Violencia saudavel anaalmeida
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Violência Saudável
Ana Almeida∗
Para se puder desenvolver um clima de não-violência é necessário assumir, em
primeiro lugar, que a violência é um impulso natural nos seres humanos, como em
muitos outros mamíferos, natural e até saudável. Não devemos desejar erradicar a
violência porque isso seria impossível, mas compreendê-la e encontrar formas cada
vez mais adequadas de a expressar. A capacidade de gerir adequadamente o impulso
agressivo depende, em grande parte, da maturidade emocional. A questão
determinante não está na existência da violência, mas na incapacidade de a gerir,
controlar e canalizar.
O exercício da violência pode manifestar-se de forma particularmente intensa em
contexto escolar porque na escola as crianças e os adolescentes têm a possibilidade
de encontrar pares susceptíveis de se deixarem facilmente atormentar. Contudo é
preciso não esquecer os enormes danos provocados pelo exercício da violência contra
amigos, colegas de rua e familiares próximos, como irmãos e primos. Nestes
contextos as crianças são frequentemente torturadas por autênticos carrascos da sua
idade.
A falta de disciplina em casa é um dos factores com maior peso e consensualmente
apontado por inúmeros estudos para justificar as dificuldades que as crianças e os
jovens apresentam na gestão adequada do impulso agressivo e violento. A imitação
dos comportamentos observados quer seja em casa, na escola ou na televisão tem
também, como todos sabem, um peso significativo na predisposição à resposta
agressiva. Os bullies, os adolescentes que agridem e violentam os outros são, por
∗
Ana Almeida Psicóloga Clínica Mestre em Psicopatologia e Psicologia Clínica Directora da Clínica Psicronos www.psicronos.pt
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norma, jovens com dificuldades de socialização e reduzida tolerância à frustração.
Muitos sofreram acentuadas frustrações precoces relacionadas com o não
reconhecimento da sua identidade específica e enquanto outros sofreram mesmo
maus-tratos e negligência. Nestes casos a reduzida tolerância à frustração faz com
que rapidamente se cansem, aborreçam, irritem e essas mesmas emoções
predispõem-nos também à resposta agressiva.
É comum dizer-se que os comportamentos agressivos e violentos aparecem como
resposta ao conflito mas a realidade clínica faz-nos pensar que isso não é
exactamente assim. Se é verdade que muitas vezes a agressividade é uma resposta
ao conflito, em inúmeras outras vezes, a agressividade é uma acção que obedece a
um impulso profundo, inconscientemente determinado, e independente da intensidade
da provocação, frustração ou carência. Claro que a carência, a frustração e a
provocação potenciam e estimulam a agressividade; mas a agressividade existe como
uma competência de sobrevivência para além das situações ambientais, contextuais.
Qualquer mulher ou homem, mãe ou pai, de vários filhos sabe intuitivamente e
experiencialmente que a predisposição agressiva varia muito de criança para criança,
de bebé para bebé. Os comportamentos agressivos podem ser aprendidos por
imitação dos modelos significativos para a criança, mas o factor determinante é uma
inter-relação entre a predisposição prévia da personalidade, a maturidade emocional e
o contexto familiar e ambiental. Uma criança com uma forte predisposição agressiva
irá encontrar modelos que espelhem as suas necessidades de expressão agressiva
dentro ou fora da família independentemente daquilo que lhe é imediatamente
oferecido.
A violência não é um problema conjuntural localizado apenas no seio da escola, mas é
claro que existe uma estreita relação entre situações de pobreza, exclusão social e
familiar, racismo, xenofobia e a violência escolar. Uma sociedade violenta gera,
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naturalmente, crianças e jovens violentos. Deve-se, obviamente combater a violência e
valorizar a vivencia democrática, mas temos que criar formas de permitir a expressão
dos impulsos agressivos transformados sobre formas saudáveis.
Enquanto a repressão for a única resposta perante a violência, seja de que tipo for, a
violência irá sempre irromper e encontrar novas formas de se fazer sentir. A
agressividade, num certo sentido, é como a sexualidade. A repressão só consegue
anular e dobrar o impulso até a um certo ponto. A biologia, a fisiologia e as áreas mais
primitiva do psiquismo irão continuar a fazer pressão dentro do sujeito para se fazerem
ouvir.
Há medida que o adolescente cresce, por efeito da própria socialização, educação e
maturação psico-afectiva, aprende novas e mais eficazes formas de controlar,
transformar e sublimar os seus impulsos agressivos. Neste sentido o refinamento
induzido pela socialização, quando bem conseguida, torna-nos adultos capazes de
controlar de forma eficaz os nossos impulsos e canalizá-los para actividades e
projectos construtivos e não destrutivos. Teoricamente é assim, mas basta passarmos
algumas horas no trânsito ou num estádio de futebol para percebermos que muitos
adultos continuam a ter enormes dificuldades em controlar e transformar os seus
impulsos agressivos.
