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Válter Kenji Ishida 2020 Curso de DIREITO PENAL 5 a Edição Revista, atualizada e ampliada

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Válter Kenji Ishida

2020

Curso de

DIREITO PENAL

5a EdiçãoRevista, atualizada e ampliada

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INTERPRETAÇÃO DA LEI PENAL

5.1 CONCEITO

Interpretação da lei penal é atividade de identificar o alcance e o significado da norma penal. Exemplo: por que existe tentativa em um crime e em outro não se admite? Outro exemplo é a Lei nº 12.015/09, que introduziu alteração nos crimes sexuais. A partir de sua entrada em vigor, há necessidade de um rigoroso estudo interpretativo para identificar o seu alcance e o significado da norma. Assim, unificado o delito de estupro com o ato libidinoso diverso da conjunção carnal no art. 213, qual é o seu alcance? Qual é o significado de estabelecimento de exploração sexual no delito de casa de prostituição? São essas perguntas que a interpretação tratará de responder.

Aqui, uma observação importante para o estudo do direito penal ou de qualquer ciência jurídica. O estudo contido em um manual ou em um código anotado nada mais é do que a interpretação da lei realizada pela doutrina (os estudiosos do direito) e a jurisprudência (os tribunais). Por isso, durante a análise dos temas deste livro, existirão correntes ou posicionamentos, pois em várias matérias não existe um pensamento único, mas normalmente duas ou mais correntes. Acostume-se então a ler em textos jurídicos a existência de, no mínimo, dois posicionamentos, sendo um o dominante e o outro o minoritá-rio. Existem doutrinadores mais antigos constantemente citados, como Nelson Hungria, Magalhães Noronha, Bento de Faria, Heleno Cláudio Fragoso, e outros de uma geração mais atual, como Julio Fabbrini Mirabete, Damásio E. de Jesus, frequentemente mencionados. São pensadores do direito penal que, por sua capacidade e influência no mundo jurídico penal, possuem suas ideias expostas em manuais jurídicos.

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Assim, por exemplo, para o assunto “x”, existem duas correntes. Primeira corrente: pensa da seguinte forma; segunda corrente: pensa de outra forma. Prevalece, então, a primeira corrente.

Interpretação conforme a Constituição. Existia um entendimento de que a norma incompatível com a Constituição seria nula, implicando a desconstituição de todos os seus efeitos desde a sua edição (efeito retroativo). Contudo, o STF se deparou com situações em que a admissão desse efeito geraria consequências gravosas. Dessa forma, surgiram técnicas de decisão intermediárias, mitigando o dogma da nulidade, com efeito ex tunc. Surge a partir daí a modulação dos efeitos temporais. Fixa-se um termo “a quo” a partir da qual o entendimento do STF deverá valer. Hoje esse efeito é admitido pelo art. 27, da Lei 9.869/99. O objetivo é a preservação da norma infraconstitucional, tanto quanto possível, mas com o simultâneo ajuste (Luís Roberto Barroso e Patrícia Perrone Campos Mello, O Papel Criativo dos Tribunais, Técnicas de Decisão em Controle de Cons-titucionalidade, Revista da Ajuris, v. 46, n. 146, Junho, 2019).

Classificação das decisões. As técnicas de decisão intermediárias se inserem entre a declaração de inconstitucionalidade e o reconhecimento da constitucio-nalidade (daí a denominação “intermediária”). Permitem minimizar os impactos. As decisões intermediárias podem ser decisões interpretativas e decisões cons-trutivas. Decisões interpretativas são aquelas em que o tribunal atribui ou afasta um significado ou paralisa a incidência. O intérprete escolha a interpretação que melhor efetiva o disposto na Constituição. Já as decisões construtivas atribuem significados que não podem diretamente ser extraídos do programa normativo da lei. Existe nesse último caso, uma maior atuação criativa da Corte, com a adição ou substituição do sentido. São também conhecidas como “decisões ma-nipulativas” (Luís Roberto Barroso e Patrícia Perrone Campos Mello, O Papel Criativo dos Tribunais, Técnicas de Decisão em Controle de Constitucionalidade, Revista da Ajuris, v. 46, n. 146, Junho, 2019).

