, de costas à luz, tomam por realidades, enquantopermanecem neste submundo, as sombras do astral, do hiperfísico, que se projetamvacilantes nas paredes de seu calabouço; 4ª, O herói ou semideus Hélio, Elias,Grailus, Gralius, Grail ou Graal (o Swan-ritter ou Cavaleiro do Cisne), e 5ª, ajuventude do Godofredo, ou seja, o jovem Siegfried, núcleo primitivo sobre o quejá em 1848, recém banido na Suíça, começou o colosso de Bayreuth sua ciclópicaTetralogia, e que em definitiva constituiu a terceira jornada do anel do Nibelungo.

Por poucos conhecimentos que tenhamos a respeito da Mitologiacomparada, não podemos menos de encontrar, em cada um dos nomes simbólicosque se atribuem na conquista de Ultramar ao mágico Cavaleiro do Cisne, umtratado inteiro de História e de Filosofia.

Por de repente, Hélio é o nome clássico greco-egipcio do Sol: não só do Solfísico (Apolo) que dá vida à Natureza inteira, mas sim de quantos Sóis espirituaisou protetores, seja visíveis, seja invisíveis, da necessitada Humanidade, catalogam-se nas diversas religiões do mundo: o Sol-Christos, dos cristãos; o Buddha celestial(ou Siddharta Sakyamuni, aqui na Terra), venerado pelos hindostânicos do Norte edo Sul; o Sol dos Solstícios, da Maçonaria universal; o Hélio, Logos ou Anima-mundi, que já da Heliópolis egípcia e da astrologia acadio-caldea constituía a basede uma religião astronômica que era mais sua casca, o véu de uma ciência desantuário, cujos mistérios se revelavam nas iniciações, ao par que se reservavamcuidadosamente aos poloi ou gente do vulgo. Tomaria este capítulo por si sódimensões de livro se fôssemos enumerar uma por una as conexões mitopei- csdeste nome de Hélio, atribuído pela conquista de Ultramar ao divino "Cavaleiro doCisne".

Do outro nome do Elias que também se atribui na conquista ao redentorSwan-ritter ou Cavaleiro do Cisne (Lohengrin), temos deste modo a preciosareferência bíblica relativa a aquele misterioso e simbólico profeta Elias, que, comoHenoch ou Jainoch, não morreu, ao uso mortal, mas sim se diz foi arrebatado vivoaté os céus em um triunfal e mágico carro de fogo, nem mais nem menos que oLohengrin bávaro e o de Wagner é levado triunfalmente também por um cisne àmansão celeste de deuses e heróis Walhala, Devachan, Campos Elíseos, Celestial ouCéu), porque, como ser superior e extra-humano que aquele era, não podia estar jásubmetido às misérias da dor e da morte física, coincidência mitopeica que é umade tantas provas da filiação nórdica e semito-atlante que tem a Bíblia mosaica nosmitos escandinavos dos Eddas, a Volüspa e o Kale-valha, influências que logofossem lastimosamente veladas em dita Bíblia pelas influências babilônicasposteriores, recebidas durante o cativeiro dos judeus em Babilônia e Agarraria, erefletidas na versão ou refundição do Esdras, única que chegou até nós e que,contra toda regra de crítica histórica, nos quer fazer passar pela pura e genuína obraprimitiva do Moisés.

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Quanto aos nomes do Grailus, Grnlius e Grail, seu parentesco com o nomedo Graal e o íntimo enlace de sua lenda com a que serviu que apóie ao Parsifalwagneriano, é bem notório e merecedor de um especial estudo. À apreciação desemelhante parentesco se pode chegar também pela versão de Lohengrin que épopular na comarca francesa do Cléves, e em que Swan, o Cavaleiro do Cisne, ouLohengrin, recebe os ditos nomes do Elias, Hélio, Grailus, Grail. O grande filósofoalemão Goerres, que publicou em 1813 o Lohengrin bávaro, utilizado por Wagner,enlaça, com grande copia de erudição, dita lenda com a de Ulisses, o herói daOdisséia, cuja característica mítica em toda a Europa, como símbolo que ela é detoda a influência Helena, está ainda por esclarecer. A base para semelhantetrabalho, como diz muito bem Bonilla, são aquelas linhas de Tácito, que nocapítulo III de seu precioso opúsculo sobre os germanos, escreve: "Pensam algunsque Ulisses, em seu longo e fabuloso périplo pela Europa, chegou a este Oceano; eque entrou na Germânia e nela fundou ao Asciburgium, lugar situado na ribeira doReno e habitado hoje em dia; e que em tempos passados se achou ali um altarconsagrado ao Ulisses, em que também estava escrito o nome do Laertes, seu pai; eque nos limites da Germânia e Retia se vêem, hoje em dia, letras gregas emmonumentos e sepulcros" 1.

Hélias ou Lohengrin, em dita tradição, quão mesmo o Quetzalcóatl asteca eque tantos outros personagens do panteão maya-quiché, chega a Islândia eEscandia, em um misterioso barco sem velas, sob o nome do Sceaf, antecessor deWotan ou Odin (Hércules) nórdico e de Wotan fundador da grande teocraciaquichua das costas do Pacífico, irmã geme-a quando não mãe, das mais arcaicasdinastias sacerdotais egípcias. Ainda se imprimem no Flandes, diz Bonilla, folhas decorda sob o título de Schoome historie van der Ridder Hélias, genaand dêem Ridder metdo Zwan, personagem que é o mesmo Gerhart Swan da Dinamarca, sobre cujalenda criou Rodolfo do Habsburgo a Ordem cavalheiresca do Cisne, em 1290. Osábio Mauricio Kufferath, em sua obra Lohengrin, chega a' sugerir a idéia de umestreito enlace mítico entre o Loheran ou Lohengrin e a etimologia da Lorena.

Loherangrein é também, segundo o grande mestersinger ou mestre-cantoralemão Wolfram do Eschenbach (1205), filho do rei do Graal, e base, porconseguinte, da lenda temperaria que estes cavaleiros iniciados trouxeram, semdúvida, do alto Líbano, refrescando com ela outras tradições primievales análogas,faz tempo perdidas.

No poema do Wolfram do Eschenbach, a duquesa de Brabante aparecesolicitada de uma vez, como a Penélope do Ulisses, por multidão de pretendentes,mas ela não quer ser, mas sim daquele a quem o Destino (Karma) confie-a. Um dia,

1 Veja-se sobretudo isto e o que segue o capítulo VIII de nosso livro De gente do outro mundo,relativo aos Tuatha do Danand e a seu Hércules ogâmico.

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ensina Bonilla, aparece Lohengrin, procedente do Montsalvat, e se casa com ela,mas impondo-a antes a condição de que não trate de averiguar jamais, nem suapátria nem seu nome. Acessa a isso, cheia de felicidade, a apaixonada princesa; masa curiosidade feminina a vence ao fim, como a Psique, como a Eva, como aopríncipe de Branca-flor e como a pastorcilla do conto de Brilhante, e Loherangrin,descoberta assim sua condição super-humana, tem que partir, deixando-a sumidano desespero e confiando-a por toda lembrança sua espada, sua tromba ou cornoguerreiro e seu anel.Ainda é mais pura, dentro dos ensinamentos ocultistas dos Mistérios antigos, alenda de Lohengrin que E. Petitot recolheu entre os esquimós do Canadá,verdadeiros atlantes degeneradíssimos e com escasso contato de influênciasulteriores. Nela se conta que Tatkrem Innok (Caín ou Coen-Toth?), O homemlunar ou mortal, e Malina, a mulher-Sol, da raça dos imortais, eram irmãos etambém maridos (como todos os grandes personagens míticos, aludindo a seudobro natureza dos divinos hermafroditas predecessores do homem e mulheratuais de que nos fala Platão em seu Banquete). Uma noite Malina enegreceu suasmãos com a fuligem do abajur e manchou com ele o rosto de seu marido, quandolhe abraçava 1, sem que ele o notasse durante aquela noite; mas chegado o dia e

Aqui há uma transposição de personagens e conceitos, filha da influência ulterior de lendas comoas de Psique e Lohengrin, nas que o mortal é a mulher (Psique, Elsa) e o imortal o nome (Eros,Lohengrin). Em todo primitivo ocultismo foi ao contrário: o mortal foi o homem lunar e a imortala mulher (Sophia-Acamoth, Bithos-Enoia, etc.) Tal acontece também, por primieva, com a lendaespanhola do Principe vicioso e seu dava- venha Branca-flor. Este detalhe, ao parecer ínfimo, étoda uma fé de batismo do mito respectivo: primievo, quando ocorre o que com Branca-flor eMaliña; ulterior e proto-semita, quando acontece o contrário, como com a Elsa e com o Psiquis,porque o semitismo dos últimos atlantes investiu assim os conceitos, com necrománticos fins dedespotismo sobre a mulher, contra a pura e genuína doutrina ocultista dos atlantes primitivos e dosarianos posteriores, nos que o brâmane e seu brahmina têm iguais direitos e deveres sacerdotais noara do culto do lar, e em cujas muito puros idéia religiosas, filhas de um Ocultismo sem véuapenas, não se trata de desposorio humano algum entre dois seres, mortal o um e imortal o outro,mas sim de um símbolo augusto da união transcendente entre nosso divino Espírito (nous), que édireta emanação da Divindade sem Nome, e a alma inferior humana (psyche), que solicitada pelaGrande Serpente da luz-astral, ou seja,pelas atrações inferiores da matéria, pode naufragar nela seaquele divino Espírito cuja luz for a consciência interior psicológica, não a redime. A terrívelsugestão da curiosidade - a cuja interpretação verdade tanto se aproximaram os sábios como osenhor Bonilla São Martín, ao nos dar sua preciosa obra sobre O mito de Psique-, não é outraque a tentação de necromancia ou abuso egoísta e antecipado dos celestes dons da Magia Branca,ou magia altruísta e de perfeita renúncia ou sacrifício, tentação que assaltou aos últimos atlantesconduzindo sua queda, que o mito universal nos recorda ainda com os relatos de suas catástrofes edilúvios. A fuligem com o que enegreceu suas mãos a curiosa Malina esquimó, é o negro ullisacerdotal dos sacrificadores maias-quichés, ou azeite negro, com o que se ungiam aquelessacerdotes antes de imolar as vítimas humanas em suas práticas necromantes como ainda se vê emtodos os códices mexicanos do Anáhuac. Por outra parte, sempre a necromancia contou com ritos

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lunares nas noites de minguante principalmente, ritos que, ao dizer da fraseología ocultista, parecepodem fazer brotar densas espirais de fumaça (fruto ilusório da sugestão hipnótica, sem dúvida) doclorótico disco da Lua, como pode ver-se na obra do Henry Steel Olcott, titulada Old diary leaves,traduzida ao francês por A Vieuville, T. I, pág. 67.Tudo isto não pode menos de sentir saudades a nosso positivismo cético; mas não deixa de sermenos certo porque nossos pseudo-sábios disso riam. Assim passou com mil verdades históricas,conceituadas primeiro como patranhas de velhas e com outras mil obras colossais tidas primeiro poraberrações de cérebros doentes. É lei do progresso, sem dúvida!

descoberto o segredo, Malina, temerosa, fugiu ao céu como Sol brilhante, enquantoque o marido Lua, frio e manchado, amaldiçoando do Amor, persegue-a sempre,sem alcançá-la jamais 1.

Tantas vezes levamos já mencionada, por outra parte, a lenda de Psique eEros no curso deste capítulo, e tão íntimas são as conexões dela com a fábula daElsa e Lohengrin, que é indispensável recordá-la tal e como aparece por primeiravez no mundo ocidental nos livros IV, V e VI das Metamorfoses, obra conhecidatambém sob o estranho nome do Asno de Ouro. Seu autor, Apuleyo da Madaura(África) 2, nasceu em 114; estudou em Cartago e viajou pelo Oriente, Grécia e Itáliaaté os vinte e cinco anos. A família da mulher do Apuleyo lhe acusou de mágico;mas foi absolvido. Consta, diz Bonilla, que foi extraordinário e que traduziu aolatim o Phédon, de Platão; mas esta e outras obras suas se perderam, tendochegado os onze livros das Metamorfoses, os quatro das Floridas, o opúsculo doDaimon de Sócrates, os três livros sobre a doutrina de Platão, o Tratado do Mundoe a Apologia ante Cláudio Máximo. Os Pais da Igreja, Lactancio, Marcelino e SãoAgustín consideraram o Apuleyo, enfim, como um taumaturgo, um mágico e umdefensor do Paganismo, em nomeie do qual lhe atribuem milagres parecidos comos de Apolônio da Tyana, Jesus ou Pitágoras, e, em geral, a todos os Adeptos.Apuleyo foi, pois, um verdadeiro neoplatônico. Vejamos sua lenda, a grandesrasgos:

"Eram em uma cidade um rei e uma rainha e tinham três filhas muitoformosas; mas a mais pequena, era tal sua formosura, que não bastavam palavrashumanas para encarecê-la; tanto, que as gente acreditavam que era a própria Vênus

1 A lenda esquimó do Innok e da Maliña se disposta muito, como vemos, a um estudo comparadodela e suas similares americanas, com as correspondentes do velho mundo, como se umas e outrassoubessem, como assim é, com efeito, a existência original de um moderado conector perdido, quenão seria outro que a Atlântida.

2 Por curiosa coincidência aparece nesta população africana o nome de Amadurecida ou Matura,da grande batalha mítica em que os Tuatha do Danand venceram aos atlantes fir-bolgs (De gentedo outro mundo, pág. XXXI e 230), a mítica batalha de Amadurecida ou Padura das lendasbascas e a Amadurecida indostánica da que nos ocuparemos com extensão em outro tiro destaBiblioteca.

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que tinha descendido à Terra, por isso os templos da deusa ficaram após desertos, eo próprio Cupido ou Eros, filho desta, teve que apaixonar-se por ela. Todos oshomens, entretanto, maliciavam-se de tanta formosura, tendo-a por coisa sobre-humana e perigosa, nenhum se atrevia a desposar-se com ela. Preocupados os paisde Psique, consultaram ao Oráculo do Apolo no Delfos, e o deus lhes disse: "Porãoa esta empregada adornada de todo aparelho de pranto e de luto, para enterrá-la, nomais escarpado da montanha e a deixarão ali. Não esperem para ela um marido dalinhagem dos mortais, senão um marido feroz, venenoso e cruel. Assim o fizeramos infelizes pais, deixando-a abandonada a seu destino.

"Estando Psique toda acovardada e temerosa sobre o penhasco de seuabandono, hei aqui que de repente veio um brando cierzo, quem tomou em seuregaço e mansamente a levou até um muito ameno prado florido, exornado deárvores e regada por encantadores regatos. Em meio daquele paraíso se elevava umpalácio prodigioso, que não parecia feito por mãos de homens, mas sim das fadas,tudo de marfim, cristal, ouro, mármore e pedras finas. Mãos invisíveis a serviam alina mesa, no leito e no banheiro, entre músicas, perfume e outros cem recreios dossentidos. Chegada a noite, sentiu Psique transportada a um supremo deleite embraços de seu marido invisível, e desta maneira passou algum tempo sem alcançar aver com os olhos do corpo a seu marido, mas gozando do estranho distraçãodaquele encantado isolamento de todo o terreno.

As irmãs de Psique, cheias de curiosidade e até de inveja, conseguirampenetrar até o retiro de Psique mercê aos rogos desta ao seu marido, quem nãoaugurava senão imensos perigos de sua visita, como assim aconteceu, com efeito,porque as irmãs trataram de surrupiá-la sobre o mistério todo daquele paraíso e dosegredo ou incógnito guardado pelo marido, coisa que a nada bom, segundo elas,podia conduzir, pois o que de semelhante modo se ocultava não podia ser senãoum horrendo monstro, que acabaria por conduzi-la sua perdição. As ardilosas irmãsa aconselharam, enfim, que escondesse um abajur sob o leito para acendê-la nomomento oportuno e ver, ao fim, cara a cara ao amado de seu coração.

Ponto por ponto seguiu o malvado conselho a sem ventura Psique, e graçasao abajur acertou a ver o marido em seu celeste ser enquanto à seu lado dormia;mas embevecida na contemplação de tão varonil formosura sobre-humana, deixoucair inadvertida uma ardente gota de azeite sobre o peito do marido, quemdespertou sobressaltado. Ao ver-se assim surpreso em sua condição de imortal poruma mulher da linhagem dos mortais, embora esposa dela, o divino deus do Amorfugiu de seu lado deixando-a no desamparo e infortúnio mais horrível, por terfaltado a seu juramento de refrear sua inoportuna curiosidade até o momento emque o fruto de seus amores nascesse, para que ser pudesse assim da linhagem dosimortais, ao que seu pai pertencia.

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Desolada Psique, procurou em vão, por mares e terras, ao amado de seucoração; descendeu às regiões infernais, mas inutilmente, porque ninguém acertavaa lhe dar razão daquele, e, por último, subiu aos céus, onde Júpiter, condoído deseu infortúnio e de seus esforços titânicos para redimir-se de sua culpa, convocou aum grande banquete aos deuses do Olimpo, e nele celebrou com grande pompa osesponsais celestes dos dois amantes, de cuja união inefável nasceu aVoluptuosidade, quer dizer, a Alegria transcendente que nasce do comércio mágico,puro, dos deuses com os homens sob a égide do Amor, que a todos os seres douniverso liga em Um.

Com estes antecedentes, que se poderiam ampliar em grau supremo, aparecede um modo notório, conforme nos ensina o mestre Bonilla São Martín, o caráteroriental e ocultista da lenda do Cavaleiro do Cisne, de que está calcado o célebredrama musical de Wagner. Lohengrin, com efeito, é um Swan, louvam ou Dhyan-Choan no famoso poema do Conrado do Würzburgo, titulado precisamente DerSchuan-ritter (ou "o Cavaleiro do Cisne"), poema no que se inspirou logo para oséculo XIII o chamade Lohengrin bávaro, alma, a sua vez, da partitura wagneriana,como já havemos dito. Mas Lohengrin-Schwan é também o Kwan-Shi-Yin, Jain oujina, ou Yain da Ilha Sagrada buddhista da China, personagem que apareceflutuando, conforme ensina Blavatsky, sobre uma ave aquática ou Cisne negro(Kala-hamsa) e que verte sobre a cabeça dos mortais (espécie de batismo delouvam, Koan ou Juan, o precursor de Jesus na lenda cristã) o elixir de vida paratransformá-los em imortais dhyanis. Kwan-Shi-Yin é, pois, um equivalente doLogos ou Verbo platônico, e com o Kwan-Yin, seu contraparte feminina, é oChonubis egípcio e o Chistos-Sophia dos gnósticos afastam - drinos 1. Este Kwan-Yin ou Swan-Iao é também no panteão industânico o Avalokita-Iswara ou Padma-panichenresi, portador do sagrado Lótus, a doce promessa de vida, paz e bem-aventurança, como coroa de nossa evolução progressiva. Dito Logos platônico, ouO Filho dos planos superiores, é, nos inferiores ou manifestados, Daksha, o grandeKumara, o Sacrificado, o Progenitor espiritual do homem e o Bodhisatwa Cenresi-Van-Chuan (literalmente "o poderoso que todo o vê e o socorre"). Tal é também,segundo os industânicos, o grande protetor do mundo Asiático, ou nosso planetatodo em geral, e do Tibet em particular, como centro geográfico que é do mesmo.Diz-se também na lenda do Bodhisatwa que seu Ser celestial se manifesta em formahumana, de idade em idade, a fim de guiar em santidade aos lamba e de preservardo mal aos grandes Arats no mundo. Outra lenda semelhante, que pode ver-se nodiálogo védico entre a Krishna e Maytreya (seção VII, pág. 349 do tomo I de ADoutrina Secreta), sempre que a fé no verdadeiro ideal do homem começa aextinguir-se no mundo ameaçando sumir a aquele na condição animal, emite aqueleSer que, entregue à Ioga, reside na Kalapa entre o círculo dos Devapi, um brilhanteraio de sua luz e se encarna em um dos grandes lamba, como os Kurú e Marú,

1 H. P. Blavatsky, A Doutrina Secreta, tomo I, pág. 439 da edição espanhola.

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Motil ou Morya da Dinastia solar restauradora dos kshattryas ou verdadeirosguerreiros. No Tibet (acrescenta Blavatsky) espera-se que encarnará no curso dofuturo como o Buddha mais perfeito 1 no Tibet, ali onde seus predecessores osRishis e Manús apareceram nos começos da raça ária para não voltar jamais. Há,enfim, no panteão indostano um Avalohita-isiuara, verdadeiro Cavaleiro do Cisne,com o simbolismo dos quatro braços ou raças primeiras e outro das onze caras, quesão outros tantos símbolos das primitivas raças do Planeta e do jogo que reside emtudo ser mortal que por seu supremo poder põe em movimento todas as coisas quese acham na roda do tempo.

Respeito de outras concomitâncias mais entre o nome e a personalidade doSwan-ritter ou Lohengrin, diremos que nas tradições védicas nos ensina que,poucos séculos antes da catástrofe do Império atlante, acontecida faz uns onze milanos, Europa e América estavam já cheias de povos arianos, tais como o grego ou onahoa do México, pulverizados no seio dos mais importantes núcleos turânios ousemito-atlantes da Noruega, Escócia, Bretanha e todo o Mediterrâneo, inclusive ooeste da Espanha, de onde saíram as célebres raças mágicas dos Tuatha do Danand,gente que habitaram no Gaedhil ou Irlanda galega, e às que consagramos todo ocapítulo VIII de nosso livro De gente do outro mundo.

Estes povos que deixaram atrás de si toda sorte de documentos históricosescritos, a diferença do muito culto, mas degradado povo atlante, tinham banido,com sua tão pura religião do lar, o fogo e vos antepassados, os horríveis ritosnecromantes de imolar vítimas humanas, tal e como os espanhóis os encontramosestabelecidos no império de Moctezuma a princípios do século XVI, o qual nãoquer dizer que, por desgraça, não caíssem também de tempo em tempo emsemelhantes abominações, como o mostram certos rasgos da história grega e aprópria Lei das Doze Pranchas romana 2. Em troca, por causa de sorte maiorelevação espiritual, tanto na Grécia como entre ditos outros povos arianos, eramconhecidas nos Mistérios certas porções secretas da primeira metafísica ária,

1 Daqui as esperanças de certos teósofos que criaram a Ordem da Estrela do Oriente, espécie demessianismo judaico que espera um novo retorno de um Cristo ou Lohengrin, nunca maisjustificado que hoje, depois da agonia que a terrível guerra mundial supõe para este velho mundo.Turania, não é o nome de uma raça centro-asiática, como se cria, senão um modo que os antigospersas ou iranianos tiveram para diferenciar deles às raças atlantes agrupadas do norte de seuImpério até o Mar Glacial (Siberia). Quando falamos, por outra parte, de semito-atlantes,referimos aos proto-semitas nórdicos e bascos europeus, não aos povos muito posteriores, que emépocas já históricas achamos para o Líbano, mesclados com esses arianos puros que se chamaramaccadio-caldeos. Não podemos descender a particularizar hoje estes problemas das raças.2 "Taraka-maya - diz Blavatsky -, é o ciclo da primeira "Guerra nos ciclos". Encontram-se neleas biografias de todos os Planetas, pela história de seus Deuses e Regentes. Ushanas (Shukra ouVênus), foi o íntimo amigo da Soma e o inimigo do Brihaspati (Júpiter). Târâ ou Taraka, esposadeste último, foi roubada pela Soma e desta união nasceu Buddha (T. II, pag. 41 da ediçãoespanhola).Isto é, portanto, uma alegoria também do culto esotérico e o esotérico.

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chamadas Swana, Jana, Ianna, Dana ou Dhyana, metafísica super-humana, que opróprio Gautama Buddha reservava, séculos depois, para seus discípulosescolhidos: os ascetas ou Arat. Quanto a esta mesma palavra do Arat, deu origem,entre outras, por mera reduplicação ou transposição cabalística e de leitura secoloque de direita a esquerda, às da Tara, capital mágica do Gaedhil, cujas ruínasainda se vêem perto do Dublín; Tora ou Torah, a lei mosaica escrita, a única parteda reforma do Esdras aceita pelos samaritanos; Taro ou Tarot, o primitivo baralhoatlante das sortes sacerdotarum das que ainda se vêem rastros nos códices maiasmexicanos do Ana-huac, baralho que foi mãe da egípcia, e que, empregadaprimitivamente nas demonstrações da Teoria coordinatoria matemática, que hojediríamos, recebeu logo o necromante emprego das sortes, que deu origem ainfinitos jogos de azar em nossos dias, até chegar às degeneradas feiticeiraslançadoras de cartas 1; Rota, roda, roleta, qual a que ainda mostra seu traçadosimbólico na sala de reuniões do "Tribunal da Rota romana"; Ator ou Hotar, osacerdote supremo de mexicanos e incas; Ator-Atanor, a Noche-Madre dacosmografia egípcia; a escuridão sem limites, o primeiro elemento do abismo,palavra, enfim, que aconteceu ao léxico alquimista; Ar-ar-at 2, o monte armênio

Onde a Bíblia conta que se deteve o Arca do Noé, quer dizer, o mágicoretiro irlandês (cujo nome se atribuiu logo a uma montanha de Armênia), onde osadeptos da boa lei ou povo escondo, acharam refúgio como resultado da catástrofe;Tara-ascos ou tarascos (bascos da Tara, por outro nomeie atapascos ou ata-vascos,aborígines setentrionais do Novo Mundo, possuidores do idioma mais perfeito dequantos existem na América, até o ponto de que Morton Maury e quantos sábios seocuparam da Filologia comparada das línguas daquele continente surpreenderam asíntimas conexões que elas guardam entre si e sua derivação única do grande troncobasco ou atapasco, que é seu tipo mais genuíno; Atabasco, rio também da Américado Sul, afluente do Orinoco; Tarascos, povo aborígine do Pázcuaro mexicano que,

1 Todo um livro se poderia escrever a respeito das relações do jogo com a necromancia, e disso nosocuparemos em outros tomos desta Biblioteca.

2 “A palavra ária Ar-ar-at de dito monte armênio, lida à inversa ao modo semita, dá-nos oestranho nome de uma melancólica canção do folk-lore ibérico: o canto de "a Lha-ra-ra" que opovo de Madrid entoa ainda à noiva na noite de bodas, com uma letra hoje nada moral nemedificante, prostituição, sem dúvida, como acontece sempre, de outra letra idealista e simbólica, jáperdida, que deveu ser a maneira de uma elegia ou um hino à pureza nativa da mulher virgem.Destas adulterações ou paródias grosseiras de um lexto primitivamente elevado e nobre, temosinfinitas amostras no Folk-lore de todos os países, por aquela lei histórica de renovação que dizque "os deuses de nossos pais são nossos demônios". Assim, por exemplo, a arcaica cançãochoánica ou lohengrinesa que começa: -"Sal, serafín do Montexto durante nossa infância naExtremadura, tem já no frivolo e escéptico povo de Madrid, que é capaz de burlar-se do maissanto por mero lhe- mor ao ridículo, esta outra degeneração grosseira: - "São Serenín do Monte!...Você olhe, você olhe que tolo!", Etc., etc - Quem pode já reconhecer "alho tais capas geológicas deinventada grosseria, mil e mil jóias de nosso muito culto passado ibérico?

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segundo o historiador Molina, habitou no Mechoacán, Melchoacan ou reino dosMlechas (bárbaros na linguagem sânscrita, como já vimos) ; Monstro ou tara-vasca;metido de certas festas religiosas espanholas em representação da Besta bramadora,cavalheiresca ou do Leviatã apocalíptico, de nossas mil Maltranas ou feras corrupiasmíticas, ou, enfim, do Habitante do Umbral que no Zanoni se pinta; Taaroa ouTara-oa, o Poder Criador, segundo os indígenas do Tahití, "que fez dormir aohomem durante compridos evones", ou seja,"o sonho mental das raças", de quefalam as teogonias; Tarin, o rio principal do Tibet e também certa aldeia deAstúrias; Tar, equivale ao carma ou a Lei do Talión entre os árabes; Tara, é emcastelhano antigo e até moderno, certo palito marcador para a contabilidade; o raloou véu que cobria a viseira dos cascos dos guerreiros; a oferta que por causa deenvoltórios ou cobertas se está acostumado a fazer no peso bruto das mercadorias,e, enfim, uma cidade da Rússia asiática, ao S. E. do Tobolsk; Tarabeh ou Tarabel,deste modo uma cidade árabe e duas pequenas aldeias da Galícia e das Astúrias;Tarables, é antiga cidade da Berbería, e Tarablus, outra população, bajalato daTurquia Asiática, etc., etc.

Jana, Swana ou Jaina, é também a doutrina daquele velho deus da luta e daação, chamado Jano, o deus de duas caras, transposição andrógina de Hermesegípcio e de infinitos deuses dos panteões maia quichés e astecas, cujas esculturasainda se podem ver no México, e que aparecem reproduzidas na formosa obra deChavero o México através dos séculos. O mito greco-romano conserva ainda alembrança do desterro do Jano ou lainos a Itália por lhe haver arrojado do CéuCronos ou Saturno, quer dizer, a lembrança legendária de sua baixada à Terra comoInstrutor e Guia espete: Sal, serafín cortês!”etc - que ainda pudemos ouvir todo seuantigo ritual da Humanidade para dar a esta a primitiva religião natural jina ou jaina,a que pode dizer-se que está consagrado todo nosso chamado livro De gente dooutro mundo.

Janna ou Come é também a doutrina chino-tibetana de Dão, Chhan, Dzan,Djan Shuan, louvam Hitan ou Dhyan-Choan, características de todas as escolasesotéricas do mundo ariano, doutrina que este herdou dos mais puros eesplendorosos tempos da Atlântida antes de sua queda, e daqui o famoso e arqui-pré-histórico Livro de Dzyan ou dos Dhyanis-Budhas (Reis Divinos, Elohin ouDeuses), cujos extensos comentários constituem a tão mencionada obra deBlavatsky, A Doutrina Secreta, a doutrina danna ou jaina primitiva, cujo contidointerno não é outro, enfim, que o da D'jana, o Atalho, o Veículo, ou seja,religiãoJaina, "reforma do homem pela meditação e o conhecimento", doutrina salvadoraimensamente superior, por mais antiga ao próprio Bramanismo, a primitiva escolaHina-yana, a do estreito ou Pequeno Atalho, doutrina admirável, da que na ÁsiaCentral e na China (Dzaina?) Ficam não poucos ecos perdidos, como ficamtambém na Maçonaria Universal, onde ainda encontramos, por exemplo, asobrevivência da simbólica cruz jaina ou swástica (do Swan, o Hamsa, o Cisne, oAve-fénix, a Pomba ou Santo Espírito Paráclito, alma do Templo do Graal, Nousou Espírito que não é mais que o Ego Superior, ou dhyani, do Homem) e algumasoutras, sobretudo na Irlanda, por onde poder encontrar os rastros dos 23 profetas

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djinas ou conquistadores, que foram enviados em todas as direções do mundo pelofundador do Jainismo; o Rishi-baha-deva, à frente de outros tantos povos arianosemigrantes na Europa turânia ou proto-semita, e cujos nomes de Breus, Elathan ouEli, Nrada, Dagda, Ogma, etc., ainda se conservam no velho in-fólio irlandêschamado Book of Bally-mote, e em seus congêneres dos museus do Dublín eBritânico, tais como o Book of Lecan, o Book of Invasion, os Tuatha do DannandColony, Book of Leinster, etc., etc.

Swane (o Cisne), depois de sua chegada como tradição oriental dos Dhyan-Chohan a Europa na remota época dos bardos (a cuja frente deveu achar o grandeOswan, nosso moderno Ossian das runas e poemas nórdicos), ficou como símboloaugusto de tudo os amparos celestes nos momentos mais angustiantes da vida, edaqui o argumento de Lohengrin wagneriano, último de uma curiosa série delesrelativos às distintas épocas históricas, com arrumo às leis de adaptação, assimilaçãoe modificação dos mitos através de idades e povos.

Uma tradição de Brabante, consignada pelo J. O Maire em seu Tiers livre dêIllustrations do France lhe oriente et occidentale (Paris, 1548) - diz Bonilla - afirmaque o Cavaleiro do Cisne foi Sálvio ou Silvio Brabón, lugar-tenente de Julho César,quem, passeando-se certo dia pelas bordas do Reno, vê uma casquinha atirada porum cisne. Sobe o guerreiro, e é levado magicamente até o castelo da rainhaGermânia, por apelido Swane ou cisne, que tinha sido roubada pelo rei Inac 1. Alireconcilia a Germânia com seu irmão Julho César, e em prêmio recebe a mão dafilha do rei. Esta lenda, símbolo dos dois mundos romano e germano reconciliadosmediante o ocultismo tradicional informador de suas respectivas crenças religiosas,tem grandes pontos de contato, por um lado com a espanhola do Juanillo o Urso,da que falaremos conosco ocupar da raça dos Ursinos ou Welsungos, em AWalkyria, e por outro, com a lenda cavalheiresca do Conde do Partinoplés ou doParthénope, modificação francesa da de Psique, e que daremos ao nos ocupar deTristão.

Outro dos elementos ocultistas mais preciosos do tema que nos ocupa é aconexão notória entre o nome do Swan-ritter e o de Ioan ou Ioagnes que a infantilsimplicidade dos primeiros evangelistas atribuiu também ao precursor de Jesus: aoJuan, o Batista 2 e até com uma possível decomposição do nome o-agnes, quepoderia nos levar a grande Swan dos primitivos arianos: Agnes, o Cordeiro ou Ra,

1 Aqui temos já outro elo conector das lendas de Lohengrin com as de Tristão e Isolda, que brevevamos investigar.2 Não esqueçamos que, como vimos anteriormente, o Kwan-Shi-Yin chino-tibelano, tambémbatiza aos mortais lhes orvalhando com o Elixir de Vida.

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com o que também se representa em certas pinturas medievais ao filho do Isa-bel 1

e do Sadac ou Zacarías dos Evangelhos cristãos.Toda a formosa obra de Alexandre Bertrand A Religion dê Galois - Os

druides et o druidisme - pode dizer-se que está consagrada a enumerar as infinitassobrevivências pagãs que na Galia como em tantos outros países perduraram aténossos dias, apesar de vinte séculos de um persecutório Cristianismo, enfurecendo-se sempre contra tudo que possa recordar os gloriosos rastros da grande culturapré-histórica dos atlantes e dos ário-atlantes.

Não vamos repetir aqui, uma por uma, semelhantes sobrevivênciaspulverizadas por toda a Europa, ou, para melhor dizer, por todo mundo. Quanto aEspanha se refere, o culto pagão de louvam, Swan, Choan ou Juan (São João), estátão enraizado ainda em nossos povos, sobre todos os mais retirados na montanha,que suas fogueiras, suas festas e danças druídicas ou celtíberas; seus banquetes; suascanções e simbolismos, variáveis na forma até o infinito, mas no fundo sempre uns,perduram apesar das seculares proibições da Igreja, sob uma máscara, mais oumenos hipócrita de Cristianismo. Conheço povos na cordilheira Carpetana, amenos de cem quilômetros da corte, nos que a crueldade do inverno faz emigraraos homens para o plano em demanda de trabalho, e leva às jovens solteiras àscapitais como criadas de serviço.

Por felizes que uns e outras possam encontrar-se longe de seu povo nataldurante os rigores da má estação, é coisa sabida que, como se obedecessem a umsecreto conjuro ou mais com essa cega sugestão característica de toda crençareligiosa bem arraigada por leis da herança psicológica, não há forças humanascapazes de contê-los assim chegam os dias anteriores ao do santo precursor, nemevitar o que, sem outra entrevista prévia, convirjam à sua pequena aldeia dos quatropontos cardeais, para celebrar, inconscientes de quanto realizam, os pagãos ritostradicionais de sua infância montanhesa. Diria que com isso colhem resignação aomenos para a luta do novo ano que então lhes começa. Para achar algo semelhantea dita sugestão irresistível, nostalgia que os gaélicos têm qualificada com o pitoresconome de morrinha, terá que recordar o que acontece na Suíça e demais regiõesalpinas com a famosa ária montanhesa do rendz dê vaches, melodia primitiva, qualnossas muñeiras e zortzicos, que teve que proibir-se fosse cantada no exército francês,porque muitos montanheses ao ouvi-la não podiam evitar que a nostalgia de suasevocações lhes arrastasse à deserção e até o suicídio.

Grande importância entranha, pois, o Lohengrin, em harmonia com osprecedentes ocultistas que conforme vimos tem na doutrina tradicional, dosMistérios antigos. Como se isto não fora bastante, vamos encontrar elementos atémais preciosos no seguinte capítulo, e a ver reunidos estes e outros elementos

1 Já vimos também as conexões entre o Isa-bel e Elsa, derivadas todas do culto de Ísis, cantado emtodos os lais gaélicos que veremos no Tristão. O nome da Elsa, por outra parte, é muito familiarna Iberia, como o provam os eliceos da Fiz celtibérica; os Campos Elíseos que, como o Jardim dasHespérides, localizavam-se na Tartesia e as Ilhas Afortunadas ou Canarias.

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arcaicos nessa ciclópica construção mítico-musical que se chama O anel doNibelungo, onde se compendiam todos os ensinamentos sublimes dos Eddasescandinavos, poema da mesma marca, mas imensamente mais científico, religiosoe humano que a própria Bíblia mosaica, que os hebreus tiraram dos ensinamentosesquenta e babilônicas, as desnaturalizando com seu grosseiro sentido fálico esensualista.

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CAPÍTULO IXTRISTÃO E ISOLDA

Um primitivo poema dos bardos - Os Tristões míticos - Precedentes simbólicosdesta e de outras obras de Wagner - O argumento de Tristão. - Bernardino e aSabeliña gaélicos - Os lais Isíacos - Os nomes do Amhergin, Rif e Abate, como elospré-históricos entre a Europa, África e América - Os mil nomes ocidentais de Ísis -Danças religiosas - O mítico tributo das cem donzelas - Reminiscências da grandeAtlântida - A lenda de Sir Morold - Os sacrifícios humanos na História - Ossacrifícios humanos em nossos dias - Tristão, Natris e Tantris - O rei Mark e oDestino - Os Nagas, Nebos ou Dragões da Sabedoria - Kaneloc e a Besta Bramadora –Arthus-Suthra - O Deus Desconhecido e sem Nome, dos tartésios - Necromancia -Ísis, Branca Flor e Psique - O Desejo e a Morte - O Tristão de Wagner e A DoutrinaSecreta - Tristãos mediterrâneos - A obra de Cervantes: Trabalhos do Perseu eSigismunda.

Como diz Luís Paris no prólogo da tradução castelhana do dramawagneriano, Tristão e Isolda é uma das tradições poéticas mais pulverizadas pelaEuropa durante a Idade Média. Tal lenda, inspiradora de anônimos romances naInglaterra, Espanha, França, Dinamarca, Noruega e até a Itália, como lenda ário-atlante que é, abrange todo o litoral atlântico europeu, e Richard Wagner não fezsenão reconstituir com seu maravilhoso gênio poético-musical os ensinamentos dospoemas arcaicos, fundamentais de tão profunda lenda, pondo à frente de todosoutros por seu idealismo e seu significado filosófico como diz Said-Armesto eensina também Bonilla São Martín, o Tristão anglo normando de Tomás da Bretanha(século XII) e, possivelmente, a reprodução dos poemas primitivos dos bardos daIslândia ao par que a “conversação” ou novela francesa feita no século XIII comênfase ao poema em verso do bardo Beroul, poema em grande parte perdido ecujos restos foram traduzidos ao alemão por Eihart de Olberg; além de outropoema de Tristão, atribuído à Cretien de Troyes, nome que, como quase todos osdos autores deste gênero de literatura ocultista, transcendem a cabala e apseudônimo. Por sua parte, a “conversação” francesa do Beroul está exornadatambém com mil ornamentos e episódios próprios já do ciclo “cavaleiresco”Bretão, entre eles o de Lancelot ou Lanzarote do Lago e a demanda do Santo Graal, todosapoiados na mais antiga compilação do poema de Lucas de Gast, feita em 1170, epouco conhecida.

Godofredo de Estrasburgo traduziu do alemão o Tristão de Tomás daBretanha, e dita tradução foi completada por Ulrico de Turhein (1240) e Enrique deFreiberg (1300) e também por Sir Tristem de 1330, descoberta pelo Walter Scott, onovelista, em Edimburgo, a arcaica capital de Escócia. Wagner, como nos ensinamos citados senhores, pôde inspirar-se para a partitura de seu drama imortal, tantonas indicadas obras (principalmente na do Godofredo de Estrasburgo), como natragédia que sobre o citado tema e sobre os cânticos dos mester-singer ou Mestres

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cantores compôs Hans-Sachs, o poeta sapateiro de Nuremberg, apoiado no mitoescandinavo de Siegfried. Também constituíram preciosos elementos de inspiraçãopara Wagner os conteúdos na fábula helênica de Teseu, todo isso mais ou menosrefletido, por outra parte, nas trovas do rei sábio Dom Alfonso X de Castela; nasdo tenro Dom Dionis do Portugal; no Tristão castelhano que o Vaticano entesouraem sua biblioteca e no outro Tristão da Biblioteca Nacional, ali descoberto pelomestre Bonilla São Martín; nas lendas aragonesas de Os Amantes de Teruel e nahistórica de Dom Pedro do Portugal e Dona Inês do Castro, de tal modo que asIsoldas e Tristones, diz Said-Armesto, abundam até cansar no onomástico galego eportuguês do século XV, e neles se percebem, até a publicação do Quixote, asúltimas palpitações da literatura cavalheiresca e de todo o movimento provençal,movimento que, como perversão erótico-literária do sublime e puríssimosimbolismo primitivo de Tristão e Isolda, foi afogado em sangue, segundosucintamente nos refere D. Víctor Balaguer em sua bela obra relativa aostrovadores provençais e catalães. Tudo isto sem contar os cavaleiros músico-poetascastelhanos, gascões, portugueses, etc., que pulularam naquelas admiráveis Cortesdos respectivos reinos de nossa Península, Corte que, quanto ao amparo às belasartes, só podem comparar-se com aquelas outras dos príncipes do centro daEuropa, como o Arquiduque Rodolfo, Luís II da Baviera, etc., a cuja generosidadee gosto estético tanto deveram Beethoven e Wagner no século passado 1.

Demos uma idéia do argumento do drama wagneriano, tomando-o,resumido, da meritíssima tradução castelhana de Luís Paris, que, no dizer deentendidos, não desmerece por um ápice o próprio original.

Sobre a coberta de um navio que navega a toda vela da verde Erín ouHibernia (Irlanda proto-histórica) em demanda das abruptas costas de Cornualles (aponta da Grã-Bretanha, que avança para o Atlântico), a rainha Isolda, princesa da

1 Quanto ao laço que une Tristão ao Parsifal, diz o próprio Wagner em sua autobiografia:"Voltando um dia de passeio, risquei o esquema dos três atos, nos quais pensava encerrar a açãodo argumento inteiro de Tristão. No último ato introduzi um episódio que eliminei mais tarde: eraa visita de Parsifal, errante em demanda do Graal, ao Tristão moribundo em seu leito. Tristão,ferido de morte e não acabando de expirar, identificava-se em meu espírito com o personagem deAmfortas da novela do Graal."Devemos estudar, acrescenta H. P. Blavatsky, os símbolos e emblemas de todos os povos à luz dosdois arianos, posto que todo o simbolismo das antigas iniciações chegou ao Ocidente envolto nosraios do Sol oriental. A ignorância corrompeu no Ocidente o uso de tais emblemas até o ponto deconvertê-los em instrumentos de martírio e tortura, como meios de propagar os cultos religiososvulgares. Quando a gente pensa nos horrores dimanantes da adoração do Moloch, Baal e Dagón;nos dilúvios de sangue que alagaram a cruz do Constantino a excitação da Igreja secular... ,Quando pensa um em tudo isto e em que a causa de tais enganos foi a ignorância do verdadeirosignificado do Moloch, Baal, Dagón, a Cruz e o Tephillin, que reconhecem comum origem, e são,em suma, aplicação das matemáticas puras e naturais, vê-se um movido a amaldiçoar aignorância; a desconfiar das chamadas instruções religiosas e a desejar com ânsia a volta daquelesdias nos que o mundo inteiro tinha um só idioma e um conhecimento sozinho...

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Irlanda, aparece recostada sob o pavilhão central, formado por ricas tapeçarias. Suafiel serva Brangania contempla a seu lado o grande mar. A voz de um marinheirocanta do alto de um mastro: "Filha de Erín, aonde vai?! Filha de Erín, meninaselvagem e gentil, chora, chora de amor!" Isolda acordada de seu desmaiosobressaltada e tomada do maior desespero ao dar-se conta de seu triste destinoque a conduz a ser a esposa do odiado rei Mark de Cornualles, necromante inimigode sua raça, e entoa uma dilaceradora elegia, recordando nela as perdidas glóriasque à sua Pátria deu no passado, a arte mágica de sua mãe.

Para que a brisa marinha serene sua senhora, Brangania abre as tapeçarias dofundo descobrindo todo o casco de navio, o mar e o horizonte. Sobre a coberta,alguns marinheiros reparam o cordame; mais ao fundo, junto à popa, dormitam oscavaleiros e seus escudeiros. Tristão, cavaleiro bretão, sobrinho do rei Mark eencarregado por este da custódia da futura rainha, aparece recostado sobre aamurada, cruzado de braços, pensativo e contemplando o mar, enquanto que,estendido a seus pés, permanece seu escudeiro Kurwenal. O marinheiro-vigía voltaa entoar da gávea seu lamento dolorido.

Isolda, cujo olhar descobriu imediatamente ao odiado Tristão, cessa em seutema musical de suprema angústia, trocando-o pelo da morte, que evoca sinistrasobre a cabeça do cavaleiro, a quem faz chamar ante sua presença. A orquestradesenha então o elogio da fama de Tristão, "herói sem par, maravilha dos reinos easilo da glória" na opinião de todos, mas o criminoso maior aos olhos de Isolda; omau cavaleiro, que esqueceu seus deveres, e que, depois de lhe dever a esta a vida(quando foi ferido na luta com seu prometido sir Morold, o mais preclaro dosantigos cavaleiros da Irlanda), mostra-se indiferente ao possível amor da princesaque lhe tinha salvado, em lugar de correspondê-la, e voltava, rodeado de pompa,em um navio magnífico, para levá-la prisioneira como prometida a seu tio, o reiMark.

Tristão se nega a comparecer ante sua rainha Isolda, fiel a seus deveres denão denegrir sua honra. Enquanto isso o escudeiro Kurwenal canta agressivo, odesastre de sir Morold: "Sir Morold embarcou para cobrar o tributo de Cornualles1; E sobre as águas desertas há uma ilha, aonde jaz sepultado seu cadáver, emborasua cabeça esteja pendurada em terras da Irlanda. Assim pagou nosso Tristão osdetestáveis tributos de nossa pátria!"

Os marinheiros repetem depois em coro a canção de Morold vencido emorto por Tristão.

Isolda cai no paroxismo do desespero, e entre os rugidos da orquestra, recitatoda a história da façanha de Tristão, quando chamando-se Tantris, chegou àIrlanda, pobre e agonizante, em um bote destroçado. Isolda reconheceu nele omatador de Morold, seu prometido, e ia descarregar sobre sua cabeça o golpe fatal,

1 Este é o muito famoso tributo que depois se chamou das cem donzelas entre os astures e gaélicosespanhóis e ao que tantas referências se fazem em O Tesouro dos Lagos de Somiedo, primeirotomo desta Biblioteca.

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quando, movida à piedade por sua miséria, curou-lhe solícita mediante a artemágica herdada de sua mãe, sem poder suspeitar o sarcasmo do Destino, que acondenava a ver-se agora prisioneira de seu próprio salvador, quem, revelando omágico segredo que Isolda guardava oculto, assim a entregava, indiferente eingrato, a seu próprio senhor, o outrora tributário da coroa da Irlanda: o rei Markde Cornualles, finalmente.

A fiel Brangania trata de consolar e de aquietar sua soberana, cujo desesperolhe arrasta à loucura; mas ante o terminante mandato de Isolda, acaba por trazerpara esta o misterioso cofre de ouro cinzelado que contém os poderosos filtrosmágicos, com os quais Isolda trata de preparar o filtro de morte para ela e paraTristão, sob o falso nome de filtro da Reconciliação. Brangania, espantada, permuta osfrascos, e, com o nome de filtro da Salvação, entrega, incauta, à sua senhora, o maisterrível e decisivo filtro de amor.

Chega, finalmente, Tristão à presença de Isolda, somente pelo respeito àobediência que, como à prometida de seu rei, já lhe deve, e Isolda para lhe perdoar,convida-lhe a que beba com ela o filtro da Reconciliação: O filtro da Morte, único capazde reconciliar os homens em seus tristes luta de feras!... Tristão, ante as justasrepreensões de Isolda, entrega-lhe sua própria espada e lhe apresenta o peito paraque se faça por si mesmo a justiça. Isolda se nega a tal ação, e depois de tê-lo feitobeber a taça do temível filtro de morte, ela também bebe. Ambos os rivais,tomados de intensa emoção, contemplam-se imóveis, fixando um sobre o outro,seus olhares, cuja expressão passa em um instante do menosprezo da morte aomais intenso fogo do amor. Comovidos nas fibras mais íntimas de suas almas,levam suas mãos às faces; tremem, oprimem-se convulsivos os corações; seus olhosse buscam de novo, depois se turvam, acabando por contemplar-se dominados porcrescente paixão - Tristão! - Isolda! - Clamam enlouquecidos de amor, e caem, aofim um nos braços do outro, enquanto que o vigia anuncia terra à vista, e aorquestra passa pela gama infinita desta paixão sobre-humana, que arrancando doinferno do ódio, leva-lhes rápida ao céu do Amor...

O navio toca a terra: cavaleiros, escudeiros e marinheiros invadem a cobertacantando alegremente. Brangania, aterrada, trata em vão de despertar a ambosamantes de seu muito perigoso sonho amoroso, rodeia a diadema real ao Isolda ejoga sobre seus ombros o manto de arminho, entre o som dos clarins que seaproximam anunciando a chegada do monarca com seu séqüito... Cai o pano defundo.

No ato segundo aparecem os jardins do palácio do rei Mark, em uma noitede estio clara e esplêndida. Sobre a poterna aberta do castelo arde uma tochasimbólica. Brangania escuta da escadaria o eco das trompas de caça que se afastam:são o rei e os seus quem, por conselho de seu ministro Melot, cavaleiro bretão, vãorealizar uma caçada noturna. Isolda, agitadíssima, aproxima-se de Brangania,ansiosa de que chegue o momento de sua entrevista amorosa com Tristão entre asprotetoras sombras do jardim. A solicitude de Brangania que vela, quer que sempreestejam soando as trompas, para apartar sua proprietária do bordo do precipício; a

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cega paixão de Isolda, em troca, só ouve a brisa, o regato e a ave noturna que lhefalam de amor e obstinação com Brangania para que dê o sinal do encontroapagando a tocha que lhes ilumina..., a vacilante tocha da razão; a que contém comsuas luzes a completa imersão da amada nos sacros mistérios de Minna, aspavorosas trevas de um Amor que é da Morte o irmão gêmeo!... Isolda, tomada deimpaciência, empunha com ambas as mãos a tocha e a apaga contra o chão.Brangania, consternada, sobe à torre para vigiar, enquanto que Tristão entraimpetuoso ao perceber o sinal que Isolda lhe faz com seu véu. Os dois amantes seabraçam e entoam em dueto o canto mais sublime que a calada majestade da Noite,a rival do Dia, pôde jamais imaginar, já que a Noite simboliza tanto a vulgar infra-obscuridade da ignorância quanto à super-obscuridade do silêncio e o segredo augustodos sábios (os Yaksha e Rajkshas do Mahabharata).

No auge desta cena maravilhosa, digna por si só dos excelsos mistériosdionisíacos dos gregos, a voz de Brangania dá o sinal de alarme: Kurwenal grita aTristão que fique a salvo. Atrás dele chegam atropeladamente Mark, Melot e oscavaleiros, surpreendendo os amantes. Tristão oculta Isolda com seu manto. Aalvorada desenha seu primeiro sorriso nos céus. Mark repreende Tristão por suatraição, e este eleva até o Mark seu olhar, impregnado de piedoso respeito - Oh reimeu - diz -, jamais poderei te revelar meu segredo! - E voltando-se para Isolda,acrescenta: - Tristão partirá hoje mesmo: o mágico império da noite; o santo asilode cujo seio eu surgi será sua morada, Isolda, se aceitar a oferta de seu Tristão. Alite espero! - Melot, neste instante, atravessa-lhe com sua espada, e Tristão se deixacair ferido nos braços de Kurwenal.

No último ato da tragédia aparece sobre penhascos que dominam o mar ovetusto castelo de Kareol, rodeado de encantadores jardins. Tristão, estendido àsombra de idosa tília, dorme. Kurwenal espia sua letargia com inquietação dolorosa.Lânguida e melancólica ouve-se na flauta de um pastor uma melodia primitiva. Opastor aparece sobre o parapeito contemplando o grupo enfermo. Durante oprelúdio, a orquestra desenha os motivos entrecruzados da decadência, a tristeza, omar deserto e o amor ausente. Kurwenal pergunta ao pastor-vigía se viu aproximar-se alguma nave - Deserto está o mar - lhe responde este -; por isso foi triste minhasonata.

Tristão parece voltar a si aos últimos ecos da velha melodia; reconheceKurwenal e identifica no velho Kareol o castelo solarengo de seus pais, e na tocatado pastor, a mágica melodia de sua alma nativa. Um barco - de Caronte, semdúvida - lhe tinha trazido ali do longínquo mundo do sono mortal. Sua primeirainvocação é para sua amada Isolda, a quem espera, e que ainda permanece no impériodo Sol. De novo, como antes, volta a amaldiçoar a luz do dia a inimiga do mistérionoturno, luz que lhe separa das ultraluminosas trevas de seu amor imortal. Esteslamentos de Tristão são prólogo digno da dilaceradora página da morte de Isolda,que vem depois.

Finalmente, o navio que conduz a deusa se aproxima a toda vela; em seu

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mastro ondeia o pavilhão da alegria luminosa, mais luminosa que a própria luz. Tristãobendiz a chegada triunfante daquela que novamente há de cicatrizar suas feridas,enquanto a tocha de luz se extingue. Isolda se atira em seus braços, desabando,moribunda, exalando a queixa suprema de viver, que a orquestra toda comenta entrelamentos. Kurwenal presencia a aquela cena que tem menos de catástrofe que dedivina apoteose do Amor Transcendente. Inesperadamente se escuta o ranger dearmas do rei Mark e os seus que se aproximam no navio anunciado pelo pastor-vigía. O rei, acompanhado por Melot e por Brangania, aparece. Kurwenal venha àmorte de seu senhor, atravessando Melot com sua espada, que gravemente ferido,por sua vez, retrocede vacilante, morrendo ao lado de Tristão. Brangania levantaIsolda em seus braços, vê que ainda respira. Isolda olhe ao seu redor, semcompreender; fixa, por fim, sua vista em Tristão, e da mesma forma que Beethovenem sua Nona Sinfonia, prorrompe gloriosa em um canto triunfal de amor infinito aVoluptuosidade Suprema, a uma Alegria inefável e sem limites, "nos inundando,nos abismando, nos perdendo no imenso mar da Delícia, a Harmonia, o Perfume,o Delíquio transcendente e nirvânico, até que ela nos confunda como gota de água,nos alagando inconscientes no Oceano sem limites da sagrada Anima-mundi: que éa Alma Universal!” 1.

1 Até aqui o argumento da obra. Em relação à parte musical de quão mesma não é de nossaincumbência- nada diremos, porque ante sua divina sublimidade de dor e de esperança o maior denossos elogios tem que ser o do silêncio."A mesma simplicidade do argumento de Tristão e Isolda - diz Bonilla São Martín - contribuicom efeito intensamente dramático e arrebatador da música. Não é possível conceber, na esfera dodrama lírico, nada mais acabado e perfeito, porque tampouco é possível imaginar uma lenda maismusical, nem mais humana. A essência da vida é o amor, porque este constitui sua causa e suarazão de ser; mas a música, alma do mundo, é substancialmente isso mesmo: amor; e assim, umalenda em que o amor chegue a sua manifestação passional mais intensa, tem que ser pornecessidade uma lenda eminentemente musical. Berlioz dizia que o prelúdio de Tristão era umaespécie de "gemido cromático", e talvez, com efeito, posto que nos faz entrar no seio do sofrimentoamoroso, do Amor e da Morte, inseparavelmente unidos, em conceito e em realidade desde o começoaté o fim da partitura, iniciada pelo solene e profundo tema do Desejo... A progressão lenta econtinuada do Amor e da Dor na lenda; a preferência dada por Wagner ao gênero cromático naharmonia e na melodia; a ausência de recitados; a paixão sobre-humana que ali se retrata, fazemde Tristão a obra de arte mais avassaladora e lancinante que a história da música oferece. Não setrata já do conto semibárbaro dos histriões medievais, nem do dramático exemplo do Thomas, nemda completa tragédia amorosa do Sapateiro do NUREMBERG; é a Arte Um e Supremo,penetrante e atormentador, que expressa sua própria e mais completa essência. Isolda,contemplando morto a seu amado, sente apagar-se nela todas as lembranças, todas as imagens dascoisas; percebe em lorno suas ondas de vapores deliciosos, que a penetram e arrebatam, e entrandono reino da eterna noite, exclama com suavidade infinita que põe término às angústias de suaexistência: "Nas grandes cheire do mar de delícias, na sonora harmonia de ondas de perfumes, nofôlego infinito da alma universal, perder-se..., Abismar-se..., Inconsciente...: Supremodeleite!”Salvo Parsifal - diz com razão Kufferath-, não conheço outra obra que, depois de nos

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haver feito experimentar as emoções passionais mais violentas, deixe detrás de si uma tão alta eprofunda impressão de serenidade; nem que melhor dê a sensação aguda das tristezas do destinohumano, cujos gozos e dores resolvem todos em um nada da Morte."

A obra inteira do drama de Tristão se condensa poderosamente nesse prelúdio incomparável, esseprelúdio admiravelmente construído sobre uma frase ascendente em semitons, tocada de infinitaternura, escreve Adolfo Julüen, e Malherbe e Soubies acrescentam: "O prelúdio de Tristão e Isoldaé o epígrafe exato, quase obrigado, da obra. A primeira frase de contornos tortuosos, aquelainquieta harmonia que se afirma do começo por um acorde de 2ª, 4ª e 6ª, aumentadas de estranharesolução; aquele emprego sistemático de desenhos cromáticos ascendentes; aquela chamadamisteriosa, interrogante dos compassos números 15 e 16; aquelas cadências finais que fogem semcessar; aquele crescendo formidável, aniquilado subitamente por uma espécie de desmoronamento detodo o edifício instrumental; tudo isto tem uma significação muito precisa, muito curiosa se, serecordar o assunto do drama, no qual impera a fatalidade, e cujos heróis, lutando em vão contra oDestino, consomem-se perseguindo um quimérico fim: seu aprazível e fundo amor".

Bonilla São Martín nos diz, enfim, que a referência tristânica mais antiga que conhecemos naEspanha é a poesia do trovador Guiraldo de Cabrera, escrita por volta de 1170, onde critica aohistrião Cabra, porque não sabe terminar com a cadência usada pelos músicos bretões, nem conhecenada:

"Nem do velam Nem de Tristão, C'amava E cent a lairon."

Quanto à Castela, a referência mais antiga, diz, é a do Livro do Bom Amor (1343), do imortalArcipreste da Hita:

"CA nunca foi tão leal Branca-flor a Flores,nem é agora Tristão com todos seus amores."

Consignemos acima de tudo que esta sublime paixão transcendente dos doisamantes da obra wagneriana que recorda a dos célebres Amantes do Teruel, tem,entre outros cem, sua correspondente equivalência no seguinte romance galaico quenos transcreve Said Armesto:

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Romance de Bernaldino e Sabeliña 1

—"Polo mundo me vou mare, son moy malos d'olvidar"—polo mundo a caminar, Colléronse polo brazoen busca de Bernaldino puxéronse a pasear,que nono podo atopar"— Logo que os viu a Reiña,E foise de terra en terra, logo os mandara matar.e do lugar en lugar; A ela enterran-na'no coro;Topou unha lavandeira a él enterran-no'no altar;lavando'nun arenal: De ela nace una oliva,—"De Bernaldino, señora, e de él un lindo rosal;¿qué novas me podes dar?"— Era tanto o que crecían—Bernaldino e da Reiña qu'aos ceos foron chegar;o paxeciño galán; Cando os nortes sopran mainospo-lo día, pola noite, os dous se queren falar,'no xardín está a cantar."— cando os nortes sopran reciosAo cabo de sete annos os dous se queren bicar.a altos pazos foi chegar. Logo que os viu la Reiña,—"¿Caballero d'armas blancas logo os mandara cortar;por aquí o viu pasar?— De ela nace unha fonte,—"Caballero d'armas blancas e de él un río caudal;'no meu monte vai cazar, Polas veigas van correndo,e non ven hoxe'na cea, polas veigas sin parar;nen ven mañá'no xantar"— cando van desapartados"—Pois que veña, que non veña van depresa a rebuldar;aquí hei-no d'aguardar"— desque van os dous xuntiñosAo decir estas palabras van mainiños a mainar.Bernaldino a porta está. A fonte tiña un letrero—"¿Quién te trouxo aquí, Sabela, que decía este cantar:quién te trouxo a este lugar?"— "Quen padeza mal d'amores—"O teus amores, Bernaldo, aquí véñase a lavar."por aquí me fan andar"— A Reiña los padecía—"Cando eu t'amaba a ti, e tamen se foi lavar;ti non me quixeche amar, Cando a Reiña chegouagora son da Reiña comenza a fonte a falar:e non-a podo deixar; —"Cando era nena en cabelosse queres volver pr'a terra ti me mandache matar;diñeiros n'han de faltar, cando era unha verde olivaeu che daréi oure e prata ti me mandache cortar,canto pouderas levar"— agora son fonte santa—"Que m'o deas, non m'o deas, e a min ves pra te lavar,de ti nin m'hei d'apartar, para todos darei agoaque os teus amores, Bernaldo, e pa ti hei de secar."—

1 Diminutivo familiar da Isabel.

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Sobre todos estes temas tristânicos do Romanceiro galaico-português sefundamentam as passagens relativas aos Cavaleiros da Madressilva lusitana (Jai duchévrefeuille, de Maria da França) e o simbolismo das açucenas (Ousenda, Ousea,Ausenda, Euxendra, Urselia, etc, etc) a que está consagrada por inteiro a seção VIIIdo tomo I de A Doutrina Secreta, de Blavatsky, pois é deste símbolo da pureza um detantos plágios que o cristianismo tem feito ao budhismo e ao bramanismo, onde osimbolismo do Lótus ou lírio da água e do Senhor do Lótus (Logos, Padma-Pani,Avalokita-iswara, etc) mostra-se com todo o imenso alcance filosófico universalque tem realmente em si, e que aquela religião não soube conservar.

Para a devida filiação do mito wagneriano de Tristão e Isolda, diremos agoraque, além dos cantos ossiânicos dos bardos que demos ao princípio deste capítulo,seguindo os ensinamentos de nosso amigo Said-Armesto, há outra série dedocumentos muito importantes e são os Códices ógmicos ou de Gaedhil aos quaisfizemos algumas referências a propósito de Lohengrin, ou seja, do Cavaleiro do Cisne.

Com efeito, entre os curiosos manuscritos da Academia Real da Irlanda foiachado, em meados do século XIX, um in-fólio de 600 páginas, compilado porGilla-Isa-Mor-Mac-Fir-Bis, nome que para nós é um notável anagrama que, enquantonada em contrário resulte, atrever-nos-íamos a decompor deste modo: Silla ou Lais(os cantos ossiânicos ou ógmicos dos quais vamos nos ocupar);Isa ou Ísis (a famosa deidade feminina egípcia, cujo culto é na Europa maisfreqüente do que se crie, bem seja pelas influências greco-egipcias entre os povosnórdicos, bem pelas mais antigas dos atlantes nos que o culto isíaco do Egito temsua indubitável filiação). Rom, por sua vez, poderia ser o radical, mais que de Romado Lácio (cujo verdadeiro nome iniciático era tido em grande secreto, castigando-sesua revelação até com a morte), da Romaka-pura, espécie da Hastina-pura iniciáticado Ocidente atlante. Cam é a indiscutível raiz camita ou cainita libioibera, cujo centroafricano no Atlas nos é conhecido pela maior abundância na região dos dólmens,menhires, etc, sobre cujo emprego como tumbas de antepassados ainda se guardalembrança concreta em toda a Mauritânia e Argélia, coisa que não acontece naGália nem em Bretanha. Fir-bis ou Bis-Fir, mais que a expressão equivalente abis-Rif ou segundo Rif, é uma clara menção do povo atlante Fir-bolg ou "Irmãos dasTrevas", gente que derivou seu nome das palavras gaedhélicas "abeto, abedul ou aveleiramágica", e "escuridão, névoa ou trevas", gente contra as quais lutou e que venceu omágico povo gaedhélico dos Tuatha do Danand, dos quais tanto nos ocupamos nocapítulo VIII de nosso livro Das gentes do outro mundo 1.

1 Não nos ocultam as violentas censuras a que pode fazer-se credora Ante os olhos de nossaenfatuada ciência da linguagem semelhante maneira de decompor um nome, tido por do séculoXV, e que é, entretanto, um perfeito símbolo de algum personagem legendário como o de quasetodos os bardos e ocultistas. Nós, como dito no prólogo nos ativemos, consignando, conformecumpre o nosso dever, que Gila ou Xel-hua foi o construtor da pirâmide do Cholollán e destruidordos gigantes, e Gila ou Xila é também o grande rio nahoa de Sonora, afluente do Colorado ecélebre por suas ruínas nas que se vêem insculturas em rochas, gêmeas das irlandesas do Gaedhil,

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como o Amergin que veremos em seguida é por sua vez o archidruida dos antigos irlandeses, filho,segundo o tomo I, pág- 108, da moderna Enciclopédia Ilustrada, da Espasa, de um célebrepríncipe chamado Gallara, Mileagh-Espain (ou Balam), estabelecido no norte da Espanha, que,à frente de sua tribo, atravessou o Mar e foi a fundar na Hibernia o que mais tarde chegou a ser asuprema monarquia da Irlanda. Em dito país se imortalizou dito caudilho por sua bravura naconquista, e em sua velhice abandonou o trono aos seus irmãos Heber e Heremur, nomes demarcado sabor hebreu, reservando o cargo de druida supremo. Amharic, variante fonética doAmergin, é o nome deste modo dos mais antigos livros japoneses, segundo Taylor (The Alphabet,página 35), com 231 tipos de letras diferentes, nos quais se encerram os dois famosos silabáriosderivados do chinês, com os títulos de Hira-kana e Kata-kana. Amerghi foi um nome ocultista deMichelangelo, e Atneric Américo ou América é o nome arcaico e atual de uma baía do Mar doJapão, ao sul da Manchúria; do grupo das ilhas Fanning ou Esporades do Norte da Polinesia; daregião montanhosa do Nicarágua na província de Chontales, com cumes de 3.000 metros dealtura, dominando ambos os Oceanos, região que foi habitada pelos índios Ramas (EnciclopédiaEspasa, tomo e página citados); de um Rio também da Califórnia, afluente do Sacramento, e deoutros dois rios, um no Brasil, que nasce na serra das Esmeraldas, em Minas Gerais, e outro emParaná, afluente do Iguaçu.

Quanto ao outro nome de Ceirtne ou Cerne, que também veremos, são tantas astoponimias que não há senão folhear os Estudos Ibéricos, de Costa, e outros análogos, para verdesfilar ante nossos olhos a Cerne, capital dos etíopes atlantes; a Cerne, metrópole da Atlântida dePlatão; a Cerne do rio Lixus; a Cyranis, do périplo do Hamnon e do tão falso historiadorHeródoto, a quem chamamos, não obstante, "Pai da História"; à última Cerne, de Plínio(Plínio, VI, 31 e 36), do Aviceno e Estrabão; a Cerne dos Garamantas, Pharusios, Nigritas,etc., e à a Sekelmesa ou Sigilmesa-Cerne do oásis líbio-marroquino, possivelmente centro doocultismo arábico há muitos séculos.

Seja o que queira desta nossa interpretação, é certo que em dito códice secopia o poema perdido do Ur-aceipt-man-eges (espécie de Ava lokita-iswaraindustânico) tido pelo mais antigo dos bardos irlandeses. Também se inserida nele achave gramatical das inscrições (runas) ogâmicas ou ógmicas (ou seja, os valores dasletras de Gaedhil, compostas de pontos e traços ao modo das do códice doBallymote), chave atribuída à Cennfaclad o Instrutor ou o Profeta, falecido, diz-se,em 677. Conforme se assevera na magnífica obra do Rolt Brahs, "The ogam inscribedmonuments of the Gaedhil in the British Islands", da que tomamos todos estesantecedentes, Gilla-Isamor-Mac Firbis fez dito trabalho sobre os documentos deAmhergin e Feir-ceirtne, poetas filósofos da mais remota e legendária Antigüidade,tanto que o bardo-Instrutor Amhergin é um personagem que pode considerar-seeuropeu como americano, quer dizer, como um verdadeiro Atlante, na hipótese queserve de fundamento a este nosso trabalho. Amergin, Amargin ou Rama-D'jin (oRama jaino do qual tantas alusões achamos nos mitos de Lohengrin), dá nome aquatro ou cinco lugares, montanhas, rios e deuses, tanto da América Central comodas regiões antilhanas da Venezuela e Colômbia, e a dito nome mítico, que não aode Américo-Vespúcio, deve o seu, como é sabido, o mundo de Colombo.

Quanto ao outro importantíssimo nome de Feir-ceirtne, Rif-ceirtne, Kairna ou

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Certne de Rif, traz-nos à memória aquelas duas legendárias Certnes dos périploscartagineses primitivos do Hannon ou Swan-non e de Sicilax, Xilax ou Gilla, aquelascidades, dizemos, sobre cuja respectiva locação atlântica tanto discutiram osautores, nosso grande Costa entre eles.

O códice irlandês é conhecido entre os doutos com o nome do Book of Lecanou Lai-kan, e seus cantos mitológico-simbólicos podem relacionar-se integralmentecom os cantos atlântico-gaélicos ou druídicos chamados Lais ou L'ais, tãoabundantes no folclore da Ibéria ocidental. Por outra parte, entre os lais estudadospor S. Michaelis em dito folclore aparecem quatro verdadeiramente fundamentais, crêo Sr. Said Armesto que figuravam como intermezzos líricos ou loas nas versões galaico-portuguesas dos poemas clássicos da Europa ocidental relativo à lenda de Tristão eIsolda, aos quais fizemos referência no princípio deste capítulo.

Suprimindo o ele (l) da palavra lais, por ser possivelmente letra eufônica postacomo os artigos nas línguas neolatinas, ou ao modo do também artigo ou partículatli das línguas mexicanas primitivas, os tais lais, ou seja, no plural os isas, não seriam,em definitivo, senão os cantos simbólicos Isíacos dos povos ocidentais, espécies dehinos védicos, órficos ou osiánicos, cantos tartésios, druídicos ou gaedhélicos, enfim,relativos a essa divina Isa, Ísis, Isot, Isolda, Isev, Isolda, Elsa, Elisia, Elisa, Isabel,Isomberta, Ísis-Abel, contraparte simbólica do Caín, ou seja, o Abel hebreu (quesempre fosse o nome feminino da trindade gnóstico-ofita do Hanú-Bel-Hoa,Jehovah ou Iao-evah), etc, etc, que encontramos em qualquer parte no mitoeuropeu, deusa suprema, enfim, que não é, certamente, conforme vamos vendo aolongo destas páginas, senão o divino Eros da lenda de Psique (porque o Amor emmuitas línguas nórdicas é feminino, e o equivalente da Psique-Lua, pelo contrário,masculino), o Ego superior, o nous, enfim, ou Divindade latente em cada Homem,ao que na linguagem wagneriana da Tetralogia teremos que chamar a divinaWalkyria, a celeste Isolda, glorificadora das almas dos heróis, os eternos lutadoresem prol do Ideal eterno.

Convém recordar os temas dos lais do Cancioneiro galaico-português talcomo se consignam por D. Víctor Said Armesto em suas notas à citada tradução dodrama wagneriano feita por D. Luís Paris. Elas são como segue:

Primeiro lais: "Quatro donzelas celebram com canto e dança a vitória deTristão sobre o minotauro celta Morhoult ou Sir Morola, êmulo do famoso dolabirinto de Creta, que exigia aos reis de Cornualles o horrível tributo de cemdonzelas, cem nobres mancebos e outros tantos cavalos. Tristão desafia Morhoult,o qual sucumbe, não sem deixar Tristão gravemente ferido com uma setaenvenenada. Livre a pátria do odioso tributo, Tristão, como Lohengrin, entrega suanave à mercê das ondas, que o conduzem à pátria da loira Isolda."

Segundo lais: "Nos outros três lais do dito Cancioneiro, Tristão e Isolda, fugidosda corte do rei Mark, vivem ocultos no castelo de Joyosa posto à disposição dosamantes por Lancelot. Um dia, o herói decide tomar parte na conquista do Graal, edá princípio à sua vida de aventureiro, acompanhado de sua harpa e de seu escudo

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verde, à moda dos cavaleiros jovens ou novatos de então, porque Tristão, Amadis eoutros tais foram reconhecidos em qualquer lugar por semelhante cor, e daqui ocavaleiro da espada verde; o cavaleiro do escudo verde; o verde estandarte do profeta Mohamed; overde escuro simbólico da Maçonaria, etc, etc. Chega Tristão assim a um bosque noque ouve uma voz que canta um lais em louvor ao amor; avança pouco a pouco eencontra seu inimigo Helys - o Hela, o frio inferno escandinavo, o Hades ou mundodo astral - ao pé de uma fonte 1 .

1 Este encontro é simplesmente o do Habitante do Umbral ou da novela ocultista do Bulwer-Lytton: Zanoni ou da Besta Bramadora do rei Artús, quando entrou no Cameloc ou Kama-loca,e quanto ao amor de Tristão e de Isolda, o simbolista Maeterlinck, em seu livro sobre Ainteligência das flores, dá-nos uma preciosa poesia em prosa, que nós traduzimos livremente assim:Entre as plantas aquáticas, figura como a mais romântica a Vallisneria, uma hidrocaridea cujosesponsais formam o episódio mais trágico da história amorosa das flores.A Vallisneria é uma erva muito insignificante, desprovida da graça encantadora do nenúfar(espécie de lótus europeu) ou de outras flores subaquáticas de graciosa cabeleira, mas à Naturezaagradou em desenvolver nela uma formosa idéia. Toda a existência da ínfima planta se desenvolveno fundo das águas, em uma espécie de sonolência, até o momento nupcial no que vive uma vidanova. Então a flor feminina desenrola lentamente a larga espiral de seu pedúnculo, sobe, emergedas águas e se abre e estende pela superfície do lago. De uma zona vizinha, ao vê-la apenas aotravés da água ensolarada, eleva-se por sua vez a flor masculina cheia de esperança, atraída paraum novo mundo de sonho pela mágica sugestão de sua companheira. Chegada, entretanto, nametade de seu caminho, a flor masculina se sente bruscamente retida, porque o caule que a sustentae o que lhe dá a vida é muito curto, não lhe permitindo, portanto, chegar até a luz da superfície eali realizar a união nupcial do estame com o pistilo.

Trata-se acaso de um defeito ou da mais cruel das provas da Natureza...? Imagine o dramahorrível deste desejo, desta fatalidade transparente, deste suplício ao Tântalo de estar-se tocando evendo sem obstáculo o que é inacessível..."Semelhante drama seria tão insolúvel como nosso próprio drama sobre a Terra; mas hei aqui quede repente surge um novo e inesperado elemento: Terá a flor masculina o pressentimento detamanha desilusão? Não sabemos; mas é quão certo ela soube conservar em seu coração umaborbulha de ar, como nós guardamos em nossa alma um doce pensamento de desesperadasalvação... Diria que vacila um instante, mas em seguida, com um esforço galhardo - o maissobrenatural de quantos conheço na vida dos insetos e das flores -, rompe heroicamente o laço quelhe liga à existência para voar às alturas de seu ideal sublime. Corta seu pedúnculo, por si mesmo,e em um incomparável impulso, entre pérolas de alegria, suas pétalas afloram à superfície daságuas... Feridos de morte, mas livres e rutilantes, flutuam um instante ao lado de sua amorosadesposada. A união dos dois seres se realiza, depois da qual a flor masculina, sacrificada, ébrinquedo das águas, que levam seu cadáver à borda, enquanto que a esposa, já mãe, fecha suacorola onde ainda palpitam os amantes eflúvios, enrola seu pistilo e volta a descender àsprofundidades para maturar o fruto de um amor heróico e sem limites...".

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Lutam, naturalmente, os dois ferozes inimigos e sai vencedor Tristão - Este louvor aoamor, que reaparece no códice galego, acredito que figura no poema anglo-normando de Tomás de Bretanha.

Terceiro lais: Depois do combate com o filho do Duque da Sansonha, Tristãoatravessa um fragrante bosque, no qual o canto dos pássaros traz para sua mente alembrança de Isolda. Então, acompanhando-se com sua harpa, canta um lais,bonito sem dúvida no texto galego, apesar da terrível comparação que evoca. Aludoao muito famoso beau lais cujo estribilho diz:

¡Isot ma drue, Isot ma amie!¡En vous ma mort, en vous ma vie!

Quarto e último lais: Mark, à medida que Tristão jaz prostrado de uma graveferida, apodera-se de Joyosa-Guarda, resgatando Isolda. Mal restabelecido Tristão, éconsumido por certo estranho pressentimento, sai a caminho de Cornwalis. Aoembarcar, ouve-se no silêncio da noite uma donzela cantar o lais do filtro-mágico; istoé, o lais que ele compôs quando navegava com Isolda da Irlanda ou Cornwalis.Tristão se aloja na casa da donzela; dá-se a conhecer a esta, e deixando errar seusdedos sobre a harpa, como improvisação, entoa o conhecido Lai des pleures, queliteralmente aparece traduzido na cantiga galega.

Examinemos o primeiro lai da luta entre o Tristão e Morold.Aquelas danças de religião e de triunfo das donzelas são no fundo as mesmas

danças religiosas dos Mistérios antigos, simbolismos cosmogônicos ou espécie deAstronomia representada teatralmente durante aquelas austeras cerimônias, e dasque constituíam sobrevivências em seu tempo as danças gregas, as de cem povos daAmérica e as do próprio rei David em torno da Arca-Santa, danças que começaramséculos antes, como emblemáticas de altos ensinamentos; danças que foram depoisse limitando a meros exercícios corporais, sem outra finalidade ética outranscendente, e que acabaram em muitos povos, como o hebreu (e como hoje emmuitos países cultos), por ser perfeitamente sensuais ou fálicas. Embora os restossalvos da lenda não o digam, em semelhante tributo dos cem guerreiros, cemdonzelas e cem cavalos, vemos também um testemunho doloroso, por um lado, doharém envilecido, mais que do primitivo colégio vestal, e por outro, dos sacrifícioshumanos e de animais que os conquistadores acharam implantados no império deMoctezuma em toda a horrível realidade de sua ímpia nudez sob máscara religiosa,até o ponto de chegar a fazer-se guerras como verdadeiras carnificinas de homensque subministrassem vítimas às centenas ao itzli fanático ou pétrea facasacrificadora dos sacerdotes maias e astecas. O famoso tributo das cem donzelas, dosdias do mítico rei de Asturias Mauregato - personificação de sir Morold irlandês emnossa primeira dinastia de nossa Reconquista, tão fabulosa como histórica, semdúvida alguma, aos olhos da crítica sã - é o documento ibérico que correspondeentre nós ao anglo bretão de Morold, já desvirtuado em sua grandeza originária, eao asteca do feroz Huitzilipochtli. Esta apresentação da mesma lenda na Europa e naAmérica não só evidencia uma vez mais a conexão misteriosa que as mitologias

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anglo-bretãs e ibéricas guardam com as dos aborígines americanos, senão é umindício seguro da lembrança da Atlântida, como laço conector ou ponto de origemde onde irradiassem as artes necromânticas dos últimos dias desta até os povos deaquém e além mar que teve que formar-se pela catástrofe que sepultou tão imensocontinente.

Detenhamo-nos um momento sobre estes assuntos.Não seria nenhuma extravagância à altura a que chegaram os estudos de

Mitologia comparada, pretender demonstrar que toda nossa dinastia de reis deAstúrias é perfeitamente legendária, não começando, por conseguinte, a verdadeirahistória, subseqüente à ruína do império visigótico, senão com os reis de Leon,primeiros que ofereceram uma séria resistência aos árabes e berberes invasores.Note-se certamente que, com a chegada destes à região nordeste da Península, osnaturais tiveram que refugiarem-se, como acontece sempre, nas montanhas,reproduzindo-se desta forma as mesmas lutas épicas ou homéricas que antigamentetiveram os cântabros com os romanos, e as acontecidas provavelmente muitosséculos antes até, com povos invasores, ora emigrados da mesma Atlântida, ora dasregiões africanas. Semelhantes repetições históricas, capazes de dar a razão aos ciclosdo Vico, eram, pois, as mais propícias para a formação de um mito que abrangessetrês eras diferentes. Assim começamos vendo reproduzir-se na Covadonga amesma lenda romana que deu lugar à festa de 5 de Julho, quando os oscos ou galo-cisalpinos cercaram a cidade enquanto os romanos celebravam a dita festa sibilina. Asflechas dos sitiadores gauleses, diz-se na lenda de Roma, voltavam magicamentepor si só contra eles, sem que os romanos tivessem necessidade de interromper suadança sagrada em honra dos livros sibilinos da Numa conservados no Capitólio.Pelayo ou Bel-aio é uma sobrevivência proto-semita; Fabila ou Fabella, devorado porum urso, é outra lenda ao modo dos Ursinos e Welsungos; Silo ou Sibila não é maisque uma permutação dos lais gaélicos que vimos antes. Aurélio e Mauregato,abolindo o tributo das cem donzelas, são outros dois tipos perfeitamente legendários,nos quais o Sir Morold famoso da Irlanda reaparece ao par que Morya, Mauro ouMaureya do Atharva Veda, espécie de Lohengrin, do círculo dos devas, que entregue àioga ou meditação em Kala-appas há séculos, envia de tempo em tempo à Terra umauxílio espiritual emanado de si mesmo quando os humanos ideais perigamameaçando cair de novo na vida animal a nobre estirpe dos homens.

Pelos dias da catástrofe atlante deveriam ser muito numerosas as tribosrefugiadas no oeste de nossa Península, e daqui que Plínio, Estrabão, Silo Itálico,Diodoro da Sicília e outros vários clássicos romanos avaliaram o número e avariedade de povos peninsulares, chegando a contar até cinqüenta ou sessenta,distintos, só na comarca entre Douro e Miño. Nada disto é de estranhar. A mesmalei que preside à dispersão da flora e da fauna animal preside, indubitavelmente, àhumana, e é conhecido do mundo culto o assombro, que a Humboldt e a cemoutros naturalistas, lhes produziu tanto a variedade e riqueza das espécies vegetais eanimais luso galaicas, como suas conexões com as das costas norte-americanas, asdo Rif e as insulares dos Açores, Canárias, Madeira e Cabo Verde. É um fenômeno

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igual ao que acontece na Austrália e costas ocidentais da América do Sul,denunciadoras do afundamento de outro continente anterior, já perfeitamenteadmitido pela ciência do Ocidente: A Lemúria.

Se estendêssemos estes comentários ao chamado povo basco ou ibéricoprimitivo, seria preciso algo mais que um simples apontamento para determinar oslaços desta sua língua primitiva semita com as dos aborígines americanos. Emqualquer lugar que apareça, com efeito, a raiz ask, iks, ou melhor, ik, ali está o povobasco; não o da reduzida Vascônia atual, senão o atlante desaparecido.

A propósito do monstro "Morold", M. Fritz Müller de Itajahy, foi autor, dizVerdaguer, de uma notável memória relativa ao mitológico minotauro, o Minhocãodo Brasil, animal que se acreditava capaz de torcer o curso dos rios com seus 80metros de comprimento, coberto de escamas em couraça e era apto para arrancaros pinheiros como se fosse grama. Quanto aos sacrifícios humanos, tão tristementecélebres em toda a Antigüidade, já os pelasgo-atlantes os realizavam nas festas daLycaea e eles seguiram até a dominação romana (obras de Platão, traduzidas porCousin, T. XIII, página 35; Porfirio, De abstinência, livro II, páginas 11, 21, 26, 32,43, 53 e 55, e Theophrasto, livro III, 25, e IV, 20). A tais sacrifícios os tem VíctorBérard (Origines des cuites arcadiens) como de origem rúnica. Os curetas de Cretaimolavam meninos à Zeus antes que os dórios introduzissem o culto à Apolo.Cécrops, na Ática, aboliu os sacrifícios; mas sua filha foi imolada; a estátua deArtemísia de Brauron, junto à Maratona, espécie de deusa Kali indostânica, foiroubada, segundo a lenda, por Iphigenia da Taurida e à Praxiteles se atribui umaestátua desta deusa sanguinária venerada em toda a Ásia Menor (Pausânias, livro I,33, e IV, 46). Seguindo ao oráculo do Delphos, Aristodemo teve o patriotismo desacrificar Artemísia, sua própria filha. Porfírio (De abstinência, II, 55) conta queTheophrasto faz menção dos sacrifícios humanos... Em Rhodes se sacrificava umhomem à Cronos, em 5 de Julho, sobre o altar do Bom-Conselho. Na Salamina doChipre ou Coronis, consagravam-se homens a Agraula, filha do Cecrops e da ninfaAgraulis. A vítima, conduzida por jovens, dava três voltas ao altar e era imolada(in-molem, "sobre a pedra") com uma punção na garganta, dada pelo sacerdote com afaca de pederneira, como se vê nas páginas dos códices do povo mexicano tãotristemente famoso por seus sacrifícios, e se relata pelos cronistas da época. NoChío e Tenedos se sacrificava também um homem à Dionisios Omadios em perfeitaantropofagia. Na Lacedemônia se consagrava, do mesmo modo, outro homem aAres. Nada digamos de trácios e escitas, e até os próprios atenienses, apesar de suasuperior cultura, imolaram à filha do Erechthé e do Praxithé, e igual aos romanosna festa do Júpiter Latialis, sacrifícios também sancionados pelo código das DozePranchas (Plínio, História Natural, XXVIII, 3 e 4; XXX, 3, ed. Littré), até queforam abolidos em 657 pelo cônsul Léntulo Crasso (Tito Livio, XLIII, 13, 2). Osarianos, ao introduzir seu culto, incruento e patriarcal de Zeus e Apolo, nãodestronaram facilmente com seus singelos ritos os horríveis de Cronos e dasEuménides da Arcádia (Fustel de Coulanges, La cité antique). Ésquilo, em seusEuménides, faz grandes referências a estes tristes assuntos (V. 3, 9 e 15), e Lycaon,rei da Arcádia e filho de Pelasgos, diz-se que foi transformado em lobo por ter

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sacrificado um menino à Zeus no Liceu. Sem falar dos horríveis sacrifícioshumanos das guerras de todos os tempos, o sacrifício ritual ainda existe em povosatrasados. O almirante Wrangel, em sua Exploração do Norte da Sibéria, diz que "nafeira Ostrownaye se desenvolveu uma enfermidade contagiosa. Consultados osxamãs pelo povo tschukta, embora cristão na aparência, estes disseram que osespíritos exigiam o sacrifício de Kotschen, o líder mais venerado do povo. Houvealguma resistência; mas, ao fim, o mesmo caudilho se prontificou heróico comovítima expiatória. Ninguém se atrevia a lhe ferir, até que o povo obrigou a praticar aimolação nada menos que a seu próprio filho."

Estas citações foram tiradas de A. Bertrand, em seu Religion des Galois. LesDruides et o Druidisme e poderiam continuar-se com povos americanos. Voltemospara mito de Tristão.

Na luta entre o Tristão e Morold, este sucumbe sob a espada daquele, masnão sem deixar Tristão ferido com um dardo envenenado.

Semelhante seta simbólica não é mais que a terrível arte da necromancia quese fere si mesma, porque não podemos esquecer, conforme repetidas vezes assinalaWagner por havê-lo lido sem dúvida nos poemas dos bardos onde se inspirou, queTristão, com estranha previsão, ocultava seu nome verdadeiro, chamando-seTantris, mas Isolda reconheceu nele, entretanto, ao Tristão, porque na espada doferido faltava um pedaço: a parte de ferro que ficou encravada no crânio deMorold. Recordemos deste modo que "então - canta Isolda -, do mais fundo demeu coração, surgiu um grito de cólera e levantei a resplandecente espada sobre acabeça de Tristão para vingar naquele covarde a morte de Sir Morold... Tristão,preso ao leito, elevou seus olhares, não à espada nem a minhas crispadas mãos,senão até meus próprios olhos... Tive piedade então de sua miséria; a espada caiude minhas mãos e curei sua ferida, a tremenda ferida aberta em seu peito por SirMorold, a fim de que, ao lhe devolver a vida, pudesse voltar a seu lar, me liberandodo suplício de sua presença... Escuta agora - acrescenta Isolda à sua fiel Brangania -como cumpre um herói seus juramentos. Esse mesmo Tantris, que eu deixei partirhumilde e triste, não demorou a voltar orgulhoso e audaz a bordo de um barcosoberbo, a pedir minha mão, minha mão de herdeira da coroa da Irlanda, para odecrépito rei de Cornualles: para Mark; para o rei, seu tio, enfim. Quando meuprometido Morold vivia, quem ousaria pedir para os míseros tributários deCornualles a coroa da Irlanda, sua soberana? Ai de mim! Eu fui a causa secreta detamanha vergonha!".

Esta sublime passagem compendia por si só toda a tradição da catástrofeatlante, com mais vivacidade ainda de colorido que a relatada pelos sacerdotes doSais ou de Issa ao divino Platão. Deste modo entranham-se notáveis conexões coma lenda do Conde de Parténope e com a famosa de Psique 1.

1 Melior (a melhor), imperatriz de Constantinopla, desejando contrair matrimônio com o homemmais digno por seus dotes, ouve apregoar a fama do Conde de Partinoplés (ou de Parténope),senhor do Blés e sobrinho do rei da França. A Imperatriz, com suas artes mágicas, faz-lhe

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extraviar-se na caça e o encanta no castelo de Cabezadoire, onde lhe acontecem cenas de amormuito análogas às de Eros e Psique. Semelhante felicidade se interrompe, ao fim, porquePartinoplés precisa ir a socorro de seu tio o rei da França em suas lutas com o rei Sornaguer. Amãe e o tio do herói vitorioso lhe enganam logo, e, transtornando seu coração com certo poçãomedicinal ou mágica, fazem-lhe contrair matrimônio com a filha ou sobrinha do Papa. (Preciosaalusão às artes necromânticas tão freqüentemente empregadas por Roma em todos os tempos.)Logo, entretanto, recupera Partinoplés o sentido, e, abandonando à esposa que por seus enganoslhe deram, foge com a Imperatriz. Um matreiro bispo lhe engana também, lhe fazendo acreditar,como a Psique suas irmãs, que aquela invisível criatura de cujas carícias só alcançassem a gozardurante a escuridão da noite, não era senão um terrível monstro que queria lhe perder e a quemhavia, portanto, que desmascarar a toda custo. Logo segue uma passagem idêntica ao de Psique esua lâmpada, no qual perde ao Conde, como aquela sua funesta curiosidade, por castigo da qualtem que peregrinar trabalhosamente pelo mundo, até que recebe o perdão de sua amada e conseguesua mão, finalmente, vencendo em um torneio a seus inimigos.Esta lenda - diz Bonilla - inspirou a Dona Ana Caro (a décima musa andaluza) sua famosacomédia, e antes a Tirso da Molina a sua, Amar por gestos; a Caldeirão, seu Encanto semencanto, e a Lope da Vega, sua Viúva valenciana. Além das indicadas conexões, com a fábulado Apuleyo, tem a lenda outras muito claras com a de Tristão e Isolda, que o bom julgamento denossos leitores saberá, por si próprio, deduzir sem outras explicações.

Tristão é o símbolo da raça ária cujo nobre sangue circula pelas veias detodos os povos da Europa proto-histórica, tais como o bretão, o anglo-gaedhélico,o libioibero e, em geral, toda a raça mediterrânea invasora, como deste modo osnahoas mexicanos e outros povos similares. Estes povos primitivos, conformeensina Alexandre Bertrand, em Religion des Galois - Les Druides et le Druidisme, tinhampor características, em troca de uma cultura menor que a esplêndida, mas perversa,do sacerdócio indígena semito-atlante, uma maior inocência prístina e grandepureza de ideais, que os fazia rechaçar com horror qualquer vestígio dos sacrifícioshumanos (necromancia, magia-tântrica ou de Tantris) em seus cultos singelos eincruentos ao Lar e seus Manes; ao fogo Ur e a Ra, o cordeiro misterioso (agnus,Agni, o divino fogo roubado ao céu por Prometeu), quando não à Deidade abstrata,Una e sem nome, sob simbolismos sábios e com rito ainda desconhecido, como dizCarrasco em relação aos povos tartésios que acharam em Gades os feníciosinvasores 1. As respectivas características de arianos e atlantes deveram ser, emsuma, à maneira das que apresentaram ulteriormente na história dos povosgermanos invasores e os romanos invadidos: infantis e espirituais, embora aquelesignorantes; muito cultos, mas corrompidos estes, porque é muito notório que asseleções operadas pelo Destino histórico outorgam sempre as preferências dotriunfo aos homens e povos mais fortes, física e espiritualmente, contra os povosmais intelectuais, ao par que mais pervertidos por obra e graça, funesto paradoxo!De sua própria, mas mal empregada cultura.

1 Na Mitologia Universal, de Carrasco, diz-se: "Com razão se afirma, que os primitivos

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espanhóis tiveram seu culto originário e indígena, distinto do importado depois por celtas, tírios,cartagineses, gregos e romanos. Éforo, falando da Ibéria, diz que em seu tempo (338 AC) nãohavia templo de deus algum na Turdetania, e que, em vez destes, achavam-se pedras agrupadas detrês em três ou de quatro em quatro (dolmens). Tampouco faziam sacrifícios. Segundo Estrabão,os celtiberos e seus vizinhos adoravam a um deus sem nome (o Inominado, a IncognoscívelEssência, da genuína tradição ária). São Agustín afirma que os espanhóis, "por serem sábios efilósofos, adoraram um só Deus, autor do manifestado; incorpóreo, incorruptível, nossa origem enosso bem". Duplex se expressa assim: "é coisa muito admirável que estando as outras nações domundo inundadas na idolatria e no culto de diversas divindades com nomes diferentes, os celtíberosadorassem a um Deus de ignorado nome." Os PP. Mohedanos acrescentam: "... nos é precisoconfessar que apenas se, se acharem vestígios da idolatria da Espanha antes da chegada dosfenícios. O culto e a religião dos nativos, se alguma tinham, não era tão abominável e supersticiosacomo a de alguns povos do Oriente... Nas nações tidas então por cultas floresceu a idolatriamultiplicando as deidades até o infinito, mas nas incultas elas não se multiplicaram tanto. Suaprópria barbárie as preservou longo tempo desta desgraça. Sua religião, à verdade, era falsa,diminuta e mais grosseira que nos povos civilizados; mas, ao mesmo tempo, mais singela, menosabsurda e não tão supersticiosa. Masdeu diz que terá que convir em que a religião revelada (aprimitiva Religião da Sabedoria?) introduziu-se na Espanha justamente com os primeiros homense que se manteve constantemente por meio da tradição até que os fenícios trouxeram a multidão desuas deidades. Conforme Erro, enfim, os espanhóis, pelo rito muito simples daqueles tempos, nãoconheciam templos nem altares: umas pedras amontoadas eram as únicas aras que usavam e nasque ofereciam à Deidade as primícias de seus frutos: o mundo inteiro era para eles Templo doSenhor. Acrescenta que os primeiros templos que se viram na Espanha foram os das colôniasfenícias; mas seus absurdos deuses penetraram em muito poucas partes da Celtibéria, sem alcançarjamais as nações do interior e as setentrionais, onde conservaram pura a religião primitiva até quefoi anunciado o Evangelho.

Quanto coincidem estas admiráveis asserções, re-compiladas por esse santo Mosén JacintoVerdaguer, nas notas de sua epopéia A Atlântida, em relação à "Deidade de nome ignorado comculto ainda desconhecido", pode ver-se na mesma obra do Gerbhardt, “Os deuses da Grécia eRoma”, aludindo a povos como o etrusco-atlante, ramo também do grande tronco ligur ou libio-ibero. "Cumas – diz - foi a colônia grega (ária) mais antiga da Itália. Sua Sibila apresentou umavez os nove livros sagrados a Tarquino, pedindo por eles um preço exorbitante além de todamedida. O rei recusa aceitá-los, e a Sibila queima impassível três deles e pede outra soma aindamaior para os seis que ficam. Segunda negativa do rei e segunda queima de outros três livros pelaSibila. Apavorado o rei, detém-na quando já ia destruir os três últimos e lhe outorga quantopedisse. Ditos livros foram levados ao Capitólio e custodiados em urnas de pórfiro, longe do alcancedos profanos, até que o incêndio do mesmo, por Sila, os fez desaparecer. O Senado prevê então ascalamidades que com tamanha perda vão descarregar sobre a República, e envia solícito Comissõessacerdotais à Cumas, Grécia e Ásia para reconstituir o tesouro perdido. Desde então a Repúblicarecorria a eles em religiosa solenidade, quando sobrevinham circunstâncias muito críticas;celebrando festas em honra de um Deus de ignorado Nome e em forma ritualística (Mistério)todavia desconhecida. A Écloga IV, de Virgilio, considera-se como uma alusão profunda einiciática a semelhante rito - embora alguém tenha querido ver nela não sei que sorte de profeciascristãs -. Os primeiros Padres da Igreja citam, com respeito à Sibila cumana, e no canto elegíaco

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do "dies irae" invoca-se seu testemunho para robustecer ao do próprio rei David. Marcio, cidadãoe, por acaso sacerdote romano, vaticinou o desastre de Cannas e acrescentou que a restauração dosMistérios, ou seja, a disciplina sibilina, era o único meio de salvar a República. Poucos anosdepois, como a peste se assenhoreasse de Roma, o Senado restaurou sorte festa anual de 5 de Julhoe cessou, como por encanto, o açoite." Quanto à lenda osea relativa a dito dia e tão análoga ànossa da Covadonga, já temos feito menção dela anteriormente.

Entretanto, a necromancia dos sacrifícios humanos contagiou mais oumenos a indo-europeus, e seguiu, certamente, sendo característica dos povos defiliação atlante invadidos por eles, segundo múltiplas provas históricas, e istoexplica esse investimento do nome de Tristão em Tantris. Ainda pode ver-se em açãoem muitos povos da Índia e da África a terrível magia tantrika ou de Tantris, apoiada,como o boddunismo, o nargalismo, o ñañiguismo e demais práticas muito em uso entreos povos negros ou atrasados, na prática cerimoniosa dos ditos sacrifícios, seguidosàs vezes de ritos religiosos de canibalismo verdadeiro, tudo isto sem citar tambémcertas flagelações medievais e até modernas 1, assim como as célebres dosHamatchas ou Camitas marroquinos e outros tais possivelmente também entre osíndios americanos.

Tan-tris, lido por sílabas, por exemplo, Ca-in, Inca, pela troca do modo de lerariano de esquerda a direita com o semita de direita a esquerda, dá-nos o nomelatino do Natris, e Natris equivale nesta língua à grande serpente tentadora, oLeviatã, que tantas vezes sai a reluzir também na Bíblia, serpente a que os gregosdenominaram HvSpo-s: a Hidra da Lerna ou Serpente do Mal, morta à mãos deHércules, como a que se enroscava em volto da árvore do Gogar escandinavomorta por Odin e a grande Serpente da Noite nahoa, morta à mãos deQuetzalcóatl, etc., etc.

Não param aqui as claras alusões simbólico-ocultistas da partiturawagneriana. Se Tristão (o Osíris egípcio) frente à Tantris ou Natris é uma serpente boa,um "Dragão da Sabedoria", quer dizer, um Naga, um Instrutor ou um Iniciado, eIsolda em suas mil toponímias do ciclo “cavaleiresco” não é mais que a clássica Ísisegípcia ou a Isthar (estrela) dos parsis, Wagner, como um verdadeiro Iniciado dostempos modernos, manejou maravilhosamente o simbolismo em outros nomes dospersonagens de sua partitura segundo os ensinamentos antigos.

Um leitor NÃO superficial, bem documentado além na terminologia védica,terá podido apreciar que o nome do rei Arthus do ciclo “cavaleiresco” medieval,não é mais que o sânscrito Suthra ou Fio de Ouro (Suthra-atma), que enlaça a nossosegos animais com nosso Ego Divino, enlace simbolizado em Psique-Eros, Cástor-Pólux, Siegfried-Brunhilda (a Walkyria), Tristão-Isolda, etc. Também pôde ver no

1 Em certo convento de monjas de um dos melhores sítios de Madrid, vimos anunciados, em 1906,os melhores cilícios para disciplinas! Isto em pleno século XX.

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Kameloc - ou inferno de terrores astrais onde Arthus e todos os cavaleiros andantestinham que vencer previamente à Besta bramadora, Minotauro cretense, "Habitantedo Umbral" da literatura cabalista, etc.- Kama-Loca ou lugar da paixão e do Desejo,que é causa, segundo a própria partitura wagneriana, de todas as dores quedilaceram o coração do homem, ou seja, também a morada do Kamax-tli, o Plutãonahoa, espécie de deusa Kali indostânica, posta com suas infernais paixõesinsaciáveis nos temíveis umbrais da Iniciação para deter o avanço do candidato.

Wagner, ou melhor, dizendo, os textos arcaicos por ele consultados,chamaram rei Mark, Marke ou Marka, à personificação dolorosa do Karma ouDestino sânscrito, lei de retribuição universal, Nêmesis vingadora, que, mais forteque os homens e que os deuses mesmos porque encadeia ao Universo todo, é oúnico que sobrevive à tremenda catástrofe final do drama, e também, por outrolado, a causa dele, nem mais nem menos como acontece na vida, onde a leibondosa do Dharma, que é liberdade no obrar e a lei justiceira do Karma, fatalretribuição que faz colher cedo ou tarde o bem ou o mal que se semeou, atuamsempre simultaneamente sobre as resoluções e atos dos homens. Cego Tristão,como Siegfried, como o príncipe em Branca-flor, ou como o Cupido dos gregos(porque nada nos cega para as luzes superiores do espírito como nossostempestuosos desejos), esquece seu Divino Ego, seu próprio Espírito imortal, suaIsolda, em uma palavra, entregando-a, insensato, aos azares de seu triste carma oudestino de homem, quer dizer, lhe cedendo como esposa do desprezível rei deCornualles, o que equivale, dentro da filosofia do símbolo, à prostituição e renúnciade sua própria superioridade humana, como aqueles personagens das lendasmedievais que entregavam sua alma ao diabo, sem conceder todo seu divino valor àjóia que assim perdiam, alienando, qual o Esaú bíblico, seus direitos deprimogenitura por um mísero prato de lentilhas.

Tampouco escapam ao simbolismo ariano outros personagens secundáriosda obra. Brangania ou Bracania 1, a dama de confiança de Isolda, por sua raiz sânscritade brig, brilhar, é sinônimo de esplendor e de força, e daqui também bright, ponte, etantos outros apoiados em dito radical 2. Quanto a Melot o traidor, não é mais que ummal elemental, um gnomo, que diria um ocultista, escapado deKa-melot ou Kama-loka dos desejos, como no escudeiro Kuru-enal, não vemos senãoao Guru marroquino, ao Kurú ou Cauro, militar romano, ou ao Guru (Mestre),sânscrito, e no pastor que canta com sua flauta doce a primitiva sonata do prazer eda dor no mundo dos mortos, o reflexo legendário de tantos e tantos Pastores ouReis-Pastores das tradições arcaicas, como muito em pequenas quantidades pode ver-se na muito curiosa obra greco-latina Os Amores de Clareo e Florisea com os trabalhos de

1 Não é violenta em modo algum esta segunda transcrição se, se absorver nasalmente o n do Bran,qual acontece no francês e se troca em c o g do nome, coisa tão freqüente, por outro lado, em línguasneolatinas.2 Veja-se sobre este particular o capítulo dos Tuatha do Danand, VIII de nosso livro De gente dooutro mundo.

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Isolda, novela bem merecedora por si de um estudo especial, ora pelos pontos decontato que tem com o célebre argumento de A Ilíada (retornando do revés, se valea frase, do roubo de Helena); ora porque nela se descreve a descida de Isolda aomundo do astral com mais pormenores que os da descida de Psique na lenda doApuleyo, e com maior conhecimento de ocultismo, possivelmente, que o de Danteem A Divina Comédia. Isto sem contar, por outra parte, com que serviu que apoio àesquecida novela de Cervantes: Os trabalhos de Perseu e Sigismunda, ou de Siegfried eSigismunda, que Wagner diria, razão pela qual lhe consagraremos logo algunsparágrafos.

No simbolismo atlante de todo o primeiro ato da obra Wagneriana que nosocupa, a personalidade de Sir Morold, apresentada nas outras lendas menosprimitivas como odioso necromante que exigia tributos de donzelas para o harém ede guerreiros para o sacrifício gladiatório, conforme temos visto toma um relevonobilíssimo como o divino marido prometido a Psique pelo oráculo e tido portodos como um horrendo monstro. Este caráter, em nosso entender, adapta-semais às puras e genuínas tradições relativas ao continente perdido existentes nospaíses nórdicos, foco principal de dito mito que tão adulterado aparece já naGalícia.

Ísis é o Ideal, a Íris da Humanidade livre no dia de sua regeneração eapoteose; a suprema aspiração redentora dos super-homens, como hoje diríamos, esemelhante ideal esteve sempre representado nos Mistérios da Antigüidade pelaMagia propriamente dita, a sublime Magia Branca, tão antiga como o planeta, ciênciasuprema que luziu esplendorosa nos melhores dias do poderio atlante, separadodos primeiros tempos de nossa história por uma verdadeira formação geológica, ouseja, pelos tempos pliocenos e glaciários, um ciclo inteiro, enfim, ou vários ciclos deprecessão equinocial dos pólos do mundo, ciclo que equivale a perto de vinte e seismil anos, como é sabido.

A esta Magia, sublime síntese da Religião-Sabedoria atlante, na aparênciaperdida, mas viva hoje e sempre no coração dos eleitos, Isolda faz referência napartitura wagneriana com estas palavras:

“Onde perdeu Mãe, o poderio que tinha sobre mares e tormentas? Oh, ArteMágica! Que já não serve mais que para preparar ungüentos e bálsamos danosos?Ressuscite a minha voz, Potência intrépida; brota do fundo de meu coração, aondeantigamente te refugiou, arma dos Deuses!".

Depois de dizer isto, a divina Isolda dirige uma vibrante invocação a todosos elementos destruidores, um verdadeiro canto fúnebre jeremíaco chamando àação todos os gênios punidores contra a raça necromântica de Tantris, a raça atlanteda queda, que conduziu com sua necromancia a ruína definitiva do gloriosoImpério de Sir Morold. Este império da Boa Lei é o paraíso feliz, mas aindairresponsável, da infância da Humanidade, com o que começam os livros sagradosde todos os países, não o desacreditado Império de Morold das idades posteriores,quando o sacerdócio atlante, explorador e corrompido, apelou ulteriormente a ditasartes necromantes que achamos entronizadas entre os povos caídos na barbárie,únicos com os quais tropeçamos hoje em nossos cretinos estudos de Pré-história.

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A vigorosa personalidade do Morold atlante, símbolo da Boa-Lei, aquelesemi-deus cuja prometida era a celeste Isolda, ou seja, o próprio Mundo super-humano ao qual aspiramos em nossos titanismos rebeldes, continua desenhando-seadmiravelmente nas seguintes passagens do poema:

Isolda - "Cegos olhos, corações inconscientes, minguado valor, silênciomiserável!... Como propalou o traidor Tristão os tesouros do segredo (o sigilo mágico)que eu tinha tão oculto, entregando à ira e vingança de seus inimigos, àquela cujosilêncio (o silêncio iniciático, a maçônica palavra de passe, do Mestre) salvou sua vidaquando lhe feriram de morte!... E mais adiante, quando Tristão invoca perto dela "ojuramento do completo esquecimento", acrescenta: - Não foi assim como eu ocultei (ousubmergi) Tantris e como Tristão caiu em meu poder (seguiu a Boa-Lei de meu únicoculto místico). Ante todos, se ergueu feroz e majestoso, mas eu não jurei o que elejurava... Porque eu aprendi a calar! (o audi, vide, tacet maçônico). Quando Tristão jaziamoribundo em meu recôndito camarim (a câmara das iniciações, o sagrado Adyta doMistério nos antigos templos), ao brandir sua espada com minhas ameaçadorasmãos, em pé, junto a ele, impus silêncio a meus lábios e encadeei meus braços; maso que meus lábios e meus braços juraram antes... com o pensamento, jurei de novomantê-lo sempre... O juramento de vingar a Sir Morold!... Sir Morold era meuprometido! Ele! O mais nobre cavaleiro da Irlanda! Eu benzi suas armas e por mimcombateu. Ao cair ele, minha honra caiu com ele também, e entre as angústias deminha desdita jurei que se nenhum homem conseguia lhe vingar (juramentomaçônico de vingar a morte violenta de Hiran à mãos da Ignorância, a Hipocrisia ea Ambição), eu mesma, pobre mulher! Vingar-lhe-ia...; E quando adoecendo caiuem meu poder, não quis te ferir, e soube te curar, para que te pudesse matar ovingador de Isolda, quando estivesse são e forte.

Quanto ao caráter desta suprema ciência da Magia, que, segundo o dito doLivro Oriental dos Preceitos de Ouro, "é como a madeira de sândalo, que perfuma omachado que a curta", está simbolizado às claras nas palavras com as que Isoldabrinda a Tristão o vinho da reconciliação entre ambos, vinho que não é mais queum veneno, antes de desembarcar na corte do rei Mark. .

