Volume VII

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO) CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE PRIMEIRA VERSÃO ANO II, Nº97 - MAIO - PORTO VELHO, 2003 VOLUME VII ISSN 1517-5421 EDITOR NILSON SANTOS CONSELHO EDITORIAL ALBERTO LINS CALDAS - História ARNEIDE CEMIN - Antropologia ARTUR MORETTI - Física CELSO FERRAREZI - Letras FABÍOLA LINS CALDAS - História JOSÉ JANUÁRIO DO AMARAL – Geografia MARIA CELESTE SAID MARQUES - Educação MARIO COZZUOL - Biologia MIGUEL NENEVÉ - Letras VALDEMIR MIOTELLO – Filosofia Os textos de até 5 laudas, tamanho de folha A4, fonte Times New Roman 11, espaço 1.5, formatados em “Word for Windows” deverão ser encaminhados para e-mail: [email protected] CAIXA POSTAL 775 CEP: 78.900-970 PORTO VELHO-RO TIRAGEM 200 EXEMPLARES EDITORA UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA ISSN 1517-5421 lathé biosa 97 EDUCAR PARA O PENSAR E PENSAR O EDUCAR MARIA TEREZINHA CORRÊA PRIMEIRA VERSÃO

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Volume VII do Primeira Versão (Maio/Agosto de 2003)

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Page 1: Volume VII

UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO)

CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE

PRIMEIRA VERSÃO ANO II, Nº97 - MAIO - PORTO VELHO, 2003

VOLUME VII

ISSN 1517-5421

EDITOR

NILSON SANTOS

CONSELHO EDITORIAL ALBERTO LINS CALDAS - História ARNEIDE CEMIN - Antropologia

ARTUR MORETTI - Física CELSO FERRAREZI - Letras

FABÍOLA LINS CALDAS - História JOSÉ JANUÁRIO DO AMARAL – Geografia MARIA CELESTE SAID MARQUES - Educação

MARIO COZZUOL - Biologia MIGUEL NENEVÉ - Letras

VALDEMIR MIOTELLO – Filosofia

Os textos de até 5 laudas, tamanho de folha A4, fonte Times New Roman 11, espaço 1.5, formatados em “Word for Windows”

deverão ser encaminhados para e-mail:

[email protected]

CAIXA POSTAL 775 CEP: 78.900-970 PORTO VELHO-RO

TIRAGEM 200 EXEMPLARES

EDITORA UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA

ISSN 1517-5421 lathé biosa 97

EDUCAR PARA O PENSAR E PENSAR O EDUCAR

MARIA TEREZINHA CORRÊA

PRIMEIRA VERSÃO

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Maria Terezinha Corrêa Educar para o pensar e pensar o educar

Filósofa, mestra em Antropologia

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O Mito da Caverna, contado pelo filósofo grego Platão (séc. VI aC) em seu livro VII de A República, ilustra bem a necessidade do ser humano buscar o

conhecimento. É um constante sair em busca do educar.

O homem que corajosamente saiu da caverna, após livrar-se das amarras das correntes, enquanto os outros ficaram apreciando as sombras, libertou-se,

quando viu a luz e quis segui-la. Toda saída nos leva ao encontro de algo. É na busca e no encontro que adquirimos o conhecimento. Em geral, o conhecimento é

fruto do pensar.

Relembrando a explicação dada pelo filósofo grego, muitas vezes, a caverna, que é o nosso próprio corpo, nos amarra às paixões. Estas, nos acorrentam às

aparências que enganam a realidade, porque a escuridão, ou seja, a falta de conhecimento, iludem o sujeito que vira às costas para a luz, que é o Conhecimento.

Conhecimento para Platão era ter acesso ao Sumo Bem. Para conhecer é preciso entrar em intimidade com o real; é a busca da verdade, mesmo que seja, ainda,

insatisfatória. Mas, é sempre um sair de si para ir em busca de. Por isso, pensar é um bem.

Esse mito, depois de muitos séculos, foi readaptado por Agostinho de Hipona (séc. IV dC), filósofo representante da escola Patrística, na Idade Média, cujo

contexto sócio-cristão influenciou a educação e o pensar até os dias atuais, com algumas ressalvas. Acreditava-se que para alcançar o pleno conhecimento era preciso

crer, ter fé. Assim, o homem gnóstico, era aquele sujeito que tendo acesso à verdade, educava-se libertando de suas paixões. Também, para Agostinho, a verdade era

a própria Luz. E essa luz encontrava-se em Deus, criador de toda inteligência humana. O ser humano não procurava ou afastava-se dessa Luz, vivia nas trevas, que

era o mal.

Mas, o que é educar? Educare significa: extrair as sementes de dentro, desenvolver a capacidade, ter uma meta dentro de si.

Educação, portanto, é caminho, é processo, é a busca do bem querer-se e do querer bem. Sócrates praticava a maiêutica com os jovens de sua época. Desse

“parto das idéias” extraía reflexões que influenciavam, não só a vida pessoal (psicológica), mas também, o bem comum (sócio-política). Extrair, para quem provoca, é

permitir que o outro lance para fora suas “sementes”, ou, por que não? sua “seiva”.

Essa “semente” ou “seiva” podemos chamar de Logos. Logos é pensar, raciocinar, refletir. Pensar no que vê, observa, ouve, sente, experimenta. Por

conseguinte, é preciso sair de si e “estar com” o mundo, o outro, consigo, com o Ser Superior... e, assim, descobrir-se. Ao descobrir-se, o pensar vai educando o

sujeito.

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O objetivo da Educação é o amadurecimento humano. Amadurecimento este, que acontece de modo qualitativo no campo moral, tanto da dimensão

psicológica quanto ontológica. O educando é único e sempre o mesmo. Contudo, diversos são os pontos de vista segundo os quais se pode considerar o

amadurecimento.

A educação é um processo específico. Não se confunde com os outros processos, embora necessite deles (outros processos de crescimento) para alcançar o

seu objetivo. Os mais importantes (destes processos) são: a libertação, a personalização e a socialização.

Em todos esses processos a gente percebe que há a idéia de caminho e de um desenvolvimento progressivo: alguma coisa que se vai fazendo às apalpadelas,

ou seja, tateando, aos poucos, gradualmente. Por isso, a educação, de modo geral, é vista a longo prazo. Pois ao mesmo tempo, a gente percebe a presença de uma

meta-ideal, um amadurecimento a atingir: a liberdade, a construção da pessoa, a relação social.

Voltando ao Mito da Caverna, depois que o homem saiu da caverna, ou seja, sua mente não fica presa só aos seus mesquinhos instintos, ele ao conhecer

novos caminhos passa a escolher melhor o seu bem viver.

Vamos aprofundar, então, a análise de cada um desses processos, começando pelo último deles:

Socialização - nesse processo a educação é vista partindo de um “processo de socialização metódica das novas gerações”, podendo dizer que há em

cada um de nós dois seres: Um constituído por todos aqueles estados mentais que não se relacionam a não ser conosco mesmos e com os acontecimentos

da nossa vida pessoal; um outro, composto por um sistema de idéias, sentimentos e hábitos que se expressam, não na nossa personalidade, mas no grupo

ou grupos diferentes dos quais fazemos parte. Ex: crenças religiosas, hábitos, práticas morais, tradições nacionais. Este conjunto permite educar o “ser

social”, através de dois fatores: a assimilação de pautas de conduta que permitirão uma convivência positiva (culturação); e a inserção na rede de relações

típicas da sociedade (família, escola, grupos).

A socialização, portanto, é o processo mediante o qual o indivíduo chega à maturidade do seu ser social e à integração ativa e crítica no sistema social

concreto ao qual pertence. A educação escolar deveria ser um dos meios, através do qual o educando amplia sua visão social.

Contudo, cabe aqui ressaltar que o objetivo da educação não é só a sociedade, mas a pessoa. Se não houver a colaboração do educando, não há educação,

mas apenas domesticação.

Personalização- Humanização

O processo de humanização considera a pessoa protagonista do mundo, sujeito da história. Esse processo comporta duas exigências: que a educação tenha

como fim único a plenitude humana e não apenas a “domesticação” para uma determinada sociedade; que a educação tenha por referência o ser humano de forma

integral, não esquecendo suas diversas dimensões.

Nesse processo, o crescimento psicológico consiste na atualização de potencialidades, na revelação da força ontológica, que se manifesta na

criatividade, no desenvolvimento de aprender seu próprio potencial, tornando-se pessoa, ser humano.

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Libertação

Diante da socialização do indivíduo e de sua personalização, a busca da libertação ocorre tanto na dimensão pessoal quanto na social.

Toda pessoa sofre a pressão de condicionamentos negativos durante o processo de seu amadurecimento. Em determinados momentos, esses

condicionamentos aparecem de forma inerentes à pessoa: obstáculos, temores, complexos. Outras vezes, esses condicionamentos são infundidos no indivíduo pelo

contexto social: alienação, consumismo, de forma que cria “total dependência” nas pessoas.

A educação, nesse caso, deve ser entendida como prática da liberdade, ou seja, conscientizar as pessoas e mostrar a necessidade de uma libertação; ter uma

visão crítica e reflexiva da realidade, comparando esta realidade que se vive com uma outra que é proposta como ideal.

A educação pode ser assistemática e sistemática. Mas é fundamental a figura do educador. Segundo uma palestra de Sigmar Malvezzi, sobre Os desafios da

educação na sociedade do conhecimento, a matéria-prima do educador é a condição humana, isto é:

- Ser indeterminado (incompleto, instável frente ao ambiente);

- Encontra equilíbrio na ação (agindo, cria e exerce um papel no mundo, descobre suas potenticialidades e as do mundo; descobre sua interdependência);

- Apropria-se de sua história, estabelecendo e realizando propósitos (percebe-se capaz de crescer e direcionar seu crescimento, descobre-se sujeito);

- Pode alienar-se (perde a oportunidade de se autocriar, a alienação cria uma história à revelia do indivíduo);

- Encontra razão de vida no crescimento psicológico, explorando o seu potencial e o do mundo (cede às possibilidades do mundo);

- Atua através da reflexão, do enquadramento no tempo e no espaço, da linguagem simbólica, da produção de valores, representações e significados, da economia de

pulsões, desejos, prazer e sofrimento.

Se a matéria-prima do educador é a condição humana, podemos, talvez afirmar que a matéria-prima do educar para pensar é a linguagem, instrumento

fundamental para a reflexão humana.

Instrumentos do pensar

A linguagem é um dos instrumentos básicos para introduzir a educação e conseqüentemente o pensar. Os dois papéis básicos da linguagem são: construir a

reflexão, e modelar a nossa identidade.

Para refletir, M. L. A. Aranha (1996), autora de Temas de Filosofia, diz que precisamos aprender a ler. Leitura tem um significado bastante amplo: “é efetuada

toda vez que ‘lemos’ um significado em algum acontecimento, alguma atitude, algum texto escrito, comportamento, quadro, mapa e até as gracinha de um cachorro”.

Podemos chamar isso de leitura do mundo. Para isso, é preciso saber observá-lo, utilizando todos os sentidos (visão, tato...), e assim, recolher as informações dos

mais variados tipos.

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A leitura de texto (que em latim quer dizer “tecido”), pode ser entendido como qualquer significado tecido ou articulado através de uma linguagem

determinada. Ex: quadro, filme, livro.

Toda leitura depende de nossas experiências, idade, sexo, país e época em que vivemos, classe social a que pertencemos, enfim, de nossa história de vida.

A leitura de textos verbais são os mais freqüentes na vida escolar. Os textos verbais utilizam a palavra, incluem desde os livros e as apostilas usados em sala

de aula, os artigos de jornal e de revista, os romances, os contos, as poesias, os artigos científicos até a parte falada de um filme, de uma propaganda ou programa

de televisão.

Os textos, portanto, podem ser de ficção ou de não ficção. A leitura pode ser emocional ou racional.

Enquanto a leitura emocional é subjetiva, libera as emoções e a fantasia, a leitura racional é objetiva e tem como condição estar atento a: denotação das

palavras, interpretação, crítica e problematização das mesmas. Para isso são feitos exercícios, por exemplo: fichamentos, seminários, dissertação. Surgiu, assim, o

conhecimento ou a ciência que passou a ser registrada como “teoria” ou “invenção”.

O educador deve conhecer a realidade do educando, sua cidade, região, país, continente e, daí, partir para o conhecimento chamado específico (filosófico,

científico, artístico, religioso).

A ciência antiga era contemplativa, era um “quadro preparatório” de encontro e convívio com a realidade. Na Idade Média, a vida contemplativa tornou-se um

ideal para sustentar a vida, sendo os mosteiros o lugar para alcançar tal realidade na fórmula Ora et labora, originando a palavra “laboratório”.

Arcângelo Buzzi, ao fazer uma introdução ao pensar diz: “A palavra teoria tem hoje um sentido diferente. Não significa contemplação, cheia de espanto, do

que aparece. Significa invenção de esquemas ou sistemas mediante os quais se calcula e se opera um universo de dados empíricos.” O autor ainda acrescenta que o

cientista não investiga fatos, mas teorias. Mediante teorias produz objetos. A ciência não conhece fatos, mas objetos. “O mundo da ciência se compõe de objetos.

Esses objetos não são os dados da empiria. São entes conjeturados pela razão a partir dos dados da empiria.”

No entanto, toda a ciência considerada científica, confronta-se com dimensões simbólicas, de representação que as ciências humanas tentam perceber com

mais clareza. “O discurso científico presume o que o discurso mítico jamais presumia: apossar-se do poder do evento.” Quando a ciência consegue refutar teorias

antigas, ela o faz através da autonomia humana de refletir. Assim, o ser humano, à medida que utiliza a razão como vontade de autonomia, ele prevê e providencia

sua existência.

Portanto, educar para o pensar exige, não só, do educando que se sinta numa comunidade de investigação constante, descobrindo, com isso novas

possibilidades de libertação, autoreprodução e transformação do social, mas também, do educador a busca constante do conhecimento renovado ou redescoberto

pelas novas investigações. Estas buscam sempre pensar o agir humano, ou seja, pensar o educar. Pois o diálogo com a diversidade cultural faz-se necessário para

haver uma convergência no modo de agir, de conduzir e relacionar-se com todo o universo que nos rodeia.

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Bibliografia

ARANHA, M. L. A – Temas de Filosofia. São Paulo, Moderna, 1992.

BUZZI, A. R. - Introdução ao Pensar. Petrópolis, Ed. Vozes,

MALVEZZI, S. Os Desafios da Educação na Sociedade do Conhecimento, São Paulo, Colégio Santa Maria, 2000.

PLATÃO. A República. Livro VII.

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO)

CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE

PRIMEIRA VERSÃO ANO II, Nº98 - MAIO - PORTO VELHO, 2003

VOLUME VII

ISSN 1517-5421

EDITOR

NILSON SANTOS

CONSELHO EDITORIAL ALBERTO LINS CALDAS – História - UFRO

CLODOMIR S. DE MORAIS – Sociologia - IATTERMUND ARTUR MORETTI – Física - UFRO

CELSO FERRAREZI – Letras - UFRO HEINZ DIETER HEIDEMANN – Geografia - USP JOSÉ C. SEBE BOM MEIHY – História – USP

MARIO COZZUOL – Biologia - UFRO MIGUEL NENEVÉ – Letras - UFRO

SILVIO A. S. GAMBOA – Educação - UNICAMP VALDEMIR MIOTELLO – Filosofia - UFSC

Os textos de até 5 laudas, tamanho de folha A4, fonte Times New Roman 11, espaço 1.5, formatados em “Word for Windows”

deverão ser encaminhados para e-mail:

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TIRAGEM 200 EXEMPLARES

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ISSN 1517-5421 lathé biosa 98

REFLEXÕES SOBRE HISTÓRIA, MITO E

MEMÓRIA EM UMA NARRATIVA DA REGIÃO AMAZÔNICA

Grace do Socorro Araújo de Almeida Macedo

PRIMEIRA VERSÃO

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Grace do Socorro Araújo de Almeida Macedo Reflexões sobre História, Mito e Memória em uma narrativa da região Amazônica

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Mestranda em Ciências Humanas - UFRO

É comum entendermos o conhecimento histórico como verdadeiro e inquestionável sob o ponto de vista factual. É interessante como na língua portuguesa, há

alguns anos atrás, a grafia da palavra história distinguia de antemão sua veracidade ou não: estória, conto, mito, imaginação e história, conhecimento científico,

aquilo que se pode provar. Em inglês a distinção ainda existe, temos: History (em maiúsculo se torna até mais imponente) e story ou ainda short-story, na literatura.

Tal distinção, no entendimento do que seja história, é um legado positivista e uma eleição dos documentos como a forma científica de preservação da memória: “Não

há história sem documentos” (Samaran, 1961: 12)1. Marc Bloch questiona e ressalta que para os positivistas “parecia-lhes não poder existir conhecimento autêntico

que não conduzisse, mediante demonstrações logo irrefutáveis, a certezas formuladas na forma de leis imperiosamente universais”.(Bloch, 1976: 19,20). Em nome de

uma possibilidade de encontrar a verdade e excluindo inúmeras outras, criou-se um novo mito, uma nova crença, uma pretensão: a de fazer uma história universal,

única e idolatrada como uma deusa. Contudo, essa história universal não existe, [afirma Paul Ricoeur] assim como não existem singularidades absolutas (Ricoeur,

1968:80), e acrescento a essa idéia a de que não podemos aceitar somente um tempo único e serial, pois há o tempo mítico, o tempo da memória que também

podem e devem compor o tempo da história.

Toda discussão a respeito do conhecimento histórico, sua veracidade, sua comprovação passam também pela problemática da aquisição da escrita, tanto que,

oficialmente, a História tem seu início com a instituição da escrita. Por ser considerada, entre outras coisas, um poderoso documento, a escrita sublimou-se, e tal

sublimação tem gerado uma série de crenças e fundado uma realidade única, cruel, castradora: não existe vida, nem história, nem literatura, nem ciência se não há

papel. O registro tornou-se símbolo de credibilidade, a impressão e a publicação sinônimos de certeza e realidade: documento: monumento (Le Goff, 1990: 548). A

memória passa a ser algo palpável, consumível, assim como tudo em uma sociedade fast-food. David Olson, pesquisador na área de desenvolvimento cognitivo e

cultura escrita, esclarece que (...) vivemos imersos na escrita tendemos a achar difícil imaginar que discursos extensos, especialmente os feitos no passado, possam

ser citados e preservados sem o auxílio da escrita. Mas é possível. (...) as tradições orais e o conhecimento especializado podem ser preservados e transmitidos sem

os recursos arquivísticos de que dispomos atualmente. (Olson, 1997: 114)

Há importância em compreendermos que a memorização exige estratégias. As parábolas, os contos, os mitos, os ritos, as fábulas, fazem parte desse conjunto

de estratégias, que através de símbolos e imagens, transmitem de geração em geração as idéias, a organização e a realidade de um povo, comunidade ou região, em

tempo e espaços diferentes. O interessante e surpreendente, é que as narrativas são adaptadas, ou melhor, atualizadas, fornecendo o tradicional e o atual

1 Samaran. L’histoire et ses méthodes, p. 12, ap. Jacques Le Goff. História e Memória. São Paulo. Uicamp, 1990.

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simultaneamente. Paul Zumthor esclarece que “Nossas culturas só se lembram esquecendo, mantêm-se rejeitando uma parte do que elas acumularam de experiência,

no dia-a-dia. A seleção drena assim, duplamente, o que ela criva” (Zumthor, 1997:15). Portanto, esquecer é também uma forma de memorizar, um método de

seleção e atualização do dito do vivido.

Ao selecionar documentos, o historiador, em sua escolha, age em semelhante processo do descrito acima por Zumthor, ao deixar para trás o que não é

significativo e ao eleger o que para ele é importante. Para Marc Bloch, a história não deve cair nessa armadilha de pretender restabelecer as coisas tais quais elas se

passaram. Isso não é tarefa do historiador, pois “não é ambição da história fazer reviver, mas recompor, reconstituir, isto é, compor, constituir um encadeamento

retrospectivo” (Bloch, 1976: 26). Por isso o conhecimento histórico, assim como o mito, é sempre atual; o saber histórico não é um saber do passado, mas uma

compreensão intensa e constante do presente. Nesse sentido, o mito, o encontro do ser com o sonho, com o símbolo e o imaginário nos leva a refazer nossa

realidade, a esmiúça-la para recompô-la de maneira única, criando inúmeros mundos e infinitas novas realidades. O mito é o monumento, é o documento dessa

forma de interpretação do presente.

O boto não dorme

No fundo do rio.

Seu dom é enorme,

Quem quer que o viu?

Que diga, que informe

Se lhe resistiu.

No tal dançará

Aquele doutô

Foi boto, sinhá

Foi boto, sinhô.2

Não há dúvida de que esse boto-doutô, boto-cor-de-rosa, que aparece misteriosamente nas festas, nos dançarás, tem algo a nos dizer em um tempo e lugar

míticos sobre o processo de colonização da Amazônia, sobre a sedução do novo, do diferente, sobre a idéia de sexualidade de uma região que vive uma mistura sem

fim de terra-rio. Não há como resistir a essa enorme sedução e desafio. Não há como negar a poiésis contida no mito e sua capacidade de nos remontar a outra era e

a outro saber: um saber rico, amplo e cognoscitível: o saber do espírito.

A seguir analisaremos um “caso” contado em Porto Velho, por uma senhora de 64 anos chamada Débora de Queiroz Mendes. Uma narrativa-exemplo, de

como o mito revela sentidos e constrói história. No momento da entrevista, a narradora foi motivada a contar uma história situada na sua infância ou adolescência,

2 Poesia popular

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um conto, uma história fantástica, uma lenda. Tendo pensado por alguns segundos, respondeu que, apesar de ter ouvido inúmeras histórias quando criança, não

conseguia lembrar de imediato de uma em especial.

O que teria ficado na memória dessa filha de ribeirinhos, educada em escola de classe média dirigida por religiosos alemães?

Eu vou contar u’a história pra voceis do meu pai.

Uma vez o papai disse que tava pescando, né?. Aí ele ia chegá... já ia assim pelas tanta... duas e meia, três hora da manhã. E lá tinha um porto, chamado porto... do

Leônidas. Lá que meu pai atracava o barco dele, né? Então ele disse 5 que vinha com o barco CHEEIO e foi de motô, divagá. E viu aquela coisa, parecia um

monumento, sabe, assim? Onde parava os barcos? E ele olhou, olhou...

- Mas meu Deus o que é aquilo?! – pensava que era um barranco, que lá é um barranco, daquela... Daquele barro vermelho bem alto, né? E em cima era grama, mas

uma grama que ente tinha, tem muito carneiro; e eles comem rente, né? Parece grama. É a coa mar linda!

Então ele olhou assim... Disse:

- Mas o que é aquilo?!

E aí... puquê tem carboreto: são uns faróis... Chama-se carboreto, que eles colocam carboreto... Clareia assim... mais que a luz elétrica, eu acho. Aí ele

jogou carboreto lá e olhou: ele disse que nunca viu na vida uma coisa igual. Diz que era um homem, mas era assim tipo um homem, mas era assim um

bicho, um peixe, um trem assim, né? Aí ele olhou, olhou de novo... Aí chamou o companheiro dele, ele disse:

- Não é história de pescador, minha filha, foi verdade isso, viu?

Aí ele disse que foi se aproximando e aquilo acabando, né? Ele chegou num viu mais... E depois um outro amigo dele viu; o outro viu... No rio Juruá. É fica... Juruá é

Cruzeiro do Sul. Cruzeiro do Sul é uma cidade que passa a margem di... Is... Direita do rio Juruá, né? Juruá passa a direita da cidade que... Justamente: tem o

Juruá... E tem... O Moa. E essa... Que o papai viu isso já perto do desembocado do Moa com o Juruá, sabe? O encontro das águas... O Moa é preta a água, e o

Juruá a água é... Barrenta, né? Assim c’ água de rio mesmo, né?.

Então papai ficou impressionado com aquilo, sempre ele contava aquela história, sabe? Sempre ele contava. E era assim...

- E como ele descrevia assim, assim...

- Ele disse que era assim como se fosse um homem, mar muto grande! E pra baixo era assim tipo um pexe, ele disse que era aquela coisa, aquela barba. Eu disse:

Papai o sinhô tava cuchilando!

Não tava minha filha, eu tava acordado e meu companheiro viu também

- Isso é uma história que ele viu, né? Agora tem muita história assim, sabe de pescador? Tem cada história engraçada, Grace! Eu vou te contar uma! Mas não é

coisa verdadeira, isso é coisa de pescador!

Aí ...

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Ela define: Eu vou contar u’a história para voceis do meu pai. Esse é um momento crucial na narrativa. O momento das definições de memória e

esquecimento: o espaço da criação, da seleção: de conservação de dados e lugar de tensões criadoras, segundo Paul Zumthor.

Aliado a isso, há o que Foucault chama de vontade de verdade. É o testemunho vivo do pai: o autor da história: o dono do discurso: assegura uma função

classificativa: um tal nome (no caso pai, do meu pai) permite reagrupar um certo número de textos, delimita-los, seleciona-los, opô-los a outros textos (Foucalt,

1992:45). Percebemos que esse distanciamento a coloca em um lugar confortável na narrativa: o da imparcialidade. No entanto, o que não está escrito é enriquecido

pelas gerações afora, por quem conta o “conto”, por quem vivencia o mito e o recheia pelas falas do cotidiano: nesse sentido, a história deixa de ser do pai e passa a

ter nova identidade: a de quem conta. O pai é, assim, elemento de referência temporal.

Podemos observar mais claramente isso em: Uma vez papai disse que tava pescando, né?. Há uma contraditória definição do tempo: o tempo é do pai,

ou seja, não está completamente a-histórico: tava pescando: conexão com uma atividade do cotidiano. Por outro lado é também um tempo mítico: Uma vez:

talvez Era uma vez... é a deixa para que o desejo de metáfora seja estabelecido. Há o que Bachelard chama de vontade de abandonar o curso ordinário das coisas e

se embrenhar nas asas da imaginação. Segundo ele, imaginar é ausentar-se, é lançar-se a uma vida nova (Bachelard, 1998:3). A frase propõe essa descida ao

inconsciente, ao fantástico e estabelece um tempo de inúmeras possibilidades criativas.

Aí ele ia chegá... já ia assim pelas tanta... duas e meia, três hora da manhã. Essa pretensa definição do horário só gera mais indefinição, se

estabelecemos como parâmetro o tempo do relógio, o cronos. Na verdade, não há nenhuma intenção em ser preciso, já que a frase já ia assim pelas tanta, que

antecede duas e meia, três hora da manhã, prepara o leitor para um momento no meio da madrugada. Há sim: uma vontade de dizer que era muito tarde, que a

noite e o sono tornavam o homem mais frágil, mas ao mesmo tempo mais valente, e qualquer ato neste momento seria de puro heroísmo. Já era tarde da noite, mas

a madrugada trazia consigo o aconchego do amanhecer próximo: característica de um drama mitológico fundamental, segundo Charles Ploix:

Todos os heróis são solares; todos os deuses são deuses da luz. Todos os mitos contam a mesma história: o triunfo do dia sobre a noite. E a emoção que

norteia os mitos é a emoção primitiva por excelência: o medo das trevas, a ansiedade que a aurora vem finalmente curar. Os mitos agradam os homens porque

acabam bem; os mitos acabam bem porque acabam como acaba a noite...3

E lá tinha um porto, chamado porto... do Leônidas. Lá que meu pai atracava o barco dele, né? Apesar do mítico ser a tônica da história, a todo o

momento a narradora tenta estabelecer um caráter de verdade na narrativa quando: fornece dados do cotidiano, nomeia lugares como porto do Leônidas, localiza

geograficamente o local do acontecimento do fato; a cidade, entre outras passagens. Ela tenta estabelecer constantemente um vínculo com a memória ( porto...) e

em seguida recupera as imagens: lá que meu pai atracava o barco dele, né? É o que Paul Zumthor chama de desejo latente do esquecimento: ele não anula, ele

pole, apaga, e, por isto, clarifica... (Zumthor, 1997: 6-15)

3 Ploix Apud Bachelar, A água e os sonhos, p. 160.

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A tentativa de criar um vínculo com o cotidiano, constrói uma idéia de normalidade e, por outro lado, estabelece uma certa tensão no texto, pois de alguma

forma, o inesperado há de acontecer a qualquer momento: então ele disse que vinha com o barco cheio e foi de motô, divagá... Há um movimento lento,

sinistro... Andar devagar no meio da noite, cruzando o rio... A palavra divagá remete a um estado de relaxamento, propício ao onírico, ao mítico.

Chega o momento do clímax: E viu aquela coisa, parecia um monumento, sabe, assim? Onde parava os barcos? E ele olhou, olhou... Nesse

instante o elemento mítico reaparece. É característico das narrativas míticas, a junção do cotidiano, do ordinário com o imaginário. Daí a diferença entre mitos e

lendas. As lendas são histórias estáticas, nas quais não há muito que acrescentar. O mito é puro movimento, é criação: sua atualização é constante.

O elemento onírico toma conta da narrativa: “Mas meu Deus, o que é aquilo?!”– pensava que era um barranco... barro vermelho (...); “Mas o que

é aquilo?!”; Ele disse que nunca viu na vida uma coisa igual “Era assim tipo um homem, mas era assim um bicho, um peixe. Rio, barro, homem,

natureza bruta, verde... A Amazônia é misteriosa... Local propício ao sonho. A água doce é a verdadeira água mítica (Bachelard, 1998:158) . A terra molhada, o

ventre. A matéria se funde com o próprio homem, e o ribeirinho é a mistura de tudo isso: parte homem, parte bicho. É sua própria imagem que o assusta: é uma

história verdadeira: ele olhou, olhou de novo ... como que para se certificar de que tudo aquilo era verdade, real: Aí chamou o companheiro... Alguém que

daria o suporte, o testemunho do fato.

A “aparição” não foi algo que se explicasse tão facilmente: somente Deus poderia lhe dar a resposta: Mas meu Deus o que é aquilo?. Uma outra realidade

se instala: é preciso ter outros parâmetros para compreende-la: ela aparece como insondável como um mistério (Bachelard, 1998:3). “Não é história de pescador,

minha filha, foi verdade isso, viu?” Segundo Eliade, estudioso dos mitos em sociedades primitivas, nas histórias verdadeiras trata-se do sagrado e do

sobrenatural; nas falsas, pelo contrário, de um conteúdo profano (2000:13), de forma que os exageros nas narrativas (história de pescador) são anulados e

classificados como fábulas ou contos e, esse tipo de narrativa não é considerada entre os indígenas, por exemplo, uma história sagrada, verdadeira. No decorrer

da narrativa vamos encontrar outros elementos, outras falas que vão assegurar a veracidade do fato: depois um outro amigo dele viu; o outro viu... e à medida

que o fato é transmitido oralmente, contado e recontado na comunidade (Então papai ficou impressionado com aquilo, sempre ele contava aquela história,

sabe ? Sempre ele contava..., ele se enriquece: são outros heróis que aparecem: ele reafirma a coragem do ribeirinho, e ver o tal monstro passa a ser motivo de

status para os homens do local.

Um dado importante é que o “acontecido” se deu no encontro das águas do rio Juruá e do rio Moa. Fenômeno semelhante ocorre no encontro das águas, em

Manaus: rio Negro e Solimões: Juruá possui água barrenta assim c’água de rio mesmo, né?; Moa água é “preta”; não é cor de água de rio. Para Bachelard, o

sonhador que vê passar a água evoca a origem legendária do rio, sua fonte longínqua (2000:158). O rio, a água doce, desperta um inconsciente que adormece. A

negritude do Moa, do Negro ao encontrar-se com a água barrenta do Juruá, do Solimões, suscita imediatamente todo imaginário da Amazônia: por quê não se

misturam as águas? O que há nas profundezas desses rios? Surgem as tentativas de explicação: estabelece-se o tempo mítico.

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13

No início da narrativa, Deborah afirmou que a história seria de seu pai; o local dela, apesar de viver na comunidade, é outro. Ao freqüentar uma escola,

outras formas de interpretação se estabelecem: ela cita em um trecho da entrevista que os professores explicavam que tudo aquilo não passava de lenda e que a

religião poderia dar a explicação para tudo: outro mito. Percebemos, no entanto, que ao final da narrativa ela dá seu próprio testemunho de veracidade e seriedade

do fato quando diz: Isso é uma história que ele viu, né? (...) Tem cada história engraçada, Grace! Eu vou te contar uma! Mas não é coisa verdadeira,

isso é coisa de pescador!.

É, de certa forma, comum nas falas do povo da região Amazônica, essa mistura de real e imaginário. Há sempre uma tentativa de atualização dos mitos, de

estabelecimento de um local fora do contexto onírico, mas ele retorna nas lacunas discursivas. O inconsciente acaba sendo aflorado no momento do desafio

estabelecido pela força da natureza tão presente na região, em contraste com a fragilidade do homem. Assim construímos também um conhecimento histórico, tão

verdadeiro e tão presente: “Os homens fazem a história, mas ignoram que as fazem”.4 A verdade buscada e tão rebuscada pelos historiadores pode estar dentro

de nós mesmos, monumentos vivos da própria vida.

4 Lévi-Strauss, apud. Fernand Braudel. Historie et sciences sociales: “la longue durée”. Paris, Flamarion, 1958.

Page 14: Volume VII

UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO)

CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE

PRIMEIRA VERSÃO ANO II, Nº99 - MAIO - PORTO VELHO, 2003

VOLUME VII

ISSN 1517-5421

EDITOR

NILSON SANTOS

CONSELHO EDITORIAL ALBERTO LINS CALDAS - História ARNEIDE CEMIN - Antropologia

ARTUR MORETTI - Física CELSO FERRAREZI - Letras

FABÍOLA LINS CALDAS - História JOSÉ JANUÁRIO DO AMARAL – Geografia MARIA CELESTE SAID MARQUES - Educação

MARIO COZZUOL - Biologia MIGUEL NENEVÉ - Letras

VALDEMIR MIOTELLO – Filosofia

Os textos de até 5 laudas, tamanho de folha A4, fonte Times New Roman 11, espaço 1.5, formatados em “Word for Windows”

deverão ser encaminhados para e-mail:

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CAIXA POSTAL 775 CEP: 78.900-970 PORTO VELHO-RO

TIRAGEM 200 EXEMPLARES

EDITORA UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA

ISSN 1517-5421 lathé biosa 99

O TEXTO DA LITERATURA

ALBERTO LINS CALDAS

PRIMEIRA VERSÃO

Page 15: Volume VII

15

Alberto Lins Caldas O TEXTO DA LITERATURA

Professor de Teoria da História – UFRO www.unir.br/~caldas/Alberto [email protected]

incipit: A convivência dos opostos não é a exceção mas a regra. A literatura é a justa articulação entre as múltiplas verdades e as infindáveis mentiras

convivendo no mesmo feixe vivencial, no mesmo objeto, no mesmo caso, na mesma lembrança. A identidade, a raça, a pessoa, o sim, o não são ridículas imposturas.

Real e irreal, corpo e mente, sonho e realidade: os opostos só existem enquanto opostos numa “sociedade” ainda envolvida nas suas ficções essenciais (comerciais)

como se fossem Natureza. E toda Natureza só existe enquanto sistema de crenças neuróticas, voyeristas, fetichistas, racistas, mercantis: ficções reificadas postas a

serviço de sua própria manutenção, perpetuação e tortura (a Natureza é uma ideologia no sentido marxiano do termo, por isso não pode aparecer como uma mega-

ficção). Ficções esquizóides mordendo os dedos dos pés, sonhando que nada daquilo é verdade e que a realidade não é nada daquilo, não é aquilo ali mordendo os

dedos dos pés: função exploradora: quanto mais imbecil melhor (invenção colonial).

I

1 - Quem aparece como esquizóide (clivagem selvagem nas ficções fundamentais) é o texto da literatura (ou indivíduos). Numa relação comparativa entre as

ficções estabelecidas e cristalizadas o texto da literatura se torna “incoerente”, “discordante”, “apresentando sintomas de desagregação e afastamento do real”

(tratado como “louco” tanto o escritor quanto a literatura: bom índice diferencial entre a Literatura e a literatura); se dobra sobre si mesmo num visível processo

masturbatório; vive entregue às suas próprias criações, sem olhar o mundo, sem reconhecer ninguém: o imóvel não vê o movimento.

2 - O texto da literatura é paranóico (sua regra é o desregramento). Impõe seus delírios, seus desejos, seus vícios, seus sonhos, suas manias. E se dissolve, se

dissipa nas instáveis clivagens selvagens como se estivesse numa orgia. Seu corpo é o corpo dessa orgia. Sua paranóia é outra paranóia: a que está além, depois, no

outro, no entorno: sua “forma” diz esse outro: a paranóia não é dele, texto, mas da virtualidade: o texto da literatura é hipertexto.

3 - O texto da literatura são ex-pressões vivas, em carne viva, dos conflitos, das in-articulações, da pré-ssão entre as ficções básicas alienadas e a vida com

suas inconciliáveis convivências dos opostos: os corpos estão no centro: logo eles que são as micro-ficções que não somente estão mais próximas de “mim”, mas que

são “eu-mesmo”: nessas micro-ficções se problematizam todas as questões, incertezas, fluxos das grandes ficções da virtualidade: o texto da literatura é um corpo: o

Page 16: Volume VII

16

corpo e suas fissuras: não é mais natural, não consegue mais manter uma hegemonia de gênero, de raça, de idade, de povo, de cultura: interferências ficcionais de

um outro corpo, outro texto: hipertexto.

4 - O texto da literatura é um dispositivo vibratório sempre em harmonia com o des-armônico, sempre re-produzindo a dis-sonância com apurada beleza:

somente a simetria pode dialogar e abrir a compreensão do assimétrico, do monstruoso (transparência ficcional deixando ver, por não se alienar da sua própria

condição, as ficções vivas da vida humana: essa simetria não é um existente, mas posta a existir pelo assimétrico e pelos fluxos vivos do grotesco do mundo): o

assimétrico do viver apresenta-se como simetria: a simetria da literatura apreende a falsa simetria das ficções sociais, retornando com sua assimetria fundamental.

5 - O texto da literatura é uma per-versão: é um desvio, sempre clivagem do “normal”. Seu gozo (sua ex-pressão, seu desejo, seu imaginário) não acon-tece

com o “corpo” cristalizado (nos mesmos lugares): seus deslocamentos evidenciam, expandem, apontam, des-vendam as cristalizações, os falsos desejos, os gozos que

não gozam (não os que adiam ou os que recusam, mas os que não conseguem gozar querendo: o gozo não é Natureza mas conquista ficcional). Tudo aquilo que

somente reproduz, aquilo que existe para fazer continuar, não goza.

6 - O texto da literatura (do ponto de vista do autor, da obra terminada, do algo-concluído) é a resultante de um diálogo-de-busca (singular, individual, grupal,

coletivo: ponto de chegada e ponto de partida: resumos da aventura). Um dos seus “métodos” é o de pôr em evidência (as palavras, as ações, as ficções sociais, as

concreções-indivíduo) aquilo que não consegue ser dito através das vozes-permitidas: esse além da voz.

