VIRGULAS OBRIGATORIAS

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Sobre vírgulas obrigatórias Existem vários contextos em que o uso da vírgula é obrigatório, todos eles discriminados na Nova Gramática do Português Contemporâneo, de Celso Cunha e Lindley Cintra. Não dispensando de forma alguma a leitura na íntegra dessa preciosa passagem da referida gramática (pp. 640-646), salientarei aqui apenas, de forma não exaustiva, algumas das regras que me parecem essenciais. O uso da vírgula é obrigatório A) no interior da oração: 1) para separar constituintes com a mesma função sintáctica , desde que não se encontrem unidos pelas conjunções e, ou e nem (i) [a não ser que estas surjam repetidas numa enumeração (ii)]: (i) «Ouve-se o tinir da louça, uma criança que chora, um balde de água despejado, os gritos agudos das mulheres» (Herberto Helder, Os Passos em volta); (ii) «Nem choros, nem medos, nem uivos, nem gritos, nem pedras, nem facas, nem fomes, nem secas» (José Carlos Ary dos Santos, Canção de Madrugar); 2) para isolar os modificadores apositivos (i), vocativos (ii), elementos repetidos (iii) e modificadores (frásicos e verbais) antepostos (iv): (i) «Vós, apóstolos presos numa intersecção de retábulos, dizei- me: por que não vos esqueço?» (Nuno Júdice, Cartografia de Emoções); (ii) «Ontem, amor, em ti se iluminaram discretamente as pálpebras bebidas» (Vasco Graça Moura, Poemas Escolhidos); (iii) «Ao certo, ao certo, ninguém sabe quando» (Manuel Alegre, A Terceira Rosa); (iv) «Com a luz por baixo, os olhos de Guilherme tinham um brilho maior nas sombras bruxas do rosto» (Vergílio Ferreira, Contos). B) entre orações: 1) para separar as orações coordenadas (i), com excepção das introduzidas pela conjunção e [a não ser quando estas apresentem sujeitos diferentes (ii)]: (i) «Reconheço que me preocupo ainda muito com as minhas queixas, mas lembre-se que a mim própria prometi um estado mais tranquilo» (Eugénio de Andrade, Cartas Portuguesas); (ii) «A porta entreabrira-se, e a cabeça de Puigmal espreitava» (Jorge de Sena, Sinais de Fogo).

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Sobre vírgulas obrigatórias

Existem vários contextos em que o uso da vírgula é obrigatório, todos eles discriminados na Nova Gramática do Português Contemporâneo, de Celso Cunha e Lindley Cintra. Não dispensando de forma alguma a leitura na íntegra dessa preciosa passagem da referida gramática (pp. 640-646), salientarei aqui apenas, de forma não exaustiva, algumas das regras que me parecem essenciais.

O uso da vírgula é obrigatório

A) no interior da oração:

1) para separar constituintes   com a mesma função sintáctica , desde que não se encontrem unidos pelas conjunções e, ou e nem (i) [a não ser que estas surjam repetidas numa enumeração (ii)]:

(i) «Ouve-se o tinir da louça, uma criança que chora, um balde de água despejado, os gritos agudos das mulheres» (Herberto Helder, Os Passos em volta);

(ii) «Nem choros, nem medos, nem uivos, nem gritos, nem pedras, nem facas, nem fomes, nem secas» (José Carlos Ary dos Santos, Canção de Madrugar);

2) para isolar os modificadores apositivos (i), vocativos (ii), elementos repetidos (iii) e modificadores (frásicos e verbais) antepostos (iv):

(i) «Vós, apóstolos presos numa intersecção de retábulos, dizei-me: por que não vos esqueço?» (Nuno Júdice, Cartografia de Emoções);

(ii) «Ontem, amor, em ti se iluminaram discretamente as pálpebras bebidas» (Vasco Graça Moura, Poemas Escolhidos); 

(iii) «Ao certo, ao certo, ninguém sabe quando» (Manuel Alegre, A Terceira Rosa);    

(iv) «Com a luz por baixo, os olhos de Guilherme tinham um brilho maior nas sombras bruxas do rosto» (Vergílio Ferreira, Contos).

B) entre orações:

1) para separar as orações coordenadas (i), com excepção das introduzidas pela conjunção e [a não ser quando estas apresentem sujeitos diferentes (ii)]:

(i) «Reconheço que me preocupo ainda muito com as minhas queixas, mas lembre-se que a mim própria prometi um estado mais tranquilo» (Eugénio de Andrade, Cartas Portuguesas);

(ii) «A porta entreabrira-se, e a cabeça de Puigmal espreitava» (Jorge de Sena, Sinais de Fogo). 