“Ouve esses gritos? 1. Estamos perto do fim. Dentro de breves momentos(com ironia) estaremos... ante o rei Mark. Ao me apresentar, serás ditoso, lhedizendo: Olha-a, senhor, jamais poderá contemplar fêmea mais mansa! Eu mateiseu prometido; eu lhe enviei a cabeça do morto, e ela, em troca, curougenerosamente a profunda ferida que sua espada me tinha feito. Minha vida estavaem suas mãos, e me devolveu isso, acrescentando em doação para ser sua esposa oopróbrio e a humilhação de sua pátria...; Pois bem, tão preciosa recompensa paratão grandes façanhas devo-a a um doce filtro de reconciliação que, com mão

1 “Os gritos do Hohé, Hohé" dos marinheiros do navio saudando terra, são intraduzíveisonomatopéias do mundo Elemental, muito freqüentes, como veremos, no Anel do Nibelungo;mantras verdadeiros, às vezes dos quais tantas provas oferecem todas as demopédias.

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benévola, ofereceu-me, para apagar o rastro de toda injúria..." Momentos depois adupla rival, Tristão e Isolda bebem a morte na taça da reconciliação, porque a morte éo filtro mágico único capaz de nos reconciliar em um mundo melhor, libertos dedesejos inferiores com nossa Essência Imortal, com nossa espiritual Isolda, emmágico abraço redentor, acima de quanto a razão humana pode coligir, ao modo dadivina união de Eros e Psique. Por um cruel sarcasmo do Destino, os rivais bebemo filtro do Amor, em lugar do da Morte, porque Amor e Morte são uma mesma coisa eporque a Deusa do Amor, como Vênus na lenda de Psique, ao ver ultrajados seusdireitos, tomou tão cruel vingança como era, segundo as próprias palavras deWagner no comentário ao prelúdio da partitura, "lhes imergir na insaciável onda doDesejo, onda que, nascendo da confissão tímida, cresce aguçada pelo suspirovacilante, através da esperança, do lamento e do deleite, do gozo e do sofrimento,até que, chegando no paroxismo de sua impulsão à dor frenética, encontra a brechapor onde o coração se derrama no oceano das infinitas delícias do Amor... Mas talembriaguez é em vão. O coração, impotente para resistir, desfalece de novo paraconsumir-se no desejo inexeqüível, porque todo desejo conseguido é o germe deoutro mais ávido, até que no último decaimento alvorece na alma rasgada opressentimento do deleite supremo: a delícia da morte e do não-ser, a definitivaredenção, só obtida no maravilhoso reino do que mais nos afastamos, quanto maise com mais impetuosa força nos obstinamos em lhe penetrar... Chamaremos a istomorrer? Ou é mais aquele obscuro mundo do Mistério do qual surgiram uma hera euma videira estreitamente entrelaçadas sobre a sepultura de Isolda e Tristão, comoa lenda nos conta?..."

Por todas estas e outras muitas razões que seriam muito prolixas de expor, overdadeiro argumento ocultista do primeiro ato de Tristão pode resumir-se assim:Sir Morold é o símbolo da primitiva Humanidade, a terciária lemuriana ouparadisíaca, pobre de mente, mas rica de coração, quer dizer, amada e protegida decima por Isolda, a deusa eterna do Divino Amor e a Magia que à deusa caracteriza.Tristão, Natris ou Tantris, a sua vez, é o Pensamento, o mundo da Mente, que sedesenvolveu nas posteriores raças atlantes ou mio e pliocenas, a custa, por um lado,de matar a inocente raça de Sir Morold e, por outro, de roubar Isolda, ao modo detodos os Prometeus, Titãs e Mercúrios roubam o fogo celeste e a divinaespiritualidade, sendo aprisionados por isso. Mas ao cometer Tristão semelhanteroubo se faz réu de morte por que Mente, Morte, Sexo e Amor são quatro idéias quese equivalem em seu mais alto simbolismo. Tal réu de morte, entretanto, ao quererconsumar seu crime entregando a Mark, Karma ou Destino o divino tesouro da isíacaespiritualidade, é absolvido finalmente pela deusa, que ao equivocar os filtros matapor Amor!...

Que mais dizer, pois, do mito de Tristão? Muitos livros se têm escrito sobreele para que nós possamos acrescentar algo novo, mas sim julgamos de interesseconsignar umas quantas coisas a respeito de um curioso “Tristão e Isolda”mediterrâneo.

A "Biblioteca de Autores Espanhóis, da formação da linguagem até nossosdias", colecionada por D. Sorte C. Aribau (1849, segunda edição, págs. 433 a 468),

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contém a linda novela cavaleiresca, titulada História dos amores de Clareo e Florisea, e dostrabalhos de Isolda, escrita em 1552 por Alonso Núñez de Reinoso, celebrado poetavalenciano. Nesta obra, segundo se expressa o autor na dedicatória, "não se fezsenão glosar certo livro toscano mutilado, o qual, a sua vez, foi tirado de outro,escrito em língua latina e antes em língua grega". Quer dizer, que dita obra data emsuas origens de certa Antigüidade. Seu nome originário parece ser “Razoamento deAmor”, e por acaso o primeiro texto com que a respeito disto contamos é a célebrehistoria etíope de Teágenes e Cariclea, da qual tão poucas notícias se têm.

Helisandro e Heliseno (de Hélio, o Sol, ou Hélias, Elias, o Cavaleiro doCisne), príncipes do Bizâncio, tinham respectivamente dois filhos chamados Clareoe Florisea (Flor de Ísis), que se amava tanto, que decidiram fugir para Alexandria,fingindo-se irmãos, nem mais nem menos que Abraham e Sahara bíblicos sefingiram irmãos no Egito e em outros lugares. Assim tinham que fazer passar umano para que retornasse de uma viagem Florisindos, irmão de Clareo. Em poucosdias de navegação, chegam os amantes à Ilha Deleitosa, paraíso onde habitava arainha Narcisiana, rodeada de uma corte de adoradores, que, feitos pastores, tinhamvindo das regiões mais se distantes da terra. Entre estes, distinguia-se sob o supostonome do Arquesileo, Altayes, filho do rei da Trapisonda (Trapobana, ou melhor,Trebisonda), que é tão nobre cavaleiro que concorda em deixar suas mais carasilusões para ir desfazer certa ofensa sofrida por uma infeliz donzela. Em suaausência, os pastores invejosos lhe acusam de deslealdade a ele e à rainhaNarcisiana; mas volta vitorioso sob o nome de O Cavaleiro Constantino, e a salva.

Os dois amantes, Clareo e Florisea, passam ao largo da Ilha Deleitosa, nãosem antes presenciar uma luta homérica entre os gigantes e os pastores, como asanálogas teogonias entre os gigantes e os pastores, ou partidários da má e da boa lei.Entram na Alexandria pela Porta do Sol os dois fingidos irmãos; admiram suaopulência, e dali a poucos meses, chega também o pirata Menelau, que se apaixonapor Florisea e, à força, a leva em suas naves a caminho de Éfeso, matando-a depoisaparentemente. Ainda fiel e inconsolável Clareo por tamanha desgraça, o destinoou a necessidade lhe forçam a contrair matrimônio com certa senhora Alexandrinachamada Isolda, que tinha perdido a seu marido Tersiandro de Éfeso. Os recémcasados partem para dita cidade, sem que usasse jamais Clareo seus direitos maritaissobre a Isolda, sua infeliz esposa.

Eis aqui algo que recorda a Ilíada. Nela e na novela que nos ocupa, uma belamulher é arrebatada dos braços de seu marido; mas há a particularidade de que oladrão nesta última leva igual nome que o roubado na epopéia grega, que, como ésabido, também se chamava Menelau. Por acaso a primitiva lenda grega, a que sealude na dedicatória da novela, procedesse não da Grécia européia, mas sim da Ásiamenor. Menelau, por outra parte, não é mais que uma variante de Menes, ofundador e legislador da dinastia egípcia, e data da mesma raiz emana ou mente, emanú, pensador, própria de tantos idiomas primitivos, começando pelo sânscrito.Em uma palavra, o roubo relatado na Ilíada e o dos amores de Clareo e Florisea sãoum mesmo roubo simbólico, como o do Ouro do Reno, o roubo do divino Fogopor Prometeu, e o roubo de Filomena (de Philo e Menes ou Amante da Sabedoria),

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por Tereo, roubo este último que como aviso celeste tinha visto reproduzir-se emsonhos Clareo antes de perder a sua amada. Jogam também no conto que nosocupa o despedaçamento do filho da Filomena ao modo dos irmãos no Cavaleirodo Cisne, ou do Juanillo o Urso, Baco, Cabracán e tantos outros mitos que temosestudados em outros trabalhos.

A caminho de Éfeso, o casal Clareo e Isolda atinge a Ilha da Crueldade, assimchamada pelos trágicos amores de Casiano e Belesinda, que merecem ler-se nanovela. As Medeas e Cleopatras, os Hipólitos Pompeos e Agamenones clássicosreinam ali como em sua própria casa. Prosseguem os dois viajantes e alcançam aIlha da Vida, onde Clareo acha o traidor Menelao e o mata em campo de batalha. Atal ilha era o que de mais formoso poderia acontecer, semelhante aos palácios dePsique. Por fim, chegam Clareo e Isolda a Éfeso, onde esta compra Florisea comoescrava, sem conhecê-la, pois a donzela ainda vivia, contra o que se acreditava.Também aparece vivo ali Tersiandro, o marido de Isolda, em nova alusão aomundo do astral, no qual estão vivos os mortos e mortos os vivos. Para maiorcomplicação resultava que Tersiandro estava perdidamente apaixonado porFlorisea, a nunca esquecida nem traída esposa espiritual de Clareo. EntristecidaIsolda por sua desgraça de ver-se desprezada, decide-se a errar ao acaso pelomundo. Na viagem encontra ao sem par cavaleiro Felesindos que vagava pelomundo em busca de sua amada a princesa Luciandra, e decidem caminhar todosfraternalmente unidos 1.

A novela que nos ocupa parece, mais um agregado de duas partes distintas.Diria que aqui termina uma e começa outra, muito mais interessante e ordenada,parte que poderíamos chamar "Aventuras da Luciandra e Felesindos", emboraambas narradas por Isolda, espécie de sibila errante, simbolizadora do misteriosoculto de seu nome – Ísis -, culto que tanto teve que errar pelo mundo sob asperseguições combinadas da malícia e a ignorância. Confirmam-nos nesta opiniãoas últimas palavras da novela, quando lamenta nela o autor haver-se perdido, não sóos quatro primeiros livros, mas também o sexto do original toscano, que seocupava da segunda parte das aventuras do Felesindos em demanda da Luciandra,até chegar à Casa do Descanso, depois de atravessar o Vale da Pena.

O Imperador da Trapisonda - diz a segunda parte da novela - tinha trêsfilhas: a segunda, casada com Altayes da França, filho do Rei da Macedônia; aterceira, Luciandra, a amada por Felesindos, irmão de Reselinda e de Periandra.Estefanía, a feiticeira de Thesalia, planeja roubar Luciandra e levá-la ao Vale da Penapara vingar-se do Imperador que tinha matado seu filho. Felesindos, novo Ulisses,decide encarar todo sofrimento e perigo a fim de achar e resgatar a sua amada.Nessas pesquisas é quando lhe encontra Isolda e se decide a lhe fazer companhia.Correndo assim suas aventuras caem Felesindos e Isolda à entrada do temível Valeda Pena, onde uma formosa fada lhes leva a um castelo encantado e lhes mostra

1 A complicação do livro revela que a novela foi passando por muitas mãos pecadoras. Este morrere reviver dos personagens nos traz à memória aquele primeiro ensaio do drama de Wagner em quetão logo morriam como viviam os personagens.

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como em visão a Casa do Descanso, onde a feiticeira tinha Luciandra confinada. Apassagem em que a novela descreve ambas as mansões é dantesco por completo.Ali é onde Felesindos ouve que, para resgatar Luciandra, era preciso avistar-se como sábio Rusismundo, adepto que habitava nos Montes das Maravilhas Naturais, "sob omesmo céu que antigamente Atlas sustentara com seus ombros". A visão, aodesaparecer, deixa entrever a possibilidade de que dito sábio poderia achar-se emDamasco ou na Alexandria. Isolda e Felesindos empreendem o caminho deDamasco, onde naquele tempo o Rei tinha decretado um torneio para conceder amão de sua filha Felesinda, formosa jovem cobiçada, igualmente, pelo Duque deGandía e por Belerofonte, filho do Duque de Atenas, que habitava na Ilha da Vida.Felesindos se vê obrigado a tomar parte na festa e tentar a muito perigosa aventurado Castelo do Amor, onde tem que lutar com os três cavaleiros mais temíveis domundo, que são: O Sofrimento, O Cuidado e O Sofrimento. Que grande filosofia encerraa disputa de Felesindos com este último! Quantas vezes lhe trata de vencer ecombater, outras tantas O Sofrimento resiste; mas é vencido, finalmente, pelocavaleiro sem mancha, assim que percebe que "terá que se fazer amigo e irmão dopróprio Sofrimento", porque quem chega a considerar como igualmente ilusóriosos prazeres e os dores, está, como ensina o Bhagavad-Gita, no nobre caminho daliberação definitiva. Quanto à luta que vem depois entre os partidários de Palas, oua Mente sem amor, e os partidários do Amor-Sabedoria, ou Vênus, pouco temosque dizer, pois é o eterno simbolismo da luta humana entre o coração e a cabeça...No já conquistado Castelo do Amor Felesindos vê por um momento sua amada; maso castelo desvanece-se por encanto, deixando só a lenda de que o amante ainda temque procurar a sua amada nos Vales Amorosos.

Atravessam, em seguida, Felesindos e Isolda para Alexandria, e dali para odeserto líbico dos anacoretas. O tenaz Felesindos, ou O Cavaleiro das Esperas,auxiliado por pastores, ganha a batalha pelo amor, apesar da oposição que lhe fazemApolo e Aurismunda, ou seja, "a donzela do ouro e da cobiça". Chegam então ambosa uma mansão celeste e prodigiosa, onde, entre o mar, o ar, o fogo e a terra, está aCasa da Fama. Caminham, enfim, os peregrinos entre as neves de Thesalia, ondevencem diversos monstros e harpias que pretendem se atravessar no seu caminho;cruzam múltiplas regiões infernais, e à mercê, enfim, da Palavra Sagrada, penetram,recordando Dante, no que poderíamos chamar Cidade do Diga, sem que possamosdizer qual das duas lendas, a da obra e a da Divina Comédia, copiou à outra, ou sepor acaso ambas beberam a inspiração na primitiva fonte greco-latina. Chegadosassim à mansão do Mestre, a quem procuravam, este ensina ao amante que paraalcançar, a sem par, Luciandra, sem cair com ela na triste região infernal, e subir emsua união à mansão celeste, era preciso "não ter amizade com o mundo, com acarne nem com o inimigo mortal e seus companheiros".

Ficou sozinha, pois, a desventurada Isolda, que seguiu errante seu caminhoaté chegar às costas da Espanha, onde pretende ser recebida em uma comunidadereligiosa, mas, por falta do abundante dote necessário entre aquelas discutíveisesposas de Cristo, é rechaçada, e se retira ao Alcalá, nas margens do Henares, e ali,

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"longe do mundanal ruído", Isolda escreve em seguida esta fiel historia de amor, cujasegunda parte, hoje perdida, continuava com as aventuras de Luciandra eFelesindos...

Detivemo-nos um tanto com a obra que antecede, porque ela é o germe danovela Os trabalhos de Perseu e Sigismunda, última das obras do Príncipe dos Engenhos, aqual, por sua vez, além de ser um curso de ocultismo, constitui um preciosoantecedente da lenda de Tristão e Isolda entre nós.

Recordemos o principal do argumento deste livro, do qual o próprioCervantes disse que seria "a melhor ou a pior de suas obras": a melhor se chegassea entender seu simbolismo, talvez velado para escapar à censura inquisitorial, e apior ou mais absurda no caso contrário, como acontece com todas as lendas.

Na última parte da Noruega, quase debaixo do pólo ártico - diz Cervantes aofinal da novela, quando revela os verdadeiros nomes do Perseu e Sigismunda, queperegrinaram pela terra, qual Tristão e Isolda, sob os respectivos pseudônimos doPeriandro e Auristela -, está a ilha que se tem por última do mundo, ilha cujo nomeé Tile, e a qual Virgilio chamou Tule 1, naqueles versos das Geórgicas, que dizem:

Ac sua nautaeNumina só colant: tibí serviat última Thule.

"Esta ilha é tão grande ou pouco menos que a Inglaterra; rica e abundanteem todas as coisas necessárias para a vida humana. Mais adiante, debaixo domesmo Norte, a trezentas léguas de Tile, está outra ilha denominada Frislanda quehaverá quatrocentos anos que foi revelada aos olhos das pessoas, ilha tão grande que temnome de reino e não pequeno. Do Tile é rei e senhor Máximo, filho da rainhaEustoquia - recordou esta, a sua vez, dizemos nós, do conde Eustáquio o maridode Isomberta, no mito do Cavaleiro do Cisne -. Dita rainha, ao morrer, deixou porherdeiro de seus estados a seu filho mais velho Máximo..." - O segundo filho, quehaveria de chegar a ser o verdadeiro herdeiro de seu reino, era o elegante ebelíssimo moço Perseu -. Eusebia, rainha da Frislanda - continua dizendo na novelaSeráfido, o tutor do Perseu -, tinha duas filhas de extrema formosura,principalmente a maior, chamada Sigismunda 2, jovem onde a Natureza colocoutanta formosura, que aquela, sob o temor da guerra que a faziam certos inimigosdeles, enviou-a ao Tile, em poder de Eustoquia, para que, sem sobressaltos, secriasse em sua casa, ou, talvez, com a secreta intenção de que o príncipe Maximinose apaixonasse por ela, como efetivamente aconteceu, porque, até estando foranaquele tempo o dito príncipe, ficou enamorado de Sigismunda à vista tão somentede seu retrato, como costumava a acontecer entre cavaleiros andantes. Mas

1 Esta é a Tule de Sêneca e de todos outros clássicos.

2 Estranha coincidência de nome com o Sigmundo ou Segismundo, Welsungo, pai de Siegfried, ecom o Sigismundo, protagonista do drama INICIÁTICO de Caldeirón, A vida é sonho.

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aconteceu também que, ao ver a formosura da Sigismunda, Perseu, o irmão menor,começou também a desfalecer de amor por ela até tal ponto que, lhe vendo suamãe Eustoquia em perigo de morte e contrastando o doce caráter do Perseu com orude e áspero de Maximino, ela mesma, nova Rebeca nórdica, aconselhou aos doisamantes que fugissem para longínquas terras sob pretexto de uma peregrinação aRoma, antes que retornasse Maximino, que era, pelo que se vê, um verdadeiroHunding feroz no conto de Cervantes.

"Além do Tile ou Tule, que agora se chama vulgarmente Islândia - repete anovela cervantina - está outra ilha chamada Frislanda, que descobriu Nicolás Temo,veneziano, no ano de 1380, ilha tão grande como a Sicilia; ignorada até então dosantigos e de quem é rainha Eusebia, mãe da Sigismunda. Há deste modo outra ilhapoderosa e quase sempre cheia de neve, que se chama Groelândia, em uma pontada qual está baseado um monastério sob o título de São Tomás... A ilha está, comoestá dito, sepultada em neve, e ainda acima de um monte está uma fonte, coisamaravilhosa e digna de que se saiba, a qual fonte derrama e verte de si tantaabundância de água e tão quente, que chega ao mar, e por bastante dentro dele, nãosomente derrete a neve, mas lhe esquenta de modo que se recolhem naquela parteincrível infinidade de diversos pescados, de cuja pesca se mantém o monastério etoda a ilha, que dali tira suas rendas e proveitos: esta fonte engendra deste modoumas pedras viscosas, das quais se faz um pegajoso betume, com o que se fabricamas casas como se fossem de duro mármore..." 1.

Deixando esta tão vacilante geografia e vindo à trama da novela cervantina,diremos que os dois amantes, Perseu e Sigismunda, seguiram o conselho maternal esob os nomes e respeitos de dois verdadeiros irmãos: Periandro e Auristelacomeçaram, como Tristão e Isolda, sua peregrinação pelos mares, onde seustrabalhos e aventuras, aumentados pela sugestiva beleza da Auristela, foraminfinitos. O pretenso navio mercante que os tira de seus lares, não era mais que umnavio pirata. Por revelação de um marinheiro, escapam milagrosamente do perigo,e vão dar em uma ilha onde naquele momento se celebravam os esponsais dos doischefes: Carino com Selviana e o de Solercio com Leoncia, casamentos contra a vontadedos quatro, porque Carino amava Leoncia, que não obstante ser feia de corpo eraformosa de espírito, e Solercio, por sua vez, de quem estava realmente apaixonadoera de Selviana. A intervenção dos dois simulados irmãos Periandro e Auristela,como protótipos do amor ideal sem mundanas conseqüências, põe as coisas em seulugar, e fazem, finalmente, dois matrimônios por verdadeiro amor, em vez de doismatrimônios por conveniência 2. Aqueles três casais ideais, de apaixonados, aqueles

1 Esta indicação relativa aos gêiseres ou fornecedores eruptivos de vapor de água nos prova que setrata da Islândia.

2 Outra singular coincidência entre o conto cervantino e a vida de Wagner. Casado com a vulgarGuillermina Planer e enamorado da ideal Matilde Wesendonk, esposa de um vulgar comerciante,passagem que inspirou ao Tristão, como é sabido. Quem pode riscar os limites entre a novela real ea realidade novelesca?

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seis campeões do ideal mais puro do Amor acima do sexo, logo vêem, entretanto,interrompida sua felicidade com a chegada de um navio corsário que arrebata àstrês donzelas. Em vão os três amantes iniciam a perseguição aos piratas pelosmares, à aventura, até que finalmente encontram o navio corsário, mas já sem seuprincipal tesouro, porque o capitão do mesmo, já defunto, tinha vendido Auristela,nada menos que ao príncipe Arnaldo, herdeiro do trono da Dinamarca, quem,apaixonado, por sua vez, da formosura sem igual da dita jovem, quis fazer dela suaesposa. Mas ela, fiel ao seu Periandro, conseguiu adiar sua tão temível desgraça,fingindo não poder se casar até realizar a promessa de peregrinar a Roma, promessaque sabemos havia efetivamente feito em união de seu amado Periandro.

Arnaldo, cego de paixão, não quer separar-se de Auristela, e parte com elaem uma grande nave; mas certos piratas a roubam, e a vendem a um povo bárbarode uma ilha que, pelo vaticínio de certo feiticeiro, tinha a superstição de esperar quedentre eles saísse um poderoso caudilho dominador de toda ou grande parte daterra, o qual nasceria da união da escrava mais formosa do mundo com um dosditos bárbaros, precisamente daquele que não reparasse nem fizesse gesto algum derepugnância ao tomar certa bebida feita com o pó do coração de cativos que eramimolados na ilha.

Esta última parte é a que Periandro ouve Taurisa relatar (serva de Auristeladurante o tempo em que o príncipe Arnaldo a tinha retido), quando a jovem,vendida como escrava aos bárbaros daquela ilha tinha chegado a cair em mãos dopoderoso Arnaldo que vigiava aquelas costas com esperanças de achar nela aformosa Auristela, a quem se supunha estar prisioneira na ilha de onde Periandroacabava de escapar depois de mil peripécias que omitimos.

Decidido, pois, Periandro a salvar Auristela, lança-se heróico a encarar osmaiores perigos, e assim, faz-se disfarçar de mulher e entregar como cativa aosbárbaros da ilha. Um dos caudilhos dos tais bárbaros, sem advertir sua verdadeiracondição varonil, apaixona-se por ela e enquanto isso Auristela, disfarçada a sua vezde varão, é tirada da mesma prisão em que antes jazia Periandro, para sersacrificada segundo o cruel costume da ilha; mas sobrevém um inesperado acidentepelo qual brigam uns com outros os bárbaros, os bosques da ilha ardem, e osprisioneiros amantes se reconhecem e, dando-as mãos, refugiam-se na longínquagruta do espanhol Antonio, quem, fugido de seu país, conseguiu viver longos anosna ilha sem ser descoberto pelos bárbaros, e constituído entre suas ocultas brenhasum lar modelo, com sua esposa, a antes bárbara Riela, e com seus filhos Constanzae Antonio.

Como é fácil deduzir, se por um lado vemos em Periandro e Auristela doispersonagens nórdicos idênticos a Tristão e Isolda da lenda escandinava com todo seulongo peregrinar pelos mares, também vemos, por outro, em todo seu vigor edesenvolvimento, outra simpática lenda semítica; a de Abraham e Sara bíblicos, queo capítulo XII da Gênese relata assim: "9. E passou Abraham mais adiante

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caminhando e indo para o deserto - 10. Mas sobreveio fome na terra e desceuAbraham ao Egito, para ali peregrinar, porque tinha prevalecido a fome na terra -11. E estando já para entrar no Egito, disse a Sara sua mulher: Sei que és mulherformosa - 12. E logo que lhe virem os egípcios dirão: És mulher dele; e me tirarão avida, e lhe reservarão - 13. Diga, pois, rogo-te, que é minha irmã: para que eu façabem por amor a ti, e viva minha alma por teu respeito - 14. Logo, pois, que entrouAbraham no Egito, viram os egípcios a mulher que era formosa em extremo - 15. Ederam parte ao Faraó, e a elogiaram: e foi levada a mulher a casa do Faraó - 16. Epor seu respeito trataram bem a Abraham: e teve ovelhas e vacas e asnos e servos eservas e asnos e camelos - 17. Mas o Senhor açoitou ao Faraó e a sua casa comenormes pragas, por causa de Sara, mulher de Abraham - 18. E o Faraó chamouAbraham, e disse-lhe: O que é isto que tem feito comigo? Por que não me declarouque era sua mulher? - 19. Por que motivo disse que era sua irmã dando lugar a quetomasse para mim por mulher? Agora, pois, aí tem a sua mulher, toma-a e vá - 20.E deu ordem Faraó a suas gente a respeito de Abraham: e acompanharam-no a elee a sua mulher com tudo o que tinha."

Por estas e outras infinitas analogias, que se poderiam particularizar entre osprotagonistas da novela cervantina e os de tantas outras lendas de As Mil e UmaNoites, começa-se a ver todo o ocultismo que naquela se encerra, e que eleva-seextraordinariamente em múltiplas passagens da mesma, graças ao véu astutamentejogado sobre eles para que pudessem escapar aos rigores da Inquisição, sem dúvida.Recordemos alguns.

Primeiramente, os nomes de muitos personagens da novela são simbólicos.Perseu e Parsifal não estão tão longe em sua etimologia, que quando falarmos deste,ao tratar da última obra de Wagner, não possa aplicar-se aos dois. O nome deguerra que Perseu toma, para ocultar sua verdadeira condição, é Periandro;literalmente "o que luta e trabalha em torno do androginismo"; que busca a doutrinaHermética; que se aproxima do supremo triunfo sobre o sexo; que descobriu em si,pela iniciação, sua outra metade ou contraparte divina, sua Auri-stella, sua EstrelaÁurea ou sublime Augoeides", que outra coisa não simboliza os nomes de Auristelaou Sigismunda. Neste sentido, o amor de Periandro e Auristela, que triunfa heróicosobre o sexo ao longo da imensa peregrinação de ambos pelas ilhas setentrionais,Inglaterra, Portugal, Espanha, França e Roma, ou seja, a terra inteira é equivalente àquantos amores simbólicos encerram as lendas de Abraham e Sara, Jacob e Raquel,Paris e Helena, Sigmundo e Siglinda, Dante e Beatriz, Abelardo e Eloísa, etc..

Por isso também Auristela, ou seja, Sigismunda é o protótipo de todahumana formosura transcendente, o símbolo do humano Ideal, puro e semmancha, triunfante sempre através dos infinitos perigos da luta com os Poderes daConcupiscência ou do Mal ao longo da peregrinação pela Vida. Por isso, enfim,tudo o que vá à régia Auristela-Isolda, fica enamorado dela; embora ninguém, senãoPeriandro seja digno, por sua abnegação heróica, de merecê-la e de alcançá-lafinalmente.

O começo da novela não pode ser tampouco mais simbólico. Nele aparece

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Periandro algemado como um titã e submerso em lôbrega masmorra do Corsicurbo,suspirando pela liberdade como o príncipe Sigismundo de A Vida é Sonho em seudesterro na Montanha. Coelia ou Cloelia tira dela, levantando a conhecida PedraIniciática, para entregá-la a seu destino, que é o de ser lançada em frágil balsa amercê das ondas, qual Moisés e qual os príncipes de várias lendas das Mil e UmaNoites. Do mesmo modo, qual Moisés e José caem em mãos egípcias, cai Periandro,disfarçado de débil mulher, em mãos dos bárbaros da ilha, os comedores de corações, osquais, ao modo dos cegos judeus, esperavam-no tudo de um redentor material, deum grande conquistador guerreiro. Aquela ilha, em troca, fiel imagem do mundo ede suas crueldades bárbaras, é o único lugar aonde Periandro chega a achar a suaprocurada Auristela, a ponto de ser imolada também por aqueles homens-bestas,eternos rivais de quanto é puro e quanto é bom. O espanhol Antonio de Villaseñor,o eterno Solitário ou Mestre da Montanha, salva, entretanto, aos dois amantes e àssuas gentes daquele incêndio de Sodoma, daquela catástrofe atlante que destrói àmalvada ilha..., e se as passagens anteriormente citadas, relativas às ilhas nórdicassalvas daquela imersão da Atlântida, e alma de todas as lendas dos Eddas, nãobastassem para esclarecer a ocultista intenção de Cervantes, esta outra passagembastaria, porque, conforme reza a mesma dedicatória da obra ao conde de Lemos, oautor, já em transe de morte - como Copérnico ao dar a luz seu Novo Sistema doMundo - "quis passar ainda além da morte mostrando sua intenção", sua intençãooculta, partindo sempre, em que pese todo véu literário, "com a cara descoberta" 1.

No capítulo VI, depois das aventuras já enunciadas, os fugitivos peregrinosatracam à outra ilha cheia de neve e deserta, onde jaz solitário Rutilio, brilhantehistrião do Sena que, por certos excessos amorosos, tinha tido a desgraça de cairnas redes de uma feiticeira, que lhe tinha salvado da morte arrebatando-o pelos areslonge de todo contato com o mundo. O coitado, em um supremo esforço,planejou, entretanto, a matar à feiticeira quando ela tinha tomado a forma de umaloba. Depois, Rutilio chegara deste modo naquelas paragens nórdicas, mas não semcair também entre bárbaros, de cuja maldade conseguiu salvar-se graças "às suashabilidades ginásticas" - as mesmas de Cervantes v de todos os iniciados para dar aconhecer a verdade sem descobri-la - e "a que se tinha fingido surdo-mudo"; querdizer, graças ao sigilo iniciático... O relato de Rutilio é coroado por este simbólicosoneto, que representa a marcha augusta do Navio de nossa Alma remando para oIdeal oculto. Nós somos que destacamos.

1 Estas e outras passagens muito estranhas tanto do Perseu como do Quixote e de outras obras deCervantes, fazem-nos suspeitar que não estejam tão fora de razão, como acreditam nossos críticos,as idéias expostas com grande copia de dados e de felizes suscitações por nosso nobre amigo ocoronel D. Baldomero Villegas em sua Psicologia das Novelas Exemplares do insigne Cervantes eem seus formosos estudos simbólicos sobre Dom Quixote, dignos de ser lidos por todos os homenscultos.

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"Mar sesgo, viento largo, estrella clara,camino, aunque no usado, alegre y cierto,al hermoso, al seguro, al capaz Puerto,llevan la nave vuestra única y rara.

En Scilas ni Caribdis no repara,ni en peligro que el mar tenga encubierto,siguiendo su derrota al descubierto,que limpia honestidad su curso para.

Con todo, si os faltase la esperanzade llegar a este puerto, no por esogiréis las velas, que será simpleza,

que es enemigo Amor de la mudanza,y nunca tuvo próspero sucesoel que no se aquilata en la Firmeza."

Marcha augusta para o Ideal em busca da Morte redentora, aquela que a suavez cantou Espronceda dizendo:

"Isla soy yo de Reposoen medio el mar de la vida,el marinero allí olvidaJa tormenta que pasó;allí convidan al sueñoaguas puras sin murmullo,allí se duerme al arrullode una brisa sin rumor...

En mí la ciencia enmudece,en mí concluye la duda,y árida, clara y desnudaenseño yo la verdad;y de la vida y la muerteal sabio muestro el arcano,cuando al fin abre mi manola puerta a la eternidad."

Aquele que tais versos cantava era um famoso trovador e amante português,que morreu ao lado dos fugitivos, depois de lhes contar a peregrina história de seustristes amores com uma mulher sem par que, não obstante haver prometidodesposar-se com ele, tinha-o feito com Cristo, professando em um convento.Genial é em extremo o epitáfio que a tão sublime apaixonado fosse consagrado em

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sua pátria portuguesa, ao dizer do livro III da obra cervantina:AQUI JAZ VIVA A MEMÓRIA

DO JÁ MORTOMANUEL DO SOUSA COUTINO,

CAVALEIRO PORTUGUÊS,QUE SENÃO PORTUGUÊS AINDA FORA VIVO:

NÃO MORREU À MÃOSDE NENHUM CASTELHANO,

SENÃO ÀS DO AMOR, QUE TODO O PODE;PROCURA SABER SUA VIDA,

E INVEJARÁ SUA MORTE,PASSAGEIRO 1.

Estranhas são também as passagens do primeiro livro sobre o homem-lobo,entidade ocultista que deste modo veremos nos welsungos wagnerianos; na loba queamamentou Remo e Rômulo, e em cem outros contos. Com efeito, Antonio, antesde atracar à ilha Bárbara, passa frente à dos lobos, e um deles, em sua própria línguaespanhola, diz-lhe que se afaste; a feiticeira que transportou Rutilio pelos ares étambém uma loba. Enfim, em outra passagem, o astrólogo Mauricio (da dinastiados Mauros, Morías ou Maruts, aos que em outra parte aludimos) trata a respeitoda superstição conhecida na Noruega de que em certas passagens solitárias dasIlhas Britânicas andam pelos campos, manadas de lobos que não são mais quehumanos convertidos em lobos por cruéis metempsicoses kármicas, coisarelacionada com outras metamorfoses como a do rei Artus em corvo e a dos Tuathade Banana feitos gnomos e fadas, também. Conforme dizia Mauricio, "é umaenfermidade a quem os médicos chamam mania lupina, de qualidade tal, que o quedela padece acredita que se converteu em lobo, e uiva como lobo e, junto comoutros atingidos pelo mesmo mal, andam em bandos pelos campos, como oschamados lobos menares da Sicilia, homens que, antes que lhes dê tão pestíferaenfermidade, sentem-no, e dizem aos que estão junto a eles que se apartem e fujam

1 Este epitáfio é irmão gêmeo destes outros que se diz existem no cemitério de São Braz d'Alportel(Portugal):"aqui fica ou santo patrão dou povo santiago pires. foi santo e tendo poder pró pegar FOGO aotodu ou mundo não ou fiso.""aqui yase manoel de jesus, ou mais lhe valham de vos capitães dou exército. ninguem fase porasima dá lápide porque atei á terra treme.""aqui yase ou subtenente de marinha joão figueras.um CAVALEIRO muito honrado; não morreu nas guerras, nem com mouros á brigar, maismorreu n'a cama como home muito fidalgo."Todos eles longe de emprestar-se ao ridículo, como acreditam quatro tolos, revelam-nos a docepoesia e grandeza sem par da alma portuguesa.A descrição que Cervantes faz do lupinismo corresponde por inteiro à hidrofobia, estranhaenfermidade a respeito de cujo fundo ocultista nada mais por hoje podemos dizer.

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deles ou que os atem ou encerrem, porque se não se guardam, fazem-nos pedaços abocados e os esmigalham se puderem com as unhas, dando terríveis e espantososalaridos, e isto é tão verdade, que entre os que se tem que casar se faz informaçãobastante de que nenhum deles é atingido desta enfermidade, e se depois, passandoo tempo, a experiência mostra o contrário, dirime-se o matrimônio” 1. Também éopinião de Plínio, conforme escreve no livro VIII, capítulo XXII, que entre osárcades há um tipo de gente, as quais, atravessando um lago, penduram em umcarvalho todas suas roupas, e entram nus terra adentro, e se juntam com a gente desua linhagem que ali se acha em figura de lobos, e ficam com eles nove anos, aocabo dos quais voltam a passar o lago e recobram sua figura perdida ... Todo issopode ser, replicou Mauricio, porque a força dos feitiços dos maléficos eencantadores nos faz ver uma coisa por outra, e fique daqui sentado que não hágente alguma que mude em outra sua natureza original...

O roubo de Auristela e o de tantas outras donzelas para a Ilha Bárbara têmtambém seu parentesco com o romano das sabinas e com o famoso tributo astúriodas cem donzelas, lenda que acabamos de ver ao nos ocupar de Sir Morold deTristão. Mas o simbolismo cervantino chega ao auge nos capítulos que consagra aogrande astrólogo Mauricio, à sua filha Transila e seu genro Ladislau. Estes trêspartidários da boa lei vêm fugindo de sua pátria que é uma ilha vizinha à Ibernia,onde tinham o bárbaro costume da prostituição legal ou religiosa à maneira da tãoconhecida dos templos do Ásia menor. No navio que traz para esses três justos,vêm também aferrolhados dois personagens simbólicos: Clódio ou Cláudio, oclaudicado, o caído, o feiticeiro contumaz, e Rosemonde, a célebre fada libertina, aKundry daquele cervantino Klingsor, pois Rosemonde, ou melhor, Rosa-inmundasegundo a chama Clódio, era "aquela dama muito bela que tinha sido concubina dorei da Inglaterra e de cujos impudicos costumes há longas histórias e longuíssimasmemórias entre todos os povos do mundo". Rosemonde sente pelas feitiçarias deClódio o mesmo horror impotente que logo veremos Kundry de Parsifal sentir peloMago negro Klingsor, e que todos estes simbolismos se referem aos últimos dias daAtlântida, ou seja, aos que precederam ao dilúvio universal bíblico, não deixa dúvidas otexto do soneto que canta Rutilio ao partir a nave que leva os bons e maus para onovo destino de suas peregrinações pelo mundo, porque diz:

1 A descrição que Cervantes faz do lupinismo corresponde por inteiro à hidrofobia,estranha enfermidade a respeito de cujo fundo ocultista, por hoje, nada maispoderei dizer.

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"Foge o rigor da mão invencível,advertido, e encerra-se na Arcade todo o Mundo, o General-Monarca 1

com as relíquias da linhagem humana.

O grande Asilo, o soberanolugar rompe os foros da Parca,que então fera e licenciosa abrangequanto alenta e respira o ar vão.

Vêem-se na excelsa máquina prender-seo leão e o cordeiro, e em segurapaz a pomba ao feroz falcão unida,

Sem ser milagre o discorde amar-se,que no perigo comum e desventuraa natural inclinação se esquece."

O navio que levava todos nossos personagens da fábula cervantina de Perseue Sigismunda naufraga, segundo os vaticínios geomânticos do grande Mauricio,mercê à impudicícia de alguns de seus moradores, porque o sexo por pouco que sedesvie de seus naturais e únicos leitos legítimos do matrimônio, é o maior obstáculoque tem nossa raça para alcançar a meta de seus ideais kármicos. Os principaispersonagens da obra se salvam, entretanto, em dois esquifes: um que leva as mulheres,e outro os homens. Quanto às peripécias que acontecem a uns e outros nãointeressam aqui. Basta dizer que Periandro e Auristéia ficam separados de novoporque nenhum abismo há maior entre os humanos que o abismo do sexo comsuas tiranias, abismo que, ao dizer de Platão em seu Banquete, os deuses invejososabriram entre as duas metades da Humanidade. Então foi quando Periandro, êmulodas façanhas do jovem Buddha, segundo a lenda que nos dá Edwid Arnold em ALuz da Ásia, vence em um torneio excepcional que se verifica à época da corte dorei Policarpo.

O segundo livro do Perseu e Sigismunda, verdadeiro tema de ópera que senão fosse espanhol, Wagner não o teria ignorado, começa com uma borrascaespantosa que faz naufragar a nave e arrebata todos seus passageiros, menos osvários personagens principais da obra, os quais são tirados da fechada câmarainterior, ou caverna iniciática, como Jonas do ventre da baleia. Nossos personagenssão levados logo à corte de Policarpo, onde Auristeía acha a seu Periandro, vítimadas amorosas armadilhas de Sinforosa, a segunda filha do rei, e este, a sua vez,apaixona-se por Auristeía. Recorda-se mais ou menos, com este tema, ao temafundamental do Crepúsculo dos Deuses, no qual a magia perversa de Hagen, filho deAlberico, o Nibelungo, quer romper a eterna união espiritual dos dois amantes

1 Xisustros-Noé, o Manú da Quinta Raça Ária.

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Brunhilda e Siegfried, dando aquela ao rei Gunther e este à princesa Gutruna. Atrama do drama intenso, que por tal motivo se desenvolve na corte de Policarpo,também não tem poucas passagens de magia, como aquela em que Clódio, o Magonegro, formula sua suspeita a respeito de que Periandro e Auristeía não são irmãos,e sim amantes, e na que Zenotia a feiticeira, enfeitiça Antonio o jovem - outrosimilar do casto José, bíblico, e do jovem Siegfried, wagneriano - e este, querendoferi-la, mata em seu lugar ao traidor mago. A feiticeira Zenotia, famosa por suasmás artes pelas quais os peregrinos tratam de escapar daquele reino egípcio, como osisraelitas e como os sobreviventes fiéis da Atlântida, aconselha ao rei Policarpo,verdadeiro Faraó cervantino, que não lhes deixe partir, pelo que as coisas ficam detal modo que Periandro, com grande desgosto do astrólogo Mauricio, a quem nãolhe ocultam os perigos da tardança na fuga, relata minuciosamente sua história domomento em que deixou com a Auristeía seu país natal, até aquele outro em quecaiu prisioneiro na ilha Bárbara, ou seja, a época em que lhe aconteceu aqueleencontro com Carino e Selviana, Solercio e Leoncia, que indicamos no princípiodesta nossa rápida exposição do argumento 1. Os peregrinos, tão insidiosamenteescravizados na corte do Faraó-Policarpo, escapam, finalmente, em um navio,

Para não complicar mais esta possivelmente não pouco complicada exposição omitimos detalhesocultistas de certo interesse que podem ver-se no relato que faz Periandro de suas primeirasaventuras, no segundo livro da obra, antes de aparecer no primeiro livro, na ilha Bárbara; porexemplo: o da espécie de regata fluvial na ilha Paraíso, em que a barco do Amor é sobrepujadapela do Interesse, esta, a sua vez, pela da Diligência e todas vencidas pela do Karma ou A BoaFortuna; o do encontro de que poderíamos chamar navio das Amazonas, capitaneado pelaSulpicia, sobrinha do Cratilo o rei de Lituânia e viúva do Lampidio; o sonho no que Periandro vêprimeiro sair de uma cova à deusa da Sensualidade, em uma nave rota, e logo a seu Auristela,simbolizada pela Castidade, com suas duas donzelas a Consciência e a Pudor e, enfim, o encontrocom o navio no que Leopodio, rei do danaos, leva presa a sua concubina e ao amante desta, comocastigo a ter profanado o mais augusto. Todas estas aventuras acontecem na obra ao Periandro eseus acompanhantes quando vão feito corsários contra os corsários e ladrões dos ladrões, quer dizer,quando militan já nas filas ativas dos ocultistas da boa lei, cuja missão única, qual a dos fagócitospurificadores do sangue, é a de perseguir por mares e terras aos secuaces do mal, em lutashoméricas como cantadas em todas as grandes epopéias indostánicas. Periandro, com efeito, ao verque a ele e a seus amigos pescadores arrebataram suas almas, eles inca, como Jesus aos pescadores,lhes dizendo estas razões soube: "nós mesmos nos fabricamos nossa ventura e não há alma que nãoseja capaz de levantar-se seu assento: os covardes, embora nasçam ricos, sempre são pobres, como osavaros mendigos. Isto lhes digo, paira que melhorem sua. Sorte, e a que deixem o pobre enxoval deumas redes e uns estreitos navios e procurem fama que lhes engrandeça sobre outros homens."Estes pensamentos, calcados no mais puro simbolismo evangélico, são ampliados pelo manetaimortal na subseqüente passagem de sua obra, no que, sob pretexto de censurar a covardia dosuicídio, afea a conduta dos que antepor aos grandes ideais humanos os egoísmos retardadores deseu lar e de seus filhos, já que à sombra destes sentimentos tão Santos se paralisaram tão nobresatividades e realizado tantos crimes.

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precisamente quando este rei deu, por conselho de Zenotia, na cidade, um alarmefalso de incêndio do palácio, como em nova Sodoma, para roubar, ele a Auristela eZenotia a Periandro. O navio leva depois aos fugitivos à ilha das Ermidas.

A ilha das Ermidas era o santo retiro do Renato e Eusébia, os verdadeirosAmantes de Teruel, franceses, cuja história era bem peregrina. Renato, cavaleiro dacorte, amava com a maior honestidade a Eusébia, dama real; outro cortesão,Libsomiro, apaixonou-se também por Eusébia, e por ciúmes ao não ver-se delacorrespondido, levantou aos amantes tão atroz calúnia, que houve necessidade deremetê-la ao Julgamento de Deus, ou seja, à decisão pelas armas. Por triste burla doDestino, a sorte na briga foi favorável ao caluniador, e Renato foi vencido. Cheioentão de vergonha e como protesto de sua inocência e contra o Destino, que assimparece proteger às vezes a maldade dos homens, retirou-se do mundo, naquelanevada e solitária ilha, onde sua fiel Eusébia se apressou a lhe fazer companhia.Ambos amantes, como os da famosa abadia de Gratz e outros da Áustria e daAlemanha, viveram como irmãos, praticando juntos as mais austeras devoçõeseremíticas, até que certo dia, em transe já de morte Libsomiro revelou toda averdade, e ambas desventurados foram reconduzidos ao agrado real e, desposando-se, viveram felizes em sua pátria, o resto de seus dias.

Aqui, Cervantes, como se vê, deixa transparecer, como nunca, o simbolismode sua obra, encaminhando-nos ao verdadeiro ensino de boa Magia, encerrada noemblema dos amantes platônicos ou puros. Se por acaso algo faltasse, pinta nosmesmos capítulos um estranho cavalo selvagem e muito formoso - nosso corpo esuas rebeldes paixões sensuais - que só se deixava selar do próprio rei Cratilo, masao que mão alguma humana pôde nunca frear. O puro Periandro, com os poderesmágicos que sua mesma pureza lhe dava sobre o mundo passional que nos écomum com os animais superiores, prova a aventura de lhe montar, deixando-ocorrer, louco, a seu arbítrio, até que chega desbocado a um precipício da costa e deali, sem desmontar-se, deixa-lhe jogar-se em sua loucura. Este verdadeiro salto nastrevas, praticado também simbolicamente em certas iniciações ocultistas, doma aofim ao cavalo, o cavalo de nosso ego inferior e lhe torna manso como cordeiro.

Em tudo que antecede se mostra Cervantes qual verdadeiro sábio que era, etalvez recebeu a iniciação em seu pobre e triste cativeiro, onde graças à raizameocultista das gente maometanas pôde chegar a conhecer as doutrinas do Oriente.Para acreditá-lo assim, fundamo-nos na perfeita concordância de que os amoresideais do Perseu e Sigismunda, do Renato e Eusebia, do cavaleiro português e suadama, etc., amores tudo da mais pura marca cavalheiresca, não são senão símbolosdo verdadeiro ensino ocultista que Blavatsky nos dá, no terceiro tiro de A DoutrinaSecreta (páginas 389 e 410 da edição espanhola), nestes termos:

"A Magia é coetânea da terceira Raça-Raíz (a Lemuriana ou pré-atlante),cujos indivíduos procriaram ao princípio por Krisyashakti, ou seja, pela Vontade e aIoga, e acabaram por engendrar segundo o atual procedimento. Como quero que amulher ficou organicamente com o perfeito número cósmico dos dez orifícios, ouseja,o número divino das letras do nome do Jehovah, a teve por mais elevadamente

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espiritual que o homem - e daqui os simbolismos das Helenas, as Walkyrias e asAuristelas -. No antigo o Egito, as estipulações matrimoniais continham umacláusula, segundo a que a mulher devia ser "a senhora do senhor" e sua verdadeiradominadora. O marido se comprometia a "obedecer a sua esposa" para a produçãode resultados alquímicos, tais como o elixir da vida e a pedra filosofal, pois osalquimistas necessitavam, com efeito, a ajuda espiritual da mulher. Mas, ai doalquimista que tomasse este auxílio em seu morto sentido de união sexual! -Simbolizado nos Arnaldos, Policarpos, Clodios e demais apaixonados inferiores dadivina Auristela - Semelhante sacrilégio lhes arrastaria à magia negra e forairremediável seu fracasso. Os verdadeiros alquimistas da Antigüidade se ajudavamde mulheres velhas, evitando escrupulosamente toda relação com as jovens e seacaso algum deles era casado, tratava a sua própria esposa como irmã alguns mesesantes de proceder à operação alquímica e enquanto a levava a cabo", como vemosaqui ao longo das penosas viagens dos dois amantes.

"A fonte e base da Magia está no Espírito e no Pensamento, seja no planopuramente divino, seja no plano terrestre. Os que conhecem a história do SimónMago - a verdadeira, não a caluniosa da Igreja -, podem escolher entre as duasversões de magia branca e de magia negra, que se dão a seu amor e sua união com aHelena - Helena ou Selena -, a Lua, chamada por ele seu Epinoia ou Pensamento.Os que, como os cristãos - e como a tal Miro ao Renato -, tinham interesse emdesacreditar a seu perigoso êmulo, disseram que Helena do Simón -como Helenada Troya e Helena do Fausto- era uma formosa mulher de carne e osso, a quemSimón Mago tinha encontrado em um lupanar de Tiro, e que, conforme opinavamseus biógrafos, era a reencarnação da Helena grega. Como podia, pois, ser ela oPensamento divino? No Filosofumena se atribui a Simón Mago a afirmação de quenos anjos inferiores ou terceiros Eones, criadores, havia elementos de mal porcausa de sua materialidade, e que o homem procedente deles adoecia deste vício deorigem. O que significava isto? Que quando os terceiros Eones chegaram a possuir,a sua vez, o Pensamento divino pela recepção do Fogo, em vez de criar ao homemcomo um ser completo, de conformidade com o plano do Universo, não lhecomunicaram de um princípio a faísca divina (o Pensamento ou Emana terrestre), epor isso, o homem, demente, ou melhor, amante, cometeu o pecado original, comomilênios antes o cometessem os anjos ao negar-se a procriar. Finalmente, depois dereter os terceiros Eones a Epinoia, Pensamento divino, prisioneira entre eles, e delhe infligir toda classe de injúrias e profanações, concluíram por encerrá-la no jácorrompido corpo do homem. Logo depois disto, conforme interpretam osinimigos do Simón, Epinoia passou de um em outro corpo feminino através dosséculos e das gerações, até que Simón a reconhecesse no corpo da prostitutaHelena, a "ovelha desencaminhada" da parábola - a Magda-Helena ou Helena daMagda -. Pintam deste modo ao Simón como El Salvador baixado à terra pararesgatar esta ovelha e aos homens em quem Epinoia está ainda sob o domínio dosanjos inferiores. Daqui que os mágicos feitos do Simón se atribuam a suas relaçõessexuais com a Helena e se considerem magia negra. Certamente, os principais ritosdesta classe de magia - nos que a mulher, nas chamadas missas negras, é de uma vez

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altar, cálice e vítima -, apóiam-se na interpretação literal de mitos tão nobres comoo ideado pelo Simón para simbolizar seus ensinamentos. Quem o compreendeuperfeitamente, souberam que Helena significava os esponsais do Nous (Atmá-Buddhi) com Emane, a união mediante a qual se identificam a Vontade e oPensamento e ficam dotados ambos, em sua união, de divinos poderes. Porque aessência do Atman, do primitivo, eterno e universal Fogo divino que existiu, existee existirá sempre, pertence a todos os planos. Buddha é seu veículo que emconjunção com Emana, determinam o masculino - feminino. Daqui que quandoSimón o Mago afirma de si mesmo que é o Pai, o Filho e o Espírito e diz que Helenaé seu Epinoia ou Pensamento divino, simboliza com isso a união do Buddhi comEmana. Helena, pois, não representava, enfim, senão Shakti, ou potência femininado homem interno.

Estendemo-nos na sábia entrevista, porque, a mais de ser ela muitopertinente na novela de Cervantes, relaciona-se com o primeiro escolho que todoocultista da boa lei tem que encontrar em seu caminho com a falsa e muito perigosateoria das almas as gema. Seja-nos permitido, portanto, falar algo disso.

O verdadeiro amor humano, embora tenha por incentivo o sexo e por fimessencial a reprodução da espécie, começa sempre por algo supremo, avassalador,inconsciente e verdadeiramente divino. O verdadeiro amor juvenil dista tanto dosexo nos primeiros momentos como o céu da terra. É uma verdadeira verticalsobre o plano inferior de nossas misérias físico-sexuais, que parece dirigir-se - e aser sozinho se dirigiria sem dúvida - a cénit do Ideal sem a mais leve sombra deimpureza. A conservação deste perfume ideal, que um instante não mais é purofogo de Atma-Buddhi, criou muitos Santos na Tebaida, como Renato e Eusebia doconto cervantino; mas tal vertical lentamente vai declinando até coincidir porinteiro com o plano material do sexo e seus fins terrestres, que mantêm vivo oterrível drama de homens e mulheres sobre a terra no seio da vulgaridade maisperfeita.

Ocorre deste modo outro fenômeno misterioso. Tão logo, com efeito, comoo homem sincero pretende elevar-se de semelhante vulgaridade e dá os primeirospassos no Atalho do Ocultismo, a magia negra que sobre este nosso mundoinferior domina, ao menos no presente kali-trampa, sai-lhe ao encontro para lhecortar o caminho com uma teoria sugestiva que a muitas almas perdeu e a nãopoucas pôs, como a Wagner, ao bordo mesmo de uma indefectível perdição. Afalta de outro nome, eu a chamaria a muito perigosa teoria das almas geme as dosseres não vulgares, homem e mulher, que indefectivelmente tropeçam entre si noAtalho. Seu amor, nos começos, ao menos, é transcendente e puro, muito mais,sem dúvida, por melhor documentado em ciência, em amor e em ocultismo queaquele outro primeiro momento semi-inconsciente do amor platônico ao que antesaludíamos. Além disso, por estranha maia mental, pode achar tal amor infinitascorrelações aparentes, já nos pares conjugados dos sóis dobre do céu, e no da Terracom a Lua, já no anfiaster protoplásmico das células determinantes, como é sabido,do misterioso fenômeno da cariocinesis ou duplicação morfológica da célula uma,

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já no universal simbolismo das epopéias e de toda a restante literatura, onde o amorideal entre dois seres do oposto sexo constitui a alma mater da produção literária,já, enfim, na própria história com quantos movimentos Cavalheirescos aenobreceram, acabando, entretanto, tragicamente, qual os trovadores proveníales, àmãos de um Simón do Montfort, e qual os trovadores e pastores idíliostrianonescos à mãos do cataclismo geológico conhecido pela Revolução francesa,para não desmentir nem uma vez tão somente que Amor e Morte são sinônimos. Éisso o último e desesperado esforço material que o sexo físico realiza para velar porseus foros animais, seriamente ameaçados de morte nos portais da iniciação,esforço simbolizado pelo irresistível espectro da amável Chemmi egípcia fazendocair ao candidato, como Kundry fizesse cair ao Amfortas e tratasse de fazer cair,sendo vencida, ao puro e salvador asceta Parsifal... Infinitas passagens da lendaoriental e das mil e uma noites nos apresentam, enfim, a cena, cena tão mais realquanto mais universalmente é ela vivida pelos neófitos no Atalho.

A clássica lenda do Apuleyo sobre Psique e Eros, e a escandinava de Isolda eTristão, tem também um eco no Perseu, de Cervantes, além de constituir ela todo oconteúdo essencial do amor entre a Auristela e Periandro. No terceiro livro - livrono qual mais concessões vulgares se fazem aos gostos da época - depois de terdesembarcado os amantes em Lisboa e cruzado toda a Espanha e o meio-diaprovençal, tropeçam em uma estalagem da França com a formosa Ruperta, mulherque tinha sido do conde Lamberto de Escócia; um conde a quem por ciúmes edespeito tinha assassinado Claudino Rubicón. Ruperta, ao ver-se assim privada dadoce companhia de seu marido, espécie de Sir Morold da lenda tristânica, tinhaconservado sua cabeça em uma urna funerária à maneira como Belerma guardasseo coração do Durandarte, e jurado por ela que assassinaria a sua vez a Croriano, ofilho do assassino Claudino Rubicón, gentil mancebo de vinte e um anos. Chega ojovem à estalagem: Ruperta, armada com uma adaga, esconde-se em seudormitório, e quando Croriano se entrega ao descanso, acende seu abajur e altasobre ele a arma, pronta a descarregar; mas, Oh, poder da beleza inocente! AquelaDesdémona se sente subjugada pela suprema formosura de semelhante Adonis, esem adverti-lo, deixa cair uma ardente gota sobre o peito do mancebo, a quemacordada. O resultado final é idêntico ao dos rivais Isolda e Tristão, quando bebemequivocadamente a beberagem amorosa e ambos ficam detentos nas redes do Deusdo Amor que o vence tudo... Súbito se apresenta na estalagem o ancião judiciárioSoldino, que prediz vai estalar na morada um espantoso incêndio. O incêndioprognosticado pelo astrólogo estala, com efeito, e Soldino libera ao Periandro,Auristela, Constanza, Antonio, Ruperta, Croriano e às três formosas damasfrancesas denominadas Deleasir, Belarminia e Feliz Floresce, levando-lhe a suacova, uma verdadeira cova iniciática, onde penetram e por onde passam a umjardim encantado, retiro muito doce do sábio, no qual, este, fugindo da guerra,achou a paz, e depois da fome e sede de justiça do mundo encontrou a fartura,estudando as matemáticas e contemplando o curso do sol, da Lua e das estrelas...

Os elementares, ou seja, a chamada "posse demoníaca dos epiléticos" estátraçada de mão professora pelo Cervantes no capítulo dos amores de Andrea

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Marulo e Isabel Castrucho, e recordado o Livro dos provérbios, de Salomão, aocomeçar o quarto livro, com o que entram os peregrinos em Roma, em sentençascomo estas da Flor de aforismos originais.

"Mais deve desejar-se ser mau, com esperanças de chegar a ser bom, quebom com propósito de ser mau." "Não há carga mais pesada que a mulher ligeira.""Não deseje, e será o homem mais rico do mundo" - alusão à doutrina oriental damorte do desejo, como médio para alcançar o Nhirvana ou Moshka -. "Ditoso osoldado que, quando briga, sabe lhe está olhando seu príncipe", lembrança denossas lutas na terra. "A formosura que se acompanha com a honestidade éformosura verdadeira, e a que não, não é mais que um bom parecer", etc., etc. Àmaneira, enfim, de tantos exemplos de estranha lealdade à palavra empenhada,refere-nos também o caso de Dona Giomar de Insípida, dama portuguesa que dárefúgio em sua câmara a um fugitivo açoitado pela justiça, e quando esta chega aseu quarto para capturar ao matador, em rixa justa, do próprio filho da dama,cumpre esta sua palavra empenhada de não lhe descobrir, embora, como mãe, lherasgue o coração. Também nos dá em outro capítulo um ensino contra osjulgamentos temerários, por mais veementes indícios que ao parecer existam, aorelatar a aventura daquele moribundo que, atravessado por uma espada, por umamigo traidor que lhe assassinou, cai entre os peregrinos a quem surpreende emflagrante, a justiça, quando, para lhe socorrer, tiram-lhe a espada e lhe registram asroupas. Também é muito de notar a passagem do livro em que os peregrinos vêemcair de uma torre, sem fazer-se danifico, à dama Claricia, a quem arrojou da alturaseu marido Domicio, em um arrebatamento de loucura causado por uma mámulher, êmula da Deyanira quando fez vestir ao Hércules a camisa maldita que lheobrigou a jogar-se na pira para acalmar com a morte os ardores de sua funestapaixão. O roubo, enfim, da Lorena pelo Rubertino, recorda ao das Sabinas e outroincidente muito curioso deste modo é o da Feliciana da Voz, ou seja, a Donzela daÁrvore, cujo fruto amoroso, qual o de Réu quando deu a luz ao Júpiter, é ocultopor uns pastores às perseguições do pai daquela.

Não acabaríamos se fôssemos ampliar este já longo comentário da ocultistanovela de Cervantes com a contagem de outras muitas passagens do Perseu eSigismunda, em sua peregrinação ou vida pela terra, passagens que, em lembrançapossivelmente dos trabalhos ou façanhas de Hércules, denomina deste modotrabalhos o admirável autor. Em todos eles se vê, com efeito, uma trama ocultista,um argumento mágico, uma travação inexplicável de obstáculos, com os que a mámagia põe estorvos aos dois amantes em sua nobilíssima e simbólica paixão. Assimvemos que, quando os peregrinos chegaram a Roma, é dizer, quando estão a pontode tocar a meta de seus desejos, é quando precisamente os maus magos de Zabulóno judeu, e sua mulher, enfeitiçam a Auristela, pondo-a em transe de morte porcausa da Hipólita a Ferraresa, quem, apaixonada pelo Periandro, trata assim dedesfazer-se de seu rival, como trata a má magia com a boa. Assim vemos tambémque, momentos depois de fracassar esta se desesperada tentativa última, Desejomuito, o bastardo amante da Hipólita, fere traiçoeiramente ao Periandro qualHagen ao Siegfried. Vemos, enfim, como um a um e reconhecendo-se ineptos,

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todos os cegos apaixonados pela Auristela, ou seja, da Doutrina Superior encarnadano augusto tipo desta, vão deixando livre o caminho ao Periandro, único amanteideal e sincero; tal acontece com o Duque do Nemours e com outros apaixonados,não dela mesma, que é inexeqüível em sua sublimidade aos olhos vulgares, senãomeramente de seu retrato, quer dizer, da mera e pobre idéia refletida que daquelatranscendente Beleza podem formar-se apenas os homens vulgares.

As paixões inferiores do homem e o triste fim ao que nos levam se a elasabandonamos, estão simbolizados na degradação da Zenotia e nos tristes amoresdo moço de mulas Bartolomé, o manchego, e a perdida mulher do Ortel Banedre,por outro nome a Talaverana, como se convencerá bem logo o leitor que, armadodesta chave explicativa que apontamos, atreva-se a penetrar por esse intrincadobosque simbólico da mais estranha e a menos lida de todas as obras do Príncipedos Engenhos.

Não terminaremos este interminável capítulo que com pouco esforçopoderia tomar por si só dimensões de livro, sem consignar que o incompreendidomito de Isolda e Tristão oculta atrás de si todo o mistério da Atlântida, já que,como pôde coligir-se, Isolda é a Magia; Sir Morold é o símbolo da época desupremo esplendor daquele imenso Continente, e Tristão, Natris ou Tantris apecadora Humanidade, que, sem a perigosa compaixão de Isolda, teria sido puídapara sempre de sobre o feixe do planeta.

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CAPÍTULO XPRECEDENTES SIMBÓLICOS DE "O ANEL DO NIBELUNGO"

Transcendental importância da Tetralogia de Wagner - Seus precedentes orientais eatlantes - Os germens da obra, segundo o próprio autor - Ensinamentos do Rig-veda - Opiniões de Platão no Phédon e no Górgias - A doutrina pitagórica e osNúmeros que ao Cosmos regem – O Nada-Tudo e o Espaço Abstrato.Ensinamentos brahmânicos, parsis e cabalistas - A teogonia do Hesíodo - "NoPrincípio era o Ritmo." - Errôneas traduções bíblicas - As Tríades e os FilhosDivinos - O Akasha industânico e seus mil outros nomes entre os diversos povos -A Mãe-Espaço - O Zohar e a Bíblia - Teogonias mexicanas: Xi-hu-te-cuh-tli-tlet;Huit-zili-poch-tli e Tez-ca-tli-poca; o Tona-ca-te-cuh-tli e o Ome-ce-cuh-tli; aDeusa da anágua azul; o Ancião Foge-hue-teo-tli; Theo-tlauco, etc., etc - Osmúltiplos céus nahoas - Os quatro Sóis mexicanos - O Wotan escandinavowagneriano e o Wotan da América - Conexões com os mitos dos Lohengrins - OAsgard an the Gods escandinavo e seus personagens transladados ao Anel donibelungo: Fricka, Loki, Hell, Hermond, Lifthsasir, Odín, Loci, agarra-os, o Asgard,a cova do Gimil, as três Norsas, Bolthara, Besla, Bór, Hónir, etc., etc.

As lendas escandinavas derivadas dos Eddas e dos Livros de Cavalariamedievais que servem de argumento aos imortais Dramas líricos, de Wagner,compreendiam muito melhor que nada na Europa todas as lembranças da DoutrinaArcaica. Mas nenhuma de sortes criações, inclusive Parsifal, tem a importância quea ciclópica Tetralogia denominada O anel do nibelungo, verdadeiro Anel deKalidasa, ariano, integrado, como é sabido, pelas quatro jornadas do ouro do Reno,A Walkyria, Siegfried e O ocaso dos Deuses 1.

Nestes quatro monumentos do edifício lírico-musical moderno estãosintetizadas as idéias matrizes de Tristão, Lohengrin, Parsifal, e, em uma palavra,toda a incompreendida Sabedoria Tradicional que os povos arianos, como o daEscandía, herdaram da perdida cultura atlante nos tempos de seu maior esplendor.Para nos dar perfeita conta disto, conviria que tivéssemos à vista, bem o originalalemão da Tetralogia, que não é inferior nem mesmo ao Fausto, de Goethe, boastraduções literais da mesma, qual a esmeradíssima de Luis Paris, wagnerianoeminente que foi diretor cênico do Teatro Real de Madrid, e em cuja tradução

1 Wilson e outros sanscritistas ocidentais, dentro de seus próprios prejuízos, dotaram a Europa detraduções dos mais seletos dramas sânscritos, nos quais, a bem dizer, encontram-se os primeirosprecedentes do Drama musical wagneriano, tais como o drama de Rama-Sita ou Sita-rama que,por seus quatorze atos e por seu mesmo argumento cosmogônico, é um verdadeiro Anel donibelungo. Outro homólogo oriental desta última obra é o célebre Anel da Kalidasa, que resultatoda uma ópera, em opinião de César Cantú, e que está provavelmente inspirada (A DoutrinaSecreta, tomo II, página 197) na perdida lenda atlante ou nórdica do Anel do Ulipi, paimitológico, pois, de quantos anéis simbólicos houve logo no mundo.

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palpita um culto tal pelo mestre de Bayreuth, que em nada desmerece do originalmesmo.

Quanto à história e às origens, das múltiplas lendas que serviram que temas aWagner para sua imortal obra, eles foram tratados em geral, por homens do méritodo H. S. Chamberlain, Miss Weston, Mauricio Kufferath, Eduardo Schuré e miloutros, porque a bibliografia wagneriana conta já com milhares de volumes, arespeito dos quais nem entrevista podemos fazer aqui. A versão mais completa quedos poemas de Wagner existe na Espanha, é a titulada Dramas musicais de Wagner,impressa em Barcelona, Biblioteca "Artes e Letras" (dois tomos em 8º, 1885). Hátambém o utilíssimo livro do Eduardo L. Chavarri, O anel do nibelungo, Tetralogiade Richard Wagner (um tomo, em 8?), E em relação ao wagnerismo na Espanhapodem consultá-los trabalhos do Félix Borrell, Pedrell, Bonilla São Martín, o sábioagustino P. Luis Villalba, Roda, Fesser, Luis Paris, Antonio Gil, etc., trabalhostodos muito dignos de ser lidos e meditados.

"As reformas de Wagner - diz Álvaro Arciniega -, contribuindo com suasnovas tendências elementos novos à estética musical, foram o primeiro sintoma deuma revolução nesta arte. Tão grande foi a reação que despertaram, que bem podedizer-se que elas foram as que deram origem a uma música de oposição. Wagner,ao deixar-se influir pela filosofia de seu tempo, ia desenvolver uma música de idéiasaté então em embrião. Siegfried, "o redentor socialista nascido para destruir o reinodo capital", teria que representar com a Brunhilda à Humanidade futura, comoWotan chegaria a ser o símbolo de nosso tempo, como os cavaleiros do santoGraal, desde o Lohengrin ao Parsifal, o espírito do sacrifício e do amor".

Quis-se ver no Siegfried a encarnação da alma da antiga a Alemanha -"virginal e brutal, cândida e maliciosa, sentimental e mordaz, cheia de pensamentosprofundos e sonhadora de batalhas sangrentas..." (Rolland) -, como quer ver naobra de Strauss o espírito da Alemanha moderna, essa a Alemanha singela, sensuale cavalheiresca que resplandece em sua literatura dos séculos XVI ao XIX,literatura influenciada sempre pela francesa e pela inglesa, embora colorida logopelas características da alma alemã que tão notoriamente resplandecem no AlbertoDurero, Huss, Goethe, Schiller, Schopenhauer com outros filósofos precursores,em Beethoven, em Wagner e em outros tantos.

Veja-se se não, entre outros muitos, o testemunho que o colosso de Bayreuthnos deixou, não já nos argumentos de suas obras, senão em outras produções maisíntimas, tais como as de seus trabalhos jornalísticos, citados em capítulos anteriores,e em especial sua correspondência com o Liszt, para quem não tinha segredos suaalma.

Em 20 de novembro de 1851, escreveu Wagner ao Liszt uma larga carta, queé a primeira notícia histórica a respeito da Tetralogia. Diz assim:

"Ouça a história rigorosamente exata do projeto que me preocupa faz muitotempo e o giro que fatalmente deveu tomar. Durante o outono de 1848, comecei aesboçar o mito completo dos Nibelungos tal como me pertence desde hoje a títulode propriedade poética. A primeira tentativa feita para dar um dos desenlacesprincipais da grande ação como drama representável em nosso teatro, foi A morte de

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Siegfried. Depois de muitas dúvidas, estava a ponto de começar (1850) a execuçãomusical deste drama, quando a impossibilidade, reconhecida por mim uma vezmais, de representá-lo em qualquer parte de uma maneira satisfatória, desanimou-me e não continuei a empresa. Para sair desta desesperador situação de espírito,escrevi o livro titulado Ópera e Drama. Mas na primavera última me eletrizaste quetal modo com seu artigo sobre o Lohengrin, que, imediatamente e por amizadepara ti, pensei escrever um drama, como te disse nessa época. A morte de Siegfriednão podia ser, e claramente via que era necessário preparar sua aparição em outrodrama. Então concebi e adotei um plano que acariciava faz tempo, o qual consistiaem fazer do jovem Siegfried o assunto de um poema; este drama, tal como estácontado e médio conhecido na morte de Siegfried, devia apresentar-se de umamaneira francamente objetiva, com rasgos vivos e luminosos. Não demorei muitoem esboçar e concluir o poema; mas quando lhe quis enviar isso encontrei-me comum singular apuro: parecia-me absurdo lhe mandar isso sem explicações, tantorespeito ao modo de tratar o assunto, como aos detalhes para compreender opoema em si mesmo. Em primeiro lugar, estimei que precisava explicar a meusamigos alguns pontos antes de lhes apresentar o poema, e com este objeto escrevidetalhadamente o prefácio de meus três primeiros poemas de ópera. Depois quiscomeçar a partitura, e então compreendi com alegria que a música que deviaacompanhar a aqueles versos, surgia, do modo mais natural e singelo, de si mesmo,por dizê-lo assim. Só desde o começo de meu trabalho adverti que quebrantariaminha saúde se me esquecia de restabelecer a para ceder à necessidade de produzir,provavelmente para não me interromper jamais, e de executar de um puxão otrabalho começado.

Quando me instalei no estabelecimento hidroterápico, senti a necessidade dete enviar o fim do poema; mas - coisa estranha! - Sempre me impedia isso algo, e,apesar de mim mesmo, vacilava, porque me parecia que quando o conhecesse tefoste ver em um apuro, te perguntando a ti mesmo o que foste fazer com ele e se,se podiam conceber esperanças ou desconfiar. Aqui, e refletindo friamente arespeito disso, acabei por ver claro meu projeto, o qual me aparece com todas suasconseqüências lógicas. Escute-me:

"O jovem Siegfried não é mais que um fragmento da obra, e não podeproduzir sua impressão exata como um tudo isolado, senão com a condição deocupar um posto no tudo completo, atribuindo-lhe conforme ao plano que concebiao mesmo tempo em que A morte de Siegfried. Nestes dois dramas não houve outrasrelações que as que de si mesmos recebem, e até as deixei à imaginação do ouvinte.Tudo o que dá à ação e aos personagens de ditos dois dramas sua extraordinária,sobressalente e fecunda significação, deveu apagar-se da representação e não estápresente mais que no pensamento. Segundo a convicção que acabo de me formar,um drama sozinho, uma obra de arte, não pode produzir todo seu efeito mais quese nos momentos importantes se revela aos sentidos a impressão poética. Portanto,é necessário que presente minha fábula por completo, em sua significação maisprofunda, com os mais nítidos rasgos que possa lhe dar a arte, a fim de fazê-locompreender perfeitamente. Nada que deva completar o pensamento, a reflexão,

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deve ficar nele; é preciso que tudo ser sensível e sem prejuízos possa compreendera conjunta graças a seus órgãos perceptivos, porque somente assim pode dar-seconta dos menores detalhes.

Faltam-me, pois, por apresentar dois momentos principais do mito, queestão indicados no jovem Siegfried; o primeiro, no longo recitado de Brunhilda,depois do despertar (terceiro ato), e o segundo, na cena entre o Alberico Y. oviajante do segundo ato, e entre o passageiro e Mímico, no primeiro. Não é só areflexão do artista, mas também o assunto maravilhoso e extraordinariamentefecundo para a representação que os mesmos momentos me oferecem, o que medecidiu. Dar-te-á conta facilmente se pensar nisso.

Figure-te o funesto amor de Sigmundo e da Siglinda, e ao Wotan na relaçãoprofundamente misteriosa que tem com este amor; logo, depois de sua ruptura comFricka, o império que exerce sobre si mesmo quando decreta a morte de Sigmundo,e, por último, à maravilhosa walkyria Brunhilda, quando, adivinhando o secretopensamento de Wotan, desafia lhe e é castigada por ele; figure-te esse tesouro deemoções, tal como te indico, na cena entre o passageiro e Wala, e depois, bastantedepois, no recitado mencionado anteriormente, como assunto de um drama quepreceda aos dois Siegfrieds, e compreenderá que não é a simples reflexão, senão oentusiasmo, que me inspirou meu último plano. Este consta, pois, de três dramas:1º, A Walkyria; 2º, O jovem Siegfried; 3º, A morte de Siegfried. Para dar o tudocompleto, é necessário que estes três dramas estejam precedidos de um grandeprólogo: O roubo do ouro do Reno.

"O objeto deste prólogo é dar a inteira representação de quanto interveioneste roubo; a origem do tesouro dos Nibelungos; como se apoderou dele Wotan ea maldição do Alberico, feitos que figurem na morte de Siegfried como recitados.Graças à nitidez da representação, que é possível por este meio, todas suas cenaslargas, todos os recitados, desaparecem por completo, ou ao menos ficam cortadose em forma concisa, e ao mesmo tempo ganho o espaço necessário para aumentar aconcatenação das diversas partes, enquanto que com a representação meio épica deantes me era necessário cerceá-lo tudo penosamente, e debilitá-lo."

Antes de analisar, pois a gigantesca Tetralogia, denominada O Anel doNibelungo, consagraremos este capítulo por inteiro aos precedentes simbólicos quesemelhante monumento tem na lenda religiosa universal, com o que, dito seja depassagem, não fazemos senão dar também certo número de doutrinas queconstituíam precisamente as representações antigas dos Mistérios Iniciáticos detodos os países.

Os orientalistas sabem muito bem, diz Blavatsky, que as páginas dessa Bíbliada Humanidade chamada Rig Veda, permanecerão sempre como outras tantaspedras miliarias para servir de guia a quantas religiões se aconteceram depois. Emsuas sete principais Divindades que, com suas trezentos e trinta milhões dedivindades secundárias, forças ou devas, são os raios irradiados da Unidade sem pare sem limites, podem encontrar o investigador quantas personificações depotestades primárias e secundárias abrange o panteão religioso de todos os países.

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"Quanto mais grandioso, quanto mais poético que o de certas aberraçõescatólico-romanas, é o espírito religioso que se encontra nas lendas "pagãs"escandinavas da Criação!" - Acrescenta a Professora: "A Religião e a Ciência sevêem misturadas nestes cantos do paganismo escandinavo, porque há um Logosem cada mito e um fundo de verdade em cada ficção..." (Ísis sem Véu, T. I, página241.)

"Estas personificações das forças ativas do Cosmos se acham dispersas deum modo caótico no mito universal, pelo qual, como diz Platão no Phédon e noGórgias, os mitos devem ser considerados como veículos de grandes verdades, bemdignas de ser investigadas à luz da intuição, como levamos dito tantas vezes. Osmitos, portanto, conforme afirma Charles Gould, em sua obra Mythical Monster,não são criações imaginárias de povos selvagens, mas sim adulterações detrásadulterações de tradições soube, relativas a seres superiores, homens ou gênios, queconviveram com o vulgo dos poloi, vulgo a quem sempre falassem por parábolasos Mestres 1.

Verdadeiras diminuições da fantasia coletiva ao longo dos tempos, os mitos,despojados da grosseira casca de que se foram revestindo assim, são no fundo tãocientíficos, como a própria ciência moderna, quando não mais, e estão exornadosdeste modo por uma riqueza sentimental, emotiva, educadora e simbólica de queesta quase sempre carece, como se vê em todas as obras de Wagner. Para isso há,entretanto, que proceder a uma verdadeira depuração, mediante a Mitologia ouReligião Comparada, prescindindo de quantas grosserias sem fundamento foramsobrepostas às idéias-matrizes pelos sempre interessados credos esotéricos, e mercêao auxílio, sobretudo, das doutrinas brahmânicos e pitagóricas que, no fundo, sãouma coisa mesma ao estabelecer a doutrina das Emanações, frente às degradaçõesdas cosmogonias semita e cristã que materializaram os mistérios da Natureza nosfalando de um Deus extra cósmico, tão fatal à religião como à ciência, e de umacriação ex-nihilo, que só pôde conduzir às superstições mais grosseiras.

1 "Schweigger, em sua "Introdução à Mitologia pela História Natural", prova que os símbolos detodos os mitos têm um fundamento e uma realidade científicos. Por meio dos recentesdescobrimentos dos poderes eletromagnéticos da Natureza, os peritos no Mesmerismo, comoEnnemoser, Schweigger e Bart, na Alemanha, o barão Du Potet e Regazzoni, na França e naItália, foram capazes de riscar, com quase irreprochável exatidão, a verdadeira relação em quecada thea-mithos está com algum dos ditos poderes da Natureza. Bart penetrou maisprofundamente que Schweigger na significação dos antigos mitos, e estuda este assunto sob seus doisaspectos: o espiritual e o físico." (Ísis sem Véu, I, 85.)

"A ciência moderna reconhece - continua dizendo Blavatsky - que as maiselevadas leis da Natureza assumem a forma de uma representação quantitativa. Istoé uma mais completa elaboração, uma afirmação mais explícita da doutrinapitagórica, porque os números estão considerados como a melhor representação dalei de Harmonia que ao Cosmos informa, o que foi expresso admiravelmente peloW. Archer Butler quando disse que o mundo, considerado como um tudo, é uma

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geometria realizada quanto a sua estática, e uma aritmética vivente quanto a seudesenvolvimento evolutivo" 1.

Tudo que conhecemos está baseado em um sentido íntimo e inato: otestemunho de nosso Ego, ou consciência. Sobre ele se assenta unicamente nossaciência, e já foi reconhecido pela filosofia cartesiana com o famoso axioma "cogito,ergo sum". Nossa consciência, percebendo a realidade exterior mediante ossentidos, testemunha-nos a respeito da existência de nosso corpo e de quantosobjetos nos rodeiam. Todas estas realidades externas, como insígnia Schopenhauer,produzem em nós a correspondente representação, a qual dista certamente daignota Realidade representada, outro tanto como nossa limitada consciência deu deLo Ilimitado que nos perto.

O Universo, diz nosso amigo Beati e Moghia, é "o cadáver vivo de um Deusmorto", mas a nossa consciência é possível eliminar sucessiva ou simultaneamente,mediante o poder da abstração, todas as qualidades sensíveis dos objetos queconstituem nosso particular universo, e até imaginar além das hipotéticas fronteirasdo mesmo, outro e outros universos, em número indefinido. Um nada real e o algoefetivo e interno que nos subtrai de cada objeto assim abstraído em suas qualidadessensíveis, constitui nossa noção de espaço concreto, noção que não pode serreduzida a nenhuma outra mais simples. O Nada-Tudo real que do universo, ouuniversos nos subtraia, abstraindo deles todas, absolutamente todas as qualidadessensíveis, constitui, a sua vez, a noção única do Espaço Abstrato: um nada paranossos sentidos: absolutamente incolor; absolutamente insonoro, insípido e

1 A Década Mística é a chave dos dogmas pitagóricos relativa à Emanação do Cosmos, e igual al+2 + 3 + 4 = 10. O Um, é Deus; o dois, a matéria; o três, a combinação da Mônada e aDúada, participando da natureza de ambas no mundo fenomenal. A Tétrade ou forma deperfeição expressa o vazio de tudo, e a Década ou Síntese compreende o Cosmos em sua totalidade.Quatro é, pois, o emblema geométrico da justiça moral e a divina eqüidade. Todos os poderes e asgrandes sinfonias da natureza física e espiritual estão inscritos no quadrado perfeito, e o nomeinefável e impronunciável daquele é substituído por este divino número. O mais sagrado juramentomístico se fazia pelo Quatro, ou a Tetractys. Os números pitagóricos são, pois, uma teoriaensinada ao Pitágoras pelos hierofantes egípcios, única capaz de fazer que a matéria demonstrematematicamente ao espírito e este a aquela.O aristotelismo foi uma triste mistificação das doutrinas de Pitágoras, Platão, Xenócrates eSpensippus, que confundiu a idéia meramente sensitiva, concreta e ilusória da forma ou qualidade,com a racional, abstrata e eterna do número. Deste engano ou falsificação do Estagirita seseguiram maiores danos, porque a forma é uma concepção animal do Universo e o Número umaconcepção transcendental que conduz para o divino. Não dizia Platão no Thimeo "que as formasfossem números", mas sim "Deus formou as coisas, quando por primeira vez apareceram, segundoformas e números". daqui que o aristotelismo, ao confundir o abstrato ou eterno com o concreto eilusório, seja a causa do grosseiro materialismo moderno. O Cosmos não é mera forma mais quepara nossos sentidos ilusórios; para nossa mente é uma aritmética vivente em sua dinâmica, e emsua estática uma geometria.

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intangível, absolutamente insensível, mas apreendido, entretanto, por essafaculdade superior de nosso ego, que se chama intuição.

Esse Nada-todo, do espaço abstrato, verdadeira expressão suprema daDivindade, posto que disso tudo emana ao manifestar-se, e a Isso retorna tudo,absorvido, ao desaparecer, é, em Matemática Transcendente, a expressão perfeitade Lo Divino, mas o Divino impersonalizado, imaterializado, abstrato, infinito,inabarcable, incompreensível e indefinível: o Deus in-abscondito, não sujeito acondição alguma, nem sequer a da existência, porque tudo menos Isso, troca,transforma-se e perece. Nem mesmo pode dizer-se disso que existe, porque anoção mais abstrata que nos possamos formar da existência, é sempre condicionadae relativa, posto que esteja limitada pela noção contrária do Não-Ser e do Não-Existir.

Semelhante noção última é em Matemática a noção abstrata do Infinito,noção que só pode definir-se com negações, e que não pode jogar em cálculoalgum sem modificar radicalmente os termos do problema proposto, e sem darlugar à aparição inevitável de quão contrários nele se fundem, como acontece, porexemplo, no conceito de uma esfera de rádio infinito, cuja superfície limite,inexistente de dele, por causa de tal rádio, estaria dotada, de uma vez, de todos oscaracteres das demais superfícies esféricas e além de todos os caracteres dasuperfície plaina, seu antagonista geométrica 1.

"Osíris é um deus negro.” Estas palavras eram pronunciadas em voz descenas iniciações egípcias, porque Osíris-Numen é incompreensível para o homem. Aocomeço ou aurora de cada universo, a eterna Luz-Negra ou Escuridão absoluta porinfra e por superluminosa, assume o aspecto do que para o humano intelecto é oCaos, um nada, e para a percepção espiritual ou intuitiva, é o Tudo, ou suprema eeterna Raiz do que existiu, existe ou tem que existir: o Alfa e Omega dos mundos.

1 O Incognoscível se expressa assim simbolicamente: QO, e se lê infinito A origem deste símbolo,como o de tantos outros, terá que lhe buscar entre os arianos primitivos, que já conheceram ocálculo infinitesimal, redescoberto na Europa pelo Leibnitz e base das conquistas e da ciência purae da Mecânica aplicada modernas. Como tal assino figura na língua sânscrita como o signo lingualvédico ou primitivo formado no círculo por um diâmetro vertical e seu tangente superior nestaforma: ^ ou pelo diâmetro horizontal e o rádio perpendicular inferior nesta outra: ® , paracompor em definitiva o dito signo lingual, último dos do alfabeto sânscrito que não é na verdadeuma letra como se cria, senão a base e matriz de todas as letras, deste modo (35 ou deste outro P'com a tangente exterior superior e a interior de losaos círculos iguais que constituem o símbolo doinfinito. Em arqueologia religiosa pode demonstrar-se que semelhante signo lingual védicorepresenta no Macrocosmos aos Logos ou à Divindade manifestada temporalmente em toda alimitada duração de cada universo e crucificada, a bem dizer, em suas limitações de existência. NoMicrocosmos é também o Verbo Humano crucificado nas limitações da carne: a queda daMônada Transcendente nesta vida física que, como disse Platão, é a maneira de uma expiação epor isso somos durante ela "à maneira dos eternos prisioneiros que de costas à luz, tomamos porrealidades as sombras que se projetam nas paredes de nosso calabouço,"

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No Aitareya Brâmane, um dos capítulos do Rig Veda que demonstra aidentidade entre as idéias brahmânicos e pitagóricas por fundar suas explicaçõessempre no número, alude-se a este Fogo Negro, a esta Obscura Sabedoria Abstrata,Luz Absoluta, entretanto, que diria o Zohar; Deidade Inefável e Sem Nome que, aoter que ser incondicionada e não relacionada com nada em concreto, não pode serconsiderada jamais como um Deus vivente, ativo e criador, sem que, no ato,degrade-se seu ideal, porque uma Deidade que se manifeste no Espaço e noTempo, simples forma mentais daquilo que é Tudo Absoluto, só pode ser sempreuma mera parte de semelhante Todo.

A dita Deidade Abstrata, Cero-Aster ou Zoroastro primitivo dos parsis, nãoa pode dar, portanto, mais nomeie que o de Nada-Tudo, em língua vulgar; o deZero Absoluto, em aritmética transcendente e o de Espaço Abstrato, em geometria.No simbolismo inicial do Anel do nibelungo wagneriano está representado pelosilêncio que vai romper a orquestra com uma só nota: a tônica ou fundamental 1, epela escuridão que, ao elevar o pano de fundo, reina em todo o âmbito da cena.

Deste Todo-Incognoscível ou Zero, emana, ao começar uma Manifestaçãoou universo, a Mônada pitagórica; o Uno-único; o Unam budhista; o Ain-Suph, En-Soph ou Pneuma-Eikon esquento; o Nuach ou Divino Espírito do Senhorflutuando sobre as Águas genesíacas; o Existente por Si mesmo, Anupadaka, ouManú-Swayambu-Narayana, ariano, enfim, e esta Mônada se transforma na Dúadamais excelsa: par de opostos sobre os que se assenta quanto existe, e que éconhecido por infinitos nomes, tais como o do Brahma-Viraj e Vach-Viraj, ariano;o da Nari-Nara ou Ensoph-Bithos, ofita; Purusha-Prakriti, hindu; o Protogonosdual ou Adán-Kadmon, cabalista; o Padre-Madre, gnóstico; o Uranus-Gea ou Céu eTerra primitiva, greco-latino; o Zeru-Ana, parsi; o Theos-Chaos, da Teogonia doHesíodo; o Ur-Anas ou Fogo e Água, esquento; o Osíris-Ísis, egípcio; o Jah-Hovah,Jehovah ou Iod-Heve, semita; o Andrógino Divino, Rasit ou B'rasit. O Princípio doprimeiro versículo da Gênese, tão distorcidamente interpretado pela tradução daVulgata latina 2 ; a Força Inteligente e Matéria Primitiva do Cosmos, que diríamos,por último, em nossa linguagem moderna. Estas Águas Genesíacas fecundas são

1 Este silêncio inicial e augusto deveria marcar-se claramente nas representações com um, quatro,sete ou doze compassos de batuta, antes de dar entrada à primeira nota do prelúdio, embora oMestre pareça havê-lo omitido na partitura.

2 Profundamente filosóficos são as passagens que Blavatsky consagra a leal interpretação desteprimeiro versículo, cuja tradução verdade, maliciosamente alterada para fins eclesiásticos é "OPrincípio emanador do Cosmos (os Elohín, a Hoste coletiva dos Dhyans-Choam, Senhores ouAngeles de outras teogonias), ou seja, o Espírito-Força inteligente e a Matéria primitiva, caótica erelatório, criaram o Céu e a Terra, quer dizer, criaram ao elevado e o ínfimo, porque a matériaque conhecemos, não é mais que o efeito mais remoto da energia emanada daquele Princípio (Rasitou B'rasit) e o mundo material, mera ilusão animal de nossos sentidos físicos recebe sua forma daintervenção imediata dos poderes que estão muito por desço da Primeira Fonte do Ser. Nãosignifica, pois, a palavra que céu e terra fossem criados os primeiros, mas sim tudo foi emanado

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quão primeiras aparecem entre sombras na cena inicial do "Ouro do Reno",admiravelmente desenhadas pela orquestra, com as notas largas de tônica, tônica edominante, tônica, terceira e quinta, reproduzindo assim ao longo dos 136compassos iniciais da partitura, que jamais se saem do acorde de tônico, o fluxocriador daquelas águas matrizes em cujo seio pulsa em germe tudo que existe,porque todo isso emana, com efeito, daquelas Mônada e Dúada pitagóricas, que sãoO Um e O Duas da única concepção verdadeiramente sábia e matemática doCosmos manifestado e que inspiraram a Hans de Bülow seu célebre aforismo de"In der Anfang war der Rhytm". (No Princípio era o Ritmo.)

"Na quarta Raça - diz a Professora -, o símbolo da Unidade abstrata,manifestada na Natureza como um raio emanado do infinito (o círculo), perverteu-se em símbolo fálico de geração, conforme o considera também a Kabalah. Omotivo desta perversão foi o politeísmo, estabelecido para preservar de todaprofanação à Única e universal Divindade. Os cristãos, para não aceitá-lo, podemdesculpar-se na ignorância de seu significado; mas, por que elogiam sem cessar aosjudeus mosaicos que repugnaram todos os deuses, menos o mais fálico, e depois seenvaideceram imprudentemente de monoteístas? Jesus não reconheceu nunca aoJehovah e ficou em frente dos mandamentos mosaicos. Unicamente confessou aseu Pai celestial, com proibição de todo culto público."

Quanto ao repetido "Filho da Dúada, ou da Madre-espaço", nascido no seioda Ea, da Sabedoria, da Thalassa, da Maha-maia, do Sarasvati "a aquosa", daVirgen-Madre eterna, não acabaríamos se começássemos a fazer dos nomes que emmontão demos e dos muitos mais que ainda poderiam dar-se, devida-las críticas oucomparações entre teogonia e teogonia, porque em ponto tão vital do pensamentofilosófico através das idades, não podia menos de cumprir o aforismo de que aharmonia nasce sempre do consórcio do variado com o um. Não cabe, com efeito,unidade de conceito fundamental maior, nem tampouco variedade mais exuberantee muito formoso que a que preside aos nomes da Nada-todo, da Unidade e aDúada, da Tríade e do Filho, nos infinitos povos que se foram acontecendo sobre aterra, até o ponto de que pode assegurar-se que, assim como cada língua e dialetotêm seu nome para os objetos mais indispensáveis de sua vida diária, tem tambémoutro para aqueles cinco conceitos capitais do pensamento.

A teogonia nahoa, ou mexicana do norte, como de origem ariana que é,resulta idêntica à escandinava, a brahmánica, a ofita, a parsi, a greco-romana e, emgeral, a todas as mais próximas à fonte original ou Religião-Sabedoria quedesapareceu com a Atlântida.

Xi-hu-te-cuh-tli-tlet, é a Divindade Abstrata, o "Fogo Oculto no albergue daÁgua", antigamente chamado Tutora-mictlán (Sahagún), "que nunca é destruídonem criado" (Chavero), o T-e-cuel catl-zin ou "chama de fogo" (Orozco). Muitos

pelo Princípio, mediante sua Sabedoria, Palavra, Luz, Verbo ou Vibração. Tais emanaçõesprimeiras são os sephiroth (ou zéfiros, auras, fôlegos) da Caiba-a, e a Igreja cuidou de bastardearestas idéias com uma alteração, aparentemente muito ligeiro do texto hebraico, trocando a idéia do"Princípio Informador do Cosmos", pela anódina frase de "No começo", "No princípio".

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dos rasgos desta deidade, por confusão posterior dos tempos ou dos comentaristas,correspondem melhor nas esculturas e nas pictografias dos códices do Anáhuac. Odeus aparece na gravura da página 98, da obra de Chavero, México através dosséculos, com uma espécie de turbante na cabeça; um grande disco, símbolo do sol,entre as mãos, e em volto deste disco o numeral ogâmico do cinco, símbolo dopensamento, e o elo hieroglífico.

Do Uno-tres, como máscara sagrada, sobre sua face. Em braços e pernasleva braceletes, equivalentes, no número de suas contas, ao cempohualli ou vintena(a unidade superior de seu sistema numeral); com a gargantilha do nahui-pohualli,ou quádruplo vintena em volto de seu pescoço, e estendido era um leito singelo,com as quatro pétalas da Tétrade, ou dos quatro primeiros números. É o mesmodeus alado e de dois rostos que forma a décima primeira pintura do Códice deOxford e o Tle-cue-catl-zin, da estatueta em ouro do Museu do México e também aescultura da Tacubaya, em que nos mostra submerso em um banheiro, emsimbolismo de que "o espírito de Deus era levado sobre as águas genesíacas". Desteantiqüíssimo deus, diz Chavero, não falam tanto as crônicas como de Huit-zili-poch-tli e Tezca-tli-poca, coisa nada estranha, acrescenta, dado que nas revoluçõesda raça nahoa ficaram preponderando certos deuses em virtude das lutas históricas,e o povo deu quase ao esquecimento suas mais puras deidades primeiras. Assim,Sahagún não considera o sol como Deus, e Herrera conta que não davam a aquelaDeidade tanta adoração como a Huitzilipochtli. Cronistas há que asseguram que osol não tinha ídolos nem templos, quão mesmo o Deus sem Nome dos primitivoshabitantes da Espanha e da Itália. Apenas se, se fala de Tona-ca-te-cuh-tli, e menosde Omece-cuh-tli, pois tudo o que concernia à religião primitiva daquela genteestava cuidadosamente guardado nos santuários e era quase desconhecido damultidão. Por esta razão, em várias histórias nem sequer se menciona a Xi-hu-te-cuh-tli, e até o bom pai Sahagún lhe coloca na lista dos deuses menores. Nãoobstante, o grande Montolinia diz que ao Fogo o "tinham e adoravam Por Deus, enão um deus dos menores, e seu culto, além disso, encontra-se esparso por todaparte". Era, com efeito, um dos deuses primitivos da religião nahoa, e havemos ditoque antes que fossem criados os céus, o foi o Fogo, por isso a este chamavamtambém Foge-hue-teo-tlí, que literalmente significa o deus velho ou antigo. Umaespécie de Ancião dos Dias, semita. Os primitivos nahoas consideravam sete céussuperiores e sete inferiores, ou seja: o primeiro céu, ao que o bramanismo chamariao Espaço Abstrato, pelo qual, como Impronunciável, não se nomeava nunca. Desemelhante Realidade Única, emanam o segundo e terceiro céus, ou seja, o Ome-io-can e o Ome-te-cuh-tli, literalmente "o céu ou reino do Todo-lo" e "o céu do deusDois em Um". Da união destes dois céus nasce o quarto céu (ou terceiro, dado queao primeiro não lhe atribua número), que é o Theotlauco, a região do Fogo, da Luz,do Verbo, etc., estes Etc. quatro céus são um, e deles emanam os outros três céussuperiores que subtraem, e aos que podemos chamar, respectivamente, o céu dasTrevas ou da Luz fenomênica para o homem invisível, Itzapán Nanatz-cayan, e océu da Luz sensível ou Teocozauhco. De ambos nasce, enfim, o último céusuperior: o céu intermediário do crepúsculo: a mansão branca da estrela da tarde:

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Teo-ixtac ou Theo-isthar. Neste último céu superior do Firmamento se refundem esintetizam os outros sete inferiores, ou propriamente humanos, considerando aohomem, não como mero ser físico habitante do planeta Terra, mas sim como umRaio Divino, que percorre antes de nascer e depois de sua morte as sete regiõescelestes inferiores, ou seja, os sete céus que nos subtraem, conhecidos pelo nomegenérico de Il-hui-catl, anteposto ao de cada um deles, ou seja: Telta-li-co (céu dasestrelas); Xv-xuh-co (céu azul do dia); Eu-yauh-co (céu escuro da noite); Ma-maloa-co (céu dos cometas); Huitz-tlan (céu da estrela Vênus); Tona-tiuh (céu do sol), eTla-loca-ti-pan-metz-tli (o céu da Lua e das nuvens). Logo vem o Ometecuhtliterrestre em que habitamos, e o Tonaca-te-cuh-tli ou "senhor de nossa carne",representando o primeiro aos primitivos homens bi-sexuados (que secaracterizavam nos códices por suas mãos amarelas), e o segundo aos já uni-sexuados (com as mãos brancas).

Como todos os assuntos relacionados com o Ocultismo tradicional as coisasrelativas à teologia, astronomia e ritos dos aborígines mexicanos e escandinavoscorreram muito lamentável sorte. Chavero se expressa assim: "Os estudos destaparte hieroglífica eram desconhecidos. Gama os tinha empreendido, mas seumanuscrito se perdeu; Fábrega escreveu sobre eles um livro, mas não se publicou",e assim ocorreu com outros muitos códices e autores dos que falaremos em outrolugar.

Ci-pac-tli é a Luz Increada nahoa, o Logos dual, emanado do Tona-cate-cuh-tli no Ome-ce-cuh-tli: o Verbo de Platão e dos gnósticos. Chavero descreve comformosas cores esta inefável Luz, anterior aos Céus e à Terra. "A letra i é em ditalíngua a raiz de toda a luz: assim i-xi são os olhos, e i-zili a negra e brilhanteobsidiana vulcânica que, saída do fogo, reflete a luz. Pac é uma preposição que querdizer em cima, e, portanto, ipac é a luz do alto, a Luz do Infinito. Ce-ipac ou, porcontração, Cipac é primeira e primitiva Luz." O sufixo tli não significa, como criaChavero, um ser vivente, senão simplesmente o artigo Li posposto, artigo que écomum a línguas monossilábicas afins ao nahoa, tais como o turco, o finlandês,etc., como quando nestas línguas se diz Os-man-li (o Osman), Me met-a-li, etc. Aesposa ou contraparte feminina do Cipactli, como Sol, é Oxomoco, a Terra emabstrato, e também como planeta, com o que Cipacthi, ou melhor, Cipatltonal eOxomoco em seus movimentos celestes dão lugar à cronologia e ao calendário. Porisso o códice Borgiano apresenta ao Cipactli, o Verbo, sentado em seu trono divinoou teo-icpal-tli, como se vê ainda melhor em uma das vinhetas do códiceCortesiano, coroada sua cabeça com uma galharda planta ou xochil, com osnumerais ógmicos do sete sagrado cosmogônico. As dúadas de dia e noite, homeme mulher primitivos com a flecha do tempo, ou melhor, com a flor do lótus,símbolo da fecundidade, entre ambos, é argumento várias vezes repetido naspáginas do códice Cortesiano relativas ao calendário, e até tal ponto é todo issogrande, que Chavero, depois de estudar estes símbolos no códice do Museu doMéxico, e de exaltar até o inexprimível a maravilha histórica dos numerais e dacronologia nahoa, exclama (página 96): "não aprenderam mais os sábiosmodernos".

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O simbolismo ou emblema da união fecunda do Cipactli e Oxomoco se vêna chamada pedra de Tuxpan.

A pedra de Tuxpan, representativa do deus cansado na geração e do solpoente: Tzontemoc, "o Sol que caiu de cabeça", é, diz Chavero, um dos relevosmais notáveis que nos legaram os antigos moradores da Sonora 1. A figura, semperder o tipo religioso, que não podia variar-se, é quanto cabe achar deverdadeiramente artística. A cara mostra o imponente aspecto do deus, com amáscara sagrada; suas pupilas são grandes e redondas; um adorno (bezote) atravessaseu nariz; sob seu lábio superior mostra quatro dentes quadrados e parecidos, commais duas presas largas e bicudas, da mesma forma do lábio inferior. Entre uns eoutros se mostra uma língua triangular primeiro, e bífida ou caliciforme depois,símbolo do Verbo nascido da Tríade. Suas duas orelhas são arredondadas, e delaspendem, como adorno, três círculos ógmicos a cada lado, separados pela parteinferior da língua e orlados para o bordo inferior ao modo dos de tantas outrasestátuas que se vão descobrindo procedentes de cem ruínas do país. A máscarasagrada termina à direita e esquerda pelos dois típicos ganchos ou chifres que sãosímbolo da Lua, e que parecem sustentar, mediante dois signos em figura desse edois círculos, toda a esplêndida radiação dela, formada por 22 raios, número igualao das letras do alfabeto hebreu, com mais o raio central triangular que brota doscinco signos ógmicos de sobre a frente do deus, em representação do Pensamento,que é a Luz transcendente do mundo, pela que tudo foi criado. Dez brotos e outrastantas chamas, ou seja, o sagrado cempohualli (vintena) devem formar o corpo dafigura, onde se inserem ou articulam os braços e pernas do deus em forma como derã ou tartaruga, símbolo do avatar industânico Kurma-Avatar ou o deus-tartaruga,que tantas vezes se observa nos códices maias, e que na simbologia religiosa maisarcaica do Egito aparece como a deusa Hiquit, estranha rã, às vezes sozinha, àsvezes hospedada sobre a típica flor do lótus, emblema dos Poderes criadores doFogo e da Água, ou seja, do espírito oculto ou alma-energía-inteligente das coisas, e

1 No Tuxpan, diz Chavero, as pessoas acreditam que o monólito representa à Gênese; sim,acrescenta, mas não o da mísera Humanidade, senão outro mais grandioso, a gênese da luz, acriação do tempo! Esse monumento é, pois, a primeira pedra miliaria do sagrado caminho quechamamos eternidade!Em vão se esforçaram os egiptólogos, diz Blavatsky, ao ocupar do lírio e o lótus como símbolouniversal (Doc. Secreta, tomo I, pág. 358, edição Espanhola), por descobrir o mistériosimbolizado nas funções desta deusa - que é a Oxomoco nahoa -. Entretanto, os primitivoscristãos que o conheciam por ser alguns dos chamados pais da Igreja, verdadeiros iniciados comoOrigens, Tertuliano, etc., consideravam a aquela deusa como o símbolo fecundo do poder criador etambém da ressurreição dos seres (ego eimi anastasis; ego sunt resurreccio et veta, que canta aliturgia), e por isso deram a forma daquela misteriosa rã aos abajures de seus templos.

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da evolução de suas formas físicas 1. Daqui que afetassem forma de rã os abajuresdas primitivas Igrejas bizantinas.

Tonacatl-cihuatl é a Terra, mas não como astro, mas sim como a esposa doTonacatecuhtli; materia-sobressai-a, a G ou Réu, esposa de Urano ou do Céu; amãe do Cipactli e Oxomoco inferiores, ou seja, do Sol e a Lua considerados comosímbolos do dia e da noite. Literalmente, segunde Chavero, significa "a senhora denossa carne" ou nossa piedosa mãe-terra. É, pois, xará da deusa Coat-li-cue, ou daanágua de cobras, e da deusa Chimalma (o poder criador da matéria); esposa deCamax-tli e mãe de cinco filhos ou planetas, entre eles Quetzalcoatl 1 (a serpenteluminosa), símbolo a sua vez este do cálculo matemático, porque nasceu, segundo alenda esotérica, por haver-se tragado sua mãe uma pedra verde: chal-chi-hui, apedra de cal que primitivamente se usava para calcular (calx-calcis), e também ocalhau tragado por Saturno na teogonia do Hesíodo.

Coatlicué ou Tonacacihuatl está representada no muito formoso ídolo dopátio do Museu do México, e mereceu de Chavero frases semi-oculistas dignas deserem transcritas: "O ídolo de Coatli-cué, como a Pedra do Sol, estava enterrado noPlaza Maior da capital, e ambos os monólitos foram descobertos na mesma época.Estranha coincidência! Os deuses criadores dos nahoas, o Sol e a Terra, apareciamoutra vez juntos, saindo o mesmo dia da liberação do México, dos escombros doque antes foi tempero maior dos mexica".

Com apenas transcrever algo do muito que se vai esclarecendo pelosinvestigadores das ruínas mexicanas, daríamos a este capítulo dimensione de umgrande livro. Limitar-nos-emos, pois, a ir destacando alguns dos principaismonumentos daqueles aborígines, bem dignos de um estudo especial de Ocultismoque demonstrasse quão perto estão tais monumentos do simbolismo mais puro daReligião-Sabedoria.

O Sol de Papantla é um de tais monumentos. Sua boca, furada, irradia luz.Ela e os olhos formam um triângulo investido, inscrito no quadrado da cara comarrumo ao clássico símbolo do sete, ou ternário cabalista. Sobre sua cabeça semostram os símbolos da numeração ogâmica, com suas quatro pranchas ou raias eseus quatro dobre pontos. Lidos sucessivamente de cima abaixo, os cuadritoscentrais (2, 1, 3, 1) parecem simbolizar que o dois é um e o três também um,segundo o princípio cabalista e cósmico-sexual de que o elemento masculino e ofeminino, ao unir-se, determinam outra vez o um, e pai, mãe e filho são deste modoum. O rostrillo do meio doido e o colar do deus determinam, por sua união, um

1 Quetzalcóatl é também o espírito de Vênus; a Estrela matutina e vespertina; o médio-sol ou Solintermediário com a suprema luz de Lo Desconhecido; o "Senhor do Hálito", representado comotal por um ehecatl ou vento, no Ehecatonatiuh ou idade do Vento, etc. Seu nome nahoa se compõedo Quetzal, ave-fénix, o pássaro protótipo da beleza ideal; o ave do paraíso e também o ave deSiegfried, e de Quati, Dragão da Sabedoria ou Iniciado. Cada simbolismo destes constitui logo umfoco de mil outros a qual mais maravilhosos e mais cientistas não difíceis de achar no panteãochinês.

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hexágono. Cada um dos braceletes mostra três séries de quatro pontos cada uma,ou seja, doze, as que com as quatro dobre raias conectoras somam vinte, ocempohualli, ou seja, uma conta. Sete cuadraditos orlam a cada uma de suas pernas.A flecha do tempo luz sobre a estola de seu peito, e mil outros detalhes completama tamanha figura simbólica. Que tais detalhes não são meros adornos, senãogenuínos hieróglifos, demonstra-o o que pelo reverso da escultura são porcompleto diferentes, o que exclui toda possibilidade de que se dessem como merosadornos, além de que para tudo ser ou povo inteligente o adorno é quase sempreum símbolo. Assim, pelo reverso, o Sol de Papantla leva um grande quadrado porcabeça de outro novo deus, cuja boca, perfurada, é comum, naturalmente, com oantes descrito, quadrado dividido em seis bandas horizontais, com uma grande flor,xochil ou lótus, no centro, a qual, brotando do círculo da boca e caindo suas cincopétalas sobre os dois olhos do deus, a maneira de florido sobrecenho, ou terceiroolho intuitivo, completam a mais estranha figura que dar-se pode com seus novecircuitos ógmicos. O corpo deste segundo deus, provável contraparte feminina, ousekinal, do primeiro, é um novo hieróglifo, e está talher por uma espécie de casula,em cujo bordo se acontecem, em série, os quatro pontos e a raia ógmicos,repetindo até nove vezes o argumento, ou seja, um total de quarenta e cinco signos,ou melhor, o quatro com o cinco da rosa-cruz cabalística; mas como cada raia dasnove simboliza por si só o valor ogâmico de cinco, encontramo-nos também comnove vezes o valor de nove, ou seja, seu quadrado, que é igual a oitenta e um. Trêsgrandes discos elípticos, alternando com outros dois circulares, formam o adornohorizontal superior de dita espécie de casula; outros quatro discos elípticos se vêemno centro, formando a maneira de pétalas de uma flor ou abacaxi, cujo broto seeleva sobre o conhecido signo matemático do infinito, e constitui assim umgeneralíssimo arremedo do signo lingual védico, cuja significação como letraexcitou tão inutilmente a curiosidade dos sanscritistas europeus. Doze folhas emforma de coração penduram, enfim, para baixo, e de seu centro, um pequenobroche circular com quatro pendentes entre os dois grandes círculos quearremedam os pés da escultura. O traçado quadricular da cada lado do signo lingualexpresso, dá-nos três quadrados completos e quatro dobre triângulos que, juntos,comporiam outros quatro quadrados, com mais um quinto com o superior e oinferior. Cego será quem não se convença com o exposto de quão alta importânciasimbólica oferece a escultura de semelhante deus bissexuado, emblema de Cipactli eOxomoco, ou seja, no simbolismo inicial do Ouro do Reno, do Darknesses primitivoe da luz viva de carvão do ouro ou primitiva.

