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  • frica da e pela dispora: pontos para a Educao das

    Relaes tnico-Raciais

  • ReitorZaki Akel Sobrinho

    Vice-ReitorRogrio Andrade Mulinari

    Pr-Reitoria de GraduaoMaria Amlia Sabbag Zainko

    Coordenao de Estudos e Pesquisas Inovadoras na GraduaoLaura Ceretta Moreira

    Ncleo de Estudos Afro-BrasileirosMarcos Silva da Silveira

    Coleo Cadernos NEAB-UFPRConselho EditorialDr. Ari Lima UNEB

    Dra. Aparecida de Jesus Ferreira UEPGDra. Conceio Evaristo UFF

    Dr. Eduardo David de Oliveira UFBADra. Florentina da Silva Souza UFBA Dr. Moiss de Melo Santana UFRPE

    Dra. Nilma Lino Gomes UFMG UNILABDr. Paulino de Jesus Francisco Cardoso UDESC

    Dra. Wilma Baa Coelho UFPA

  • frica da e pela dispora: pontos para a Educao das

    Relaes tnico-Raciais

    Hilton Costa Paulo Vinicius Baptista da Silva

    (Orgs.)

    Coleo Cadernos NEAB-UFPR

    Ncleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Federal do Paran (NEAB-UFPR)

    Curitiba 2013

  • UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARAN.SISTEMA DE BIBLIOTECAS.

    BIBLIOTECA CENTRALCOORDENAO DE PROCESSOS TCNICOS.

    Ficha catalogrfica

    frica da e pela dispora : pontos para a educao das A258 relaes tnico-raciais / Hilton Costa, Paulo Vinicius Baptista da Silva (Orgs.). Curitiba, PR : NEAB-UFPR, 2013. 118p. (Cadernos NEAB-UFPR)

    Inclui referncias e notas

    1. Movimento social. 2. Dispora africana. 3. frica Antropologia. 4. frica Histria. 5. Escravido Brasil. I. Costa, Hilton. II. Silva, Paulo Vincius Baptista da. Srie.

    CDD 22.ed. 303.484

    Samira do Rego Elias CRB-9/755

    Hilton Costa e Paulo Vinicius Baptista da Silva

    Coordenao editorial

    Paulo Vinicius Baptista da Silva

    Reviso, projeto grfico e editorao eletrnica

    Reinaldo Cezar Lima

    Capa

    Smbolo Nyansapow, yede myasa no esane, extrado de Adrinkra: sabedoria em smbolos africanos, livro de autoria de

    Elisa Larkin Nascimento e Luis Carlos G, cujo significado o n da sabedoria. o sbio quem desata o n da sabedoria. Smbolo da sabedoria, engenhosidade,

    inteligncia e pacincia. Criao da capa: Artes & Textos Editora Ltda.

    Direitos desta edio reservados ao

    NEAB UFPR

    Praa Santos Andrade, 50 Centro

    Tel.: (41)3310-2707 / Fax: (41)3360-5000

    80020-938 Curitiba Paran Brasil

    www.neab.ufpr.br

    [email protected]; [email protected]

    2013

    frica da e pela dispora: pontos para a Educao das

    Relaes tnico-Raciais

    ISBN 978-85-66278-05-7

  • SUMRIO

    ApresentaoSobre a educao das relaes tnico-raciais no NEAB-UFPRPaulo Vinicius Baptista da Silva

    Legislao e movimentao socialPoltica educacional e a lei 10.639/03 Luis Carlos Paixo da Rocha e Dbora Cristina de Arajo

    Antropologia das populaes afro-brasileirasCultura na teoria e na prticaAndr Marega Pinhel

    Identidades e identificaesAndr Marega Pinhel

    Metodologia da Pesquisa EducacionalPesquisa em educao: uma introduo.Ndia Gaiofatto Gonalves

    Arqueologia da frica e arqueologia da dispora africanaArqueologia da frica e arqueologia da dispora africanaLus Cludio Pereira Symanski

    Histria da fricaO colonialismo portugus na frica: as polticas de assimilaoLorenzo Macagno

    A escravido no BrasilAfricanas e africanos escravizados no BrasilHilton Costa

    Tinta nova, casa velha: as vrias faces do abolicionismo no Brasil e a ps-abolioHilton Costa

    9

    19

    33

    41

    51

    67

    85

    99

    107

  • Apresentao

  • 91. Palavras iniciais

    Esta publicao tem um duplo sen-tido. Por um lado, congregar snteses de resultados de pesquisa e de reflexes te-rico-conceituais de participantes do N-cleo de Estudos Afro-Brasileiros da Uni-versidade Federal do Paran (NEAB-UFPR) e colaboradores(as) deste. Para isso, a dis-posio publicar uma coletnea de forma contnua. Alm disso, galga-se mais um passo na formao continuada oferecida pelo NEAB-UFPR, passando oferta de es-pecializao, e essa coletnea tem tambm esse sentido, de buscar o encontro entre as pesquisas do NEAB-UFPR e o processo de formao continuada de profissionais da educao.

    O processo de formao sobre His-tria e Cultura Afro-Brasileira e sobre Edu-cao das Relaes tnico-Raciais tem al-guns marcos que esto sempre em pauta, como a aprovao da Lei 10.639, de 2003, e o Parecer 03/2004, do Conselho Nacional de Educao. No entanto, a aprovao de tais propostas em instituies importan-tes do Brasil contemporneo tem razes bastante anteriores. Poderia ser realizada uma genealogia das proposies que atra-vessasse as formulaes dos movimentos negros ao longo do sculo XX. Dados os objetivos deste texto, trarei breves elemen-tos do processo a partir da abertura pol-

    tica e fim da ditadura militar. O final dos anos 1970, com o incio da abertura po-ltica, foi momento de reorganizao dos movimentos negros no pas. Na agenda desses movimentos, a educao encon-trava um papel de destaque e figurava en-tre as proposies a necessidade de des-velar elementos da Histria e da Cultura Africana e Afro-Brasileira. Ns, negros(as) brasileiros(as),1 percebamos a ausncia de registros da nossa histria social; o proces-so de leitura etnocntrica e eurocntrica da Histria sistematicamente difundido pela escola brasileira; a desvalorizao cons-tante de formas de manifestao da nossa alteridade, de aspectos diversos de nossas culturas e razes. Passou a ser cada vez mais contundente a crtica aos processos de ensino que silenciam sobre os aspectos civilizatrios da frica, sobre as diferentes formas de contribuio de nossas naes negras (e indgenas) ancestrais para a for-mao do Brasil, sobre a ausncia de re-gistros das prticas de resistncia nossas e de nossos antepassados. As reivindicaes dos movimentos negros para a educao centravam-se sobre a necessidade de mu-danas curriculares e ensino de Histria e Cultura Afro-Brasileira.

    Entre os(as) intelectuais e ativistas negros(as)2 de ento, destaco a liderana exercida por Abdias do Nascimento. No ex-lio, assumira cadeira de Cultura Africana

    Sobre a educao das relaes tnico-raciais

    no NEAB-UFPR

    Paulo Vinicius Baptista da Silva*

    * Doutor em Psicologia Social pela PUC/SP; membro do Programa de Ps-Graduao em Educao da UFPR; Coordenador do NEAB-UFPR; Coordenador do GT Educao e Relaes Raciais da ANPEd; repre-sentante da Regio Sul na Diretoria da Associao Brasileira de Pesquisadores(as) Negros(as) (ABPN).

    1 Passamos a utilizar o genrico masculino no restante do texto.2 Ser utilizado, a partir deste ponto, o genrico masculino, como forma de aliviar o texto.

  • 10 Sobre a educao das relaes tnico-raciais no NEAB-UFPR

    no Novo Mundo na Universidade do Estado de Nova York, Bufallo, determinando que, mais que travar conhecimento com os Es-tudos Afro-Americanos, fssemos sujeitos desse processo. De volta ao Brasil, assu-miu mandato de deputado federal e apre-sentou o Projeto de Lei 1.332, de 1983, que dispunha sobre ao compensatria visando implementao do princpio da isonomia social do negro. Vejamos o texto do artigo que prope o ensino de Histria e Cultura Afro-Brasileira na ntegra:

    Art. 8. O Ministrio da Educao e Cultura, bem como as Secretarias Estaduais e Municipais de Educao, conjuntamente com representantes das entidades negras e com inte-lectuais negros comprovadamente engajados na matria, estudaro e implementaro modificaes nos currculos escolares e acadmicos, em todos os nveis (primrio, secun-drio, superior e de ps-graduao), no sentido de:I Incorporar ao contedo dos cur-sos de Histria brasileira o ensino das contribuies positivas dos afri-canos e seus descendentes civili-zao brasileira, sua resistncia con-tra a escravido, sua organizao e ao (em nveis social, econmico e poltico) atravs dos quilombos, sua luta contra o racismo no perodo ps-abolio;II Incorporar ao contedo dos cur-sos sobre Histria Geral o ensino das contribuies positivas das civi-lizaes africanas, particularmente seus avanos tecnolgicos e cultu-rais antes da invaso europia do continente africano;III Incorporar ao contedo dos cur-sos optativos de estudos religiosos o ensino dos conceitos espirituais, filosficos e epistemolgicos das re-ligies de origem africana (candom-bl, umbanda, macumba, xang, tambor de minas, batuque etc.);IV Eliminar de todos os currculos referncias ao africano como um povo apto para a escravido, sub-misso e outras qualificaes pejo-rativas;V Eliminar a utilizao de cartilhas ou livros escolares que apresentem

    o negro de forma preconceituosa ou estereotipada;VI Incorporar ao material de en-sino primrio e secundrio a apre-sentao grfica da famlia negra de maneira que a criana negra venha a se ver, a si mesma e a sua fam-lia, retratada de maneira igualmente positiva quela que se v retratada a criana branca;VII Agregar ao ensino das lnguas estrangeiras europias, em todos os nveis em que so ensinadas, o en-sino de lnguas africanas (yorub ou kiswahili) em regime opcional;VIII Incentivar e apoiar a criao de Departamentos, Centros ou Ins-titutos de Estudos e/ou Pesquisas Africanos e Afro/Brasileiros, como parte integral e normal da estrutu-ra universitria, particularmente nas universidades federais e estaduais. (NASCIMENTO, 1983, p. 5163).

    O texto do Projeto de Lei revela as-pectos bastante interessantes. Primeiro, pode-se constatar que as propostas leva-das a termo atualmente, tanto a formao de professores para ensino de Histria e Cultura Afro-Brasileira como a estruturao de Ncleos de Estudos Afro-Brasileiros, so a concretizao de uma agenda antiga. Nas comemoraes do centenrio da abolio em 1988; na Assembleia Nacional Consti-tuinte do mesmo ano; na Marcha Zumbi dos Palmares contra o Racismo, pela Cida-dania e pela Vida, em 1995; nas discus-ses sobre a Lei de Diretrizes e Bases da Educao nos anos que antecederam a sua aprovao em 1996; nos eventos prepara-trios Conferncia de Durban de 2001; e nas sugestes advindas da prpria Confe-rncia, as proposies na mesma direo se renovaram. Vinte anos transcorreram de 1983 a 2003 at que as proposies do Projeto de Lei 1.332/83 fossem corpo-rificadas de modo mais enftico. Desse modo, somente com a Lei 10.639/03 (que modificou a LDB) e sua posterior regula-mentao com o Parecer 03/2004 do CNE, iniciou-se processo de insero sistem-tica de contedos e de formao inicial e

  • 11Paulo Vincius Baptista da Silva

    continuada de professores sobre Histria e Cultura Afro-Brasileira e sobre Educao das Relaes tnico-Raciais.