7 - O texto da literatura acon-tece, ad-vem da fenda selvagem entre as ficções sociais naturalizadas e os fantasmas que as assombram: do perigo desse vazio

onde não há ficções protetoras, corpo, cartografias, sem os outros, sem linguagem, corre fios fantasmáticos do mais puro horror: daí ad-vem a literatura.

8 - O texto da literatura não é somente mais um “objeto cultural”, uma “expressão artística”, mas aquilo que Proust chamava de “instrumento óptico”: ele faz

ver (faz sentir, faz pensar, faz descobrir, faz fluir, faz negar, faz vivenciar: a abertura de Heidegger). Mas não faz ver qualquer espetáculo, qualquer história, qualquer

palavra e imagem. Aquilo que pode ser visto difere essencialmente do que é visto tanto na Literatura (lugar oficial de contar histórias), quanto na Literatura Engajada

e na Literatura de Massas, chegando até mesmo na Literatura Popular.

Mas tanto esse “instrumento óptico” quanto as noções cristalizadas de Literatura, Literatura de Massas, Literatura Engajada, Literatura Popular e até mesmo

de literatura esconde o caráter negativo das palavras a que nos referimos. O “instrumento óptico” é, antes de tudo, um trajeto diferencial, uma multi-articulação, uma

inflexão negativa que, se encontramos mais naquilo que denomino literatura, corta e marca todos os discursos, sejam “literários” ou não: é a tensão entre as placas

das ficções sociais cristalizadas (como Natureza, História, corpo, sociedade) e o entre-placas: é o que contesta a hegemonia. Sua aparência se dá inesperadamente em

praticamente todos os discursos, mas de uma maneira inesperada, não sabida. Na literatura ela acontece voluntariamente.

9 - O texto da literatura retira das tensões inconciliáveis (corporais, intelectuais, políticas, econômicas, existenciais) sua substância, suas estratégias, sua per-

versão e sua sub-versão na busca por aquelas palavras perdidas, aquelas interioridades não ditas, os rastros ficcionais irrealizados, aquelas vidas torturadas pela

repetição do mesmo, pelas políticas do somente o mesmo.

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17

10 - O texto da literatura não é um julgamento; ele não separa o verdadeiro do falso, o correto do errado, o negativo do positivo; seu trajeto (seu ser é

percurso) plasma os fluxos, os devires, os choques, os vazios: como/porque “tudo isso aqui” se tornou assim; julgando somente teríamos uma “escolha de lado”, não

uma dissolução do conjunto, uma compreensão de trajeto, um deslocamento; por isso a descrição, o contar história, o literário historiográfico, a literatura de classe

média, são discursividades integradas: suas funções são reforçar, agradar, articular, vender, corresponder, julgar.

11 - O texto da literatura é um mergulho no inconsciente: mas o horror desse inconsciente é de-fora, ele fere socialmente (o que se ultrapassa não é somente

o que leva para-dentro, mas o que arrasta para um além do visível: aquilo que deforma o viver); se ele angustia pessoalmente, singularmente, é porque é um horror

coletivo.

II

12 - O mimetismo é mortal. É o ambiente e não é. É o objeto e não é. É lento e violento. É tocaia. Medo. Estratégia e fome. Vingança. Técnica e tecnologia.

Tecnologia do movimento, do espaço, do tempo, das relações. Efeito óptico. Engano mortal. Instintivo e reprodutor. Ambivalente e entregue a si mesmo. Aquilo que

aparece é o entorno, mesmo havendo movimento e ações que desvendam essa “simplicidade”. O aparecer é soberano (tudo é igual mesmo sendo diferente, ou a

diferença deve se vestir do igual para sub-existir: só existe enquanto confusão entre si mesmo e o meio: essa sub-existência é o existir como aparece).

13 - As “técnicas miméticas” são quase sempre as mesmas de um tipo de texto da Literatura que se compraz na expressão de certa visibilidade reconhecível,

“existencial”, jornalística, historiográfica, etnográfica, mercadoria e “expressão da vida social”. Permite sobreviver, falar de um lugar privilegiado, exercer um discurso

igual ao ambiente e às forças fundamentais da ilusão do programa social (uma reapresentação de apaziguamento). Discurso que se torna dominante por reproduzir

não somente os discursos dominantes mas as posições dominantes da aparência enquanto ficção essencial à camuflagem das suas funções (a aparência é um artifício

da virtualidade: aparecer diferente do que é não é “natural”, mas “configuração de programa”).

14 - O texto da Literatura (não da literatura), normalmente, é um artifício de camuflagem inconsciente (por isso servir tão bem aos historicismos e

às visões etnográficas). O lugar das harmonizações, das confirmações, das simetrias, das festas, dos reforços sociais, dos gestos conciliatórios. O além da

aparência só aparece a contra-gosto, na contra-mão, com uma contra-leitura. A “busca consciente” dessa “espécie” de texto é ser uma mímica do real, daí

resvalar sempre para uma forma patética de “jornalismo”. É uma estratégia discursiva que faz desaparecer os perigos, as armadilhas, as posições, os

funcionamentos perversos, as lógicas de exploração.

III

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18

15 - O “romance” é quem inicia a literatura, é quem reúne condições para atingir os devires de um novo mundo (capitalismo): texto que articula os poderes

tradicionais da prosa e da poesia enquanto artifício de ver além do vivenciado.

16 - Sem Deus, sem Natureza, sem Sociedade, sem Homem, sem Gêneros o “romance” (o próprio “romance” não é mais um gênero) não pode criar mais um

personagem, essa figura representativa em segundo grau de outro fantasma: a pessoa. Sem essência, sem bem e sem mal (ou somente um mal absoluto), sem

passado ou futuro, sem os tradicionais afazeres do imediato o romance deve enfrentar esse outro-ser, que não se origina mais na Grécia, na Paidéia, em Jesus, na

Bíblia, muito menos nas Gramáticas, ou na visibilidade de um mundo duplamente velho. O “romance” é o lugar dessa transformação, o lugar de criação desse não-ser

em vez do ser, desse não-lugar em vez do lugar, desse não-personagem em vez do personagem. Para isso o “romance” teve de conquistar a dimensão de teatro: tudo

advirá dos devires, dos ritos de uma caça presente que jamais se realizará em caça real, pois sua dimensão será sempre o provisório inexistente da caça futura.

17 - Os vários tipos de “perdas de suporte material” exigem a reescrita do “romance”: o mundo não é mais um estar-aí a ser descrito, um estar-aí tecnológico

a atravessar o texto como uma indicação de tempo; um estar-aqui psicológico a ser descrito como uma coisa externa ou uma seqüência caótica de frases, palavras e

sinais; não pode mais haver a ilusão ontológica fundamental, aquele esquecimento básico que funda todos os discursos e todos os discursos sobre os discursos

(sabemos que nosso discurso é um discurso sobre discursos: é preciso enfrentar essa dimensão inescapável da verdade: ela não corresponde ao “existente”, mas ao

ser do existente: a verdade e o real não são brechas do ser, memória, a presença do imediato, mas construções vivas dos próprios fluxos de linguagem esquecidos ou

reificados): o além só existe pelos campos de forças e os fiapos ficcionais que escapam do viver: lugar privilegiado para vivenciar o horror.

18 - O “romance” é o carnaval da língua-gem, o enfrentamento das ambigüidades irre-conciliáveis. E mesmo ao se parecer com a Epopéia, lá no fundo, atrás

da cortina (onde sempre se esconde um palhaço que normalmente é atravessado por uma espada), há um imenso riso, uma contida gargalhada contra os

maniqueísmos, as lógicas do senhor, o pietismo, a ordem, o sentido, a simetria: feita sempre por e para todas as formas de singularidade, se enquadra muito mal no

“gênero romance” (não é à toa a dificuldade teórica para definir, compreender e analisar todos os aspectos articulados do “romance”).

19 - Portanto, a literatura conquista, com o “romance”, a dimensão dos devires populares, das línguas do povo, das reversões, brincadeiras, in-versões,

subversões do carnaval básico da linguagem em suas redes fundamentais (mas na fonte de linguagem que cria, circula, mantém e reproduz o ser o carnaval também

é o permitido, o ritualizado: o de cabeça para baixo dentro do possível): o “romance” é uma gargalhada escrita.

20 - Mesmo tendo sido, desde o começo, adestrado, polido, ordenado, o “romance” traz em sua substância a mesma “origem” do ser: virtualidade viva de

linguagem em devires. Mas esse “romance” (riso vivo, fluxos de linguagem subterrâneas aflorando camufladas em aparência), normalmente, se transforma no

Romance (uma história contada em muitas páginas ou segundo uma forma narrativa).

21 - Esses devires sempre incomodaram “as sociedades” e a “sociedade burguesa” em especial: o Romance papagueia as linguagens instituídas, as formas

com simetria gorda, imóvel, querida, desejada: mas ainda assim são formas que depois que o leitor fecha o livro se solta em perversões admiráveis – nos sonhos do

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19

leitor, nas múltiplas construções entre memória e esquecimento (a arte da memória como uma arte do esquecimento). Mas a respeitabilidade, a forma pré-

estabelecida (ou a revolução da forma como essência dessa forma) se tornou relações em torno do romance.

22 - A base carnavalesca (onde há o vislumbre da Natureza e do ficcional), sub-vertendo o existente, deixou de atuar nas longas redes do Romance. O que era

riso se tornou cristalização; o que era desarticulação se organizou como método, como técnica e tradicionalmente posto numa posição (a mesma dos discursos, dos

sujeitos, das interioridades que liam, produziam, circulavam e mantinham o Romance como um gênero: o riso foi capturado pelo discurso).

23 - A historiografia, as Ciências Naturais, as Ciências Jurídicas, o “espírito policial”, tentam conformar o “romance” às suas ordens no mundo. E o Romance se

transforma no “espelho da natureza”, o “reflexo literário da sociedade”, a “expressão do homem”, um “gênero literário”, uma “forma literária”. Mas o “romance” não é

burguês: burguês é o Romance, que se tornou burguês traindo seus devires, suas formas, seu riso essencial, sua inflexão para a singularidade e os movimentos dessa

singularidade-ao-lado.

24 - Em lugar da fala viva (pois o “romance” vem da língua e não da palavra: da incomunicabilidade, das brechas, dos inaturais), as Gramáticas; no lugar da

multiplicidade polifônica, a única voz; no lugar da aventura, o código civil; no lugar do “romance” as “análises do Romance”; no lugar das metamorfoses, os papéis

sociais travestidos de realismo; as imagens da Economia, da Política, da Sociedade e suas classes.

Page 20: Volume VII

20

UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO)

CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE

PRIMEIRA VERSÃO ANO II, Nº100 - MAIO - PORTO VELHO, 2003

VOLUME VII

ISSN 1517-5421

EDITOR

NILSON SANTOS

CONSELHO EDITORIAL ALBERTO LINS CALDAS – História - UFRO

CLODOMIR S. DE MORAIS – Sociologia - IATTERMUND ARTUR MORETTI – Física - UFRO

CELSO FERRAREZI – Letras - UFRO HEINZ DIETER HEIDEMANN – Geografia - USP JOSÉ C. SEBE BOM MEIHY – História – USP

MARIO COZZUOL – Biologia - UFRO MIGUEL NENEVÉ – Letras - UFRO

SILVIO A. S. GAMBOA – Educação - UNICAMP VALDEMIR MIOTELLO – Filosofia - UFSC

Os textos de até 5 laudas, tamanho de folha A4, fonte Times New Roman 11, espaço 1.5, formatados em “Word for Windows”

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EDITORA UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA

ISSN 1517-5421 lathé biosa 100

O MATERIAL DIDÁTICO DE FILOSOFIA PARA CRIANÇAS

NILSON SANTOS

PRIMEIRA VERSÃO

Page 21: Volume VII

Nilson Santos O Material Didático de Filosofia Para Crianças Professor de Introdução a Arte e Educação com os Povos da Floresta – UFRO [email protected]

O material didático do Programa de Filosofia para Crianças foi organizado tendo em vista que, a quase totalidade dos professores que trabalham com o

Programa em sala de aula não teve sólida formação em Filosofia; desta forma ele surge como importante ferramenta de reflexão e trabalho para o professor.

O preparo das aulas com o Programa requer condição especial, pois, demanda leitura cuidadosa das histórias dos livros textos, na tentativa de serem

identificados antecipadamente o maior número possível de idéias ou conceitos que possam estar ali contempladas, e que serão objeto de investigação por parte dos

alunos.

Feita a identificação prévia, o professor encaminha a leitura do episódio com os alunos, e relaciona as perguntas que eles irão elaborar a partir do texto lido.

Como passo seguinte deve o professor se debruçar sobre os manuais, na tarefa de identificar as idéias ou atividades correspondentes a cada pergunta elaborada,

onde estão propostos exemplos de exercícios que procuram garantir que a discussão em torno de cada pergunta deixe de ter o caráter mais subjetivo das experiências

particulares cujo resultado mais presente é o reforço do cotidiano desprovido de elementos reflexivos, e de um salto de qualidade partindo para discussão mais

reflexiva e conceitual de temas que sejam significativas a todo a Comunidade de Investigação.

Após realizar esta cuidadosa consulta aos materiais didáticos, o professor deve ficar atento às possíveis formas de intervenção na discussão que poderá surgir

do grupo, garantindo dois elementos fundamentais.

O primeiro se orienta pela capacidade de manter-se atento ao assunto que foi destacado pelos alunos, possibilitando compreender o que se discute e o que se

quer investigar, mantendo o debate dentro de certos critérios de inteligibilidade que correspondam a uma sensação de discussão crescente e abrangente onde os

exemplos dados são valorizados dentro do contexto da discussão.

Esta compreensão não se limita à tarefa descritiva e cumulativa, ou à especulação despreocupada aparentemente livre de qualquer compromisso ou interesse,

como se pudéssemos partir do pressuposto que pela pura discussão do problema, ele se revelaria a nós. A discussão filosófica deve ser criteriosa para provocar um

mergulho, que provoque a atenção de todos para as implicações e profundidade do que se reflete.

Um movimento da consciência desta natureza, que mergulha as vivências do grupo em movimentos reflexivos, acaba repondo o problema em novas bases,

resignificando. Quando temos uma experiência radical, quando ultrapassamos efetivamente o universo contingencial, não conseguimos ser mais os mesmos. A busca

de respostas, o debate, quando nos revelam faces profundas de significações, não permitem que continuemos a nos relacionar com as coisas da mesma maneira.

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22

Mudam as coisas porque antes mudamos nós, morre a relação ingênua e descompromissada da parte do sujeito, ou dos sujeitos, e desmorona a forma anterior das

coisas, revelando a criação de algo novo com multiplicidade cada vez maior e mais intensa de significados.

O segundo elemento importante durante o preparo da aula envolve a preocupação que o professor deve ter na efetiva possibilidade do debate tornar-se

conseqüente e abrangente, em busca de certas relações de totalidade, ou seja, em busca de sua compreensão mais ampla que a mera experiência particular. Revela-

se assim, a articulação com algo maior e mais complexo, que não circunscreve a reflexão simplesmente em torno do objeto de preocupação, uma vez que não pode

ser encarado de maneira parcial ou fragmentada. É exatamente neste aspecto que a Filosofia precisa distinguir-se da forma como outras áreas das Ciências Humanas

investigam, já que elas pressupõem em seu método, o isolamento e a análise compartimentalizada das suas manifestações, como se fosse possível abrir um corpo e

paralisar seu funcionamento, para compreender a vida, e isolar cada órgão do organismo vivo para compreendê-lo posteriormente na totalidade.

Estas são, portanto, preocupações que antecedem o debate e a aula em si com o Programa. Em aula os manuais têm outro caráter. Colaboram para nortear a

forma de intervenção do professor na Comunidade de Investigação. As propostas de atividades, antes de funcionarem como “livro de receitas” apontam para formas

mais adequadas de intervenção do professor no grupo. As perguntas ou os exercícios encontrados querem garantir que a discussão continue viva, e que não se perca

de vista a necessidade de buscar a compreensão de tudo em profundidade.

Ao chamar a atenção para o papel do professor, pretende-se dizer que suas intervenções são fundamentais para a qualidade do trabalho dos alunos, é dele a

responsabilidade maior pela discussão clara, organizada e criteriosa.

Pretende-se, portanto, expurgar o fantasma do expontaneísmo do grupo, onde cada um fala o que bem entende, não se preocupando com os possíveis

desdobramentos, nem com as considerações dos outros; pensar assim, acaba por desembocar na inutilidade do diálogo, pois concluir qualquer coisa da maneira mais

conveniente a cada um, se passar a ser regra desobriga qualquer um do grupo, incluindo o professor a se sentir responsável pelo desencadeamento do que se pensa e

diz.

A atuação do professor na Comunidade de Investigação, aparentemente ausente da discussão é, pelo contrário, fundamental como vigilante constante no

trabalho com Filosofia para Crianças, pois é dele a responsabilidade pedagógica não sobre o que é dito, mas fundamentalmente sobre como é dito, sobre como é

refletido, e como é compreendido o conhecimento em sala de aula.

A atenção do professor deve estar redobrada, pois compete a ele ficar atento ao comportamento do grupo no que tange as atitudes mais adequadas à

Comunidade de Investigação, pois é de sua responsabilidade a garantia de qualidade, rigor e maturidade do debate. É de suma importância que o professor esteja

atento às construções mentais dos alunos e à forma de organização dos seus argumentos. Se existe algo que não seja permitido em Filosofia, é justamente a

afirmação não fundamentada, não justificável e não compreensível. Ao se deparar com situações incomuns e intelectualmente comprometedoras, o professor tem, não

somente o direito, mas a obrigação pedagógica de garantir que o grupo seja instigado a repensar sobre suas considerações, as conseqüências e sobre as contradições

trazidas pelo grupo.

Page 23: Volume VII

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Este tipo de intervenção contudo, se orientada dentro dos critérios propostos nos materiais didáticos, mais especificamente nos manuais. Não se manifesta de

maneira coercitiva, como se anular ou coibir erros fosse a saída para que não mais surgissem, mas deve acontecer a partir dos parâmetros investigativos nos quais o

grupo está inserido. O professor não intervém para afirmar a verdade, por mais que ela esteja evidente. Se isto acontece, temos uma certeza: a evidência existe para

o professor, não para os alunos, e é para este último que se dirige o processo educacional. Portanto, quem deve ingressar no itinerário da investigação filosófica é o

aluno.

Erroneamente o sistema educacional tem depositado no professor a palavra final sobre qualquer assunto e isto é repetidamente introjetado no comportamento

do aluno, gerando certa “preguiça” mental no grupo que sempre aguarda do seu professor a palavra final. Assim, se os alunos desconhecem um dado assunto, estes

não se dispõem a investigá-lo e a pensar sobre ele, simplesmente consultam o professor, que alimentado pelos mesmos modelos, simplesmente responde, sem

necessariamente envolvê-los em um processo de busca e de descoberta, ou seja, de genuína aprendizagem.

Para que isto aconteça é salutar que o professor reflita com o grupo e reconheça no trabalho que este realiza o valor e a importância que tem a dinâmica do

grupo, despojando-se da necessidade de afirmação perante o grupo, não reservando para si as conclusões finais sobre qualquer assunto, não reproduzindo o

estereótipo daquele que concede a palavra, permitindo tímidas e esporádicas investidas dos “seus” alunos, mas evidenciando o papel reservado a si: ser aquele que é

sem precisar provar que sabe.

Desta forma a intervenção do professor deve se dar de maneira tal que provoque no grupo novos impasses, que tragam de forma interrogativa novos

problemas e desafios, que evidenciem os erros não pela sua discordância pessoal, mas pela sua possível insustentabilidade. Não conclui, nem revela o veredicto sobre

o assunto, mas antes, conduz os alunos a refletirem novamente, com elementos novos, ou informações que até então não eram reconhecidas. Devolve ao grupo a

possibilidade de, ao se deparar com os enganos, investigar para reformular.

O problema reposto ou as perguntas trazidas, pelo professor para dentro do grupo, surgem como fomento à criação e à investigação apontando para outro

caminho, que talvez ainda não se tenha trilhado.

O professor participa não para encerrar a investigação, mas para colocá-la em outro nível de profundidade, alimentando a necessidade de busca cada vez mais

criteriosa e rigorosa do grupo.

Ao pensar um exercício, uma atividade ou até mesmo um jogo, deve ter claro que existe certa “simpatia” da pedagogia por jogos e materiais didáticos como

se eles ou a mera atividade dos jogos, por sua própria natureza, garantissem que seus conteúdos fossem provocar na criança as relações e reflexões pertinentes a

eles, sem se entender que este aluno tem um vasto universo de relações e significações, e que esta situação é mediatizada. Não pensar assim é o mesmo que encarar

o aluno como uma massa perceptiva. Não se trata da negação do instrumento ou da atividade, mas há que se encarar que, a sua percepção não é individual e

imediata, ou seja, a consciência não se dá a partir da experiência do indivíduo, pois não significa pensar a experiência do sujeito isolado com objetos do mundo

isolados, mas compreender que as relações do sujeito são sempre relações entre sujeitos, portanto, sociais.

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Não há que se valorizar o saber pelo saber, a atividade pela atividade, mas a atitude de busca e de perplexidade diante do mundo e de si mesmo.

Se o professor encarar o material de apoio de Filosofia Para Crianças como receituário de perguntas e certeza de aprendizagem, estará não só inviabilizando o

Programa, mas comprometendo o caráter investigativo da Filosofia contida no programa, e destruindo qualquer possibilidade de realização da Educação. Alguém que

compreenda profundamente as pretensões da Filosofia e as necessidades do homem, sabe que o educador não é oleiro, mas garimpeiro, nem o aluno uma tábula rasa

como queria Sócrates.

O oleiro muito embora tenha a empatia com a matéria bruta que irá transformar, se relaciona com ela como se esta fosse inanimada, desprovida de

interioridade. O valor é atribuído ao momento posterior, quando molda o barro, quando plasma nele sua vontade, sua inspiração e seus valores. O vaso deixa de ser

barro, porém não é vaso, se não pelo reconhecimento do seu criador.

O professor não é senão o garimpeiro, que movimenta uma porção do fundo do rio em sua batéia, lavando-o, eliminando com movimentos circulares,

contínuos e atentos, pouco a pouco, a água mais turva, revelando os fragmentos brilhantes. Ele não cria o ouro, mas faz com que ele se revele, com que seu brilho se

manifeste, para então adicionar uma porção de mercúrio, provocando o surgimento de uma nova situação, gerando uma amálgama densa. Após a derradeira lavagem,

agora de posse do fogo, na ponta do maçarico dirigido para o fundo da batéia, faz o mercúrio evaporar, de novo de maneira atenta, submetendo seus movimentos à

reação da mistura, possibilitando ao ouro puro mostrar seu brilho mais intenso. Este não surge do garimpeiro, pois não é dele, mas provocado pela sua ação, pela sua

persistência e crença no fundo lamaçal do rio, onde algo de rico que poderia vir à tona ou à consciência.

Porém, o material didático tem outra tarefa a cumprir.

O fato de nos comprometermos com um programa que priorize o pensar, não nos garante de antemão, de maneira inexorável, a concretização do

envolvimento genuinamente filosófico. O fato de debatermos os problemas não os tornam filosóficos.

Algo se torna problema filosófico, não somente pelo seu conteúdo específico, mas pela qualidade da atitude que se tenha diante dele, pelo envolvimento

eminentemente reflexivo e crítico que desencadeie. O que nos leva, como professores, a postular a necessidade de garantirmos são somente aos nossos alunos este

espírito de busca e de inquietação da Filosofia, mas alimentarmos em nós esta maneira de encarar o mundo.

E esta deve ser a preocupação do professor na aula com o Programa de Filosofia para Crianças, e isto só é possível se este se predispuser a refletir sobre o

acontecido. Por um lado parece difícil, senão pouco provável, realizar o trabalho de análise retrospectiva, quando na maioria dos casos o professor se encontra só no

trabalho de reflexão sobre as aulas que estão sob sua responsabilidade. Assim, novamente apelamos ao manuais do programa como referência de leitura-diálogo de

espelhamento entre o que ocorreu durante a aula e o que é apresentado nos manuais.

Após a aula, onde foram abordadas determinadas idéias, é possível se reportar aos manuais e verificar dentro daquilo que está proposto, o que teria sido

discutido pelos alunos, e quais aspectos importantes poderiam ter sido esquecidos, com isto é possível um bom parâmetro para identificar se a Comunidade de

Investigação envolveu-se efetivamente na discussão filosófica, se tiveram ou não uma atitude filosoficamente consistente.

Page 25: Volume VII

25

Mas é possível ainda avançarmos um pouco mais e refletir se a intervenção do próprio professor se deu no sentido de garantir profundidade e rigor. Ao

verificarmos quais as questões propostas pelo manual ficaram sem ser respondidas ou debatidas pelos alunos, ou seja, quais foram os aspectos que passaram

descuidadamente pelo professor, que este deveria, por dever pedagógico, ter trazido ao grupo, tem-se a clara resposta da qualidade do seu trabalho. O descuido da

parte do professor, deve fazê-lo refletir sobre a sua forma de atuação e sobre as expectativas que o Programa deposita nele, como agente mais importante do

processo educacional.

É possível afirmar com toda segurança que os manuais do Programa de Filosofia para Crianças ainda reservam gratas surpresas, que estão por ser

descobertas. E elas somente se tornarão visíveis se tivermos também diante dele atitude genuinamente filosófica.

Page 26: Volume VII

26

UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO)

CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE

PRIMEIRA VERSÃO ANO II, Nº101 - JUNHO - PORTO VELHO, 2003

VOLUME VII

ISSN 1517-5421

EDITOR

NILSON SANTOS

CONSELHO EDITORIAL ALBERTO LINS CALDAS – História - UFRO

CLODOMIR S. DE MORAIS – Sociologia - IATTERMUND ARTUR MORETTI – Física - UFRO

CELSO FERRAREZI – Letras - UFRO HEINZ DIETER HEIDEMANN – Geografia - USP JOSÉ C. SEBE BOM MEIHY – História – USP

MARIO COZZUOL – Biologia - UFRO MIGUEL NENEVÉ – Letras - UFRO

SILVIO A. S. GAMBOA – Educação - UNICAMP VALDEMIR MIOTELLO – Filosofia - UFSC

Os textos de até 5 laudas, tamanho de folha A4, fonte Times New Roman 11, espaço 1.5, formatados em “Word for Windows”

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EDITORA UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA

ISSN 1517-5421 lathé biosa 101

A LENDA DA COBRA GRANDE: DISCUSSÕES SOBRE IMAGINÁRIO E REALIDADE

Grace do Socorro Araújo de Almeida Macedo

PRIMEIRA VERSÃO

Page 27: Volume VII

Grace do Socorro Araújo de Almeida Macedo A lenda da Cobra Grande: discussões sobre imaginário e realidade [email protected] Mestranda em Ciências Humanas - UNIR

Há vários caminhos a trilhar quando pensamos em estabelecer uma definição do que seja mito, pois falar de mito é embrenhar-se em diversos campos do

conhecimento e inúmeras formas de interpretação. O termo já encerra em si grandes contradições: ora entendido com “mentira”, ora como a verdade íntima

escondida atrás de um véu, o mito para muitos nega a razão e a realidade, ainda que quase sempre não haja um questionamento profundo sobre esses dois

conceitos. Há tantas definições para o termo quantas as diversas dinâmicas de compreensão do homem face ao mundo em que vive. Penso que o mito não nega a

razão, mas apodera-se dela de tal forma que a recria e a transcende suscitando, desse modo, diversas realidades em diferentes “mundos” do pensar: Moyers

compreende que “aquilo que os seres humanos têm em comum se revela nos mitos. Mitos são histórias de nossa busca da verdade, de sentido e de significação,

através dos tempos” (1988:5). Para o propósito deste artigo, pensaremos no mito enquanto uma narrativa repleta de valores e crenças, um conjunto de imagens e

símbolos que traduzem o pensamento, a história, a capacidade de criar e de gerar o novo. O mito é sempre uma incógnita, uma cortina meio transparente, uma forma

de dizer tudo revelando muito pouco; enfim, uma grande metáfora.

Nenhum mito surge do nada ou da simples vontade de existir; sua origem ou localização temporal dos fatos de que falam são questões bastante complexas.

Ao utilizarmos métodos limitados de interpretação, reduzimos o mito a definições que o apresentam como simples fantasia ou fato ilusório. Mircea Eliade, um

estudioso dos mitos e das religiões, afirma que nas sociedades em que o mito ainda está vivo, há uma distinção cuidadosa entre histórias verdadeiras e histórias falsas

(2000:13). Para os indígenas, o mito está na categoria das histórias verdadeiras, enquanto as histórias falsas são representadas por fábulas ou contos. “Em suma, nas

histórias verdadeiras trata-se do sagrado e do sobrenatural; nas falsas, pelo contrário, de um conteúdo profano (...)”5 É importante pensarmos nesta distinção ao

analisarmos os mitos mais comuns da Amazônia brasileira e caso quiséssemos eleger os mais importantes, teríamos dezenas deles surgidos da água e por ela: a água

doce, que Bachelard chama de verdadeira água mítica (1998:158) é um dos símbolos mais fortes desse imaginário, pois representa o grande ventre, a fonte da vida e

é a principal responsável pela sobrevivência e permanência do homem nesta região. É dela que brotam os mais significativos mitos. O rio revela-se fonte de

sobrevivência humana e criação, caracterizando-se como sagrado e verdadeiramente supremo na sua missão de banhar e fecundar a terra.

Outro símbolo importante é a floresta misteriosamente fechada e a sempre úmida terra. Uma umidade surgida pela invasão do rio, em época de enchente ou

das intensas chuvas, comuns na região durante boa parte do ano. O ribeirinho em um encontro de mata, terra e rio busca sua sobrevivência como criatura humana e

5 Ib.

Page 28: Volume VII

28

essa busca o torna também um criador de mitos e um contador de histórias. Elegemos para análise uma lenda indígena que mescla todos esses elementos: a história

da cobra grande ou mãe d’água..

Em uma tribo indígena da Amazônia, uma índia, grávida da Boiúna (Cobra-grande, Sucuri), deu à luz a duas crianças gêmeas que na verdade eram cobras. Um

menino, que recebeu o nome de Honorato ou Nonato, e uma menina, chamada de Maria Caninana. Para ficar livre dos filhos, a mãe jogou as duas crianças no rio. Lá no rio

eles, como cobras, se criaram. Honorato era Bom, mas sua irmã era muito perversa. Prejudicava os outros animais e também as pessoas. Eram tantas as maldades praticadas

por ela que Honorato acabou por matá-la para pôr fim às suas perversidades. Honorato, em algumas noites de luar, perdia o seu encanto e adquiria a forma humana

transformando-se em um belo rapaz, deixando as águas para levar uma vida normal na terra. Para que se quebrasse o encanto de Honorato era preciso que alguém tivesse

muita coragem para derramar leite na boca da enorme cobra, e fazer um ferimento na cabeça até sair sangue. Ninguém tinha coragem de enfrentar o enorme monstro. Até

que um dia um soldado conseguiu libertar Honorato da maldição. Ele deixou de ser cobra d'água para viver na terra com sua família.

A Cobra

Em nossa região, as serpentes tornaram-se seres sobrenaturais e formam um conjunto de imagens conflituosas: ora inspiram proteção, ajuda; ora escancaram o

medo, a angústia. Observamos pela narrativa que é exatamente esse sentimento que transparece na história de Honorato; um sentimento que é também uma crença, já

que nosso sentir expressa nossa fé, ou melhor, nossa capacidade de acreditar. Ao analisar o sistema totêmico na Austrália, Émile Durkheim observou que “os ritos mais

bárbaros ou mais extravagantes, os mitos mais estranhos traduzem alguma necessidade humana, algum aspecto da vida, quer individual, quer social”. (1989:30). Na

passagem que narra a metamorfose de Honorato, na qual ele aparece ora bicho, ora homem, percebemos uma intrigante metáfora que retrata muito bem a vida de

nosso ribeirinho: o homem-réptil; ele oscila entre viver fincado na terra úmida ou misturado, engolido e inebriado pelas correntezas dos rios. A água-terra-natureza fica

entranhada na pele, na alma, na fé desse homem. Ser cobra, ser gente são apenas passagens, símbolos de uma mesma vida.

Para Bachelard, “a serpente é um dos arquétipos mais importantes da alma humana. (...) É realmente a raiz animalizadora (...) o traço de união entre o reino

vegetal e o reino animal” (1990:202). Ela é um dos símbolos míticos mais importantes em diversas partes do mundo e há muito acompanham a trajetória da

humanidade; é interessante lembrarmo-nos de seu papel fundamental na história da criação divina, na qual foi considerada maldita por Deus entre todos os animais.

A serpente desafia, seduz, amedronta e encanta. Leva sempre o homem aos extremos de matar ou endeusar, num frenesi intenso entre o sagrado ou sobrenatural e o

profano, corriqueiro, mundano. Maria Caninana, irmã de Honorato, segundo a lenda, representa um desses extremos. É o símbolo do mal, da opressão, do medo,

enquanto Honorato a imagem do bem, do homem bom.

Podemos pensar também na serpente como um símbolo transcendente; um mediador entre dois modos de vida: o mundo das águas e das terras, o

mundo dos igapós, o mundo das profundezas das águas e da aridez dos desertos. Em meio a tantas outras, encontramos a serpente representada como

símbolo terapêutico de Esculápio, deus romano da medicina. Há também as serpentes entrelaçadas da Índia antiga; na Grécia as encontramos no bastão do

Page 29: Volume VII

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deus Hermes; representando a sexualidade, a fertilidade, o mensageiro audaz que penetra mundos subterrâneos, ou ainda nas palavras de Vitor Hugo: “A

serpente está dentro do Homem, é o intestino. Ela tenta, trai e pune.”6

É comum escutar, mesmo entre aqueles que habitam na cidade, ditados, avisos, supertições envolvendo cobras. Há uma temeridade no ar, há o

sentido da traição, do medo, da insegurança. Há ainda a sexualidade que aflora afora: “Em uma tribo indígena da Amazônia, uma índia, grávida da Boiúna

(Cobra-grande, Sucuri)...” Sem dúvida nenhuma, é muito presente e muito forte a imagem trazida e compartilhada pela serpente, o que Durkheim chama de

representações coletivas7 Essas representações, segundo ele, embora a princípio sejam grosseiras, são “progressivamente purificadas para se aproximarem

mais das coisas” (1989:523-524). Assim, a lenda que gerou mitos a partir da figura da cobra grande, já não existe mais enquanto narrativa, já deixou de ter

tanta importância; porém, a dimensão que esse mito atingiu é muito maior que a dimensão do encantamento que tornou essa cobra um ser

inimaginavelmente gigantesco.

Outro ponto importante de discussão deixado pela lenda é o velho duelo entre o bem e o mal. As crianças gêmeas, Honorato e Maria, gerados no

mesmo ventre, parecidos, mas intrigantemente diferentes no agir, são jogados no rio (o rio é o mundo, o paraíso, a terra), lá se desenvolvem em condições

semelhantes. Maria Caninana em sua maldade leva seu irmão Honorato a tomar a atitude de mata-la, afim de por um fim em sua perversidade e proteger as

pessoas: é o herói, mas também uma grande contradição. Por fim, o bem supera o mal. E não seria incoerente afirmar, que também há um conteúdo e um

ensinamento religioso em tudo isso, pois tradicionalmente, não é essa a eterna luta pregada em tantas religiões?

É o mito, enfim, uma forma de pensamento primitivo? Uma história que narra um fato ilusório? Uma grande mentira? Talvez um pouco de tudo isso,

mas não só isso. Há muito mais por trás de um mito; há vida, há realidades, há virtualidade. Não pode deixar de existir também uma verdade que se

compõe através de símbolos: Honorato: cobra e rapaz, não é nada além de nós mesmos, em nossa condição animal e em nossa transcendência. Onde há o

monstro, há também o herói. Onde há a verdade, há também o mito.

BIBLIOGRAFIA

BACHELARD, Gaston. A Terra e os Devaneios do Repouso. São Paulo, Martins Fontes, 1990. ________ A Água e os Sonhos. São Paulo, Martins Fontes, 1989. DURKHEIM, Émile. As Formas Elementares de Vida Religiosa. São Paulo, Edições Paulinas, 1989. CAMPBELL, Joseph & MOYERS, Bill. O Poder do Mito. São Paulo, Palas Athena, 2000. ELIADE, Mircea. Mito e Realidade. São Paulo, Perspectiva, 2000.

6 Victor Hugo. William Shakespeare, p. 78, ap. Gaston Bachelard. A Terra e os Devaneios do Repouso. São Paulo. Martins Fontes, 1990.

7 Op. Cit.

Page 30: Volume VII

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BABEL E OS LIVROS

Miguel Nenevé

PRIMEIRA VERSÃO

Page 31: Volume VII

Miguel Nenevé Babel e os Livros Depto. de Letras - UFRO

O narrador da história “Criador” (Babel, Revan, Rio de Janeiro, 2001) de Alberto Lins Caldas, em sua reflexão sobre a sua criação, lamenta que a Biblioteca já

tenha deixado de ter significado nobre proclamando com um sentimento de frustração que os livros não eram mais “sede de beleza e de força, haviam se tornado

pasto para vermes.” Esta angústia do personagem sugere-nos algumas reflexões sobre o livro, o seu significado e sua importância nos dias atuais. O que significa o

pasto para vermes? Não há mais alimento para o ser humano em um bom livro? A humanidade se virou para outras fontes que alimentem sua sede de saber e de

entretenimento? Ou os meios eletrônicos com os hipertextos teriam alcançado o poder de substituir o livro, de enviá-lo para sempre para bibliotecas empoeiradas? Os

computadores com toda a sua facilidade e rapidez teria declarado pena de morte ao livro? Será que o livro ainda tem motivo para continuar vivo?

Robert Coover em seu trabalho “The End of the Book” refere-se ao “fim da linha”, uma vez que o texto do computador não precisa da linha como o livro

impresso. O “fim da linha” seria então o começo do poder do livro virtual. O narrador da história de Caldas faz também alusão a este fim quando diz que “via como se

degradavam cada uma das mais nobres linhas do homem.” As linhas, nobres ou tirânicas estariam se degradando, desaparecendo porque ninguém tem interesse em

ler nada impresso? Quais seriam as conseqüências deste fim da linha?