Estes e dois adicionou na manifestação, dá forma aos três ou à divindade daTríade, de que o filho de todos os teogonias é carregado. São aqueles Deus-Céu doAkhasha, de sânscrito, visível e cognoscível em seu aspecto material ou inferior,mas invisível e inenarrável em mística seu feltro mais superior, e em nenhumalíngua ele expresso ele com mais propriedade do que no nahoa quando considera ao mais superior do que o homem pode conceber, como Ome-você-cortou-lí,literalmente “o céu de ambos em um” (orne, uns e EC, dois), matriz suprema dalíngua de onde foi carregado todo o universo. Fonte da vida, respiração propulsora

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de toda a mudança na matéria, cujo sinônimo físico em nossas línguas européias éesse do material cru. Em suas duas latências e em irradiante, é equivalente, a seguir,ao Pater Omnipotens - Aether grego, do qual é aspecto muito pequeno o ether dosfísicos, e sua presença evocada por Hotar ou pelo Hierofante supremo no sacrifíciogrande do Soma, o del que fez exame origem do dogma Christian doTransubstanciação.

No simbolismo do wagneriano, esta somente criança é o ouro divino, o soldos Abysses da água, que ilumina das águas fundamentais da rocha a mais elevadada cena, o carvão vivo frio, cuja custódia confiada aos elementares das águas, filhasdas brincalhonas do Pai-Rio. No outros os teogonias este filho Androgynous são oViraj-Vach, o Kabir ou o primeiro Homem-Fêmea, Industânico: bel ou Bel,aquecendo-se; o Abraxax, parsi; Horus, Torus ou Taurus, Egyptian e parsi; Jupiter-Juno ou Zeus-ao toot, grego; o filho de Nara, Laksmy, Belta, Anata, Themis,Latona, Astarté, Situated, Mayan, Maria, o mar, etc., etc., sabidos por AdonisKadmiel, eu sou chamada vaga, de Apolo-Manhã, Hercules, Krishna, Aebel Zivo,Karabtanos, Bithos-Enoia, Christos-Sophía, Zarathustra, Legatus, Narayana, verbo,Apolo-Minerva, Tritonia, Thot, Odin, Hermes, Fohat, Kadmiel, Ilda-Baoth, Eros,Axiorus ou Axiochersus, Demeter - Perséfone, Pimander, Zeru-Isthar, Avatar,Zamní, Seth, Fetail, Inacho, baixo-agnes, Iove, Chonubis, Lenmiskaten, Mithra,Quetzalcóatl, feixe, e outros mil nomes, adulterated mais ou mais menos em seumeaning do prístino, e naquele foi feito exame logo nos mitos por personages maisinferior, na terra.

Enquanto Blavatsky diz admiravelmente, essa Força-Matéria fundamental, deque este fruta ou filho divino emanates, recebeu também nomes infinitos em suasmanifestações inferiores. “O caos, dos velhos; o jogo sacred, de Zarathustra ou deAntus-byrum, o parsis; o fogo, de Hermes; o fogo de Elmes, velho os alemães; oraio de Cibeles; a tocha ardente de Apolo; a flama do altar do pão; o fogoinextinguível, no templo de Acrópoles e em esse de Vesta; a flama do fogo docapacete de Plutão; os brilliants tipsy dos chapéus do Dioscuros ou da cabeça deGórgona; yelmo dos Shovels e do galho do mercúrio; asbestoses do pur, gregos; oPhtha ou o Ra, Egyptian; o Zeus Cataibates; os lenguas de fuego, de Pentecostés; lazarza ardiente, de Moisés; la columna de fuego, del Éxodo y la lámpara encendida, deAbraham; el fuego eterno del insondable abismo; los vapores, del oráculo de Delíos; la luzsideral, de los rosacruces; el akasha, de los Adeptos indos; la luz astral, de EliphasLevi; el aura nerviosa y el fluido, de los magnetizadores; el od, de Reischenbach; el globode fuego o meteoro-gato, de Babinet; el psichod y la fuerza edénica, de Thury; la fuerzapsíquica, de Sergeant Cox y de Crookes; el magnetismo atmosférico de algunosnaturalistas; el galvanismo y, finalmente, la electricidad, son los distintos nombres demuchas y diversas manifestaciones de la misma y omnipenetrante Causa, llamadaAkasha por los indos y Archeus por los griegos" ¹.

1 É o mais alto interesse filosófico o reproduzir a respeito deste grande problema as frasesda Professora (Doc. Secreta, T. III, pág. 171).

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Conforme sabem todos os hebraístas, a frase inicial da Gênese é:

Que

como todos outros textos hebreus, pode interpretar-se de duas maneiras: uma esotérica e própriados intérpretes cristãos, e outra esotérica que a sua vez se subdivide nas respectivamenteempregadas por rabinos e cabalistas. Analogamente ao que ocorre no idioma sânscrito, não há emhebreu saiba- ração alguma entre as palavras escritas, mas sim se ligam umas a outras,especialmente nos textos antigos. Por exemplo: a referida frase inicial admite dois modos deseparação, e, por conseguinte, duas escrituras distintas, convêm, ou seja:

1ª B'rashith bara Elohim eth hasliamayim v'eth h'areths.2ª B'rash ishbara Elohim ethhashamayim v'eth'arets.O significado da primeira escritura exclui a idéia de começo ou princípio, e diz que "da

eterna Essência divina, a andrógina Força formou o duplo céu. O significado da segunda escrituraé: "No princípio fez Deus os céus e a terra." "A palavra terra significa, exotéricamente, vehícu-o", e dá idéia de um globo vazio no qual se efetua a manifestação do mundo. Agora bem; segundoas regras da leitura simbológica oculta, tal como as do antigo Sepher Jetzirah, que forma parte doLivro dos Números, enquanto, as quatorze letras iniciais (B'rasitb' raalaim) explicam por simesmas a teoria da "criação" sem mais acréscimo. Cada inicial vale por uma frase, e se ascomparamos com a inicial versão hieroglífica ou pictórica da "criação" no Livro de Dzyan,acharemos muito logo a origem das letras fenícias e hebréias. Todo um volume de explicações nãoensinaria ao estudante de primitiva simbologia oculta outras coisas que as seguintes: uma cabeça detouro dentro de um círculo; uma reta horizontal; um círculo; outro círculo com três til; umtriângulo; a suástica ou cruz jaina, um triângulo eqüilátero inscrito em um círculo; sete cabeças deboi colocadas em três filas superpostas; um ponto negro redondo, e sete linhas significativas do Caosou Água.

"Quem conhece o valor numérico e simbólico das letras hebréias, jogará de ver, certamente,a identidade de significado entre os símbolos referidos e as letras de B'rasitb' raalaim. A b (beth),significa "morada" e "região"; a r (resh), "círculo" e "cabeça"; a (aleph), touro; a s (shin) ,"dente"; o i (jodh), "a unidade perfeita" ou "o um", a t (tau), "raiz" ou "fundamento". Serepetem logo as letras beth, resh e aleph. A outra aleph que segue, significa os sete touros para ossete Alaim; a L (lamedh), simboliza "procriação ativa"; a h {he), "matriz" ou "abertura"; a Í(Jodh), o órgão da procriação, e a m (mem), "água" ou "caos", a potestad feminina imediata àmasculina precedente.

O erudito cabalista ocidental Mac-Gregor Mathers, cuja opinião está fora de todasuspeita, porque desconhece a filosofia oriental e quanto se relaciona Com seus ensinamentos, dizsobre o primeiro versículo da Gênese, em um ensaio inédito:

Berashith Bara Elohim. "No princípio dos Elohim criaram." Quais são, pois, estesElohim da Gênese?

Veja-yivra Elohim Ath Ha-Adam Be-Tzalmo, Be-Tzelem Elohim Bara Otho, ZakliarVingerah Bara Otham. E os Elohim criaram ao Adam a Sua própria imagem; à imagem dosElohim os criaram; macho e fêmea os criaram." Quais são, pois, os Elohim? A versão ordináriainglesa da Bíblia traduz a palavra "Elohim" por "Deus", embora Eloim é plural e não singular.

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Para desculpar a errônea tradução, diz-se que a palavra está verdadeiramente em plural, mas nãoem sentido plural, mas sim denota "excelência". Mas a mesma Gênese nos demonstra o friáveldesta hipótese, ao dizer, segundo o texto ortodoxo: "E Deus (Elohim) disse: Façamos ao homema nossa imagem e semelhança." Isto evidência que (Elohim) não é "plural de excelência", senãoum nome em plural que denota mais de um ser."

A Doutrina Secreta nos ensina que o verdadeiro criador do Kosmos, assim como de toda aNatureza visível (mas não das invisíveis hostes de Espíritos não vindos ainda ao "Ciclo deNecessidade ou Evolução"), é a "Hoste Operante", o "Exército" que coletivamente implica"unidade da variedade". O Absoluto é infinito e incondicionado, e não pode criar porque não cabenele relação alguma com o condicionado e finito. Se tudo que virmos, dos esplendentes sol a e osmajestosos planetas até as fibras de erva e as bolinhas de pó, tivesse sido criado pela Perfeiçãoabsoluta e fora obra direta da primária Energia procedente daquele, então todas as coisas seriamtão perfeitas, eternas e incondicionadas como seu Autor. Os milhões de milhões de imperfeitasobras que achamos na Natureza testemunham irrecusavelmente que são produto de seres finitos econdicionados, embora se chamem Dhyans Choanes ou Arcanjos. Em suma, estas imperfeitasobras são o incompleto resultado da evolução sob a guia de deuses imperfeitos. O Zohar corroboraesta idéia com tanta força como a Doutrina Secreta, pois fala dos auxiliares do "Velho dos Dias"e lhes chama Aufanimes ou viventes roda dos círculos celestes, que tomaram parte na criação doUniverso. O Criador não é o absoluto incondicionado, nem sequer seu reflexo, senão os 'SeteDeuses", os "Construtores" que com a matéria eterna moldam o Universo e o vivificam emobjetiva vida refletindo nele a Única Realidade. Criaram, ou melhor dizendo, formaram oUniverso os seres que constituem a "hoste de Deus", e aos que a Doutrina Secreta chama DhyansChoanes; os hindus, Prajapatis; os cabalistas, Sefirotes; os buddhistas, Devas; os mazdeístas,Amshaspendas, e os cristãos, Espíritos de Presença. Convém advertir que, enquanto para osmísticos cristãos a criação é obra dos "deuses de Deus", para os cristãos dogmáticos o Criador é o"Deus de deuses e Senhor de senhores". Segundo os israelitas, Jehovah é o Deus superior a todosos deuses, sendo assim é um deus inferior.

"Sei que o Senhor do Israel é grande e que nosso Senhor é superior a todos os deuses.Porque os ídolos são os deuses de todas as nações; mas o Senhor fez os céus."

A palavra egípcia Neteroo, que Champollon traduziu por "outros deuses", tem o mesmosignificado que os Elohim da Bíblia, e denota a manifestação do Único Deus neles oculto. EsteDeus único não é neste caso o Parabrahman, senão o Logos imanifestado, o Demiurgos, overdadeiro Criador ou Fazedor. Mais adiante acrescenta o eminente egiptólogo:

"Vemos que os egípcios ocultaram e encobriram ao Deus de deuses depois dos Assente quelhe rodeiam. Atribuíram a seus deuses maiores todas as excelências da única Divindade e lhesconsideraram incriados... O deus Neith é quem é, como Jehovah. O deus Thoth se criou a simesmo e não foi engendrado. O judaismo aniquilou estes Deuses ante a grandeza de seu Deus, edeixaram de ser simples potestades, como os arcanjos de Fio, os Sefirotes dos cabalistas e osOctaedros dos gnósticos, para ficar transformados no mesmo Deus.

Portanto, segundo insígnia a própria Kabalah, Jehovah não é nem mais nem menos queAdão Kadmon, o "Homem celeste", de quem o Logos, o secreado Espírito, serve-se como deveículo para descender ao mundo fenomênico e manifestar-se nele. Tais são os ensinamentos daSabedoria antiga, que nem mesmo os cristãos ortodoxos repudiariam se, com sinceridade e alteza

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de mente, estudassem suas próprias Escrituras. Porque, lendo cuidadosamente as Epístolas de SãoPaulo, adverte-se que o apóstolo dos gentis admite plenamente a Doutrina Secreta e a Kabalah. Agnosis que condenação São Paulo e que condenou Platão não é "o supremo conhecimento daverdade e do único Deus", senão a falsa gnosis e seus abusos; pois, do contrário, como tivessefalado como um platônico de ascendência? As idéias ou tipos (archai) do filósofo grego; asinteligências de Pitágoras; as emanações ou eons dos panteístas; o Logos ou Verbo arquétipo dasinteligências; a Sabedoria ou Sofía; o Demiurgos ou Construtor do universo sob a direção do Paiou Logos Inmanifestado de quem procede o Verbo; o infinito e desconhecido Ain-Suf; os períodosangélicos; os Sete espíritos análogos aos Sete de todas as cosmogonias; o Pleroma das Inteligências;os Arcas do ar; os Principados; o Metatron cabalístico; os abismos do Ahriman, diretor de nossomundo; todos estes conceitos se expõem e admitem nos escritos de São Paulo, reconhecidoscanonicamente pela Igreja, assim como nos textos gregos e latinos dos autores cristãos, cujastraduções dão muito pobre idéia dos originais."

No Zohar encontramos a descrição do Ain-Suf, o Parabrahman semítico. Há passagens,como o seguinte, que se aproximam muitíssimo ao ideal vedantino: A criação (o universomanifestado) é a vestimenta daquele que não tem nome, a vestimenta tecida com a própriasubstância da Divindade. Entretanto, entre o Ain ou "um nada" e o Homem celeste há umaprimeira Causa e impessoal, da que se diz: antes que Ele desse forma a este mundo, antes de queproduzira forma alguma, estava Ele sozinho sem forma nem semelhança de nenhuma classe.Quem poderá, pois, compreender como era Ele antes da criação, posto que carecesse de forma?Daqui que nos esteja proibido representá-lo em qualquer forma ou semelhança, nem por Seusagrado nome, nem tão somente por uma simples letra ou um mero ponto. A frase seguinte: "Nãoviram figura alguma o dia em que lhes falou o Senhor", resulta muito enigmática se, se compararcom a passagem do Deuteronomio em que Deus fala cara a cara com seu povo. Nenhum dosnomes que dão ao Jehovah na Bíblia se refere ao Ain-Suf nem à primeira Causa e impessoal ouLogos da Kabalah, mas sim todos significam Emanações. Diz, com efeito, assim: "Porque emborapara manifestar-se a nós, o Oculto de todo o oculto produziu as Dez Emanações (Sefirotes)chamadas Forma de Deus ou Forma do Homem celeste, ainda resultava esta luminosa formamuito deslumbrante a nossos olhos, e por isso assumiu outra forma, ficando por vestimenta oUniverso." Portanto, o universo ou mundo visível é uma mais ampla expansão da Substânciadivina, e a Kabalah lhe chama "Vestimenta de Deus". Esta é a doutrina dos Puranas hindus eespecialmente do Purana Vishnu. Vishnu enche o Universo, e é o Universo. Vishnu-Brahmafecunda o ovo do Universo e dele sai o Universo; mas o mesmo Brahma desaparece ao fenecer oMundo e fica unicamente Brahman, O impessoal, o eterno, o inato e indescritível. O Ain Suf doscaldeus e judeus é certamente cópia da Divindade védica, enquanto que o Adam celeste, oMacrocosmos, o Ser do universo visível que reúne em si todos os seres, tem seu original no Brahmapuránico. No Sód (O Segredo da Lei) advertem-se as expressões próprias dos antigos fragmentosdo Gupta Vidya ou conhecimento oculto, não sendo muito aventuroso dizer que até os mesmosrabinos, familiarizados com os objetos especiais de seu estudo, não são capazes de compreender detodos os segredos sem o auxílio da filosofia hindu. O Zohar, por exemplo, pressupõe como aDoutrina Secreta, uma essência universal, eterna, absoluta e, portanto, passiva em tudo que oshomens chamam atributos. A Tríade pré-genésica ou antecósmica é pura abstração metafísica. Anoção de uma hipóstasis trila em uma Essência divina desconhecida é tão antiga como opensamento e a palavra. Hiranyagarbha, Hari e Sankara (Criador, Conservador e Destruidor,

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ou Brahma, Vishnu e Shiva), são os três atributos manifestados dessa Essência, que aparecem edesaparecem com o Kosmos. Constituem, por dizê-lo assim, o Triângulo visível inscrito no sempreinvisível Círculo. É a originária raiz mental da Humanidade, o Triângulo pitagórico que surge daMônada ou Ponto central sempre oculta. Platão ensina esta mesma doutrina, Plotino lhe atribuimuita Antigüidade e Cudworth observa sobre ela:

"Posto que Orfeu, Pitágoras e Platão afirmaram unanimemente a idéia da divinaTrindade hipostática, tomada sem dúvida alguma dos egípcios, lógico é supor que estes aaprendessem também de alguém."

Os egípcios tiraram dos hindus o conceito da Trindade. A este propósito, adverteacertadamente Wilson: "Como quero que os relatos gregos e egípcios sejam muito mais vacilantes edeficientes que os dos hindus, resulta muito possível que nestes últimos encontremos a doutrina emsua forma mais original, metódica e significativa. Com esta singela explicação bem se com- prendeagora o sentido da passagem seguinte: As trevas enchiam o Tudo sem limite, porque o Pai, a Mãee o Filho tinham voltado a ser Um. Passagem que quer dizer que o espaço não se aniquila entreos manvantaras, e que, desaparecido o Universo, tudo volta para seu homogêneo estado pré-cósmico, isto é, sem aspecto. Tal ensinaram primeiro os cabalistas e depois os cristãos, e quanto aoZohar, insiste continuamente na idéia de que a Unidade Infinita ou Ain Suf é inacessível à mentehumana. No Sefer Jetzirah vemos o Espírito de Deus, o Logos, mas não a Divindade em simesmo, ou seja, o Um. A gente é o Espírito do Deus vivo... Que vive eternamente. Voz, Espíritodo Espírito e Palavra: isto é, o Espírito Santo, e também o Quaternário, porque deste cuboemana o Kosmos e segundo o Sefer Jetzirali, quando os Três em Um vêm à existência pelamanifestação do Shekinah (a primeira efulgencia ou radiação no Kosmos), o Espírito de Deus ounúmero Um frutifica e acordada a potência dual, o número Dois ou Ar, e o número Três ouÁgua, que são trevas, vazio, lama e esterco, quer dizer, o Caos, o tohu vahbohu. O Ar e a Águaproduzem o número Quatro, Éter ou Fogo, isto é, o Filho. Tal é o Quaternário cabalista. Estenúmero Quatro, que no Kosmos manifestado é o Um ou o Criador, é para os hindus o "Velho",Sanat, o Prajápati dos Veda e o Brahma dos brâmanes, o celeste Andrógino que se transmuta emmasculino ao desdobrar-se nos corpos do Vách e Viráj. Para os cabalistas, é primeiro Jah-Habah, que se muda no Jehovah ao desdobrar-se na Adam-Eva no mundo arúpico e no Caín-Abel no mundo semi-objetivo, até que chega a ser homem e mulher no Enoch, filho do Seth.

O Cua-hu-xi-calli do Tiroc é outra das chamadas pedras do sol, por suaforma circular, com sua estrela ou rosa de ventos de oito pontas, telhas ou iztli, eoutros tantos sinais de multiplicação intermédios, representando as respectivasdivisões que faziam do dia e também do círculo. O disco, de que irradiam aquelas, éuma série de dez círculos concêntricos que, de dentro a fora, são: 1º, uma cavidadecentral que, mediante um canal ou vergôntea, prolonga-se até o bordo da pedra, amaneira dos gonzos de nossas antigas portas, como se por ele tivesse entrado umaporta ou grande plano vertical, que por seu giro logo sobre dita cavidade, tivesseservido para medir ângulos azimutais, ao modo como hoje mesmo o vemospraticado em astronomia; 29, anel em branco; 39, anel com 16 discos perfurados,símbolos do Sol; 3º e 4º, outros dois anéis em branco; 59, anel com 40 calquihuitou discos ógmicos; 6º, anel em branco; 7º, anel com outros 48 discos ógmicos; 8º,

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anel com 8 X 4, ou sejam 32 signos ógmicos pentagonais entre os arranques dasquatro pontas ou telhas cardeais (o lugar de outros 5 está talher por cada telha) ;9x9, 8x8, ou sejam 64 folhas entre as 4 sortes telhas cardeais e as outras quatrointermédias, e 10, um disco entre cada telha e cada sinal de multiplicação ou, emtotal, 16 discos, que, com os 8 terminais dos sinais de multiplicação, dão uma somade 24. Com esta disposição, pode dizer-se que tinham os nahoas uma série deverdadeiros círculos graduados, capazes de lhes dar as medidas de 1/1, 1/2, 1/3,1/4,1/5, 1/6, 1/7, 1/8, 1/9, 1/10, 1/12, 1/13, etc da circunferência. O quepoderíamos chamar divisões por graus de semelhantes pedras do sol, apreciam-semelhor na lâmina do Códice Borgiano, página 143 da obra de Chavero, onde secontam mais ou menos aproximadamente, por tratar-se de um desenho e não deuma fotografia, 180 divisões, divisões que, tomando por metade, cada uma nosdaria nossos atuais 360 graus de divisão da circunferência. A figura que leva nocentro este último documento recorda algo a outras vinhetas tanto do CódiceCortesiano como de outros 1.

O monólito de Tenanco se acha, segundo Chavero, na Colina do Calvário dedito povo. É uma pedra lavrada e consta de quatro cuadretes idênticos, a razão deduas por cada cara, em cujos centros se vêem esculpidos, respectivamente, umcervo; três linhas onduladas, paralelas, símbolo universal da água; outras quatrolinhas irregulares e um signo pouco definido, que de longe recorda um dosnumerais do Códice Vaticano. Chavero lê os ditos signos deste modo: a) Ummazatl ou cervo, animal terrestre em representação do Tla-tona-tiuh ou sol de terra(período geológico de todos os códices); b) um acatl ou cano, em representação doA-tona-tiuh ou sol da água; c) Um como feixe de relâmpagos em representação doTle-tona-tiuh; d) Um ehecatl em representação do Eheca-tona-tiuh ou sol do vento.As quatro figuras estão enquadradas em um meio doido ou rostrillo, algosemelhante, em sua disposição, ao do Sol da Papantla, mas coroados cada um pelametade respectiva do selo salomônico, cujos dois triângulos, entrelaçados,destacam-se em perfeito relevo. Sentadas sortes correlações, Chavero estabeleceuma correspondência muito erudita e que merece ler-se, dos quatro sóis nahoas eos quatro sóis toltecas com os quatro sóis ou períodos geológicos mexicanos, cujarespectiva seriação é por completo diferente. Rios, Ixtlixochitl, Veytia, Boturini,Clavijero, Fábrega e Humboldt, e os códices do Cuanhtitlán e da Montolinia,seguem o sistema tolteca, enquanto que o codex Zumárraga, Gama e seuhomônimo seguem outro diferente, todo o qual pode resumir-se nas três sériesseguintes:

Seriação nahoa água, fogo, ar, terra.

1 Nos tomos do Bulletin da Société Astronomique, da França, correspondente aos anos de 1910 e1911, podem ver-se alguns interessantes artigos a respeito dos primitivos aparelhos astronômicosdos hindus, artigos que são toda uma revelação.

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Seriação tolteca água, fogo, terra, ar.Seriação mexicana ar, fogo, terra, água.Seriação de outros códices água, ar, terra, fogo.

Com estes dados se expõem interessantes problemas de cosmologia,geologia, pré-história e até alquimia, que possivelmente algum dia abordaremos.

Se das pedras passam às tradições, a riqueza de secretos ainda a respeito denossa velha a Europa, que entesouram os documentos mexicanos, éverdadeiramente inaudita, e está chamada, quando algum dia se estude desde seuverdadeiro ponto de vista da Religião-Sabedoria, a causar verdadeiras revoluçõesem todos nossos conhecimentos e vaidosos prejuízos de superioridade. Para nãocitar senão um extremo relacionado com o tema fundamental deste trabalho,notemos no grande Wotan, o personagem mais excelso de toda a tetralogiawagneriana. Qualquer lhe diria arrancado da mitologia escandinava; pois bem,sendo isso assim, como indubitavelmente o é, o que diremos ao lhe ver enaltecidoigualmente no outro lado do Atlântico?... Diremos o que já não há mais remedeioque confessar; que o mundo foi antigamente mais um que em nossa própria épocade ponderada cultura.

Copiemos de Chavero (página 163 e seguintes de sua admirável, embora emmuitos pontos equivocada obra):

"As tradições nos apresentam, certamente, ao Wotan como o Zamá doYucatán. Devemos ver no Wotan, mais que a um ser real, a uma personificação daraça. Os cronistas, seguindo seu costume de ajustar nossas antiguidades aos relatosbíblicos, quiseram fazer diversos personagens hebreus dos nomes do calendário doChiapas, e supor que foram os primeiros caudilhos da raça. Segundo eles, oprimeiro habitante foi Mox ou ir (Moj, Moisés?) E lhe representava com a árvoresagrada da gigantesca seiba; o segundo foi Mox ou ir - o Muisca da música - e oterceiro, Wotan, chamado também Tepanaguaste, o caudilho dos tepanecas, quequer dizer "o Senhor de pau oco, ou navio". A este lhe adorava como a coração dopovo. No Mox estava representado o povo nativo da região maya-quiché... Wotan,pelo contrário, aparece nos manuscritos não só inéditos, mas também algumdesconhecido, como um civilizador estrangeiro, um viajante, um fugitivo, quechega por mar: primeiro touca na península do Yucatán, e depois se estabelece comsua gente no grande rio Usumacinta. Sobe logo Wotan ao rio Catasasá e por achar-se perto de dito rio as ruínas do Palemque, acredita-se que esta celebérrima cidademaia foi fundada por aquele... Wotan é o chefe de toda uma raça que a si mesmo sedava o nome de cobras, e Wotan era um chati, uma cobra - um iniciado naga -, porisso o povo que logo fundou se chamou Na-cham, a cidade das cobras 1 - Wotan,

1 Por qual estranha coincidência aqueles habitantes da Ophiusa e Oestrimnis ocidentais daEuropa, do poema do Festo Advenho, De natura rerum, são também chamados nagas ou cobras,despertando e pondo inutilmente a prova a curiosidade dos doutos? Disso nos ocupamos maisextensamente no tesouro dos lagos de Somiedo, pág. 187.

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pois, foi um sacerdote-rei, um inca - e o primeiro governo dos chanes foi ateocracia. O povo descendente dos Wotans se chamou Thiopisca ou Teopisca,lugar sacerdotal. Wotan e Zamná foram ambos dois sacerdotes negros.

Humboldt indicou a idéia de que este Wotan pudesse ser um dos Buddhasque saíram a países longínquos a propagar sua religião. Nós lhe seguimos apoiadosem um dos nomes de Odín, que era Vuotan, e na crença de que em Palanque haviarastros búddhicas... Hoje não acreditam assim, pois a emigração votânica é anteriorem muitos séculos ao buddhismo... Continuando com as tradições relativas aoWotan encontramos que se uniram por me - deu de casamentos estes chanes ouculebras 1, com as filhas do país - ao modo como na Gênese vemos os Filhos deDeus apaixonando-se pelas filhas dos homens e originando o dilúvio -... Oscostumes dos sacerdotes maias-quichés, de pintar-se de negro com o ulli para ascerimônias e levar o nome do fundador Wotan, de igual maneira que o de Hermesos sacerdotes egípcios e o do Zoroastro os parsis - Também deificaron ao Zamná,provável filho ou sucessor de Wotan, lhe levantando pirâmides suntuosas... Diz,enfim, a lenda, que Wotan fez várias viagens e assim se foi cobrindo toda apenínsula maia de cidades suntuosas até Monopolizam, na América Central; até oChiapas e até o Pacífico, pelo Xoconochco, e esteve também em Foge-hue-ta - acidade "do Deus velho" ou do "Ancião dos dias", semita - e é o povo atual doSoconusco onde o deus pôs dantas, e encerrou um grande tesouro consistente emfiguras de deuses, em uma grande caverna que perfurou com seu fôlego, quenomeou Senhora, pondo tapianes - quer dizer, elementares, moços ou jinas, paraque guardassem o tesouro daqueles americanos nibelungos -. Uma vez ocupada azona de entre os dois mares, descenderam até o Peru... Etc., etc.

Impossível seguir a imensa florescência de mitos a que todas estas e outrasviagens do grande Wotan deram lugar. Baste dizer que toda a pré-história maya-quiché e inca por um lado e a da Europa ocidental por outro, como partes ambasdo imenso moderado atlante submerso, está relacionada com tamanho personagemhistórico-simbólico, a quem também podemos considerar como Quetzalcóatlmexicano: Odín escandinavo, Hércules mediterrâneo e Krishna dos arianos, poistodos estes nomes e cem outros, são um.

Mas não terminaremos este pesado capítulo, reflexo fiel dos ensinamentosiniciáticos de Os Mistérios que em tempos pré-históricos existiram em todomundo, sem dar uma ligeira contagem, tirada das obras de Blavatsky, a respeito daslinhas mais salientes da teogonia escandinava, alma de todas as obras de Wagner.

Frigga ou Fricka é a inconsolável mãe de Bal-dur, o deus branco escandinavoque morreu e baixou à "mansão obscura" (Gela); Loki, o ser maligno, embora não

1 Terá que ver este nome do Chanes ou Swanes ou Votanes, com tantos outros relativos aoLohengrin, Swan-Ritter ou Cavaleiro do Cisne, de que nos ocupamos ao tratar deste dramawagneriano? Acreditam que sim, como também que com isso está relacionado o nome de chuanescom que a si próprios se envaideciam os camponeses bretões e normandos frente ao espírito daRevolução francesa.

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infernal, da mitologia escandinava, equivalente a Plutão; Dulovio, o ibero deusPlutão e Hell ou Gela a germana deusa Proserpina; Hermod é o filho de Thorescandinavo, enviado por Frigga à região obscura (Hel) em busca do deus branco(Baldur) e o Lifthrasir norso é o Adão e Eva futuros da Humanidade desencardidade ulteriores Ronda segundo A Renovação do Mundo. Odín é o deus escandinavoque dotou ao homem de vida e alma depois que Lodur lhe teve dado seu sangue eossos; Loci, a personificação mística dos Agarra escandinavos, e estes Agarra daEscandinavia são, a sua vez, os Regentes do mundo que precedeu ao nosso, osPilares do Mundo, como os Cosmo-criadores gregos, que criaram a terra, os mares,o firmamento e as nuvens, tudo dos restos do gigante assassinado Imir, mas quenão criaram ao Homem, senão só sua forma, da árvore Ask ou Ash. Odín é quemlhe dota de vida e alma, depois que Lodur lhe teve dado seu sangue e ossos, e,finalmente, Hónir é quem lhe proporciona a inteligência e os sentidos conscientes.Quanto ao Nefi-Heine, é o frio inferno dos Eddas; Asgard, a morada dos Deuses,para as Lendas Norse (antiga língua escandinava); Gimil, a cova norsa sobre a quetem que erigir o Maravilhoso Palácio das Rondas futuras de que fala A Renovaçãodo Mundo; Widblain, a 7ª Ronda futura; Audhang, e a 6ª as três Deusas Norsas sãoondinas que, ao revoar em suas cristalinas moradas do rio lhe ensinaram aodelirante Ondín o passado e o futuro. Os Pergaminhos da Sabedoria são os cantosnorsos, em parte perdida alegoria das Idades Arcaicas; Ida é a região norsa daeterna paz, em que é já inútil o Mïölnir ou Svástika; Bolthara, o gigante primitivodos Eddas, pai da Besla, é análogo aos da raça de gigantes de que fala a Gênese ouNephilin; Besla é a filha da Bolthara, o gigante primitivo norso e Bör, o primeirohomem dos Eddas, filho da Besla, e da raça dos gigantes. Baldur, o deus brancoescandinavo, que morreu e se encontrou na "obscura mansão das sombras" (Hel,Gela), e, enfim, Hónir, o deus escandinavo que dotou de Emana ou pensamento ede sentidos ao homem.

"A Renovação do Mundo ou Asgard and the Gods - acrescenta Blavatsky - éa profecia norsa a respeito da Sétima Raça de nossa Ronda, em que se diz que osfilhos dos deuses mais elevados se reuniram e neles se levantaram novamente seuspais (os Egos reencarnados) falando do passado e do presente, e recordando assoube profecias de seus antecessores que se cumpriram todas. Perto deles, emborainvisível, estava o Um forte e poderoso que todo o governa. Eles sentiam suapresença, mas ignoravam seu nome e à seu mandato a nova terra surgiu das águasdo Espaço. Ao sul, sobre o campo de Ida, fez outro céu chamado Audhlang, e maislonge um terceiro conhecido pelo Widblain. Sobre a cova Gimil foi ereto umpalácio maravilhoso, resplandecendo ao Sol - Estes são os Três Globos futuros ouascendentes de nossa Cadeia -. Ali estavam entronizados os deuses, como antes.Das alturas do Gimil, olhavam aos ditosos descendentes do Lif e Lifthrasir - oAdão e Eva futuros da Humanidade desencardida- e lhes indicavam que subissem

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mais acima de um em outro céu até que pudessem unir-se às divindades na casa doTodopadre" 1.

Depois desta tão penosa excursão mitológica relativa aos ensinamentos queeram dadas nos Mistérios da Antigüidade, passemos ao exame dos quatro dramasque integram ao gigantesco Anel do nibelungo.

1 Outros muitos ensinamentos contêm sorte obra que também poderia denominar O Progressocíclico do Universo. Platão divide este progresso cíclico em períodos férteis e estéreis, acrescentando:"Nas regiões sublunares as esferas dos diversos elementos permanecem eternamente em harmoniaperfeita com a Natureza divina, mas suas partes, devido à muita proximidade à terra, estãoalgumas vezes em harmonia, e outras em desacordo com a Divina Natureza. Durante os períodosférteis os poderes ocultos das novelo, animais e minerais simpatizam magicamente com as"naturezas superiores"; mas durante os estéreis dita simpatia se perde e se obscurece a vista daHumanidade, como acontece sempre no Kali-trampa. Achamo-nos em um período estéril e ocepticismo do século XVIII legou ao XIX uma herança de incredulidade". (Doutrina Secreta, T.II, pág. 68.)

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CAPÍTULO XIO OURO DO RENO

O Pai Reno ou as Águas genesíacas - As três Ondinas primitivas e a custódiada Brasa de Ouro - Acertos wagnerianos e enganos cabalistas - Aparição doAlberico, o nibelungo - O Amor e o Ouro - A maldição do Amor - Valorinestimável dos Eddas - Outras cosmogonias concordantes com a escandinava doOuro do Reno - As Rondas arcaicas e o argumento da obra - As quedas celeste eterrestre - O Ouro e o Sol; as Águas e a Lua - Hilozoísmo - O Ouro do Reno ealguns mitos espanhóis - Riqueza, Formosura e Amor: as três filhas do Pai Reno -A Árvore da vida - Nibelhein e Walhalla - Por ambição se perdem os deuses, comoos homens - Eterna solidariedade entre os deuses, os gigantes, as ondinas e oshomens - Os problemas do Destino e o futuro Ordem Desconhecida que buscasempre a humana rebeldia - A Astúcia e a Força Bruta - As verdadeiras causas dahumana Servidão - A Fraternidade Universal e a tirania do Ouro - Quanto maisfácil é fazer o grande, que fazer o pequeno! - A maldição do Ouro - Os Criadoresou Elohim - O Wotan escandinavo e o Wotan da América - Juno-Fricka e Loci-Mercúrio - Enoch e Hermes na Maçonaria e na Mística - Nárada - Os Puranas - Osbaralhos ou Taros - O Ouro dos deuses, a Taça das ondinas, a Espada dos homense o Grosseiro dos gigantes - A grande jogada da Vida - O tema do Aniquilamento -Deuses e homens trocam, loucos, o Amor pelo Conhecimento - O eterno Anátema- O resgate da Freya - O primeiro e o último na vida - A Atlântida e a Ponte doArco-Íris - A Magia do Círculo e o problema do hiperfísico - Matemática eEspiritismo - Os nós de Gordio e a marcha dos astros - Os eternos e mágicosAnéis como chaves da Vida.

Estamos no fundo do Pai-Reno, símbolo daquelas Águas genesíacas sobre as que o"Espírito do Senhor" era levado, segundo o tão discutido primeiro versículo daGênese. Por toda parte reinam as mais densas Trevas, porque a Grande Mãe, aMaha-Maia ou Grande Ilusão, de cujo seio tem que surgir por emanação tudo queexiste; a Matéria prima in abscondito, eterna, indestrutível, sem princípio nem fim,que diriam os alquimistas; a Raiz Universal, em uma palavra, ainda não tinharecebido o Sopro lhe fecundem do Grande Fôlego, nem, portanto, havia-se aindafeito a Luz... 1

Apesar do que pudesse acreditar-se, Wagner afundou tanto no estudo das fontes mais purasderivadas dos Eddas, que em seu Anel se aparta por completo da equivocada tendência cabalista-ocidental, para nos dar, mercê a ditos Eddas, a genuína doutrina genesíaca do Oriente. Tão éassim, que enquanto a errônea seriação cabalista e bíblica é a de palavra divina criadora; Luztranscendente; Fôlego cósmico; Águas genesíacas e Trevas, a wagneriana como a oriental é, àinversa, esta outra, que pode ir-se comprovando no decurso do argumento: a) Águas informegenesíacas; b) Luz, ou Brasa de Ouro n o seio das Águas; c) Palavra reveladora; d) Luz

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fenomênica; e) Mundo e homens celestes; f) Mundo e homens físicos. A observação carecerá acasode interesse para muitos de nossos leitores, mas é de muito alta importância oculta.Não nos detemos, por outra parte, nos diversos temas musicais, por sair-se eles de nosso objeto e tersido tratados de mão professora por diversos escritores conhecidos.

Ao redor de uma aguda rocha, esfumada apenas pelas primeiras tinturascrepusculares da Luz Astral, a antiga luz da matéria pré-cósmica surta no Onderahou Abismo de Trevas por cuja parte superior começam a correr as águas de direitaa esquerda, Woglinda, a menor das ondinas filhas do Pai-Reno nada graciosamenteentre lianas. Um crepúsculo esverdeado, porque verde é a Luz Astral a olhosclarividentes, pulveriza seus tons melancolicamente fantásticos pelas obscurasrochas, mais sombrios abaixo, mais claros acima. Os solenes compassos do temamusical das Águas Primitivas, verdadeiros mantras do Caos original exposto nogigantesco prelúdio da obra, arremedaram enquanto isso com perfeita harmoniaimitativa o movimento vital, o fluxo majestoso e fecundo daquele Seio criador:primeiro, com larga tônica; logo, com a tônica e a quinta; depois, com as três notassimples do acorde fundamental, até chegar mais tarde o momento sublime em queuma vigorosa escala cromática, Fohat, a Eletricidade Vital, Eros, o Hálito Divino,rompe o equilíbrio inerte e estéril daquelas águas, as fecundando com sua Luz. Aescala cromática, verdadeiro Sopro criador arranca das profundidades da orquestrade igual modo a como o Logos-demiúrgico de Platão emanasse das Trevasinefáveis... É todo isso o mesmo motivo dos Elementos primitivos que apareceráconstantemente no curso do drama sempre que queira significar a arcadiana pazancestral, a inocência primitiva. Por isso seus elementos são a base das ulterioresaparições da Erda (a Terra), das Nornas ou Parcas, do Arco-Iris, etc.

- Veya! Cerca-a! Veyala! Heyala! Veya! - Gritava a ondina Woglinda,chamando a suas irmãs naquela língua primitiva, alma de todas as línguas mães quehouve no mundo.

Wellgunda, a segunda filha do Reno, responde de acima à chamada, e ambasbrincam graciosamente em volto do Tesouro que vigiam, enquanto que Flosshilda,a terceira ondina lhes repreende: - "Mal vigiam, jogando, o Ouro dormido. Tenhammais cuidado, ou pagarão caros seus jogos!" - Diz-lhes.

Enquanto isso, subindo de rocha em rocha, do abismo tenebroso, regiãoinfernal dos negros vapores ou Nibelhein, desliza-se o muito feio NibelungoAlberico, gnomo cheio de ardentes desejos para as ninfas, quem, uma atrás deoutra, fingem as três corresponder a seu amor, para lhe deixar burlado em seguidado modo mais cínico: - Valia a! Lalaleya! Heya! Heya! - Gritam a coro em sualinguagem de ondinas, enquanto que o exasperado miúdo as persegue inutilmentepelas rochas, ao par que ressonam fatídicas na orquestra as pesadas notas que são oleitmotiv do carma ou da Servidão, expressando a tirania das coisas e dos fatos, dodestino cruel, enfim, que logo é base do paciente tema do trabalho redentor dostristes nibelungos.

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De repente, o olhar do gnomo Alberico se detém fascinado por um novoespetáculo. Da parte superior das águas, por todo o âmbito do rio, descende, cadavez mais luminoso, um resplendor de áureas refulgências, maravilhoso e radiante...É o Dormido misterioso: - Heyayaheya! Vallalallalala! Leyayahei! - Saúda-lhe o corode ondinas - É o ouro do Reno, o Bem-amado, encomendado a nossa custódia, queacordada! - Dizem-lhe ao nibelungo, confiadas em que este não poderá lhe tocar,cego, como está, pela paixão amorosa.

Alberico, obcecado já pelo brilho daquele brasa lhe rutilem e fria dasprofundidades do Rio, pergunta às ondinas o que é aquilo tão belamente estranho,e estas, cada vez mais burlonas, admiram-se por que um gnomo desprezível nãoconheça o Ouro nem o poder sem limites que, segundo a paterna profecia, chegariaa conquistar-se quem com ele soubesse forjar um Anel. Aquele dormido Tesouro,com efeito, estava encomendado desde o começo das coisas à custódia dasbrincalhonas ninfas, porque só quem alcançasse a renunciar ao poder do Amor e arenegar de seus doces laços, podia ser dono do encanto do Ouro e forjar-se comele um Anel. As muito belas ondinas filhas do Reno eram, pois, sua melhorcustódia, porque basta que respire um ser para que já ame, e renunciar ao Amor étambém impossível a quem tem visto uma só vez os encantos daquelas, encantosque mais tarde herdou delas aquela feiticeira temível do Loreley, imortalizada pelalied de Schumann 1. O motivo da Renúncia do Amor e logo o do Anel, acontecem-se,enquanto isso, na orquestra, depois do tema original do ouro do Reno, e Alberico,cego antes de amor e agora de cobiça, sobe furiosamente para a rocha central, cujacúspide ganha com espantosa precipitação. Ao fim, entre os gritos das ondinas, etomando por testemunha da ação que vai consumar ao próprio Padre-Rio,amaldiçoa por sempre o Amor, rouba o prezado tesouro, e descende com ele aoNibelhein, com o que ficam as águas do Reno instantaneamente a obscuras, edesoladas suas incautas filhas... Esta renúncia do Amor é a alma da obra inteira.

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Tudo que antecede da grande fábula escandinava dos Eddas, utilizada porWagner, é doutrina oriental, pura e simplesmente, porque aqueles proto-semitas, oumelhor, pré-semitas, autores dos Eddas, eram, no fundo, ramos do grande troncoariano que ainda não se degradou mesclando-se com as gentes atlantes da Quarta

1 "-É tarde e faz frio, formosa prometida! Por que cavalga sozinha? O bosque é grande, ninguémte acompanha, vais ser minha! - Grandes são a astúcia e o engano dos homens. Meu coração estádestroçado pela dor. Embora a buzina ressone por todos os âmbitos do bosque. Huyel... Não sabequem sou... - Um corcel e uma amazona tão ricamente embelezados; essa figura juvenil tãoadmiravelmente formosa... Agora te conheço! Deus me atira! É Loreley, a feiticeira! - Conheceu-me fim! Meu castelo aparece na alta rocha, refletindo nas profundas águas do Reno - É tarde, fazjá frio. Não voltará, infeliz, a sair jamais deste bosque! É já minha!" - (Poesia do JoséEichendorff, instrumentada pelo Schumann.)

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Raça, segundo a alegoria bíblica daqueles filhos de Deus que se uniram às filhas doshomens, dando origem às primeiras raças dos gigantes.

O Zohar, o Midraish, a Gênese e outros livros semitas falam de mundosprimitivos como este das Ondinas do Reno e dos nibelungos, mundos quepereceram logo que vieram à existência, como fracassos da evolução, por careceraquelas de pensamento, porque o divino Ouro da mente só lhes servia decuriosidade e de brinquedo, não de arma de aperfeiçoamento evolutivo, e estesporque eram todos meros passionais, qual Alberico, antes de sua renúncia do Amorpara roubar o Conhecimento. Tal é também na mais remota teogonia grega doHesíodo a origem daqueles Pigmaleões ou Forças primitivas, criadoras da formapseudo-humana dos sem mente. O Uno-único e Supremo, sem princípio nem fim,nem mesmo existência concreta tal como nós a conhecemos; o Brahma-Prajapatiindustânico, assume, com efeito, no Vishnú Purana quatro corpos distintos aocomeçar cada uni-verso, ou seja: Ratri (a noite), Maitreya (o alvorada), Aham (o dia)e Sandhi (o crepúsculo vespertino), ou sejam os Torra, criaturas demoníacas ou ossupremos Filhos da Noite primitiva, mais augusta sempre que o Dia; os Suis(deuses), os Manús (homens) e os Pitris lunares progenitores, cujos quatro ordensde entidades primievas constituem moralmente as quatro colunas sobre as que seapóia o Universo, colunas que o bom São Agustín tomasse por um poucogrosseiramente tangível que servia à terra de sustentáculo.

A cosmogonia esquenta ensinada pelo Oannes, Ioan, Dagon ou O Hombre-Pez, salvo do dilúvio atlante, divide-se em duas partes: a dos monstros gigantescos,semi-humanos e semi-animais, e a atual. Os egípcios obtinham os modelos de suasclássicas figuras decorativas e escultóricas destes elementares monstros, a quem viano astral, não de fantasias desordenadas de seus próprios cérebros. Ditos monstros,aos que veremos jogar muito em breve na fábula wagneriana, são os gigantesNephihin, dos hebreus; os Gibborin, bíblicos; os Titãs, dos gregos; os Quinametzinou Foge-tla-kama (deuses da paixão) do Atonatiuh ou Sol, nahoa; os ferozesatlantes Rakshasas, do Ramayana; os inofensivos Espíritos das Trevas, doMahabharata, entregues ao Jadoo ou feitiçaria mais funesta; os Aletae, filhos doAgni; os Iakshas, da Lanka (Ceilán); os Rudras, os Nila-lohitas de caras vermelhas eazuis; torra-os, pré-brahmânicos ou não-deuses, adversários jurados dos deuses,inferiores a eles, porque estes últimos se opunham a que aqueles dessem Mente aosprimeiros homens da Lemúria; o Princípio dual ou de duas caras, que está nohomem em conflito constante; os demônios dos Puranas, precipitados por Shiva amundos inferiores, infira ou infernos, onde, longe de estar privados de redenção,como afirma o dogma cruel dos católicos, preparam-se com seu hercúleo esforçopara graus mais elevados de purificação, que têm que redimi-los, ao fim, de seumiserável estado; os Bolthara, dos Eddas; os monstros das Pranchas Cutha,desfigurados na cosmogonia de Berozo, raça pré-adâmica, sabedora, graças aoConhecimento que roubaram "ao receber o anel do Alberico", dos mais colossaismistérios do céu e da terra; personificação mítica, enfim, dos invisíveis Poderes daNatureza em milhares de divindades de todos os povos do mundo e das formasevolutivas que em nosso planeta precederam aos tempos atuais, há trezentos

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milhões de anos segundo as Estadias de Dzyan, Estadias tão em harmonia com osdados mais certos da ciência geológica: as criaturas, em suma, que se desembrulhamnos quatro reino da Natureza, desde muito antes que o homem de nossa raça atuale a quem os cabalistas conhecem, respectivamente, como gnomos, se habitarem nasvísceras da terra; fadas, em suas mil variedades, quando moram sobre suasuperfície; ondinas, aquelas que, como filhas do Reno, brincam nas águas; sílfides,as tão pérfidas criaturas dos ares, e salamandras, as criaturas do fogo... Aos físicosmodernos que sorriam compassivamente à vista da velha classificação, poderíamoslhes demonstrar, sem deixar sombra de dúvidas, que tais entidades reais não sãosenão personificações muito científicas das forças da Natureza, já que, como elesdizem, a energia não pode manifestar-se sem matéria que é não mais que energiacondensada, e a energia manifestando-se na matéria dá lugar à forma. Agora bem,as realidades dotadas de matéria, forma e energia devem ter, por força, um nome,porque, ao ser realidades, são seres. Acaso a corrente hertziana, as correntes dosventos e até a vibração do pensamento, por invisíveis que elas resultem a nossavista de toupeiras, deixam de revestir forma tão mais geométrica, quanto maiselementares elas sejam, qual vemos deste modo nos protozoários e protófitos, quesão também meras formas geométricas singelas?

"No princípio da Quarta Ronda atual, insígnia a Doutrina Arcaica, o reinohumano se ramificou em múltiplas direções. Sua forma era vacilante ainda, comotudo o que começa. Com freqüência seus germens e seus corpos eram corrompidospor enormes animais de espécies hoje desconhecidas, tentativas da Natureza, tãologo abortadas como nascidas. Surgiram assim as raças intermédias de monstrossemi-animais, semi-humanos, que viveram pouco e engendraram outros monstrosDânavas ou Gigantes, com animais fêmeas, até que os Reis ou Senhores (Elohim)proibiram tais uniões que complicavam o carma desenvolvendo carma novo. Asuniões culpados de raça a raça zoológica ficaram após estéreis" 1.

Na esplêndida teogonia nahoa, rainha-a das ondinas filhas do Reno, estásimbolizada na deusa Chal-chi-hui-tli-cué.

1 Para a Doutrina Arcaica houve duas grandes quedas dos homens, quedas compreendidas ambasna breve referência da Gênese em relação à união dos filhos de Deus com as filhas dos homens; aunião de alguns homens primitivos com os monstros fêmeas simbolizados na Lilit tentadora, daque nascessem os primeiros símios, e outra posterior do homem da terceira Raça com estascriaturas simiescas, dando origem às primeiras gente negras, "negras pelo pecado", mas tãohumanas e dignas de carinho como as demais raças. Os tasmanios, australianos, adamanes edemais tribos da Oceania, montanhas da China, e outras raças confinadas em cem rinconcitos domundo, procedem dos lemures e dos lemuro-atlantes. Os selvagens da Borneo, os veddas do Ceilán,os bosquimanos, negritos, etc., são os restos mais perfeitos daqueles seres nascidos de monstros semalma humana nem mente; homens efetivos, embora sem razão ainda, dos que ainda se vêem hojealgum que outro caso estranho de atavismo. Seu cruzamento, como refere Darwin dos tasmanios,produz esterilidade, não só como conseqüência de uma lei fisiológica, senão qual um decreto daevolução kármica na questão da não sobrevivência da raça anormal.

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Chalchihuitlicué é, literalmente, a deusa da anágua azul e rainha dos mares,rios, fontes e chuvas. De seu meio doido azul com gotas de água, diz Chavefo,surge garbosamente o acatl ou cano. Seus pés amarelos têm cactli brancos, levandona mão direita o chote ou chochopatli, lançadeira para tecer, e em sua mãoesquerda o fuso ou malacate. De seu corpo emana, estendendo-se sob seus pés, emforma de enorme caule azul, o símbolo da água, cuja corrente arrasta ao itacate deum mercado, a uma mulher e a um guerreiro, o que não simboliza, conforme pensao autor, que a água, como o tempo, tudo o destrói, mas sim tudo nas origensnasceu que as Águas genesíacas, que são o reino e seio fecundo de Xale-chihuit ouIxtacihualt, a Dama branca dos astecas, a da túnica com sóis e signos misteriosos, àmaneira de Imaculada católica, dama que habita na cúpula do monte de seu nome eque anunciou a vinda dos descendentes de Quetzalcóatl, para castigo dos crimes doImpério. Chalchihuitl é a Sri, filha do Bhrigu, um dos Prajapatís, Rhisis ou deusesaéreos; a Laksmí, esposa do Vishnú; a Gauri, prometida da Shiva; a aquosaSarasvati, esposa de Brahma, porque os três deuses e deusas são um só em dobro etriplo aspecto cosmogônico: a Lua, enfim, com todos seus infinitos simbolismos,todos referentes à Água, ao elemento feminino da Natureza, à Magna-mater da qualprovém o M e o hieróglifo C&& de Aquário. Ela é a Matriz Universal do grandeAbismo, a Vênus primitiva, já a grande Virgem-Mãe que surge das Ondas do marcom o Cupido-Eros que é seu filho, e é a última variante, enfim, da Gaia, Gaea ou aTerra, que em seu aspecto superior é o Prakriti industânico e metafisicamente Aditi,e até o Mülapracriti, a Raiz ou numen de todo o criado, Tehtis, a esposa eterna deOceano ou O Espaço; "madre-água-a, o Grande mar, que chorou e que se elevoudepois desaparecendo na Lua, que a tinha levantado; que a tinha dado a luz", comodiz a Estadia, sloka 9 do livro de Dzyan, nos dando um ensino ocultista igual a quetanto se discutiu na famosa obra do G. H. Darwin, filho, e do Dr. See, a respeitodas marés cosmogônicas, pois, por isso se vê, a Lua deu a vida à Terra, à inversa doque ainda opinam a maior parte dos astrônomos do Ocidente, e daqui as marés,que para a doutrina oriental não são senão os esforços que as águas do mar,originariamente enlaçadas com a Lua pela evolução cosmogônica, realizam paraelevar-se para sua Mãe, com amorosa afinidade a que chamamos atração.

Esta relação causal entre Águas e a Lua está proclamada em todas asteogonias. O dia em que se faça um estudo sério das tão admiráveis que nos legouo México pré-histórico, compreender-se-á também o significado de uma série defiguras simbólicas, por nosso vulgo cristão chamadas ídolos, a respeito dasprimeiras idades geológicas, tais, por exemplo, como a do Tla-loc.

Tlaloc é o deus nahoa da água. Seu nome, segundo Chavero, provém doTlal-li, a Terra, e oc-tli, o vinho do Maguey, hoje chamado pulque. Era o deus daschuvas e das tempestades, e seu reino era o Tla-locan ou Mansão Celeste,contraposta à região inferior ou Mictlan, o inferno no que reina Mictlan-te-cuh-tli.É o pai da Lua, e lhe representa como um guerreiro, com diadema de plumasbrancas e verdes e adornado de plumas brancas e vermelhas com o cabeloflutuando sobre as costas; gargantilha verde; túnica azul, adornada com uma redecom flores nos nós das malhas, que mais parecem o hieróglifo do elo de um e três,

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com broches semelhantes ao do número oitenta. Em seus nus braços leva ossabidos braceletes de chalchihuitl, e em suas pernas, também nuas, os cactli azuiscom braçadeiras de ouro. Na mão direita empunha um feixe de raios de ouro, e namão esquerda o escudo ou chimaltli profundamente adornado com plumasvermelhas, azuis, verde e amarelas. O corpo vai ungido pelo negro ulli ou azeitesacramental, e sua figura trêmula sobre os parapeitos de um templo. Uma máscarasagrada, exornada de agudos dentes semelhantes a outros hieróglifos do códiceVaticano, oculta por completo seu semblante. No códice Borgiano lhe vê o deusocupando a morada ou a casa da Lua, e tem diante dois copos sagrados com asbases azuis, que é a cor simbólica da água, e em seu olho, como em seu meio doido,aparece o signo da Lua. Sua esposa foi a deusa Chalchi-luitlicué ou deusa das Águas,cujo simbolismo acabamos de esboçar.

As sombras que reinam na cena ao começar o primeiro ato do ouro doReno, são as trevas genesíacas reinando sobre as águas antes que a primitiva Luzultra luminosa que é ainda obscuridade para nossos sentidos, fizesse aparecer a Luzfenomênica inferior e já visível: a Brasa de Ouro que deslumbra ao apaixonadoAlberico, Brasa brotada no seio das Águas por Palavra ou o Verbo Criador.

-"Eu sou a luz divina que irradia nas Trevas de sua mente - diz aos homens odivino Pymander egípcio de Hermes Trimegisto-; eu sou seu próprio Pensamento,sua Deidade interior, no Filho da Divindade, mais antigo que o mesmo princípioúmido em cujo seio dormi."- Se a ciência atual não estivesse infestada de prejuízos,diz Blavatsky, veria nisto o maior e mais profundo conhecimento da Física, assimcomo da Psicologia e da Metafísica; mas para apreciá-lo terá que ir desenvolvendoo símbolo, por onde quer que se manifeste em formas de vida aquele universalpensamento, Pensamento que não é outra coisa, em seu origens, que a Ideaçãocósmica ou Logos Arquétipo que do átomo químico se vai concretizando emformas progressivas. Ele é o primeiro dos dez zéfiros ou fôlegos (sephiroths) dacabala; o Miguel, chefe dos aeones gnósticos; o Ormuzd dos parsis; a Minervagrega, emanada com todas suas armas, da mente do Júpiter; a segunda Pessoa daTrindade cristã; o Phtah egípcio, ou Princípio de Luz e de Vida; o Inteligível, Filhode uma Madre-Virgen; o Andrógino; o Adan-Kadmon, cabalista; o Rha-Sephira, oueterno masculino-feminino, de cuja dualidade provém a terceira emanação,chamada a sua vez Binah, o Espíritu-Santo, a Razão ou segunda Inteligência; oProtogonos; a Hipóstasis; o Megalistor dos Cruze; o Brahma bissexuado, doshindus; o Nuah esquento, protótipo do Noé bíblico; o Cipac-tli ou Luz Incriadanahoa, anterior aos Céus e à Terra físicos, como emanação do Tona-ca-te-cuh-tliou Seidal Abstrata, no seio do Ome-te-cuh-tli, ou céu dos Dois em Um (Cipac-tonal e Oxomocoi ou Para-brahman e Mulaprakriti). Ele é também Daksha, o chefedos Prajapatis ou a Hoste coletiva de onde saem logo todos os criadores ou Elohimbíblicos; o Ero-Phanes, a emanação do Ovo espiritual dos mistérios órficos; oHorus divino, filho de Osíris e Ísis; a Idéia do Logos revestindo-se de matéria parafazer-se visível como Luz; Mahat, a Mente universal; Ignis ou Agní, o Fogo ouEspírito Um e Unigénito por emanação que obra logo como criador, conservador e

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destruidor (Brahma, Vishnú e Siva), e que acendeu aqui embaixo a nosso Sol comoum dos cem milhões de sóis do firmamento, catalogados por nossa Astronomia.

O hilozoísmo, filosoficamente entendido, é, com efeito, o aspecto maiselevado do verdadeiro panteísmo, e o único caminho que podemos encontrar parafugir do ateísmo estúpido e das ainda mais estúpidas concepções antropomórficas.Ele exige, como postulado indispensável para uma reta concepção do universo, aidéia fundamental de um Pensamento divino absoluto que penetra às inumeráveisforça ativas Elohim ou Criadores, cujas entidades são movidas por aquelePensamento único: Sol que brilha imaculado nas trevas das Águas e que vai animarassim a todos os seres, sem que por isso tenha mais intervenção nas ulteriores obradestes que a que tem o sol na vegetação terrestre. Este Sol, do Ouro do Reno, quedeslumbra por primeira vez os tenebrosos olhos do elfo nibelungo é Agní, o deusdo fogo; Daksha, o pai universal de toda força, começando pela suprema doConhecimento, para os zoroastrinos, magos e alquimistas; o Sol central e maiselevado dos quatro sóis celestes, o último dos quais é nosso sol físico; a fonteoriginária da luz sideral, ou luz astral de Paracelso e dos herméticos, que sefisicamente é o éter, em seu sentido espiritual mais excelso relacionado com oAnima-mundi, é a origem dos astros que são luz condensada não mais, por virtudedo qual tudo que pertença ao mundo espiritual tem que vir a nós pelo intermediáriodas estrelas. Por meio de dita luz influem os astros em nossos destinos com umdobro magnetismo, porque o chamado Éter espiritual é a verdadeira substância daEssência divina, invisível e, entretanto, presente em cada um dos átomos. Assim sepatenteia uma vez mais a analogia perfeita entre o Agni do Rig-Veda-Sanhita e aTabela esmeraldina de Hermes, quando esta diz: "O Céu é seu pai; a Terra sua mãe;Soma seu irmão, e Aditi sua irmã divina”.

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A cena do Alberico e as três filhas do Reno é idêntica à primeira parte dalenda espanhola da orelha do diabo 1, em que um jorobadito, tão disforme erepulsivo como o nibelungo, entra na cova da Zampoña, sob a ermida de SãoSaturio ou São Saturno, junto ao Douro, na Soria, onde em luta com terríveisanimálias, resgata a três ninfas ali encantadas: A Riqueza, A Formosura e A Reinado Amor, quem ingratas com o Domicio, o jorobadito, burlam-lhe sucessivamenteem seus desejos, depois das haver salvado tendo que combater com o própriodiabo em pessoa. As mesmas vões carícias, as mesmas falsas esperanças que dão aopobre gnomo as ondinas na obra de Wagner, dão nesta lenda ao infeliz esses moçotrês protótipos de quanto tem que mais atraente e mayávico neste submundo, paranos enganar como ao Alberico já Domicio. Isto é uma prova mais da grandeconexão que liga aos mitos espanhóis com os nórdicos, revelando uma origem

1 Pode ver-se completa esta lenda nas páginas 213 e seguintes de nossas Conferências teosóficas naAmérica do Sul, T. I, e em De Gente do outro mundo, c. IX.

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atlante, como conforme iremos apreciando no curso deste estudo. Algo há tambémnesta passagem que recorda as proezas do moço Aladino e do Abajur Maravilhosoou Ouro do Conhecimento, que deste modo rouba o menino, ao fim, comoAlberico.

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À medida que se vão extinguindo ao longe as burlonas gargalhadas doAlberico, as ondas se transformam em névoas densas que, ao dissipar-se,descobrem, veladas ainda pelas últimas sombras da noite, o topo de uma altamontanha, a Walhalla, o monte Ida, grego, a região norsa da eterna Paz, o altopenhasco de Gimil, sobre o que tem que erigir o maravilhoso palácio dos cicloshumanos futuros de Audlang e Widblain. O magno tema da Walhalla, cujo finodesenho apareceu já a tempo que Alberico arrebatava o Ouro, afirma-se aquisolenemente enquanto desponta a aurora. A luz do novo dia vai desenhando comcrescente claridade um palácio magnífico situado sobre as cristas de outramontanha fronteira, lá no fundo. Entre ambos os Montes se desembrulha um valeprofundo, por onde corre o Reno 1.

Sobre um leito de flores dormem Wotan e Fricka, o casal que, ao modo doJúpiter e Juno gregos, é soberana suprema de Céus e Terra. Fricka descobre aodespertar o longínquo palácio: o Burgo dos Deuses, majestoso, dominador,soberbo, qual correspondesse ao Tonante excelso que tinha subjugado sob seupoder supremo a todo o Universo, graças aos pactos ou leis gravadas nas runas desua lança, lança que antes fora grosa ramo arrancado da Árvore do Mundo.

Wotan, ao despertar, regozija-se à vista daquela maravilha de sua ambiçãoaugusta que lhe fabricaram, suando sangue, os ciclopes gigantes. Fricka, em troca,estremece-se de horror, pensando na terrível recompensa que estes últimossolicitaram que seu marido: Nada menos que a sua irmã Freya, a deusa dajuventude, a única capaz de agarrar diariamente para os deuses as Maçãs de Ourodo Jardim das Hespérides que, como sagrado Elixir de Vida e de Imortalidade,asseguram-lhes contra os estragos da velhice!... Já o próprio gigante Fasolt ameaça,de longe, dever levando se a em pagamento de tamanho esforço, enquanto que naorquestra se desenharam sucessivamente os motivos do Encadeamento do Amor,que leva aos gigantes para a Freya; o da Juventude imortal de Freya mesma, e o dafuga ou rapto desta virgem muito formosa pelos horríveis gigantes... Fasolt e seuirmão Fafner, armados de caminhos maças ou Bastos chegam por momentos,atravessando a grandes pernadas o espaço que medeia entre seu mundo e o montesagrado em que os deuses se assentam, orgulhosos mas covardes. Vêm aqueles doisbárbaros, enfatuados, a exigir ao Senhor de todo o existente que lhes seja completo

1 Wotan é, em certo sentido, o Marte grego; mas aqui é Júpiter, IO-pithar, ou "o Pai do IO", como que sua personalidade, sobretudo no que corresponde a Europa, enlaça-se com o estupendo mitoprimitivo do IO, ao que consagramos por inteiro nosso livro De Gente do outro mundo.Fricka, em tudo e por tudo, é Juno.

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no ato o estranho compromisso e entregue ao ponto a deusa da Juventude, alegriado Universo. Os passos rudes dos dois gigantes aparecem descritos musicalmentepor um tema de cadências pesadas e monótonas que dão aos ouvintes a angustiosaimpressão de uma força enorme que esmaga e que roda.

O combate mais cruel se livra então no peito de Wotan, porque se, por umlado, ama com delírio a Freya, sua irmã, de quem todos os deuses recebem ajuventude imortal e a alegria sem sombra de tristeza alguma, por outro não podefaltar, embora quisesse, à palavra empenhada, sou pena de ir contra os pactossagrados escritos nas runas de sua lança, pactos que antigamente valessem a ele,Alberico Wotan, o senhorio do existente. Estas runas, segundo Carlyle, são oalfabeto escandinavo, e uma chave suprema de Magia prodigiosa, como veremosalgum dia ao nos ocupar dos numerais do Gaedhil. Ante tão inopinada vacilação dodeus, os gigantes se exasperam: vão arrastar já a Freya pela força bruta, entre osgritos da desolada virgem, quando se interpõem Donner ou Thor, o do martelopoderoso que desencadeia as tempestades, e Froch, seu irmão, não menos temível;mas Wotan, bem contra sua vontade, interpõe sua lança de justiça que garante todopacto contra o emprego da força bruta. Chega, ao fim, Loge, o deus lhe assobiem efelino de cromático desenho musical, verdadeiro protótipo do Mercúrio grego e doNárada industânico, que com suas astúcias e seus enredos trazem sempre revoltoao mundo. O travesso deus Loge, o primitivo e incoercível Fogo único queescapou à tirânica lei imperial de Wotan, vem, diz, de dar a volta inteira aoUniverso, procurando algum expediente eficaz para que Freya seja resgatada,expediente vão, "porque nada há o bastante precioso no mundo, que possacompensar a perda do amor da mulher" - Nas águas, no ar, na terra, por toda parteonde palpita a vida e circulam os germens, perguntei se houver algo preferível àsdelícias do amor da mulher, e em todas partes se burlaram de mim - diz o deus, elogo acrescenta: - Só um ser abjeto e perverso renunciou ao Supremo Bem;renegou do Amor, em troca do vermelho Ouro: Alberico, o tenebroso nibelungo,que para vingar-se das Filhas do sagrado rio, roubou o Ouro do Reno, tesouro aseus olhos malvados muito mais precioso que o Amor mesmo... O que era antesum simples brinquedo belo em mãos das hoje desoladas ondinas, é já a estas horasuma arma de dominação irresistível nas peludas mãos do Elfo ruim, porque, mercêa leis mágicas ignoradas, conseguiu forjar um Anel prodigioso, um círculo de ouro,que vai lhe dar muito em breve o total senhorio do mundo...

Ante tamanha revelação toda a assembléia se comove e treme: Donner eFroh vêem todo seu poder perdido; Fricka, como mulher, ao fim, pergunta ansiosase, se pode fazer também com aquele oro jóias esplêndidas que, irresistíveis,possam-lhe permitir ou conservar sua amorosa sugestão sobre o vicioso marido;este teme por sua onipotência em xeque, e os gigantes tampouco se sentem jámuito seguros de sua força frente ao nascente poder de seus inimigos eternos, osgnomos pigmeus, quem donos do Anel podem chegar até a subjugá-los, comoantigamente Wotan com a Lança das Runas.

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Convencidos, pois, os rudes gigantes de que a posse do Ouro roubado e doAnel onipotente lhes pode valer mais que o amor imortal da Freya, dizem aoWotan que se emprestariam gostosos a renunciar à deusa da Juventude, sempre queo deus lhes proporcionasse, em troca, cobiçado-los tesouros do Alberico. Wotanentão, mal aconselhado pelo ardiloso Loge, decide-se a roubar o Anel, com grandemingua de sua dignidade de deus. Ambos descendem, pois, cautelosos ao antroinfernal das forjas do Alberico, descendo pela pestilenta greta do enxofre para nãoter que acontecer o vale do Reno e escutar os lamentos impertinentes de suas filhas.Enquanto, os gigantes se levam em gosta muito a Freya, e os deuses, tão logo comoesta se afasta, desesperada, começam a olharem-se uns aos outros, e a notar que,com a perda da Freya e de suas Maçãs inapreciáveis lhes assaltam já a fealdade, osdores e as misérias da velhice, ao par que uma pálida névoa de morte invade pormomentos todo o Olimpo norso no que se assentam.

Os vapores que começaram a nublar o ambiente se obscurecem muitodensos e pouco a pouco se vão divisando entre eles tenebrosas concavidadespétreas por onde os deuses ladrões vão descendendo às vísceras da Terra.. . Já seouça lá dentro o rítmico martilleo da forja do Alberico, ao par que o tema doTesouro, o do elmo encantado que se está fabricando com o ouro, e também, ai! Otema da Servidão, daquela servidão sem descanso, consolo nem esperança, própriado pensamento a quem a espiritualidade consciente ainda não redimiu. Umresplendor avermelhado que começa a vislumbrar-se por distintos pontos, deixadistinguir claramente, ao fim, um espaço subterrâneo ao que abocam por toda parteprofundos poços e inacabáveis galerias. É a forja do Alberico.

O nibelungo cruel aparece em cena arrastando brutalmente por uma orelha aseu irmão Mímico, que tal é Oh dor! A terrível lei do pensamento escravizado pelapaixão, pois chega até romper os mais fraternais vínculos entre os homens, criandoas servidões, as invejas, as guerras e os crimes, com aquele homo hominis lupus doclássico latino... Triste, nefando emprego o que se faz do áureo pensamentoredentor do homem, quando se escraviza com ele a um semelhante para que forjeinacabável na forja da dor mais multiforme e desumana os elementos imensamentevariados de nossas concupiscências e egoísmos!... Daqui os lamentos sem consolodo antes livre e feliz povo dos nibelungos, ontem um e igualitário, e hoje, graças aomaldito metal, transformado em uma massa gregária de escravos afundada sob olátego de uma infame casta de tiranos dominadores, casta que, a trallazos, obrigadesumana a procurar os diversos ouros nas minas, nos campos, nas fábricas e aténo fundo dos mares a miríades de gnomos irmãos, vítimas da eterna mentira e danão menos eterna tirania dos poucos sobre os muitos!.. .

Tal é o pagamento cruel que Alberico, ereto em tirano de seu povo pelomero poder do Ouro, dá a seu próprio irmão Mímico, a quem arrasta de uma desuas largas orelhas para lhe arrancar o maravilhoso Elmo de Ouro, o Tarnhelm (oelmo da Tara a mágica), que este acaba de forjar, sem dar-se conta de seu valor, sobas ordens sangrentas de seu irmão. Alberico lhe arranca inculto o áureo capuz ouelmo, baixo cujo encanto se torna no ato absolutamente invisível... Tal é o invisível

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poder do Ouro, que golpeia e aflige por sempre com sua tralha à Humanidade, semque chegue a ser visto por suas vítimas infelizes!

Nisto chegaram até ali já os dois deuses, e Loge, o ardiloso, cercaconversação com o Alberico para informar-se dele a respeito dos poderes mágicosque parecem atribuir-se a aquela nova jóia do Elmo. Alberico, enquanto isso, jáinvisível, segue golpeando sem piedade a seu escravizado povo, aquele povo ditosoantes, para quem o ouro não fora senão festa e brinquedo de meninos. Quer ouro emais oro: sempre oro arrancado por aqueles escravos suando sangue noite e dia nasminas.. . Envaidecido o Elfo com seu improvisado poder, despreza ao deus Loge,antigamente sua protetor e sua primo, a quem devia, entretanto, o fogo aquele queacendesse suas forjas onde hoje trabalhava com o ouro. Wotan, enojado, vaiesmagar lhe qual a ínfimo réptil, quando Loge se interpõe e, preferindo a ardilosamanha felina à arruda força bruta, finge duvidar um ponto das virtudes do novotalismã do Alberico e lhe propõe que, pela virtude do mesmo, tente transformar-seem um pouco muito enorme capaz de produzir estupor. Alberico, inflamado devaidade, rodeia o elmo e se permuta, imediatamente, em um dragão gigantesco eterrível. "Poderia te diminuir igualmente, para melhor te liberar de seus inimigos? -Pergunta-lhe o pérfido Loge, depois que se teve reposto do aparente medo que odragão lhe infundisse... - Muito o duvido - acrescenta, sábio-, porque éimensamente mais fácil fazer o grande que o fingir-se pequeno" 1. Alberico lhelança ao deus um compassivo olhar de desprezo e, beijando o anel, troca-se aoponto em ínfimo inseto. Wotan, então, sem lhe dar tempo para mais, põe-lhe o péem cima e, a viva força, arrebata-lhe ao gnomo sua jóia, enquanto que Loge lhe atafortemente. Ambos os deuses, rendo sua proeza, arrastam ao prisioneiro para aboca do poço por onde baixassem ao antro, e lhe têm encadeado até a morada daWalhalla.

Chegados os deuses com sua carga à a Walhalla, obrigam ao Alberico, setiver que recuperar sua liberdade, a dar pelo resgate todo o ouro que sua tiraniatinha feito arrancar da terra aos infelizes irmãos nibelungos, inclusive, antes quenada, o elmo e o anel, que tal é o poder do ouro, o mesmo entre os gnomos queentre os homens. Alma de toda escravidão, a liberação de uns e de outros não podeestribar senão em lhe restituir íntegro, pois lógico é na verdade que a liberdade peloouro perdida, só com a perda total do ouro possa ser solicitada ao fim... O povonibelungo, dócil ao conjuro do Anel, vê-se forçado a transladar do Abismo ao Céutodo o ouro de suas insônias, com o que não há para que dizer que a Walhallamesma ficava igualmente corrompida, porque o desesperado Alberico acaba de lheamaldiçoar de novo dizendo: - Maldito seja esse Anel que com outra maiormaldição conquistasse! Se esse ouro brilhante levar consigo como mágica virtude aonipotência, que ela seja só para perder a quem a ostente...! Que desapareça para eletoda alegria, que a angústia lhe afogue e céus e terra lhe neguem sua luz! Que seja,

1 Enorme filosofia entranha esta passagem:Mais fácil lhe é ao homem fazer o grande que não fazer o pequeno, porque aquilo supõe vaidade, eisto sacrifício!

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enfim, sua vida um perpétuo horror à Morte e que seu senão fatal entregue inermeem mãos de seus assassinos... ! - Disse profética e desesperadamente o nibelungoAlberico ao afundar-se de novo entre suas rochas nativas... E como, ai, a sentençafatal do gnomo se cumpre e se cumprirá sempre que o mundo seja mundo, igualcom o ouro material, causa de tão concatenados crimes, como com o Ouro doPensamento: com a Mente, arma de dois fios, tão indiferente em si própria para obem como para o mal, e causa eterna de discórdias entre os homens, pelo Amor epara o Amor nascidos...!

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Os deuses da lenda wagneriana, como os de todas as velhas teogonias, nadatêm que ver em seus semihumanas imperfeições com a perfeição absoluta daDeidade Uma e Incognoscible, o Deus sem nome e sem culto dos primitivospovos, anteriores e superiores a todo esforço de idolatria. Seus atributos egenealogias, como diz Blavatsky, são originariamente cosmogônicos, qual vistasanimadoras que eles são, como Forças, das diferentes regiões do universo, e emparte alguma da sábia Antigüidade se permitia que a especulação metafísica ouultra-física passasse além desses deuses manifestados, bem a diferença de nossapomposa Teologia ou tratado a respeito de Deus, que é incognoscível!

A Unidade sem limites, ou Zero-Aster, permaneceu em todas as naçõescomo um terreno virgem e proibido que nenhum pensamento nem especulaçãoinútil se atreveu a tocar jamais. Ditos atributos e genealogias dos deuses são o Alfae o Omega nos anais do Símbolo. Verdadeiros Daimones ou Demônios no sentidogrego da palavra, não no degradado sentido atual, são, como dizia Speusippus, asessências animais e espirituais ou Poderes divinos que em série progressiva ematematicamente graduada atuam sobre cada ponto do espaço cósmico, sendo,qual o daimon inspirador do Sócrates, seres intermediários entre a perfeição divinae a maldade Humana, mas de modo algum seres sem defeitos, qual o acabamos dever no argumento da obra de Wagner que nos ocupa. Por isso veremos também noocaso dos deuses como eles desaparecem deste modo da cena do mundoreabsorvidos, ao fim, no Seio do Eterno, para dar lugar a uma nova ordem decoisas menos imperfeito, ou seja, um universo novo. Os mais inferiores destesdeuses são os Pitris ou pais-madres lunares da Humanidade terrestre, que lhes estásubordinada: a Ha-Idra-Zuta-Kadhí-sha ou Santa Assembléia menor, habitante naWalhalla, a Bradhana, região do esplendor ou mundo dos Elohim, deuses menores,enfim, a quem G. Massey, em sua Criação hebréia, réplica ao mestre Sayce, atribuisua verdadeira natureza, consignando que "no primeiro capítulo da Gênese, apalavra "Deus" significa Elohim, ou seja, "Deuses" em plural, e não um só Deus. Atradução ao singular é infiel e artificiosa, porque a Cabala explica suficientementeque os Alhim (Elohim) são sete, e cada um deles criou uma das sete ordensenumeradas no primeiro capítulo, correspondendo alegoricamente às sete criações.Para maior evidencia, a frase "E viu Deus que isto era bom", é repetida sete vezes.Embora os compiladores suponham arbitrariamente que o homem foi criado no

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sexto dia a imagem e semelhança de Deus e em desdobre de varão e fêmea, os seteElohim repetem pela sétima vez a frase sacramental de "que isto era bom", fazendoassim do homem a sétima criação e demonstrando a origem hindu deste conceitocosmogônico. Os Elohim são os Khûnnûs ou "ajudantes do arquiteto", dosegípcios; os sete Amshaspendas dos zoroastrianos, os sete Espíritos subordinadosao Ildabaoth, dos nazarenos, os sete Prajapatis, etc., como já vimos."

Convém que voltemos sobre o estudo dos Elohim ou Hoste coletiva deCriadores, suplantada pelo Jehovah na Bíblia. Apelemos, como sempre, aosensinamentos da Professora, que é a dos Mistérios Antigos.

"A Gênese nada nos diz a respeito da natureza dos Elohim (palavraerroneamente traduzida por "Deus"), os criadores, segundo a Escritura hebréia, eque já existiam ao começar a cena. Diz a Gênese, que no princípio os Elohimcriaram céus e terra. Em milhares de obras se discutiu a natureza dos Elohim;mas... Sem resultado. Os Elohim são sete, já lhes considere como potestadesnaturais, deuses, constelações, espíritos planetários... Pitris, patriarcas, manús oupais, dos tempos primitivos. Entretanto, os gnósticos e os cabalistas judeusperpetuaram a respeito dos Elohim da Gênese um relato que nos permiteidentificá-los com outras formas das sete potestades primitivas... Seus nomes são:Ildabaoth, Jehovah ou Jao, Sabaoth, Adonai, Eloeo, Arejamento e Astanfeo.Ildabaoth significa o Senhor Deus dos pais, quer dizer, dos pais que precedem aoPai, e assim os sete Elohim se identificam com os sete Pitris ou Pais da Índia(Ireneo, B. I. XXX, 5). Além disso, os Elohim hebreus eram preexistentes emnome e natureza, como as divindades ou potestades fenícias.

Sanchoniathon as menciona por seu nome e as chama auxiliares ou cronosdo Tempo. Neste aspecto os Elohim são no céu guardiões do Tempo. Segundo amitologia fenícia, os Elohim são os sete filhos do Sydik (Melquisedek), idênticosaos sete Kabiris egípcios, filhos de Ptah ou Espíritos de Ra no Livro dos Mortos...Na América, são os sete Hohgates; em Agarraria, os sete Lumazi ou Ili. Onde quersão sete... Nasceram da Mãe no Espaço e passaram depois à esfera do tempo comoauxiliares do Kronos ou filhos do Pai. Conforme diz Damasceno em sua obraPrincípios primitivos, os Magos consideraram o espaço e o tempo como fonte detoda existência e acreditaram que da categoria de potestades aéreas passaram osdeuses a ser vigilantes do tempo. Atribuíram-lhes sete constelações, e como os setegiravam ao redor da esfera, lhes designaram com o nome dos "Sete Companheirosdos marinhos", Rishis ou Elohim. As primeiras "Sete Estrelas" não são astros,senão os condutores das sete grandes constelações que com a Vas Maior descrevemo círculo do ano. Os assírios lhes chamaram Lumazi ou guias dos exércitos deestrelas ou rebanhos de ovelhas celestes. Na linha hebréia de descida ou evolução,os Elohim estão identificados, a nosso entender, pelos cabalistas ou gnósticos, queencobrem a oculta sabedoria ou gnosis, cuja chave é absolutamente necessária paraa devida compreensão da mitologia e da teologia... Há duas constelações de seteestrelas cada uma a que chamemos Ousam; mas as sete estrelas da Vas Menor seconsideraram um tempo como as sete cabeças do Dragão Polar, ou seja,a besta de

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sete cabeças de que falam os hinos akadianos e o Apocalipse de São João. O dragãomítico teve sua origem no crocodilo, e outro tanto aconteceu com o dragão doEgito.

"Agora bem; no culto de Sut-Tifón, Sevekh, o deus principal era sétuplo,tinha cabeça de crocodilo igual à serpente e sua constelação era o Dragão... NoEgito, a Vas Maior era a constelação de Tufão ou Kepha, a velha geradora chamadaMãe das Revoluções; e o Dragão de sete cabeças era seu filho, o sétuplo Cronos ouSaturno, chamado Dragão de Vida. O dragão típico ou serpente de sete cabeças foifeminina em um princípio, e depois se continuou o tipo como masculino em seufilho, na Serpente sétupla, na Ea a séptupla, no Iao Chnubis e outros símbolos. NoLivro da Revelação achamos a Dama Escarlate, mãe do mistério, a grande rameiraque aparece com os órgãos da geração na mão, montada em uma besta de cor deescarlate, com sete cabeças, chamada Dragão vermelho do pólo. Era emblema dossexos masculino e feminino que os egípcios situavam no centro polar, o útero dacriação indicado pela constelação do Dragão no celeste berço setentrional doTempo que girava ao redor do pólo celeste ou eixo do movimento estelar. NoLivro de Enoch ambas as constelações estão identificadas com Leviatã e Behemoh-Bekhmut, iguais ao Dragão e ao Hipopótamo ou Vas Maior, que constituem oprimeiro casal criado no jardim do Éden. Assim é que Kefa ou Kepha, a primeiramãe segundo os egípcios, cujo nome significa "mistério", foi o tipo originário daChavah hebréia, chamada depois Eva. Portanto, Adão é idêntico ao sétuplo Sevekhou dragão solar, em quem se combinam a luz e as trevas; e a sétupla natureza sesimboliza nos sete raios de Iao-Chnubis, deus do número sete, chamado tambémSevekh, que como chefe dos Sete é uma das várias alegorias do primeiro pai. SãoDionisio Areopagita, a quem se supõe contemporâneo e colega de São Paulo, e quefoi o primeiro bispo de Saint Denis, perto de Paris, insígnia que a "obra da criação"deve-se aos "Sete Espíritos da Presença", cooperadores de Deus e partícipes daDivindade (Hierarquias, pág. 196). São Agustín opina que as coisas foram criadasmais nas mentes dos anjos que na Natureza, quer dizer, que os anjos perceberam econheceram todas as coisas em sua mente antes de que as pusessem em existênciaatual. (A Letra do capítulo II, Gênese) (Extrato de o Mirville, II, 337-338.) Veja-se,pois, como os mesmos Pais da Igreja e até São Agustín, que não estava iniciado,atribuem aos Anjos ou Potestades secundárias a criação do mundo visível,enquanto que São Dionísio não só lhes chama os "Sete Espíritos da Presença", massim lhes supõe influídos da divina energia (Fohat da Doutrina Secreta). Mas astrevas em que as nações ocidentais se sumiram por aferrar-se tão obstinadamenteao sistema geocêntrico, não deixaram ver os fragmentos da verdadeira Religião que,tanto aos homens como ao diminuto globo que tomavam por centro do Universo,tivesse-lhes despojado da imerecida honra de ter sido "criados" diretamente peloúnico e infinito Deus. Entretanto, destes Poderes criadores ficaram reminiscências,tais como a dos diversos deuses do Wahalla, os do panteão greco-romano e outrosmuitos.

Para terminar esta larga digressão a respeito dos Elohim, diremos comoBlavatsky, em sua Doutrina Secreta, que estamos, como sempre, frente a um

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simbolismo astronômico-matemático, e que, dando valores às letras hebréias, ocírculo celeste de 360° está determinado pela palavra "Elohim", cujo valor dentrode um círculo é 3,1416, ou seja,a relação entre a circunferência e o diâmetro. Isto ésó o aspecto matemático ou astronômico. Para conhecer o setenário significado do"Círculo primitivo", é preciso estudar a Pirâmide e a Bíblia, segundo os cálculos ealgarismos que serviram à construção dos templos hindus. A famosa quadratura docírculo é unicamente o compêndio terrestre do problema. Os judeus secontentaram com seis dias de ação e um de descanso. Os progenitores do gênerohumano resolveram os maiores problemas do Universo com seus sete Rishis.

"Qual é, então, a tradução correta da palavra Elohim? Elohim, não só éplural, mas também plural feminino; e apesar disso, os tradutores da Bíbliatomaram por masculino singular ¹. Elohim é o plural do nome feminino El-h, porquea letra final -h indica o gênero. Entretanto, por exceção gramatical, o nome El-hforma o plural com a terminação -im que corresponde ao plural masculino, em vezde terminar em -oth como por regra general terminam os plurais femininos. Háalguns nomes masculinos que formam o plural em -olh, e alguns femininos que oformam em -im, enquanto outros tomam indistintamente ambas as terminações.Entretanto, a terminação do plural não altera o gênero do nome, que permanece omesmo do singular. Assim, pois, para descobrir o verdadeiro significado dosimbolismo oculto na palavra "Elohim", temos que valer-nos da chave da doutrinaesotérica feijão, da escassamente conhecida e menos ainda compreendida Kabalah.Nela veremos que esta palavra representa a união de duas Potestades, umamasculina e outra feminina, co-iguais, co-eternas e conjuntas em eterna união paraa manutenção do Universo. São o grande Pai e a grande Mãe da Natureza, nosquais se derrama o Eterno Ser antes da manifestação do Universo. Porque, segundoa Kabalah, antes de que a Divindade se derrame e desdobre nas duas Potestadesmasculina e feminina, não pode manifestar o Universo. Isto mesmo significa aGênese ao dizer que a "terra estava vazia e sem forma". Assim, pois, a dualidadedos Elohim supõe o término do caos, do vazio e das trevas, porque só depois daconformação dual da Divindade é possível que o "Espírito do Elohim flutue sobreas águas". Entretanto, tudo isto é uma mínima parte da informação que a respeitoda palavra Elohim poderiam escolher da Kabalah os iniciados.

"Aqui devemos advertir a confusão, por não dizer coisa pior, terminadizendo Blavatsky, que prepondera nas interpretações ocidentais da Kabalah. Odesdobramento do Eterno Ser no grande Pai e a grande Mãe da Natureza, revelaum horrível conceito antropomórfico que atribui sexo às primárias diferenciaçõesdo Um. Mais errôneo é ainda identificar estas primárias diferenciações (Purusha ePrakriti da filosofia hindu) com os Elohim ou potestades criadoras, e atribuir aaquelas para nós inconcebíveis abstrações, a formação e construção deste visívelmundo de penas, culpas e tristezas. Verdadeiramente a "criação" dos Elohim a quenos estamos referindo é uma "criação" muito posterior, e longe de ser os Elohimpotestades supremas, nem sequer excelsas da Natureza, são simplesmente anjosinferiores. Assim o ensinavam os gnósticos que sobrepujaram em sentido filosóficoa todas as escolas cristãs. Ensinaram que as imperfeições do mundo emanavam da

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imperfeição de seus arquitetos, os anjos inferiores. O conceito dos Elohim éanálogo ao dos Prajapatis da Índia, pois segundo as interpretações dos Puranas, osPrajapatis formaram unicamente os mundos físico e astral, mas não podiam darinteligência ou razão, e, portanto, "fracassaram ao criar ao homem", conforme sediz em linguagem simbólica. Mas sem lhe repetir ao leitor o que facilmente podeachar em qualquer passagem desta obra, advertimos-lhe que a "criação" elohísticanão é a Criação primária, e que os Elohim não são "Deus" nem sequer os elevadosEspíritos Planetários, senão os Arquitetos deste visível planeta físico e do corpo ouveículo carnal do homem".

A análise cabalística que da palavra Elohim se faz nos últimos parágrafos dapassagem anterior, demonstra evidentemente que os Elohim não são um nem doisnem tampouco três, senão a hoste ou exército de potestades criadoras. Porconsiderar a Igreja cristã ao Jehovah como o Supremo Deus, pôs em confusão ashierarquias celestes a despeito dos tratados de Santo Tomás do Aquino e sua escolasobre este assunto. A única explicação que dá sobre a essência e infinidade dosseres celestiais mencionados na Bíblia, é que são "a tropa de Deus e criaturas deDeus", mas nada diz de suas verdadeiras funções nem de seu atual lugar na ordemda Natureza. "Os há mais brilhantes que as chamas, mais rápidos que o vento, evivem em amor e harmonia, iluminando-se uns aos outros e alimentando-semisticamente, diz a Cabala. Como um rio de fogo rodeiam o trono do Cordeiro, ecom as asas se velam a face. Tão somente se separam deste trono de amor e glóriapara levar a divina influência às estrelas, à terra, aos reino de todos os filhos deDeus, seus irmãos e discípulos, em uma palavra, a todos seus semelhantes...Respeito a seu número... Excede ao das estrelas." A Teologia classifica em espéciesestes estrelas racionais e diz que contêm em si tal ou qual posição da Natureza, queocupam imenso espaço embora de área determinada, e estão circunscritos a certoslimites, não obstante sua imaterial natureza. Movem-se com maior rapidez que a luze o raio, dispõem de todos os elementos naturais, provocam a vontade inexplicáveismiragens, seja objetivos, seja subjetivos, e falam com os homens em linguagemumas vezes articulado e outras puramente espiritual. Seu fenomenologia é, pordizê-lo assim, um super-espiritismo, quer dizer, de perfeita Magia. Mais adiante, diza mesma Cabala, que a estes anjos se refere a frase da Gênese: "Igitur perfecti sunt cceliet teírra et omnis ornatus eorum". A Vulgata traduziu arbitrariamente a palavra hebréiatsaba (hoste) pela de ornamento. Munck demonstra o engano de substituição ederiva de tsaba o título do Tsabaoth-Elohim. Além disso, Cornelio Lapide, omestre dos comentaristas bíblicos, segundo Do Mirville, afirma que estes anjos sãoas estrelas. Entretanto, termina a Professora, tudo isto nos ensina muito pouco emrelação às verdadeiras funções do exército celeste, e nada nos diz de seu lugar naevolução nem de suas relações com o mundo em que vivemos. Para responder àpergunta: quais são os verdadeiros criadores? Temos que recorrer à DoutrinaSecreta, pois unicamente ela pode nos proporcionar a chave das teogonias expostasnas diversas religiões do mundo.

Quanto a Wotan, o Júpiter wagneriano, é uma espécie de Demiurgo ou Ilda-baoth do Code Nazaremus, quando sente inveja para os próprios seres que lhe são

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inferiores, qual ele a sente do nascente poder do Alberico. Por misteriosa conexão,nascida da Atlântida, o Wotan wagneriano dos Eddas aparece também na América.Wotan é o Manú dos maias, como em outro lugar vimos, quem chegou do Oriente,por mar, ao Yucatán e à a Uxmacinta; o verdadeiro Buddha ariano do período pré-védico; o Odín maia, pai do Zamá dos quichés; o Inca, Caín ou Coen yucateco; oSacerdote de obscuro rosto ou Ixthil-ton, o terceiro habitante do território ouTepanaguaste (o senhor do pau oco ou navio), o civilizador líbio, fundador dosprimeiros povos do rio Catasasá e do Na-chan, a cidade das cobras ou iniciados.Fez várias viagens (reencarnações) e seu povo se estendeu ao sul, até Monopolizam,ou melhor, até a Bolívia. O tesouro de Wotan eram tinajas de barro comchalchihuites, no templo de Foge-hue-ta (a cidade sacerdotal primitiva ou dosavós). Acompanharam-lhe sete famílias ou raças, de onde saíram os antecessoresdos nahuales ario-semitas. Wotan, lido ao reverso, ao tenor da mudança de leiturado ariano ao semita, é Na bot, Nabo ou Nebo, o deus da sabedoria dos ophitas,tanto dos ofitas do Oriente como daqueles outros ofitas do poema do FestoAdvenho, que estudou, belamente, nosso compatriota García da Rega em seuGalícia.

Fricka, a esposa de Wotan no drama de Wagner, é idêntica à deusa Juno,grega, em todas suas complexas paixões femininas, como Freya, sua irmã, é a suavez a Heve ou Eva, a deusa Helena também da Juventude e noiva olímpica doHeracles. Apurando os paralelos em um estudo mais detido de mitologiacomparada, veríamos que o panteão mediterrâneo e o escandinavo têm laços muitoestreitos de parentesco, embora este é mais completo, mais filosófico ou metafísicoe, em tal conceito, mais vizinho à Revelação Atlântida primitiva.

O personagem de psicologia mais perfeita, e mais difícil de interpretarcorretamente, de quantos intervém na fábula wagneriana, é o ardiloso Loge,Logotipo ou Loci. Loci ou Loki é um ser mais zombador que maligno e infernal,pois já sabemos pelo Max Müller que as nações árias não têm diabo, ser equivalenteao Plutão grego e ao Dulovio ibérico em certo sentido, personificação mítica, emoutro, de um dos Agarra escandinavos, ou seja, dos Regentes (Racha) do mundoque precedesse a nosso mundo atual; um dos Pilares ou Cosmocratores daquelesque criaram a terra, os mares, as nuvens e o firmamento com os restos de ummundo anterior, do gigante assassinado Imir, mas que não puderam criar aoverdadeiro homem racional, senão tão somente sua forma física, moldada sobre aárvore Ash ou Ask, radical, por certo, de tantos nomes ask-os ou bascos, ulterioresde ambos continentes.

Mas acima de tudo e sobretudo Loge é o muito misterioso Náradaindustânico: o testemunho mais eloqüente que pode achar-se da identidadeessencial entre os Eddas e os Veda.

"O Ocidente místico - diz Blavatsky - e a Franco-maçonaria, falam muitoalto de Enoch e de Hermes; o Oriente místico fala de Nárada, o antigo Rishivédico, e da Asuramaya o atlante. De todos os caracteres incompreensíveis doMahabharata e os Puranas, Nárada, o filho de Brahma no Mast já Purana, o filho da

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Kashyapa e da filha da Daksha no Vishnú Purana, é o mais misterioso. Éconsiderado como o grande Deva-Rishi, e, entretanto, está amaldiçoado pelaDaksha e até por Brahma. Ele anuncia a Kansha que Bhagavan (o Senhor Vishnú)encarnaria no oitavo filho do Devaki, atraindo assim o furor do Herodes índiosobre a mãe da Krishna, e então, desde seu trono de nuvens e fogo grita a Krishnaque mate ao monstro Keshin. Nárada está aqui, lá e em todas as partes, e nenhumdos Puranas expõe as verdadeiras características deste grande inimigo da procriaçãofísica. No esotericismo índio Nárada, ou Pesh-Hun (Mensageiro ou Angelos) é oúnico confidente e executor dos segredos do Karma, uma espécie de Logos ativoque constantemente encarna, que guia os assuntos humanos desde o começo aofim do Kalpa. Pesh-Hun Nárada é o poder misterioso do fogo oculto que dáimpulso aos ciclos ou kalpas e modera seus ímpetos. É o ajustador visível doKarma, o inspirador, conselheiro e chefe dos heróis maiores deste Manvántara. Nasobras esotéricas lhe dão alguns nomes pouco satisfatórios, tais como Kalikaraka,Trapaceiro, Kapi-vaktra (cara de bonito), e até a Pishuna, o Espião, mesmo que emoutra parte é chamado Deva-Brahma. Ao mesmo Sir William Jones lhe fez muitaimpressão este caráter misterioso, por isso coligiu em seus estudos sânscritos.Compara-o com o Hermes e Mercúrio, e o chama "o mensageiro eloqüente eardiloso dos deuses". Tudo isto, acrescentado a que os índios acreditam um grandeRishi "que permanece sempre na terra dando bom conselho", induziu ao Dr.Kenealy a ver nele a um de seus doze Messias. Possivelmente não estivesse ele tãolonge da verdade como alguns se imaginem. O que Nárada é, realmente, não podeexplicar-se em público, nem tampouco ganhariam grande coisa as geraçõesmodernas dos profanos com que lhes dissesse. Mas pode fazê-la observação de quese no panteão índio há uma deidade que se pareça com Jehová, tentando por meioda "sugestão" e "endurecendo os corações daqueles que quer converter em seusinstrumentos e vítimas", este é Nárada; mas não com o desejo de ter um pretextopara "jogar pragas", como aquele, senão para servir o progresso e guiar a evoluçãouniversal; Nárada é um dos poucos caracteres proeminentes que visitam as regiõesinfernais ou Patala... É o grande mestre da astronomia, ciência que aprendeu emsuas relações com a Shesha ou Ananta, a Serpente da eternidade, e que consignouem seu Espelho do Futuro, onde se acham registrados todos os kalpas. Nas antigasestadias lhe atribui o ter ensinado a ciência aos primeiros que contemplaram ofirmamento. Ele, enfim, feito-se cargo de nossos progressos ou desditas nacionais;ele é quem causa a guerra com seus conselhos, qual a que por eles se desenvolve nodrama wagneriano, e quem as põe término" 1.

Os demais personagens da ação do Ouro do Reno têm todos seusequivalentes nos antigos panteões; mas seria irritante o descender à apreciação deseus detalhes. Só sim convém deixar consignado para o estudo ulterior do colossalsimbolismo dos naipes, que o ouro do pensamento se degradou em mãos doAlberico em ouro material, primeiro dos taros ou baralhos. Nas cenas que

1 A Doutrina Secreta, T. II, pág. 43.

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acabamos de resenhar já se operou uma mudança de jogo, e o ouro foi vencidopelo grosseiro, o ás do Bastos da lança de Wotan, ramo arranco ao Fresno doMundo; o dois do Bastos das duas maças dos gigantes Fasolt e Fafner, e osrestantes Bastos dos outros gigantes que com eles tinham elevado o grande burgodos deuses. Logo veremos, ao longo da Tetralogia, como o jogo continua, e ogrosseiro é, a sua vez, vencido pela espada, a espada pela taça, e a taça pelo ouro,enfim, para fechar o ciclo ou grande jogada da vida do universo.

# # #

Ainda ressonam na orquestra os últimos acordes daquele motivo musical doAniquilamento que subsegue à maldição do despeitado Alberico, quando voltam aapresentar-se ante a divina Assembléia os dois incultos gigantes do Fasolt e Fafner,para reclamar o ouro prometido, em troca de deixar livre a Freya... O resgate ébrutal, dilacerador. Para que lhes possa apagar, com efeito, a lembrança daformosura da Freya, a que renunciam ambiciosos quão mesmo Alberico ao Amor,exigem nada menos que o divino corpo da deusa da Formosura seja coberto ematerialmente enterrado sob o metal maldito, para assim se separar de sua vista desátiros as esculturais linhas de seu corpo maravilhoso... A operação começaatirando ao chão a Freya e tomando-a, ímpios, ambos gigantes a medida de seucorpo com as maças... O montão de ouro vai subindo mais e mais. Estes vigiam suaordenada colocação para que caiba mais e ocupe menos volume... Wotan estálouco, presa de impotente rabia ante barbárie tanta... Já está empregado todo otesouro e desaparecido sob ele o mágico contorno do corpo adorado, primeiromodelo, soma e compêndio de toda humana beleza: já Wotan, enojado, vai dar porconsumado o trato, mas ainda a cobiça insaciável daqueles dois monstros pedeselvagem que sejam tampados os cabelos de raios de sol que orlam o rosto dadeusa, sem o qual renunciar a seu amor é impossível até aos monstros mesmos.Wotan, exasperado ao ver que não fica já mais oro para isso, vê-se constrangido aentregar o Elmo..., E ainda os gigantes pedem mais oro para tampar a última frestado montão por onde luz lhe rutile um dos dois olhos da deusa!... Fica tão somentepor dar, pois, o anel do supremo poderio, ao que Wotan se nega já no cúmulo deseu paroxismo, até em troca de perder irreparavelmente Freya... Leve-me isso já aesta quase os gigantes, quando se obscurece súbito a cena com trevas de morte e,entre os penhascos laterais, às notas supremas da primitiva melodia da Mãe-Terra,surge Erda, a Ur-Wala ou a Wala primieva, que é a Mãe-Terra mesma, quem,estendendo a mão para o Wotan, diz-lhe com ar profético ao que deuses, homens eelementares de todo gênero não têm mais remedeio que obedecer: - Cede,sustráete, Wotan, à maldição do Anel!; Eu sou a que foi, a que é, e a que será: a Almasem limites do Universo imperecível, que intima a sua Vontade para que cumpraseu destino... Minhas três filhas divinas, concebidas da eternidade: as três Nornasou Parcas revelam, entre sonhos e trevas, minhas visões sempre, mas agora umimenso perigo para os Imortais me obriga para te buscar por mim mesma... Escuta!Escuta! Escuta! Quanto existe acabará! Dia vergonhoso e sombrio o dos Deuses

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em seu Ocaso! Ouça minha voz: arroja o Anel! - E dito isto, ur-valha-a desaparecenas Trevas insondáveis do Wo-Ser estendidas sobre a face do Abismo... Antesemelhante intimação, o pai dos deuses, apavorado, joga de si o Anel quepressurosos recolhem os gigantes. Libere já deste modo a deusa da Juventude,arroja-se pressurosa em seus braços, enquanto que Fafner, lhe faiscando todacobiça pelos olhos, desdobra seu enorme saco e se lança ansiosamente a lhe enchercom o tesouro... Seu irmão Fasolt se interpõe temeroso de que fique também comsua parte. Fafner o quer tudo para si, como para si solo tratou de guardar antesFasolt a formosura da deusa; discutem ambos com raiva e, em um momento,chegam às mãos, ao par que a orquestra ressona de novo, pavorosa, o tema daMaldição do Alberico... Fasolt se deu procuração que Anel, mas Fafner lhe golpeiacom sua clava e, lhe deixando moribundo, arranca-lhe do dedo o Anel, o põe noseu; recolhe o tesouro todo, até as semínimas, e, à vista dos pasmados deuses, vaiesconder se em seu antro profundo... O anátema implacável do Alberico começa acumprir-se, e os deuses, reposições de seu estupor, entre os lembre mais solenes daorquestra, passam a ocupar triunfantes o burgo da Walhalla, enquanto que Donnercom seu martelo amontoa as nuvens fazendo estalar a tempestade, sobre cujosfragores de lá abaixo que espantam aos mortais infelizes, tende resplandecentearco-íris, como ponte pelo que acontecem Palácio seus futuros moradores excelsos,feitos coro pelo Encanto da Tempestade e o motivo do arco-íris, aquele, símboloda perdurável aliança entre homens e deuses, inspirado na majestade do primitivo eciclópico tema de A Natureza, e também engrenado com aqueles outros motivosque têm que ser alma logo depois dos Heróis e das Walkyrias.. . Os lamentos dasFilhas do Reno se misturam aos trechos de lá abaixo, com a marcha triunfal dosdeuses, empossando-se da Walhalla construída pelos gigantes, em troca de deixarsolta, como se viu, a Maldição pelo mundo... 1

É bem curioso que o arco íris apareça também na Bíblia como numen de paz entre os deuses e oshomens depois da catástrofe atlante ou Dilúvio Universal, do que só se salvou Noé com suafamília. (Gênese, cap. IX, V. 3-17.) O fato de não aparecer já como ponte, que é a primitivatradução do simbolismo, revela que este é mais puro nos Eddas que na Bíblia, embora não deixede transparecer nesta última.A Igreja Católica, em troca, conservou pura, em certo modo, a tradição atlante e romana, echamou Pontífices ou "construtores de Pontes entre este e o outro mundo" a seus SupremosLíderes. Também na Irlanda se conserva viva a tradição daquela famosa e efetiva ponte ou istmode terra, por onde puderam escapar da grande catástrofe e refugiar-se na Europa, os poucosadeptos da Boa Lei, quer dizer, os Noés e suas famílias, troncos logo depois dos povos ario-atlantes europeus.Quanto ao maldito anel do nibelungo Alberico, passou, pois, com ele o que para ao final com todoo mal adquirido. Deliciosa em extremo é, em relação a este temor, a fábula de Ramiro Branco,intitulada O primeiro e o Último, que diz assim:Um rato camponês apareceu pela entrada de sua cova e viu longe dali uma formosa maçã.- É para mim! - Chiou, apoderando-se da fruta.

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Mas um macaco, descendendo rapidamente de uma árvore, aproximou-se em um par de saltos aorato, arrebatou-lhe a maçã e ganhou de novo a copa da árvore, gritando com tom triunfante:- É para mim!Uma águia que presenciava a cena abatendo-se majestosamente no espaço, não deixou tempo aomacaco para gozar de sua vitória; jogou sobre ele como uma fera, cravou suas garras sobre a maçãe remontou seu vôo exclamando:- É para mim!Então um homem que se dedicava a caçar por aquelas paragens, engatilhou a escopeta e comcerteira pontaria atravessou de um balaço a ave, que caiu a seus pés revoando.- Sou o primeiro entre todos os seres e por isso me chamam "rei da criação" - disse o homemapoderando-se da maçã:- É para mim!Jogou-lhe o dente; mas o fruto estava quase oco, e do centro saiu um verme que disse ao homem:- É para mim!...Há, com efeito, tesouros materiais que levam sobre si o carma das mais funestas maldições, e dissoa História é testemunha.

Que filosofia a do resgate da Freya, e quão bem retratada está nele aHumanidade que sepultou sua felicidade, sua juventude moral e sua excelsitude dedeuses, enterrando-a sob o ouro vil de paixões e apetites, esquecido de sua divinaorigem!

Mas por muito que os Poderes do Mal tratem de sepultar à excelsa deusa daverdadeira idade de ouro em que ouro não havia, sempre fica uma fresta, por ondea beleza de seus olhos ou de sua cabeleira tire o chapéu. Para tratar de obscurecê-lo,ditos poderes têm já que apelar à má magia do Anel maldito, sem o qual nãopodem renunciar ao verdadeiro Amor nem mesmo os monstros mesmos...Arrojado, com efeito, pelo Wotan o Anel terrível, tão logo como cai em mãos dosgigantes produz o primeiro fratricídio, que introduz o ódio, a discórdia e a morteentre os irmãos gigantes, como antes entre os irmãos pigmeus, e como logo esempre entre os irmãos homens..., Os eternos Caíns da raça.

O passo triunfal dos deuses sobre a ponte mágica do Arco-Íris tem umprecedente histórico de seu simbolismo naquele passo em seco sobre as águas doMar Vermelho do povo eleito, passo que não é em realidade, como veremos otratar da Atlântida, senão uma grande língua de terra que nos começos da catástrofeficava ainda entre aquela e as costas ocidentais da Espanha e da Irlanda, ponte ouarco por onde se refugiasse em nosso continente atual o povo eleito da boa Lei, doque tantas tradições existem nestes dois países, como teremos que ver em outrolivro.

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Antes de terminar o relativo ao Ouro do Reno, convém que nos detenhamosum momento no relativo ao simbolismo mágico do Anel do Alberico, que conduza maldição aos céus e terra.

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Não está tão longe já a poderosa magia deste Anel ou Círculo de nossasfamosas verdades comprovadas da ciência. Em efeito, nenhum psico-fisiólogomoderno ignora que o renomado físico e astrônomo alemão Zollner, o grandeamigo e correligionário do William Crookes levantou em 1878 uma ponta do Véu arespeito deste muito interessante assunto.

