Violões que choram

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CRUZ E SOUSA Violões que choram (jan. I897) Ah! plangentes violões dormentes, mornos, Soluços ao luar, choros ao vento... Tristes perfis, os mais vagos contornos, Bocas murmurejantes de lamento. Noites de além, remotas, que eu recordo, Noites da solidão, noites remotas Que nos azuis da Fantasia bordo, Vou constelando de visões ignotas. Sutis palpitações a luz da lua, Anseio dos momentos mais saudosos, Quando lá choram na deserta rua As cordas vivas dos violões chorosos. Quando os sons dos violões vão soluçando, Quando os sons dos violões nas cordas gemem, E vão dilacerando e deliciando, Rasgando as almas que nas sombras tremem. Harmonias que pungem, que laceram, Dedos Nervosos e ágeis que percorrem Cordas e um mundo de dolências geram, Gemidos, prantos, que no espaço morrem... E sons soturnos, suspiradas magoas, Mágoas amargas e melancolias, No sussurro monótono das águas, Noturnamente, entre ramagens frias. Vozes veladas, veludosas vozes, Volúpias dos violões, vozes veladas, Vagam nos velhos vórtices velozes Dos ventos, vivas, vãs, vulcanizadas. Tudo nas cordas dos violões ecoa E vibra e se contorce no ar, convulso... Tudo na noite, tudo clama e

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CRUZ E SOUSA

Violões que choram

(jan. I897)

Ah! plangentes violões dormentes, mornos,Soluços ao luar, choros ao vento...Tristes perfis, os mais vagos contornos,Bocas murmurejantes de lamento.

Noites de além, remotas, que eu recordo,Noites da solidão, noites remotasQue nos azuis da Fantasia bordo,Vou constelando de visões ignotas.

Sutis palpitações a luz da lua,Anseio dos momentos mais saudosos,Quando lá choram na deserta ruaAs cordas vivas dos violões chorosos.

Quando os sons dos violões vão soluçando,Quando os sons dos violões nas cordas gemem,E vão dilacerando e deliciando,Rasgando as almas que nas sombras tremem.

Harmonias que pungem, que laceram,Dedos Nervosos e ágeis que percorremCordas e um mundo de dolências geram,Gemidos, prantos, que no espaço morrem...

E sons soturnos, suspiradas magoas,Mágoas amargas e melancolias,No sussurro monótono das águas,Noturnamente, entre ramagens frias.

Vozes veladas, veludosas vozes,Volúpias dos violões, vozes veladas,

Vagam nos velhos vórtices velozesDos ventos, vivas, vãs, vulcanizadas.

Tudo nas cordas dos violões ecoaE vibra e se contorce no ar, convulso...Tudo na noite, tudo clama e voaSob a febril agitação de um pulso.

Que esses violões nevoentos e tristonhosSão ilhas de degredo atroz, funéreo,Para onde vão, fatigadas do sonhoAlmas que se abismaram no mistério.

Sons perdidos, nostálgicos, secretos,Finas, diluídas, vaporosas brumas,Longo desolamento dos inquietosNavios a vagar a flor de espumas.

Oh! languidez, languidez infinita,Nebulosas de sons e de queixumes,Vibrado coração de ânsia esquisitaE de gritos felinos de ciúmes!

Que encantos acres nos vadios rotosQuando em toscos violões, por lentas horas,Vibram, com a graça virgem dos garotos,Um concerto de lágrimas sonoras!

Quando uma voz, em trêmolos, incerta,Palpitando no espaço, ondula, ondeia,E o canto sobe para a flor desertaSoturna e singular da lua cheia.

Quando as estrelas mágicas florescem,E no silêncio astral da ImensidadePor lagos encantados adormecemAs pálidas ninféias da Saudade!

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Como me embala toda essa pungência,Essas lacerações como me embalam,Como abrem asas brancas de clemênciaAs harmonias dos Violões que falam!

Que graça ideal, amargamente triste,Nos lânguidos bordões plangendo passa...Quanta melancolia de anjo existeNas visões melodiosas dessa graça.