Espécies de decisões interpretativas. Pode-se citar quatro formas de decisões interpretativas. (1) a interpretação conforme a Constituição. Implica no rede-finir o significado de uma norma. Nesse ponto, tem-se como exemplo o enten-dimento de que a EC 45/2004 não forneceu competência criminal para a Justiça do Trabalho. (2) a declaração de inconstitucionalidade parcial sem redução de texto. Incide quando a norma comportar mais de um sentido e um destes é afastado por ser inconstitucional. É exemplo a norma que cria um tributo, mas prevê a inobservância do princípio da anualidade. Existe preservação da norma, mas não se admite a inobservância ao princípio da anualidade. (3) a declaração de inconstitucionalidade sem a pronúncia de nulidade. Nesse caso, o STF reconhece a incompatibilidade da lei, mas a mantém durante um certo período, para que ela se adeque. É exemplo a criação de município irregular, estipulando a Corte o prazo de 24 meses para o saneamento do vício (4) a declaração de lei ainda inconstitucional em trânsito para a inconstitucionalidade. Esta técnica é utilizada enquanto subsistir situação de fato que a justifique. É exemplo do prazo

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em dobro para a Defensoria Pública. Essa norma valeria enquanto a Defensora Pública não estive estruturada como o MP (Luís Roberto Barroso e Patrícia Perrone Campos Mello, O Papel Criativo dos Tribunais, Técnicas de Decisão em Controle de Constitucionalidade, Revista da Ajuris, v. 46, n. 146, Junho, 2019).

Espécies de decisões construtivas. Podem ser decisões aditivas e substi-tutivas. As decisões aditivas acrescentam um conteúdo à norma, que não esta contido em seu programa normativo, mas que pode ser extraído da CF. É exemplo a permissão do aborto de feto anencefálico do art. 128 do CP, incluindo uma nova excludente de ilicitude. Já as decisões substitutivas são aquelas em que existe uma declaração de inconstitucionalidade parcial da lei, com a substituição da disciplina inconstitucional por outra. Assim, é exemplo a interpretação do artigo 12, I e artigo 16, ambos da Lei nº 11.340/2006 de acordo com a necessidade do Estado de coibir a violência doméstica. Assim, no caso de lesão dolosa contra a mulher, a ação seria pública incondicionada (Luís Roberto Barroso e Patrícia Perrone Campos Mello, O Papel Criativo dos Tribunais, Técnicas de Decisão em Controle de Constitucionalidade, Revista da Ajuris, v. 46, n. 146, Junho, 2019).

5.2 OBJETIVO

A interpretação busca delimitar a vontade da lei. Mesmo uma lei sendo extremamente clara, exige interpretação. Exemplo: não havendo dúvida sobre a conduta do réu no crime de roubo, mesmo assim, o juiz buscará uma interpretação para a individualização da pena. Por isso mesmo, a função de interpretação e a aplicação muitas vezes são realizadas por uma única pessoa: o magistrado. Por outro lado, a interpretação não pode se separar do ordenamento jurídico e do contexto histórico-cultural (Bitencourt, Tratado de direito penal, parte geral, p. 153). Também deve se basear em princípios ou regras básicas: (1) hierarquia, já que toda interpretação deve obedecer a Constituição; (2) vigência, sendo preferível a interpretação que dá vigência à lei e não a que nega; (3) unidade sistemática, mencionando que todos os textos legais possuem vigência simultânea; (4) dina-mismo, admitindo que os textos mudam de sentido com o passar do tempo; (5) liberdade interpretativa, mencionando que nenhuma interpretação pode ser im-posta coativamente (Luiz Flávio Gomes e outro, Direito penal, parte geral, p. 75).

5.3 CLASSIFICAÇÕES

5.3.1 Interpretação da lei penal quanto ao sujeito (baseada na pessoa que realiza a interpretação)

1. autêntica: é aquela originária do próprio Poder encarregado de elaborar a lei, podendo ser denominada de legislativa. A interpretação autêntica pode ser contextual: quando feita no próprio texto. São exemplos o art. 150, § 4º, considerando casa o compartimento habitado, e o conceito

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de funcionário público estabelecido no art. 327. Ou ainda pode ser não contextual: feita por lei posterior. Também no caso de feminicídio, que exige homicídio praticado contra a mulher em razão da “condição de sexo feminino”. O próprio artigo art. 121, § 2º-A explica essa condição: I – violência doméstica e familiar; II – menosprezo ou discriminação à condição de mulher;

2. doutrinária: é a feita por estudiosos ou cultores da ciência jurídica penal. Conceito de doutrina: conjunto de estudos jurídicos de qualquer natureza feitos pelos cultores do direito. Exemplo: a doutrina de Nel-son Hungria, Heleno Cláudio Fragoso e Magalhães Noronha se tornou referência, sendo claramente doutrinadores do direito penal. Seu valor não apenas se baseia no prestígio do autor, mas também da própria cientificidade do argumento. A doutrina, para alguns, pode ser consi-derada forma de integração da lei, junto com a analogia e os princípios gerais de direito (Osvaldo Aranha Bandeira de Mello, Princípios gerais de direito administrativo, v. 1, p. 352), embora para nós seja só forma de interpretação. Se houver uniformização do entendimento doutrinário (o que é difícil), há a chamada communis opinio doctorum (Bitencourt, Tratado de direito penal, parte geral, p. 156). A interpretação fornecida pela exposição de motivos é doutrinária e não autêntica (Luiz Flávio Gomes e outros, Direito penal, parte geral, p. 74);

3. jurisprudencial ou judicial: é a feita pelos Tribunais, com a reiteração de seus julgamentos. Jurisprudência é a reiteração de decisões no mes-mo sentido. Exemplo: crime de furto com a qualificadora de escalada. Para a jurisprudência, muro baixo não é, e muro alto é (TJMG – nº do processo 1.0210.08.052325-6/001 – j. 28-4-09). Isso é interpretar a lei, o art. 155, § 4º, inciso II do CP.