Coover, como o narrador de “Criador”, sugere questionamentos sobre o livro, sobre o seu fim e sua finalidade. Estaria ele reduzido a “uma mera curiosidade

para ser relegado para sempre a museus vazios e empoeirados que agora chamamos de biblioteca?” O professor Sérgio Bellei, da Universidade Federal de Santa

Catarina, também discute o assunto. Em um artigo intitulado “O fim do livro ou o livro sem fim”, Bellei faz uma análise muito interessante sobre a situação do livro nos

dias de hoje. O professor sugere que os defensores dos livros eletrônicos foram demais entusiasmados e não pensaram em alguns obstáculos que este meio traz

consigo. Também sugere que os entusiastas do livro na sua forma tradicional como o único meio de circular saber, conhecimento, idéias e informações não podem

estar certos. Lembra do início da era do livro impresso, com a invenção da imprensa por Guttenberg, quando um clérigo parisiense, assustado, olhou para o livro e

depois, de sua janela, para a catedral de Notre Dame e disse: “Ceci tuera cela” ou seja “este destruirá aquilo”. O clérigo estava sugerindo que o livro destruiria a

igreja, pois iria acabar com a profissão dos pregadores uma vez que todos os mortais teriam acesso ao livro e ao conhecimento, tirando dos religiosos o privilégio de

serem os detentores do saber. A catedral de Notre Dame deixaria de ser fonte de informação, os padres e seus sermões não teriam a importância que tinham tido até

então. A profissão de copista, quase que exclusiva dos clérigos, também estaria chegando ao fim.

Esta preocupação de que “este destruirá aquilo” parece estar presente quando vemos hoje o avanço do livro eletrônico, do hipertexto, da cópia rápida, da

clonagem, enfim do uso de “scanners” e outros meios para qualquer necessidade. Livros serão apenas objetos de curiosidade? Deixarão as bibliotecas de ter utilidade?

Serão elas transformadas em museus empoeirados que ninguém terá interesse em visitar?

Page 32: Volume VII

32

Além desta preocupação, há algo mais sério, que vem sendo discutido por intelectuais. Será que a facilidade e a rapidez em pegar informações no computador

não favorece a superficialidade e a visão de um mundo em preto e branco, menos profundo e menos complexo do que realmente é? Esta facilidade não estaria

estimulando a leitura fácil de textos e do mundo em si? Um estudante que nunca leu Homero e nem mitologia grega pode em cinco minutos diante de um

computador, informar, por exemplo, quem foi Penélope, dar suas características e falar sobre sua significação e importância no mundo do mito e da literatura. Será?

Este conhecimento adquirido em cinco minutos será suficiente? Estudiosos argumentam que este fato pode ser um estímulo à leitura fácil, menos profunda que

desfavorece a reflexão e questionamentos necessários relativos ao ser humano. Alguém pode argumentar, por exemplo, que não há mais necessidade de ler um livro

de quinhentas páginas quando se têm as informações que se deseja, pelo computador, em poucos minutos. Neste caso estará desprezando toda a complexidade e

profundidade que o livro pode lhe oferecer.

Alberto Manguel, em uma palestra intitulada “A Educação de Pinóquio” proferida por ocasião do Congresso em Ciências Humanas e Sociais na Universidade de Toronto

em maio de 2002, falava justamente sobre esta questão. A sua preocupação era que o acesso fácil a textos eletrônicos pode causar o abandono por completo do livro. Este fato

poderia trazer conseqüências desagradáveis para a humanidade, tais como: a visão superficial do mundo e a falta de reflexão sobre temas complexos; a desvalorização de

questionamentos mais profundos e necessários para decisões justas; a interpretação dos fatos em “preto e branco” que pode levar a atos de racismo, terrorismo, etc. Alertava

ainda o escritor canadense que o endeusamento de meios eletrônicos por políticas de governo pode trazer resultados sociais tristes relacionados à preconceitos e a não aceitação

das diferenças e das margens. Na realidade, mais que preocupado o escritor estava revoltado com o investimento massivo que os governos vêm fazendo nos meios eletrônicos

sem investir no livro ou na valorização dele. Segundo Manguel, isso reflete o desinteresse pela leitura mais profunda e mais complexa do mundo. Para fins de consulta os meios

eletrônicos são mais eficientes, mais rápidos, armazenam grande quantidade de informação e possibilitam cruzamento de várias áreas de interesse. Mas não precisamos somente

de enciclopédias e dicionários. Precisamos também de leituras mais complexas e os livros de leitura, que são diferentes de livros de consulta, não podem ser ignorados. É sem

dúvida uma preocupação justa.

O entusiasmo exagerado pelo eletrônico poderia estar desprezando uma fonte de saber e sabor. Bellei, Coover como outros estudiosos, consideram, no

entanto, que é exagero lamentar ou vibrar com o fim do livro. Seria um equívoco pensar que todo o valor histórico do livro material, toda a sua significação para a

humanidade estaria desaparecendo para dar lugar ao virtual. Os hipertextos, como diz Coover, são produzidos no computador e são lidos ali, por um grupo específico.

Sem dúvida eles vêm ganhando importância e causando mudanças no comportamento acadêmico. O mundo dos livros, em sua forma tradicional, no entanto, não

deixará de existir por causa deles, assim como a igreja não deixou de existir por causa de Gutenberg. Os livros podem se modificar, mas não desaparecer. Poderão ser

talvez “pastos para vermes”, se vermes forem considerados todos os humanos a procura do saber e da boa leitura. Os textos eletrônicos, seriam então um

complemento a este “pasto”, não uma condenação. Precisamos com certeza estar alertas para estas modificações sem endeusar ou condenar nenhum dos dois

formatos de livros.

Bibliografia

Page 33: Volume VII

33

BELLEI, Sergio Luis. O FIM DO LIVRO OU O LIVRO SEM FIM? members.tripod.com~lfilipe.bellei, 2000.

CALDAS, Alberto Lins. BABEL. Rio, Revan, 2002.

COOVER, Robert. THE END OF THE BOOK. N. York, The N. York Times Company, 1997.

MANGUEL, Alberto. A EDUCAÇÃO DE PINÓQUIO. (Palestra não publicada), Toronto, Social Sciences and Humanities Congress, maio, 2002.

LEITURAS DE BABEL

Qual é o ingrediente que se requer para construir um novo mundo, ordem ou caos? Sunti Namjoshi

“Eu já li algo assim” é o que a gente pensa desde o conto inicial de Babel (Revan, Rio de Janeiro, 2001) até o final quando o livro se fecha. Desde os textos

que parecem apenas depoimentos até os textos bem poéticos, líricos, há sempre algo a ser lembrado como se um fosse re-escritura do outro. “Já li algo assim” o leitor

pensa por exemplo quando lê ORDOG (Gordo?) e lembra do final de Ullysses de Joyce ou até do Salamandra de Bob Dylan. Escritos sob várias formas e gêneros os

textos de Babel vão mostrando que o “algo assim” não é “bem assim” que há uma diferença, há uma bifurcação que faz o velho se renovar “para dizer o meu dito e

não do jeito dos outros” como depõe o narrador de IHWH.

Um livro sem fim? Um livro que suscita um recomeço, uma revisão? O “Livro” ideal sonhado pelo criador poderia ser este livro sem fim. Ou talvez esteja

sugerindo um livro sem finalidade pois não consegue atingir uma linguagem única em poucas palavras, mas um amontoado de palavras um ir e vir de textos e idéias

que sugerem caos? Há procuras, anseios, esperanças e desesperos, mas não há um texto ideal, uma forma ideal ou um Livro ideal. Os vermes que percorrem as

páginas vão mostrando a vida que jaz e se anuncia. Os vermes também anunciam que se não lermos eles podem se beneficiar do livro: melhor virarmos “book worms”

e lermos também. Suscita questionamentos sobre o que é literatura, o que é tecer, fiar e desfiar. Quem serão os “criadores de luz” e quem serão os vermes? É

necessário fazer esta dicotomia? Não haveria vaga-lumes que também são vermes, mas sabem ser criadores de luz? Quem está na luz? Quem está nas trevas? Seria o

centro e a periferia? Seria a marginalidade contra a centralidade? Seria o dono da luz contra o verme da escuridão? Vale a pena questionar o diferente, o estranho, o

que parece não ser “da luz.”

A valorização da superficialidade passa por não valorizar o que e diferente, o que veio da "escuridão" ou do coração das trevas. “Tudo o que é dito nas trevas”

deveria ser “ouvido na luz”. O problema é que ao se negar a luz para ouvir o que vem "das trevas", como ouvir!? Como há barreiras para o que é diferente, para

aquilo que pode iluminar. Em termos de livros, de literatura, os verdadeiros amantes são poucos, e que escrevem maravilhosamente. Há porem também os que

seguem um bando que diz "o que é bom e o que não é", e há aquele também que fica com medo do novo, do não dito, do que pode desestabilizar.

Tive uma boa primeira impressão ao ler Babel. Poderia dizer que esta impressão se deve ao fato de me fazer lembrar um narrador de Poe que vai ditando e fazendo

coisas inesperadas ou porque tem um pouco de "Bartleby" de Melville ou do Conrad pelo sujeito estranho que pode ser um "doppelganger" na embarcação, mas acho que

não foi por isso que gostei. Gostei porque é gostoso de ler, fluente e excita a curiosidade. Tem alguma coisa correndo pelas linhas que são mais que palavras.

Page 34: Volume VII

34

Babel é indiscutivelmente de grande valor literário. Pode ser lido de diversas formas. E lido por pessoas de diversas idades e níveis. O último conto, por exemplo, permite

mil leituras. Dele gostei muito da "linha do homem". A Bibliogenia, a Bibliofisiologia: quanta coisa pode suscitar isso. "Ah Humanity" como dizia Bartleby... A linha da Humanidade

ou do livro? Poderia ser a linha do livro simplesmente, o fim da linha em vários aspectos. Mas há tantas linhas, que sair da linha ou desalinhar-se pode sugerir muito. Pode levar a

várias outras linhas até chegar aos países não alinhados. Assim o verme já citado. Por isso fica gostoso de se ler e re-ler também.

Alguém poderia usar a abordagem psicanalítica para analisar alguns dos textos ou até para querer explicar a psique do autor. Há uma loucura sem método correndo pelas

linhas e saindo da linha. O verme estaria feito um “bicho da goiaba” que aparece sem ser percebido? Ou é o verme de Balke que traz doença (ou vida?) à Rosa? Distorções

bizarras, especialmente nas apresentações de exageros nas figuras humanas e no comportamento anormal, patológico de algumas personagens. Parece que há uma obsessão na

construção do Livro e o Livro não sai, buscam-se formas, estéticas, que se desesteticizam e a loucura vai como que se espalhando como uma fumaça. Alguém poderia também

usar a abordagem pós-colonial para falar da mente colonial e colonizadora do narrador (ou do autor?) que supostamente no calor dos trópicos úmidos fala em neve e música

clássica. Como não lembrar o piano perdido no Rio Madeira apresentado pelo Márcio Souza em “Mad Maria”?

Esta insistência pelo bizarro, pelo grotesco e talvez pela apresentação de uma verdade cruel deixa a leitura um pouco densa ou “carregada” como uma tarde

amazônica antes da chuva. Há momentos em que os textos parecem apontar para pedaços de humanos, para fragmentos e contrastes que podem provocar risadas

mefistofélicas, como por exemplo em “A Festa”. Poder-se-ia dizer que há um sarcasmo do jeito de Swift in “A Modest Proposal”?

Há intertextualidade presente em tudo. Até o Frankenstein parece estar por este livro. E o Poe com seus assombros parece fiar na sombra das páginas: "Será

isso e nunca mais", encontramos em um dos textos. Não sei se é bom falar em influência, mas há uma indiscutível intertextualidade e o titulo é isso também. É uma

biblioteca, talvez para lembrar a “Biblioteca de Babel” de Borges. Como não começar a rir quando se lê um conto chamado “Amigos”? Como não lembrar do

Cervantes? "O Numero" é um texto engraçado, podendo ser lido por diversas idades. Muito engraçado e ao mesmo tempo profundo se quisermos lê-lo assim.

O livro não é uma "colage", mas, pode-se dizer, um "palimpsest", um pouco de uma re-escritura de outros textos. O "Livro" no final seria isso talvez: uma

reunião de literaturas, de obras, de estilos, apontando para outra literatura. A importância de reconhecer a intertextualidade no caso de Babel é fundamental. Acredito

que não é bom para o critico ficar citando ecos de outros escritores o tempo todo, mas também não é bom cegar a estes ecos, não reconhecer a intertextualidade. E

Babel tem muitos ecos: Borges, Cervantes, Melville, Conrad, Poe, Joyce. Impossível não sentir isso. Não pensar sobre isso.

O livro contém ainda alguns problemas de revisão. Isso não diminui o valor literário, mas justamente pelo seu valor literário, de capacidade criadora e

recriadora que merece ser revisto. Espero ver a segunda edição com estas revisões.

Page 35: Volume VII

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GÊNERO E IMAGINÁRIO: EXPERIMENTAÇÃO DO AT9

Arneide Cemin, Camila Alessandra Scarabel

Maria de Fátima Batista de Souza, e Silvanio de Matia Gomes

PRIMEIRA VERSÃO

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Arneide Cemin8, Camila Alessandra Scarabel9 GÊNERO E IMAGINÁRIO: experimentação do AT9 Maria de Fátima Batista de Souza10, Silvanio de Matia Gomes11

O conceito de gênero, apesar de sua imprecisão teórica, diz respeito à construção cultural e simbólica das relações entre homens e mulheres.

No Ocidente, desde os gregos e passando pelos iluministas, o valor máximo é a razão clara, objetiva, considerada atributo masculino, em confronto com a

subjetividade tida por obscura e identificada ao feminino.

Ao mesmo tempo em que o Ocidente desvaloriza o feminino, nosso modelo cultural mediterrâneo, valoriza a família, no interior da qual a mulher tem

um papel central como mantenedora da honra familiar.

Dispomos de algumas teorias que explicam a condição de gênero no Ocidente: o marxismo, o culturalismo e o pós-estruturalismo, talvez sejam as

mais importantes. Para os marxistas, a opressão de classe tem início com a opressão da mulher no interior da família, resultante da apropriação do trabalho

da mulher pelo homem, permitindo o início da propriedade privada. De acordo com isso, o marxismo aborda a questão de gênero a partir da ótica da luta de

classes, ou seja, considerando o lugar que cada gênero ocupa no processo produtivo, como pressuposto da igualdade ou desigualdade entre os gêneros

(Engels,1984).

A corrente culturalista, cujo marco é a obra de Mead (1988), sustenta a tese de que não existem atribuições naturais fundadas biologicamente, e sim

atribuições sociais, ou seja, papéis: tarefas e valores considerados pertinentes em cada sociedade às pessoas do mesmo sexo biológico. Nesse sentido,

postula ser possível, pela via da cultura, alterar a relação de subordinação das mulheres pelos homens.

Para os estruturalistas a dualidade formada pelo par macho/fêmea é universal e, conseqüentemente, estrutural, sem ela não é possível cultura no

plano material e simbólico. A tese de Lévi-strauss (1982), sobre o modo pelo qual se dá a passagem da natureza à cultura, afirma que o fundamento da

cultura é a regra que obriga os homens a trocar as mulheres para além de um certo limite – variável – de seu grupo familiar, fato que torna as mulheres o

elo de transmutação da natureza em cultura. Nessa perspectiva, é a troca de mulheres que permite a circulação de bens e de mensagens. Interessa,

portanto, averiguar o tipo de lógica que sustenta essa dualidade, visando alterá-la, se for este o caso, a partir de uma intervenção no plano das estruturas

lógicas. Nesse ponto, o estruturalismo encontra correspondência com o culturalismo.

8Professora de Sociologia e Coordenadora do Centro de Estudos do Imaginário. CEI/UFRO 9 Acadêmica de Psicologia e bolsista do PIBIC/UFRO 10 Acadêmica de Psicologia e bolsista do PIBIC/UFRO 11 Acadêmico de Geografia e bolsista do PIBIC/UFRO

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O pós-estruturalismo questiona o postulado de universalidade da lógica binária do estruturalismo, suspeitando que ela possa resultar de uma

imposição da nossa estrutura lógica dualista à compreensão da lógica de outros povos. Consideram, que é no plano do discurso que as relações sociais são

construídas, inclusive, as relações sociais de gênero. Indagam, ao mesmo tempo, se não haveria fenômenos biológicos como fundamento da diferença entre

masculino e feminino. Desse modo, a questão de gênero é articulada ao corpo como suporte para a noção de identidade.

Os dados da pesquisa antropológica indicam que todos os grupos sociais mantêm algum tipo de classificação básica que separa as esferas do

masculino e do feminino. Embora partindo da diferença biológica, as atribuições relativas a cada sexo variam conforme nos deslocamos no tempo, no

espaço e nas situações sociais. As correntes teóricas delineadas indicam três posições presentes no debate feminista: igualdade dos gêneros, enquanto

igualdade econômica da qual decorreria a igualdade social, reconhecimento e construção da superioridade cultural/ideológica das mulheres, e igualdade

econômica social associada à diferença biológica.

Balandier (1976), ao analisar a dinâmica interna aos sistemas sociais, indica que as divisões em classes sociais, em classes de idades e em classes

sexuais são partes estruturais dos processos sociais. Desse modo, as dinâmicas sociais devem ser consideradas nessa tridimensionalidade. A partir disso o

autor indaga como a divisão dos sexos afeta o sistema social e a cultura em seu conjunto, como se exprime em cada uma delas o dualismo sexualizado e o

modo pelo qual a oposição e a complementaridade são, ao mesmo tempo, geradoras de ordem e de desordem social.

Ao considerar as narrativas das mitologias africanas, Balandier constata que a relação homem/mulher aparece nos momentos de fundação da ordem

do mundo, de constituição da pessoa e nas primeiras obras civilizadoras do homem em sociedade. Segundo o autor, isso explicita o reconhecimento do

caráter problemático, conflitual e contraditório de toda formação social, evidenciando ainda, que o dualismo sexualizado torna-se o modelo de todos os

dualismos.

O dualismo sexualizado como fundamento da ordem das coisas e do mundo humano, organiza-se em três modelos estruturais: andrógino, gêmeos

do sexo oposto e casal mítico. Além das estruturas os modelos fornecem o princípio dinâmico de cada tipo estrutural, sendo eles, respectivamente: fusão,

complementação e aliança das diferenças.

Segundo Balandier, os modelos um e dois têm perante a história uma posição de recusa, pois negam a mudança ou prefiguram uma ordem social na

qual estariam ausentes as diferenças e, portanto, a necessidade de mudanças. Nos modelos, andrógino e gêmeos do sexo oposto, subsistiria a nostalgia dos

modelos ideais ou imaginários. O terceiro modelo é o que rege efetivamente a sociedade. Entretanto, os três modelos dão origem a teorias, ideologias e a

práticas sociais codificadas.

Quanto às teorias sociais, o dado mais geral é a afirmação da inferioridade feminina. Em geral, apenas uma função, entre as muitas que a mulher

desenvolve, não é desvalorizada: a função de mãe. De resto, o que se constata, é a pequena participação social da mulher. Em geral, para o homem, a

mulher é o “outro”. Essa alteridade expressa e reforça referencias simbólicas que definem a mulher como elemento antagonista e perigoso, associada em

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geral com os aspectos dissolutos e, nesse sentido, anti-social. É o casamento que pode instaurar a positividade da presença feminina, uma vez que o

intercâmbio matrimonial socializa sua sexualidade e articula as sociedades masculina e feminina. Cabe, portanto, averiguar, no que diz respeito às relações

entre os sexos e as estruturais sociais, as situações reais nas quais homens e mulheres se inserem.

O fundamento do poder social do macho, segundo ainda Balandier, é a redução da mulher ao estado instrumental colocando-a ao serviço da

comodidade masculina. Os determinantes da instrumentalização seriam: o confinamento da mulher ao espaço doméstico; a falta de um viver feminino que

permita às mulheres as trocas de experiências e a identificação de seus interesses, a equiparação da condição feminina à condição de minorias e a

depreciação do trabalho feminino.

Desse modo, a divisão sexista se superpõe à divisão de classes e hegemoniza o universo social com os atributos designados como masculinos. O

resultado desse conjunto de representações e de práticas sociais é a condenação das mulheres a submissão e ao silêncio. Questionar o poder masculino

implicaria, segundo o autor, equacionar o velho problema da articulação entre as duas metades fundantes do social: as sociedades masculina e feminina em

um processo de conhecimento e de reconhecimento mútuos.

O ESTUDO DO IMAGINÁRIO

Os estudos acerca do imaginário não constituem uma disciplina com objeto e método unificados, trata-se de variada gama de abordagens disciplinares,

acessadas por diferentes métodos. Entretanto, o que reúne tantos interesses é o estudo das “representações” ou seja, o sentido e as configurações

simbólicas que formatam as maneiras de pensar, que, expressas por práticas sociais, instituem o homem e o seu meio.

A relação que se institui entre o homem e o mundo não é direta, e sim mediada por processos de pensamento. Entre o universo físico e o homem existe

a dimensão simbólica que institui o homem e o seu mundo. O homem não lida diretamente com as coisas e sim com os significados atribuídos às coisas pela

sua cultura. O ambiente cultural, portanto, é formador do simbolismo tanto ao nível lógico quanto ao nível do significado; aliás, ambos os níveis se

interpenetram mais do que se distinguem.

Ao invés de lidar com as próprias coisas o homem lida com os simbolismos que tecem os seus mundos. O mundo do homem não é um mundo de fatos é

um mundo de percepções: a razão, a linguagem - lógica e conceitual - a ciência, a arte, a religião e os sentimentos são, por isso, dimensões imaginárias.

Não há contraposição entre o real e o imaginário porque o real é construído socialmente, o real, portanto, é a interpretação que os homens atribuem à

realidade através das incessantes trocas entre as objetivações e as subjetivações das quais resultam configurações específicas, ou seja, sistemas simbólicos

particulares: linguagem, mito, arte, religião, política, ciência, economia; que, expressos por várias formas com diferentes conteúdos, possibilitam que o

estudo do imaginário possa ser abordado a partir de múltiplas problemáticas e do ângulo de diferentes disciplinas.

Partindo do pressuposto de que a característica de dar significado liga-se ao plano simbólico, se justifica o interesse pelo estudo dos símbolos, das imagens e do

imaginário, cujo início foi dado por Bachelard, o qual afirma que os símbolos não devem ser julgados do ponto de vista da forma, mas de sua força expressiva.

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Gilbert Durand, referência desta pesquisa, foi um dos alunos de Gaston Bachelard e fundou um centro de estudo do imaginário, tendo influência também de

Jung, que contribuiu com o conceito de imagens simbólicas coletivas – arquétipos, sendo que o que diferencia o arquétipo do símbolo é a sua falta de ambivalência, a

sua universalidade constante e a sua adequação ao esquema.

Durand utiliza a expressão imaginário ao invés de simbolismo, uma vez que para ele o símbolo seria a maneira de expressar o imaginário. Sua teoria sobre o

imaginário se organiza sob o método da convergência, isto é, os símbolos se (re) agrupam em torno de núcleos organizadores, as constelações, as quais são estruturadas por

isomorfismos, que dizem respeito à polarização das imagens; indica que há estreita relação entre os gestos do corpo e as representações simbólicas. Os símbolos constelam

porque são desenvolvidos de um mesmo tema arquetípico, porque são variações sobre um arquétipo.

O autor utiliza-se ainda da reflexologia a fim de explicar a sua classificação, baseada na noção de gestos dominantes: as dominantes reflexas que se referem

aos mais primitivos conjuntos sensório-motores que constituem os sistemas de acomodações mais originários na ontogênese, aos quais, segundo a teoria de Piaget,

deveriam se referir toda a representação dos processos de assimilação constitutivos do simbolismo.

A reflexologia identifica duas dominantes no recém-nascido: a dominante de posição (dominante postural), que coordena ou inibe todos os outros reflexos,

quando, por exemplo, se põe o corpo da criança na vertical (a verticalidade e a horizontalidade são percebidas pela criança de tenra idade de maneira privilegiada); a

dominante de nutrição (dominante digestiva), que nos recém-nascidos se manifesta por reflexos de sucção labial e de orientação correspondente da cabeça. Esses

reflexos são provocados ou por estímulos externos, ou pela fome. A essas duas dominantes podem associar-se reações audiovisuais. Há uma terceira dominante

relacionada ao reflexo sexual (dominante copulativa), que seria de origem interna, desencadeada por secreções hormonais aparecendo em período de cio.

Haveria três ciclos sobrepostos na atividade sexual: o ciclo vital, que na realidade é uma curva individual de potência sexual; o ciclo sazonal, que apenas pode

interessar à fêmea ou ao macho de uma espécie dada ou ainda aos dois ao mesmo tempo; e o ciclo de oestrus, que só é encontrado nas fêmeas dos mamíferos

(relacionado à menstruação); esses processos cíclicos, em particular o oestrus, tem profundas repercussões comportamentais. Assim, o corpo inteiro colabora na

constituição da imagem e as forças constituintes que coloca na raiz da organização das representações parecem muito próximas das dominantes reflexas.

Verificou-se a ligação da motricidade dos músculos envolvidos na linguagem verbal com o pensamento e, mais ainda, que uma motricidade periférica

estendida a numerosos sistemas musculares estava em estreita relação com a representação. Salienta-se que deva existir um mínimo de adequação entre a dominante

reflexa e o ambiente cultural (adequação essa, diferente de recalcamento).

A partir da reflexologia (dominantes gesto-pulsional), da tecnologia (meios elementares de ação sobre a matéria) e da sociologia (contexto social), Durand

fundamenta a bipartição das imagens em dois regimes: o diurno, que tem a ver com a dominante postural, e o noturno relacionado às dominantes digestiva e cíclica.

Aqui surge o termo estrutura, definido como uma forma transformável, que desempenha o papel de protocolo motivador para todo um agrupamento de

imagens e susceptível ela própria de se agrupar numa estrutura mais geral, chamada de regime, que se refere a opostos:

- regime diurno - uma organização das imagens que divide o universo em opostos, cujas características são as separações, os cortes, as distinções, a luz;

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- regime noturno - uma organização das imagens que une os opostos, tendo como principais características a conciliação e a decida interior em busca do conhecimento.

Esses regimes recobrem três estruturas que têm como ponto fundamental a questão da mortalidade para o homem, cuja angústia existencial se manifesta

através das imagens relativas ao tempo, ressaltando-se a ambigüidade e os inúmeros significados que um símbolo pode apresentar. A resolução dessa angústia

permite três soluções: (1) pegar em armas e destruir o monstro, (2) criar um universo harmonioso no qual ela não possa entrar, (3) ter uma visão cíclica do tempo no

qual toda morte é renascimento.

No Regime Diurno está a Estrutura Heróica, que se caracteriza pela luta, tendo como representação uma vitória sobre o destino e sobre a morte, cujos

principais símbolos são:

- símbolos de ascensão – o alto, o chefe;

- símbolos espetaculares – dizem respeito à luz, ao luminoso;

- símbolos diairéticos – referem-se à separação cortante entre o bem e o mal.

No Regime Noturno da imagem, temos duas estruturas: Estrutura Mística, que se refere à construção de uma harmonia, onde se evita a polêmica e há a

procura da quietude e do gozo, tendo como recurso expressivo os símbolos de inversão e os símbolos de intimidade.

A Estrutura Sintética, diz respeito aos ritos utilizados para assegurar os ciclos da vida, atua

harmonizando os contrários, através de um caminhar histórico e progressista, sendo que seus símbolos são de caráter cíclico.

O símbolo tem a função transcendental de permitir ir além do mundo material objetivo. Devido a dimensão de ambigüidade, o símbolo está sob constante

processo de reequilíbrio, visando o equilíbrio vital, psicossocial e antropológico.

METODOLOGIA E PROCEDIMENTOS

De modo geral, a perspectiva teórica com a qual trabalhamos, toma por base o programa e os procedimentos da Escola Sociológica Francesa,

focalizando as “categorias do entendimento”, também conhecidas por “categorias nativas”, através de pesquisa etnográfica. Uma boa etnografia inclui a

história de vida, os usos do espaço, e os saberes de várias ordens, específicos aos grupos em estudo.

Desenvolvemos também, estudos sobre as reflexões e o mapeamento do “imaginário” a partir das propostas de Gilbert Durand. A abordagem do referido

autor inclui os métodos estruturalista e fenomenológico, embasado no princípio de “convergência das hermenêuticas”, visando o estabelecimento de

diálogos com diferentes perspectivas teóricas e analíticas, necessárias aos estudos das complexidades culturais.

Assim, do ponto de vista metodológico, além da etnografia, utilizamos o AT9, Teste Arquétipo de nove Elementos, criado pelo psicólogo Yves Durand, a

partir da obra do antropólogo Gilbert Durand.

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O AT9, é um dos instrumentos metodológicos de pesquisas sobre o imaginário em experimentação no Centro de Estudos do Imaginário (CEI/UNIR).

Trata-se de um teste do tipo projetivo, com abordagem e orientação antropológicas, que visa “mapear” o tipo de estrutura do imaginário com a qual o

indivíduo (isolado ou em grupo), expressa seus estímulos ansiógenos, suas defesas, e o uso que faz dos elementos auxiliares propostos pelo teste.

Os arquétipos funcionam como estímulos para que o indivíduo elabore um micro - universo mítico a partir dos nove elementos que são os seguintes: O

personagem - elemento central; a queda e o monstro (elementos ansiógenos); a espada, o refúgio e a coisa cíclica (elementos de resolução da ansiedade); a água, o

animal (qualquer um) e o fogo como elementos auxiliares.

O micro universo é obtido a partir de uma dupla construção: um desenho e uma narrativa. Assim, o desenho fornece as imagens e a narrativa nos dá o

sentido e a articulação da composição desenhada. Ambos são complementados por um quadro de análise, no qual se registra o modo como cada arquétipo

foi representado, o papel que ele cumpre no desenho e na história, bem como, aquilo que ele simboliza. A estas informações são acrescidos dados obtidos

através de um questionário que permite esclarecer outros aspectos que motivaram o desenho e a história do mesmo. O micro universo é passível de ser

classificado nos Regimes Diurno e Noturno de imagens, e nas estruturas heróica, mística, sintética e desestruturado.

Os procedimentos analíticos para o estudo do imaginário, no contexto do AT9, levam em conta a relação

funcional entre 1) sujeito-personagem e objeto; 2) destinatário e destinador; 3) oponentes e adjuvantes;

encaminhadas na seguinte sequência:, história e desenho; quadro de identificação dos elementos, desfecho da

história e a classe social a que o sujeito julga pertencer. Considera-se, ainda, o modo pelo qual as imagens formam

sínteses e complementaridades, em decorrência das propriedades de “condensação” e de “deslocamento” dos

símbolos.

Os sujeitos da pesquisa foram mulheres, que fizeram denúncias sobre agressões na Delegacia da Mulher, e seus (ex) maridos. Os dados foram

construídos a partir de observação in locco na Delegacia da Mulher, visitas as residências para realização do teste, gravação das histórias de vida e, pela

análise dos resultados de conjunto. Deste modo, abordamos as mulheres e os homens, explicando-lhes o objetivo de nossa pesquisa e solicitando-lhes a

colaboração, garantindo-lhes, em contrapartida os direitos ao sigilo e a proteção moral previstos no código de ética do antropólogo.

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Os testes foram realizados por oito pessoas, sendo três casais e duas mulheres, cujos maridos não quiseram responder ao teste. Os homens apresentaram resistência em

realizar o AT9, seja pelo fato de não se sentirem à vontade para desenhar ou por não quererem se expor através de um teste.

RESULTADOS Quanto à estrutura do micro universo mítico obtido pelos testes, em 87,5% dos mesmos foi impossível classifica-los, sendo que somente em 12,5% foi

verificada estrutura classificável, no caso, estrutura mística, do regime noturno. A porcentagem de testes desestruturados talvez seja decorrência do fato de as

pessoas estarem em fase de desestruturação de suas vidas em função do fim de seus casamentos.

Os micro-universos imaginários de homens e mulheres apresentaram diferenças marcantes. Entretanto, as diferenças não foram estabelecidas pelo imaginário

religioso. Homens e mulheres expressaram imagens religiosas fortemente afetivas, e, particularmente, ligadas ao evangelismo. Entretanto, os testes das mulheres não

apresentaram imagens de universos tecnológicos, mesmo que simples, ficando restritas a imagens de elementos da natureza. Além disso, as imagens que dizem respeito à

relação pessoa - mundo social, foram, no caso delas, mais pertinentes aos valores de morte. Todos os homens, ao contrário, recorreram a imagens tecnológicas e

apresentaram uma relação pessoa - mundo social mais dirigida aos simbolismos de vida.

O imaginário cumpre diferentes funções de equilíbrio dos recursos interpretativos das culturas. Políticas voltadas para viabilizar a ascensão social das mulheres devem

levar em conta seus imaginários. Vimos que estes indicam o distanciamento delas das práticas que permitem apropriação de tecnologias capazes de inseri-las em contextos

propícios a sua autonomia e ao conseqüente desenvolvimento de seu potencial de vida. A apropriação de tecnologias não diz respeito apenas ao técnico; mas, ao social, e

neste, o imaginário, orientando e expressando padrões culturais, dinamiza a consciência e induz à ação.

As relações de Gênero são fundantes do mundo inter-humano, por isso mesmo, perceber a sua dinâmica interna possibilita ao poder público e aos movimentos

de mulheres e de Direitos Humanos, a construção e a exigência quanto à implementação de políticas públicas que dêem conta das demandas sociais de homens e

mulheres. Entre elas, a Casa Abrigo, a Renda Mínima Familiar, as campanhas pela escolarização e profissionalização feminina. Consideramos necessário, também,

outros elementos de rede social para além do jurídico-penal, como é o caso da Delegacia da Mulher; que, mesmo extremamente necessária em seu campo de ação,

necessita da complementação dos suportes já citados, bem como, de outros, a exemplo de orientação e apoio social e psicológico ao homem à mulher e aos seus

filhos.

Todos esses recursos são vitais nos casos de rupturas de uniões conjugais, ainda mais quando constatamos que estes processos freqüentemente são

acompanhados de desestruturações econômicas agravadas ainda, pelo desemprego e pela falta de qualificação profissional dos homens e das mulheres e, do

distanciamento delas dos universos tecnológicos. Estes fatores isolados ou conjugados dificultam o acesso feminino aos postos de trabalho de melhor remuneração e,

conseqüentemente, capazes de propiciar melhor qualidade de vida.

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO)

CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE

PRIMEIRA VERSÃO ANO II, Nº104 - JUNHO - PORTO VELHO, 2003

VOLUME VII

ISSN 1517-5421

EDITOR

NILSON SANTOS

CONSELHO EDITORIAL ALBERTO LINS CALDAS – História - UFRO

CLODOMIR S. DE MORAIS – Sociologia - IATTERMUND ARTUR MORETTI – Física - UFRO

CELSO FERRAREZI – Letras - UFRO HEINZ DIETER HEIDEMANN – Geografia - USP JOSÉ C. SEBE BOM MEIHY – História – USP

MARIO COZZUOL – Biologia - UFRO MIGUEL NENEVÉ – Letras - UFRO

SILVIO A. S. GAMBOA – Educação - UNICAMP VALDEMIR MIOTELLO – Filosofia - UFSC

Os textos de até 5 laudas, tamanho de folha A4, fonte Times New Roman 11, espaço 1.5, formatados em “Word for Windows”

deverão ser encaminhados para e-mail:

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EDITORA UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA

ISSN 1517-5421 lathé biosa 104

O PROCESSO MIGRATÓRIO DE OCUPAÇÃO NO ESTADO DE RONDÔNIA – VISÃO

HISTÓRICA

Salvador Cim

PRIMEIRA VERSÃO

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Salvador Cim** O Processo Migratório de Ocupação no Estado de Rondônia – Visão Histórica

A ocupação e colonização da área que hoje constitui o Estado de Rondônia remontam o período colonial, fins do século XVII, quando se encontravam algumas missões Jesuíticas nesta região. Em princípios do século XVIII, a descoberta de ouro no Estado de Cuiabá passou a despertar a atenção dos Portugueses, iniciando então a penetração de entradas e bandeiras pelo vale do Guaporé.

Em meados de 1647, a bandeira concebida pelo bandeirante, Antônio Raposo Tavares12, contribuiu para o reconhecimento das terras do então Território Federal de

Rondônia, atualmente “Estado de Rondônia”, adentrando nas atuais terras da Bolívia. As expedições do sul do país partem de São Paulo, sobem os rios Paraná e Paraguai,

alcançando os rios Guaporé e o Madeira, pelo norte, a procura de drogas do sertão, os portugueses sobem os rios Amazonas e o Madeira. As intempéries somadas às

dificuldades de navegação fluvial a presença de tribos indígenas, na sua maioria selvagens, e ainda a insalubridade da região contribuíram decididamente para que essa

primeira fase de povoamento português ficasse caracterizada como uma ocupação esparsa e transitória, sem expressividade na impulsão da tomada da região.

Pelo Tratado de Tordesilhas13, a região da Amazônia pertencia à Espanha. Desde o início do século XVII, no entanto, a região passou a ser alvo de incursões

portuguesas. Para favorecer as entradas no território, em 1671, Francisco da Mota Galvão construiu o Forte de São José do Rio Negro, origem da cidade Manaus.

As disputas com a Espanha terminaram com o Tratado de Madri14, que em 1650 concedem a Portugal a posse definitiva da região.

Em 1755, foi criada a capitania de São José do Rio Negro. Com a proclamação da independência em 1822, a capitania foi incorporada ao Estado do Pará e, em 1832,

foi palco de uma revolta popular que exigem sua autonomia. A rebelião foi reprimida pelas tropas imperiais e em 1850, D. Pedro II criou a província do Amazonas.

** Professor. Licenciado em Letras, História e Direito 12 Antônio Raposo Tavares – Bandeirantes que era português, fez uma longa caminhada, subiu o Rio Paraguai até as suas nascentes e através de outros rios, atingiu o Amazonas, chegando à Foz, no Pará, depois de três anos de jornada, enfrentando índios, feras e febres. Quando voltou a sua casa em São Paulo, estava tão magro e envelhecido que nem a própria família o reconheceu. Espalhou-se a lenda de que Raposo Tavares havia penetrado no território do Peru, atravessando os Andes e, havendo chegado ao Pacifico, entrou na água com a espada em punho, declarando que conquistava terras e mares para seu rei. 13 Em Tordesilhas, município da província de Valhadolide, em Espanha, se celebrou em 1494, um tratado entre o nosso rei D. João II e os reis católicos, Isabel e Fernando de Castela e Aragão, que delimitava as esferas de ação de Portugal e de Espanha nos descobrimentos marítimos realizados e a realizar. 14 O Tratado de Madri celebrado entre D. João V (Portugal) e D. Fernando VI ( Espanha) em 13 de Janeiro de 1750. Há exatamente 250 anos atrás, Portugal e Espanha assinaram o tratado que, na prática “criou”o atual Rio Grande do Sul. Antes do Tratado de Madri, o meridiano de Tordesilha excluía a região onde é hoje o novo estado, já que cortava o Brasil entre Belém do Pará e Laguna (SC), ou seja, o Território Gaúcho era posse espanhola. O Tratado foi assinado para por fim as disputas Luso-Espanhola na América, promovendo a troca da colônia do Sacramento pelas missões. Portugal havia fundado Sacramento dentro de Território Espanhol, para obter e manter a livre navegação no Rio da Prata. No planejamento do Tratado, destacou-se a atuação de um brasileiro, paulista de nascimento, o diplomata Alexandre de Gusmão que era membro do conselho ultramariano e escrivão da Puridade (Secretário) do rei D. João V. Feito em Madri a 13 de Janeiro de 1750, assinado por visconde Thomaz da silva (Portugal) e D. Joseph de Carvajal Y Lancaster. O Tratado é composto de 26 artigos, e seu preâmbulo, descreve os sereníssimos reis de Portugal e Espanha, desejando eficazmente consolidar e estreitar a sincera e cordial amizade..... e particularmente a que se podem oferecer com o motivo dos limites das duas coroas na América, cujas conquistas se tem adiantado com incerteza e dúvida, por se não haverem averiguado até agora os verdadeiros limites daqueles domínios, ou a paragem donde se há de imaginar a linha divisória...

