Vinicius de Moraes e a Poesia Metafísica

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    UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SULINSTITUTO DE LETRAS

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM LETRASREA: ESTUDOS DE LITERATURA

    ESPECIALIDADE: LITERATURAS BRASILEIRA, PORTUGUESA E LUSO-AFRICANASLINHA DE PESQUISA: LITERATURA, IMAGINRIO E HISTRIA

    VINICIUS DE MORAES E A POESIA METAFSICA

    JULIANA SANTOS

    ORIENTADORA: PROFA. DRA. ANA MARIA LISBOA DE MELLO

    Dissertao de Mestrado em Literaturas Brasileira,

    Portuguesa e Luso-africanas, apresentada como requisito

    parcial para a obteno do ttulo de Mestre pelo Programa

    de Ps-graduao em Letras da Universidade Federal doRio Grande do Sul.

    PORTO ALEGRE

    2007

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    Agradecimentos

    Ana, Orientadora (assim com O maisculo, moda simbolista, devolvendo palavra o seu sentido original e grandioso).

    Ao CNPq e CAPES, pelo imprescindvel apoio financeiro nestes anos de pesquisa.

    Biblioteca Nacional, BSCSH e Biblioteca particular da Ana, fundamentais

    para os resultados deste trabalho e de tantos outros.

    s professoras Ana Lcia Liberato Tettamanzy, Cludia Mentz Martins e Mrcia

    Helena Saldanha Barbosa, por compartilharem comigo este estudo.

    minha famlia e aos meus amigos, por me salvarem do trabalho e porcomemorarem sempre comigo.

    Ao Daniel, companheiro perfeito.

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    Dialtica

    claro que a vida boaE a alegria, a nica indizvel emoo claro que te acho lindaEm ti bendigo o amor das coisas simples claro que te amo

    E tenho tudo para ser feliz

    Mas acontece que eu sou triste...

    Vinicius de Moraes (Montevidu, 1960)

    Potica (II)

    Com as lgrimas do tempoE a cal do meu diaEu fiz o cimentoDa minha poesia.

    E na perspectivaDa vida futuraErgui em carne vivaSua arquitetura.

    No sei bem se casaSe torre ou se templo:(Um templo sem Deus.)

    Mas grande e claraPertence ao seu tempo Entrai, irmos meus!

    Vinicius de Moraes (Rio, 1960)

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    Resumo

    Freqentemente, os crticos dividem a produo potica de Vinicius de Moraes em

    duas fases, intitulando-as fase mstica e social. Fazem parte da chamada primeira fase as

    seguintes obras: O caminho para a distncia (1933), Forma e exegese (1935), Ariana, a

    mulher(1936), Novos poemas(1938) e Cinco elegias(1943). A segunda fase composta

    principalmente pelos seguintes livros: Poemas, sonetos e baladas (1946), Ptria minha

    (1949),Antologia potica(1954),Livro de sonetos(1957) eNovos poemas (II)(1959).

    Alguns estudiosos, como Renata Pallotini e Otto Lara Resende, consideram aproduo inicial de Vinicius, voltada para questes metafsicas, como um experimentalismo

    esttico, logo abandonada para dar lugar ao verdadeiro poeta que se apresentaria em um

    segundo momento, dedicado lrica de tendncia social e amorosa. Outros crticos, como

    Antonio Candido e David Mouro Ferreira, contrariando tal posicionamento, defendem a

    idia de uma reelaborao destes princpios para uma espcie de humanizao do sentimento

    religioso.

    Partindo desses posicionamentos, este trabalho dedica-se ao estudo da poesia inicial deVinicius, destacando as suas principais caractersticas e influncias, e ainda apresentao de

    alguns poemas da sua produo final e de algumas criaes musicais, como forma de lanar

    luz sobre o percurso dos fundamentos e do simbolismo religiosos na produo artstica do

    poeta.