    Na proposta original do ento Depu-tado Abdias do Nascimento, pode-se infe-rir a relao com os propsitos dos movi-mentos da Negritude e do Pan-Africanismo. Como movimento concomitantemente li-terrio e social, na negritude se props um retorno s razes. A ideia foi a de que a imerso nas tradies e na esttica, nas produes culturais, na literatura em geral e na poesia em particular, nas representa-es plsticas e na dramaturgia operasse no sentido de valorizar a tradio afro. As proposies do NEAB-UFPR so herdeiras desta tradio de busca de expresso da ancestralidade afro como manifestao da alteridade, da liberdade e da diversidade. No caso especfico da formao de profes-sores para a Educao das Relaes tni-co-Raciais, os objetivos transcendem aos de informar sobre o movimento literrio, sendo muito mais uma busca dos prprios ideais que inspiraram o movimento, tanto da expresso esttica quanto dos valores e da busca de transformao social.

    A negritude uma subjetividade. Uma vivncia. Um elemento passio-nal que se acha inserido nas catego-rias clssicas da sociedade brasilei-ra e que as enriquece de substncia humana. Humana, demasiadamen-te humana a cultura brasileira, por isso que, sem desintegrar-se, ab-sorve as idiossincrasias espirituais, as mais variadas. A negritude, com seu sortilgio, sempre esteve pre-sente nesta cultura, exuberante de entusiasmo, ingenuidade, paixo, sensualidade, mistrio, embora s hoje por efeito de uma presso uni-versal esteja emergindo para a l-cida conscincia de sua fisionomia. um ttulo de glria e de orgulho para o Brasil o de ter-se constitu-do no bero da negritude. (RAMOS, 2003, p. 117, grifos do autor).

    As ideias do Pan-Africanismo, em grande medida elaboradas por negros na ou da dispora, objetivam, de forma simi-lar, estabelecer a frica como referncia fundamental para os negros do mundo, estejam eles dentro ou fora do continen-te, positivando a imagem do continente, das suas tradies, histrias e diferentes aspectos das culturas. Com isso, contra-pem-se s postulaes at ento hege-mnicas, e que ainda sobrevivem, da fri-ca como o continente selvagem, primitivo, atvico. A unidade dos pases africanos pensada como estrutura que mantenha a autonomia dos pases por um lado e que, por outro, permita a esses mesmos uma atuao conjunta, seja no mbito das rela-es internacionais, seja para a resoluo de problemas comuns. O texto de justifi-cativa relativo ao art. 8 do Projeto de Lei 1.332/83 revelador:

    O contedo da educao recebida por aquelas crianas negras que tm oportunidade de estudar representa outro aspecto da desigualdade racial anticonstitucional na esfera da edu-cao [...] a civilizao e histria dos povos africanos, dos quais descen-dem as crianas negras, esto au-sentes do currculo escolar. A crian-a negra aprende apenas que seus avs foram escravos; as realizaes tecnolgicas e culturais africanas, sobretudo nos perodos anteriores invaso e colonizao europia da frica, so omitidas. Tambm se omite qualquer referncia histria da herica luta dos afro-brasileiros contra a escravido e o racismo, tan-to nos quilombos como atravs de outros meios de resistncia. Comu-mente, o negro retratado de for-ma pejorativa nos textos escolares, o que resulta na criana negra em efeitos psicolgicos negativos am-plamente documentados. O mesmo quadro tende a encorajar, na crian-a branca, um sentimento de supe-rioridade em relao ao negro. O art. 8 deste projeto de lei objetiva a correo desta anomalia e a im-plementao do direito isonomia

  • 12 Sobre a educao das relaes tnico-raciais no NEAB-UFPR

    assegurada pela constituio. (NAS-CIMENTO, 1983).

    A argumentao explcita. Trata-se de estabelecer a oportunidade ao alunado brasileiro de obter informaes e reconhe-cer elementos da complexidade do conti-nente de origem de metade (pelo menos) de nossa populao; de estabelecer luga-res de memria (NORA apud KING, 1996, p. 77) sobre o passado afro; de possibilitar a identificao positiva dos alunos negros brasileiros com aspectos de seu passado; de possibilitar ao alunado brasileiro, de to-das as cores, reconhecer a diversidade e a complexidade do continente africano e as profundas contribuies das populaes africanas humanidade.

    Importante observar que a propos-ta de estudar as contribuies afro se re-laciona com a estruturao da identida-de do negro brasileiro (MUNANGA, 2004; MUNANGA; GOMES, 2006). A percepo que ideias restritivas e manipuladas sobre a histria e as tradies africanas e afro--brasileiras, sistematicamente difundidas pela escola, pelos currculos e pelos livros didticos (que operam tanto por informa-es restritivas ou equivocadas quanto pela omisso) atuam para criar nos alunos uma predisposio hierarquia racial. Pos-sibilitar aos alunos negros, brancos, ama-relos e indgenas o conhecimento de Hist-ria e Cultura Afro-Brasileira teria o objetivo de reconhecer os elementos civilizatrios das culturas africanas e africanas da dis-pora, possibilitando aos alunos em geral o reconhecimento do processo civilizatrio dos povos africanos e, aos alunos negros em particular, a construo de identidade pautada em aspectos de positividade sobre seu grupo de pertena e sobre si mesmos.

    O movimento de apagar os lugares de memria das matrizes afro foi bastante

    efetivo, de forma que a colonizao cultu-ral opera, em diferentes nveis, em todos ns, manifestando-se em hipervalorizao de tradies europeias e desvalorizao de aspectos da cultura de matriz africana. Possivelmente em funo disso, o trabalho de formao de professores uma tarefa zumblea,3 pois na nossa formao esco-lar, educacional e cultural as informaes mais simplrias sobre nosso passado afro foram sistematicamente negadas ou subs-titudas por informaes estereotipadas. Estamos, portanto, em um movimento ini-cial de descoberta da riqueza, da pluralida-de, dos valores, do desenvolvimento tec-nolgico, do alto desenvolvimento social, de um sem-fim de aspectos civilizatrios de nossos antepassados africanos e africa-nos da dispora.

    Para a compreenso desse proces-so na educao, caro o conceito de alfa-betismo da dispora tal como formulado por King (1996), com o sentido de conhe-cimento e ressignificao da nossa hist-ria, da histria do povo negro na dispo-ra. O alfabetismo da dispora consiste na aprendizagem da leitura de signos cultu-rais das heranas africanas para alm das distores, da parcialidade e das ausncias determinadas pela hegemonia cultural e por sculos de dominao.

    O sentido de alfabetismo de pro-cesso inicial e provisrio. A luta contra a discriminao racial que percorreu o scu-lo XX se deparou com diversos processos de racializao, entre os quais o estabe-lecimento de conceitos e formas de com-preenso distorcidos e restritivos sobre a tradio africana e afro-brasileira. As pro-posies do racismo cientfico, para alm de sua rejeio aps a Segunda Guerra Mundial, conformaram operadores impor-tantes no campo simblico. Por exemplo, no imaginrio, a Europa se imps como

    3 Termo que emprestamos de Edna Roland, ento coordenadora da rea de Combate ao Racismo e Discriminao da UNESCO no Brasil.

  • 13Paulo Vincius Baptista da Silva

    modelo e centro da civilizao e civilidade e a frica como sua negao, o locus do primitivo, que teve suas origens como terra dos proscritos, dos descendentes de Cam (na interpretao da igreja que justificava a escravido), a ser compreendida como sinnimo da ausncia de civilizao e pro-ximidade com a natureza (numa forma ain-da mais acentuada do etnocentrismo euro-peu). Essas noes reducionistas, parciais, sem contradies, ainda so marcadores sociais importantes no plano simblico, como ser analisado mais frente no texto. Por exemplo, as naes, imprios e civili-zaes de nossos antepassados africanos4 foram e so denominadas tribus.

    A busca de alfabetizao da dispo-ra, de recuperao de lugares de mem-ria, define boa parte das atividades de for-mao de professores que desenvolvemos no NEAB-UFPR. Passamos de levar a termo eventos de curta durao para priorizar o desenvolvimento de cursos de mdia du-rao. Os eventos servem principalmente para mobilizar, para aguar a curiosidade. Contudo, uma formao em que o proces-so de alfabetizao da dispora se inicie precisa de carga horria mnima para dar incio formao. Os cursos de extenso ofertados pelo NEAB-UFPR para professo-res da rede estadual do Paran (parceria com a APP Sindicato dos Trabalhadores da Educao Pblica do Paran) e da rede municipal de Curitiba (parceria com o SISMMAC Sindicato dos Servidores do Magistrio Municipal de Curitiba) tm car-ga horria variando de 120 a 180 horas, que considero o mnimo para dar incio formao de professores sobre os Estudos Afro-Brasileiros.

    Na etapa atual, nos lanamos a outro desafio, de realizar a formao continuada de docentes no nvel de especializao. O processo foi articulado, alm dos sindicatos

    citados, com o Sindicato dos Servidores do Magistrio Municipal de Araucria (SISMAR) e com o Frum Permanente de Educa-o e Diversidade tnico-racial do Paran (FPDERER). Tambm foram constitudos como parceiros a Secretaria Estadual de Educao (SEED) e as secretarias munici-pais de Curitiba, Araucria e Pinhais. A pro-posta de formao de especialistas que possam utilizar o conhecimento cientfico acumulado sobre a temtica com objetivo de atuarem de forma qualificada nas redes e nas unidades escolares, concretizando a meta de implementao da Educao das Relaes tnico-Raciais.

    Nesse primeiro volume, reunimos textos de docentes da parte inicial do curso que revelam um pouco de sua trajetria de pesquisa e que foram organizados como textos de leitura para a formao continu-ada na ps-graduao. Os artigos iniciais, como essa introduo, apresentam ques-tes terico-conceituais sobre a temtica. No captulo 1, Poltica educacional e a Lei 10.639/03, os autores Luis Carlos Paixo da Rocha e Dbora Cristina Araujo apre-sentam e discutem esse instrumento legal que a Lei Federal que instituiu novo arti-go na LDB. Os captulos 2, Cultura na teo-ria e na prtica, e 3, Identidades e iden-tificaes, so constituintes da anlise de Andr Marega Pinhel sobre a Antropologia das Populaes Afro-Brasileiras. O captulo 4, Pesquisa em educao: uma introdu-o, de Ndia G. Goncalves, oferece ele-mentos para a compreenso e reflexo so-bre a pesquisa educacional. O captulo 5, de Lorenzo Gustavo Macagno, analisa pro-cesso de assimilao realizado em col-nias portuguesas na frica. O Captulo 6, A arqueologia da frica e das disporas afri-canas, de Lus Cludio Pereira Symanski, traz uma srie de informaes sobre as origens das populaes na frica e sobre

    4 Tambm os americanos, sendo que estudar Histria Pr-Colombiana das Amricas outro impe-rativo para uma viso mais elaborada da diversidade.