Que céu, que inferno, que profundo inferno,Que ouros, que azuis, que lágrimas, que risos,Quanto magoado sentimento eternoNesses ritmos trêmulos e indecisos...

Que anelos sexuais de monjas belasNas ciliciadas carnes tentadoras,Vagando no recôndito das celas,Por entre as ânsias dilaceradoras...

Quanta plebéia castidade obscuraVegetando e morrendo sobre a lama,Proliferando sobre a lama impura,Como em perpétuos turbilhões de chama.

Que procissão sinistra de caveiras,De espectros, pelas sombras mortas, mudas.Que montanhas de dor, que cordilheirasDe agonias aspérrimas e agudas.

Véus neblinosos, longos véus de viúvasEnclausuradas nos ferais desterrosErrando aos sóis, aos vendavais e às chuvas,Sob abóbadas lúgubres de enterros;

Velhinhas quedas e velhinhos quedosCegas, cegos, velhinhas e velhinhosSepulcros vivos de senis segredos,Eternamente a caminhar sozinhos;

E na expressão de quem se vai sorrindo,Com as mãos bem juntas e com os pés bem juntosE um lenço preto o queixo

comprimindo,Passam todos os lívidos defuntos...

E como que há histéricos espasmosna mão que esses violões agita, largos...E o som sombrio é feito de sarcasmosE de Sonambulismos e letargos.

Fantasmas de galés de anos profundosNa prisão celular atormentados,Sentindo nos violões os velhos mundosDa lembrança fiel de áureos passados;

Meigos perfis de tísicos dolentesQue eu vi dentre os vilões errar gemendo,Prostituídos de outrora, nas serpentesDos vícios infernais desfalecendo;

Tipos intonsos, esgrouviados, tortos,Das luas tardas sob o beijo níveo,Para os enterros dos seus sonhos mortosNas queixas dos violões buscando alivio;

Corpos frágeis, quebrados, doloridos,Frouxos, dormentes, adormidos, languesNa degenerescência dos vencidosDe toda a geração, todos os sangues;

Marinheiros que o mar tornou mais fortes,Como que feitos de um poder extremoPara vencer a convulsão das mortes,Dos temporais o temporal supremo;

Veteranos de todas as campanhas,Enrugados por fundas cicatrizes,Procuram nos violões horas estranhas,Vagos aromas, cândidos, felizes.

Ébrios antigos, vagabundos velhos,Torvos despojos da miséria humana,Têm nos violões secretos Evangelhos,Toda a Bíblia fatal da dor insana.

Enxovalhados, tábidos palhaçosDe carapuças, máscaras e gestosLentos e lassos, lúbricos, devassos,Lembrando a florescência dos incestos;

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Todas as ironias suspirantesQue ondulam no ridículo das vidas,Caricaturas tétricas e errantesDos malditos, dos réus, dos suicidas;

Toda essa labiríntica nevroseDas virgens nos românticos enleios;Os ocasos do Amor, toda a cloroseQue ocultamente lhes lacera os seios;

Toda a mórbida música plebéiaDe requebros de faunos e ondas

lascivas;A langue, mole e morna melopéiaDas valsas alanceadas, convulsivas;

Tudo isso, num grotesco desconforme,Em ais de dor, em contorsões de açoites,Revive nos violões, acorda e dormeAtravés do luar das meias noites

A CATEDRAL

RESUMO:Este trabalho objetiva analisar o poema “Catedral”, de Alphonsus Guimarães, com enfoquenos níveis fônico, sintático e semântico. Trata-se de um poema riquíssimo, no que se refere àssugestões rítmicas e à seleção vocabular — que explora a palavra em todo o seu potencial fonético- que conferem ao poema uma criteriosa harmonia fônica.

Entre brumas, ao longe, surge a aurora,O hialino orvalho aos poucos se evapora,Agoniza o arrebol.A catedral ebúrnea do meu sonhoAparece, na paz do céu risonho,Toda branca de sol.E o sino canta em lúgubres responsos:“Pobre Alphonsus! Pobre Alphonsus!’’O astro glorioso segue a eterna estrada.Uma áurea seta lhe cintila em cadaRefulgente raio de luz.A catedral ebúrnea do meu sonho,Onde os meus olhos tão cansado ponho,Recebe a bênção de Jesus.E o sino clama em lúgubres responsos:‘‘Pobre Alphonsus! Pobre Alphonsus!’’