Na verdade - tanto quanto sei -, ninguém sabe exactamente porque é as crianças
diferem na predisposição para a resposta agressiva ao meio ambiente. Muitos estudos
vão no sentido de constatarem a evidência empírica de que o género masculino tem
uma maior tendência para responder agressivamente aos estímulos do meio e nesse
sentido parece haver uma componente bioquímica, provavelmente, hormonal
implicada nos níveis de agressividade. Mas a bioquímica não explica tudo e os
factores psicológicos, nomeadamente as características de personalidade e
maturidade emocional, acabam por ser os elementos mais significativos. Ainda assim
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ficamos, naturalmente, com o problema da inter-relação entre o inato e o adquirido na
constituição da personalidade. Contudo, tomando como verdadeiras as teorias da
personalidade que defendem a existência de uma personalidade incipiente
biologicamente determinada, ou seja a existência de um temperamento inato que se
vai modificando ao longo do desenvolvimento através da experiência subjectiva
gerada no contacto permanente com o meio, podemos compreender com facilidade
que a necessidade de envolvimento em actividades agressivas e violentas depende de
sujeito para sujeito.
Não devemos portanto, na minha opinião, considerar que a pulsão agressiva deve ser
intensamente reprimida e esperar que o efeito dessa repressão seja, mais tarde ou
mais cedo, a supressão absoluta dessa tendência. A violência é, num certo sentido,
uma necessidade humana básica e todas as crianças têm que encontrar formas
adequadas de a integrarem nas suas vidas. Crianças e adolescentes com reduzida
propensão agressiva terão o caminho bastante mais facilitado já que não terão que se
esforçar tanto para “domar” os seus impulsos; mas podem ficar, pelo contrário, sujeitos
a maus-tratos por não terem a agressividade necessária para se defenderem ou se
imporem perante os seus pares.
Ainda há muito trabalho a fazer para proteger as crianças vítimas de bullying. O alerta
permanente, a aceitação cada vez mais incondicional de que o bullying é um problema
grave e que deve ser devidamente identificado, travado e punido vai lentamente
construindo caminho e a educação para a não-violencia é, felizmente, cada vez mais
uma realidade. Não obstante é necessário olhar também para as necessidades de
expressão da agressividade. É preciso identificar precocemente as crianças que
demonstram dificuldades em controlar os seus impulsos agressivos e sádicos e ajudá-
las a lidar com esses sentimentos, ensinando-as a descobrir formas de transformar o
impulso violento destrutivo em violência construtiva. Criando-lhes condições
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emocionais e relacionais para resolverem os seus conflitos psíquicos e
amadurecerem.
Mas o que é a violência construtiva?
A violência construtiva é a capacidade que a criança e o adolescente – e de resto
todos nós independentemente da idade – temos de criar rupturas, de construir
separações, de afirmar a diferença e de escolher dizendo Não. A agressividade
construtiva é a capacidade de romper com uma ideia feita, a capacidade de agir em
prole de uma mudança, a capacidade de lutar por uma regalia, por um ideal, por um
objectivo. A violência construtiva é a capacidade de reivindicar, de fazer frente aos
pais e aos adultos, por maior que seja o receio dessas figuras de autoridade. É a
capacidade de assumir uma posição, mesmo quando todos estão contra nós. É a
capacidade de vencer o medo e de retaliar quando as circunstâncias nos são
prejudiciais. A violência construtiva é a capacidade de canalizar a energia
potencialmente destrutiva para algo construtivo, é a capacidade de por o ódio ao
serviço da vida.
A violência construtiva é a ferramenta que nos permite construir a nossa identidade. A
identidade constrói-se a partir dos conflitos gerados na relação com os outro e que
fazem viver simultaneamente sentimentos de amor e ódio.
Quando odiamos uma doença e lutamos para a extinguir, estamos a fazer uso do ódio
positivo, construtivo. Quando odiamos a pobreza e miséria e nos empenhamos em
criar condições para vivermos melhor e estruturarmos condições para que os outros
vivam melhor, estamos a utilizar a violência positiva. Quando nos debatemos para não
sermos humilhados estamos a fazer uso da violência positiva. Quando agredimos para
defender alguém mais fraco ou por qualquer motivo menos capaz de o fazer por si só,
estamos a fazer uso da violência positiva.