  • 14 Sobre a educao das relaes tnico-raciais no NEAB-UFPR

    o estudo das populaes africanas e africa-nas da dispora via arqueologia. No captu-lo 7, Africanas e africanos escravizados no Brasil, Hilton Costa discute processos de escravizao e da resistncia mesma no Brasil. Finalmente, no captulo 8, intitulado Tinta nova, casa velha: as vrias faces do abolicionismo no Brasil e a ps-abolio, o mesmo autor analisa o processo de abo-lio da escravido e o momento do pas logo aps a aprovao da Lei urea.

    2. Algumas consideraes finais

    No Parecer 03/2004 est expresso que o ensino de Histria e Cultura Afro--Brasileira dever-se- realizar, nas diversas etapas e nveis (Educao Infantil, Ensino Fundamental, Ensino Mdio e Educao Superior) e modalidades (Regular, Educa-o de Jovens e Adultos e Educao Espe-cial) de ensino; que as diversas disciplinas devem inserir em seus contedos elemen-tos de Histria e Cultura Afro-Brasileira; que o ensino de Histria e Cultura Afro--Brasileira abrange o ensino de relaes raciais no Brasil,

    de conceitos e de suas bases teri-cas, tais como racismo, discrimina-es, intolerncia, preconceito, es-teretipo, raa, etnia, cultura, classe social, diversidade, diferena, multi-culturalismo; de prticas pedaggi-cas, de materiais e de textos did-ticos, na perspectiva da reeducao das relaes tnico-raciais. (BRASIL, 2004).

    No plano terico-conceitual, adota--se o conceito de raa como construo social e conceito analtico fundamental para a compreenso de desigualdades so-ciais estruturais e simblicas observa-das na sociedade brasileira (SILVA, 2008). O uso do conceito de raa ajuda a atribuir realidade social discriminao e, con-sequentemente, a lutar contra a discrimi-

    nao. No Brasil, as relaes raciais esto fundadas em um peculiar conceito de raa e forma de racismo, o racismo brasilei-ra (GUIMARES, 2002), cujas especificida-des so significativas para a compreenso das relaes entre os grupos de cor e as desigualdades associadas. Particularidades como a relao entre raa e classe social na hierarquizao das pessoas, as ideias sobre o embranquecimento, o mito da democracia racial, construdos na histria das relaes raciais brasileiras, mantm-se atuantes. O racismo brasileira se cons-tri e reconstri mantendo desvantagens para a populao negra no acesso a bens materiais e simblicos (PAIXO, 2003). Pr-ticas cotidianas de discriminao consti-tutivas da sociedade brasileira cumprem o papel de reinstituir a subalternidade da populao negra brasileira. A educao partcipe importante nesse processo.

    Diversas vezes professores que fre-quentaram nossos cursos afirmaram que no imaginavam o quanto eram ignorantes em relao a aspectos diversos das afri-canidades. Ao trabalharmos com profes-sores das redes pblicas estadual e muni-cipais muitas vezes nos deparamos com suspiros e outras manifestaes de perple-xidade em face de um conjunto complexo de informaes sobre os estudos afro-bra-sileiros. Em variadas ocasies, em alto e bom tom, nossas aulas foram espaos para perguntas inconformadas sobre o porqu de a escola no ter difundido tais informa-es. O processo de formao sobre estu-dos afro-brasileiros muitas vezes tem sido o pilar para novas pesquisas e para o pro-cesso de formao continuada de todos os envolvidos com a temtica, ou seja, somos partcipes do alfabetismo da dispora. So-bre ns mesmos, pesquisadores e militan-tes pela igualdade racial, diversas vezes o processo de reconhecimento dos valores e tradies afro teve impacto de ressignifica-o sobre o ser negro no Brasil contempo-rneo. Assim, a alfabetizao da dispora

  • 15Paulo Vincius Baptista da Silva

    atinge, de forma recproca, professores e alunos em processo contnuo de formao.

    No entanto, as lacunas so muitas e o processo de formao inicial. Os resul-tados que conquistamos no NEAB-UFPR, na formao continuada, convivem com o pouco avano na formao inicial de professores. Poucas vezes conseguimos a aprovao de contedos especficos sobre Histria e Cultura Afro-Brasileira e sobre Educao das Relaes tnico-Raciais nos cursos de formao de professores. Mais frequente a aprovao de disciplinas op-tativas, ou seja, continuaremos formando professores que necessitaro de nossos cursos de formao continuada para obte-rem informao mnima.

    Alm disso, faltam especialistas para diversos contedos e so muitas as lacu-

    nas que existem em contedos que pode-riam ser trabalhados e aprofundados, tanto no que se refere Histria da frica quanto a aspectos variados da Cultura Africana e Afro-Brasileira. Em exemplos que certa-mente poderiam se multiplicar, os cursos do NEAB-UFPR mal tocam em informaes sobre o Teatro Experimental do Negro e pouco vo alm das proposies de de-senvolver estudos mais especficos sobre Literatura Africana de Lnguas Portuguesa, Francesa e Inglesa, como tambm de auto-res da dispora brasileira e das Amricas.

    Enfim, essa concluso de que bas-tante temos feito, porm muito mais temos a fazer para operarmos uma mudana de con-cepo curricular que leve formao de pro-fessores e profissionais da Educao numa perspectiva de multiculturalismo crtico.

    Referncias

    BRASIL, Conselho Nacional de Educao (CNE). Parecer 03/2004, de 10 de maro de 2004. Conselho Pleno do CNE. Braslia: MEC/SEPPIR, 2004.

    GUIMARES, Antonio S. A. Classes, raas e democracia. So Paulo: Fundao de Apoio Universidade de So Paulo; Ed. 34, 2002.

    KING, Joyce Elaine. A passagem mdia re-visitada: a educao para a liberdade hu-mana e a crtica epistemolgica feita pelos Estudos Negros. In: SILVA, Luiz H.; AZEVE-DO, Jos C.; SANTOS, Edmilson S. (Orgs.). Reestruturao curricular: novos mapas culturais, novas perspectivas educacionais. Porto Alegre: Sulina, 1996. p. 75-101.

    MUNANGA, Kabengele. Rediscutindo a mestiagem no Brasil: identidade nacional versus identidade negra. Belo Horizonte: Autntica, 2004.

    ______; GOMES, Nilma Lino. O negro no Brasil de hoje. 1. ed. So Paulo: Global/Ao Educativa, 2006.

    NASCIMENTO, Abdias. Projeto de Lei n. 1.332 de 1983. Dirio do Congresso Na-

    cional. Braslia: Cmara dos Deputados, 15 de junho de 1983, p. 5162-5165.

    ______. Edio fac-similar do jornal Qui-lombo. So Paulo: Fundao de Apoio Universidade de So Paulo; Ed. 34, 2003.

    PAIXO, Marcelo. Desenvolvimento huma-no e relaes raciais. Rio de Janeiro: DP&A, 2003.

    RAMOS, Guerreiro. Apresentao da negri-tude. Quilombo, ano II, n. 10, p. 11, junho--julho, 1950. In: NASCIMENTO, Abdias. Edi-o fac-similar do jornal Quilombo. So Paulo: Fundao de Apoio Universidade de So Paulo; Ed. 34, 2003. p. 117.

    SILVA, Paulo Vinicius Baptista. Relaes ra-ciais em livros didticos de Lngua Portu-guesa. Belo Horizonte: Autntica, 2008.

    TELLES, Edward E. Racismo brasileira: uma nova perspectiva sociolgica. Tradu-o de Nadjeda Rodrigues Marques e Ca-mila Olsen. Rio de Janeiro: Relume Duma-r/Fundao Ford, 2003.

  • Legislao e movimentao social

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    Este breve texto tem como objeti-vo estabelecer algumas consideraes e relaes sobre a incluso dos contedos relacionados histria e cultura afro--brasileira, no mbito curricular, nos esta-belecimentos de ensino do Brasil. Incluso esta a ser considerada no campo das lutas sociais pela superao do modelo atual de organizao social, produtor de desigual-dades raciais, sociais e de outras formas de atrocidades vida e ao ser humano. Assim sendo, essa reivindicao particular deve ser entendida dentro do interior das lutas dos movimentos sociais pela ampliao do espao das polticas sociais dentro do Es-tado brasileiro.

    Tambm apresenta consideraes sobre a conjuntura da aprovao da Lei 11.645/2008, que acrescenta a obrigato-riedade do ensino de histria e cultura in-dgena.1

    1. A Lei 10.639/2003

    No dia 09 de janeiro de 2003, o Pre-sidente da Repblica, Lus Incio Lula da

    Silva, e o ento Ministro da Educao, Cris-tovam Buarque, assinaram a Lei 10.639/03, que, ao alterar dispositivos da Lei de Dire-trizes e Bases da Educao Nacional (Lei 9394/96 LDB), tornou obrigatrio o en-sino da temtica Histria e Cultura Afro--Brasileira nos estabelecimentos de ensino fundamental e mdio das redes pblica e particular do pas.2

    As reaes nova legislao foram diversas. Por um lado, setores da educao brasileira questionavam a necessidade de tal medida; por outro, educadores e repre-sentantes do movimento social negro a entendiam como um avano no campo da poltica educacional brasileira. Os crticos nova lei argumentavam que esta era, ao mesmo tempo, desnecessria e autoritria. Desnecessria pelo fato de os contedos j estarem previstos na LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educao Nacional) e autoritria por ferir a autonomia curricular dos esta-dos brasileiros. Estes argumentos podem ser identificados em longo artigo intitulado O Brasil precisa de lei para ensinar a his-tria do negro?, publicado na edio do jornal Folha de S. Paulo de 28 de janeiro de

    Poltica educacional e a Lei 10.639.03

    Luiz Carlos Paixo da Rocha*

    Dbora Cristina de Araujo**

    * Mestre em Educao pela Universidade Federal do Paran. Professor de lngua portuguesa na rede estadual do Paran.

    ** Mestre e doutoranda em Educao na Universidade Federal do Paran. Professora de lngua por-tuguesa na rede estadual do Paran.

    1 Uma verso deste texto pode ser encontrada no material do CURSO EaD DE QUALIFICAO PROFISSIONAL EM EDUCAO DAS RELAES TNICO-RACIAIS. MEC - Ministrio da Educao / SE-CAD Secretaria de Educao Bsica Alfabetizao e Diversidade / CIPEAD Coordenao de Polticas de Integrao de Educao a Distncia / NEAB Ncleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Federal.

    2 Ver a redao na ntegra: - Lei 10.639 em: - Parecer 003/2004-CNE em: - Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educao das Relaes tnico-Raciais e para

    o Ensino de Histria e Cultura Afro-Brasileira e Africana em: .

