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  • 7/24/2019 Viveiros de Castro e. Etnologia Brasileira

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    ETNOLOGI BR SILEIR

    Eduardo Viveiros de Castro

    IDEOlOGI

    ::h

    ETNOlOGI BR SilEIR

    O objetivo do projeto As Cincias Sociais no Brasil: Ten-

    dncias e Perspectivas no uma avdiao institucional das

    cincias sociais brasileiras, e sim um balano terico.

    o enqua-

    Jrar a discusso em termos de etnologia (institucionalmente)

    brasileira, porm, ele suscita

    por

    fora questes referentes s

    particularidades da disciplina tal como praticada

    no

    pas, sua

    dependncia de paradigmas formulados

    no

    exterior e outros

    assuntos conexos, que exigem um tratamento diferente de um

    simples estado da arte .

    O que se entende p r

    etnologia

    brasileira ? Esta pergunta no se

    ~ f r aqui ao recorte emprico convencionado, mas define o

    objeto mesmo do presente artigo, que a idia de uma etnologia

    brasileira. Para responder a ela, ser necessrio tecer algumas

    consideraes sobre a natuz:eza e a qualidade da

    produo

    etnolgica nacional; no se trata, contudo, de apreciar substanti-

    vamente a contribuio dos estudos sobre os povos indgenas no

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    EDUARDO VIVEIROS DE CASTRO

    Brasil (ou mais precisamente, na Amrica do Sul teoria antro

    po1gica1. No se trata, tampouco, de uma sociologia

    do

    campo

    intelectual,

    ou

    de uma antropologia

    da

    antropologia. Esses

    mo-

    dos de anlise exigem talentos e gostos) que

    me

    faltam, e caberi

    am melhor a partes menos interessadas que eu. A embocadura

    escolhida de o u t ~ ordem, algo como uma 'epistemologia pol

    tica' da etnologia feita no pas, pois a idia de uma en:.ologia

    brasileira est na origem de

    uma

    ideologia da etnologia brasileira

    - uma ideologia brasileira da etnologia - cujas origens c implica

    es merecem uma discusso.

    Estarei aproveitando esta ocasio, portanto, para

    tomar

    par

    te e partido em um debate que polarizou grandes extenses

    do

    meio etnolgico nos ltimos trinta anos. A despeito de ter perdi

    do algo de sua pertinncia objetiva (ou talvez justamente por

    isso), esse debate no parece prximo de perder sua candncia

    poltica na academia nativa, ao contrrio do que eu acreditava e,

    no sem otimismo, previra (Viveiros de Castro, 1992, 1995, 1996a).

    Com efeito,

    um

    recente ataque etnologia americanista contem

    pornea (Oliveira

    P ,

    1998), em que se prope, entre outras teses,

    uma viagem de volta aos anos dourados da antropologia brasild

    ra - as dcadas de 50 e 60

    -

    levou-me a concluir que,

    se;

    o

    debate sobre a ethnology Brazilian style (Ramos, 1990a) pode

    no oferecer mais muito interesse, continua entretanto a revelar

    certos interesses.

    A

    GRANDE DIFERENA

    O debate a que estou me referindo ope duas concepes do

    o b j e ~ o

    da etnologia. Ele foi recentemente qualificado de ciso

    que evitamos abordar, na verdade um divisor de guas entre dois

    1. Algo que

    fh:, para aspectos especficos da produo na rea, em publica

    es anteriores; Viveiros de C : ~ s t r o 1992, t993a, 1993b, 1995, 1996a.

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    ETNOLOGIA BRASILEIRA

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    modos

    distintc.;

    de

    construir o conhecimento sobre

    as

    sociedades

    indgenas e o desenvolvimento social

    A.

    Lima, 1998: 263). Tal

    dso ou divisor distinguiria duas grandes vertentes dos estudos

    antropolgicos sobre populaes indgenas, sempre mencionadas

    pelos comentadores e classificadores da

    produo

    intelectual, e s

    vezes rotuladas de

    etnologia clssica

    e etnologia

    do cont lto

    lntertnico.

    Elas so assim caracterizadas pelo

    autor foc.

    cit.):

    Uma

    fa

    etnologia d:ssica] dept1rada

    de

    compromissos com a admi

    nistrao pblica, voltada puramente para o desvendamento das 'dimen

    ses internas' da vida dos povos indgenas; outra

    fa

    escola do contato

    intcrtnicoJ 'descendente' direta de preocupaes administrativas, via Darcy

    Ribeiro, Eduardo Galvo e Roberto Cardoso de Oliveira, em suas passa

    gens pelo

    SI'I,

    na presena em instlincias como o

    CNPI,

    voltada somente

    para o escudo das interaes com a 'sociedade nacional' etc.

    Lima hesita

    entre

    ver tal dicotomizao do

    campo como

    e..

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    EDUARDO VIVEIROS

    E

    CASTRO

    intertnico' tornou tal distino especialmente sensvel, e mesmo

    mais acentuada, com o correr dos anos.

    Em

    beneficio dos improvveis leitores no-etnlogos (ou

    distrados) deste artigo, esclareo que sou uma das encarnaes

    atuais da 'etnologia clssica' naquela instituio, e que

    por

    'vari

    ante fundamentaliSta' da outra tradio refiro-me ao trabalho de

    ]. Pacheco de Oliveira P e seus discpulos

    3

    . Estou ciente de que

    essa variante no

    se

    identifica mais com as teorias da s i t u a ~ o

    colonial' ou da 'frico intertnica', das quais, entretanto, reco

    nheceu-se recentemente caudatria (Oliveira F

    0 ,

    1998: 56). Ela

    privilegia agora conceitos como 'etnicidade', 'inveno da tradi

    o', 'territorializao' etc., e reivindica auto-definies mais va-

    gas e ambiciosas, como 'antropologia histrica' op. cit.: 69). Mas

    como a tal ttulo no faltam pretendentes de outras e muito di

    versas origens tericas, a maioria delas perfeitamente clssica,

    continuarei a me referir s variantes atuais daquela tradio pelas

    expresses genricas 'teoria

    do

    contato' ou 'escola contatualista'.

    Seria certamente bairrismo pretender que a ciso que evita

    mos abordar possua a mesma pregnncia ou salincia em escala

    nacional. Isto posto, o fato de

    ela

    se manifestar com mais vigor em

    certos contextos e perodos no a reduz a uma oposio puramen

    te local e conjuntural; e o fato de ser ideolgica no a torna uma

    oposio ilusria. Resta saber o que a dicotomia exprime efetiva

    mente, e quais

    as

    lies gerais que

    se

    podem extrair dela.

    Note-se a grande diferena que existe no estudo de grupos

    indgenas quando se os concebe como situados no Brasil, ou quando

    se os compreende como p rte do Brasil. Esta observao de

    Mariza Peirano (1992:

    73

    no indica apenas uma grande diferen

    a entre

    as

    muitas presentes em nossa disciplina; ela revda, a

    meu juzo, grande diferena ]Ue atravessa e organiza o campo

    3.

    qual se

    filia

    (mas com uma agenda prpria)

    A C.

    Souza Lima, o autor

    ora comentado.

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    ETNOLOGIA

    BRASil.EIRA

    3

    de estudos indgenas, cortando, por assim dizer, a prpria noo

    de etnologia brasileira' pelo meio: h os que ficam

    com

    o subs

    tanth:o, e

    h

    os

    que

    ficam

    com

    o adjetivo.

    A frmula de Peirano remete a seus fundamentos

    um

    dualismo

    que

    outros

    comentadores (e a prpria autora,

    em outros momen-

    tos) exprimiram de

    modo

    menos feliz, associando-o a polaridades

    classficatrias duvidosas: foco 11as 'dimenses internas' das socie

    dades indgenas

    ver;u r

    foco nos processos de contato intertnico',

    pesquisadores ''estrangeiros' vs 'nacionais', 'etnologia clssica'

    v r

    'etnolop;i::. engafada' e outras oposies semelhantes. Durante boa

    IJarte do perodo

    em

    exame, a grande diferena identificada por Peirano

    foi ativamente projetada sobre (e

    portanto

    ocultada por) essas

    po-

    laridades, no interesse da fabricao de uma imagem normativa da

    'etnologia brasileira': politizada,

    comprometida

    com a luta indge

    na, preocupada

    com

    a

    construo

    da sociedade nacional, a'lticolo

    nialista, processualista, materialista, histrica, dialtica e outras tantas

    virtudes.

    Do

    outro lado

    estaria

    uma

    certa antropologia metropoli

    tana e seus agentes nativos, mentalmente colonizados e

    portanto

    colonialistas, es

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    EDUARDO VIVEIROS DE. CASTRO

    a altemativa formulada

    por

    Peirano, fica mais claro o que est

    realmente em jogo.

    ROT O

    DE

    PERSPECTIV

    A grande diferena , disse eu acima, remete a uma estrutura

    de longa durao

    no

    campo etnolgico. Com efeito, ela havia

    sido claramente percebida, mais de quarenta anos atrs, por um

    dos fundadores da etnologia clssica no Brasil

    e

    que foi tam

    bm um dos inspiradores da etnologia

    o

    contato ). Florestan

    Fernandes, em um clebre artigo crtico, evocava as explic:aes

    histrico-culturais ento em voga sobre a colonizao e indicava

    uma alternativa de grande importncia para a trajetria ulterior

    da disciplina:

    A hiptese fde Gilberto Freyre] de que os fatores dinmicos do pro

    cesso de colonizao e, por consequncia, do de destribalizao, se inscre

    viam

    na

    rbita de influncia e de ao dos brancos, seria a nica etnografi

    camente relevante? No seria necessrio estabelecer uma rotao de pers

    pectiva, que permitisse encarar os mesmos processos do ngulo dos fato

    res dinmicos que operavam a partir das instituies e organizaes sociais

    indgenas? ([1956-57) 1975: 128).

    A p.:rtinncn dessas perguntas vai alm do desafio histri

    co que Florestan identificava: comp:eender a dinmica de im

    plantao do sistema colonial nos sculos iniciais da invaso eq

    ropia - mesmo porque tais processos no esto esgotados e, sob

    alguns aspectos

    a

    destribalizao ), no parecem caminhar na

    direo ento vista como inexorveL

    Vai

    tambm alm

    o

    desa

    fio

    intelectual com que Florestan se identificava: construir uma

    etnologia universitria relativamente autnoma frente s expecta

    tivas ideolgicas das camadas dirigentes - mesmo porque tal

    autonomia ser sempre, e

    por

    vezes muito, relativa. As perguntas

    so pertinentes porque elas indicam um dilema aparentemente

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    ETr.;OLOGIA BRASILEIRA

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    consubstanciai a uma disciplina cuja condio de possibilidade

    o fato da articulao histrica entre ndios e brancos.

    Ou

    bem a

    etnologia, consciente de que tal articulao um processo de

    dominao colonial, define seu objeto como constitudo histrica,

    poltica e teoricamente pela dominao, e

    portanto

    sua tarefa

    como sendo a de cartografar criticamente tal constituio (com

    os olhos em uma futura reconstituio menos desfavorvel aos

    ndios); ou oem, buscando a perspectiva das instituies e orga

    nizaes sociais indgenas , ela conclui que, longe de estarem

    unilateralmente englobadas pela situao colonial, essas estrutu

    ras tomam tal situao como um contextu de ifetuao entre outros,

    e assim a extrapolam de mltiplas formas, que cabe etnologia

    compreender

    (de

    modo

    a valorizar

    as

    possibilidades indgenas de

    'colonizao do colonialismo').