Recordemos alguns feitos:"É sabido que este homem eminente submeteu à rigoroso exame os

chamados fenômenos medianímicos do espiritismo, operando com o célebre médiumprofissional Slade. Com ele observou os movimentos da agulha imantada peloinfluxo exclusivo da vontade do médium, a projeção de objetos sem que ninguémaparentemente os tocasse; a produção extemporânea de ruídos insólitos; olevantamento e ruptura de objetos pesados sem causa visível; a escritura direta ousem mão que a riscasse; a reação ácida que adquiriam certas substâncias neutraspela simples ação do eflúvio medianímico; a impressão de mãos e pés de genteinvisíveis em farinha e negro de fumaça, etc., etc. Mas a que avassalou porcompleto ao sábio foi a formação antinatural de nós em uma corda a quepreviamente se soldaram ou pacote e selado seus extremos e o aparecer deste modotrespassadas no pé de um velador várias argolas que pela via ordinária não teriampodido passar a dito sítio sem antes ser tirados a tampa superior ou o pé dotrípode. Como diz muito bem nosso amigo Aymerich em seu muito interessanteobra O Hipnotismo Prodigioso. Os fenômenos do Espiritismo 1, o fenômeno doanudamiento da corda poderá ser, sem dúvida, muito menos sensacional que o deuma aparição; mas é imensamente mais revolucionário na ciência, porque suaspossíveis explicações pugnam tanto e tão absolutamente com os conhecimentosadquiridos que não há modo de estabelecer nenhuma classe de conciliação entresemelhantes feitos e as leis naturais conhecidas. Para explicá-los, teve que acudirZollner à teoria das quatro dimensões do espaço, concepção geométrica que tempor fundamento os estudos do matemático Gauss, o fundador de uma novageometria em que se admitem estas surpreendentes idéia da dimensão e dosvolumes e que igualmente defenderam Riemann, Helmoltz, Bolay, Lobatschevsky ealguns outros. Spotiswoode, generalizando a questão em termos rigorosos deGeometria Analítica, sustentou a possibilidade do espaço de N dimensões e Hugo,por vez, falou do espaço de dimensões fracionadas." "Nosso espaço ordinário oueuclidiano de três dimensões, diz Stallo na Matiére et a Physique Moderne, não é maisque uma forma possível do espaço, cuja preeminência sobre as outras não pode sersustentada, mas sim por razões empíricas, e é devida, simplesmente, segundo osdogmas lógicos e psicológicos da escola sensualista, a uma associação acidental denoções que poderiam ser dissociadas, e se tivermos que acreditar nos decididosdefensores destas novas doutrinas, a dissociação se efetuou já, posto que se têmdescoberto novas dimensões do espaço impostas como uma conseqüêncianecessária de certos feitos experimentais impossíveis de explicar de outra sorte, domesmo modo que a terceira dimensão do espaço não a distinguimos diretamente,

1 Livraria da Viúva do Pueyo, Madrid, páginas 161 e seguintes.

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mas sim a inferimos de feitos habituais da experiência visual e tateante, para aexplicação dos quais essa terceira dimensão é uma hipótese indispensável. O espaçoverdadeiro e real tem, pois, ou pelo menos pode ter, não só três dimensões, mastambém quatro e ainda maior número. O espaço no qual nos movemos é, ou podeser, não só homaloide ou plano, mas também no-homaloide, quer dizer, elipsoidal,paraboloide, hiperboloide, ou esférico, e daqui resulta que toda linha considerada,até agora, como reta, poderia, ao ser prolongada até o infinito, constituir uma curvafechada, em razão à curvatura inerente ao espaço. Assim o universo, emborailimitado, poderia ser, e é provavelmente, infinito, não finito. Em efeito, se, seadmitir o caráter esférico ou pseudo-esférico do espaço, pode riscar-se pelo mesmoponto um feixe de linhas o mais curto possível todas (qual os círculos máximos queaconteçam dois pontos opostos da esfera), todas igualmente paralelas a outro feixede linhas dado e o mais curtas possível também, de modo que não se cortarão, sejaqual for a distância a que as prolongue. Além disso, a medida da curvatura doespaço, quão mesmo o número de seus dava-mensiones, pode ser, e éprovavelmente, diferente nas distintas regiões do mesmo, de maneira que nossaexperiência em relação às regiões que habitamos não nos permite inferir nadalegitimamente quanto à curvatura e às dimensões de outras regiões do espaçoafastado mensurável ou incomensuravelmente pequeno. Além disso, em uma regiãoqualquer, a curvatura do espaço e o grau ou o número de suas dimensões podeestar, e está com toda probabilidade, em vias de sofrer uma evolução gradual. Estasproposições por outra parte estão apoiadas por numerosos fenômenos demagnetismo, óptica e outros, e são, além disso, quão únicas podem dar o fiocondutor para compreender certos mistérios do espiritismo moderno, permitindocolocar na cadeia da casualidade natural certos feitos que de outro modo nosveríamos obrigados a incluir nos domínios do sobrenatural" 1.

Chegamos com isto à teoria dos nós, teoria que, em lembrança daquelefamoso nó do templo de Gordio, zafiamente talhado por Alexandre como bomguerreiro, é chave do astral e de não poucos fenômenos de magia, e com isso, porende, do Anel do Alberico.

Uma corda ou arame reto não apresenta nó algum. Um ser da primeiradimensão, quer dizer, um ser que habitasse na linha como em seu único mundo etivesse saído já da dimensão zero ou ponto, a não dimensão "do absolutoegoísmo", não poderia fazer nela nós, mas sim pontos, que para o ser da dimensãozero seriam outros tantos infinitos nós ou mundos dos que sair não poderia. Outroser novo que aparecesse em seguida na cena, possuidor da segunda dimensão, ouseja, um habitante de um plano da linha, poderia fazer já um nó plano, tomandosimplesmente um dos extremos da corda ou arame, e lhe fazendo seguir a mesmadireção depois de ter esboçado com o extremo um círculo, círculo mágico, semdúvida para o ser da primeira dimensão, quem seguiria acreditando que não se feito

1 Citado por M. Outeiro Acevedo em seu livro Os Espíritos, pág. 106.

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nó algum, porque ao sair-se de sua linha, sair-se-ia de seu mundo dito nó, e lheseria, portanto, invisível e impossível de ser desfeito.

Mas o mais admirável do caso é que o ser da primeira dimensão não veria onó, e o ser da segunda dimensão lhe veria mas não poderia desfazê-lo sem riscar noespaço um círculo mágico inverso do descrito para fazê-lo; semelhante obra dedesfazer aquele nó seria para o ser da terceira dimensão, ou seja,para nós, muitosingelo, sem necessidade de nada disto, senão simplesmente com uma mera torçãode 180 graus em volto de um eixo do nó perpendicular à corda atada.

Venhamos agora a nosso nó de três dimensões. Sendo a analogia série umalei da Matemática, cabe perfeitamente inferir que a lei estabelecida continuará nosrestantes nós dos n dimensione do espaço, e que, portanto, nosso nó de só trêsdimensões que tão fortemente ata em nossas cordas, como em nossos contratos,em nossos matrimônios e em nossos cárceres, e em tantas outras coisas, enfim, denossa maça e aprisionada vida, é invisível ou, melhor dizendo, indistinguível para oser da segunda dimensão, e indesatable para nós, como o do Gordio, na terceiradimensão, a menos que, inversamente à operação que realizássemos ao lhe jogar,descrevamos com um dos cabos da corda um primeiro círculo mágico no planoperpendicular à corda que passe por nosso raio visual e pela linha da corda mesma,e outro segundo círculo mágico qual o que empregássemos antes em desfazer o nóda segunda dimensão, ou seja,o nó no plano já da superfície em que a cordadescansa... Mas isto, Oh, magia suprema da ciência e dos astros! É precisamente oque ocorre, por exemplo, com os planetas, quando caminham com seu dobromovimento de rotação sobre seu eixo, e de translação em volto do sol, por maneiraque, caso ao sol fixo, cada objeto terrestre, ao cabo de um ano e um dia, risca noespaço um verdadeiro nó, o nó, ai! De um ano mais em nossa efêmera vida. Assim,se representarmos por uma corda em círculo a órbita da terra em volto do sol, ouseja,seu rastro astral no espaço, e representamos também com o cabo da corda ooutro círculo que descrevemos no espaço cada dia com o giro de nosso globo, oque fazemos é um verdadeiro nó, nó gordiano, que kármicamente já nãopoderemos desatar jamais enquanto que o mundo seja mundo.

Voltando para nó de nosso exemplo, já não nos subtrai dizer mas sim um serda quarta dimensão, como parecem ser por todos os indícios quão elementarespresidem no astral a toda a fenomenologia espírita, desataria, e de fato desata emcasos como o de Slade estudado por Zollner, nossos nós da terceira dimensão,como nós, sem tocar os extremos da corda, podemos desatar os nós planos, ou dasegunda dimensão; mas, nos diria, o que tem que ver, em suma, tudo isto com oanel do Alberico?... Nossos leitores o terão adivinhado já. Todo anel, com efeito,seja o do Alberico o nibelungo, seja o do Giges, o do Carlomagno e Záfira, o dopríncipe Selim da Balsora, nas mil e uma noites, seja o dos Duc de Veneza, opontifício do Pescador, ou enfim, que servir está acostumado a em todas asnúpcias, não é mais que o símbolo sublime da quarta dimensão; a dimensão daMagia, nem tanto porque, com efeito, os satélites em volto dos planetas e estes emvolto do sol vão descobrindo verdadeiros anéis espirais ao partir qual partem as

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serpentes sobre a terra (e daqui sua designação ocultista do Nagas ou serpentes),quanto porque o anel em geometria deve ser engendrado no espaço por uma esfera,um elipsóide, etc., que se movem em círculo, como a esfera é a sua vez engendradapor um círculo que gira em volto de um de seus diâmetros, e este último círculo,enfim, é engendrado por um diâmetro que excursão completamente em volto deseu ponto médio. Sempre, sempre o giro, quer dizer, o círculo mágico, que opera osnós ou inversamente os desata em todas as sucessivas dimensões, encadeando oulibertando aos seres e às coisas sobre as que imperam e criando a misteriosa sériede base, círculo, esfera, anel e super-anel, das mal chamadas dimensões do espaço,dimensões que não são tais dimensões, senão modalidades de nossa maneira de sere de ver, que irão ampliando seus horizontes com o curso evolutivo que nos dê,depois dos cinco sentidos que temos, um sexto sentido da dobro vista e um sétimosentido da omni-penetrante intuição, essa mesma que caracteriza aos gênios! O queestranho tem agora, depois da investigação que antecede e que poderia aindaaprofundar-se muito mais, que Alberico, tão logo como alcançou a fazer com oroubado Ouro do Pensamento ou da Mente um anel, quer dizer, alguma coisapertencente ao, para nós velado e proibido, mundo astral da quarta dimensão,penetrasse nos domínios da Magia, a Maha-Giotta ou grande ciência do invisível,ciência para a que não há já impossíveis físicos, como não há impossíveis játampouco para o homem no plano ou segunda dimensão, e que assenhoreado delao nibelungo, pudesse elevar-se como soberano da terra e os céus?

Admiremos, pois, uma vez mais a sublimidade do mito wagneriano e aprodigiosa intuição do Mago que soube comentar com assombrosas harmoniasmusicais este símbolo da ciência ainda não sabida, que se oculta sob o véu poéticodo anel do Nibelungo.

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CAPÍTULO XIIA WALKYRIA

O Fresno do mundo, a Espada do Conhecimento e a Selva da Vida - O Homem, eterno guerreiro- Os humanos lobos e cães - Wehvalt (o da compaixão), Frohwalt (o rebelde) e Friedmundo (queo ama tudo) - O hidromel ou Soma - Os Neidingen ou filhos da inveja - A Tocha da Siglinda e olied da Primavera - Vontade livre e Moral consuetudinária ou de rotinas - A celeste ignomínia deprocriar um casal humano - Sem morrer, não se pode ver cara a cara aos deuses - A renúncia doCéu sem Amor - A Virgem e a Mãe - O eterno tema da Justificação - Mater Dolorosa - Oencanto do sonho e a renúncia do Amor - O fogo sagrado. A dor que purifica - Wotan procuraum herói que sem seu amparo divino salve aos deuses fazendo o que estes não podem realizar - "Ofilho amado de um pai inimigo", de Ésquilo - Medo, ódio e amor - A espada quebrada, em DomLanzarote do Lago - Sigmunda-Sita-Helena - O lar do ariano - Mastreie-os e o Símbolo - AsUrvalas - Walkyrias-huríes - Wotan-Abraham - O terrível secreto da Vida - A Cidade Celeste- A eterna luta - A renúncia do Céu - O daimon grego e a Walkyria. A queda e a liberaçãosegundo os ensinamentos platônicos - O mito de Sigmundo - Siglinda - Inesgotável riqueza da obrawagneriana - O fogo encantado - Outros vários pontos.

Aparece o interior de uma cabana construída no tronco de um vigorosofresno, o Fresno da Vida, a Árvore do Mundo, cujas raízes proeminentes se sobressaemdo chão, ao par que o topo atravessa as vigas do teto até perder-se sua taça noinfinito. Cravada no tronco, até o punho, destaca-se uma espada, a Espada doConhecimento intuitivo. À direita, dentro da cabana, arde o lar, e à esquerda se vê aescalerilla de uma habitação interior. Sigmundo ou Segismundo, o filho de Wotan eda Erda, daquela Ur-valha primitiva ou Mãe-Terra a quem o deus forçou paraacabar a de arrancar o segredo do Destino quando a profecia anterior respeito aoAnel do Alberico, abre violentamente a porta, penetra na cabana e, rendido poraquele supremo esforço, cai junto ao lar. Anoitece. Sob as mágicas notas do motivodo encanto da tempestade com o que terminasse o Ouro do Reno, quando osdeuses todos passaram pela ponte do Arco-Íris a empossar-se da Walhalla, apagam-se ao longe os últimos Trovões de uma tempestade que se dissipa. A desordem davestimenta do guerreiro revela que vem combatido e fugido através do bosque.Decida-se, ao fim, a trancar a porta, e se deixa cair extenuado sobre um montão depeles junto ao lar, enquanto que Siglinda, tocha em mão, chega, acreditandoencontrar a seu maride Hunding de volta de suas caçadas. Surpreendida, travaconversação com o desconhecido, depois de lhe haver dado um cordial dehidromel que lhe volta de seu desmaio, ao par que o tema do amor se inicia com osmuito suaves acentos dos violoncelos.

-"Meus membros estão ainda solidamente unidos" - diz o guerreirorecordando aquele símbolo dos despedaçados membros do Baco, Osíris e tantosoutros da lenda universal e uma-. "Não sei quem sou; queria sabê-lo; a tempestadee a desgraça me jogaram em bosques tenebrosos, na selva misteriosa e cruel davida, cujo caminho ignoro. Onde eu vá - acrescenta o guerreiro -, ali vão sempre a

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desgraça e o sofrimento. Wehwalt, que se agita na dor, é o triste nome que adotei.Poderia, entretanto, me chamar Friedmundo ou boca de paz, antítese do nomeSigmundo que levo; mas, apesar de minhas dores eternos, eu sou Frohwalt, que seagita na pura voluptuosidade dos deuses. Sou, enfim, o filho do Lobo, o Welsungo,o protótipo da força e da independência rebelde, aquele que da origem dos temposfoi consagrado ao grande welsungo Odin ou Wotan, o Soberano da Walhalla,quando quis viver independente e livre. Os Neidingen, os filhos do cão que sempreadula, os filhos da Inveja, enfim, vendo que o Lobo era meu pai, incendiaram nossaguarida, cortaram a ras do chão o tronco poderoso do carvalho de seu lar, matarama minha mãe, roubaram a minha família e me separaram de meu pai enquantocaçava com ele. Proscritos e perseguidos onde quer, vivemos fugidos e separadosno bosque intrincado durante longos anos, sob as eternas notas do triste motivodos Welsungos, incapazes de inspirar já a ninguém o divino sentimento daCompaixão e do Amor..."

Antes de acabar Sigmundo estas frases sublime, com as que o lobinho narrasua história, chegou Hunding, o caçador brutal, filho do cão vil e marido por forçada raptada Siglinda, daquela a irmã de Sigmundo, que este chorava perdida e que,como ele, tinha cansado em mãos dos cruéis inimigos de sua raça.

- A Norna que ao nascer-te deu tal sorte, pouco te amava. O homem quehoje te dá asilo não pode te saudar alegre - diz grunhinde Hunding a Sigmundo,enquanto que ele prossegue a história de sua irmã -. Conheço sua raça feroz –acrescenta ; para ela nada há sagrado. Odiosa para todos, eu também a ódio. Seja,Lobaton! Meu teto te cobre por esta noite, porque são sagradas as leis dahospitalidade; mas amanhã, ao apontar o dia, atacar-te-ei, vingando com seu sangueo sangue vertido de meus...

Siglinda prepara para seu marido a poção noturna, em que verte umnarcótico, e ao retirar-se por ordem de seu tirano, fixa um olhar cheio de paixão emsua hóspede, olhar que sublinha a orquestra com o tema amoroso da melodia doolhar, e com a que pretende dar a entender ao Sigmundo que se fixe no punho daEspada do conhecimento intuitivo que jaz, tempo há, cravada no tronco da Árvoreda Vida, desde que ali a cravou hercúleo o próprio deus Wotan, quando, disfarçadode Viajante, apresentou-se ali o dia mesmo dos forçados esponsais da Siglinda.Hunding se despede brutal de sua inerme hóspede com aquelas notas duras esombrias de sua tromba que reproduz a orquestra. Sigmundo fica sozinho, triste e aobscuras naquelas crescentes trevas da cabana inimizade, trevas que pareceaumentar mais ainda o fogo moribundo do lar.

- Estou sem armas, em casa inimizade! - Murmura o herói -. Meu pai, ogrande Welso (apelido do Lobo ou de Wotan), prometeu-me que quando mecurvasse à suprema angústia encontraria uma espada... O amor mais invencível medomina. Welso, Welso! Onde está sua espada?

Quando Sigmundo acaba de pronunciar estas palavras, e como se a elasrespondesse, o último chiado do lar faz brilhar a gloriosa arma sepultada no troncoaté o punho. Enquanto, Siglinda aparece cautelosa e lhe dá a entender por gestos

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que fique em salvo ou que prove arrancar a espada para salvá-la com ela doopróbrio que lhe inferiram Hunding e os seus. Ao mesmo tempo, conta ao herói,entre frases de recíproco e santo amor, como um estrangeiro deixou cravada aquelaespada, sem que ninguém tivesse conseguido arrancá-la, porque estava reservada aoEleito que o obtivesse. Acontece-se então um tenro idílio entre os dois welsungosque já se amam com loucura. Sigmundo prova a arrancar a espada, e o conseguesem esforço; ambos os amantes caem então um em braços de outro, e súbito, aporta do fundo da cabana se abre movimento por mão misteriosa: a da fadaPrimavera, que penetra para benzer sua união, arrastando-os enlaçados até obosque, sob os raios da Lua enche, melancólica protetora de todos quantos seamam... Reconhecem-se ambos, não como irmãos pelo sangue, que ao fim todos osomos 1, mas sim como irmãos infelizes do espírito, aquele espírito rebelde egigante do Welso, e, enlouquecidos, perdem-se no fundo da selva, envoltos noseflúvios do divino Canto da Primavera, que gozosa comenta a orquestra...

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Musical, simbólica e literariamente, acaso seja A Walkyria o drama maisintenso e gigante de quantos Wagner fez. Um livro inteiro, e não pequeno, poderiaescrever-se como comentário a este primeiro ato que acabamos de relatar, porquecada frase, cada palavra dele, é um mundo de mitologia comparada, como nãodeixará de advertir a intuição do leitor, guiada pelas ligeiras indicações que sobreisso vamos fazer aqui.

Acima de tudo, o impossível amor de Sigmundo e Siglinda tem a mesmatrama, os detalhes mesmos que o de Tristão e Isolda, e, como este, parecem lavradassuas divinas facetas de diamante sobre o desgraçado amor do próprio RichardWagner e Matilde Wesendonk, como já expusemos em lugar oportuno ao falardestas duas almas irmãs que estavam separadas no humano por um abismo físico,qual acontece sempre neste submundo. Por isso os nomes simbólicos de Sigmundoquadram admiravelmente, não já ao Tristão e até ao mesmo Wagner, senão a todosos welsungos, os lobos rebeldes, que nas misérias da vida, mais injustas e cruéiscom eles que com outro algum dos cães ou dos submissos à vulgaridade animal doviver rotineiro e egoísta, fazem-se dignos todos de ser denominados Wehwales,porque "agitam-se na dor"; Welsungos, porque como lobos são sempre tratados eperseguidos, apesar de ser verdadeiros Friedmundos ou "bocas de paz", por esotroslobos sangrentos com pele de cordeiro, em cujos corações têm assento todas ashipocrisias e cuja perfídia secreta não conhece limites. Eles, em troca, sãoverdadeiros Frowales, porque "agitam-se enlevados na pura voluptuosidade dos

1 Não houve comentarista que não se preocupou a respeito deste místico e universal incesto emtodas as teogonias, inclusive na Bíblia. Dentro do muito profundo simbolismo da lendaescandinava, tal incesto é uma mera ilusão, nascida de nossa grosseria no interpretar, poisSigmundo e Siglinda, como membros ambos de uma grande Fraternidade de escolhidos e deperseguidos - os Welsungos - eram, não irmãos no sangue, senão irmãos no espírito.

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escolhidos" que pressentem, em meio das amarguras que os cercam, a supremaliberação de uma manhã resplandecente, não menos certo quanto mais longínquo, etão mais glorioso quanto ele seja mais castigo.

Essa mesma raça que se refugia moribunda na feroz morada de Hunding étoda a raça rebelde que tem cansado nessa miserável cabana do grande Fresno doCosmos que se chama nossa Terra, onde os estrangeiros e peregrinos, do céudescendidos, simbolizados pelo Sigmundo, recebem nela uma falsa hospitalidadedo momento, para combater logo e sempre com os elementares terrestres dopérfido tipo de Hunding... Mas tudo está previsto nos altos destinos do mundo: atocha do Amor da Siglinda, ou de Isolda, brilha esplendorosa nesse mesmo eobscuro mundo para nos guiar por volta do ideal na noite atual de nossas almas porvolta da luz de um manhã no que a fada Primavera, chame-se idade de ouro futuraou como se quero, rompe, ao fim, as negrumes deste recinto obscuro e ilumina oscaminhos por onde a raça heróica sucessora, a raça dos Siegfrieds, vai vir comofalange de Redentores do mundo. Para luta homérica tal, além disso, a previsão ogrande Deus, de Wotan peregrino que é o primeiro rebelde, já cravou de antemãouma espada invencível, a do conhecimento intuitivo, contra a que nada valem asadagas de perfídia do mundo subumano perverso do tipo do tiranizador de Siglinda¹.

¹ O códice espanhol do Lanzarote do Lago contém um formoso fragmento Sobre A espadaquebrada, que diz assim, segundo a extensa notícia que dele nos dá nosso amigo o doutor Bonillae São Martín, ao ocupar-se de dito códice em seu estudo sobre Wagner."... Agora diz o conto que quando Dom Galván e seus companheiros chegaram à cruz,detuviéronse ali por falar juntos, e Dom Galván lhes disse: "Bons senhores, todos são tidos porhomens de bem, e estão metidos na demanda de Dom Lanzarote por saber dele verdadeiras novas,costure para vós de grande honra e, por ende, recomendo-lhes que toda esta semana procuremosnesta selva e em quantos castelos estejam perto daqui, e nas ermidas, casas de ordem e todasquantas posadas sabem que albergam cavaleiros, por saber se podem saber novas dele, e vos rogoque de hoje em oito dias sejamos todos juntos em um a hora do meio-dia na branca cruz que estáno limite desta floresta." Todos prometeram que assim o fariam, se morte ou prisão ou muitogrande necessidade não os estorvasse, e enquanto assim falavam ouviram um grande grito muitoalto e dolorido, e Dom Galván disse a seus companheiros: "-Senhores, ouviram este grito?" "-Sim,senhor" -disseram eles. "-Pois vamos a aquela parte -disse ele-, veremos que coisa é." Então foramtodos contra aquela parte onde ouviram aquele grito, e não andaram muito sem encontrar a umadonzela em cima de um palafrén que fazia o maior duelo do mundo, e quando Dom Galvánchegou perto dela, saudou-a e disse-lhe: "Donzela, por que Perfure?" "-Senhor -disse ela-, por umdos melhores cavaleiros do mundo que matam naquele vale." "-Donzela -disse Galván-, nos guiemlá." "-Senhor -disse ela-, vejam aqui o caminho muito direito que lhes levará lá e, por ende,mandem socorrer.""Então se partiram da donzela, e foram-se pelo caminho que ela lhes ensinou, e andaram tanto,que chegaram ao vale e acharam a um cavaleiro que se combatia com doze cavaleiros, que estavamdeles a pé e deles a cavalo. Mas ele se defendia muito bem, e estava a pé que lhe tinham morrido o

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cavalo. Galván se deixou correr diante de seus companheiros, e comenzóles a dar vozes tão de longecomo lhe podiam ouvir, e quando os de pé viram vir assim aqueles da cavalo começaram a fugirpara aquela parte onde melhor podiam proteger-se. Dom Galván feriu aquele que primeiroencontrou tão duramente, que lhe colocou a lança pelas costas e deu com o do cavalo em terra, eDom Ioan e Estor derrubaram a dois dos outros, e os outros que puderam escapar metiéronsenaquela parte da floresta que viram ser mais espessa, e quando Dom Galván viu que não ospodiam perseguir mais, virou-se ao cavaleiro que tinha encontrado, saudou-o, e o cavaleirorespondeu suas saudações muito cortesmente. "- Senhor - disse Dom Galván -, embora sejamquem são, haviam necessidade de ajuda." "- Verdadeiramente, senhor cavaleiro, eu fora morto sevocê aqui não viesse.""Dom Galván provou ao cavaleiro e viu que trazia duas espadas, e maravilhou-se muito por ende,e outro tanto se maravilharam outros, e quando Dom Galván houve um momento com ele falado,disse: "-Bom senhor, se eu não temesse lhes dar pesar, pedir-lhes-ia um dom." "-Certamente - disseo cavaleiro-, eu não lhes poderia outorgar coisa alguma até que soubesse seu nome." "Por boa fé -disse Dom Galván -, eu nunca encobrirei meu nome a quem muito demandasse 1, nem nunca oencobrirei agora a você. Eu me chamo Dom Galván, o filho do rei Loot da Organia." "- Ay! -Disse o cavaleiro -, Dom Galván são vocês?”“." Sim; sem falta - disse Dom Galván". “Emnome de Deus - disse o cavaleiro -, agora não me pedirão dom que o eu possa fazer, que não otenham." "- Grandes merCede - disse Dom Galván -, pois eu lhes demando por que trazes duasespadas pois não é costume que ninguém traga duas espadas em um." "-Por boa fé -disse ocavaleiro-, eu lhes direi isso de grau."Então soltou as duas espadas e pendurou uma delas de uma árvore, e a outra a pôs sobre a yerbaverde, e se fincou de erva-doce ante ela e humilhou-se a ela e a beijou muito devotamente o punho edepois sacou-a da vagem, mas não tirou mais da metade, porque estava quebrada por meio.Desta aventura foi maravilhado muito Dom Galván e todos os outros, e Dom Ioan disse aocavaleiro: "O que é isto, senhor? Habedes mais desta espada?" "Se, senhor, eu lhes mostrarei aoutra metade", e logo voltou bocabajo a vagem e, caiu logo a outra metade sobre a erva; mas muitose maravilharam quantos viram cair da ponta da espada gotas de sangue, umas atrás de outrasmuito espessamente. Dom Galván se maravilhou muito e todos outros, e o cavaleiro disse a DomGalván: "Senhor, o que lhes parece do pedaço desta espada?" "O que? - Disse Dom Galván -,me pareça toda sangrenta." "Por Deus - disse o cavaleiro -, que nunca viu tal maravilha.""Verdade é - disse Dom Galván -, mas, Por Deus, me digam ende a verdade." A isto disse ocavaleiro: "De grau lhes direi isso, mas antes conviria provar se você e seus companheiros todos,podem fazer que estes dois pedaços juntem em um e finque a espada sã." "Muito de grau" - dissedom Galván." Então descendeu do cavalo e também seus companheiros, e tendeu uma donzela umpano de te coma sobre a yerba verde. "Senhor - disse o cavaleiro a Dom Galván -, convém-lhesenvolver as mãos neste te coma, e tomar assim os pedaços desta espada, porque se de outra guisa ostomásedes, poderia lhes vir ende alguma má ventura." Então envolveu as mãos no te coma, e disse:"Senhor, podnestes dois pedaços desta espada ayuntarse e soldar de primeiro por mim?" Disse ocavaleiro: "Sim, se vocês forem aquele que têm que dar cabo às aventuras do Santo Graal." Então

1 A todos os comentaristas, diz Bonilla, choca-lhes esta particularidade do caráter do Galván, jáindicada no "Chevalier au Lion" e no "Parsifal".

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comentou a pensar Dom Galván tanto, que o coração lhe tremia no corpo e as lágrimas lhe saíamdos olhos, e o cavaleiro lhe disse: "Provem em nome de Deus." Dom Galván tomou os doispedaços da espada e os juntou em um, mas nunca a espada se soldou como estava antes, e quandoaquilo viu Dom Galván, pô-los logo em terra, assim como antes estavam, e houve tão grande pesare se teve por tão desonrado que não sabia o que fazer. O cavaleiro começou a chorar muitodolorosamente e disse a Dom Galván: "Ai, senhor! Porque vocês aqui desfalecem, não sei quemisto poderá acabar." "-Bem, amigo - disse Dom Galván -, eu não posso fazer mais, e porque nãoagrada à Mãe de Deus, deixo de me provar mais." Então fez o cavaleiro que provassem domIoan, Estor, Garriet, Gueres e Morderet e todos outros companheiros um em detrás de outro; masnada conseguiram tampouco. Então perguntou o cavaleiro a todos seus nomes, e lhes disse: "-Bonssenhores, agora podem ver bem que não há em vós tão bem como dizem..." E logo começou achorar muito reciamente, e Estor disse: "Senhor, agora podem ver bem que são enganados quantosnos têm por bons..." "Senhor - disse Dom Galván -, nos digam a maravilha desta assimquebrada e quando se quebrou, porque o desejo muito saber." "De grau - disse o cavaleiro - lhesdirei isso, porque me perguntam isso. Agora, ouçam. Bem ouvistes dizer muitas vezes pelasescrituras antigas, que Josef da Abarimatea, o bom cavaleiro que descendeu a nosso Senhor JesusCristo da cruz, veio a esta terra da Grã-Bretanha por mandado do criador do mundo; e assimtiveram arroxeado aqui ele, seus filhos e seus parentes, houve muitos convertidos à fé de JesusCristo, e adveio que um Dia entrou sozinho por meio da floresta que chamam Procelanda ouVerceleanda, e aquele dia era sexta-feira pela manhã, antes de meio-dia, e andou tanto por umatalho, que alcançou a um pagão em cima de um grande cavalo, armado de todas as armas, alança na mão, e o escudo ao pescoço e dele, pendurando, a espada. O cavaleiro pagão saudou oJosef e Josef a ele, e depois que andaram um espaço assim juntos, o cavaleiro lhe perguntou de suafazenda e de onde era:"Eu sou – disse -, Josef Abarimatia". "Pois, quem te trouxe para cá? - Disse o pagão." "Aquime trouxe - disse Josef - o que traz e sabe todos os caminhos direitos e o que trouxe para o povo doIsrael por meio do mar, quando foram em detrás dele para lhe matar". "E que mister tem? -Disse o pagão." "Eu sou - disse Josef - físico." "Pois, sabe chagas curar? - Disse o pagão "Sim -disse" "Pois vêem aqui comigo a um meu castelo que é aqui adiante a dou está um meu irmão queé ulcerado muito tem que uma ferida na cabeça e não posso achar mestre que lhe cure". "No nomede Deus - disse José- eu lhe curarei muito bem em louvor de Deus, se me queria acreditar." "Emnome de qual deus lhe curará? - Disse o pagão -, porque nós temos quatro deuses: Júpiter, Marte,Saturno e Mercúrio, e entre eles não há quem lhe queira ajudar, e você, como lhe vais ajudar, e porqual deles vai dar o remédio? Disse Josef: "Por nenhum deles lhe curarei, porque sua ajuda nãolhes pode valer de nada e você está enganado".... "Eu te levarei a castelo - disse o pagão - mas porminha cabeça; digo-te que se memore não poderá escapar vivo!"Isto assim falando, andaram até a hora de nona e chegaram ao castelo do pagão, que estava emuma montanha e se chamava da Penha e estava cercado de bom muro e boa cava... E quandoJosef e o pagão entraram, toparam com um leão em uma avenida, quem se tinha solto de suacadeia, e assim viu o pagão, armado, saltou o leão sobre ele e derrubou-o do cavalo e matou-o, e agente do castelo prenderam ao Josef e lhe tiveram pacote à torre, e um que era mordomo do casteloatirou de espada e feriu o Josef na perna, e ao atirar quebrou a espada nela, e quando chegaram àentrada da torre... E Josef disse: "Antes que me provem tragam aqui todos os enfermos destecastelo, para lhes curar, se me quiserem acreditar." Trouxeram primeiro ao irmão do senhor do

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castelo, e quando Josef viu sua chaga, o pagão lhe disse que a tinha desde fazia mais de um anosem que ninguém alcançasse a curá-la. "Se vocês podem me curar eu lhes farei rico para sempre."Então começou Josef a rir e disse ao pagão: - Como me poderia você fazer rico, quando não temnada e é pobre?" "Sim, sou rico - disse o pagão -, porque tenho muito ouro, prata e pedraspreciosas e muita baixela de ouro e de prata". "Isso não é grande riqueza nem vale nada - disseJosef -, como pode bem ver; se não me diga se todo isso não o daria a quem te pudesse dar asaúde". "Sim, o daria - disse o pagão." "Pois agora pode você bem ver que é pobre, porque éenfermo, e quando por uma coisa só daria quanto tem, porque nem ouro, nem prata, nem pedraspreciosas, fizeram nunca ao homem tão rico como a saúde... Se você acreditar em Deus, eu tecurarei em nome de Deus. Então desataram ao Josef, e sem que lhe notasse a chaga da perna,foram ao templo e aquela gente mal aventurada rogou a seus deuses que ressuscitassem ao morto,coisa que só pôde depois obter Josef invocando o nome de Jesus... E quando o irmão viuressuscitado ao morto, começou a chorar com piedade, e Matagrant disse: "Jamais acreditarei emoutro Deus senão naquele que ressuscitou a meu irmão Sergon"... e quando o senescal que tinhaferido ao Josef na perna viu que todos tinham recebido o batismo, confessou ali, ante todos, comotinha ferido na Perna ao Josef e como lhe quebrasse a espada: "Na perna acharão -disse a outrametade"... e depois que a tiraram a viram sair tão clara como se nunca tivesse entrado em carne ecaindo gotas de sangue de sua ponta, pelo que se maravilhou muito o povo, e quando Josef viu asduas peças da espada disse: "Ai, espada boa e formosa! Jamais não será juntada até que te tenhaem suas mãos aquele que as grandes aventuras do santo Graal levará a cabo; mas logo que tetenha juntará a fina força e esta peça que em minha carne entrou, não será jamais vista que nãojogue gotas de sangue hasfa que aquele a ciñal"..."Agora digam - disse Dom Calván ao cavaleiro da espada -, que nome têm". "Senhor -respondeueste -, meu nome é Eli-ascar ou Hely-ezer, o filho do rico rei Pescador que tem o rico Graal emsua casa." "Pois em que demanda anda? Disse Dom Galván." "Certo, eu ando em demanda dejuntar esta espada." "Agora lhes direi o que têm que fazer - disse Dom Galván -, já ouviram quesomos metidos na demanda do melhor cavaleiro do mundo, que não sabemos se estiver morto ouvivo, e assim lhes aconselhamos que andem conosco até que lhe achemos, se é que pode ser achado,que eu sei bem que ele acabará esta aventura, que ele é Dom Lanzarote do Lago." "Por boa fé -disse o cavaleiro, que em sua demanda não me colocarei, porque não tenho para isso licença, mas selhe achassem em algum lugar lhe podem dizer que se quisesse esta espada ver, que venha a casa dorico rei Pescador, que ali a achará"...Gostosos continuaríamos está nota, que o leitor pode encontrar no livro do mestre Bonilla, em suaverdadeira ortografia antiga, mas temos que renunciar a isso por sua muita extensão e porque noslevaria totalmente ao tema de Parsifal, tão engrenado, como vimos, com o do Tristão e o DaWalkyria.

Dada a identidade dita entre este ato de A Walkyria e a obra inteira deTristão, quantas correlações do grande mito universal estabelecemos a respeito deeste poderiam trazer-se também aqui.

Nenhum dos simbolismos do colosso de Bayreuth é tão augusto nem tãodifícil de interpretar como o das walkyrias. Estas virgens jaquetas se diz que são

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filhas da Vontade de Wotan porque representam a parte mais excelsa do serhumano: o que as religiões vulgares revistam denominar Daimon familiar ou Anjoda Guarda, quer dizer, a divina Tríade superior do Homem, formada, segundo adoutrina oriental, a) por seu Atman ou Ego Superior, que é Um com a Divindade eo Uno-único para com todos os homens, o Deus in nobis de São Paulo; b) por seuBuddhi ou espiritualidade transcendente: Amor Sabedoria, que diriam São João e osgnósticos, e c) por sua Mente superior abstrata, raiz de todos os pensamentospassados e futuros do Ego que reencarna. Os três ditos elementos estãosindicalizados pelo luminoso Augoeides ou Ovo Áurico, sagrado elemento desíntese jamais explicado pelas filosofias.

Mercê a perfeita concatenação de A Walkyria com sua antecessora O Ourodo Reno, os fatos acontecidos neste primeiro drama da Tetralogia são obrigadoprólogo de quantos agora nos apresentam. Lhe roubando às Águas primitivas, tinhaconquistado Alberico o ouro do pensamento ao lavrar seu Anel, como vimos; osdeuses, com paixão muito humana ao fim, tinham conseguido para sua soberba,abusando do Conhecimento que eles já tinham, um Palácio de ambição que iaprecisamente a ser sua ruína, e depois de expor-se grandemente a perder a ambrósiada Freya e sua juventude preservadora, realizam a façanha de roubar e despojar auns gnomos desprezíveis, introduzindo com o anel maldito que têm que dar empago aos gigantes, a discórdia universal e o primeiro fratricídio. Além disso, já nesteprimeiro ato de A Walkyria nos apresenta o mundo dos bons, escravizado ouaçoitado pelos dois protervos. Tudo clama, pois, por uma Redenção que tem querealizar logo Siegfried-Hércules, e cujo obrigado prólogo são estas tristezas de AWalkyria, com suas notas ou tema da Compaixão que tão gigantesca apoteose temque receber nesta obra, porque para ela subministraram seus elementos melhores oRamayana, a Ilíada, a lenda sobre a origem de Roma, a lenda greco-toscana daFlorisea e até o mito cristão mais emocional: o da Virgem, Mãe do Redentor.

Vejamos algo disto separadamente.Siglinda, a irmã, ou seja, a mulher espiritualmente legítima de Sigmundo, é

roubada ao lar de seu pai o lobo, à maneira de Sita, no Ramayana; da Helena, naIlíada; das sabinas, nos primeiros dias de Roma; da Florisea na lenda já citada deTristão, à maneira, enfim, de todas as algemas dentro do primitivo rito matrimonialgermânico e romano, rito estabelecido, sem dúvida, em lembrança religiosa daqueleatlântico mito. Insistir sobre tais correlações seria ofender a ilustração de nossosleitores, quem poderá, por outra parte, estabelecer outras muitas correlações locaisdeste particular de A Walkyria com diferentes lendas, tais como, na Espanha, a doJuanillo o Urso, que daremos ao falar de Siegfried, e, em Roma, a lenda sabidadaquela madre-loba, mulher ou filha de Marte, que amamentou aos gêmeos Remo eRômulo, aqueles Esaú e Jacob do povo rei, irmãos rivais, para a gloriosaprimogenitura do império do mundo antigo, os uns; para a ulterior genealogia deJesus os outros... Quem, com efeito, à vista destas e outras conexões míticas, queaqui só podemos apontar, duvidará já da identidade universal do grande mitohistérico-religioso, de que são os dois principais ou mais frondosos ramos o

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Paganismo e o Cristianismo?... Bem pode assegurar-se que entre o motivo tristeorquestral e o motivo heróico dos Welsungos está a história inteira da Humanidade,queda na selvageria ao fracassar a esplendorosa Atlântida, e redimida logolentamente da selvageria pela ação salvadora do lar, por esse lar bendito de lareirase penates romanas, germanos, etc., que se destaca doce e casto como um ninho,com caminhos casais humanos, nessas maravilhosas pinturas, ainda não beminterpretadas dos códices mexicanos, pinturas que se chamam os quatro sóis ouépocas nahoas: o sol do fogo, que sepultou com terremotos e erupções à a Lemúriado Pacífico, antes de aparecer a Atlântida; o sol da terra paradisíaca, dosesplendores atlantes; o sol de água, em cuja época se inundou a Atlântida, e o sol deventos e neves ou sol do ar, enfim, que é a época glacial da geologia, à entrada denosso atual período quaternário pós atlante, porque o lar casto e feliz é o queelevou, depois das grandes catástrofes do mundo, aos povos novos para novosesplendores, pois no caos de tais catástrofes, como no caos primitivo, o lar é aprimeira cristalização das formações futuras. Nos dirá que este lar é precisamente oque rompe rebelde a paixão de Sigmundo; mas aqui há um nó entre dois mitosdistintos, nó nada fácil de desatar, mas ao que convém consagrar, entretanto,quatro palavras.

Para o positivismo, incapaz de voar com suas asas rotas às verdadeirasesferas do ideal, o lar baseado no mero consórcio de dois seres de oposto sexo seapóia em um contrato, quase em uma compra-venta, conforme a metalizadamaneira que se tem de entender hoje o matrimônio. Semelhante lar, haja ou nãofilhos, como apoiado em um mero contrato social, qual aquela muito desventuradoconcepção do Rousseau, está acostumado a acabar em um inferno, em "a solidãode duas em companhia", que disse Campoamor, ou no divórcio qual um malnecessário. Este é o lar de Hunding, lar apoiado no engano ou na violência, contrao que se eleva o viril protesto de Wagner neste primeiro ato de A Walkyria; opseudohogar, enfim, estrepitosamente desfeito pela fada Primavera, a deusa do Amorlibertador, em nome de seus pisados foros. Mas aquele outro lar primitivo arianoque se vê ainda, por fortuna, entre gente de alma singela, no que o brahamán era osacerdote dos sagrados penates e lareiras - as almas dos mortos queridos emperfeita convivência com os vivos desde ultratumba - e a brahmina, a sacerdotisa;aquele lar muito doce e indestrutível, que tem um hino consagrado em prosa nacitei antique, do Foustel do Coulanges, Wagner não podia tratar de lhe destruir,mas sim de lhe elogiar como pedra angular da raça nova, a raça dos Siegfrieds, raçaprotegida pelas próprias Walkyrias, quem, como deusas jaquetas do ideal, poderiamachar naquele, como realmente achasse Brunhilda, guerreiros contra os Poderes doMal, mais silenciosamente heróicos por suas abnegações e dores mudos que osguerreiros das armas nos campos de batalha recolhidos. A idéia fundamental destadiferença entre o lar e o pseudohogar é a que veremos preocupar profundamenteao próprio Wotan quando procura em sua mente uma ordem nova - que não é maisque a perdido ordem antiga que no Código do Manú resplandece há séculos -contra aquela pseudo-moralidade consuetudinária, escrupulosa e, no fundo,perversa, que tão ardentemente defendesse sua rotineira esposa Fricka até fazê-la

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triunfar com a morte do herói mesmo.Semelhante lar, alma das nações, sofre, é certo - e disso é uma boa prova

Wagner -, atacadas terríveis por parte daqueles Poderes do Mal, ciumentos contra obem dos homens, em forma de esforços perigosos dos que o homem deconsciência reta triunfa sempre ao fim, como triunfasse Wagner ao afastar-se como coração destroçado de seu "Asilo" de Colina Verde, em Zurich, para partirsolitário a Veneza e continuar assim durante vários anos, até que o muito virtuosoLiszt, que lhe tinha dado amparo, consolo e estímulo, o deu também como esposaa sua filha Cósima, e com ela o cobiçado lar, esse mesmo que não pudesse obterBeethoven o mártir, apesar de todos seus desejos.

Outro muito importante símbolo fica ainda por investigar neste primeiro atode A Walkyria, e é o de Fresno do Mundo: Noel, a divindade arbórea, símbolouniversal da Vida. H. P. Blavatsky lhe consagra uma seção inteira em sua DoutrinaSecreta, tomo II, seção que quase deveríamos, se não fosse ela tão extensa,reproduzir aqui. Descartado, com efeito, tudo que a ciência conhece já a respeito desuas propriedades e vantagens, fica ainda por explorar o imenso filão da "poesiaarbórea" das idades, que nos fala do Cano Sibac, das Artufas ou Cavernasmegalíticas da Iniciação, do acatl numeral dos nahoas e da árvore Kríta da TerceiraRaça, no Popul-Vuh guatemalteco, também chamado a árvore Iggdrasii e Ask, oubasco, pelos norsos e por Hesíodo; Ashvatta, pelos industânicos; Gogard, peloshelenos; Zampun, pelos tibetanos; Bimini, pelos habitantes da Florida, ou HiaueraRuminal ou Biminal, pelos romanos; Tzypon, pelos Aleim ou sacerdotes egípcios esemitas; Arasa-maran, ou plátano sagrado do Vishnú, pelos arianos; Pippala, dedoce fruto, pelos dirgotamas; Árvore do Mox, Moj, Muisca ou Moisés?, Peloschipanecos; Árvore da Ahura-Mazda, pelos parsis; Árvore sefirotal e sagrado, paraassírios, babilônios e caldeus; Árvore do Éden, para os hebreus; Árvore da Seiba,Árvore do Ophis e Ennoia ou Ou fita, e Árvore Otz, para os cabalistas; Árvore daCruz, para os cristãos; Árvore do Gerión, para os tartésios; Árvore da Tau, para osmaias; Árvore do Chichi-hua-cua-hu-co, para outros povos mexicanos; Árvore doMetatron e Shekinah, ou Árvore poderosa, para o Zohar; Árvore do Mundo, emlin, Árvore do Pão, Árvore do leite, Árvore da Liberdade, Árvore da Constituição,Árvore das Distraídas, da Frigia, da Guernica, palmeira dos Abderramanes, etc., etc.

Todas estas árvores simbólicas, como outra vez veremos, não são senão umsozinho: a Árvore da Organização e da Vida, a Árvore Matemática. Quem delecurta um ramo com seu conhecimento, e nela grava as runas sagradas, quer dizer,os cálculos da Matemática, pode, com o conhecimento superior que adquira,descobrir inúmeras verdades e assenhorear-se do mundo como entre nós vaiconseguindo a ciência ao construir pela Matemática máquinas admiráveis paracorrer, navegar, voar ou inundar-se no fundo dos mares, e ao averiguar por elatambém as leis do Universo, descobrindo astros pelo mero cálculo e predizendo oseclipses e os retornos dos cometas, etc., etc.

Em realidade, a Árvore não é mais que um formoso símbolo do crescimentoe da vida. O Bhagavad-Gita, para representar com ele a Vida universal do Logos,

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faz-lhe crescer de acima para abaixo, com sua raiz na Primeira Causa e seus ramosdescendendo mais e mais à medida que crescem, até sepultar-se fisicamente nomundo da matéria, à maneira dessas não menos simbólicas árvores genealógicascom os que os juristas representam os graus de descendência, os parentescos edemais vínculos entre os homens. É obvio que, se com a árvore assim disposta sealcança a simbolizar a involução do Logos, a mesma árvore disposta de modoordinário, ou com os ramos para cima, pode representar a evolução conjugada dasformas, e assim o empregamos também quando queremos representar osascendentes de cada indivíduo, mediante um tronco que se vai bifurcando emultiplicando para cima em ramos inumeráveis, prodigiosa série de nossosantecessores, expressa, como é sabido, por uma progressão geométrica de razãodois, que faz chegar a 512 indivíduos o número de nossos ascendentes só de 8ºgrau, ou seja,mais de um milhar de ascendentes para cada um de nós do século XVIpara cá, ascendentes entre os quais, Oh néscios aristocratas! Não pôde menos dehaver criminais e Santos, reis e mendigos... Juntas ambas árvores de nossosascendentes pretéritos e nossos descendentes futuros forma-se a inextinguívelmalha kármica que nos aprisiona na terra, tecido do Penélope da que cada um denós é um nó!

Até que as ciências naturais não se precaveram deste símbolo augusto, nãomereceram o nome de tais ciências: assim a Zoologia não nasceu até que Cuviernos desse a primeira árvore, a primeira taxonomia dos animais, classificando-os porramos de um mesmo tronco, segundo a cor e a temperatura de seu sangue; segundoa forma, disposição e número de suas extremidades; seu modo de geração vivíparaou ovípara, etc., etc. Igual aconteceu com a Botânica, a partir do Linneo, com aprimeira árvore taxonômico, baseado no número, disposição, etc., dos órgãosflorais das novelo: a primeira classificação vegetal, propriamente dita, até chegar aosistema dicotômico de Lamark, no que cada espécie vegetal se caracteriza por umnó ou seja, por caracteres contrapostos: por um sim e um não relativos aos diversoselementos de todos seus órgãos. Coisa igual acontece nas demais disciplinas ouramos de nosso grande tronco científico, inclusive na bibliografia decimal maismoderna, em que se classificam os livros por troncos decenales, centenales emilenales, qual troncos sucessivos.

A íntima textura histológica das células nervosas que no homem e nosanimais são as soberanas diretoras de todos os sistemas orgânicos e de seusmúltiplos funcione vitais, é arbórea também. Assim, de antigo se chamou aocerebelo "árvore da vida", e os estudos anatômico-micrográficos do Cajal, Golky eoutros nos ensinam que as células nervosas formam uma rede imensa, uma série deinextricáveis quanto minúsculos bosques, por pisos, se nos permitem o tropo,bosques nos que as raízes de cada celulita se assenta - com contato ou sem ele,conforme atue ou não ao longo delas a corrente nervosa- sobre os caules e ramosdas que antecedem, razão pela qual se repete em certo modo no orgânico o muitoformoso fenômeno do espectro magnético e do elétrico. Efetivamente, cem vezesvimos como ao cair uma pedra de ímã sobre um montão relatório de limagem deferro se recobre de largas arborizações delas, como se uma força de misteriosa vida

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as tivesse animado com seu sopro para nos dar um arremedo perfeito de vegetaçãoà maneira da das algas e os musgos. De um modo análogo, isoladas e comocontraídas as muito finas expansões ou ramos dos neurônios durante a restauraçãoquimiocelular que se opera durante o repouso do sonho, estendem-se e põem emcontato, ao modo de um verdadeiro espectro bio-elétrico que permite a correnteneurovital ir e vir dos grandes centros de inervação até os mais remotos limites doorganismo e até fora dele, se tivermos que acreditar nos sensitivos em suasvidências das chamadas auras de nossos corpos.

Mas todas as grandezas naturais da árvore como símbolo empalidecemdiminuídas ante o augusto simbolismo da árvore da numeração, alma-mater daMatemática e, portanto, de todas as ciências. Contar, com efeito, umas atrás deoutras as unidades discretas ou contínuas de qualquer grande conjunto calculávelou mensurável é uma infantilidade, quando não um impossível prático. Como saberdeste modo empírico nada referente à quantidade, à extensão ou à força nouniverso? Mas vem em seguida essa incomparável concepção natural relativa àschamadas unidades numéricas de diferentes ordens e o sistema de numeração ficaassim constituído como alicerce insensível da ciência. E o que é, em suma, todosistema de numeração senão uma árvore simbólica e abstrata no que o milhar ououtra unidade superior, por exemplo, é o tronco um de que brotam os dez ramosde suas dez centenas, cada uma das quais é, a sua vez, tronco particular das dezsub-ramas de suas respectivas dezenas, e estas, enfim, de caminhos dez unidades oufolhinhas, que em número de mil adornam à frondosa árvore que denominamosum milhar? Se em vez do milhar tomam o milhão, o trilhão ou unidades aindasuperiores em número indefinido, a lei é a mesma, como fundada que está ela nocósmico princípio da analogia, preconizado na velha chave de Hermes Trimegisto.

Se não quiserem coisas abstratas, senão concretas, ainda se podem citarexemplos práticos que evidenciam até que ponto a lei simbólica da Árvore da Vidanos encadeia, tanto que não podemos dar sem ela um passo sozinho... Um amigoperdido entre os milhões de habitantes de uma grande nação só podemos lhe achar,bem confiando ao acaso de um encontro fortuito com ele, bem adquirindo osdados arbóreos de sua moradia, com o tronco da cidade em que morre, o ramo desua rua, a sub-rama de seu número e até a folhinha de seu piso. Os ditos vulgaresde "ir-se ao tronco" e "andar-se pelos ramos" não expressam outra coisa.

Por milhares e até milhões se contam as estrelas do céu, sendo impossívelabsolutamente lhes dar nomes distintos. Entretanto, com apenas a indicação de suaconstelação ou tronco e seu ramo, letra ou número, todas elas ficam perfeitamentediferenciadas entre si, graças à árvore geométrica das coordenadas celestes. A forçaavassaladora das unidades táticas da tropa não vem também, mas sim do conceitosimbólico arbóreo, pois nela a vontade do general em chefe, única, mercê àdisciplina, circula, anima e se exterioriza até o último soldado através de umaperfeita arborização geométrica de ramos e sub-ramas constituídos por seuslugares-tenentes, chefes, oficiais e classes, nem mais nem menos que em nossosexemplos anteriores. O que importa, pois, em uma boa filosofia abstrata, falar de

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arborizações numérico-geométricas ou das infinitas arborizações concretas quefazem possível nossa vida social? O que importa, do mesmo modo, falar de tropasterrestres ou celestes, como as incompreendidas de videntes e místicos?Convenhamos em que a Árvore é uma lei tão verdadeira para nossa textura mentalcomo posso sê-lo a do Newton para os astros...

Wotan, armado de todas as armas, aparece entre as abruptas montanhas nosegundo ato de A Walkyria. Ante ele chega galopando rápido pelos ares a WalkyriaBrunhilda, a principal e mais amada daquelas terríveis virgens jaquetas filhas dodeus Wotan e da Ur-valha, a primitiva Erda.

As walkyrias eram assim as filhas dos mais violentos desejos de Wotan,encarregadas de despertar o heroísmo no peito dos homens para podê-los fazerdignos de ser levados, a sua morte no combate, até a Walhalla e suas celestesfelicidades 1 em lugar de verem-se inundados na Hélia, a mansão das sombras oulimbo de vaidade, aonde são levados a sua morte os mortais vulgares. Esta Hélia é,em umas lendas nórdicas, o frio inverno, a mansão obscura, mas não um infernocomo o que só existiu nas mentes católico-romanas. Simplesmente, um lugarinferior ou mundo da vulgaridade, aonde são levados a sua morte os mortaisordinários que jamais se distinguissem em sua vida por nenhuma ação heróica nemaltruísta, bem a diferença da Walhalla ou morada dos deuses, o Ilhuicatl-Tonatiuhnahoa ou Campos Elíseos gregos, onde eram levadas em triunfo pelas walkyriasjaquetas as almas dos heróis mortos no campo de batalha de uma vida deabnegação e de sacrifícios, para ser ali transformadas em esplêndidas aves evistosíssimas mariposas. A Hélia, enfim, forma parte dos Sapta-loka ou Sete lugaresinferiores de Ilusão, um dos quais, o mais inferior, infernal por certo, era nossaTerra para os industânicos.

O pai Wotan ordena a seu walkyria Brunhilda que baixe para proteger aoSigmundo o welsungo, na luta que vai ter com o Hunding, e ela, gozosa, parterápida pelos ares lançando seu costumeiro grito de guerra, todo onomatopéiasincompreensíveis: Hoitohó! Hoitohó! Heyaha! Heyaha! Hahei! Hahei! Heyaha! Queparece um misterioso jogo de vocais aspiradas como o que vemos empregado emalguma das Estâncias de Dzyan 2. Súbito interrompe seu gozo a walkyria e, aterrada,

1 O paraíso da Mahoma é fiel cópia da Walhalla, com seus deleites e seus huríes, pararecompensar aos guerreiros heróicos que sucumbiam no combate. A passagem do Corão foi malinterpretada, entretanto. Acaso a linguagem empregada pelo Corão tenha podido autorizar ainterpretação corrente como o único adequado para as mentes sonhadoras e sensualistas do povopara o que se desse; mas, em realidade, o guerreiro que morre nos campos de batalha pelo Bem epela Virtude se encontra em esotro mundo, não os sensualismos nas huríes, senão o amor inefávelda suprema hurí, que é sua Alma mais excelsa, com a que celebra aqueles místicos esponsais deEros e Psique, ou os que depois veremos entre o Siegfried e Brunhilda. Todo semita entende estesassuntos sob o símbolo do sexo: o pensamento ariano, mais puro, interpretou-o sempre qual nós ovamos fazendo, e sem sexualismo.2 Tais como a Estadia de A Doutrina Secreta, que fala do impronunciável Oeaoho, a palavradas Sete Vocais do Mistério.

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detém-se um momento vendo que chega Fricka: a inexorável algema do deus,protetora de toda vulgaridade escrupulosa e de todos quantos homens achem-sebem advindos com a muito defeituosa Ordem estabelecida, essa Ordem lhe reinem,onde o gênio, o heroísmo e demais altas virtudes não podem ser compreendidosnunca em sua excelsa grandeza, e que representa, portanto, a grosseira moralconsuetudinária, cheia de rotinas contra toda iniciativa da Vontade Livre,emancipada das travas daqui embaixo pelo Conhecimento intuitivo.

Fricka, a guardiã do Himeneu, embora o Himeneu não seja por amor e simpor engano ou por força como o da Siglinda e Hunding, vem perto de seu maridopara lhe exigir, em nome do Himeneu, que proteja ao Hunding e abandone aowelsungo, que com seu adultério e incesto violou todas as leis divinas e humanas. Odeus resiste, em vão, alegando que não pode existir lei alguma contra as leissagradas do Amor, nem juramento algum válido que no Amor não se funde. Fricka,então, furiosa como a Juno grega contra o nascimento de Hércules, desata-se eminvectivas contra aquela maldita raça welsunga, símbolo da suprema ignomínia deum deus que, percorrendo os bosques como os lobos sob o nome do Welso,depois de ter forçado a Urvala Erda ou A Natureza, e tido dela às jaquetaswalkyrias, descendeu até a baixeza inaudita de procriar um casal humano! Aoprocurar o deus em sua Mente transcendida nada menos que um Homem, umHerói que deva ser capaz de criar uma Ordem desconhecida, e que, sem o amparodivino, saiba redimir-se de suas leis e cumpra assim seu destino, destino necessáriopara salvar aos deuses, mas que nenhum deles pode realizar. Semelhante Desejadodos tempos não é outro que aquele divino Prometeu-Siegfried: o "filho amado deum pai inimigo" que imortalizou a grande tragédia de Ésquilo. Fricka, como se vê, éo símbolo da negra Reação, oposta sempre como inerte lastro a todas as exaltaçõesdos Movimentos redentores: o mundo do Mal, em suma, contra as ascensionaisenergias do Bem, e com o Bem, entretanto, desposado por lei de contrários; omundo da Mentira contra a Verdade; o da Rotina, contra a mágica ImaginaçãoCriadora, a mais misteriosa das faculdades da Mente.

Wotan, pai dolorido que, qual Abraham, vai sacrificar a seu próprio filho soba existência cruel da Fricka que invocou para isso as rimas de sua lança dos Pactosou seja,da Ordem estabelecida, tem que dobrar sua nuca ao jugo das leis que elemesmo criou, e com as que tem encadeado ao mundo sob seu domínio. Surge,pois, aqui esse muito glorioso símbolo do Pai sacrificador e do Filho sacrificado,que é base de todas as teogonias, inclusive do Cristianismo, e o pai, fiel a essaOrdem estabelecida, vê-se obrigado pela inércia dessa mesma ordem a retirar tudoseu amparo ao Amado de sua alma, deixando abandonado ao seu destino: o destinodo Sacrifício que redime, como se tudo que tem que negro e de maldito nestesubmundo tivesse que ser lavado, quando não com sangue das veias, com esotrasangre da dor moral e da imolação da Mente em altares do Amor que é Sabedoria.

Wotan retira assim seu amparo ao Filho e deixa em liberdade a walkyria paraque obre segundo sua própria Vontade, que nunca fora outra senão a mais íntima

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de Wotan mesmo. Nesta oposição entre a ordem do deus e sua vontade maisrecôndita se cifra toda a conduta ulterior da Walkyria. Ante a terrível cena que seprepara, Fricka, orgulhosa e satisfeita de sua façanha, retira-se. Conseguiu cruel queseu marido abandone a seu próprio senão ao welsungo, para que pereça na luta.Wotan, dolorido em seu coração de pai e de deus, deixa-se cair sobre uma rochacom a cabeça entre as mãos, absorto em lúgubres reflita. Brunhilda chega e se jogaem seus pés, enquanto que Wotan, no paroxismo de sua dor, exclama: "-Emminhas próprias redes caí! De todos os seres, eu! Sou o menos livre!"-, E logoacrescenta com voz sinistra e como contra si mesmo, olhando-se nos profundosolhos da virgem, sua filha:

"Que ninguém saiba jamais o terrível secreto que vou confiar-te!... Falo-tesim!; Mas meditando a sós comigo mesmo. Quando começou a perder para mimseus atrativos o Amor, minha alma audaz ambicionou o Poderio. Com ferocidadeimpetuosa, soube conquistar o universo e sujeitar com leis todas as Potências doMal... Tão somente o artificioso Loge, sob a forma de chama errante, soube escapara minha tirania... Mas, até sendo onipotente, aspirei a amar... Unicamente um filhodas Trevas, um débil nibelungo, Alberico, que amaldiçoou ao Amor, soubedesligar-se de tão supremo vínculo; conquistando o Ouro do Reno e com ele umpoderio incomensurável... O anel que forjasse caiu em minhas mãos, asmanchando; mas, em vez de devolver o tesouro às ondas sagradas, paguei aconstrução da Walhalla, do augusto palácio edificado pelos gigantes, do qualdomino ao mundo. Aquela para quem nem o passado nem o futuro tem secretos,Erda, a sublime, a sábia ur-valha me fez arrojar o anel, me profetizando uma ruínadefinitiva... Quis saber mais, sabê-lo tudo; mas, sem responder a minhas perguntas,a sibila tinha desaparecido. Perdi então toda serenidade, e ansioso de averiguar, deconhecê-lo tudo! Deus baixou do Céu até as vísceras da Terra...1. Encantada porum filtro de amor, turvada no orgulho de sua ciência, valha-a me respondeu porfim.. . Minha Foi! E assim a mais sábia sibila do mundo foi sua Mãe a Terra e a deseus oito irmãos 2. Eu mesmo lhes criei com a esperança de evitar os perigos que aValha me havia predito... O ocaso ignominioso dos Deuses. Para que na hora daluta o inimigo nos encontrasse fortes, encarreguei-lhes as valkirias, de engendrar efomentar o heroísmo de nossos antigos escravos os homens, o heroísmo daHumanidade toda, reduzida por nosso despotismo a inclinar a cabeça sob nossasfalaciosos convenções... Tínhamos extinto sua bravura, e sua tarefa consistia emsustentá-los nos combates, exaltando seu vigor pela rudeza da luta, para que assim

1 Não queremos estabelecer o paralelo cristão que se virá de seguro à mente do leitor.

2 Esta passagem está trocada de tento pelWagner. O mito grego em relação a isso diz que a Sibilaprometeu seus favores à Apolo em troca do dom da Sabedoria, mas que teve que negar-lhe assimque se viu investida de tamanho dom... Não se podendo o tirar, o deus esterilizou os frutos de seupresente, porque a condenou senão jamais creída...

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pudesse eu reunir na Walhalla, a das quinhentas e quarenta portas 1, as maisintrépidas multidões armadas, capazes da luta. Porque tem que saber ainda -prossegue o deus - que se o nibelungo recuperar o Anel, nossa ruína é segura. Porhoje está sob a custódia do Fafner, o gigante a quem a posse do Ouro transformouem monstro, e eu, que fui causa de que lhe possuísse, não posso arrancar-se o semfaltar aos pactos. Somente um, o Eleito, um herói que sem meu influxo realizasseinconsciente a façanha, aguilhoado por seu próprio desejo sem minha sugestão ecom a única ajuda de suas próprias armas, poderia conseguir o objeto único de meuDesejo, para o que estou impossibilitado por meus próprios feitos. Como descobriresse amigo, inimigo de uma vez, capaz de lutar em favor meu contrário minhaprópria divindade? Como criaria eu um Ser livre, que sem minha aprovaçãomerecesse minha gratidão e meus amores por sua rebeldia? Quem, não sendo eu,realizará espontaneamente o ideal de meu exclusivo desejo? Ignomínia divina!Dolorosa angústia! Asco profundo de encontrar sempre reproduzida minhaimagem em qualquer parte em todo o criado!... Quando acharei algo a mimdiverso? Em vão procuro o Independente, porque não soube nunca engendrarsenão servos desprezíveis!...

Brunhilda, estupefata, aterrada ante a ordem que recebe de lutar contra owelsungo protegendo ao repugnante Hunding, trata em vão de resistir a tambémforçada vontade paterna que lhe ameaça com terrível anátema se desobedecer.Enquanto, o feliz casal de Sigmundo e Siglinda subiu pela ravina. Esmigalhado ocoração desta ante o perigo que seu amado vai correr frente à matilha de Hunding,cai deprimida, e aquela deposita piedoso sobre uma rocha, enquanto que a Walkyrialhe sai ao passo com seu cavalo, e sob as misteriosas notas orquestrais dainterrogação do Destino, diz ao Sigmundo que a olhe cara a cara, porque logo vaiseguir a até a Walhalla, que aguarda esplendorosa a quão guerreiros sucumbem. "-Ali - lhe diz - encontrará a todos os heróis que lhe precedessem, e ali o welsungoencontrará a seu pai e a sua mãe." O herói, intrépido, nega-se, entretanto, a segui-laao mundo da suprema sorte se não lhe acompanhar Siglinda, sua companheiradaqui embaixo, coisa impossível, porque as débeis mulheres não podem gozar dostriunfos celestes reservados aos heróis, rasgo de inferioridade feminina que écaracterístico do semitismo. Além disso, é preciso que Siglinda respire ainda o aura

1 Símbolo da Rosa-Cruz, ou seja, do quatro com o cinco no circulo ou zero, quer dizer, 540.Disto já falamos algo conosco ocupar de "Os templários no Bierzo", no Tesouro dos lagos deSomiedo .

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da terra, por isso lhe tem que revelar depois 1. Em vão a Walkyria pretende vencersua resistência, lhe ameaçando com aquela lei de que, havendo-a já visto cara a cara,tem forçosamente que morrer 2. O herói, fiado em sua espada Nothunga, tirada-apor ele de Fresno do Mundo, prepara-se ao combate fiado em seu só esforço, nãosem antes pôr a Siglinda sob o amparo da insensível deusa, quem, como todas asimortais, não conhecia ainda o humano sentimento da piedade com o fraco; dacompaixão para o cansado... Um raio de luz, primeira palpitação de dito sentimentoque vai determinar a sua vez muito em breve a queda também da deusa jaqueta,predileta de Wotan, ilumina já seu Ser, e sob o exemplo da mulher-heroína daSiglinda, que leva já em seu seio um fruto de bênção, a antes cruel jaqueta começa asentir-se humanizada pela dor que redime... Em um arranque humano já, e comotal bem contrário a sua excelsa origem desprezadora de todo sentimento piedoso,detém, com efeito, com sua lança a espada de Sigmundo, que, exasperado, vai darmorte a sua amada para que não lhe sobreviva em seu infortúnio. A Walkyria então,transformado já em humano seu coração antes divino pelo mágico poder dapiedade redentora, decide-se a desobedecer ao Pai e a amparar, com sua égide, aowelsungo.

Hunding, enquanto isso chega com sua matilha em busca de Sigmundo, aquem ameaça com seus cães se se negar o herói a combater. Ambos se buscam echocam furiosos, entre os fulgores da tempestade que se desencadeia, e a batalhafica um momento indecisa, porque a Walkyria evita ao Sigmundo os golpes mortaisque, animado pelos deuses, dirige-lhe Hunding 3. Este, entretanto, vai cair ante oardor invencível de Sigmundo e de seu Nothunga, animado pela Walkyria; mas nomomento supremo, Wotan, que não pode consentir bem a pesar dele que as leis

1 Esta resistência do herói a ir ao céu sem que lhe acompanhe também a que compartilhou aquiembaixo as misérias da vida, recorda aquela lenda ária segundo a qual um santo asceta obteve jáa liberação, e para lhe conduzir a feliz morada um luminoso deva baixou à terra. O deva lhe disseao asceta que lhe seguisse ao Devachan ou céu. O asceta aceita gostoso, mas impõe a condição deque também lhe acompanhe naquelas delícias seu fiel cão, como lhe acompanhasse antes em seusdias de miséria. O deva o julga impossível, porque os seres inferiores não podem subir até ali. Osábio renuncia então a tamanho bem, do que não quer desfrutar de egoísta. Outro deva maisexcelso baixa depois a lhe dissuadir de sua atitude, mas também em vão. Por último, o mesmodeus Krishna desce em pessoa para levar-se a teimoso asceta quem definitivamente se nega a lheseguir. Então o deus desaparece; e quando o asceta vai dirigir um olhar carinhoso a seu cão, vêcom assombro que se transformou naquele deus, porque não é credor ao céu quem não ama aosseres inferiores, segundo o preceito jaino...

2 "Não se pode ver cara a cara a Deus - quer dizer, a nosso Ego imortal representado pelawalkyria - e viver, diz em várias passagens a Gênese..." Seguem, pois, como se vê, as analogiassemíticas entre os Eddas e a Bíblia.

3 Esta cena recorda a do Fausto quando luta com os estudantes, protegido pelo Mefistófeles, seuEgo conselheiro.

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sejam rotas e os Pactos desobedecidos, surge de improviso entre os combatentes:com sua lança invencível, faz saltar em dois pedaços a espada do welsungo, e oherói, assim desarmado, cai ao fim sob o golpe mortal de Hunding, enquanto que aWalkyria recolhe as duas partes da rota espada, e, montando em seu cavalo a infelizSiglinda, remonta para a Walhalla. Hunding, a sua vez, cai morto no ato, ante a sópresença de Wotan e de sua ordem de que vá, vil, a prosternar-se na Gela ante aFricka. Em pleno horror da tempestade, o deus supremo, que acaba de sacrificarcontra toda sua vontade a seu próprio filho, lança veloz seu cavalo em perseguiçãode sua filha, a Walkyria, para castigar sua inaudita rebeldia; e o ato acaba trágico,com a sensação da suprema angústia impotente, condenada a ver, uma vez mais,qual de ordinário no mundo, à injustiça triunfante e a inerme inocênciaperseguida...

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Nenhum simbolismo dos do colosso de Bayreuth é tão augusto, nem tão difícilde interpretar, como o das walkyrias. Estas virgens jaquetas se diz que são filhas daVontade de Wotan, porque representam a parte mais excelsa do complexomicrocosmos que se chama o ser humano: o que as religiões vulgares revistamdenominar Daimon familiar ou Anjo da Guarda, quer dizer, a divina Tríade dohomem, formada, segundo a Doutrina oriental, por seu Atman ou Ego supremo,que é Um com a Divindade, ou seja,o Deus in nobis, de São Paulo; por seu Buddhiou espiritualidade transcendente - o Amor-Sabedoria, que diriam São João e osgnósticos -, e, enfim, a Mente superior ou abstrata, raiz de todos os pensamentospassados e futuros do Ego que reencarna, sindicalizados em Um pelo luminosoAugoeides ou Ovo Aúrico, sagrado elemento de síntese jamais explicado em suaessência pelas filosofias, mas sobre o que convém apontar alguns detalhes deverdadeiro interesse.

O Fedro, de Platão, uma das obras nas que se insiste sobre o famoso lema deque toda a vida humana não é mais que uma grande queda, apresenta à naturezapsíquica do homem como dividida em duas partes: o Thumos (corpo de desejos,corpo inferior fenomênico, que é maia ou ilusão) e o θομραδίς Thumoeides ouAugoeides, essência divina, eterna, em que um raio do supremo Atman se revestiude essência Búddhica, e chama assim, ao longo das reencarnações, todos oselementos da Mente Superior humana, ou abstrações que o Ego foi libando aolongo de suas vidas, vistas que são mais um sonho que uma realidade, porqueaquela Tríade ou Walkyria, insensível a todas as misérias daqui embaixo, é aRealidade única de nossa vida, ou seja,a Consciência moral e psicológica, cujodespertar constitui o único objeto da filosofia, para nos restituir a nossa condiçãoantiga de deuses que fomos antes daquela queda.

O Theaetetus, outra das obras de Platão, ensina-nos, com efeito, que aascensão constante para a Verdade e o Bem até nos confundir com a Divindade, éa só tarefa digna do filósofo para voltar a ver cara a cara aquela Suprema Verdade,que antigamente contemplássemos como a walkyria via cara a cara a seu pai Wotan,

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porque a alma nossa não houvesse nunca podido descender a uma forma humanase antes não tivesse contemplado aquela Verdade e não houvesse algum dia devoltar a contemplá-la.

O Thumos (θνμσς) platônico, o Tahua ou vida sensual construtora dotabernáculo, segundo o Darmanapada sânscrito, está animado pelo princípio vitaldo homem; sua Alma ou Psique (ψνχη): alma análoga a dos animais e até a dasnovelo, que no homem só está regida pelo nous (νουs), inteligência ou Mente aquem a representa com asas, porque constantemente voa, subindo para oThumoeides ou Espírito Supremo do Homem, salvo quando, quebradas suas asascomo Ícaro, cai de novo aprisionada pela maia do desejo terreno, perdendo de vistaoutra vez as realidades eternas.

O próprio Zenón, fundador do estoicismo, doutrina que logo degeneroucomo degeneram todas as idéias em mãos de sucessores, ensinava a expressa idéiaplatônica de que existem em toda a Natureza duas qualidades eternas: a uma, ativaou masculina, que sobe por seu esforço, como Sigmundo e como Siegfried; e aoutra, passiva, feminina, que, de divina que era, descende pouco a pouco ao estadohumano - como a walkyria Brunhilda - conjugada em razão inversa com o elementoinferior que ascende como herói à conquista de seu céu.

Não há palavras nas degradadas línguas vulgares nossas, para expressar tãoinefáveis Mistérios, que antigamente só eram jogo de dados na iniciação. Porfortuna, temos, entretanto, dois médios bastante mais aptos para nos fazer carregodestes Mistérios augustos. O um, é o da música destas obras imortais do colosso; ooutro, é a maravilhosa linguagem matemática.

Imaginem uma série de retângulos da mesma área, área que, como sabemos,obtém-se multiplicando a base pela altura. Mas a série de retângulos de igual área é,como tantas outras séries matemática, verdadeiramente infinita. Assim, podemosobter o primeiro retângulo da série tomando como área o produto de um segmentoretilíneo imensamente grande por outro segmento retilíneo imensamente pequeno,produto que pode dar, como é sabido, uma quantidade finita... No símbolowagneriano, o imensamente grande aquele é a walkyria Brunhilda, ou seja,a origemdos tempos, quando apenas se tinha saído aquela, como Minerva, da Mente divina.O imensamente pequeno é o homem-servo, a ínfima criatura animal e escrava deque nos fala Wotan em seu longo monólogo... O tempo corre, a evolução sedesenvolve, e enquanto este imensamente pequeno vai crescendo por suas rebeldiasevolutivas, aquele imensamente grande decresce harmonicamente conjugado, querdizer, em linguagem do simbolismo wagneriano, Brunhilda se separa cada vez maisda vontade de seu Pai e do céu da Walhalla, para aproximar-se mais e mais à terra eunir-se assim guerreiro que se eleva, ou o que é o mesmo, em nosso símilematemático, o lado curto cresce, o lado longo decresce, mas seu produto, ou área,permanece constante: é sempre o Homem...

O símile fica aqui em suspense, porque em sua inefável apoteose doQuadrado, vai crescendo o guerreiro, e decrescendo a walkyria até que chegam aigualar-se ambos no Amor, o grande nivelador de quanto vive, formando esse

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símile de suprema perfeição de Eros-Psique, do Homem-Deus ou Siegfried-Brunhilda com o que vamos travar conhecimento no seguinte capítulo.

Pusemos o símile da série evolutiva de todos os retângulos de igual área queculminam em seu momento central, que é o quadrado, símbolo do ser perfeito ou ohomme carré, que dizem os franceses. Igualmente poderíamos ter empregado cemoutros símbolos matemáticos, qual o dos conjugados harmônicos, e, em geral, o detodos quantos temas de aritmética, geometria, física ou química oferecem o ensinoda razão inversa, quer dizer, do produto conjugado de dois fatores cujo eternoresultado é uma constante: o Homem, porque como disseram todos os filósofos daescola pitagórica: os Speusippus, os Xenocrates, os Platão, os Architas, osPhilolaus, os Euclides, os Arquimedes, os Pappus e mil outros cujas obras seperderam e cujas doutrinas matemático-filosóficas distamos ainda muito de teresclarecidas, a alma humana imortal e o nous que a telha têm um princípioaritmético, o daquela conjugação inefável; assim como o corpo tem, emconseqüência lógica, um princípio geométrico mais grosseiro ao revestir-se deformas neste submundo.

Daqui, ao solene momento do Sacrifício do Soma, ou sublime evolução deSiegfried, não há senão um passo, passo que no capítulo seguinte daremos.

A idéia, pois, do mito da walkyria, embora sublime, é singela em sua mesmasublimidade. Seu enlace protetor, sua conjugação por razão inversa matemáticacom o herói a quem protege, exige, como acabamos de ver, que ela desça para aHumanidade outro tanto quanto a Humanidade se eleve galharda com suasrebeldias. Isso é simplesmente o que em química se chama a lei do Prouts, ou seja,a de que os calores específicos dos corpos simples estão em razão inversa de seuspesos atômicos, para dar, com seu produto, a quantidade constante de 6, 4, razãopela qual são mais ativos aqueles corpos de peso atômico menor, como o flúor, ooxigênio ou o cloro, que os outros corpos de suas séries respectivas. Igual acontece,entre mil exemplos que se podiam encontrar, com a conjugação vital da planta e ada terra que a sustenta, dado que tudo que aquela cresça outro tanto empobrece eesteriliza à terra que a nutre com seus sucos. Assim, com arrumo a dita lei de razãoinversa, verdadeira conjugação entre as realidades visíveis e as forças ocultas doUniverso, ao começar com o homem-mineral ou o homem-átomo, a evoluçãonatural que conhecemos, seu walkyria jaqueta, a divina Energia impulsora daevolução apenas se começou a despertar, emanando desse Oceano sem limites quechamamos a Mente Arquetípica do Logos planetário. Pouco a pouco essa AlmaMater, eterna impulsora da luta pela evolução, ou seja, pela vida progressiva, vaidescendendo sobre o homem-vegetal, primeiro, sobre o homem-animal, depois.Mas chega um momento, o mais sublime da Evolução, que é aquele em que ohomem-animal, antes todo desejos materiais e egoístas, e bem concorde com aescravidão, como os Hunding, é já um welsungo, um rebelde, por estar já dotadode Memore jaqueta e turbulenta, mau avenida a partir de agora para sempre com asimperfeições intoleráveis dos interesses criados e da Ordem estabelecida. Então, aomodo do Micrômegas de Voltaire, quer vê-lo e dominá-lo tudo; medir céus e terra.

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Como welsungo já, é maldito por sua mesma rebeldia, mas ele obtém bem logoconquistar, arrancar da Árvore da Vida, a Espada do Conhecimento intuitivo e já opróprio Wotan não pode lhe humilhar, porque dito Conhecimento é de naturezadivina, e ele nos começa a equiparar aos deuses, embora o carma cruel e nossaanterior queda na geração possa fazer mais de uma vez que a Lança dos Pactos, ouseja, as leis estabelecidas que aprisionam a Humanidade nas redes que se revistamchamar pomposamente Ordem estabelecida, rompa em dois e inutilize aquelaEspada Flamígera. Já virá logo o Siegfried rebelde e filho do primeiro casal derebeldes, que conseguirá reduzir e pulverizar os pedaços de sua Espada Nothungacom a lima do esforço hercúleo; fundi-los em seguida no fogo da dor, que éconhecimento, e com eles, forjada de novo, que não soldada, a antiga Espada rota,matar ao Monstro do Passado, à Hidra das Cem Cabeças e aprender com seusangue a linguagem das aves do céu, que é a mesma linguagem dos deuses e dosheróis.

A cena de luta que se desenvolve entre o Sigmundo e Hunding, é a lutacantada também nos Puranas industânicos como havida entre a Daksha e Nárada,ou no Ramayana e o Mahabharata, como acontecida entre os ravanas e os rakshasasou entre os kurús e os pandavas. A walkyria não ataca ao Hunding, mas sim selimita a proteger ou defender dos ataques de este a seu herói, que é a parte inferiorde seu ser mesmo, sem atacar ao rival, missão que unicamente corresponde aoSigmundo, porque é lei da grande Dualidade que chamamos Homem, a que jamaisseu Ego divino atue por si em suas ações na vida daqui embaixo, limitando-se aopapel, aparentemente passivo, de iluminar o Atalho com a suprema luz chamada aConsciência, porque, como diz Blavatsky, todo reflexo dos poderes superioressobre o homem tem que ser temporário, e a mais deixam irresponsável e semprogresso efetivo, à maneira dos raios do sol, cujos eflúvios fertilizantes se perdempor completo para a terra arenosa de um deserto se o homem mesmo não cuidar deentesourar sua força com os cultivos. Essa aparente passividade dos elementossuperiores do homem é devida a que seu progresso ativo é imensamente mais lento,embora dependente por inteiro dos múltiplos esforços do mesmo, não achandonós costure melhor com que comparar as engrenagens de ambas vidas, a superior ea inferior do homem, que com as rodas de um relógio, no que a roda das horasparece indiferente ante os avanços da roda dos minutos, até que um númerosuficiente destes a fazem avançar um lugar, ou dente, e o mesmo, nem mais nemmenos, passa a sua vez à roda dos minutos com a dos segundos, ao tenor dessa leifundamental dos sistemas de numeração em que nada altera à cifra de cada dezena,que dentro da dezena se acrescentem ou tirem unidades, com tal de que elas nãosejam já em número suficiente para a fazer passar à dezena que a segue ou que aantecede, lei universal, em suma, que explica as revoluções ou avanços bruscoscomo seqüela de uma evolução gradual, um tempo contrariada. De igual modotodos os elementos em física chamados radiantes (luz, calor, etc.) não são senãoelementos latentes, um ponto depois manifestados.

Na lenda universal, o tipo da Walkyria está reproduzido até o infinito,especialmente naquilo que faz referência a esforços e batalhas, onde joga todo seu

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papel o heroísmo. Na fábula grega, a walkyria é o divino Eros, cobrindo no silêncioe na escuridão a Psique. Na fábula ocidental da Europa, na galega e na astur denossa tão mitológica retomada, a walkyria é o Santiago, São Jorge ou São Jacobo,milagroso, cujo cavalo branco guerreiro se estava acostumado a mostrar em todasas batalhas difíceis a seus protegidos respectivos, animando-os o santo para ocombate e secundando-os com gritos não menos onomatopéicos que os dasselvagens filhas de Wotan.

Quanto aqueles dois combatentes do mito wagneriano, são eles fiel cópiados da lenda de Castor e Pólux. Eram estes dois irmãos gregos de coração de herói,filhos da Leda e do Júpiter-Cisne (Lohengrin), quer dizer, símbolos do Dia e daNoite. Suas respectivas algemas Febe e Hilaria eram as duas filhas do Apolo,personificação dos Crepúsculos. Nasceram ambos do Ovo de Ouro (oThumoeides, Augoeides ou Ovo Aúrico ocultista); mas um era mortal, enquantoque o outro era Imortal. Em uma revolta contra os Aspharides, Cástor mata a Saco,o mortal de mais penetrante vista (o homem mortal da terceira raça com o dom dadobro vista, ou seja,o terceiro olho do ciclope). Pólux, a sua vez, por proteger aCastor, é ferido por Idas (o deus do Dedoideico, o Deus supremo ou Matemático).Zeus-Wotan põe fim à luta matando aos dois opositores Castor e Saco. Castor, queencontra a seu irmão moribundo e desesperado, invoca ao Zeus para que o mate aele também, mas, como Pólux e como a walkyria, não pode morrer e Zeus lhe dá aescolher entre seguir sendo imortal com ele no Olimpo, como aquela virgem-guerreira, ou compartilhar com seu irmão a metade de sua existência – deixando deser walkyria - e passar a metade de sua vida na terra e a outra metade nas mansõescelestes. Aceito este convênio, símbolo fiel das encarnações, desencarnações ereencarnações de nosso Ego imortal, vivem ambos os irmãos alternativamente umdurante o dia da existência física, que é a morte do espírito, e o outro durante anoite do sepulcro, que é o grande dia da imortalidade. É, pois, este delicioso mito aimagem perfeita da divina Individualidade e a falsa Personalidade do Homem:Castor, enfim, é o homem de barro e mortal, um animal que não é sequer de classesuperior quando, separado de sua Individualidade, tem que "morrer de morte", quediz a Gênese, a menos que Pólux sacrifique uma parte de sua natureza divina,associando-a assim a sua própria imortalidade. Acreditá-los meramente símbolos dosol e da Lua é, segundo Blavatsky, muito pouco adequado, já que seu alcancetranscendente é humano por excelência.

A dor de Sigmundo e Siglinda ao verem-se separados violentamente pelaforça do Destino, é o mesmo símbolo do suplício dos grandes condenados gregos,tais como Sísifo, Tântalo, as Danaides, Prometeu, etc.: a maldição original, ou seja,o dualismo dos sexos, sexos que, nascidos primeiro no hermafrodita ou Andróginodivino ao que alude O banquete, de Platão, procuram eternamente a unidade, comsua união amorosa. A Natureza, invejosa possivelmente daquela divinavoluptuosidade de outro tempo, com o sexo destruído, encarrega-se de frustrarsempre suas esperanças, produzindo, não a unidade, senão a trindade, e amultiplicação da espécie, conforme cantasse a picaresca musa de Víctor Hugo emsua canção de Rosemonde, canção da qual Rene Chansarel fez um excelente lied,

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que é como segue:Era uma vez

Um jardim, aonde eu vi a senhora Rosemonde;O ar estava repleto de pássaros os mais charmosos do mundo.Que sombra no bosque!

Era uma vezUma fonte, onde fui beber com Rosemonde;As náiades passeavam e eu via na sombraPérolas em seus dedos

Era uma vezUm beijo que trêmulo tomei de Rosemonde.Olhe, veja, eles são dois, diz uma ninfa loiraNão, diz outra, eles são três...

Que tal é o triste dualismo dos sexos, verdadeira maldição original, pois aoprocurar a unidade, a natureza defrauda nosso desejo, e assim, por tal processo,vive a natureza chamada humana, não já a verdadeira natureza animal, senão apervertida, sensual e viciosa que nos criamos.

Cego tem que estar pelos prejuízos também quem não veja nesta cena defuga e maldição de Sigmundo e Siglinda, o mesmo doloroso tema mítico daexpulsão do Adão e Eva do Paraíso por lehovah-Wotan, quem, como este últimopersonagem do drama wagneriano, ao mesmo tempo em que lança a maldiçãocontra o homem, à mulher e a serpente, deixa entrever ao longe a sublimepromessa da futura Redenção pelo Amor... Assim a Mitologia comparada é achamada a aprofundar neste paralelo entre a doutrina wagneriana dos Eddas e arabínica da Bíblia, para julgar pelas maiores belezas e profundidades filosóficas dauma sobre a outra, e, do mesmo modo, qual pôde ser o original antigo e qual acópia ulterior, embora também antiqüíssima.

• • •

Todo o ambiente aparece trocado no último ato de A Walkyria. Na ladeiradireita da montanha se mostra um bosque de pinheiros e abetos, e à esquerda aentrada de uma gruta onde o monstro Fafner dormita ambicioso sobre seuTesouro. As divinas walkyrias chegam à sua mansão excelsa levando na garupasobre seus cavalos as almas de quão guerreiros acabam de morrer combatendo peloIdeal em qualquer de suas formas sem conto. Só falta Brunhilda, quem chega, aofim, afligido seu cavalo pelo peso da carga que traz, carga a mais Santa, de umamulher que vai ser mãe, mas, ao mesmo tempo, carga a mais odiosa e repulsiva paraa insensível crueldade daquelas jaquetas virgens.

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Brunhilda, dominada já pela mais humana das ternuras, pede a suas irmãsamparo para a abandonada Mãe, quem, como tal Mãe, é por si só o mais elevadodos heróis: a Heroína!...; Mas aquelas insensíveis jaquetas se negam a protegê-la,temerosas dos paternos furores. Então Brunhilda, mais sublime que nunca pelomero feito de ser já compassiva compartilhando os dores com a pobreHumanidade, leva amorosa à Mãe junto à cova do Monstro, segura de que ali nãotem que alcançar os furores de Wotan, mercê ao crime do Anel. Cumprida assimsua missão protetora e depositando piedosa sua carga ao lado da cova do Fafner,Brunhilda sai logo, com a serenidade que proporciona sempre o dever completo, areceber a seu indignado pai, armada, não já como antes com sua divina lança, massim de outra arma mais poderoso ainda, ou seja: do invencível vigor da Consciênciamoral e humanizada, que opõe a Égide do Dever completo às brutalidades da forçafísica e às estreitezas de uma moral rotineira sem emotividade real: Este é o tema daJustificação que todo herói humano, embora sucumba, lança cara a cara dos deusesou forças que lhe tiranizam, tom aquela frase sublime do Jó ao Jehovah, alma detodas as redentoras rebeldias: aquela frase terrível "-Senhor, Senhor, vocês sãogrande, mas eu sou Justo! ", Obrigado final de quantas tragédias pretenderamacabar com o Inocente na cruz, na fogueira, sob a adaga ou sobre o patíbulo, pontocrítico para toda nova dimensão, ponto culminante de todo drama, real ou sonhadopelos homens, e no que, de um modo kármico e inevitável, os frutos do heroísmocaem como chuva benéfica sobre o mundo assim redimido pelo esforço de seusheróis: os mártires do Amor e da Idéia 1... Feita, pois, já pela Brunhilda a Siglinda aaugusta profecia do destino sobre o Fruto de suas vísceras - Siegfried, o Redentor -,e entregues a este, por toda dote, os dois pedaços da gloriosa espada Nothunga, adeusa, já quase Mulher, recebe serena, com a serenidade do dever completo, apaterna condenação de Wotan, condenação que este fulmina nos seguintes termos:

Não sou eu quem te condena: você mesma te condenou por suadesobediência. Encarregada de executar meus decretos, obrou consciente contraeles... Sua alma inspirava a meus heróis, e, entretanto, animaste-os contra mim...Isso foi antes. Olhe o que será a partir de agora... Já não pode ser a filha de meuDesejo!... Segue sendo mulher: já não é Walkyria!... Já não voltará a procurar entre oaçougue do combate aos heróis escolhidos por mim para levá-los a Walhalla, nemvoltarei a beijar seus lábios infantis, nem servirá já mais minha taça nos festins dosdeuses... Nossa aliança está rota e você excluída fica para sempre do divino Troncode que formava parte!... Não serei eu tampouco quem te despoje de seus divinosdons de Virgem... Quem te possua te despojará deles, quando te encontrar inerme eabandonada sobre esta rocha em que lhe desterro!... Profundo sonho fechará seus

1 Esta é a suprema e sábia razão que os orientais têm para repugnar nossa chamada tragédia,filha da tragédia grega. Dentro das leis pelas que descende, com efeito, o Ideal sobre a terra, o finalmais trágico que dar-se possa não é mais que o nó ou ponto crítico da glorificação queindevidamente tem que vir depois. Por isso os evangelhos de todas as religiões não acabam naCruz, senão na Ascensão aos Céus, e por isso também a tragédia grega e o pessimismocontemporâneo, seu filho, são gêneros incompletos e imperfeitos, por muito belos que nos resultem.

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olhos: o primeiro homem que tropece contigo, te achando em seu caminho, poderádespertar, e será seu Tesouro quando, como mãe vulgar, leve-te de tecelã a seu larmísero!...

Horrorizadas as demais walkyrias ante a crueldade de tal sentença, fogem emtodas direções, intimidadas além pelas prevenções que Wotan lança contra elas setratarem um momento de auxiliar a seu infeliz irmana Brunhilda, enquanto queesta, com o vigor desses acentos supremos do tema da justificação, mostra-se,entretanto, com sua atitude rebelde, a cumpridora fiel da Oculta Vontade do Pai, desua verdadeira Vontade livre, não daquela outra vontade pelos Pactos escravizada; epede, e consegue, ao fim, de seu pai que o homem que tenha que possui-la seja, aomenos, da linhagem dos heróis. Wotan, que se começa a emocionar, bem a pesardele, o concede, amaldiçoando, porém, uma vez mais à raça welsunga, a quem tantoama; e antes de ferir com sua lança na rocha para fazer surgir em volto de suaencantada filha o fogo inextinguível e sagrado, terror que afasta todo o profano,despede-se dela comovido, dizendo:

“Adeus, filha sublime, santo orgulho de meu coração!... Se tiver que teperder para sempre a ti, voluptuoso recreio de meus olhos; se já não tiver quevoltar a servir a meu lado minha taça na Walhalla, deixarei, ao menos, acesa, emredor de seu divino corpo, nupcial luminária, tal e como jamais algema alguma ateve... Devoradoras chamas arderão entre estas rochas! Mortal espanto rechaçará aocovarde, para que tão somente o herói que desconheça o Medo possa chegaramante a ti, à divina Esposa, filha de um Deus!... E estes olhos, seus olhosluminosos que tantas vezes beijei, te recompensando pela vitória no combate,quando de seus lábios brotavam os elogios do Herói morto; estes olhos radiantesque me iluminavam quando as frouxidões da Vontade e as chispadas da Esperançaabrasavam meu coração, recebam agora, por última vez! O último beijo de minhadespedida. Que só para o Homem Feliz que consiga despertar se acendam seusbrilhos! Para o desafortunado Eterno, fechados ficam já por sempre! Oh, vêem!Filha querida! Com este último beijo Wotan se leva sua Divindade!" Beija-a entãoem ambos os olhos, que ficam fechados; coloca-a amoroso sobre a rocha; rodeia-ao casco guerreiro, dobrando as asas da quimera sobre sua cara, até ocultar-lheContempla-a de novo dolorosamente cobrindo-a com seu escudo e lança dewalkyria, e evoca ao deus Loge nestes termos, para elevar a barreira de chamas queninguém senão um herói poderá atrever-se a transpassar.

"Logo, me ouça! Tal como antigamente te encontrei sob a forma de chamaardente; tal como então conseguiu fugir em forma de chama errante; tal como, aofim, consegui te reduzir, vêem mim! Surge! Sobe! Rodeia a estas rochas, trementeChama!", E enquanto vai assim dizendo, dá três lançadas sobre a rocha, qualMoisés no deserto quando com seu estribilho mágico fez saltar deste modo omanancial de água ferindo com seu golpe a estéril rocha. Ao terceiro golpe de lança

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surge de entre as gretas da penha uma chama que, rapidamente, serpenteia e seestende em todas as direções, acendendo a seu passado um verdadeiro mar de fogo,que sobe entre vapores ao céu 1.

- Quem tema a ponta de minha lança - ruge Wotan poderoso -, que nãofranqueie jamais este encantado círculo de Fogo!-, E enquanto isso, depois de dotema do Encanto do sonho e do Sonho de Brunhilda, surge vigoroso o tema muitovivo do Encanto do Fogo, que vai morrer sob o grande tema de A Tromba deSiegfried, comentando sonoro as últimas palavras de Wotan...

Assim termina o drama doce, o drama trágico de A Walkyria, o Drama,enfim, da Redenção pelo Amor, com o que Wagner nos deu o Evangelho da idadefutura, esse Evangelho novo cujos quatro evangelistas são ele; Goethe, com seuFausto; Schopenhauer, com seu Mundo como Vontade e como Representação, eH. P. Blavatsky, com sua grande Enciclopédia ocultista de Ísis sem Véu e de ADoutrina Secreta.

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Jane Luidan, que nunca escasseou as mais cruéis e injustas sátiras contraWagner, diz desta página imortal do Encanto do Fogo: "Os espectadores sentirãotodo o poder e toda a grandeza desta soberba criação. As comovedoras palavras deWotan; a letargia de Brunhilda, sobre uma sucessão harmônica de estranha beleza eencantadora instrumentação cimentada; a evocação do Loge; a aparição do fogomágico e o desaparecimento de Wotan entre as chamas; todo este final de AWalkyria pertence incontestavelmente às criações mais belas da arte musical. Achamada dos trombones precede à aparição do Loge. Wotan dá três lançadas, e àúltima surge o fogo que logo o invade tudo ao redor. Me ouça dois motivosculminantes: o do sonho, que murmuram os violinos, e o de Siegfried que ostrombones desenham..." "Precedendo às maravilhas da paternal despedida deWotan a sua filha, antes desenvolveu a orquestra o tema da Justificação -diz Luis

1 Loge ou Logo é o Proteu grego, filho de Tetis e de Oceano, morador das águas que circundam aterra. Às vezes as costas do Cárpatos, e as de Roda e Creta, estavam acostumadas a verje algumavez entre seus penhascos solitários; mas estranho era o mortal que tinha podido surpreender ali aovelho profeta, porque é ele tão impalpável e sutil como a brisa, e se desfaz sua forma como aespuma da água, trocando de aspecto como próprias ondas. Estava acostumado a sair doesverdeado mar quando o sol se achava no zênite. Perigosamente dirigia-se então aos ocos dasrochas, e ali, recostado, contemplava o mutável império de seus pais, enquanto os monstrosmarinhos dormitavam a seu redor. Só em tais momentos era possível lhe falar, mas não sem anteslhe haver sujeitado, coisa impossível a tudo mortal que carecesse das forças de Hércules, pois lhe épossível transformar-se com as mais peregrinas e inesperadas metamorfoses: ora tomando a figurade homem, de leão, de javali, de touro, de árvore, de rocha, de não, de chama, enfim, sempreinquieta, cambiante e abrasadora.Tudo que vemos pode ser ele - diz Bonilla; mas quem pode afirmar que ele seja qualquer dascoisas que vemos?

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Paris-, e a melodia sobe sobre imensas sonoridades até a maior explosãoinstrumental, ao limite de cuja incomparável progressão o tema do Sonho deBrunhilda descende docemente ao encontro da voz de Wotan, que lança umlamento dilacerador...”

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Brunhilda, procurando um refúgio para a Siglinda e para o futuro Redentor,seu filho, ao lado mesmo da cova do monstro Fafner, recorda a fuga da Virgem-Mãe cristã ao Egito, com seu Filho, para escapar à perseguição cruel de Herodes-Wotan. Igualmente recorda as hégiras de quantos redentores houve no mundo: doBuddha e do Krishna, fugindo do monstro Kashin; da Mahoma, da Balance aMedina; do Gutenberg, com sua imprensa; de Blavatsky, da Índia, e a de todos osgênios, pais-mães doloridos de um Ideal tão mais açoitado quanto mais fecundo,Ideal que, ao fim, dão à luz felizmente, por muito que lhes persiga, por aquilo quediz Blavatsky de que "a Natureza tem sempre estranhos rincões de refúgio paraseus escolhidos". Wotan, perseguindo assim de morte a sua raça welsunga, étambém o Saturno grego devorando a seus filhos, menos ao Júpiter, que escapa aseus furores pelo célebre artifício do calhau - chalchihuitl, nahoa; pedra cúbica,maçônica; pedra mística, do Jacob; pedra filosofal, alquimista; pedra ou Petrus,rocha viva para assento da verdadeira Igreja; pedra mágica, pedras ou pranchas daLei mosaica; pedra do Ata-fail, ou do Destino; pedra negra, da Kaaba; pedra dacova, do Juanillo o Urso, o Hércules-Sigfrido de Extremadura, etc., etc.-, calhauenvolto entre fraldas. Latona, mãe do Júpiter, refugiada entre os Coribantes oupastores, como Maria, Mãe de Jesus, no refúgio do Portal de Presépio, é a Siglindado drama de Wagner levada, para dar a luz, à cova do Fafner, e um estudo do mitocomparado chegaria a evidenciar que o mito escandinavo é mais belo e maiscompleto que o grego, prova notória da maior Antigüidade do primeiro sobre osegundo.

Aqui admiraremos uma vez mais a grandeza desses dois mitos cardeais detodas as religiões: o da Mãe e o da Virgem. Wagner, por exigências possivelmentedo argumento dramático, ou porque assim fosse o mito nórdico originário de seusdramas, separa ambos conceitos, personificando ao primeiro na Siglinda, e aBrunhilda no segundo. As religiões em geral os apresentam a ambos reunidos emum só emblema místico. Entretanto, o colosso de Bayreuth, como verdadeiroesoterista ou iniciado, soube dar a um e outro símbolo todo o alcancetranscendental que têm, conforme acreditam deixar demonstrado pelasconsiderações que antecedem.

Embora só fora por isso, A Walkyria, de Wagner, será uma obra prodigiosa eredentora enquanto haja sobre a terra homens capazes de pôr sua mente e seucoração a tom com a sublimidade de seu mito.

Uma das coisas que mais admiram, efetivamente, em Wagner é a alturamoral a que em suas obras elevasse à Mulher. Pôde (dirão muitos) aprender desseideal sublime que está acostumado a chamá-la mulher cristã; mas nós acreditamos

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mais que, inconscientemente, ao beber toda a inspiração de suas obras nas lendasnórdicas derivadas dos Eddas escandinavos, refletiu nas mulheres de seus dramas oconceito nobilíssimo que essa bela metade do gênero humano mereceu que aDoutrina Arcaica, herdada dos melhores tempos da Atlântida, e que resplandecetambém nos livros orientais mais primitivos, tais como os Vedas, bem a diferençada degradação a que a submeteu depois. O ariano, com efeito, não vê na mulhersenão a companheira do homem, acima das naturais diferencia do sexo, enquantoque o semita não vê nela senão o sexo, e com o sexo, o prazer.

Senta, Elsa, Isolda, Siglinda, Brunhilda e demais heroínas dos dramas deWagner são árias puras, sem mescla do semitismo posterior. São até maisabnegadas e imensamente superiores aos próprios Heróis. Não duvidam nunca,como duvidasse a Sahara bíblica do dito até dos anjos; nem tentam ao homemcomo Eva; nem pecam como as filhas do Lot; nem mintam e extorquem a seupróprio marido como Blusa de lã; nem sentem ciúmes como Sahara e Agar; nemsão tão vulgares como as mulheres do Moisés, do Aaron e demais personalidadesbíblicas; nem se emprestam a que se façam com elas os enganos paternos que comCorreia e Raquel se fizessem ao Jacob, nem a essas cenas de ciúmes como asdaquela com Bala e esta com a Zelpha; nem são tão desonestas como a mulher doPutifar; nem tão acessíveis à velhice rica como Rut e Noemí com o Both; nem tãopérfidas sob o manto de patriotismo como Judit; nem tão traidoras como Dalila;nem tão ímpias como Jezabel ou Atalía; nem tão fáceis como a mulher do Urías;nem se entristecem com suas esterilidades, porque nem mesmo tal palavra soa umavez em todos os dramas do colosso, como Sahara, Michol, Isabel e cem outras; nemse fala de adultérios ao Betshabée, nem de comércios ilícitos ao Thamar; nem,enfim, podem compilar-se neles esses ensinamentos de verdadeira perversão nemesse realismo grosseiro ao Bocaccio, ao Aretino, ao Zola ou ao Trigo, que nestemolho de preceitos bíblicos agarrados ao azar entre os tão ponderados livrossalomônicos: "A filha que não é guardada por firme guarda, qual caminhantesedento, abrirá a boca e beberá de toda água próxima e a qualquer seta abrirá seualforje até que mais não possa." "A lascívia da mulher se conhece em seus olhos eem suas pálpebras." "Da mulher sai toda a maldade do homem." "Não dê à mulherpoder sobre sua alma." "O trato com a mulher alheia acende como fogo." "Todamalícia é pequena ante a malícia da mulher." "Se a mulher tivesse autoridade, seriacontrária a de seu marido." "Da mulher nasceu o pecado e por ela morremostodos." "Não esteja jamais de assento com a mulher de outro." "A mulher para ohomem velho é como ascensão arenosa para velhos", e outras que, de passagem,demonstram tão discutível moralidade da Bíblia mosaica quando toma literalmentee não como fábula ou como símbolo, e convencem de que o tal livro não é obramas sim de tempos muito posteriores e de gente muito avançadas pelo pendenteabaixo da degeneração que é própria de povos envelhecidos, já muito distanciadospelos séculos daquela pureza primitiva dos pré-semitas nórdicos e indo-europeusque criaram esse tipo clássico e ideal de mulher do que logo se quis envaidecer oCristianismo, sem recordar sequer que tantos séculos antes dele o Código do Manúe outros iluminaram com seus divinos preceitos esse caminho não sempre de

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espinhos e tantas vezes de flores como percorre o homem completo, aquele que é apersonificação augusta do lar ariano, "homem completo que se compõe do varão,da mulher, do filho e dos queridos defuntos...".

E se deixarmos aos semitas bíblicos e recordamos a esotros ocultos semitassob capa ária que pulularam pelo chão da Hélade, o contraste de nosso anteriorparalelo segue sendo o mesmo.

A mulher grega - diz o próprio Cantú - embora emancipada da servidão doOriente - o Oriente ulterior, não do primitivo à o que tantas vezes aludimos -,estava muito longe de possuir a dignidade que manteve entre os setentrionais. Eraconsiderada entre os jônios como um ser útil, mas imperfeito e como mero objetode sensualidade: daqui a tão censurável consideração das cortesãs. Entre os dórios aforça moral da mulher degenerava em ferocidade: Calipso, segundo Hornero, éuma amante furiosa: Helena e Paris, não nos oferecem senão cenas libidinosas; atéa mesma despedida de Heitor e de Andrômaca, a única passagem da literaturaclássica que se aproxima das mais puras cenas domésticas, recebe todo seu encantodo pequeno Astianax, quer dizer, da ternura para os filhos. Briseida é escrava, e osnumerosos pretendentes do Penélope desejavam todos possuí-la; mas agradá-lanenhum. O amor ocupa um lugar muito insignificante e secundário nas tragédiasgregas, enquanto que as injúrias contra as mulheres chegam a um grau tal degrosseria, que logo que pode reunir-se com a clássica finura ateniense. NasSuplicantes, do Eurípides, Etea, mãe do Teseu, diz: "uma mulher prudente não faznada por si, mas sim deixa fazer aos homens". Ifigênia, exortando-se para nãoexpor a vida do Aquiles, exclama: "A vida de um só homem é mais preciosa que ade muitas mulheres." Nos Sete diante do Tebas, de Ésquilo, injuria-se às mulheres;em Las Euménides, Apolo arrebata às mulheres seu título mais legítimo ao respeitoe ao amor, dizendo: "a mãe não é a que engendra ao ser chamado filho, senão amera ama-de-leite do germe depositado em seu seio; o pai, em troca, é o verdadeirocriador; a mulher recebe o fruto, e se agradar aos deuses, conserva-lhe". O amor doSafo, imitado pelo Cátulo em sua célebre ode, não respira mais que a embriaguezdos sentidos, tal como uma mulher de algum pudor não se atreveria a confessá-lo, eo segundo idílio do Teócrito a descreve ainda mais descaradamente; Eurípidesexclama: "Como tinha que conservá-la castidade no coração de uma donzelaespartana acostumada a sair da casa paterna para mesclar-se nos exercícios da luta eda carreira com os jovens sem outro traje que uma túnica curta e flutuante?...". Eraimpossível que os costumes femininos se conservassem puros com o culto dePriapo, as orgias do Baco e da grande Mãe, onde era santificada a embriaguez elevada em triunfo sob as formas mais expressivas a lascívia, isso sem falar dasprostituições devotas e das hospitalares. Solón erigiu um templo a Vênus com odinheiro recolhido das matronas que regentaban os lupanares (Ateneu XIII, 3);Píndaro ordenou, em honra de sua esposa Melisa, que todas as corintias fossemprocesionalmente nuas ao templo de Vênus Afrodita; Aristófanes revela no teatrotodas as malícias femininas e os refinamentos da libertinagem em termos tãopositivos, que quase chegaram a apresentar sua consumação (Festa do Ceres, ato II,e Lisistrata, ato I, cap. III). Que mais? O mesmo Sócrates, tendo ouvido falar de

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certa Teodata que expor seu formoso corpo como modelo aos artistas, conduziu aseus discípulos a vê-la na oficina e ali a felicitou pelos novos paroquianos que oselogios daqueles lhe procurariam, lhe dando ao par lições sobre o modo de atrair asuas redes os amantes

(Xenophon, Entretiens memoráveis, III, 91)... A escravidão deixava o corpoda mulher escrava ao arbítrio de seu senhor, bem fosse esta a filha do sacerdote daCrisa, a esposa do Heitor, a profetisa Casandra, bem fosse compradaverdadeiramente nos mercados dos templos. Os lidios do Sardis, tendo reduzido aEsmirna até a extremidade de render-se, declararam que não se retirariam até quefossem entregues as mulheres dos cidadãos; uma bela escrava liberou a estas dooprobio, propondo se enviasse a suas companheiras de servidão, obtido o qualenervaram elas de tal modo aos sitiadores, que foram depois facilmente derrotados,em memória do qual se instituiu uma festa."

"Em Atenas - segue dizendo Cantú -, aquela elegância deliciosa delinguagem, de maneiras e de vida, que se chamou aticismo, amoldava os ânimos aosgozos dissipados”. “Temos - dizia Sólon - cortesãs para o prazer, concubinas paraos cuidados pessoais e algemas para que nos dêem filhos e vigiem o interior dacasa." Em seus discursos, o grande orador Demóstenes nos faz conhecer asartimanhas empregadas pelas matronas para atrair os jovens à má vida. Poetas eartistas trabalharam para imortalizar tais desgraçadas, e suas famosas obras deescultura e pintura representavam as mais memoráveis cortesãs. A vitória daSalamina foi atribuída a seus rogos; e Estrabão chama Santos aos membros dasmeretrizes de Arrepie (lib. VI, pág. 272). Alcibíades se fez retratar nu em braços demulheres nuas também, e Temístocles se gabava de correr por Atenas com quatroconcubinas em seu carro. A mãe de família, ao contrário, não era nada. O oradorHipérides dizia que para sair de casa a mulher devia ser de tal idade, que, ao vê-la,perguntasse-se não de quem era esposa, mas sim de quem era mãe. Como nãosentir-se humilhada a mulher do lar, já ante a multidão de escravas que brindavamcom a variedade ao dissipado marido, já ante as cortesãs que, pintado o rosto,lábios, sobrancelhas e cabelos, pululavam pelas ruas ostentando seus encantos;celebrando reuniões, onde faziam ornamento de seus talentos; mostrando depoissua beleza à vista de todos, seja nas oficinas dos grandes professores, seja nosbanheiros ou na borda do mar? Aspásia, a dominadora de Péricles, professora doAlcibíades e do Sócrates; Lastenia, discípula de Platão; Freei, que pretendeu edificarao Tebas com o preço de seus amores, faziam assim o panegírico do vício, e eramum constante estímulo para que as matronas fugissem das virtudes domésticas, daobscura ignorância e da simplicidade, produtos do solitário silêncio dos gineceus.Glicera a hetaira foi imortalizada pelo Menandro, e Demo foi, como Cleópatra,amada por três gerações de reis: Antígono I, Demetrio e Antígono Gonata. Osdetalhes, mais que alegres impudicos até o cinismo, eram oferecidos nos teatros deAtenas. Andrômaca, cantada-a pela litada, não tem inconveniente em entender-secom Desejo muito, filho do assassino de seu marido, e Logo com Heleno.