5.3.2 Interpretação da lei penal quanto ao modo (define a maneira como a interpretação é realizada)

1. gramatical (filológica): fundada nas regras gramaticais e no sentido literal das palavras. Significa recorrer ao que dizem as palavras. Exem-plo: crime de bigamia – art. 235: contrair alguém, sendo casado, novo casamento. Basta a leitura da lei para aferir o seu sentido, nada mais. Outro exemplo: pela gramática, pode-se concluir que o § 1º do furto (repouso noturno) se refere apenas ao caput e não ao furto qualificado (exemplo: furto com escalada). É uma interpretação pela posição da frase ou oração. Também pode ser exemplo o crime de associação criminosa na expressão “Associaram-se três ou mais pessoas”. A interpretação literal levaria à conclusão de “no mínimo três pessoas”;

2. lógica (ou teleológica ou lógico-sistemática): busca a finalidade da lei penal. Há autores que separam a interpretação lógica (busca de argu-mentos lógicos como “quem pode o mais, pode o menos”) da teleológica

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(busca da finalidade da lei) (Luiz Flávio Gomes e outros, Direito penal, parte geral, p. 78). Uma das formas de auxílio na interpretação lógica é a utilização do direito comparado (o italiano, o português, o francês etc.). Outro exemplo na área processual penal é a vedação de memoriais no procedimento ordinário porque o escopo da Lei nº 11.719/08 foi de agilização processual.

3. histórica: busca alcançar a vontade da lei através da interpretação his-tórica: entender por que o legislador optou por determinada política criminal segundo os acontecimentos daquele período. Recai sobre a história do nascimento da lei, abrangendo os trabalhos das comissões legislativas, a exposição de motivos etc. (Bitencourt, Tratado de direito penal, parte geral, p. 159).

5.3.3 Interpretação da lei penal quanto ao resultado (baseia-se no alcance da interpretação)

Existem três modalidades:1. declarativa: fornece a lei o seu sentido literal, sem extensão, nem restri-

ção. Não é propriamente um tipo de interpretação, pois apenas mostra aquilo já existente ou já previsto na norma penal (Carlos Maximiliano, Hermenêutica e aplicação do direito, p. 165). Exemplo: no crime de associação para o tráfico (art. 35 da Lei nº 11.343/06), se a lei fala em duas ou mais pessoas, não se admite, para a tipificação, apenas um agente;

2. restritiva: restringe o limite da norma (a lei disse mais do que deveria). No roubo, aumenta-se a pena em 1/3 se o crime é praticado com arma de fogo. O STJ fez uma interpretação restritiva, afirmando que arma de brinquedo não é arma, cancelando a Súmula 174 pela terceira seção, na sessão ordinária de 24-10-2001 (cf. publicação no DJU de 6-11-2001). No furto, exclui como objeto material a coisa de valor absolutamente insignificante (Luiz Flávio Gomes e outro, Direito penal, parte geral, p. 75). Ainda no crime de desobediência, havendo sanção específica (exemplo: estacionar em local proibido) e não havendo menção ao crime de desobediência, este não se caracteriza;

3. extensiva: quando a interpretação da norma requer a ampliação porque as palavras do texto legal dizem menos que sua vontade. Dilata-se o alcance do preceito ou da norma, visando atender a finalidade do texto.

Exemplo 1. O crime de infanticídio fala em matar o filho “durante o par-to ou logo após”. Nesse caso, o “logo após” possui uma interpretação extensa, dilatada pela doutrina, não significando somente algumas horas após, mas até dias, semanas.

Exemplo 2. O art. 5º, XXXIX, da CF menciona que “não há crime sem lei anterior que o defina”. É lógico que na expressão “crime” entende-se a contra-venção também.

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Exemplo 3: quando se diz, no art. 235, crime de bigamia, inclui-se logica-mente a poligamia (na verdade, o crime deveria se denominar de “poligamia”).