Por entre lírios e lilases desceA tarde esquiva: amargurada precePõe-se a lua a rezar.A catedral ebúrnea do meu sonhoAparece, na paz do céu tristonho,Toda branca de luarE o sino chora em lúgubres responsos;‘‘Pobre Alphonsus! Pobre Alphonsus!O céu é todo trevas: o vento uiva.Do relâmpago a cabeleira ruivaVem açoitar o rosto meu.E catedral ebúrnea do meu sonhoAfunda-se no caos do céu medonhoComo um astro que já morreu.E o sino geme em lúgubres responsos:‘‘Pobre Alphonsus! Pobre Alphonsus!

Antífona

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Ó Formas alvas, brancas, Formas claras De luares, de neves, de neblinas! Ó Formas vagas, fluidas, cristalinas... Incensos dos turíbulos das aras

Formas do Amor, constelarmante puras,

De Virgens e de Santas vaporosas... Brilhos errantes, mádidas frescuras E dolências de lírios e de rosas ...

Indefiníveis músicas supremas, Harmonias da Cor e do Perfume... Horas do Ocaso, trêmulas, extremas,

Réquiem do Sol que a Dor da Luz resume...

Visões, salmos e cânticos serenos, Surdinas de órgãos flébeis, soluçantes... Dormências de volúpicos venenos Sutis e suaves, mórbidos, radiantes...

Infinitos espíritos dispersos, Inefáveis, edênicos, aéreos, Fecundai o Mistério destes versosCom a chama ideal de todos os mistérios.

Do Sonho as mais azuis diafaneidades Que fuljam, que na Estrofe se levantem E as emoções, todas as castidades Da alma do Verso, pelos versos cantem.

Que o pólen de ouro dos mais finos astros Fecunde e inflame a rima clara e ardente... Que brilhe a correção dos alabastros Sonoramente, luminosamente.

Forças originais, essência, graça De carnes de mulher, delicadezas... Todo esse eflúvio que por ondas passa Do Éter nas róseas e áureas correntezas...

Cristais diluídos de clarões alacres, Desejos, vibrações, ânsias, alentos Fulvas vitórias, triunfamentos acres, Os mais estranhos estremecimentos...

Flores negras do tédio e flores vagas De amores vãos, tantálicos, doentios... Fundas vermelhidões de velhas chagas Em sangue, abertas, escorrendo em rios...

Tudo! vivo e nervoso e quente e forte, Nos turbilhões quiméricos do Sonho, Passe, cantando, ante o perfil medonho E o tropel cabalístico da Morte..

Cárceres das Almas

Ah! Toda a alma num cárcere anda presa, soluçando nas trevas, entre as grades do calabouço, olhando imensidades, mares, estrelas, tardes, natureza.

Tudo se veste de uma igual grandeza quando a alma entre grilhões as liberdades sonha e, sonhando, as imortalidades rasga no etéreo Espaço da Pureza.

O almas presas, mudas e fechadas nas prisões colossais e abandonadas,

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da Dor no calabouço, atroz, funéreo!

Nesses silêncios solitários, graves, que chaveiro do Céu possui as chaves para abrir-vos as portas do Mistério?!

Alphonsus de Guimaraens

Ismália

Quando Ismália enlouqueceu,Pôs-se na torre a sonhar...Viu uma lua no céu,Viu outra lua no mar.

No sonho em que se perdeu,Banhou-se toda em luar...Queria subir ao céu,Queria descer ao mar...

E, no desvario seu,Na torre pôs-se a cantar...

Estava perto do céu,Estava longe do mar...

E como um anjo pendeuAs asas para voar...Queria a lua do céu,Queria a lua do mar...

As asas que Deus lhe deuRuflaram de par em par...Sua alma subiu ao céu,Seu corpo desceu ao mar...