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    2003, dias aps a assinatura da Lei. Nes-te, o jornalista Antnio Gis apresenta as principais crticas de especialistas ligados educao Lei 10.639/03. Entre esses, Ulisses Panisset (2003), ex-presidente da Cmara de Educao Bsica do Conselho Nacional de Educao, afirma que, alm de ser autoritria, a Lei age contra a autono-mia da escola:

    Essas medidas se tornam artificiais quando so determinadas de cima para baixo. A LDB deixou os currcu-los mais flexveis e deu mais liber-dade para as escolas. A liberdade de ensinar, que consta da Lei, base-ada num artigo da Constituio. No momento em que voc comea a determinar muita coisa, acaba trans-formando o currculo numa camisa de fora em que tudo o governo que diz que tem que ser ensinado (PANISSET, 2003).

    Guiomar Namo de Mello (2003), tam-bm conselheira do CNE, concorda com Pa-nisset e destaca a preocupao com o en-gessamento do currculo:

    Temos uma mentalidade de achar que currculo escolar se faz por le-gislao. Basta escrever uma lei e ela ser aplicada. Currculo assun-to pedaggico. Se no for assim, vira uma rvore de natal. Cada um quer pendurar o que acha importante e sugere o ensino de arte, sociologia ou filosofia, mas ningum lembra de pensar num currculo harmnico (MELLO, 2003).

    Em que pese as consideraes dos educadores acima, estes no levam em conta um elemento central da anlise das polticas educacionais: ignoram o movi-

    mento histrico e poltico dos movi-mentos sociais. A reivindicao do movi-mento social negro e de educadores com-prometidos com a luta antirracista pela alterao da abordagem dada ao negro no currculo e, consequentemente, pela in-cluso dos contedos de histria e cultura afro-brasileira no mbito escolar, vem de longa data.3

    Sem a ingenuidade de colocar na escola toda a responsabilidade da supe-rao do racismo, os defensores da nova legislao entendem que este um espa-o privilegiado de interveno. Ao omitir contedos em relao histria do pas, relacionados populao negra, ao omitir contribuies do continente africano para o desenvolvimento da humanidade e ao reforar determinados esteretipos, a es-cola contribui fortemente para o reforo de construes ideolgicas racistas. Ain-da hoje o negro apresentado em muitos bancos escolares como o objeto escravo, sem passado, passivo, inferiorizado, des-configurado, desprovido de cultura, sabe-res e conhecimentos. como se o negro no tivesse participado de outras relaes sociais que no fossem a escravido. A re-sistncia dos negros escravido parece no existir. As contribuies e as tecno-logias trazidas pelos negros para o pas so omitidas. Alis, o cultivo da cana-de--acar, do algodo, a minerao, a tecno-logia do ferro eram originrias de onde? Do continente europeu? O continente afri-cano apresentado como um continente primitivo, menos civilizado. As pirmides do Egito foram construdas por europeus ou por africanos? Essas lacunas (CHAU, 1980), evidentemente, contriburam para a constituio da ideologia de dominao

    3 Comentrio: O artigo de Sales Augusto dos Santos apresenta um panorama da relao da Lei 10.639/2003 e o movimento negro. Ver em: A Lei n 10.639/03 como fruto da luta antir-racista do movimento negro. In: EDUCAO, Ministrio da/DIVERSIDADE, Secretaria de Educa-o Continuada. Alfabetizao e Educao Antirracista: caminhos abertos pela Lei Federal n 10.639/03. Braslia: Ministrio da Educao, Secretaria de Educao Continuada, Alfabetizao e Diversidade, 2005. p. 21-39. (Coleo Educao para todos).

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    racial e do mito de inferioridade da popu-lao negra.

    Henrique Cunha Jr. apresenta dados importantes que desmistificam os equvo-cos sobre a imagem do continente africano como local primitivo. Veja o que ele afir-ma sobre a escrita:

    Sobre a frica costuma-se dizer que um continente oral, sem entender-mos o que representa esta oralida-de como mtodo de transmisso do conhecimento na frica. A oralidade no a ausncia da escrita. A escri-ta faz parte das culturas africanas desde as civilizaes egpcias. Pelo menos so quatro os alfabetos de-senvolvidos no conjunto das civili-zaes africanas, em reas diversas do continente. Ademais, anterior a 1500 a frica processou uma imen-sa utilizao do rabe como lngua comercial e cultural, dada pela ex-panso do Islamismo em 2/3 do continente a partir dos anos 600, sendo comum a existncia de do-cumentos em rabe para a histria africana. As escritas em rabe che-gam ao Brasil, onde os escravizados participantes da revolta dos mals, em 1831, escrevem panfletos e se comunicam em rabe. necessrio mais cuidado nas com-paraes entre a histria africana e a europeia. Faz-se necessrio maior informao sobre uma e outra para escaparmos das idealizaes e re-dues impostas pelos processos de dominao racistas. Nesta informa-o, a Europa aparece como fonte do saber e a frica, como fonte de ignorncia (CUNHA Jr., 1997, p. 63).

    Alm do mais, a ausncia dos conte-dos, numa perspectiva crtica, relaciona-dos histria do negro africano e brasileiro faz com que a educao escolar traga uma viso mope da vida brasileira. Segundo o professor Henrique Cunha Jr., no pos-svel conhecer a Histria do Brasil sem o conhecimento da histria e da origem dos povos que deram incio nao brasileira.

    O argumento principal para o ensino da Histria Africana est no fato da impossibilidade de uma boa com-preenso da histria brasileira sem o conhecimento das histrias dos atores africanos, indgenas e euro-peus. As relaes trabalho-capital realizadas no escravismo brasileiro so, antes de tudo, relaes entre africanos e europeus. A excluso da Histria Africana uma dentre as v-rias demonstraes do racismo bra-sileiro (CUNHA JR., 1997, p. 67).

    2. Interveno do movimento social negro

    de longa data a reivindicao do movimento social negro pela incluso da Histria da frica e da Cultura Afro-Brasi-leira no currculo das escolas brasileiras. Exemplo disso a realizao do I Frum sobre o Ensino da Histria das Civilizaes Africanas nas Escolas Pblicas, em 1991, na Universidade Estadual do Rio de Janei-ro:

    antiga a preocupao dos movi-mentos negros com a integrao dos assuntos africanos e afro-brasi-leiros ao currculo escolar. Talvez a mais contundente das razes este-ja nas conseqncias psicolgicas para a criana afro-brasileira de um processo pedaggico que no refle-te a sua face e de sua famlia, com sua histria e cultura prpria, impe-dindo-a de se identificar com o pro-cesso educativo. Erroneamente seus antepassados so retratados apenas como escravos que nada contribu-ram ao processo histrico e civiliza-trio, universal do ser humano. Essa distoro resulta em complexos de inferioridade da criana negra, mi-nando o desempenho e o desen-volvimento de sua personalidade criativa e capacidade de reflexo, contribuindo sensivelmente para os altos ndices de evaso e repetncia (NASCIMENTO, 1993, p. 11).

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    A preocupao do movimento so-cial negro com a educao teve reflexos nas suas reivindicaes efetuadas junto s estruturas do Estado. Destacam-se aqui algumas aes do movimento no ltimo perodo. Na dcada de 1980, por ocasio do processo constituinte, vrias atividades e debates foram realizados pelas organi-zaes negras. Um dos focos centrais de atuao do movimento social negro foi o da educao. O objetivo era o de incluir no captulo da educao da nova Constituio aes visando ao combate do racismo.

    Em 1977, no 2 Festival Mundial de Artes e Culturas Negras e Africanas, em La-gos Nigria, impedido de apresentar seus estudos que denunciavam o que chamou de Genocdio do negro brasileiro, Abdias do Nascimento (2002) conseguiu, por meio do relatrio do Grupo IV do Colquio, in-formar a todos os pases participantes do evento sobre as desigualdades raciais da poca. Na explanao, com base em da-dos histricos, estatsticos e sociolgicos, Nascimento j apresentava propostas rele-vantes em relao educao bsica bra-sileira:

    Que o Governo Brasileiro, no esp-rito de preservar e ampliar a cons-cincia histrica dos descendentes africanos da populao do Brasil, tome as seguintes medidas: permita e promova livre pesquisa e aberta discusso das relaes ra-ciais entre negros e brancos em to-dos os nveis: econmico, social, re-ligioso, poltico, cultural e artstico; promova o ensino compulsrio da Histria e da Cultura da frica e dos africanos na dispora em todos os nveis culturais da educao: ele-mentar, secundria e superior.Que os governos dos pases onde exista significativa populao de des-cendncia africana incluam nos cur-rculos educativos de todos os nveis (elementar, secundrio e superior) cursos compulsrios que incluam Histria Africana, Swahili e Histri-co dos Povos Africanos na Dispora (NASCIMENTO, 2002, p. 68-69).

    Neste sentido, segundo Rodrigues (2004), foram acatados dois artigos dentro da Subcomisso dos Negros, Populaes Indgenas, Pessoas Deficientes e Minorias da Assembleia Nacional Constituinte:

    Art. 4. A educao dar nfase igualdade dos sexos, luta contra o racismo e todas as formas de discri-minao, afirmando as caractersti-cas multiculturais e pluritnicas do povo brasileiro. Art. 5. O ensino de Histria das Populaes Negras do Brasil ser obrigatrio em todos os nveis da educao brasileira, na forma que a lei dispuser.

    Ao ser apresentada Comisso ge-ral da Ordem Social e Comisso de Sis-tematizao, a proposta ganhou outra re-dao:

    Art. 85. O poder pblico reformula-r, em todos os nveis, o ensino da Histria do Brasil, com o objetivo de contemplar com igualdade a contri-buio das diferentes etnias para a formao multicultural e pluritnica do povo brasileiro.

    No entanto, com argumentao de que o artigo deveria ser regulamentado em legislao especfica, a redao final ficou desta maneira:

    Art. 242. O ensino de histria do Brasil levar em conta as contribui-es das diferentes culturas e etnias para a formao do povo brasileiro.

    A reivindicao pela incluso dos contedos de histria e cultura afro-bra-sileira continuou presente na interveno dos segmentos comprometidos com a luta antirracista. Em 20 de dezembro de 1995, por ocasio da realizao da Marcha Zum-bi dos Palmares, um dos marcos da atua-o do movimento social negro, em docu-mento entregue ao governo federal deno-minado Programa de superao do racis-

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    mo e da desigualdade racial, a temtica da educao destacada. O movimento reivindica alteraes nos currculos esco-lares.4

    Refletindo os valores da sociedade, a escola se afigura como espao privi-legiado de aprendizado do racismo, especialmente devido ao conte-do eurocntrico do currculo esco-lar, aos programas educativos, aos manuais escolares e ao comporta-mento diferenciado do professorado diante de crianas negras e brancas. A reiterao de abordagens e este-retipos que desvalorizam o povo negro e supervalorizam o branco re-sulta na naturalizao e conservao de uma ordem baseada numa su-posta superioridade biolgica, que atribui a negros e brancos papis e destinos diferentes. Num pas cujos donos do poder descendem de es-cravizadores, a influncia nefasta da escola se traduz no apenas na legi-timao da situao de inferioridade dos negros, como tambm na per-manente recriao e justificao de atitudes e comportamentos racistas. De outro lado, a inculcao de ima-gens estereotipadas induz a criana negra a inibir suas potencialidades, limitar suas aspiraes profissionais e humanas e bloquear o pleno de-senvolvimento de sua identidade racial. Cristaliza-se uma imagem mental padronizada que diminui, exclui, sub-representa e estigmatiza o povo negro, impedindo a valora-o positiva da diversidade tnico--racial, bloqueando o surgimento de um esprito de respeito mtuo entre negros e brancos e comprometendo a idia de universalidade da cidada-nia (MARCHA ZUMBI DOS PALMARES, 1995).