Exemplo 4: o estado de necessidade prevê o perigo atual. E se for perigo próximo ou iminente? Pelo bom-senso, deve prevalecer. Exemplo: preso que é obrigado a auxiliar o outro na fuga, sob pena de ameaça à sua integridade física. É perigo iminente e aceito por uma interpretação extensiva. Deve-se assinalar que é estreita a diferença entre interpretação extensiva e analogia. Teoricamente, na analogia, não existe a regra jurídica penal. Na interpretação extensiva, existe essa norma que é apenas dilatada. Para Luiz Flávio Gomes e outro (Direito pe-nal, parte geral, p. 75), essa interpretação deve ser feita de modo excepcional, e em caso de dúvida insuperável, deve-se optar pela interpretação mais favorável ao réu. Não concordamos com essa opinião, pois a vedação doutrinária é tão somente quanto à analogia in malam partem.

5.4 INTERPRETAÇÃO ANALÓGICA

É a que se vale de um raciocínio por semelhança, mas permitido na pró-pria lei. Semelhança quer dizer analogia: (1) no homicídio, o “I” do § 2º do art. 121 fala em “mediante paga ou promessa de recompensa, ou por outro motivo torpe”. Admite interpretação analógica através da expressão final “ou por outro motivo torpe, não se limitando apenas à paga ou promessa de recompensa; (2) no estelionato (art. 171 do CP), a lei fala em artifício (que é o disfarce), ardil (conversa enganosa) ou outro meio fraudulento (permite que outras situações semelhantes sejam postas, como, por exemplo, a mentira ou o silêncio). Este é uso da interpretação analógica. Com efeito, na interpretação analógica não há qualquer lacuna. A própria lei afirma que se aplica àquele fato e seus asseme-lhados (aponta uma forma genérica). Já na analogia, reconhece-se uma lacuna da lei. A reserva de lei penal (art. 5º, XXXIX, CF) impede que esta lacuna seja preenchida em detrimento do réu.

Na interpretação analógica, não há lacuna, mas técnica legislativa. É a lei que determina a sua aplicação para casos análogos ao que descreve. Assim, ocor-re no art. 306 do CTB, que fala da embriaguez por álcool ou outra substância psicoativa que determine a dependência (como a maconha). Trata-se de uma modalidade da interpretação extensiva (Prado, Curso de direito penal, v. 2, p. 608). A interpretação analógica, na verdade, evita o uso da analogia, respeitando o princípio da reserva legal. É admissível independentemente de favorecer ou não o réu. Assim, como há lei, não há ofensa à reserva de lei.

Lembre-se de que no direito penal não é permitida a analogia para prejudicar o réu (in malam partem), mas é permitida a interpretação analógica.

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RESUMO DO CAPÍTULO 5

• interpretação da lei penal: é a atividade de identificar o alcance e o significado da lei penal.

• interpretação extensiva: é a interpretação que se utiliza da ampliação do sentido do termo.

• interpretação analógica: é a analogia permitida pelo próprio texto legal.

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INTRODUÇÃO À PARTE ESPECIAL

10.1 DIFERENCIAÇÃO ENTRE A PARTE GERAL (PRINCÍPIOS BÁSICOS DO DIREITO PENAL) E A PARTE ESPECIAL (CRIMES EM ESPÉCIE)

O Código Penal, como já foi dito anteriormente, é dividido em duas partes: a Parte Geral e a Parte Especial. A Parte Geral foi totalmente reformulada em 1984, alterando a ênfase na teoria causalista e passando a dar destaque à teoria finalista. Quanto à Parte Especial, permaneceu quase que inalterada, sendo fru-to do Código Penal italiano de 1930 (Código Rocco). Historicamente, a Parte Especial, na sua origem (e também a Parte Geral) nasceu da ideia de Getúlio Vargas de um novo Código Penal, incumbindo a tarefa ao seu Ministro Francisco Campos. Este procurou Alcântara Machado que redigiu um texto. Esse texto foi entregue a uma Comissão Revisora, comandada por Nelson Hungria (daí a denominação de Código Hungria), com a participação de Roberto Lira, Narcélio de Queiroz, Vieira Braga e Costa Silva (Antonio Solón Rudá, Inciso I do artigo 18 do Código Penal e a gênese do dolo eventual no Brasil, “in” https:jus.com.br”, acesso em 02/05/2019, 21h44min).