Estas entrevistas da já degenerada Antigüidade clássica, que poderiam

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multiplicar-se até o infinito, contrastam terrivelmente com a primitiva pureza áriaque os Eddas, inspiradores das obras de Wagner, conservaram como ecos fiéis deuma idade mais feliz e mais pura: Idade de Ouro que terá que retornar à Terraalgum dia.

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CAPÍTULO XIIISIEGFRIED

A caverna de Mímico e as grutas iniciáticas - Os falsos pietismos da perversidade -A Espada rota - O Viajante - A forja de nossas paixões e a Espada doConhecimento - Quem pode unicamente forjar a Nothunga? - Os Murmúrios daSelva - O canto da Ave e seu Mistério - A morte da mentira piedosa humana e a daBesta - A escravidão dos mesmos deuses - "O habitante do Umbral" - Wotan eErda - "Desde que nasci um velho se interpõe em meu caminho". A Lança rota - OSiegfried humano e sua divina Brunhilda - O único e verdadeiro medo do quenunca temeu - O hino da Redenção pelo Amor - O Siegfried e os Ensinamentosdos Mistérios - O olho de Wotan - A espada vence simbolicamente ao ouro, à taçae ao grosseiro - As forças do Mal e sua atuação no mundo - Manushyas e Titris -Os condenados eternos - O verdadeiro simbolismo do Satan-Lúcifer - Prometeu-Sígfredo - As Aves mágicas - Um conto das mil e uma noites - Os Monstros daslendas - Concordâncias orientais do mito de Siegfried - A lenda espanhola doJuanillo o Urso ou de Hércules - O divino e eterno hino ao Fogo - O Fogoencantado, no livro de Dom Laniarote do Lago, e seu Mistério transcendente.

Estamos na caverna de Mímico, o gnomo irmão do Alberico queantigamente fabricou o elmo encantado sem alcançar a compreender suas virtudes.Duas aberturas naturais conduzem ao bosque, e à esquerda se vê uma forja em cujabigorna o perverso nibelungo trata em vão de soldar os dois pedaços da famosaNothunga, a Espada do Conhecimento intuitivo, a espada invencível que Wotanpartisse em dois ao golpe brutal de sua lança na luta entre o Sigmundo e Hunding.Mil vezes conseguiu soldá-la o miúdo com grande firmeza, desejoso de matar comela ao gigante Fafner e lhe arrancar o Tesouro perdido; mas, como para tamanhaempresa lhe falta o valor, hei aqui que cuidou que criar, com tenra solicitude, emsua caverna, ao menino Siegfried, o filho de Sigmundo e Siglinda, que esta, sob oamparo da walkyria Brunhilda, tinha dado a luz junto à caverna do monstro,fugindo da maldição de Wotan 1.

A correlação entre o mito escandinavo e o mito grego continua. Vejam aqui, por exemplo, aSiglinda, mãe infeliz de Siegfried, fugindo dos furores paternos do deus Wotan, e dando a luz aum herói ao lado da cova de Um monstro, único lugar seguro contra a perseguição daquele, e amãe de Hércules dando a luz a este herói em uma ilha recém surta dos mares, e que, como tal, nãotinha podido participar do juramento de não hospitalidade que tinha feito emprestar a toda a terraa rancorosa madrasta Juno, a Fricka dos gregos. Também vemos o menino Júpiter ser criado pelacabra Amaltea, como Siegfried como Mímico, na ilha do Chipre, longe da perseguição a morte deseu pai Cronos, e ocultos seus choros com o ruído dos Coribantes, como os choros do meninoSiegfried eram ocultos pelos rugidos do monstro Fafner em sua caverna.Quanto à Espada partida, de Sigmundo, convém não esquecer o que no capítulo anterior dissemoscom carrego ao Dom Lanzarote do Lago, e em relação à cova de Mímico e da cova onde Siglinda

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foi levada pela walkyria para que desse a luz ao Siegfried, é oportuno recordar também que elanão é mais que a eterna Gruta ou Templo da Iniciação: a Guaca sagrada, que povos ignorantessucessores transformaram ao fim em enterros - ao modo como também se verificou na Idade Médiacom os templos cristãos-, segundo já vimos em De gente do outro mundo (capítulo X) ao nosocupar dos cavaleiros do Dourado, que diria nosso amigoD. Ciro Baio, e de suas façanhas depredadoras nas regiões do Madalena, o Napo, o Amazonas,etc. Tal gruta é deste modo a das Sete Covas nahoas do Chicomolzoc, na confluência do Zila e oAvermelhado, na Sonora mexicana, ou as legendárias Covas do Aztlan, do Pacaritambo e outrasdas que por tão extenso nos falam Montolinia, Duram, Chavero e outros ilustres historiadores doMéxico; covas todas ou templos, ao modo de quão infinitas vai hoje descobrindo a pré-história,onde unicamente pode nascer com a Iniciação no grande mistério dos jinas essa raça dos Siegfriedsheróicos ou Cavalheiros do Ideal, dos que sempre esteve tão necessitado o mundo.

O menino, êmulo de seu pai o welsungo, sai um verdadeiro Hércules, poisaquela espada soldada por Mímico, que teria resistido sem romper-se nas mãos deum gigante, volta-se sempre para partir em dois pedaços, qual débil cano, em suasmãos infantis. Mímico, desolado, abandona, ao fim, seu trabalho, cheio dedesalento, e a pouco chega de sua caça o rapaz Siegfried trazendo consigo umfilhote de urso, que se entretém em lançar contra o gnomo, rendo-se de suacovardia.

Em vão o nibelungo procurou com maternais solicitudes fazer-se amar dojovem herói, a quem criasse com a perversa esperança já dita de fazer dele e de seuforte braço a arma adequada para matar ao monstro e apoderar-se de seu Anel. Umsecreto instinto do jovem lhe faz odiar a seu protetor sem compreender a causa.Preocupado com o mistério de sua origem, quer Siegfried que Mímico o explique;mas o gnomo evade sempre a resposta concreta, até que, ao fim, depois das brutaisameaça e entendimentos do herói, narra-lhe detalhadamente a triste historia de seunascimento e sua ascendência, que no capítulo anterior já vimos. A cena em queSiegfried obtém por força arrancar de Mímico tamanha revelação é muito notável,porque simboliza a hipocrisia e a perfídia com que os Poderes do Mal, com a vilãintenção de nos perder, balançam em mais de uma ocasião nossos berços. Ela diz:

"Mímico - Sempre está grunhindo... Sua ingratidão é bem negra. Perverso!Assim que algo te desgosta esquece todo o bem que recebeu. Não te lembra dosmotivos que tenho para seu reconhecimento? Deve obedecer com gosto a quemsempre foi bom para ti. Ah! Não quer ouvir-me?... Quererá comer? Aqui assourecente. Quer caldo? Acabo-lhe isso de fazer..." E depois que Siegfried lherechaçou brusco atirando de um tapa assado e marmita, continua com tristeza: "Talé o pagamento de meu carinho e o insultante salário de minha solicitude. Recém-nascido, quem te criou? Lombricilla, quem te vestiu? Serpente, quem se abrigou?Quem lhe deu de comer e de beber? Quem te cuidou como a sua própria pele?Quando cesceu, quem lhe fazia a cama para que dormisse bem entre folhas frescas?Quem te tem feito brinquedos? Quem forjou sua sonora trompa? Quem ria alegrepara te contentar? Quem desenvolveu sua razão com sábios conselhos e instruiu

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seu espírito? Quem fica aqui trabalhando, extenuando-se, enquanto você vagas pelobosque, senão eu, pobre e velho gnomo?...

"- Ensinaste-me muito, Mímico – lhe responde Siegfried -; e todo o aprendique ti, tudo... Menos a te sofrer. Oferece-me de comer ou de beber? O asco mefarta... Prepara-me um bom leito para descansar? Pois dormirei mau. Quer instruirmeu espírito?, fico surdo e prefiro seguir sendo um besta... O menor de seusmovimentos ou gestos me incita a saltar sobre ti, monstro! E, te apertando agarganta, te afogar... Assim é como aprendi a te sofrer, Mímico... Enquanto isso,posto que conhece tanto, me ajude a compreender uma coisa em que em vãoreflito... Por que eu, que, para me separar de ti, fujo sem cessar ao bosque, voltopara meu pesar? Explique-me isso:

-Isso te prova, meu filho, quão grato é Mímico para seu coração.-Não esqueça que não te posso sofrer; que prefiro ver cara a cara a qualquer

fera que te contemplar a ti.-É um defeito de sua natureza - continua Mímico -, de sua natureza

selvagem, que deve dominar... Os cachorrinhos clamam pela toca de seus pais; essesentimento se chama amor. Por isso tem sede de mim, porque me ama sem sabê-lo.Por isso volta para ninho de seu Mímico, como os passarinhos que não sabem voarvoltam para reclamação dos pássaros grandes... Eu sou a experiência, que vela porti, o pássaro grande que te chama.

"Bom, Mímico, posto que saiba tantas coisas - diz melancólico Siegfriedenquanto a orquestra evoca o tema do amor de Sigmundo e Siglinda -, me diga: porque os passarinhos piam chamando-se uns aos outros? É porque são macho efêmea? Não se separam nunca; fazem seu ninho, e quando os recém-nascidosbatem as asas, rodeiam-nos solícitos... O mesmo fazem todos os animais, até asbestas ferozes! Eu o vi. Por isso não Quito os cachorrinhos a suas mães... Poisbem, Mímico, onde esconde a sua fêmea? Onde está, para que eu a possa chamarmãe?

O que te passa, louco? Diz Mímico contrariado -. É um pássaro? Queignorante é!

-Recém-nascido, você me criou... Lombricilla, você me vestiu... Mas de ondesaiu esta lombricilla? De onde veio este recém-nascido? A menos que me tenhafeito sem mãe...

-Deve acreditar, sem investigar mais, tudo que eu te digo - objeta Mímico,encurralado-. Eu sou seu pai e sua mãe todo junto.

-Lembre, monstro! - Responde Siegfried -. Vi como os filhos se parecemcom seus pais. Fui ao arroio, e ali vi a imagem das árvores e dos animais, o sol e asnuvens...; Eu mesmo me contemplei, e vi que não nos parecemos; que sou muitodistinto de ti, tão diferente como um peixe resplandecente de um sapo imundo..., Eos sapos não são os pais dos peixes...".

Tal raciocina, como Siegfried, sempre a inocência contra os falsos pietismosdaqueles que a querem enganar à porta do lupanar, da casa de jogo, do botequim,da fraude... Ai! E até do convento...

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Posto já ao tanto, graças a suas ameaças, nosso herói a respeito de suaverdadeira e trágica origem, pede as provas de todo isso. O gnomo então contribuios dois pedaços da espada de seu pai, e o jovem, a sua vez, intima ao odiosonibelungo que, sem desculpa, para quando retornar de sua correria matutina, tenha-lhe já forjada, sem perda de tempo, a Espada mágica de seus maiores.

Quando o perverso gnomo, apavorado ante a ameaça de Siegfried, deixa-secair impotente junto à bigorna, aparece o deus Wotan, disfarçado de viajante,envolto em largo manto azul obscuro, a cor da mais alta espiritualidade, e na mão,como bastão, sua poderosa lança. Cobre sua cabeça um grande chapéu, cujas largasasas caem sobre seu olho gorado, pois o deus é caolho desde dia em que, desejosode beber as águas da Sabedoria no poço do Mimer, ou da Mnemósina, a deusa damemória ou luz astral que é o arquivo fiel de todos os sucessos do passado, teveque deixar em objeto um de seus olhos 1.

1 Este típico detalhe da lenda escandinavo-wagneriana é um eco infiel da verdadeira DoutrinaArcaica. O olho gorado de Wotan, com efeito, não era, sem dúvida, um dos dois olhos que dãovida e luz à fisionomia do homem, senão o terceiro olho, o Olho da Intuição, ou dos ciclopes, quealguns acreditam equivocadamente que esteve situado verticalmente sobre o sobrecenho, tal e comose vê em muitas imagens do Buddha no Museu Guimet de Paris. Sobre este terceiro olho, cujoresto, atrofiado hoje sob o crânio, é o "funil ou vergôntea pituitária e sua glândula pineal", podemver-se infinitos detalhes em A Doutrina Secreta, de Blavatsky. Dele se diz nos livros orientais quefoi o único olho, o olho astral e central das primeiras raças humanas, antes de desenvolver o sexo ecom ele a vista ordinária dos outros olhos gêmeos nossos. Dito olho se foi atrofiando lentamente,até desaparecer por completo sob o crânio e deixar de funcionar entre lêmures e atlantes, mas quevoltará a ser ativo entre as raças futuras, mais evoluídas que a presente, quando nossa hojenascente intuição assuma totalmente seu papel como faculdade a mais excelsa da Mente. Achamada visão astral dos sensitivos e hipnotizados está relacionada com dito terceiro olho, etambém todos os fenômenos conhecidos e por conhecer em relação à telepatia e transmissão depensamento a distância.A lenda tem também outros vários aspectos ocultistas. Mais adiante, o próprio Wotan diz: "-Graças ao olho que me falta vê o olho que me subtrai-", obscuro giro que alude ao Sol ou Oculus-mundi e a seu companheiro oculto, o sol conjugado, para nós invisível, ao qual se chamouastrologicamente Hermes ou Mercúrio - não o planeta deste nome é obvio -. Blavatsky diz, comefeito, deste último: "Mercúrio, como planeta astrológico, é de significado muito mais oculto queVênus, e idêntico à Mithra mazdeísta dos Mistérios; o Gênio ou deus estabelecido entre o Sol e aLua, e o companheiro perpétuo do "Sol de Sabedoria", Pausanias (livro V) o mostra tendo umaltar em comum com o Júpiter. Tinha asas para expressar que assistia ao Sol em seu curso, e erachamado o Núncio e o Lobo do Sol (o Welsungo) "Solaris luminis particeps". Era o chefe eevocador das Almas, o grande Mago e o Hierofante. Virgilio o descreve tomando sua vara (alança de Wotan) para evocar as almas precipitadas no Orco: tum virgam capit, hac anima Uleevocat Orco. É o Mercurius Aureus, o Xpu<roi//a?js' Ep/i)s a quem os Hierofantes proibiamnomear. Está simbolizado na Mitologia grega por um dos galgos vigilantes sempre que cuida dorebanho celeste, Sabedoria Oculta ou Hermes Anúbis ou Agatodaemon. É o Argos que velasobre a Terra, e que esta toma equivocadamente pelo Sol mesmo. O imperador Juliano orava todas

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as noites ao Sol Oculto, pela intercessão de Mercúrio, pois como diz Vossius, todos os teólogosasseguram que Mercúrio e o Som são um."O mito relativo ao olho que faltava ao Wotan, ou seja, a perda do terceiro olho da Intuição, temsuas correlações, como não podia ser por menos, nas mil e uma noites, naqueles três calendos, filhosde reis a quem vê no Palácio de ás Maravilha uma pobre mandadera, espécie do Domicio daorelha do Diabo, espanhola, em larga conversação com as três donzelas que simbolizam suarespectivas Psique. Todos eles são caolhos como Wotan, quer dizer, que perderam dito terceiroolho, graças a seus imprudentes aventura mágicas nas que débeis ou insensatos fracassassem. Asrespectivas histórias dos três calendos, como todas quantas de dito livro oriental teremos que ver aoseu devido tempo, são um curso de ocultismo, com cenas, que, de longe ou de perto, recordam as daTetralogia e as de todas as lendas de sua classe, dentro da lenda universal e Uma, poético véu daCaiba-a ou Doutrina tradicional perdidas.Todos os personagens desta índole são caolhos como Wotan, quer dizer, que longe de perder umdos dois olhos ordinários, desenvolveram por seus esforços e aventuras, o terceiro olho búddhico ouda intuição, de por volta da hoje atrofiada glândula pineal, sobre cujo assunto nos ocupamosextensamente em De Gente do outro mundo (cap. X).Quanto à cena, enfim, de Mímico e o Viajante Wotan, é a mesma acontecida entre Licaón, ohomem-lobo, e Júpiter.

O Viajante finge pedir hospitalidade a Mímico. O nibelungo, desconfiandoinstintivamente dele, a nega, mas o Viajante fica, decidido. "Minha experiência égrande, diz-lhe, porque girei muito sobre a casca do mundo: mais de um débito oremédio de suas torturas: interrogava-me, e minha resposta era seu prêmio; eporque falou de ciência, apostaremos, eu empenho minha cabeça. Tua é, se à forçade me interrogar não aprende o que precisa saber..."

Mímico, para desembaraçar do espião importuno, faz-lhe perguntascapciosas e aceita a aposta da cabeça de sua hóspede se não responder às trêsperguntas que lhe quer fazer e que são: A primeira, sobre quem pulula nasprofundidades da terra, ao que o viajante lhe descreve com absoluta precisão opovo dos nibelungos e toda a história do Ouro do Reno; a segunda, a respeito dequem é a raça que sobre a terra gravita, ao que o Viajante responde que a dosgigantes, ao par que descreve todas suas façanhas pelo Anel; a terceira perguntaversa sobre qual é a gente que habita nos topos nebulosas, e o Viajante descreve aWalhalla com seus habitantes e seus esplendores. O Viajante, ao informar commaravilhosa precisão a todo isso, mostra-se o mais perfeito conhecedor dos céus,da terra e do abismo ante o estupefato Mímico.

Triunfante assim o Viajante, pretende tomar a revanche contra Mímico, e faza sua vez outras três perguntas, sob a ameaça de lhe cortar a cabeça se nãoresponder a elas de um modo terminante e claro. Estas três perguntas são: pelaprimeira se inquire qual é a raça a quem Wotan, apesar de sua crueldade aparente,ama sobre todas as coisas deste mundo, a raça dos Heróis ou welsungos, a qual

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tanto perseguiu. A segunda pergunta versa a respeito de qual é a espada queesgrimida pelo Siegfried pode matar ao Fafner e recuperar o Anel. A ambasinterrogações responde com estranha precisão o nibelungo.

- É sagaz entre os sagazes - lhe responde o Viajante -, mas assim como o épara explorar ao heróico menino, lhe pondo ao serviço das ambições de umgnomo, será para responder a minha terceira pergunta? Diga-me, quem poderárefazer a Nothunga, fazendo-a ressuscitar de suas inertes partes?

Mímico fica apavorado, porque aquela pergunta do Viajante eraprecisamente o enigma à maturação açoitado por seus vãos esforços. “Devia meperguntar três vezes e às três perguntas tuas respondi-lhe diz com desprezo oViajante ao despedir-. Interrogaste-me sobre assuntos vagos, longínquos, semaparentar te interessar, hipócrita, por aquilo que te toca, entretanto, tão de perto:quão único poderia te interessar na verdade... Pois bem, só quem não saiba o que éo Medo poderá forjar de novo a Nothunga!... Quanto a sua cabeça, a deixo ao quejamais soube temer!", Disse, e partiu rendo da maldade ao par que da covardia doirmão do Alberico.

- O Medo, justamente é o que não lhe ensinei ao menino! -Diz desolado Mímico,quando vê partir triunfante ao Viajante e retornar ao jovem herói de sua caçada -.esqueci precisamente o único que me tivesse podido servir... Não soube me fazerquerer, como lhe ensinar a me temer?... E logo, voltando a sua anterior hipocrisia -Vêem, diz a este; quero te ensinar o que ainda não sabe, quero te dar a conhecer oMedo!... Não há sentido ainda na selva obscura, ao cair da tarde, nos sítiossombrios, quando ao longe tudo vibra, bordonea e surdamente murmura, não hásão - tido, repito, paralisar-se de repente todos seus membros horrorizados, turvar-se seus sentidos e palpitar acelerado seu pobre coração, como se queria saltar dopeito?... 1

A fundo conhecia sem dúvida Wagner a lenda escandinava, esse terrível mistério astral dosbosques e dos lugares abandonados, principalmente durante a noite. Quem não há sentido, comefeito, todo isso que Mímico descreve? Sem dúvida por isso quando a gente camponesa retornasolitária do campo, rompe instintivamente a cantar, ao tenor do adágio de que "quem canta suapena espanta", frase vulgar que mais parece uma observação ocultista que não um dito qualquer.Que estas linhas escreve tem feito observações sobre o particular, visitando de noite lugaressolitários longínquos ou sombrios, e conhece, por própria Experiência, o terrível combate que nossoser cerca com as entidades invisíveis, poderes das sombras com os que está a Humanidade maisescravizada do que parece. Não me atreveria a aconselhar sortes experiências ao leitor, senão comcerta parcimônia e cautela, porque podem conduzir, e não é conto, a cenas verdadeiramenteterríveis, como as descritas no Zanoni do Bulwer-Lytton, sobretudo em lugares onde se cometeuantigamente algum crime, como refere também dito autor em seu trabajito sobre A casa encantada.Necessitaríamos todo um livro para desenvolver este muito importante assunto do Medo e de suasrelações com a visão astral. A educação que nos deu no Ocidente, embora fomentadora naaparência do valor, não foi mas sim do Medo, quer dizer, do Ódio, começando com aquela

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hipócrita sentencia bíblica de que "o princípio da Sabedoria é o santo temor dá Deus", como se otemor, que é ódio, não fora absolutamente incompatível com o Amor, que é a única e verdadeirasabedoria. A doutrina oriental, pelo contrário, com um profundo conhecimento da realidadepsicológica, equipasse o medo e o temor ao ódio, porque só se odeia ao que se teme e só se teme aoque se odeia. Se, pois, temor e ódio são sinônimos e ódio é o contrário de Amor, ao pregar todos osgrandes Instrutores o Amor Universal, o Amor a todos os seres, e como base prévia o maisfraternal amor entre os homens, o que têm feito simplesmente é nos subministrar a chave mágicacontra o ódio, que é temor; e contra o temor, que é ódio, e, como tal, nos facilitar a verdadeiraespada Nothunga do Conhecimento transcendente. A mais sábia regra de conduta moral será,portanto, evitar, ponto por ponto, todo movimento de temor ou de ódio, seguros de que unicamenteassim caminhamos pelo caminho do Amor, verdadeira Escala do Jacob para subir até a CausaSuprema de tudo que vive e palpita no Universo. Agora se compreenderá melhor que nunca porque todos os grandes movimentos redentores do mundo, dos mais antigos Iniciados até ontem aRevolução francesa e hoje as doutrinas de Blavatsky, pregaram como base sine que non doverdadeiro progresso humano, que é valor e é rebeldia, o princípio amoroso da fraternidade,princípio, ai! Tão desconhecido pelas guerras, que se em certo modo parecem as apoteose do valor,não são, no fundo, senão as apoteose do Medo, com todas suas desastrosas conseqüências.

O menino, por isso se vê, não havia sentido nada de quanto dizia Mímico, ecomo se mostrasse ofegante por senti-lo, o gnomo pretende lhe conduzir à boca dacaverna do monstro Fafner, a caverna do Neidhole, o antro do Ódio e da Inveja,para que ao fim conheça o Medo; mas o herói não retrocede já um ponto em suaidéia fixa, e a todo transe quer ter em suas mãos a Espada de seu pai, a únicaherança daquele ser querido a quem não conheceu nunca, espada cujarecomposição verdade e sem tardança reclama ameaçador do matreiro nibelungo.

Uma vez mais, a costa do mais desonesto trabalho estéril, contribui comMímico solidamente recomposta a Nothunga; mas o herói a parte contra a bigorna,como um frágil cano, até que, exasperado pela inépcia do nibelungo, cujo trabalhoinútil é recordado na orquestra pelo mais fatigante e vácuo dos motivos, fica aforjá-la por si mesmo, que é o que tem que fazer todo homem, redimindo-se porseu próprio esforço da Grande Ilusão ou Maia que nos rodeia. Para isso, Siegfriednão trata de tentar novas soldas do velho, como Mímico, nem "joga seu vinhonovo em odres velhos", segundo a sentença evangélica, mas sim primeiro lima omaterial de sua espada reduzindo-a a átomos impalpáveis, porque de pó e névoacósmicos se condensaram os mais colossais astros; submete logo ao fogo depurificação as limagens, detritos kármicos dos desacertos do homem em passadasvistas; molda depois o conjunto nesse copo ideal que é Cálice augusto de todossuas dores purificadores, e quando tem já lavrada assim sua própria Arma, pole-amais e mais no roce cruel da vida, roce que às vezes é também prova, embora nãopoucas seja castigo, e quando já tem assim em suas mãos a Espada da Sabedoria,que é Amor ao par que Conhecimento, pode, como um mago que chegou a ser,atacar para bem de seus semelhantes os mais aparentes impossíveis. O "canto daforja" ressona na orquestra, canto tão distinto por sua fecundidade do estéril da

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Forja de Mímico, enquanto que o nibelungo, gênio do Mal, medita impotente arespeito de quão médios tem que empregar em matar ao jovem, tão logo comorealizo sua futura façanha, de acabar com o monstro, que tal é o destino de todosos heróis: o de evocar do pérfido Mundo das Sombras a quem tão temerariamentedesafiam, as Forças Negras contrapostas, que terão que lhe combater a ele a suavez, para que se cumpra a lei de ponderação de forças contrapostas de ação e deinerte resistência que com sua luta eterna asseguram o mundo. Siegfried forja assima Espada que defende à Vida, e Mímico condimenta a beberagem traidora contra aVida mesma. Siegfried, dono já de sua espada, a que entoa bélico canto de triunfo,prova o invencível poder dela, e igual a Hércules com sua maça partisse em duas aantiga montanha libio-ibérica abrindo passo a dois mares por entre o Calpe e Ávila,nosso herói parte triunfal de um só talho a bigorna da forja de Mímico...

Completo fica deste modo, com a Espada de Siegfried e a Taça envenenadaque prepara Mímico, o cartomântico simbolismo, por dizê-lo assim, da Tetralogiade Wagner. Antes vimos, com efeito, o poder onipotente do Ouro em mãos doAlberico; depois vimos também o não menos terrível poder do Grosseiro ou Maça,já do Grosseiro Um ou Ás do Bastos da lança de Wotan, partindo em duas aespada de Sigmundo, já no dois do Bastos das maças dos gigantes Fasolt e Fafner.Agora vamos ver a onipotência da Espada, para cair logo, no ocaso dos deuses, soba onipotência da Taça, aqui pela Espada vencida, mas ali vencedora com suatraição, até o momento da grande catástrofe final com que termina a Tetralogia,catástrofe por virtude da qual a Taça volta a cair, com os deuses todos, sob aonipotência do Ouro Primitivo, ao ser devolvido o anel fatal do nibelungo àssagradas ondas do Pai-Reno, ou seja, às fecundas Águas Genesíacas, de onde vaivoltar a sair um novo Mundo...

Quem pode duvidar, depois deste eloqüente simbolismo, que nos jogos decartas, qual em todos outros jogos, há oculto um grande fundo simbólico e atéhistórico, que nossa ulterior investigação acaso chegue a esboçar? As cartas antigas,tão antigas quanto já as vemos nos Códices maias e nos papiros egípcios, e acoordenadoria matemática, a grande adivinha do Destino, são irmãs as gema, semdisputa.

* * *

Wotan viajante é outro símbolo do Judeu errante, ao que já aludimos aotratar do Navio fantasma. "De deuses é viajar", podemos dizer aqui, porque, comefeito, nada instrui tanto como as viagens depois do estudo. Daqui que todos osjovens gregos e latinos distinguidos fizessem pelo menos o périplo doMediterrâneo uma vez terminados seus estudos; cruzada-las foram êxodos deviajantes em massa para o risonho Oriente que conduziram, ao par que os mildescobrimentos que caracterizam ao Renascimento, o germe de todas asnavegações de portugueses e espanhóis no século XV, século chamado pelo

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Castelar "o Abril da história contemporânea", recém saído o mundo dos terrenosmilenarios e da barbárie medieval. Daqui, das viagens também, data atranscendental embora pouco reconhecida importância que tiveram na Idade Médiacomo idade toda barreiras de isolamento, aqueles peregrinos, não sempreignorantes, que, sob pretexto de visitar tal ou qual templo deste ou o outro limite,percorriam o mundo com seu estribilho, sua mochila e suas conchas, servindo depábulo excitador às fantasias das pessoas sedentárias com seus relatos maravilhosose maravilhosamente feitos às famílias de suas hóspedes nas noites de inverno aoamor da luz, e eram escutados com aquele embevecimento de hipnose artística comque antigamente fossem escutados pelas multidões os errantes bardos e seus cantosossiânicos, nos que está a alma das nações desaparecidas. Fator decisivo do trânsitoda Idade Média à Moderna o foi deste modo a incompreendida grandeza de heróissemi-iniciados e videntes como Marco Pólo, Rubruquis, Colombo, Magallanes eBasco dá Gama... Possivelmente quando nos afastamos com as viagens dos lugaresque habitualmente freqüentamos, deixamo-nos atrás quantas astralidades grosseirascercam e curvam nossos viveres, como se aderidas estivessem elas aos lugares quenos são familiares em nossas rotinas eternas.

Por outra parte, sendo irmãos todos os homens, e sendo a terra uma meraprovíncia, de um sistema planetário logo que conhecido mais que de nomeie emsuas remotas lonjuras, o viajante comercial, guerreiro, cientista, místico ou fugitivodesempenha no grande organismo da Humanidade o papel que às fibras deassociação entre célula e célula nervosa atribui a histologia, e daqui sem dúvida, ocaráter sagrado que na Antigüidade rodeasse e o atrativo de curiosidade que aindarodeia hoje e rodeará sempre a todo viajante. Os mais famosos ocultistas, qualPitágoras na Antigüidade e Blavatsky nos tempos modernos foram por isso grandesviajantes que libaram ensinamentos em todos os rincões do mundo onde infinitostesouros de emoção, de ciência perdida e de lembranças acharam refúgio... AAmérica científica assim é Humboldt.

As Forças do Mal, mercê disto, mostram particular esmero em isolar todo opossível aos homens, separando-os em nações, povos, partidos, credos, raças,castas, cores, nacionalidades, etc. (além do terrível abismo do sexo), com barreirasde línguas múltiplos, alfândegas, protecionismos, militarismos, etc., distinguindo-senisso, por certo, mais que ninguém de tempos atuais nem pretéritos, as gentechamadas hoje piedosas, as que pregam às nações fortes nacionalismo em vez deHumanidade uma, solidária e internacionalizada; às nações mais débeisregionalismo destruidor que loja às decompor em seus fatores velhos que soldasseum maior ideal comum, e logo dentro já de cada região o bairrismo v dentro decada localidade o bairro aristocrático ou o democrático até parar não já noexclusivismo e desconfiança recíproca de família a família com essa falsa cortesiaque está acostumado a chamar-se às vezes boa educação, senão no mais perfeito eselvagem dos egoísmos. Mas, Oh divino poder da Força do Progresso! Taisobstáculos opostos a sua marcha expedita, o que fazem é transformar não mais emoutras energias mais intensas sua força evolutiva, como quando à corrente elétrica atransforma em calor e em luz lhe interpondo resistências adequadas. Assim vemos

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todos estes letais exclusivismos combatidos pelas leis que cada vez estão maisinternacionalizadas com os correios, ferrovias, telégrafos, telefones e rádios;legislação comercial, federações operárias, políticas, científicas, etc.; banca universale tantos outros meios que não são em si senão novos caules possantes da grandeÁrvore da Vida, que o monstro das Forças Negras corrói sem cessar por suas raízescomo aquele monstro Idrasig das lendas nórdicas corrói as raízes de Fresno doMundo, pretendendo em vão fazer que homens e coisas retornem às formas antigasque o progresso definitivamente abandonou.

* * *

O estéril trabalho de Mímico em sua forja, é como o de todos os homens,por instruídos que sejam, se estiverem faltos de espiritualidade. Na DoutrinaArcaica, simboliza também o chamado Fracasso dos Poderes Criadores. Todas asteogonias pintam a estes logoi, como esforçando-se por dar ao Homem que ia secriar, Espírito Consciente e imortal que só pode refletir-se em Emana ou a Mente.Admiravelmente poéticas são as frases com que as Estâncias de D'zyan pintam essesupremo momento em que o homem recebesse a mente:

Depois dos Bhuta ou homens sem Forma nem Mente da Raça chamada porisso Chhaya, nasceram os Manushya. Como se formaram os Manús ou Homenscom Mente? Os Pitris (ou pais) chamaram em sua ajuda a seu próprio Fogo, que éo Fogo Vital que arde na Terra. O Espírito da Terra chamou em sua ajuda ao FogoSolar. Estes três, com seus esforços reunidos, produziram um bom Rupa (corpo).O homem, assim criado, podia estar em pé, andar, correr, reclinar-se e voar.Entretanto, só era um Chhaya, uma Sombra sem Sentido... O Fôlego divino queemanasse nele necessitava uma Forma: os Pais a deram. O Fôlego necessitava umCorpo Grosseiro: a Terra o modelou. O Fôlego necessitava o Sopro da Vida; osLhas Revestir o exalaram em sua Forma. O Fôlego necessitava um Espelho de seuCorpo: "Nós lhe damos o nosso!" - Disseram os Dhyanis. O Fôlego necessitavaum Veículo de Desejos. "Tem-no!" - Disse o Exaustivo das Águas. Mas o Fôlegonecessitava uma Mente para abranger o Universo. "Não podemos dar isso!" -Disseram os Pais. "Jamais a tive!" - Disse o Espírito da Terra. "A forma seriaconsumida se eu lhe desse a minha!" - Disse o Grande Fogo... O Homempermaneceu um Bhuta vazio e sem sentido... Assim deram Vida os Sinhuesos aosque se converteram em Homens com Ossos na Terceira Raça... Os Filhos daSabedoria, os Filhos da Noite, prontos para reencarnar, descenderam... Parasacrificar-se dando sua Mente ao Homem... Então os homens foram dotados deEmana, e viram o pecado dos Sem Mente.

Isto nos traz insensivelmente ao mito por excelência de todas as teogonias;ao Mito da Rebeldia, ou de Os Angeles cansados, esses titãs que se atrevem a lutaraté com os deuses, como aqui vai logo a lutar Siegfried com o deus Wotan empessoa, e que - puramente semitas em sua degradação, porque, segundo MaxMüller, as nações árias não têm diabo - estão personificados pela obra wagnerianano Siegfried quando luta com sua espada e com o próprio Wotan, e com o quebra

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em pedaços a Lança dos Pactos, símbolo da tirania das coisas mortas do passado.Por isso, antes de chegar a esta viril cena da Tetralogia, vamos falar dos rebeldesmíticos.

Acabamos de ver na Estadia D'zyan o fracasso dos Poderes Criadores aotratar de formar o homem. Juntas as forças todas do Sol, da Terra e da Lua, astrosaos que devemos todos nossos elementos componentes, como hoje não ignora aciência, o primeiro homem era uma formosa besta desprovida de mentalidade. AHumanidade, menina como o tenro infante antes de ser homem, pôde viver assimlongos evones em uma inocência feliz, livre de dores, de esforços e depreocupações, estado paradisíaco ou inconsciente Idade de ouro que não há poetaque não a tenha cantado, nem religião que não nos fale dela 1. Os homens semmente eram levados da mão, como meninos, pelos Poderes Superiores, e então simque era certo que os deuses andavam sobre a terra e se comunicavam com oshomens, preparando-se a lhes dar, assim tivessem mente, as primeiras invenções,essas que não superamos nem superaremos jamais, alma de quantas máquinastenham podido inventar nossas idades cultas ulteriores: a roda, a alavanca, o planoinclinado, o martelo e demais máquinas primeiras que vemos nos tratados deMecânica e que não temos feito senão complicar ou multiplicar depois. De taishomens divinos há milhares de referências no mito universal, sob os nomes deOsíris, Cadmo (Adam-el Kadmori), Caín, etc., etc., protótipos eles dos grandesRebeldes que cometeram o enorme crime de dar sua Mente ao homem, ou seja, asimbólica Maçã do Paraíso, das Hespérides ou da Pippala, o doce fruto proibido doPensamento, que os deuses, ciumentos por sua hegemonia, queriam conservar paraeles sozinhos, nem mais nem menos que aconteceria com os homens se aquelespoderes tratassem um dia de dar idêntico dom aos animais que nos são inferiores.

Por isso as teogonias nos pintam como castigados a esses logoi divinos quese sacrificaram, qual Prometeu, para dotar de Espírito consciente ao homem doinfantil paraíso primitivo. O mito universal os considera por isso como fracassados,castigados e cansados, ao ver-se obrigados por sua própria e abnegada vontade aviver com seus protegidos nesta região inferior, infira, inferno, que se chama nossaTerra, durante uma eternidade, quer dizer, durante um tempo longo e indefinido",em meio das Trevas da Matéria, dentro do homem animal que a Terra moldou... OsPais da Igreja, em parte por ignorância destas verdades sublime, em parteintencionalmente, tiveram a bem o desnaturalizar este gráfico símbolo, e assim seforjou o ensino mais imoral e mais cruel com que a indústria eclesiástica pôdetiranizar aos homens, com o Medo dos Medos, esse mesmo que Mímico queria, emsua perfídia, que Siegfried aprendesse: as Trevas da dor de seu espontâneo sacrifíciose transformaram industriosamente pelas cobiças sacerdotais, e até pela mesmaincapacidade de compreensão das gente, em um inferno material, cujas mesmaschamas ardentes não eram senão o fogo animador e purificador do Manasa, do

1 A pré-história do homem não é a barbárie, senão a inocência - diz o Visconde da Figaniére -,a selvageria é um estado post-civilizado e de caída ao divorciá-la intelectualidade daespiritualidade.

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Deva ou Anjo encarnado na Terra, verdadeiro inferno ou lugar inferior para suaexcelsa natureza. Da Voz da razão e da Ciência que impulsiona a comer do fruto doPensamento, fez-se, a sua vez, odiada-a Serpente tentadora, o Anjo Cansado e oDemônio. Tal deveu cair, pela maldade dos poucos e a ignorância dos muitos,aquele divino Lúcifer, Daimon, Quetzalcóatl e Vênus, a quem dirigisse Isaías aquelecântico de puro misticismo que começa: "Como tem cansado você, Oh Luzeiro daManhã! Que parecia tão brilhante ao despontar a Aurora?..."

Nos seja perdoado o símile: há um momento da vida dos homens ou dospovos em que é preciso o mais heróico dos sacrifícios: o dos Horacios e Curados, odo Régulo em Cartago, o de nosso Eloy Gonzalo, o herói do Cascorro, e miloutros. O herói se lança voluntário ao sacrifício: chega, realiza a ação heróica quesalva a seu povo e é retirado, já cadáver, pelos seus; todos aplaudem, admiram,divinizam a abnegada ação de dar sua vida por algo grande que eles não têm quedesfrutar; mas hei aqui que um animal observador, de tantos como abundam emnossas fábulas infantis, urso, zorra ou asno, está contemplando desde não sei ondea sublime cena que ele interpreta deste modo, entretanto: "hei aqui que agarraram aum homem e, sem dúvida, por seus muitos crimes, os seus lhe condenaram a serimolado por seus inimigos, ou, separou-se dos sua por rebeldia e tem cansado noabismo inimigo como justo castigo de abandonar o tranqüilo céu dos seus..." Tal éa linguagem de nossa teologia ao uso ao falar dos Rebeldes, e tal é o julgamento, ai!Que lhe merece o mais augusto e primitivo dos dramas de redenção, a Queda dosAnjos, e se afundarmos um tanto na psicologia de não poucos teólogos egoístas,incapazes de sacrificar-se por nada nem por ninguém, o julgamento que lhesmerece a mesma redenção pretendida operar pelo Profeta do Nazaret, conforme édura e inquisitorial sua conduta para os livres vôos de um Pensamento religiosoredimido de suas tiranias...

Massey desbaratou irrefutavelmente os argumentos de Ginness em uma desuas Conferências sobre a queda do primeiro homem. Diz assim:

"Aqui, como antes, a Gênese não começa pelo princípio. Anteriormente àprimeiro casal fracassaram e caíram sete entidades, chamadas pelos egípcios "Filhosda Inércia" (oito com a mãe), que foram arrojados do Am-Smen ou paraíso.Também a lenda babilônica da criação fala dos Sete Reis Irmãos, análogos aos SeteReis do Livro da Revelação e às Sete Potestades inanimadas ou Sete anjos rebeldesque acenderam a guerra no céu, assim como também aos Sete Crônidas ouVigilantes que foram formados de um princípio no interior do céu, cuja abóbadaestenderam separando o visível do invisível, identicamente à obra dos Elohim noLivro da Gênese. Os Sete Crônidas são as Potestades elementares do espaço ouGuardiões do Tempo, de quem se diz que "seu ofício era vigiar nas estrelas do céu,mas que não o cumpriram", por isso fracassaram e caíram. No Livro de Enoch, osSete Vigilantes do céu são estrelas que desobedeceram os mandatos de Deus, e por

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isso ficaram depostas de seu assento até a consumação de sua culpa ao término dogrande ano do mundo, isto é, do período de precessão, quando todo se restaure erenasça. O Livro de Enoch considera as sete constelações depostas como as seteresplandecentes montanhas em que se assenta a Dama Escarlate, e a Cabala falados dois motores do egoísmo, que são o orgulho e a presunção, que se dizdespovoaram o céu de uma terceira parte de seus habitantes e também de umaterceira parte das estrelas, ou seja,que um terço da hoste dos chamados Dhyanis ouArupa foi simplesmente condenado pela lei do Karma e da evolução a renascer naterra, até apurar a última gota do cálice de amarguras de fazer pensantes às astraisestatua dos homens."

A degradação dos deuses em demônios não é mito exclusivo do cristianismo,mas sim aconteceu igual com o zoroastrismo e bramanismo e até com o exoterismoesquento. Os Suis que obtêm sua independência intelectual, lutam com os Suis quecarecem dela e se convertem em Torra ou não deuses esotéricos, luta como a doslobos ou welsungos wagnerianos com os cães da linhagem de Hunding.

Como diz muito bem Blavatsky, a quem seguimos em todas estas idéias, osvulgares adoradores da casca religiosa esotérica são os que têm feito demônios aosAnjos de Luz, aos Torra, ou melhor, Ahuras (auras, fôlegos ou sopros) do EspíritoSupremo; a primeira condensação cósmica da Mente Universal; a Faíscavivificadora do animal humano; os Divinos Rebeldes, sem os quais a evoluçãocíclica se teria realizado de um modo inconsciente; nossos Salvadores, chavesuprema de muitas alegorias e da força do contraste entre os dois opostos pólos doEspírito e a matéria, como já esboçamos ao nos ocupar do simbolismo da walkyria,para ser fundidos juntos com o fogo da própria experiência consciente, única razãoda vida. São os Titãs, enfim, ou Tit-Ain, "filhos das fontes do abismo caótico", nasmais antigas teogonias não corrompidas ainda pelas idéias degradadas de um“Dragão mau”, vencido por um Deus Sol; os Aletes, os Kabirin, os Rishis filhos doCronos-Saturno (o Tempo) e de Réu (a Matéria), os mais altos Pais, Apitasse ouPitris; os Arkites ou Arkontas dos hinos órficos, os primeiros Prajapatis: Sanaka,Sanandana, Sanant-Kumara ou Sanatsujat ou coletivamente Satã.

E já que estampamos este tão aborrecível nome para os ouvidos vulgarespiedosos, bom será consignar também que o verdadeiro Satã da Doutrina Arcaica éjustamente o contrário do que os teólogos, qual Dê Mousseaux e o Marquês doMirville, supõem, pois é a alegoria do Bem, o símbolo do mais alto sacrifício(Christos-Satan dos gnósticos) e o Deus da Sabedoria sob infinitos nomes; o Deusde nosso planeta sem nenhuma sombra de maldade, porque é um com o Logosplatônico, o último na ordem da evolução macrocósmica e o primeiro damicrocósmica; o Ministro do Logos solar e Senhor das sete mansões do HadesSabbath, Samael, e do mundo manifestado, a quem estão encomendadas a Espada ea Balança da Justiça, porque ele é a norma do Peso, a Medida e o Número; o

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Horus, o Brahma, o Ahura-Mazda, etc., o Guardião do Santuário, que é a matriz daNatureza, degradado pelos judeus em Jehovah, ou seja, no deus da Montanha lunar,no deus da Geração.Como diz acertadamente A. Kingsford em seu Perfect way, "Satã é o guardião daPorta e das Chaves do Santuário, para que não penetrem nele senão quão ungidospossuem o segredo de Hermes. No sétimo dia ou sétima criação, quando oHomem e a Cadeia Terrestre foram aparecer, produziu-se da Presença do Logosum Anjo Poderoso cheio de desejo progressivo, e o Logos o deu o domínio daesfera extrema inferior, ou seja,nossa terra e nosso plano de consciência físico. AEternidade produziu assim ao Tempo; o Ilimitado e sem Nomeie deu nascimentoao Limite: o Ser; o Ser descendeu à geração, e entre os deuses não há nenhum quepossa comparar-se com aquele em cujas mãos estão depositados o reino, a vida e aglória dos mundos... A Igreja, ao amaldiçoar temerariamente a Satã, amaldiçoaignorante à cósmica reflexão do Logos, anatematiza a Deus manifestado na Matériae renega da sempre incompreensível Sabedoria, revelando-se por igual noscontrários de Luz e Sombra, Bem e Mau na Natureza, única maneira decompreender que lhe é acessível à limitada inteligência do homem, como conceitoscontrários que a Filosofia Esotérica não admite como existentes per se e comoseparados da Natureza, pois nada pode haver perceptível para nós sem a lei dadualidade ou dos contrastes, e quanto ao Mal, não existe mais que em nossaspaixões e em nossa ignorância . Assim, nem há demônios ou elementares

"O Bem e o Mal - continua dizendo Blavatsky - são a origem do Espaço e do Tempo, sob odomínio de Maia. Separados morrem os dois. Nenhum existe por si, como não existe a luz sem astrevas nem o prazer sem a dor, pois cada um tem que ser engendrado pelo outro. Ambos têm queser conhecidos antes de ser objeto de percepção, e daqui que na mente mortal tenha que estarseparados. Como a distinção ilusória existe, daqui que se requeira uma ordem inferior de anjospara criar. A perfeição, para ser tal, tem que sair da imperfeição; o incorruptível do corruptível,como sua base e seu contraste; por isso diz a Cabala que só sobre Satã não sobre o Logos recai avergonha da geração. Ele perdeu seu virginal estado da Kumara, porque ao descobrir segredoscelestes entrou na escravidão. Ele circula com cadeias e limita as coisas... Dois são os exércitos doLogos ou de Deus: no céu, as hostes do Miguel, e no abismo do mundo manifestado em quevivemos, as legiões de Satã. Estes são: o Imanifestado e o Manifestado; o livre e o sujeito namatéria; o virginal e o cansado na geração, e ambos os som Ministros cumpridores da PalavraDivina; por isso, diz-se nos gnósticos que a glória de Satã é a sombra de Adonai e o Trono deSatã é a banqueta do Senhor. Embora a teologia ocidental cristã possui a patente e a exclusiva detodo o horror dogmático da grande mentira a respeito da personalidade teogônica de Satã, outrasnações e religiões cometeram iguais erros com a interpretação desacertada dela, tomandoprecisamente ao reverso do que é em si um dos conceitos mais profunda- mente filosóficos e idéias dopensamento antigo. Até sob a mesma letra morta da mencionada teologia, é lógico lhe considerar OSalvador e o Pai da Humanidade Espiritual, do momento que Jehovah, isto é, a Hoste dosElohim, diz na Gênese que ao comer o homem a fruta da Árvore do Bem e do Mal "feito-se umcomo eles", quer dizer, um deus. Também o simbolismo oculto da queda pode ver-se em Lucas, C.X, V. 18. Os rosa-cruzes conheciam muito bem o segredo da tradição, mas lhe ocultaram,

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ensinando que só Satã se rebelou contra o Demiurgo, Ilda Baoth ou a Lei Criadora, pois todos oscabalistas e simbolistas sentiram extremada repugnância em confessar o significado primitivo, talcomo vai dado e tal como o dá também a doutrina secreta do Egito, Caldéia, etc., por temor àscrueldades da Inquisição."Satã é, pois, o número pi (pithaf), o número dez da geração e a tigela da circunferência aodiâmetro ou IO o mistério masculino-feminino. Também é a swástica, fohat ou a eletricidade davida, que se representam com, a cruz dentro do círculo e símbolo da Terra (Satã), sobre cujotema poderia escrever um livro, pois até nos códices mexicanos, conforme demonstramos em nossaCiência hierática dos Maias, encontramo-nos ao símbolo da swástica em forma de coordenadoriamatemática. Algo deles veremos também ao nos ocupar das fusaiolas de Tirinto e de Micenas,provas da universal difusão da doutrina.Serpentes e dragões da Sabedoria chamam as teogonias esotéricas aos anjos que desceram do céu aocair na geração. Eles são os que salvam ao homem da morte eterna, como Krishna, como Cristo ecomo todos os iniciados vencedores do Reino do Inferno, ou seja, do mundo inferior. Eles são osDhyanis ou Arcanjos que baixaram à terra para construir ao homem, coroa da Evolução umavez que aquela estava preparada para recebê-los. Projetaram suas pálidas Sombras dotando àMatéria Primitiva com o impulso evolucionário ou ordem de criar. Os Angeles do Fogo senegaram, porque não queriam criar homens irresponsáveis e abúlicos. Eles são, enfim, os divinoslhes Prometa sobre os que tanto se escrito.

absolutamente depravados a quem alguma vez não tenha igualado em perversidadeo homem; nem anjos absolutamente perfeitos, mesmo que pode haver, para nossomodo de ver, espíritos de luz e espíritos de trevas."

Lúcifer, enfim, é o Espírito da Iluminação espiritual da Humanidade e daLiberdade de Pensamento e metafisicamente a tocha da Humanidade: o Logos emseu aspecto superior e o Adversário em seu aspecto inferior, ou seja, o Espírito e oCorpo de nossa Terra em uma palavra: o divino e encadeado Prometeu; a Energiaativa e centrífuga do Universo, energia que é Fogo, Luz, Vida, Luta, Esforço,Consciência, Pensamento, Progresso, Civilização, Liberdade, Independência, Dorcontra o vão Prazer, Morte como Revolução da Vida renovada e eterna. O infernode seu ímpeto é a expansão vital do Nebuloso para condensar-se em novosmundos, expansão que uma e outra vez é burlada pela Inércia eterna e passiva, ouPederneira de que saltam as faíscas de todos os titanismos rebeldes. Grande é aMaldição da Vida e, entretanto, quantos são, exceto alguns yogis e sufis, em seumisticismo, os que se emprestariam gostosos a trocar todos os males de umaexistência responsável como é a nossa, todas as torturas da vida consciente, pelaimperfeição inconsciente de um Ser imaterial, objetivamente passivo, ou tão sequerpela Inércia estática universal, personificada no Brahma durante sua Noite deRepouso? Perguntem também à mãe amante se, a troca de não ter sofrido os doresdo parto e as mil penalidades dos cuidados de seu filho, renunciaria à existência domesmo, e na resposta terão um pálido símile do que significa no fundo a benditaMaldição que sobre nós tem o Destino lançada.. . Prometeu rouba o fogo divinopara impulsionar ao homem pelo atalho da Evolução Espiritual, transformandoassim ao mais perfeito dos animais da terra em um Deus potencial, "capaz de

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conquistar os céus pela violência", segundo o dito evangélico, qual Siegfriedconsegue vencer ao Monstro com a Espada fundida e forjada no fogo de seuspróprios esforços e sofrimentos; Phosforos, a luz e o fogo astrais do Anima Mundi;as feras chamas de suas paixões terrestres, que o queimam, ao par que lhe rói asvísceras o abutre insaciável do Pensamento!

"Prometeu é o Maha-torra, o Lúcifer hindu que se revelou contra Brahma oengendrador, por cuja razão Siva lhe precipitou no Pâtâla (mundo inferior), mascomo a filosofia parte sempre unida à ficção alegórica nos mitos hindus, o "Diabo"se arrepende e lhe é proporcionada a oportunidade de progredir e mediante aelevação espiritual ou ioga pode voltar a ser "um com a Deidade". Hércules, o Deussolar, descende ao Hade ou Cova da Iniciação para liberar de suas torturas àsvítimas. Só a Igreja cristã cria para seu Demônio, termina Blavatsky, torturaseternos!"

O mito dos Anjos cansados bem pode chamar-se, pois, o dos anjos quereencarnam ou caem na geração. Entre as entidades elevadas a um período anteriortêm que existir e existem fracassados relativos, como entre os homens; mas comoeles estão muito espiritualmente adiantados, entretanto, dirigem as forçaselementares que têm que ser entidades humanas no futuro, e permanecem comouma força espiritual latente no aura de um determinado mundo em vias deformação até fazer-se ativos ao dotar ao homem de Mente Própria. Outrasentidades de grau mais elevado ainda, carecem já por sua pureza até maior ainda,das forças inferiores necessárias também para a criação do corpo astral. Estesúltimos são os kumaras ou Virgens Rebeldes que não caíram na geração porquenem queriam criar seres irresponsáveis sob sua tutela protetora, nem podiam dotá-los com o reflexo temporário de seus próprios atributos, porque pertencendo estesa um plano de consciência muito superior, não proporcionariam, aos seusprotegidos, probabilidades de progresso próprio. Nárada é o kumara, na alegoriaesotérica, que se interpôs por duas vezes fazendo fracassar a obra da Daksha, chefedos Prahapatis ou Criadores, que tinham produzido dez mil filhos com objeto depovoar ao mundo. Nárada os faz a todos Santos ascetas, que fogem o matrimônio,por isso Brahma lançou contra ele a maldição de perecer em sua forma deva (novaaparição do mito da walkyria) e albergar-se em matriz para converter-se emhomem.

# # #

Estamos no segundo ato de Siegfried. Alberico, o terrível nibelungo, meditasombrio, recostado em umas rochas, junto à caverna em que o monstro Fafnerdormita sobre seu tesouro, a maneira de resgatar o perdido Anel, para, dono já dele,armar contra a Walhalla os exércitos do Hélia, e ser assim o dono do mundo. É denoite. À esquerda se divisa apenas entre espessa maleza a entrada do Neidhohle, o

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antro do Ódio e da Inveja, à luz da Lua, mal velada por nuvens de tempestade. Vailogo a amanhecer.

Wotan, em sua nova forma de Viajante, lhe aproxima, a pesar do ódio quesabe inspira ao gnomo desde que injustamente lhe arrebatasse o Anel para pagarcom ele aos gigantes o preço da construção de Walhalla. A intenção do Viajante éacautelar ao Alberico da chegada do herói que tem que resgatar o Anel, e despertarde passagem ao monstro Fafner para que vele solícito, tudo em cumprimento dassagradas leis dos Pactos, que não consentem nem surpresas nem traições. Depois seafasta, enquanto que Mímico e Siegfried chegam pela direita, este armado com seuinvencível Nothunga, a arma de sua liberação, forjada por ele mesmo, e Mímico,provido, por sua parte, com a cabaça de seu veneno, como arma de suasreconcentradas perfídias. Mímico conduz ao Siegfried até a boca mesma do antropara que conheça o Medo, sem poder, entretanto, reunir o como, se chegar aconhecer semelhante açoite da Humanidade, vai poder matar ao monstro e resgataro Anel.

"-Aqui saberá, ao fim, o que é o Medo! - Diz matreiro a seu jovem herói aolhe deixar frente ao perigo-. Neste antro sombrio dorme o Dragão disforme e cruel!De um só bocado podem te tragar seus fauces sedentas de sangue; sua boca cospebaba venenosa, que corrói a carne e os ossos; sua cauda de serpente rompe osossos como se fossem de vidro, oprimindo-os com seus anéis.. . Quando lhe virdiante de ti ameaçador, e lhe ouça rugir, desfalecerão seus sentidos; o estouacostumado a vacilará sob seu novelo qual em um terremoto, e então meagradecerá que te tenha trazido, para que, ao fim, conheça o Medo, e saiba assimquanto te ama Mímico. Vou recostar me junto àquela fonte, e quando o diacomeçar a clarear no bosque, espera crédulo ao Dragão, quem ao despertar passarápor aqui mesmo para ir beber a ela."Siegfried fica sozinho e se sinta sob o grande tilo cujas folhas, movidasamorosamente pela aura matutina, produzem um muito manso sussurro ao cantaresses divinos Murmúrios da Selva, que bastariam por si só a imortalizar a seu autor. Oherói, libere já da odiosa companhia do velho nibelungo, sente-se feliz como nuncasob a carícia da Alvorada, arejado seu corpo com sua frescura e seu espírito poraquele florido amanhecer de abril. Eleva-se piedosa e escrutinadora seu olhardiáfano para a muito alto monopoliza da árvore e eleva seu pensamento de amorpara seu pai a quem não conhecesse e para sua Santa mãe que morreu ao lhe dar aluz... Recostado assim sobre a rocha, sussurra cheia dessa emoção da Natureza queao Beethoven inspirasse sua célebre Pastoral ou Sexta Sinfonia, até que o canto dospassarinhos cativa sua atenção 1. Obcecado o jovem herói por aquelas misteriosas

Quão doces precedentes tem, como é sabido, esta página musical incomparável de Wagner, por umlado, nos cinco tempos da Sinfonia Pastoral, titulados por seu mesmo autor: sensações agradáveisdo campo; junto ao arroio; festa aldeã; tempestade, e ação de obrigado passada a tormenta, e por

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outro lado nas cristalinas notas do Convite à dança, de Weber, notas que são quase exatamente asmesmas do Ave de Siegfried.

harmonias do céu e da terra ao amanhecer, trata de compreender o canto das aves,e a fim das imitar, êmulo do próprio deus Pão, curta e talha uma flauta de canocom a que dá algumas notas vacilantes. Fracassado, entretanto, em seu intento deimitação, apela a sua tromba jaqueta e entoa com ela a alegre tocata do Bosque, acuja chamada tantas outras vezes acudissem os lobos e os ursos.

Aos primeiros acordes da sonora tromba de Siegfried se produz no fundo dacena um movimento insólito. Faíner, sob a aparência do dragão mais monstruoso,surge de seu antro em meio de densos vapores e desenvolve parte de seu corpodisforme sobre a plataforma da rocha exterior de sua caverna. Ao chegar ali,quando ainda permanecem no fundo desta outros tantos anéis de seu viscosocorpo, lança um ruidoso bocejo. Siegfried, ao ouvi-lo, volta-se a contemplar aoFafner e prorrompe em uma sonora gargalhada. Logo, ao ver que o monstro lhelarga um horripilante quem vive? Diz-lhe que desconhece ainda o Medo e se souberde alguém que possa acostumar-se o O monstro se aproxima cheio de fanfarronicelhe dizendo que ele lhe ensinará posto que ia beber água e prefere beber seusangue, e ia almoçar depois, preferindo a todo outro seu manjar ainda tenro corpo.

A luta se cerca ao ponto. Siegfried desembainha sua espada habilmentecontra o monstro, quem lança contra o herói jorros de baba a maneira de rios defogo, dando terríveis rabadas, capazes de derrubar uma montanha, para lheenvolver. Nada consegue, porém, o Dragão com isto, e exasperado se levanta o fimpara lhe esmagar sob sua mole imensa, mas naquele momento o herói, com umrápido movimento, deixa-lhe cravada a Nothunga no coração... O monstro seencabrita e cai com estrépito, mas antes de morrer revela rapidamente ao herói atriste historia de seu próprio crime contra seu irmão pela ambição do ouro maldito.Também lhe acautela contra a perfídia de Mímico.

Siegfried, pasmado de quanto acaba de ouvir, retira a espada da ferida: umjorro de negro sangue brota e lhe mancha a mão que com instintivo movimento seleva até a boca, e então, como se saísse de um sonho adverte que começa acompreender a linguagem das aves, música envolta na dos Murmúrios da Selva econstelada pela melodia típica da ondina Woglinda em meio dos longínquos ecosdaquelas solenes notas primitivos do Ouro do Reno, e cuja sucessão mais lentacomeçasse na eternidade o fluxo vital das Águas Genesíacas. O pássaro lhe revelaentão o valor onipotente do Tesouro, do Elmo e do Anel.

Nisto surgem de seus respectivos esconderijos, arrastando-se cautelosos,Alberico e seu irmão Mímico, e à vista do gigante morto os dois mais ambiciososnibelungos começam a brigar por tão apreciada herança; mas ambos se retiramconsternados ao ver o herói saindo do antro já provido do Elmo e do Anel, aotenor do conselho do Ave que volta a lhe acautelar contra a traição de Mímico. Acena entre este e Siegfried, quando Mímico se aproxima hipócrita com seu veneno,é, a bem dizer, a cena da dobro vista ou da adivinhação do pensamento, por quanto

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Mímico quer continuar com suas traidoras falsidades de sempre; mas a dobro vistaque já possui Siegfried desde que entrou no antro - verdadeira Cova da Iniciação -,faz-lhe transparentes todas suas danificadas intenções, que em vão Mímico trata deesconder com suas ternuras mentidas. Farto já Siegfried de tanta perfídia, quandoMímico vai lhe dar a taça de veneno lhe cerceia a cabeça, ao par que ressonaestridente no fundo da cena a gargalhada de satisfação selvagem com que lhe vêmorrer seu irmão Alberico!

Cansado de tão longa e dura refrega, Siegfried se volta a recostar sob o tilo,sonhando em alguém, jovem também como ele, em uma amante companheira quesua triste solidão compartilhasse ditosa. O pássaro da taça, com canto mais doceainda que nunca lhe faz a revelação final de que encantada sobre inacessível rocha eenvolta em chamas sagradas que ardem sem jamais extinguir-se, aguarda-lhe, comoprêmio de sua corarem, a divina Brunhilda. Pasmado o herói, e sempre sob a guiada Ave, que vai saltando de ramo em ramo diante dele para lhe guiar, dirige-seansioso em busca da celeste montanha: a Montanha de Brunhilda!...

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Quantos críticos se ocuparam do drama de Wagner se desfazem em elogiosao falar deste episódio dos Murmúrios da Selva, que qualificam de maravilhoso, e noqual todas as vozes misteriosas da Natureza confiam seus segredos ao mestre,segundo a expressão de Malherbe e de Soubies. Felipe Filippi declara que toda amúsica do segundo ato de Sigfrefdo é o non plus ultra da inspiração poética e damagia instrumental, e acrescenta que quando se estreou em Bayreuth O Anel doNibelungo, ouviu os inimigos mais encarniçados de Wagner qualificar os Murmúriosda Selva como obra de seu gênio poderoso. Paul Lindau, que ridiculariza quase todoo Siegfried, diz ao chegar a esta cena: "Há nela ire, luz e sol. É uma poesia doEichendorff, em sua expressão mais alta. Ouça-se o sussurro das folhas e o cantodas aves; vêem-se os primeiros raios do sol cintilar entre os matagais." Panzacchiacrescenta: Toda a cena se acha expressa pela orquestra em um conjunto onde nãose sabe o que admirar mais: se a deliciosa beleza da execução ou o encanto dainstrumentação. Pensa-se na frase de Víctor Hugo: as árvores revelam aos ninhosseus segredos e os ninhos respondem com uma linguagem muito doce demurmúrios e melódicos suspiros. Estas são as verdadeiras, as indiscutíveis, asinsuperáveis belezas de Wagner. Aqui pode chamar-se, sem hipérbole, inaudita asua música, possivelmente com mais razão que a que tinha Horacio ao qualificar detais seus cantos: Carmina non prius audita...

Era natural que assim acontecesse, porque terá que convir em que a lenda daave prodigiosa que revela ao homem digno disso os mágicos secretos que ocultamos céus e a terra, é das mais próprias por sua sublimidade para inspirar a um gênio.Esta ave do paraíso, que nas vinhetas simbólicas de certos tratados de cabalacompleta o setenário tendendo suas asas sob o tau ou árvore mística que cobre aoprimeiro casal humano, Adão e Eva, não é mais que nosso Espírito imortal, que

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Wagner Mitólogo e Ocultista – Capítulo XIII

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revela ao nosso homem inferior todos os segredos, em forma de consciência morale psicológica.

Semelhante Ave e o passarinho misterioso que sabe tudo e todo o diz, noscontos infantis, ecos degenerados destas lendas, e também o Ave Fênix que renasceeternamente de suas cinzas, quer dizer, que remonta de novo seu veloz vôo atrás detodas nossas quedas e que tão familiar é em todos os contos orientais.

A faladora Ave da Selva, e até o argumento inteiro da Tetralogia, com efeito,tem precedentes muito formosos, não só na lenda nórdica que inspirou Wagner,mas também entre os do Oriente, tendo passado aos árabes e desde eles a nós emum de tantos contos das mil e uma noites, o intitulado A sultana Khurú-shad, ouliteralmente A sultana sacerdotisa e guerreira, que na maioria das traduções levatambém o título de História das duas irmãs invejosas de sua outra irmã menor. Por certoque o Sigjredo herói, da Tetralogia, é aqui uma mulher, dado de maior Antigüidadena lenda, por quanto sabemos que no regime social dos tempos mais remotos, omatriarcalismo precedeu ao patriarcalismo, e as heroínas como Kurú-shad, aosheróis como Siegfried. Seria, pois, imperdoável que omitíssemos tão formosa lenda,aparentada, não só com as nórdicas, mas também com as mexicanas e com asbíblicas.

O sultão Kurú-shad, assim que herdou o trono de seus antepassados, pensoutomar estado; mas antes empreendeu disfarçado uma série de incursões noturnaspara orientar-se a respeito da verdadeira situação de seu reino. Em uma destasincursões surpreendeu a conversação de três jovens irmãs, que sonhandoacordadas, conversavam a respeito de qual seria para elas o Marido Ideal. A primeirairmã desejaria casar-se com o padeiro do sultão, para comer de um modoesplêndido; a segunda, com o cozinheiro ou com o copeiro do mesmo, como comos dois famosos personagens faraônicos a quem fizesse o José bíblico no cárcerecompleto explicação de seus sonhos. A terceira irmã, enfim, que era a melhor e amais formosa, replicou que ela não se conformaria senão casando-se com o sultãomesmo.

Adivinhando o sultão os altos objetivos que tão elevadas aspiraçõesrevelavam na irmã menor, e enamoradíssimo a par de sua beleza, deu-se aconhecer, e muito breve as três irmãs viram realizados seus sonhos respectivos, quenão há senão sonhar fundo e pôr a vontade toda em pró do sonhado, para que ossonhos e aspirações do Desejo se permutem em realidades físicas.

Mas a inveja, esse verme roedor do coração humano que, quando ela nãopode subir mais, trata de ascender na aparência rebaixando a altura dos que lherodeiam, germinou logo no coração de ambas irmãs maiores, e para obter seusperversos planos de perdição de sua outra irmã, conseguiram introduzir-se comoparteiras dela, quando esta ia dar a seu amante marido a desejada sucessão.

Aqui do mito do Moisés, o farelo de cereais das águas, do Saturno e doHuitzilipochtli mexicano, ou Senhor do pau oco. Em efeito, nas três iluminações dasultana, nos que deu a luz, respectivamente, dois meninos e uma menina, as irmãsinvejosas agarraram, matreiras, as criaturinhas e as jogaram no canal do palácio,

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nem mais nem menos que sua mãe ao Moisés, as depositando em flutuantesenxovais de bebê que, por sorte, foram recolhidas mais abaixo pelo intendente depalácio e sua mulher, quem movidos pela piedade, criaram e educaram aos trêsmeninos até fazê-los três jovens de estranhos méritos. As irmãs da sultana,enquanto isso, tinham enganado ao sultão, lhe dizendo que aquela tinha dado a luztrês pedras ou três monstros horríveis, por isso, indignado o monarca, fezencarcerar e dar os piores tratos do mundo à mãe desgraçada.

Instalados os três jovens na granja-palacio do intendente, a quemaconteceram ao morrer, eram, por sua bondade, força e cultura, três seresadmiráveis, que davam encanto aos olhos. Certo dia lhes apresentou, sem sabercomo, uma velhinha, uma espécie de sibila, que, admirando as esmeradas grandezasaquele palácio, disse-lhes que só lhe faltava para estar completo ostentar as trêsmaravilhas do mundo, que eram o pássaro que fala, a árvore que canta e a áurea fonte decorrente contínua e inesgotável. A sibila desapareceu subitamente assim que falou à Kuru-shad, e seus irmãos Brâmane e Perviz ou Pelví, ofereceram-se solícitos para ir àconquista daquelas maravilhas.

Partiu, pois, Brâmane, e tomando o caminho do remoto país nos limites daÍndia onde a anciã havia dito que jaziam tais tesouros (caminho que passava pordiante de sua casa, como por diante das nossas respectivas passa, sem quesaibamos, o Atalho da Iniciação), ao levar vinte e um dias de marcha tropeçou comum piedoso dervixe ou fakir, tão absorto em suas devoções ou ioga que as plantastinham crescido em volto de seu corpo, e seus cabelos, sobrancelhas e barba lheocultavam por completo o rosto 1. Aproximou-se o jovem ao Mestre, e compiedosa solicitude lhe cortou o cabelo e o deu bebida e alimento. O Mestre,agradecido, respondeu a suas perguntas sobre o pássaro que fala, da árvore quecanta e da água amarela, lhe indicando o caminho; mas lhe ponderando que deviadesistir da empresa, porque era árdua e perigosa, quase inexeqüível às humanasforças. O jovem cheio de coragem deixou de ouvir as advertências do asceta; subiucom seu cavalo pela levantada costa da montanha sagrada, mas muito em brevecomeçou a tropeçar com multidão de pedras negras (que não eram senão ascabeças encantadas de todos aqueles que antes fracassassem na mesma empresa), ea escutar, saindo de todas as partes, gritos horripilantes dos elementares que, a todacosta, como a todo candidato à Iniciação, tratavam de lhe impedir o passo.Brâmane cedeu um ponto a aqueles terrores, sentiu um instante medo e, aomomento, foi transformado em pedra negra, como o tinham sido tantos outrosantes que ele.

Informado de tal desgraça, o príncipe Pelví tratou de seguir os passos de seuirmão para lhe resgatar e com ele às três sabidas maravilhas; mas lhe aconteceuigual desgraça que a ele, ponto por ponto. Então Kuru-shad, a heroína sem par,ignorando os conselhos da prudência e menosprezando a pretendida debilidade de

1 É sabido que assim acontece, contra tudo que nos pareceria verossímil, com muitos fakires doOriente.

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seu sexo, só escutou a voz do amor e do dever, partindo para tentar a aventura;mas, mais ardilosa, como corresponde à perspicácia feminina, ao receber osconselhos do asceta, para não aterrar-se ante o horripilante vozerio do Atalho, deuno traçado do Ulisses para não ouvir os cantos das Sereias, que foi a de ataponarseos ouvidos, com cujo artifício, unido a seu heroísmo, subiu o infranqueávelcaminho, agarrou do Palácio do Ensino o ave que falava; de seus jardins, qualWotan de Fresno do Mundo, um plantão da maravilhosa árvore que murmuravacelestiales cantos, e de seu fosso a água amarela da Mente, o água-cristal ou Brasadaquele Ouro do Alberico, e enriquecida com tais tesouros inauditos retornou a suamorada, mas não sem ir orvalhando a sua volta com umas gotas da água amarelatodas as pedras negras do atalho, com o que foram surgindo sucessivamente de suatriste letargia quantos cavaleiros jaziam ali encantados, entre eles seus dois irmãos,todos os quais lhe deram escolta até seu mesmo palácio, que tal é o divino poder daMente, única Água de Graça, capaz de despertar de nossa secular e bestial letargiade triste inconsciência para as verdades redentoras.

Não há para que acrescentar o desenlace de tão formosa fábula. O sultãotropeçou em uma caçada com os dois arrumados mancebos, bem longe desuspeitar que eram seus filhos. Gostou deles. Visitou e admirou seu palácio e,sobretudo, a gentileza da jovem Kuru-shad, até o ponto de que um dia quis ser suahóspede. A jovem, por conselho do pássaro, preparou entre outros pratos um depepinos japoneses com pérolas! Das do tesouro que tinha encontrado junto aotronco da Árvore que falava. Ao tropeçar aquele com as pérolas e sentir saudadesde tão estranho condimento, o pássaro lhe disse que mais de sentir saudades tinhasido sua credulidade por volta das dois arpías de cunhadas, quando lhe fizessemacreditar que a sultana tinha dado a luz três monstros em lugar de seus três filhosque diante tinha. O sultão, admirado da justiça que à larga faz sempre o Destino,levou-se cheio de felicidade seus filhos a palácio e restaurou no solio a infelizsultana, depois de castigar a aquelas perversas, como mereciam...

O leitor pode adivinhar, por outra parte, nesta escravidão da sultana e em sualiberação por seus filhos, o mito do Cavaleiro do Cisne, ao que fizéssemosreferência ao estudar Lohengrin, ou seja, a restauração da Verdade, perdida com acatástrofe atlante, graças aos esforços da Magia redentora.

Fafner, por sua parte, é o terrível gigante Virabhandra do poema industânicodo Mahabharata, o monstro de mil cabeças e mil braços (Briareo), nascido dofôlego da Siva-Rudra, o destruidor do sacrifício da Daksha. Mora na região dosfantasmas ou homens etéreos e suicidas, e é o pai dos capitalistas Rammas doRamayana ou Romas-kupas. É também o Ahti ou Serpente do Mal do Kalevala; oThiamat esquento do Espírito das Trevas ou do Abismo (Caos); o mau dragão quena lenda induz ao homem para o pecado pela perturbação psíquica que o sexoproduz; o Ophimorfos ofita ou a Serpente-Satan esotérica encarnação da astúcia eda inveja surta do Ilda-Baoth quando este, ao olhar-se no Abismo, viu refletidasnele todas suas paixões; o Tiamat semita das águas astrais, que logo se transformano gigante Goliat morto pelo David, esse Siegfried Bíblico. Fafner é, enfim, o

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Leviatã apocalíptico, vencido pelo Jesus; a Hidra da Lerna decapitada peloHércules; a amável deusa Chemmi das iniciações egípcias; a Esfinge do Edipo; aBesta bramadora que se encontra o rei Artús no Kameloc ou Kama-loca astral, etantas outras.

* * *Siegfried, para a Doutrina Tradicional, é o Buddha ou Senhor mais perfeito,

o Avalokitesvara; o Bodhi-satwa de só dois braços; o herói; o Loko-pati ouLokanatha Senhor do mundo; Aker ou Set; que mata ao Ap-ap ou P-pa, a Serpentedo Mal; o Senhor do lótus florido, Pap-ma-pa-ni, Chenresi ou Chakna PadmaKarpo; o Daksha espiritual que se sacrifica; o Yipten Goupo tibetano, etc., etc.

Mas ainda, como diz a Professora (D. S., pág. 208, nota) ao falar da lutaentre o Vishnú e um perverso Daitya: "Estas diversas lutas purânicas nos dão achave das datas dos avatares Ramo e Krishna e de certo mistério psicológico. 19Avatâra; Narasing (Hombre-león), que mata ao daitya Hiranyakashipu (Purusha).Rama, que mata a Rávana o rei gigante da Lanka. 3º Krishna, última encarnação doVishnú que mata a Shishupála, o filho do Rajarshi Damaghosha, última encarnaçãoDaitya a Mantrana e a Fera Corrupia dos contos espanhóis e o espantoso"Habitante do Umbral", tão admiravelmente descrito pelo Bulwer-Lytton em seuZanoni..."

Siegfried, o matador, enfim, do Fafner, é a sua vez Pesh-sun-Nárada oHombre-León e também o Hombre-ouso, como Siegfried, que vence ao monstrode cabeça estreita; o Ramo, que mata a Ravana, o rei dos gigantes da Lanka; oKrishna avatar, última encarnação do Vishnú, que mata a Shishupatala, o filho doRacha Dama-ghosha, última encarnação dos Daitya; o Lanzarote do Lago, o Artúse demais cavaleiros da Tabela Redonda; o Horus, vencedor do Tiphon; o Juanillo oUrso, o Hércules, o Lohengrin, o Tristão, o Cid, redentores todos, graças aoConhecimento adquirido na Cova da Iniciação, depois da luta a morte - cercadacom os Poderes do Mal, luta idêntica a que nos oferece Wagner nas sublime cenasde sua obra sem rival e em que, andando os tempos, terão as gerações futurasrestaurados de novo os Mistérios Arcaicos, verdadeira Universidade do futuro, emque não só se dê seca, e às vezes discutível ciência, senão Religião-Verdade, Ciência,Amor e poesia conjuntamente, pois tal é o universal alcance do Mito que instruideleitando e insígnia ao par que dignifica.

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Impossível é falar do mito Siegfried sem consagrar algumas palavras a seumito homólogo de Hércules.

Hércules, o Siegfried grego, o titã humano, infiltrou sua lenda em todos ospovos mediterrâneos, como o herói de Wagner infiltrou a seus em todos os povosde raça saxã ou escandinava. Chegada dita lenda até o Ocidente da Espanha,apresenta o detalhe peregrino de haver-se transformado em outra lenda notável, ado Juanillo o Urso, mito que é, por dizê-lo assim, uma porfirização do Popul-Vuh

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ou Bíblia americana da raça maia. À maneira como a lava das erupções vulcânicaspode incrustar a todo um terreno anterior porfirizando-o, a quebra de onda dalenda grega, transformada na do Juanillo o Urso, chega a nos oferecer trêspersonagens estranhos ligados com o Popul-Vuh. Arranca Pinheiros, Pedra deMoinhos e Tomba Colinas da lenda do Juanillo o Urso, que são, com efeito, outrostantos personagens que aparecem com o Kabrakán (Abraham?) E Balanqué maia,como bruxos atlantes opostos a todo o progresso evolutivo representado noHércules, no Siegfried, no Juanillo o Urso e no Hu-Hu-Nan-Pu maia e nahoa. Olaço da Atlântida, como continente perdido, conector em outro tempo do que hojeé a América, África e Europa, adquire assim caracteres de certeza científica,obrigado, uma vez mais, aos ensinamentos do mito.

Acreditamos ser oportuno, pois, o reproduzir tão admirável mito espanhol.Maria era uma viúva pobre e formosa. Certo dia em que recolhia um feixe de

lenha, viu-se surpreendida por um estranho urso 1, quem, apaixonado por ela, ateve forçada a sua cova. De união tão desigual, nasceu um robusto menino, que sechamou Juanillo.

Criou-se o menino fora de todo contato com as pessoas, e chegado à idadede três anos mostrou desejos de conhecer outros meninos, seus semelhantes,costure para a que havia certa terrível dificuldade, ou seja: uma enorme pedra quenão bastassem a mover cem homens, fechando a única saída da cova. Tamanhoobstáculo resultou fútil, entretanto, para as sobre-humanas forças que desde tãotenra idade começou a revelar Juanillo, pois, como se fosse a mole uma enormepedra do caminho, e com grande assombro de sua mãe, prontamente o menino atirou de seu lugar.

Já na escola o rapaz, começou a ser incomodado pela turfa de seuscompanheiros, quem lhe vexava à contínua lhe chamando Juanillo o Urso, emlembrança de sua origem, até que um dia, não podendo sofrê-los, agarrou a um e oarrojou, como quem não faz nada, ao telhado do campanário da aldeia.

Cansado mais tarde que vagar pelo mundo à ventura, e sentindo-se já joveme corajoso, apresentou-se na corte precedido da fama de suas hercúleas forças.Conduzido à presença do Rei, este lhe perguntou o que comia, ao que ele repôs quesete bois e sete fanegas de pão em cada comida. Riu o Monarca de semelhantefantasia e decretou que lhe servissem em pequenos pedaços os bois, ao queacrescentou Juanillo que os cozessem inteiros, embora sem chifres nem cascos,comendo-lhe como se tal coisa, com grande assombro da Corte toda 2.

Admirado ficou o Rei com o jovem de tão excepcionais energias, e mostrou-se disposto a lhe agradar assim que lhe pedisse, contentando-se, entretanto, Juanilloo Urso com que lhe fizesse uma maça ou porrete de ferro de 100 kilos, porrete que

1 Aqui está o germe da lenda da Caperucita Vermelha e de seu lobo.

2 Nova alusão ao sabido sacrifício oriental da Vaca Sagrada.

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ninguém pôde conduzir ao palácio, até que ele mesmo foi por ela, dirigindo-a comouma pluma 1.

Juanillo se despediu da Corte para empreender novas correrias por todo odescoberto da terra, e o Rei se comprometeu a lhe pagar quantos gastos fizesse emsuas empresas. Na primeira encruzilhada do caminho topou com três tropeiros quelevavam dez mulas de carga, carregadas com grandes peles de vinho. Informadonosso herói da classe de mercadoria, desafiou a seus condutores lhes dizendo queera capaz de beber um pele de vinho sem descansar um ponto. Aceita a aposta poreles, não demoraram em ver, cheios de espanto, que não só cumpriu sua promessa,mas também, um após o outro, bebeu-se lindamente quantos peles levavam.Depois consolou aos tropeiros mandando fossem cobrar no palácio suaimportância.

Anda que te andará, tropeçou com um hombrezuelo que do alto de umacolina lhe dava vozes, lhe dizendo que se tornasse ao plano, porque de um golpe iaderrubar aquela colina. "Quero vê-lo" - opôs Juanillo; e, com efeito, odesconhecido, com um só reverso de sua mão, deu com toda a colinaestrepitosamente em terra. "- Eu sou capaz de fazer mais - acrescentou nosso herói-, porque de outro golpe posso levantá-lo"; e brandindo sua clava, restituiu a seuposto, com o que Juanillo o Urso e o valente Tomba Colinas, que assim sechamava o cavaleiro em questão, ficaram feitos grandes amigos e juntos seguiramseu caminho.

Uns dias mais tarde os dois amigos se encontraram com outro homemsingular, que se entretinha em jogar às chapas com duas enormes pedras demoinho. Entre ele e os dois viajantes se cercou o conseguinte pugilato, queterminou por fazer-se todos compadres e partir juntos os três pelo mundo.

Não demoraram em topar mais adiante os três viajantes com um molequeminúsculo que, não obstante sua estatura de pigmeu distraía seus ócios em arrancarpinheiros com igual facilidade que se fossem canas de trigo. Juanillo o Urso tentouseguidamente a aventura, realizando a façanha de voltar a pôr as árvores com tantaou mais facilidade que Arranca Pinheiros os descuajaba, com o que não terá queacrescentar que o miúdo Arranca Pinheiros entrou por direito próprio a formarparte da equipe de heróis que compunha a escolta do sem par Juanillo.

Os quatro companheiros de aventuras seguiram adiante em seu caminho.Cheios de fadiga se aproximaram de uma grande cidade, encontrando-se com umacasita de campo abandonada, onde decidiram acontecer a noite; mas ao entrar secruzaram com um misterioso caminhante, quem lhes acautelou contra os grandesriscos que poderiam correr nela, pois era fama que o que ali entrava não voltava asair, graças a certo duende horripilante que acampava por seus respeitos ali dentro,fazendo mil tropelias aos incautos refugiados.

Dizer tal coisa era excitar mais e mais o sobre-humano valor do Juanillo oUrso e sua sede insaciável de aventuras, por perigosas que fossem; de modo que

1 Esta é a maça de Hércules, é obvio.

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não vacilou um ponto em entrar com sua equipe, e, já instalados em seu inesperadodomicílio, foram-se todos por uns faz de lenha, menos Derruba Colinas, que ficouguisando o jantar na cozinha.

A pouco de encontrar-se solo Derruba Colinas sentiu um calafrio que lhegelou o sangue. Do alto do canhão da chaminé uma voz surda, funda e como vindado outro mundo, dizia com acento pavoroso: "Que me caio, que me caio!"...

Por grande que fosse o valor de Tomba Colinas, aquilo excedia a todahumana medida. Boa era qualquer aventura aqui na terra, e muito creditada tinha ohomem sua integridade; mas com as coisas do outro mundo... Assim que nossobravo fugiu apavorado como um menino, procurando vozes no monte a seuscompanheiros.

Repreendendo-lhe Juanillo o Urso tamanha covardia, e voltou a sua tarefa delenhador, deixando esta vez de guarda e guisandero a Pedra de Moinho.Echábaselas este de maior valor que Derruba Colinas; mas ao repetir-se, ponto porponto, a aventura, todo foi em vão; e tampouco pôde resistir o terror que lheproduziu o fatídico "que me caio, que me caio!" Do duende da chaminé. Assim,mais preparado que Cardona, escapou dando alaridos até unir-se a seuscompanheiros.

Esta vez tocou o turno de guarda a Arranca Pinheiros, que parecia um insetocapaz de assustar ao medo mesmo; mas, que se quiser! Sob a voz irresistível doduende correu mais logo e muito mais que seus companheiros.

Decidiu então Juanillo o Urso não agüentar mais tais abusos e covardias,despediu-os de todos, e com a maior tranqüilidade ficou a ultimar os misteres dojantar. Pouco se fez esperar o duende, com efeito, mas esta vez sem fruto. Seufatídico "que me caio, que me caio!" Foi respondido com suprema integridade peloherói: "Se te tiver que atirar abaixo que seja logo, pois te espero!”.

Um golpe forte foi toda a resposta, e um mutilado braço sem corpo rodoucom estrépito pelo chão como se estivesse vivo. Juanillo, com o maior sangue-frio,colheu com as tenazes aquele membro, pô-lhe de lenho na luz e seguiu guisando ojantar como se tal coisa.

O duende, entretanto, não se dava a partido, e voltou a seu estribilhopavoroso: "Que me caio, que me caio!" Ao que Juanillo, em lugar de acovardar-se,respondia: "te atire quanto antes, que te espero!"

Outro golpe seco, outro braço sangrento e outro lenho para a luz, como aprimeira vez.

Assim, uns atrás de outros, foram caindo estrepitosamente os braços, aspernas, o tronco e até a cabeça, uma horrenda cabeça de monstro, que o grandeJuanillo colheu com o maior sangue-frio, dizendo: "Bons lenhos trashogueros têmcansado e bom assento é para mim esta cabeça!", E se sentou tranqüilamente sobreela.

Então ocorreu uma coisa estupenda: aqueles membros sangrentos sebuscaram uns aos outros e se recompuseram em um instante, formando a pessoa

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mais feia, repugnante e raquítica que se pode imaginar, com uma pipa maior trêsvezes que sua pessoa e pedindo luz ao Juanillo com um sorriso sarcástico,encobridora das mais protervas intenções do mundo, como fera que espreita aagonia de sua vítima.

Jamais esteve mais heróico Juanillo. Como uma águia, caiu sobre aquele fetodo abismo, e, lhe arrancando a pipa, começou a descarregar sobre ele golpes demorte. O espectro começou a bater-se em retirada e foi esfumando-se pouco apouco, deixando um rastro de sangue, que Juanillo seguiu até advertir que seencaminhava ao poço da casa, em cujas profundidades tenebrosas o duende acaboupor desvanecer-se.

Chegados os companheiros, ficaram espantados de quanto lhes relatouJuanillo, e decidiram em seguida explorar aquele fundo poço, ao que este se opôsdizendo que o primeiro era jantar com calma. Provido depois de uma campainha,descendendo os três heróis ao poço, valendo-se por toda soga de suas barbasrespectivas, sem dar mais razão à volta de sua exploração senão a de que ali abaixohavia uma praga de mosquitos.

Repreendendo-os rispidamente Juanillo o Urso sua estupidez e covardia,resolvido a baixar ele em pessoa a esclarecer tudo, como o fez, encontrando-se,com efeito, a muitas centenas de varas, lá abaixo, uma galeria imensa que abocava aum formoso palácio de mármore e pedraria, onde topou com uma admirável jovemque arrasada em lágrimas se jogou em seus braços, lhe chamando seu libertador seacessava a lutar e vencer a uma terrível serpente que tinha que vir às dez daquelanoite a lhe provar as forças 1.

O mancebo não desejava outra coisa. Esperou tranqüilamente a horaprefixada; saltou sobre os lombos da horrível serpente, assim que ela se mostrouentre a maleza com aparelho horripilante, e em um momento a afogou entre suasmãos, libertando de seu encanto à donzela, que era nada menos que a deusa daFortuna. Ao despedir do mancebo, rogou-lhe libertasse de igual modo a outra irmãdela que jazia encantada também naquele antro, muito mais abaixo, para o qual, àsonze da noite, teve que lutar com um touro selvagem. A deusa da Formosuravoltou desta maneira ao mundo. De igual maneira aconteceu, enfim, com a deusado Amor; mas, para libertá-la, teve que lutar, às doze, com o duende verdadeiro,isto é, com o diabo em pessoa, no fundo da sima. Prevenido, entretanto, peladeusa, rechaçou todas as espadas dentre as muito formosas da sala de armas dodemônio, contentando-se com sua famosa maça. Os dois rivais, como bonscavaleiros, decidiram comer antes de brigar; mas Juanillo teve a precaução de comersó do mesmo prato do demônio e fumar de seu mesmo tabaco. Logo, na briga,derruba-lhe uma orelha com a maça; cai aquela com estrondo, e um minúsculo

1 Desde esta passagem, a narração coincide no fundamental com a lenda da orelha do diabo noreferente à Cova da Zampona, sob a ermida de São Saturio, ou seja, com a cena wagneriana dasfilhas do Reno.

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gnomo surge disposto a lhe servir. Pede Juanillo tornar entre os vivos, eimediatamente lhe trazem os gênios da cova. Chegado à Corte, encontra-se comque as mulheres ou deusas salvas por ele se casaram com seus companheiros deaventuras, menos a última, quem, fiel à promessa que tinha feito ao Juanillo,guardava a metade da maçã de ouro que com ele partisse como contra-senha para ofuturo.

Efetivamente; o rei daquele reino e pai da muito bela jovem tinha feitoproclamar por todo o país que sua filha daria sua mão a aquele que apresentasse ameia maçã de ouro companheira da guardada por esta. Centenas de esforçadoscaudilhos se disputam tamanho tesouro; mas é em vão, porque a princesa nãoconsegue achar sua "meia maçã" complementar, até que se apresenta Juanillo,cavaleiro em seu alazão e mostrando-a com ar de triunfo. É reconhecido assim portodos, e então proclamado herdeiro do reino ao casar-se com a formosa donzela.

O anterior relato bem pode titulá-la lenda de Hércules na Extremadura e foirecolhido verbalmente por nós de lábios de dois ou três narradores. Por cima desuas evidentes analogias com multidão de mitos arcaicos, ressaltam, com efeito,nele as que guarda com o herói grego.

Os trabalhos que ao Hércules impusesse seu irmão Euristeo por decreto doDestino, recordam-se uma vez mais ao ler os heroísmos do Juanillo o Urso. Orelato, por mutilado que resulte, enumera, além disso, os outros onze ou dozetrabalhos de Hércules, trabalhos que podemos resumir assim: primeiro, o removerum muito enorme penhasco que lhe impedia de sair de sua cova para o mundoexterior, obstáculo simbólico qual o que incomunica nosso mundo com o dasrealidades superiores, sendo de ver aqui como se recorda de longe a lenda orientaldo Buddha, menino cuja infância se manteve isolada de todo o exterior, em meiode uma dourada ilusão que não conhecesse a dor, a enfermidade nem a morte,como Juanillo não conhecesse outros meninos, seus irmãos. Este penhasco oumole removida bem pode aludir além ao deslocamento do Calpe e Abila, que pôsem comunicação os dois mares ou mundos, o interior ou Mediterrâneo com oexterior ou Atlântico. No segundo trabalho, Juanillo lança pelos ares a seu primeirorival. No terceiro, comem-se sete bois inteiros, que recordam aos sete famosos doGerión, e no quarto, sete fanegas de pão. Estes dois trabalhos, junto com o quinto,em que esgota as peles de vinho dos tropeiros, são uma alusão clara aos sacrifíciossacerdotais de pão, veio e vítimas propiciatórias, cujo culto cruento Juanillo deviaabolir.

No trabalho ou sexta façanha, esgrime Juanillo sua clava prodigiosa, que nãobastam a mover cem homens. No sétimo, volta a seus alicerces a colina, cone oupirâmide que Derruba Colinas derrubou, à maneira de todos os restauradores dosMistérios perdidos. No oitavo, dirige as duas pedras circulares do moinho, ousimbolicamente domina os princípios sagrados dos ciclos. No nono trabalho seapodera acaso da chave da Árvore da Vida, simbolizado assim que elimina abarbárie de Arranca Pinheiros. No décimo, vence ao terror mesmo, ou seja, dominaao astral, como nós diríamos, vendo impassível o grande mistério do Jogo de dados

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do Baco, aquele medroso Vestiglo que, parte detrás parte, fosse caindo da chaminépara recompor-se ante sua vista como o deus acima aludido.

Por último, nosso Hércules-Juanillo dá topo a suas façanhas com outros doistrabalhos, ou seja, vencendo à serpente dominadora do encantado antro do poço,como o semideus grego matasse à Hidra da lacuna da Lerna, e derrubando a umferoz touro, como aquele que dominasse Hércules na ilha de Creta. A apoteose oucoroa de todos estes esforços inauditos do Juanillo, é a conquista de uma Maçã deOuro, qual a do Jardim das Hespérides, maçã da que se vale o herói para serreconhecido no momento do triunfo, ou seja,quando consegue desposar-se com oHebé, a deusa do Amor e da Juventude, com detalhes idênticos aos que jáconhecemos de outras fábulas, tal como A orelha do Diabo, Branca-Flor, e amesma lenda de Psique e Eros, símbolos todos eles do supremo Samadhi ou uniãodo Ego inferior humano com seu Ego superior que nos ensina a doutrina Ioga,depois da imensa série de lutas que supõe tão excelsa conquista.

Juanillo, com sua pele de urso, e Hércules com sua pele de leão, são, pois, oprotótipo do humano herói que busca e acha a Iniciação nos Mistérios, depois decruentos sacrifícios. Admiremos uma vez mais, portanto, a grandeza das VerdadesPerdidas, que de tão doce maneira despertam em nossos dias, surgindo, como ocaule de seu pérula, da grosseira casca de mitos populares, conservados naaparência, séculos detrás séculos, não mais que para distração dos meninos.

# # #

O Viajante Wotan, depois de ter visitado como todos os iniciados as regiõesinfernais e terrestres, penetrou no mais recôndito Santuário do Mundo, ali mesmoonde Erda, ur-valha-a ou Sibila primitiva, que é Ea ou nossa Mãe-Terra, dormenesse pralaya nirvánico do onisciente Sonho sem Sonhos dos poemas hindus. Sóum deus como Wotan pode chegar até ali atravessando as assombrosas ravinascortados a pico entre os sinistros vapores sulfúreos de verde-azulada luz astral queenchem aqueles âmbitos muito profundos. O Viajante chega a aquele Abismo einvoca a Erda para que aquela primitiva Sabedoria do Universo lhe dê um remédiocontra o imenso temor que já sentem os deuses vendo aproximar-se aquele seuOcaso previsto pelas profecias no dia, chegado já, em que, obrigados sempre arespeitar os juramentos dos Pactos, tenham que reinar, não obstante, pelo perjúrioe que castigar sem piedade toda audácia daqueles mesmos a quem eles fizeramaudazes e que opor-se à Vontade própria daqueles mesmos a quem a desse osdeuses. Enquanto isso, os homens, assim divinizados por seu próprio esforço esimbolizados pelo Sigmundo, pela Siglinda, pela Brunhilda e pelo Siegfried, graças asuas galhardas rebeldias, foram ocupar, como novos deuses, os céus. Pararesponder a tamanha interrogação do Destino, Erda, a mãe do primitivo terror,abisma-se, aterrada também, e enquanto isso chega Siegfried e tropeça de mãos ao

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7Wotan, que lhe interpõe pretendendo lhe cortar o passo para a rocha encantadaonde jaz Brunhilda 1.

Sobrevém em seguida o conflito horripilante, e a cena trágica de antigamentese reproduz, pois de novo a Lança dos Pactos, a triste custódia da Ordemestabelecida, opõe-se à Espada Nothunga da Liberdade e do Progresso; reproduz-se, dizemos, a cena qual ao longo dos ciclos do mundo retornam sempre redivivastodas as coisas que se acreditassem mortas; mas esta vez o braço de quem éInocente e não conheceu jamais o Medo é invencível até para os deuses mesmos, ea Lança das runas salta, ao fim, feita lascas ao impulso do Rebelde, quem inauguraassim uma nova era, "sem que o velho (como dizia o herói) interponha-se em seucaminho".

Vencidos assim quantos obstáculos lhe fechavam seu caminho triunfal;guiado sempre pelo conselho da Ave e entoando ao som de sua tromba seu mágicogrito de triunfo Ho-ohl Ho-ho! Ha-hei! Há- hei! Chega, ao fim, o herói até o objetode seus eternos amores inconscientes, até seu Ego divino: a ex-walkyria Brunhilda...Não há pluma apta para descrever sem lhe profanar este imortal idílio, símbolo daunião augusta do ego inferior do Homem com sua Essência Suprema ou Tríadedivina. Nem os mesmos poemas industânicos análogos, alusivos ao encontrosublime, podem nos dar a imagem fiel daquela cena da Redenção pelo Amor,aumentada pela orquestra, ignorantes como ainda estamos a respeito dosaprimoramentos do verso sânscrito, que é forma, nota, cor e harmonia nos mantrasvédicos. Por fortuna, nós, os filhos de cem gerações welsungas, vítimas tradicionaisde todas as tiranias, alcançamos a viver nos tempos em que as luzes, poesia, música,fantástica mise en scéne, todo este aparelho cênico do drama wagneriano, enfim, une-se esplêndido para sumir em embevecimento! Mágico nossos sentidos, e nostransportar a um mundo ideal de Mistério como certamente não tem voltado a lhedesfrutar a Humanidade desde que os cultos iniciáticos foram abolidos pela tiraniamilitar no Oriente, no Ocidente, na Europa e na América.

"Ao chegar a esta suprema cena - diremos parafraseando ao M. Ernest,chamado pelo Luis Paris em sua tradução que fielmente seguimos-, a música deWagner escala as mais prodigiosas alturas do sublime. Uma harmonia solene detemplo inicia o incomparável despertar da deusa que descende a mulher em asas doAmor que vivifica... Brunhilda contempla à Natureza emancipada e livre... Pouco apouco vai assim recuperando a consciência do mundo e da vida, porque se vãodesenvolvendo, trancados em íris de suprema seriedade criadora, o tema proféticoda Ur-valha, cantando o fim do orgulho dos deuses; o abnegado amor deSigmundo e Siglinda; a vibrante travessia do Fogo Encantado, todo faíscas e todoluz; os mais amplos períodos orquestrais desenvolvidos sobre as augustas notas da

1 "Desde que existo, um velho se atravessa em meu caminho", ruge indignado Siegfried, como sepor sua boca de Redentor humano protestassem contra suas férreas cadeias, carma cruel, lastroterrível de passadas culpas e funestas idades pretéritas, todos os oprimidos do mundo, todos osrebeldes divinos...

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tromba de Siegfried; o motivo juvenil da Freya com sua eterna primavera; o sonhovirginal de Brunhilda, sublinhado por frases das paternais ternuras daquele Pai-Deus que, ao beijá-la por vez última, levou-se sua divindade com seus lábios, nasempre absorvente melodia do Encanto de Amor, com cujo mantras se podeencadear ao Mundo...

- Salve, Oh, Sol! Salve, Oh, Luz! Salve, esplendor deste Dia entre os dias! -Canta Brunhilda ao erguer despertando de seu sonho secular sobre a rocha, quandolouco de emoção nosso herói há ao- zado o escudo que a cobria, levantado seucasco e quebrado com sua espada todas aquelas suas velhas ligaduras... - Eu souseu próprio ser; eu sou você mesmo! - Continua com crescente exaltação a mulhernova... Oh, Herói-Menino! Oh, Menino sublime, tesouro inconsciente das façanhasmais augustas!... Passe, afundando-se no pó, o orgulhoso burgo dos deuses; a antesbrilhante Walhalla! ROM- ped, Oh, Nornas, o fio do destino dos deuses todos!... Amatutina Estrela de Siegfried e de seu amor heróico, seja minha só herança parasempre, envoltos em nuvens fragrantes da divina Voluptuosidade pagã, Verdadeúnica e suprema...!

Comentários a esta apoteose? Não há possibilidade de fazê-los depois dequanto levamos dito a respeito de esse outro idílio entre o Tristão e Isolda, idílio queaqui se vê reproduzido, tanto na sublimidade de seu simbolismo literário, quantono colossal de sua música. Em respeito e comemoração tão somente a sublimefonte onde bebeu esta Wagner e outras análogas inspirações, às que nem mesmochegou Buffon ao descrever "os primeiros momentos da existência da Eva",limitar-nos-emos a copiar a célebre passagem do Fogo Encantado que aparece emDom Lanzarote do Lago, como em outras várias lendas cavalheirescas, fogo que, separa quantos desventurados não admitem ainda a realidade do Ocultismo e aMagia, pode muito bem ser símbolo necromante do amor humano que sempretermina em lascívia, texto em mão não pode ser para nós, senão esse divino fogo deVista, a Divindade Única dos pelasgos, que não só está acima de todo sexo, mastambém é com ele perfeitamente incompatível, razão pela que de homens nostransforma em deuses.

Conforme nos ensina, com efeito, o sábio Bonilla e São Martín, o códiceespanhol incompleto que contém a versão castelhana do Lancelot do Lac e quecomeça com os sonhos do Galeote, contém uma expressiva passagem no que narracomo o cavaleiro Lanzarote descobriu o encantado sepulcro do Galaz, quer dizer,recebeu a Iniciação. Copiemos-lhe, pois, literalmente, salvo, a, um tanto molesta,ortografia da época:

"... E tanto andou Dom Lanzarote, que chegou a uma casa de religião, e adonzela lhe disse: "Senhor, tempo é já de albergar, e vejam aqui uma casa dou nosalbergarão muito bem, porque são cavaleiros, e por meu amor." "Muito me agrada -disse Lanzarote -, porque você quer." Então se chegaram à porta, e acharam doisfrades que os receberam muito bem, e disseram que bem fossem vindos. E desdeque conheceram a donzela fizeram muito grande alegria com ela, porque ela era de

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grande linhagem e neta daquele que aquele monastério fundasse. Então lhe levarama uma muito formosa câmara e desarmaram-no. E ainda não tinham atirado acadeira ao cavalo do Lanzarote quando ali chegou o homem bom e seu filho, e foimuito bem recebido de quantos estavam no monastério, porque muito bem faziaaquela Ordem cada dia; mais muito foi bem servido Lanzarote aquela noite dequanto os frades puderam haver e na manhã, logo que se levantou, foi a ouvirmissa e dizendo-se do Espírito Santo. E tão logo como a missa foi dita, um fradeque ali estava disse ao Lanzarote: "Senhor, me hão dito que vinham para liberar aosque estão nesta terra por servidão." "Se Deus nisso queria pôr conselho - disseLanzarote -, de grau farei eu todo meu poder." "Senhor - disse o homem bom-, istolhes digo eu, porque aqui está a prova disso; pois aquele que a cumpra terá a honradesta batalha e desta aventura." " Muito de grau - disse Lanzarote -, prová-la-ei." "-Pois eu lhes mostrarei - disse isso ele."

Então, armado como estava, salvo as mãos e a cabeça, se foi, com o homembom, e llevóle a um cemitério dou jaziam enterrados muitos corpos de cavaleirosque muito fossem homens bons a Deus e ao século. E provou pelo cemitério e viumuitos monumentos de mármore, muito ricos e muito formosos, e eram bemquatorze, e entre eles havia um que era mais rico e mais formoso que todos osoutros, e o homem bom levou ao Lanzarote a aquele monumento, e o monumentotinha em cima uma grande pedra que tinha de grosso mais de um pé e estavajuntado com chumbo o alicerce 1. Era de grande formosura e muito rico, e ohomem bom disse a Dom Lanzarote: "Vejam aqui a prova. Saibam que o queelevar esta pedra que está de suso neste monumento, acabará a aventura que sedeseja." Então travou Lanzarote da pedra pelo cabo mais grosso e desjuntóla dochumbo e do alicerce e atirou-a ao alto acima de sua cabeça, e provou nomonumento o corpo de um cavaleiro que estava armado de todas armas e tinhasobre si um escudo; o campo dourado, e nele uma cruz vermelha, e a espada quetinha estava tão clara como se neste dia a trouxesse de acincelador, e a lança, osquijotes e as canilleras eram tão brancos como a neve. Ele tinha uma coroa nacabeça, pois tal era então o costume, que não soterravam então cavaleiro senãoarmado de todas suas armas. E Lanzarote viu neste monumento letras que diziam:"Ai, que aqui jaz Galaz, filho do José de Abarimatea, que conquistou ao Galaz nocampo em que o Santo Sienal, que antes foi chamado Alice 2, foi gasto à Grã-Bretanha." Muito longo momento teve em suas mãos Lanzarote elevada a pedrasobre sua cabeça, e quando a quis voltar a deixar como estava, não se pôde ela

1 Esta pedra é a Petera ou Kiffa, a pedra da iniciação; a pedra que obstrui ao Juanillo o Urso àsaída de sua gruta e a pedra que em tantas lendas, como na do Aladino e outras referidas emnosso livro De gente do outro mundo ocultam a entrada da galeria onde jazem os tesouros. De ditapedra se fala também muito em multidão de passagens das lendas, alusivos todos ao mundo dosjinas.2 Embora careçamos por hoje de tudo fundamento filológico, figuramo-nos que este Alice ou Graaldeve ter acento na, preparando assim a palavra álice ou cálice, de onde vem o nosso de cálice.

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baixar, e disto foram maravilhados quantos ali estavam. "- Senhor - disse o homembom -, vocês acabastes esta aventura, e eu não acreditaria nada do que está por vir,se por vocês não têm que ser livres todos os desterrados."

Então lhe levaram a monastério para dar graças a Deus, e Lanzarote paroumemore e viu sair por uma janela grande labareda de fogo de uma cova que estavaclandestinamente, e perguntou que fogo era aquele. "Senhor - disse o homem bomque lhe levou a cemitério -, esta é uma aventura." "E que aventura?" - DisseLanzarote. "Senhor, é um monumento que aqui dentro está e todos testemunhamque o que abrisse aquele monumento acabaria a aventura da cadeira perigosa daTabela Redonda, e as da Grã-Bretanha e a demanda do Santo Graal." "Essemonumento quereria eu ver de grau" - disse Lanzarote. "- Senhor - disse o homembom -, bem o podem ver, embora não o podem acabar, pois a aventura não é sua,que um só homem não pode levar duas aventuras destas a cabo." "Eu o provarei -disse Lanzarote -, e lhes rogue que o mostrem." "Parabéns muito de grau" - disse ohomem bom. Então lhe levou a uns degraus, e Lanzarote descendeu por elas a umacova que estava debaixo de uma capela e, no fundo, viu um monumento que ardiade todas partes com muito grandes chama. Muito provou Lanzarote em redor datumba, e muito se maravilhou e teve por louco por haver ali vindo, porque nãopodia acertar como pôr mão em tal aventura sem ser morto. E pensou de voltar-se;mas quando teve dado três passos, virou-se e disse: "Ai, Deus! Ai, Deus! Que duelohei, que dano!", E começou a dar uma mão com outra, e a fazer o maior duelo domundo e a amaldiçoar o dia em que tinha nascido, porque assim ficava desonrado evencido. Então se foi contra o monumento para abri-lo e ouviu uma voz que, saídadele, dizia: "-Por seu mal vais seguir adiante! Não te chegue para cá que a aventuranão é tua nem a poderá acabar!" E quando Dom Lanzarote ouviu a voz e não viupessoa alguma ao redor de si, disse-lhe: "Quem é você, que assim fala?" "-Mas,quem é você - disse a voz -, que Ai, Deus, que duelo e que dano! Disse? Após tedizer hei tudo que me demandar, pois não sou diabo nem fantasma, nem coisa daque possa vir mau." "Tanto me dá - disse Lanzarote - que seja boa coisa como má,contanto que me diga o que te demandar, que eu te darei o que você me demanda,assim é que a mais da gente que me conhece, tem-me pelo melhor cavaleiro domundo, e agora vejo bem que o mundo me enganou, pois não sou tão bomcavaleiro como dizem; e, por outra parte, sei bem que nenhum cavaleiro tem medo,e eu agora tenho medo, assim posso dizer que não sou bom cavaleiro." "Ai! -Dissea voz-, você diz bem e mau; bem, porque diz que nenhum cavaleiro tem pavor, emau, porque diz: Ai, Deus, que duelo e que dano! E isto diz porque não é o melhorcavaleiro do mundo; mas isto não é dano, porque o que tem que ser o melhorcavaleiro do mundo terá em si tão altas coisas que nenhum outro as terá. Quepisasse nesta cova e visse este fogo arder, logo será morto, porque no esperado nãopoderá haver fogo de luxúria... Você é de cavalaria bem guarnecido; eu te conheçobem e ambos somos de uma linhagem. E sabe também que o que me tem queliberar será tão próximo parente que mais não poderá ser. E sabe que ele será a florde todos os verdadeiros cavaleiros, e que você mesmo acabará as aventuras às queele desse topo; mas você o perdeste pelo grande amor de luxúria que está junto a ti,

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e porque seu corpo não é digno de acabar as aventuras do Santo Graal pelos vispecados e sujos de que você é envenenado, e por outra parte o perdeste por umpecado que o rei Vão do Benoit, seu pai, fez, pois depois que ele se desposou comsua mãe, meu pariente, que é ainda vivo, dormiu com uma donzela, e disto te vemuma parte de desventuras, porque você não tem por nome de pilha Lanzarote,senão Galaz 1, mas seu pai te fez chamar assim por amor de seu pai que levavaaquele nome. E agora te digo, meu bom parente, que sei que não poderá dar cabo aesta aventura."