    Mas trata-se realmente de um dilema etnolgico? Ou ele

    no

    est,

    na

    verdade, iudicando a grande diferena

    entre

    o pon

    to de vista da antropologia e uma abordagem alheia ao manda

    t

    epistemolgico dessa disciplina? Pois a escolha, em ltima

    anlise,

    entre uma perspectiva centrada

    no

    p o

    colonial, uma

    soCiologia do rasil indgena

    (Cardoso de Oliveira, 1978) que toma

    os ndios como parte

    do

    Brasil, e uma perspectiva centrada no

    plo nativo, voltada para a construo de

    uma

    verdadeira

    socio-

    lo gia

    i11dgmct

    isto , uma antropologia dos ndios situados no

    Brasil. A alternativa clara: ou se tomam os

    povos

    indgenas

    como criaturas do olhar objetivante do Estado nacional, dupli

    cand?-se

    na teoria a assimetria poltica entre

    os

    dois plos;

    ou

    se

    buo ca

    determinar a atividade propriamente criadora desses

    povos na constituio do mundo dos brancos' como um dos

    componentes de seu

    prprio mundo

    vivido, isto ,

    como

    mat

    ria-prima histrica para a 'cultura cultura.nte' dos coletivos ind

    genas. A segunda opo parece-me a nica opo - se o que se

    desej.l fazer antropologia indgena.

    bvio que se podem

    estudar os ndios sob outras perspectivas; a antropologia no

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    EDUARDO VJVlllROS Dll. CASTRO

    tem direitos de exclusividade sobre essa ou qualquer outra fra

    o da humanidade. O problema s comea quando se pretende

    substituir globalmente a abordagem distintiva e a agenda varia

    da da etnologia por uma doutrina monoltica que toma o 'conta

    co

    intertnico'

    como

    pedra filosofa da disciplina.

    RE E FRICO INTERETNlOGIC

    A alternativa clara para mim; mas essa no , com certeza,

    a opinio dominante.

    Ao

    contrrio, estima-se que a principal

    caracterstica da antropologia brasileira , justamente, sua preo

    cupao com a sociedade nacional" (Crpeau, 1995: 142-143,

    que avaliza a observao com uma longa lista de autoridades).

    No caso dos estudos indgenas, isso significa que nossa antropo

    logia teria se distinguido por no dissociar a investigao dos

    grupos tribais do contexto nacional em que esto inseridos" (Car

    doso de Oliveira, 1988: 154, em Crpeau

    op r:it :

    143). Estamos

    falando, claro, da teoria

    do

    contato intertnico, que

    j

    se disse

    ser "che trademark of Brazilian ethnology" (Ramos, 1990a: 21),

    e mesmo "a contribuio terica mais original trazida at hoje

    pela antropologia brasileira" (Zarur, 1976:

    ;

    ver tambm Peirano,

    1998: 118-119).

    Mas, entre ser a principal caracterstica e ser a contribuio

    terica mais original,

    vai

    uma certa distncia. O que 'caracteris

    ticamente' brasileiro na antropologia brasileira pode no ser o

    que antropologicamente mais original, ou sequer mais caracte

    risticamente antropolgico. A frase de

    Crpeau, sobre a antropo

    logia brasileira em geral, neutra quanto a isso;

    j

    a de Cardoso

    quer nitidamente marcar um ponto a favor de nossa etnologia.

    Note-se, entretanto, a exata formulao da segunda: os 'grupos

    tribais' esto inseridos no contexto nacional Isto , eles so parte

    do

    contexto

    da sociedade nacional, 'inseridos' ('encapsulados', di-

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    ETNOLOGIA

    BRASILEIRA

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    ro outros)

    como

    esto em um contexto que os engloba e expli

    ca.

    Em

    troca, para a etnologia que concebe os ndios como situa

    dos

    no

    Brasil, se algo

    parte de alguma coisa, s pode ser o

    Brasil que parte das sociedades indgenas: parte, justamente,

    do

    contexto

    delas

    isto

    ,

    de

    sua

    situao histrica .

    Quando

    se

    estuda uma sociedade indgena, com efeito, preciso no se dei

    xar impressionar pelas evidncias da presena da sociedade colo

    nizadora, mas apreend-la a

    parr

    do contexto indgena em que

    ela est inserida e que a determina como tal.

    A concepo que, no justo dizer de Peirano,

    compreende

    os

    ndios como parte parte, ela prpria, antes de uma sociologia

    poltica (no limite, administrativa) do Brasil que da antropologia

    indgena. A extensa linha de investigao derivada dessa concep

    o trouxe; aportes preciosos para o entendimento dos processos

    de sujeio das sociedades indgenas pela sociedade invasora - o

    que aumentou, em particular, nossa compreenso desta ltima,

    enriquecendo a historiografia e a sociologia nacionais. Por outro

    lado, suas contribuies ao conhecimento antropolgico das so

    ciedades indgenas situadas

    no

    pas estiveram e esto, a

    meu

    juzo, algo aqum do que sua importncia ideolgica na acade

    mia nacional permitiria esperar. Isso especialmente problemti

    co em vista da aspirao dessa etnologia caracterstica , manifes

    tada

    por

    algurs de seus representantes atuais, a se constituir em

    abordagem exc;lusva e excludente, a nica epistemolgica e poli

    ticamente orreta, chegada para desqualificar uma viso suposta

    mente traaidonalista, cega

    realidade avassaladora da

    construo

    do

    objeto

    ndio pelo dispositivo colonial e, por seu brao acad

    mico, a etnologia clssica)

    5

    5. Gostaria de advertir que no estou incluindo Roberto Cardoso de Oliveira

    na lista dos 9ue vem a etnologia do contato como a nic abordagem

    admissvel para a etnologia brasileira.

    Ao

    contrrio, Cardoso sempre mos

    trou l : ~ r g u e 7 : t de vistas e curiosidade terica. Alm disso, embora eu tenha

    discordncias de fundo com o modo pelo qual tanto Darcy Ribeiro

    de

    que

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    Estamos,

    ao 9ue parece, diante de uma

    contradio

    irredutvel' entre duas concepes

    do

    o j e t ~ da etnologia, to

    irredutvel quanto

    as

    contradies intertnicas famosamente ana

    lisadas

    por

    Roberto Cardoso.

    Como

    nestas, h o lado

    dos

    ndios

    e h o lado dos brancos, entenda-se: o ponto de vista dos

    povos

    indgenas e o ponto de vista do

    Estado

    nacional Esses so os dois

    atratores conceituais que polarizam a idia de etnologia brasilei

    ra. (Um

    ponto

    de vista, advirta-se, no uma 'opinio', e muito

    menos uma 'representao' parcial de uma

    realidade-

    intertnica,

    no

    caso - da qual apenas o observador cientfico teria uma

    viso

    globaiY

    Entre

    os dois pontos de vista no h mediao possvel,

    pois se trata aqui de uma oposio hierrquica, para falarmos

    como Dumont,

    onde o que est em disputa o lugar de valor

    conceitual dominante. (No que no haja uma 'viso global',

    portanto; que h duas: cada ponto de vista perfeitamente

    global.) A questo a de decidir o que o contexto de que, e,

    reciprocamente, quem est 'inserido

    no

    contexto

    de quem.

    Esse

    dualismo

    no

    , portanto, o resultado perverso de uma

    postura dualista e reducionista'.

    intil dizer gue os estudos de

    contato intertnico levam em conta (espera-se ) a 'viso indgena'

    - pois o gue est em jogo a visada do etnlogo, a partir da qual

    a viso indgena pode dar a ver coisas muito diversas. No adian-

    falarei adiante) como Roberto Cardoso viam ou vem o objeto da etnologia,

    no

    m.::

    passaria peJa cabea minimizar suas contribuies decisivas a nossa

    disciplina e causa indgena no Brasil. Darcy foi o principal responsvel

    por uma maior conscientizao das camadas urbanas e das elites dirigen

    tes) do pas quanto situao indgena; 'Cardoso,

    por

    sua vez, no s

    modernizou amplos setores da prtica e da reflexo etnolgicas, difundin

    do um ideal de trabalho cientfico na rea, como foi o fundador da ps

    graduao em antropologia social no pas. Meu 'problema' com a captura

    hegemonizante que seus sucessores e discpulos realizaram da idia

    de

    u m ~ etnologia brasileira, inventando uma 'boa' tradio - que,

    paradox111

    mente, pretende-se 'no-tradicional', em oposio ao 'tradicioM.lismo' da

    tradio alheia.

    6. Sobre a 'viso global', ver Oliveira

    F ,

    1988:

    59

    n.33.

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    1

    ta

    tamcm argumentar que o contato intertnico gera

    uma

    'estru

    tura u n i f i c ~ d a (ou, quem sabe, um 'campo situaciona1') em que

    as instituies coloniais so parte do mecanismo de reproduo

    das instituies nativas.

    Se

    no h dualismo, ento por que se fala

    em

    'instituies coloniais' e 'instituies nativas' (Oliveira F

    0

    ,

    1988: 10)? Se h contato intertnico, preciso que haja algo em

    contato: e nada mais substancialista e naturalizante que a fsica

    ingnua do contato e da 'frico', que no melhora tanto assim

    quando se a substitui pela metfora igualmente fisica do 'cam

    po'7. Mas se,

    como

    penso, no existe esse objeto chamado contato

    interitnico ,

    porque no h

    outro modo

    de contar a histria seno

    do

    ponto

    de vista de uma das partes.

    No

    existe o

    ponto

    de vista

    de Sirius: r1 h 'situao histrica' fora da atividade situante

    dos agentes. O problema, portanto, com a 'grande vertente' da

    etnologia contatualista no

    ,

    como Lima supe que se supe,

    que ela esteja voltada somente para as interaes com a 'socie

    dade nacional ' (cf. supra), mas sim que ela est voltada para

    as

    sociedades indgenas partir

    do

    Estado nacional, pois nesse

    plo que ela fixou a perspectiva.

    No

    limite, alis, poder-se-iam

    dispensar as sociedades indgenas e suas 'interaes' com a socie

    dade nacional, ficando s com esta ltima e suas 'construes'

    das sociedades indgenas.

    igualmente equivocada uma outra alegao usual contra a

    etnologia no-contatualista: a de que

    ela

    operaria com uma dis

    tino entre aspectos internos e externos, privilegiando

    as

    'di

    menses internas' dos coletivos indgenas devido a uma paixo

    pr-cientfica pela

    inferioridade

    (Oliveira

    P

    1988: 27). Aqui talvez

    valha a pena explicar que a preocupao da etnologia no

    contatualista

    contempornea-

    melhor cham-la apenas de antro

    pologia indgena- no com as 'dimenses internas' da vida dos

    7 Os crticos do modelo narurali7.:;tdo de socied1de' no se privam de meti

    for:.s naruralistns -

    ns

    mais em moda atualmente siio hidrulicas: fluxos,

    correntes etc.