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A importância do Tratado de Madri para a história do Brasil e do Rio Grande do Sul foi muito grande, porque: por um lado, inclusive antes da assinatura formal,

permutou a colônia do Sacramento pelo território dos Sete Povos das Missões e, por outro, revogou o Tratado de Tordesilhas e, com isso, anulou o meridiano que dividia o

Brasil entre Portugal (leste) e Espanha (oeste), adquirindo o nosso território a configuração de hoje.

Em meados do século XVIII, Rondônia acolheu uma leva de colonizadores que vinham à procura de jazidas auríferas na região, aos poucos vão se formando

pequenos povoamentos como: Pouso Alegre, Casa Redonda. Esse processo foi lento e contínuo, passou por diferentes ciclos na ocupação de Rondônia. Com o

esgotamento de produção das minas, houve um quase abandono da região, assim em fins do século XIX, destaca-se o surto da borracha, utilizando-se da bacia

hidrográfica rondoniense para a abertura de seringais e escoamento da produção para a Europa. Estimativas atestam que, por volta de 1872 a 190015, entraram no

Amazonas, cerca de 150 a 300 mil migrantes nordestinos. Durante esse período de ocupação por migrantes nordestinos, ocorreram conflitos internacionais, em razão de

brasileiros ocuparem as terras do atual Estado do Acre. Resultou deste conflito ou ocupação desordenada o Tratado de Petrópolis16, que envolveu Brasil e Bolívia.

Na celebração do tratado, o Brasil comprometeu-se em construir ferrovia, conforme – “Art. VII – obrigação do Brasil em construir Ferrovias”, com a construção

da ferrovia, que tinha endereço certo, facilitar o acesso aos Bolivianos para o Atlântico a fim de comercializarem seus produtos com a Europa, em troca das terras que

passaram para o domínio Brasileiro.

Pelo tratado celebrado entre Brasil e Bolívia reza17:

“Art. III – por não haver equivalência nas áreas dos territórios permutados entre as duas nações, os Estados Unidos do Brasil pagarão uma indenização de dois milhões de libras esterlinas, que a República da Bolívia aceita com o propósito de aplicar principalmente na construção de caminhos de ferro ou em outras obras tendentes a melhorar as comunicações e desenvolver o comércio entre os dois países. O pagamento será feito em duas parcelas de um milhão de libras cada uma; a primeira dentro de um prazo de três meses, contados da troca das ratificações do presente tratado e a segunda em 31 de março de 1905”.

Há quem diga que a dívida externa do Brasil iniciou com esse pagamento. O Brasil inicia, então, a construção da ferrovia, cumprindo o que ficou acertado na

assinatura do Tratado de Petrópolis. Com o inicio da construção, os trabalhos avançavam foram, aos poucos aparecendo pequenos povoados, núcleos urbanos que

abrigaram os migrantes já existentes e os demais que iam chegando e sendo contratados para auxiliarem na construção da ferrovia. Alguns núcleos foram se

formando e receberam nomes, sendo os mais importantes: Santo Antônio do Rio Madeira, hoje denominados Porto Velho e Guajará Mirim. Não tardou e novamente

15 Periferia: endereço do migrante; equipe da pastoral do migrante – Porto Velho, 1990. 16 O Tratado de Petrópolis envolvia Brasil e Bolívia foi assinado em 17 de novembro de 1903, em seu preâmbulo reza: A República do Estados Unidos do Brasil e República da Bolívia, animadas pelo desejo de consolidar para sempre a sua antiga amizade, removendo motivos de ulterior desavenças e querendo ao mesmo tempo facilitar o desenvolvimento das suas regiões de comércio e boa vizinhança, convieram celebrar um tratado de permuta de território e outras compensações, de conformidade com a estipulação contida no Art. 5º do Tratado da Amizade, Limites, Navegação e Comércio de 27 de Março de 1867. O tratado tem dez artigos, o sétimo artigo versa sobre a obrigação do Brasil em construir ferrovias. Foi celebrado na cidade Petrópolis e assinados pelos signatários Rio Branco, J.F. de Assis Brasil (Brasil) e Fernando E. Guachalla e Cláudio Pinilla ( Bolívia). 17 Brasil/Bolívia. Tratado de Petrópolis. 14 mar.2002. http://www.info.incc.br/wemkkk/btt1903htmI

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veio a crise da borracha e, com ela, paralisou-se o processo de povoamento, com reflexo automático nas atividades econômicas, resultando o quase desaparecimento

da população do território. Em meados de 1940, o número de habitantes18 não era mais do que 591, sequer um habitantes por Km2.

Em razão das precárias condições ambientais inóspitas , sem as mínimas condições de assistência, em seu sentido mais amplo, inclusive, as de ocupação. Esse

era o quadro e as condições que viviam os seringueiros.

O seringal surgem como uma forma de organização em que a terra não tem muita importância, seu papel era

inexpressivo, porque não caracterizava fator de produção. Nessa primeira fase, considerando as condições

econômicas do período, podemos distinguir dois tipos de povoamento: os seringalistas que constituíam um menor

contingente e os seringueiros em maior número e que constituíam a mão-de-obra voltada para coleta do látex,

líquido que, posteriormente, era transformado em borracha. Os seringalistas que dispunham de melhores condições

e de algum capital, encarregavam-se das despesas, do fornecimento de ferramentas, dos transportes e dos meios

básicos como: alimentação, alojamento , mobilidade de deslocamento, etc, para o trabalho dos seringueiros.

Um dos pontos mais marcantes da vida dos povos da Amazônia foi o seu isolamento em relação ao resto do país, após o descobrimento. Como não ocorreram

mais descobertas de ouro ou metais preciosos, nem a coroa portuguesa e nem o império brasileiro sequer demonstraram qualquer outro interesse na região pacificada

e de domínio consolidado. Vivendo do extrativismo vegetal, o desenvolvimento da economia regional foi caracterizado por ciclos, períodos em que alguns dos recursos

naturais, então existentes na região, alcançaram bons preços no mercado interno e externo. O desenvolvimento tecnológico e a revolução industrial que vinham

ocorrendo na Europa, transformaram a borracha, produto abundante e exclusivo da Amazônia, em produto de grande demanda e conseqüentemente na elevação do

preço.

Em 1870, o Governo brasileiro concedeu permissão para construir a ferrovia ao longo do traçado do Rio Madeira, proporcionando aos nossos vizinhos condições de escoamento da produção excedente, via território nacional para o mercado consumidor. Lutas por questões fronteiriças ocorreram na região no final do século XIX, como a questão do Acre, caracterizada pela exploração da borracha

18 A contribuição do INCRA dentro do processo de ocupação do território de Rondônia - Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária.

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pelos brasileiros em terras da Bolívia. As riquezas obtidas com a comercialização da borracha aos poucos foram consolidando as atividades da República Brasileira, após a desorganização da economia provocada pelo final da odiosa prática da escravidão humana e o descompromisso da elite dirigente com a nação.

Em 30 de abril de 1912 foi concluída a Estrada de Ferro Madeira Mamoré19, inaugurada no mesmo período com a chegada do primeiro carregamento à Guajará Mirim.

Pelo Tratado de Petrópolis – Brasil/Bolívia , as terras anexadas passam para o domínio brasileiro, sendo essa área de baixa densidade demográfica na faixa de

fronteira levou o governo central do Brasil a tomar medidas que permitissem a integração da região com o resto do país, como toda a Amazônia, após o declínio do

primeiro ciclo da borracha resultando num período de graves conseqüências econômicas para a região fronteiriça.

O esvaziamento econômico e o isolamento da região vinham sendo acompanhados pelo governo e eram motivos de preocupação, além das conseqüências econômicas

com a queda da produção da borracha, devido a redução de absorção pelo mercado internacional, levam o Governo Federal apressar ainda mais essa integração com a região

fronteiriça, construindo um sistema de comunicação, linha telegráfica entre os povoados de Cuiabá até o Amazonas (o terceiro ciclo do telegrafo – período de (1920-1940),

cortando todo o norte de Mato Grosso, tarefa designada ao Coronel Cândido Mariano da Silva Rondon20, assumindo o comando da missão.

Entre 1910 – 1940 Rondon, serviu-se de mão-de-obra de migrantes do sul do país. Esses trabalhadores juntamente com

os demais migrantes atraídos pelo avanço da construção da linha telegráfica, foram aos poucos se fixando ao longo do

traçado, formando pequenos povoamentos, principalmente nos postos telegráficos que ofereciam melhores condições de

infra-estrutura, comunicações com os demais locais. Esses povoamentos iam se formando e recebiam nomes como:

19 A construção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré constituiu secular aspiração dos povos do Brasil e Bolívia, servindo de ligação com o oceano Atlântico e, por conseqüência ao comércio internacional, utilizando-se da bacia navegável do rios Guaporé, Mamoré e Beni. Após as tentativas fracassadas levadas a efeito pelo Churchill de 1572 a 1578, a estrada foi finalmente construída no período de 1907-1912, sob os cuidados do governo brasileiro que, ficava obrigado pelas clausulas do Tratado de Petrópolis em 1903.No início da construção da estrada de ferro Madeira Mamoré, mais de dois mil homens de nacionalidades deferentes como: Espanha, China, Inglaterra, Estados Unidos, Alemanha, Grécia, Marroquinos e Brasileiros caíram mortos em conseqüências de doenças tropicais durante a sua construção, advindo daí a denominação de “ferrovia do diabo”. Além do investimento em verbas, a ferrovia proporcionava a exploração de produtos produzidos em Rondônia e na Bolívia, servindo como meio de ligação para o Oceano Atlântico e, ao comércio Internacional... 20 Cândido Mariano da Silva Rondon. Nasceu a 05 de maio de 1865, em mimoso, próximo a Cuiabá/MT. Filho de Mariano da Silva e Claudina de Freitas Evangelista da Silva. Muito cedo, Rondon despertou seu pendor para a carreira para carreira da armas, ingressando na escola militar de praia vermelha aos 16 anos de idade. Em 1888 era promovido a alferes. Durante sua vida, Rondon, dedicou-se a duas causas mestras: A ligação dos mais afastados pontos da fronteira e do sertão brasileiro aos principais centro urbanos e a integração do indígena à civilização. Na primeira empreitada, Rondon desbravou mais de 50.000 Km de sertão e estendeu mais de 2.000 Km de fio de cobre pelas regiões do Brasil, ligando as mais longínquas paragens pela comunicação do telegrafo. Como indigenista, pacificou tribos, estudou os usos e costumes do habitantes dos lugares percorridos, participou da criação de medidas legais de proteção aos silvícolas. Tanto que, a 07 de setembro de 1910 foi nomeado diretor da Fundação do Serviço de Proteção aos Índios, e a partir de 1939 foi o primeiro presidente do Conselho Nacional de Proteção aos Índios. Fez contatos com tribos arredias e adotou o lema “morrer se necessário for, matar nunca”. Foi um dos maiores brasileiros. Recebeu os títulos de “Civilizador dos Sertões” e de “Marechal da Paz”. Em 1956, o então território do Guaporé teve o nome mudado para Rondônia. O reconhecimento da Obra de Rondon extrapolou as fronteiras do Brasil. Na cessão solene do Congresso Nacional de 05 de maio de 1955, já com 90 anos, Rondon recebeu as insígnias do posto de Marechal. Faleceu no Rio de Janeiro, em 19 de Janeiro de 1958 aos 93 anos.

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Vilhena, Pimenta Bueno, Ariquemes e hoje são belas cidades. As clareiras abertas pela expedição Rondon contribuíram

para a migração e povoamento da região, seu desenvolvimento econômico, principalmente a extração e a demarcação de

antigos seringais. Rondon mostrou um espírito humanista, tratou as questões indígenas com muito respeito, carinho e

espírito humanitário, sendo o grande responsável pelas mudanças na forma de ver e tratar os índios que habitavam a

região.

Foi o responsável pela criação do serviço de proteção aos índios (SPI), hoje Funai. Seu espírito desbravador associado ao trato com os irmãos nativos, abatidos

aos milhares sob a ótica do progresso, do desenvolvimento, do avanço da civilização e da salvação pela fé religiosa, Rondon ficou conhecido pela sua célebre frase

“morrer se necessário for, matar nunca”. Este o lema que acompanhou durante o período de desbravamento por terras tão desconhecidas, em contatos com os índios.

O Território Federal de Rondônia21 foi criado pelo decreto-lei nº 5.812 de 13 de setembro de 1943, pelo então Presidente Getúlio Dornelles Vargas22, com o

nome de Guaporé, mudando posteriormente para Rondônia e atual estado do mesmo nome, no dia 04 de janeiro de 1982, pela lei nº 21.731 de 17 de fevereiro de

1956, em homenagem ao Marechal Cândido Mariano da Silva Rondon.

O Território Federal de Rondônia é fruto de área desmembrada dos estados do Amazonas e Mato Grosso, com uma superfície de 243.044 Km2, pouco inferior ao Estado

de São Paulo, com 247.898 Km2, situado na Amazônia ocidental, ao sul da região norte e a nordeste do Estado do Mato Grosso a ao sul do Estado do Amazonas. Em superfície, o

Estado de Rondônia representa 7,11% da área da região norte e 2,98% da superfície do Brasil, só onze estados da união tem área superior a sua.. Pelos limites estabelecidos no

21 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Atlas de Rondônia, 1975 – Rio de Janeiro. 22 Getúlio Dorneles Vargas. 1883 – 1954. Advogado, político e estadista brasileiro, nasceu em 19 de abril de 1883 em São Borja, (RS), morreu no Rio de Janeiro em 24 de agosto de 1954. estudou no Colégio Fabriciano Julio Braga, em Ouro Preto -MG, escola preparatória e prática de São José do Rio Pardo e na Faculdade de Direito de Porto Alegre-RS. Ingressou no exército em São Borja, em 1898. Foi Promotor Público, Deputado Estadual (1909-1911) e reeleito em 1917. Elegeu-se Deputado Federal pelo partido republicano rio grandense em 1923. Ministro da Fazenda (1926-1927). Presidente do Estado do Rio Grande do Sul (1927-1930). Candidato à presidência pela aliança liberal concorrendo com Júlio Prestes (1882-1946), venceu mais não chegou a assumir liderou a revolução de 1930, que depois o presidente Washington Luiz. Assumiu a presidência, permaneceu por 15 anos. Chefe do governo provisório do Brasil (1930-1934). Presidente constitucional eleito por via indireta (1934-1937), ditador-ordem autoritária conhecida como Estado Novo (1937-1945). Criou o Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio e a legislação trabalhista. Em 1933 convocou uma assembléia constituinte. Criou a justiça eleitoral. Em 1937, articulou o golpe de 10 de novembro, que resultou no estado novo. Criou o plano nacional de eletrificação (1937), Conselho Nacional do Petróleo (1938) e a Usina Siderúrgica de Volta Redonda. O Brasil entrou na segunda guerra mundial. Em 29 de outubro de 1945 foi deposto. Candidatou-se ao senado, foi eleito. Elegeu-se novamente presidente pelo voto direto em 1951. Em 1945, recebeu veto militar e opta então pelo suicídio. Matou-se com um tiro de revolver no peito em seu quarto, no palácio do catete no Rio de Janeiro exercendo o cargo de presidente na madrugada de 24 de agosto de 1954. Deixou um bilhete suicida dizendo: “eu vos dei minha vida, agora vos ofereço minha morte. Nada receio. Serenamente dou o primeiro passo a caminho da eternidade e saio da vida para entrar na história. Deixo à senha de meus inimigos o legado de minha morte”.

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decreto de criação, o Território do Guaporé possuiria terras dos municípios de Porto Velho, Humaitá, Lábrea e Camutama, então pertencentes ao estado do Amazonas e dos

municípios de Alto Madeira e Guajará Mirim, sendo este último acrescido de terras do município de Mato Grosso, os três então integrantes do estado do Mato Grosso. A

administração dos territórios foi fixada pelo decreto-lei nº 5.839 de 21 de setembro de 1943. Pelo decreto o Território do Guaporé foi dividido em quatro municípios com as

denominações de Lábrea, Porto Velho, Alto Madeira e Guajará Mirim. Ficou estabelecido que a capital do território seria a cidade de Porto Velho. Posteriormente, estudos feitos

pelo conselho nacional de geografia do IBGE, os limites e divisões dos territórios foram retificados pelo decreto-lei nº 6.550 de 31 de maio de 1944. Com essa nova divisão, o

território do Guaporé ficou dividido em três municípios com as denominações de Porto Velho, Alto Madeira e Guajará Mirim. O primeiro abrangendo a área do município de igual

nome e parte do município de Humaitá. O segundo constituído pela área do município do Alto Madeira. O terceiro formada pela área do município de igual nome, acrescida por

parte do município de Mato Grosso10.

Porto Velho foi confirmado como capital do território. O decreto-lei nº 7.470, editado em 17 de abril de 1945, fixou a divisão administração e judiciária do Território

Federal de Guaporé dividindo-o em dois municípios Porto Velho e Guajará Mirim e nove distritos. Na condição de capital, Porto Velho passou a contar com órgãos da

administração direta com Jurisdição federal. Outras mudanças também ocorreram na transformação da capital, na sua arquitetura, nos meio de transporte, inúmeros bairros

foram aos poucos sendo formados, essas mudanças diretas ou indiretamente influenciaram no seu desenvolvimento e crescimento demográfico. A cidade que em 1940

possuía 3.184 habitantes, na década de 50 contava com 10.036 habitantes23.

O novo surto da borracha durante a segunda guerra mundial24 voltou a estimular, o mercado interno e externo no segmento da borracha. As tropas Japonesas

dominaram militarmente o Pacífico sul, tomaram a Malásia25 e assumiram o controle de seus seringais. Para a movimentação das forças aliadas, a borracha é

indispensável na movimentação das tropas (fabricação de pneus) com a demanda e a procura, os seringais foram reativados, proporcionando novo impulso para a

economia regional. Somado a esses acontecimentos, não tardou e milhares de nordestinos foram atraídos e trazidos, em semelhança ao que ocorreu no passado para

23 Sinopse preliminar do censo demográfico, 1991 – Rondônia – Acre. 24 Segunda Guerra Mundial ( 1939 – 1945) o maior conflito que registra a história da humanidade em termos de perdas de vida e em riqueza, assim como pelo número de efetivos de terra, mar e ar engajados, e pela abundância de complexidade das armas utilizadas, várias delas inventadas ou aperfeiçoadas no decorrer do conflito,como o radar, o avião a jato e a bomba atômica. Durou quase. seis anos de 01 de setembro de 1939 (invasão da Polônia) a 14 de agosto de 1945 (derrota do Japão) foi envolvido no conflito, três continentes. Destacam-se todavia, cinco imensas frentes, onde se travaram as campanhas principais e as batalhas que decidiram o desenrolar do conflito. Frente Ocidental-Noruega aos .Pirimeus e do Tâmisa ao Elba, foi o teatro onde se realizaram as maiores conquistas de Adolf Hitler em 1940. Frente África do Norte-Mediterrâneo-Espanha e Turquia, foi o principal palco da batalha, onde as forças do eixo por pouco não atingem o canal de Suez e o Oriente Médio, foi passagem para a Itália e a libertação da Grécia. Frente Oceânica, foi no Atlântico Norte que se desenrolou toda a batalha do Atlântico contra os submarinos alemães na rota naval entre o Reino Unido e os E.U.A. Frente Ocidental de Mumanask ao Cáucaso e dos arredores de Moscou., travaram-se as maiores e mais sangrentas batalhas, a resistência do exército soviético foi decisiva na derrota da Alemanha. Frente do Pacifico, as operações de guerra forma além dos confins do Pacifico, como teatro.secundário na Birmânia e na China. A principio vitorioso em todas as frentes, o Japão apesar de resistir desesperadamente terminou a guerra, virtualmente sem marinha e sem aviação... 25 Malásia – País da Ásia, compreende duas regiões, a Malásia Ocidental situada na Península Malaia e a Malásia Oriental cuja área é de 329.749 Km2 e sua população estimada (1982) é de 14.530.000 habitantes. A capital é Kuala Lumpur. A Malásia Ocidental compreende a 11 estados da antiga Federação da Malaia. O clima é equatorial, com média térmica de 27ºC. Na Malásia Ocidental , a população é distribuída entre Malaios (50%), Chineses (37%) e Indianos e Paquistaneses ( 11%). A religião oficial é o islamismo. A Malásia é o maior produtor mundial de borracha natural e estanho. A borracha transplantada no fim do século XIX do Brasil, pelos ingleses, foi por algum tempo a base.de economia do país. A Malásia é uma monarquia constitucional soberana e independente, dentro a comunidade Britânica, constituída por 13 estados. Os governantes (hereditários) dos estados malaios elegem entre si o soberano supremo da federação com um mandato de cinco anos.

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a região, na tentativa de obter bons lucros com a reabertura e retomada da produção do precioso látex, após seu preparo, a borracha considerada de boa qualidade é

exportada para a Europa. Além dos nordestinos, a penetração procedente de Mato Grosso continuou por meio do Vale do Guaporé. Pode-se mesmo afirmar que a

ocupação da região (Rondônia) ocorreu na década de 40, período de progresso e desenvolvimento das atividades econômicas na região.

Terminada a segunda guerra mundial, a desvalorização da borracha no mercado internacional, como também no mercado interno entrou em processo de declínio.

Apesar da estagnação e da decadência do extrativismo da borracha, não ocorreu o despovoamento como aconteceu durante o primeiro ciclo de extração da borracha, pelo

contrário a população se estabilizou e, posteriormente voltou a crescer. Com o advento do segundo ciclo econômico da exploração da borracha devido sua procura pelas

potências industrializadas do ocidente. Outro importante ciclo de ocupação no Estado que muito contribuiu para o seu desenvolvimento foi o ciclo da cassiterita e do ouro. Por

volta de 1958, garimpeiros descobriram grandes jazidas de cassiterita na região, essa notícia logo se espalhou por toda a área e pelos grandes centros do país, sua

repercussão foi imediata, atraindo enorme contingente de migrantes para a região. Inicialmente, o processo de extração de ouro era feito de forma rudimentar, isto é,

manualmente (garimpagem). Esse procedimento absorvia grande quantidade de mão-de-obra local e, atraía grandes contingentes humanos para o Estado. Nessa época,

tentou-se a implementação de colônias agrícolas na tentativa de absorver o excedente de mão-de-obra ociosa e diversificar as atividades, incipientes. Tentativa essa que não

prosperou, por diversos motivos: baixa fertilidade do solo, maior contingente voltado para a atividade garimpeira, grande mobilidade de pessoas dentro do território, ganho

rápido e fácil com a extração do minério e tentativa de voltar ao estado de origem. Em 1971, o ministério das Minas e Energia proibiu a garimpagem manual, tornando a

mecanização manual obrigatória da lavra. Em 1970, Rondônia respondia aproximadamente por 70% da produção nacional de minério. Em 1989, foram extraídos 54.192

Toneladas, sendo 8.974 Toneladas, através de garimpagem manual, novamente liberada. Após esse período de euforia, a produção começa a dar sinais de declínio devido aos

reflexos provocados pelas condições do mercado internacional do produto e conseqüentemente conflitos envolvendo garimpeiros e empresas mineradoras. O ouro encontrado

no Rio Madeira, juntamente com a Cassiterita, em meados de 80 eram os principais produtos de Rondônia, responsáveis por grande contingente de migrantes e garimpeiros e

a vinda de inúmeras famílias de todo o país.

Por volta de 1987, a produção atinge o seu “ápice”, chegando a casa de 8.000 toneladas do minério. No início de 1990, a produção entrou em declínio e foi

praticamente interrompida. Este ciclo produziu muita riqueza, seus reflexos em termos de benefícios foram quase nulos. Foi um extração predatória e de alto impacto

ambiental para a região e toda a comunidade. A exploração do ouro deixou com herança: poluição ambiental, contaminação do lençol freático, nos peixes, enormes erosões

do leito e das margens dos rios, destruição ambiental, poluição por óleo combustível, rejeitos lançados nas águas, equipamentos abandonados e sedimentação do canal

navegável, violência no seu mais amplo sentido, além de muitas famílias destruídas, tudo isso somado a muitos problemas sociais, hoje existentes, fruto da ganância, do lucro

fácil e “status” social. O ciclo da extração da cassiterita deu lugar à criação de pequenos povoamentos, sem qualquer expressividade para a região, já que tinham caráter de

transitoriedade junto ás atividades mineradoras, já que a lavra não era considerada geradora de grande número de empregos.

O setor industrial até então era incipiente, inexpressivo no território, poucas alternativas restaram, assim passou a agricultura a ser a alternativa mais viável

para o momento, na tentativa de absorver e ocupar boa parcela de migrantes na época. O ciclo da agricultura cronologicamente sucede ao ciclo da cassiterita,

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obtendo benefícios dos agregados populacionais de todos os anteriores, projetando Rondônia no cenário nacional e internacional com um Estado produtor da região

norte do país. Ao mesmo tempo, o governo federal preocupado com uma evasão em massa de população, passa a fazer investimentos através de seus órgãos

deliberativos, maciços em projetos de colonização, contribuindo não para o influxo da migração, mas para o refluxo do migrante para a região. Esses migrantes

precisavam de moradias, de abrigos e longe de qualquer planejamento, formaram-se povoamentos, pequenos aglomerados de pessoas, de vilarejos e

conseqüentemente a ocupação efetiva das terras ao longo do traçado da Br-364. Essa invasão alterou a estrutura até então predominante na região, isto é,

condicionada aos ciclos extrativistas e de economia concentrada que predominavam nas cidades de Guajará Mirim e Porto Velho. O eixo de importância econômica do

Estado voltou-se para os municípios que, aos poucos, iam-se formando ao longo da rodovia que passou a ser o tronco principal da vida econômica do Estado. A

implementação da rodovia Cuiabá - Porto Velho – Br.364, com seu inicio em 1943, pelo Governo do Território proporcionou a abertura desta nova fronteira agrícola.

Com o seu reinicio a partir de década de 60, pelo Governo Federal que a considerou desbravada e fundamental para a integração nacional. Com o seu asfaltamento, a

Br-364 passou a influir de modo decisivo na região e no seu desenvolvimento. Campanha publicitárias implementada pelo Governo, nos meios de comunicação, as

noticias de disponibilidade de terras na região provocou uma nítida migração e ocupação de Rondônia.

Assim, estimuladas pela campanha publicitária do Governo Federal e Estadual, enfrentando dificuldade de toda ordem: transporte deficiente, clima insalubre, febre

amarela, malária, precárias condições de sobrevivência e sem as mínimas condições de higiene, no linear de 1997 e fins de 1982, cerca de 230.064 migrantes procedentes

principalmente dos estados do sul chegaram à Rondônia com a promessa de terras fartas, baratas e férteis para o plantio. Levados pelo sonho do “Eldorado” de Rondônia,

muitas deixaram para atrás o que possuíam, alguns apenas os familiares para conseguir um pedaço de terra, enfrentando toda e qualquer dificuldade e, o trabalho

diuturno e incansável “derrubar matas, queimar, abrir estradas, preparar a terra, semear e colher” e, transportando o seu produto por quilômetros de estradas, cheias de

lama, buracos, na maioria das vezes intrafegáves, levando o fruto do seu trabalho até os compradores.

A leva de migrantes que chegou à Rondônia foi se somando aos já existentes, formando novos núcleos de povoamento, gerando uma ocupação espontânea e

desorganizada de terras da união, de particulares e de campanha de colonização que, sem qualquer amparo legal começam a vender terras, iludindo os migrantes

menos escolarizados. Esse comércio irregular de venda de terras, vai resultar em conflitos entre os antigos que já ocupavam partes dessas terras e os novos

ocupantes, resultando em constante intervenção do Governo Federal, através de seus órgãos constituídos na região. Grande contingente de migrantes induzidos pela

propaganda governamental que rumaram à Rondônia em busca do sonho, do seu pedaço de terra26, logo perceberam que o mesmo seria irrealizável, apenas 17% do

solo do estado é apropriado para o plantio, o restante da terra é infértil, não é apropriada para germinar. Daí uma grande porcentagem de migrantes vivem em

situação próxima a miséria. Os que primeiro chegaram (1970), prosperaram e fizeram fortuna, foram viver em projetos de assentamentos localizados nas melhores terras do Estado

e, milhares de colonos foram instalados em solos improdutivos.

26 Periferia: endereço do migrante; equipe da pastoral do migrante – Porto Velho, 1990.

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Na década de 60, a situação fundiária em Rondônia atinge seu máximo grau de desorganização somada a esse, muitos problemas sociais. Assim o Instituto Nacional

de Colonização e Reforma Agrária – INCRA, com o objetivo de disciplinar e organizar a situação fundiária, passa a planejar a colonização oficial no Estado.

A migração tradicional para o Estado de Rondônia era constituída principalmente por nordestinos, a atual é procedente, em sua maioria de Minas Gerais, Paraná, Rio

Grande do Sul, Espírito Santo. Esses migrantes em sua maioria desconheciam as peculiaridades da região amazônica , seu clima, suas riquezas, sua fauna e flora, seus

segredos e seus perigos. Esse fato trouxe conseqüências desastrosas à curto, médio e longo prazo27.

Na verdade, a ocupação de Rondônia deveu-se a motivação pela distribuição de terras e, pela possibilidade de desenvolvimento do setor primário. Expandir essa

capacidade produtiva do setor primário à migração, buscaram para expandir outras fronteiras ou migraram para áreas urbanas na iminência de trabalho assalariado. A

implantação de vários municípios existentes no Estado de Rondônia como: Ji-Paraná, Vilhena, Pimenta Bueno entre outros são frutos de seu legado, facilitando a integração

do Estado com os centros produtores e consumidores com o centro sul do país e a integração de toda a região norte e sudoeste com as demais membros da federação.

A tabela mostra alguns dados estatísticos do Estado, o quantitativo de migrantes que entraram no Estado entre o ano de 1977-1986.

Fontes: Seplan/Cetremi28 (s/d) e Rondônia (1995)

Estimativa da FIERO29/1995

As décadas, de 50 e 70, tiveram como foco de atração de migrantes para a região a notícia da

descoberta de jazidas de minério (ouro), atraindo para a região um número significativo de migrantes, voltados principalmente para a atividade econômica do

extrativismo, isto é; a garimpagem manual de ouro, que por sinal absorvia grande quantidade de pessoas, na eminência de ganho farto, rápido e fácil enriquecimento,

galgando assim, vida mais folgada e confortável economicamente e financeiramente junto a suas famílias. Essa década não reflete o mesmo crescimento das duas

subseqüentes, em conseqüência das péssimas condições de acesso aos locais de produção e extração do minério, escassez de produtos básicos, as péssimas condições de

27 Pinto, Manuel Pontes. Caiari – Lendas e Proto história, p. 15. 28 SEPLAN – Secretaria Estadual de Planejamento do Estado de Rondônia e CETREMI – Centro de Triagem e Encaminhamento de Migrantes – Vilhena/RO. 29 FIERO – Federação das Indústrias do Estado de Rondônia.

EVOLUÇÃO DO TOTAL DE MIGRANTE

CADASTRADOS EM RONDÔNIA ANO MIGRANTES/POPULAÇÃO 1977 3.140 1978 12.658 1979 36.791 1980 49.205 1981 60.218 1982 58.052 1983 92.723 1984 153.377 1985 151.684 1986 165.679 TOTAL 783.527

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habitação, somadas a tantas outras como: difícil saída da região em caso de doenças graves, falta de escolas para os filhos, interrupção dos trabalhos, da garimpagem,

durante o período de cheias, esses entraves eram fatores negativos, não contribuíam para o aumento do número de migrantes para a região fronteiriça, não havia

registros de outras atividades econômica durante aquela década.

Entre os período de 1978-1986, novos projetos foram aos poucos sendo implantados na Região, ampliando as oportunidades de trabalho, atraindo mão-de-obra até

então ociosa no Sul do País, afetada pela crise do petróleo na década de 80. Campanha publicitária desenvolvida pelo Governo Federal através da propaganda maciça

veiculada pelos meios de comunicação. No decorrer da campanha, muitas famílias foram atraídas para a região do sul do País, também na tentativa de ocupação a fronteira,

até então esquecida e desabitada. Como resultado, foram atraídos para a região perto de um milhão de migrantes, em menos de uma década, induzidos principalmente pelo

sonho de um pedaço de terra, melhor ganho, e a possibilidade de uma vida melhor, digna e esperançosa para os familiares.

Concluindo, o processo migratório de ocupação no Estado de Rondônia passa por vários períodos. Num primeiro momento, essa ocupação ocorreu através dos

portugueses por meio das descobertas de ouro, na tentativa de ocupação e exploração do precioso minério, fins do século XVII. Num segundo momento, a ocupação ,

estimulada pelo surto da borracha, foi caracterizada pela presença maciça de nordestino, em meados do século XVII, na busca por trabalho, de alguma atividade

econômica que lhe rendesse alguns ganhos para o sustento de sua família, que por falta de condições permanecia em seu local de origem, enfrentando as mais

diversas dificuldades. Esse excedente de mão-de-obra, sem qualquer qualificação e sem recursos, era atraída utilizada ma extração da borracha, atividade econômica

em ascensão na região que, absorvia grande quantidade de seringueiros. Outro momento importante que deve ser ressaltado foi a integração da Fronteira com as

outras regiões , através dos meios de comunicação associados a construção, já na sua fase final, da Estrada de Ferro Madeira Mamoré, impulsionando o

desenvolvimento regional e local, através de via fluviais, ferra, marítima e aérea para outros centros produtores e consumidores, proporcionando a vinda de novos

migrantes que, somados aos já existentes iam ocupando paulatinamente novos espaços e formando novos núcleos .Numa escala progressiva, abertura de novas

frentes de trabalho, implantação de novos projetos pelo Governo Federal, distribuição equilibrada de terras e, o desbravamento da BR-364, somadas as notícias de

abertura de novos postos de trabalhos , nas mais diversas atividades: privada, comercial, rural dentre outras, foram fatores importantes que atraíram grande levas de

migrantes para o Território que, aos poucos, foram se fixando ao longo da BR-364, eixo importante para a fixação e consolidação definitiva de ocupação da mais nova

Fronteira, hoje, Estado de Rondônia.

BIBLIOGRAFIA

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II.

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO)

CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE

PRIMEIRA VERSÃO ANO II, Nº105 - JULHO - PORTO VELHO, 2003

VOLUME VII

ISSN 1517-5421

EDITOR

NILSON SANTOS

CONSELHO EDITORIAL ALBERTO LINS CALDAS – História - UFRO

CLODOMIR S. DE MORAIS – Sociologia - IATTERMUND ARTUR MORETTI – Física - UFRO

CELSO FERRAREZI – Letras - UFRO HEINZ DIETER HEIDEMANN – Geografia - USP JOSÉ C. SEBE BOM MEIHY – História – USP

MARIO COZZUOL – Biologia - UFRO MIGUEL NENEVÉ – Letras - UFRO

SILVIO A. S. GAMBOA – Educação - UNICAMP VALDEMIR MIOTELLO – Filosofia - UFSC

Os textos de até 5 laudas, tamanho de folha A4, fonte Times New Roman 11, espaço 1.5, formatados em “Word for Windows”

deverão ser encaminhados para e-mail:

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EDITORA UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA

ISSN 1517-5421 lathé biosa 105

HISTÓRIA ORAL E HERMENÊUTICA

José Joaci Barboza

PRIMEIRA VERSÃO

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JOSÉ JOACI BARBOZA História Oral e Hermenêutica Centro de Hermenêutica do Presente e mestrando em Ciências Humanas - UFRO

A oralidade enquanto método de investigação é utilizado desde a Antigüidade, contudo, percebemos que desde o século XVIII, quando a História começa a se

constituir enquanto disciplina acadêmica, a oralidade é relegada a segundo plano em detrimento da escrita. Nesse período está se constituindo a classe social que se

tornará hegemônica e assumirá o poder. E uma das características inerentes a mesma é a instituição da escola e da escrita como instrumento de dominação e

consolidação da hegemonia.

Na Revolução Francesa, Jules Michelet se utiliza da História Oral para narrar a História do Povo; ele queria assegurar

um caráter popular a Historiografia. Desde então até a década de quarenta do século vinte, predominou na

Historiografia a fonte escrita como único instrumento digno de ser utilizado pelos historiadores. Essa prática é

denominada por Gwyn Prins como o período do preconceito para com a oralidade: “Os historiadores vivem em

sociedades alfabetizadas e, como muitos dos habitantes de tais sociedades, inconscientemente tendem a desprezar a

palavra falada” (1992: 166).

Surge no início da década de vinte uma perspectiva de mudança quando os historiadores franceses da escola dos Annales elaboram a crítica à historiografia

positivista. Para os historiadores da escola dos Annales a eleição dos documentos escritos como único instrumento capaz de reter a história acabou dando a história

um caráter político excludente, restrita as grandes personalidades. A critica feita pelos Annales amplia o conceito de fontes históricas e resgata o conceito de

documento monumento, o que dá aos historiadores novos paradigmas e perspectivas, contudo, percebemos que essa ampliação não vai desembocar de imediato na

História Oral que, irá surgir duas décadas depois nos Estados Unidos, sendo que até hoje as fontes orais ainda são pouco utilizadas na França.

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A Moderna História Oral só será inventada na década de quarenta, pós Segunda guerra Mundial. É quando os sociólogos da escola de Chicago passam a

utilizar “a entrevista, a observação participante e a biografia como meios privilegiados para a análise da realidade social” (Gattaz, 1996: 238). Outra condição

necessária para a existência da Moderna História Oral é a invenção do gravador portátil que coincide com este período.

O adjetivo Moderna, que aparece na frente da História Oral, é utilizado para distinguir a história que tem como fonte

a oralidade nas décadas de quarenta até os nossos dias, da prática antecedente. É que anteriormente o uso de

equipamentos como gravador e filmadoras era impossível em virtude da inexistência dos referidos instrumentos.