    Inicialmente, foi feita uma reviso da fortuna crtica de Vinicius e, em seguida,

    realizou-se a anlise das composies poticas e musicais, tomando por base o texto bblico e

    os fundamentos tericos da lrica, da metafsica e do imaginrio.A pesquisa permitiu caracterizar a poesia inaugural, no que tange questo da

    religiosidade e, a partir disso, dar visibilidade permanncia destes elementos de carter

    metafsico, tanto na poesia final quanto na cano, o que contraria a tese do artificialismo de

    sua produo inicial.

    Palavras-chave:Vinicius de Moraes; metafsica; religiosidade; poesia; cano.

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    Rsum

    Souvent, les critiques divisent la production potique de Vinicius de Moraes en deux

    phases, la phase mystique et la phase sociale. La premire est compose des uvres

    suivantes: O caminho para a distncia (1933), Forma e exegese (1935), Ariana, a mulher

    (1936), Novos Poemas (1938) et Cinco elegias (1943). La deuxime phase comprend

    principalement: Poemas, sonetos e baladas (1946), Ptria minha (1949), Antologia potica

    (1954),Livro de sonetos(1957) etNovos Poemas II(1959).

    Certains thoriciens, tels que Renata Pallotini et Otto Lara Resende, considrent laproduction initiale de Moraes tourne vers les questions mtaphysiques comme un

    exprimentalisme esthtique; daprs eux, cette production a vite t abandonne pour cder

    la place au vritable pote, qui se consacra la lyrique tendance sociale et amoureuse.

    Dautres critiques, comme Antonio Candido et David Mouro Ferreira, ne partagent pas cette

    opinion et dfendent lide dune rlaboration de ces dbuts en une sorte dhumanisation du

    sentiment religieux.

    Sur la base de ces points de vue, le prsent travail analyse la posie initiale de Moraes,avec laccent sur ses principales caractristiques et ses influences. Dautre part, il prsente

    quelques pomes de la production finale de lauteur et certaines crations musicales, dans le

    but de montrer le parcours des fondements et du symbolisme religieux dans la production

    artistique du pote.

    Ltude se penche tout dabord sur la fortune critique de Moraes, puis analyse des

    compositions potiques et musicales, en sappuyant sur le texte biblique et les fondements

    thoriques de la lyrique, de la mtaphysique et de limaginaire.La recherche a permis de caractriser la posie inaugurale en ce qui concerne la

    question de la religiosit. Partant de l, il a t possible de mettre en vidence la permanence

    de ces lments caractre mtaphysique, aussi bien au niveau de la posie finale que de la

    chanson, ce qui va lencontre de la thse de lartificialisme de sa production initiale.

    Mots-cls: Vinicius de Moraes; mtaphysique; religiosit; posie; chanson.

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    Sumrio

    Introduo ..................................................................................................................................8

    1. As fases de Vinicius segundo seus crticos ..........................................................................10

    2. A conturbada dcada de 1930 ..............................................................................................15

    3. Caracterizao e principais momentos da poesia metafsica ...............................................24

    4. Vinicius e a poesia metafsica ..............................................................................................29

    4.1. O caminho para a distncia (1933)..................................................................................34

    4.2. Forma e exegese (1935)...................................................................................................434.3. Ariana, a mulher (1936)...................................................................................................52

    4.4. Novos poemas (1938)......................................................................................................59

    4.5. Cinco elegias (1943)........................................................................................................66

    5. Ainda a metafsica: na poesia final e no cancioneiro ...........................................................75

    Concluso .................................................................................................................................87

    Referncias ...............................................................................................................................90

    Bibliografia consultada.............................................................................................................94Textos tericos e de apoio......................................................................................................94

    Obras e fortuna crtica de Vinicius de Moraes.......................................................................99

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    Introduo

    Vinicius de Moraes, carioca nascido em 19 de outubro de 1913 e morto em 1980, foi,

    nas palavras de Carlos Drummond de Andrade, o nico de ns que teve vida de poeta (In

    CASTELLO, 1994, p. 15). O memorvel poetinha1, que passou por nove casamentos, fez

    inmeras e longas viagens e ganhou fama por sua bomia e pelas parcerias na Msica Popular

    Brasileira, foi bastante verstil, produziu poesia, msica, teatro, crtica de cinema, crnica.