  • 7/24/2019 Viveiros de Castro e. Etnologia Brasileira

    12/115

    12

    EDt.;ARDO VIVI'.IROS DE CASTRO

    povos indgenas. Em primeiro lugar porque, ao contrrio do que

    parecem crer Oliveira ou Lima, seus praticantes no consideram

    que

    as

    dimenses

    externas,

    tal como so determinadas pelos di

    versos regimes sociocosmolgicos indgenas, sejam a

    mesm:l coi

    sa que a sociedade nacional - isso seria muita presuno

    etnocntrica.

    Em

    segundo lugar porque, uma vez fixada a pers

    pectiva no plo indgena, tudo

    interno

    a l inclusive a 'socieda

    de envolvente'. Todas as

    relaes so internas, pois uma socieda

    de no existe antes e fora das relaes que a constituem, o que

    inclui suas relaes com o 'exterior'.

    Mas

    essas relaes que

    a

    constituem s podem ser as relaes que ela constitui 0 contato

    intertnico , disse um desses autores,

    { ..] um fato constitHiivo,

    que preside prpria organizao interna e ao estabelecimento

    da identidade de um grupo tnico (oft. cit.:

    58;

    grifas originais).

    O problema saber qtte JJ o o n s t i t u ~ pois no h fatos sem algum

    que os faa. Fatos constitutivos so fatos constitudos

    8

    Dizer que

    o fato intertrco

    preside

    prpria organizao interna - mas

    ento

    h

    um 'interno'? - de um coletivo humano tom-lo come

    um fato transcendente, como princpio causal superior e exterior a

    uma organizao que ele explica mas que no o explica

    e

    muito

    menos o 'compreende'). O ponto de vista que o constitui, portan

    to, est situado fora da 'organizao interna' do grupo: o fato

    constitutivo da organizao indgena no constitudo

    por

    ela.

    A crtica suposta nfase clssica nas dimenses internas

    das sociedades indgenas deriva assim de uma concepo que

    converte o fato da dominao poltica em princpio de governo

    ontolgico. O interior 'presidido' pelo exterior- e este ltimo

    visto como autocon.rtitudo. Enquanto a antropologia indgena toma

    o 'exterior' e o 'interior' como dimenses simultaneamente cons-

    8.

    Como diria Bachelard,

    /es

    faits

    .ronlfail.r

    at mesmo os 'fatos constitutivos'.

    E eles no so feitos s pelo analista,

    mas

    tambm pelos agentes que eles

    'fa?.em'.

    Ou

    ser que os partidrios da abordagem processualista do conta

    to acreditam em fatos sem fazedores e

    n

    processos sem sujeito?

  • 7/24/2019 Viveiros de Castro e. Etnologia Brasileira

    13/115

    I . T ~ O L O G I A

    IIRASILP.IR,\

    121

    ritudas por um processo indgena de constituio que no tem

    nem dentro nem fora - anterior como ele a essa distino a

    que

    ele

    preside e, portanto, exterior a si mesmo

    -

    a sociologia

    poliricista do contato intertnico, ao tomar

    ambos

    como dimen

    ses de um dispositivo colonial que engloba

    do

    exterior a reali

    dade indgena, v-se forada a contra-reificar

    no

    plano conceitual

    uma dimenso subordinada do interno .

    (S

    acredita em dimen

    ses internas quem no

    as

    leva a srio, portanto; ou vice-versa.)

    Finalmente, pode bem ser que o fato intertnico presida

    orga

    nizao de um grupo tnico ; mas nem toda sociedade indgena

    um grupo tnico, nem todo grupo tnico o tempo todo um

    grupo

    tnico, e nenhum

    grupo

    tnico

    apenas um grupo tnico.

    A reduo dos multiformes

    e

    multi-situados coletivos indgenas

    situao uniforme

    de

    grupo tnico , tornada

    norma do

    objeto

    etnolgico,

    uma das conseqncias de se tomar esse fato constitu

    tivo particular, que

    o fato intertnico, como sendo

    o

    fato cons

    titutivo geral: a razo, em todos os sentidos da palavra, da exis

    tncia social de. tais coletivos. E o contato intertnico acaba as

    sim

    ~ i r a n d o ,

    para usarmos Jma expresso cara

    escola

    contatualista, um obstculo epistemolgico .

    Ao criticar a etnologia

    c l ~ s i c a

    po "

    privilegiar o interior

    dos coletivos indgenas, Oliveira

    F

    e Lima parecem,

    em

    suma,

    fazer uma confuso entre uma

    metqfl.rica

    da inferioridade e uma

    O Jtologia

    das relaes i11tema.r. Esta ltima caracteriza vrias aborda

    gens antropolgicas anti-empiristas, no devendo nada, diga-se

    de passagem,

    dualidade sociedade indgena/sociedade algena

    9

    9. Ver,

    por

    exemplo, o comentrio de A. Gell (1995) sobre Thtgendtr j thtgift

    (Sttathern, 1988), um dos livros de maior impacto sobre a antropologia

    contemporna. Essa ontologia das relaes internas pode ser classificada

    e idealista em oposio concepo empirista das relaes externas,

    como fa?. Gell; mas o marxismo tambm j

    foi

    assim eloquentemente

    interpretado (OIIman 1976,

    cap. 3:

    The philos0phy

    of

    internai relations ).

    Para um bom desenvolvimento filosfico desta posio, ver

    G.

    Simondon

    (1964).

  • 7/24/2019 Viveiros de Castro e. Etnologia Brasileira

    14/115

    122

    omo

    essa filosofia das relaes internas no

    se

    confunde, justa

    mente, com nenhuma fantasmtica substancialista da interioridade,

    pode-se tanto dizer que tudo interno

    sociedade indgena estu

    dada, inclusive a sociedade colonial, como dizer que

    tudo lhe F

    externo

    inclusive

    as-

    fontes nativas

    de

    instituio cosmolgica do

    socius

    10

    Na

    verdade, tal imaginrio da interioridade autctone pa

    rece persistir principalmente

    no

    seio da teoria do contato, onde

    ele

    faz as

    vezes de espantalho que

    se

    precisa exorcizar como

    preldio a uma anexao discursiva das sociedades nativas

    pdas

    dimenses, agora sim,

    internas

    da sociedade nacional: pois apenas

    esta, na medida em que

    se

    encontra unificada e representada

    por

    um Estado, exige e estabelece uma verdadeira interioridade me

    tafsica (Deleuze Guattari, 1980: 445). E

    por

    falar em mitos de

    interioridade, recorde-se que no foram propriamente os etnlogos

    clssicos que inventaram essa contradio em termos, a noo de

    co/o11ialis11to iutento ,

    nem que a aplicaram aos estudos de frico

    intertnica.

    INVENO D TR DI O

    Mas retomemos a representao dualista da etnologia bra

    sileira a partir de uma verso ao mesmo tempo mais explcita e

    menos polemizante. Alcida Ramos, ern um artigo significativa-

    1

    O

    Ver,

    por

    exemplo,

    as

    consideraes de Viveiros de Castro (1986) sobre os

    Arawct com

  • 7/24/2019 Viveiros de Castro e. Etnologia Brasileira

    15/115

    123

    mente intitulado

    Ethnology

    Brazilian style ,

    apresenta

    a uma

    audincia norte-americana as contribuies brasileiras

    etnologia,

    destacando

    duas perspectivas

    (1990a: 14) influentes

    em

    nos-

    sa academia. importante registrar que A. Ramos no

    v

    as

    duas

    perspectivas

    como

    opostas,

    mas apenas

    como

    distintas;

    e

    de

    fato, a prpria autora deu contribuies importantes para

    ambas as linhas

    A primeira perspectiva representa, groJso modo o que vamos

    aqui chamando

    de

    'etnologia clssica'. Ainda que

    devendo

    algo

    aos trabalhos pioneiros de

    Nimuendaju

    ou Baldus, diz Alcida

    Ramos, ela derivaria diretamente dos estudos

    sobre

    os povos

    J,

    realizados

    no

    mbito

    do

    Harvard-Central Brazil Project,

    coorde-

    nado

    por

    D. Maybury-Lewis, que reuniu quatro etngrafos ame

    ric:mos Lave,]. Bamberger, T. Turner e J C Crocker) e dois

    brasileiros (R. DaMatta

    e]. C

    Melatti). A autora v nas pesquisas

    desse grupo, cujo pico de atividade se deu

    no

    final dos anos 60

    12

    ,

    a origem de uma temtica depois desenvolvida

    por

    pesquisado

    res como

    M.

    Carneiro

    da

    Cunha,

    A

    Seeger e E. Viveiros

    de

    Castro

    sobre

    as

    concepes

    de

    pessoa e

    de

    corporalidade

    pr-

    prias s sociocosmologias indgenas. Ela indica brevemente a co

    nexo dessa linha

    de

    investigao com algumas questes tericas

    da

    poca, notadamente

    com

    o consenso estabelecido no

    Con-

    gresso de Americanistas de 1976 (Overing Kaplan, org., 1977)

    11. Como foi o caso de muitos antroplogos de sua coorte geracional, influen

    ciados pelo modelo cardosiano

    da

    frico mas que tiveram uma formao

    'clssica' no exterior (Aicida Ramc s R. DaMatta) ou que simplesmente

    eram bons etngrafos. O artigo

    de

    Alcicla Ramos no pretende exaurir a

    produo etnolgica, e seu uso ilustrativo das duas linhas de pesquisa

    apia um certo nmero de teses substantivas de que trataremos mais adi

    ante. Cito o artigo na paginao da edio brasileira (em ingls) aparecida

    na 'Srie Antropologia'

    da

    UnB; no tenho comigo a verso publicada na

    CHII rttl 1 z t h m p o l ~ f J ' , no mesmo ano.

    12. A publicao cof)junta dos resultados do Harvard-Cemral Brazil Project

    d e u ~ e

    apenas em 1979 (Maybury-Lewis, org., 1979).

  • 7/24/2019 Viveiros de Castro e. Etnologia Brasileira

    16/115

    124

    EOlJ RDO VIVIiiROS OE C STRO

    sobre a necessidade de se buscar uma nova linguagem para des

    crever

    as

    sociologias amaznicas. Alcida Ramos evoca,

    por

    fim,

    os numerosos desdobramentos contemporneos dessa perspecti

    va em plena expanso, da arte ao ritual,

    do

    parentesco ao caniba

    lismo, do corpo

    c.osmologia (Ramos, 1990a: 14-16).

    A segunda perspectiva ilustrada exclusivamente por nomes

    nacionais, e recebe maior ateno da autora: trata-se da tradio

    contarualista op. cit.: 16-22).