    Em 1996, durante o debate sobre a nova LDB (Lei de Diretrizes e Bases da

    Educao Nacional), a ento senadora Be-nedita da Silva, representando o movimen-to social negro, traz de volta a proposta de alterao curricular, apresentada no pro-cesso constituinte. Sendo assim, o par-grafo 4 do artigo 26 da nova LDB ficou com a seguinte redao:

    Art. 26 - 4: O ensino de Histria do Brasil levar em conta as con-tribuies das diferentes culturas e etnias para a formao do povo bra-sileiro, especialmente das matrizes indgena, africana e europeia.

    Porm, a proposta do movimento social negro s veio a ser atendida, em grande parte, em 9 de janeiro de 2003, com a assinatura da Lei 10.639/03, oriun-da do Projeto de Lei n 259, apresentado em 1999 pela deputada Esther Grossi e pelo deputado Benhur Ferreira.

    A nova legislao acrescentou dois artigos Lei de Diretrizes e Bases da Edu-cao Nacional (Lei 9.394/96):

    Art. 26-A Nos estabelecimentos de ensino fundamental e mdio, ofi-ciais e particulares, torna-se obriga-trio o ensino sobre Histria e Cul-tura Afro-Brasileira.Pargrafo primeiro O contedo programtico a que se refere o ca-put deste artigo incluir o estudo da frica e dos africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formao da sociedade nacional, resgatando a contribuio do povo negro nas re-as social, econmica e poltica, per-tinentes Histria do Brasil. Pargrafo segundo Os contedos referentes Histria e Cultura Afro--Brasileira sero ministrados no mbito de todo currculo escolar, em especial nas reas de Educao

    4 A Marcha Zumbi dos Palmares contra o racismo, pela cidadania e a vida foi organizada com xito pelo Movimento Negro, em 1995, para ser um marco em homenagem aos 300 anos da morte de Zum-bi dos Palmares, o lder do maior, mais duradouro e mais famoso smbolo da luta da populao negra no Brasil contra o regime escravocrata: a Repblica/Quilombo dos Palmares, que resistiu por um sculo na Ser-ra da Barriga, no Estado de Alagoas. Ver mais em: .

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    Artstica e de Literatura e Histrias Brasileiras. Art. 79-B O calendrio escolar in-cluir o dia 20 de novembro como Dia Nacional da Conscincia Ne-gra.

    3. Ideologia de dominao racial

    A Lei 10.639/03 pode constituir-se como uma ferramenta importante para o combate ao racismo e, consequentemente, para a superao do quadro de desigual-dades raciais e sociais presente na socie-dade brasileira. Infelizmente, para a gran-de maioria dos envolvidos no processo de educao escolar, a relao entre raa/racismo e educao passa despercebida. Esta parece ser invisvel, aos olhos dos brancos, amarelos, ndios e dos prprios negros. Perpassa pelos bancos escolares uma nvoa ideolgica, quase impercept-vel, de sustentao crena de inferiorida-de do grupo negro e de naturalizao das desigualdades. Para tanto, a Lei 10.639/03 deve atuar no sentido de desvelar cons-trues ideolgicas que deram suporte efetivao do quadro de excluso social da populao negra no pas, como a da infe-rioridade do negro e a do mito da demo-cracia racial brasileira.

    Para compreender a situao da po-pulao negra no pas e estabelecer aes para transform-la, preciso compreender e superar essa nvoa ideolgica produzi-da pelas relaes de dominao no Brasil. Os colonizadores e, em seguida, a recm--formada elite capitalista brasileira utiliza-ram-se de uma srie de ideias para justifi-car a escravido de africanos, bem como manter os negros margem das novas relaes sociais oriundas com o trabalho livre. No primeiro momento, constitudo um conjunto de ideias no campo da cin-cia, do Estado e da religio, a fim de justifi-car a escravido e facilitar a administrao dos escravos. Esse conjunto de ideias, aqui denominado Ideologia de Dominao

    Racial, construiu uma imagem do negro ir real, porm, hegemnica para os domi-nantes da poca. Assim, os negros e ind-genas eram considerados seres inferiores e no civilizados.

    No campo da cincia, difundiram-se estudos que propagavam a inferioridade dos negros e a superioridade dos brancos. Um deles, o Ensaio sobre as desigualda-des das raas humanas, do Conde de Go-bineau, que ganhou certa notoriedade no Brasil, afirmava que quanto mais diludo o sangue branco/ariano maior a decadn-cia!. Desta forma, as raas menos huma-nas precisariam estar a servio dos proje-tos de sociedade das raas superiores.

    A legitimidade para a escravido tambm foi justificada por uma interpre-tao bblica feita pela igreja. Por esta, os africanos seriam um povo amaldioado, descendente de Cam, filho de No, que te-ria cometido um pecado grave ao espiar o pai nu. Para alm da justificao, duran-te a escravido, religiosos se aprofundam em sermes e publicaes sobre mtodos de administrao dos escravos. Em 1700, publicado o livro do padre Jorge Benci, Economia crist dos senhores no gover-no dos escravos, que tinha como objeti-vo ensinar aos senhores de escravos como ampliar os ganhos, atravs de uma boa ad-ministrao de seus escravos. Benci (1977, p. 50) prope uma verdadeira pedagogia para a dominao do escravo: Haja acoi-tes, haja correntes e grilhes, tudo ao seu tempo e com regra e moderao devida e vereis como em breve tempo fica domada a rebeldia dos servos. Porque as prises e aoites, mais de qualquer outro gnero de castigos, lhes abatem o orgulho e que-bram os brios.

    Outro elemento que corroborou a difuso do mito da inferioridade do negro foi a campanha oficial para o embranque-cimento da populao brasileira, realizada pelo governo brasileiro e por intelectuais da poca. Acreditavam estes que o pas s

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    progrediria se a sua populao ficasse mais branca. Assim, o Estado brasileiro investiu pesadamente em programas de imigrao de europeus. A albumina branca depura o mascavo nacional... O lema da campanha fala por si s.

    Nas ltimas dcadas, diversas das reivindicaes do movimento social negro tm suscitado debates polmicos sobre as polticas afirmativas, sobretudo a Lei de Cotas, que institui, por tempo provisrio, reserva de vagas em concursos pblicos e vestibulares para pessoas afrodescenden-tes. Ao se conhecer a histria da imigrao europeia no Brasil e os subsdios recebi-dos, possvel afirmar que as primeiras polticas afirmativas institudas no pas fo-ram para a populao imigrante da Euro-pa?

    Aliado ao mito da inferioridade do negro, ocupa terreno na sociedade brasi-leira o mito da democracia racial. A elite brasileira por sculos tentou esconder ou minimizar os efeitos da escravido e da insero no capitalismo brasileiro para a populao negra, transformando, assim, o quadro de excluso do negro em algo na-tural. As desigualdades raciais so assim naturalizadas e justificadas. Para o xito da constituio do mito da democracia racial foi necessrio apagar a histria da resis-tncia dos negros escravido, bem como a presena do grupo tnico negro no pas. Para tanto, o Estado brasileiro, em 1890, determina a queima dos documentos rela-cionados escravido e omite dos recen-seamentos a composio tnico-racial da populao. O quesito cor aparece no censo de 1950. omitido nos censos de 1900, 1920, 1960 e 1970. Retorna em 1980 por reivindicao do movimento social negro. A ideia de que no pas no h racismo e da convivncia harmoniosa dos grupos

    tnico-raciais aqui viventes ganhou noto-riedade em vrios pases do mundo. Tanto que a prpria UNESCO, nos anos 1950, fi-nanciou no pas pesquisas de intelectuais como Florestan Fernandes, Roger Bastide e Oracy Nogueira sobre as relaes raciais no Brasil, a fim de desvendar a democracia racial brasileira.5

    Felizmente, as pesquisas demons-traram que esta era apenas mais um mito estruturante da realidade brasileira. A cons-cincia da desigualdade racial comea a ganhar um pouco mais de espao no con-junto da sociedade recentemente, a partir das denncias efetuadas pelo movimento social negro e, especialmente, pela divul-gao de vrios estudos e pesquisas sobre as desigualdades raciais no pas. Uma boa parte destas incentivadas pelo clima da re-alizao da Conferncia Mundial da ONU (Organizao das Naes Unidas) contra o Racismo, a Discriminao, a Xenofobia e a Intolerncia ocorrida em Durban, na frica do Sul, de 31 de agosto a 7 de setembro de 2001.

    Porm, estas construes ideolgi-cas, estes mecanismos ideolgicos de do-minao, continuam presentes, ainda hoje, nas escolas, no livro didtico, na formao do professor e do aluno, na conscincia so-cial do pas.

    4. O contexto da Lei 11.645/2008

    No dia 10 de maro de 2008 foi san-cionada a Lei 11.645, que tem a seguinte redao:

    LEI N 11.645, DE 10 MARO DE 2008 SMULA: Altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, modifica-

    5 O artigo Democracia racial, de Antonio Srgio Alfredo Guimares, apresenta consideraes rel-O artigo Democracia racial, de Antonio Srgio Alfredo Guimares, apresenta consideraes rel-evantes sobre o que se concebeu como o mito da democracia racial. Ver em: .

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    da pela Lei no 10.639, de 9 de janei-ro de 2003, que estabelece as dire-trizes e bases da educao nacional, para incluir no currculo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temtica Histria e Cultura Afro--Brasileira e Indgena.