E quando Lanzarote entendeu que sua mãe era viva, teve tal prazer, queapenas o poderia o homem fazer nem dizer. Então perguntou ao da voz que comose chamava e como estava ali encerrado e se era morto ou vivo. "Isso lhes direi eumuito bem - disse a voz -, que sou sobrinho de Josef Abarimatia, que descendeu anosso Senhor Jesus Cristo da Cruz e trouxe o Santo Graal à Grã-Bretanha, mas porum pecado que eu e meu irmão fizemos sofro esta grande pena e este tortura.Tenho por nomeie Simeão e meu irmão Moys 2, cujo corpo jaz no palácio perigosoa dou acaescen aos cavaleiros andantes muitas aventuras, e se não fosse pelabondade de meu tio Josef, fôssemos perdidos das almas e dos corpos para semprejamais; mas Deus, por sua bondade, outorgou-nos a salvação das almas pela penaque sofremos nos corpos, e cada um de nós foi posto em tal copo e sofremos taldor até que venha aquele que nos tem que tirar, e sua vinda está já próxima, poisapenas se faltarem trinta anos e então será o término para nossa liberação. Agorame digam, bom sobrinho, o que querem fazer desta casa." "-Eu lhes digo - disseDom Lanzarote -, que daqui não vá ensaiar esta aventura." "Agora lhes direi eu -disse Simeão -, que tomem água da que está nessa pilha, em que se lava o empresteas mãos depois que consumou o Corpo de Deus, e lavem seu rosto e suas mãoscom ela e joguem dela sobre nós Y. desta guisa poderão chegar a este monumento,pois de outra maneira seriam morto." Lanzarote ao ponto tomou a água e fez comoSimeão lhe tinha mandado, e se meteu tanto entre o fogo que chegou aomonumento e tratou de lhe abrir, mas não pôde, e quando viu que outra coisa nãopodia fazer, tornou a subir pelos degraus e saiu fora da cova. Então achou à saídagrande multidão que lhe esperava temendo sua perdição. Lhes calou a aventura. Ohomem bom que lhe tinha mostrado a tumba do Galaz, disse-lhe assim que lhe viusão: "-Não estejam triste porque não deram fim a esta aventura, porque agora nãohá homem no mundo que a desse cabo; mas por quanto têm feito neste cemitérioconquistastes grande honra, porque são o melhor cavaleiro que nunca aqui entrou,que foram mais de quinhentos." "-Tanto sei bem - disse Lanzarote - que grandepromessa é em si ter dado topo a esta aventura."

1 Galaz, lido por ternura é Rapaz, ou seja, o discípulo do Pastor ou Mestre, e por isso nãochegava ainda a ser lanzarote, ou seja, senhor da verdadeira lança solar, quer dizer, Iniciado.2 Moys, ou melhor, Moisés, o filho do Simeão, ou seja, "a da sarça ardente" de outras lendas.

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Wagner Mitólogo e Ocultista – Capítulo XIII

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Enquanto eles assim falavam, entrou uma muito grande companhia de gentee traziam umas anda e pidiéronles o corpo do rei Galaz. Eles lhes perguntaramcomo sabiam que o corpo do rei Galaz estivesse fora de seu monumento. "-Senhores - disseram eles -, a homens bons do Galaz veio em visão que o corpo dorei Galaz seria fora do monumento o dia da Ascensão. Lanzarote tomou o corpodo rei Galaz e sacólo do monumento e púsolo nas anda, e aqueles que pelo corpovieram se foram com ele por uma parte e Dom Lanzarote por outra..."

Chegados a este extremo do mito walkírico temos que fazer ponto, pois nosvemos já com a anterior lenda em pleno mito de Parsifal e seu Santo Graal, dentroda intrincada textura que enlaça a todos os argumentos wagnerianos como se elesnão constituíssem em pureza senão uma obra gigantesca e única para assombro dosséculos.

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Wagner Mitólogo e Ocultista – Capítulo XIV

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CAPÍTULO XIVO CREPÚSCULO DOS DEUSES

O fio dos Parcos e o Tecido do Penélope - Os anais akásicos - Hagen e seusGibichungos - Os Esaú e Jacob nórdicos - Siegfried, como todos os rebeldes,navega sempre contra a corrente no mundo - Pacto de sangue. Os filhos de Deus eas filhas dos homens - O gole fatal do Leteo - Siegfried e a humana cegueira -Como, sem sabê-lo, envilecemos nossa Alma divina - O roubo do Anel doConhecimento - O rapto de Brunhilda - Gutruna, Apsarasa purânica - A Taçavence à Espada - Idílios chineses e industânicos concordantes - Uma lembrança dopríncipe negro das mil e uma noites - Lamentos das Filhas do Reno - Fasolt-Fafnere Alberico- Mímico - Lembranças do Tristão, do Conde do Partinoples e de outrosmitos - A violação do Sigilo Sagrado - Hagen-Siegfried e Remo-rómulo, com seuscorvos - "Quando o homem conheceu a linguagem das Mulheres esqueceu o dasAves" - Morte do herói - Sacrifício de Brunhilda - Precedentes de tudo isto natragédia grega - Redenção pelo Amor - O ocultismo do Anel - Como o homemignora todo conselho e só pela experiência castiga - A sagrada Voz do Inconscientee os julgamentos intuitivos - As humanas castas - O final do Ocaso e os doisgrandes continentes que ao nosso precederam. Wagner e o Apocalipse -Ensinamentos orientais e de Sêneca a respeito da destruição dos mundos.

É de noite. Encontramo-nos à vista da ravina aquele que conduz ao abismoda Mãe-Terra. Nele as três Nornas ou Parcas sombrias, filhas da primitiva Ur-valha,tecem e cortam a turno os Fios de Ouro de todas as estoque. O tema augusto daNatureza eterna empapa de mistério aquele ambiente, universal raiz de tudo quevive. Como ali não Aconteceu nem Futuro, se vejam deslizar umas atrás de outrastodas as peripécias a que desse lugar o famoso Anel do Nibelungo, ou seja, em suma,a Luz Astral, os Anais Akásicos, nos que está escrito o Drama da Vida, desde que aÁrvore do Mundo jogasse suas raízes no illus da Matéria prima e elevasse sua taçapara o infinito do Supremo Espírito, cobrindo sob seus ramos e raízes a todas ascriaturas, até o momento do crime do Alberico; mas ao chegar aqui, o fiodesgastado de horror pela lembrança daquele filho do Ódio e da Inveja queamaldiçoou, ímpio, ao Amor mesmo, rompe-se; a ciência das sibilas aquelas sedissipa com a luz do nascente dia, e, consternadas, as Nornas retornam ao seio desua Mãe, enquanto que Brunhilda e Siegfried saem da gruta de seus amores,disposto este para empreender novas façanhas protegido por seu Elmo, que lhetorna, a vontade, invisível, ao par que deixa a Brunhilda, em prova de fidelidade, omágico Anel para que a proteja em sua solidão de fada daquele ígneo e encantadorecinto.

A cena anterior se desvanece, e estamos agora na terra dos mortais vulgares,na morada dos capitalistas Gibichungos, entre duas colinas junto ao Reno. Os reisdaquela gente são Gunther e sua irmã Gutruna. A seu lado está também Hagen,irmão bastardo de ambos, como filho que é da mesma mãe e do perverso Alberico,

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Wagner Mitólogo e Ocultista – Capítulo XIV

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quem engendrou ao Hagen sem amor, enganando à força de Ouro à mãe, com oexclusivo fim de ter amanhã com tal filho um novo instrumento de sua vingançacontra deuses e heróis, apoiado por todas aquelas infelizes gente dormidas queintegravam o povo de Gibich, entre os dolmens, menires e cromlech, consagradospela servil adulação sua religiosa ao Wotan, ao Donners ou a Fricka, povo, enfim,qual aquele dos vermelhos e negros ou dos vermelhos e azuis industânicosNilolohitas, filhos dos gigantes e gnomos e rivais jurados do Nidelhöle contra osverdadeiros Filhos de Deus ou rebeldes welsungos, naquela luta da Rutha e Daytia,que, ao dizer dos livros purânicos, conduziu a catástrofe final dos deuses e acompleta destruição do continente glorioso da Atlântida.

No Gunther e Hagen, espécie do Esaú e Jacob dos Eddas, está representadatoda a humana raça vulgar, uns ignorantes e sugestionáveis, perversos e bastardosinstrumentos dos elementares do Mal os outros. Hagen, em uma conversaçãoíntima dos três irmãos orgulhosos de seu terreno poderio, diz a seu irmão queembora sua glória é já grande e invejável, falta-lhe ainda muito para ser o quedevesse, porque ele sabe de imensos tesouros que Gunther não conquistou ainda, eao par que está ele sem companheira, tem também sem casar a Gutruna - Sei –acrescenta - de uma mulher perfeita, chamada Brunhilda, cujo albergue é umamontanha rodeada de chamas, mulher a que ninguém pode conquistar se não ser oPredestinado, Siegfried, o broto dos welsungos, o matador do Dragon Neid-hohleque custodiava o Tesouro dos nibelungos com o que haveria bastante para fazer osenhor do Mundo. O bastardo segue aconselhando a Gunther com a mais finaperversidade que pudesse fazê-lo nibelungo algum.

Nisto ressona alegre a tocata da tromba de Siegfried. O herói vem com suacasquinha Reno acima, navegando contra corrente como só ele pode fazê-lo. EntãoHagen termina recomendando a Gunther que, pois Siegfried vem, tente acima detudo um esforço por lhe fazer que se apaixone por Gutruna, para o qual bastaráque Hagen lhe faça gostar tão somente um gole daquele filtro mágico doesquecimento que o bastardo filho do Alberico soube conquistar com sua refinadamalícia.

Siegfried chega à borda do rio com seu cavalo Amadureça, cedido pelaBrunhilda, e único que esta conservasse do perdido esplendor da Walkyria. Atromba do herói despertou ao passar às chorosas filhas do Reno. Gunther e Hagenrecebem com grande vassalagem ao herói e lhe conduzem em triunfo até opoderoso palácio de Gibich. Gutruna, pudica e gostada muito, ao ponto, dagentileza de Siegfried, se oculta. O herói, ao chegar, propõe a Gunther o dilema deou brigar ou ser amigos, ao que Gunther lhe oferece incondicionalmente por dele eambos os jovens consertam um pacto de eterna fraternidade, pacto que, comotodos os de então, ratificava-se bebendo ambos os futuros irmãos de armas umhaste de vinho em que previamente mesclassem sangue de suas veias. Gutrunaentão se apresenta ruborizada e tenra trazendo para o herói outra haste distinta, emque Hagen cuidou, pérfido, de verter antes umas gotas do licor do Leteo, ou filtrodo esquecimento.

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O filtro mágico sorte ao ponto todo seu efeito. Siegfried, que ao lhe elevardiz que bebe pela Brunhilda seu amante, esquece-a naquele mesmo momento e, aoacabar de beber, fica já cegamente prendado da Gutruna, que amorosa lhe tinhaservido. O impetuoso jovem lhe declara no ato sua paixão, e como perguntassedeste modo a seu novo irmão Gunther se tinha mulher e este lhe dissesse que não atinha ainda porque a única mulher que poderia lhe fazer feliz habitava rodeada dechamas em uma montanha inacessível, Siegfried se brinda generoso a ir econquistá-la para o Gunther em troca de que este lhe conceda a mão da Gutruna,esquecido já por completo, Oh cego e inconstante Deus-Amor! De que a mulherque ia conquistar para o Gunther, era nada menos que seu Numen, a antes adoradeBrunhilda,

Os dois guerreiros terminam de selar sua fraternidade com o Pacto deSangue: ambos se cravaram com suas espadas em seus braços respectivos deixandocorrer o sangue sobre a haste de vinho que bebem por metade e a turno. Hagen,que se acha entre ambos, sem querer participar do juramento por sua condiçãoinferior de bastardo, rompe logo com sua espada o haste, enquanto Siegfried eHunter se estreitam fraternalmente as mãos e partem ambos para a ribeira do rioem que Siegfried reembaixa em demanda da projetada conquista de Brunhilda,enquanto que Hagen, de longe, saboreia infame o fruto cruel de sua baixeza, dignade sua raça nibelunga.Brunhilda, enquanto isso, bem alheia à tempestade que sobre sua cabeça se abatia,acha-se sentada na entrada de sua gruta, contemplando absorta e beijando mil vezeso objeto de seu amor: o Anel de Siegfried. Nisto, ressonam nos ares os relinchosbélicos da walkyria Waltraute. Que chega pressurosa, até o risco de incorrer nacólera do Pai, para acautelar a seu infeliz irmana do iminente perigo que a ameaçase não arrojar imediatamente o Anel maldito, causa única de quantos maus e ruínasameaçam aos deuses e ao mundo, se não ser devolvido prontamente às desoladasfilhas do Reno. Brunhilda, que em sua condição atual de mulher apaixonada e feliz,alheia por completo à desgraça que lhe mora, esqueceu já tudo que em sua anteriorcondição de virgem-guerreira sabia, nega-se absolutamente a renunciar ingrata atamanha gosta muito do amor de seu Siegfried. A walkyria Waltraute retornaconsternada, voando para a Walhalla, enquanto que o cego Siegfried cruzaimpávido as aumentadas chamas protetoras ocultando sua cabeça e cara sob oTarnhelm ou elmo mágico, e por ele transfigurado na própria forma e semblante doGunther, sem que Brunhilda, horrorizada ante semelhante ataque a seu pudor porparte de um desconhecido temerário, possa fazer outra resistência que impetrar aação dos mágicos poderes do Anel, até que o fingido Gunther lhe despoja dele,insensato, e penetra com ela na gruta invocando a sua Nothunga como objetojustificativa do respeito com que vai tratar no leito e em todas as partes o pudor daformosura roubada de Brunhilda que destina por algema para seu companheiro dearmas, Gunther, o gibichungo 1.Uma espada colocada no leito entre homem e mulher poderia, com efeito, assegurar a esta o maisperfeito em relação ao cavaleiro, acima de toda baixa paixão, segundo as leis augustas de cavalaria

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que nesta nossa grosseira época de materialismo não acertamos a compreender.A cena inteira do rapto de Brunhilda é, por outra parte, uma nova versão do mito tristánico, comooutra versão dele são os clássicos roubos de Sita, por Ramo, no Ramayana; da Helena por Paris,na Ilíada; das Sabinas pelo romano, na lenda da Cidade Eterna, etc. etc., simbolizadoras todasdessa violência com a que o homem inferior, de carne, por haver-se esquecido no Leteo da vida seusanteriores estoque, tem que empregar para conquistar os céus.

A traição de Hagen, o filho criminal de Alberico e digno êmulo de seu pai,começa, como se vê, a dar seus frutos, e a Taça do Hagen vence assim à Espada nasimbólica cartomancia da Tetralogia.

# # #Na parte do Ocaso dos Deuses que acabamos de relatar relativa às pessoas

vulgares de Gibich que fazem cair ao Siegfried o herói, desenham-se outros tantospersonagens de Os Puranas industânicos e também outros correlativos de váriaslendas orientais e espanholas.

Por de repente, a mãe do Hagen, que cometesse infidelidade subornada peloouro do Alberico, é a muito famoso Lilith hisdostânica, o Monstruo-hembra de fazmilhões de anos, com quem Adão engendrou aqueles filhos bastardos que aGênese chama depois "as filhas dos homens, de cuja formosura puramente animale física -como tantas outras formosuras, ai! Que andam pelo mundo- se gostarammuito os filhos de Deus", perdendo assim, por seu engano funesto, todos os donsdo céu e conduzindo com isso sua queda e o nascimento daquela perversa raça degigantes, símbolo dos atlantes da Má lei, que fora sepultada pelo Dilúvio, oudaquela outra gente egípcia que também fosse sepultada no Mar Vermelho. Oslivros secretos do Oriente dão aos aborígines tasmanios, negritos, australianos,adamanes, veddhas do Ceilán, chuetas de Balear, cretinos do Pirineo, bosquimanose cem outras raças degeneradas, onde quer confinadas em míseros rincões da terrapela inundação de mais perfeitos povos sucessores, uma filiação qual a das gente deGibich, tristes sobreviventes daquela cruel queda que arrastam seu velho carmasemi-animal e semi-humano pelos lugares mais recônditos e menos conhecidos doplaneta, esperando seu turno de redenção pelo progresso que é ação e é rebeldia.

Hagen é o perverso Ap-ap ou Batata, a serpente do Mal esquenta, interpostasempre no caminho do Aker, o herói justo, filho de Set ou Sat. Gutruna, a sua vez,é uma das Ap-sara - seja purânicas: a formosa ninfa da Paixão e do Desejo (Ramo),arma de tentação e irresistível, com a que os deuses invejosos fizeram cair aoshumaras ou ascetas virgens que em seus braços esqueceram, como Siegfried aobeber o gole do Leteo, sua origem celeste. O protótipo industânico, a sua vez,destes heróis cansados é Kandú, contra quem Indra-Hagen, ciumento de suasvirtudes, destacou à ninfa Pram-locha, quem lhe manteve seduzido com seusencantos nada menos que novecentos e sete anos, seis meses e três dias (cifratrastrocadas de um ciclo secreto de encarnação). Tamanho período transcorreu

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para o asceta na mais completa inconsciência, e ao sair do encanto, o tão piedosoMuni (manú ou homem) amaldiçoou à criatura que assim lhe seduziuinterrompendo suas devoções. A ninfa Pranloka, aterrada, fugiu ao bosque,enxugando o suor com as folhas das árvores, e o filho que tinha concebido vinho aluz pelos poros de sua pele (primitivo modo de reprodução humana por esporos, como asnovelas acotiledóneas, do que também falam os livros orientais). Soma, o deus lunar, maturoue aumentou as gotas de suor, e assim se produziu a Mari-shada, a deusa daformosura.

A bebida mágica de Hagen com a que Siegfried esquece a sua amada, ouseja,a seu verdadeiro Ego divino, em altares das humanas paixões daqui embaixo,quer dizer, de nosso triste reino gibichungo, recorda de longe a embriaguez do Noéao salvar do dilúvio, embriaguez que é símbolo da do espírito humano ao beber aságuas do Leteo e esquecer-se com isso do céu, que é sua verdadeira pátria. Não têmconto as lendas da Taça da Ilusão de vida nas mil e uma noites, tanto, que seurelato não caberia neste capítulo. Como lembrança muita qualificada deste gole doLeteo, está deste modo na lenda universal de Branca-flor o terrível esquecimentodo Príncipe (Siegfried), quando, depois de ter realizado mil proezas inverossímeiscom as que conquistou a sua metade excelsa, a muito belo Princesa se para a beberem um poço próximo a Corte do Padre-Rey - fiel imagem do poço do Mimer noque Wotan perdesse um olho como vimos- e tão logo como aquela água malditachega aos lábios, esquece absolutamente o Príncipe todo seu passado de glórias einicia uma vida vulgar de homem sem mente, até que em um momento solene (o daIniciação) volta a recordar seu celeste compromisso com a Mulher-Símbolo de seuDivino Espírito.

A taça do Hagen é, para os industânicos, a taça Sukra, a mais inferior dasduas taças sagradas ou cálices no sacrifício do Soma, ou seja, na invocação mágicaao Espírito da Lua que preside aqui embaixo a todos os fenômenos terrestres: a quepermite ao sacrificador ver astralmente só àquilo que possui por sua próprianatureza, qual acontece no que podemos chamar inspiração ordinária ou típica doshomens de talento que só vêem a Gutruna, a formosura lunar sensível, mas perdemde vista a Brunhilda, a invisível e solar formosura transcendente. A taça Manti, ataça imensamente mais augusta do chamado frenesi mántico das sibilas e pitonisas1, põe (diz-se) em presença da mesma Essência Divina, mediante o Ato Teúrgico, acerimônia mais perigosa, segunde Jâmblico, de quantas abrange a MagiaCerimoniosa, e, portanto, a mais severamente proibida aos neófitos. A verdadeirabebida do Soma da taça Manti, o Kikeon, Ambrósia ou Néctar dos deuses, só podeser gostado, com efeito, pelos Iniciados, e se diz que misticamente equivale aoJantar Eucarístico dos cristãos e ao Santo Graal templário, como veremos o nos

1 O frenesi mántico das sibilas e pitonisas era uma espécie de auto-sugestão hipnótica, pelos vaporesda terra e os perfumes queimados, que está ainda por estudar. Cantú diz que a mais antiga sibilapérsica foi Sam-beth; as outras tão célebres na história foram: a Déifica, a do Cummas, Erytrea,Sammana, Pennana, Hespontina, Tiburtina e Bagoa.

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ocupar de Parsifal. "Soma - diz Blavatsky - é uma planta, e ao par o Espírito da Lua,e até o mesmo Brahma criador. Os sacerdócios esotéricos perderam o segredo doSoma verdadeiro."

# # #Na lenda wagneriana, Siegfried, até enganado e tudo pela taça do Leteo,

mostra-se generoso e redentor, porque se disposta a franquear até as chamas porproporcionar à seu irmão de armas Gunther a mulher de suas ilusões, quer dizer,seu também divino Ego Supremo. Assim fazem com as pessoas vulgares todos osredentores, até expondo-se a receber a morte a traição como a recebesse Siegfrieddepois. A cena do Pacto de Sangue dá margem para evocar toda a incompreendidaliteratura cavalheiresca, único vago recordo que fica de muitas fraternidadesiniciáticas com as que começasse e seguisse a Idade Média e que em nossa pátriacomeçou a esclarecer nosso sábio Bonilla e São Martín. Ali, em sortes lendas,vêem-se retratadas ao vivo as proezas do Artús ou Su-tra (palavra sânscritaequivalente ao Fio de Ouro da Ariadna de nossa alma, ou Sutra-atma) e as dosinfinitos cavaleiros simbólicos dos que fosse o último e mais desgraçado AlonsoQuijano o Bom, por apelido Dom Quixote da Mancha.No momento em que Siegfried tomando a figura e aparência de Gunthersurpreende a Brunhilda na rocha é muito mais formoso v está mais sabiamenteexposto que no próprio Ocaso dos deuses, no idílio industânico do Nalo eDamianti que forma parte do magno poema épico do Mahabharata 1, idílio que não

O Mahabharata de Veda-vyasa, monumento das idades muito superior à a Ilíada, está escrito aoprincípio da Idade Negra ou Kali-trampa que começasse, como sabemos, à morte da Krishna ofilho do rishi e compilador Prashara. A lenda relata os vários destinos de uma família da RaçaLunar -nossa raça- que, rasgada por receios e rivalidades, teve que perecer em sangrenta luta.Sobre este obscuro fundo se destaca a figura da ShriKrishna dominando o conjunto épico rodeadoda família dos Pandava, quem, mercê à justiça de sua causa, triunfam dos Kurus (Caurios ouPadre- duas da conhecida lenda romana) . Entre estes últimos se distinguem por seu equivocadoheroísmo Bhishma, Karna e Drona, impetuosos paladines de uma causa injusta. A lenda abreacertadamente o Kaliyuga, idade em que o bem e o mal disputam com forças quase iguais. Osproblemas morais e as complicações kármicas que brotam do poema desconcertam e aturdem nossamente. A já iminente invasão da Índia por povos inferiores e a destruição dos guerreiros maissábios dos Ckattriyas e a noite espiritual que ia cair sobre o chão nacional ou Ariavarta,pressentem-se já no poema. O fio principal do argumento do poema se rompe constantemente comdava- gresiones que constituem por si outras tantas lendas instrutivas, entre as que ressaltam oimortal relato da Bhishma sobre o Darma (a lei piedosa e sugestiva) e a mais famosa jóia daliteratura ária: o Canto do Senhor (o Bhaga- vad-Gita). O conjunto do Mahabharata forma umaenciclopédia de história, religião e moral, não superada, nem sequer igualada por nenhuma epopéiado mundo, pois é mais complicada e moderna que o Ramayana do Valmiky, ou epopéia da RaçaSolar ao cair nossa própria raça ária do Treta-trampa ou Idade de Prata ao Dvipara-trampa ouIdade de Bronze, antecessora da nossa. Na narração dos fatos heróicos da Rama-kandra, o roubo

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de sua esposa Sita e a destruição da Rávana, vê-se a mesma antiqüíssima fonte onde bebesseHornero a inspiração das passagens principais de sua Ilíada, tais como a Guerra da Troya peloroubo da Helena e outros. Ambas as epopéias do Mahabharata e o Ramayana formam o Itihasa,que com os 18 Puranas majores e os 18 Upa-puranas menores, constituem o que está acostumadoa chamar o Quinto Vedação, ou seja, a parte que com os outros quatro Vedações (o Rig, oChatur, o Sama e o Atharva-veda) são a fonte universal de ensinamentos relativos a nosso atualMahayuga de quatro milhões de anos, repartidos entre os quatrocentos e trinta e dois mil anos doúltimo período ou Kali-trampa e das outras três idades já citadas, que respectivamente são duplo, otriplo e o quádruplo deste ciclo inferior, segundo em pequenas quantidades detalhamos no capítuloAstronomia e Astrologia de nossas Conferências teosóficas na América do Sul.

podemos renunciar a transcrever, pois nele Damianti é mais perspicaz queBrunhilda, porque a pesar do disfarce ou do elmo encantado, sabe descobrir qual éo Eleito de sua alma. Repitamos-lhe, embora já lhe demos no tesouro dos lagos doSomiedo.

Nalo, rei da Nisa, apaixonou-se, só de ouvidas, do Damianti, a filha deVenha, rei da Vidarba (Vidya-Arba, Árvore do Conhecimento). Um cisne de asasde ouro se brinda como Mensageiro de seu amor. "Se lhe adotasse por marido, Ohprincesa dos feitiços sem rival! Seriam seus filhos nobres e formosos, como seu pai,e como você mesma - diz o cisne ao Damianti -. Vi aos Devas, aos Ghandharvas,aos Homens, aos Dragões sábios e aos Rishis, mas, para ti, não há nada que possacomparar-se ao Nalo. Oh você, a mais encantada das mulheres, Nalo é o orgulhodos homens!"

Indra e outros deuses tomam a figura do Nalo para enganá-la. Vacila e tremea donzela, suspeitando intuitivamente o engano de seus sentidos; mas ela, cheia deardor, exclama: "Oh, deuses, pura está minha alma e inocente é minha vida - eternotema wagneriano da Justificação -, por isso vos conjuro a que lhes apresentem semdisfarces e em seu próprio ser!”.

O conjunto heróico de uma alma pura é, como o Destino, superior até aosdeuses mesmos, e os tentadores têm ao fim que mostrar-se como tais imortais aosolhos, videntes já, do Damíanti. Nalo fica ao momento com toda sua humanadebilidade, e pudica a virgem dos olhos negros, agarra então a orla do manto doNalo, em prova de sua eleição.

Dois Râkchasas ou elementares passionais tentam romper a união dos doispuros amantes, qual Hagen trata de romper o santo laço entre o Siegfried eBrunhilda, infundindo ao Nalo, como o Tentador ao Príncipe de Branca-flor, apaixão do jogo; Damianti com isso fica esquecida e abandonada em solitária selva,por onde, lhe buscando, vaga à ventura. Enquanto isso Nalo obtém ao fimaprender um novo jogo próprio dele, com ele ganha nos Râkchasas ou rajasaspassionais, e detrás de mil penalidades expiatórias, volta a ver-se ao lado de seuamante algema e dos frutos de sua união.

O Eong-ton-kow-ougun ou Resenha histórica dos tribunais chineses tem

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também uma lenda de longe relacionada deste modo com a sorte cena em queSiegfried, disfarçado de Gunther, surpreende a seu despreparada amante Brunhilda.Chi-ung-tu, marido da muito virtuosa Kin-ching-ku, quis certo dia, ao modo doprotagonista cervantino do Curioso impertinente, experimentar até que pontopodia ela resistir em sua virtude às lisonjas e à força, sustentando fiel a promessaque tinha empenhado de suicidar-se antes que ver manchada sua honra. Depois decomprovar por mil médios o marido que a esposa era insensível frente às maishábeis seduções, enviou três homens com encargo de que a atacassem de improvisoem seu próprio aposento. Defendeu-se então Kin-ching-ku com tanta energia, quena luta matou a um dos agressores e fez fugir aos outros dois. Mas como um deles,durante a luta, tivesse arrancado um pedaço do vestido da jovem, temeu esta queaquele farrapo, mostrado em público, pudesse fazer acreditar nas pessoas que tinhasido desonrada e se deu intrépida a morte. Alegado o fato ante o Tribunal ecomprovado tudo, o marido imprudente foi decapitado e se levantou a heroína umarco de triunfo com a inscrição fúnebre de: "À eterna glória da castidade.” (Cantú,História Universal).

Muitas outras correlações míticas poderiam encontrar-se da citada cena entrea Brunhilda, enganada, e Siegfried, inconsciente enganador, símbolo todas dossempre enganados mortais que vendem sua alma imortal como o Esaú bíblico suaprimogenitura pelo prato de lentilhas dos mais variados vícios e paixões. Nãopoucas correlações também poderiam encontrar-se à outra cena culminante doOcaso dos deuses, em que Hagen, verdadeiro Borgia ou Médicis pré-histórico,vence traidor com sua envenenada Taça a nobre Espada de Siegfried; aquelamesma Espada que antes triunfasse do Grosseiro de Wotan e da Taça de Mímico,que é lei histórica indeclinável por causa da evolução cíclica de que o antesvencedor caia e seja vencido por aquilo mesmo ao que vencesse, já que a vida e amorte, o triunfo e a derrota, são dois meros aspectos complementares da marchado Destino.

* * *O Siegfried desta cena e da que vem depois com as ondinas tem também um

personagem correlativo nas mil e uma noites, com aquele rei que, admirado decertos peixes coloridos que lhe contribuiu um famoso pescador, quer descobrir suaprocedência, e é levado pelo pescador a um grande lago entre quatro montanhas,em meio de uma imensa planície, onde em certo solitário palácio negro descobre aoinfeliz Príncipe das Ilhas Negras, que jazia encantado ali séculos e séculos com ametade do corpo como homem, e a metade inferior de mármore negro, graciosarepresentação da parte humana e a inmovilizadora e marmórea parte animal detodos nós. Nada mais justo que aquele castigo do príncipe, apesar de que doexoterismo da lenda pareça deduzir-se o contrário. Em efeito, o príncipe tinhasurpreso certa vez a sua amada - sua alma superiora - quem, aproveitando daprostração animal dele, sob o beleño doce do sonho profundo, visitava diariamentecerto amante desconhecido que não era senão o símbolo de outro mundo superiorno que, segundo a filosofia oriental, vive a alma humana, a esposa do homem

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animal, durante as breves horas do sonho sem sonhos. O ciumento marido fereimperfeitamente ao divino amante, a aquele Sir Morold da lenda adamasca, comoimperfeitamente ferissem os últimos homens da Atlântida à Divina Magia, a excelsaamante da Humanidade da Quarta Raça, e como imperfeitamente também ferediariamente o homem animal ao Espírito Supremo ou Nous, ao Amante de suaalma que, bondoso, cobre-lhe. O herói da lenda árabe consegue salvar ao príncipe,e voltado este a seu ser natural com todos seus domínios, o lago e as quatromontanhas surtas, como resultado da catástrofe voltam a restituir-se a seu estadoantigo - quer dizer, aparece esse Moderado ou Terra Nova, cantado por todas asTeogonias -, e aqueles peixes de cores diversos que causassem a admiração edeterminassem as empresas do rei, retornando a ser homens, cada um de suareligião, ao tenor de sua cor respectiva.

* * *Siegfried, perseguindo um urso que lhe escapou em sua caçada por entre um

arvoredo e um abrupto promontório de rochas junto ao Reno, tropeça certo diacom as três famosas ondinas, filhas do Pai-Rio. Estas, à maturação, balançavam-sesugestivas e tentadoras sobre a superfície das águas, à pálida luz da Lua,lamentando-se, como sempre, da triste noite que segue reinando em seusprofundos domínios aquáticos, desde que o Ouro sagrado tinha deixado de sercomo antigamente o Sol dos abismos do rio. Cheias de ansiosa esperança, invocamsem cessar à casta Diana para que lhes envie, ao fim, ao Herói, tanto tempodesejado que deva lhes restituir seu Ouro e travam sugestiva conversação com oSiegfried, que perdeu a pista do urso que persegue. Com primeiras adulações e comameaças e imprecações depois, pedem a trio que lhes devolva o Anel que no dedoleva, para que seja afastado assim de sua cabeça o fatal efeito da maldição doAlberico.

O herói, galante sempre com o belo sexo, vacilou um ponto sobre se agradarou não às formosas ondinas lhes entregando o Anel; mas, ao fim, persiste em nãorenunciar a ele, porque lhe é ao guerreiro um símbolo de Amor legado a seuesforço pelo Destino como Herança do Mundo, e o herói, embora já não discerneclaramente seu inapreciável preço desde que bebesse o Gole do Esquecimento, nãose decide a renunciar nem a ofender no mais mínimo ao Amor, lhe paralisandocom as travas de seu mortal inimigo, que é o Temor ou o Medo, segundo antestemos visto. As ondinas, despeitadas já, anunciam-lhe fatidicamente que, poisconheceu as Ruínas da lança de Wotan, que rompesse com sua espada, e já não asentende em suas misteriosas e indeclináveis profecias sobre o Anel, elas lheadvertem hoje que muito breve uma mulher gloriosa, verdadeira Redentora do

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Mundo e que sabe compreender melhor que ele os decretos do Destino, vairestituir lhes o Anel maldito.

As ondinas se sepultam no rio e dali a pouco Gunther, Hagen e seuscompanheiros de caça acham ao fim ao Siegfried, a quem procuravam faziamomento pelo bosque. Este guerreiro lhes narra sua infrutífera correria e seuencontro com as ondinas. O bastardo Hagen, que tem já premeditado porcompleto seu sombrio plano da morte do herói, como digno filho que é aquele dofunesto Alberico, pergunta então ao Siegfried se for certo, como dizem, queentende o canto das aves, ao que o jovem apaixonado responde que esqueceu ocanto das aves desde que escutou, cativado, o canto das mulheres 1. Gunther,enquanto isso, singelo e bom também, como Siegfried, e alheio por inteiro à traiçãodo bastardo, é presa, à maturação, sem ele saber por que, de tristeza avassaladora, eo herói, para animar o estado de ânimo de seu irmão de armas, renova com ele elhe ratifica o pacto de sangue de ambos, derramando no haste, de vinho, seu sanguegeneroso, que, fecunda, cai a fervuras até verter-se pela mãe-terra. Querendo lhedistrair melhor, começa então Siegfried a contar a Gunther, com simplicidade, suahistória de heroísmos, desde que o gnomo Mímico lhe criou, até que conseguiumatar ao monstro Fafner e a dito gnomo traidor, mas, ao chegar o narrador aomomento em que o herói descobrisse a Brunhilda na rocha encantada, circundadapor chamas, o fio da narração vai cortar se porque lhe faltam as lembrançasulteriores graças ao filtro do esquecimento, sob cuja letal ação se acha desde que,traidor, lhe servisse Hagen. Hagen intervém naquele momento, e, para avivar aslembranças de Siegfried lhe oferece uma segunda haste de vinho em que espreme,sem que se advirta o que faz, o suco de outras ervas, propícias para despertar até asmais longínquas lembranças perdidos 2. Siegfried, então, depois de beber oconteúdo da segunda haste do bastardo, continua, clarividente já, comoantigamente, contando o curso de sua aventura com a virgem Brunhilda; seu

1 Pasma a muito profundo filosofia encerrada na frase de Siegfried, quando diz ao Hagen: "Desdeque conheci a linguagem das mulheres, esqueci ou das aves", porque com efeito, segundo osensinamentos védicos e as dos Mistérios, ao cair os homens da Segunda Raça-Raíz - os homensalados de Platão, os homens cuja linguagem era o próprio e musical das aves- na procriação físicada Terceira Raça, esqueceram esta linguagem musical e INICIÁTICA, cujo últimos ecos deharmonia ainda adivinhamos depois do sânscrito e outras línguas clássicas.Por outra parte, os corvos que vê Siegfried ao adquirir essa lucidez retrospectiva que precede àmorte, não são senão os seis que visse Remo e os Doze que Rômulo visse o tempo de arar os limitesda futura Roma e cuja visão lhe custou a vida ao primeiro, ou os corvos fornecedores do alimentoaos anacoretas da lenda áurea cristã, ou, enfim, o corvo no que jaz transformado o rei Arthus,etc., etc.

2 Até nos menores detalhes é ocultista o sempre inspiradWagner. Aqui, por exemplo, adverte-se aextremada lucidez dos moribundos, lucidez pela que se comprovou naqueles que estiveram a pontode morrer afogados, ou por fome, etc., que se começa a recordar retrospectivamente a vida inteiraque vai acabar.

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descobrimento; a cena do recíproco amor de ambos e a história do Anel, bemalheio a pensar que com tamañas revelações indiscretas do Segredo Sagrado, quedébito, para os profanos, permanecer oculto, conduzia-se a morte de um modoinevitável, como a conduzissem depois dele todos quantos quebrantadores doSecreto INICIÁTICO existiram no mundo: Sócrates, Jesus, etc., etc.

Mercê, pois, a semelhante imprudência de Siegfried, o castigo não se fazesperar muito. Além disso, a revelação que acabava de fazer de seus amores com aBrunhilda, prometida-a já, do Gunther, seu irmão de armas, era contra o Pacto deSangue que acabava de ratificar um momento antes, e com ela se fazia credor àmorte como perjuro. Por isso, sem dúvida, ao ponto de terminar a revelaçãonefasta, de um matagal vizinho surgem, de improviso, e saem voando e grasnandodois fatídicos corvos, as aves dos funestos agouros. Os negros pajarracos revoamum instante sobre a cabeça de Siegfried, e quando o herói se volta a contemplá-los,Hagen, traidor, afunda-lhe sua espada pelas costas para vingar o perjúrio, sem que asolicitude do Gunther para seu irmão de armas obtenha a tempo impedi-lo.

Siegfried, o herói sem par, o Redentor do Mundo, morre assim, entre oslembre muito tristes de sua mal chamada Parte fúnebre, que não é senão a soleneMarcha do Triunfo sobre a Morte mesma, com suas intercaladas saudades doCanto da primavera, com o que engendrado fosse, e de outros múltiplos motivosque fizessem coro antigamente suas façanhas inauditas de redenção; marchatriunfal, enfim, que mereceu já tantos elogios de plumas doctísimas e artistas,porque seria inútil diminuí-la hoje com nosso elogio ignorante e modesto. Ela e ossubseqüentes Lamentos de Brunhilda, quando os feudatarios do Gunthercolocaram o cadáver sobre seu escudo e lhe conduziram procesionalmente à luz daLua, pelo atalho da Montanha, sob o hino gigantesco e muito solene dos motivosmusicais mais qualificados de toda a Tetralogia, constituem uma página de músicaelegíaca e religiosa que não tem rivais nem mesmo nas partes mais augustas deParsifal mesmo.

Gutruna, desolada, recebe do próprio Hagen a notícia cruel de que morreuseu prometido sob as garras de um javali feroz. Gunther, que por essa maravilhosaintuição de que é bom começa a compreender a perfídia de Hagen e a inocência deSiegfried, amaldiçoa o crime daquele bastardo que se glorifica já publicamente deser seu vingador assassino e ter, portanto, direito a possuir o Anel; mas no instantemesmo em que vai arrancar lhe da mão do morto, adianta-se Brunhilda, radiantequal uma nova deusa; tira o chapéu a Gutruna como a só e verdadeira Esposa doherói, antes que a peçonha do Hagen mediasse trágica. Todos, então, amaldiçoam acoro ao bastardo, enquanto que Brunhilda manda elevar, qual um trono, a pirafunerária, e ao par que retira triunfal da mão do cadáver o lhe rutilem Anel,pronuncia pondo fogo à pira, com acentos de Sibila iluminada pelo entusiasmo desua já consciente divindade, a Magna Profecia da divinização do Homem redimido;a queda dos deuses; a devolução do Anel fatal às puras Ondas primitivasdepuradoras do Anátema e a vinda da Aurora de um novo Dia apocalíptico, no que

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a eterna tirania dos deuses sobre os homens não exista já mais sobre a Terralibertada e apta para inaugurar a Idade de Ouro novíssima... Logo subida de umsalto sobre Amadureça, seu fiel cavalo de walkyria, e com igual presteza augusta quequando era a Walkyria predileta do deus Wotan, lança-se, voando, sobre a ardentepira que consome amorosa os corpos enlaçados dos dois amantes, feitos Um, edissolve o Anel maldito em seus muito puros elementos antigos... 1. O fogo cresce,cresce, toma proporções gigantescas, como jamais se vira, e alcança, ao fim, até asalturas da Walhalla, cujo palácio de orgulho prende a arder até que cai desfeito emcinzas. As Águas sagradas do Reno, o Pai-Rio eterno, dilatando-se pelos âmbitosdo Universo, ascendem gigantes até apagar no Seio de suas Ondas os restos todosdaquele cósmico incêndio... As filhas do Rio avançam transfiguradas e solenes arecolher de novo o desencardido Ouro, e enquanto duas delas afogam entre seusbraços ao infame Hagen, que enlouquecido ao ver escapar sua presa se arrojou àságuas para agarrar o Anel, Floshilda, a irmã maior, radiante de júbilo, levanta emalto, qual divina Custódia, a Brasa de Ouro, apagando com os últimos ecosorquestrais o tema glorioso de Siegfried, os da Maldição de Alberico; ou damajestade da Walhalla; o rutilar do Fogo Encantado; o muito doce canto daWoglinda e o amargo do Ocaso dos deuses, sob o canto inefável da Redenção peloAmor, sem a qual voltaria muito em breve ao Caos todo o edifício do Mundo...

1 Alcestes, a sublime tragédia do Eurípides, é outra consagração legendária do símbolo da gloriosarebeldia. Sabido é que Admeto, o grande fomentador da Liga Aquea, que ia unir em um só atodos os povos helenos, matou inadvertidamente um cervo predileto do Júpiter, e este novo Wotanou Jehovah, protótipo do gênio da vingança injusta característico a lodos os povos que ditaram leiscomo aquela das Doze Pranchas que Começa adversus hosten, etc., por só este delito condenou amorte. Com sua morte foram desaparecer aquelas risonhas esperanças de liberação grega pelo que ofoi proposto ao deus, e este aceitou o holocausto voluntário de outra pessoa em substituição do herói.Ninguém, nem os próprios e já anciões pais de este, porém, emprestava-se ao cruento sacrifício, atéque Alcestes, a esposa modelo, idolatrada pelo herói, ofereceu-se gostosa como vítima propiciatória,que, chegado o momento, foi, pois, fulminada por um dos raios do Júpiter. Passou mais tardeHércules-Esculápio, o Siegfried mediterrâneo, por aquele desolado lar do libertador onde antesrecebesse piedosa hospitalidade, e indignado ante a barbárie de todo um deus, que assimmaltratava suas mais prediletas criaturas, apelou a seus imensos conhecimentos mágicos que lhepermitiam ressuscitar até aos mortos, e evocando do profundo os emane do Alcestes, ressuscitou aesta tão amada algema, devolvendo-lhe com toda felicidade a seu glorioso marido.Dado que jamais os clássicos do teatro grego apelaram a próprias ficções para seus argumentos,mas sim com grande sabedoria os foram procurar à lenda, ou melhor, aos ecos legendários perdidosdas antigas representações simbólicas chamadas Mistérios, resulta evidente que o trágico nos deuem sua obra uma versão mais do que logo foi para nós a lenda de Psique e Eros, ou da que hoje étambém a lenda escandinava wagneriana do homem e sua divina Walkyria.Por sua parte, a lenda nahoa tem uma Walhalla para receber aos cativos e a quantos heróismorrem na guerra, e é o Ilhuicatl-Tonatiuh, a mansão celeste presidida pelo Sol. Ali permaneciamdescansando durante quatro anos, ao fim dos quais se transformavam em esplêndidas aves e emmariposas.

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No curso inteiro da Tetralogia se observa, entre mil outros feitos ocultistas,um que é do mais alto interesse para a vida prática: o da luta diária do homem comos elementares do mal, luta que é trama de todas nossas derrotas e nossos triunfos.

Advertiu-se pelo leitor, com efeito, que imediatamente antes de irdescarregar seu golpe fatal a maldição do Alberico sobre os sucessivos possuidoresdo Anel, de um lado ou de outro vem uma advertência salvadora para que sejaarrojado em seguida por seu imprudente possuidor, antes de receber o golpe dodano. Primeiro é a Urvala a que dirige ao Wotan a advertência e este a obedece,embora já algo tarde, porque há meio doido ao Anel, e por isso cai sobre os deusesno final da obra a catástrofe suprema que acabamos de ver. Depois foi o próprioWotan o que tratou, em vão, de pôr sobre aviso ao Fafner para evitar-lhe a morte.Logo é a walkyria Waltraute quem avisa a sua vez a Brunhilda, e também em vão,para que solte voluntariamente a jóia terrível. Igual prevenção, inútil enfim, fazemas ondinas ao Siegfried... O que simboliza, que insígnia, pois, a sempre ocultistamente de Wagner com estas passagens de sucessivas e concatenadas prevenções?Algo que devesse gravar-se com caracteres indeléveis na memória dos homens,

Como nos achamos, certamente, durante toda nossa vida neste mundoinferior, que não é o nosso, em que pese a todas as enganosas aparências do Aíayado viver, e como nos cercam constantemente os perversos elementares do mal, tipoAlberico, Mímico, Fafner ou Hagen, que são os senhores efetivos ainda desteplaneta misérrimo, nosso dever, como verdadeiros guerreiros nessa grande epopéiada dor e do esforço hercúleo que chamamos existência, é o de estar sempreacautelados contra toda classe de ataques grandes e pequenos desses inimigosjurados e invisíveis que nos espreitam, e que as religiões esotéricas, tão soubeapesar de sua vulgaridade, chamam tentações do inimigo, pelo mundo, pelodemônio e pela carne. Nosso Eu Superior que jaz, ao parecer, inativo no fundo doInconsciente e que entesoura opulentos os frutos de quantas experiênciasanteriores experimentássemos nesta e em anteriores vidas, acautela-nos semprecontra o perigo em forma de suave e às vezes imperceptível aviso, qual o daquelasentidades wagnerianas que tão a tempo acautelavam aos possuidores do anelmaldito. Isto é o que o vulgo chama intuições, primeira impressão e julgamentosintuitivos.

Se nossa mente e nossos hábitos fossem o devidamente puros, eemprestássemos mais atenção do que estamos acostumados a ao feito íntimopsicológico, em vez de ter a atenção posta no externo como se tudo, inclusive afelicidade, tivesse-nos que vir de fora e não de dentro, semelhantes avisos, a maisde ser infalíveis, subministrar-nos-iam um elemento de julgamento intuitivo ousintético a priori, que diria Kant, capaz de nos acautelar a tempo, qual efetivo Anjoda Guarda, contra o correspondente perigo. Tal realizam, com efeito, os homens

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Iniciados e até os homens meramente prudentes que para a ulterior iniciaçãocaminham. Por isso os riscos para eles ou não existem ou são imensamentemenores que para aqueles outros imprudentes e impulsivos que deixam de ouvir avoz de satwa, ou seja, da consciência moral, e só atendem ao empurrão passional defatias, ao empurrão traidor dos elementares passionais ou rajasas, que vemseguidamente, quando não se entregam - o que é até pior - ao inerme e semi-animalestado de tamas ou ignorância inerte, que é a alma dos mais letais e perigososfatalismos: os fatalismos que levam a miséria, ao embrutecimento e ao suicídio...

A velha classificação ou lei de castas, que como tantas outras coisas do SaberArcaico, até entre os mesmos orientais de hoje se prostituiu, não é mais que aclassificação que pode e deve fazer-se dos diversos seres humanos em ponto àmaneira que têm de reagir, digamo-lo assim com frase química, frente ao reativo oupedra de toque do ataque dos invisíveis. Aquele homem, um entre um milhão, parao que já quase não há luta, qual para os muitos Santos que no mundo das diferentesreligiões foram, e ao que ditos elementares, vencidos sempre, obedecem jásubmissos como bestas domadas, é um verdadeiro brâmane ou sacerdote, e comotal vencedor já do mundo inferior; é um verdadeiro taumaturgo, investido do quese chama o dom de fazer milagres, que não é mais que o dom de dispor a seudesejo das forças naturais, ou seja, do poder de fazer-se servir por essas entidadeselementares às que em sua ação chamam Forças a Mecânica e a Física. Tipossupremos desta classe: Moisés, Apolônio da Tiana, Pitágoras, Jesus e tantos outros.

Aquele outro homem, menos elevado e não pouco estranho também, queestá em perpétua luta ainda com sortes entidades ou Forças invisíveis, às que venceumas vezes, sendo não poucas vencidas por elas, é o protótipo do guerreiro decasta; o lutador ou o Chattriya, tipo Beethoven, Wagner e quantos outros gênioslutaram contra o aparente impossível de viver sem poluir-se em meio davulgaridade ambiente que, escrava daquelas entidades, opõe todas suas forças àrevolucionária e redentora missão de tais lhes Prometa. Não há gênio que nãopertença a esta segunda classe em alguma de suas diversas graduações ousubclasses.

Caímos já com isso na terceira classe ou dos comerciantes, os washyas, classehoje e sempre, Oh dor! Entronizada sobre o mundo com essas incolores eanódinas pessoas bem que dizem os franceses. Homens que vegetam no maisconfortável e plácido burguesismo, vivendo a vida como eles dizem, preocupando-se só como por esporte ou diletantismo platônico do que eles chamam altosproblemas, sem prejuízo de deixá-los a um lado, tão logo como chamam à mesa, aonegócio, ao recreio e até ao vício; adoráveis bons gens, que depois de uma opíparajanta, com seu café, taça e puro é obvio, perguntam, para melhor fazer a digestão, arespeito dos tão estranhos fenômenos do espiritismo; gente que cheias dessa frívolacuriosidade que estamos acostumados a chamar ciência, e sem cuidar-se pouco nemmuito dos sofrimentos e transtornos gerais que podem proporcionar ao médium,pretendem fazer baixar até elas às entidades desencarnadas mais excelsas a quem alei natural arrebatasse piedosa para um mundo melhor, com insensatez cheia de

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irrespetuosidad para os augustos investidos da astral roupagem de ultra-tumba ecom procedimentos que aos olhos da Arte, da Ciência verdade e da Filosofiaresultam tão anti-científicos e tão absurdos como se para saber aquelas coisaschamássemos facilmente a um rei ou a um magnata a nossa mesa familiar do café,em lugar de ir comedidos e respeitosos a lhes pedir uma audiência. Tais serespoderão ser muito sábios, mas não tem nada de invejar sua ciência 1.

Vem, por fim, a quarta classe dos sudras, na qual a melhor parte da luta élevada já pelos elementares e suas paixões mais inferiores. Os homens dela já nãosão gente como quão guerreiros lutam para o ideal, nem sequer como oscomerciantes nos que o desejo do lucro também deixa sempre alguma margem paradesejos libertadores, qual vemos na época contemporânea em que tanto abundam.O sudra é já um escravo, um possesso quase sempre, uma pobre vítima daquelasentidades, quem lhe leva por onde querem e nunca para o bem, para sua ruínamoral por todos os caminhos do vício, a dor e até o mesmo crime... Um graumenos ainda, nas fronteiras quase do mundo animal que jaz por baixo, está ocretino, o homem sobrevivente ainda de raças pretéritas, o imbecil e o emparelha.Ainda mais abaixo de tal nível ainda há outra classe de seres, humanos já não maisque na aparência e sobre os quais guarda certa reserva o ocultismo... 2.

O leitor será tão bondoso que nos perdoe esta larga digressão em graça aonobre fim que a inspira e que conduz a este postulado psicológico da vida práticaque enunciamos assim: toda desgraça, todo perigo, tudo errado caminho tem nosprimeiros momentos um tutelar, um como providencial aviso prévio que, seguido atempo, as mais das vezes, evitá-la-ia, como se teriam podido evitar com um poucomais de justiça as simbólicas catástrofes devidas ao Anel do Alberico.

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É muito de notar, por outra parte, a coincidência mitológica que existe entrea morte de Siegfried anunciada pelo grasnido dos Corvos e a de Remo, o irmão doRômulo, na lenda sobre a origem de Roma. Conta-se, com efeito, que ao demarcarcom o arado ambos os irmãos os limites da futura Metrópole do Mundo, Remo

1 Sim. Há um meio infalível e eternamente praticado de ficar ai fala interna e sem palavras com osseres que foram, e é, para os seres que amamos, a piedosa lembrança de amor e a evocação de umaconduta reta, qual a que eles aqui tivessem, e para os seres que admiramos, o constante cultivo daciência ou arte que eles praticassem em suas obras-primas, obras, sem dúvida, imensamentemaiores que seus corpos friáveis. Quem pode duvidar, com efeito, de que o leitor que nos seguenestas páginas evoca a Wagner mesmo sem procedimento algum espírita?

2 Estes seres são os chamados homens sem alma, ou da oitava esfera, sobre os que Blavatsky nosdiz recordando um aforismo ocultista:"JNo descenda, meu filho, porque a escala de descida tem sete degraus ao cabo dos quais está ociclo da terrível necessidade!"

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olhou ao céu e viu passar até seis corvos; mas Rômulo olhou a sua vez e alcançou acontar doze, por isso Remo mereceu a morte. Impossível tirar partido de detalhe aoparecer tão frívolo, se não se tiver em conta que em simbolismo numérico o seis éo número vácuo, o número da Besta, que, repetido três vezes, dá o número 666 quea semelhante Besta atribui o Apocalipse. O não ver Remo senão seis aves daquelas,expressa, pois, sua falta absoluta de espiritualidade, por isso foi puído, ao mododaquelas raças primitivas de príncipes do Edon ou pessoas pré-adâmicas de que nosfalam, como de outros tantos fracassos, as Escrituras arcaicas. Rômulo, em troca,ao alcançar a ver o pitagórico doze, o número sagrado dos mistérios perfeitosiniciáticos, mereceu a Vida, quer dizer, a honra de ser chefe de Roma - Símbolo,protótipo daquela outra Roma vulgar, de secreto nome, entretanto, que ia se elevardepois... Outra significação astronômica de importância, relacionada com aschamadas Hierarquias Criadoras, tem ainda o mito expresso, sobre a que nãopodemos nos ocupar aqui 1.

Hagen, por outra parte, é no panteão grego o famoso Idas ou Sadí ("aqueleque vê e sabe"), um dos Apharides que ferisse mortalmente ao Cástor. De igualmodo, não seria difícil o lhe achar correlações em várias lendas mais, já que o papelde traidor parece ser essencial em todos os complicados argumentos dos dramaslegendários de qualquer tempo e país.

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O ocaso dos deuses, e com ele todo o ciclópico monumento da Tetralogia,acaba com um incêndio e com um dilúvio universais. Ambos fenômenos têm suacorrelação com as duas colossais catástrofes que se aconteceram nos tempos maisremotos, ao dizer da Doutrina Arcaica, ou seja,com a que pôs fim, pelo fogo e aserupções vulcânicas, ao continente da Lemúria, faz uns cinco milhões de anos, ecom a que, muito tempo depois, sepultou pela água ao primitivo moderado atlante,em três épocas sucessivas bastante afastadas de nossa História e às que lhes atribui,respectivamente, as três datas retrospectivas de perto de um milhão de anos antesde nossos era uma e de duzentos mil e de nove mil anos as outras dois.

O tema do dilúvio que no argumento wagneriano põe fim ao reinado dosdeuses para dar começo ao atual dos homens livres, foi longamente exposto emobras como a de Blavatsky e outras; além disso, será objeto de nosso especialestudo quando da Atlântida nos ocupemos. Por isso, como comentário ao ditodetalhe final do incêndio da Walhalla e submersão do mundo sob novas águasgenesíacas, copiaremos o ensino oriental a respeito destas radicalíssimasrevolucione terrestres ou pralayas que são outros tantos verdadeiros Fim doMundo. Um mundo novo, uma verdadeira Jerusalém celestial como a doevangelista do Patmos, acontece na obra de Wagner a todo o velho mundo já

1 Algo disso se tratou na pág. 117 do tomo II de nossas Conferências teosóficas na América doSul.

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destruído."Ao sul, sobre o campo de Ida, o Um, forte e poderoso que todo o governa

e cujo nome se ignora, mas cuja presença sempre se sente, fez o Senhor outro céuchamado Audlang, e mais longe, um terceiro, conhecido pelo Widblain - diz o"Asgard and the Gods", ou profecia norsa da renovação do mundo, em que bebesseWagner suas idéias a respeito desta espécie de Jerusalém celestial cantada peloApocalipse-. Os homens ali voltarão a ser deuses como antes, pois todas asprofecias de seus antecessores se cumpriram, e olharão felizes das alturas do Gimilaos ditosos descendentes do Lif e do Lifthrasir (o Adão e Eva futuros daHumanidade assim desencardida), que tinham subido pelo Atalho à casa do Todo-Padre ou do Pai-Rei da lenda universal." "Quanto mais grandioso e mais poéticoque o espírito de certas aberrações católico-romanas - acrescenta Blavatsky aocomentar a passagem - é o espírito religioso que se encontra nas "pagãs" lendasescandinavas da Criação!". A Religião e a Ciência se vêem misturadas nestes cantos.Há um logos em cada mito e uma consoladora verdade no fundo de cada umadestas ficções.

A cena final do ocaso, em que todo o existente é reabsorvido pelo fogo epela água, é o que a literatura oriental chama Pralaya ou período cósmico derepouso 1. Dita literatura, com efeito, reconhece tantas classes de pralayas comociclos grandes e pequenos existem. Os mais típicos são: a) o da dissoluçãoconstante (Nitya), devido à lei de incessante mudança que conduz, por tempos, adecadência e morte do universo; b) O pralaya individual (Nirvana ou Atiyantike),que, uma vez alcançado, libera ao homem de renascimentos, até o novo GrandeKalpa; c) O pralaya incidental ou Sonho de todas as Causas Eficientes, no que sãodestruídas as formas de todas as criaturas. Este pralaya chamado Naimittika ouNão- che de Brahma, é ao que O ocaso se refere, ou melhor, ao seguinte e maisamplo, ao pralaya d) ou Prakritika de cada vida de Brahma (o Logos), e no qual,não só são puídas todas as criaturas, mas também até as diversas substânciasplanetárias resolvem em seu Elemento Primordial mais tênue e indiferenciado, paraser moldado este em um novo Ciclo.

Os livros do Oriente descrevem o pralaya Naimittika nestes termos:"Quando o Espírito Universal (Brahma) fecha seus olhos, todas as coisas caemcom ele no leito de Seu místico dormitar. O Criador (Hari) dorme sobre o Oceanodo Espaço, no regaço da Shesha, a Serpente ou ciclo do infinito, glorificado pelaSanaka, o kumara virgem que se negasse a criar contemplado pelos Santoshabitantes do Brahmâ-loka, desejosos de liberação final, sob o manto de sonhos desuas próprias ilusões. Os antecessores lunares (pitris), os Progenitores destes(manús), os sete Santos (rishis), os deuses e demais Espíritos do Svargaloka, que

1 Esta cena está calcada toda naquela outra de Hércules, de Sêneca em que se lêem versos comoeste:"Atque omnes pariter lhes dê perdet mors aliqua, et chaos."(E igualmente a todos os deuses dará fim a morte com o Caos.)(Hércules Oetaeus, de Sêneca. Ato 3', Cena final)

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têm que reencarnar no novo Kalpa ou novo sistema solar, tornam suas formas maissutis... O Hálito do Vishnú (Brahma em sua forma conservadora) converte-se emVento impetuoso que sopra durante ditos cem anos divinos, até que são dispersasas nuvens genesíacas. O Não-nascido acordada, ao fim, e cria um novo universo.

O pralaya de dissolução elementar ou total (Pakrittika) é descrito pelaParáshara a Maytreya nestes outros termos: "Quando os mundos todos com seusPâtalas ou infernos respectivos são esgotados pela esterilidade e pelo fogo, oprocesso da Dissolução Elementar começa. As Águas absorvem as virtualidadesativas que dão vida à Terra... E a Terra dissolvida se converte em uma com a Água.O elemento do Fogo destrói a vitalidade das Águas, e o universo se enche com aChama que, gradualmente, vai prendendo e estendendo-se por seu âmbito todo. Oelemento do Vento se apodera da natureza externa da Chama que é a Causa da Luz,e retirada esta última, tudo se converte na natureza do Ar (Fôlego), ficando oEspaço a obscuras. O Ar, acompanhado da Vibração, que é a fonte do Éter,estende-se pelas dez regiões... O Éter ou Akasha se apodera do Sparsha, por cujaperda é destruído o Ar... Então a Origem ou Numen de todos os elementos devoraao Som ou Hoste Dhyan-choánica, e tudo cai em seu Elemento Originário, que é aConsciência, combinada com a Propriedade das Trevas, e ele mesmo édesintegrado pelo Mahat (a Mente Universal), cuja propriedade característica é aSabedoria, porque a Terra e Mahat são os limites externo e interno do cosmos. OOvo do Brahmâ se dissolve assim nas Águas que lhe rodeiam, e, finalmente, aNatureza (Prakriti) e o Espírito (Purusha) resolvem ambos em Um: no Abstrato eSupremo Espírito."

O parágrafo anterior tem um grande fundo alegórico no relativo àsEntidades transcendentes e simbólicas que informam às manifestações objetivasque conhecemos sob o nome de estados da matéria. Com razão diz Blavatsky quequando esta descrição seja mais bem compreendida pelos orientalistas em seusignificado esotérico, poder-se-á explicar melhor que nunca a correlação das forçasfísicas. Em efeito, se partirmos do frio absoluto que os cálculos da físicamatemática situam por volta dos 373 graus abaixo de zero, todas as coisas sãosólidas, ou na linguagem gráfica e simbólica dos orientais, todas as coisas são terra,já que a coesão molecular tem vencida à tendência contrária da dilatação ourepulsão. Incrementando sucessivamente força ou Vibração, na forma maiscorrente que denominamos calórico, todas as substâncias sólidas ou terra irãofundindo-se, dissolvendo-se, embora, é obvio, a diferentes temperaturas, atéliquidar-se ou transformar-se em água. A água, submetida a conveniente pressão,chegará até a fazer-se luminosa ou incandescente, como os metais nas forjas, atéque vencendo toda resistência que se oponha a sua crescente dilatação, tal água setransforme em obscura massa de vapores ou ar. Os gases, a sua vez, lhesincrementando graus e mais graus de calor, muito superiores aos milhares de grausdo forno elétrico, romperão, ao fim, sua coesão molecular, passando a íons eelétrons, quer dizer, a éter, sob a forma mais tênue de densidade, por teraumentado de um modo inconcebível o volume e a força repulsiva. Como a físicaainda não conhece estados acima do chamado radiante, e até este lhe admite com

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Wagner Mitólogo e Ocultista – Capítulo XIV

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muita dificuldade, não podemos continuar já o paralelo; mas imaginando ao étercomo algo real e tangível para nossos aparelhos, já que não para nossos sentidos,sim que poderíamos seguir, já que nada tem de impossível o que haja diversos grausde condensação do éter, coisa que começa a preocupar a nossa astronomia. Por queo éter, com efeito, do par sideral da Terra com a Lua não tem que ser mais denso,digamo-lo assim, que o do resto do sistema planetário que a ambas rodeia, e aténeste sistema se ache mais condensado, por exemplo, na zona dos planetaspróximos ao sol, que na zona exterior ou dos grandes planetas? Estes diversosgraus de éter tiveram no Oriente nomeie diversos, como o da Sparsha, K, Akasha,Sarvesha e Prakriti, e no material, se cabe expressar-se desse modo para designar aforma inferior das Vidas que se manifestam, são a substância cósmica sutilíssimaque dá forma a nossas paixões, idéias e afetos. Para compreender tudo isto e maisque omitimos, terá que fazer um supremo esforço de concepção imaginativa, e paraisso estão cada vez menos capacitados nossos investigadores por haver-sepreocupado muito do fato bruto, caluniando a grande modeladora do ideal, àfaculdade mágica por excelência, a Imaginação criadora, mãe da Arte e da Vida.

Mas seja disto o que queira, há um fato típico que resplandece em todas estasdescrições orientais do Fim do Mundo, igual a na do ocaso dos deuses, e é o de quetudo no fim dos tempos resolve sucessivamente em seus elementos primitivos, parapreparar assim o novo Caos de que tem que nascer um novo Mundo.

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Wagner Mitólogo e Ocultista – Capítulo XV

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CAPÍTULO XVOS MESTRES CANTORES DO NUREMBERG

Uma obra como milagrosa, segundo Hans Richter - A comédia musical dos professores cantores -O sapateiro-poeta - Wagner e a obra de Hoffmann - A grande sátira wagneriana - A cidadealemã ao desenhar o Renascimento - Opiniões do historiador Scherr - O Meistergesang e atabulatura - Walther von Stolzing e a eterna inspiração do Amor - A rotina e o povo - Vidênciaswagnerianas a respeito de "a letra que arbusto e o espírito que vivifica" - O Hans Sachs, histórico- O Hans Sachs, simbólico e mítico - Que diferença há entre um canto belo e um canto de Mestre?- Apoteose da imaginação e do sonho - O amor do Walther e o Amor transcendente e renunciadordo Hans Sachs - Admiráveis intuições do mestre Borrell - Precedentes cômicos dos professores natradição medieval alemã - Agridoce tragicômico da obra do colosso.

O grande músico Franz Liszt, protetor decidido e logo sogro de Wagner,dizia que entre as obras como milagrosas que escreveu Wagner, a partitura de OsMestres cantores do NUREMBERG é a mais milagrosa e a mais digna deadmiração, e o muito famoso diretor de orquestra Hans Richter, a sua vez,sustentava que se o mestre de Bayreuth não tivesse produzido mais obra que a quenos ocupa, seu nome seria tão glorioso como hoje o é, depois de nos haver legadosua série imortal de dramas líricos 1.

1 Copiamos da sábia obra de Borrell sobre Os professores:Hans Richter nasceu no Raab, aldeia da Hungria, faz sessenta e oito anos; desde menino sededicou ao estudo da música e entrou muito jovem na orquestra do Imperial de Viena, ganhandopor oposição uma praça de tromba. Logo sobressaiu entre seus companheiros, e em 1866 foirenomado diretor de um teatro de províncias, inteirando-se ao mesmo tempo de que Wagner,naqueles momentos, necessitava dos serviços de um músico principiante que pudesse lhe servir desecretário e de copista. Houve a casualidade de que um seu amigo lhe oferecesse este emprego e lheassegurasse consegui-lo se ele o pretendia.Richter mesmo conta esta decisiva etapa de sua vida.Perplexo me achava – diz - entre estas duas proposições, que tão diferente torcido podiam dar aminha carreira. Consultei o caso com meu chefe, o velho diretor vem Esser -Amigo meu - me disse-, já sabe minha pouca simpatia para as tendências e a música de Wagner, mas indubitavelmenteé um homem de grande talento, ao lado do qual, um artista como você terá ocasião de estirar-se Ede conhecer muitas coisas úteis para o resto de sua vida. Deixa esse teatrillo de povo, onde sóconseguirá vegetar e acomodar-se, e vete com Wagner, que, com os fundamentos que você tem, ele tefará homem. E com Wagner fui - prossegue Richter -, chegando, a sua vila Triebschen de Lucernanos primeiros dias de outubro de 66, e permanecendo a seu lado, nesta primeira etapa, até osúltimos de dezembro de 1867."Por aqueles dias trabalhava sem descanso em seus Mestres cantores. Instalaram-me em um alegre

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gabinete do último piso, que correspondia, precisamente, em cima da habitação do mestre.Trabalhávamos sem exceção toda a manhã das sete, e apenas Wagner terminava cada uma daspáginas da partitura, subia em pessoa com o manuscrito para que eu o copiasse imediatamente.Pela tarde, depois do almoço, acompanhava-lhe em seu longo passeio, que alguns dias duravamuitas horas. Nestas caminhadas mostrava-se geralmente abstraído e silencioso; acredito queseguia compondo.Por esse tempo era eu exageradamente tímido, mas me acreditando no dever de entreter ao mestre,torturava minha imaginação procurando pretexto de conversação que pudesse lhe interessar.Segundo a inspiração do momento cercava o diálogo.Lembrança que um dia me arrisquei a lhe dirigir a seguinte pergunta: - você diga, mestre, queópera prefere você, Tannhaüser ou Tristão Wagner soltou uma formidável gargalhada e secontentou exclamando: - Que desatino!Desculpo acrescentar que em nossos passeios não voltei a cercar conversação alguma.Na noite de Natal fui convidado a comer em sua mesa, e desde esse dia me considerou como seumais íntimo amigo.Conhecendo eu a técnica de todos os instrumentos da orquestra, achava-me familiarizado com omecanismo de grande parte deles. Wagner sabia, mas nunca, salvo uma vez, interrogou-me o maismínimo respeito ao emprego, timbre ou extensão deles. Unicamente, em uma ocasião, subiu a meuquarto com uma folha que ainda conservava úmida a tinta, e me assinalando certo fragmento medisse: - você crie que esta passagem se pode executar na tromba a um movimento bastante rápido?Era o desenho do segundo final dos professores, onde a tromba repete avivado o tema da serenatado Beckmesser.Examinei com atenção o original e respondi: - Evidentemente. Pode-se executar, mas o somresultará fanhoso, nasal e ridículo - Perfeitamente - acrescentou o mestre -, isso é o que persigo.Deve produzir um efeito cômico. E me obrigou a agarrar o instrumento e a repetir o tema, cadavez mais depressa. Wagner ficou muito satisfeito.Pelas noites da primavera e verão sentia prazer em que eu tomasse um bote e transladasse a umailhota solitária que existia no lago, a pouca distância da vila, e que ali executasse na trombadiferentes passagens e partes."Pela comarca começou a formar uma verdadeira lenda sobre estes concertos noturnos. Ouvia-se atromba, mas ninguém via o instrumentista; as pessoas andavam intrigadíssimas por averiguar deonde saíam aquelas músicas. Um inglês, mais curioso que ninguém, propôs-se uma noite rasgar omistério. Veio à ilha, surpreendeu-me e me felicitou pelos bons momentos que me devia.Quinze anos mais tarde, em uma sessão acadêmica onde acabavam de me conferir o grau de doutorna Universidade de Oxford, um respeitável personagem veio a me saudar. Era meu inglês deLucerna. Estreitamos cordialmente nossas mãos e me significou a lembrança deliciosa queconservava da aventura.- Merece que não a você esqueça - lhe respondi -, porque pode vangloriar-se de ser o primeiro queno mundo ouviu melodias dos professores cantores do NUREMBERG.E mais adiante, ao terminar o relato de sua permanência no Triebschen, diz Hans Richter, cheiode sinceridade:

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- Nesses quinze meses me fiz homem.E se fez homem rapidamente. Wagner premiou em seguida sua inteligência e sua laboriosidade lheencarregando da direção e ensaio dos coros na estréia dos professores cantores em Munich. Por certoque em uma das leituras de orquestra ocorreu um incidente relacionado com o desenho de tromba,de que acabo de falar. Dirigia a orquestra Hans do Bülow, e ao chegar aos últimos compassos dosegundo ato, o primeiro tromba, Strauss, pai por certo do hoje célebre autor do Salomé, permaneciaimóvel, com a tromba sobre os joelhos, sem atender as indicações de entrada que o diretor o fazia.Parou por fim a orquestra, e interrogou o mestre, mas ele se concretizou a dizer:- Isto é inexecutável!Hans de Bülow roga à Strauss que tente decifrá-lo.- Não se pode executar - repete o instrumentista -, e é mais, o músico que assim escreve é que nãosabe instrumentar.- O que não se pode executar? - Grita Richter do cenário. E avançando até o proscênio, pede atromba a Strauss e toca sem esforço e impecavelmente as dez notas que compõem a passagem.Com a maior tranqüilidade, e devolvendo o instrumento a seu dono, e contente lhe dizendo:- Já você vê que isto é executável, e que o compositor que o tem feito escreve e instrumenta melhorque você toca a tromba.O ano 68 foi renomado diretor do Real de Munich, voltou logo com Wagner uma larga temporadaa copiar Os nibelungos, que depois ensaiou, consertou e dirigiu em Bayreuth; foi muitos anos chefedo grande teatro de Viena; a seguir teve a seu cargo os célebres concertos Achei, do Manchester, efinalmente, faz algum tempo que, por motivos de saúde, demitiu esse alto posto, ficando após livrede tudo carrego oficial."

"Wagner - acrescenta o crítico musical espanhol que assina com opseudônimo de "Tristão"-, dominado sempre por um elevado sentimento místicoem todas suas obras, se obstinou-se com a idéia da comédia musical, plácida,singela, e até com seus personagens e momentos cômicos, e aquele gênio sem parrealizou uma obra tão estupenda como Os Mestres Cantores, e tão diametralmenteoposta a todo o resto de sua imortal produção. A baruffa, a serenata doBeckmesser, a valsa dos aprendizes, a mais de nos impressionar, quanto mais osouvimos, por seu valor estético, maravilham-nos, recordando que aquilo estáescrito pela mesma pluma que escreveu Na sexta-feira Santa, a Consagração, AWalkyria toda, a Marcha fúnebre de Siegfried, etc. Vamos encanto em encanto nosprofessores. Em primeiro lugar, o livro, apesar dos muitos caluniadores que emépocas passadas teve, considerando-o como infantil, restante de incidentes e deescassa ação, por estimar que esta devia estar reduzida tão somente aos amores doWalther e Eva, hoje é reconhecido, como não podia por menos de ser, como umlivro admirável, perfeito, e modelo de comédia musical. A compenetração de livro emúsica é assombrosa. Nos dois monólogos do Hans Sachs, não pode haver maioridentificação entre a música e a palavra. Parece que tudo que neles diz o sapateiro-poeta não pode expressar-se de outro modo. A garra do gênio está ali impressa demodo indelével."

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"Encontramo-nos de repente - diz, a sua vez, o delicioso escritor GómezBochecha em uma de suas crônicas - ante um velho povo ruidoso, sonhador,enganador, desordenado, boêmio, galante, algo grosseiro, sem dúvida, e algo rudede maneiras e de linguagem; mas com um fundo tão grande de ilusões generosas ede desejos ingênuos, que mais parece uma imagem de burlesco heroísmo, que umarealidade burguesa. Esses sapateiros, que são poetas; esses toneleiros, imbuídos demetafísica; esses taberneiros, que falam de prosódia, todo esse universo grotesco,gesticulador, amigo dos jarros de cerveja e dos cantos antigos, move-se em umaatmosfera inocente de fanfarronice robusta e de gravidade bufa. Mas o cômico doquadro está impregnado de tanta melancolia, que se detém a risada nos borde doslábios, para converter-se em sorriso."

O mestre Borrell acrescenta, enfim, em sua preciosa obra consagrada aoestudo dos professores cantores:

"Um singelo conto do Hoffman, titulado O toneleiro de Nurernberg sugeriua Wagner a idéia primária do argumento da obra, evocando em sua alma de artista ede patriota uma completa visão da velha a Alemanha, com toda sua organizaçãosocial, suas lutas poéticas e suas tradições legendárias. Colocado já no ponto devista histórico do século XVI, desejou conhecer a origem e o mecanismo dainstituição dos professores cantores, e os estudou a fundo no interessante livro doJuan Cristóbal Wagenseil, que leva por título Do Sacri Romani Imperii LiberaCivitate Noribergensi commentatio, impresso no Altdorf, em 1697. Em suaspáginas encontrou quanta documentação necessitava, e se fez a viver mentalmenteem uma sociedade e em um tempo tão distantes dos nossos. Foi, pois, este velhoinfolio a fonte principal do poema wagneriano. O domínio da matéria o levouinsensivelmente a penetrar no mais fundo da biografia do Hans Sachs, seuprotagonista, e a revisar, com a avidez de um erudito de biblioteca, a riquíssimaobra poética do ilustre meistersinger, dispersa por todos os arquivos da Alemanha."

"Quando terminei o Tannhaüser - diz o própriWagner- tratei de repor minhasaniquiladas forças no balneário do Marienbad. Durante as férias me sentiexpansivo, contente e satisfeito como poucas vezes o estive em minha vida. Estafavorável disposição de ânimo se manifestou exteriormente em proveito daprodução artística. Da própria maneira que entre os gregos uma peça teatral satíricaprecedia sempre à representação trágica, a larga convivência com o assuntodramático de meu Tannhaüser me sugeriu sem dúvida a imagem de uma comédia;uma comédia que pudesse em certo modo encadear-se com aquele drama e queservisse de produção satírica correspondente."

"Inventei rapidamente a este efeito o plano completo dos professorescantores, desenhando como principal figura a do Hans Sachs. Mas assim que o tiveem esboço, vi-me obrigado a abandoná-lo, porque o assunto de Lohengrin meatraiu com um poder irresistível.” (1845-1862.)

Isto foi em abril de 66 e desde esta para ele venturosa data não deixou um sómomento da mão a partitura dos professores cantores. Emprega quase um ano nacomposição, dando-a por terminada em 07/03/1867. Faltava a instrumentação, ese vão nela outros seis meses. Em 20 de outubro deste mesmo ano põe a palavra

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fim ao pé do manuscrito.A obra se estreou com grande solenidade no Teatro Real, de Munich,

dirigida pelo Hans do Bülow, em 21 de junho de 1868. Wagner assistiu aos ensaiose à primeira representação, presenciando-a do camarote real, ao lado do Soberano.Teve um êxito imenso, indiscutível, possivelmente o maior que conseguiu o mestreem sua vida; a obra passou rapidamente a todos os cenários da Alemanha, sendoacolhida em todas partes com o mesmo entusiasmo e devendo ser como averdadeira e definitiva consagração do gênio de seu autor.

O admirável wagneriano Luis Paris, antes de nos dar a tradução espanholadesta obra que terá que nos guiar aqui, repete-nos que a fonte principal do poemados professores cantores é a obra Do Sacri Romani Imperii libera civitateNoribergensi commentatio, antes citada, do Juan Cristóbal Wagenseil, existindo nabiblioteca de Wagner um exemplar cotado de seu punho e letra. A dita obraadicionou o colosso muitas outras idéias libadas na ópera Hans Sachs, doDeinhardstein, Regel e Lortzing, como também nas diversas tradições popularesrelativas a este verdadeiro iniciado, protótipo de sábios e de renunciadores, porqueé indubitável que a Alemanha, ao desenhar o Renascimento, tinha já instituiçõesadmiráveis, como iniciáticas, sobre as que conviria que alguém fizesse um diaestudos de história do Ocultismo 1.

1 A repetida obra Do Sacri-Romani, etc., ou melhor, a tradição popular em que ela se apoiasse,deveu servir de apóie a muito poderoso imaginação de Hoffmann para compor o famoso ContoFantástico titulado O mestre Martín e seus mancebos, ou seja, O toneleiro de NUREMBERG,do que nos deu uma tradução a Biblioteca de Ambos os Mundos, de Barcelona. No conto nos falada maravilhosa Fonte do Mercado, do NUREMBERG, dos sepulcros de São Sebaldo e SãoLorenzo, do Castelo e da Casa Municipal que entesouram as obras-primas do Alberto Durero ese reproduzem primorosamente os velhos costumes patriarcais cantados pelo Rosenblüt. MaeseMartín, o mestre dos círios, acabava de ser eleito síndico da cidade por sua prodigiosa arte detoneleiro, do que seu ventruda personalidade se sentia mais orgulhosa que das suas respectivas oestivessem a Batata ou o Imperador, outro tanto que de sua suntuosa morada, fruto de seus afãsde artista, e de sua filha Rosa, branco dos amores de toda a juventude do NUREMBERG. Etão feroz se sentia o bom maese Martín de sua estupenda arte, que tinha jurado não adjudicar aninguém, rico ou pobre, plebeu ou cavaleiro, a mão da jovem, se antes não apresentava opretendente, feita por si próprio, uma obra prima, um tonel ao que por sua solidez, elegância edemais condicione não lhe pudesse pôr um mas. O próprio filho do Conselheiro Paumgartner se vêsubmetido a terrível prova, porque o inexorável mestre Martín punha sua incomparável profissãode toneleiro acima de todas as demais do mundo. Ao mesmo tempo aparecem em cena os jovensFederico e Reinaldo, pintor o um e escultor-tallista o outro. Ao conhecer rosa e ficar ao pontogostados muito de amor por ela, decidem ambos apresentar-se como aprendizes em casa do pai,único modo de chegar a ser como ele hábeis artífices e poder construir a obra prima tonelera. Asperipécias que com tal motivo acontecem aos três jovens, merecem ser lidas no original mesmo doHoffmann, onde se apreciam as velhas características do Alma medieval e até moderna alemã,mescla absurda de dignidade de bem, grosseria, lealdade, simplicidade, sátira e espírito“cavaleiresco”, coisas todas que tão prodigiosamente soube transladar o colosso de Bayreuth a sua

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obra. A apresentação do Conrado, o terceiro pretendente da filha de maese Tobías Martín, é noconto de Hoffmann de uma vis cômica insuperável, pois não falta nada ao quadro daquelapequena hercúlea e fera que com suas atrocidades cheia de terror ao implacável síndico-toneleiro,quem, desde aquele momento, não viu senão horrores em redor dele, mercê ao que hojechamaríamos o boicote dos aprendizes, que já não fizeram coisa alguma a direitas. Federico, opreferido de Rosa, depois de esculpir uma preciosa taça de ouro e prata esculpida, realiza ao fim aconstrução da obra prima tonelera, e se celebram com grande pompa seus esponsais com Rosa,bodas em que todos os convidados bebem a turno na valiosa taça. No melhor do convite aparecemos outros dois pretendentes de Rosa, é, ou seja: o um o cavaleiro Conrado do Spangenberg, jádesposado a sua vez com outra aristocrática Rosa, depois de curado de seu amor à Rosa tonelera,graças a certa surra misteriosa que com grande luxo de detalhes se descreve no conto, e o outro, océlebre pintor Reinaldo, cujo amor pela formosa tonelera não tinha sido senão mero capricho deartista para poder transladar ao tecido a beleza da filha do menestrel, tecido que no banquete debodas apresenta, causando a estupefação de todos.É uma verdadeira maravilha do gênio literário musical de Wagner o que, apoiando-se em tãocorriqueiro e muito grosseiro argumento, tenha alcançado a riscar-se outro como o Dos professorescantores, com apenas agrupar suas clássicas e democráticas cenas em volto de uma figura pasmosasobre toda ponderação: a do Hans Sachs, o renunciador.Da literatura extravagante e astral de Hoffmann muito poderíamos falar por apresentar grandesanalogias de fatura com os preciosos contos ocultistas de Blavatsky. O violin da Cremona,Afortunado em jogo, Dom Giovanni e outros contos daquele, correm, com efeito, casais com os Doviolin com alma, A cova dos ecos, História de uma vida encantada, etc., etc., desta última; mas ofalar deles nos levaria muito longe do objeto deste livro.

"As nobres diversões populares - diz Scherr em seu Germânia - acusavam,com efeito, por toda parte quão rico tesouro jazia oculto no coração do povo. Estetesouro se manifestava de uma maneira deliciosa na poesia popular, em cançõesque percorrem toda a gama musical da vida interior e exterior, e que descobremcom perfeito realismo e com natural simplicidade os pensamentos de todas asclasses sociais, como uma das mais sões e perfumadas flores da civilização de nossopaís. Nestas canções, cuja fonte emana ainda com todo seu vigor primitivo, os tonsda alegria são tão realistas e íntimos como os da tristeza, os sons de brincadeira sãotão verdadeiros como os da queixa ou da ira, porque efetivamente palpita nelescom toda sua força o coração do povo alemão em sua energia como em suadebilidade; em suas virtudes como em seus vícios. Podemos designar, pois, a nossapoesia popular como a história secreta e íntima de nosso país; mas ao mesmotempo é também a história pública do mesmo, por aquela rica cadeia de cançõeshistóricas, cujos elos mais antigos datam da primeira metade do século XIII. Acanção popular histórica que substituiu à envelhecida poesia cavalheiresca,ressonou com mais força na segunda metade do século XV e na primeira do XVI.Foi o canto de despedida da Idade Média dando as boas-vindas à aurora de umanova Era". (Germania - Dois mil anos de história alemã, pelo Juan Scherr.Tradução da Casa Montaner e Simón. 1882. Capítulo VII, A aldeia e a cidade.)

"A instituição germânica do Meistergesang - diz Borrell - não tem

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precedentes nem similares na história universal da literatura. Nem os Puys francesesda Idade Média, nem a Academia poético-musical do Baïl, do tempo dos Valois,podem, em rigor, comparar-se com aquela nem quanto a fins nem em ponto aconstituição. Os bardos ou poetas-do-amor, que pelos séculos XII e XIII cantaramo amor nas cortes e nos burgos alemães, tiveram, pelo contrário, sua representaçãocorrespondente nos trovadores dos povos europeus mais ou menos dominadospelo feudalismo, criando uma interessante poética, recopilação e depuração delendas e fonte e auxiliar das crônicas, que era como uma continuação da poesiasagrada cultivada por sacerdotes e monges dos tempos do Carlomagno.

A hecatombe da dinastia dos Hohenstauffen, extinta pela morte no patíbulode seu último rei Conradino, assinala a rápida decadência e desaparecimento dapoesia cavalheiresca. No período anárquico subseqüente, os nobres bardos trocama lira pela espada; a Cavalaria realiza atos de vingança e pilhagem nas mesmassenhoriais mansões onde acabava de celebrar torneios poéticos e cortes de amor, ea barbárie da guerra civil impede que até os mais pacíficos poetas-do-amorencontrem ambiente tranqüilo para seguir chorando suas desventuras ou paracantar a virtude e a beleza de suas damas.

A arte elegante, sensual e livre da Idade Média sucumbiu aos embates daviolenta sacudida histórica. Sobrevém uma etapa de prostração. Mas pouco a poucovai surgindo um novo mantenedor da vida literária. Da mais baixa extraçãohumana, de entre os vagabundos e gente malfeitor, sai o cantor mercenário, quecorre de porta em porta recitando estrofes e mendigando um pedaço de pão. Estesparasitas ou Fabrenden recolhem e conservam uma parte das tradições poéticas dospoetas-do-amor, que, de outro modo, tivessem apagado o tempo e o esquecimento.Durante o século XIV formam-se nas cidades do Reno importantes núcleos destaclasse de cantores, que, paulatinamente, vão limpando-se do abjeto de sua origem eunindo-se aos eruditos e aos Doutores da Santa Escritura, para formar as escolas deMeistergessells chafften, ainda sem caracteres de verdadeiras associações: Müglin,Rosenplüt, Kies, Suchenwirt, e sobretudo Frauenlob, chamado Henry do Meissen efundador da escola da Maguncia (o mais importante destes núcleos), distinguem-seentre muitos, cantam assuntos escolásticos, místicos e morais, chegando a versificaros rudimentos das ciências naturais e a expor problemas e enigmas de dogmas, atéperguntar, por exemplo, onde residia Deus antes da criação, ou qual pudesse ser oponto inicial do mistério da Trindade.

Todo isso sem inspiração e sem bom gosto, sem sinceridade de crentes esem emoção artística.

"Paralelamente a esta etapa evolutiva, começa na Alemanha a adquiririmportância o Município e a vida do povo, mercê ao florescimento das cidades pelodesenvolvimento da indústria, do comércio e dos descobrimentos. As Cruzadasinfluem também poderosamente na mudança de relações intelectuais, e, portanto,na cultura geral das classes sociais inferiores, que até então não hão transcendidapara nada na vida nacional; a burguesia e o povo pressentem os direitos que lhesassistem para penetrar no movimento das novas idéias e poder gostar dos prazeres

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da inteligência.E aqui nasce o Meistergesang. Seus começos são muito obscuros. É de

presumir que o grupo principal de cantores nômades, reunidos na Maguncia sob adireção do Frauenlob, fosse convertendo-se em verdadeira corporação e dandonele entrada a elementos burgueses da vila. O indubitável é que dita escola se regiapor umas leis retóricas restritivas, insuportáveis.

Tanto, que certo barbeiro do Worms, chamado Hans Folz, levanta oprimeiro sua voz de protesto contra estas insofríveis trava, abandona Maguncia ecapa no NUREMBERG uma verdadeira Associação de professores cantores, quenão foi certamente a primeira da Alemanha, porque se sabe que existiam comantecedência as do Estrasburgo, Francfort, Augsburgo e Wurtzburgo. Mas a deNUREMBERG, pelos princípios de relativa expansão com que se criava, assimcomo pelo talento e as energias do Folz, chegou logo a ser a mais importante detodas. Outro de seus fundadores, Nunnenbech, é o primeiro meistersinger queescreveu composições sobre assuntos profanos. Folz mesmo compôs historietasalegres ou contos de índole dramática. Em geral, e até sem sair-se de uma Tablaturapouco menos despótica que a da Maguncia, os primitivos cantores doNUREMBERG respiram com mais liberdade e sentem prazer em servir-se defontes de inspiração mais humanas e poéticas.

"Em seguida entra o Meistergesang em sua idade de ouro, que dura todo oséculo XVI, fundando-se Associações em todas as partes, mas conseguindo sempreNUREMBERG a supremacia de uma indiscutível metrópole, sem dúvida alguma,por contar entre seus filhos ao sapateiro Hans Sachs, o mestre dos professorescantores, como lhe chama Wagenseil, e cujo nome, depois de quatro séculos,pronuncia-se em sua pátria com veneração carinhosa; até o mesmo Goethe, em suaMiscelânea poética, dedica-lhe uma magnífica comemoração, acabando por lhechamar seu antecessor intelectual.

O Meistergesang, por outra parte, foi perfeita imagem da sociedade a cujoamparo nascia. As cidades alemãs daquele tempo estavam divididas em corpos deofício, mestrias e irmandades laicas e religiosas, depositárias de usos eprocedimentos tradicionais. A mesma rigidez com que velavam pela pureza de todaclasse de relações paralisava toda tentativa criadora ou reformista. Seu estreito lemapodia sintetizar-se em uma frase: o respeito ao passado.

Apesar disso, as Corporações poéticas prosperaram, porque, além decorresponder a um sentimento sincero e refletir as alegrias tranqüilas e bem ganhasde que rouba umas horas à folga e uns minutos ao trabalho para dedicá-los aocultivo da inteligência, vangloriavam-se, além disso, nobremente por conservar ariqueza poética herdada dos trovadores. A burguesia se faz cargo dela, eleva-a erejuvenesce, limpando a das impurezas da escola da Maguncia. Com a seiva nova, apoesia alemã recupera vida e espírito.

E não esqueçamos que os honrados trabalhadores que encontramos nas lojase oficinas do NUREMBERG dedicados a seu ofício jornaleiro e realizando nashoras de vagar um trabalho elevado e meritória arrastam uma vida, de tradições

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poéticas, e desde sua infância lhes rodeou um ambiente legendário, o mesmo quefez cantar aos bardos, seus antecessores quase diretos, as alegrias e tristezas quelhes inspiravam seus burgos renegridos e suas verdes campinas, seus rios de prata esuas opacas brumas.

"Sentíase nas populações alemãs - continua dizendo Scherr - a necessidadede expiar, por meio de um redobrado trabalho civilizador, as mortandadesespantosas causadas sucessivamente em poucos anos pela peste (der grosseSterbent), as peregrinações de disciplinantes e as matanças de judeus. Desarrollóse,pois, em todas as cidades uma vigorosa e fecunda atividade. A bem dizer, o fiodourado da poesia que os cidadãos tirassem de mãos da dissoluta nobreza nãoadquiriu novos brilhantismos, antes bem empalideceu mais e mais sob a forma datrova cidadã ou meistergesang. Era, não obstante, muito louvável o que oshonrados menestréis se reunissem em escolas de rima e de canto, porque assimmostravam seu interesse para a parte ideal da vida. Estas escolas floresceram,particularmente no NUREMBERG, Ravensburgo, Augsburgo, Ulm, Francfort eEstrasburgo, depois que Henry do Meissen, segundo conta a tradição, fundou aprimeira delas na Maguncia, assim que o imperador Carlos IV, em 1378, teveoutorgado a sortes Associações, de um modo solene, todos os direitos deverdadeiro grêmio. À Diretiva do grêmio dos versificadores ou cantores adenominou Gemerk e a seus indivíduos bunecgsenmeister (mestre de caixa),schluessel- meister (mestre de chaves), merkmeister (mestre apontador) ekronenmeister (mestre de coroa). Estes dirigiam os exercícios e desafios poéticos emusicais, que se efetuavam em presença das mulheres e filhas dos associados todosos domingos, pela tarde, na igreja ou na sala da Prefeitura, e ao ato lhe denominava"cantar escola". Logo, a tenor da falha do mestre apontador, o mestre de coroaentregava aos trovadores distinguidos modestos prêmios, consistentes emcoroinhas de arame de ouro ou de prata. O livro que continha as regras dosmeistersingers chamava-se tabulatura; a canção, bar; as estrofes, gesatche; asdiversas espécies de versos, gebande, e as melodias, toene ou socisen. Que aindanão conhecia a fundo a tabulatura era discípulo; que a possuía já bem, recebia onome de "amigo da escola"; quem sabia além de compor a letra para uma melodiadada, era já "poeta", e o que alcançava a poder escrever um ária nova ficavaqualificado como "mestre". Esta arte da trova cidadã se conservou durante quatroséculos, e em 1770 se cantou por última vez uma "escola" solene noNUREMBERG, a pátria do Hans Sachs, o único e verdadeiro meistersinger; mascomo as formas desta trova continham desde o começo um excessivo número defiguras, jogos de palavras e circunlóquios, e a poesia, a sua vez, estava infestada defrases afetadas e grotescas, muito em breve teve que degenerar na mais irritante dasinsignificâncias".

Recordemos, a grandes rasgos, o argumento da obra Os Mestres Cantores,tão conhecida pelo público culto.

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Ao elevar o pano de fundo, aos lembre do órgão, aparece uma parte do coroda igreja da Santa Catalina, de NUREMBERG, a véspera da festa de São JoãoBatista, a meio-dia. Durante a execução do coral se desenvolve mímica cena deamor entre a Eva, a filha do orive Pogner, e o cavaleiro Walther do Stolzing, que,do antecoro exterior, contempla-a arroubado. Madalena, o aia da Eva, repreende-asua falta de religioso recolhimento, mas esta, ao sair, acha meio de entreter à aia,para falar um instante com o galhardo mancebo, lhe dando francas esperanças.Madalena, por sua parte, informa a este de que Eva está prometida por seu pai aomestre que na imediata festa de São João alcance o prêmio do concurso decantores. Walther, cheio de paixão, embora ignorante das leis da tabulatura,encarando-o tudo, decide-se a apresentar-se ao concurso.

A prova preliminar se apresenta momentos depois. Os Mestres Cantores vãochegando, com efeito, uns detrás de outros, desde o Pogner, o pai da bela, e HansSachs, o sapateiro filósofo e místico, até o desprezível tabelião Beckmesser,vejestorio malvado, que tem por seguro, entretanto, o conseguir a mão da Eva,triunfando, como mestre que é, no concurso. Informado Beckmesser da insensatapretensão do Walther, e raivoso de ciúmes, exerce com ele o cargo de censor emseu canto preliminar à presença dos professores, a quem faz logo escandalizar-seante a enormidade das faltas contra a tabulatura, naturalmente cometidas por aquelenoviço, que tanto sabia de amor e tão pouco de achaques literario-musicales. SóHans Sachs, o maravilhoso Mestre de professores, venerado por todos 1, acreditouadvertir, depois do sincero canto De amor metido pelo cavaleiro, algo que, nãoobstante sair-se por completo do rígido canon, encerra, a seu julgamento,desconhecidos elementos de beleza, pela nobre espontaneidade daquele,insinuados, e nos que pulsa viva a sempre fresca inspiração do povo, semprequerida aferrolhar pela rotina pedantesca das regras, "da letra que arbusto", quediria o Evangelho.

“As regras! - Diz Sachs -... Submeter as devesse quando em quando a umaprova para observar se, a força do hábito, da inerte rotina não perdem algo de seuviva eficácia. A tabulatura é necessária, mas unicamente aqueles que a ignorampoderão nos dizer se observando só suas regras diretas seguimos o verdadeiroroteiro, que é o da Natureza... Em vez, pois, de convidar ao povo para a festa deSão João para que vá contemplar lhes, baixarão até ele seus olhares da nuvem devangloria de que se rodeiam os Mestres, sem que jamais tivessem por que lhesarrepender disso, pois o povo e a Arte são solidárias, e o conseguir que ambosfloresçam e progridam a um tempo deve ser a meta de nossas insônias".

1 Hans Sachs é, como já lhes vire, um admirável personagem histórico.Para dar uma pequena idéia da extraordinária produção de Hans Sachs - nos ensina o chamadoSr. Borrell-, diremos que é assombrosa a diversidade de assuntos tratados em seus cantos. Decaráter religioso escreveu paráfrase sobre os Mandamentos e o Credo, interpretações de passagens

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do Antigo Testamento, meditações sobre os Evangelhos e sobre vistas de Santos; pôs Além disso,em verso, as Sentenças de Salomão e todos os Salmos da Igreja. Na ordem profana teminumeráveis transcrições de poetas clássicos, sobretudo do Virgilio, Plutarco e Tito Livio; farsassatíricas, nas que se ridicularizam costumes alemães daquele tempo; um formoso caudal, emquantidade e qualidade, de seus célebres Schwanke ou contos populares de graciosa invenção eforma desenvolvida, composições de verdadeiro caráter dramático (lendas, tragédias, peças cômicas),algumas das quais representavam os mesmos Meistersingers na igreja da Santa Marta e nos diasde festa de repique."Proibia a Tablatura que se imprimissem os Bar destinados a Singschüle, mas fora destes seconservaram impressas infinitas composições do Sachs, às que acompanha quase sempre umavinheta gravada em madeira, grosseiramente executada, mas nunca isenta de graça, expressão ecaráter."Com apenas uma cifra pode dar-se idéia da fecundidade poética do Hans Sachs. Um biógrafodele, Schweitzer, diz que passam de 6.100 as composições de todos os gêneros escritas pelo maisfamoso dos meistersingers, e acrescenta: “as avaliando aproximadamente, esse número de obrascorrespondem à cifra colossal de 500.000 versos. Meio milhão!.Entre esta copiosa literatura do Hans Sachs se sobressai uma obra que teve grande ressonância e aque deveu o princípio de sua popularidade. Alemanha inteira a aprendeu de cor recém publicada ea erigiu como bandeira de uma nova seita religiosa. Do fundo do claustro do Wítemberg, o fradeMartín Lutero acabava de expor o plano da Reforma. Em 1523, Hans Sachs lança suacomemoração a nascente doutrina por meio de um canto heróico, composto de 600 versos, e tituladoO rouxinol do Witemberg, em cuja primeira parte se sintetiza o objeto da composição."Vamos! – Diz -; a noite morre; a luz se aproxima. Ouço na ramagem o canto divino de umrouxinol, cuja voz se estende através dos Montes e das planícies. Ante sua música celeste secongrega o rebanho de ovelhas, desencaminhadas durante a noite pelo descuido de seus indignosguardiões, o leão e os lobos. Em vã as feras tentam apoderar do cantor gentil ou de apagar o cantocom seus uivos. O rebanho deu por fim com seu caminho de salvação."Como se vê, o simbolismo Candido e infantil da composição não pode ser mais transparente: abatata Leão X, os monges e sacerdotes, estão representados pelo leão e os lobos, pastores dorebanho; a cristandade aparece simbolizada pelas submissas e mau dirigidas ovelhas, e o rouxinol,que anuncia a aurora, que encaminha aos fiéis pelo bom caminho e sufoca os uivos das feras, não éoutro que o próprio reformador Martín Lutero. Esta obra do Sachs se constituiu desde o começoem um verdadeiro hino da flamejante religião e se adotou por todos os luteranos como uma espéciede Credo. Fazendo o chamado Schweitzer um detido estudo da composição e comentando-a estrofepor estrofe, diz que a tradução e o resumo detalhado não podem expressar todo o fogo com que estáescrita esta potente diatribe, nem o impulso de sua versificação sóbria e vigorosa "parecida com omovimento de um martelo de aço dirigido por um braço nervoso que pega golpes e levanta faíscas"."No coral de aclamação do terceiro ato dos professores cantores, Wagner se serve da primeiraestrofe do rouxinol do Witemberg, rendendo assim uma comemoração de admiração ao históricoprotagonista de sua obra magistral."

Em tais palavras do Sachs se resume todo um curso de democracia e liberal

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fraternidade frente à eterna rotina entronizada dos que ascendidos, não sempre porseus efetivos méritos, querem retirar a escala para que outros não subam, e "ocultara luz sob o celemín", para que o pobre vulgo permaneça explorado sempre esempre sumido em lamentáveis trevas. Veja-se, pois, nela a Wagner revolucionáriono mais amplo sentido filosófico e teosófico da palavra, a Wagner titã e rebelde...

Tão sublime teoria, que poderia contribuir de novo uma idade de ouro a estamísera terra, desembrulha-se brilhantemente no ato terceiro, neste diálogo que nãopodemos omitir:

Walther - Entre um canto de Mestre e um canto belo, há, pois, umadiferença? E como averiguá-la?

Sachs. (Com voz meigamente comovida.) - Meu amigo! Nos felizes dias dajuventude, quando poderosas aspirações removem profundamente nossas almas,nos levantando o peito e dilatando nosso coração para o êxtase do primeiro amor,qualquer canta uma bela canção... A primavera canta por ele!... Mas quando chega oestio, e depois o outono e o inverno e com eles urgências da vida, a sorte conjugal,os filhos, os negócios, as preocupações e os conflitos, aqueles que, apesar de tudo,conseguem criar ainda belos cantos, recebem, como viram, o nome de Mestres...

Walther. (Com tenra exaltação.) - Quero me unir à mulher que adoro! Queroque seja para sempre minha companheira!

Sachs - Aprendam as regras dos Mestres, as estudem, posto que ainda étempo para que, sendo seu guia mais fiel, eles ajudem algum dia a conservar e voltara encontrar em seu coração os tesouros que ali depositaram a primavera, a paixão eo amor nos anos de sua juventude, quando ainda não conheciam mais que a alegriadas aspirações ilimitadas. Todos esses tesouros que só as regras magistrais lhesdevolverão mais tarde intactos!...

Walther - Mas, quem criou essas regras que tanto prestígio têm?Sachs - Os que as instituíram foram Mestres que só obedeciam, as

promulgando, a profundas necessidades... Foram espíritos cruelmente oprimidospelas tristezas da vida... Que sob o império de sua própria angústia, de suas ásperasaspirações, de seus desenganos, tiveram que forjar uma imagem, um modelo ideal,por dizê-lo assim, que contivesse firme e preciso a lembrança bendita de suajuventude e do amor, conservando puro o perfume primaveril, desvanecido nasbrumas do passado.

Walther - Mas como pode o homem, cuja primavera passou, reanimá-la ereproduzi-la por meio de uma imagem evocadora?

Sachs - Rejuvenescendo-a incesantemente...! Como faço eu! Eu, a quem sófica da Primavera da vida a lembrança longínqua misturada com dolorosas ânsias,eu lhes ensinarei as regras; mas serão vocês mesmos, seu canto, quem me renovaráseu verdadeiro sentido... Aqui há tinta, pluma e papel: cantem seus versos. Ditem!Eu escreverei.

Walther - E o que tenho que cantar...?Sachs - Me digam seu sonho desta manhã.

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Walther - Acredito que durante sua eloqüente lição lhe dissiparam as regras.Sachs - Razão de mais para chamar em seguida à Arte em sua ajuda, à Arte

do Poeta. Não seriam certamente o primeiro que, graças a sua ajuda, voltaria aencontrar quanto acreditou perdido.

Walther - Isso seria poesia, mas e meu sonho?... Isso já não será meu sonho.Sachs - Ora! O sonho e a Arte são irmãos! Já verão como só desejam ajudar-

se mutuamente!Walther - Como devo começar de acordo com as regras?Sachs - A você toca estabelecê-la segundo como começam, pois bastará

desenvolver o resto de acordo com o princípio... Recorde primeiro seu formososonho matutino; para o resto, Sachs vigiará... Deixem-lhe fazer!

Hei aqui, pois, a apoteose do sonho, da imaginação e das mais altasqualidades poéticas, frente à exploradora rotina entronizada graças aoestrangulamento que com o corda das velhas ou das falsas regras realizam dovivente organismo da Arte, que é todo inspiração, intuição e poesia, como naintrodução desta nossa Biblioteca levamos dito.

Por isso o genial cronista da Liberal, antes aludido, ao ocupar-se da cena dedito terceiro ato, delineia de emano professora o complexo caráter teosófico doHans Sachs, nestes termos:

Há ecos do Eclesiastés e rumores dos jardins helênicos nas palavras dessecínico sentimental, desse trapaceiro, que não quer, no fundo, senão desenredar aterrível meada das paixões, das invejas, dos ódios e dos enganos.

"É filósofo - diz Wagner -; mas é sapateiro", mas mais que sapateiro, maisque filósofo, é poeta, um poeta em ação e em sonho, que goza com o ritmo doamor alheio, das canções alheias, da luz alheia. É o sábio convencido de que tudo évaidade de vaidades, e que, entretanto, obra como se de um nada pudesse tirá-laessência da justiça, do prazer, da harmonia. É o ser contraditório que aturde suaalma silenciosa com o estrépito de seus martelos, de suas combinações, de suasintrigas, de suas disputas. E como é poeta, consegue o que a realidade mesma nãolhe promete.

É poeta até quando, com o pretexto de ver em onde o sapato faz mal ao pémiúdo da Eva, ajoelha-se ante ela e, em silêncio, espera que o amor floresça acimade sua velha cabeça cheia de mariposas azuis.

Cante-me sua paixão - diz à Walther.E enquanto o apaixonado exala seu fogoso fôlego, o bom sapateiro escreve

as notas e as frases, com alegre paciência, seguro de que no concurso dosprofessores cantores aquele hino de juventude, de esperança, de desejo, de vida ede ardor triunfará de todas as odes soube do Beckmesser.

- Ninguém poderá vencer - diz ao Walther -, porque o prêmio prometido àmestria poética é a mão da Eva... Tenha valor, e adiante...

No meio do tumulto das trompetistas e dos tambores, o cortejo se

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encaminha para o lugar do concurso, quão mesmo nos tempos longínquos daVogelweide, lá, quando, por ganhar a palma da poesia, Enrique do Ofterdingenexpor sua cabeça loira. No fundo do quadro, para fazer ver que não se trata daAlemanha nova, mas sim da velha Germânia, aparecem as torres bicudas, negras,aéreas, ligeiras como brinquedos e lavradas como relicários da secularNUREMBERG.

"E Walther canta seu canto de amor, de esperança, de fé. E o povo, quereconhece em seus acentos o eco da antiga raça dos minnesinger cavalheirescos daWartbourg, dos poetas errantes e legendários filhos do Klíngsor, dos servidores dasloiras lands-gravesas de olhos de violeta, coroa-o de rosas e de sorrisos, lheoferecendo, como suprema recompensa, a branca mão da Eva".

Em ponto ao amor do Walther e ao Amor transcendente e renunciador doHans Sachs, teríamos não pouco que dizer; mas em honra da verdade nos vemosobrigados a confessar publicamente que o mestre Borrell, em seu trabalho tantasvezes chamado, nos antecipou, nos superando. Perdoe-nos tão culto e sábio autorse lhe copiarmos uma vez mais, quando com intuitiva vidência nos fala sobre oAmor do Hans Sachs.

"A partitura dos professores cantores tem outra virtude especial – diz -. Amúsica, e somente a música, ilumina um ponto obscuro da obra, no que pôs oautor sua intenção oculta. Hans Sachs não se concreta a ser o espírito progressivo eclarividente que enlaça as duas correntes de arte que campeiam na comédia; por seuamor para a Eva Pogner, Wagner lhe erigiu em personificação do fundamentocapital do poema. Ao redor sua excursão a ação interior, a idéia dominante eescondida. Mas como sua natureza humana é das escolhidas, consciente e boa,sacrifica-se sem protesto exterior, e sua boca, no curso dos três atos, só exala umainsignificante queixa, uma indireta alusão a seus sentimentos contrariados primeiro,e ao fim mortos.

"É um dos resignados de Wagner."Pois bem; esse mistério, encerrado na alma do protagonista, se manifesta

exclusivamente por meio da linguagem dos sons. Valendo-se dele com uma incrívelriqueza e intensidade de médios, leva-nos Wagner através da evolução sentimentalaté dever parar ao triunfo da resignação.

"Citemos algumas das peças isoladas deste processo psicológico- musical."Não é necessário insistir muito sobre o acento sentimental e comovedor do

tantas vezes chamado monólogo do Sachs no segundo ato. As cenas da assembléiados professores, o fracasso de um artista que pela primeira vez ouviu, podem lheinteressar e lhe entristecer tão profundamente? Não. É que instintivamenteadivinhou que atrás do apaixonado canto do Walther se movia algo mais que odesejo de triunfar como artista. Desde que ouviu o neófito, todo seu afã consisteem averiguar se os dois jovens partem de acordo. Desgraçadamente, não demorapara convencer-se disso.

Momentos depois, em seu diálogo com a Eva, as suspeitas se convertem em

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realidade. Com astúcia e habilidade de homem de mundo consegue lhe arrancar osegredo: a filha de seu vizinho o ourives ama, indubitavelmente, à Walther deStolzing; possído já da verdade, sua honradez lhe ordena desprezar toda esperança.

- Já vejo claro! - Diz ao final da cena, sacudindo a cabeça com amargura eacompanhando com o olhar a jovem, que se afasta.

E sobre esta frase, o tema da Eva se transforma em uma melodia patéticaque reflete todo o pensar e o sentir do personagem neste ponto. Tema daImploração (XXVII), segundo alguns exegetas.

"Este é, pois, o momento decisivo do Hans Sachs, o herói isolado, como lhechama o grande crítico Chamberlain em seu livro capital O drama wagneriano. Àinversa. Por meio da música também Eva chega a inteirar do amor que a professaHans Sachs. Esconde com Walther na sombra quando Beckmesser rabia por entoarseus lamentos, o sapateiro afoga todas as vozes com sua canção popular, cheia debravura e de alegria. Mas ao finalizá-la se introduz na orquestra incidentalmente,passando como uma rajada de dor, a primeira aparição do tema da Meditação. Aintenção expressiva e filosófica que aqui tem se deduz do efeito que causa na Eva,efeito que se exterioriza em um movimento de inquietação e nas insinuantespalavras que pronuncia dirigindo-se à Walther:

- Que angústia! Que tortura! – Diz -. Esta canção me transpassa a alma!Vamos daqui, fujamos!"

Não pode ser o sentido satírico do texto o que ocasiona esta naufraga. O queocorre é que Eva se inteira musicalmente dos sentimentos do Sachs, seu velho equerido amigo, e ao ver-se obrigada a separá-los do caminho de sua vida, aflige-se echora.

"Este passo fugaz do tema pelo fragmento está crédulo aos instrumentos devento. Não figura em alguma das reduções de piano da obra".