    A

    Ramos comea por sublinhar a

    preocupao desde cedo manifestada pela etnologia brasileira em

    documentar os mecanismos de dominao tnica e a tran'sforma

    o das sociedades indgenas "from self-sufficient units to help ess

    appendages

    of

    the national powers". A autora mostra como essa

    preocupao nacional (que ela contrasta com a 'etnografia do

    rescaldo' prpria da antropologia indgena norte-americana)

    j

    se

    percebia nas pesquisas sobre aculturao iniciadas nas dcadas de

    40-50 em So Paulo. A abordagem aculn1rativa seria reformulada

    pelas figuras-chave da etnologia brasileira das duas dcadas se

    guintes, Darcy Ribeiro e R Cardoso de Oliveira, ambos egressos

    do meio acadmico paulistano, mas que iro transferir para o

    io

    de Janeiro o centro de gravidade da disciplina. Alcida Ramos suge

    re que a "markedly nationalist phase of Brazilian history'' em que

    se deu a formao desses autores influenciou os rumos que eles

    imprimiram

    etnologia. Assim, Darcy Ribeiro teria vindo p o l i t i : z ~ r

    em vrios sentidos, a problemtica formalista da aculturao, de

    nunciando o etnocdio que se escondia sob esse rtulo neutro,

    inserindo-o no guadro da expanso diferencial da fronteira econ

    mica nacional e prevendo a extino sociocultural dos povos ind

    genas, em um livro de enorme impacto

    Os ndios e civilizao).

    Acrescente-se a isso um engajamento ativo no Servio de Proteo

    aos ndios, onde Darcy Ribeiro iria se definir como continuador da

    obra de Rondon e formular uma teoria governamentalista do

    'indigenismo', de grande influncia sobre a problemtica latino

    americana de mesmo nome. Roberto Cardoso, por sua vez, viria a

  • 7/24/2019 Viveiros de Castro e. Etnologia Brasileira

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    125

    romper com o paradigma aculturativo ainda subscrito por Darcy

    Ribeiro Gunto a quem trabalhou no SPI). Inspirado na noo de

    'situao colonia:l , extrada da sociologia africanista de Balandier,

    Cardoso de Oliveira deslocou o foco analtico da cultura para as

    relaes sociais, ao

    propor

    o conceito de frico intertnica.

    Se

    Darcy Ribeito poltizou a aculturao, Cardoso

    de

    Oliveira a

    sociologizou, lanando mo de uma paleta ecltica de referncias,

    do marxismo

    etnocincia, do estruturalismo

    fenomenologia.

    Mais tarde, ele iria migrar da problemtica da 'frico' para a da

    'identidade', e depois para a da 'etnicidade' - ern um percurso

    repetido por vrios de seus discpulos-, sem abandonar a questo

    geral do contato intertnico

    13

    Como bem diz Alcida Ramos, Cardoso de Oliveira's

    influence on Brazilian anthropology cannot be overemphasized"

    (p.

    22). Embora tenha tido, como seu antecessor, uma expressiva

    participao no campo do indigenismo latino-americano, toman

    do assento em organismos internacionais e escrevendo textos

    programticos sobre a 'questo indgena', a influncia de Cardo

    so de Oliveira sobre a antropologia deu-se essencialmente no

    plano universitrio. Fundador c condutor de instituies, refern

    cia intelectual central

    e pelo menos duas geraes de antroplo

    gos, foi graas sua atividade que o

    cem2.

    do contato intertnico

    was-definitely established

    as

    a tradernark of Brazilian ethnology. For

    the e ~ r part o f three decades, rnany students o f indigenous societies h ave

    been stimulated by Cardoso de Oliveira and have taken to the field one or

    another version

    of

    his rnodel

    of

    interethnic friction (pp.

    21-22 .

    O estilo brasileiro de etnologia

    de

    que fala o artigo ,

    portanto, associado pela autora a essa segunda perspectiva: trinta

    13.

    Em sua produo

    mais

    recente sobre as 'antrorJo ogias perifricas', Cardo

    so de Oliveira continua de certo ~ o o tematizando a 9uesto do 'contato',

    s

    CJUC

    agora no

    mais

    no plano dos ndios, e

    sim

    dos antroplogos.

  • 7/24/2019 Viveiros de Castro e. Etnologia Brasileira

    18/115

    126

    anos de contato intertnico tornaram o tema a 'nossa' marca

    registrada. Que marcou, alis, mais que a etnologia propria

    mente dita: como mostra Akida Ramos, a questo do contato

    logo se articulou questo da 'fronteira' e do 'campesinato',

    estando na origem da linha de estudos rurais desenvolvida

    no

    Museu Nacional e alhures. Com efeito, acrescento, assim como

    a sociologia do contato buscara instrumentos

    de

    compreenso

    e de explicao da realidade tribal, vista no mais m

    si

    mas em

    relao

    sociedade envolvente (Cardoso de Oliveira, 1967:

    187), a sociologia do Brasil rural a ela associada iria criticar, em

    termos muito semelhantes, as abo.r;dagens 'culturalistas' dos es

    tudos de comunidade produzidos nas dcadas anteriores: estes

    desdenhariam a histria, no veriam a realidade como 'proces

    so', isolariam a comunidade

    do

    contexto ou sistema

    poltico-

    econmico mais amplo etc.

    14

    Comentemos a apresentao das duas perspectivas por

    Alcida Ramos. Observe-se, de sada, o carte:: notavelmente

    desequilibrado dos respectivos temrios: de um lado, o contato

    intertnico; de outro, a pessoa e a corporalidade, mas tambm o

    parentesco, a organizao sociopoltica, o xamanismo, a mitolo

    gia, o ritual ... - e, acrescente-se, o contato intertnico. Na ver

    dade, o discurso terico sobre o contato, nos termos em que ele

    foi articulado pela escola que vamos chamando por esse nome,

    no chegou a contribuir significativamente para a compreenso

    dos fenmenos e dimenses estudados pela 'outra' etnologia

    15

    .

    14. Mas, assim como algumas das monografias etnogrficas resultantes da en

    to nova perspectiva friccionista e situacional se desatualizaram mais rapi

    damente gue os estudos inspirados nas abordagens 'clssicas', assim tam

    bm os estudos de comunidade das dcadas de 40 e 50, com todos os seus

    defeitos, continuam a valer a pena ser lidos.

    15 Como di7. Ortnet' dos anlogos estrangeiros do contatualismo: The accounts

    procluccd from such a pcrspective are oiten l]Uitc unsatisfactory

    in

    terms

    o

    tradtional anthropological concerns: the actual

    o r g a n i ~ a t i o n

    and culture

    of

    the society

    n

    lJUCstion

    (1984: 143).

  • 7/24/2019 Viveiros de Castro e. Etnologia Brasileira

    19/115

    127

    Esta, em troca, veio a incorporar o tema do contato em sua

    agenda, aprofundando uma orientao de que

    j

    se podiam ver

    sinais desde o incio dos anos

    70

    Note-se tambm que o esquema de A Ramos, ao projetar

    tematcamente a

    dso

    que evitamos abordar', procede a uma

    reduo de um esquema tripartite tradicionalmente utilizado nos

    sobrevos da etnologia brasileira. Refiro-me classificao, pro

    posta por Florestan Fernandes e seguida por vrios comentadores,

    que indexava

    as

    pesquisas etnlogicas sob

    as

    rubricas: 'organiza

    o social e poltica'; 'religio e mitologia'; e 'mudana cultural'

    ou s o ~ i a i

    d e p o i ~

    'frico intertnica e e.-nicidade')

    16

    No

    arranjo

    de Alcida Ramos, os dois primeiros temas esto contidos dentro

    da primeira perspectiva. Isso corresponde, a meu ver, a algo real:

    a dcada de

    70

    viu ruir a barreira entre 'sociedade' e 'cultura',

    'instituio' e 'representao', que justificava a diferenciao en

    tre aqueles temas (O vering Kaplan, 1977; Viveiros de Castro,

    1986; Riviere, 1993). O

    fim

    dessas distines tradicionais, que

    podem ser lidas em sentido tanto funcionalista quanto marxista,

    deve-se

    influncia fundamental de uma figura que o texto de

    A

    Ramos s menciona de modo muito alusivo. Estou-me referindo,

    naturalmente, a Lvi-Strauss, cuja antropologia tinha como trao

    distintivo the eradication of the Durkheimian discinccion between

    the social 'base-' and the cultural 'reflecdon' of it (Ortner, 1984:

    137). A presena do estruturalismo

    na

    etnol.Jgia americanista ser

    comentada adiante.

    De

    seu lado, a escola

    do

    contato ensaiou alguns passos

    no sentido de articular os temas da organizao social e da

    mudana. Mas ela o fez ao preo de uma exacerbao daquela

    16 Fernandes [1956-1957) 1975: 144ss.; Baldus 1968: 21; Schaden,

    1976:

    8-9;

    Melatti,

    1983:

    35-45. Outros comentrios modificaram ligeiramente o es

    q u m ~ tripartite, introdu:ndo os tcrr.as das 'rebc:s com

    J

    ambiente' e os

    estudos

    de

    arte e tecnologia material (Seeger Viveiros

    de

    Castro, 1977;

    Melatt, 1982).

  • 7/24/2019 Viveiros de Castro e. Etnologia Brasileira

    20/115

    128

    EDUARDO VIVEIROS DI\ CASTRO

    distino entre o 'social' e o

    cultural -

    no interesse, claro, do

    primeiro conceito - que j havia sido erradicada pelo estrutura

    lismo. Ela revelava com isso sua dependncia de um estrato

    mais arcaico do campo terico, no qual se defrontavam o

    'culturalismo' norte-americano e os vrios 'funcionalismos' bri

    tnicos. A sociologa do contato contempornea permanece presa

    a essa dicotomia, e sua dileo

    por

    autores como Gluckman e

    Barth remonta cruzada anticulturalista

    (e

    pr-estruturalista)

    das dcadas de 50 e 60, a 'poca de ouro de 'nossa' etnologia.

    Confrontados

    mais tarde

    com

    a

    ecloso

    de

    um vigoroso

    culturalismo poltico indgena,

    os

    contatualistas se vero obri

    gados a readmitir a detestada noo de cultura - residual mas

    irredutvel, advertira Carneiro da Cunha (1979) - pela porta

    dos fundos, isto , disfarada de 'etnicidade', e

    tambm

    a

    reinvidicar alguns ps-tudlogos

    afterologists,

    diria Sahlins) egres

    sos da tradio norte-americana

    17

    Do

    lado da 'etnologia clssica',

    reunio dos dois primeiros

    temas da tripartio tradicional, ocorrida na dcada de 70, se

    guiu-se, na dcada de 80, a incorporao do tema da 'mudana'.

    A inspirao para esse movimento veio de Marshall Sahlins, que

    em um opsculo publicado

    ep1

    1981 reformulou de um golpe a

    questo das relaes entre estruturas socioculturais e transforma

    o histrica, oferecendo finalmente ao tema do 'contato intert

    nico' uma possibilidade de

    interpreta

    antropolgica. O exem-

    17.

    No

    caso especfico de Roberto Cardoso,' observe-se que seu trabalho

    foi

    mostrando uma influncia crescente das abordagens hermenuticas, o. que

    sugere um retorno quela problemtica da 'cultura' que ele havia contribudo

    para afastar do horizonte da sociologia do contato. Esse deslocamento

    posterior

    fase

    propriamente 'indgena' do :tutor; mas

    ele j

    estava prefigurado

    na passagem

    da

    teoria da 'frico' ao fenmeno da 'identidade tnica' defini

    do como relevando do domnio do ideolW,co (Cardoso de Oliveira,

    1976:

    xi-ss.). Foi assim que a cultura comeou a reingressar na teoria

    do

    contato:

    como ideologia (nada de tipicamente brasileiro nisso; ver Ottner, 1984: 140).