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É importante termos consciência que as crianças e os adolescentes passam tanto
tempo a tentarem perceber os outros quanto a tentarem perceberem-se a si próprias,
a descobrirem a sua personalidade. As crianças precisam de saber que apesar da ira
e da raiva serem emoções saudáveis, tem que ser expressas – como o amor, a alegria
ou a tristeza – de forma socialmente apropriada. Temos que ensinar as crianças e os
adolescentes a lidarem com as suas próprias emoções, sejam elas quais forem. Neste
sentido é importante ajudá-los a perceber quando é que se está a aproximar uma crise
de raiva, para que possam controlá-la antes de serem completamente dominados por
ela. Sinais como respiração acelerada, aumento da temperatura corporal,
nomeadamente sentir o rosto quente e vermelho, sentir um aumento súbito da tensão
muscular e crispação são indicadores claros de que uma crise de raiva está a ganhar
corpo e poderá eclodir.
Se as crianças e os adolescentes tomarem atenção a estes sinais poderão tentar
controlar-se rapidamente, respirando fundo, cotando até 10 ou encontrando um
objecto adequado à descarga da raiva sem consequências de maior. Contar até 10 ou
até 100 tem como efeito retirar a pessoa do foco gerador da ira e cria o espaço interior
necessário para repensar a sua posição e reorganizar o pensamento. Caso a
contagem não seja suficiente a pessoa deve isolar-se (ou ser isolada). Devemos
gentilmente afastar-nos do adolescente e dizer-lhe que não continuaremos a
conversar com ele enquanto não for capaz de controlar a sua zanga. Se a crise de
raiva emerge quando a criança está perante uma tarefa que a deixa frustrada é
importante explicar-lhe que a raiva não irá ajudá-la a resolver o problema que ela tem
entre mãos, pelo contrário irá criar-lhe ainda mais problemas, e com calma mostrar-lhe
de que forma ela poderá resolver a situação de forma eficaz.
Qualquer pessoa se pode zangar e enraivecer. Estas emoções são normais, mas é
importante que elas sejam dirigidas à pessoa certa, que sejam expressas com uma
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intensidade adequada, na altura certa, e com o objectivo certo. Muitas vezes as
crianças e os adolescentes deslocam a raiva de um objecto para outro. O adolescente
pode estar profundamente zangado e frustrado com os seus pais ou professores e, por
isso, agride de forma despropositada e excessiva um colega mais frágil ou um animal
indefeso. Nestas circunstâncias a raiva é deslocada do objecto verdadeiro, isto é,
sobre o qual deveria de recair – o pai, a mãe, o professor – para um outro objecto
menos capaz de retaliar. A descarga da raiva fá-lo sentir-se poderoso, forte e numa
espécie de identificação ao agressor deixa de se sentir vítima e passa,
inconscientemente, a sentir-se em controlo absoluto da situação.
Esta sensação de poder tem um efeito inebriante associado à descarga de adrenalina
e ao sentimento de superioridade. Este efeito pode levar o adolescente (ou a criança)
a repetir a estratégia encontrada cada vez mais frequentemente e com mais facilidade.
As crises de raiva são, na maioria das vezes, despoletadas por acontecimento externo
mas obedecem a necessidades emocionais internas. As crises de raiva podem eclodir
subitamente porque sofremos uma contrariedade, porque nos magoámos
acidentalmente, porque sentimos que alguém foi agressivo connosco, porque nos
sentimentos encurralados, porque nos sentimos humilhados ou diminuídos ou ainda
porque temos inveja, ciúme, etc. A raiva e a ira são emoções muito intensas e
poderosas e rapidamente fazem com que a criança ou o adolescente perca a
racionalidade sobre o que se passa, por vezes, sobre o efeito da raiva a pessoa deixa
de pensar, de analisar as suas acções e as consequencias das mesmas. Uma vez
disparado o gatilho da raiva, a pessoa pode reprimi-la ou expressá-la. Em muitas
circunstâncias reprimir a raiva é melhor do que expressá-la, mas na verdade não
resolve o problema e pode originar dificuldades psicológicas sérias como depressão e
perturbações psicossomáticos. A resolução do problema passa por encontrar formas
adequadas e ajustadas de expressar a raiva, diminuir o número de situações que
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desencadeiam as crises de raiva, resolvendo-as de forma adequada e, por último,
diminuir a intensidade da raiva sentida. Para conseguir este efeito – a melhoria das
competências de gestão do impulso agressivo – muitas vezes é necessário um
trabalho moroso de amadurecimento da personalidade. A ligação amor/ódio é
fundante da capacidade de olhar o outro como um todo e permite o desenvolvimento
da empatia. Todos nós temos coisas de que os outros não gostam e coisas de que
gostam; assim como todos os outros têm características gostáveis e características
detestáveis. Uma pessoa que seja exclusivamente amada ou exclusivamente
detestada é fruto de imaturidade psico-afectiva.