A partir de então várias tendências tem surgido na História Oral, a primeira era caracterizada pelas entrevistas com membros das classes dirigentes,

posteriormente surge na Inglaterra com Paul Thompson à história dos excluídos a partir de seu manual A Voz do Passado, já Alessandro Portelli não percebe a história

oral como um instrumento capaz de fornecer informações sobre o passado, o que lhe interessa é a subjetividade dos narradores. Outras tendências como a psicológica

e a arquivista também irão surgir, contudo, não pretendo analisar as tendências da História Oral nos últimos cinqüenta anos, o que já foi feito por vários autores,

como André Castanheira Gattaz (1998) e Marieta de Morais Ferreira (1994).

No Brasil a História Oral só irá surgir a partir da década de setenta, quando a Fundação Ford em parceria com a Fundação Getulio Vargas promovem um

encontro com especialistas em biblioteca e documentação. A idéia era articular um grupo que “pudesse criar uma infra-estrutura de documentação para a pesquisa na

área de Ciências Sociais” (FERREIRA, 1995: 11).

Como no período do encontro o Brasil vivia em pleno regime militar e a gravação era tida como um instrumento de delação e causava muito medo nos

possíveis colaboradores. A história oral só foi se desenvolver plenamente com o fim do regime militar, o que ocorreu no final da década de oitenta. Isso não implica

em dizer que a história oral não tenha dado seus primeiros passos ainda na vigência do regime militar. Houve avanços tímidos, porém significativos, principalmente,

quando elegem os dirigentes nacionais da década de 30 para serem entrevistados.

Acredito que no Brasil duas tendências tem predominado no cenário editorial: a primeira trabalha as fontes orais

dando o mesmo tratamento dispensado às fontes escritas, ou seja, busca a partir dos textos preencher lacunas no

conhecimento existente sobre um determinado tema, e por adotarem tal procedimento fragmentam as narrativas

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dos colaboradores com o intuito de corroborar com as hipóteses do pesquisador, a segunda é caracterizada por

conferir algum tipo de tratamento às narrativas, tratamento que consiste em teatralizar e melhorar os textos, e por

apresentar as entrevistas na integra como parte integrante dos resultados da pesquisa.

Nessa Segunda vertente enquadro a história oral desenvolvida por José Carlos Sebe Bom Meihy (1990; 1991)e Ecléa Bosi (1994), sendo que o primeiro dá um

tratamento histórico as fontes orais e a segunda trabalha com a memória.

A história oral desenvolvida por Meihy, na realidade, aponta para duas perspectivas: a construção de uma história

oral preocupada em transformar as narrativas em documentos históricos e outra que apesar de não ser diretamente

desenvolvida pelo mesmo, apresenta em suas obras uma perspectiva textual, ou seja, não pensa em construir

documentos históricos, e sim criar textos capazes de rosar no presente e estabelecer uma hermenêutica do mesmos.

É do diálogo entre a segunda perspectiva de História Oral iniciada por Meihy, a semiologia barthesiana, a analise do

discurso, a poética bachelardiana associado a uma crítica ao presente e ao discurso histórico, é que será criada em

meados da década de noventa, em Rondônia, a Hermenêutica do Presente, disposta a estabelecer uma guerrilha

teórica com o estabelecido como forma de desnaturalizar e desobjetificar o presente, transformando-o em matéria

magmática capaz de criar e recriar o estabelecido.

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Na definição de Alberto Lins Caldas: “Aquilo que denominamos Hermenêutica do Presente tem se apresentado, antes

de tudo, como uma leitura radical (o redimensionamento das ações, do ser, dos saberes, das existências, dos

discursos), e uma das funções dessa leitura é iniciar outra reflexão e outra ação, fora de um conhecimento e um

saber positivos (seu rastro é negativo, não é a contrapelo: é tosa, corte, dessecação, calcinação, dissolução) (2000:

5).

Penso que este percurso traçado ate o parágrafo anterior é necessário para demonstrar o caminho que a História Oral tem seguido desde a sua invenção na

década de quarenta do século passado até o presente momento. Ele é importante porque é a partir de um desdobramento dessa História Oral que se pôde vislumbrar

a interpretação desnaturalizante do presente. Hoje há quem pense que a hermenêutica que fazemos já não tem mais nenhum vínculo com a História Oral, contudo

ainda é uma matéria privilegiada para a construção de textos virtualizantes.

O que caracteriza e aproxima a Hermenêutica do Presente e a História Oral é o fato de percebermos que as narrativas das experiências de vidas coloca o

hermeneuta em contato com o presente, enquanto múltiplas dobras que contém o passado, já que as entrevistas se processam como um constructo permanente, que

é recriada cada vez que o colaborador narra suas experiências.

Essa perspectiva difere, radicalmente, da História enquanto disciplina, na medida em que a matéria com que trabalha o historiador são as cinzas, ou os

vestígios daquilo que se imagina ter existido, até mesmo porque não é da competência da História estudar o presente, no que pese as tendências atuais que prezam

por uma história do presente e de caráter arquivista, já que não pode analisar os fatos em função da proximidade existente entre o historiador e o seu objeto de

estudo. As entrevistas por sua vez, não colocam imediatamente o hermeneuta em contato com esse magma que é o presente, já que o presente não é um já feito e

sim um em se fazendo, em construção.

Para a Hermenêutica do Presente dois conceitos são de fundamental importância: o primeiro é a de Cápsula

Narrativa, que transforma o discurso do colaborador em algo construído no movimento do tempo da narrativa, ou

seja, o colaborador não é um soldado da borracha ou militante partidário, mais um sujeito virtual que se constitui na

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medida em que narra suas experiências de vida, isso implica em uma prática onde o oralista não mais formula um

questionário de perguntas do tipo: onde você nasceu? Como foi a sua infância? Etc.

O segundo conceito é o de textualização, que assegura ao oralista a possibilidade de mexer no texto para torná-lo mais compreensível para o leitor, acreditada-se que ao

interferir no texto, reforça a vitalidade da virtualidade do presente e do mundo. É o momento em que o hermeneuta interage com a narrativa do colaborador, só que esse

processo não se inicia com o texto escrito, pois tem início desde o momento em que é estabelecido o primeiro contato com o colaborador.

Esses dois conceitos são, por assim dizer, fundamentais para a hermenêutica do presente porque partem de pressuposto: o primeiro (cápsula), de que ao

elaborar as questões para serem respondidas pelos entrevistados (colaboradores) o oralista (entrevistador) projeta no outro todas as noções de temporalidade:

passado, presente e futuro; preconceitos do tipo pobre, rico, homem, mulher, negro, branco soldado da borracha, hanseniano ou petista, sem permitir que o outro se

constitua, se diga como se percebe e sim como o oralista gostaria que o outro fosse, um mero objeto de pesquisa.

Quanto ao segundo conceito (transcriação) é fundamental porque reforça no imaginário do hermeneuta a noção de virtualidade, sabemos que a transcriação

não é só a passagem do texto oral para o escrito, ela se dá quando planejamos entrevistar o outro, quando entrevistamos e quando operamos a mudança de código.

E a virtualidade é confirmada quando levamos os textos para serem conferidos pelos colaboradores, na maioria das vezes eles nos afirmam “é isso mesmo”, “eu não

acredito que podia contar toda a minha vida, embora ela esteja toda aí como aconteceu”.

São esses dois conceitos que diferenciam o trabalho que realizamos do tipo de história oral desenvolvido por Meihy.

Para Meihy as entrevistas são entrevistas no sentido literal do termo, enquanto para nós não há, ao menos no

primeiro momento, entrevista nenhuma, já que não elaboramos perguntas aos colaboradores, eles iniciam os seus

relatos de onde bem desejam e terminam da mesma maneira, alias é isso que denominamos de Cápsula Narrativa. O

segundo elemento é decorrente do primeiro, como Meihy trabalha com perguntas e resposta sente a necessidade de

ocultar as perguntas nas respostas, já que as respostas contém as perguntas, esse processo é denominado de

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transcriação, nós entendemos esse processo de forma bastante diferenciada, ou seja, a transcriação se inicia quando

estabelecemos os primeiros contatos com os colaboradores.

Para muitos críticos da Hermenêutica do Presente esse processo acaba por retirar a objetividade necessária aos textos, e confere uma certa subjetividade aos

textos acadêmicos. Essa é uma questão irrelevante para os hermeneutas já que sabem que, desde Karl Popper passando por Gaston Bachelard os cientistas deveriam

saber que não existe na ciência um movimento do real para o imaginário e sim um imaginário fundante, que cria e recria o que denominamos de real.

A História Oral praticada pelo Hermeneuta não tem o objetivo clássico de investigar uma área do conhecimento pouco conhecida, tampouco tem a intenção de preencher

lacunas nos documentos existentes, já que o conhecimento também é visto como parte constitutiva do presente que precisa ser desnaturalizado pelo Hermeneuta.

Quando afirmo que o tipo de História Oral desenvolvido por Meihy do qual nos apropriamos e redimensionamos não é percebida e explorada por ele, aparece

enquanto insinuação no Manual de História Oral, quando o mesmo admite a virtualidade da narração dos colaboradores ao afirmar:

“a questão da verdade neste ramo da história oral depende exclusivamente de quem dá o depoimento. Se o narrador diz, por exemplo, que viu um disco voador, que esteve em outro planeta, que é a encarnação de outra pessoa, não cabe duvidar. Afinal, este tipo de verdade constitui um dos eixos de nossa realidade social e, em último caso, não buscamos saber se existem (ou não) ovnis (objetos voadores não-identificado)s ou espíritos. Nossa busca implica entender a forma de organização mental dos colaboradores” (2000: 63, 64).

Aqui penetra toda a fertilidade do Hermeneuta, ou seja, ele parte do princípio de que o texto do colaborador não diz

a sua história, nem tampouco a história do grupo, mas aponta para as múltiplas dimensões do presente, ou seja,

sua virtualidade. Ao narrar suas experiências de vida o colaborador constrói sua história, o seu presente e

redimensiona o seu futuro, pois todos os tempos estão presentes em seu discurso.

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A entrevista transcriado, ou como denomina Meihy textualizada, se apresenta como qualquer texto, o que diferencia

o trabalho da hermeneuta é a leitura que ele fará das entrevistas transformadas em texto, o hermeneuta não se

prostra diante do texto como faz o historiador que o toma como objeto sagrado, portador de uma revelação. Outro

elemento que caracteriza o trabalho do hermeneuta é a leitura ou melhor, o tempo da leitura para o hermeneuta sua

leitura se dá concomitantemente com a dos demais leitores.

Para estabelecer esta leitura o hermeneuta se fundamenta em uma teoria textual que perpassa por Roland Barthes,

Michel Foucault, Gaston Bachelard, e as teorias textuais contemporâneas. Desse emaranhado de autores surge a

concepção de texto virtual. O texto virtual não é uma categoria diferente de texto, não é o texto escrito na rede de

computadores, o texto virtual é qualquer texto, pois todo texto nos remete e nos transporta para outros textos.

Penso ser necessário estabelecer as relações desses autores e a teoria de interpretação que utilizamos para as leituras das entrevistas, sei que as bases já

estão lançadas em vários escritos do Caderno de Criação, inclusive um de minha autoria, contudo, esse artigo não pretende esgotar o assunto e sim apresentar a

relação existente entre a História Oral desenvolvida por Meihy e a Hermenêutica do Presente.

Quando o cientista social se defronta com seus textos, quer sejam grafados, pintados, vestígios de cerâmica ou quaisquer que sejam suas manifestações,

procuram estabelecer uma verdade a partir dele, pressupõe que existe uma interpretação capaz de revelar o sentido oculto, a intenção de quem o escreveu,

perpassando por quem o guardou para encontrar a revelação do texto.

O texto acaba revelando o que o pesquisador quer que ele revele, e os resultados apresentados pelo mesmo, normalmente não permitem ao leitor construir

outra interpretação, já que os documentos não são apresentados na integra, e quando aparecem é para corroborar com as hipóteses do pesquisador. Não é por acaso

que a História Oral tem proliferado dentro e fora dos meios universitários, já que “Uma das razões que explicam a adesão brasileira às práticas da história oral é a

frustração reinante nos círculos acadêmicos, que não mais se satisfazem com os resultados anteriores” (Meihy, 2000: 46).

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Ao apresentarmos o texto transcriado na integra fazemos para assegurar a polissemia textual, ou seja, desejamos que o texto continue em seu processo de

transcriação, que não se encerra com a publicação do texto, mas se multiplica infinitamente a cada nova leitura, a cada contato de textos e virtualidade: dos texto

escritos e dos textos leitores.

O texto final ou a interpretação é um momento específico do hermeneuta, onde ele vai além do texto, buscando os textos que perpassam a fala do

colaborador, os discursos que lhe atravessam e lhe dão a formatação momentânea. É também o momento de desnaturalizar o estabelecido, já que a principal

atividade do hermeneuta é guerrilhar com o estabelecido, o naturalizado e universalizado.

A virtualidade do texto não é uma característica dos textos literários, ou ao menos não é uma particularidade sua. Todo texto é permeado de vozes e de textos

que se reportam a outros e enquanto tal requer um leitor virtualizante, que não se contente em decorar o texto, tampouco se satisfaça com o prazer do texto, mas

que se proponha a construir outros textos, desfaça a tessitura textual.

O texto não é constituído de sentidos, o sentido não pode estar no texto se o tivesse só seria possível leituras únicas, contudo todo leitor que leu um texto ou livro

mais de uma vez percebe que encontrou sentidos antes não contidos nos mesmo. Onde então estariam estes sentidos? Estariam ocultos? O leitor não dispunha de

instrumentos capazes de desvelar na primeira leitura? Acreditamos que nem o primeiro, o segundo ou o milésimo sentido atribuído ao texto estava inscrito nele.

A leitura também não pode ser um exercício de descobrir a intenção do autor, como pretende muitos professores e alunos, que acreditam ser necessário

descobrir o que o autor queria dizer. Para tal é feito todo um malabarismo que inclui a busca da história “contexto de produção” para perceber o que o autor poderia

estar querendo afirmar, como se não fosse possível interpretar um texto de autor desconhecido.

A questão do autor é outra particularidade que precisa ser enfrentada pelo hermeneuta para que ele possa realizar uma leitura livre de amaras, já que quase

sempre o autor é um empecilho para uma leitura virtualizante. A categoria autor pressupõe inicialmente a idéia de originalidade, a questão no discurso e no texto é

perceber a origem do enunciado, qual a sua intenção. Se o hermeneuta percebe que o texto se inscreve em uma ordem discursiva, e que o dito já fora dito em outros

momentos, não existe razão em buscar a autoridade do autor, muito menos a intenção do texto.

A questão da autoria em História Oral exige por si uma reflexão. Quando o historiador se depara com um texto ou documento atribuí posição de destaque, ele

aparece citado em notas de rodapé, na bibliografia etc., é de certa maneira sacralizado. Em História Oral o texto é construído em parceria entre o Oralista e o

Colaborador, e mesmo que se diga que sem a presença do Oralista o texto não existiria, sem o colaborador não haveria sequer entrevista e por conseqüência texto.

Se o texto é construído nessa relação “eu” “tu” já contém em si toda a virtualidade da junção de seres que se constituem. O outro só existe enquanto

projeção, construção do interlocutor que é também construção do outro. Não existiria hermeneuta sem a existência do outro, que cria e é criado na relação dialógica,

sem o outro não há diálogo nem tão pouco interpretação.

Eliminado a questão do autor e do texto enquanto referente, o hermeneuta se sente liberto das amaras existentes em textos que são considerados portadores

de um segredo ou de uma revelação. O texto passa a ser instrumento de desnudamento da realidade

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Penso que a relação existente entre a História Oral e a Hermenêutica do Presente ainda pode produzir inúmeros frutos, na medida em que a oralidade tem se

constituído como a principal matéria com o qual os colaboradores se dizem e dizem todo presente. Os textos do “passado” também dizem o presente, não porque se

encadeiem em um amaranhado de causalidades, mas porque o presente contém todo passado, já que o passado só existe enquanto discurso do presente, contudo o

texto ou reminiscência de textos do passado não possibilitam o leque que a oralidade permiti.

Sei que as entrevistas têm se tornado cada vez mais em pretexto para escrevermos outros textos, dizer e criar um outro presente outras possibilidades,

construir outra formatação para o mundo e para nós mesmos, porém sinto que nenhum de nós quer abrir mão da oralidade enquanto suporte necessário para tais

construções.

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Page 67: Volume VII

67

UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO)

CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE

PRIMEIRA VERSÃO ANO II, Nº106 - JULHO - PORTO VELHO, 2003

VOLUME VII

ISSN 1517-5421

EDITOR

NILSON SANTOS

CONSELHO EDITORIAL ALBERTO LINS CALDAS - História ARNEIDE CEMIN - Antropologia

ARTUR MORETTI - Física CELSO FERRAREZI - Letras

FABÍOLA LINS CALDAS - História JOSÉ JANUÁRIO DO AMARAL – Geografia MARIA CELESTE SAID MARQUES - Educação

MARIO COZZUOL - Biologia MIGUEL NENEVÉ - Letras

VALDEMIR MIOTELLO – Filosofia

Os textos de até 5 laudas, tamanho de folha A4, fonte Times New Roman 11, espaço 1.5, formatados em “Word for Windows”

deverão ser encaminhados para e-mail:

[email protected]

CAIXA POSTAL 775 CEP: 78.900-970 PORTO VELHO-RO

TIRAGEM 200 EXEMPLARES

EDITORA UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA

ISSN 1517-5421 lathé biosa 106

A MAIOR OBRA DE ARTE DO MUNDO É MADEIRISTA?

Heidi Gheerardijn & Onica Van Fleteren

PRIMEIRA VERSÃO

Page 68: Volume VII

Heidi Gheerardijn & Onica Van Fleteren A Maior Obra de Arte do Mundo é Madeirista? http://millennium.arts.kuleuven.ac.be/studentcs/portal/cyberessays/papers_final/gheerardijn_vanfleteren.htm Lovania University – Belgium – Mar/2002.

"visitei hoje, uma coisa que não pude nem dizer que é arte,mas com certeza é a maior dimensão feita pela menor porção de cérebro do mundo"

([email protected]) e-mail enviado ao autor.

O conceito parece simples. A primeira coisa você vê quando entra em http://www.enter-net.com.br/LineAlvarez/index00.htm é o título do trabalho, três opções

de idioma (português, espanhol e inglês) e os links para museus digitais e outras galerias de arte em locais relacionados, tudo contra um fundo preto. Mas quando nós

"entramos" (outro exemplo de espaço virtual /ilusão de espaço) no site, uma pergunta chave sobre a arte é trazida a atenção. Imediatamente vemos o começo de

uma linha. Mas que tipo de linha? Esta linha parece perguntar "o que é arte?" e "o que é infinidade?". O site propõe algumas possíveis respostas por meio de citações

de alguns artistas famosos, ou menos famosos, ao longo da História.

É provável que a Linha Alvarez seja a maior obra de arte existente até hoje. É bem grande: 568,188km. Certas dimensões na Linha Alvarez estão marcadas

com obras de arte que se equivalem dimensionalmente ao longo da História da Arte, organizadas por altura ou comprimento.

A obra de Alvarez conclui com uma pergunta a 568,188km: isto é o "Fim?". A linha dele já foi precedida por outra tentativa para criar um artefato muito longo,

por Laue em Colonia/Alemanha/1999 (563,62km) autor da maior homepage do mundo. Aparentemente sem qualquer dificuldade Alvarez conseguiu somar 4,568km a

este registro. Quando perguntado sobre o que o motivou a criar uma arte digital assim, Alvarez mencionou que "quis questionar o software e suas possibilidades

físicas. O código de HTML é limitado, mas nos permite percorrer uma distância de 568,188km em só um segundo. Se você segurar o mouse sobre a seta de rolagem,

leva quase duas semanas inteiras antes de você alcançar o fim da Linha."

É significativa essa arte enquanto questionamento. Esta obra de arte de particularmente questiona os limites de arte e, especificamente a web-art.

A arte nunca surge do nada. Toda novidade artística é constituída através de uma tradição precedente na história da arte. O mesmo aspecto de intertextualidade ocorre

na arte digital. Seus métodos poderiam ter mudado drasticamente mas seus conteúdos permanecem baseados na arte tradicional (Yip & Ptasznik, 2001). Joesér Alvarez estudou

história e, mais especificamente, história da arte. Fez cursos de escultura, gravura, música e computação gráfica. Na arte, ele diz, há determinados pontos de ruptura, e um destes

pontos de ruptura que o inspirou a fazer a "Maior Obra de Arte do Mundo" foi Piero Manzoni, o autor da primeira linha.

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Piero Manzoni nasceu em 1933 na Itália e morreu em 1962. Em sua educação, teve formação em arte clássica e estava inspirado principalmente pelo

expressionismo. Desde pequeno até os 15 anos, começou fazendo impressões de objetos como chaves e tesouras e depois passou à pintura. Em 1959, Manzoni

produziu as primeiras Linhas dele: rastros de tinta em rolos de papel de dimensões variáveis lacrados em tubos de papelão. As Linhas eram os meios mais efetivos que

Manzoni achou para expressar seu conceito do infinito. Em 1960, numa viagem de Manzoni para Herning, Dinamarca ele produziu a Linha mais longa de sua carreira

em um rolo de papel de impressão com 7200 metros, lacrando-a em um recipiente de chumbo (e, é a esta Linha a que Alvarez se refere na "Maior Obra de Arte do

Mundo"). Manzoni quis que a Linha de Herning fosse a primeira de uma série de linhas extremamente longas. Ele escreveu em Projetos Imediatos (1962): "eu

deixarei um exemplar em cada uma das cidades principais do mundo até que a soma de todos os tamanhos iguale a circunferência da terra". (citado em Van der

Marck, 1973). De uma linha traçada ao redor do globo (não na prática), nós vamos agora ao conceito de uma coleção de linhas que somariam a dimensão desejada.

Um total de 5555 cidades teriam de ser encontradas se todas as linhas fossem da dimensão da Linha de Herning, e haveria uma soma grande de pessoas envolvidas,

despendendo energia e capital na conclusão deste projeto (Van der Marck, 1973).

Joesér Alvarez é parte de um movimento com influências dadaístas, chamado "Madeirista" (de artistas que vivem ao redor do rio "Madeira", na Amazônia brasileira).

Em seu Manifesto, os "Madeiristas" falam como sentem tudo limitado. Para os Madeiristas, nada basta, deveríamos tentar e penetrar todos os limites, desfrutar todos os

sonhos. Deveríamos fazer arte sem sentido para dar-lhe significado novamente. Em sua tentativa para alcançar esta infinidade, Alvarez usa a arte digital. Como Manzoni quis

cercar nosso mundo com uma linha, Alvarez quer ir além, e parece que, a tecnologia de computador lhe permitirá fazer isto. O computador e seu software podem ter suas

limitações, as possibilidades criativas que provêem nos permite criar "objetos", " lugares", "espaços" que não seriam possíveis no mundo real. O Manifesto "Madeirista"

termina com esta pergunta: "Onde está tua voz?". Numa "linha" com esta possibilidade, Alvarez se admira de que outras pessoas na Net não se preocupem com projetos

semelhantes à sua "Maior Obra de Arte do Mundo". As possibilidades estão disponíveis, por que não utilizá-las?

Inspirado por Manzoni, mas também por Christo & Jean-Claude, artistas que trabalham com dimensões enormes, Alvarez olha para a enormidade do infinito.

Uma pista para este fato pode também se achar na informação de fundo que Alvarez dá aos trabalhos linkados à sua Linha. Toda imagem na Linha é clicável e remete

a um outro link ...

No começo deste artigo, discutimos como o chegar a novas informações e como as tecnologias de comunicação influenciaram as mudanças de nosso conceito

de identidade. Nós falamos aproximadamente como esses que moram no ciberspaço podem "jogar" com suas identidades, como podem inventar, reinventar e

apresentar suas idéias por meio de um computador. Nós falamos como as possibilidades criativas da tecnologia digital nos permitem ir além de nossas limitações

conhecidas. O que era pesado no mundo real fica leve em ciberspaço, o que era pequeno, enorme, em um só segundo nós podemos viajar 568,188km… Através da

desconstrução de nossos limites familiares de espaço e tempo, nós criamos uma nova incerteza, uma linha tênue entre a fantasia e realidade. Alvarez fez desta, uma

linha bastante literal. Existe, fisicamente, em um computador, existe também sem uma conexão de internet, mas não pode existir fora de um computador. Este seria o

aspecto da fantasia, então. Nós não podemos puxar um pedaço de papel com uma linha de 568,188 km e pôr todas as artes e monumentos neste, como Alvarez fez.

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Para ele, como declarou antes, "arte é questionamento". A web-art deveria nos fazer pensar em nossas possibilidades e limitações. "A Maior Obra de Arte do

Mundo" é sua tentativa para alcançar o infinito. Uma tentativa que indubitavelmente será seguida por uma quantia ilimitada de outras tentativas…

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Page 71: Volume VII

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO)

CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE

PRIMEIRA VERSÃO ANO II, Nº107 - JULHO - PORTO VELHO, 2003

VOLUME VII

ISSN 1517-5421

EDITOR

NILSON SANTOS

CONSELHO EDITORIAL ALBERTO LINS CALDAS – História - UFRO

CLODOMIR S. DE MORAIS – Sociologia - IATTERMUND ARTUR MORETTI – Física - UFRO

CELSO FERRAREZI – Letras - UFRO HEINZ DIETER HEIDEMANN – Geografia - USP JOSÉ C. SEBE BOM MEIHY – História – USP

MARIO COZZUOL – Biologia - UFRO MIGUEL NENEVÉ – Letras - UFRO

SILVIO A. S. GAMBOA – Educação - UNICAMP VALDEMIR MIOTELLO – Filosofia - UFSC

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EDUCAÇÃO AMBIENTAL, PARÂMETROS CURRICULARES E UNIVERSIDADE

MONICA LOPES FOLENA ARAUJO

PRIMEIRA VERSÃO

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Mônica Lopes Folena Araujo EDUCAÇÃO AMBIENTAL, PARÂMETROS CURRICULARES E UNIVERSSIDADE Professor do Departamento de Biologia – UFRO [email protected]

“ A arte de ensinar a aprender consiste em formar fábricas, não armazéns”. Jaime Balmes

Quando o assunto é meio ambiente, os prognósticos para os próximos cem anos são alarmantes. Como meio ambiente entende-se o “conjunto dos elementos

que, na complexidade das suas relações, constituem o quadro, o meio e as condições de vida do homem, tal como são, ou tal como são sentidos” (Canotilho, 1995, p.

10). Não se trata apenas de exagero dos ambientalistas. A preocupação com o desenvolvimento sustentado ganhou espaço em universidades, governos e grandes

empresas. Finalmente percebeu-se que, se há um limite para o crescimento das atividades do homem na Terra, essa linha divisória é justamente o modo como o ser

humano interage com a natureza. Ruschmann (1999) afirma que “a inter-relação entre produção e meio ambiente é incontestável, uma vez que este último constitui a

matéria prima da atividade. Atividade esta que deve ser avaliada e seus efeitos negativos, evitados, antes que esse valioso patrimônio se degrade irremediavelmente.”

Apenas na década de 70 é que, pela primeira vez, depois do modelo de desenvolvimento gerado a partir da revolução industrial as questões ambientais

passaram a ser oficialmente encaradas como questões globais, e de governos. A Conferência de Estocolmo em 1972 marca o início do processo de compromissos

mundiais intergovernamentais e interinstitucionais acerca da minimização dos impactos da ocupação humana sobre o meio ambiente.

Desde os primeiros movimentos ambientalistas a educação foi considerada um instrumento fundamental de sensibilização, conscientização, comunicação,

informação e formação das pessoas como processos fundamentais para a promoção do desenvolvimento sustentável, da consciência ambiental e da ética, de mudança

de valores, de comportamento e da efetiva participação nas tomadas de decisões no ensino formal e informal.

Na Constituição Brasileira de 1988, o artigo 225 enfatiza “ todos têm direito ao Meio Ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e

essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”. No

parágrafo 1º, inciso VI determina: “ Promover a Educação Ambiental (EA) em todos os níveis de ensino e conscientização pública para a preservação do Meio

Ambiente”. Já a promulgação da lei 9795/99 instituiu a Política Nacional de Educação Ambiental (PNEA), oferecendo amparo legal à EA , responsabilizando e

envolvendo todos os setores da sociedade, e incorporando oficialmente a EA nos sistemas de ensino.

A busca ao desenvolvimento sustentável é o desafio do momento. O Tratado de Educação Ambiental para Sociedades Sustentáveis e Responsabilidade Global,

elaborado durante a realização da Eco-92 enfatiza que a EA deve envolver uma perspectiva holística, enfocando a relação entre o ser humano, a natureza e o universo

de forma interdisciplinar. Segundo Lanfredi (2002), “A Agenda 21, que é o principal documento da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e

Desenvolvimento Humano (Rio-92), é a metodologia mais consistente para alcançar o desenvolvimento sustentável.”

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Em função de tudo isso, a Educação Ambiental tem o importante papel de fomentar a percepção da necessária integração do ser humano com o meio ambiente.

Uma relação harmoniosa, consciente do equilíbrio dinâmico na natureza, possibilitando, por meio de novos conhecimentos, valores e atitudes, a inserção do educando

e do educador como cidadãos no processo de transformação do atual quadro ambiental do nosso planeta.

Estabelece a Carta Magna que um dos instrumentos para assegurar a efetividade do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado é, justamente, “a

educação ambiental em todos os níveis de ensino e a conscientização pública para a preservação do meio ambiente” (Lanfredi, 2002). De fato, a educação ambiental

deve começar em casa, ganhar ruas e bairros. Deve gerar conhecimento local e global que envolva pais, alunos, professores e comunidade.

E Seguin (2000) acrescenta que apesar das louváveis iniciativas de vários segmentos da sociedade para implementar a EA nos diversos níveis escolares, ela

ainda não teve o retorno que merece. É precário no ensino de 3º grau, quando a maioria dos cursos de nível superior não ministram a disciplina, impossibilitando que

os futuros profissionais tenham noção de como podem e devem participar da preservação ambiental.”

Para alcançarmos uma formação de cidadãos capazes de transformar o ambiente, identificando seus elementos e as interações entre eles, e contribuindo

ativamente para a melhoria do mesmo, Reigota (1994) enfatiza que a Educação Ambiental não deve estar baseada, somente, na transmissão de conteúdos

específicos, levando em conta a não existência de um conteúdo único, mas sim de vários dependendo das faixas etárias a que é destinado o contexto educativo. Há

também uma grande tendência em considerar a EA como conteúdo integrado às ciências físicas e biológicas. Essa necessidade de se encontrar conteúdos, de cumprir

programas, é um empecilho ao entendimento correto da EA.

Neste contexto os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) para temas transversais foram elaborados pelo Ministério de Educação e do Desporto (MEC) em

1998 com a intenção de ampliar e aprofundar um debate educacional que envolva escolas, pais, governos e sociedade e dê origem a uma transformação positiva no

sistema educativo brasileiro. Foram incorporadas como temas transversais as questões da Ética, da Pluralidade Cultural, do Meio Ambiente, da Saúde, da Orientação

Sexual e do Trabalho e Consumo.

Este trabalho tem por objetivo mostrar que as instituições de ensino superior podem ajudar professores de todos os níveis de ensino a implementar a educação

ambiental transversalmente como propõem os PCNs, contribuindo assim para a formação inicial e continuada de educadores voltados à educação do futuro.

PCNs

Os Parâmetros Curriculares Nacionais são documentos apresentados como resultado do trabalho que contou com a participação de muitos educadores

brasileiros e têm a marca de suas experiências e de seus estudos, permitindo assim que fossem produzidos no contexto das discussões pedagógicas atuais.

Inicialmente foram elaborados documentos, em versões preliminares, para serem analisados e debatidos por professores que atuam em diferentes graus de ensino,

por especialistas da educação e de outras áreas, além de instituições governamentais e não - governamentais. As críticas e sugestões apresentadas contribuíram para

a elaboração da atual versão, que deverá ser revista periodicamente, com base no acompanhamento e na avaliação de sua implementação.

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PCNs e Temas Transversais

A inserção dos temas transversais, sem abrir mão dos conteúdos curriculares tradicionais, é uma tentativa de se influir no processo de transformação social; e

não podemos negar o papel institucional da escola e seu potencial de influir significativamente na transformação da sociedade. Mas, para tal a realidade escolar

precisa passar por uma mudança de perspectiva, em que os conteúdos tradicionais deixem de ser encarados como “fim” da Educação. Eles devem ser encarados com

“meio” para a construção da cidadania e de uma sociedade mais justa, como evoca Montserrat Moreno (2001).

O país que mais aprofundou a proposta dos temas transversais até o momento foi a Espanha. A inclusão de temas transversais sistematizados em um

conjunto de conteúdos considerados fundamentais para a sociedade surgiu na reestruturação do sistema escolar espanhol em 1989, com o objetivo de tentar diminuir

o fosso existente entre o progresso tecnológico e a cidadania.

Os temas transversais incorporados na reforma educacional espanhola foram: Educação Ambiental, Educação para a Saúde e Sexual, Educação para o

Trânsito, Educação para a Paz, Educação para a Igualdade de Oportunidades, Educação do Consumidor, Educação Multicultural e, como tema nuclear, impregnando

todos os demais temas e as matérias curriculares tradicionais, a Educação Moral e Cívica.

Diferente da proposta espanhola, os PCNs incorporaram os temas transversais nas disciplinas convencionais, relacionando-as à realidade. A intenção foi trazer

uma nova possibilidade de trabalho pedagógico que permitisse o engajamento político-social com o conhecimento, ampliando ,assim, a responsabilidade do educador

com a formação voltada à cidadania.

Neste aspecto, a abordagem a partir dos temas transversais pode significar um salto de qualidade tanto no processo de formação dos alunos, que passariam a

entender o significado do que estudam, como dos professores, estimulados a enfrentar o conhecimento de forma mais criativa e dinâmica.

PCNs e a Educação Ambiental

A Educação Ambiental se tornou uma das coqueluches nas escolas brasileiras. Fazem parte dos conteúdos de EA do 3º e 4º ciclos desde formas de

manutenção de limpeza do ambiente escolar, práticas orgânicas na agricultura, modos de evitar o desperdício até como elaborar e participar de uma campanha ou

saber dispor dos serviços existentes, como órgãos ligados à prefeitura ou organizações não-governamentais (ONGs). Os alunos devem reconhecer os fatores que

geram bem-estar à população. Para isso, precisam desenvolver senso de responsabilidade no uso de bens comuns e recursos naturais, de que respeitem o ambiente e

as pessoas. Outra frente de trabalho é fazer com que os jovens valorizem a diversidade natural e sociocultural, para compreender as diferentes faces do patrimônio

natural, étnico e cultural.

Orientadores que elaboraram os PCNs se depararam com duas dificuldades para propor a seleção de conteúdos para o tema transversal de Meio Ambiente: a

amplitude da temática ambiental e a diversidade da realidade brasileira, com tantas características regionais. Esses fatores também se aplicam aos professores em

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sala de aula. Para facilitar o direcionamento do tema, foi definida como parâmetro uma aprendizagem que aborde as questões amplas e, ao mesmo tempo, atente às

especificidades regionais. As turmas do Sul não devem, necessariamente, aprender o mesmo que as do Norte. Os conteúdos devem abranger: postura participativa,

com a conscientização dos problemas ambientais; possibilidade de sensibilização e motivação para envolvimento afetivo; desenvolvimento de valores para exercício da

cidadania, como agentes de gerenciamento do ambiente; visão integrada da realidade, contemplando a dinâmica local e planetária e desvendando causas e problemas

ambientais; assuntos compatíveis com os conteúdos desses ciclos e que sejam relevantes à realidade brasileira.

Não há dúvida que a educação ambiental é a conexão necessária para transformar nosso presente, com suas características consumistas, em um futuro

sustentável onde produção e meio ambiente convivam harmonicamente. Os PCNs trazem ferramentas com o objetivo de ajudar professores e alunos a tornarem-se

parte integrante e transformadora dessa máquina chamada produção globalizadora. Nossas escolas não são a solução para todos os problemas ambientais que

testemunhamos, mas podem ajudar a formar cidadãos mais comprometidos com o futuro desse planeta.

Precisamos parar de reproduzir o mundo do “eu-isso” tão mencionado por Rubem Alves (2002), onde as pessoas consideram-se o centro do mundo, em torno

das quais giram apenas objetos que podem ser manipulados, destruídos. O meio ambiente não é um objeto, e ele responde às agressões que sofre. Então, precisamos

“conversar” com ele, compreendê-lo, tê-lo como aliado, não como algo a ser explorado indefinidamente.

A inclusão da Educação Ambiental como tema transversal pelos PCNs exige, portanto, uma tomada de posição diante de um problema fundamental e urgente

da vida social, o que requer uma reflexão sobre o ensino e a aprendizagem de seus conteúdos: valores, procedimentos e concepções a eles relacionados. Para Freire

(1988), “A educação libertadora é incompatível com uma pedagogia que, de maneira consciente ou mistificada, tem sido prática de dominação. A prática da liberdade

só encontrará adequada expressão numa pedagogia em que o oprimido tenha condições de, reflexivamente, descobrir-se e conquistar-se como sujeito de sua própria

destinação histórica.”

Para a implantação da EA como tema transversal podemos evidenciar três dificuldades: a busca de alternativas metodológicas que façam mudar o enfoque

disciplinar da EA, que atualmente recai apenas para Ciências Físicas e Biológicas; vencer a estrutura curricular que exige conteúdos mínimos, grade horária, etc; e

estimular professores a criar condições de trabalho que exigem criatividade.

Aqui exige-se repensar o papel do professor enquanto transmissor de conhecimentos, para uma nova ação reflexiva e criativa. Cabe à escola ser o instrumento

a serviço da coletividade, cumprindo e fazendo cumprir o exercício da cidadania.

Em consulta a dados levantados pela SEDUC (Secretária de Estado da Educação) junto às Representações de Ensino referentes ao quadro atual da EA nas

escolas da rede estadual, no período de fevereiro a junho de 2001, podemos constatar que dezoito projetos em EA estavam em desenvolvimento na época visando

melhoria do ambiente escolar; quinze projetos atuavam de modo transversal, como orientado pelos PCNs; dezesseis projetos atuavam somente em datas

comemorativas relacionadas ao MA; e apenas dois incluíam ações envolvendo a comunidade. Esses dados demonstram que o processo de implantação da EA está

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apenas “engatinhando” nas escolas públicas estaduais no município de Porto Velho. Existe a expectativa em torno dos Parâmetros Curriculares em Ação – Meio

Ambiente na Escola, que compreendem ações sugeridas pelo MEC para sistematizar e ampliar a implantação da EA nas escolas ainda em 2002.