    A etnicidade

    foi

    o retorno

    da

    cultura como metarrepresentao.

  • 7/24/2019 Viveiros de Castro e. Etnologia Brasileira

    21/115

    ETI OLOGJA llRASILEIRA

    129

    pio de Sahlins

    veJO

    desestabilizar de vez a polaridade, j ento

    precria, entre as etnologias da tradio e da mudana. Tal

    desestabilizai?.o se reflete nos pargrafos finais do artigo de Alei da,

    em que a autora registra muito rapidamente o surgimento

    do

    que

    seria uma terceira perspectiva na etnologia brasileira, a saber, o

    interesse crescente pela etna-histria

    op. cit.:

    25). significativo

    que, dos poucos autores que ela cita aqui, a maioria pertena ao

    contexto acadmico paulista; interessante tambm observar que

    esta maioria

    -e

    isso ficaria ainda mais claro na abundante produ

    o sobre histria indgena, contempornea ou posterior data

    do artigo

    -

    esteja teoricamente identificada antes com paradig

    mas da etnologia clssica que

    com

    o contatualismo

    18

    A implan

    tao paulista dessa terceira perspectiva parece-me significativa

    por

  • 7/24/2019 Viveiros de Castro e. Etnologia Brasileira

    22/115

    130

    EDC,\RDO VIVHIROS D iCASTRO

    brasilidade, confiando em que esta seria antes a conseqncia

    que a causa de seu fazer etnolgico.

    Os comentrios de Alcida Ramos sobre a carreira e obra de

    Darcy Ribeiro e Cardoso de Oliveira pedem adendos. A politizao

    do tema da aculturao efetuada

    por

    Darcy Ribeiro estava associa

    da a dois componentes de sua personalidade terica: de um lado, a

    fascinao pelos esquemas grandiosos do neo-evolucionismo ame

    ricano (apimentado, diz a autora, por uma certa "marxian

    indinaton"), o qual se constituiu em ruptura com o paradigma

    boasiano dominante nos estudos de aculturao; de outro, a deci

    so de inserir a problemtica indgena assim redefinida no quadro

    das

    'teorias do Brasil' formuladas na dcada de

    30.

    Isso o levou

    :a

    escrever uma srie de amplos panoramas histrico-culturais de pouca

    repercusso acadmica (mas ver, infra

    A

    marca nacional'). Darcy

    Ribeiro props-se,

    na

    verdade, a ser um Gilberto Freyre indgenista

    e de esquerda, que iria recontar a formao

    d:

    nacionalidade a

    partir do duo europeu-indgena

    (e no do europeu-africano). Sua

    preocupao ltima era com 'o ndio' como ingrediente-chave da

    mistura sociocultural brasileira, e sua visada poltica era o naciona

    lismo de Estado, corno o mostra sua identificao com Rondon

    nos tempos do SPI e sua carreira pblica posterior.

    A ruptura de Roberto Cardoso com a tradio da aculturao

    seguiu caminhos diversos, mas no inteiramente. O conceito de

    frico intertnica deve tanto a Balandier quanto ao modelo das

    relaes raciais de Florestan Fernandes, professor de Roberto Car

    doso. Como observa Matiza Peirano, a etnologia de

    R.

    Cardoso

    marcada

    por

    um dilogo terico com os estudos sobre relaes

    raciais e no com os

    Tupinamb

    ";

    as

    monografias indgenas de

    Florestan Fernandes no podiam assim "servir de inspirao para

    a

    abordagem

    que caracterizou a antropologia indgena no Brasil (1992:

    73-74; grifo meu)

    20

    Se Darcy Ribeiro foi o Gilberto Freyre

    20.

    Se

    Florestan Fernandes antecipou a tese da grantlt tliftrm;a entre os 'ndios

    situados no Brasil' e os 'ndios parte do Brasil', no possvel identificar

  • 7/24/2019 Viveiros de Castro e. Etnologia Brasileira

    23/115

    ETNOJ.OGIA llRASll.li Ri\

    131

    indigenista, Roberto Cardoso, de certa maneira, tambm ps o

    ndio no lugar do

    negro-

    s que nos termos 'classistas'

    de

    Florestan

    Femandes, no nos racialistas do sodlogo pernambucano. A etnia

    foi

    vista como um anlogo da classe social: a frico intertnica era

    o

    equivalente lgico

    ...

    do

    que os socilogos chamam de 'luta de

    classes"' (Cardoso de Oliveira, 1978: 85). Esse enquadramento

    dos povos indgenas no esquema das relaes raciais e da luta de

    classes, em que pese sua bem-vinda radicalidade interpretativa,

    enraizou ainda mais firmemente a etnologia em uma 'teoria do

    Brasi1'

    A outra matriz terica direta da sociologia indigenista

    de

    Roberto Cardoso foi,

    como

    se sabe, a 'tecria

    da

    dependncia' de

    Gunder

    Frank, Stavenhagen e outros menos votados, que utiliza

    va

    o n;J,esmo modelo da luta de classes para pensar

    as

    relaes

    irternacionais. A escola do contato iria se articular diretamente

    com as discusses da poca sobre a troca desigual, o colonialis-

    simplesmente suas monografias tupinamb primeira concepo. Como

    observa

    Mari?.a

    Peirano, os ndios de Florestan Fernandes eram, digamos

    assim, anteriores a

    tal

    distino: "os Tupinamb no foram construidos

    como objeto em termos de um grupo distinto lit do em territrio brasilei

    ro, eles tr mo Brasil de 1500" (Peirano, 1992: 74). Mas h de se convir que

    entre ser metaforicamente todo

    o Bmsil,

    como neste

    caso, e s-lo

    metonimicamente, como no caso da viso contatualista,

    vai

    sempre uma

    grande diferena.

    21. A formatao da 'questo indgena' nas linhas

    da

    'questo racial' talve7.

    posu

    tambm ser interpretada como uma estratgia de enobrecimento

    poltico da primeira, dando-lhe uma visibilidade e u m ~ pungncia de que

    ela no

    .-.l::sfrutava.

    Observe-se que o papel paradigmtico desempenhado

    pelas r e l ~ i k s raciais (entenda-se, negros/brancos) dentro

    do

    imaginrio

    terico da etnologia

    do

    contato

    foi

    herdado por sua prognie, s que agora

    o circulo est-se fechando: a sociologia indgena derivada do esquema das

    relaes raciais comea a servir de modelo para se pensar os 'remanescen

    tes-emergentes' de quilombos, e a 'etnicidade' que vem sobredeterminar

    as relaes de classe (Arruti, 1997 . .Jo sei se antropolcgia das 'popula

    es' afro-brasileiras precisa mesmo desse aporte enviezado,

    ou

    se ela

    j

    no est bem mais adiante, como atestam alguns trabalhos admirveis

    (Ma1celin,

    1996 .

  • 7/24/2019 Viveiros de Castro e. Etnologia Brasileira

    24/115

    132

    EDU RDO VIVEIROS

    DH

    C STRO

    mo

    'interno',

    as famigeradas 'formas

    de

    transio' ao capitalismo

    etc.

    22

    .

    Negros,

    ca:nponeses,

    o

    'Brasil':

    tais

    foram

    as

    fontes

    analgicas utilizadas pela escola

    do

    contato

    para

    pensar

    a "reali

    dade tribal"; para pens-la, isto

    , no

    mais em

    si,

    mas em rela

    o sociedade envolvente", como disse

    Cardoso

    de Oliveira.

    Essa

    oposio entre tomar a 'realidade tribal' em si ou em

    relao

    sociedade envolvente reveladora: aquela realidade 'em si'

    aparece como substncia, e no como complexo imediata e intrin

    secamente relaciona ; e o 'em

    rdao'

    -

    em

    relao sociedade

    envolvente, note-se, no

    com

    a sociedade

    envolvente-

    significa: na

    qualidade de parte ontologicamente subordinada. A relao de que

    se fala

    uma

    relao entre parte e todo, e o 'em relao' indica

    gual o ponto de vista global se est assumindo. A sociedade indi

    gena no vista

    como relaonal,

    mas como relativa

    -

    relativa a

    um

    absoluto gue a sociedade envolvente, a qual ocupa o trono

    do

    em

    si que se recusou 'realidade tribal'.

    Contra

    essa alternativa entre

    tomar seu objeto m1

    si

    ou em outro, a antropologia indgena esco

    lheu tom-lo co;11o constituindo desde o incio

    um para

    si; isto ,

    como um sistema auto-intencional de relaes. O

    'em

    si' e o

    'em

    relao' so, nesse caso, sinnimos,

    no

    antnimos.

    Por fim, cabe observar que a

    oposio

    entre

    uma

    'etnologia

    clssica' ou 'tradicional' e a etnologia

    da

    'marca registrada' no

    um acidente peculiar ao contexto acadmico nativo; se o rebati

    menta ideolgico sobre a 'brasilidade'

    brasileiro, sua codifica

    o terica traz marcas estrangeiras. Pois tal polarizao

    muito

    semelhante quelas que marcaram outras tradies nacionais,

    como

    o

    cabo-de-guerra

    entre 'materialistas'e 'idealistas' que dividiu a

    antropologia norte-americana dos anos 50 aos 80, ou a polmica

    dos antroplogos 'marxistas' contra os 'estruturalistas'

    na

    Frana

    ps-68.

    Um mesmo

    ar de famlia perpassa as trs. O debate

    22.

    Nesses termos, seria descabido ver

    ndio

    e o

    111111 do

    doJ

    / rnnoJ

    (Cardo

    so de Oliveira, 1

    964)

    como o eco indgena e setentrional do CapitaliJmo e

    ucraiJido 11 mJilmmdional

    E

    H. Cardoso, 1962).

  • 7/24/2019 Viveiros de Castro e. Etnologia Brasileira

    25/115

    En :OI OGIA UR,\SII.EIRA

    133

    amerit:oL1) teve menos eco no pas, devido pequena popularida

    de do n a t ~ r i a l i s m o cultural' (ou 'ecologia cultural') em nossas

    plagas; mas 11o se deve esquecer que Darcy e seus associados

    mais diretos eram adeptos entusiasmados dessa corrente, e que

    ela se opunha, em sua traduo brasileira, ao mesmo 'tipo de

    gente' - os malditos idealistas - anatematizado pelos descenden

    tes da escola da frico, que importaram da Frana o ant2.gonis

    mo

    entre Baiandier

    (e

    demais africanistas de persuaso 'marxis

    ta') e Lvi-Strauss (e demais americanistas de persuaso 'estrutu

    ralista') e o utiliz3,ram como chave de classificao

    23

    importan

    te pr em continuidade essas trs polarizaes, pois isso permite

    ver que a ruptura cosmolgica entre a 'fase Darcy Ribeiro' e a

    'fase Roberto Cardoso' da etnologia

    do contato foi menos pro

    funda do que se pode pensar. Assim, o esquema de tipo 'teoria

    da dependncia' adotado pela etnologia contatuaHsta, que veio a

    fazer sucesso mundial na antropologia dos anos 70 sob o nome

    genrico de 'Political economy school', tem pelo menos um pon

    to em comum com o materialismo ecolgico-cultural, como ob

    servou perspicazmente

    S.