    No entanto, apesar do reconhecimento pblico de Vinicius de Moraes, devido

    principalmente sua participao na construo da MPB, no existem muitos estudos arespeito de sua poesia, especialmente da lrica inaugural. Os poucos trabalhos que mencionam

    essa poesia inicial de Vinicius tendem a consider-la como uma lrica artificial, fruto da

    imaturidade artstica e de influncias que no correspondiam natureza do poeta. Por esse

    motivo, o trabalho a ser desenvolvido tem como foco principal a produo lrica inicial de

    Vinicius de Moraes, chamada poesia da primeira fase ou poesia mstica, e que pouca ateno

    tem recebido por parte da crtica.

    O estudo dar maior destaque s cinco primeiras obras, consideradas ainda envoltas nochamado sentimento do sublime, mas dedicar-se- ainda anlise de alguns poemas da

    chamada segunda fase e de algumas letras de canes com o intuito de problematizar esta

    diviso.

    A necessidade de empreender esta pesquisa surgiu durante o curso de graduao, na

    condio de bolsista de iniciao cientfica vinculada ao projeto A poesia metafsica no

    Brasil: percursos e modulaes, coordenado pela professora Ana Maria Lisboa de Mello e

    com o apoio do CNPq. O projeto tinha como objetivo delinear a trajetria da poesiametafsica produzida no Brasil entre 1870 e 1950, que evoca questes relativas ao Ser, a

    Deus, temporalidade e morte. Estavam no corpus da pesquisa os seguintes poetas: Cruz e

    Sousa, Alphonsus de Guimaraens, Eduardo Guimares, Alceu Wamosy, Augusto dos Anjos,

    Henriqueta Lisboa, Ceclia Meireles, Murilo Mendes, Jorge de Lima, Augusto Frederico

    Schmidt e Vinicius de Moraes, ficando sob minha responsabilidade o estudo dos dois ltimos.

    1O compositor e cronista Antonio Maria, a quem Vinicius chamava de o meu Maria, foi o primeiro a cham-lode poetinha. Antonio Maria fez uma rplica ao prprio estilo do poeta, que utilizava muito os diminutivos,pois achava que nada no diminutivo faz mal (Cf. CASTELLO, 1994, p. 16-17).

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    Por esta razo, os resultados deste estudo iro somar-se pesquisa em torno da poesia

    de Augusto Frederico Schmidt, iniciada durante o curso de graduao, e devero fazer parte

    de uma publicao que apresentar a totalidade dos estudos realizados no projeto de pesquisa

    mencionado, procurando contribuir para a historiografia literria brasileira. A investigao da

    poesia de Vinicius, assim como a de Schmidt, seguiu a metodologia de estudo proposta para o

    desenvolvimento do projeto, que tinha por base o levantamento da obra e da fortuna crtica

    dos poetas e uma posterior anlise destes materiais a partir dos fundamentos tericos da lrica,

    da metafsica e do imaginrio.

    A escassez de materiais e estudos acerca desta produo e a dificuldade em ter acesso

    a eles, que se evidenciaram j no incio do desenvolvimento do projeto, estimularam o

    desenvolvimento desta pesquisa, que procurou analisar a obra do poeta e contextualiz-la noconjunto da poesia brasileira de teor metafsico, buscando verificar as influncias recebidas, a

    sua trajetria e as caractersticas desse questionamento metafsico.

    A aproximao da poesia inicial de Vinicius com a religio, visvel pelo uso do texto

    bblico, e um certo hermetismo imagtico, presente especialmente na obra Forma e exegese,

    foram entendidos como principais empecilhos para a explorao desta lrica pela crtica

    literria brasileira, voltada predominantemente para obras de cunho social.