Parte Geral: abrange as normas penais permissivas, as quais preveem a licitude ou impunidade de comportamento. Exemplo: arts. 20, 23 e 25. Comporta também as normas penais complementares que esclarecem dispositivos. Exem-plo é o art. 5º: aplica-se como regra geral a lei brasileira ao crime cometido em território nacional. Parte Especial: contém as normas penais incriminadoras, que definem infrações penais e cominam as sanções. Contém também algumas normas não incriminadoras, como, por exemplo, a permissão do aborto (art. 128). Existem também normas definidoras do tipo de ação penal. O primeiro

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título da Parte Especial é dos crimes contra a pessoa. Essa disposição coloca em destaque a pessoa em prejuízo à figura do Estado. Esse anteriormente era colo-cado em primazia, iniciando a Parte Especial do Código Criminal do Império e o Código Penal Republicano de 1890. Essa observação é importante porque define, em determinado momento, quais bens devem ser penalmente tutelados, ou seja, qual é a danosidade social que se relaciona. Pessoa significa tanto a pessoa física como a jurídica. Essa pode ser sujeito passivo, por exemplo, no crime de difamação (art. 139), no de violação de domicílio (art. 150), com a entrada em determinados locais de sua empresa e no delito de violação de correspondência (art. 152). Consentimento do ofendido: em alguns casos, serve como excludente de tipicidade, como, por exemplo, no caso de consentimento do morador no crime de violação de domicílio ou ainda como excludente de antijuridicidade, quando o tipo penal não traz o dissentimento do ofendido, como é o caso do crime de dano (art. 163). Todavia, não existe essa possibilidade quando o bem jurídico é indisponível.

A estrutura (modo de apresentação) contém basicamente a mesma sequência: a bem jurídico (qual o bem ou interesse protegido pelo direito penal), o sujeito ativo (aquele que comete o crime, ou seja, aquele que se amolda ao tipo – autor ou aquele que concorre de qualquer forma – partícipe), o sujeito passivo (aquele que é atingido pelo crime), o tipo objetivo (o modo de execução do crime, nor-malmente analisando-se o verbo), o tipo subjetivo (o elemento relacionado ao ânimo do agente), a consumação (quando a conduta reúne todos os elementos, torna-se perfeita) e a tentativa (quando admitida e não permitindo a consu­mação em razão de circunstâncias alheias à vontade do criminoso chamado agente). Note-se que é importante a definição do momentum da consumação, porque é este que define a competência do juízo de acordo com a regra do art. 70, caput, do CPP. Quanto ao elemento subjetivo do tipo ou tipo subjetivo, a regra geral é a do dolo. Esse dolo normalmente é caracterizado pela vontade (dito dolo direto) e, em alguns casos, pelo dolo eventual (o agente prevê o resultado e consente que esse se realize, embora não tenha a vontade). É importante notar e entender que alguns tipos contêm o dolo e o elemento subjetivo do tipo. Para a teoria clássica, há o dolo geral e o dolo específico (embora ultrapassado, esse critério é mais didático). Assim, no furto, temos a vontade de subtrair (dolo ou dolo geral) e subtrair para si ou para outrem (elemento subjetivo do tipo ou dolo específico). Se houver a falta deste último, o fato é atípico. Assim, se A em um shopping adentra no veículo de B e sai com o automóvel, pode-se dizer que subtraiu o mesmo. Mas, se o pegou por engano, falta-lhe o segundo requisito (dolo específico), uma vez que não tinha o ânimo definitivo, a vontade de ficar com a coisa. Quanto à ação penal, recorde-se que a classificação se dá pela ini-ciativa da mesma (em processo, legitimidade ad causam). Ou a iniciativa cabe ao Estado-administração (Ministério Público) ou ao particular (o ofendido ou a vítima). No primeiro caso, diz-se que a ação é pública ao passo que, no segundo caso, diz-se privada. A ação pública pode não depender de nenhuma condição e daí se diz incondicionada, ou pode depender de alguma condição, dizendo-se condicionada. Esta condição pode ser a representação da vítima ou a requisição

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do Ministro da Justiça. Assim, na exposição do tipo (do crime, da norma in-criminadora), se não houver menção, a ação será pública incondicionada. Essa é a regra geral de acordo com o art. 100, caput, do CP. A exceção, portanto, é a expressa menção. Se for ação penal pública condicionada à representação, o tipo estipulará que “somente se procede mediante representação”, como no caso do art. 147 do CP (ameaça), ou “procede-se mediante requisição do Ministro da Justiça”, indicando ação penal pública condicionada à requisição. Por outro lado, se for ação penal privada, indicará “somente se procede mediante queixa”. Outra anotação recai sobre as expressões utilizadas pela Parte Especial. Várias condutas são incriminadas, em razão de dois elementos: o constrangimento e a fraude. O constrangimento é representado pela violência ou pela grave ameaça. A fraude pode ser exercida via artifício, ardil ou qualquer outro meio fraudulento (dita aqui interpretação analógica). Induzir (fazer nascer a ideia) e instigar (reforçar a ideia preexistente) são também verbos muito utilizados. O menor de 14 anos é protegido constantemente nos tipos, porque se presume uma incapacidade total para fazer frente à conduta do agente criminoso.