Quando a zanga e a raiva são vividas e expressas de forma construtiva ajudam o
adolescente a aumentar a sua auto-estima e sentir-se mais respeitado por si próprio e
pelos outros. No fundo aquilo que se pretende é que os adolescentes sejam, cada vez
mais, capazes de comunicar de forma assertiva. A comunicação assertiva é
construtiva. Os interlocutores dos adolescentes devem também ser sempre capazes
de comunicar de forma assertiva. Neste sentido e porque estamos num seminário que
a aborda o problema do bullying em contexto escolar, gostaria de chamar a vossa
atenção para o facto os professores também precisarem de pensar melhorar as suas
competências de gestão da agressividade dado que estão permanentemente expostos
a situações que despoletam grande tensão emocional.
Apenas o recalcamento, o deslocamento e a sublimação abrem caminha para a
verdadeira transformação através da simbolização. A simbolização permite a
construção da diferenciação si/outro. É preciso não esquecer que o ódio é sentido
como uma angústia interior de esgotamento de tudo o que existe de bom, perante
forças destruidoras que não podem ser dominadas. O ódio advém, portanto de
sentimentos de profunda impotência e revolta.
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Para as crianças que têm como característica pessoal uma pulsão agressiva intensa,
os pais podem proporcionar-lhes oportunidades de direccionar essa força para um
caminho produtivo como actividades artísticas ou desportivas e simultaneamente
ajudarem a criança a suavizar a agressividade. A melhor forma de suavizar o ódio é
temperá-lo com amor. Gostaria também de chamar a vossa atenção para o facto de
determinados desportos, como o boxe, que aparentemente poderiam ser boas formas
de escoar o excesso agressivo, podem acabar por ter um efeito inverso, estimulando
ainda mais o impulso agressivo. Encontrar estratégias de escoamento da
agressividade nunca deve ser o único caminho. Abrir canais para libertar a
agressividade é algo que devemos fazer em paralelo com um trabalho profundo de
compreensão e transformação dos impulsos. A criança tem de aprender a dominar os
seus desejos agressivos exactamente como tem de aprender a dominar os desejos
sexuais.
Por último gostaria de diferenciar a agressividade e a violência do sadismo. Enquanto
a agressividade e a violência passam dominantemente pela intensidade da força
aplicada, o sadismo implica um certo prazer no exercício dessa violência associado à
percepção, real ou imaginária, do sofrimento do outro. O sadismo está associado à
crueldade e acontece quando há uma certa erotização do sofrimento. A percepção do
sofrimento do outro gera em nós – pela ausência de sofrimento em nós – um
sentimento de invencibilidade. É o outro que sofre e não nós! A percepção da
fragilidade do outro acentua o nosso sentimento de força e potência. Ver o outro na
mó de baixo, faz-nos sentir ilusoriamente, na mó de cima. No sadismo joga-se o jogo
do gato e do rato; do senhor e do escravo. Subjugo para afirmar perante mim próprio
que não sou subjugado. Destruo para afirmar perante mim próprio que não sou
destruído. O gozo do triunfo sádico é a afirmação da minha superioridade. E a
necessidade de nos sentirmos superiores é directamente proporcional aos nossos
sentimentos, conscientes ou inconscientes, de inferioridade.
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No bullying aquilo que nos deve preocupar é o sadismo. O gozo associado à
destruição. As crianças sádicas – tal como os adultos – têm a área do gozo imbricada
na pulsão de morte. O sadismo denota a excitação e prazer provocados pelo
sofrimento alheio. O sádico pode deliciar-se com um sofrimento que não foi infligido
por si próprio. Num certo sentido, determinados filmes e cenas de humor, em que
coisas más acontecem aos protagonistas, permitem-nos de forma sublimada realizar o
gozo sádico que existe em todos nós. O domínio de uma vítima aterrorizada pode
fazer-nos sentir super-homens.
Se na violência o problema central está numa excessiva clivagem dos objectos
diferenciando-os pelas suas qualidades amorosas ou detestáveis e por isso são
vividos como totalmente maus ou totalmente bons e idealizados. Atacados e
destruídos os maus e protegidos os bons; no sadismos o problema central é a
sobreposição entre o ódio e o amor estimulando uma relação destrutiva e geradora de
dor com as pessoas (ou determinada característica da pessoa) que, de alguma forma,
nos excitam ou estimulam o nosso desejo de proximidade. As crianças e os
adolescentes que apresentam uma relação sádica com os alvos dos seus ataques
destrutivos devem, na minha opinião, de ser precocemente identificadas e ajudadas
com terapêutica psicológica adequada.