    Como forma de apresentao deste estudo, obedecemos seguinte estrutura: oprimeiro captulo traz alguns posicionamentos da crtica em relao s duas fases da poesia

    viniciana e nosso posicionamento em relao a esta diviso. O segundo foi dedicado ao

    contexto histrico e literrio da dcada de 1930, numa tentativa de situar a produo inicial de

    Vinicius em meio aos poetas e pensadores da poca. O terceiro traz alguns conceitos da

    poesia metafsica, seus principais momentos e caractersticas dentro do conjunto da literatura

    universal e brasileira. Nesta seo, tem destaque o conceito do verset claudeliano,

    fundamental na obra de Vinicius. O quarto captulo apresenta e analisa poemas das cincoobras iniciais da produo potica de Vinicius, procurando demonstrar os temas e formas

    desta esttica inaugural. Esta seo foi organizada em cinco subcaptulos, levando em

    considerao as suas obras, pois acreditamos que cada obra possui estilo prprio, como ser

    discutido ao longo do trabalho. Finalmente, o quinto captulo dedica-se lrica final e s letras

    das canes produzidas por Vinicius, com o propsito de observarmos traos formais e

    temticos caractersticos da primeira fase ainda presentes em suas ltimas criaes.

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    1. As fases de Vinicius segundo seus crticos

    A crtica literria brasileira comumente costuma dividir a produo potica de Vinicius

    em duas fases: a primeira, caracterizada pela chamada poesia mstica, composta pelos livros

    O caminho para a distncia(1933),Forma e exegese(1935),Ariana, a mulher(1936),Novos

    poemas (1938) e Cinco elegias (1943) este ltimo geralmente considerado como produto

    intermedirio entre a primeira e a segunda fase e a segunda fase, caracterizada pela chamada

    poesia social, composta principalmente pelos livros Poemas, sonetos e baladas (1946),

    Ptria minha (1949),Antologia potica(1954),Livro de sonetos(1957) eNovos poemas (II)(1959).

    De maneira geral, segundo os crticos da obra viniciana, o que caracteriza a primeira

    fase so o verso longo, de feio claudeliana; a influncia do texto bblico e da poesia dos

    simbolistas franceses e o desenvolvimento de temas como a transcendncia ou o pecado da

    carne. A segunda fase, por sua vez, caracterizada pelo verso mais contido e pela produo

    de sonetos, baladas e outras estruturas clssicas; pelo tom mais coloquial e pelo

    desenvolvimento de temas como o amor, o cotidiano e os problemas sociais.A freqncia com que a crtica divide a produo potica de Vinicius em duas partes

    representa indcio bastante consistente de que h realmente diferenas entre essas duas fases.

    No entanto, possvel verificar que essa fronteira que divide a produo de Vinicius no to

    clara e definitiva como a crtica, por vezes, nos faz crer. Nos prximos captulos, a partir da

    anlise da obra, pretendemos demonstrar que muitas das caractersticas presentes na produo

    inicial de Vinicius ainda so encontradas na sua produo final, ainda que com menor

    recorrncia ou de maneira diferenciada. Dalma Braune Portugal do Nascimento, em sua teseintitulada O teorema potico de Vinicius de Moraes, tambm questiona esta segura distino

    entre as fases e chega a afirmar que em Vinicius no h, em essncia, a diviso (1984, p.

    146).

    Ainda no que diz respeito diviso na produo potica de Vinicius, percebemos que

    a crtica tem se posicionado basicamente a partir de duas formas distintas. A primeira diz

    respeito queles que acreditam que a lrica amorosa e social, produzida na chamada segunda

    fase, constitui a potica viniciana por excelncia e no atribuem papel relevante para a poesia

    inicial de Vinicius. E a segunda refere-se aos que percebem uma continuidade em sua

    produo potica e afirmam que o misticismo de Vinicius passou por uma reelaborao,

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    convertendo-se em um sentimento religioso da existncia2, ou em uma humanizao do

    dogma espiritual. Colocamo-nos ao lado dessa segunda posio e pensamos estar trazendo

    alguns elementos que contribuem com esse posicionamento.