Os crimes expressamente revogados (exemplo: o adultério) não são estudados. Os crimes tacitamente revogados (exemplo: violência arbitrária) são analisados em razão da dúvida existente sobre sua revogação. Os crimes com incidência maior na prática são mais estudados em razão da farta jurisprudência sobre a matéria. Sobre essa jurisprudência, nota-se que a mais antiga é mais rigorosa em relação ao réu e a mais nova tende a mais ser liberal. Exemplo: a jurisprudência mais antiga admite a analogia in malam partem no caso de duplicata simulada, incluindo o caso de inexistência de relação de negócio. A jurisprudência mais recente não admite a causa de aumento pelo emprego de arma no roubo se não houver apreensão da mesma. Trata-se claramente de alteração da política criminal dos tribunais superiores.

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CRIMES CONTRA A PESSOA

11.1 INTRODUÇÃO

O título I da Parte Especial abrange os crimes contra a pessoa. A pessoa mencionada pode ser a física e a jurídica (exemplo: crime de difamação). É composta pelos Capítulo I (crimes contra a vida), Capítulo II (lesões corporais), Capítulo III (periclitação da vida e da saúde), Capítulo IV (rixa), Capítulo V (crimes contra a honra) e Capítulo VI (crimes contra a liberdade individual). Este último capítulo é composto pela Seção I (crimes contra a liberdade pes soal), Seção II (crimes contra a inviolabilidade de domicílio), Seção III (crimes contra a inviolabilidade de correspondência) e Seção IV (crimes contra a inviolabilidade dos segredos).

Os tipos são descritos por itens numéricos para facilitar a assimilação da matéria, da mesma forma quando lecionamos em sala de aula.

Capítulo I – Dos Crimes Contra a Vida

11.2 CRIMES CONTRA A VIDA

Os crimes contra a vida podem ser: (a) dolosos: como o homicídio simples; (b) culposos: como o homicídio culposo; (c) preterdolosos: aborto qualificado pela lesão corporal grave ou morte (art. 127).

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11.2.1 Homicídio (art. 121 do CP)

11.2.1.1 Tipo penal

O crime de homicídio está tipificado na Parte Especial com a seguinte redação: “Homicídio simples. Art. 121. Matar alguém: Pena – reclusão, de 6 (seis) a 20 (vinte) anos.”

11.2.1.2 Conceito

Homicídio é a morte de um ser humano provocada por outro. Pode ser ainda conceituado como a eliminação da vida humana extrauterina, considerada esta a que passa a existir a partir do parto (Euclides Custódio de Oliveira, Direito penal, crimes contra a pessoa, p. 24, nota 46, apud Júlio Fabbrini Mirabete, Ma-nual de direito penal, parte especial, v. 2, p. 62). Assim, dentro do útero, dizemos delito de aborto, e fora do útero, homicídio e outros. No entanto, se o aborto estiver ocorrendo e gerar a saída do feto e sua morte, o delito é de aborto. O CP de 1890 adotou a terminologia “homicídio”, ao invés do direito estrangeiro que comumente emprega a expressão “assassinato” (Cezar Roberto Bitencourt, Tratado de direito penal, v. 2, p. 27).

11.2.1.3 Bem jurídico

Tutela-se vida humana extrauterina (considerada a partir do início do parto).

11.2.1.4 Sujeitos do delito

Sujeito ativo é qualquer pessoa, menos a própria vítima (porque aí trata-se de suicídio). Quanto ao sujeito passivo, o CP fala em “alguém”, ou seja, qualquer ser humano nascido de mulher. Se o sujeito passivo for Presidente da República, do Senado, da Câmara ou do STF, o crime é contra a segurança nacional (Lei nº 7.170/83). O tipo é o do art. 29 da referida lei: “Art. 29. Matar qualquer das autoridades referidas no art. 26. Pena – reclusão, de 15 a 30 anos.” Se o sujeito ativo atinge um cadáver, existe crime impossível. Neste caso, não existe o sujeito passivo do homicídio. Feto é o ser humano não nascido ainda. O nascimento se dá com o parto. O parto se inicia com o rompimento do saco amniótico (líqui-do amniótico que envolve o bebê). Portanto, se houver morte durante o parto (feticídio), o crime é de homicídio. Não há necessidade de que o sujeito passivo possua vida viável. A prova do nascimento com vida normalmente se dá com a respiração, mas outros sinais podem atestar a vida. No caso de morte durante o parto, há necessidade do exame de corpo de delito através da docimasia de Ga-leno: colocação do pulmão na água para verificar se houve respiração, ou através de exames médicos mais modernos como o exame de células.