Educação Ambiental e Formação de Professores nas Universidades

Resultados do Levantamento de Projetos de EA do Ministério do Meio Ambiente (MMA) e do MEC, apresentados durante a I Conferência de EA, realizada em

Brasília, em 1997, afirmam que: “ Os baixos índices de respostas sobre questões metodológicas, avaliação de projetos, construção de interdisciplinaridade, política

governamental de desenvolvimento sustentável, divulgação da Agenda 21, sugerem um estágio ainda inicial da EA no país, pouca sofisticação em relação à

problemática, ou ainda que a EA não atingiu as universidades”.

As universidades brasileiras em seus cursos de licenciatura continuam a preparar profissionais transmissores, donos da verdade, que detêm o saber; embora

haja esforços de renovação e inovação da formação inicial. É preciso orientar-nos na direção que a formação não implica somente o saber, mas também o saber-fazer,

o poder-fazer (competências), o ser pessoal. Cró (1998) lembra-nos que a “competência para educar é apresentada como uma aprendizagem da autonomia

profissional e pessoal que implica uma interiorização das personalidades inerentes às tarefas do educador”.

Quando se pensa na viabilidade da Educação Ambiental como tema transversal, é necessário cuidar da formação inicial e continuada e das condições salariais

e de atuação profissional, que poderiam constituir-se, isoladamente, em medidas paliativas, mas não em soluções. Achar que o problema de verba pode salvar a

educação é o mesmo que dizer que um mau cozinheiro pode fazer pratos maravilhosos se possuir panelas sofisticadas, como tão bem exemplifica Alves (2002).

A formação contínua, tão defendida por Freire, surge como mais uma tentativa de implementar a EA, qualificando professores e adequando-os a uma

sociedade em constante transformação. Essa idéia é cada vez mais difundida, pois busca-se cada vez a modificação do papel do professor e da escola, especialmente

a pública, a única que recebe educandos com menos recursos, frutos das condições de desigualdade e injustiça social brasileira.

Leonardi (2001) enfatiza que a universidade tem um papel importante na formação ambiental dos profissionais que está colocando no mercado. E também

destaca que: “Os profissionais que a universidade está formando deveriam ser capazes de trabalhar em grupos multidisciplinares e em ações interdisciplinares, através

de uma leitura abrangente, global, holística, sistêmica e crítica da crise ambiental que vivemos.”

A universidade não pode deixar de participar desse debate. Assim, a EA deveria integrar os currículos dos programas de graduação, e a análise dos

Parâmetros Curriculares Nacionais deveria ser fomentada nas diversas unidades das instituições superiores. Cabe, portanto, à universidade promover articulações intra

e interinstitucionais, no sentido de favorecer a formação e a capacitação de profissionais competentes e preparados para engendrar mudanças no perfil educacional

brasileiro, em particular quanto à EA. As secretarias de educação e as ONGs também devem estar presentes nessa discussão.

Como os diferentes autores que têm trabalhado com a formação de professores e com a implementação de currículos têm alertado (Gonçalves, 1989; Reigota,

1995; Sorrentino, 1995; Penteado, 2001), no caso da incorporação da temática ambiental pela escola o envolvimento do professor é o primeiro passo a ser dado. O

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professor, além de sensibilizado e consciente da necessidade e da importância do tratamento dessa questão com seus alunos, deve estar preparado e

instrumentalizado para enfrentar esse desafio.

Nesse sentido, os cursos de formação inicial dos professores desenvolvidos nas universidades poderiam investir em uma estrutura curricular muito mais flexível

e dinâmica que facilitasse o tratamento das questões ambientais nos diferentes cursos de licenciatura por meio de experiências diversificadas e de uma abordagem

que envolvesse os vários aspectos desse tema. A criação de disciplinas com o intuito de responder a essa demanda apresenta sempre os limites impostos ao trabalho

disciplinar, embora não seja, necessariamente, uma experiência negativa.

A garantia em termos de implementação e continuidade do processo de capacitação de professores em EA e a aplicação das experiências vividas pelos

professores nas diferentes oportunidades de formação dependerão, sem dúvida alguma, do nível de envolvimento dos mesmos no próprio processo de formação. É

óbvio que não conseguiremos bons resultados em implemento de EA se o país não investir na formação e na capacitação de professores.

É interessante que sempre nos deparamos com discussões a cerca da capacitação de professores do ensino fundamental e médio. Mas a formação do

professor do ensino superior raramente é abordada.

Vasconcelos (2000) relata que “os cursos de pós-graduação, apesar de fornecerem os futuros docentes universitários, dedicam-se exclusivamente à formação

do pesquisador”. Muitas vezes são formados excelentes pesquisadores, mas docentes com sérias deficiências pedagógicas.

Tais pesquisadores, acostumados a receber conteúdos específicos como verdadeiros “armazéns” de conhecimento, tendem a reproduzir a mesma situação

como docentes. Suas aulas são puramente transmissão de informação e podem ser encaradas pelos mesmos como obrigação ou perda de tempo, pois poderiam estar

pesquisando e produzindo artigos para atender a comunidade científica.

O termo “docente” significa “aquele que ensina”, e ensinar é algo complexo, exige reflexão da condição humana. Para Morin (2001) há sete saberes

indispensáveis à educação do futuro:

• As cegueiras do conhecimento: o erro e a ilusão – é necessário introduzir e desenvolver na educação o estudo das características cerebrais, mentais, culturais dos

conhecimentos humanos, de seus processos e modalidades, das disposições tanto psíquicas quanto culturais que o conduzem ao erro e à ilusão.

• Os princípios do conhecimento pertinente – é necessário desenvolver a aptidão natural do espírito humano para situar todas as informações em um contexto e em

um conjunto.

• Ensinar a condição humana – é necessário evidenciar o elo indissolúvel entre a unidade e a diversidade de tudo que é humano.

• Ensinar a identidade terrena – é necessário conhecer o destino planetário do gênero humano.

• Enfrentar as incertezas – é necessário ensinar princípios de estratégia que permitiriam enfrentar imprevistos, o inesperado e a incerteza.

• Ensinar a compreensão – a compreensão é a um só tempo meio e fim da comunicação humana.

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• A ética do gênero humano – é necessário contribuir não somente para a tomada de consciência de nossa Terra-Pátria, mas também permitir que esta consciência

se traduza em vontade de realizar a cidadania terrena.

As necessidades sociais mudam rapidamente nesta época dominada pela tecnologia e as universidades precisam formar educadores, inclusive seus próprios

docentes, adaptados e comprometidos com a melhoria do processo educacional em todos os níveis de ensino.

Os sete saberes considerados por Edgar Morin como indispensáveis à educação do futuro sugerem como os professores podem acompanhas essas

necessidades sociais, este é o caminho para o trabalho em Educação Ambiental.

Conclusão

Neste trabalho procurou-se analisar a importância da formação inicial e continuada dos educadores para que os mesmos sejam capazes de entender e colocar

em prática as inovações propostas pelo MEC.

Os cursos de licenciatura oferecidos no ensino superior não preparam o profissional das mais variadas áreas para atender às sugestões dos Parâmetros

Curriculares Nacionais e inovar.

A educação ambiental visa a superação de nossos problemas ambientais, e isto depende da consciência ambiental e do exercício da cidadania. A universidade

tem uma importante contribuição a dar através da atuação de professores competentes para colocar os conhecimentos das Ciências Sociais a serviço da formação de

professores.

Os cursos de pós-graduação precisam dar maior atenção ao tripé Ensino-Pesquisa-Extensão, incentivando os docentes universitários a atuar nestes três

campos. Afinal, a universidade tem o papel de preocupar-se com a formação dos formadores, e não somente pesquisar e ter produção científica.

É preciso dar um passo transformador. Um passo em busca do ensino “formador” e não “informador”. Um passo em busca da inserção da educação ambiental

no currículo para garantia de nossa sobrevivência neste planeta. Este é o desafio colocado para professores de todos os níveis de ensino enquanto profissionais da

educação.

Bibliografia

ALVES, Rubem. POR UMA EDUCAÇÃO ROMÂNTICA. São Paulo: Papirus, 2002.

CANOTILHO, J. J. Gomes. PROTEÇÃO DO AMBIENTE E DIREITO DE PROPRIEDADE (Crítica de Jurisprudência Ambiental), Coimbra: Coimbra, 1995.

CRÒ, Maria de Lourdes. FORMAÇÃO INICIAL E CONTÍNUA DE EDUCADORES/PROFESSORES: ESTRATÉGIAS DE INTERVENÇÃO. Portugal: Porto Editora, 1998.

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FREIRE, Paulo. PEDAGOGIA DO OPRIMIDO. 18ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.

GONÇALVES, C. W. P.. OS (DES)CAMINHOS DO MEIO AMBIENTE. São Paulo: Contexto, 1989.

LANFREDI, Geraldo Ferreira. POLÍTICA AMBIENTAL: BUSCA DE EFETIVIDADE DE SEUS INSTRUMENTOS. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002.

LEONARDI, Maria Lúcia. “A educação ambiental como um dos instrumentos de superação da insustentabilidade da sociedade atual”. In: CAVALCANTI, Clóvis (org).

MEIO AMBIENTE, DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL E POLÍTICAS PÚBLICAS, 3ª ed. São Paulo: Cortez, 2001.

MORENO, Montserrat. Temas Transversais: um ensino voltado para o futuro. In: BUSQUETS, M. D.; MORENO, M. et. al. TEMAS TRANSVERSAIS EM EDUCAÇÃO:

BASES PARA UMA FORMAÇÃO INTEGRAL. 6ª ed. São Paulo: Editora Ática, 2001.

MORIN, Edgar. OS SETE SABERES NECESSÁRIOS À EDUCAÇÃO DO FUTURO. 4ª ed. São Paulo: Cortez; Brasília: UNESCO, 2001.

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PENTEADO, H. D. MEIO AMBIENTE E FORMAÇÃO DE PROFESSORES. 4ª ed. São Paulo: Cortez, 2001.

REIGOTA, Marcos. O QUE É EDUCAÇÃO AMBIENTAL. São Paulo: Brasiliense, 1994.

REIGOTA, Marcos. MEIO AMBIENTE E REPRESENTAÇÃO SOCIAL. São Paulo: Cortez, 1995.

RUSCHMANN, Doris. TURISMO E PLANEJAMENTO SUSTENTÁVEL. 4ª ed. São Paulo: Ed. Papirus, 1999.

VASCONCELOS, Maria Lúcia M. C.. A FORMAÇÃO DO PROFESSOR DO ENSINO SUPERIOR. 2ª ed. São Paulo: Pioneira, 2000.

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO)

CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE

PRIMEIRA VERSÃO ANO II, Nº108 - JULHO - PORTO VELHO, 2003

VOLUME VII

ISSN 1517-5421

EDITOR

NILSON SANTOS

CONSELHO EDITORIAL ALBERTO LINS CALDAS – História - UFRO

CLODOMIR S. DE MORAIS – Sociologia - IATTERMUND ARTUR MORETTI – Física - UFRO

CELSO FERRAREZI – Letras - UFRO HEINZ DIETER HEIDEMANN – Geografia - USP JOSÉ C. SEBE BOM MEIHY – História – USP

MARIO COZZUOL – Biologia - UFRO MIGUEL NENEVÉ – Letras - UFRO

SILVIO A. S. GAMBOA – Educação - UNICAMP VALDEMIR MIOTELLO – Filosofia - UFSC

Os textos de até 5 laudas, tamanho de folha A4, fonte Times New Roman 11, espaço 1.5, formatados em “Word for Windows”

deverão ser encaminhados para e-mail:

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CAIXA POSTAL 775 CEP: 78.900-970 PORTO VELHO-RO

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EDITORA UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA

ISSN 1517-5421 lathé biosa 108

AVALIAÇÃO DA COMPACTAÇÃO DE SOLOS EM ÁREA DE PASTAGEM NO MUNICÍPIO DE

PORTO VELO – RO – AMAZÔNIA OCIDENTAL

ELIOMAR P. DA SILVA FILHO, ELICIENE X. PEREIRA CARNEIRO & CLEDMAR CARNEIRO

PRIMEIRA VERSÃO

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Eliomar P. da Silva Filho, Eliciene X. Pereira Carneiro & Cledmar Carneiro AVALIAÇÃO DA COMPACTAÇÃO DE SOLOS EM ÁREA DE PASTAGEM NO

Professor do Departamento de Geografia – UFRO - [email protected], MUNICÍPIO DE PORTO VELHO - RO - AMAZÔNIA OCIDENTAL

Geógrafa/Professora, e Eng. Agrônomo da EMATER-RO.

Nas últimas décadas, têm-se procurado estudar o solo a fim de desenvolver técnicas de manejo que superem ou melhorem suas limitações de ordem

física, química e biológica, aumentando a produtividade dos mesmos.

Na região Amazônica, mais especificamente em Rondônia, tem-se procurado desenvolver pesquisas que ajudem a resolver a grande questão da integração

do ecossistema florestal à produção não predatória do ambiente naural. As conseqências do desmatamento e mudanças do uso do solo nas últimas décadas tem

provocado problemas como a erosão e a compactação dos terrenos, entre as quais retratam principalmente a transformação da floresta em áreas de pastagens,

que segundo FEARNSIDE (1989), citado em SILVA (1992) se caracterizam por “ poucas perspectivas de sustentabilidade”.

Neste trabalho tivemos como objetivo a verificação da compactação dos solos, em áreas com mais de 15 anos de uso com

pastagens, avaliando-se parâmetros como: Grau de compactação em Kgf/cm², umidade e a densidade aparente em diferentes

pontos amostrais distribuidos neste caso entre um Latossolo Amarelo Álico com A moderado e um Latossolo Amarelo

Álico, com A Húmico.

1 – REVISÃO DE LITERATURA:

1.1 – COMPACTAÇÃO DO SOLO

A compactação do solo é um problema que tem surgido em todo mundo e inclusive no Brasil, como conseqüência de práticas de uso e manejo incorretas

ou pouco eficiente para o solo, causando sérios danos de ordem econômica e ambiental, comprometendo a produtividade de diferentes segmentos do setor

agropecuário nacional.

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De acordo com GROHMANN & QUEIROZ NETO (1966); HILEL (1982); ALVARENGA et. alli (1983); SOANE (1990) citado por DIAS JUNIOR &

PIERCE (1996), a compactação aumenta a densidade do solo, uma vez que, ao se compactar, ocorre a diminuição dos macroporos responsáveis pela

armazenagem e percolação de água na massa de solo, aumentando o seu peso e, conseqüentemente, a sua resistência mecânica, bem como diminui a

porosidade total, ou seja, a quantidade de poros, reduz o tamanho e a continuidade dos poros, o que em alguns casos pode ser benéfico como na

contribuição para o aumento da disponibilidade de água em anos secos. Entretanto, a compactação excessiva pode limitar a infiltração e redistribuição de

água, trocas gasosas e desenvolvimento do sistema radicular, resultando em decréscimo da produção e aumento da erosão.

HÉNIN et all (1976); JORGE (1985), analisam a problemática da compactação dos solos causada pelos maquinários utilizados na agricultura,

porém, é importante considerar a influência do pisoteio animal na compactação, uma vez que é comum encontrar problemas dessa natureza em áreas de

pastagem.

O manejo e uso inadequado das pastagens, que são na maioria das vezes exploradas sem os cuidados necessários para a preservação do solo,

têm sido um dos principais problemas de sua degradação contínua, e acelerada quando não toma as devidas providências de manejo

No Estado de Rondônia , apesar de boa parte de seus solos possuírem algumas limitações de ordem física e/ou química (fertilidade natural),

existe uma agregação das terras para uso com pastagens, para um rebanho bovino de mais de 7.000.000 de cabeças, em expanção, e ainda não se tem

uma política básica destinada ao manejo dos mesmos.

Analisando os dados da SEDAM (1999) e IBGE (1997) observamos que em meados dos anos 80 a área desmatada no estado de Rondônia era

de aproximadamente 2.500.000 hectares, sendo que 456.870 ha eram destinados a pastagems o que representa 18% das áreas desmatadas no período

foram transformadas em áreas de pastagens.

Considerando-se a década de 90, até 1996, a área desmatada no estado passou para 5.149.386 ha, sendo a área de pastagem de 2.922.069

ha, aproximadamente 56% da área desmatada foram destinadas pastagens visando a exploração pecuária, com um crescimento entre a década de 80

a 1996 da ordem de 38% de incremento em pastagens.

1.1.1 - RESISTÊNCIA MECÂNICA DO SOLO.

Para GRANT & LAFONT (1993), e PEDROTTI, et all (1997), a resistência mecânica do solo registrada pelo penetrômetro de impacto, é um

método de campo importante para determinação do grau de compactação no solo.

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Segundo FORYSTHE (1967) e SALLES, et all (1983), a resistência do solo aos impactos do penetrômetro, é similar ao fator de crescimento que

representa a resistência mecânica que a raiz enfrenta ao crescer, para TAYLOR & BURNETT (1964) , comentado por SALLES op. cit. a compactação

dos solos é o principal fator de influência positiva ou negativa no desenvolvimento das raízes.

1.1.2 – DENSIDADE APARENTE

Além da elevação da resistência do solo à penetração, a compactação interfere também na densidade aparente do mesmo. Geralmente, os solos

cultivados perdem matéria orgânica e, conseqüentemente, têm aumentada a sua densidade.

KIEHL, 1979 afirma que a densidade aparente depende da natureza, das dimensões e da forma como se acham dispostas as partículas do solo. A

fase líquida também afeta o volume aparente, fazendo variar a densidade conforme o estado de umidade do solo. O manejo incorreto do mesmo solo

usado no desenvolvimento de uma cultura pode provocar a compactação, alterando a estruturação e, conseqüentemente, a densidade aparente.

PHILLIPS & KIRKHAM (1962) verificaram que o crescimento das raízes de plântulas de milho diminuiu linearmente quando a densidade do solo

aumentou de 0,94 para 1,30 kg/m³. TACKETT & PEARSON (1964) consideraram valores em torno de 1,5 kg/m³ como críticos para o desenvolvimento de

raízes de algodão em um solo franco arenoso.

2 – METODOLOGIA

Para realização do estudo foi utilizado uma área com Latossolo Amarelo Álico, que se divide em Latossolo Amarelo Álico A moderado textura argilosa e

Latossolo Amarelo Álico A húmico textura muito argilosa, onde foram feitos transectos com ponto amostral a cada 25 (vinte e cinco) metros em área de pastagens

com mais de 15 anos de manuseio.

A cada ponto foi verificado a umidade volumétrica a 25 (vinte e cinco) cm de profundidade, como ponto médio entre 0 (zero) e 50 (cinqüenta) cm, que

foi determinado para verificação da compactação, utilizando-se o “anel de Köpeek”, formado de cilindro de ferro com 104,07 cm³ (volume do anel) para recolher

amostras de solo para determinação de umidade.

Para determinação da compactação do solo foi utilizado o penetrômeto de impacto modelo modificado de IAA PLANALSULCAR, desenvolvido com base

no modelo citado por JORGE,1985, sendo os valores obtidos (resistência mecânica) transformados em Kgf/cm², de acordo com STOLF, 1991.

A utilização dos valores de umidade proporcionou posteriormente o cálculo da Densidade Global.

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Para complementação da análise dos dados foram utilizados os perfís analíticos dos solos da área estudada, que constam na Caracterização e

Levantamento dos Solos do Campo Experimental da EMBRAPA-RO, obtidos em VALENTE, et all (1997).

Para realização dos gráficos, foram calculados o número de impactos necessários para atingir um decímetro de profundidade (impactos/dm), sendo

que ficou estabelecido camadas de 10 em 10 cm ( 0-10, 11-20, 21-30, 31-40 e 41-50+), em função da melhor visualização das camadas compactadas

demonstradas nos gráficos.

Os trabalhos de campo foram realizados entre os dias 31 de maio a 08 de junho de 2000, e no caso caso de dias com chuvas as amostragens seriam

realizadas 48 horas após cessada a mesma, para evitar o efeito da água gravitacional de acordo com GOLMAN (1944).

2.2.1 - AMOSTRAGEM

Foi identificado uma área de pastagem com experimentos definidos, a saber: capim Andropogom e capim Brizantão, a partir de então definiu-se um

transecto que cortasse toda a área onde seriam realizados experimentos com o penetrômetro a cada 25 m.

Procurou-se ter ao menos dois pontos amostrais de ensaio com o penerometro de impacto para cada parcela definida com um ou outro tipo de capim,

tendo estas parcelas aproximadamente 0,5 ha. ambas com mais de 15 anos de uso com pastagens.

3 – CARACTERIZAÇÃO DA ÁREA DE ESTUDO

3.1 – LOCALIZAÇÃO

A pesquisa foi realizada no Campo Experimental do Centro de Pesquisa Agroflorestal da EMBRAPA de Porto Velho-RO (CPAF-RO), situado no Km 5,5 da BR-

364, sentido Porto Velho – Cuiabá, compreendido aproximadamente entre as coordenadas geográficas: 8°53’20” de latitude sul e 63°06’40” de longitude oeste de

Greenwich, onde foram aproveitadas áreas de pastagem do referido CPAF-RO.

3.2 – ASPECTOS FISIOGRÁFICOS DA ÁREA

3.2.1- CLIMA

O clima característico da área estudada é do tipo Equatorial Úmido, do domínio de Floresta do tipo Hiléia. Pela classificação de Köppen, corresponde ao

clima Am, com elevadas precipitações, compensando as correspondentes estações secas. A umidade média relativa anual varia localmente de 80 a 90%. A

temperatura média anual fica em torno dos 25°C, estando as mínimas e máximas em 15°C e 31 °C, respectivamente.

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3.2.2 – GEOLOGIA

O local de estudo pertence a unidade litoestratigráfica denominada Formação Jaciparaná, que de acordo com ADAMY & ROMANINI (1990) se constitui

num pacote sedimentar de no máximo 50 m de expessura, depositados discordantemente sobre o Complexo Jamari, sendo em alguns pontos de difícil distinção da

Formação Solimões.

3.2.3 – GEOMORFOLOGIA

A área considerada está inserida numa das unidades geomorfológicas mais expressivas do Estado de Rondônia, que, segundo ADAMY E ROMANINI,

op cit, é regionalmente denominada de Planalto Rebaixado de Rondônia por Isotta et alli, 1978.

3.2.4 - SOLOS

A área em estudo é compreendida pelo solo classificado segundo VALENTE et alli, (1997) como Latossolo Amarelo Álico, que se divide em Latossolo

Amarelo Álico A moderado textura argilosa e Latossolo Amarelo álico A húmico textura muito argilosa. Os Latossolos Amarelos são solos desenvolvidos a partir de

sedimentos do Terciário, apresentando perfil profundo, bem drenado, com seqüência de horizontes do tipo A, Bw e C. São solos argilosos, altamente

intemperizados, possuindo baixa fertilidade natural.

4 - ANÁLISE DOS RESULTADOS

A exploração inadequada dos solos , principalmente nas atividades agropecuárias, tem contribuído, em muito, para a alteração das suas propriedades

físicas. Entre os vários problemas relacionados a esta “exploração inadequada”, está a compactação dos solos que, segundo GHOHMANN & QUEIROZ NETO, (1966)

tem como principais conseqüências, as modificações na aeração, disponibilidade de água e no impedimento físico para o desenvolvimento das plantas, podendo se

tornar uma das causas de insucesso agrícola e de áreas de pastagem.

Considerando os valores obtidos através do Penetrômetro de Impacto nas áreas trabalhadas, observou-se que os pontos amostrados como um todo

apresentaram uma camada de maior resistência nos primeiros 20 cm do solo, sendo que essa resistência vai diminuindo a partir dos 30 até os 50 cm, definido no

presente trabalho como profundidade máxima analisada.

As camadas mais resistentes (compactadas), bem como as diferenças ocorridas podem ser melhor verificadas em gráficos, como se mostra a seguir,

cujos resultados numéricos são obtidos pelo cálculo do número de impactos por decímetro.

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GRÁFICOS REFERENTES À RELAÇÃO IMPACTO X PROFUNDIDADE

1 - Área de pastagem com Latossolo Amarelo Álico A moderado e A Húmico

Prof. (cm) Imp./ dm

0-10,5 7,4

11-20,5 7,0

21-30,5 3,0

31-43 2,4

44-53 1,9

Prof. (cm) Imp./ dm

0-10 5,5

11-24 2,9

25-34,5 1,9

35-45 1,9

46-53,5 2,4

60 -

50 -

40 -

30 -

20 -

10 -

5 4 3 2 1 0

Amostra 02

Impactos/dm

PRO

F. (c

m)

Amostra 01

60 -

50 -

40 -

30 -

20 -

10 -

6 7 85 4 3 2 1 0

Pro

f.. (

cm

)

Impactos/dm

Amostra 01

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87

Prof. (cm) Imp./ dm

0-12,5 5,3

13-22 4,8

23-34 3,2

35-41 2,2

42-50 3,3

Prof. (cm) Imp./ dm

0-11,5 6,7

12-24,5 3,8

25-46,5 0,5

47-64,5 0,6

8 2 4

Amostra 04

60 -

50 -

40 -

30 -

20 -

10 -

5 7 9 3 1 0

Impactos/dm

65 4 3 2 1 0

60 -

50 -

40 -

30 -

20 -

10 -

7

Amostra 03

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Através dos gráficos apresentados, observou-se que algumas amostras estão mais compactadas a partir dos 40 cm de profundidade, quando a

compactação volta a aumentar, evidenciando a necessidade da descompactação de tais camadas e comprovando ainda a necessidade de um estudo de verificação da

compactação até maiores profundidades nas áreas de pastagem considerada.

Para facilidade de visualização da compactação existente, foi realizada a transformação dos dados apresentados em Kgf (Quilograma Força/cm²), bem

como feita a junção dos dados da resistência mecânica transformada em Kgf/cm² com a densidade aparente e umidade do solo, apresentados na Tabela 1 .

Tabelas 1: Valores de Resistência Mecânica, Densidade Aparente e Umidade da Área de Pastagem com Latossolo:

RESISTÊNCIA À PENETRAÇÃO (kgf/cm²)

PROFUNDIDADE AMOSTRA

0-10 10-20 20-30 30-40 40-50 +

DENSIDADE

APARENTE

(g/cm³)

UMIDADE (%)

01 72,9 69,2 32,0 26,42 21,80 0,87 24,60

02 55,3 31,1 21,8 21,8 26,4 0,87 23,25

03 66,4 39,4 8,8 9,7 - 0,92 26,20

04 52,5 33,9 27,4 31,1 34,8 0,78 28,25

Observando a referida tabela, nota-se que ao compararmos os valores de umidade com a resistência mecânica em Kgf/ cm², podemos dizer que os

valores se encaixam na relação encontrada por DIAS (1983), citado em CORREA (1989), onde a resistência do solo à penetração variou com a umidade do solo na

relação de 7,4 kgf/cm² para 30% de umidade, afirmando que o aumento da umidade do solo proporciona redução na resistência à penetração, o que pode ser

comprovado nos dados trabalhados, já que se observa que quanto maior a umidade do solo, menor a resistência mecânica. Essa teoria também pode ser observada

nos trabalhos de campo, onde se verificou, no teste com o penetrômetro, que as camadas mais úmidas do solo favoreceram maior aprofundamento da haste. Tal

observação qualitativa foi confirmada também no quantitativo (Kgf/cm²), comparando-se duas amostras do Latossolo Amarelo Álico A moderado como a de n° 01,

onde a umidade de 24,60% e a resistência mecânica em Kgf/cm² obtida foi de 72,9, e a amostra de n° 04, em que a umidade de 28,25% e a resistência mecânica

obtida foi de 52,5 Kgf/cm², demonstrando a influência do aumento da umidade sobre a redução da resistência mecânica do solo.

Ao compararmos os valores de densidade aparente e resistência mecânica apresentados na Tabela 1, percebemos que os valores de densidade estão

aparentemente baixos, se relacionados com os valores de resistência mecânica. KIEHL (1979) afirma que os valores da densidade aparente nos solos orgânicos

oscilam entre 0,6 e 0,8 g/cm³ e nos solos minerais se encontram entre 1,1 e 1,6 g/cm³. Os valores apresentados na Tabela 1, relacionam-se aos solos orgânicos,

estado assim, dentro da média indicada pelo autor. Porém, ao se analisar de forma interrelacionada a densidade com a resistência mecânica, percebe-se que essa,

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está muito além dos valores médios necessários para o cultivo agrícola do solo, pois segundo FORYSTHE (1967), uma intensidade de resistência mecânica de 26 a

34 Kgf/ cm² num solo franco-arenoso fino, impediu a penetração das raízes de uma série de espécies, entre as quais destacam-se o sorgo e o algodoeiro, onde uma

resistência à penetração de 26 Kgf/cm² foi considerada crítica para o seu desenvolvimento.

ROSELEM et all (1999) concluíram que a resistência do solo à penetração de 13,3 Kgf/cm² reduziu o crescimento das raízes do milho à metade, levando-

nos à confirmação de que os solos das áreas estudadas estão bastante compactados, principalmente nas camadas de 0 a 10 cm e 11 a 20 cm de profundidade, onde a

resistência mecânica ocupa valores médios de 61,8 Kgf/cm² para a primeira camada, e valores médios de 43,4 Kgf/cm² para a camada de 11 a 20 cm, o que

demonstra que temos um quadro extremamente crítico no que se refere à compactação especificamente, sem comentar a fertilidade desses solos que são distróficos e

álicos.

MORAES, et all (1995) analisando a resistência dos solos, no caso uma Terra Roxa estruturada e um Latossolo Roxo, verificaram que, com a

compactação, as partículas e os agregados do solo aproximaram-se, reduzindo, conseqüentemente a porosidade e aumentando a resistência mecânica à penetração.

O que pode ser constatado também em nossa área de estudo, que é constituída de Latossolo Amarelo Álico A moderado e A Húmico, onde apresenta valores de até

72,9 Kgf/cm² , demontrando a compactação, que promove a aproximação das partículas do solo e reduz o número de poros, diminuindo a porosidade e reduzindo

assim, a capacidade de infiltração, aumentando o escoamento superficial, resultando na erosão e degradação dos solos, bem como afetando a circulação do ar

(aeração), prejudicando o desenvolvimento das raízes das plantas.

Para GROHMANN E QUEIROZ NETO (1966), as modificações na aeração e disponibilidade de água e o impedimento físico parecem ser as principais

conseqüências da compactação, agindo simultaneamente sobre o desenvolvimento da planta.

TRICART (1975); JÚNIOR E JÚNIOR (1994); e SALLES, ORTOLANI & COAN (1983) consideram a resistência mecânica do solo como um parâmetro que

sintetiza as condições que o solo oferece às culturas, mas que também é influenciada pela textura, densidade e umidade do solo, tendo observado em seus

experimentos situações em que o crescimento radicular foi afetado significativamente com a variação da resistência mecânica, levando à afirmação da necessidade de

técnicas mais racionais de cultivo.

Para PEREIRA & BENEZ (1998), a compactação do solo modifica a quantidade e a distribuição dos tamanhos de poros alterando a quantidade e o fluxo de

água no solo, aumentando a resistência à penetração, reduzindo a aeração, influindo no desenvolvimento das raízes e como conseqüência, diminuindo a qualidade e

quantidade dos produtos agrícolas colhidos.

Dessa forma, as conclusões de JÚNIOR e JÚNIOR (op cit) que demonstraram em seus estudos que mesmo o solo com baixa densidade e alta porosidade,

com o uso de uma espátula, constataram uma camada endurecida entre 10 e 30 cm de profundidade, confirmam nossos resultados, e convalidam o uso do

equipamento utilizado, no caso um penetrômetro de Impacto modificado do modelo IAA/ PLANALSUCAR, como aparelho de baixo custo e ideal para avaliar a

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resistência mecânica dos solos, além de demonstrar que a verificação dos resultados proporcionou informações para que seja realizado um bom trabalho de

manejo dos solos.

5 - CONCLUSÕES

• Os valores médios de Resistência Mecânica à Penetração foram de 61,8 Kgf/ cm², para a primeira camada (0-10 cm), e valores médios de 43,4 Kgf/ cm²,

para a camada de 11 a 20 cm, o que demonstrou que essas áreas com Latossolo Amarelo A húmico e A moderado se apresentam compactadas, mais

notadamente nas camadas de 0 a 20 cm de profundidade;

• A Densidade Aparente se mostrou pouco sensível à compactação em ambos os solos da áreas estudadas, se mantendo sem grande elevação dos padrões

indicados por alguns autores.

6 – REFERÊNCIAS BIBLIOGÁFICAS

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ANTÔNIO JORGE, J. Física e manejo dos solos tropicais. Campinas: Instituto Campineiro de Ensino Agrícola, 1985. p. 89 -118.

ARCANJO, A. de S et all. Avaliação do desmatamento em Rondônia 1978 a 1997. Porto Velho: SEDAM/PLANAFLORO/PNUD, 1999. CENSO agropecuário de Rondônia 96/97. Brasília: IBGE, 1997.

CORRÊA, J.C. Avaliação da degradação de pasto em um latossolo amarelo da Amazônia Central. Piracicaba, 1989. 59 p. Tese (Doutorado). USP. Escola Superior de Agricultura

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PEREIRA, J.O., BENEZ, S.H. Efeitos do teor de água e da carga aplicada na densidade e porosidade do solo. Revista Energia na Agricultura, São Paulo, v. 13, n. 2, p. 22-37, 1998.

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Ciência do Solo, Campinas, v. 15, p. 229-235, 1991. TACKETT, J. L., PEARSON, R.W. Oxygem requeriments of cotton seedling roots for penetration of compacted soil cores. Soil Science Society America

Proceedings, Madson, v. 28, n. 5, p. 600-605, 1964. TRICART, J. Variações do ambiente ecológico. Boletim Geográfico, Rio de Janeiro, v. 33, n. 246, p. 5-16, jul./set., 1975. VALENTE, M.A., OLIVEIRA JÚNIOR, R.C., SILVA FILHO, E. P. et al. Caracterização e mapeamento dos solos do campo experimental de Porto Velho in:

Congresso Brasileiro de Ciência do Solo. Rio de Janeiro. Anais ... CD Rom, 1997.

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO)

CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE

PRIMEIRA VERSÃO ANO II, Nº109 - AGOSTO - PORTO VELHO, 2003

VOLUME VII

ISSN 1517-5421

EDITOR

NILSON SANTOS

CONSELHO EDITORIAL ALBERTO LINS CALDAS – História - UFRO

CLODOMIR S. DE MORAIS – Sociologia - IATTERMUND ARTUR MORETTI – Física - UFRO

CELSO FERRAREZI – Letras - UFRO HEINZ DIETER HEIDEMANN – Geografia - USP JOSÉ C. SEBE BOM MEIHY – História – USP

MARIO COZZUOL – Biologia - UFRO MIGUEL NENEVÉ – Letras - UFRO

SILVIO A. S. GAMBOA – Educação - UNICAMP VALDEMIR MIOTELLO – Filosofia - UFSC

Os textos de até 5 laudas, tamanho de folha A4, fonte Times New Roman 11, espaço 1.5, formatados em “Word for Windows”

deverão ser encaminhados para e-mail:

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CAIXA POSTAL 775 CEP: 78.900-970 PORTO VELHO-RO

TIRAGEM 200 EXEMPLARES

EDITORA UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA

ISSN 1517-5421 lathé biosa 109

PROJETO PEDAGÓGICO: A BUSCA DA TOTALIDADE DO CONHECIMENTO ESCOLAR

AVACIR GOMES DOS SANTOS

PRIMEIRA VERSÃO

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Avacir Gomes dos Santos PROJETO PEDAGÓGICO: A BUSCA DA TOTALIDADE DO CONHECIMENTO ESCOLAR Departamento de Educação – UFRO, aluna do curso de mestrado em Ciências Humanas

[email protected]

O conhecimento escolar, como ramo de aplicabilidade do conhecimento científico, foi organizado desde a metade do século XX, através das chamadas

disciplinas ou áreas de estudo que, por sua vez, recebiam no currículo um tratamento fragmentado entre os conteúdos da própria disciplina e entre disciplinas afins.

Essa forma de organização do currículo fixado em suas respectivas áreas científicas correspondeu a certos interesses de um determinado momento histórico

em que o propósito maior da escola era formar mão-de-obra especializada para o mercado de trabalho. Para atender a essa demanda social se proliferou por todo país

os cursos técnicos no 2ª Grau.

Hoje com a globalização, a formação dos diversos blocos econômicos, o avanço tecnológico, que diluiu qualquer forma de barreira espacial e

temporal, a competição no mercado de trabalho tornou-se muito mais acirrada. Assim, aquele funcionário «sabe tudo» da sua área e que respondia a todos

os expedientes da sua pasta está ultrapassado. Como a máquina de escrever, ele se tornou um elemento obsoleto.

Na atual conjuntura, as empresas esperam que os seus profissionais tenham: espírito de liderança, tomada de iniciativa, capacidade de resolver problemas,

domínio dos últimos avanços tecnológicos e visão geral da estrutura organizacional da instituição.

Como a escola poderá preparar a geração de alunos freqüentadores do Ensino Fundamental para um novo século com a mentalidade do século passado? Como

organizar a escola e estruturar o seu currículo para que ela possa acompanhar as transformações que ocorre na sociedade de forma acelerada? Que tipo de

tratamento deve receber o conhecimento escolar?

Essas questões estão presentes nas agendas dos encontros realizados na área educacional, organizados no sentido de pensar soluções que atendam as

demandas sociais. É difícil apontar um caminho a ser seguido, no entanto, é unânime a compreensão de que a organização disciplinar do conhecimento e a seriação

do ensino (desde a alfabetização até a universidade) estão superadas históricas e socialmente.

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O Projeto Pedagógico como prática educativa

As diversas disciplinas escolares, que tem como lógica o desenvolvimento do ensino que parte do simples para o mais complexo, do concreto para o abstrato e

do geral para o particular, estão com seus dias contados. Para romper com essas estruturas aparecem no cenário educacional os conceitos de totalidade, visão

holística, interdisciplinaridade, transdisciplinaridade, sócio-interacionismo e projetos pedagógicos.

A realização dos projetos tem sido o fio condutor da compreensão dos novos conceitos educacionais. O propósito deste artigo é apresentar os pressupostos

teóricos e metodológicos ligados à caracterização e a aplicabilidade dos projetos pedagógicos para as séries iniciais do Ensino Fundamental.

Esse é um dos aspectos que tem marcado o desenvolvimento dos projetos pedagógicos (que de agora em diante passo a designar de PP), ele tem sua gênese

enquanto prática escolar na Educação Infantil e no Ensino Fundamental. A universidade em geral tem virado as costas para essas modalidades de ensino. Logo ela

que deveria ser a vanguarda do ensino brasileiro, acaba por ficar a reboque das experiências significativas que ocorrem no espaço escolar. Quem sabe num futuro não

muito distante a universidade organize seus cursos e seus respectivos currículos através de PP.

A educação por PP não aparece como forma de ruptura das disciplinas escolares, elas continuam como base do conhecimento escolar. A proposta educativa através de

projeto é uma forma diferente e inovadora de abordar os conteúdos curriculares, que passam a ser concebidos de maneira integral, articulada e dinâmica. Desta forma ocorre a

conquista de níveis mais elevados de motivação, participação e co-produção vivenciada entre os educandos, seus pares e o educador.