    O PRESIDENTE DA REPBLICA. Fao saber que o Congresso Nacional de-creta e eu sanciono a seguinte Lei: Art. 1. O art. 26-A da Lei n 9.394, de 20 de dezembro de 1996, passa a vigorar com a seguinte redao: Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e de ensino mdio, pblicos e privados, torna--se obrigatrio o estudo da histria e cultura afro-brasileira e indgena. 1. O contedo programtico a que se refere este artigo incluir diversos aspectos da histria e da cultura que caracterizam a formao da popula-o brasileira, a partir desses dois grupos tnicos, tais como o estudo da histria da frica e dos africanos, a luta dos negros e dos povos ind-genas no Brasil, a cultura negra e in-dgena brasileira e o negro e o ndio na formao da sociedade nacional, resgatando as suas contribuies nas reas social, econmica e pol-tica, pertinentes histria do Brasil. 2. Os contedos referentes his-tria e cultura afro-brasileira e dos povos indgenas brasileiros sero ministrados no mbito de todo o currculo escolar, em especial nas reas de educao artstica e de li-teratura e histria brasileiras. (NR) Art. 2. Esta Lei entra em vigor na data de sua publicao. Braslia, 10 de maro de 2008; 187 da Independncia e 120 da Rep-blica. LUIZ INCIO LULA DA SILVA Fernando Haddad

    Inicialmente, por falta de informa-es mais consistentes, surgiram interpre-taes equivocadas sobre essa Lei: uma delas dizia respeito excluso, no calend-

    rio escolar, do Dia Nacional da Conscincia Negra. Na verdade, o que se observa da Lei 11.645/2008 que ela acrescenta ao invs de suprimir ou omitir qualquer contedo da Lei 10.639/2003. Ao propor a alterao da LDB no Art. 26-A no houve qualquer prejuzo ao Art. 79-B, cuja redao expres-sa que o calendrio escolar incluir o dia 20 de novembro como Dia Nacional da Conscincia Negra. O entendimento por parte dos sistemas educacionais em ge-ral tem sido de que, ao se instituir uma lei que torna obrigatrio o ensino de Histria e Cultura Afro-Brasileira e Indgena, am-pliam-se as possibilidades de promoo de uma educao que contempla matrizes civilizatrias da formao cultural, social e tnico-racial dos brasileiros e brasileiras.

    O prprio Plano Nacional de Im-plementao das Diretrizes Curriculares Nacionais para Educao das Relaes tnico-Raciais e para o ensino de Histria e Cultura Afro-Brasileira e Africana, uma produo resultante do dilogo com diver-sas instituies pblicas e civis, considera que

    [...] os preceitos enunciados na nova legislao trouxeram para o Minist-rio da Educao o desafio de con-stituir, em parceria com os sistemas de ensino, para todos os nveis e modalidades, uma Educao para as Relaes tnico-Raciais orienta-da para a divulgao e produo de conhecimentos, bem como atitudes, posturas e valores que eduquem ci-dados quanto pluralidade tnico-racial, tornando-os capazes de inter-agir e de negociar objetivos comuns que garantam, a todos, respeito aos direitos legais e valorizao de iden-tidade, na busca da consolidao da democracia brasileira. A compreen-so trazida pela Lei 11.645/2008, sempre que possvel, est expressa neste Plano Nacional (BRASIL, s/d., p. 10-11).6

    6 possvel acessar esse documento, na ntegra, no link: .

  • 27Luiz Carlos Paixo da Rocha; Dbora Cristina de Araujo

    De acordo com nossas pesquisas, caractersticas que destacam a atuao do movimento negro em prol da aprovao da Lei 10.639/2003 no se fizeram pre-sentes no contexto de aprovao da Lei 11.645/2008. Foi por meio do PL (Proje-to de Lei) 433/2003 que, cinco anos aps (2008), a deputada Maringela Duarte SP conseguiu aprovar a sua proposta de al-terao da LDB. Segundo a deputada, a redao da Lei 10.639/2003 apresentava uma lacuna ao no contemplar a presen-a dos povos indgenas:

    A sociedade saudou, recentemente, a sano presidencial lei que tor-nou obrigatrio o ensino de histria e cultura afro-brasileira nos estabe-lecimentos de ensino fundamental e mdio, oficial e particular. Referida lei foi criticada, no entan-to, pela comunidade indgena, que no foi contemplada com a previso de disciplinas para os alunos conhe-cerem a realidade indgena do Pas (CMARA DOS DEPUTADOS, 2003).

    Levando-se em conta a pertinncia de tais crticas, a Lei 11.645/2008 cumpre uma importante funo e contribui para uma proposta de educao mais equita-tiva no que se refere representao das matrizes civilizatrias. Contudo, possvel verificar que equvocos desencadearam problemas de ordem conceitual. Trata-se da redao da Lei 11.645/2008, que apre-senta reflexes muito vagas e at mesmo estereotipadas sobre a cultura e Histria indgena e afro-brasileira. Observe:

    1. O contedo programtico a que se refere este artigo incluir diversos aspectos da histria e da cultura que caracterizam a formao da popula-o brasileira, a partir desses dois grupos tnicos, tais como o estudo da histria da frica e dos africanos,

    a luta dos negros e dos povos ind-genas no Brasil, a cultura negra e in-dgena brasileira e o negro e o ndio na formao da sociedade nacional, resgatando as suas contribuies nas reas social, econmica e pol-tica, pertinentes histria do Brasil.

    possvel notar que a definio de povos indgenas (centenas deles) est sen-do expressa no texto como representantes de uma nica etnia, ao lado da outra et-nia, os afro-brasileiros. Do ponto de vis-ta dos estudos sobre populaes negras no Brasil, h divergncias quanto ao uso do termo etnia para designar afro-brasi-leiros, j que, dentre outros argumentos, no h o estabelecimento de relaes de-siguais entre etnias no mercado de tra-balho, na mdia etc. A discusso sobre a etnicidade negra amplia-se para o racialis-mo ou a racializao, termos advindos do racismo cientfico do sculo XIX e que foi responsvel por justificar as diferenas entre brancos e negros. Assim, tendncia de muitos pesquisadores e pesquisadoras utilizar a expresso tnico-racial. Sobre as populaes indgenas, torna-se invi-vel, do ponto de vista do reconhecimento e valorizao cultural e histrica, a concei-tuao de que os ndios compem no pas apenas uma etnia, considerando que esse termo, etimologicamente, designa mistu-ra de raas com a mesma cultura (MICHA-ELIS DICIONRIO ESCOLAR, 2008).7

    Embora crticas tenham sido mani-festadas por estudiosos tanto da Histria e cultura indgena quanto da cultura afro--brasileira, no se verifica, no contexto da sano desta lei, nenhuma produo te-rica que evidencie tal contexto. No explo-raremos nesse texto, portanto, tais crticas, sob o risco de apresentarmos informaes no comprovadas.

    7 O livro O ndio brasileiro: o que voc precisa saber sobre os povos indgenas no Brasil de hoje, de Gersem dos Santos Luciano, apresenta informaes importantes sobre a Histria e cultura indgena. Dispo-nvel em: .

  • 28 Poltica educacional e a Lei 10.639/03

    Em suma, a nossa compreenso de que, embora no tenham as mesmas caractersticas da construo histrica pela qual passou a educao brasileira at a sano da Lei 10.639/2003, ao se insti-tuir uma lei que destaca a necessidade de conhecimentos mais consistentes sobre a histria e a cultura dos povos indgenas no pas, estamos diante de um grande pas-so dado rumo a uma sociedade que est construindo possibilidades mais inclusivas de ensino e de educao. Em outras pala-vras, ampliam-se as condies de estrutu-rao de uma efetiva Educao das Rela-es tnico-Raciais,

    [...] orientada para a divulgao e produo de conhecimentos, bem como atitudes, posturas e valores que eduquem cidados quanto pluralidade tnico-racial, tornando--os capazes de interagir e de nego-ciar objetivos comuns que garan-tam, a todos, respeito aos direitos legais e valorizao de identidade, na busca da consolidao da demo-cracia brasileira (BRASIL, s/d., p. 11).

    5. Consideraes finais

    A Lei 10.639/03 trouxe a obrigato-riedade do ensino da Histria da frica e da Cultura Afro-Brasileira nos estabeleci-mentos de ensino. Apesar dos seus limi-tes, a mesma poder se constituir em um mecanismo importante para a constituio de novas relaes raciais e sociais na so-ciedade brasileira. Da mesma forma, a Lei 11.645/2008 atua de modo a ampliar o que se concebe como Educao das Rela-es tnico-Raciais.

    Neste sentido, parece ser fundamen-tal uma opo metodolgica no processo de implementao da nova legislao. Mais do que valorizar o negro, a Lei 10.639/03 deve atuar no sentido de desconstruir me-canismos ideolgicos que do sustentabi-lidade aos mitos da inferioridade do negro

    e da democracia racial. Da mesma manei-ra, a Lei 11.645/2008 deve desconstruir a compreenso generalizada sobre os povos indgenas no Brasil e fortalecer os movi-mentos organizados em defesa dos direi-tos a territrio e livre exerccio da cultura indgena. Esse entendimento parece ser fundamental para o xito da nova legisla-o, na perspectiva da transformao das estruturas de produo das desigualdades sociais e tnico-raciais do pas.

    Assim posto, os contedos relacio-nados cultura e Histria da frica e dos afro-brasileiros e indgenas podero atu-ar no sentido de contrapor as ideias que fundamentaram a ideologia de dominao racial. Neste sentido, as Leis 10.639/2003 e 11.645/2008 podem constituir-se como instrumentos de luta contraideolgica, pois o silncio, ao ser falado, destri o discurso que o silenciava (CHAU, 1980, p. 25).

    mister ressaltar que at o mo-mento, apesar de algumas iniciativas do Governo Federal e de alguns Estados, a nova legislao configura-se mais como uma ferramenta de atuao dos movimen-tos sociais do que uma realidade concreta no interior das escolas. Muito ainda preci-sa ser feito. Para tanto, fundamental que a sociedade organizada e os movimentos sociais negro e indgena cobrem do Estado espaos, mecanismos e estruturas para o acompanhamento da implementao das duas Leis nas redes de educao pblica e privada. Entre outras medidas, o poder pblico precisa urgentemente fazer investi-mentos na formao de educadores; reno-var as bibliotecas das escolas; acompanhar a produo de livros e materiais didticos; rever e incluir novos contedos nos cursos de formao de professores.

    Deste modo, a implementao efe-tiva da nova legislao poder trazer con-tribuies para a superao do quadro de desigualdades raciais e sociais no Brasil. evidente, porm, que esta superao no depende apenas da educao escolar. No

  • 29Luiz Carlos Paixo da Rocha; Dbora Cristina de Araujo

    entanto, no h como negar que esta se configura como um espao privilegiado para a desconstruo de mecanismos ide-olgicos que deram sustentabilidade ao projeto de sociedade da elite dominante brasileira.

    E, acima de tudo, no podemos es-quecer que a implementao da Educao

    das Relaes tnico-Raciais trata-se, nada mais nada menos, da evidenciao e do destaque necessrio ao cumprimento da Lei de Diretrizes e Bases da Educao Na-cional e, acima de tudo, da prpria Consti-tuio Federal, que prev uma organizao social que contempla e valoriza as diferen-as de origem e a equidade de direitos.

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    zes e bases da educao nacional, para in-cluir no currculo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temtica Histria e Cultura Afro-Brasileira e Indgena. Dis-ponvel em: . Acesso em: 23/06/2009.

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  • 30 Poltica educacional e a Lei 10.639/03

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  • Antropologia das populaes

    afro-brasileiras

  • 33

    Introduo

    Um pensamento a favor da diversi-dade. com esta perspectiva em mente que abordaremos neste captulo conceitos importantes para pensar o lugar e a relao entre a raa e a cultura. Pensaremos a raa e a cultura como construes sociais, ou seja, formas que os coletivos humanos tm de dar significado ao mundo que os rodeia.