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11.2.1.5 Tipo objetivo

O núcleo do tipo é matar, ou seja, eliminar a vida. É crime progressivo, pois antes da morte existe necessariamente a lesão ao corpo humano. Admite qualquer forma: omissiva (como a mãe que deixa de alimentar o filho, descum-prindo com o seu dever jurídico) ou a forma comissiva. Pode ainda alcançar o objetivo através do meio direto (tiro) ou indireto (atiçar cão bravio). Abrange ainda o meio físico, químico (veneno), patológico (vírus), ou ainda o psíquico ou moral (violenta emoção em cardíaco).

11.2.1.6 Tipo subjetivo

É o dolo (animus necandi ou occidendi). No homicídio, o dolo é genérico, ou seja, a vontade de matar a vítima. Pode existir o motivo especial denominado elemento subjetivo do tipo (um plus ou um acréscimo) ou o dolo específico. Exemplo: matar por motivo torpe. Matar já exprime uma vontade. Matar em razão do motivo torpe significa um acréscimo. O dolo genérico abrange ainda o dolo eventual: quem persegue a vítima e em razão disso gera o atropelamento desta responde pelo homicídio doloso indireto via dolo eventual (previu o re-sultado e assumiu o risco). Não se pune nesse caso a tentativa, pois a punição é decorrente do resultado, e a tentativa exige o dolo direto.

11.2.1.7 Consumação

O homicídio é crime material (exige o resultado naturalístico) e consuma-se com a morte da vítima. A morte ocorre com a cessação do funcionamento cere-bral, circulatório e respiratório. A Lei nº 9.434/97 entende que a cessação da vida ocorre com a morte encefálica. Dispõe referido texto da lei de transplante: “Art. 3º A retirada ‘post mortem’ de tecidos, órgãos ou partes do corpo humano, destinados a transplante ou tratamento deverá ser precedida de diagnóstico de morte encefálica [...].” Esse é o mesmo critério da legislação portuguesa (art. 2º. da Lei 141/99).

A prova processual penal se faz por meio do laudo de exame de corpo de delito direto. Mas quando não possível, pela falta de vestígios, é possível o exame de corpo de delito indireto. A tentativa é admitida no homicídio. Pode ocorrer a tentativa branca ou incruenta (aquela em que não se atinge a vítima): agente dispara vários tiros contra a vítima, mas não a atinge.

Desistência voluntária. Se o agente efetua apenas um disparo quando poderia efetuar outros, admite-se a desistência voluntária, respondendo o agente pelo ato anterior: se acertar, será lesão corporal. Se não acertou, crime de perigo (art. 132 do CP) ou de disparo de arma de fogo (art. 15 da Lei nº 10.826/03).

11.2.1.8 Homicídio privilegiado

O homicídio privilegiado abrange hipótese de alteração emocional que leva ao cometimento do homicídio. É causa de diminuição de pena previsto no § 1º.

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Essa causa de diminuição de pena é reconhecida pelo júri quando da quesitação. O art. 483, IV, do CPP, com a redação fornecida pela Lei nº 11.689, de 9-6-2008, prevê a quesitação da seguinte forma: “se existe causa de diminuição alegada pela defesa”. Há necessidade de levantar a matéria em plenário para a quesitação (STJ, AgRg no Ag 1251721/RJ, j. 16-10-2012). Não se comunica ao coautor (cir-cunstância pessoal). A diminuição é de um 1/6 a 1/3 e para escolha da “fração”, deve o juiz aferir o grau de emoção e a influência na prática do delito (TJES, AC 048109001932, Rel. Sérgio Bizoto Pessoa de Mendonça, DJe 13/7/2011).

Hipóteses:1. Motivo de relevante valor social: relaciona-se aos interesses da vida em

comum (da sociedade). Exemplos: morte de um bandido perverso que atemoriza um bairro inteiro e morte do traidor da pátria. É comum no tribunal do júri se absolver pessoa que mata bandido, mesmo inexistindo excludente, tratando-se vulgarmente da admissão da “legítima limpeza”. Se o agente mata o Presidente do Senado, inconformado com a corrupção praticada pelo mesmo, o crime é do art. 29 da Lei nº 7.170/83. Nesse caso, poder-se-ia aplicar por analogia in bonam partem o homicídio privilegiado ou, ao menos, considerar como circunstância atenuante do art. 65, III, a, do CP.