Os pressupostos teóricos metodológicos da organização curricular através do PP, apesar de terem ganho força nos últimos anos, já vêm sendo proclamados há

muito tempo. De acordo com Antonio Costa:

«Suas raízes mais profundas no tempo estão em Rousseau e Pestallozzi, Decroly, com seus centros de interesses. Maria Montessori, John Dewey,

Celestin Freinet, Anton Makarenko e no Brasil, Anísio Teixeira contam entre os grandes pioneiros desta vertente do pensamento pedagógico.»30

Em geral esses pensadores da educação buscaram a valorização das necessidades e interesses dos educandos como norteadores do processo educativo. O fim primeiro e

último da educação escolar é o educando. Assim, pressupõe-se que a prática pedagógica é pensada, planejada e executada com vistas à formação integral do educando.

Na concepção tradicional de educação os conteúdos, por exemplo, da disciplina de Matemática, eram visto de forma fragmentada. O currículo escolar e os

livros didáticos seguiam uma seqüência lógica racional que não permitia que o ensino da geometria fosse alcançado, porque o professor passava dois bimestres para

ensinar os vários tipos de conjuntos: unitário, vazio, infinito (pensando bem, há um paradoxo entre esses conceitos e a idéia de conjunto).

Além da desarticulação dos conteúdos da própria disciplina, não havia, por exemplo, nenhuma integração entre a Matemática e o ensino da História. Assim, o

docente era o especialista da sua área e se o aluno escrevesse ou falasse algo errado (de acordo como os padrões estabelecidos), na aula de Matemática, o professor

30 Costa, Educação por projetos, 20; 2001

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não considerava porque não era da sua área. Cada professor com a sua disciplina, seu currículo e seu livro didático, os demais conhecimentos escolares que fugiam

desse esquema eram ignorados em detrimento das demais disciplinas.

Na organização do ensino através de PP as disciplinas dão espaços para uma temática que valha a pena ser estudada, situações problemas, geral ou

particular, ou acontecimentos sociais vivenciados pelos educandos. Duas temáticas que atravessam qualquer realidade escolar na atualidade são a questão da

sexualidade e o uso de drogas. A organização curricular por disciplinas não dá conta dessas questões. Aliás, elas eram ignoradas pelos currículos escolares.

Para a melhor visualização dos elementos da educação tradicional e da educação por PP e, em que momento esta avança nos seus pressupostos e acaba por

romper com aquela, segue o esquema abaixo como forma de analisar essas duas concepções pedagógicas:

ELEMENTOS EDUCAÇÃO TRADICIONAL EDUCACÃO POR PROJETOS Modelo de aprendizagem Conhecimento trabalhado Decisão sobre o que estudar Função do professor Modelo curricular Papel do aluno Tratamento da informação Técnicas de trabalho Avaliação

Mecânica e padronizada Conhecimento científico transformado em escolar pelas várias disciplinas Responsabilidade única do professor Especialista, dono do saber Disciplinas estaques e fechadas Executor passivo Apresentada pelo professor com base no livro didático Questionário, cópia, exercícios de fixação e decoração Centrada nos conteúdos específicos de cada disciplina

Significativa Temas ou situações problemas Por argumentação entre o aluno e seus pares Estudante, intérprete, construto do saber Interdisciplinaridade Co-partícipe do processo educativo Busca-se com professor e alunos através das mais variadas fontes Índice, síntese, conferências, seminários, exposição, produção de textos. Centrada no processo e nas relações destinadas as informações coletadas.

Nesse esquema é possível perceber que a organização das atividades pedagógicas através do PP resulta num processo muito mais significativo tanto para os

educandos quanto para os educadores, porque ambos tornam-se sujeitos da sua prática quando são capazes de em conjunto pensar, planejar, executar e avaliar

todas as etapas do processo de ensino e aprendizagem.

Na elaboração do PP um dos primeiros momentos é a seleção das disciplinas e dos conteúdos que poderão contribuir para melhor compreensão das temáticas

levantadas. Assim, a temática sobre drogas pode ser estudada principalmente através da História, da Ciência, da Literatura, da Geografia, da ética e cidadania.

Segundo Hernández:

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«A função do projeto é favorecer a criação de estratégias de organização dos conhecimentos escolares em relação a: 1) o tratamento da informação, e 2) a

relação entre os diferentes conteúdos em torno de problemas ou hipóteses que facilitem aos alunos a construção de seus conhecimentos, a transformação da

informação procedente de diferentes saberes disciplinares em conhecimento próprio.»31

Com base nesses eixos condutores o PP pode ser definido como um plano de trabalho integrado, estruturado a partir de interesses e necessidades

compartilhados por educandos, de forma organizada e intencional, visando satisfazer necessidades e resolver problemas reais. As temáticas seguem o critério da

relevância social e pode ser direcionada pelo professor quando seus alunos ainda não apresentam autonomia para escolher, por si só, o que gostariam de estudar. Ou,

escolhida entre os próprios alunos quando eles apresentarem maturidade para tanto.

Na organização do ensino através do PP, não é apenas a concepção de currículo que ganha um novo enfoque, mas também o conceito de aluno e de

professor. Na pedagogia de PP o professor passa a ser compreendido como um líder, um co-produtor de conhecimentos, o educador é um produtor do conhecimento

escolar. Sua função não é a de transmitir pura e simplesmente os conteúdos de uma determinada disciplina, sua postura pedagógica é a de criar condições e situações

de aprendizagem para que o aluno possa conquistar o conhecimento com autonomia própria.

Nesse contexto educativo o aluno não é um receptor passivo frente ao conhecimento do professor. Seria uma contradição no PP a postura passiva do aluno.

Nesta abordagem o educando é o responsável direto pela sua aprendizagem e sujeito de sua própria aprendizagem. Ele está presente em todos os momentos do

desenvolvimento do PP: seleção do tema do projeto, busca de informações, tratamento das informações coletadas, planejamento e execução das atividades inerentes

ao projeto, elaboração da síntese dos estudos realizados e avaliação do processo.

A concepção de professor e aluno concebidos como educador e educando não é algo inédito em termos de discurso teórico no espaço escolar. No entanto,

apenas a mudança da denominação desses sujeitos não foi garantia de mudanças na estrutura educacional, pois o currículo era mantido numa camisa de força e a

escola fechada para a participação da comunidade e da sociedade.

No PP a função do professor ganha uma importância redobrada, pois dizer que o aluno é co-partícipe não é abrir mão de suas responsabilidades enquanto

condutor do processo, pelo contrário, além de planejar e executar as atividades pedagógicas o professor tem a responsabilidade de: relacionar o tema ou a situação

problema escolhida pelos alunos com o conhecimento escolar, planejar atividades mais significativas capazes de proporcionar aos alunos a produção do conhecimento

sobre o tema do projeto e pensar na forma mais adequada de realizar a avaliação processual e final do PP.

No momento referente à busca de relações entre os conhecimentos escolares e a temática escolhida para a execução do PP entra em cena a competência do

educador para colocar em prática um dos pressupostos básicos do PP que é a interdisciplinaridade.

De acordo com Ivani Fazenda, uma das maiores estudiosas no Brasil sobre o tema interdisciplinaridade, esta compreende três momentos imprescindíveis:

31 Hernández, A organização do currículo por projetos de trabalho, 60; 1998.

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«O primeiro momento é o trabalho da identidade do aluno. (...) o trabalho de cada área é fundamental numa convergência, que busque a educação plena

do aluno. É a tentativa de superação da fragmentação do saber, num projeto de ensino voltado para o saber integral.

O segundo momento da interdisciplinaridade está no que chamo de história do agora, que é a visão holística da realidade (...).

A pergunta seria: como a sua área contribuiu para o momento vivido pelo Brasil agora?

O terceiro momento da interdisciplinaridade é o que diz respeito a utopia. Não se trataria de «sonhar com o futuro», mas de ter consciência das

transformações que acontecem permanentemente.»32

O planejamento de maneira interdisciplinar requer a compreensão do educando como indivíduo único, mas que ao mesmo tempo constitui e é constituído

como sujeito da história, que segue a lógica da dinâmica permanente. Assim, pensar a prática pedagógica de forma interdisciplinar vai muito mais do que relacionar as

disciplinas escolares de forma unívoca.

Quanto aos pressupostos metodológicos do PP apresentarei os aspectos básicos que, de acordo com Fernando Hernández, devem ser levados em conta no

desenvolvimento de um projeto pedagógico:

1) A escolha do tema: como foi apontada anteriormente a escolha do tema poderá ser realizada pelo professor, pelos alunos ou conjuntamente entre alunos e

professor, o critério a ser seguido irá depender do grau de maturidade dos educandos.

O tema pode surgir da curiosidade dos alunos em aprender algo, de uma situação problema que esteja ocorrendo na escola ou na comunidade, de uma

experiência vivenciada pelo grupo de alunos, por um fato da atualidade ou de uma questão suscitada a partir do projeto anterior.

2) A busca da interdisciplinaridade: neste momento é de suma importância a competência pedagógica do professor em relacionar com base no currículo

escolar quais as disciplinas, os conteúdos e as atividades que irão contribuir para uma maior compreensão dos alunos a respeito do tema selecionado.

O professor também planeja os recursos que serão empregados na realização do PP, o tempo necessário para sua execução e o que será apresentado como

resultado final do projeto, ou seja, a sua avaliação.

3) Elaboração do índice: nesta etapa, inicialmente cada aluno elabora um índice no qual especifica os aspectos que vai trabalhar no projeto. Em seguida é

realizada a apresentação em comum dos diferentes aspectos de cada índice.

Entre os alunos são organizados grupos de estudos, que serão responsáveis pelo tratamento especial dos diferentes aspectos do tema escolhido.

A organização do índice implica em três momentos: primeiro cada aluno elabora seu índice, em seguida esse é ampliado na formação dos grupos onde os

alunos socializam entre si os conhecimentos prévios a respeito do tema e, por fim, na conclusão dos trabalhos os alunos organizam o índice final para visualizar o

ponto de partida e de chegada na construção do conhecimento.

32 Fazenda, Práticas interdisciplinares na escola, 52-54; 1999.

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4) A busca de informações: nesta fase todos os elementos do processo são envolvidos no projeto: professor, alunos e suas famílias. As informações

coletadas devem completar e ampliar a visão do grupo sobre o tema selecionado. Quanto mais variadas forem as fontes de informações, melhor. As fontes podem

constituir em material escrito, depoimentos, conferência de convidados, visita de campo, estudo do meio, reconhecimento do patrimônio histórico cultural e análise de

objetos e artefatos antigos.

5) Realização da síntese: ao final do tempo designado para a realização do PP ocorre a ordenação e apresentação dos materiais organizados e elaborados

pelos educandos. Esses resultados poderão ser apresentados na turma, em turmas diferentes ou numa exposição na escola onde as famílias e a comunidade em geral

possam ter acesso.

A realização da síntese implica necessariamente por parte dos educadores na discussão sobre a avaliação do PP. Aqui a avaliação também ganha outra

relevância. Que a avaliação deve ser processual, contínua e formativa, os aspectos qualitativos preponderando sobre os quantitativos são discursos que há tempos são

propagados no espaço escolar. No entanto, ao final do processo o que tem valido como critério de aprovação ou retenção dos alunos tem sido a média das notas

recebidas durante os quatros bimestres. A nota, isso em todas as modalidades de ensino, tem tido maior importância do que o resultado final do ensino que é

aprendizagem do aluno.

No PP, além de se considerar a avaliação como processo formativo, existem outras questões norteadoras a serem pensadas pelo professor, tais como: o que

se pretendeu ensinar aos educandos? O que os alunos acreditam que aprenderam? Essas questões antecedem a elaboração do instrumental avaliativo.

Após a definição do tipo de avaliação a ser aplicada cabe ao professor: realizar o planejamento da prova em relação ao que se pretendeu ensinar, esclarecer o

que pretende valorizar, explicitar aos alunos os critérios de correção, propor a auto-avaliação, fazer a correção, detectar o sentido os erros da aprendizagem realizada

e por fim situar cada estudante quanto ao seu desempenho acadêmico com relação a si mesmo e ao grupo.

Esses são os aspectos básicos para a realização de um PP. Eles não representam um modelo a ser copiado. Cada projeto possui características peculiares. O

tratamento dispensado às etapas irá depender da série dos alunos, do acesso às informações, dos materiais disponibilizados, do envolvimento dos responsáveis pelos

educandos e principalmente do comprometimento da escola com essa proposta pedagógica.

É bom ressaltar que a aplicabilidade do PP não combina com práticas individualistas. Um professor sozinho pode querer desenvolver o ensino voltado para

essa metodologia, mas se essa não for a opção da escola como um todo, mais cedo ou mais tarde ele acabará desistindo frente as dificuldades impostas pelo sistema

e as estruturas arcaicas do espaço escolar.

A prática do PP é sempre uma prática coletiva, requer um trabalho coletivo, onde professores, profissionais da escola, desde vigia até o diretor e a

comunidade estejam todos envolvidos e comprometidos com a aprendizagem dos educandos.

De acordo com Perrenoud:

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«a gênese de um projeto é uma questão de representações partilhadas daquilo que os atores querem fazer juntos. Se não fizerem esse trabalho no

início, deverão fazê-lo a seguir, na primeira divergência grave, na primeira crise. Se uma equipe não é capaz de dizer, explicitamente, o que a mantém unida, ela se

desfaz ou regride a um simulacro diante dos primeiros obstáculos. Ora, articular representações é não abrir um espaço de livre discussão no projeto e antes do

projeto, escutar as propostas, mas também decodificar os desejos menos confessos de seus parceiros, explicitar os próprios e buscar acordos inteligentes».33

O trabalho coletivo é condição sine qua non para a eficácia do PP. A escola representada pela direção e equipe pedagógica tem a função de proporcionar as

condições objetivas necessárias para a realização das tarefas subjacentes ao projeto. O grupo de educadores, por sua vez, coloca em prática a competência para

planejar e desenvolver as atividades de forma conjunta e integrada.

Conclusão

A título de conclusão, o PP não se restringe apenas numa maneira diferente de organização do currículo escolar. Sua adoção exige muito mais trabalho,

compromisso e responsabilidade dos sujeitos envolvidos no processo de ensino e aprendizagem. O PP representa uma possibilidade de rompimento com ensino do

conhecimento escolar fragmentado e com a representação eterna do: eu finjo que ensino e, você finge que aprende.

Quando em nossas escolas a preocupação maior for não tanto com o que os alunos memorizaram, mas com o quanto de conhecimento são capazes de aplicar

em situações reais do cotidiano com certeza o fazer educativo terá conquistado a sua significação social de uma vez por todas. O PP tem muito a contribuir como a

realização deste sonho.

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FAZENDA, Ivani (org). Práticas interdisciplinares na escola. 6ª ed., São Paulo: Cortez, 1999.

FONSECA, Lúcia Lima. O universo da sala de aula: uma experiência em pedagogia de projetos. Porto Alegre: Mediação, 1999.

HERNÁNDEZ, Fernando e VENTURA, Montserrat. A organização do currículo por projetos de trabalho – O conhecimento é um caleidoscópio. 5ª ed., Porto Alegre:

Artes Médicas, 1998.

PERRENOUD, Philippe. Dez novas competências para ensinar: convite à viagem. Porto Alegre: Artes Médicas, 2000.

ZEN, Maria Izabel Dalla (org). Projetos Pedagógicos: cenas da sala de aula, Porto Alegre: Mediação, 1999.

33 Perronoud, Dez novas competências para ensinar, 84; 2000

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO)

CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE

PRIMEIRA VERSÃO ANO II, Nº110 - AGOSTO - PORTO VELHO, 2003

VOLUME VII

ISSN 1517-5421

EDITOR

NILSON SANTOS

CONSELHO EDITORIAL ALBERTO LINS CALDAS – História - UFRO

CLODOMIR S. DE MORAIS – Sociologia - IATTERMUND ARTUR MORETTI – Física - UFRO

CELSO FERRAREZI – Letras - UFRO HEINZ DIETER HEIDEMANN – Geografia - USP JOSÉ C. SEBE BOM MEIHY – História – USP

MARIO COZZUOL – Biologia - UFRO MIGUEL NENEVÉ – Letras - UFRO

SILVIO A. S. GAMBOA – Educação - UNICAMP VALDEMIR MIOTELLO – Filosofia - UFSC

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PINTANDO O SANTO

MARTA VALÉRIA DE LIMA & NILZA MENEZES

PRIMEIRA VERSÃO

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Marta Valéria de Lima & Nilza Menezes PINTANDO O SANTO

[email protected] & [email protected]

Professora do Departamento de História da UFRO & Centro de Documentação Histórica do TJ/RO

Poucas cerimônias religiosas chamam tanto a atenção como as festas realizadas em um terreiro de Candomblé, estas, além de belas, são bastante complexas.

As homenagens prestadas aos orixás são bastante singulares e impressionam pela carga de energia que envolve os participantes, além da presença de um grande

número de elementos mágicos e simbólicos.

Vários modelos religiosos formam o campo das religiões afro-brasileiras. Segundo José Flavio Pessoa de Barros (2000, p.

17), “candomblé é o resultado de diversas culturas africanas, produto de várias afiliações, existindo, portanto, vários

candomblés (angola, congo, efan, etc)”.

É importante observar que o termo Candomblé tem sido utilizado genericamente para designar as religiões brasileiras que

cultuam os orixás iorubanos e os voduns daomeanos e que essas mesmas religiões são conhecidas regionalmente por outros

nomes, como, por exemplo, xangô em Pernambuco, tambor de mina no Maranhão e macumba ou batuque em Rondônia.

Uma das temáticas da nova coleção de artes da artista plástica Rita Queiroz retrata aspectos dos cultos afro-brasileiros observados em cerimônias públicas

realizadas em terreiros da cidade de Porto Velho, onde os orixás são homenageados e cultuados.

Na definição de Cacciatore (1988, p. 197), “Os orixás são divindades intermediárias iorubanas, excetuando Olórum, o Deus Supremo. Na África eram cerca de

600. Para o Brasil vieram talvez uns 50 que estão reduzidos a 16 no Candomblé (alguns tendo vários nomes ou qualidades), dos quais só 10 passaram à Umbanda”.

Há mais de vinte anos, movida pela curiosidade, Rita Queiroz passou a freqüentar alguns terreiros de Porto Velho. Inicialmente, chamaram-lhe a atenção o

colorido das vestes, a decoração dos terreiros, a coreografia das danças e a incorporação dos médiuns. Foi durante essa fase que ela se deu conta de que havia nos

terreiros fartos materiais para desenvolver pesquisas para as suas obras de arte e que ela se interessou pelo tema dos orixás.

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Como resultado das investigações ela produziu algumas telas representando alguns médiuns incorporados com orixás e outras entidades. Dentre essas os

exus, que ela usou como principal fonte de inspiração para compor os primeiros trabalhos.

Rita Queiroz afirma haver compreendido o sentido da experiência numinosa dos adeptos dos cultos afro-ameríndios, contudo se frustrou no desejo de transpor

para as telas a intensidade energética que se verifica durante as cerimônias.

Acabou por abandonar o tema porque os ritos levaram-na a entrar em conflito interno com os valores religiosos da sua formação católica, despertando

temores oriundos do imaginário popular que associam as religiões afro-brasileiras ao demônio e à magia negra.

Despreparada para enfrentar os medos e os preconceitos pessoais e sociais, Rita presenteou os amigos que se interessavam pelos deuses e outras entidades

dos terreiros e por seus trabalhos com as telas que haviam sido produzidas nesta primeira fase de pesquisas sobre as religiões afro-brasileiras. Na seqüência, viajou

para Portugal.

Os trabalhos que desenvolveu em Portugal ressaltaram aspectos da cultura brasileira que eram percebidos como símbolos da sua identidade e nacionalidade.

Neste período, as suas telas retratavam negras baianas em trajes típicos.

Embora as baianas não estivessem associadas em princípio aos estudos sobre o Candomblé, e sim ao folclore brasileiro, é interessante notar que

inconscientemente ela retomou seu estudo sobre a cultura afro-brasileira.

Passada a temporada em Portugal e já de volta ao Brasil, Rita retorna ao tema principal das suas obras, os ribeirinhos, no seu dizer, a sua essência. Para Rita,

pintar o tema regional é voltar-se para si, interiorizando-se e trazendo à tona imagens familiares, não há necessidade de pesquisa. Para ela, pintar ribeirinhos é algo

natural ao seu existir, uma extensão do seu próprio corpo.

Rita admite guardar neste corpo uma alma inquieta e uma incrível fascinação pelo sobrenatural, a ponto de haver-se dedicado ao aprendizado de algumas

formas de magia. Ao observar os seus trabalhos é possível constatar as marcas de sua natureza mística.

As vivencias, a maturidade e as amizades que travou e aprofundou em período mais recente modificaram o olhar e o pensar de Rita sobre as religiões afro-brasileiras.

Profissionalmente mais madura e com acúmulo de algum conhecimento teórico sobre magia e religião, ela se permitiu freqüentar não apenas as cerimônias religiosas e outros eventos católicos, mas também grupos esotéricos e espíritas, o que provocou alterações nas suas crenças pessoais.

Como resultado ela desenvolveu um senso artístico e intelectual mais apurado sobre as religiões populares que resultaram na realização de diversos trabalhos de caráter sacro e profano.

O fascínio pelo sobrenatural e a sensibilidade artística reconduziram Rita aos terreiros e ao contato com o povo de santo e os encantados, desencadeando

mais uma vez o desejo de materializar o que os seus sentidos apreendiam.

Há cerca de dois anos ela retomou as pesquisas sobre os cultos afro-brasileiros, realizando esboços para novas telas. Desta vez, ela desloca o olhar do foco

ribeirinho e não retrata os encantados das margens dos rios amazônicos, mas os da cultura africana, tais como iemanjá, oxum e outros orixás. O que ressalta nesse

novo trabalho é a harmonia da composição na transposição da energia dos orixás e seus cavalos (os médiuns) e a consciência de que não há ruptura entre este

trabalho e os que foram anteriormente produzidos a respeito da vida, das lendas e crendices dos beradeiros.

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Rita Queiroz diz que para a execução das novas telas, embora tenha feito a partir da observação dos rituais de um terreiro de candomblé, não foi apenas

o visível no terreiro que ela buscou transpor para a pintura, mas o que ela pôde perceber além das cores, do movimento, de tudo que envolve o ritual que compõe

uma festa de candomblé. No seu dizer, cada entidade está sendo apresentada como Rita as viu, daí julgar importante retirar os semblantes dos médiuns, pois não era

a eles que desejava representar. Neste sentido, ela informa que a preocupação não foi em retratar os rostos dos participantes dançando, mas a energia percebida e

apreendida.

Vale ressaltar que para ela não há contradição entre os seres da natureza cultuados pelos povos ribeirinhos e os orixás. O mundo mágico das florestas

amazônicas com as suas lendas e mitos é enriquecido com a contribuição do povo africano. Ela faz as seguintes considerações a esse respeito:

É interessante... Como eu acho também, que de dentro do meu rio Madeira, de dentro das minhas matas, de dentro de minha... toda essa energia de dentro da Amazônia, de todo o meu trabalho. Eles têm uma ligação com essa energia, porque eu acredito que cada uma baiana dessas (eu não entendo porque eu não sou uma pessoa muito entendida do Candomblé), eu sinto que elas têm uma ligação com a energia da mata, do rio, do próprio ar, do relâmpago, do trovão. Então é aquela coisa que no fundo, no fundo se mistura. Há uma mistura de energia com energia. (Rita Queiroz: 08.08.2002). O conceito energia é usado por Rita Queiroz quando informa sobre este trabalho. Este conceito traduz o que ela capta e consegue compreender a respeito dos

rituais, das entidades e do que estes representam para si mesma e para as pessoas que cultuam os deuses africanos.

Rita Queiroz não possui um saber acadêmico sobre o culto aos orixás, porém se retomarmos os estudos de Pierre Verger (1999), observaremos que

intuitivamente ela capta o sentido que é conferido a estes na cultura africana conforme pode ser lido nesta passagem: Lembremos que os cultos prestados aos orisa

dirigem-se, em princípio, as forças da natureza. Na verdade a definição de orisa é mais complexa. É verdade que ele representa uma força da natureza, mas isso não

se dá sob sua força desmedida e descontrolada. Ele é apenas parte dessa natureza, sensata, disciplinada, fixa, controlável, que forma uma cadeia nas relações dos

homens com o desconhecido. (Verger: 1999: 37)

Observa-se, pois, que as origens dos deuses do Candomblé reportam à história dos ancestrais dos clãs das tribos africanas e que estes foram

divinizados por sua capacidade de manipular as forças da natureza, contribuindo para a sobrevivência dos membros do grupo com os seus conhecimentos sobre o

plantio, a confecção de ferramentas de trabalho e a cura com ervas.

De fato, entre os estudiosos das religiões populares no Brasil é possível observar a junção de crenças, ritos e símbolos. Conforme Berkenbrock: “o sincretismo

é a característica que talvez mais impressione a um observador superficial das religiões e cultos afro-brasileiros”, observando ainda que: “A situação atual do

sincretismo é o resultado de um desenvolvimento orgânico iniciado há séculos e que se encontra hoje em curso” (1998, p. 132).

Assim, fascinada por esse campo de observação, a casa que serviu de inspiração para o trabalho de Rita Queiroz a respeito dos orixás denomina-se Abaçá de

Nagô Iemanjá Ogunté, fundada em 4 de dezembro de 1986 por Roberto Athayde, mais conhecido como Pai Roberto de Iemanjá que é o seu dirigente.

A CASA PESQUISADA

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As raízes históricas dessa casa estão ligadas ao Palácio de Nagô da Oxum Jangurá na Paraíba. Portanto, o terreiro investigado por Rita Queiroz pertence à nação

nagô, porém este sofreu influências de outras culturas e incorporou aos seus fundamentos a tradição religiosa da Jurema. Dito de uma forma pouco aprofundada, isto

significa que, na estrutura ritual do terreiro mencionado, além dos deuses africanos de origem iorubana, são cultuadas entidades caboclas do Brasil.

Segundo Maria do Carmo Brandão e Felipe Rios (2001, p. 165-166), “duas categorias de entidades espirituais tem seus assentamentos na jurema, os caboclos

e os mestres”. Esses autores explicam que “os caboclos são entidades de origem indígena que trabalham principalmente com cura através do conhecimento das ervas.

Afirmam que de forma geral os mestres são descritos como espíritos curadores de descendência escrava ou mestiça”.

É importante ressaltar que esse ritual de cura recebe a denominação de Jurema devido à utilização de uma bebida que é ingerida durante os rituais. A bebida

é obtida a partir da utilização da casca de uma árvore existente no nordeste chamada Jurema.

Conforme Sangirardi Júnior (apud: Motta,1988, p. 226), “a jurema é conhecida como a ‘droga mágica’ do Nordeste”.

A respeito da Jurema, Clarice Novaes Mota (1988, p. 226) comenta:

... seu nome vulgar ou popular vem do Tupi Yu-e-ema. Há pelos menos sete espécies de árvores ou arbustos conhecidas, usadas e classificadas como Jurema. Na classificação popular Jurema Mansa, Jurema Branca, Jurema de Caboclo, Jurema de Espinho, Jurema Preta e Jureminha. Uma outra espécie também conhecida pelo nome de Jurema é a Jurema das Matas, que não nos foi possível localizar para fins classificatórios. Pela descrição dos mateiros e usuários, ela tem espinhos, podendo portanto tratar-se da mesma Jurema de Espinho. Ao tentar estabelecer as distinções entre os cultos de origem nagô e os de jurema, Pai Roberto de Yemanjá explica que os rituais de nagô são realizados

quando das festas aos orixás, as feituras e saídas de santo e que nesta tradição ele possui o grau de pai de santo. Porém, como também é juremado, na tradição da

Jurema, ele possui o título de Mestre Juremeiro.

Referindo-se ao conhecimento e aos postos hierárquicos nas duas tradições mencionadas, Pai Roberto de Yemanjá explica: No Nagô antiguidade é posto. A

Jurema é um segredo. Conhecimento sobre os ritos de nagô qualquer um pode adquirir lendo, estudando, mas o axé, o dom de ser um juremeiro é como uma

herança espiritual dos nossos antepassados. Não se adquire por conhecimento, mas sim por dom, já se nasce com o dom, embora para se preparar um mestre

juremeiro leva-se de 01 a 07 anos. (Roberto de Athayde, 26.08.2002).

Atualmente, três filhos da casa estão sendo preparados para receberem título de Mestre: Rafael, Nilza e Flávio.

Assim, na linha de nagô, a casa é dedicada a Iemanjá Ogunté, porém na da Jurema quem comanda é o caboclo Pena Branca. Ressalte-se que a Jurema

também se divide em linhas, sendo cultuadas as seguintes no terreiro investigado: linha de mestres, comandada por Seu Zé Pelintra de Aguiã; a linha de pretos velhos

comanda Pai Joaquim e Maria Conga; a linha dos ciganos comanda o cigano Pablo, há ainda invocação às entidades das linhas de boiadeiros e pomba giras.

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Embora, de modo geral, a tradição nagô tenha sofrido perdas culturais, assim como incorporações de outras tradições, o pai-de-santo do Abaçá

de Nagô Yemanjá Ogunté tem a preocupação de transmitir o conhecimento tradicional que recebeu na casa matriz.

Desta forma, entre outros preceitos, as rezas cantadas para homenagear os orixás, algumas vezes, são entoadas em língua africana. São mantidos

assentamentos para treze dos orixás que são cultuados no Brasil.

As cerimônias acompanham a ortodoxia nagô quanto à ordem hierárquica estabelecida para homenagear os orixás. Neste sentido, na abertura dos

rituais, canta-se inicialmente para Exu, pedindo-lhe licença para dar início aos trabalhos.

Entre os adeptos do Candomblé acredita-se que só por meio de Exu é possível invocar os orixás, pois ele é tido como orixá mensageiro entre os

homens e os zdeuses. A seguir os orixás são saudados na seguinte ordem: Ogum, Ode, Osanha, Nanã, Obaluaê, Xangô, Oxum, Tempo, Erê, Iansã, Iemanjá

e Oxalá. Alguns dos orixás como Oxumaré, Obá e Obacio continuam sendo cultuados, porém estes não são saudados durante as cerimônias públicas, não se

manifestando no corpo dos médiuns.

Os filhos de santo da casa preparados no Nagô hoje são Ronaldo de Xangô, Eliane da Oxum, Rafael da Oxum, Nilza de

Iemanjá, Helena de Iemanjá, Branca de Iansã e Flávio de Oxalá. A casa tem ainda quatro ogãs: Daniel de Ogun Xoroquê,

Fabinho de Ogum, Pablo de Xangô e Dirley de Omolu. A ekede é Jose de Oxum Jangurá.

A trajetória de Pai Roberto como dirigente de terreiro tem início quando da sua iniciação aos oito anos de idade no Templo

Religioso Mãe Yemanjá da Ialorixá Beatriz Barbosa, conhecida como mãe Beata de Iemanjá Sobá, que fundou uma casa de

Angola na Paraíba no ano de 1960. Mãe Beata foi preparada no Cabula na casa de pai Cecílio de Oxalá em Salvador.

Pai Roberto de Iemanjá permaneceu no Angola até os 20 anos de idade, tendo, após, por motivos particulares, conforme diz, “trocado as águas pelas do

nagô” onde permanece até hoje, contando com 42 anos de feitura de santo.

A sua primeira casa foi aberta no dia 13 de maio de 1970, afiliada à Federação dos Cultos Africanos da Paraíba. Quando da sua vinda para Rondônia houve um

desmembramento dos seus filhos de santo, daí resultando o surgimento de outras casas, dentre elas estão o Abaçá de Oxaguiã da Ialorixá Angelina de Oxalá, já

falecida; a Casa do Babalorixá João Cipriano, Templo do Mestre Cangaruçú, que funciona assim como a casa de Pai Roberto com nagô e Jurema; o Palácio de Oyá

Gigandê da Ialorixá Mãe Rita de Iansã; a Casa de Iansã Oyá Dope do Babalorixá Mazinho de Iansã;

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Com uma trajetória de migração pelos Estados da Paraíba, São Paulo, Rio de Janeiro e Rondônia, sempre exercendo as atividades de pai-de-santo,

Roberto de Iemanjá realizou o feitio de aproximadamente setenta filhos de santo no Candomblé e em alguns casos também de Jurema.

O seu Abaçá em Porto Velho, em funcionamento há quatorze anos, possui filhos preparados, mas nenhum saiu para abrir a própria casa.

A casa de Iemanjá Ogunté está localizada no Residencial Dom João Costa, Rua 02, Casa 02, na Av. Amazonas, e os rituais abertos ao público são realizados

aos sábados.

Fontes Primárias

ATHAYDE, Roberto. Entrevista concedida em 27.08.2002.

QUEIROZ, Rita. Entrevista concedida em 08.08.2002.

Bibliografia

BARROS, José Flávio Pessoa de. O banquete do rei... Olubajé: uma introdução à música sacra-afro-brasileira. Rio de Janeiro: Livro Técnico, 2000.

BERKENBROCK, Volney J. A experiência dos Orixás. São Paulo: Vozes, 1998.

BRANDÃO, Maria do Carmo e RIOS, Luís Felipe. Catimbó-Jurema do Recife. In: PRANDI, Reginaldo (org.). Encantaria brasileira: o livro dos mestres, caboclos e

encandos. Rio de Janeiro: Pallas, 2001, p. 160-181.

CACCIATORE, Olga Gundolle. Dicionário de Cultos Afro-brasileiros: com a indicação da origem das palavras. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 3ª edição revista.

1988.

MOTA, Clarice Novaes da. Jurema-Sonse, Jurema-tupan e as muitas faces da Jurema. In: Revista Antropológicas. Ano III, vol. 7. Série Anais. Memória, Tradição &

Perspectivas. Recife, Programa de Pós-Graduação em Antropologia, 1988, p. 225-243.

SANGIRARDI, Júnior. In: MOTA, Clarice Novaes da. Jurema-Sonse, Jurema-tupan e as muitas faces da Jurema. In: Revista Antropológicas. Ano III, vol. 7. Série Anais.

Memória, Tradição & Perspectivas. Recife, Programa de Pós-Graduação em Antropologia, 1988, p. 225-243.

VERGER, Pierre Fatumbi. Notas sobre o culto aos orixás e voduns na Bahia de Todos os Santos, no Brasil, e na Antiga Costa dos Escravos, na África. São Paulo:

EDUSP, 1999.

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO)

CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE

PRIMEIRA VERSÃO ANO II, Nº111 - AGOSTO - PORTO VELHO, 2003

VOLUME VII

ISSN 1517-5421

EDITOR

NILSON SANTOS

CONSELHO EDITORIAL ALBERTO LINS CALDAS – História - UFRO

CLODOMIR S. DE MORAIS – Sociologia - IATTERMUND ARTUR MORETTI – Física - UFRO

CELSO FERRAREZI – Letras - UFRO HEINZ DIETER HEIDEMANN – Geografia - USP JOSÉ C. SEBE BOM MEIHY – História – USP

MARIO COZZUOL – Biologia - UFRO MIGUEL NENEVÉ – Letras - UFRO

SILVIO A. S. GAMBOA – Educação - UNICAMP VALDEMIR MIOTELLO – Filosofia - UFSC

Primeira Versão destina-se a divulgar ensaios breves em todas as

Os textos de até 5 laudas, tamanho de folha A4, fonte Times New Roman 11, espaço 1.5, formatados em “Word for Windows”

deverão ser encaminhados para e-mail:

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CAIXA POSTAL 775 CEP: 78.900-970 PORTO VELHO-RO

TIRAGEM 200 EXEMPLARES

EDITORA UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA

ISSN 1517-5421 lathé biosa 111

ENSAIO SEM REFERÊNCIAS APARENTES OU EM BUSCA DE UMA ECOEXOSSOMIA

CARLOS SANTOS

PRIMEIRA VERSÃO

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CARLOS SANTOS Ensaio sem Referências Aparentes ou Em Busca de uma Ecoexossomia

Professor do Departamento de Geografia - UFRO

Colocaremos como premissa, de início, a condição sine qua non de que o espaço parece ter como fundamento das coisas, isto é, enquanto meio de existência

de tudo que possamos imaginar (sem enveredar pelo cipoal filosófico da discussão do que seja espaço). Quer dizer, afirmamos que o espaço é condição de

possibilidade de todas as coisas. Nesses termos, o espaço não pode ser objeto de estudo, de vez que, pelo figurino científico vigente, é preciso haver distância entre

sujeito e objeto. Ou seja, o processo de apreensão de um dado fenômeno, recortado epistemologicamente da realidade, só é possível se esse dado estiver fora do

sujeito; quer dizer, se comportar uma operação intelectual de construção. O espaço é intuído e não construído. Enquanto intuído, o espaço é inerente ao sujeito; não

é algo externo a ele.

Mas, no entanto, o espaço pode ser fonte de espacialidades, ou seja, manancial de recursos (resultantes da moldagem do conteúdo do espaço, isto é, do seu

estoque de materialidade), cuja produção deve ser o verdadeiro alvo de uma teoria social conotando objetos espaciais (sendo objeto aquilo a que a consciência visa).

Neste sentido, está intrínseca a premissa que considera o espaço como a dimensão que permite três básicos comportamentos humanos: primeiro, a intuição de

possibilidades; segundo, a intenção de possibilidades; e, terceiro, a realização de possibilidades.

Mesmo o tempo, que é a outra condição de existência das coisas, depende do espaço para acontecer; posto que, a essência do tempo é o movimento, e só é

possível o mover se existir espaço para a ação. Portanto, mesmo considerando-se que tempo é espaço, e vice-versa, o tempo é, na verdade, uma qualidade do

espaço. Assim, até o tempo depende do espaço. Se o espaço é essa condição primordial, então ele é algo já dado, conforme explicado acima. Sendo assim, na

condição de substantivo o espaço não pode ser, por exemplo, eixo da discussão geográfica. Mas o espaço pode ser qualificado, pode receber atributos, pode ser

moldado, pode ser organizado, pode ser logicizado, pode se tornar um texto, pode ser codificado pela disposição dos seus elementos, pela moldagem da materialidade

que lhe é inerente (partículas e/ou subpartículas). Pode ser, então, adjetivo. Enfim, pode ser poder: instrumento – com graduada acessibilidade.