No prelúdio do terceiro ato, o mesmo tema da Meditação, aparece, comosabemos, em sua forma e desenvolvimento definitivo. É o pensamento reflexivo, omovimento da alma, que se retrai e se acomoda a resistir os embates do destino.

Não terá que fazer conjeturas críticas sobre sua origem representativa. OmesmWagner nos explica claramente seu significado no comentário analítico queescreveu sobre este prelúdio, e do qual copio os seguintes conceitos:

"Por este prelúdio instrumental, o público adivinhará a situação imediata e aestado de alma de meu Hans Sachs. O primeiro motivo figurou já no atoprecedente, coincidindo com o final da terceira estrofe da canção do sapateiro. Aliexpressa somente o lamento do homem que se resigna interiormente, apresentandoao mundo uma fisionomia tranqüila e alegre. Eva, entretanto, compreendeu aqueixa; ferida até o fundo de sua alma, resiste a continuar ouvindo este canto deaparência indiferente. O motivo reaparece agora isolado e se desenvolve o mesmo,com a penetrante expressão de estremecimento de sua alma comovida... Se acalma,por fim; tranqüiliza-se, e chega a adquirir a extrema serenidade de uma doce emística resignação".

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Resulta, pois, que se nas cenas do segundo ato se sente Hans Sachs com aforça moral necessária para chegar até o sacrifício de um amor imenso, no prelúdiodo terceiro, depois de meditar sobre sua regra de conduta interior, está possuído deperfeita e serena tranqüilidade de espírito. Fica o sotaque amargo do rasgão moral,mas a consciência sorri placidamente. Assim nos ratifica isso o mesmo tema em suaúltima fórmula significativa, quando Eva, depois da aparição de Walther na escadada oficina, cai rendida de emoção, nos braços de Hans Sachs e lhe testemunha todoo reconhecimento que por ele sente. A falta de dor e desespero visíveis éprecisamente o que faz mais grade e mais simpático o sacrifício. Hans Sachsrenuncia à felicidade sem discursos e sem gestos trágicos. Uma vez, uma sozinha,enquanto os dois casais que lhe devem o lucro da sorte - Eva e Walther, Madalenae David - unem suas vozes no final do terceiro quadro para cantar sua alegriajuvenil e amorosa, ele, mais solitário que nunca entre este transbordamento defelicidade, deixa escapar um suspiro melancólico, que passa inadvertido para outros,e involuntariamente lhe escapam as seguintes palavras, quão únicas em toda acomédia aludem a seu carinho:

- Tivesse eu querido cantar ante a menina adorável e pura; mas tive queafogar a pena em meu coração. Sim; foi um poético sonho de minha alma, que nãodevo voltar a evocar...

Em lugar de chamar à morte ou de sumir-se no desconsolo, como fazemoutros heróis wagnerianos, Hans Sachs prefere lavrar a felicidade dos que lherodeiam. "Hans Sachs é um lhe renunciem, um sacrificado - acrescentaLichtenberger em seu magnífico e acabado estudo sobre a obra de Wagner -, masnão é um vencido. A prova por que atravessa não consegue extinguir nem diminuirsua vigorosa força vital. Na espécie de apoteose final da comédia, saudado pelasaclamações delirantes do povo, aparece como o chefe espiritual de seusconcidadãos. Wagner, recém saído do amargo pessimismo de seu Tristão, tenta,sem dúvida, proclamar que a existência humana tem também um alto sentido definalidade para os que renunciem absolutamente a todo desejo egoísta".Tal é, com efeito, todo o ambiente da obra do colosso. Os Mestres, como Quixote ecomo tantas obras de primeira ordem da literatura universal, têm uma casca cômicaque faz rir ao mundo dos vulgares, com um fundo trágico amarguíssimo que fazchorar aos escolhidos, porque neles se encerra todo um símbolo da sarcástica elegiado viver. Por isso, ao saboreá-la uma e cem vezes, ante a rotina dos Mestres deNUREMBERG; ante as travessuras de meninos louquinhos de Madalena, David eos aprendizes; ante as tolices grotescas do velho verde do Beckmesser e a barbáriedos que, lhe espancando, dão a este seu merecido, não podemos menos de sentirinclinados a uma compaixão sem limites ante as estupidez e infantilidade da pobre

1 Para a muito graciosa parte cômica dos professores teve Wagner, sem dúvida, à vista, a famosatradição realista da Von Metzis Hochzeit (Das bodas de Metzis). "O lugar da ação, diz ohistoriador Scherr, foi Turgovia ou alguma outra aldeia à beira do lago da Constanza. O jovemcolono Baersche ama à donzela Metzis e ela corresponde a seu amor, mas a condição de que seu

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casamento se faça com todas as honras. Baersche consente, e depois de arrumar o assunto segundoos costumes aldeãs, procede-se, em presença dos parentes de ambas as partes a efetuar os esponsais... Ambas as partes acreditam conveniente celebrar o matrimônio na mesma aquela noite e sem acooperação do sacerdote; quer dizer, sem casamento eclesiástico. Depois começa na espaçosa casa doBaersche o festim, ao que se convida aos vizinhos com suas mulheres e seus meninos. Come-se comas MA- nos; beba o vinho em tal quantidade que os convidados não sabem, ao fim, se for de diaou é de noite, e depois se conduz à noiva à câmara nupcial onde já está o noivo, mas não sem queela, segundo costume dos lavradores, resista com violência, preferindo lastimosos ais. À manhãseguinte... Se efetua o brutloff ou carreira de noivos, que consiste em ir o jovem matrimônio àigreja, acompanhado dos toerper ou lavradores, ao som de pífanos e timbales para casar-se postfestum. À volta se come e se bebe outra vez em casa do noivo... E, por último, todos osconcorrentes se encaminham para o tilo do povo, a cuja sombra se começa a dançar; mas a dança seconverte bem logo em uma urchige ou salada de paus que não há mais que pedir, e assimterminava sempre todas verdadeiras bodas de aldeãos nos tempos antigos."Como se vê, semelhantes costumes são idênticos em muitos extremos, sobretudo no dos paus nasfestas, às tão pitorescamente descritas com carrego ao Asturias, na aldeia perdida, do ArmandoPalácios Valdés.

Humanidade e uma tolerância suprema resumida na frase teosófica do grandeMontaigne quando disse que "conhecê-lo tudo é perdoá-lo tudo", porque, comefeito, esse agridoce que deixa em paladares deliciosos a colossal obra tragicômicawagneriana nos faz melhores, porque nos faz renunciadores e nos faz tolerantes...

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CAPÍTULO XVIPARSIFAL

Os Mistérios de Parsifal - O memorável ano de 1914 e as estréias do mesmo -Bibliografia - O argumento da obra - Três frases wagnerianas verdadeiramentemaravilhosas - Parsifal - Fal-parsi - O Evangelho da idade futura - Titurel eKlingsor; Parsifal e Amfortas; Gurnemanz; Kundry. - A eterna luta das duasMagias, entre as que se debate a pobre Humanidade - As três Igrejas - AHumanidade queda e a Humanidade rebelde - Kundry, a Mulher-Símbolo - Ogrande engano do Huston Stewart - A Mulher escrava e a Mulher livre - As duasKundrys - Ao sexo ou se o transcende ou lhe perverte ou lhe obedece, enfim -Influências semíticas - O eterno feminino - O Parsifal pagão e o cristão - "Ai deque vai do mundo a alguma parte!" - Mistérios dos drusos - O perigo das almas asgema. - A iniciação egípcia - As Mulheres-flores de Parsifal e a juventude da Krishna- Kalayoni, a terrível deusa do Desejo e da Morte, e Kundry - Indra, Ramo, Varunae as gopis e crucificasse tentadoras - Sarasvati - Nichaali - Kansha, o rei deAmadurecida, e Klingsor - Conexões míticas do herói Parsifal com o Erico,Lohengrin, Tristão, Tannhaüser, Siegfried, etc - Jesus - Parsifal e Madalena-Kundry -Estreitos cretinismos de alguns comentaristas - Wagner, teósofo; Wagner, cristão eWagner, budhista - Uma lembrança teosófico oportuno - A iniciação de Parsifal - OCopo Sagrado - A alegoria do Amfortas - Os libertadores - Sempre o problema dosexo. - Schopenhauer e a doutrina do Nirvana - Antropocentrismo psíquico -Pessimismo e otimismo - A renúncia - O elemento cristão no Parsifal - O elementopagão - A Gupta Vidya oriental no Parsifal - A Lança mítica - Um Amfortas e umParsifal do Oriente (Kansha e Krishna) - O raizame espanhol do Montsalvat - Omito em outros países - O Graal, pedra iniciática - O Graal e o mágico IT - OMontsalvat místico - O Graal e o Montsalvat astronômico - Hestia, Hóstia, Vista -A Pomba do Graal e o Ave-Fénix da Imortalidade. - O Parsifal -disse um autor- éuma obra à parte e isolada da dramática wagneriana, uma produção de arteexcepcional, única, sem possível classificação entre os gêneros conhecidos. Comoconcepção filosófica, de Parsifal poderia dizê-lo que Goethe dizia de seu segundoFausto: "acumulei nele grandes mistérios e árduos problemas, que as geraçõesvindouras se ocuparão em decifrar." No Parsifal, o pensamento de Wagner parecevelado de intento, com efeito, e para escolher o sentido de determinadas alusõesfilosóficas, quando se obtém, temos que fazer grande força de trabalhos deadivinhação e de reconcentração mental, porque nessa obra, como em umpesadelo, achamos confundidos os elementos mais diversos: altas questões defilosofia, lembranças bíblicas e orientais, misticismos, ortodoxia, vestígios de cultocatólico, rituais pagãos, necromancias, sonambulismo e hipnotismo, práticas dacavalaria medieval, êxtase, ascetismos, piedade, redenção, afinidades da naturezamaterial com a alma humana, amor em sua acepção mais torpe, amor em suaacepção mais pura...

Novo Doutor Fausto, Wagner, neste seu canto do cisne, parece ter

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acontecido revista a todas as idéias, interrogado à ciência, explorado os limites dainvestigação e da crítica e sondado os abismos da percepção humana. Parsifal é,pois, uma síntese de arte, de religião e de ciência filosófica.

Mas, antes de penetrar nesse verdadeiro abismo de sabedoria, nesse mar semfundo da lenda e do símbolo, cuja representação simultânea de 1º de janeiro de1914, em todos os teatros do mundo, teve algo de misteriosa também, qualinauguração de uma era nova - sequer esta era tenha vindo anunciada deste modopelos dores de parto de uma terrível guerra-, convém que façamos completanarração de seu argumento, guiados pela formosa tradução que do poema alemãotem feito dom Joaquín Fesser 1.

1 Só por estas duas coisas: o estalo da Grande Guerra e a estréia simultânea de Parsifal em todomundo culto, será memorável nos fastos da Humanidade o ano de 1914.Parsifal não pôde ficar em cena até agora nos teatros da Europa porque sua representação fora deBayreuth foi proibida pelWagner.Dispôs este que sua última obra não cantasse nunca em mais teatro que o que ele fez edificar noBaryreuth, e que leva seu nome; mas a vontade do músico imortal não pode cumprir-se porquesobre ela estão os Tratados internacionais relativos à propriedade intelectual, e a própria lei alemã,segundo a qual o período do amparo das obras termina aos trinta anos de morto o autor.Nos dia 1 de janeiro de 1914 se cumpriu esse prazo de trinta anos, e desde tal momento, apropriedade de Parsifal prescreve. Desejoso o mundo de conhecer a ópera com que coroou Wagnerseu gigantesco trabalho, a maior parte dos grandes teatros europeus puseram em cena o Parsifal omesmo dia dito.A viúva e o filho de Wagner e muitos eminentes músicos, alemães tentaram que por exceção semodificasse a lei no sentido de respeitar a vontade do mestre; mas não puderam conseguir seupropósito, com grande contente de todos os públicos, que assim não se verão privados de conhecer agrande obra.Faz dez anos, no teatro Metropolitano de Nova Iorque, cantou-se Parsifal, saltando para isso portodo gênero de obstáculos legais. A Empresa foi condenada a pagar uma enchente multa, e apagou sem discuti-la. O êxito ali foi imenso. O mesmo se fez a primavera de 1913 em BuenosAires. Também em Monte Cario quis representar o poema sacro; mas a viúva e o filho de Wagnerameaçaram com um pleito à Empresa se transgredia o preceptuado na lei. Como a obra estava jámontada e ensaiada, acessaram, não obstante, a que se cantasse em função de convite. MonteCario, pois, é a única cidade da Europa aonde se ouviu completo o Parsifal antes de 1914.Cortamos em um periódico, com motivo da estréia de Parsifal em Madrid nos 1º dia de janeiro de1914:"O assunto de Parsifal surgiu na mente de Wagner em 1854; mas não Começou a trabalhar nopoema até a primavera de 1857, suspendendo-o várias vezes, até que, por fim, terminou-o em 23de fevereiro de 1877. Muito antes de concluir o livro compôs algumas partes musicais, os primeirosem 1857; mas, em realidade, não começou a trabalhar seriamente na partitura até o outono de1857, quer dizer, o mesmo ano em que escreveu a última frase do poema. A obra ficoudefinitivamente terminada em 13 de janeiro de 1882. Pouco depois começaram os preparativospara a estréia, e já bem ensaiado, estreou-se Parsifal em 26 de julho de 1882 no teatro de

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Bayreuth. Parsifal obteve um êxito enorme, que arrancou lágrimas a aquele gênio tão acostumadoà luta. Wagner, emocionado, abraçou com entusiasmo à Materna e a Scaria, que interpretaram ospapéis de Kundry e Gurmenanz respectivamente, assim como ao grande mestre Hermann Levi,que dirigiu a orquestra, e a quem conhecemos e ovacionamos faz doze ou quatorze anos emMadrid, naqueles com- certos famosos do Príncipe Alfonso, em que houve tão eminentes diretoresalemães.Justo é dedicar, ao falar disto, uma lembrança de admiração e simpatia ao grande mestreMancinelli, que foi quem "realmente trouxe as galinhas", quer dizer, que nos deu a conhecerquase todWagner, e o primeiro que organizou grandes concertos. Aquela temporada de audiçõessob a direção do Mancinelli constitui uma época memorável para a história do desenvolvimento daarte lírica na Espanha. Wagner só sobreviveu próximo seis meses a seu grande triunfo de Parsifal.Pouco depois da estréia, o Mestre partiu a passar o inverno em Veneza, como tinha por costumedesde 1879, e ali, de modo repentino, surpreendeu-lhe a morte nos dia 13 de fevereiro de 1883, aolado de sua esposa, Cósima Liszt -filha do célebre músico desse sobrenome- e de seu amigoJoukowsky.Dois dias depois, os restos mortais do glorioso criador do drama lírico eram transladados aoBayreuth, onde repousam no jardim da casinha de Wahnfried, sob um bloco de mármore semadorno nem inscrição alguma."Impossível falar da bibliografia relativa ao Parsifal, pelo numerosa e pelo admirável. Nenhum denossos grandes musicógrafos, por outra parte, deixou de se ocupar do assunto, e em seus trabalhospoderão encontrar copiosos materiais os investigadores futuros, como deste modo na história dessatão querida instituição nossa que se chamou a AssociaçãWagneriana, de Madrid.Hans Von Wolzogen é um dos mais notáveis comentaristas alemães de Wagner. De quantasobras se escrito sobre o Parsifal, nenhuma tão completa E clara como a do Wolzogen, e comgrande oportunidade os jornalistas Srs. Rodríguez do Celis e Lentos Asens nos ofereceram aversão espanhola de dito livro. Constitui este um estudo do poema literário e do musical,admirável, e uma Guia temática de inapreciável valor, para penetrar-se bem dos símbolos da obrae dos temas que os expressam.Depois de examinar a obra, as distintas partes da lenda, ocupa-se do drama sacro de Wagner,analisando atentamente a significação de cada um de seus personagens, e a seguir tráfico damúsica, seguindo-a passo a passo e fazendo respeito dela indicações claras e precisas para podê-lacompreender e saborear rapidamente, uma vez impostos no simbolismo do livro. Vão intercaladosna obra os motivos-temas que detrás explica Wolzogen.Os Srs. Rodríguez do Celis e Lentos Asens, como excelentes escritores que são, fizeram, repetimos,uma versão justa e verdadeiramente castelhana da Guia temática do comentador alemão, e por issomerecem os mais sinceros e justos elogios. Nosso sábio e queridíssimo amigo o Dr. Bonilla e SãoMartín tem também trabalhos admiráveis de erudição e crítica relativos ao colosso, trabalhos quemais de uma vez nos serviram, como sempre, de guia.

O lugar da ação são os domínios e o castelo do Montsalvat, ocupado peloscavaleiros templários custódios do Santo Graal, nas montanhas setentrionais daEspanha gótica. Não longe dele se acha o castelo encantado do necromanteKlingsor, na vertente meridional do mesmo monte, olhando para a Espanha árabe.As vestimentas dos cavaleiros do Graal e de seus escudeiros são túnicas e mantos

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brancos, semelhantes às dos templários, mas em vez da vermelha tau destes,ostentam uma pomba em vôo peneirada nas armas e bordada nos mantos. Aquelaselva da cena, mais que lôbrega, é sombra, severa e misteriosa. O estou acostumadoa é rochoso, e para o centro dela aparece um espaçoso claro. Veja-se, para aesquerda, o áspero caminho que sobe até o castelo do Graal. No fundo declina oterreno para um lago da montanha. É a hora da alvorada e Gurnemanz, senil evigoroso, acompanhado de dois escudeiros de curta idade, dorme estendido sobuma árvore. Pelo lado do castelo do Graal soa o solene alvo de trompetistas, quecom suas alegres notas saúdam sonoras a vinda do novo dia.

Ao escutar o glorioso hino triunfal das trompetistas, Gurnemanz e osescudeiros se ajoelham e rezam silenciosos a oração matutina. Chegam do Graaldois cavaleiros que vêm de vanguarda explorando o caminho que vai seguirAmfortas, o rei do Graal, do castelo ao lago. O augusto sucessor do rei Titurel vemmais cedo que de costume a tomar seu banho na piscina sagrada do lago, comomeio de atenuar os dores sem trégua que lhe afligem desde que recebesse a mortallançada com que o perverso Mago Küngsor lhe feriu. Gurnemanz, a rogo dos quelhe rodeiam, conta a triste historia aquela da lançada fatal nestes termos:

-Titurel, o herói piedoso, esse conheceu bem ao Mago e a suas artes deperdição. Quando o poder e a astúcia do feroz inimigo ameaçavam ao reino dapura fé, em uma noite Santa e solene descenderam até o rei os divinos mensageirosdo Salvador. O copo sagrado do que o Senhor tinha bebido no último jantar, a taçabendita que tinha recebido seu sangue divino vertido da cruz e a lança que a tinhaderramado - os mais milagrosos e excelsos de todos os bens criados - foramentregues por eles à custódia de nosso rei, que para albergar tão sagrado depósitoconstruiu esse santuário. Vós, que viestes a seu serviço por atalhos que não achanenhum pecador, sabeis que só ao homem puro lhe é dado unir-se aos irmãos quese fortalecem nas prodigiosas virtudes do Graal para as mais altas obras desalvação. Por isso lhe está proibido a aquele por quem perguntam, ao Klingsor, oMago mau, por muito que isso lhe custe de sofrer e penar. Lá em seu vale houve elede viver na solidão, lá onde começa a terra voluptuosa dos pagãos. Ignoro quaisforam seus pecados; mas ele ali quis ser penitente e santo. Impotente para acabarcom o pecado em sua alma, sobre seu próprio corpo pôs sua mão traidora, que emsúplica tendeu então para o Graal; mas foi ele rechaçado com indignação peloguardião. No furor de seu despeito aprendeu Klingsor então que no fato mesmo deseu ignominioso sacrifício acharia acaso a vingança com um mágico poder funestoque de certo encontrou.

Alcançou assim muito em breve a transformar aquele ermo em jardim devoluptuosos deleites, e nele fez que se criassem formosas e diabólicas mulheres. Aliespera ele aos cavaleiros do Graal para arrastá-los à concupiscência e às penasinfernais. Aquele que se deixa seduzir é sua vítima, e a muitos dos nossos obteve jálevar a perdição. Quando Titurel, fatigado pela idade, confiou a seu filho o mando,Amfortas não descansou em seu empenho de pôr dique à praga do encantamento.E já sabem o que ocorreu... Oh, você, lança bendita, maravilhosa em suas feridas e

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que a todos está proibido procurar! - Segue dizendo o velho Gurnemanz -. Forammeus olhos, meus próprios olhos, os que lhe viram esgrimidas pela mais sacrílegamão!... E perdendo-se em suas lembranças, adiciona: Quem pôde impedir,temerário Amfortas, que com ela te atrevesse a combater ao feiticeiro?... Perto já domágico castelo, o herói nos foi arrebatado... Uma mulher de terrível beleza lheseduz; em seus braços cai embriagado; a lança se desliza de suas mãos... Um gritode morte!... Acudo precipitado... E vejo o Klingsor que se afasta rendo e triunfante,levando-a sagrada lança que assim nos roubou. Ao rei, em sua retirada, dava-lheescolta combatendo; mas ardia uma chaga em seu flanco: é a ferida que jamaisquererá sanar!...

Antes deste relato do velho cavaleiro do Graal, chegou, já voando pelos ares,os céus do ideal, já se arrastando até varrer as crinas de seu cavalo os musgos, alama das paixões todas que a mulher acordada, Kundry, a amazona bravateia, aMulher-símbolo, protótipo de quanto tem que mais excelso e ao par do mais abjetona terra. Seu traje é montês e rude, recolhido em alto com um cinturão de quependuram largas peles de cobra; sua negra cabeleira ondeia em soltas jubas deobscuro matiz pardo-rojizo; em sua tez e seus olhos negros e penetrantes, que àsvezes cintilam com ferocidade e freqüentemente se imobilizam com rigidez demorte... Traz Kundry um pomo de cristal da remota a Arábia com um bálsamopara aliviar a ferida do Amfortas, ferida que ela mesma deu lugar a que a recebesseo rei do Graal, quando lhe seduziu, brinquedo inconsciente de perdição, sob asnegras artes de Klingsor. Rendida Kundry pelo cansaço quanto pelos remorsos,arrojou-se ao chão enquanto entrou, procedente do castelo do Graal, o cortejo queconduz ao desgraçado Amfortas para o banho sagrado, depois de cruel noite insonede dores, por entre a magnificência matutina da selva. O dolorido rei dá as graças asua servidora, a Mulher! Eterno brinquedo de bens e de males na Terra, segundo ouso que os homens dela façam... Ofegante também Kundry, como ser humano, aofim, por secundar os excelsos ideais do Graal, quando o Espírito do Mal a deixalivre do suco de seu carma, ela leva mensagens aos irmãos que em terras longínquasbatalham, cumprindo tal missão com lealdade e com alegria, sem solicitar sequergratidão, generosa e fiel até o terrível momento em que o necromante que aenfeitiçasse a evoca ímpio para seus torpes manejos de crime e de ruína... Amaldição de uma vida anterior na que fosse Herodíades, Gundrigia e cem hetairasperversas pesa sempre sobre ela!

Gurnemanz, o fiel velho, terminou seu relato a seus interlocutores, referenteao que ocorreu no santo castelo, depois do roubo da lança, expressando-se nestestermos:

Ante o santuário, órfão da sublime relíquia, jazia Amfortas em fervorosaprece, implorando inquieto um sinal de salvação. Uma muito intensa, umadeslumbrante refulgência divina emanou então do Graal enquanto que uma visãode sonho celeste lhe disse, com claro acento, estas palavras: “O sapiente, oiluminado pela Compaixão, o casto inocente, espera-o: Ele é meu Eleito”!

Nisto, promove-se grande revôo entre as pessoas do Graal, porque do lado

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do lago surpreenderam a um ignorante muchachuelo que, errante por aquelasribeiras, acaba de ferir de morte, com seu arco, a um cisne, ave sagrada, como tudoque vivia naqueles contornos, no momento mesmo em que abatendo seu vôo sobreo rei, parecia benzer seu banho com felizes presságios de cura. Às perguntas quelhe fazem, mostra ignorá-lo tudo, o nome de seu pai, o caminho que trouxe e atéseu próprio nome, porque diz ter tido muitos; mas que não recorda já nenhum. Sósabe que sua mãe se chamou Herzeleide, e que o bosque e Las Vegas incultas eramsua morada. Kundry, que presença a cena, acrescenta que sua mãe o deu a luz órfãode pai, quando este, chamado Gamuret, morria no campo de batalha. A mãe, paradefender a seu filho contra o signo prematuro dos heróis, criou-o em um ermo,estranho às armas e em meio da mais crassa ignorância. Assim havia o rapazcaminhado dias e noites através daquelas asperezas inacessíveis, seguindo, por seuinstinto de herói, depois de uns cavaleiros reluzentes - os irmãos do Graal - queacertaram a passar por ali perto. Com a só defesa de seu arco e flechas, por elemesmo construídos, as feras e os gigantes chegaram a temer ao menino, lhedeixando livre o caminho até os domínios do Graal. Cheio de desolação, averiguapelo Kundry que sua mãe morreu, e ao receber daquela a notícia cruel, sem saber oque fazia, ou, por melhor dizer, com seu instinto de pureza, que sentisserepugnância para as tortuosas vias da mulher funesta, precipita-se encolerizadosobre o Kundry, querendo afogá-la. Logo cai Parsifal desfalecido, e esta lhe socorrecom água do manancial, ao par que exclama, apartando-se com tristeza para ummatagal vizinho, próxima já a receber, frente ao jovem, a nefasta influência mágicade Klingsor:

- Eu nunca faço o bem... Só o descanso quero... Só o descanso para estamísera extenuada! A dormir, e oxalá não despertasse nunca! - Naquele momentocomeça a experimentar os fatídicos eflúvios da sugestão, à distância, do Mago, eerguendo-se estremecida de espanto, exclama: Não! Dormir, não! Causa-me horror!- Dá em seguida um grito surdo, e todo seu corpo treme, como uma fibra de ervaagitada pela tempestade, até que, impotente contra o malefício, deixa cair inertes osbraços, inclina a cabeça, e dando uns passos vacilantes, cai hipnotizada entre amaleza, gemendo: Inútil resistência! A hora chegou. Dormir... Dormir... É preciso...É preciso dormir..."Então, de volta já do banho, passa o beliche do rei para o castelo. Gurnemanz seune ao cortejo, levando-se carinhosamente ao festim sagrado ao mancebo, paraque, puro como parece estar, dê-lhe o Graal bebida e alimento... "-Logo quepartimos - diz aos primeiros passados o jovem -, e sinto, entretanto, que andamosjá longe." Ao que, tão filósofo como o próprio Schopenhauer, responde-lheGurnemanz: "Já o vê, meu filho: o Tempo é aqui Espaço!" Porque aquele atalhosanto não é outro que o da Eternidade, que é Espaço porque todo o contém em Si,e não é Tempo, porque não conhece a mudança nem a dúvida... 1

Entre as frases verdadeiramente maravilhosas e ocultistas que como jóias deslumbrantes esmaltamo texto das obras de Wagner, há três que me produzem o calafrio do astral sempre que aslembramos: Alguém é a do Loge a Mímico (Ouro do Reno, ato II) , quando este se encaixou o

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mágico elmo e aquele lhe diz, aludindo à desonesta dificuldade e ao grande mistério da pequenez:"Vejo, espantado, que te é fácil te transformar no monstro maior, mas te será muito mais difícil tefazer o pequeno." A segunda frase é a de Siegfried, quando responde ao Hagen, que lhe perguntase for certo que conseguiu conhecer um dia a linguagem perdida das aves (os homens alados dePlatão, que Blavatsky disse) : "-Desde que conheci a linguagem das mulheres esqueci o das aves."(Pasmosa síntese da queda da Humanidade no sexo.) A terceira frase é a expressa do diálogoentre o Parsifal e Gurnemanz, seu Gurú ou Mestre. O primeiro diz sentido saudades da visãoastral em que entrou caminho do Graal: "-partimos pouco, e, entretanto, noto que caminhamosmuito..." Ao que Gurnemanz responde olímpico: "-Não sinta saudades. Aqui o Tempo éEspaço!" Com o qual o diz todo o relativo aos mundos superiores, porque o Tempo é o quepoderíamos chamar a quarta dimensão, e a Divindade mesma do Espaço.

A cena vai transformando-se imperceptivelmente à medida que o velho gurúGurnemanz e o jovem lanú ou discípulo Parsifal avançam. Já deixam abaixo obosque, e ambos escalam a rochosa mole. Pouco a pouco se vão ouvindo melhor asuave chamada das trompetistas e o augusto toque dos sinos do Templo.Finalmente, chegam a uma majestosa sala, cuja cúpula se perde para a altura, deonde penetra a correntes a luz, envolta nas sonoras ondas do crescente repique desinos. Parsifal emudece extasiado ante tão divina magnificência, enquanto que nofundo se abrem duas largas portas, entrando procesionalmente pela da direita oscavaleiros do Graal, os quais se vão colocando ordenadamente ante duas largasmesas enmanteladas, paralelas, entre as que ficam no meio um espaço livre. Nasmesas há cálices ou taças, mas não manjares. Por outro lado aparecem escudeiros eirmãos serventes que trazem para o Amfortas em seu beliche, e ante ele, uns jovenspuros, como os anjos, portadores de um arca coberta com tecido purpúreo. Acomitiva coloca ao Amfortas em um leito do fundo, sob um dossel e sobre a mesade mármore que está diante do arca coberta. Cavalheiros, jovens e meninos entoamdos diversos lugares do âmbito do templo o hino do Graal, que diz:

"Dia por dia, disposto para o último jantar do Amor divino, o festim serárenovado, como se pela última vez houvesse hoje de lhe consolar para quem seagradou nas boas obras. Aproximemos-nos da ágape para receber os donsaugustos."

"Assim como entre dores infinitos correu um dia o sangue que redimiu aomundo, seja meu sangue derramado com coração contente pela causa do HeróiSalvador. Em nós vive por sua morte o corpo que ofereceu para nossa redenção...”

"Viva para sempre nossa fé, porque sobre nós se abate a Pomba, propíciamensageira do Redentor. Comam do pão da vida e bebam do vinho que para nósemanou...".

Ao expirar os cânticos e quando todos os cavaleiros ocuparam seus assentosjunto às mesas, segue um silêncio augusto. Do mais remoto da cena e procedentede um nicho abovedado atrás do leito do Amfortas, como saindo de sua tumba,ouça-se a voz do velho Titurel que manda a seu filho descobrir o Graal, para lhecontemplar por última vez. Amfortas resiste e diz: "Não! Deixem sem descobrir!

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Oh! Será possível que ninguém seja capaz de apreciar esta tortura que sofro aocontemplar o que a vós encanta?... O que significa minha ferida, o que o rigor deminhas dores, ante a angústia, o suplício infernal de lombriga condenado a estamissão atroz? Cruel herança, que me encomenda, a mim, único delinqüente entretodos, a guarda da mais Santa relíquia, e me obriga a implorar a bênção para asalmas puras! Oh castigo, castigo sem igual a me envia o Todo-poderoso a quemofendi! Por ele, pelo Senhor, por suas benções e Mercedes, tenho que suspirar comânsia veemente; só pela penitência, só pela mais funda contrição da alma, tenho quechegar até Ele... A hora se aproxima, um raio de luz descende para iluminar o santomilagre; o véu cai; podendo esplendoroso brilha o conteúdo divino do copoconsagrado: palpitando na dor do supremo deleite, sinto verter-se em meu coraçãoa fonte do sangue celestial; e o fervor de meu próprio sangue pecador terá querefluir em corrente louca, e derramar-se, com pavor horrendo, pelo mundo dapaixão e do delito. De novo rompe sua prisão e emana caudalosa desta chaga, à Seusemelhante, aberta pelo golpe da mesma lança que lá inferiu ao Redentor essa feridacom que chorou em lágrimas de sangue, pelo opróbrio da Humanidade no desejode sua divina compaixão... E agora, desta minha ferida, no mais santo lugar,custódio eu dos bens divinos, guardião do bálsamo de redenção, brota o ardentesangue do pecado, renovada sempre na fonte de minhas ânsias, que nenhumaexpiação pode, ai! Extinguir já... Piedade! Compaixão! Você, o Todomisericordioso, tenha lástima de mim! Libra me desta herança, me feche esta feridae feixe que sanado, desencardido e santificado eu possa morrer para ti!..."

Amfortas cai desacordado depois destas palavras, e é descoberto o Graal. Aoir tirar aquele o Cálice Sagrado, um denso crepúsculo - a névoa do Tabernáculohebreu - se pulveriza por todo o âmbito da sala. Do alto descende um muito puroraio de luz deslumbrante que ao cair sobre o Cálice lhe faz brilhar mais e mais compurpúreo resplendor. Amfortas, com o semblante transfigurado, levanta o Graal emalto e o move lentamente em todas as direções, benzendo com ele o pão e o vinhopara as mesas, enquanto os coros cantam o Hino eucarístico, e todos ospressentem, cansados de joelhos, elevam agora com devoção seus olhares desúplica e de adoração para o Graal. Amfortas volta a depositar no arca a sagradaBrasa, que vai empalidecendo à medida que se dissipa de novo o espessocrepúsculo. O pão e o vinho são repartidos pelas mesas, às que todos se sintam,exceto Parsifal, que permanece em pé e em êxtase, de que sai ao fim tão somentepelos lamentos do Amfortas, pelos que sofre o jovem mortal espasmo.Gurnemanz, lhe acreditando embrutecido e inconsciente frente a todo aquilo,agarra-lhe por um braço e lhe arroja brutalmente do recinto sagrado enquanto seextinguem no espaço as vozes de jovens, meninos e cavaleiros que cantam asantificação na fé e no divino Amor...

No segundo ato do drama aparece o interior e o calabouço de um torreãosemi-destruído. Uma galeria de pedra conduz ao almenaje da muralha. Reinacompleta escuridão no fundo daquele negro antro, para o que se baixa docontraforte do muro. Multidão de instrumentos de magia e aparelhos denecromancia aparecem em qualquer parte. No contraforte do muro, para um lado,

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está o negro Mago Klingsor sentado ante um espelho metálico mágico, onde vêdesfilar astralmente todos quantos feitos foram acontecendo-se durante o atoanterior nos por ele odiados domínios do Graal. Chegou o momento supremo emque o feiticeiro conseguiu atrair para seu antro, como a tantos outros infelizescavaleiros, ao aturdido jovem Parsifal, para lhe fazer cair em meio dos encantos dasirresistíveis belezas diabólicas de suas mulheres-flores. O sonho hipnótico em quemomentos antes vimos tinha feito inundar-se ao Kundry - a mulher sem nome, adiaba originária, rosa de perdição do abismo infernal, que fosse a sanguináriaHerodíades, a arpía Gundrigia e cem outras funestas mulheres mais ao longo desuas vidas anteriores - está sortindo todos seus terríveis efeitos, submetendo acoitada à absoluta e perversa vontade do necromante que evoca a si, entre azuladosvapores mefíticos, seu dobro astral funesto, descendendo alguns passos para oantro e queimando em um insensário a mirra, a assa-fétida, o incenso criminal etantos outros perfumes invocadores. O espectro de Kundry surge ao fim, entre anuvem astral, clamando entristecida contra aquele triste encanto de perdição que, apesar dele, subjuga-a. "- Ah... Ah!... Noite tenebrosa! Mistério, loucura, fúria!...Sonho, sonho de dor e de desgraça... Sonho profundo... Morte!" - Clama rasgada aoriginária e gentil diaba de diablesas.

Klingsor ordena ao Kundry que se prepare para envolver em seus encantosao Parsifal, o mais perigoso inimigo, porque lhe protege o escudo de sua inocência.Kundry protesto em vão contra a irresistível sugestão do necromante; e ao fim temque resignar-se a atuar uma vez mais de instrumento de perdição, como quandoantigamente nizo cair ao Amfortas em seus braços, enquanto Klingsor lhearrebatava a lança e lhe inferia com ela a ferida fatal que nunca poderá sanar.Completada a ordem sugestiva do Mago, este se afunda rapidamente com toda atorre, e ao mesmo tempo, mercê a seus encantamentos, surge um jardim deliciosoque ocupa toda a cena. Uma vegetação tropical e luxuriante se estende por ela comesplêndidas magnificências.

No limite do fundo se contempla o parapeito das muralhas, nas que seapóiam lateralmente os salientes do edifício do castelo e seus terraços de rico estiloárabe. Entre os batentes aparece Parsifal, contemplando com assombro os jardins.De todas as partes, assim dos jardins como do palácio, surgem formosas jovensninfas, umas em turba, outras isoladas, em número sempre crescente, cobertas deligeiras vestimentas e como despertando sobressaltadas de um sonho, ao ver-seviolentamente separadas de seus amantes os infelizes cavaleiros do Graal, quesucessivamente foram caindo em suas redes amorosas pela necromancia deKlingsor, e que agora lutam com o jovem Parsifal, sendo enrolados por este comseu hercúleo impulso.

As ninfas, Oh, mutável condição da mulher que tanto influiu na história detodas as conquistas jaquetas, arrojando-a sempre por fatal destino em braços dovencedor! Em lugar de defender elas a seus amantes, que jazem mortos ou feridoso embate do herói, não se preocupam já mas sim de seduzir ao Parsifal, lheenredando, como a aqueles outros, nas pérfidas redes de seu amoroso encanto; mas

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o jovem não se deixa seduzir e as aparta enojado, não obstante haver-setransformado elas em flores de beleza e perfume irresistíveis. A passagem musicalque sublinha tão poética cena, se feito celebérrimo entre tantas e tão célebrespáginas musicais do colosso. Música, cor, amor, perfume, feitiços, tudo que podeembriagar paradisiacamente aos sentidos juvenis, pretende em vão consumar a obranefasta da sedução da inocente virtude do jovem, e já uma vez salvo pelo herói tãoperigoso escolho, fica ainda que vencer outro imensamente maior: o escolho, nãodas mulheres, mas sim de A Mulher por antonomásia, da Mulher-Símbolo, que nãotrata de lhe seduzir grosseira com as sugestões da mera Sensação, senão com asartes mais pérfidas mil vezes do Sentimentalismo e o Emocionalismo mais pérfido.

Semelhante Mulher não pode ser outra que Kundry, a diaba originária, oprotótipo da perdição e da queda, a que nem o próprio Amfortas, o filho de Titurele o rei excelso do Graal, pôde antigamente resistir. Sua voz surge mágica de entreum maciço de flores, chamando o herói por seu próprio homem, pelo nome com oque em sonhos uma vez lhe chamou também sua mãe das ignotas regiões dohiperfísico: o mundo de quão mortos vivem!

- Parsifal, detenha-te! - Diz-lhe a voz -. A um tempo lhe convidam o deleite ea sorte... Lhes aparte dele, vulgares mulheres, apaixonadas e frívolas meninas, floresde um dia, que cedo lhes murcham!

Ante aquela voz, as ninfas ficam entristecidas; mas logo, em sua frivolidadeeterna, repondo-se, afastam-se rendo para o castelo, enquanto que Parsifal dirigeum olhar temeroso para o lugar de onde a voz tinha surto, que é o lugar onde seacaba de fazer visível uma mulher sem par, de juvenil e esplêndida beleza, airresistível Kundry, tendida em um maciço de flores e exornada com a maisfantástica e tentadora roupagem que o refinamento árabe pôde jamais sonhar.

- Foi você quem me chamou, que alguma vez tive nome? Também cresceu ete desprendeu você da floresta? -Diz-lhe, sem aproximar-se, Parsifal.

-Sim, responde Kundry, com acentos de muito doce lira. A ti, inocente epuro, chamei Fal-parsi... A ti, puro e inocente Parsifal. Moribundo em terra arábica,assim nomeou e saudou contente seu pai Gamuret ao filho que em materno seiodeixava custodiado. Para lhe revelar isso esperava eu aqui. Que foi, senão o anseiapor sabê-lo, o que aqui pôde te trazer e me trazer?... Eu não nasci desta florestacomo as outras... Longe, longe daqui está minha pátria... Tão somente estava nesteslugares para que me encontrasse. De muito longe cheguei eu, e muitas coisas vi. Viao menino aos peitos de sua mãe. Alegram ainda meus seus ouvidos primeirosbalbucios. Com a amargura no coração, vi também como ria ali tambémHerzeleide, cujos dores se regozijavam com o alvoroço de que era luz de seusolhos. Suas carícias adormeciam ao menino encantador em seu doce berço de suavemusgo; velavam o sonho infantil as ânsias da mãe, inquieta e solícita, e, aoamanhecer, o quente rocio das maternas lágrimas despertava. Só chorar sabiaaquela excepcional mulher, rendendo-se à dor pelo amor e a morte de seu pai, decuja mesma desventura, quis te preservar, cifrando nisso seus mais altos eimperiosos deveres, te apartando do exercício das armas para te guardar e te salvar

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da sanha dos homens. Tão somente houve para ela naufraga e temores, que nuncavocê tinha que conhecer. Não ouve ainda suas chamadas chorosas, as mesmas dequando longe andava? Não pressentiu também a alegria de seu sorriso quandocorrendo em sua busca te alcançava? E como te estremecia o calor de seus beijosquando, apaixonada, estreitava-te entre seus braços!... Mas você nunca soube suaspenas, nem nunca o delírio de seus sofrimentos quando, ao fim, um dia não voltou,e seu rastro se perdeu. Esperou-te noites e dias, até que a fizeram emudecer seuspróprios lamentos, e sua própria aflição acabou com suas penas, e procurourepouso na morte. O sofrer lhe partiu o coração... E Herzeleide... Morreu...!

Gravemente interessado com o relato de Kundry, sobressaltado e afligido aofinal da mesma pela mais azeda dor, cai a seus pés Parsifal, enquanto que estacontinua sua sedução terrível, inclinando docemente sua cabeça sobre ele e lherodeando o pescoço com amorosos braços:

- Desconhecida te foi até agora a dor – acrescenta -, nem até agora sentirpôde no coração as doçuras do prazer - lhe diz Kundry -. Aplaca agora nosconsolos, que são o natural bota de cano longo do amor, a pena e a angústia de seupranto!... O saber tornará em conhecimento a inconsciência. Procura conhecer,pois, esse amor que abraçou um dia o coração do Gamuret quando lhe alagou aardente paixão do Herzeleide; esse amor, que, um dia, você deu corpo e vida; esseamor, que afugentará à morte; que afugentará sua estupidez, e que hoje tem que teoferecer..., Como última saudação e bênção de sua mãe..., O primeiro... Beijo dapaixão.

Enquanto fala, Kundry reclinou completamente sua cabeça sobre a deParsifal, unindo ao fim seus lábios com os dele em um longo beijo. A seu contatode fogo se ergue repentinamente, entretanto, o herói, com amostras do maisintenso terror. Sua aflição dilaceradora estala, ao fim, nestas palavras:

- Amfortas! A ferida! A ferida!... Em meu coração arde já! Seus lamentosrasgam minha alma!... Eu vi sangrar essa ferida... Que agora sangra dentro demim..., Aqui, aqui mesmo!... Não, não! Não é a ferida! Ainda tem que correr essasangre a correntes! É o incêndio aqui, aqui, em meu corpo! É o anseio horrível, queme agarra e sujeita com violência os sentidos! Oh suplício do amor!... Todo meu serpalpita, treme e se estremece em pecaminosos desejos! - Logo, evocando alembrança do Copo sagrado e do Sangue divino que derramou o pecado, rechaçaheróica ao Kundry, cujas carícias lhe fazem ver no astral as mesmas passadascarícias que empregasse quando ao Amfortas precipitou. Em vão recorre entãoKundry a todos os encantos, enganos e artifícios que lhe sugere sua astúcia. O heróilhe escapa; finalmente, e após, além disso, o redentor futuro de todos os cavaleirosdo Graal vai redimi-la a ela também, não pela paixão, mas sim pelo ascetismo e oarrependimento. A pecadora, exasperada e vencida, mas sem querer renunciar a queacreditava sua fácil presa, chama em seu socorro o Mago, que aparece na muralhabrandindo a lança do Senhor, lança que joga contra Parsifal com ânimo de lhe ferircomo ao Amfortas; mas como o herói está puro, e resulta, portanto, invulnerável, alança fica suspensa sobre a cabeça de este, quem a agarra, e, em gesto enlevado, faz

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com ela o sinal da cruz. Baixo semelhante conjuro, o castelo se afunda comosacudido por um terremoto; o jardim fica convertido em ermo; as ninfas, comoflores murchas, caem pelo chão, e Kundry lança um grito e se desaba. Parsifal, aquem a sedutora não quis ou não pôde marcar o caminho do Graal, afasta-se, edesaparece...

O terceiro ato se desenvolve de novo nos domínios do Graal. É primavera.Uma campina risonha, cujos limites se estendem do lindero do bosque até asmontanhas do Graal, mostra entre o arvoredo um manancial, e, em frente dele,apoiada em umas rochas, uma pobre choça de ermitão. É primeira hora da manhãda Sexta-feira Santa. Gurnemanz, o ermitão, envelhecido, e sem mais roupa que avelha túnica, que ainda conserva, dos cavaleiros do Graal, sai da choça e escuta unsfundos gemidos, como de alguém que, em profundo sonho, luta contra umpesadelo. Dirige-se pressuroso então para o sarçal de onde os gemidos partissem, eacha ao Kundry, fria e rígida, oculta, não se sabe o tempo, nos ásperos sarçais doinverno -a triste noite moral do pecador- sem conhecer a chegada da redentoraprimavera... O ancião arrasta ao Kundry fora e começa a reanimá-la com seufôlego. Acordada, ao fim, lançando um grito. Viu de penitente. Sua tez é maispálida. Do rosto e das maneiras desapareceu a ferocidade intratável. ContemplaGurnemanz com prolongado olhar, como quem evoca velhas lembranças; levanta-se, e dirigindo-se à cabana do eremita se dispõe à tarefa, de lhe servir, comoantigamente fizesse com os Santos cavaleiros. Saca, pois, um cântaro e lhe põe aencher na fonte. Logo retorna à cabana, em que se dispõe a trabalhar, como decostume, em obséquio do último sobrevivente do Graal.

Enquanto isso sai do bosque Parsifal com negro adorno e armadura, imersãoa viseira, baixa a lança e a cabeça inclinada sob o peso de seus encontradospensamentos. Gurnemanz lhe aproxima se por acaso precisa ser guiado. Parsifalnão responde às cuidados do asceta; mas este lhe recorda que é Sexta-feira Santa,dia cuja santidade não deve ser ludibriada com armas. Parsifal se levanta, arroja suasarmas, crava em terra a lança e, ante ela, cai de joelhos em enlevada oração.Gurnemanz lhe contempla então emocionado e assombrado, ao par que chama porgestos ao Kundry. Nele reconhece ao matador do cisne de antigamente, pecadorque veio, qual o Homem, ao santo Recinto "pelos caminhos da desolação e odesconcerto, cem vezes maldito; por paragens sem caminho e lutas sem número"...O ermitão lhe informa ao ponto do estado de desdita em que têm cansado oscavaleiros do Graal, todos dispersados ou mortos menos ele, desde que Amfortas,impotente já para resistir a maldição de sua ferida, busca a morte, renunciando adescobrir o sagrado Copo para que Ele não siga lhe prolongando sua vida com seuHálito imortal. Parsifal, diante de tamanha dor, cai desvanecido junto à fonte.Gurnemanz lhe sustenta e lhe faz sentar na grama e Kundry vai com uma vasilhade água para orvalhar o rosto de Parsifal.

- Não!.. -Diz Gurnemanz-. Seja a mesma fonte sagrada o copo que aoperegrino restaure. Prevejo que está chamado a realizar hoje uma obra sublime: aexercer uma missão divina. Seja, pois, limpo de toda mancha e lavagem aqui das

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impurezas de sua larga peregrinação.Entre ambos conduzem ao Parsifal até o bordo da fonte, enquanto Kundry

lhe desata as grebas e lhe banha os pés, ao par que o ermitão lhe despoja das velhasvestimentas negras da dor e da luta, lhe deixando só na branca túnica do neófitoque é a nova túnica da pureza, expurgado já todo velho fermento de pecado, quediria São Paulo. Kundry, logo, unge os pés do eleito, vertendo sobre eles oconteúdo de um pomo de ouro que ocultava em seu seio. Qual nova Madalena,seca-lhe com seus próprios cabelos, a tempo que Gurnemanz lhe unge também acabeça como a futuro rei, lhe batizando como a Redentor do Graal, e como asapiente pela Compaixão... O inefável idílio usualmente chamado Os encantos daSexta-feira Santa, ressona então triunfal no espaço, saudando contente ao Redentor,em meio da sorte augusta do monte e a floresta, onde tudo sorri ao aproximar omomento supremo da Liberação... Os sinos do Graal voltam a soar comoantigamente chamando à a Santa cerimônia. Gurnemanz reveste com sua guardadaalmilla e manto de cavaleiro ao novo rei, e com ele empreende a ascensão para ocastelo, cujos esplendores, graças à sagrada lança, não demorarão para retornar.

O âmbito da grande sala do Graal se cheia de cavaleiros e de escudeiros que,de um lado, conduzem o beliche do Amfortas e, de outro, o cadáver do Titurel, quedeve receber a última bênção do Graal. O filho dolorido, procurando só o descansoda morte, causou inconsciente a morte de seu pai ao estar privado da imortalcontemplação do Copo regenerador. Os cavaleiros todos exigem ao Amfortas que,por última vez! Cumpra seu encargo. Amfortas, pressentindo já perto de si as docestrevas da morte, resiste a voltar à vida que, o Graal descoberto, terá que lhe dar, erasga indignada suas vestimentas pedindo a gritos a morte em tremendoparoxismo... Todos se separam dele sobressaltados ao tirar o chapéu, brotandosangue, a, funesta ferida. Parsifal, que chegou, desprende-se do grupo, brande alança, e tocando com sua ponta o flanco do Amfortas, fecha-a milagrosamente aofim. Alta logo triunfalmente a lança, todos ante ela se prosternam em êxtase,enquanto que Amfortas, extraindo do arca a sagrada relíquia, faz que o ambienteinteiro se empape da glória do Graal, e Parsifal, elevado desde aquele momento àdignidade suprema e benzendo desde aquele momento e por sempre com Ele à aSanta Assembléia restaurada... Titurel, voltado um momento à vida, incorpora-seno féretro ao par que, da cúpula a branca pomba, abate-se sobre a cabeça do novorei, do Rei sapiente pela Compaixão!..., Enquanto que estalam mais vigorosos quenunca os cantos sagrados, e Kundry, a, Mulher-Símbolo, cai exânime tambémredimida ao chão, no meio da universal comemoração que céus e terra rendemgloriosos ao Herói que venceu às Potestades do Mal, obtendo a Liberação medianteo Esforço e o Sacrifício...

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Na ciclópica obra Parsifal está contido por inteiro o Evangelho da Idadefutura, quer dizer, a ressurreição integral dos Mistérios a respeito da Primitiva

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Religião da Humanidade, oculta dos tristes dias em que a Doutrina Arcaica, OTemplo Simbólico foi sepultado pela ruína dos Mistérios iniciáticos, no Oriente,com o Alexandre; no Ocidente, com o César, e na América, com Cortês e com oPizarro. Não há por que acrescentar também atrás de tudo isto, aponta, alembrança da Atlântida.

A obra toda de Wagner está apoiada sobre os seis caracteres símbolo de seuspersonagens mais típicos, ou seja: os de Titurel e Klingsor, os de Kundry, Amfortase Parsifal, conforme nos ensina um sexto personagem simbólico: o Guru ou MestreGurnemanz.

O eixo, com efeito, sobre o que girou sempre e seguirá girando o imensodrama da Vida, está demarcado pela linha que vai do pólo do Bem - Titurel, o santoconstrutor do Graal, o Avatara da presente Raça - ao Pólo do Mau - Klingsor, onecromante, a representação kármica de quantos enganos precipitaram antigamentea um estado inferior ou oitava esfera à Raça atlante, antecessora da nossos -. Entreambos os pólos se debate ofegante e tiranizada a triste Humanidade: a Humanidadedas três Igrejas. A triunfante dos poucos cavaleiros do Graal que resistiram puros; apaciente daqueles outros, como Kundry-Amfortas, que têm cansado sob a sedução,e a militante, ou seja, aquela outra igreja que, heróica e hercúlea, simbolizada peloParsifal, luta não só por não cair, mas também por redimir-se e redimir aoscansados, aqueles que, como Kundry e Amfortas, ainda resistem e protestamcontra seus tristes destinos kármicos, confiando em uma ainda possível redenção.Amfortas e Parsifal, portanto, são o símbolo humano por excelência: símbolo oprimeiro de Humanidade desde sua queda no sexo, último vestígio animal que nostem perpetuamente encadeados à Matéria; símbolo o outro da ínfima minoriahumana que, reconhecendo os direitos atuais do sexo, trata, não de lhe prostituirmutilando-se fisicamente como Klingsor, ou, moralmente, como tantasequivocadas instituições monásticas, mas sim de transcender-lhe vitorioso pelodivino poder da Compaixão para tudo que sofre: "- O sapiente pela Compaixão, oinocente puro, espera-o, ele é meu eleito" - que diz profeticamente Amfortas noparoxismo de suas dores.

Se examinarmos com cuidado as lendas fundamentais do ciclo do rei Artús -lendas básicas, tanto de Parsifal como de Tristão e de Lohengrin wagnerianos- nosencontramos representadas respectivamente aquelas três humanidades ou Igrejasno famoso romance castelhano primitivo titulado Três Jovens havia o Rei...,Romance inserido por Wolf, Hofmann em sua Primavera e flor de Romances(Berlim, 1856; II, nº 147) e admiravelmente estudado, em suas fontes mais diretasda "história do Lanzarote e o cervo do pé branco" holandesa e no célebre "lay doTyolet", pelo sábio investigador D. Eduardo da Laiglesia 1.

O precioso romance, segundo a versão do Lanzarote, seguida por este autor,

1 E três hijuelos havia o rei. Origens de um romance popular castelhano. Revista Critica Hispano-Americana, ano III (1917), T. III, núm. 1º.

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é como segue:Três hijuelos havia o rei,-Três hijuelos que não mais;Por irritação que teve que eles-Todos maldito os há.Um se tornou cervo,-O outro se tornou cão,O outro se tornou mouro,-Passou as águas do mar.Andábase Lanzarote-Entre as damas folgando;Grandes vozes deu a uma:-"Cavaleiro, estas parado;"Se fosse a minha ventura,-" Completo fosse meu fado,"Que eu casasse com você,-" E você comigo de grau,"-E me diésedes em penhor-" Aquele cervo do pé branco!""- Dar lhes hei isso eu, minha senhora,-" De coração e de grau,"Se soubesse eu as terras-Onde o cervo era criado!"Já cavalga Lanzarote,-Já cavalga e vai sua via,diante de si levava-Os sabujos em trailla,Chegado havia a uma ermida,-Onde um ermitão havia;"-Deus lhe salve, o homem bom"-"Boa seja sua vinda;"Caçador me pareceram -" Em sabujos que trazia."Me diga você, o ermitão,-" Você que faz a Santa vida,"Esse cervo do pé branco,-Onde tem seu manida?""-Quedaisos aqui, meu filho,-" Até que seja de dia,"Lhes contar hei o que vi,-" E tudo o que sabia."Por aqui passou esta noite-" Duas horas antes do dia,"Sete leões com ele-" E uma leoa parida."Sete condes deixa mortos,-" E muita cavalaria."Sempre Deus te guarde, filho,-" em qualquer parte que fuer sua ida,"Que quem aqui te enviou,-" Não te queria dar a vida."Ai, proprietária do Quintañones,-" Do mau fogo seja ardida,"Que tão bom cavaleiro-" Por ti perdeu a vida!"

A muito erudita investigação do Sr. Laiglesia é merecedora por si só de umestudo especial que nós não podemos fazer aqui. Assim, seguindo-a fielmente,permitimo-nos só consignar que os três filhos do romance em questão, são, a nossojulgamento, as três raças sobreviventes da catástrofe atlante às que tantas vezes nosreferimos nesta Biblioteca, sobretudo em de gente do outro mundo. A primeiradelas, a dos jinas, ou seja, a dos Tuatha de Danand 1 das lendas gaedhélicas, que,invisíveis aos olhos dos homens vulgares, habitam diferentes lugares ocultos daverde Erin, separados de nós pelo Véu do pecado do Adão, e fugindo de nós e denossa perversidade como foge o cervo, mas conservam, entretanto todas suascaracterísticas humanas primitivas, simbolizadas nesse branco e humano pé, queterá que lhe cortar para obter seu desencantamento, quer dizer, nesse pé humano como que os jinas, apesar de sua espiritualidade superior a do homem, assentam-secomo nós na terra, vindo assim a ser nossos irmãos maiores.

1 Já vimos na citada obra que estas pessoas são os Tahua de Diana ou "da Lua" e por isso estãosempre simbolizados por um cervo ou Vaca que estranha vez é visível a olhos mortais.

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Por isso, para o Sr. Laiglesia, o cervo do pé branco é em realidade umhomem puro, um cavaleiro transformado, por arte de magia, em cervo, quer dizer,em homem lunar ou jina, como os que naquelas obras levamos descritos 1. Quantoà donzela que exige do herói a consumação de tão difícil aventura, como o é, semdúvida, a de cortar o pé ao cervo que ferozes leões - os leões ou obstáculos de tudositio INICIÁTICA - custodiam, não é mais que a eterna Dama, a Suprema Essênciade nosso Divino Espírito que exige sempre de seu Cavaleiro, ou seja, da Almahumana, todo gênero de inauditos prodígios, de valor e de sacrifício. Por tal causa,semelhantes heróis da Ação e do Pensamento redimido e livre são, em nossa velhafábula castelhana, verdadeiros Quintañones, e sua Dama em questão recebe a suavez o nome da Quintañona, no romance do Tyolet, no do Lanzarote e em outros,quer dizer, são aqueles os dominadores do quinto Princípio humano, que é aMente, segundo em tantos outros lugares levamos dito, embora já no romance doLanzarote, que é posterior aos outros, o herói tenha por dama, não a Quintañona,senão a Genebra, "que é rainha dos jinas", ou seja, outra das mil ramificações domito. Dada, pois, a espiritualidade excelsa do simbolismo de sortes Quintañonas,compreende bem que fosse "a que ao Lanzarote servia o vinho...", O vinho daespiritualidade transcendente, nas taças iniciáticas da Sukra e do Manti, que jámencionamos outras vezes, taças que não são, em suma, senão o Santo Graal emsua significação de Cálice da suprema Bebida ou néctar INICIÁTICA dos deuses.A dama Malehaut, literalmente para nós, "a viril fornecedora da força do Alto", éoutro aspecto da Quintañona que não escapou à aguda intuição do Sr. Laiglesia.

O mesmo autor insinua com estranho acerto que o cão-guia, o líder queajuda ao cavaleiro em sua descomunal aventura, não é mais que o cisne deLohengrin, da lenda A conquista de Ultramar, e como tanto falamos já a respeitodesta última, acrescentaremos só que o tal cão é o equivalente a Mulé sãs frainz, amuía ganso e sem freio, do romance artúrico - ou sejam nossas terríveis paixões -que mais ou menos tarde nos têm que levar, uma vez dominadas, até a conquistado cervo do pé humano, ou seja,até "a caça dos board encantados" ou jinas de quefalam, como vimos em De gente do outro mundo, as lendas dos Tuatha de Danand. Ofalso demandante do cervo, que também aparece nos romances, ou seja, o nãomenos falso Klingsor de Parsifal, que, por meios reprovados, pretende, em vão,escalar o Templo do Graal, não é mais que a personificação da Má Magia, sempreem espreito contra todos os heróis para frustrar todos seus esforços e apropriar-se,caso de triunfo daqueles, o fruto de suas insônias, como aquele senescal do rei daIrlanda que na lenda tristânica, para obter, por reprovadas artes, a mão da loiraIsolda, não vacila em cortar a cabeça do monstro que antes tinha matade Tristão deLeonis - o cavaleiro do Leão -, sem advertir que, como sempre, seu mesmo delitotinha que lhe delatar, já que, ao reclamar o prêmio da pretendida façanha, Tristão seinterpõe e mostra ao rei a língua da serpente monstruosa que, como troféu, antes

1 Todas quantas lendas posteriores nos falam da Dama de pé de Cabra, não são senãocontrapartes complementares deste mito do cervo de pé humano, e, como ele, alusivas ao dobrocaráter ao par humano e selvagem de toda a raça jina.

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cortou 1.

Falta outro extremo, o mais importante no sentido oculto, em relação aoprecioso lay dos três filhos do rei, ou seja, o do ermitão, o Gurnemanz ou Guru,que guia ao cavaleiro para que possa encontrar, ao fim, ao cervo de pé humano, ecom ele todo o INICIÁTICA mistério atlante dos jinas. Já em outro capítulo destaobra, ao comentar o mito dos Lohengrins ou Kwan-Yines, redentores quedescendem sempre ao conjuro do homem reto quando, falto este já de todo auxíliohumano, entoa o Tema da Justificação, falamos que pasmoso diálogo védico entrea Krishna e Maytreya, diálogo pelo que aquele revela a este que quando overdadeiro ideal humano vai sumir se na velha condição animal, um elevadíssimoSer "do círculo dos Devas", um efetivo Kurú, Marú, Morú ou Moria da DinastiaSolar ou da Idade de Ouro, aparece ou se encarna como um Buddha salvador daHumanidade. Pois bem, semelhante Gurú supremo está chamado, não só nassortes revelações orientais, mas também em grande número de lendascavalheirescas, com o Lohengrin, o Tristão e o Parsifal relacionados, coisa quetampouco se ocultou à perspicácia do autor a quem seguimos nestas linhas, dadoque o romance em questão, ao mencionar ao ermitão, longe de apartar-se - dizLaiglesia - das primitivas fontes, segue-as, embora acaso inconscientemente.

Por um ermitão – acrescenta Laiglesia - conhece Parsifal a significação dalança e do Graal, e este personagem, com seu caráter religioso, é próprio da formamais mística da lenda artúrica. Um ermitão é quem no fragmento relativo aoMorien do Lanzarote neerlandês 2 insígnia aos três companheiros, Galván,Lanzarote e Morien, aonde conduzem os distintos caminhos. Por último, quandoao fim consegue encontrar este cavaleiro a seu pai Agroval, irmão de Parsifal,ambos estavam na ermida de um tio dele, em cuja companhia faziam penitência.Portanto, o ermitão de que nos fala o romance tem sua fonte direta na lenda deParsifal, é característico dela, e dela saiu para unir-se ao Lanzarote holandês,formando o episódio do Morien que é uma versão paralela a do cervo do pébranco... O outro se tornou mouro - transpôs as águas do mar, diz a introdução doromance; mas é possivelmente o ponto mais interessante da questão... Dois são,efetivamente, estes mouros - que eu chamaria Moryas - a quem encontro na lendaartúrica, e não pode atribuir-se a mera casualidade o que as duas entrevistas estejam

1 É muito notável e digna de meditada leitura a maneira como no chamado trabalho do Sr.Laiglesia se enlaça esta lenda com a nosso do Alonso Pérez do Guzmán, o Bom; assunto sobre oque não nos podemos ocupar aqui.2 Morien é Morya, o grande Mestre de quem se fala tantas vezes nos livros de Ocultismo. Muitopoderíamos ampliar, pois, este alto extremo para uso de leitores teósofos; mas preferimos deixá-lo asua intuição, documentada com o estudo das obras do H. P. Blavatsky, temerosos de profanar comnossa ignorância e imperfeições um nome tão augusto e ao que a própria História profana não étão alheia como a primeira vista parece.

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contidas, uma no Parsival de Wolfram von Eschenbach, e a outra no próprioLanzarote holandês e nesse episódio que citamos como gêmeo do cervo do pébranco.

Feirefiss e Morien 1, tais são os nomes dos dois cavaleiros, filho o um doGamureth e de uma princesa mora 2 e irmão, portanto, do Parsival, e o outro umsobrinho do demandante do Santo Graal. Tyolet, Morien, Perceval e o cavaleiro-cervo do pé branco, podem, pois, considerar-se como derivados de uma fontecomum, já que têm mais de um ponto de contato. Prescindindo do ermitão e dasanalogias que encontramos entre o Tyolet e Perceval, podemos afirmar queFeirefiss e Morien são uma mesma pessoa. Muito estranho é que se criou umpersonagem desse gênero e que lhe tenha colocado tão perto do conquistadorprimitivo do Graal, já que Feirefiss é irmão dele e Morien filho do Agroval, e,portanto, sobrinho do herói galés. E, entretanto, este é um episódio que, emboranão pode remontar-se aos primeiros tempos de formação da lenda, tem queconsiderar-se como inerente a ela em todas suas formas literárias. Este cavaleiro,cuja só vista dava espanto, mais alto que o maior dos da Tabela Redonda, com a tezmais negra que a noite, passou as águas do mar para procurar a seu pai e lhe fazercumprir a promessa que outorgou a sua mãe de casar-se com ela 3. Mas, aoempreender a demanda do Agroval, um dos demandantes (Lanzarote) mata a umahorrível serpente, e ferido por ela, depois de lhe cortar o pé, vê como outrocavaleiro, aproveitando-se de seu estado, que agrava ferindo-lhe de novo, arrebata-lhe o pé talhado para oferecer-lhe a uma dama que tinha prometido sua mão a

1 Outra vez surge o mito dos Tuatha do Danand. Ao tratar deles, com efeito, vimos em De gentedo outro mundo aos Feire, Fir, Rif ou lhes rife, quer dizer, aos filhos dos atlantes do Ceirne. OsFir-fils ou Feirefiss, são por isso verdadeiros jinas, ou parentes do cavaleiro-cervo do pé branco.

2 Gamureth é, literalmente, "o filho do gamo", quer dizer, um tuatha, um hombre-lunar, gamo oujina. Explica-se, pois, como Feire-fiss possa ser filho dele e de uma princesa mora, ou melhor dito,da referida dinastia solar dos Maruth, Monis ou Moryas. Quão enorme e intrincada é, pois, atravação ocultista de todos estes mitos!

3 Como sempre, a incompreensão da chave ocultista relativa ao sexo, extravia a todo comentaristaocidental, por nobre que seja sua intenção. Os textos relativos a esta passagem não podem serseguidos ao pé da letra "nem tomados no morto sentido de uma união sexual", mas simsimbolizam que aquele Mestre do Morien, filho do Agroval, que, como todos os Oanes, Quet-zalcoatles e Noés, da lenda, passou as águas do mar; caminhou a "pé firme sobre as ondas" echegou a nosso submundo pecador para procurar a seu pai -quer dizer, à Humanidade, da que,embora redimido, ainda forma parte voluntária por sua renúncia como verdadeiro nirmanakaya,que se diz no Oriente- e para lhe obrigar a casar-se com sua mãe, quer dizer, segundo a supremapureza transcendente do tal símbolo, para mover à sorte Humanidade, com seus ensinamentos eexemplos, a procurar aquela Esposa Divina representada na Dama cavalheiresca, segundo tãorepetidamente temos visto.

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quem matasse a tão feroz dragão. Tyolet, Tristão o cavaleiro-cervo, Perceval, todosconservam elementos diversos destas aventuras que com certa unidade nos contamno Morien, e que, entretanto, contêm uma versão decadente e interpolada; mas detodo isso resulta que, unida à lenda do cervo, existia outra de um cavaleiro mouro,e que a esta, em seu 4º verso, refere-se o romance 1.

Logo, com uma intuição que maravilha, o próprio Laiglesia reconstitui osuposto arquétipo da primitiva forma literária perdida que pôde afetar o muitoformoso romance, nestes termos, que são toda uma revelação ocultista. Para talanálise designa com as respectivas iniciais os textos seguidos, na forma seguinte:

R. = Romance. T = Tyolet. T" = Tristão. L = Cervo do pé branco. M =Morien. P = Perceval. P' = Parsival. Meu = A Mulé sanz frainz. Ci = Cavaleiro doCisne.

"Um rei amaldiçoou seus três filhos. (R) = O primogênito, por efeito damaldição, converteu-se em cervo, e a seu redor e para fazer que seja mais difícil seudesencantamento, sete ferozes leões o defendem. (RTT'L) = Só poderá voltar parasua figura humana quando houver um cavaleiro o bastante valente para aproximar-se dele e lhe cortar o pé branco. (TT'LM) = Mas para guiar ao que empreenda ademanda através das terras infestadas de feras e arrepiadas de dificuldades (MILT)só há um: o outro irmão maldito, que se converteu em cão. (Ci) = Esta aventura sópoderia terminá-la o outro irmão, a quem a maldição converteu em mouro,tingindo de negro sua tez. (MP'P) = Uma donzela percorre o mundo em busca docavaleiro, ao que oferece sua mão se consegue terminar a aventura. (RLTMT') =Um cavaleiro da corte a empreende; mas temendo seus grandes perigos, abandona-a. (LTMIL) = Depois dele parte o que tem que acabá-la, seguindo ao cão-guia.(MITL) = Encontra em seu caminho a um ermitão (PP'M), que lhe aconselhadesista de sua demanda. CLTM) = Combate com os leões e fere o cervo, que seconverte em um cavaleiro. (T) = Interpolação da história do falso demandante.(TT'LM) = Matrimônio do cavaleiro com a donzela obediente (RTT'Meu).

"Tal pôde ser a forma da primitiva história, embora em alguns casostenhamos podido advertir discrepâncias entre umas versões e outras."

A pedra de toque, o alma-máter da obra, mais que no próprio Parsifal, está,pois, no Kundry, a Mulher por antonomásia, a Mulher-Símbolo: o fiel da Balançados Sexos, que ora cai do lado do bem quando intratável e bravateia, mas livre desugestões, serve humildemente às hostes do Titurel e de seus cavaleiros do Graal.

Ninguém, que saibamos, aprofundou tanto neste maravilhoso símbolo comoD. Joaquín Fesser ao nos dar a já citada tradução direta do original alemão do Dr.Julius Burghold.

1 Nisto acreditam se equivoca o sábio Sr. Laiglesia, pois longe de ser decadente, como diz tallenda, forma o prólogo nada menos que da outra do cervo. Além disso, seu mesmo estado, tãoapuradamente fragmentário, por nossa sabida lei de porfirização, revela a maior Antigüidadeartúrica e atlante. Que esteja interpolada na do cervo já é outra coisa mais provável.

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Este tão simpático como sábio pensador, com efeito, ao comentar suaprópria tradução alemã, situa-se de repente muito acima dos danososacanhamentos de Houston Stewart Chamberlain em relação à conveniência de nãoaventurar-se muito na adivinhação e explicação dos segredos do simbolismowagneriano, nos que diz que tem que penetrar-se melhor o sentimento que oraciocínio, acrescentando o que segue:

A cena do segundo ato de Parsifal, tremenda luta interior de Kundry contraKundry, mais ainda que a batalha gigantesca do eleito contra as artes da sedutora, éacaso a obra prima dramática de Richard Wagner. Das palavras de Klingsor, evocandoa sua escrava e despertando-a da letargia fatal, vão acusando mais e mais a dobronatureza e a índole histórica e simbólica desta criação singular e personalíssima domestre imortal: "Mulher sem nome, diaba originária, rosa do inferno, que foiHerodíades..., Gundrigia lá, Kundry para cá"... Kundry acordada angustiada; osentimento do conjuro alaga de repugnância sua alma; adivinha qual é sua missão ea rechaça; mas a presença de Klingsor, o dono e senhor aborrecido, inspira-lhe umterror invencível. Reconhece-se ser instrumento do mal; o mal a arrasta contra suavontade; ela se rebela, resiste, desafia ao Klingsor e lhe provoca; Klingsor é a forçada Natureza indomada e selvagem que à mulher impele e persegue em sua missãoinfernal de sensualidade. A serpente, Eva, Adão... Os filisteus, Dalila, Sansão...Klingsor, Kundry, Parsifal... Os sarcasmos de Kundry provocam no malvado umrecrudescimento de seu espírito vingativo. A resistência é inútil; o mancebo seaproxima; "o mais perigoso de todos, porque lhe protege o escudo de suainocência"... "-Só pode te dar a liberdade o homem forte que te rechace. Ponha aprova a esse mancebo." “Não, não!..." "Na resistência, na castidade do mancebo -do homem - está a salvação de Kundry - da mulher -. Mas Kundry desconfia; ohomem forte não existiu para ela; Parsifal cairá como outros; a salvação éimpossível... Impossível?"

"O inocente, o cândido, o atraído pelas artes do Mago, pisa na muralha.Klingsor, triunfante, goza-se em chamar os cavaleiros ' amancebados, em lhes fazerabandonar o leito de prazeres para lançá-los a uma defesa imaginária de seus "lindasdiablesas", pelo vingativo goze de mofar-se deles, depois de roubados à soberaniado Graal, ao vê-los inutilizados em sua prostituição para o exercício das armas ederrotados pelo braço potente do homem instintivo, em cujo rendimento cifra asua vez o protervo seu definitivo triunfo. As ninfas magas abandonam aos míserosvencidos para obedecer ao mandato e provar suas artes na sedução do inocente.Carinhos, adulações, procacidades, nada os vale. As astúcias da sedução vulgarobram como incentivo irritante sobre o instinto indomável da castidade, matériaignota para as flores do mal, semeadas e criadas para os encantamentos da lascívia...A voz de Kundry as afugenta: "Flores que cedo lhes murcham, são indignas desemelhante presa." É o momento para que entrem em jogo as armas maiores doamor passional avassalador, patrimônio exclusivo de Kundry, da mulher superior, amais temível e perniciosa em sua vitória eterna. A tosca vestimenta da penitente, daferocidade intratável, da fiel mensageira do Graal, desapareceu; Kundry é agora abeleza feminina, com todo o poder de sua mágica fascinação irresistível. O conjuro

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a tem envolto e aprisionado; o desempenho do mandato infernal é já iniludível. Amuito belo e tremenda cena da sedução começa, e nela a luta das duas naturezas, damulher com a mulher, da tentadora e da salvadora, do amor e da perfídia, revela-seem toda a dramática magnificência e enormidade de sua significação etranscendência, com maior interesse e intensidade trágica que a resistência estóica,sem luta apenas, da robusta virtude de Parsifal... Pugnam a braço partido as duasKundrys na alma da mulher, vítima consciente mas involuntária dos impulsosnaturais pervertidos; presa da sedução que sobre si mesmo exerce o deleite dasugestão do homem; livre logo, depois do passional frenesi, para o arrependimentoe o anseia contrita. Constrangida pela potência do conjuro -o estímulo indomáveldos sentidos-, as artes e as astúcias todas da matéria em irrupção vão ao engenhofeminino para render ao mancebo que do ambiente primitivo da montanha e daselva passou à experiência do mundo com o sentimento da compaixão, despertadopela morte do cisne e pelos sofrimentos do Amfortas, e não com o dos prazeres davoluptuosidade, que na juventude sem guia se desenvolvem ao contato prematurocom a fêmea humana. Ser excepcional é este filho de Herzeleide no que Wagnercifra a esperança única de redenção para a Humanidade, porque a Humanidadepartiu a sua desdita social pelos caminhos do apetite sem freio, em suasmanifestações várias de luxo e luxúria, vaidade e domínio, ostentação e riqueza,corrupção de todos os dons da criação."Só pode te dar a liberdade -te emancipar das cadeias do mal- o homem forte quete rechace", a alma masculina inacessível a estas tentações todas da matéria que naalma feminina acham o estímulo principal para o homem. Kundry, a mulher, nãoconhece homem forte. Conhece o Parsifal o mancebo, pressente nele ao homemdébil, adivinha sua missão, e resiste a apartar-se dela, temerosa de lhe vencer, segurado poder do sortilégio. "Fracos todos... Todos caem comigo, arrastados por minhamaldição"... a maldição que a religião faz oriunda do pecado original. E para rendera este homem excepcional, de modo excepcional tem que obrar o sortilégio namulher a quem sua perdição foi encomendada. Assim começa a astúcia de Kundryescrava por apelar à mesma pureza dos sentimentos feitos arraigar pelos amores einsônias maternais na alma ineducada do moço. Apela, em primeiro término, a seuamor filial, procurando em associação de seus estímulos desemboque no amorcarnal, semelhante ao que lhe engendrou. A primeira resistência do mancebo ante

1 "-Me escute, meu amigo. Onde iremos dar alargamento à embriaguez de nosso coração? -Dizoutra poesia árabe - Vamos ao jardim - A qual? - A aquele onde o rouxinol fabrica seu ninho. -Destro caçador de pássaros, eu te rogo que não tenda suas redes. Não foscos, não agarre nuncameu queixoso rouxinol - Vamos aos campos - A quais? - A aquele onde a gazela do deserto temsua guarida - Caçador, perdoa minha súplica; deixa-a, não mate à gazela solitária. Os olhos dagazela do deserto se parecem com os olhos daquele a quem eu amo. - Vamos à margem do regato. -A qual? - A aquele onde o peixe nada e onde está brilhante e feliz - Destro pescador, desvia suarede de meu peixe doce e nadador. Seus ouvidos, naquele regato limpo, parecem-se com os daqueleque eu amo. - Vamos à cidade.- A qual? - A aquela ante quem a gente se comove; aquela que euamo, apresenta-se adornada e todos a admiram ao ver sua beleza sem exemplo. Há neve nas

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montanhas: que formosas estão! A neve cobre as mimosas e os ranúnculos. Mas, Deus sejabendito! Meu amiga chega! Hondero, não me atire mais pedras, que sem necessidade disso estouferido. Meu amiga tem um traje de cor de rosa, e o meu é inteiramente negro. Ao pé dos muros dacidade crescem três roseiras. Como as folhas amarelam e caem uma por uma, que já não fica maisque o nu tronco! Eu a amei, e nada saberá remediar o mal que me consome. Ela leva duas partesde mel em suas duas mãos. A amiga minha é ainda mais doce que um pai e que uma mãe"...Estes são o pai e a mãe, que, ardilosa, invocava Kundry para arrastar ao mancebo ao abismo dapaixão.Não cabe dúvida, por outra parte, que o Cantar dos Cantar, com todo seu erotismo semita influiumuito nas mais passionais cenas de Parsifal. Sendo tão evidente o fato, não nos deteremos emconsiderações sobre este ponto.

o ardor do primeiro beijo de paixão que só evoca nele um recrudescimento de suacompaixão na lembrança da queda do Rei enfermo, no Kundry provoca ummovimento irresistível de admiração vizinha em um amor místico e não desprovidade vaga esperança. O conjuro redobra seu esforço nefasto e a relutante sedutoraataca então ao mesmo instinto de compaixão que sua primeira tentativa despertou.A insistência da feiticeira conduz o "inocente" ao pressentimento de sua missãosalvadora, e a essa missão salvadora apela então a desgraçada para convertê-la eminstrumento de perdição. Porque as cobiças tentam em nossa vida social e muitoobtêm a separação, a exploração e a conseguinte corrupção dos mais formosos, osmais elevados tesouros do sentimento humano. Kundry é, segundo as palavras doAlfredo Ernest, "a beleza, de predestinação Santa, pervertida pelo espírito do mal".Mais firme que nunca, o indômito mancebo a rechaça já sem apelação. O eternofeminino se desata então em tempestade de maldições, com o espírito rancoroso dafêmea vencida e anulada na arma mais poderoso de sua prepotência mundana. Oconjuro está esgotado. Surge o Mago infernal com a Lança Santa que, não suas mãosindignas, senão a virtude mesma da arma profanada, tinha convertido emcastigadora do Rei sacrílego. A Lança de Pureza tinha ferido a carne impura doAmfortas, por ter entregado à mão desgraçada a virtude em que descansava a forçada Irmandade do Graal. Essa arma, longe de prevalecer contra o homem puro ecasto, acha em suas mãos, novo e digno custódio; e por ele esgrimida, destrói asmagias do poder satânico que aos homens a furtou. O Homem resistiu a esse poderem seu baluarte mais temível; e livre desse poder, a Mulher se redimiu, e será para ohomem companheira e sustento no amor casto do lar. Tal é o desenlace verdadeirodo drama; a destruição do poder maléfico, corruptor da matéria, para convertê-laem obstáculo formidável contra as intenções da Vontade que a criou.

Estendemo-nos tanto na entrevista anterior - cita que é quase um despojo atão muito culto autor como o Sr. Fesser - para que não se criem sectárias emnossos lábios, asserção semelhante que provam até que ponto pode ser qualificadacomo cristã uma obra augusta, que pertence de direito ao Mito universal, ou seja, aprimitiva Religião-Sabedoria da Humanidade, refletida sempre com igual purezaque na obra de Wagner, em multidão de iniciações e lendas pré-cristãs ou não-cristãs das que poderíamos trazer grande copia de provas ao cético leitor.

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Contentar-nos-emos, entretanto, com duas sós passagens eloqüentes. Está tomadoo primeiro da imortal obra Ísis sem Véu, de Blavatsky, e o segundo, de outro doswagnerianos mais conspícuos: Eduardo Schuré, cujos trabalhos e esoterismo sobreo colosso tanto chamaram a atenção na França e na Alemanha. Quem, por outrolado, não teve alguma Kundry perigosa em seu atalho, precisamente quando iarealizar, acaso, sua obra prima ou decidir-se seu futuro, ao tenor daquela terríveltrova, de Campoamor, que diz:

Ai de quem vai do mundo a alguma partee se encontra a uma loira em seu caminho!

"Os mistérios drusos do monte Líbano - diz Blavatsky 1 - são uma herançadireta do Magismo - uma irmandade oculta que vem existindo desde tempos muitoantigos em um lugar ao que aludimos ao nos ocupar dos templários-. Algumestranho europeu está iniciado neles. "Qualquer que deseje assegurar-se por simesmo de que na atualidade existe uma religião que burlou durante séculos asimprudentes pesquisa dos missionários e as perseverantes investigações da ciênciaprocure se pode violar o lugar retirado dos drusos sírios. Os encontrará em númerode 80.000 guerreiros pulverizados da planície situada ao oriente de Damasco, até acosta ocidental. Não desejam partidários, evitam a notoriedade e mantêm amizade -no possível - com cristãos e maometanos, mas jamais descobrem seus própriossecretos. Diz Mackenzie que se estabeleceram no Líbano no século X. Sua religiãoé um composta de judaísmo, cristianismo e mahometismo; tem uma ordem regularde sacerdócio e uma espécie de hierarquia, com sistema regular de iniciação,palavras e signos secretos.. . Suas iniciações têm lugar às sextas-feiras, com o maiorsigilo e uma vez ao ano os iniciados superiores partem para uma peregrinação devários dias a certo sítio das montanhas. Juntam-se dentro dos seguros limites de ummonastério que se diz foi ereto nos tempos mais primitivos da Era Cristã.Exteriormente não se vêem mais que antigas ruínas de certo templo gnóstico, masao interior existem imensas capelas e salas subterrâneas de rica ornamentação, comestátuas, copos de ouro e prata, qual "um sonho de glória". Ali a sombra do bem-aventurado Hamsa os visita... Naquele discreto seio de nossa mãe-terra, nem umeco, nem um raio de luz, nem o mais ligeiro ruído descobrem traiçoeiramente aoexterior o grande secreto dos iniciados... O dia da iniciação deve ser de jejumcontínuo, e a cerimônia consiste em uma série de provas e tentações combinadaspara formar julgamento sobre a resistência do candidato submetido a opressãofísica e mental. Entre outras provas sobre o domínio próprio no neófito, há asseguintes: escolhem-se partes de carne guisada, sopa saborosa, pilau e outros pratosimpetuosos, além de sorvete, café, veio e água; colocam-nos em seu caminho comose fora costure casual e lhe deixam com os objetos tentadores durante algumtempo. Para um corpo faminto e desfalecido, a prova é severa. Mas se apresentaoutra mais difícil quando se retiram as sete sacerdotisas, todas menos uma: a mais

1 Ísis sem Véu, T. II, cap. 7º.

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jovem e bela; fecha-se a porta e fica assegurada do exterior, depois de advertir aocandidato que será abandonado a suas "reflexões" durante meia hora. Fatigado pelolongo e contínuo cerimonial, debilitado pela fome, abrasado pela sede, presa deuma reação agradável depois do tremendo esforço sustentado para manter freadasua natureza animal; este momento de retiro e de tentação está loja de comestíveisde perigos. A jovem e formosa vestal aproxima-se timidamente, e com olhar queimprime um caráter duplamente magnético a suas palavras, suplica-lherepetidamente "que a faça feliz". Desgraçado dele se o fizer! Uma centena deolhares lhe espreitam por entre secretos orifícios, e a oportunidade que ali seoferece com reflexos de oculta para o neófito ignorante é aparente tão somente."

Vejamos o segundo testemunho ao que antes aludíamos: "Depois que ocandidato tinha triunfado das provas do fogo e da água, entre outras muitas, dizEduardo Schuré em sua obra Os grandes Iniciados 1, conduzia a uma doce grutaem que não se via mais que um leito fofo misteriosamente iluminado por umabajur. Secavam-lhe, orvalhavam seu corpo com essências deliciosas, revestiam-lhecom um traje de fino tecido, lhe deixando sozinho... O vago zumbido de umamúsica lasciva que parecia partir do fundo da gruta, fazia desvanecer aquelaimagem. Eram seres ligeiros e indefinidos, de uma frouxidão incisiva e triste. Umtangido metálico excitava seu ouvido, misturado com arpejos e sons de flauta, ecom suspiros ofegantes como um fôlego abrasador. Envolto em um sonho defogo, o estrangeiro fechava os olhos. Ao voltá-los para abrir, via alguns passos deseu leito uma aparição trastornadora de vida e de infernal sedução. Uma mulherNúbia, vestida com gaze púrpura transparente, um colar de amuletos a seu pescoço,parecida com as sacerdotisas dos mistérios da Mylitta estava em pé lhe cobrindocom seu olhar, e mantendo em sua mão esquerda uma taça coroada de rosas. Tinhaesse tipo núbio, cuja sensualidade intensa e faiscante concentra todas as potênciasdo animal feminino: maçãs do rosto salientes, nariz dilatado, lábios grossos comoum fruto vermelho e saboroso. Seus olhos negros brilhavam na penumbra ao lheoferecer a taça da felicidade, sentando-se sobre o leito. Desgraçado do neófito se,se atrevia a desafiá-la, se, se inclinava sobre aquela boca, se, se embriagava com ospesados perfumes que subiam daqueles ombros bronzeados! Uma vez que tinhapego sua mão e meio doido com os lábios aquela taça, estava perdido... Se, aocontrário, rechaçava à pecador e sua taça, doze neócoros, providos de tochas,tiravam-lhe triunfalmente ao santuário de Ísis, onde os magos, colocados emsemicírculo e vestidos de branco lhe esperavam reunidos em ágape divino..."Engrandecido o discípulo ante si mesmo, entrava por primeira vez no Mundo daVerdade, sem muitas ou véus.

A prévia sedução das Mulheres-flores é também legendária entre osorientais. Não há um só de seus heróis épicos que não tenha passado por ela.

1 Página 177 da tradução espanhola, de Julho Garrido.

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Veja-se este tenor, a passagem dos grandes Iniciados, do Schuré, no que sedescreve nestes termos a juventude da Krishna:

"Ao pé do monte Merú se estendia um fresco vale cheio de pradarias edominado por vastos bosques de cedros, por onde passava o sopro puro doHimavat (Himalaya). Neste alto vale habitava um povo de pastores e anacoretas.Ali, Deva-ki encontrou um refúgio contra as perseguições do tirano deAmadurecida, e ali, na morada da Nanda nasceu seu filho Krishna. À exceção daNanda, ninguém soube quem era a estrangeira e de onde procedia aquele filho. Asmulheres do país disseram unicamente: "É um filho dos Gandharvas." O filhomaravilhoso da mulher desconhecida cresceu entre os rebanhos e os pastores anteos olhos de sua mãe. Chamavam-lhe "o Radiante", porque sua só presença difundiaa alegria... O menino Krishna não conhecia o medo. Às vezes lhe encontrava nosbosques, recostado sobre o musgo, abraçado a jovens panteras e lhes abrindo aboca, sem que se atrevessem a lhe morder... Quando Krishna teve quinze anos foi aprocurar o patriarca Nanda e lhe disse: “Onde está minha mãe”? “Meu filho, nãome pergunte isso”. Sua mãe voltou para país de onde veio, e não sei quando voltará-. Krishna caiu em tristeza profunda, abandonou seus companheiros e errou váriassemanas pelo monte Merú... Ali tropeçou com um ancião em pé sob o cedrogigantesco. Ambos se olharam longo tempo. “A quem busca”? - Disse-lhe oanacoreta." "A minha mãe. Onde a encontrarei?" "Ao lado daquele que não trocaalguma vez - Mas, como encontrar a Aquele? - Busca, busca sempre e sem fim;mata ao Touro e esmaga à Serpente -. Depois advertiu Kishna que sua formamajestosa se voltava transparente, logo trêmula, até desaparecer entre os ramos,qual uma vibração luminosa. Quando Krishna descendeu do Merú parecia radiantee transfigurado: uma energia mágica brotava de seu ser. "-Vamos lutar contra ostouros e as serpentes; vamos defender aos bons e a subjugar aos malvados" -disse aseus companheiros. Com o arco e a espada, Krishna e seus irmãos, os filhos dospastores, bateram na selva a todas as bestas ferozes. Krishna matou ou domouleões, fez a guerra a reis perversos e libertou a tribos oprimidas. Mas a tristezainvadia o fundo de seu coração. Sua alma só tinha um desejo profundo, misterioso:encontrar a sua mãe e voltar a achar ao sublime ancião; mas, apesar da promessa deeste, e do muito que tinha lutado e vencido, não podia consegui-lo. Um dia ouviufalar do Kalayoni, o rei das serpentes, o Mago negro guardador do horrível templode Kali, a horripilante deusa do Desejo e da Morte, e pediu lutar com a maistemível de suas serpentes, aquela Serpente eterna que tinha devorado já a tantascentenas de guerreiros excelsos, cuja baba corroia os ossos, e cujo olhar semeava oespanto nos corações... Do fundo do templo tenebroso de Kali, a de todos oscrimes, Krishna viu sair, ao conjuro mágico do Kalayoni, um longo réptil azul-esverdeado. A serpente endireitou lentamente seu grosso corpo, arrepiou horrísonosua avermelhada juba, e seus olhos penetrantes fulguraram com espanto em suacabeça de monstro, de conchas reluzentes. "Ou a adora, ou perecerá" - diz-lhe oMago... A Serpente morreu à mãos da Krishna, do herói santo, que não conhecesseo medo.

"Quando Krishna teve morrido heroicamente a grande Serpente guardadora

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do Templo de Kali, a deusa horrível do Desejo e da Morte - diz em outro lugarSchuré -, fez abluções e oração durante um mês na borda do Ganges, depois dehaver-se desencardido na luz do sol e no divino pensamento contemplativo doMahadeva. A Lua de outono mostrava sobre os bosques de cedros seu globoresplandecente; de noite o ar se embalsamava com o perfume dos lírios silvestres,onde zumbiam de dia as abelhas libando nas flores seu mel. Krishna, sob umgrande cedro ao bordo de uma pradaria, cansado dos vãos combates do mundo,sonhava em combates celestes e na infinita glória do céu da Mahadeva. Quantomais pensava em sua radiante mãe e no ancião sublime, seu guru, mais lhe pareciamdesprezíveis seus juvenis acione heróicas e mais lhe tornavam redivivas as coisasreais do devachán e do nirvana celeste. Um encanto cheio de castos consolos, umareminiscência divina de outro estado inefável e antigo lhe alagavam por completo.O reconhecimento filial para a Mahadeva transbordou de seu peito em forma deuma melodia suave e Angélica... Atraídas por aquele canto maravilhoso, todas asvirgens Gopis saíram de suas grutas lhe rodeando e lhe dizendo: Krishna, OhKrishna! Qual tímidas gazelas amantes e apaixonadas. Ele, absorto em seu êxtase,nem sequer as via. As Gopis começaram a despeitar-se ao ver assim desprezadosseus irresistíveis encantos de sedução. Nichdali, a filha da Nanda, com os olhosentreabertos, tinha cansado em êxtase; sua irmã Sarasvati, mais atrevida, deslizou-seao lado do filho do Devaki e lhe insinuou com amorosa voz: "Oh, Krishna! Nãoadverte, cruel, que lhe escutamos e que não podemos já viver sem ti em nossasmoradas? Fenos aqui, Oh dor! Herói adorável, encadeadas a sua voz. Não nosabandone! Canta mais e nos dará a vida com sua voz. "Insígnia nos dança issosagrada", dizia outra.

“Krishna, saindo de seu sonho, dirigia às Gopis santas e animadorasolhadas”...

"Então, presa de sublime ardor religioso, contou-lhes, à luz da Lua, o quetinha visto em seu êxtase: a história dos deuses e dos heróis; as guerras da Indra eas façanhas sem igual de Ramo, o divino. A umas mulheres os deu venha de cordasvibrantes como almas, outros címbalos tão ressonantes como as façanhas dosgrandes guerreiros e tambores que trovejavam como a tempestade sobre o Merú.Aquelas narrações, cantos épicos e danças sagradas duravam até a alvorada,cantando e representando a majestade da Varuna, a cólera de Indra ao matar aoDragão e o desespero de Maia abandonada...

"Certa manhã, quando as Gopis se restituíram à seus lares, Sarasvati eNichdali se sentaram junto ao cedro sagrado onde Krishna recebia seu êxtase, e lhejogando seus braços ao pescoço lhe diziam: "Ao nos ensinar, Oh Krishna! Oscantos e danças divinos fizeram de nós as mulheres mais ditosas do mundo; masseremos também as mulheres mais desventuradas se te partir. Sei nosso marido:minha irmã e eu seremos suas mulheres fiéis, e não terão assim a dor de te perdernossos olhos...!

"Enquanto assim falava Sarasvati, Nichdali fechou as pálpebras como secaísse em êxtase - Por que fecha os olhos, Nichdali? - Perguntou Krishna - É que

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está ciumenta de mim - adicionou Sarasvati - Não é por isso - replicou Nichdaliruborizando-se. Fecho os olhos, Krishna, para contemplar sua imagem, que estágravada pura no fundo de meu ser! Pode, Oh, Krishna, partir quando gostar, queeu, assim, nunca mais poderei te perder! Krishna ficou pensativo. Sorridenterechaçou os braços do Sarasvati que oprimiam com paixão seu pescoço, e olhandoalternativamente às duas mulheres, passou seus braços ao redor de seus talhes.Primeiro posou seus lábios sobre os lábios do Sarasvati; logo sobre os doces olhosdo Nichdali. Nesses dois longos beijos o jovem Krishna pareceu saborear e chegaraté o fundo de todas as voluptuosidades da terra. Mas de repente, se estremeceu edisse: - É formosa, Oh, Sarasvati! Você, cujos lábios têm o perfume do âmbar e ode todas as flores. É adorável, Oh, Nichdali!; Suas pálpebras velam às vezes seusolhos, como o manto da noite vela ao astro do dia, e sabe além de sondar nomistério de sua própria alma... Amo-lhes às duas!; Mas como poderei me dividirentre ambas? - Não amará nunca! - Disse Sarasvati com despeito - Sim; amareisempre - replicou Krishna; mas amarei tão somente com amor eterno!... É precisoque a luz do dia se extinga; que o raio da morte caia em meu coração, e que minhaalma se lance fora de mim até o fundo do céu!" Enquanto que assim há- blaba,Krishna se transfigurou; diria que, ante a espantada vista das donzelas, sua estaturatinha crescido mais de um cotovelo... Tiveram então medo dele, e se retiraram deseus lares chorando. Krishna tomou sozinho o caminho para a cúpula do Merú e anoite seguinte as Gopis, voltadas a reunir para seus jogos, esperaram em vão a seuMestre... Ele tinha desaparecido, não deixando atrás de si senão uma essência, umalembrança de seu ser, uma luz, uma nota e um perfume: os cantos e as dançassagradas, eco o mais potente dos céus...

Mais adiante a lenda narra com encanto inimitável como o herói, ao retornartriunfante aos céus depois de consumada aqui na terra a obra divina de suaredenção, acha no Devachan às duas amantes ninfas, ambas as triunfadoras de simesmos, a uma pela dolorosa via de Kundry e da Madalena, ou seja, pela maisdesenfreada prostituição, que, "quando se amou muito", pode também alcançar aredimir, e a outra pela branca via da pureza e do êxtase transcendente, que é outromais excelso modo de amar...

O Mago Klingsor tem também no Oriente seu predecessor no velho Kansha,rei de Amadurecida, o desgraçado mantenedor do culto atlante da deusa Kali, afunesta rainha do presente Kaliyuga ou Idade negra, a deusa dos cruentossacrifícios humanos; a deusa, enfim, do Desejo e da Morte, a inimizade jurada eeterna de quantos cavaleiros do Graal tenham existido ao longo dos tempos outenham que existir no futuro. A lenda é outro dos mais genuínos precedentes daobra de Wagner, quem nela, como em nada que seja verdadeiramente grande etranscendente para o coração humano, pôde ter originalidade efetiva. Vejamos,pois, com o Schuré, a personalidade terrível da Kundry hisdostânica.

"Em tanto que Krishna, filho do Deva-ki, subia ao monte Merú, o reiKansha, ao saber que Devaki, sua irmã, tinha vivido e dado a luz a Krishna entre osanacoretas, sem havê-la podido aniquilar, começou a persegui-los como a bestas

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ferozes, tendo aqueles que refugiarem-se na parte mais selvagem e recôndita daselva. Então seu chefe, o velho centenário Vasichta ou Vach-sita, ficou em caminhopara falar com rei de Amadurecida. Os guardas viram aparecer ante as portas dopalácio um ancião cego, guiado por uma gazela. Cheios de respeito ante o rishi,deixaram-lhe franco o passo.

Vasichta se aproximou do trono onde Kansha estava sentado ao lado de suamulher Nysumba e lhe disse: - Kansha, rei de Amadurecida, desgraçado de ti, filhodo Touro, que persegue os solitários da selva Santa! Desgraçada de ti, filha daSerpente, que tais ódios lhe infunde. Saibam que o filho do Devaki vive e virátalher com uma armadura invulnerável para lhes arrojar do trono à ignomínia.Agora, tremam e temam, é o castigo que os Devas vos asignanl

"Os guerreiros se prosternaram ante o rishi e ninguém se atreveu a lhe deter,mas a partir daquele dia, Kansha e Nysumba pensaram nos meios para fazer morrerao rei dos anacoretas. Devaki tinha morrido, e ninguém, além da Vasichta sabia queKrishna era seu filho. O ruído das façanhas deste herói tinha chegado para ouvidosdo rei, quem se disse: "Tenho necessidade de um herói para me defender: quematou a grande serpente do Kalayeni não terá medo do anacoreta." Kansha entãomandou dizer ao patriarca Nanda: "me envie ao jovem herói Krishna para que sejao condutor de meu carro e meu conselheiro." Nanda comunicou a Krishna aordem do rei, e este disse: "Irei", porque pensava: Será o rei de Amadurecida aqueleque não troca jamais? Por ele saberei então onde está minha mãe.

"Kansha, vendo a destreza e a inteligência da Krishna lhe confiou o guardade seu reino, mas a rainha Nysumba, ao ver o herói do monte Merú se estremeceuem sua carne com um desejo impuro, e seu espírito sutil tramou um projetotenebroso. Sem que o rei soubesse, chamou à seu gineceu a Krishna, o condutor docarro. Como maga que era, possuía a arte de rejuvenescer-se momentaneamentepor meio de filtros poderosos. O filho do Devaki encontrou, pois, a Nysumba ados seios de ébano, quase nua, recostada sobre um leito de púrpura: anéis de ourorodeavam seus tornozelos e seus braços; uma diadema de pedras preciosas faiscavasobre sua cabeça e a seus pés ardia um insensário de cobre, do qual escapava umanuvem de perfumes.

- Krishna - disse a filha do rei das serpentes -, sua frente é mais tranqüila quea neve do Himavat e seu coração é como a ponta do raio que o transpassa tudo.Você resplandece em sua inocência sobre todos os reis da terra. Ninguém tereconheceu aqui em seu verdadeiro ser e você ignora a ti mesmo. Eu sozinha seiquem é; os Devas fizeram de ti o senhor dos homens; eu sozinha posso fazer de tio dono do mundo. Quer? - Se Mahadeva falar por sua boca -respondeu Krishnacom grave acento- me dirá onde está minha mãe e onde encontrarei ao grandeancião que me falou sob os cedros do Merú.

Sua mãe? O ancião? Insensato! Persegue vãos sonhos e não vê os tesourosda terra que eu posso te dar. Você é forte, jovem, belo, os corações estão contigo.Mata ao Rei durante seu sonho, e será o dono do mundo. Porque eu te amo e meestá destinado. Quero-o, ordeno-o.

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Enquanto falava assim, reina-a se levantou imperiosa, fascinante e terrívelcomo uma formosa serpente. Em pé, sobre seu leito, lançou com seus olhos negrosuma chama tão sombria nos limpos olhos da Krishna, que este se estremeceuespantado. Naquele olhar, o inferno inteiro lhe apareceu: viu o abismo do templode Kali, a deusa do Desejo e da Morte. Então os olhos da Krishna fulguraramcomo duas adagas transpassando de parte para parte para a Rainha.

Sou fiel ao Rei, que me tomou por defensor; mas você, sabe-o: morirásl"Nysumba lançou um grito penetrante e rodou sobre sua cama, mordendo a

púrpura. Toda sua fictícia juventude se desvaneceu..." 1.

1 Já, com motivo do Tristão, ocupamo-nos do amor que avassalou por igual ao autor daquele hinode amargura e a Isolda de carne e osso inspiradora de sua paixão; agora só acrescentaremos, pois,que, conforme leio em uma revista a propósito dos pleitos entre a família de Wagner, este, apesarde suas místicas afeições, foi tentado pelo espírito maligno, que lhe seduziu até lhe fazer empreenderperigosa aventura, atormentado pelo desejo da mulher de seu próximo. Era esta uma filhailegítima do Franz Liszt e da Condessa Agont: havia se desposado em 1857 com o grandecompositor de música Hans do Bülow. Sete anos depois de seu casamento, aquela mulher, queainda responde no nome da Cósima, abandonou o domicílio conjugal para unir-se com o RichardWagner, que também se achava casado. Ambos partiram para a Suíça em busca de umafelicidade que até então não tinham achado. Ao ano seguinte, Cósima deu a luz uma filha, Isolda,casada na atualidade com o Beidler, o diretor de orquestra do teatro Real de Munich.Posteriormente nasceu daquela união outra filha, e, por último, um filho, Siegfried, em Lucerna,em 6 de junho de 1869.Da fuga, realizada em 1864, Hans von Bülow, que professava ao amigo infiel um ódioinextinguível, não teve nenhuma relação com sua mulher, chegando até o divórcio em 1869,circunstância que permitiu a Wagner, viúvo desde 1866, legalizar sua situação casando-se com aCósima em 25 de agosto de 1870.Ninguém se atreverá a dizer que Cósima foi a ninfa Egeria do grande compositor alemão, porqueeste, quando uniu seu destino com ela, já tinha produzido todo o melhor de seu repertório. MasCósima lhe resultava insubstituível como hábil administradora, pois soube tirar bom partido dotalento de seu marido, estéril sob o aspecto econômico, acertando a explorar o bosque virgem. Semela, Wagner talvez tivesse morrido na miséria. Graças a sua atividade, as obras do mestrechegaram a produzir uma renda anual que não baixa de meio milhão do Marcos. Certamente,Cósima tinha motivos para ser habilidosa Financista. Era neta do conselheiro contador AdamLiszt, que acertou a pôr em boa ordem os negócios do Príncipe Esterhazy, o homem maisapanhado do reino prusiano.Merece recordá-la campanha empreendida pela viúva de Wagner para impedir que Parsifal caísseno domínio público, a fim de reter em Bayreuth, e em proveito próprio, os enormes benefícios querende a representação do famoso drama místico. Somente o temor à concorrência realizada peloEstrangeiro pôde evitar que o Reichstag votasse uma lei de privilégio em favor da família deWagner.Mas esta mulher tão extraordinária tem também uma debilidade. Seu filho Siegfried, medíocrecompositor e diretor de orquestra, é para ela um ídolo. Siegfried, por sua parte, também se

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considera um deus sem semelhante: o único músico, o exclusivWagner.Há renhido com seu cunhado, e quis negar a sua irmã participação na herança, alegando que éfilha adulterina. A mãe cedeu às insinuações do soberbo descendente de Wagner, e se emprestou acomparecer ante o Tribunal declarando seu adultério.

# # #

O caráter de Kundry, como se vê, seria merecedor, por si só, de um livro,livro que ainda não se escrito, sobre o terrível mistério do sexo - a chave iniciáticainferior, que foi conhecida de não poucos povos antigos - e sobre as infinitascomplexidades da alma feminina.

O caráter de Parsifal, em troca, até lhe fazendo todo o cristão que lhe queirafazer em seu inato paganismo, é um caráter repetido belamente na maioria dasobras de Wagner. No Lohengrin, no Tristão, no Siegfried, e até na Senta do cascode navio fantasma e no Hans-Sachs dos professores cantores, aparece, mais oumenos delineado, este tipo augusto do que, puro e nobre, redime-se pela renúncia,a compaixão e o amor, sentimentos mais buddhistas que cristãos toda vez que Jesusmesmo foi, como é sabido, um esenio da seita de ascetas do Líbano, que como deterapeutas, ebionitas, nazarenos, etc., eram fraternidades buddhistas do Líbano, oAnte-Líbano e o Jordão, qual hoje as dos drusos, a que antes aludimos. Por isso,para não nos repetir em tudo o que se refere a este sublime renunciador, cujo tipoprecristiano se encontra em todas as teogonias arcaicas, inclusive nas da América,remeteremos ao leitor às passagens que antecedem, relativos ao Siegfried.É certo que no Parsifal e no Amfortas vemos não poucos rasgos que convêm comos de Jesus em sua Paixão e em sua Ressurreição, tais como a Lança e sua ferida noflanco do Amfortas; o Santo Graal e seu culto eucarístico; o ungir dos pés de Parsifala Sexta-Feira Santa pela mão de Kundry, nova Madalena enfeitiçada que os limpacom seus cabelos enquanto se desata em muito lágrimas, objeto do mais sinceroarrependimento por suas culpas de vidas anteriores. Mas a essência inteira da obradista tanto de ser cristã genuína, ou seja,no sentido vulgar e particularista de umgrosseiro exoterismo ao uso de pacatos, que um escritor tão genial como EnriqueGómez Bochecha, verbo de nossos jornalistas contemporâneos, ao ocupar-se dasestréias de Parsifal em 1914 em todos os teatros líricos do mundo, entrevista algunssacerdotes e críticos escrupulosos, quem, em sua fechada ortodoxia exclusivista ecega para tudo que faz relação à ciência das Religiões comparadas, viram noParsifal, como poderiam ver em toda a libérrima obra de Wagner, não poucosindícios heterodoxos 1.

As damas aristocráticas e católicas obraram prudentemente ao apressar-se a aplaudir o Parsifal.Se tivessem esperado alguns meses, é provável que já não tivessem podido fazê-lo sem pecar. Porqueo índice Romano começa a sentir-se inquieto ante as acusações dos católicos contra o cristianismoherético de Wagner em geral e, sobretudo, de Wagner que teve a ousadia de levar a teatro os

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mistérios do Santo Graal.Faz tempo um sacerdote alemão, o reverendo pai Schmidt, escreveu Sobre o Parsifal um estudotitulado "Mysterium, Babylonia, magna mater fornicationum et abominationum terrae." Comoentão ninguém tinha visto ainda o famoso drama lírico em cena, só os curiosos de libelos críticostinham notícias deste ataque. Mas agora já não é só um humanista truculento o que levanta a vozindignada em nome da ortodoxia católica. Agora são muitos em muitos países."Wagner - dizem todos eles - é um herege." Não é Wagner um herege, como pretende estedesgraçado comentarista, senão um adivinho da Grande Religião Síntese, ou Primitiva, queabrange a todas as demais.

E nada mais natural, porque "Wagner - como diz sobre estes particularesAlfredo Ernst, o escritor que com mais profundidade e mais cópia de dadosestudou o conteúdo filosófico artístico da arte wagneriano - sentiu a necessidade dese aprofundar nas relações da arte e da religião - realidades humanas que no fundosão uma coisa mesma, porque nada liga e relega (religião, religiare) aos homenscomo a Arte mesmo -. Por issWagner tratou do movimento político e social de seuséculo; julgou a moral de nossa sociedade e a verdadeira índole da presentecivilização; preocupou-lhe o buddhismo, e com o buddhismo sua tendência para arenuncia, e a redenção que desse renuncia se deriva para as almas, e feito tal nãodemonstra um espírito indiferente para a filosofia "prática". Conhecida é, alémdisso, a admiração do colosso pelo Kant, Feuerbach e Schopenhauer. Com gostoreconheceremos, entretanto, que Wagner os leu, compreendeu-os e os admiroucomo artista, e que neles não procurou outra coisa que o que se relaciona com oconceito da vida e com a missão que na vida tem a arte atribuída."

Embora este último extremo do Ernst é muito discutível, como veremos,nascendo seu engano de não ter aprofundado ele nem outros comentaristas, noverdadeiro conceito do Buddhismo nem do Pessimismo, o primeiro asserção, quecoloca ao colosso muito acima do credo vulgar católico, não tem volta de folha.

Um ilustre pensador que oculta seu nome sob as iniciais F. P., diz-nos emFarol Oriental o seguinte, falando de Parsifal:

Aqueles para quem em qualquer lugar que apareça um pouco de caráterreligioso, não pode entrar em jogo outra coisa que a cruz redentora e o demôniotentador, chegaram a imaginar que Wagner era um convencido e fervoroso cristão aquem o entusiasmo de seu espírito de bom sectário lhe induziu a levar a teatro asdoutrinas de seus amores.

"Em realidade não há nada de certo nesta infundada hipótese. O que temfeito o mestre foi adotar em parte, e quanto à forma, o disfarce do cristianismo,cujo cerimonial, vulgarizado no Ocidente, foi conceituado pelWagner como maiscômodo e regulável ao intelecto do público pouco versado em matéria religiosa. Detodo o Parsifal se desprende um delicado perfume de pureza tal, que só se achaalgo semelhante na mística do Oriente, e, em particular, no Buddhismo, religiãoacaso mais digna de tal nome. Por outra parte, não terá que maravilhar-se ante estefato, pois é sabido que Wagner seguia calorosamente o moderno movimento

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teosófico... Parsifal deve ser considerado como obra iniciática. É a revelação, avulgarização dos mistérios de uma Loja maçônica secreta; isto explica o porquê desua relativa compreensibilidade: é que revela... Até certo ponto. Ali vemos umaexposição dos procedimentos e feitos da Teurgia e da Goecia, ou seja, das duasmagias, a branca e a negra. Parsifal, herói e protagonista deste magno poema, é apersonificação do "poder" obtido no atalho da pureza: seu veículo é a consciência,sua conduta a de um mago branco verdadeiro. Klingsor é o contrário: umnecromante perfeito e expressa o poder que se adquire pelo caminho da vontadeegoísta e inconsciente; seu instrumento é o desejo, as cegas paixões. Ambospersonagens são as duas forças que pugnam nessa obra" 1.