1.1) No caso das orações coordenadas adversativas, há que complementar com a seguinte informação: quando as conjunções porém, contudo, todavia, entretanto e no entanto surgem no interior de uma oração (e não no seu início), deverão ser isoladas por vírgulas (i):

(i) «Dir-se-ia, no entanto, um sorriso que ela acendeu propositadamente» (David Mourão-Ferreira, Os Amantes e Outros Contos).

1.2) O mesmo se aplica às orações coordenadas   conclusivas , sendo de salientar que o pois, quando conjunção conclusiva, surge sempre isolado por vírgulas (i):

(i) «Ordeno-vos, pois, que voltem para trás e matem todos os rapazes e todas as raparigas» (José Saramago, Caim).

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2. para isolar as orações intercaladas (i) e as orações subordinadas adjectivas relativas explicativas (ii):

(i) «E o Rodrigo, apenas a lobrigou, repenicou-lhe cá de baixo uma assobiadela afinada» (Miguel Torga, Contos); 

(ii) «Mas o que tem Amor dentro encerrado na alma, que à língua e olhos se defende, não pode ser com lágrimas contado» (Fernando Pinto do Amaral, Poesia Reunida);

3. para separar as orações subordinadas adverbiais, quando antepostas à principal (i):

(i) «Se me ignoras, porque não te despes e não procuras confundir-te na água ou não te deitas na erva, preciosa?» (António Ramos Rosa, Antologia Poética).

Pedro Mateus :: 19/07/2010

Quando usamos as vírgulas, temos de ter em mente que umas são obrigatórias, outras são proibidas, e algumas, facultativas…

Estas últimas dependem da intenção de quem as usa, ou, neste caso, da interpretação de quem as coloca. Feita esta ressalva, eu

pontuaria as frases da seguinte maneira:

1 — «Segurava um pincel comprido na mão direita, uma paleta de tinta na esquerda, e sorria.»

Coloquei a vírgula antes da conjunção e, apesar de normalmente não se usar nessa situação, porque a frase apresenta duas

ideias distintas (correspondendo a cada uma delas uma oração):

– A primeira oração é «Segurava um pincel comprido na mão direita, uma paleta de tinta na esquerda»;

– A segunda oração é «e sorria».

A vírgula ajuda a perceber que aquele elemento da frase («uma paleta de tinta na esquerda») faz parte da primeira oração, faz

parte, aliás, do objecto directo («um pincel comprido na mão direita, uma paleta de tinta na esquerda»). A vírgula ajuda a

clarificar a estrutura da frase.

2 — «Porque ele não veio e ela não esperou, os dois brigaram.»

Poderia colocar a vírgula antes da conjunção e, dado as duas orações terem sujeitos diferentes, mas não obrigatoriamente.  

A frase pontuada desta forma tem uma única vírgula, que separa a oração subordinante («os dois brigaram») das outras duas

orações, uma subordinada causal «Porque ele não veio» e uma oração copulativa coordenada à causal, «e ela não esperou».

Há, portanto, uma separação entre a oração subordinante e as duas orações que expressam a causa.

3 — «Escrevi para explicar o engano e pedir desculpas, mesmo assim.»

Deverá haver vírgula antes da locução adverbial mesmo assim. Trata-se de uma expressão de valor concessivo, equivalente a

apesar de tudo, que modifica todo o sentido da frase. Acrescenta ao resto da frase um determinado valor (concessivo).

Se escrevêssemos apenas «Escrevi para explicar o engano e pedir desculpas», a frase, sintacticamente, estaria correcta. Da

mesma forma, em vez do modificador mesmo assim, poderia existir qualquer outro, de valor diferente: conforme combinado,

num impulso… A vírgula tem então a função de destacar, ou de isolar, esse elemento da frase, em relação à qual mantém uma

certa autonomia.

4 — «Fiquei feliz, porque senti que era como se uma pessoa interessante houvesse se identificado comigo, e eu, com ela.»

Eu acrescentaria uma vírgula no final da oração «como se uma pessoa interessante houvesse se identificado comigo».

Na realidade, «e eu, com ela» é uma outra oração, em que o predicado está omisso: «e eu me houvesse identificado com

ela». Então, a primeira vírgula, embora não seja obrigatória, faz sentido, porque temos duas orações ligadas pela conjunção

coordenativa e, mas com sujeitos diferentes («como se uma pessoa interessante houvesse se identificado comigo,/e eu [me

houvesse identificado] com ela»).

A segunda vírgula («e eu, com ela») é obrigatória, porque serve para indicar que o predicado está omisso.