2. Motivo de relevante valor moral: diz respeito ao interesse individual ou particular. Enquanto no primeiro o motivo envolve a sociedade, neste, o motivo é do indivíduo. É motivo nobre ou de piedade. Exemplo clássico é a eutanásia, que é o homicídio misericordioso. Sobre a eutanásia, no ano de 2000, a Holanda promulgou uma lei permitindo a mesma. Quer significar (etimologia) morte boa. No Brasil, não é admitida. Na prática, a eutanásia passiva (utilização de medicação como morfina acrescida de alguns tranquilizantes, conhecida como ortotanásia), vem sendo utilizada, “acelerando” a morte. Como se trata de uma conduta com escopo imediato de aliviar a dor, não se comprova o homicídio pelo médico. O código de ética médica (Resolução CFM nº 1931/09, publicada no DOU de 24-9-2009, Seção I, p. 90) em seu art. 42, proíbe “abreviar a vida do paciente, ainda que a pedido deste ou de seu representante legal”. Deve o médico, no caso de doença incurável, oferecer todos os cuidados paliativos, mas sem empreender ações diagnósticas ou terapêuticas inúteis. Distanásia: é a morte vagarosa e sofrida, prolongada pelos recursos médicos. O fato é atípico. A conduta no caso envolve relevância. Se uma pessoa é portadora de doença fatal e outra fornece calmantes, a conduta pode ser de auxílio ao suicídio (art. 122). Um segundo exemplo é o do pai que mata o estuprador da filha. O motivo é relevante para o pai, tratando-se de relevante valor moral.

Diferenciação na prática do relevante valor social e moral. Depende de quantas pessoas são envolvidas no homicídio, já que o tema (p. ex. a eutanásia) pode, em tese, ser de relevante valor social também. A incidência das duas causas faz com que a diminuição da pena seja maior.

3. Domínio de violenta emoção logo em seguida à injusta provocação: é o homicídio emocional. A lei fala em “domínio”, ou seja, um alto grau de emoção.

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Se houve apenas influência da emoção, a hipótese não seria de homicídio pri-vilegiado, mas de atenuante do art. 65, III, c, do CP. A frieza exclui a violenta emoção. Provocação é aquela capaz de justificar a cólera, a indignação ou repulsa. Não é a agressão. Deve haver reação imediata, ou seja, logo após (domínio da violenta emoção). Admitindo-se, todavia, que o agente se arme rapidamente e volte ao local: RT 766/684. Assim, o critério a ser emprego deve ser a razoabilidade, admitindo que o agente vá até sua casa buscar a arma de fogo. Mas se cometido friamente após horas depois, afasta a qualificadora (RT 572/325) (Rogério Greco, Código penal comentado, p. 284). O homicídio passional poderá ser aceito como privilegiado desde que se amolde a uma dessas possibilidades.

11.2.1.9 Homicídio qualificado

É aquele que possui pena-base maior, ou seja, 12 a 30 anos. Hipóteses (art. 121, § 2º, do CP). As informações do tipo básico (homícidio simples) são cha-madas de elementares (essentialia delicti). Já os acréscimos, estruturando o tipo derivado (privilegiado ou qualificado) são chamadas de circunstâncias (accidentalia delicti) (Rogério Greco, ob. cit., p. 284). O Código Penal nos incisos I, III e IV preferiu exemplificar as hipóteses, ao invés de simplesmente elencar os motivos:

Crime hediondo. Dispõe o art. 1º, I, da Lei nº 8.072/1990: “São considerados hediondos os seguintes crimes, todos tipificados no Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, consumados ou tentados: I – homicídio (art. 121), quando praticado em atividade típica de grupo de extermínio, ainda que cometido por um só agente, e homicídio qualificado (art. 121, § 2º, incisos I, II, III, IV, V, VI e VII). Portanto, não é hediondo o homicídio simples.

Inciso I – Motivo torpe: é o motivo desprezível, abjeto. O Código Penal preferiu exemplificar um caso de motivo torpe, paga ou promessa de recompensa (caso do homicídio mercenário), dentre outros. Na paga, o dinheiro é adiantado, na promessa de recompensa, o dinheiro vem depois do “serviço”. Existe divergên-cia na doutrina sobre a incidência da qualificadora para o mandante. Mas sendo nitidamente de caráter subjetivo (o motivo para ter matado seria o dinheiro) deve-se ater apenas ao autor (“executor”), não sendo “elementar”, de acordo com a regra do art. 30, do CP. Mas o STJ entendeu que essa circunstância também se comunica ao mandante (HC 99.144/RJ). Ocorre que essa comunicação segundo o art. 30 do CP, só ocorre no caso de “elementares”. . Havendo paga ou promessa de recompensa, o crime é plurissubjetivo envolvendo necessariamente o partícipe (Masson, ob. cit., p. 28). Depois utilizou-se do recurso da interpretação analógica: “ou por motivo torpe”. É exemplo também o homicídio visando o recebimento da herança. A vingança só é reconhecida se relacionada à torpeza. Um pai pode se vingar do outro que estuprou sua filha, sem poder falar em motivo torpe, ou seja, repugnante, podendo nesse caso ser admitido como homicídio privilegiado. Havendo paga ou promessa de recompensa, o crime é plurissubjetivo envolvendo necessariamente o partícipe (Masson, ob. cit., p. 28).

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