1 Aconteceu a Wagner o que acontece a todos os verdadeiros teósofos, é, ou seja, que o mesmo podeconsiderar-se os cristãos que parsis, que buddhistas, etc., por quanto a universalidade da grandesíntese científica, filosófica e religiosa a que aspiram, dá-lhes uma verdadeira catolicidade, tomandoa palavra no sentido de universalidade não sectária, não no estreito sentido de seita em querevistam tomar as boas e as más almas -de tudo há sempre na Vinha do Senhor - que dependemdogmaticamente de Roma.Ocasião, pois, seria esta de protestar, não de rir-se, da lamentável definição - lamentável por nãoempregar mais dura frase - da Real Academia Espanhola a respeito de teósofos e da Teosofia.Mas deixando isto a um lado para quando a Academia queira nos outorgar contra dita definiçãoo que os advogados chamam minha audiência em justiça e voltar sobre seu engano sectário, diremosque Wagner seguiu em seus últimos anos, com crescente interesse, o movimento teosófico, como odemonstram as centenas de idéias teosóficas que surgem onde quer nos argumentos de suas obras,idéias que mais de uma vez temos assinaladas. Na impossibilidade de prolongar muito esta notacom as muitas entrevistas que poderíamos fazer sobre o particular, limitaremo-nos a transcreveruma passagem do livro Ouçam diary leaves, do H. S. Olcott, Presidente fundador da SociedadeTeosófica, no que diz (Histoire Authentique da Société Théosophique, troisiéme serie, pág. 63):...De Dresden passamos a Bayreuth para ouvir uma representação de Parsifal em seu próprioteatro. O ato me impressionou de tal modo, que não alcanço a descrevê-lo. Depois parti com o Dr.Hübbe a casa do barão Hans von Volzogen, vice-presidente e diretor da Wagner Verein, quemnos recebeu em sua biblioteca, onde corrigia sobre uma alta carteira as provas de seu artigo tituladeWagner e a Teosofia. Chocou-nos enormemente o estranho da coincidência, mas semelhanteimpressão subiu de ponto, ainda, quando, ao lhe ser anunciado meu nome, dirigiu-se para umatabela de sua biblioteca para me mostrar um exemplar de meu Catecismo Buddhista, que um deseus amigos lhe acabava de enviar. Disse-nos, além disso, que Wagner estava profundamenteinteressado pelo buddhismo, e que Parsifal tinha sido redigido em um princípio para representar osesforços do Buddha para obter a Sabedoria e conquistar a Iluminação, mas que ante as instânciasdos reis da Saxônia e da Baviera e de outros ilustres protetores - temerosos sem dúvida, dizemosnós, pelo que se deu na flor de chamar "o perigo amarelo"- decidiram-lhe, ao fim, a dar a formaque hoje tem a busca do Santo Graal."Não terá que dizer que as influências recebidas pelWagner para sua última obra, foram, entreoutras, quão orientais no texto apontamos, e que esta, em sua forma atual, mostra às claras, emsua mescla um tanto arbitrária de Cristianismo e de Orientalismo, os rastros do acerto a quãoeuropéia aqueles Tão ilustres protetores lhe impor, coisa, depois de tudo, nada de lamentar dentro

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de uma verdadeira síntese teosófica.E, entretanto desta síntese, que aspira a mais nobre e única das fraternidades humanas, e quecomo tal não foi nem podido ser excomungada pelo Romano Pontífice, como tampouco o foi atéhoje a Teosofia, nossa Academia da Língua se atreve a falar como de "uma seita". Uma seitaque, em lugar de cortar, seccionar ou dividir, com arrumo à etimologia latina da palavra, nãotrata, mas sim de unir a todos os homens em uma suprema Fraternidade sem distinção de raça,sexo, credo, casta nem cor!... Os verdadeiros sectários são os autores de tais definições que, a títulode uma Religião, da que eles não são Ministros, querem separar e classificar assim a seu arbítrioaos homens.Esperamos, pois, ver voltar sobre seus passos à Academia, se quer ser o devidamente justa,religiosa e culta.

Despojado o culto do Graal de todo valor histórico e de sua literáriasignificação, convém desentranhar o simbolismo que encerra este copo sagrado.Vemos nele um recipiente, um vazio que tinha que encher-se; mas não certamentecom nada material, mesmo que isso fora o sangue do melhor dos homens, deus,certamente, porque ele mesmo disse como Platão, que todos o fomos, embora otivesse esquecido. Seu conteúdo real não pode ser outro que a Verdade Espiritual,que sob a forma de branca pomba, emblema do Espírito Santo cristão, quanto doHamsa sagrado, Ave Fênix ou cisne oriental - aparece periodicamente sobre oMontsalvat... 1

1 Para dar outro exemplo mais relativo às influências buddhistas no Parsifal, de Wagner,copiemos uma parte do primeiro livro de A Luz da Ásia, traduzido do sânscrito pelo EdwinArnold, aquele livro que nos dá, em vez da sempre rebelde vida do Buddha, a lenda adulteradapor quão brâmanes depois vemos também reproduzir-se quanto ao nascimento de Jesus: "Esta é aescritura do Salvador do mundo, do Senhor Buddha, príncipe Siddartha, sem segundo no Céu, naTerra, nem nos Infernos, o melhor, o mais sábia, o mais compassivo, o venerado por todos os seres,Aquele, enfim, que ensinou o Nirvana e a Lei..."Aconteceu, pois, que um dia da primavera passou pelo jardim real um bando de cisnes que forampara o Norte, em busca de seus ninhos, sitos no coração do Himalaya. Denunciando seu passocom seus tenros grasnidos, as brancas e alegres aves voavam guiadas pelo amor, e Devadatta,primo do príncipe, empunhando o arco, lançou uma flecha bem dirigida, que alcançou as asas doprimeiro cisne, estendidas para deslizar-se pelo livre espaço azul, de forma que a ave caiu feridapelo dardo cruel e manchada sua pluma imaculada pelo sangue que brotava da ferida. Vendo istoo príncipe Siddhartha, levantou com ternura o pássaro, colocou-o sobre seu peito, sentou-se com aspernas cruzadas como o faz o Senhor Buddha, e para aplacar o medo do animal selvagem,arrumou suas asas maltratadas, acalmou seu coração, acariciou-lhe docemente com suas mãossuaves e lisas como as folhas do plátano recentemente abertas, e enquanto com a esquerdasustentava à ave, com a direita apartava o cruel aço e aplicava à ferida folhas frescas e melcalmante. O menino ignorava de tal modo o que era a dor, que apertou em seu punho comcuriosidade a flecha, e estremecendo-se ao sentir a pontada, começou de novo, chorando, a acariciarseu pássaro. Então alguém chegou e lhe disse: - Meu príncipe atirou a um cisne, que tem cansado

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nestas roseiras, e me encarregou lhes rogue que o enviem; estão disposto a fazê-lo? - Não -respondeu Siddartha -. Se o ave estivesse morta, a enviaria a seu matador, mas o cisne vive; minhaprimo não matou mais que a vitalidade divina que movia esta branca asa -. E apresentando-seDevadatta, replicou: - A besta selvagem é do que a abate; enquanto estava no espaço não era deninguém, mas, queda ao chão, pertence-me. Me dê, pois, minha presa, primo Meu-. Mas o Senhorapoiou o pescoço do cisne sobre sua bochecha, e respondeu com gravidade: - Digo-te que não. Opássaro está comigo, é primeira das miríades de coisas que me pertencerão por direito de piedade ede amor. Pois agora sei, por isso em meu interior se agita, que eu ensinarei aos homens acompaixão, que serei intérprete desse mundo que nos fala em segredo, e farei diminuir a malditavazante da dor universal. Mas se o príncipe não está conforme, que submeta o caso ao julgamentodos sábios, a cuja falha me remeto."Hízose assim. O assunto foi debatido pelo Conselho em pleno. Uns opinavam de um modo eoutros de outro, até que interveio um sacerdote desconhecido, o qual disse: - Se a vida tiver algumvalor, que salva uma vida tem mais direitos sobre ela que o que pretendeu tirá-la. O matadorabate e destrói; o protetor socorre. Dêem-lhe a ave a este último-. Todos acharam justo estejulgamento, mas quando o rei procurou o sábio para lhe reverenciar, havia já desaparecido, ealguém viu em seu lugar uma grande serpente cobra que se deslizava para fora, e disse: Os deusesse apresentam freqüentemente sob esta forma!... Assim é como nosso Senhor Buddha começou suagrande obra de Misericórdia... O cisne, uma vez curado, partiu alegremente a reunir-se com osseus..." (Shopia, revista teosófica de Madrid, 1913, pág. 418, tradução espanhola pelo JoaquínGadea.)Quem lê sem prejuízos esta muito bela cena não poderá menos de advertir o paralelismo que elaguarda com a do cisne que Parsifal abate inconsciente e Gurnemanz recolhe compassivo.

Mas, para isso é indispensável realizar a elevação do Graal, e semelhantecondição se acha ligada a esta outra, algo difícil certamente de obter; a existência nolhe oficiem de um ser puro de ação e de pensamento. Logo é evidente que o Graalé o receptáculo mental de que dispõe o homem para receber e refletir a luz doespírito, conquistando com isso a iluminação e a liberação final de todos os laços damatéria. Assim se compreende o porquê do elevadíssimo grau de pureza e deserenidade psíquica exigida ao que tem que ser o Sol ou Chefe (Hierofante) nosistema planetário de uma fraternidade iniciática qual a dos Templários, Rosa-cruzes e demais que não sempre conheceu a História.

Parsifal, antes de despertar sua consciência, aparece sendo vítima doenganoso dualismo do bem e do mal - o par de opostos, em todas suas formasprotéicas; a terrível fruta maldita da Árvore do Conhecimento-. Seu discernimentoentre ambos ainda está sem desenvolver em sua mente dormida. Como o Judeuerrante legendário, fez intermináveis viagens em busca do Atalho da Iniciação,atalho que não consegue achar até o momento em que tropeça com o ermitãoGurnemanz, quem, como bom hierofante, serve-lhe de guia ou Mestre lheindicando piedoso o Caminho Oculto. Hei aqui, pois, uma formosa alegoria alusivaàs fatigantes viagens que se diz faziam os sábios da Antigüidade impulsionados porsua sede de luz e mantendo-se firmes no propósito de fazer-se iniciar na sabedoriazelosamente guardada em recônditos e afastados santuários.

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Parsifal, no curso das provas às que é submetido, vence a tentação dassedutoras mulheres -flores do atalho - e em especial da irresistível de Kundry,quem, com sua magia pessoal e nefasta, tinha obtido antes arrastar ao pecado aoutros cavaleiros do Graal, inclusive ao príncipe lhe oficiem Amfortas. Estaalegoria justifica uma vez mais o alerta! Que em todas as grandes iniciações se dáem relação a maia ou ilusão de nossos sentidos e a suas rasteiras inclinaçõesanimais. Com a queda do Amfortas, o feiticeiro Klingsor consegue apoderar-se daLança sagrada e com ela infere ao Príncipe a terrível ferida que não poderá voltar jápara curar senão ao contato da mesma Lança, esgrimida mais tarde pelo puro braçodo esperado redentor.

A presença da Lança mágica - símbolo do poder - e a missão que eladesempenha no drama pode nos servir de exemplo a respeito de como atua na vidaa lei do Karma ou da justiça retributiva - lei espiritual e física de causa e efeito, deação e de reação -. O sofrimento físico e moral do Amfortas é conseqüênciakármica do delito cometido e o pagamento da dívida que contraíra e cujos cruéisefeitos não podem cessar até que as coisas retornem a sua origem com a chegadado Desejado libertador. O modo como troca de dono a sorte Lança é bastantesugestivo. Klingsor, seu detentor perverso, joga-a contra Parsifal, como últimorecurso para triunfar nos negros propósitos que lhe alimentam, mas Parsifal, emvirtude do aura de pureza que lhe circunda, é invulnerável, e a Lança fica suspensasobre a cabeça do herói, quem, ao tomá-la em suas mãos, dá começo com isso àobra salvadora de Mago de Luz... Karma e Reencarnação, insensíveis colunas dotemplo ciclópico da fé oriental se acham, pois, no poema wagneriano claramentedefinidos em Kundry e sua obra. Kundry, com efeito, confessa que sofre em suaatual reencarnação os resultados kármicos que ela mesma criasse em seu ontem,quando sua própria individualidade, sob a pessoa, ou máscara e o célebre nome deHerodíades fez sacrificar ao Juan, o puro e inocente precursor de Jesus. Hoje, jálecionada pelo passado funesto, Kundry deseja ser redimida e sabe intuitivamenteque para livrar-se de seu lastro de ancestrais culpa tem que renunciar a tudo premiopor suas boas ações e seus sacrifícios. A conduta que observa no primeiro atoservindo com estranha humildade na confraria do Graal, e o que é até maisestranho para o vulgo, os gestos de desespero e sofrimento que faz quando se omanifesta gratidão por seus desinteressados serviços, comprovam quão ao modobuddhista e teosófico concebeu a redenção do homem o músico-filósofo alemão.

Klingsor por sua parte, na estéril luta que, a fim de conquistar sua admissãona Ordem, mantém com seus cegos impulsos, revela-nos os muito perigososinconvenientes que podem resultar de uma repressão violenta das paixões, sem abase prévia de um alto desenvolvimento de espiritualidade. Esta é a castração moralde tantos bem intencionados cuidados que sonham desterrando a impureza docorpo, sem antes desterrar a da mente com uma ciência transcendente e iniciática, edo espírito com a depuração total de tudo que possa simbolizar nos coraçõeshipocrisia, covardia, ignorância, temor, rotina, ambição e demais paixõesempequeñecedoras que são coorte maldita, lacuna envenenada onde se ocultam osraizames de um sexo que terá que respeitar, antes de transcender-lhe, sou pena

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quase sempre de lhe prostituir como Klingsor 1.Há muita vulgaridade até nos melhores pensadores, na maneira como está

acostumado a julgar-se ao Schopenhauer e a seu persumido pessimismo, que se dizderivado diretamente do conceito do nirvana ou doutrina da aniquilação buddhista.Sim, a filiação do pensamento do Schopenhauer é buddhista 2 por intermediação doFeuerbach e do Kant, sucessores a bem dizer do iniciado Espinosa, rabinoespanhol que tinha bebido a Doutrina Tradicional nas puras fontes que árabes ejudeus cordoveses trouxessem do Oriente, mas Schopenhauer, e com ele Wagner,se deu do pretendido pessimismo bastante melhor conta que os ora enfatuados oracegos filósofos que se figuraram que lhe entendiam.

Wagner se assimilou como ninguém o espírito oriental que campeia na obrado Schopenhauer: O Mundo como Vontade e como Representação: "Sua influênciaem mim - escreve em suas Memórias - foi extraordinária e certamente decisiva paratoda minha vida... A séria disposição de espírito a que me tinha conduzido o estudoda obra do Schopenhauer foi causa, sem dúvida, de que procurasse para meussentimentos uma expressão absolutamente estática, e assim foi como concebi meupoema de Tristão e Isolda...".

Há, com efeito, um otimismo vulgar que jamais pode ser compartilhado pornenhum homem de média inteligência sequer: o do que procura em vão a chamadafelicidade material, sem sair-se por completo de tudo que possa atrair e enganar anossos sentidos: o ouro, os prazeres, as honras e até os próprios e merosconhecimentos científicos sem espiritualidade, sem renúncia e sem um rápido eprático reconhecimento da Fraternidade Universal, a que ferem diretamente estesegoísmos, filhos de nossa atual condição de bestas racionais, que aparecem de vezem quando tímidas aos horizontes da renúncia e do sacrifício para... Elogiá-los emoutros e valer-se depois deles para seu próprio uso. É isso um conceito letal deantropocentrismo psíquico que desejaria fazer girar em volto de si ao universo

1 O Mestre Pitágoras dizia "que nos entregássemos ao sexo, mas só quando nos considerássemosinferiores a nós mesmos", quer dizer quando a besta clamasse por seus foros ao homem interior, aohomem sem corpo físico. No Código do Manú, impunha-se também o triunfo sobre o sexo e oascetismo, logo que se cumpriram os deveres com o mundo, quer dizer, quando ao mundo se haviadevolvido honestamente quanto do mundo se recebeu, ou seja, "quando se tinha plantado umaárvore, engendrado um filho e escrito um livro".

2 Não nos cria partidários da religião da Buddha pelo que dizemos, nem mais nem menos quetampouco o somos com o estreito critério eclesiástico da chamada religião de Cristo. A Religião-Sabedoria das idades que professamos embora indignamente, está tão acima do cristianismo comodo buddhismo vulgares. Existe, com efeito, uma diferença essencial, admiravelmente explicada nosprimeiros parágrafos de A Doutrina Secreta, de Blavatsky, entre dita Doutrina Tradicional ouBudismo (do Bodhi, Conhecimento) e a religião esotérica professada em Oriente por muitos maismilhões de homens que o próprio cristianismo, religião particular chamada Buddhismo com doisdê. A diferença é essencialíssima.

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inteiro, qual nas cosmogonias medievais giravam em volto da miserável Terra todosos astros do firmamento. Semelhante otimismo, que busca o prazer do descanso eda paz em um mundo inferior, verdadeiro inferno como é este onde sódescendemos para o esforço e para a luta, não pode, não, caracterizar aos espíritosverdadeiramente superiores, que iniciaram já sua própria redenção dos laços deMaia pelo estudo, a dor e o sacrifício. Por isso nem Wagner, nem Schopenhauer,nem nenhum outro gênio da História puderam ser senão pessimistas, quer dizer,homens que se deram conta da grande verdade iniciática de que esta não é nossapátria, senão nosso Atalho de espinhos, e, fazendo-se carrego de quantasimperfeições nos cercam neste mundo de ilusão, aspiraram, qual os cativos dePlatão, a romper hercúleos suas cadeias, em um desejo supremo de Liberaçãoconsciente.Mas tamanho pessimismo não é mais que um otimismo transcendente e titânico,porque quem começa reconhecendo a sentina em que jaz, não quem crie leito deflores, é o único que pode sentir, como Wotan, a necessidade de um supremo Ideallibertador e de Rebeldia, que galhardo se eleve sobre as misérias do presente emverdadeira Demanda do Santo Graal, lá situado na asperísima cúpula do Monte denossas Insônias de míseros cansados... Quem encontra boa e perfeita uma coisa, caina inércia, porque se acha no estado de não querer abandoná-la nunca; quem a achadeficiente sempre, por perfeita que ela pareça, é o único que pode sentir o estímulode abandoná-la, caminho para outra coisa melhor. Agora bem, para alcançar oSupremo, o Abstrato, o infinito, quer dizer, a Divindade sem Nome, de ondeemanássemos, o caminho não pode ser outro que o de uma sucessiva e graduadaRe.nunciação, isto é, uma ascensão para o Nirvana, no qual percamos toda nossaindividualidade egoísta para ser uns e conscientes no Seio daquilo, qual a gota deágua é reabsorvida no Oceano, sem perder por isso de nenhuma de suas qualidades,mais que para nossos sentidos animais e depois de havê-lo fecundado tudo com seupasso pela nuvem, a montanha, a fonte, o arroio e o rio... 11 Com seu acostumado acerto, diz Fesser, "o pessimismo de Wagner não aparece em seus poemas,nem em sua música como um pessimismo absoluto..., A não ser uma perseverante fé exteriorizadacom multiformes simbolismos, em uma imensa e remota, embora possivelmente não de tudo utópicareforma da organização social e moral do mundo, como uma consoladora possibilidade a cujarealização os esforços diretores teriam que encaminhar suas energias com heroísmo e sem temor aosacrifício... Como qualificar de pessimismo esse constante desejo, essa Aspiração ansiosa deredenção que pulsa em todas as manifestações artísticas da vida de Richard Wagner, esse dedo quesem descanso assinala profético um caminho -caminho inacessível, a nosso julgamento de hoje, masúnico- que pode e deve conduzir à Humanidade à realização, por remota que seja, do ideal de paze de ventura moral que se agita nas almas todas? Pessimismo é sinônimo de desesperança;desesperança é vida de trevas. Wagner não se desespera; na escuridão seus olhos estão abertos eolham e vêem; vêem para a gerações futuras uma redenção possível, possivelmente provável, ao cabodos ciclos evolutivos da associação humana. Vê-la em um prazo próximo não fora já iludidootimismo, senão demência. Sobre tudo, o ideal de Wagner é beleza, e a beleza só pode ser meio-irmã de pessimismo. Redenção da Humanidade enfermo pelo espírito de renúncia em compaixão eem amor, foi, do Holandês errante até o Parsifal, a idéia fixa, o grande "motivo-guía" que a toda

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a obra artística de Richard Wagner e sob diferentes forma e aspectos de origem mítica e legendária,deu essa admirável unidade de pensamento, intimamente ligada com a redenção estéticapersonificada no Hans- Sachs e no Walther von Stoltzing, e que se encontra já em vias de prontae completa realização, como prognóstico da redenção humana ulterior, mais ou menos remotamenterealizável pela força suprema da arte em braços de uma religião." Esta Religião, única e commaiúscula, para o Fesser, que não conhece ainda a Teosofia das idades, parece sê-lo possivelmenteo alto Cristianismo, sem exoterismos eclesiásticos; para nós não terá que repetir qual seja.

* * *De um plano inferior já não é pouco o que pode objetar-se nos sobre o

significado genuinamente cristão de Parsifal. Como negar, nos dirá, que, segundo asfrases do própriWagner por boca do Gurnemanz na primeira cena, o copo sagradoou Graal era aquele mesmo copo em que o Senhor tinha bebido em seu últimojantar a taça bendita que tinha recebido seu sangue divino vertido da cruz, e a lança,a sua vez, aquela lança piedosa que a tinha derramado? Como esquecer todo o finaldo primeiro ato, com sua comovedora cerimônia eucarística, durante a qual oSenhor toca de compaixão ao ignorante moço, com a vista dos sofrimentos doAmfortas - verdadeiro Jesus em sua paixão -, lhe deixando mudo e estático, comgrande escândalo de alguns mal documentados músicos 1 Que não acertam acompreender como é que Wagner não lhe faz dar nenhuma só nota? Como negar o

1 O Silêncio, o Insonoro Som, que diriam os livros místicos do Oriente, é a mais eloqüente dasnotas, porque dela brotam todas, qual das Trevas primitivas surgiu a Luz... Recorde-o quedissemos a propósito do prelúdio do Ouro do Reno. A Imprensa de Madrid, ignoro se com razãoatribuiu ao próprio diretor das representações de estréia, o mestre Weintgartner, o julgamento deque semelhante silêncio do moço acaso era o único defeito de Parsifal... Verdadeiramente, pormuito músico que se seja a verdadeira intenção das obras de Wagner não pode penetrar-se sem oOcultismo. E quanto poderia o Ocultismo melhorar até a apresentação das óperas!Ensimesmado Parsifal - diz um autor - ante a magnificência do piedoso espetáculo que se oferece aseus olhos no banquete eucarístico que celebram os cavaleiros, abisma-se em sua própriainconsciência e permanece sumido nas profundidades de um êxtase de impenetrável significação.Wagner parece haver-se esquecido do herói de seu poema... Parsifal não pronuncia nem ummonossílabo...; Seu continente tampouco expressa a menor emoção...; Permanece de costas aopúblico em atitude estatuária...Na orquestra apenas se, se advertir uma ligeira alusão ao momento psicológico de Parsifal. Sóescutamos alguns compassos que comentam essa situação emotiva em que se acha o protagonista dopoema.Os ouvintes esperam que o ignorante se volte sábio pela piedade, que musicalmente se váexpressando a evolução, a metamorfose que se vai operando No coração do inocente e puro, a mercêdo sentimento de piedade que nele despertam os sofrimentos do Amfortas.Não é certo que o poeta e o músico parece que abandonaram a seu herói no momento maisinteressante, nos começos de sua consciência?Que página musical tão grandiosa tivesse sido o comentário deste episódio; digna irmã daquelamuito bela da cena do batismo!

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espírito cristão genuíno de todo o terceiro ato, que parece um raconto da vida deJesus, quando Gurnemanz oficia de Batista e Kundry-Madalena lhe unge os péscom bálsamo precioso e os seca com seus próprios cabelos?

Nada disto pode negar-se. Isso não é suficiente, entretanto, porque idênticosargumentos podem fazer-se sobre o paganismo de Parsifal. No ato segundo, por derepente, não há nenhuma til que pagã não seja. Começa o ato, como vimos, comuma passagem que é um capítulo de hipnotismo e espiritismo, ou de necromanciapara melhor dizer. Um ente maléfico, com ritualismo de alquimias, espelhosmágicos, invocações ou conjuros, queima de perfumes, etc., etc., move a umacriatura infeliz a obrar, contra sua mesma vontade, um ato de sedução. Klingsor semostra em tal cena como o mais perfeito êmulo do bom padre necromante EliphasLevi, e tudo isto não é cristianismo, nem disso falaram uma só palavra os SantosEvangelhos... O Mago, além disso, criou, pelo solo poder de seu pensamentoperverso, umas diabólicas mulheres-flores tentadoras, das que jamais falasse omuito doce Mestre Jesus. Com mulheres tais foi fazendo cair o Mago aos maisesforçados caudilhos da Boa Lei do Graal, inclusive a seu rei Amfortas, que é, sobmais de um conceito, o protótipo da paixão de Jesus, conforme temos visto, e seeste fosse ferido no flanco, segundo piedosa tradição pela lança do centuriãoLonginos, Longinos nada teve de mau mago e sim muito de bom e compassivo, esua lança fez brotar do flanco do Redentor, não o sangue infecto do pecado doAmfortas, senão a pura sangre-símbolo que enchesse ao Graal mesmo, todo o qualmais é cristianismo voltado do reverso que cristianismo genuíno. As tais mulheres-flores, e a sua cabeça a temível Mulher-Símbolo, o espectro da amável deusa Kemidas iniciações egípcias, que também já vimos, são mais as levianas mulheres dasramagens do templo de Vênus assírio, que outra coisa cristã alguma, com todo oqual tiramos por pagão o ato inteiro, ou seja, um terço da obra. Esta terceira parteaumenta até ser mais de uma metade, com o paganismo evidente do primeiro atono que se narra a pagã sedução do Amfortas, e no que se fala de bálsamos mágicosgastos da Arábia pelos ares e por mãos da tentadora; de lutas entre a boa e a mámagia, da mutilação inútil de Klingsor, etc., e se chora com compaixãoverdadeiramente oriental para as animais -compaixão para a que nunca tivesse umasó palavra de louvor o Evangelho, nem menos a Igreja que se diz sua sucessora, ecujos Ministros Não podem formar lares nem ter nid! - Chora-se, repetimos, sobreo cadáver do cisne morto pelo inconsciente moço Parsifal, cisne que não é maisque o da lenda do Cavaleiro Lohengrin ou "Cavaleiro do Cisne" que em seu lugar jádemos, simbólica Ave ou Pomba do Graal, nascida do sangue inocente do meninofeito degolar pela má rainha Eustaquia e que ao retornar agora como homem,moria a sua vez como Ave do Céu ou cisne, qual a virgem jaqueta ou Walkyria noAnel do Nibelungo morria como deusa, despertando como mulher em braços de seucontraparte humana, o guerreiro Siegfried; e tudo isto... Não é tampoucocristianismo 1.1 Até tomando a lenda no vulgar sentido eucarístico, poderia ser tida ela por cristã genuína,porque a mesma eucaristia é um dos mais primitivos ritos da Humanidade, que já entre oshierofantes egípcios tinha quase a mesma significação que entre os cristãos. Ceres era o pão e Baco

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o vinho, significando o primeiro a regeneração da vida ao brotar da semente e o segundo o fruto, ocacho, emblema da sabedoria ou do espírito oculto de todas as coisas, surto ao exterior com afermentação, ou seja, com a subseqüente força mágica tirada a luz pela ciência esotérica. Jano foi oprimeiro que introduziu; nos templos o sacrifício do pão e do vinho, e nas obras do Pai Duram edo Pai Deita a respeito dos americanos primitivos se podem ver extensos relatos a respeito dasfestas pascais, verdadeiramente eucarísticas de astecas e incas, coisa que este último escritor atribui-se a mutretas de Satanás, adiantando-se à verdadeira religião com cerimônias plagiaria, antes queas únicas tidas por verdadeiras fossem levadas ao Novo Continente pelos espanhóis!

Por outro lado, em todo o relativo ao sangue eucarístico não terá que esquecer que o sangue,segundo Eliphas Levi "é a primeira encarnação do flúido universal, é a luz vital materializada.Sua formação é a mais maravilhosa de todas as maravilhas da Natureza; vive só porque setransforma perpetuamente, posto que é o Proteo universal. O sangue procede de princípios nosquais antes não existia nenhuma só partícula da mesma, e ela se converte em carne, ossos, cabelos,unhas... Lágrimas e suor. Não está sujeita nem à corrupção nem à morte; quando a vida cessa,começa a decompor-se, mas se soubéssemos a maneira de reanimá-la, de infundi-la de novo vidapor meio de uma nova magnetização de seus glóbulos, a vida voltaria para ela de novo. Asubstância universal, com seu dobro movimento, é o grande arcan-um do ser; o sangue é o grandearcanum da vida." Paracelso descreve que com os vapores do sangue pode um evocar qualquerespírito que deseje ver, posto que com suas emanações, qual Ulisses quando evoca na Odisséia àsombra do Tiresias, formará-se uma aparência, um corpo visível, coisa que cai dentro dos nefastoslimites da feitiçaria, e não foi desconhecida de nenhum sacerdote antigo, qual os hierofantes doBaal, os maias, os grecorromanos e até hoje os tantrikas, dugpas, budús, ñanigos, etc., etc. Hácertamente na Natureza secretos bem terríveis, que é uma grande desgraça o conhecer para praticá-los indevidamente.

Tudo isto de armar ao suposto Parsifal Jesus com armas jaquetas, não com aArma invencível da predicação; apresentar primeiro ignorante e quase parvo nadamenos que ao que para muitos fora Filho de Deus; lhe fazer comparecerembevecido ante as cerimônias do Graal. A Ele, que de menino já admirasse porsua sabedoria aos doutores do Templo, etc., etc., não é muito cristão, que digamos,embora sim seja absolutamente de acordo com a Doutrina Tradicional e com osentido comum, a mais de ser eminentemente artístico... Por isso não são de sentirsaudades estas duas frases preciosas com as que Fesser, embora inclinando-se parao Cristianismo, conclui seu livrinho: "Qual fora a fé de Wagner em matéria religiosaé ponto indiscutível por indecifrável, se alguma tinha... Na mão de Wagner vejosempre erguida a espada Nothunga, em protesto permanente contra a Lança dosPactos..." Fesser, como tudo o que estude a obra final de Wagner sem prejuízosreligiosos, não pode menos de adivinhar detrás dela alguma coisa indecifrável enebuloso, alguma coisa muito acima do cristianismo e do paganismo; a este algosuper-intelectual e super-humano lhe chamou com um nome só desde que omundo é mundo: é a Gupta Vidya oriental: a Magia tradicional, tão acima dohomem ordinário, embora lhe chamemos sábio, como o está o céu sobre nossascabeças.

Digamos o de uma vez e sem rodeios: o que há de verdade nisto dopaganismo ou o cristianismo de Parsifal é que a obra final de Wagner, Parsifal, e a

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obra final inata de Beethoven, a Décima Sinfonia, tinham um mesmo espírito desíntese religiosa ou teosófico-ocultista, síntese a mais própria para servir de apóie àReligião sem religiões, à restauração dos Mistérios iniciáticos que, a despeito detantos obstáculos e dores, estamos vendo que a mais andar nos mora. Beethovenmestre e Wagner seu musical discípulo, desenharam-nos já os primeiroslincamientos deste Tempero futuro e vai sido possível a este realizar em nossosdias, mais com o Parsifal que com nenhuma de suas obras anteriores, o sonho deseu precursor Beethoven, quem, antes de morrer, depois de ter escrito O Hino àHumanidade futura, deixou desenhada sua Décima Sinfonia, aonde, depois de umprimeiro tempo de Bacanal pagã e um adágio ou canto eclesiástico cristão, baseadonos antigos modos, vinha um final, um Parsifal em germe, concillando o mundoantigo com o espírito da cristandade... Que prêmio tão completo o dado por seubom carma a aquele jovem diretor da melhor orquestra alemã quando, a despeitodos chamados inteligentes, o vulgo douto e temível de todos os tempos, estreava,por dizê-lo assim, a obra capital do santo Beethoven, salvando do esquecimento eaté da destruição possivelmente à Nona Sinfonia!

Mas é dever nosso não deixar aqui pendente o problema profundamenteocultista de Parsifal, senão completá-lo com outros simbolismos que jogam na obra.Os mais importantes, sem dúvida, são os do Copo e da Lança, que trataremos coma devida separação.

# # #A Lança pseudo-cristã do Graal e a pagã Lança dos Pactos, ostentada pelo

Wotan, é uma mesma e única lança, haste ou lança, tida por sagrada em todos ospovos, da mais remota Antigüidade. Seja por ter um caráter fálico e emblemáticodo poder viril, seja por tratar-se da primeira arma de combate que pôde imaginar ohomem, é o certo que o Haste romana era, como é sabido, algo assim como abalança da justiça, presidindo a todas as transações jurídicos do primitivo direitoquiritario ou da lança (kyries), e muito especialmente às núpcias, entre os quegozavam do prezado direito de cidadania. As matronas romanas que se achavamsob a tutela do Juno eram chamadas Curetis (Cauretes ou Kyrias, e daquiWalkyrias), por causa de Cure ou Torre, cidade dos sabinos, fundada por MeioFidio e Himella, seus deuses supremos, e por isso aos chefes e demais homens dascúrias romanas que se distinguiram por suas proezas na guerra estava acostumadadar-se os como símbolo de seu heroísmo uma pequena haste ou lança, toda deferro, denominada Hastapura, nome que por certo recorda à cidade Hastinapura,símbolo da Jerusalém celestial, que diríamos, por cuja conquista lutassem os curús eos pandavas no Mahabharata 1. Estes Curús industânicos e aqueles Curetis sabinosnão são senão os Curetas ou Coribantes, povo da Frigia que habitou no monte Idae depois emigrou a Creta, onde acolheu e criou ao menino Júpiter quando sob oamparo da Amalthea (o deus Lamba tibetano) pôde escapar à voracidade de seu paiSaturno.1 "Matronae in tutela Junonis Curetis essent, quae ita vocabatur ab até ferenda quae Sabinorum

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lingua curis dicebatur"... "Nec tibi, quae cupidae matura videbere matri, comat virgíneas atérecurva coma" (Ovidio, 2 Fast.) "Até pura dicitur, quae fine ferro est, et signum est pacis. Hacdonabantur militis, qui in belo fortiter fecissent" (Suetonio Claudio) - Transíate hastae dicunturargumenta oratória (Cícero, 1. I. Or., C. 57) - Lhes dê in hastario vectigales habetis(Tertuliano, Apologética, C. 13) - Ponitur etiam pró auctione incauto, quia autio cum effet atéerigebatur (Calepinus, Até).

Até certo ponto, os troncos ou pranchas da lei, onde Moisés escrevesse pormandato do Jehovah os preceitos do Decálogo, não são senão uma dobro lança dasrunas, sobre cujo significado fálico não nos podemos deter, mas que em pequenasquantidades pode ver-se no segundo tiro de Ísis sem Véu. Conhecida é também,pelo Raymond d'Agiles, a lenda da Lança das Cruzadas, que se conserva, diz-se, emConstantinopla 2.² Diz assim Judit Gautier, em sua tradução de Parsifal:Há razões para estar de acordo com o Mabinoghi do Peredur no que se refere a uma lançaensangüentada que a lenda atribuiu à lança Santa que rasgou o flanco de Cristo quando esteestava parecido na Cruz, lança que se acreditava em poder dos cavaleiros do Graal.Do mesmo modo que existe um Graal e uma lança legendária, há um Graal e uma lançahistóricos, que foram encontrados na Palestina em tempos das Cruzadas. Encontrou-se a primeiralança em 1097, quando o sítio da Antioquia, depois da tira desta cidade pelos franceses. Todos osautores daquela época relatam o fato, mas nenhum o faz com a minuciosidade empregada peloRaymond d'Agiles, cônego do Puy, capelão do Conde do Toulouse, testemunha ocular e portador sepor acaso mesmo, durante algum tempo, da lança Santa. "Eu vi o que conto – escreve - e fui eumesmo quem levou então a lança do Salvador." Em um momento de miséria suprema do exércitocristão, um sacerdote de condição obscura e misérrima chamado Pedro Barthelmy, originário daMarsella, viu aparecer várias vezes a São Andrés, que lhe revelou que para vencer aos inimigosera necessário que o exército dos Cruzados fosse provido da lança com a qual foi esmigalhado oflanco do Senhor na Cruz; que esta lança estava na Antioquia, enterrada diante do altar maiorda igreja de São Pedro. "Por -lhe disse São Andrés- Devem combater a seus inimigos, ealcançarão sobre eles uma vitória completa, como Jesus Cristo a obteve sobre Satanás."O infeliz clérigo contou o acontecido, e a lança foi encontrada como havia predito o Apóstolo. Oexército, invadido de um gozo delirante e de um entusiasmo heróico pelo milagroso descobrimento,alcançou uma formidável vitória sobre os exércitos do Sultão Mosul. Entretanto, algum tempodepois, suscitaram-se dúvidas sobre a autenticidade da Santa lança. O sacerdote marsellés seofereceu a passar acima de uma fogueira acesa para provar com um milagre a verdade de quantohavia dito. "Quero e suplico – disse - que se acenda um fogo imenso, e eu lhe atravessarei com alança; se for certamente a lança do Salvador, cruzarei são e salvo; se não, sofrerei queimaduras,porque vejo que não se acredita nos milagres." "Este discurso nos pareceu razoável - continuaRaymond d'Agiles -, e, depois de haver prescripto ao Barthelmy que jejuasse aquele dia, decidimosque se acendesse a fogueira, o dia em que Nosso Senhor, talher de chagas, foi tendido sobre a Cruzpara nos salvar. Era a antevéspera de Páscoa.Se Deus Todo-poderoso tiver falado a este homem cara a cara e se São Andrés lhe mostrou alança do Senhor enquanto o peregrino velava, que ele mesmo cruzamento sobre o fogo, sem receber

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a menor queimadura, ou que seja queimado -abrasado- com a lança que levará em suas mãos.Todos, dobrando o joelho, disseram: Amém.Então, Pedro Barthelmy, vestido somente com uma túnica, dobrou o joelho diante do Bispo daAlbania... O Bispo lhe pôs a lança nas mãos; Barthelmy fez o sinal da cruz, aproximou-se dafogueira e entrou nela sem a menor vacilação. Permaneceu um momento rodeado das chamas, esaindo delas, pela graça de Deus, sem que sua túnica tivesse recebido a mais leve queimadura, e domesmo modo sem que a gaze muito ligeiro que recobria a lança do Senhor sofresse deste modo omenor dano. Fez imediatamente, sobre a multidão que se congregou em torno dele, o sinal da cruzcom a sagrada lança, e exclamou em alta voz: Deus, me ajude! Esta lança, que serve durantemuito tempo de insígnia ao exército das Cruzadas, foi levada ultimamente a Constantinopla,aonde a conserva com outras preciosas relíquias, em uma capela secreta.

A lança joga também grande papel em numerosas lendas orientais, já com osimbolismo antes exposto, já como instrumento de salvação e de liberação, que,brandido às vezes pelo discípulo contra o mestre ao receber de este a última edefinitiva "palavra sagrada", libertava-lhe piedoso dos laços da carne, simbolismoque no fundo é também o do Rei Amfortas, quando é curado pela lança esgrimidapelo Parsifal, seu sucessor. Parsifal, em tal aspecto do mito, arbustoverdadeiramente ao Amfortas, com o qual, ao lhe libertar da carne pecadora,realmente lhe cura de um modo definitivo da ferida que a mesma lança -o sexo, ofalo- lhe inferisse quando caiu vítima da sedução carnal. Semelhante cena deliberação final, tão pouco verossímil de outro modo explicada, qual seria o pensarque uma lançada curasse, acha-se belamente descrita nesta passagem do Schuré:

"Açoitado noite e dia pelas palavras do anacoreta, o rei de Amadurecidadisse a Krishna, o condutor de seu carro: Desde que o Mago infernal da Vasichtaenvenenou meus dias com sua profecia, eu não posso viver. É preciso que lhe matee lhe pergunte o nome e o paradeiro do filho de minha irmã Devaki. A paz de meureino depende deste mistério".

"Disfarçados ambos de caçadores, partem pois. Era o princípio da estaçãodas chuvas; os rios se enchiam; as novelo estorvavam a marcha, e a linha branca dascegonhas sulcava as brumas. Quando se aproximaram do bosque sagrado, ohorizonte se escureceu; a atmosfera se encheu de uma névoa acobreada, e do céutempestuoso, nuvens como trombas descarregavam sobre os viajantes. "-Teme,Krishna?" -Disse o rei Kansha. "-Embora o céu troque de aspecto e a terra de cor,eu nada temo." "Então avança." - Krishna fustigou os cavalos e o carro entrou comvelocidade vertiginosa sob a sombra espessa dos baobabs. A selva se voltava cadavez mais terrível; os relâmpagos a iluminaram; o trovão retumbou. "Jamais - disseKrishna - vi o céu tão negro nem retorcer-se assim as árvores. Bem poderoso é seumago!”A tempestade se voltou tão espantosa que as árvores gigantes se inclinaram.O raio caiu ai lado dos viajantes; um baobab truncado obstruiu o caminho, e a terratremeu. Ao final tirava o chapéu uma cabana miserável, onde habitava Vasichta, ogrande muni, que alimentava aos pássaros e era temido pelas feras. "- Libra medele"! - exclamou apavorado Kansha.

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Wagner Mitólogo e Ocultista – Capítulo XVI

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O muni centenário vivia esperando a morte naquela escondida cabana. Antesde morrer, o corpo se libertou da prisão da matéria. Seus olhos se extinguiram; masvia pela alma. Sua pele percebia apenas o calor e o frio; mas seu espírito vivia emuma unidade perfeita com o Espírito soberano. Não via já as coisas deste mundomais que através da luz de Brahma, rezando e meditando. Um discípulo fiel lhelevava diariamente à ermida o punhado de grãos de arroz que lhe sustentavam. Agazela que comia em sua mão lhe advertia bramando da proximidade das feras, aquem ele afastava com um mantra e com sua fortificação de bambu de sete nós.Quanto aos homens, quem queira que fossem, via-os vir com sua vista internadesde várias léguas de distância... Assim que Krishna lhe viu, reconheceu que eranada menos que o sublime ancião a quem em vão procurasse tantos anos. Umacomoção de alegria e respeito subjugou sua alma e, ajoelhando-se ante o iogue,adorou-lhe. Vasichta parecia não lhe ver..., Seus lábios murmuraram a sílabasagrada ôm! Quanto ao rei Kansha, ficou petrificado. Sobrepondo-se a seu terror,disparou contra Krishna, o infiel, mas sua flecha foi a matar ao santo anacoreta.Krishna quis vingar sua morte; mas o rei tinha desaparecido.

...Um resplendor maravilhoso rasgou os céus, e a alma do ancião se elevouaté a sétima esfera, arrastando enlevada um momento a alma de seu fiel discípuloao trono do Mahadeva... Quando Krishna voltou em si, ainda retumbava o trovão;a gazela lambia, piedosa, a ferida mortal do asceta, que já era só um cadáver; mas ojovem se levantou como ressuscitado a uma nova vida. Um abismo lhe separava jádo mundo e de suas vões pompas, porque tinha compreendido, ao fim, sua missão,depois de ter contemplado cara a cara à Verdade...

# # #

Duas palavras tão somente a respeito da partitura de Parsifal:A partitura de Parsifal - diz Rogelio Villar - assombra, em geral, pela grandeza

e a majestade, e pela inspiração e a beleza de seu traçado, pela pureza de suas linhase pelo colorido e matiz de sua sábia e artística instrumentação doce e suave,grandiosa e solene. Marca o término da evolução iniciada em Tannhaüser eLohengrin, em cujas inspiradas obras se encontram esboçadas suas teorias sobre odrama lírico, chegando a seus últimos extremos na muito bela partitura de Parsifal.

As partes melódicas fragmentárias (leitmotivs) que se ouviram no transcursodo drama de Wagner, nas diferentes situações, são de grande potencializaexpressiva, e em relação com o caráter do poema, sempre subordinados ao espíritoda frase literária.

O prelúdio e a consagração do Santo Graal (jantar dos apóstolos), páginamagnífica e de intensa emoção no primeiro ato; o prelúdio e o jardim encantado deKlingsor (cena voluptuosa das flores), e o dramático dueto da sedução entre oKundry e Parsifal, no segundo; o breve e melancólico prelúdio, a comovedora cenado batismo (um dos momentos de mais emoção de Parsifal) e os encantos da Sexta-

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feira Santa, páginas de sublime beleza, no terceiro; o mais aprazível e poético porsuas delicadezas e por sua orquestração rica e exuberante, como todas as situaçõessalientes da ópera, cheias de encantadora poesia e de deliciosa ternura; delicadas oudoces, sombrias ou tétricas, sempre em caráter com o poema.

Outros fragmentos episódicos interessantes pelo trabalho orquestral decaráter descritivo são: a oração matinal do Gurnemanz; a saída de Kundry; ocortejo do Rei, de muita visualidade, assim como o parlamento do Gurnemanz àsombra de uma árvore secular, no que refere aos seus escudeiros a origem daOrdem do Graal; a queda do Amfortas, a perda da lança, episódios do primeiro atoem que se ouvem constantemente os tema que simbolizam O Graal, Kundry, osdores do Amfortas e o malefício de Klingsor.

Sobressai-se também no segundo ato toda a sinistra cena do Mago infernal,em que se vale de suas astúcias para que Kundry, a Eva da mitologia hebraica,seduza ao Parsifal; e no terceiro, a desoladora cena do Amfortas, de funda emoção,e a marcha fúnebre.

Há na partitura de Parsifal fragmentos sinfônicos de uma imponderávelbeleza, sonoridades deliciosas empasteladas e fundidas com uma arte tão nova, tãoadequado ao médio em que se desenvolve a ação, ao caráter da paisagem, imagenspoético-musicais tão expressivas, e verdadeiros acertos de interpretação da lenda doSanto Graal, que subjugam.

"Misturados com uma arte sem precedentes, ouvem-se na orquestra os temado jantar, Titurel (Ordem do Graal), Kundry, Amfortas, Parsifal, que simbolizam afé, a compaixão, a humildade, a melancolia, o amor, a resignação, o cisne, a lança eoutros, cuja significação é preciso conhecer para desfrutar por completo daconcepção wagneriana em toda sua magnitude e grandeza; Amfortas simboliza oremorso; Titurel, a voz do passado; Klingsor, o pecado; Parsifal, a redenção;Kundry, a sedução; Gurnemanz, a tradição".

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Venhamos agora ao ponto mais difícil, ao relativo ao Gral, Graal, Graal ouGrail, que com todos estes e outros nomes lhe conhece, causando o desespero dosfilólogos e historiadores.

Certamente, para Wagner, como para o mundo cristão em geral, o Graal é "ocopo sagrado do que o Senhor tinha bebido em seu último jantar; a taça benditaque tinha recebido seu sangue divino vertido da cruz" e recolhimentopiedosamente pelo José da Arimatea. Centenas de variantes desta lenda seencontram repartidas por toda a Europa, principalmente na Espanha. Até existe nacatedral de Valência um muito formoso cálice de conrerina oriental ou ágata que sediz ser dito copo autêntico, guardado primitivamente no monastério pirenaico deSão João da Penha e logo na Zaragoza. As piedosas fraudes monacais do medievodiziam gasto por São Pedro de Jerusalém a Roma depois do Encargo da Virgem, e

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de ali a Huesca e escondido pelos dias da invasão árabe em uma cova da parte maisescarpada do Pirineo, onde deu lugar, com seu ulterior descobrimento peloscristãos, à fundação daquele monastério. Outro cálice, de lenda semelhante, quejogou na conquista da Almería, guarda-se na Gênova, e o mesmo ou outro, ganhopelos cruzados ao tomar a Jerusalém, foi mostrado ao Luis XII da França pelosgenoveses, mas em rigor, como diz Bonilla São Martín, nenhum desses graals é ode José da Arimatéia, ou seja,o conservado, segundo a fábula, no mítico castelo doCorbenic, embora não por isso deixem de ser Santos nem de enlaçar-se comtradições semelhantes. Há também outro Graal galaico-leonês, chamado "O SantoMilagre" na antiga ermida do Cérbero e a bom seguro que no ocidente da Espanhapoderiam ser achados outros muitos registrando em nossos velhos templos 1.

A lenda do Graal é popularíssima na França e a denominação do Graal se vêem nosso Romanceiro e em alguns livros de cavalaria, tais como o do Baladro doMerlín e a demanda do Santo Graal. Os poetas alemães disseram sempre Graal; osbretães, que foram um dos povos em que primeiro se conheceu e popularizou alenda celta, chamaram sempre Graal à sagrada taça. Os provençais dizem tambémGraal em seus poemas, tomando-o acaso do graanzal, prato ou tigela, utensíliocaseiro ao que já aludiu o Arcipreste de Hita, descrevendo certa cozinha de seutempo:

"Tigelas, frigideiras, tinajas e caldeiras,gargantas e barris, todas coisas caseiras,todo o fizo lavar às suas lavadeiras,espetos, griales, panelas e coberturas."

Dom Juan Valera, falando do escritor árabe Flegetaris (denominadoTelegetanos pelo crítico alemão Wolzogen), chama Graal à taça Santa. Os italianosescrevem Graal; os ingleses, Grail, e Menéndez e Pelayo, Gral; e não poucas vezesse encontra escrito Greal nos cronistas, todo isso, conforme se diz no dicionário doMistral, como derivado do latim gradale e depois do Grasan, provenzal; grian,marsellés; grasal, lionés; grial, lemosino; grasans, românico; gresal, catalão; graal,francês, e grial, galaico-castellano, qual no antigo romance de "O Conde do Sol" (oCavaleiro Hélio ou Lohengrin), quando diz:

"Pai, pai de minha vida,pela do "Santo Graal,que me dêem sua licençapara o conde ir procurar!"

1 Não deixa de ser extraordinariamente curioso, diz Bonilla São Martín em sua obra As Lendasde Wagner na Literatura espanhola, fechando em batalha contra os frivolos e os poucosantiwagnerianos que hoje ficam, o comprovar que os tema literários do Hugonotes, Rigoletto,Luzia e tantas outras óperas à italiana e à francesa distam cem vezes mais de nossa tradiçãoliterária popular ou erudita que os que constituem a trama dos dramas wagnerianos.

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Outros etimologistas, forçando quanto podem a palavra, tratam, em vão, defazê-la derivar da palavra latina cratera ou taça, para adaptar a melhor à idéia cristã"da taça do último jantar", com melhor intenção que fortuna, porque, como se vê, aetimologia graal é mais a de prato que a de taça, embora não resulte tão poéticonem tão adequado ao cânon cristão o ver o sangue de Jesus recolhimento, não emebúrnea taça, senão em prato, tigela ou fonte vulgaríssimos 1.

1 "Na segunda metade do século XIV, diz Bonilla São Martín, refundiu-se em castelhano e emportuguês uma Queste do Graal francesa que, depois de várias transformações, levou o título de: ADemanda do Sancto Graal, com os maravilhosos data do Lanzarote e do Galaz, seu filho, lhepondo como primeiro livro um Baladro do sábio Merlin, no que entra uma refundição castelhanado perdido Conde du Brait. A demanda, bem conhecida e citada pelos poetas do Cancioneiro daBaena, imprimiu-se no Toledo em 1515 e possivelmente antes em Sevilha em 1500. Nelaintervém Parsifal (chamado Perseval) a quem se dá o apelido de "Galaz", por ser natural destaterra e que se diz filho do Cavaleiro da besta ladradora ou seja,do Palomades o pagão. Persevalvisita com o Galaz e Boores, o palácio do rei Pelles onde se custódia o Santo Graal, E se fazmonge depois da morte de seu amigo Galaz, cujos últimos instantes presencia. Mas Perseval é umpersonagem secundário na Demanda (como na Quête francesa, a diferença do Didot-Perceval e deParsifal o Gallois) e não reúne nenhuma das extraordinárias qualidades que a lenda de Parsifalatribui a este. O Parsifal da tradição recolhimento na obra castelhana é propriamente Galaz, filhodo Lanzarote do Lago e neto do rei Pelles. Galaz é aqui "o cavaleiro divino", da linhagem doDavid e do José da Arimatea; o único dos cavaleiros da demanda que consegue contemplar cara acara o Santo Graal. Não parecerá estranha esta substituição do Perseval pelo Galaz, a quemcompreende que o Parsifal-Galaz representa a última e mais mística etapa de uma evolução muitocomplicada da lenda. Originariamente o mesmo Perceval nada tinha que ver com o Graal, assim,no Sir Perceval of Galles, a tradição do Graal não aparece, pois é de origem celta e precristiano.No mesmo Wolfram do Eschenbach o Graal não é um prato ou tigela como no Chretien, senãouma pedra mágica...""...E Dom Galván se foi contra um grande palácio -diz a lenda- e logo saíram a ele mais de vinteescudeiros, que lhe fizeram descender do cavalo... E grande companhia de cavaleiros, quem lhe deua bem-vinda e lhe vestiram ricamente, lhe dizendo: "-Senhor: de onde são?" "-Sou -disse DomGalván- do reino de Londres e da casa do rei Artur." Então lhe fizeram a maior honra domundo e preguntáronle por novas da corte, e ele as disse; e eles assim falando, saiu de uma câmaraum grande cavaleiro que trazia ante si muito grande compaña de cavaleiros, e ele era o maisformoso homem que nunca visse Dom Galván. "-Vejam aqui ao Rei", disseram-lhe, e logo se foia ele Dom Galván e díjole: "-Senhor, sede muito bem vindo", e o Rei lhe tornou suas saudaçõescom muito prazenteira cara e lhe fez assentar perto de si e preguntóle quem era, e Dom Galván lhecontou toda a verdade e disso foi o Rei muito alegre, porque desejava muito ver dom Galván, ecomeçaram a falar em um de muitas coisas, e enquanto falavam parou memore Dom Galván e viuentrar por uma vidraça um pombo branco que trazia em seu pico um incensario de ouro muitorico, e assim como entrou foi cheio o palácio de todos os bons aromas do mundo e todos ficaram tãosilenciosos que não falaram palavra mas sim caíram de erva-doces assim viram o pombo, e opombo se foi direito a uma câmara, e logo os do palácio puseram as toalhas nas mesas que aliestavam... Desta aventura se maravilhou muito Dom Galván, e olhava a todos que estavam em

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oração e viu sair da câmara onde o pombo tinha entrado uma donzela, a mais formosa que nosdias de sua vida tinha visto. Trazia os cabelos soltos, atados um pouco acima com uma cintamuito rica, e tinha a mais formosa cabeça de mulher e a donzela trazia em suas mãos o mais ricocopo que nunca visse homem terrestre e estava feito a maneira de arlés (cálice) e ela o trazia maisalto que sua cabeça. Assim que todos os que o viram, inclinaram-se, e Dom Galván contemplou ocopo e admirou-o muito, mas não pôde saber do que era, porque não lhe parecia feito de madeira,nem metal, nem pedra, nem Corno, nem osso, e ficou muito triste ao não poder saber do que era.Depois contemplou à donzela e se maravilhou mais de sua formosura que do copo, porque nuncavisse donzela que a igualasse, e em outra coisa não pensava que nisto."Assim como a donzela passava ante os que no palácio estavam, foram eles caindo de erva-doces, elogo foram enchem as mesas de todos os bons manjares que o homem pode imaginar e o paláciocheio de todos os bons oloíes do mundo, e quando a donzela passou diante de todos retornou àcâmara de onde tinha saído... E Dom Galván parou logo memore na mesa que tinha diante de si,mas não viu coisa alguma que pudesse comer, antes bem estava a mesa vazia ante ele, mas anteoutros havia muita vianda a maravilha, e quando Dom Galván viu aquilo se surpreendeu muito enão soube o que dizer, porque pensou que fala errada em alguma coisa, porque ele não tênia o quecomer, como todos os outros, e assim se cuidou de não perguntar até que as toalhas foramelevadas."Depois desta cena, relata muita por extenso o manuscrito do Lanzarote, como Dom Galvánapareceu a uma das janelas do palácio, assim advertiu que dele não podia sair, e viu um miúdoque lhe disse se tirasse da janela perigosa aquela e fosse se jogar sobre um dos ricos leitos que alihavia, mas ao fazê-lo, uma voz de donzela lhe acautelou que não o fizesse sem antes armar-se detodas as armas, porque aquele "era o leito aventuroso". Em efeito, logo viu sair uma enormeserpente de cuja boca foi brotando até quinhentas serpentes pequenas e um leopardo que travou emseguida uma terrível luta com a serpente grande, luta que conduziu uma muito densa escuridão noâmbito do palácio e um estrépito e comoção maior que a de nenhum terremoto. A serpente, vendoque não podia vencer ao leopardo, retirou-se, e então as serpentes pequenas que tinham saído desua boca começaram a lutar com ela até que uma e outras caíram mortas. Antes de tais lutas,Dom Galván, no meio do maior espanto de vozes invisíveis, tinha visto aparecer no espaço umalança de ardente ferro que, sem que se visse quem a dirigia, feriu-lhe terrivelmente pelas costas lhedeixando quase moribundo. Também conta a história como chegou mais tarde junto ao malferidoDom Galván um estranho cavaleiro que lhe mandou deixasse o leito perigoso, e como DomGalván não se emprestasse a isso pelos dores de sua ferida, travou com ele uma larga e descomunalbriga até ficar ambos os cavaleiros sem forças para mover-se. Imediatamente começaram a tremeras paredes e o chão do palácio tanto e mais que a primeira vez, e por último sobreveio uma docecalma depois da que apareceu a donzela com o santo Copo, a cuja vista prodigiosa Dom Galvánficou completamente curado, como se nada mau lhe tivesse acontecido. Um ermitão com quem maistarde tropeça lhe explica o significado de suas desventuras no palácio, motivadas todas porque nãotinha adorado o Graal, nem podido gozar, portanto, do ágape sacro. Também lhe diz que aserpente grande é seu tio o rei Artus que se partisse da terra e os quinhentos serpentinos seusparentes e amigos, lhe encarregando guarde grande secreto de tudo isto.

O curioso livro titulado A Douloureuse Passion do N. S. Jesus Cristo,d'aprés os meditations d'Anne Catherine Erñmerich, ocupa-se extensamente da

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versão do Graal cristão."Da Ana Catalina Emmerich, religiosa agustina, nascida em 1774 perto do

Coesfeld (Alemanha), e morta em 1824, diz-se que foi uma vidente maravilhosa,que por meio desta faculdade pôde presenciar muitos acontecimentos históricos emuito especialmente as cenas da Paixão e morte de Cristo, em cujas mãos viu ofamoso cálice quando, em união dos Apóstolos, celebrou o último ágape e de quefaz a descrição seguinte:

"O cálice que os Apóstolos levaram a Cenáculo de casa da Seraphia, poroutro nomeie chamada Verônica - consigna o chamado livro é um vasomaravilhoso e misterioso. Tinha permanecido muito tempo no Templo, entreoutros objetos preciosos de muito remota Antigüidade, cujo uso e origem seesqueceu. Um pouco parecido ocorreu na Igreja cristã, aonde muitos objetossagrados preciosos por sua beleza e Antigüidade têm cansado no esquecimentocom o tempo. Com freqüência se tinham descartado, vendido ou refundido velhoscopos e antigas jóias enterrados no pó do Templo. E assim foi como, pela vontadede Deus, este santo copo que não tinha sido possível fundir nunca por causa damatéria desconhecida de que se compunha, tinha sido achado pelos sacerdotesmodernos no tesouro do Templo entre outros objetos desprezados, e vendido aalguns aficionados a antiguidades. Este cálice, comprado pela Seraphia juntamentecom todos seus acessórios, tinha servido já várias vezes ao Jesus para a celebraçãode festas, e a partir desta época, ficou de propriedade da comunidade cristã. Estecopo não se encontrou sempre no estado atual: não se recorda já quando sereuniram as peças de que agora se compunha, nem se isto se feito por ordem doSenhor. Seja como for lhe tinha unido uma coleção portátil de objetos acessóriosque deviam servir para a instituição da Santa Eucaristia. O Grande Cálice estavacolocado sobre um zócalo, do que se podia tirar uma espécie de tabuleta e ao redorhavia seis pequenos vasos 1. Já esqueci se a tabuleta continha coisas santas. Dentrodo grande cálice havia outro pequeno copo; em cima um pires e depois umacoberta convexa. No pé do cálice estava sujeita uma colherinha que podia tirar-sefacilmente. Todos estes copos estavam recobertos de formosos tecidos eencerrados em um envoltório de couro, se não me equivocar; esta cobertaterminava na parte superior com um botão. O grande cálice se compõe da taça e dopé, que deve ter sido acrescentado com posterioridade, pois estas duas partes sãode matérias distintas. A taça apresenta uma massa pardusca e pulimentada emforma de pêra, está revestida de ouro e tem duas pequenas asas que permitemagarrá-la, pois é bastante pesada. O pé é de ouro virgem, artisticamente trabalhadoe está adornado em sua parte inferior com uma serpente e um cacho de uvas, eenriquecido com pedras preciosas.

O grande cálice ficou em Jerusalém guardado pelo Santiago o Menor, e lhevejo ainda oculto em alguma parte desta cidade; voltará a aparecer à luz do dia,

1 Assim eram, com efeito, os primitivos cálices cristãos para a comunhão com as duas espécies.Nosso amigo o grande explorador da América Dom César Luis do Montalbán, encontrou emsuas viagens por aquele moderado objetos arqueológicos desta classe.

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como reapareceu esta vez. Outras Igrejas se repartiram as taças que lhe rodeavam;alguém foi a Antioquia, outra a Éfeso: cada uma das sete Igrejas teve a sua. Estastaças pertenceram aos patriarcas, que as empregavam para beber uma beberagemmisteriosa quando davam ou recebiam a bênção, conforme vi repetidas vezes.

O grande cálice foi possuído pelo Abraham: Melchisedech o levou do paísde Semíramis à terra do Chanaan, quando começou algumas fundações no lugar emque mais tarde esteve Jerusalém; empregou-o quando celebrou o sacrifício em queofereceu o pão e o vinho em presença do Abraham, e o deixou a este patriarca.Também esteve este copo no arca de Noé.

"Foi também levado ao Egito e Moisés o possuiu. Era feito de uma matériasingular compacta como a de um sino e não parecia ter sido trabalhada como osmetais; mais parecia produto de uma espécie de vegetação. Vi a seu través. Só Jesussabia o que era."

Tais são, pouco mais ou menos, as diversas lendas cristãs do Graal queandam pelo mundo, todas, sobretudo ao conceito de cálice ou taça.

E aqui precisamente se encontra o fio que nos conduzir pode a umainterpretação mais filosófica, embora certamente menos cristã e menos wagneriana,do prodigioso mito.

Já Mauricio Kufferath, um dos melhores comentaristas de Wagner,interpretando com perfeita correção o texto do Parzival alemão do Wolfram doEschenbach (1200-1216), diz que o Graal, Greal ou Graal primitivo da lenda não éum copo, nem uma cratera, nem um cálice, nem sequer uma tigela ou prato, senãouma pedra. Em efeito, a tradução fiel de dito poema, derivado do até mais antigodo Chretien do Troyes (século XII), mostra-nos ao Graal como "uma pedrapreciosa, gasta à terra pelos anjos e confiada sua custódia a uma Fraternidadeiniciática que se chamou dos Custódios do Graal". Fenos aqui já, pois, com a Pedrado Jacob, a Pedra do Liafail escocês, a Pedra cúbica dos maçons, a Pedra ou Peterainiciática e tantas outras pedras simbólicas, não cristãs, do mito universal. O textoautêntico do Wolfram do Eschenbach relativo à expressa Pedra e à Fraternidadeque a custódia é, com efeito, como segue:

Esses heróis estão animados por uma pedra.Não conhecem sua augusta e pura essência?Chama-se lápiz-electrix (Magnes).Por ela pode realizar-se toda maravilha (Magia).Ela, qual o fênix que se precipita nas chamas,renasce de suas próprias cinzas,Porque nas mesmas chamas remoça sua plumageme brilha rejuvenescida mais bela que antes.Seu poder é tal, que qualquer homem,por infeliz que em seu estado fora,se contemplar esta pedraem vez de morrer como outrosjá não conhece a idade,

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nem por sua cor, nem por seu rosto;e seja homem ou mulhergozará da sorte inefávelde contemplar a pedrapor mais de duzentos anos 1.

O primitivo texto do Wolfram do Eschenbach pode ser, pois, um novo fiode Ariadne para o esclarecimento de uma verdade ocultista que o engano monacaldo medievo pôde desnaturalizar até transformar a pedra iniciática em copo sagrado,com o Sangue de Jesus. Petra, Kiffa e Petroma era, segundo Blavatsky (Ísis, T. II,pág. 404), o duplo jogo de pranchas usado pelo hierofante nas iniciações durante arepresentação do Mistério final. Como indica oportunamente o mestre Wilder, nospaíses orientais, Pedro, Petra ou Pedra era o próprio hierofante ou o intérprete emfenício, e daqui a famosa frase evangélica de "você é Pedro e sobre esta pedraedificarei minha Igreja", que é o texto invocado sempre pelo poder papal comojustificante de sua espiritual soberania, coisa admiravelmente refutada por ditomestre em sua "Introdução aos Mistérios báquicos e eleusinos". Bunsen, em seu"Lugar do Egito na História Universal" (vol. V, pág. 90), comenta a sua vez ainscrição encontrada no sarcófago de uma grande rainha da 11ª dinastia (2250 anosantes do J. C.) e que só é transcrição do capítulo XVII do Livro dos Mortos (4500antes do J.C.), Interpretando hieróglifos do Peter, Patar, revelação, iniciação, etc.,nos que tais palavras de Mistério eram reproduzidas e cuja verdadeira interpretaçãoestá tão longe do Graal sabido, como o está o céu da terra.

Se Wagner tivesse seguido a genuína interpretação do Graal "como pedradruídica e não como cálice pseudo-cristão, dada por Wolfram de Eschenbach, oresultado teria sido muito diferente, porque teríamos tido com o Parsifal umsimbolismo perfeito, como no Anel, em lugar de um simbolismo misturado e emcerto modo antitético de paganismo e cristianismo, coisa que lhe faz mais acessívelàs mentes vulgares cristãs, mas que lhe aparta um tanto da perfeição de conjuntoque ostenta com tantos títulos O anel do Nibelungo. Guiado o mestre, sem dúvida,pelos textos do "Mabigoni", do Chretien do Troyes - provável monge, impostor,promotor da cristianização da lenda pétrea - e mais que nada pelo Lohengrih doGónner, separou-se da verdadeira significação do Gral, que não é Graal, senãoGrallae, grallarum 2, trampolim, perna de pau, escala do Jacob, ajuda e, em uma

1 "- Um IT sobre uma Pedra, o que é o que tamanho mistério significa?, Oh! Casto clérigo -cantavam os bardos evocadores do Gaedhil ou da Galícia pré-histórica irlandesa, ao falar de suasgloriosas tradições aos clérigos cristãos que foram evangelizá-los. Sua significação sublime, mágica,quem poderá desentranhá-la e revelá-la?... JNadie senão Ele, o Eleito poderá decifrar o mistérioda Pedra e de seu IT!" Vejam-se sobre estes muito importantes extremos os capítulos VII (ARaça jina dos Tuatha do Danand), e X (O mistério dos jinas) de nosso livro De gente do outromundo.

2 Grallae, grallarum, trampolim, pernas de pau. Lignae perticae furculas habentes, quibus

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palavra, Atalho; atalho de salvação para subir ao Montsalvat místico, no que oshomens são transformados pela magia da Iniciação nos verdadeiros deuses quefossem antes; à a Shveta Dvîpa, Monte Merú, Mansão celeste do Vishnu, etc., deque nos falam os Puranas; ao Kouin-Loug-Sang ou "a grande montanha", doFohtchú, ou o Senhor-Buddha chinês; monte santo contra o que nada podem já asartes negras do rei Thevelat, o último necromante e imperador da Atlântida, verdadero Klingsor, do Gónner e de Wagner, que movesse, segundo a tradiçãooriental, a terrível guerra que precedeu ao afundamento de tamanho moderado.

É, pois, em definitiva, o Santo Graal, uma taça, uma pedra, uma escala?Impossível sabê-lo com certeza, se não recorrermos, como sempre, aosEnsinamentos Orientais. Elas, com efeito, dizem-nos que todo símbolo ocultistatem sete chaves de interpretação, tendo sido conhecidas quatro delas, pelo menos,pelo primitivo sacerdócio egípcio e pos-atlante. Uma destas chaves é, certamente, achave astronômica. Mas, há maneira de achar uma representação celeste detamanho simbolismo? Vejamo-lo.

Todo mundo conhece as verdadeiras causas que determinam os eclipses deLua e de Sol, ou melhor, de Lua e de Terra, mas ninguém, que saibamos, paroumemore até aqui nas estranhas circunstâncias ocultistas de que estes notáveisfenômenos celestes aparecem rodeados. Recordemos sumariamente estas últimas.

innituntur, qui iis incedunt, a gradiendo, unde degrau, gradulla, gralla. Inventae sunt apantomimis ad Veludos cotelês, sive Aegi-panas repraesentandos, quorum exsucci pede, ac cruranon aliter melius represaentari poterant, quam ligneis illis pedibus, ac cruribus grallatorumGradalis: qui par gradus fit, UT gradalis conflito. Calepinus.

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Sendo tanto a Terra como a Lua dois astros opacos, ou planetas, projetamconstantemente detrás de si no espaço dois imensos e sendos cones de sombrapura, cones determinados como é sabido, pelo feixe de raios do Sol que sejamtangentes comuns exteriores a este e ao respectivo planeta - Lua ou Terra -, tal ecomo se vê na figura. Deste modo os raios revestir que seguem a direção dastangentes comuns interiores determinam a sua vez outros dois sendos cones depenumbra. Por último, o respectivo cone de sombra pura, ao prolongar-se além desua cúspide em outro cone simétrico, determina um segundo cone de penumbradistinta.

Deste modo, quando um país determinado da Terra penetra no cone desombra pura da Lua, experimenta um eclipse total de Sol; um eclipse parcial,quando não penetra senão no cone de penumbra, e um eclipse anular de Sol, enfim,quando penetra tão somente no terceiro dos cones antes descritos.Reciprocamente, quando a Lua se inunda no cone de sombra pura da Terra, sofreum eclipse total 1 e um eclipse parcial se penetrar meramente no cone de penumbra.

Interpretando ocultistamente, entretanto, estes conhecidos fenômenos,encontramo-nos com que, para falar a verdade, os cones de sombra e de penumbrada Terra, por exemplo, longe de deslocar-se no céu com a respectiva rotação desta,mantêm-se, por dizê-lo assim, fixos, afetados só pelo outro movimento detranslação anual de nosso planeta. Acontece, pois, com eles, uma ilusão semelhantea que se produz com a sorte rotação da Terra, que faz sair e ocultar-se no horizonteao Sol e a outros astros, como se eles girassem em volto da Terra, sendo assimacontece precisamente justamente o contrário.

Resulta, por conseguinte, que nos céus, e constantemente ao lado oposto doSol, os raios de este, interceptados pela opacidade da Terra, determinam umaespécie de taça ou cálice, cujo fundo ou cavidade interna está determinada pelocone de sombra pura de nosso planeta, e suas paredes ou revestimento exterior, pordizê-lo assim, está delimitado, a sua vez, pelo cone de penumbra. A disposição,pois, destes dois cones, com a esfera terrestre em sua boca, oferece um muito claroarremedo do Cálice, os Corporais, a Hóstia e a Patena do Sacrifício Cristão daMissa, e nos expressamos assim, é obvio, para não ferir respeitáveis crençaspiedosas, quando são eles, efetivamente, os que arremedam a aqueles Cálice,Hóstia, etc., únicos dos excelsos céus. Não há senão examinar a figura para fazer-seperfeito cargo da exatidão de nosso símile. As duas clássicas taças iniciáticasindostánicas: a da Sukra ou terrestre, e a do Manti, ou lunar, têm, pois, no espaço amais perfeita e antiga de suas representações astronômicas, e seria ofensivo para aacordada intuição de nossos leitores o insistir mais sobre este ponto concreto.

Mas se tamanhos Griales Santos resultam ser assim dois verdadeiros egrandes Cálices ou Taças com sua Hóstia em cima e tudo, cuidadoso desde outraordem de considerações filosóficas, podem ser considerados como pedras

1 Em realidade, e mercê à refração dos raios revestir em nossa atmosfera, o cone de sombra purajamais alcança até a Lua e sim seu cone simétrico de penumbra anular.

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iniciáticas, e, do mesmo modo, como Monsalvates, que diria Wolfram doEschenbach. As pétreas massas respectivas da Lua e da Terra, fechando as bocas deseus cálices correspondentes, ocultam eternamente, com efeito, aos raios do Sol, omistério INICIÁTICA de suas sombras; suas sombras de tristeza, de dor, degrandezas e de atonias que de noite caracterizam. A Noite eterna que há semprenos espaços detrás de cada planeta, qual a noite misteriosa que à luz da puraverdade lapela sempre a consciência dos homens!...

Cada um de ditos cones, por sua parte, é deste modo um verdadeiro einacessível Monsalvat. Sua forma cônica de sombra pura, algo. Arredondada no daTerra pela refração atmosférica, remonta, como é sabido, para as alturas, nas queimpera a noturna sombra, e todos quantos pontos da Terra e do espaço caiamdentro de semelhante cone de sombra absoluta, têm, a bem dizer, eclipsadototalmente ao Sol, como lhe têm parcialmente eclipsado todos os do cone depenumbra. Um solo e divino ponto há, pois, detrás de nosso planeta, no qual, sefosse possível subir aos vários milhões de léguas a que se encontra de nós, veríamoso Sol eclipsado, sim, totalmente pela tela, de diâmetro aparentemente igual,constituída pela Terra. Semelhante ponto não é outro senão a cúspide do cone desombra pura. Naquela sagrada cúpula do Celeste Graal do Monte Santo dasteogonias, o Sol nos apresentaria, em resumo, eclipsado seu disco de um modopermanente pela negra tela da Terra, mas em volto desta, tal e como fugazmente aobservamos em nossos eclipses totais de Sol, surgiriam, ao modo das fantásticasasas de celeste Ave Fênix, as divinas e cardenas expansões de sua coroa. Por grandeque ser possa, pois, nossa preocupação religiosa, quem poderá encontrar custódiaalguma mais excelsa em todas as catedrais deste nosso miserável mundo?...Convenhamos, portanto, em que se ache onde se ache o Santo Graal efetivo,nenhum maior que o que por séculos de séculos luz na cúpula daquele Monte Sião,cujas etéreas vísceras estão constituídas por esse cone de sombra pura, de ondeacaso tiraram o simbolismo de seu clássico cartucho tachonado de estrelas osmagos todos da sábia Antigüidade.

E se algum dos terríveis positivistas de antigamente que ainda ficaramatrasados do movimento espiritualista atual se atrevesse a nos fazer uma de suasenganosas observações céticas relativa a que semelhantes cones de sombra ouSantos Montes não são nada real, nós lhe responderíamos, com a física na mão, quenão é assim, porque eles gozam de uma científica realidade etérea, por quanto oéter planetário que rodeia à Terra está afetado de determinada tonalidade vibratória,pela poderosa ação repulsiva da luz solar, em todo seu âmbito, salvo no cone desombra ou de penumbra do planeta respectivo. Um éter, por conseguinte, comtonalidade vibratória distinta, é, sem dúvida, um éter diferente de outro, nem maisnem menos que diferenciar-se possa no físico a água em vapor da líquida e do gelo;e não descenderemos a mais detalhe a respeito disto último, que o leitor poderá verampliado no capítulo de Pelo reino das sombras de nosso livro Para a Gnosis:Ciência e Teosofia. Além disso, nestas santas coisas relacionadas com o Graal nãose trata já de grosserias materiais, mas sim dos mais depuradas e transcendentesaprimoramentos psíquicos, até o ponto de que, acaso, pecamos de positivismo com

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o mero feito de descender a estas nossas gráficas dissertações. Quem se achedotado desse poder de primeiro Intuição e mais excelso, segundo Platão, dos trêspoderes da mente-, terá que compreendê-lo assim, sem novas explicações; que não,tachará, como sempre, nossas demonstrações de fantaseos belos.

Nos concretizando já ao ensinado por outros autores melhor documentadosque nós, diremos que Wolfram do Eschenbach, em seu Parcival e em seu Tirturel, émuito mais completo que o nebuloso e discutível Chretien do Troyes. Os muitointeressantes detalhes daquele estão tratados, com a mestria com que ele sozinhosabe fazê-lo, por nosso polígrafo Bonilla São Martín. É preciso, pois, copiar a esteúltimo autor muito por extenso. Diz assim, em sua obra As lendas de Wagner naliteratura espanhola:

"Wolfram menciona, além do Munsalvaesche (Mons Salvationis?) ASalvaterra (Salvatierra), Zazamanca (Salamanca) e Azaguz (Zaragoza) que não selêem no Chretien do Troyes. Segundo o mesmo Wolfram, "Perillo, príncipe asiáticoconvertido ao cristianismo, estabeleceu-se durante o reinado do imperadorVespasiano no N. E. da Espanha e guerreou com os pagãos da Zaragoza e Galícia,ao intento de convertê-los. Seu neto Titurel, venceu a estes povos e ganhou emGranada e outros reino, auxiliado pelos provençais, arlesianos e karlingios e fundouum suntuoso templo, a imitação do de Salomão e situado no Montsalvat ouMontsalvage, montanha que se encontra caminho da Galícia e que circunda umgrande bosque chamado Da Salvatierra, e instituindo para a guarda do santo Copoa cavalaria do Templo. Não é possível desconhecer nestes relatos - escreve Mele eFontanals - ao mesmo tempo que a influência das cruzadas... Uma lembrança darestauração da Espanha pelos príncipes cristãos, auxiliados alguma vez pelas armasfrancesas; da instalação dos Templários nos condados do Foix (1136) e deBarcelona (1144) e da peregrinação ao Santiago da Galícia.

"São tão vagos e inseguros os dados geográficos do Wolfram do Eschenbach- segue dizendo Bonilla - que não é grande a partida que deles pode tirar-se. Émuito provável que na obra de Kyot (Guiot), a quem menciona, constassem já. Detodos os modos me inclino a acreditar que seu Salvatierra e seu Montsalvatestavam, com efeito, caminho da Galícia, e que as notícias a respeito dessesmisteriosos lugares foram divulgadas por alguns dos peregrinos que voltaram doSantiago da Compostela. Não tem que esquecer-se tampouco que os templáriosforam donos na Espanha de numerosos e fortes castelos, e que, como dizSandoval, "vemos por toda a Espanha, notavelmente no caminho francês quedesde Navarra vai à Santiago, ruínas de edifícios e templos cansados que foramdestas pessoas"... Ninguém pode desconhecer hoje, depois dos trabalhos do Bediersobre a epopéia francesa, que os monastérios e lugares religiosos constituíram,durante a Idade Média, fatores que influíram poderosamente na formação epropagação das lendas. Ali se conservavam os restos do saber antigo, mas tambémse fabricavam documentos falsos

(Dos que se acham infestados nossos cartórios) e se escreviam narraçõesfantásticas, com o propósito de aumentar a importância da igreja e de avivar o zelo

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de seus favorecedores. A Abadia do Glastonbury, na Inglaterra, tem assim suaespecial representação na história fabulosa do rei Artús; a do Fescamp, naNormandía, ostenta o título de ter influenciado provavelmente na fonte legendáriacomum do Chretien do Troyes e do Wolfram do Eschenbach, no relativo aoPerseval. Acredito que alguma parte corresponde também nesta última aos clérigose histriões do Santiago da Compostela. Não me explico de outro modo as referidasalusões topográficas do Wolfram.

# # #

Com os parágrafos que antecedem, fenos aqui já frente a frente de doisimpenetráveis Mistérios ocultistas; Mistérios dos que só pode nos dar luz, como emtudo, um estudo mais puro e mais fundo da insondável Antigüidade. O que é, comefeito, o INICIÁTICA Mont-Salvat? Onde o homem rebelde e dono de si mesmopode ter a esperança de lhe encontrar algum dia, seguindo, como o jovem Parsifal,"os estranhos caminhos não conhecidos de nenhum mortal"?

O assunto é do todo superior a nossas minguadas forças; mas sim nos serápermitido o insistir nas suscitações que antecedem, a respeito daqueles capitaisextremos, para que a intuição de nossos mais privilegiados leitores possa fazer oresto.

Consignemos, além disso, que dentro da travação ocultista que pretendemosdar aos diversos tomos de nossa sonhadora Biblioteca das Maravilhas, os doisprimeiros tomos dela bem poderiam considerar-se como apêndices muito extensosa este capítulo sobre o Parsifal. No tesouro dos lagos do Somiedo, tratamos arespeito dos eclipses, "nos colocando pela terceira vez à sombra da Lua" e de seuGraal; e De gente do outro mundo, consagramo-la ao grande Mistério dos Jinas, ou poroutro nome, no humano, aos Cavalheiros do Graal, a um possível Montsalvattranscendente, que nos é hoje inabordável mercê ao Véu de Ísis, ou Véu sexualadâmico, e para que ninguém, com efeito, pudesse chamar-se a engano com aleitura deste último livro, cuidamos de consignar, no Preliminar, as seguintesconclusões, que nos é forçoso reproduzir aqui: a) Que existe a nosso lado mesmouma humanidade que nos é invisível por nossos pecados ou limitações, nascidas dosexo, b) Que ela possui tesouros inauditos, à maneira do tão inestimável do SantoGraal. c) Que nos é impossível, enquanto não superarmos ao sexo, como osSantos, o nos pôr nem à fala sequer com semelhante super-humanidade, da quefalou sempre, entretanto, a lenda universal, d) Que semelhantes seres são os fiéiscustódios do Graal, ou da Pedra Iniciática, quer dizer, da suprema Religión-Síntesis,que foi a primitiva da Humanidade; a Religião de Jano, ou dos jinas, das que sãocorrupções o atual jainismo e todas as religiões posteriores, religiõesrespeitabilíssimas, entretanto, porque ainda conservam lembranças daquelas maisou menos velados, entre as dobras de seus mitos respectivos, e) Que o Norte eOcidente da Europa e muito especialmente a Espanha, conservam tambémapreciados restos jinas, que, em sua cegueira positivista, ainda não conseguiram

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surpreender os arqueólogos, mas que saltam à vista de todo investigador bemintencionado, etc., etc.

Convém enfim não esquecer que, face às cruéis perseguições de que sempreforam objeto por parte de todos os Klingsor perversos, eternamente se falou, desdeque o mundo é mundo, de instituições iniciáticas, chamem-se estas Colégiossacerdotais pagãos, gimnósofos ou jinas solitários do Ásia Central, lohanes,samanos, ascetas egípcios, pitagóricos antigos, rosa-cruzes medievais, templários,maçons primitivos e demais Fraternidades, mais ou menos conhecidas, cuja só listaocuparia dúzias de páginas. Se, pois, como diz a Professora, a existência da moedafalsa pressupõe à legítima, embora considerássemos -muito longe do que está emnosso ânimo- como absolutamente falsas e mendazes semelhantes instituições àsque, mais ou menos, pertenceram os homens mais gloriosos da História, sempreficaria em pé a certeza de que, ou elas foram muito gloriosos ao modo da do Graal,ou, ao menos, refletiam e parodiavam elas outra Instituição mais alta, velada aoprofano absolutamente e com todas as características supremas que ao Montsalvatatribui o Parsifal. Dentro da rigorosa e admirável ordem e lei de seriação que regeao mundo, é natural que a uma Igreja paciente e a outra Igreja militante, diremos,por valemos do formoso símile cristão, corresponda uma Igreja triunfante: a dosIrmãos que remontaram já pelo áspero atalho da Salvação - per áspera ad astra, quediz o lema latino-, verdadeiros Filhos de Deus no mais belo sentido místico, eIrmãos maiores da Raça, quem, ocultos a nossos olhares profanadores, velam,entretanto, por nós, sem mesclar-se em nosso Karma ou seja,sem diminuir no maismínimo nossa liberdade e nossa responsabilidade... A mesma ordem natural quenos deu a Santa tutela dos pais, proporciona-nos também essa outra tutela e guiadaqueles, ínterim em um e outro caso não possamos valemos por nós mesmos, queé o ideal supremo de todas as deliberações redentoras do progresso moral,intelectual e físico. Por isso, do mesmo modo que já vimos ao nos ocupar dorecôndito do Bierzo, aos templários de Ponferrada proteger, com suas armaduras ealvoradas capas de Cavalheiros do Graal, a todo peregrino caminho da Compostelaespanhola onde jaz o cadáver do apóstolo Santiago - o rebelde apóstolo Prisciliano,ou melhor, segundo outros - nos veremos cada um de nós, se meditarmos sobrecertos feitos estranhos de nossa vida, protegidos de igual modo por aquelesefetivos, embora invisíveis Cavalheiros jinas do Graal, Lohengrins de nossas dores,Isoldas de nossos desejos, Gurnemanz protetores que guiam como nossos Mestresprimeiros e vacilantes passos pelo doloroso atalho de nossa liberação...

Ao chegar, pois, a este terreno de sublimidades inefáveis, por força tem querenunciar-se a toda descrição e a toda pecador prosa. Só a poesia mística podecantar e, com efeito, cantou desde que o mundo é mundo, esse "Imortal Seguro",do maravilhoso Frei Luis de Leão em sua Ode à Ascensão do Senhor, ou seja, doEspírito!

Porque, a bem dizer, ante uma ciência verdadeiramente mística, como a quetem que vir amanhã, o Montsalvat pode estar acaso na Espanha, região onde jazemsepultados tantas lembranças ocultistas e onde tão grande Centro de mágicas

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influências boas e más se diz que existe; poderá ser ele o monte Parnaso, o monteMorria, o monte Atlas, o monte Merú, o monte Sião, o Santo Monte, enfim, ao quese referem real ou simbolicamente todos os cantos religiosos do planeta; mas nãocabe dúvida de que há, qual demonstramos antes, um verdadeiro Montsalvatcientífico, indiscutível, real ao par que místico, para quantos sabem compreender assublimidades de uma ciência artística; um Monte que não é, como vimos, senão ocone de sombra da Terra; cone cujo interior eternamente se desliza, por sobre asuperfície terrestre envolvendo-a no manto de mistério da negra noite; cone queproduz os eclipses de Lua; cone que foi o simbólico cartucho semeado de estrelas,ornamento de tudo clássico astrólogo; cone, enfim, que não é mais que uma astral eefetiva montanha celeste, desde cujas ladeiras se vê eternamente um dia semeclipses, e cuja cúpula, convocada sempre entre as duas órbitas da Terra e a Lua,luz em um céu divinamente negro que não empana o mais mínimo o fulgor dasestrelas, nem a Sacra Custódia de um Sol eternamente eclipsado pela Terra (aHestia, Hóstia ou Vista mítica), astro opaco este, por sua massa como por seuspecados, que se alcançar naquele ponto matemático da cúspide a velar o lhe rutilemdisco do Sol, não alcança, não, a ocultar ali as ultra luminosas e elétricas expansõesaladas de seu imortal coroa... Cego moral será, sem dúvida, quem não alcance acompreender em inefável transporte místico-astronômico ao que já nos autoriza aciência detrás estudos como os de Teisserenc de Bort e de Wegener, quesemelhante realidade ultra fantástica, negra em seu corpo redondo eclipsado;branca muito puro em suas enormes asas, não é outra que o Cisne Sagrado; oHamsa milagrosa; o Ave Fênix e do Paraíso; o Íbis imortal; a Pomba, enfim, domaravilhoso, Pomba que, por si mesmo, voará sempre redentora e luminosa,cobrindo a pobre Humanidade atrás de suas lutas fratricidas.

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ÍNDICE

Dedicatória 7Prólogo, por D. Adolfo Bonilla e São Martín 9

CAPÍTULO IREALIDADES ANTIGAS E IDEAIS MODERNOSOs Mistérios iniciáticos e a obra wagneriana - Existiram realmente aquelas

instituições de Magia? - Postulado necessário - O cenário wagneriano em Bayreuth- Os primeiros festivais - Paul Dukas, Borrell e outros visitantes do novíssimoTemplo Musical - Paralelo inevitável - O público real e o público ideal sonhadopelo Mestre - O Teatro Modelo e o insalubre ambiente teatral de nossa época - Oprograma da revolução wagneriana - Apoteose integral da Arte - A máxima forçasugestiva - Como acalmar previamente a Besta humana - Adivinhações do Bulwer-Lytton - Os seres invisíveis do mito wagneriano - Transcendência social em todotempo das representações do Mistério - O que neles fora a música - O leitmotiv navida 15

CAPÍTULO IIA MAGIA E OS MISTÉRIOS INICIÁTICOSO que poderiam ser os Mistérios Antigos? - Seus ensinamentos noturnos -

Doutrina do Evangelho - As orgias pitagóricas e os fatos maravilhosos - Lenormante os Mistérios da Magia Caldáica - Como o homem cria a imagem da Divindadeque nele pulsa - Doutrinas de Jâmblico, de Apolônio, de Batista Leva e outros -Como morreram Sócrates, Numa e Juliano - Plínio e os Druidas - Ensinamentos deHeródoto e de Blavatsky - Como e por que se fez secreta a Religião Primitiva -Gnósticos e filaleteos de todos os tempos - Os bardos - O luminário Iniciático daGrécia e Roma - Glórias perdidas da Idade Média - O Drama teológico e os AutosSacramentais - Tempos modernos - Intuições de Gluck e de Weber 34

CAPÍTULO IIIA MÚSICA, COMO LINGUAGEM INICIÁTICA.O problema da linguagem nos Mistérios - Os quatro portais da Iniciação e a

linguagem matemática da Aritmética, Geometria, Astronomia e Música - O passadomusical e o hoje - P. Cesari e sua História da Música Antiga - A Música e osescritores clássicos - As oito classes de instrumentos sonoros da China - O scié das50 cordas, o lo, o ken, a sauringa, a vina ou ravanas-tron, o djian, o ometri, etc., etc.Instrumental dos egípcios, hebreus e gregos - Os modos ou tons clássicos e a lira -Música para Iniciados? - A fábula grega da Harmonia - Etimologias da palavramúsica - As danças primitivas - O poder hipnótico musical - Medicina das paixões econsolo de tristes - As obras do Cerone e de Llorente - A Harmonia das Esferas -

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A Magia e a força do som - A lenda do Kung-tzeu - O leit-motiv wagneriano, comoalma de todas suas obras - O moderno papel da orquestra - As letras dospergaminhos hebreus são notas musicais - O devanagari ou sânscrito, língua dosdeuses - As Magias tântrica e mântrica - A antiga Harmonia musical da prosódiarítmica - A complexidade da métrica latina - As palavras e a musicalidade dosperíodos - Ensinamentos da Física - A música gráfica - A fotomúsica 51

CAPÍTULO IVOS PRECURSORES DE WAGNERA música dos séculos XV e XVI - Morales, Victória, Ramos de Pareja,

Zarlino, Palestrina, etc., etc - Os grandes organistas e clavecinistas - Asespecializações do século XVIII - A Academia Bardi - Os dois formidáveisinimigos daquela música - O Palácio do Sol - Vaidades pseudo-musicais - A escolarevolucionária hamburguesa - A revolução de Gluck, a Arte grega e a Academiaflorentina - A música milésia e a música como servidora da poesia - Sebastian Bach,Haendel, Haydn, Cherubini e Solmbert - Mozart, soberano - A revoluçãobeethoveniana e wagneriana - Carlos Maria Weber - Os sucessores de Wagner -Chopin e Schumann - Os acontecimentos históricos e a obra dos gênios - Onacionalismo na música 75

Capítulo VBeethovenBeethoven-Laocoonte - Beethoven, taumaturgo - Beethoven, mártir - O

calvário dos gênios - Os retratos do Mestre - Ironias do Destino cruel - Beethoven,Hornero e Milton - A grande madrasta - Ascendência espanhola do grande músico?- Os mestres de Beethoven - Beethoven, genuíno precursor do drama lírico -Amarguras do colosso - A Noite Espiritual de todos os místicos - O músico-filósofoao longo de sua vida - Blavatsky e Beethoven - O livre pensador e o teósoforevelado por suas próprias palavras - O testamento do colosso - A mística alegriatranscendente cantada na Nona Sinfonia - O Pai-Deus, de Beethoven - Os que nãopuderam compreender ao místico - Beethoven, herói entre os heróis - Beethovenseus biógrafos - As Doutrinas orientais e Beethoven - Beethoven, em virtude de serfilósofo, é o maior dos músicos do mundo - Escritura ogâmica do Mestre? - O reida ‘lied’ e o titã da Sinfonia juntos no mesmo cemitério - O ciclópico conteúdo daobra beethoveniana - O rebelde e o público - A revolução operada por sua música -Bach, Haydn e Mozart, como precursores do colosso - A idéia beethovenianarompendo quantos moldes querem oprimi-la - As três fases evolutivas do gênio -As resistências dos doutos - Os concertos espirituais, de Paris - Um pouco dehistoria a respeito das obras de Beethoven - Suas sinfonias, sonatas, trios, quartetose demais composições - A Nona Sinfonia - Alguns dos sucessores do Mestre -Beethoven decidindo o futuro inteiro de Wagner, desde a infância deste último 96

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Capítulo VIWagner E SUA OBRAO ambiente teatral em que nasceu o Mestre - O filólogo se mostra por trás

do dramaturgo, e o músico, enfim, atrás do filólogo - A iniciação de Wagner nassublimes obras de Beethoven - Dois efetivos teósofos - O cálice do Ideal - Oeterno trabalho do gênio - A família de Wagner - Schopenhauer e o calvário dojovem Wagner - O primeiro matrimônio de Wagner - O mestre em Paris - A lendado holandês errante - Primeiras produções wagnerianas - Seu famoso Credo artístico- O mundo das primas-donnas e dos partiquinos - Em que estado desprezível haviacaído a música nos tempos de Wagner - A Religião do Teatro - As orquestras -Wagner, republicano - Sua saída de Dresden - Como no crisol da dor se elaboramtodas as obras primas - Jó e o tema humano da Justificação - "Depois da Verdadecom ânsia ímpia..." - Matilde Wesendonk - Wagner, o incompreendido - O santoprotetor Liszt - Anos de suprema angústia - Wagner e o Rei Leopoldo da Baviera -Os maiores inimigos da obra wagneriana - Meyerbeer, Rossini, Auber e Berlioz -Paris e o fracasso de Tannhaüser - Bruckner e Strauss, como sucessores de Wagner

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CAPÍTULO VIIAS PRIMEIRAS PRODUÇÕES SIMBÓLICAS DE WAGNERA enorme cultura clássica e musical do mestre - Desde Ésquilo e Sófocles

até o Gluck e Weber - Wagner estuda Shakespeare e traduz a Odisséia - Influênciasdos contos de Hoffmann e das Mil e Uma Noites em seu juvenil cérebro - Oargumento de As Fadas - Influências de uma possível lenda nórdica de Psiquê - Aobra As Fadas, como precursora literária e musical de A Walkyria - As bodas e AProibição de Amar, como precursoras de Tannhaüser em letra e música - O dualismosexual da obra Wagneriana desde sua origem - O Rienzi, de Wagner, e seu precursorO Rienzi do Bulwer-Lytton - O argumento novelesco do Rienzi, tribuno. Os becchinida peste de Florença - A obra do discípulo de Eliphas Levy - Rienzi, como primeirogerme do Anel do Nibelungo - O Judeu Errante e O Navio Fantasma - A lenda doHolandês Errante - O divino consórcio entre a Alma Humana e seu SupremoEspírito - Erico, Senta, Daland, as Tecelãs e demais personagens-símbolos -Tannhaüser: Seu argumento, seu alcance, seu simbolismo 147

CAPÍTULO VIIILOHENGRINO Swan-ritter, ou Cavaleiro do Cisne - Elsa e o eterno tema humano da

Justificação - Luta do Bem com o Mal, no mundo - Argumento da obra - O cantodo Montsalvat - O inviolável Secreto dos segredos - Jó, e outros justos que nomundo tem havido - A eterna solução imprevista - Os Dhyanis industânicos e osLohengrin e Hélias do Ocidente - Os salvadores - Bonilla São Martín e o livro d’AGrande Conquista do Ultra-mar (o ultra-mare-vitae) - A lenda da Isomberta e seus sete

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filhos - O torneio da vida - O eterno Cisne e as teogonias - Etimologias de acordocom os nomes de Lohengrin - Conexões com o mito de Parsifal e com outrosmuitos - O poema de Wolfram de Eschenbach - Tradições americanas e escandinavas -A lenda de Psique - Lohengrin e o panteão industânico e chinês - O mundo dosArats - O mito de Lohengrin e a primitiva Religião-Sabedoria - Sobrevivênciasocidentais das tradições relativas aos salvadores e aos jinas 163

CAPÍTULO IXTRISTÃO E ISOLDAUm primitivo poema dos bardos - Os Tristões míticos - Precedentes

simbólicos desta e de outras obras de Wagner - O argumento de Tristão - OBernardino e a Sabeliña gaélicos - Os lais Isíacos - Os nomes de Amhergin, Rif eAbate, como elos pré-históricos entre a Europa, África e América - Os mil nomesocidentais de Ísis - Danças religiosas - O mítico tributo das cem donzelas -Reminiscências da grande Atlântida - A lenda de Sir Morold - Os sacrifícioshumanos na História - Os sacrifícios humanos em nossos dias - Tristão, Natris eTantris - O rei Mark e o Destino - Os Nagas, Nebos ou Dragões da Sabedoria - OKameloc e a Besta Bramadora - Arthus-Suthra - O Deus Desconhecido e semNome, dos tartéssios - Necromancia - Ísis, Branca Flor e Psique - O Desejo e aMorte - O Tristão de Wagner e A Doutrina Secreta - Tristões mediterrâneos - Aobra de Cervantes: Trabalhos de Perseu e Sigismundo 183

CAPÍTULO XPRECEDENTES SIMBÓLICOS DE "O ANEL DO NIBELUNGO"Transcendental importância da Tetralogia de Wagner - Seus precedentes

orientais e atlantes - Os germens da obra, segundo o próprio autor - Ensinamentosdo Rig-Veda - Opiniões de Platão no Phédon e no Górgias - A doutrina pitagóricae os Números que o Cosmos regem – O Nada-Tudo e o Espaço Abstrato -Ensinamentos brahmânicos, persas e cabalistas - A teogonia de Hesíodo - "NoPrincípio era o Ritmo" - Errôneas traduções bíblicas - As Tríades e os FilhosDivinos - O Akasha industânico e seus mil outros nomes entre os diversos povos -A Mãe- Espaço - O Zohar e a Bíblia - Teogonias mexicanas: Xi-hu-te-cuk-tli-tlet;Huit-zili poch-tli e TeZrCa-tli-poca; o Tona-ca-te-cuh-tli e o Ome-ce-cuh-tli; aDeusa da anágua azul; o Ancião Foge-hue-teo-tli; Theo-tlauco, etc., etc - Osmúltiplos céus nahoas - Os quatro Sóis mexicanos - O Wotan escandinavowagneriano e o Wotan da América - Conexões com os mitos dos Lohengrins - OAsgard and the Gods escandinavo e seus personagens transladados ao Anel doNibelungo: Fricka, Loki, Hell, Hermond, Lifthsasir, Odin, Loci, os Ases, o Asgard, acova do Gimil, as três Norsas, Bolthara, Besla, Bór, Honir, etc., etc 227

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CAPÍTULO XIO OURO DO RENOO Pai Reno ou as Águas genesíacas - As três Ondinas primitivas e a custódia

“Pote de Ouro” - Acertos wagnerianos e enganos cabalistas - Aparição do Alberico,o nibelungo - O Amor e o Ouro - A maldição do Amor - Valor inestimável dosEddas - Outras cosmogonias concordantes com a escandinava do Ouro do Reno - AsRondas arcaicas e o argumento da obra - As quedas celeste e terrestre - O Ouro e oSol; as Águas e a Lua - Hilozoísmo - O Ouro do Reno e alguns mitos espanhóis -Riqueza, Formosura e Amor: as três filhas do Pai Reno - A Árvore da vida - ONibelhein e o Walhalla - Por ambição se perdem os deuses, como os homens -Eterna solidariedade entre os deuses, os gigantes, as ondinas e os homens - Osproblemas do Destino e a futuro Ordem Desconhecida que busca sempre a humanarebeldia - A Astúcia e a Força Bruta - As verdadeiras causas da humana Servidão -A Fraternidade Universal e a tirania do Ouro - Quanto mais fácil é fazer o grande,que fazer o pequeno! - A maldição do Ouro - Os Criadores ou Elohim - O Wotanescandinavo e o Wotan da América - Juno-Fricka e Loci-Mercúrio - Enoch eHermes na Maçonaria e na Mística - Nárada - Os Puranas - Os baralhos ou Tarôs -O Ouro dos deuses, a Copas das ondinas, a Espada dos homens e o Paus dos gigantes- A grande jogada da Vida - O tema do Aniquilamento - Deuses e homens trocam,loucos, o Amor pelo Conhecimento - O eterno Anátema - O resgate da Freya - Oprimeiro e o último na vida - A Atlântida e a Ponte do Arco-Íris - A Magia doCírculo e o problema do hiper-físico - Matemática e Espiritismo - Os nós doGordio e a marcha dos astros - Os eternos e mágicos Anéis como chaves da vida

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CAPÍTULO XIIA WALKYRIAO Fresno do mundo, a Espada do Conhecimento e a Selva da Vida - O

Homem, eterno guerreiro - Os humanos lobos e cães - Wehvalt (o da compaixão),Frohwalt (o rebelde) e Friedmundo (que o ama tudo) - O hidromel ou Soma - OsNeidingen ou filhos da inveja - A Tocha da Siglinda e a lied da Primavera - Vontadelivre e Moral consuetudinária ou de rotinas - A celeste ignomínia de procriar umcasal humano - Sem morrer, não se pode ver cara a cara aos deuses - A renúncia doCéu sem Amor - A Virgem e a Mãe - O eterno tema da Justificação - MaterDolorosa - O encanto do sonho e a renúncia do Amor - O fogo sagrado - A dorque purifica - Wotan procura um herói que, sem seu amparo divino, salve aosdeuses fazendo o que estes não podem realizar - "O filho amado de um paiinimigo", de Ésquilo - Medo, ódio e amor - A espada quebrada, em Dom Laniarotedo Lago - Sigmunda-Sita-Helena - O lar do ário – As Árvores e o Símbolo - AsUrvalas - Walkyrias-huríes - Wotan-Abraham - O terrível secreto da Vida - A

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Cidade Celeste. A eterna luta - A renúncia do Céu - O daimon grego e a Walkyria - Aqueda e a liberação segundo os ensinamentos platônicos - O mito de Sigmundo -Siglinda - Inesgotável riqueza da obra wagneriana - O fogo encantado - Outrosvários pontos

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Capítulo XIIISIEGFRIEDA caverna de Mimo e as grutas iniciáticas - Os falsos pietismos da

perversidade - A Espada quebrada - O Viajante - A forja de nossas paixões e aEspada do Conhecimento - Quem pode unicamente forjar a Nothunga? - OsMurmúrios da Selva - O canto da Ave e seu Mistério - A morte da mentira piedosahumana e a da Besta - A escravidão dos mesmos deuses -"O habitante do Umbral"- Wotan e Erda - "Desde que nasci um velho se interpõe em meu caminho" - ALança quebrada - O Siegfried humano e sua divina Brunhilda - O único everdadeiro medo do que nunca temeu - O hino da Redenção pelo Amor - OSiegfried e os Ensinamentos dos Mistérios - O olho de Wotan - A Espada vencesimbolicamente ao Ouro, à Copa e ao Paus - As forças do Mal e sua atuação nomundo - Manushyas e Pitris - Os condenados eternos - O verdadeiro simbolismode Satã-Lúcifer - Prometeu-Siegfried - As Aves mágicas - Um conto Das Mil e UmaNoites - Os Monstros das lendas - Concordâncias orientais do mito de Siegfried - Alenda espanhola de Juanillo o Urso, ou de Hércules - O divino e eterno hino aoFogo - O Fogo encantado, no livro de Dom Lanzarote do Lago, e seu Mistériotranscendente

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CAPÍTULO XIVO CREPÚSCULO DOS DEUSESO fio dos Parcos e o Tecido de Penélope - Os anais akásicos - Hagen e seus

Gibichungos - Os Esaú e Jacob nórdicos - Siegfried, como todos os rebeldes,navega sempre contra a corrente no mundo - Pacto de sangue - Os filhos de Deuse as filhas dos homens - O gole fatal do Leteo - Siegfried e a humana cegueira -Como, sem sabê-lo, envilecemos nossa Alma divina - O roubo do Anel doConhecimento - O rapto de Brunhilda - Gutruna, Apsarasa purânica - Copas venceEspadas - Idílios chineses e industânicos concordantes - Uma lembrança do príncipeEgro das mil e uma noites - Lamentos das Filhas do Reno - Asolt-Fafner eAlberico-Mimo - Lembranças de Tristão, do Conde de Partinoples e de outrosmitos - A violação do Sigilo Sagrado - Hagen-Siegfried e Remo-rómulo, com seuscorvos - "Quando o homem conheceu a linguagem das Mulheres esqueceu o dasAves" - Morte do herói - Sacrifício de Brunhilda - Precedente de tudo isto natragédia grega! - Redenção pelo Amor - O ocultismo do Anel - Como o homem

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ignora todo conselho e só pela experiência escarmenta - A sagrada Voz doInconsciente e os julgamentos intuitivos - As castas humanas - O final do Crepúsculoe os dois grandes continentes que ao nosso precederam - Wagner e o Apocalipse -Ensinamentos orientais e de Sêneca a respeito da destruição dos mundos

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CAPÍTULO XVOS MESTRES CANTORES DO NUREMBERGUma obra como milagrosa, segundo Hans Richter - A comédia musical dos

Mestres Cantores - O sapateiro-poeta - Wagner e a obra de Hoffmann - A grandesátira wagneriana - A cidade alemã ao desenhar o Renascimento - Opiniões dohistoriador Scherr - O Meistergesang e a tabulatura - Walther von Stolzing e a eternainspiração do Amor - A rotina e o povo - Vidências wagnerianas a respeito de "aletra que mata e o espírito que vivifica" - O Hans Sachs, histórico - O Hans Sachs,simbólico e mítico - Que diferença há entre um canto belo e um canto de Mestre? -Apoteose da imaginação e do sonho - O amor do Walther e o Amor transcendentee renunciador do Hans Sachs - Admiráveis intuições do mestre Borrell -Precedentes cômicos dos Mestres na tradição medieval alemã - Agridoce tragicômicoda obra do colosso 371

CAPÍTULO XVIPARSIFALOs Mistérios de Parsifal - O memorável ano de 1914 e as estréias do mesmo -

Bibliografia - O argumento da obra - Três frases wagnerianas verdadeiramentemaravilhosas - Parsi-fal - Fal-par-si - O Evangelho da idade futura - Titurel eKlingsor; Parsifal e Amfortas; Gurnemanz; Kundry - A eterna luta das duas Magias,entre as que se debate a pobre Humanidade - As três Igrejas - A Humanidade caídae a Humanidade rebelde - Kundry, a Mulher-Símbolo - O grande engano deHuston Stewart - A Mulher escrava e a Mulher livre - As duas Kundrys - Ao sexoou se transcende ou se perverte ou se obedece, enfim - Influências semíticas - Oeterno feminino - O Parsifal pagão e o cristão - "Ai daquele que vai do mundo aalguma parte!" - Mistérios dos drusos - O perigo das almas Gêmeas - A iniciaçãoegípcia - As Mulheres-Flor de Parsifal e a juventude de Krishna - Kalayoni, aterrível deusa do Desejo e da Morte, e Kundry - Indra, Rama, Varuna e as gopis eapsaras tentadoras - Sarasvatí - Nichaali - Kansha, o rei de Madura, e Klingsor -Conexões míticas do herói Parsifal com o Erico, Lohengrin, Tristão, Tannhaüser,Siegfried, etc - Jesus - Parsifal e Madalena-Kundry - Estreitos cretinismos de algunscomentaristas - Wagner, teósofo; Wagner, cristão, e Wagner, buddhista - Umalembrança teosófica oportuno - A iniciação de Parsifal – A Taça Sagrada - Aalegoria de Amfortas - Os libertadores - Sempre o problema do sexo -Schopenhauer e a doutrina do Nirvana - Antropocentrismo psíquico - Pessimismo

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e otimismo - A renúncia - O elemento cristão no Parsifal - O elemento pagão - AGupta Vidya oriental no Parsifal - A Lança mítica - Um Amfortas e um Parsifal doOriente (Kansha e Krishna) - O raizame espanhol do Montsalvat - O mito emoutros países - O Graal, pedra iniciática - O Graal e o mágico IT - O Montsalvatmístico - O Graal e o Montsalvat astronômico - Hestia, Hóstia, Vesta - A Pombado Graal e a Ave-Fénix da Imortalidade.

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II était une foisUn jardín, et j'y vis madame Rosemonde;L'air était plein d'oiseaux les plus charmants du monde.Quelle ombre dans les bois!

II était une foisUne source, et j'y vins boire avec Rosemonde;Des naiades passaient et je voyais dans l'ombreDes perles á leurs doigts.

II était une foisUn baiser qu'en tremblant je pris a Rosemonde.—Tiens, regarde, il sont deux, dit une nynphe blonde.Non, dit autre, il son trois...,