    Ortn:::r

    (1984)

    24

    As pesquisas inspira

    das

    no

    paradigma antropolgico da 'economia poltica', diz Ortner,

    Have shifted the focus

    to

    large-scale regional political/economic:

    ~ ; s t e m s

    [ ] Insofar as thcy have attempted to combine this focus with

    tradicional fieldwork in specific communiries or micro-regions, their research

    23. Para um exame do debate entre africanistas e americanistas na Frana, ver

    Taylor, 1984 (comentada em Viveiros de Castro,

    1992)

    e Albert, 1995

    (comentado em Lima, 1998).

    24. O artigo de Shcrry Ortncr uma discusso brilhante dos rumos da teoria

    antropolgica

    d ~ s

    anos

    60

    aos meados da dc-dda

    de

    80. Entre suas

    Guali

    dades est a de relarivi?.ar as virtudes teologais de certas nfases ento, e

    ainda, em moda no pais e alhures. Sua leitura instrutiva tambm por

    permitir uma s t r i t ~ correlao entre a : ~ n t r o p o l o g a feita no Brasil e a

    teoria internacional. Ui como c,, alis, o paradij,>rna da 'Political economy

    schc.::>l' (tambm conhecida como 'teoria do sistema mundial' etc.), overlaps

    wit c

    the burgeoning 'erhnicity' industry

    op.

    cit :

    142).

  • 7/24/2019 Viveiros de Castro e. Etnologia Brasileira

    26/115

    134

    EDU RDO VIVEIROS DE C STRO

    has generally taken the form o f studying the effects o f capitalist penetration

    upon thosc

    communities f

    ]

    The

    emphasis

    on thc impact of

    externai

    forces, and on the ways in which societies change or evolve largely in adaptacion

    to such impact, tics the political

    economy

    school in certain ways

    to

    the

    cultural ecology of rhe sixties, and indeed many of its current pracritioners

    were trained in that school [ .. ]

    But

    whereas for sixties cultural ecology,

    often

    studying relativdy 'primitive' societies,

    the important

    externai forces

    were

    those of

    the natural environment, for the sevenries polirical economists,

    gencrally studying 'pcasants', thc importam externai forces are those of

    the state

    and

    the capitalist world system

    (op. dt : 141-142 .

    Com

    efeito,

    entre

    a natureza (americana) e a histria (euro

    pia), desaparece a sociedade (indgena). Atirados

    de um

    lado

    para o

    outro

    pela necessidade natural e pelas necessidades

    do

    capital, os povos indgenas so vistos

    como

    registros contingen

    tes de realidades mais eminentes. O capitalismo ou o Estado

    colonial disputam assim com a

    ordem

    natural o papel sobrenatu

    ral de Grande Objetivador. Longe de estare ' situados no Brasil,

    os

    ndios,

    segundo ambas

    essas

    concepes,

    so

    situados

    pelo

    Bra

    sil: ora pelo Brasil ecolgico, ora pelo Brasil poltico. (Quando,

    mais tarde, o ecolgico se tornou uma manifestao privilegiada

    do poltico, as coisas se complicaram para os dois lados.)

    Aqui talvez valha a pena dirimir uma ambigilidade entre a

    referncia puramente cartogrfica da 'situao

    no

    Brasil'

    de

    que

    fala Peirano e o uso conceitualmente motivado

    da

    palavra 'situa

    o' pela escola contatualsta, em que ela costuma aparecer adjetivada

    como

    situao 'histrica'

    25

    A ambigidade possvel porque

    em

    ambos os casos a noo de 'situao' tomada

    no

    sentido substan

    tivo de 'condio', isto , como facticidade: uma 'situao histri

    ca' uma 'condio' temporalmente circunscrita. Os ndios de gue

    falamos esto situados geograficamente

    no

    pas, sem dvida; e o

    25. A ascendncia terica deste conceito de 'situao' remonta s 'anlises

    s i t ~ a c i o n a i s da Escola de Manchcstcr (Gluckman, principalmente) e ao

    transacionalismo de f. Barth - duas verses do paradigma que Kuper 1992:

    5)

    chamou de 'malinowskiano'. Ver tambm Ortner,

    1984:

    144-145 n.

    14.

  • 7/24/2019 Viveiros de Castro e. Etnologia Brasileira

    27/115

    HTt>:OLOGJA BRASJLF IRA

    135

    Brasil , certamente, um elemento de sua situao histrica, nes

    sa acepo passiva. Mas, na frmula de Peirano, a situao visa

    indicar um carter circunstancial; Jara a escola do contato, ao con

    trrio,

    ela

    designa uma propriedade condicionante dos coletivos

    indgenas:

    a

    situao

    define

    o

    situado.

    A noo de situao histrica

    funciona como anlogo do conceito de ambiente ecolgico de um

    organismo, mas sob uma perspectiva adaptacionista que v a uni

    dade situada ou ambientada como sendo o resultado de presses

    externas objetivas que a penetram e constituem; o ambientado

    parte e produto do ambiente

    26

    Contra semelhante entendimento, a

    antropologia indgena contempornea toma a noo de situao

    no

    mesmo sentido

    em

    que a biologia fenomenolgica toma o par

    orgar

  • 7/24/2019 Viveiros de Castro e. Etnologia Brasileira

    28/115

    136

    EDU RDO VIVEIROS

    Dli

    C STRO

    TR DIO D INVENO

    digno de nota que a ordem de exposio adotada

    por

    Alcida inverta a sequncia temporal das duas perspectivas apre

    sentadas, e que no se preocupe em comentar

    as

    origens

    tericas da primeira delas, evocada apenas no marco etnogrfico

    do

    Harvard-Cenrral Brazil Project. Ofereamos aqui uma outra

    narrativa

    28

    Os ltimos trinra anos, ao mesmo tempo em que assistiram

    a um enorme avano quantitativo c qualitativo nos estudos ind

    genas, viram tambm uma diferenciao da linguagem at ento

    comum aos etnlogos e aos ourros cientistas sociais

    do

    pas.

    Ainda que sendo, em

    boa medida, uma conseqncia da institu

    cionalizao da ps-graduao, da acumulao de conhecimentos

    e da expanso da populao de pesquisadores, fatores que con

    duzem especializao, esse afastamento

    foi

    sobretudo o resulta

    do de uma mudana de horizonte na etnologia brasileira.

    pro

    poro que se comeou a dedicar uma ateno mais aprofundada

    s

    instituies e organizaes sociais indgenas, que se passaram

    a adotar protocolos mais rigorosos de pesquisa, com o aprendi

    zado das lnguas nativas e estadas mais prolongadas no campo, e

    que o intercmbio setorizado com especialistas de outras partes

    do mundo se intensificou, os marcos de inscrio

    do

    objeto se

    deslocaram. As relaes entre as sociedades indgenas brasileiras

    e outras sociedades morfologicamente semelhantes de outras partes

    do mundo, bem como

    as

    conexes histrico-estruturais entre

    as

    diversas formaes sociais indgenas do continente, passaram a

    ocupar um lugar de destaque na reflexo etnolgica, reduzindo

    (sem chegar a inverter) a hegemonia de uma abordagem que via

    os ndios essencialmente como um captulo - findo ou menor -

    da histria e sociologia

    do Brasil, isto

    como populaes cujo

    28. ma \ erso mais completa se encontra

    em

    Viveiros de Castro, 1992 e

    1996a.

  • 7/24/2019 Viveiros de Castro e. Etnologia Brasileira

    29/115

    ETI OI.OGIA I RAS UiiRA

    137

    interesse antropolgico se resumia s suas contribuies cultu

    ra nacional ou a seu papel de smbolo- passado ou perene- dos

    processos de sujeio poltico-econmica que se exprimiriam de

    modo mais

    'moderno'

    na dinmica da luta

    de

    classes de nosso

    capitalismo autoritrio.

    e o deslocamento acima mencionado, que comeou timi

    damente no final dos anos 60, desembocou em um modo de

    investigao distante das preocupaes caractersticas da ideolo

    gi

    do nation building e com isso afastou parte da etnologia das

    demais cincias sociais, quase sempre entretidas com temas bra

    sileiros - , contribuiu tambm para um divrcio entre duas linhas

    de pesquisa presentes na etnologia universitria das dcadas an

    teriores e que at ento haviam convivido sem problemas, prati

    cadas sucessiva ou simultaneamente pelos mesmos pesquisado

    res (nacionais e estrangeiros): a linha dos estudos preocupados

    em descrever etnograficamente s formas soc:iocultu.:ais nativas,

    mais tarde identificada como 'etnologia clssica'; e a linha dos

    estudos de :.dilturao

    ou

    mudana social, mais tarde associada

    noo-emblema de 'contato ntertnico' e seus derivados. Essa

    fratura, que chegou, entre 1975 e 1985 aproximadamente, a defi

    nir algo como linhagens antagonistas - os etnlogos dos 'ndios

    puros ou isolados' versus os dos 'ndios aculturados ou campone

    ses' - , continua, como vimos, em vigor em alguns centros do

    pas, embora com sua significao terica bastante esvaziada, em

    vista das mudanas ocorridas a partir dos anos 80, tanto na prti

    ca antropolgica como na presena poltica dos povos indgenas

    nos cenrios nacional e internacional, que dissolveram a oposi

    o evolucionista entre 'tradio' e 'mudana', 'ndios puros' e

    'ndios aculturados'.

    Mas essa dissoluo no

    tomou

    a direo que se poderia

    imaginar - porque o que se dissolveu era, justamente, imaginrio.

    Assim, depois de anos de polmicas acerbas, em que os partid

    rios da etnologia do contato martelavam que a

    condio

    camponesa

  • 7/24/2019 Viveiros de Castro e. Etnologia Brasileira

    30/115

    1 38

    liDU.\RDO VIVHJROS OH CASTRO

    (com opo de 'proletarizao') era o devir histrico inexorvel

    das sociedades indgenas, e que a descrio dessas sociedades

    como entidades socioculturais autnomas supunha um 'modelo

    naturalizado' e a-histrico, eis que de repente os ndios comeam

    a reivindicar e terminam

    por

    obter

    o reconhecimento constituci

    onal de um estatuto diferenciado permanente dentro da chamada

    comunho nacional'; eis que eles implementam ambiciosos pro

    jetos de retradicionalizao marcados por um autonomismo

    'culturalista' que, por instrumentalista e etnicizante, no menos

    primordialista nem menos naturalizante; eis, por fim, que algu

    mas comunidades rurais situadas nas reas mais arquetipicamente

    'camponesas'

    do

    pas pem-se a reassumir sua condio indge

    na, em um processo de

    transfigurao

    tnica que o exato inverso

    daquele anunciado por Darcy Ribeiro (1970) em profecia acredi

    tada,

    com

    um retoque

    ou

    outro, pelas geraes subseqentes de

    tericos do contato. Estes agora descobrem que o gue estudavam

    como

    se fossem 'comunidades rurais que apresentavam a parti

    cularidade de ser indgenas' eram, na verdade, 'comunidades ind

    genas que tinham a particularidade de ser camponesas'

    29

    Redistri

    buio das qualidades primrias e secundrias,

    do

    necessrio e

    do

    acessrio?