A qualidade do espaço pode ser mensurada, pode ser teorizada, pode ser objetivada, pode ser cientificizada. Assim, é possível uma geograficidade de coisas,

de pessoas, de atividades, de fenômenos. Em suma, de valores. Porém, trata-se de uma geograficidade referenciada a um contexto finito: o planeta Terra. Esse

horizonte compromete a ampliação do discurso geográfico. A qualificação espacial obviamente não pode se restringir a um limite já superado. A abrangência da

moldagem espacial humana vai além, evidentemente, do recinto terrestre. O impulso endo-exossomático humano extrapola seu berço de origem. Esse élan de

instrumentalizar seu entorno e a si é diretamente proporcional ao grau de consciência dos limites desse meio, que, por sua vez, revela-se cada vez mais estendido. É

um jogo dialético. Na medida em que o homem se descobre meio de autoconsciência de si e de seu ambiente, e considerando esse meio, que, no limite, é o próprio

Universo, e que toma consciência de si através do homem, sua espacialidade se amplia na mesma proporção. Assim, o que de fato interessa é o processo incessante

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de moldagem que o homem promove a si e ao seu entorno. Resulta dessa moldagem um artefato que pode ser desprendido do referencial terrestre. Temos,

então, um contexto portátil, móvel, uma prótese, um extenso humano: uma espacialidade humana.

E essa é a dimensão que importa ser discutida. A espacialidade enquanto recorte do espaço é o verdadeiro locus da condição humana. Nessa conotação,

espacialidade pode ser, inclusive, contraposta à noção de sócio-espaço, quando esta é colocada como expressão de processo. Ou seja, o composto "sócio-espaço"

como indicação de processo tanto social quanto espacial, mistura alho com bugalho. O processo, no caso, é eminente e exclusivamente social, o espacial funciona

como condicionante(s) dado(s) naturalmente, passível de transformação em recurso(s) pela ação social. Desse modo, o composto "sócio-espaço" tem sentido

naturalizante e/ou positivista, impreciso, híbrido, de péssima formulação. Em suma, o conceito de espacialidade define o resultado da ação humana na(s)

circuvizianhança(s) da presença humana. Trata-se de uma visão de transcendência do fato geográfico para o fato exossomático.

Mas o espaço não pode ser considerado como mero receptáculo da ação humana. Ele é mais do que isso, é potência. Vale dizer, não se trata de algo vazio

que pode ser ocupável mas de um contínuo de materialidade extremamente refinada, portanto portadora de infinita plasticidade. Porquanto o fazer da moldagem

espacial, a produção da espacialidade, implica em recíproca configuração. Ou seja, os primeiros hominídeos produziram sua hominização produzindo instrumentos.

Isto é, ao moldar seu ambiente à sua imagem e semelhança o homem se moldou enquanto tal. O homem se fez fazendo coisas (pois mesmo o falar é uma fazer

sofisticado), fazer sempre abre a possibilidade de fazer melhor, quer dizer, a resistência natural das coisas à finalidade humana obrigou (e tem obrigado) o homem a

condicionar-se a novas configurações na exata proporção em que força as coisas (e os outros, no âmbito das relações sociais) a se condicionarem a seus interesses.

Então, essa dimensão antropológica (base das outras dimensões: histórica, geográfica, sociológica, econômica, matemática, física, etc.) configura o formato cultural do

homem, derivando daí todo um vasto conjunto de implicações a ser consideradas.

Parâmetros da Espacialidade

A proposta acima coloca na berlinda alguns parâmetros que precisam ser apreciados. A espacialidade, conceito central da discussão, é um agregado de

elementos que lhe dão sustentação e, inclusive, contribuem para a sua institucionalização. Pela nossa avaliação, são os seguintes: valor, recurso, territorialidade,

singularidade, exossomia e mente.

Valor

Comecemos pelo conceito de valor. Simplificadamente, relembremos que a noção de valor moderna surgiu a partir de Adam Smith. Antes, com os fisiocratas e

mercantilistas, valor era tido como algo inerente às coisas. Com Smith, passa-se a conceber valor como produção humana, mediada por relações sociais mercantis,

isto é, balizada por um tempo socialmente necessário para a subsistência humana, conforme o adendo de Ricardo, e que Marx vai refinar, ao extrair o caráter social

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que dá sustentação ao processo, definindo-o, por fim, como trabalho abstrato. Valor toma a dimensão da subjetividade humana. Deixa de ser um dado natural

para ser um atributo social. Atributo que está em crise enquanto fulcro da modernidade, requerendo assim nova formulação.

Recurso

Outro fator de balizamento da espacialidade é o conceito de recurso. Esse fator também sempre teve uma conotação naturalizada. Recurso foi sempre

identificado como matéria natural. Sua desnaturalização vem ocorrendo, paradoxalmente, pari passu, com o movimento ecológico desde a Conferência de Roma sobre

os limites do crescimento econômico, e com o Relatório Meadows resultante, em começos dos anos setenta do século passado, quando se afirmou a finitude das

reservas de matéria prima naturais, e a natureza passou a ser vista como um estoque. Assim, recurso tornou-se algo produzível, isto é, produto da ação humana. E

portador de uma elasticidade que a matéria prima natural não possui: as reservas naturais são finitas, inelásticas, mas o recurso é sempre mais recurso na medida em

que são exploradas suas potencialidades – quanto mais se usa o recurso mais recurso ele se torna. Portanto, recurso é um meio dotado de extrema plasticidade.

Porque recurso é diretamente proporcional à tecnologia de sua produção. Poder de fazer. O como se faz, estratégia guardada ciosamente pelas empresas, e razão de

tantas batalhas jurídico-empresariais. Vale dizer, saber tecnológico ou precisão de informação, ou simplesmente informação, é hoje, tendencialmente, a locomotiva da

economia. É o capital intelectual.

Territorialidade

Valorizar a natureza e produzir recursos importa em controle. Entra em cena então outro ingrediente da espacialidade: a territorialidade. Ela pode ser definida

como um comportamento humano espacial. Uma expressão de poder que não é nem instintiva e nem agressiva, apenas se constitui em uma estratégia humana para

afetar, influenciar e controlar o uso social do espaço, abarcando escalas que vão do nível individual ao quadro internacional, dentro de um contexto usualmente

denominado de território. O território é usado, por sua vez, na ação governamental para condicionar os processos políticos, visando compensar a incapacidade do

mercado em atender a todos, e, ao mesmo tempo, viabilizar o capital. Para tanto, cria externalidades no espaço geográfico, ou seja, gera uma malha de unidades

políticas e de infraestruturas, perpassando todos os níveis escalares, suficientes para sustentar a disponibilidade dos bens públicos. Desse modo, a territorialidade dos

bens públicos implica, por razão de eficiência, em uma fragmentação territorial, uma multiplicidade de núcleos territoriais que, por sua vez, exigem níveis de controle

jurídico-administrativos. Em suma, o conceito de territorialidade é multifacetado. Pode conotar o processo de delimitação de uma porção ecológica da crosta terrestre,

aplicando-lhe um significado de patrimônio juridicamente pertencente a um coletivo, constituindo-se assim em território de um estado-nação, por exemplo. Mas

também pode significar a valorização econômica desse contexto jurídico-ecológico. Enquanto processo de construção territorial a territorialidade abrange as ações de

demarcar, interditar e dominar. Já no âmbito da produção e da distribuição de recursos a territorialidade implica em controlar. Mas é precisamente esse caráter

político-econômico da territorialidade, isto é, na forma de processo de produção de recursos e de gestão do acesso aos mesmos que se quer privilegiar aqui.

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Singularidade

Recurso requer, como vimos, além do processo de produção, também a distribuição. Isto é, o quanto ele pode ser acessível. A territorialidade é todo um

complexo de mecanismos institucionais que regulam o acesso aos recursos. Mas quem tem direito aos recursos? No limite, e essa deve ser a dimensão da cidadania,

todos. Vamos ao argumento. Cada pessoa é uma manifestação única tanto biológica (biotipo, atributos físicos) quanto espiritual (atributos mentais, intelectuais,

emocionais, de personalidade) no sentido de portarem peculiaridades tais que só elas possuem. Um dado João ou uma dada Maria constituem um sistema humano de

per si que não teve ocorrência antes e nem haverá depois. Isto é, são cada um deles uma singularidade. Essa singularidade implica que cada ser humano é portador

de uma mensagem, de um recado que só ele pode comunicar. Esse recado é uma teoria que junto com as demais, inerentes aos outros seres humanos, formam uma

imensa riqueza de informação, o verdadeiro patrimônio da humanidade. Assim, é crucial que cada um tenha asseguradas todas as condições de expressão de seu

cabedal informativo. Nesse sentido, todos devem ter acesso aos meios que lhes facultem se tornar aptos. Raciocínio que se contrapõe a questão, patrocinada pela

ideologia burguesa, de que a condição humana seria baseada na desigualdade. Ou seja, embora iguais perante a lei, os homens seriam desiguais em talento e/ou

capacidade (sem a relatividade de contextos e/ou circunstâncias). Ocorre que essa visão fascista confunde diversidade com desigualdade. O que ela nega é a

expressão plena de interpretações da realidade ou de visões de mundo que não se afinem com a lógica padrão conservadora. Isto é, com a cultura do individualismo,

algo tão inerentemente burguês. Mas consideramos que há uma diferença crucial entre individualismo e individualidade. Por individualismo entende-se aqui o

comportamento subjetivista, de caráter egocêntrico, açambarcador. Agora, por individualidade compreende-se a busca de afirmação da singularidade que cada um é

portador. Isto é, uma informação que só ele detém e que pode ser, inclusive, traduzida economicamente, desde que os meios lhe sejam acessíveis. Essa condição de

expressão deve dar a cada pessoa não só a realização de seu próprio eu como significa também uma contribuição, que pode ser traduzida economicamente, como já

mencionado, ao acervo de criação intelectual da própria espécie humana. Essa singularidade, em suma, é uma informação que possui um valor traduzível em meio de

troca, uma moeda personalística. Desse modo, o acesso aos recursos é transansionado pela contribuição informacional facultada pela singularidade de cada um, com

base nessa moeda. Uma troca justa e concreta.

Exossomia

O processo de adaptação dos organismos ao planeta Terra implicou em dois comportamentos básicos, visando melhor ajuste às condições ambientais:

endossomatismo e exossomatismo. O endossomatismo significa a estratégia que os animais desenvolveram, especializando o próprio corpo às injunções do meio

terrestre. Consiste em condicionar seus órgãos, tipo garras, pelagem, dentes grandes e afiados, musculatura, força física, e outros expedientes corporais. Já o

exossomatismo tem sido a faculdade que grandes primatas, mormente o próprio homem, vem utilizando como meio de instrumentalizar a natureza. Implica na

fabricação das mais diversas ferramentas para os mais diversos usos. Essa construção de instrumentos tem significado uma eficaz dominância do homem sobre a

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natureza, teorizada modernamente pelo projeto iluminista, no que tem sido denominado de cultura da técnica ou de pesquisa tecnológica, mas cujos limites o

paradigma ecológico vem mostrando. A tecnologia resultante da exacerbação da exossomia humana tem impactado profundamente os mecanismos de sustentação

ecológica do planeta. A exossomia humana tem colocado em xeque a capacidade de sustentação ecológica do planeta ao negligenciar a lógica de reciclabilidade e de

regeneração dos circuitos de matéria e energia do sistema natural. Ocorre que, como corolário da própria ideologia de dominação da natureza, explícita no projeto

iluminista, a ecologia do contexto social, cuja lógica é idêntica a do sistema natural, no sentido de que preservação ambiental implica equalização social, posto que

exclusão social equivale à depredação ambiental. Há duas ecologias, uma natural e outra social, que funcionam da mesma forma, requerendo, portanto, a mesma

solução. É preciso, então, redefinir a cultura exossomática.

Mente

A mente é uma síntese de razão e emoção. Em si é uma dimensão de combinação de endossomatismo e exossomatismo. É um mundo de elementos

simbólicos, abstratos, que se estruturam formando representações da realidade.

É, assim, um campo virtual que dialeticamente se volta sobre o mundo real conformando-o a seus cânones. Embora produto do cérebro, que lhe dá

sustentabilidade real, a mente é capaz de estimulá-lo a ponto de aumentar sua própria eficácia. Tal eficácia, por sua vez, reflexiona-se sobre o cérebro estimulando-o

mais ainda. Ou seja, há um jogo de endossomatismo na estimulação do cérebro pela mente que implica em exossomatismo na expansão da própria mente. A mente é

toda uma dimensão de definição do eu. Toda a personalidade e potencialidade do eu se encontram no âmbito da mente. A plasticidade da mente, a princípio, é

infinita; porquanto se há um limite físico de crescimento para o cérebro não existe barreira para a expansão da mente. A mente é, holograficamente, a totalidade do

espaço reproduzida na dimensão dela mesma, e que cada pessoa transporta. Em nível individual, a mente é, de fato, uma panacéia. Todo e qualquer problema que o

indivíduo se defronta pode ser resolvido pela mente. O limite dessa solubilidade é a sintonia com a dinâmica do real quando a mente pode acompanhar todo o

movimento da realidade. É claro que certos condicionamentos são necessários como, por exemplo, aprender uma profissão. Mas em se tratando de situações tais

como auto-aceitação, onde é preciso se deixar fluir o eu tal qual ele é, nenhuma intermediação deve acontecer. Afinal, assumir integralmente o que se é, incorporando

todo o seu próprio eu, é o princípio básico do que sempre se considerou como sendo religião. Só que nesse caso a conotação é de religação com a realidade. E esta

inclui a si, o outro e todo o contexto. Essa religação estabelece o caráter incomum da mente, qual seja, a faculdade de, ao contrário do espaço, ser objeto de

construção teórica. Isto é, a mente é, também, tal qual o espaço, condição de possibilidade da realidade humana. Mas ela não é um dado disponibilizado pela

realidade como algo já pronto, como no caso do espaço, ela, a mente, é uma construção. Só que é uma construção que se constrói. É um espaço que se auto-

conscientiza e se auto-expande. A mente é um substantivo que se torna adjetivo por si mesmo. Desse modo, a princípio, a mente pode ter a dimensão do próprio

espaço. Isto é, algo que possui um caráter de infinitude.

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Conclusão

A espacialidade humana se afigura como um meio de inserção do indivíduo no denso tecido social. Para tanto, ele precisa aprender a lidar com estratégias que

lhe possibilitem essa inclusão. Esse aprendizado implica em reivindicações políticas e econômicas, a princípio. Na dimensão política importa o exercício pleno da

cidadania. Mas esta requer um contexto propício, no caso, a democracia. O nível econômico concerne às condições materiais de sobrevivência e de completa

expressão pessoal. Aí significa acesso aos recursos sociais. Exige-se, então, uma nova formatação de mercado, onde uma moeda baseada na singularidade individual,

garantida pelo princípio de cidadania, regule o seu funcionamento.

A função de exossomia, base da condição humana, precisa ser balizada pelo paradigma ecológico. A instrumentalização da natureza não pode implicar em

depredação, dado o negativo custo-benefício resultante, tanto quanto a exclusão social que, de modo análogo, impõe um alto custo político/econômico, devido a

crescente pressão/explosão social. Então formas de valorização, isto é, novos padrões de valor devem ser construídos. Para tanto, é preciso referenciá-los ao

paradigma da ecologia, isto é, a uma ecoexossomia (inspirada numa afirmação do eu e não numa dominação do eu).

Se existe sentido na vida humana, ele só pode ser analisado na medida em que se alcança graus crescentes de adultidade. O destino do ser humano é ser

adulto. Esse processo revela a capacidade de auto-aceitação dos indivíduos e, concomitantemente, aceitação plena do(s) outro(s), implicando em uma relação de

desagressividade. Em suma, em uma relação ecológica consigo, com o outro e com o meio-ambiente. E essa mediação ecológica é a mente. A mente e o espaço são a

mesma coisa. O espaço se tornou mente através da condição humana. Isto é, a mente é o meio através do qual o espaço toma consciência de si mesmo. E essa é a

finalidade humana.

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO)

CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE

PRIMEIRA VERSÃO ANO II, Nº112 - AGOSTO - PORTO VELHO, 2003

VOLUME VII

ISSN 1517-5421

EDITOR

NILSON SANTOS

CONSELHO EDITORIAL ALBERTO LINS CALDAS – História - UFRO

CLODOMIR S. DE MORAIS – Sociologia - IATTERMUND ARTUR MORETTI – Física - UFRO

CELSO FERRAREZI – Letras - UFRO HEINZ DIETER HEIDEMANN – Geografia - USP JOSÉ C. SEBE BOM MEIHY – História – USP

MARIO COZZUOL – Biologia - UFRO MIGUEL NENEVÉ – Letras - UFRO

SILVIO A. S. GAMBOA – Educação - UNICAMP VALDEMIR MIOTELLO – Filosofia - UFSC

Os textos de até 5 laudas, tamanho de folha A4, fonte Times New Roman 11, espaço 1.5, formatados em “Word for Windows”

deverão ser encaminhados para e-mail:

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TIRAGEM 200 EXEMPLARES

EDITORA UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA

ISSN 1517-5421 lathé biosa 112

HISTÓRIA E ESTRUTURA RITUAL DE UM TERREIRO GEGE-NAGÔ EM PORTO VELHO

MARTA VALÉRIA DE LIMA

PRIMEIRA VERSÃO

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ISSN 1517 - 5421 115

Marta Valéria de Lima HISTÓRIA E ESTRUTURA RITUAL DE UM TERREIRO GEGE-NAGÔ EM PORTO VELHO-RO

[email protected]

Professora do Departamento de História da UFRO

No período de 1999 a 2000 realizamos uma pesquisa etnográfica que teve por finalidade estudar uma antiga casa de culto afro-brasileiro na

localidade de Porto Velho, Rondônia. A nossa finalidade quando realizamos a investigação foi a de resgatar a história da casa preservada pela memória coletiva e

registrar as suas práticas rituais, assinalando as transformações ocorridas. Neste artigo discorreremos sobre alguns aspectos da sua história e estrutura ritual.

Em Porto Velho os cultos afro-brasileiros foram genericamente denominados Macumba ou Batuque, e, mais recentemente, Umbanda. Assim como em

outros lugares do Brasil, esses cultos foram implantados, sobretudo, em bairros populares.

A tradição oral e as fontes documentais escritas indicam que esses rituais estabeleceram-se nos bairros que apareceram em torno do pátio ferroviário da

Estrada de Ferro Madeira Mamoré (EFMM), local onde teve início a cidade de Porto Velho. O primeiro terreiro dessa localidade chamava-se Recreio de Yemanjá34,

tendo sido fundado nas imediações desse pátio, no bairro conhecido por Mocambo, povoado por migrantes de vários estados brasileiros, principalmente Amazonas,

Pará, Maranhão, Bahia e Ceará.

As fontes orais e escritas divergem quanto à data de fundação do terreiro. O ano de 1917 parece ser o mais provável. A memória oral e os registros

documentais são unânimes, entretanto, ao indicar os nomes de Esperança Rita da Silva (1888? /1972) e Irineu dos Santos (? /1946) como os pais fundadores do

Recreio de Yemanjá. Há também unanimidade na informação de que estes fundadores eram procedentes da cidade de Codó, no Maranhão.

Nilza Menezes, na obra Mocambo: com Feitiço e com Fetiche: trajetória do Bairro Mocambo em Porto Velho–RO (1999) refere-se à origem e atividades

profissionais dos primeiros habitantes do Bairro Mocambo, que segundo a autora era ocupado predominantemente por negros, que exerciam as seguintes atividades

econômicas: quituteiras, biscateiros, pedreiros, carpinteiros, prostitutas, feirantes e desempregados que buscaram nos fundadores deste primeiro terreiro a

caridade35.

34 Não encontramos nas fontes documentais pesquisadas nenhum outro registro de terreiros que antecedesse ao Recreio de Yemanjá, daí considerarmos o primeiro da localidade. 35 Menezes, 1999:22-24.

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Os registros orais coletados junto à comunidade do terreiro e a antigos moradores da localidade de Porto Velho indicam que estes fundadores eram negros

de descendência mina que trouxeram para Porto Velho o legado cultural afro-brasileiro do tronco fon-yoruba através dos rituais do Tambor de Mina36, que se

popularizaram com as denominações de Tambor, Batuque, Macumba e também Umbanda.

De acordo com os escritos de Antônio Cantanhede (1950:200), Esperança Rita da Silva e Irineu dos Santos fundaram, em 1914, a Irmandade Beneficente

de Santa Bárbara, que por sua vez fundou, no ano de 1916, a Capela de Santa Bárbara. Os depoimentos coletados indicam que um número expressivo de membros

da Irmandade de Santa Bárbara fazia parte da comunidade do terreiro.

O Recreio de Yemanjá e Irmandade de Santa Bárbara não se relacionavam apenas com a Igreja Católica e outras irmandades religiosas católicas, mas

também com outros grupos de culto que adotavam modelos religiosos diferentes, como pajelança indígena e kardecismo, o que, de alguma forma, reflete-se na

construção da identidade religiosa de influência afro-brasileira que surgiu em Porto Velho nas primeiras décadas do século XX. As práticas rituais afro-brasileiras

desse terreiro têm muitos pontos em comum com as religiões da região de Codó, no Maranhão, conforme foram investigadas e analisadas por Mundicarmo Ferretti

(1996; 1997), em especial com o modelo Terecô, também denominado Tambor da Mata.

Entre os anos 1930 e 1950 o Recreio de Santa Bárbara firmou-se como espaço de cura e de lazer, as festas e o atendimento religiosos promovidos pelos

afiliados popularizaram algumas entidades do seu panteão mágico-religioso que se tornaram famosas por seus poderes curativos, como por exemplo: Seu

Mansidão, Seu Bahia, Seu Roxo, Caboclo Brabo, Dona Jarina, Seu Jurema, Jatapequara, Barão de Goré, Príncipe Regino, Cabocla Mariana e outras.

Nesse período aconteceram alianças políticas entre os dirigentes do terreiro e as elites dominantes (representantes dos poderes formalmente constituídos

da Igreja e do Estado). A Irmandade de Santa Bárbara era uma bem sucedida associação beneficente que promovia os eventos religiosos mais concorridos da

cidade, movimentado recursos materiais e humanos nada desprezíveis, contando também com o apoio e a aprovação da Igreja Católica que tirava proveito da sua

atuação social.

O véu de tolerância da Igreja Católica para com a comunidade do terreiro só parece haver descerrado no ano de 1947 quando assumiu a Prelazia de Porto

Velho o Bispo Dom João Batista Costa, que extinguiu a Irmandade de Santa Bárbara e mandou fechar a Capela.

Apesar das medidas oficiais da Igreja, o grupo comandado por Dona Esperança não acatou as determinações do Bispo, reabrindo a Capela em um dos

prédios do conjunto arquitetônico do terreiro e dando continuidade às suas atividades religiosas e beneficentes com uma nova razão social, a de Sociedade

36 Referindo-se às práticas religiosas de origem africana no Brasil, Roger Bastide (1960:256-266) informa que no Maranhão as religiões afro-brasileiras são denominadas de Tambor de Mina, explicando que esse modelo religioso reúne elementos da tradição daomeana com elementos da tradição indígena. Afirma também que a religião de origem daomeana praticada no Maranhão foi misturada com o Catimbó, e que as entidades voduns daomeanas não descem para visitar os mortais e serem adoradas, como acontece no Daomé, mas vêm como caboclos para trabalhar, não da África, mas das florestas vizinhas, do mesmo modo como acontece com os espíritos dos índios. Ele também afirma que no Brasil essas entidades perderam a posição hierárquica destacada que tinham no panteão daomeano, tornando-se, assim, intermediárias entre os homens e as divindades católicas (os santos), servindo-lhes de guias.

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Beneficente de Santa Bárbara. Os antigos membros do grupo pertencentes à comunidade do terreiro conservaram a identidade de irmãos e membros da Irmandade

de Santa Bárbara, identidade que se preserva até os dias atuais entre aqueles que se consideram e que são considerado afiliados ao terreiro.

É importante ressaltar que o Recreio de Iemanjá se popularizou como Barracão de Santa Bárbara, nome que foi legitimado no início dos anos 1970, após a

morte de Dona Esperança e a posterior transferência do terreiro para o Bairro Nova Porto Velho. Portanto, desde a ruptura com a Igreja, em 1947, Irmandade de

Santa Bárbara e Barracão de Santa Bárbara formam uma identidade única, embora executem atividades rituais distintas, que se caracterizam por uma maior

presença de elementos do catolicismo popular e dos cultos afro-brasileiros nos diferentes espaços de culto do terreiro: Capela e Barracão.

A linha de sucessão material e espiritual do terreiro pode ser observada no quadro abaixo:

DIREÇÃO DO BARRACÃO DE SANTA BÁRBARA - 1917 a 2000

1.ª DIREÇÃO (1914 / 1946) SEU IRINEU E DONA ESPERANÇA

Idade: ? Idade: + 25 a +58 SEU MANSIDÃO E SEU BAHIA

Yemajá – Yansã

2.ª DIREÇÃO (1946 / 1972) SEU ALBERTINO E DONA SPERANÇA

Idade: 25 a + 52 Idade: + 58 a + 85 SEU MANSIDÃO E SEU BAHIA

Xangô – Yansã

3.ª DIREÇÃO ( +1972 / +1973) SEU ALBERTINO E DONA M.ª ESTRELA

Idade: + 53 a + 54 Idade: + 46 a + 47 SEU MANSIDÃO E D. ESTRELA DO MAR

Xangô – Xapanã

4.ª DIREÇÃO (1974 / 1994) SEU ALBERTINO

Idade: + 74 SEU MANSIDÃO E SEU DORISININHO

Xangô

5.ª DIREÇÃO (1994 / aos dias atuais) BETO E DONA CARMITA

Idade: 31 aos ___ Idade: 60 aos ___ OGUM BEIRA-MAR E SEU CACHOEIRA

Ogum – Oxum

De sua fundação no Bairro Mocambo, o terreiro transferiu-se para os seguintes bairros: Santa Bárbara (+ 1944 / +1972), Nova Porto Velho (1975 e

1976/1978) e Vila Tupi (1978/...). A Capela de Santa Bárbara quase sempre acompanha os seus percursos e trajetórias. Estas mudanças exerceram forte impacto

na comunidade do terreiro, contribuindo para a sua desagregação.

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Na trajetória do terreiro houve muitas tensões internas e conflitos sucessórios que levaram a rupturas e fundação de novos terreiros, searas37 e bancas de

cura38, contribuindo para a sua fragilização. Nesse ínterim, além das dissessões e rupturas internas, houve vários fluxos migratórios para a região, isto provocou o

crescimento da localidade de Porto Velho e o aparecimento de outros modelos religiosos aumentando a competição no mercado de bens simbólicos.

A fundação da Federação Umbandista do Estado de Rondônia-FEUR (1977) serve como exemplo do que acabamos de afirmar, pois ela promoveu intensas

campanhas de afiliação e tentativas de unificação das religiões afro-brasileiras no Estado, divulgando as suas propostas durante os eventos que realizava,

especialmente os que foram chamados de Encontro dos Orixás, que reunia o povo-de-santo da localidade de Porto Velho e circunvizinhança, bem como de diversos

pais-de-santo umbandistas de outros estados brasileiros, que aproveitavam o evento para divulgar as suas casas e atividades religiosas, arregimentando novos

membros entre o povo-de-santo de Rondônia, classificando as formas de religiosidade dos antigos filhos e filhas-de-santo e inflenciando-os a adotarem outros

modelos religiosos. Os terreiros antigos também sofreram essas influências da Umbanda, alterando ou incorporando novas tradições às suas práticas rituais.

Nos registros da memória oral do Barracão de Santa Bárbara fala-se de pontes de ligação com casas das tradições afro-brasileiras maranhenses, paraenses

e amazonenses, seguidoras do modelo mina-nagô. Atualmente, as pessoas que compõem a comunidade do terreiro desconhecem essas pontes. Elas foram

perdidas, estando presentes somente na memória das pessoas mais antigas do barracão. A perda desses vínculos favoreceu as transformações rituais e trouxeram

um problema: os atuais pais-de-terreiro (Beto e Dona Carmita) e os seus possíveis sucessores afirmam não saber como preparar os novos filhos-de-terreiro e iniciá-

los nas antigas tradições.

Ressaltamos que a história oral, que é contada pelos membros mais velhos do terreiro, contém um grande número de referências a entidades voduns do

Tambor de Mina que pertencem à Linha de Queviosó (Averequete, Badé, Nanã, entre outras), o que nos permite concluir que no passado, quando o terreiro investigado

era administrado pelos membros fundadores, muitos dos quais negros de descendência maranhense que chegaram a Porto Velho preparados e catulados em casas de

cultos afro-brasileiros do Maranhão, havia uma influência desse modelo religioso no terreiro, e assim, o mesmo continha elementos rituais dessa tradição conhecida

como mina-nagô e suas entidades como príncipes e princesas, juntamente com entidades da mina-encantaria, identificadas como caboclos.

Observando a estrutura ritual do Barracão de Santa Bárbara é possível constatar que o catolicismo popular é um modelo religioso muito forte na

organização do seu sistema religioso e que embora todos os membros desse terreiro afirmem ser católicos não negam a sua identidade afro-brasileira.

37 Seara – De acordo com a definição do atual dirigente do Barracão de Santa Bárbara, Manoel Roberto Neto da Silva: “a seara pode ser grande ou pode ser pequena, mas a seara é aquele local onde

não tem toque de tambor e que é usado pra trabalhos. (...) Um local usado pra trabalhos e que não tem toque de tambor. O guia vem, somente, pra trabalhar. Pro bem ou pro mal. Ali é a seara deles, aonde tem o altar, tem tudo direitinho, tem tudo organizado, é uma seara”. 38 Banca de Cura – Segundo o mesmo Manoel Roberto Neto da Silva, “banca é um altar, um altarzinho, aonde a pessoa acende sua... faz suas obrigações. Acende a vela pro guia, pra o santo do guia, do.., sei lá!; a banca, é justamente só aquele local. Só o altar” (PVH: 19/01/2000). Este mesmo pai de santo nos explicou que a banca é o altar pessoal do médium, também conhecido na região pelo nome de mesinha, e que quando o médium a transforma em banca de cura, a mesma não pode ser colocada dentro do seu quarto, deverá ser posta noutro local.

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A estrutura ritual do Barracão de Santa Bárbara obedece ao calendário católico, havendo poucas alterações. Em geral as cerimônias dedicadas aos orixás,

voduns e caboclos acontecem nos dias em que a Igreja Católica festeja alguns dos santos mais populares do Brasil, santos que na cosmogonia do povo de Santa

Bárbara são os mesmos cultuados pelos chefes-de-linha que governam a vida da Irmandade. As comemorações mais importantes do terreiro são dedicadas a Santa

Bárbara, identificada como Yansã, e a São Sebastião, identificado como Oxóssi.

Na perspectiva do catolicismo popular há muitas semelhanças das cerimônias em homenagem aos santos desse terreiro com os rituais católicos da

comunidade amazônica de Itá, pesquisada por Charles Wagley (1955) e por Eduardo Galvão (1957) em meados do século XX. Essas mesmas práticas religiosas

ainda estão presentes entre as comunidades tradicionais da região do baixo Madeira, que se dedica ao extrativismo vegetal (castanha e látex), conforme tivemos

oportunidade de constatar numa pesquisa de campo em 1997, quando participamos de um festejo em homenagem a São Sebastião em um antigo seringal da

região denominado Catarina das Abelhas.

As atividades rituais desenvolvidas no Barracão de Santa Bárbara são divididas em duas categorias amplas: Bateção e Tambor de Obrigação. Desta última

faz parte uma série de ritos denominados Tambor Menor e Festejos Grandes, eles variam conforme o calendário ritual.

As expressões Bateção e Tambor designam genericamente o ato de tocar tambor. Existem, no entanto, rituais com toque de tambor que são dispensáveis e

outros que não são. Os rituais que podem ser dispensados são chamados Bateção, e os que não podem, Tambor de Obrigação. Todos os rituais constantes do

calendário ritual anual fazem parte da segunda categoria.

Festejos Grandes são os rituais que duram vários dias ou semanas, portanto, são ciclos rituais de longa duração, nos quais homenageiam-se os principais

chefes ou linhas espirituais por meio das quais as entidades do terreiro se manifestam. Houve uma época em que havia diversos ciclos rituais que pertenciam a essa

categoria, hoje em dia existem apenas dois: os Festejos de Junho (24/06) e os Festejos de Santa Bárbara (26/11 a 20/01). Desses, o único que vem sendo

cumprido sem alterações nas datas e intervalos são os Festejos de Santa Bárbara.

As mudanças na estrutura ritual do Barracão de Santa Bárbara parecem ter começado com Seu Albertino, dirigente do terreiro de 1946 até 1994, pois foi

quando ele assumiu sozinho a direção do terreiro que aconteceram as mudanças mais significativas, o que pode ser constatado através dos novos cantos sagrados

entoados durante os rituais e na incorporação de filhos-de-terreiro com entidades da Umbanda, bem como na identificação deles como umbandistas. O sucessor de

Seu Albertino, Manoel Roberto Neto da Silva (Beto), que assumiu a direção da casa em 1994, representa um exemplo dessa transformação, seu chefe-de-coroa,

Ogum Beira-Mar, é uma entidade que pertence à Linha de Umbanda.

É também sintomático o fato de que durante a administração de Seu Albertino tenham desaparecido entidades voduns do Tambor de Mina (Averequete,

Badé, Tocé, entre outras), assim como as de maior prestígio da mina-encantaria (Toia Jarina, Dona Mariana, Príncipe Regino da Beira, Barão de Goré, entre outras),

surgindo outras novas entidades no lugar das mais antigas.

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É possível afirmar que Seu Albertino preparou o caminho de abertura do terreiro para a Umbanda, enfraquecendo, cada vez mais, a tradição maranhense.

Entretanto, conforme afirmamos anteriormente, o Barracão de Santa Bárbara ainda mantém algumas reminiscências da antiga tradição ritual e religiosa herdada

dos fundadores, como os cantos sagrados (chamados de dotas ou doutrinas) para homenagear aos voduns da linha da mina-encantaria, que são entoados nos

rituais de abertura de tambor.

Podemos apontar outros elementos extremamente refinados do legado tradicional do terreiro que foram mantidos: a forma de cultuar os exus (que são

denominados home); as cerimônias em homenagem aos santos católicos com rituais de levantamento e derrubamento de um poste ritual, assemelhando-se nisto às

Festas do Divino que ocorrem no Tambor de Mina de São Luís (MA), conforme relata Sérgio Ferretti (1985; 1995) em Querebentam de Zomadonu e em Repensando

o Sincretismo Religioso, e os rituais de aniversário dos guias, muito assemelhado aos que foram descritos por Mundicarmo Ferretti (2000) em Desceu na Guma e na

divisão das entidades em curadores e mineiros.

Ao tomar conhecimento da história da casa e das doutrinas (cantos sagrados) que foram por nós recolhidas em fitas K7, o pai-de-santo da tradição mina,

Francelino de Shapanan, que reside na cidade de Diadema-SP e é considerado entre os pais-de-santo como um dos maiores conhecedores da tradição mina no

Brasil, se surpreendeu com o conjunto de doutrinas que se conservaram, apesar do isolamento do terreiro em relação a outras casas da tradição mina-nagô de

outros estados e por ser ela, talvez, a última depositária da tradição mina-nagô em Porto Velho.

A tradição mina, tal qual foi descrita por Maria Amália Pereira Barreto (1977: 58-65) e por Sérgio Ferretti (1985:13-14) ao referirem-se à estrutura física da

Casa das Minas, também oferece espaços muito semelhantes aos do atual Barracão de Santa Bárbara. Neste sentido é importante destacar que embora a memória

oral registre que na trajetória histórica do terreiro ocorreram brigas, disputas e rupturas internas, não houve mudanças na sua estrutura física; ele manteve os

espaços tradicionais: salão de baia, pegi, capela, casa dos home e recreio dos caboclos. Ressaltando ainda que o terreiro investigado surgiu na periferia e lá

permanece, tendo na maioria dos seus prosélitos pobres urbanos.

O estudo sobre o Barracão de Santa Bárbara indica que houve uma forte influência das tradições mina-nagô na formação do campo afro-religioso da cidade

de Porto Velho. É importante ressaltar que estas tradições sofreram alterações que refletem os processos de incorporação de outros modelos religiosos que

aportaram na cidade com os movimentos migratórios posteriores às duas primeiras décadas do século passado, especialmente aquelas que ocorreram nas décadas

de 1970 e de 1980.

Ao investigar o Barracão de Santa Bárbara nossa maior dificuldade foi a de definir o modelo ritual adotado, devido às múltiplas influências que ele recebeu e

incorporou de outras tradições religiosas, como as do Batuque do Pará, por exemplo. É possível observar que a Umbanda também influenciou esse modelo, e que

no passado o kardecismo e a pajelança indígena tiveram um papel destacado na sua organização e nas suas práticas rituais. Entretanto, como já foi afirmado, o

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modelo religioso adotado sofreu diversas transformações, ocorrendo o enfraquecimento e até o desaparecimento de alguns dos elementos que compõem alguns

destes modelos. Neste sentido, podemos dizer que a sua atual estrutura ritual pode ser classificada como encantaria umbandizada.

Para concluir, gostaria de enfatizar que a Irmandade do Barracão de Santa Bárbara é uma comunidade religiosa que luta para manter a sua identidade

cultural face aos efeitos das transformações sociais que acontecem na cidade, e que afetam os membros dessa comunidade, ficando evidenciado o caráter dinâmico

da cultura nesses processos de mudanças e a resistência dos elementos tradicionais, por funcionarem como sinais diacríticos dessa comunidade religiosa em relação

às outras.

É difícil fazer previsões do destino dessa casa de culto e da sobrevivência do grupo nos próximos anos, especialmente porque hoje em dia o terreiro é

composto de contingente exclusivamente adulto, nenhum dos seus membros encontra-se com menos de trinta anos de idade. Não há a participação de crianças

dentro da rotina do terreiro como havia no passado. O que nos parece mais evidente é que a comunidade precisa se repensar e se reorganizar enquanto

comunidade ritual, sob pena de vir a se reduzir gradativamente até desaparecer.

BIBLIOGRAFIA

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Antropológicas, Serie Religiões Populares, Ano II, Vol. 1, Pós-Graduação em Antropologia da UFPE – Universidade Federal de Pernambuco, p. 67-80. ________. (2000). Desceu na Guma: o caboclo do Tambor de Mina em um terreiro de São Luís – a Casa Fanti-Ashanti. 2.ª ed. São Luís, EDUFMA. FERRETTI, Sérgio Figueiredo. (1985). Querebentan de Zomadonu: etnografia da Casa das Minas. São Luís, EDUFMA. P. 324. ________. (1995). Repensando o Sincretismo Religioso: estudo sobre a Casa das Minas. São Paulo, ed. Universidade de São Paulo; São Luís, FAPEMA. P. 234 GALVÃO, Eduardo. (1955). Santos e Visagens: um estudo da vida religiosa de Itá: Amazonas. São Paulo, Ed. Nacional, p. 202. MENEZES, Nilza. (1998). Com Feitiço e com Fetiche: a trajetória do Bairro de Mocambo em Porto Velho – Rondônia, Revista Antropológicas, Ano III, Vol.

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Page 122: Volume VII

ISSN 1517 - 5421 122

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