    Na histria poltica recente do Bra-sil, estes dois conceitos assumem um pa-pel central. Desde a Constituio de 1988 a raa , alm de um elemento de anlise sociolgica, uma questo de direito. Com a redemocratizao, o Brasil passou a ser pioneiro em uma forma de direito que con-sidera a valorizao da diferena como ma-neira de promoo da igualdade. O chama-do direito tnico1 trouxe uma reflexo para a arena poltica brasileira a respeito do sujeito de direito e ao mesmo tempo pro-moveu uma relativizao de diversas traje-trias de sujeitos envolvidos na questo. A pergunta que evoca esta dupla transforma-o foi discutida nos mais diversos canais de comunicao: o que a raa?

    Em um sentido paralelo, cultura e poltica nunca estiveram to prximas como esto hoje no cenrio nacional. Te-mos hoje iniciativas em defesa de grupos culturais no hegemnicos como polti-ca de estado. no limite da cultura que

    a poltica voltada a parcelas especficas da populao vai sendo construda. Neste processo, agentes sociais so requisitados para atestar a veracidade cultural de gru-pos sociais, identificando hbitos e costu-mes que agem como limites definidores de coletividades. Conceitos como tradio e identidade tornaram-se centrais para pensar as propriedades da cultura, definin-do at onde vai o direito diferena.

    Do ponto de vista antropolgico, es-tas reflexes tm de ser observadas con-siderando alguns princpios bsicos. Deve-mos assumir a postura epistemolgica da relativizao, ou seja, estranhar aquilo que nos parece familiar e nos tornarmos mais ntimos daquilo que nos parece diferente. Crenas e modos de agir diversos daqueles que temos como verdadeiros devero ser entendidos apenas como mais uma forma de manifestao da diversidade humana. Tornar-nos-emos pesquisadores do ou-tro ou, ainda, da alteridade com a cer-teza que diferentes formas de conceber e classificar o mundo no apenas so dese-jveis como tambm so uma condio da existncia humana em sociedade.

    A raa e o etnocentrismo

    Quando nos perguntamos sobre o uso do conceito de raa, algumas questes

    Cultura na teoria e na prtica

    Andr Marega Pinhel*

    * Mestre em Antropologia pela UFPR. 1 Entendo o direito tnico como uma iniciativa contempornea de definir direitos sociais, tendo

    como termo jurdico o pertencimento a determinados grupos sociais entendidos enquanto minoria em rela-o populao circundante. Deixo as consideraes a respeito de novas formas jurdicas para captulos posteriores. Por hora, basta dizer que o limite de etnia que construdo no plano jurdico nem sempre cor-responde ao limite socialmente construdo na prtica.

  • 34 Cultura na teoria e na prtica

    saltam quase que imediatamente. Estamos falando de raa em que sentido? Pensamos em raas enquanto variaes genticas de uma mesma espcie ou como construes sociais decorrentes de intrincados proces-sos histricos?

    Pensando a respeito da definio do conceito de raa, percebemos que a pol-mica estabelece-se entre a ambivalncia de raa no sentido biolgico e raas no sentido social. A verdade que, do ponto de vista da gentica, o pool gnico humano conjunto de instrues genti-cas que define a biologia humana dife-re muito pouco entre si. As diferenas im-pressas no DNA humano no se caracteri-zam como discrepncias notveis a ponto de identificarmos uma multiplicidade racial humana no sentido gentico. As diferenas fenotpicas entre seres humanos, no en-tanto, serviram atravs da histria da hu-manidade como subsdio para estabelecer formas hierrquicas entre grupos sociais. Em casos extremos, a raa (fentipo) ser-viu como pretexto para prticas genocidas e segregatcias perpetradas por grupos po-liticamente dominantes.

    As raas humanas no existem per si, mas como resultado da existncia hu-mana em sociedade. Por vezes, a raa de-finiu o limite da tribo, do pas ou do cl. A raa (fentipo) foi muitas vezes pensa-da pela humanidade de forma metafrica, para designar aquilo que propriamen-te nosso daquilo que diferente, estra-nho e, at mesmo, oposto. A comprovao cientfica de que as raas humanas no existem no sentido biolgico do termo de-monstrou que as diferenas entre os se-res humanos no so naturais, mas sim socialmente construdas.

    No entanto, se verdade que a raa do ponto de vista gentico insustent-vel, no podemos deixar de considerar sua

    existncia no discurso popular. Quando os primeiros programas de cotas foram ins-taurados em universidades brasileiras, a sociedade mobilizou-se para falar da raa. Pesquisas foram realizadas para pensar o lugar da raa no discurso popular. No ano de 2008, o instituto Datafolha publicou no jornal Folha de S. Paulo uma pesquisa a respeito do racismo no Brasil.2 Recolhen-do uma amostragem diversa no territrio nacional, o instituto perguntou aos entre-vistados se se viam como pessoas precon-ceituosas ou racistas. Da amostragem to-tal, apenas 3% das pessoas entrevistadas reconheciam ter atitudes racistas ou pre-conceituosas no cotidiano; entretanto, 91% dos entrevistados admitiram conhecer al-guma pessoa que detivesse uma postura notoriamente racista. A aparente incon-gruncia nas respostas dos entrevistados, na verdade, revelava o sentido do uso da raa no discurso popular brasileiro. A raa um vocbulo utilizado majoritariamente para falar do outro, representar diferen-as e estabelecer padres sociais hie-rrquicos.

    Do ponto de vista acadmico, uma dualidade tica estabeleceu-se na utiliza-o da raa como um conceito explicativo. Se a raa no sustentvel do ponto de vis-ta biolgico, devemos utiliz-la como um conceito central para entender a realidade social? Tal disputa a respeito dos usos e sentidos da raa se estabeleceu na acade-mia de forma polarizada. De um lado, um grupo de intelectuais posicionava-se con-trrio utilizao da raa como elemento de estudo social. Seus argumentos orien-tavam-se pela perspectiva de que a raa insustentvel do ponto de vista gentico e, portanto, no deve se reproduzir na anlise sociolgica. Da mesma maneira, o uso da raa no cotidiano brasileiro no provocaria hierarquizaes sociais como as observa-

    2 Disponvel em: .

  • 35Andr Marega Pinhel

    das em contextos como a frica do Sul e o sul dos Estados Unidos. Nestes contextos, o sentido da raa serviu como elemento para a hierarquizao jurdica, social, econmica e poltica entre indivduos, desencadeando uma srie de atos segre-gatcios perpetrados por grupos sociais dominantes. No caso brasileiro, o uso da raa seria envolto em um sistema que anu-la hierarquias sociais explcitas, impossibi-litando que existisse no territrio nacional um sistema que concede diferentes tipos de privilgios sociais a diferentes grupos tnicos.

    Em outro sentido, diversos intelec-tuais argumentavam a favor da utilizao da raa como um conceito analtico. Para os envolvidos nesta proposta, o uso da raa no discurso popular brasileiro est re-coberto de formas ideolgicas que mistifi-cam as reais relaes entre grupos sociais diversificados. A raa enquanto diferena positiva negada por meio de mecanis-mos ideolgicos que se orientam por um horizonte igualitarista, rejeitando distin-es que so observveis na realidade. Na prtica, esta dimenso ideolgica seria observvel pela operao da diferena onde uma condio de igualdade (ou im-parcialidade) deveria existir. Esta dinmica operaria, por exemplo, em situaes como uma entrevista de emprego, ambientes es-colares ou envolvimento de indivduos com o poder policial. Nestas situaes, apesar de esperarmos uma imparcialidade dos agentes envolvidos na questo, mediada pelo horizonte igualitrio promovido pela cidadania e universalizao dos direitos humanos, a raa opera como um elemen-to diferenciador, hierarquizando os indiv-duos entre aqueles que podem ascender a uma situao de privilgio social e aque-les que so enquadrados em uma espcie de subcidadania. Para alm de discusses acadmicas ou miditicas, importante considerarmos o conceito de raa como uma expresso humana da diferena. En-

    quanto professores e educadores, deve-mos pensar que existem mltiplas formas de pertencer racialmente. Neste processo de constituio identitria, nossos alunos mobilizam memrias, smbolos que so pertinentes em sua prpria trajetria. O estudo da raa com o olhar antropolgico nos ajuda a deslocar nosso ponto de vista para a alteridade, ou seja, considerar a di-versidade como expresso natural do ser humano.

    Ao mesmo tempo, considerar a raa como expresso da diferena nos ajuda a escapar da armadilha do etnocentrismo. As propriedades do etnocentrismo so ex-ploradas no conhecido texto Raa e cin-cia, do antroplogo francs Lvi-Strauss. Nas suas prprias palavras, o etnocentris-mo pode ser abordado como:

    A atitude mais antiga e que repou-sa, sem dvida, sobre fundamen-tos psicolgicos slidos, pois que tende a reaparecer em cada um de ns quando somos colocados numa situao inesperada, consiste em repudiar pura e simplesmente as formas culturais, morais, religiosas, sociais e estticas mais afastadas daquelas com que nos identifica-mos. Costumes de selvagem, isso no nosso, no deveramos per-mitir isso etc., um sem-nmero de reaes grosseiras que traduzem este mesmo calafrio, esta mesma repulsa, em presena de maneiras de viver, de crer ou de pensar que nos so estranhas. Deste modo, a Antiguidade confundia tudo que no participava da cultura grega (depois greco-romana) sob o nome de brbaro; em seguida, a civiliza-o ocidental utilizou o termo sel-vagem no mesmo sentido. Ora, por detrs destes eptetos dissimula-se um mesmo juzo: provvel que a palavra brbaro se refira etimologi-camente confuso e desarticula-o do canto das aves, opostas ao valor significante da linguagem hu-mana; e selvagem, que significa da floresta, evoca tambm um gnero de vida animal, por oposio cul-tura humana. Recusa-se, tanto num

  • 36 Cultura na teoria e na prtica

    como noutro caso, a admitir a pr-pria diversidade cultural, preferindo repetir da cultura tudo o que este-ja conforme a norma sob a qual se vive. (LVI-STRAUSS, 1970, p. 4).

    O etnocentrismo pode ser enten-dido como o mecanismo de definio do outro a partir de valores que nos so fa-miliares. Como demonstra Lvi-Strauss, o etnocentrismo, antes de ser uma pos-tura ou conduta pessoal, uma maneira tipicamente humana de reconhecer a al-teridade ou seja, uma maneira de pen-sar sobre o outro. Em outro sentido, uma postura etnocntrica caracteriza-se por uma iniciativa no sentido da desqualifica-o do outro. Adotamos posturas etno-cntricas diariamente, como maneira de nos diferenciarmos de outras pessoas, mas tambm como forma de construir e compactuar com hierarquias sociais. Po-demos afirmar que o racismo se constitui como uma postura etnocntrica a par-tir do momento em que perverte a per-cepo da diferena para promover dis-tino entre sujeitos sociais. Nosso papel enquanto estudiosos da raa assumir um compromisso de combate a posturas etnocntricas, uma medida que comea inevitavelmente com uma crtica de nossas prprias concepes individuais.