    Em

    face das preocupaes 'metafsicas, caractersticas

    da escola contatualista, com a ltalureza ti tinJa de seu objeto (natu

    reza que ela s vezes chama,

    por

    curiosa antfrase,

    de

    'construo'),

    tal reviravolta deve estar sendo difcil de administrar

    30

    A partir do incio dos anos 70, a etnologia sul-americana

    iniciou um

    amplo

    c

    concertado

    salto

    .adiante

    na

    cobertura

    etnogrfica

    do mundo

    indgena; ao mesmo tempo, ela procedeu a

    uma completa atualizao terica dessa fronteira fssil da an-

    29.

    P:ua(taseio

    aqui

    Atruti

    (1997:

    13), que

    fa;o:

    o contraste para o caso dos

    estudos sobre comunidades negrns. O indio 'genrico' revelou-se um cam

    pons realmente muito particular, sobretudo agora que alguns 'campone

    ses' genricos esto virando ndios muito particulares.

    30. Sobre a nature?.a ltima dos grupos tnicos , ver Oliveira

    P ,

    1998: 61.

  • 7/24/2019 Viveiros de Castro e. Etnologia Brasileira

    31/115

    ETNOI OGit\ BRASII.HIRA

    139

    tropologia que era o americanismo tropical at ento (Taylor,

    1984). No caso brasileiro, isso significou uma deciso de se res

    tabelecer o equilbrio entre a sociologia do contato, que havia

    progredido muito nos anos anteriores (desdobrando-se em com

    plicadas discusses sobre o campesinato e os modos de produ

    o ~ , e a antropologia indgena, que permanecia notavelmente

    pobre dos pontos de vista descritivo e conceituaP

    1

    A conscincia

    desse descompasso entre a proliferao de estudos intertnicos e

    o pouco que efetivamente se sabia sobre os sistemas nativos

    tornava necessrio estender o avano realizado pelo grupo de

    Maybury-Lewis e outros especialistas no Brasil central at outras

    reas culturais, em especial at a Amaznia brasileira, criando

    uma interlocuo com pesquisadores como

    P. Rivire eJ Overing,

    que haviam comeado uma reflexo rigorosa sobre as sociologi

    as

    nativas do escudo da Guiana. Esse movimento, como eu disse

    acima, teve como um de seus objetivos a elaborao de paradig

    ma

  • 7/24/2019 Viveiros de Castro e. Etnologia Brasileira

    32/115

    140

    EDUARDO VIVEIROS DE CASTRO

    preciso os sistemas sociocosmolgicos indgenas - a questo

    do

    contato intertnico foi tratada, ao menos de incio, algo perfunc

    toriamente. De seu lado, os captulos dedicados aos 'elementos

    de organizao social' das monografias produzidas pelos tericos

    do

    contato

    m o s t r v ~ m

    que estes continuavam prisioneiros da su

    perficialidade etnogrfica e da linguagem tipolgica de que nos

    queramos 1ivrar

    33

    ,

    As dcadas de 70 e 80 assistiram a um renascimento da

    etnologia americanista em escala mundial O primeiro resultado

    foi a proliferao de etnografias tecnicamente modernas, nas quais

    as

    influncias europias superavam

    as

    norte-americanas, mais fortes

    nas dcadas anteriores

    34

    Logo em seguida, snteses comparativas

    regionais, temticas ou conceituais, foram construindo um cam

    po problemtico comum, em um trabalho que prossegue

    35

    A

    vcl conexo entre esse 'africanismo' conceitual e Rtjuela projeo

    do

    mode

    lo das 'relaes raciais' sobre as 'relaes intertnicas'.

    33. Traditional studies often presented us with a thin chapter

    on

    'historical

    background' at the bcginning and

    an

    inadequate chaptcr on 'social change'

    at the end. The political economy study inverts this relationship,

    but

    only

    to create the inverse problem (Ortner, 1984: 143).

    De

    fato, os estudos

    tpicos da escola do contato intertnico espremiam um captulo, geralmen

    te

    inadequado, sobre 'organi7.ao social' entre longas partes dedicadas ao

    'historical background' (mas entendido apenas como histria do contato) e

    'social change'

    e

    a questo de saber o t:]Ue, exatamente, estava a passar

    por tal processo permanecia algo misteriosa).

    34. Maybury-Lewis, 1967; Riviere, 1969; Basso, i973; DaMatta, 1976; Overing

    Kaplan, 1975; Melatti, 1978; Carneiro da Cunha, 1978; C. Hugh-Jones,

    1979;

    S.

    Hugh-Jones, 1979; Seeger, 1981; Chaumeil, 1983; Albert, 1985;

    Crocker, 1985; Viveiros de Castro, 1986; Lea, 1986; Descola, 1986; Townsley,

    1988; McCallum, 1989; Ramos, 1990b; Gow, 1991.

    35. Ver Overing

    K : ~ p l a n

    org., 1977; Seeger

    t a/.

    1979; Turner, 1979; Overing,

    1981; Butt Colson Heinen, orgs., 1983-1983; Kensinger, org., 1984;

    Riviere, 1984; Turner, 1984; Menget, org., 1985; Hornborg, 1988; Viveiros

    de Castro Carneiro da Cunha, orgs., 1993; Descola Taylor, orgs., 1993;

    Viveiros de Castro, org., 1995; Henley, 1996a. Em Viveiros de Castro,

    1996a, encontra-se um mapeamento das diferenas internas ao campo te

    rico do novo americanismo.

  • 7/24/2019 Viveiros de Castro e. Etnologia Brasileira

    33/115

    I ~ T I : O I . O G J A JlRASli.EJR,\

    141

    contribuio da etnologia feita

    no

    Brasil a esse renascimento

    foi

    decisiva, como atestam

    as

    referncias a uma "escola de pensa

    mento europia-brasileira" (em oposio a uma escola norte-ame

    ricana) ou a uma "teoria brasileira do parentesco"

    36

    . Alguns tex

    tos da dcada de 70 escritos

    por

    pesquisadores brasileiros, alis,

    anteciparam questes s levantadas bem mais tarde pela antropo

    logia, como os artigos seminais de DaMatta (1970) e Carneiro da

    Cunha (1973) sobre as relaes entre mito, ritual e histria, ou o

    artigo de Seeger

    t

    ai. (1979) sobre a corporalidade, que prefigu

    rava a temtica do 'e l1bodi Jient' hoje to em voga e que teve, no

    obstantr.: sua difuso restrita, um certo impacto na discplina

    37

    Essa expanso da antropologia indgena nas duas dcadas

    passadas levou muitos etnlogos, cuja carreira se iniciou

    no

    co

    meo dos anos 80, a reverter certas pr-escolhas tericas, passan

    do da sociologia do contato

    antropologia indgena. Vanessa

    Lea (1986) e Peter Gow (1991), por exemplo, que saram a estu-

    36.

    Ver,

    p.

    ex., Rivire, 1993; Whitehead, 1995: 70; Henley, 1996a, b, gue assim

    se referem ao trabalho de etnlogos 'clssicos' em atividade no pais, no

    'ethnology

    Bra7.ilian

    style'.

    37. Comentando mudana de rumos da etnolcga americanista iniciada na

    segunda metade dos anos 70, Rivire escreveu recentemente: It was the

    publication of A construo da pessoa nas sociedades indgenas brasilei

    ras'

    (Sec.g_,.

    et

    ai.,

    1979) that proved decisively influential. These authors

    rejected .vl1at they labelled as the African mode . .. and went to make some

    positive proposals. They argued that, in Lowland South America, societies

    are structurcd in terms of the symbolic idioms n : ~ . m e s , essences etc.) that

    relate

    to

    the construction

    of

    the person

    : ~ . n d

    the

    f a b r i c : ~ . t i o n

    of

    the body.

    This set of ideas have been very ir.fluential, although one suspects that its

    full

    impact has beco lost because not only that work but much of the

    resulting litemture has been published

    onlr

    in Portuguese" (1993: 509).

    Esse balano de Rhire d uma boa idh do peso contemporneo da

    etnologia feita no Brasil: um tero de suas referncias composto de

    trabalhos escritos por brasileiros (naturais, culturais ou institucionais). Uma

    consulta s outras bibliografias coletnea em gue ele apareceu refora

    esta impresso (Descola Taylor, orgs., 1993), gue pode ser confirmada

    em trabalhos mais recentes (Hirt7.el, 1998, Surrals, 1999).

  • 7/24/2019 Viveiros de Castro e. Etnologia Brasileira

    34/115

    142

    EDUARDO VJVHIROS DH C,\STRO

    dar os Kayap c os Pro munidos do iderio da escola do conta

    to, visando documentar os processos de penetrao do capitalis

    mo e do colonialismo na vida indgena, terminaram escrevendo

    estudos detalhados justamente sobre o parentesco - esse emble

    ma da antropologia

    ~ l s s i c

    - ,

    ao perceber que essa era a dimen

    so que os ndios lhe colocavam

    frentelB.

    Trocaram, assim, a

    sociologia da questo indgena por uma antropologia das

    ques-

    tes indgenar tornadas teoricamente acessveis a partir dos anos

    70: rotao de perspectiva.

    Mas,

    nesse momento, comeava tambm a ser possvel uma

    retomada do tema do contato e da histria em novas bases. Isso

    foi

    realizado, entre outros,

    por

    Gow, que em sua monografia

    sobre os Piro da Amaznia peruana adotou uma estratgia que

    demoliu a distino entre os ndios puros e seus etnlogos pu

    ristas , de um lado, e os ndios misturados e seus etnlogos

    radicais , de outro. Escrevendo sobre um grupo indgena que

    parecia tipificar um estado avanado de aculturao, acampone

    samento e sujeio aos poderes nacionais,

    Gow

    mostrou como

    s se poderia atingir uma compreenso adequada

    do

    mundo vivi

    do piro atravs de sua insero no panorama construdo pela

    etnologia dos ndios puros . Rejeitando explicitamente a pers

    pectiva da sociologia do contato e da etnicidade (1991: 11-15), o

    autor lanou mo dos trabalhos de Overing e de Viveiros de

    Castro sobre as filosofias sociais amaznicas

    op.

    dt.: 275-281,

    290 ss. para argumentar que o estado aculturado dos Piro era

    uma transformao histrica e estrutural dos regimes nativos tra

    dicionais e, mais que isso, que a transformao era um processo

    inerente ao funcionamento desses

    regimes-

    regimes que semp,re

    38. Compare-se esse movimento com aquele realizado

    por

    etnlogos que co

    mearam seu trabalho alguns anos antes. Assim, Oliveira

    F (1988: 11:-12)

    conta como abandonou seu projeto inicial

    de

    estudar a ideologia de paren

    tesco dos Ticuna

    par2

    mergulhar

    em

    uma anlise do campo indigenista

    local.

