Vira Saia. Uma estética da reconstrução da cultura brasileira. Artigo escrito por Flávio Ulhôa...

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Artigo escrito por Flávio Ulhôa sobre o grupo Vira Saia como parte de sua monografia de final de curso na UFOP (MG), em que discute sobre a realidade das bandas independentes mineiras.

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Grupo Vira Saia, uma estética de reconstrução da cultura brasileira.

Por Flávio Ulhôa.

O grupo teve origem no que pode ser chamado de centro histórico cultural de

Minas Gerais. Formado em Mariana, primeira vila e capital do estado, Vira Saia

se desenvolveu em um ambiente que conserva não só o seu cenário

arquitetônico dos séculos XVII e XVIII, mas também mantêm vivas antigas

tradições culturais. Tradições essas que evidenciam bem o forte processo de

miscigenação cultural pelo qual passou a região, que é marcada por grande

influência da igreja católica e pela escravidão que “importou” a cultura negra

das tribos africanas.

O fato de existirem culturas distintas convivendo em um mesmo espaço

geográfico, é responsável por um processo de modificação cultural mutua que

está presente acentuadamente na região dos inconfidentes, mas também

ocorre em todo território brasileiro. Tal fenômeno conhecido como sincretismo,

foi definido por Valente (1976) como “um processo que se propõe a resolver

uma situação de conflito cultural”. Para o autor, o sincretismo se difere de uma

aculturação, pelo fato de haver um processo de aceitação, assimilação e fusão,

no qual o tempo exerce ação determinante. No caso do encontro da cultura

europeia com a africana no Brasil, por mais que a dominância branca tenha

tentado impor a sua cultura sobre a cultura negra, é evidente a influência dos

escravos na identidade cultural do país.

Pode-se dizer que Vira Saia é um grupo que inspira e transpira brasilidade, a

miscigenação cultural está presente em cada manifestação que compõe sua

arte. O grupo realiza um trabalho de pesquisa musical com o intuito de resgatar

as origens da música popular brasileira e compreender o processo de hibridismo

pelo qual ela passou. Os integrantes do grupo além de frequentar vários cultos

e celebrações das mais diversas origens e realizam ainda uma pesquisa em

regiões interioranas do Brasil, buscando resgatar músicas, poesias, causos e

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tradições que em sua maioria se mantêm vivas somente por oralidade. A

integrante do grupo Mônica Elias explicou o foco atual de pesquisa do grupo:

Nossa pesquisa atualmente está focada nas manifestações musicais,

folclóricas e culturais afro-ameríndias brasileira. Estamos fazendo uma

investigação que vai além das fronteiras de Minas, buscamos analisar

as origens (que vêm desde a África, Europa, chegam ao Brasil pelas

cidades portuárias e se encontram com as tradições indígenas), as

transformações advindas dessa mistura, seu desenvolvimento com o

passar do tempo e suas possibilidades de mistura e evolução (isso já

entra na parte de criação ou recriação, quando nos apropriamos

dessas manifestações musicais e elas se fusionam com nossas

composições.)1

Esse trabalho de pesquisa realizado pelo Vira Saia está claro na diversidade de

instrumentos musicais utilizados pelo grupo. O som do Vira Saia se sustenta

com a base harmônica do vilão e por uma forte massa percussiva. O violão tem

origem Euro-Oriental. A percussão utilizada pelo grupo tem raiz africana e

indígena (tambores, agogôs, xequerês, caxixis, ganzá, patangome, tamborim,

berimbau, gungas, tambor falante), latino-americano (cajón, congas), européia

(caixa, triângulo) e árabe (o prato, o pandeiro, as castanholas, os guizos de

pés, snooj e os krakrabas). Para as evoluções melódicas, são utilizadas

diferentes flautas que veem da China, Colômbia, Peru, nordeste brasileiro, além

da flauta transversal de origem Europeia.

Tamanha diversidade sonora pode ser explicada pelo infinito e constante

processo de hibridização por qual passa a música popular brasileira, o que

oferece material riquíssimo para que o grupo possa pesquisar e agregar

elementos à sua música. Peter Burke (2003) explica essas constantes

modificações da seguinte maneira:

[...] Devemos ver formas híbridas como o resultado de encontros

múltiplos e não como resultado de um único encontro, quer encontros

sucessivos adicionem novos elementos à mistura, quer reforcem os

antigos elementos, como no caso da visita de Gilberto Gil a Lagos

para dar â sua música um sabor mais africano. (BURKE, 2003, p. 30)

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O espetáculo Maracá idealizado e concretizado pelo grupo em 2011, na cidade

de Ouro Preto, sintetiza toda a diversidade cultural que está presente no

trabalho do Vira Saia. O espetáculo apresenta em suas canções, totalmente

autorais, uma rica variedade de sons que vão de batuques negros, indígenas,

ritualísticos; do afoxé e do yjexá; do samba e das marchas de outrora; da

música de raiz do sertão; do rock; do flamenco; da música indiana e do reggae

Além da “salada musical” preparada para o espetáculo, o espetáculo foi

marcante na evolução artística do grupo pela incorporação de elementos de

expressão visual, que tornaram o mesmo mais completo e impactante. Maracá

contou com a participação de mais de 20 artistas da região dos inconfidentes. A

parte da produção visual foi trabalhada em coreografia e cenografia, já a parte

de apresentação artístico-visual foi feita por meio de dança e performances

circenses.

Contraditoriamente, apesar de grande preocupação com a estética e com a

pesquisa para reconstruir as origens e a identidade da música popular

brasileira, o grupo não atinge as grandes massas. Suas características de

trabalho se chocam ao estilo musical que a grande indústria fonográfica elege

para investir. Sendo assim o grupo Vira Saia se desenvolveu completamente

independente, buscando um espaço que ainda permanece restrito a uma

pequena fatia da população que contesta as músicas apresentadas para massa

e se interessa, de fato, pela qualidade estética. Segundo Felipe Trotta (2010):

Com dificuldades de posicionar-se num mercado que lhes nega

espaço mercadológico, a saída para os artistas prestigiados dentro do

próprio campo, mas sem reconhecimento comercial, é a veiculação de

seu trabalho em nichos periféricos, de circulação restrita, onde podem

exercer sua autonomia criativa, negociar conhecimento e consagração

estética com seus pares e reclamar da grande indústria que não

veicula sua “arte” para um público mais amplo. Assim, o artista

autônomo pode ser livre, independente. (TROTTA, 2010, p. 253)

Bibliografia

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VALENTE, Valter. Sincretismo religioso afro-brasileiro. 2. ed. São Paulo:

Companhia Editora Nacional, 1976.

Burke, Peter. Hibridismo Cultural / tradução de Leila Souza Mendes. São

Leopoldo, RS: UNISINOS, 2003.