    O lugar do preconceito e da discriminao

    Agora que encaramos a raa como uma construo social, passamos ao es-tudo do uso social das formas hierrqui-cas de raa. Comumente, pensamos que a referncia identificao racial de uma pessoa se configura como um ato de pre-conceito ou discriminao. Em que situa-o podemos usar a raa como maneira de pensar o outro sem agirmos de forma preconceituosa?

    Em primeiro lugar, importante re-fletirmos sobre a relao entre discrimina-o e preconceito. A discriminao ou o ato de diferenciar, classificar no uma atitude que dependa necessariamente de algum mecanismo de hierarquizao. A classificao inerente ao processo de in-terao do homem em sociedade, indis-socivel de qualquer processo de comuni-cao. Contudo, muitas vezes observamos o conceito de discriminao associado a atitudes segregatcias, prticas que de-nigrem os sujeitos. Quando falamos em discriminao, estamos operando com uma maneira de perceber a sociedade, um princpio social. Princpios sociais agem como regras gerais da percepo. Orien-tam vises de mundo e concepes de vida. Podemos dizer que a discriminao ou diferenciao um princpio social as-sociado diferena, o que no acarreta de imediato sua associao hierarquizao de indivduos.

    Princpios sociais agem como orien-taes gerais e mais ou menos reconhe-cveis para todos os indivduos de uma co-letividade. No entanto, um princpio social no pode ser entendido de forma isolada, ou seja, sem ser relacionado com outros princpios sociais. Em grande medida, nos-sa percepo do que seria a discrimina-o ou diferenciao est relacionada de forma antagnica nossa concepo de igualdade. Nas sociedades modernas ou ainda ocidentais , o princpio social da igualdade construiu-se de maneira a englobar nossa percepo da diferena. Todos os princpios sociais recobrem-se de camadas de significao ideolgica, ou seja, versam sobre a realidade de maneira parcial.

    Um exemplo de uma construo social orientada por princpios igualitaris-tas se expressa na figura da Constituio. Enquanto forma jurdica, todas as consti-tuies de estados modernos esto orien-tadas de alguma maneira por princpios

  • 37Andr Marega Pinhel

    socialmente entendidos como igualitrios. Ora, o pressuposto fundador da forma ju-rdica expressa na Constituio a univer-salizao do ser humano, um princpio imbudo de igualdade que remonta at os primeiros dias do estado-nao moderno, com a revoluo francesa. Apesar de ob-servamos uma referncia igualdade em exemplos como este, no podemos deixar de considerar que existe uma contradio entre os princpios sociais e a realidade da organizao social.

    A frase do clebre presidente esta-dunidense Abraham Lincoln expressa um pouco desta contradio. Todos os ho-mens nascem iguais, mas esta a ltima vez que o so, ele escreve. Por mais que faamos referncia a um princpio social igualitrio para percebermos o mundo, no conseguimos extinguir a diferena que inerente existncia humana. Com isso, possvel afirmar que a igualdade construda pela declarao dos direitos do homem e do cidado no acaba com a ne-cessidade de nos vermos enquanto seres diversos.

    preciso, no entanto, resguardar certo rigor conceitual. O princpio social que nos orienta para a percepo da di-versidade humana diferente e muitas vezes entendido como igual da forma de organizao estratificada que observamos nas sociedades modernas. A estratifica-o ou seja, a organizao hierrquica tpica de sociedades capitalistas deve ser entendida como um sistema que organi-za a sociedade como um todo, definindo lugares sociais para cada indivduo. Ela inerente a qualquer sistema econmico centrado na acumulao da mercadoria e regulado pelo estado-nao comandado pela figura da autoridade centralizada. Ao mesmo tempo, a estratificao a faceta hierrquica no declarada de um sistema social que se prope a ser igualitrio, ou seja, onde cada indivduo dispe de manei-

    ra igualitria de todas as possibilidades de ascender dentro da hierarquia social.

    Aquilo que entendemos como pre-conceito muitas vezes est associado a uma confuso entre a percepo da dife-rena e a reproduo da estratificao. O preconceito est relacionado a uma per-verso da diferena como maneira repro-duzir uma estratificao social. A dinmica do preconceito age numa situao onde uma relao entre sujeitos sociais supos-tamente mediada pelo princpio da igual-dade, ritualizando a diferena com um tom hierrquico. Graas confuso entre percepo da diferena e reproduo da estratificao, muitas atitudes que se direcionam no sentido da reproduo per-vertida da hierarquia so tomadas como inofensivas ou despretensiosas, quando de fato escondem um complexo processo de hierarquizao de tipos humanos.

    A relao entre preconceito e per-cepo da diferena explorada em pro-fundidade pelo socilogo brasileiro Flores-tan Fernandes. Autor de vrios estudos na rea das relaes tnico-raciais, Fernandes levanta a hiptese de que o brasileiro tem preconceito de ter preconceito. Para o autor, atitudes que retornam indivduos a uma condio hierrquica onde a igualda-de deveria imperar muitas vezes so comu-nicadas de forma subjetiva, isto , operam sem o conhecimento objetivo dos sujeitos. Por meio de dados qualitativos e quantita-tivos, Florestan Fernandes demonstra que, ao ser questionado sobre o uso perverso da percepo da diferena em atitudes cotidianas, o brasileiro mediano tende a retornar para uma perspectiva igualitria para justificar sua conduta. Assim, brin-cadeiras jocosas que ritualizam condies extremamente pejorativas so entendidas como sem inteno, ou, ainda, despro-vidas de maldade.

    Devido ao mesmo sistema que nega a objetivao ou conscientizao da reproduo hierrquica contida na prtica

  • 38 Cultura na teoria e na prtica

    preconceituosa, muitas iniciativas recentes de valorizao da diferena como ma-neira de produzir igualdade social foram entendidas enquanto formas reversas de racismo. As recentes polticas afirmativas tm a ambio de reconhecer a diferena para diminuir a perverso da hierarquia la-tente na prtica preconceituosa. Esta ma-nobra depende intrinsecamente de alguma espcie de definio ou de uma discrimi-nao como identificao dos sujeitos de direito. O reconhecimento da diferena no est necessariamente atrelado a uma reproduo da estratificao e devemos evitar as confuses conceituais.

    Cultura como costura social

    Como discutimos at o momento, a raa pode ser encarada como um sm-bolo para falar da diferena, da diversida-de. Introjetamos nesta espcie de conceito valores, crenas e regras sociais a fim de dar significado ao outro. A significao do conceito que versa sobre o outro est inti-mamente relacionada com aquilo que nos acostumamos a chamar de cultura. Mas o que a cultura?

    Comumente, tendemos a perceber a cultura muito prxima daquilo que en-tendemos como fronteiras. A cultura, em termos usuais, est relacionada com a de-terminao de limites sociais. Neste sen-tido, falamos correntemente em cultura de uma empresa, cultura de um estado, cultura de onde vim e at mesmo em cultura brasileira. Quando falamos de cultura no sentido de criar referncias, estamos, de fato, estabelecendo fronteiras sociais. No vernculo usual, uma cultura termina onde outra comea, ou seja, se delimita a partir de outra cultura. A cul-tura no demarca apenas espaos fisica-mente observveis como, por exemplo, o territrio geogrfico brasileiro mas tam-bm posies sociais. Quando atribumos

    a uma pessoa ou a um lugar o ttulo de culto que detm cultura estamos de-marcando diferenas entre pessoas que se expressam de maneira simblica.

    A cultura como a concebemos pen-sada de forma diversa, ou seja, pensamos que existam culturas ao invs de uma cultura. O conceito de cultura muitas ve-zes utilizado para falar de algo que me familiar, mas tambm para falar daquilo que estranho, diferente. A expresso isto cultural muito utilizada para discutir formas diversificadas de valores sociais, prticas ou costumes expressa um pouco do potencial de percepo da diferena por meio da cultura. Ao dizermos que diferen-as so culturais, estamos postulando a natureza diversa do ser humano. Mas qual a relao entre a raa e a cultura?

    A raa como uma construo social tambm estabelece limites sociais. Assim como a cultura, a raa pode ser entendida como uma fronteira, um limite que define aquilo que semelhante daquilo que ex-tico, diferente. A cultura, enquanto sistema social de percepo de valores, crenas e prticas, vale-se da raa como elemento classificador do ser humano. Os significa-dos que atribumos raa (fentipo) refle-tem diretamente nos limites da raa (sim-blica) e contribuem para determinar aqui-lo que chamamos de cultura. Estes pro-cessos ocorrem de forma no consciente, ou seja, so relativamente autnomos de escolhas e estratgias pessoais.

    A relao entre raa e cultura se expressa, por exemplo, quando tentamos pensar ou explicar a brasilidade, ou seja, o que nos faz pertencer cultura brasileira. Muitos dos smbolos que so, por vezes, concebidos como gerais para a cultura brasileira como o samba, a fei-joada, o futebol so entendidos como produtos histricos da mistura brasileira. Neste processo de elevao de smbolos especficos a componentes da cultura na-cional, a raa tem um papel importante,

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    definindo um horizonte que permite cons-truir unidade tnica a partir da multipli-cidade cultural. Entendemo-nos usual-mente como um povo mestio, fruto da unio das diferenas culturais. O mestio brasileiro (fentipo) associado ao repre-sentante verdadeiro do tipo nacional, ou seja, imagem do brasileiro.

    Entretanto, apesar de construirmos no plano cultural um horizonte universalis-ta e igualitrio para o ideal de raa e de nao, na prtica a percepo da diferena continua sendo pervertida para promover

    a estratificao social. A cultura a costura social, pois une a diversidade humana em torno de elementos gerais, ou seja, percep-tveis a todos aqueles que integram suas fronteiras. Devemos, no entanto, resguar-darmo-nos do mecanismo de destruio da diferena em nome da massificao da igualdade e de homogeneizao de formas de pensar e de representar o mun-do. A defesa da diferena , antes de ser uma forma de direito, uma maneira de pre-servar a predisposio social humana para conviver com a diversidade.

    Leituras complementares

    Etnocentrismo e relativismo cultural

    DAMATTA, Roberto. Relativizando: uma in-troduo Antropologia Social. 5. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.

    LARAIA, Roque de Barros. Cultura, um con-ceito antropolgico. 22. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1986.

    LVI-STRAUSS, Claude. Raa e cincia. So Paulo: Perspectiva, 1970.

    Preconceito e discriminao

    FANON, Frantz. Pele negra, mscaras bran-cas. Rio de Janeiro: Fator, 1983.

    GOMES, Nilma Lino; MARTINS, Aracy Alves (Org.). Afirmando direitos: acesso e per-manncia de jovens negros nas universida-des. Belo Horizonte: Autntica, 2004.

    Cultura

    GEERTZ, C. A interpretao das culturas. Rio de Janeiro: Livros Tcnicos e Cientfi-cos, 1989.

    Referncias

    ALVES, Jos Augusto Lindgren. Os direitos humanos na ps-modernidad