  • 7/24/2019 Viveiros de Castro e. Etnologia Brasileira

    35/115

    ETNOI.OGJ,\ 3RASII.HIRA

    143

    tiveram a 'aculturao' por origem e fundamento da 'cultura', e a

    exterioridade social

    por plo

    em

    perptuo movimento

    de

    interorizao

    39

    Gow mostraria, alm disso e sobretudo- contra

    esteretipos ainda hoje em vigor -;que a obra americanista de

    Lvi-Strauss oferecia instrumentos muito mais ricos para se en

    tender a inscrio temporal do mundo vivido dos Piro que

    as

    teorias metacolonialistas do contato e da sujeio

    40

    A dita 'etnologia clssica', assim, incorporou a questo do

    contato intertnico, valendo-se dos conhecimentos que viera acu

    mulando desde as dcadas anteriores. O tema da transformao

    foi dissociado da teoria do 'acamponesamento' (que parece ter

    sido, alis, sepultada sem muita pompa p;)r seus antigos

    fiis

    e

    de outras objetivaes igualmente redutoras, passando a se ins

    crever no plano mesmo dos pressupostos sociocosmolgicos dos

    regimes nativos. Recusando-se a tomar o mundo indgena como

    simples cenrio de manifestao de uma estrutura de dominao

    algena, como

    um

    arbitrrio cultural (Oliveira P 1988: 14 com

    valor meramente particularizador de uma dinmica geral de su

    jeio - arbitrrio de medocre rendimento analtico, dada a pres

    so inexorvel exercida pelos "processos homogeneizadores" pr

    prios da situao colonial - a etnologia 'clssica' estendeu sua

    prpria visada terica de um modo que lhe permitiu redefinir os

    brancos, o Estado ou o capitalismo como outros tantos daqueles

    arbitrrios

    histricos

    com que sempre se houveram e havero os

    sistemas nativos (Albert, 1988, 1993; Ga los, 1993; Gow,

    op cit ;

    S.

    Hugh-Jones, 1988; Turner, 1991, 1993; Vilaa, 1996a). Para

    39. '"Accult .lration'

    is

    only possible here if 'acculturation'

    is

    a traditional feature

    o f indigenous Amazonian societies" (Gow, 1999: 2). Essa idia foi esboada

    em minha tese sobre os Arawet (1986; ver tambm Carneiro da Cunha

    Viveilos Castro, 1985), e mais tarde desenvolvida em um trabalho sobre

    a representao jesutica dos Tupinamb (Viveiros de Castro, 1993c),

    no

    qual a influncia reciproca do t r b ~ l h o de Gow

    j se

    fa7. presente.

    40. Este tema de uma histria 'lvi-straussiana' da /.ma7.nia indgena o foco

    de um livro em preparao de

    Gow

    (1998).

  • 7/24/2019 Viveiros de Castro e. Etnologia Brasileira

    36/115

    144

    EDUARDO VIVEIROS DI; C\STRO

    isso foi-lhe indiscutivelmente necessrio

    abrir

    esses sistemas, aban

    donando

    as

    imagens conceituais de 'sociedade' e de 'cultura'

    legadas pelo funcionalismo britnico

    ou

    pelo culturalismo ameri

    cano. Embora inspirada na crtica estruturalista

    s

    concepes

    totalizantes

    do

    objeto vigentes nos paradigmas anteriores, seme

    lhante abertura foi cima de tudo o resultado - e este um

    detalhe absolutamente fundamental -

    de

    uma anlise mais fina

    das premissas socioculturais nativas, no de um

    priori

    objetivista

    que

    reivindicasse um maior naturalismo (Barth, 1992) para

    este

    ou

    aquele modelo analtico geral que o pesquisador, criador

    c criatura

    de

    seu prprio arbitrrio terico, imagina ser a perfeita

    traduo da realidade. A nova

    sociologia

    indgCIIa

    que emergiu dos

    anos 70 teve

    como instrumento

    e objetivo,

    portanto

    uma

    indigenizao

    da

    sociologia

    -

    e

    oi

    isso que lhe deu seu carter pro

    priamente antropolgico.

    Para gue essa incorporao da histria e do 'contato' acon

    tecesse, entretanto,

    foi

    preciso primeiro liberar a perspectiva es

    trutural da interpretao excessivamente britnica que ela sofrera

    por

    parte dos etnlogos do Harvard-Central Brazil Project. Ori

    entado pelas leituras que Needham e Leach haviam feito de Lvi

    Strauss, o grupo de Maybury-Lewis, como outros etngrafos da

    Amaznia de ento, dedicou-se a aplicar os princpios da anlise

    estrun.:ral a sociedades e cosmologias particulares, expurgando

    assim o estruturalismo de alguns de seus aspectos mais radicais

    (Ortner, 1984: 137), e evitando a questo da relao entre

    as

    estruturas indgenas locais e o fundo histrico-cultural pan-ame

    ricano. A referncia principal do

    grupo

    eram

    as

    obras da primeira

    e mais 'durkheimiana' fase de Lvi-Strauss, notadamente

    s es-

    tmtura r

    elemmtares do parentesco

    e os artigos sobre o Brasil central,

    em

    que

    o

    antroplogo

    francs

    retomava

    a

    etnografia

    de

    Nimuendaju; e seu tema por excelncia

    foi

    a 'organizao dualista',

    particularmente pregnante

    no

    caso das sociedades

    e Bororo.

    Alm disso, se Lvi-Strauss era a inspirao terica (ou sobretu-

  • 7/24/2019 Viveiros de Castro e. Etnologia Brasileira

    37/115

    I ~ T ' ; C l i . O G J A

    BR,\SJI.IiJR,\

    145

    do temtica) principal desses estudos ernogrficos, sua orienta

    o metodolgica devia mais s monografias fundonalistas da

    tradio britnica. Seu objetivo era descrever cada sociedade es

    tudada como

    um sistema total, ou 'holista', para em seguida inse

    ri-lo em uma srie comparativa composta de outcos sistemas do

    mesmo tipo (Gow, 1999), o que n.io corresponde nem noo de

    comparao de Lvi-Strauss, nem sua idia do que conta como

    'unidade' comparativa.

    Abra-se um parntese. Que muitas das mais influentes

    etnografias sul-americanas das dcadas de 70 e 80 tenham sido

    cortads pelo molde das monografias clssicas inglesas, no

    h

    como contestar.

    Que

    elas devam ao estruturalismo antes uma

    agenda temtica e alguns princpios tericos limitados que uma

    orientao sistemtica, tambm verdade

    41

    Que elas e aqui no

    me refiro apenas s do grupo de Maybury-Lewis) tenham dedica

    do

    pouca ateno

    histria, adotando um certo holismo

    apriorstico e um certo descontinusmo, como notam

    ow op.

    cit.

    ou Albert (1988),

    eis

    outro fato. Mas tais limitaes no

    podem de forma alguma servir pata desqualificar

    in

    limine a con

    tribuio dessas monografias

    etnologia do continente - uma

    contribuio incomparavelmente maior gue a trazida pelos estu

    dos aculturativos ou friccionistas das dcadas anteriores e poste

    riores. Ao contrrio,

    ow

    apoiou-se justamente nelas, argumen

    tando que os princpios gue os etnlogos identificaram como

    constitutivos do fechamento holista dos sistemas indgenas eram

    os mesmos acionados pelos Piro para situarem o sistema intert

    nico em que estavam 'situados' - c assim fez desaparecer a dis-

    41. Ver Viveitos de Castro; 1992. Taylor, em um acesso de fundamentalismo

    (este estruturalista), mostra-se surpreendentemente dura com o grupo do

    Harvard-Central Bra:dl Project: "aux

    U.S.A.

    par ailleurs, l'influence re le

    Je

    Lvi-Strauss a t en grande partie touffe au profit d'une sorte de

    morphologisme pseudo-structuraliste diffus notamment par Maybury-Lewis

    et

    ses disciples.

    .

    "

    1984:

    217).

  • 7/24/2019 Viveiros de Castro e. Etnologia Brasileira

    38/115

    146

    EDUARDO VIVEIROS DE CASTRO

    tino entre sociedades 'puras' tradicionais e part-societies campo

    nesas, porque as primeiras se mostraram muito mais abertas e as

    segundas muito mais indgenas

    do

    que se imaginava. Albert,

    por

    sua vez, partiu de sua esplndida anlise estrutural da cosmologia

    yanomami (1985) para produzir uma reflexo no menos inova

    dora sobre a 'etnicizao'

    do

    discurso xamnico-poltico indgena

    i (1993). De minha parte, utilizei um enquadramento aparente

    mente 'holista' para questionar precisamente a imagem autocontida

    dos sistemas amaznicos e a representao totalizante

    de

    'socie

    dade', tendo

    como

    contraponto retrico a etnografia centro-brasi

    leira (Viveiros de Castro, 1986). Alguns autores da escola

    contatualista, ao

    contrrio, parecem ter tomado

    as

    limitaes da

    quelas monografias pioneiras como pretexto para ignorar sua exis

    tncia - e a de toda a etnologia amaznica que se seguiu- dando

    prova de estreiteza terica e de desinteresse etnogrfico. Os gru

    pos que os contatualistas estudam (ou 'constrem') so tanto mais

    parte

    do

    Brasil quanto menos situados esto na Amrica indgena,

    parecendo flutuar em um vcuo histrico-cultural. No so sequer

    parte de

    si

    mesmos, como

    s

    vezes se constata em certas obras

    dessa escola, em que a frao alm-fronteira de um povo indgena

    transnaconal

    objeto de um profundo silncio descritivo

    :

    e mes

    mo cartogrfico (Oliveira F ,

    1988:

    8). Feche-se o parntese.

    As prximas levas

    de

    etnlogos influenciados pelo estrutu

    ralismo42 iriam

    partir

    da tetralogia

    Mitolgica ,

    que deram ao

    americanismo um instrumento de alcance continental (Lvi-Sttauss,

    1964-1971). A publicao de seu primeiro volume (O t r o

    cozido) df.sempenhou o mesmo papel paradigmtico que O ndio

    o

    mundo dos brancos, aparecido no mesmo ano (Cardoso

    de

    Olivei

    ra 1964), teve para a escola do contato. Sendo, primeira vista,

    um estudo puramente formal dedicado' s mitologias amerndias,

    42. P ex.,

    B

    Albert,

    M

    Carneiro da Cunha, Ph. Descola, Ph. Erikson, P Gow,

    C

    Hugh-Jones, S Hugh-Jones,

    T

    Lima, A Seeger,A.-C. Taylor, G. Townsley,

    e E. Viveiros de Castro.

  • 7/24/2019 Viveiros de Castro e. Etnologia Brasileira

    39/115

    I ~ T N O U G I A

    IIRASJI.HIRA

    147

    as Mitolgicas revelavam algo que os etnlogos que iniciavam seu

    trabalho na Amaznia no demoraram a perceber: que os mate

    riais simblicos de que as sociedades sul-americanas lanam mo

    para se c0nstituir, e assim

    as

    estruturas construveis pelo analista,

    eram refratrios s categorias tradicionais da antropologia. Prin

    cpios cosmolgicos embutidos em oposies de qualidades sen

    sveis, uma economia simblica da alteridade inscrita no corpo e

    nos fluxos materiais, um modo de articulao com a natureza

    sue

    pressupunha uma socialidade universal - eram esses os ma

    teriais e processos que pareciam tomar o lugar dos idiomas

    juralistas e economicstas com qu