    Mrio de Andrade, Ivan Junqueira, Renata Pallotini e Otto Lara Resende, entre outros

    crticos, pertencem ao primeiro grupo, ou seja, apresentam a idia de que a produo inicial

    de Vinicius caracteriza-se pelo artificialismo, pois fruto de influncias que so alheias ao

    verdadeiro poeta, que somente ganhar voz em um segundo momento.

    Mrio de Andrade enftico ao fazer a seguinte afirmao:

    A personalidade demostrada por Vinicius de Moraes nos livros anteriores [aNovos poemas] era, seno falsa, pelo menos bastante reorganizada por preconceitos adquiridos. Era uma personalidade

    que se retratava pela doutrina esttica adotada, muito mais que uma real personalidade, vinda defatalidades interiores. O que h de admirvel no poeta justamente, em plena mocidade, terconseguido autocrtica bastante para reconhecer o descaminhamento, ou melhor, o perigo em queestava, e tentar se enriquecer de mais profunda, mais humana, mais pessoal realidade. (InMORAES, 2004, p. 82)

    A voz de Ivan Junqueira alia-se de Mrio quando afirma que, at Novos poemas, o

    que se v um poeta imaturo, que tateia sua dico e seu ritmo definitivos (In MORAES,

    2004, p. 150). Otto Lara Resende, no prefcio ao Livro de sonetos, tambm apresenta

    posicionamento semelhante ao dos crticos citados:

    Desapareceram os sustenidos artificiosos e os falsetes que no lhe pertenciam. O poeta deixa defazer pose: cedo enjoa de orgulhosa inquietao mais ou menos postia e, no seu caso, de umanfase muito mais adolescente do que potica. (In MORAES, 2004, p. 94)

    Vinicius, por vezes, refere-se sua poesia inicial como fruto de sua inexperincia ou

    como produto de uma angstia juvenil que o perturbava. Alm disso, escreve uma

    advertncia, para introduzir suaAntologia potica, em que divide a sua poesia em duas partes:

    a primeira, transcendental, freqentemente mstica, resultante de sua fase crist, e a

    segunda, em que esto nitidamente marcados os movimentos de aproximao do mundo

    material, com a difcil mas consistente repulsa ao idealismo dos primeiros anos (2004, p.

    364).

    Como podemos perceber, as crticas de Mrio de Andrade, Ivan Junqueira e Lara

    Resende esto muito prximas das concepes que o poeta tem de sua prpria produo e, em

    nosso entendimento, so informaes que podem auxiliar na anlise de sua obra, mas no

    podem servir como elemento principal para o desenvolvimento do trabalho crtico. A prpria

    2Expresso de David Mouro Ferreira (In MORAES, 2004, p. 106).

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    necessidade de negar o teor religioso de sua criao, de desculpar-se publicamente por ele j

    podem servir de indcio da importncia que a tendncia transcendental apresenta nessa

    produo. Alm disso, o estudo da obra traz elementos da criao, involuntrios e

    imperceptveis ao artista, que tornam-se ainda mais relevantes para a anlise.

    Ao lado do posicionamento destes crticos, temos ainda as palavras de Pallotini, que

    reforam a idia de que o misticismo de Vinicius mera experimentao esttica e no

    expressam a verdade do poeta:

    Misticismo, parece-nos, cousa mais profunda e de mais duradouras razes; provm denecessidades naturais inelutveis, de caractersticas de personalidade, de influncias ambientes ede um embasamento religioso (de qualquer espcie) que faltavam ao poeta. (In MORAES, 2004, p.141)

    Enquanto Lara Resende atribuia imaturidade, angstia juvenil do poeta esta lrica

    de cunho mstico, Pallotini afirma no pertencer natureza do poeta tal tendncia religiosa. A

    influncia do contexto histrico tambm menosprezada pela ensasta enquanto explicao

    ou justificativa para essa potica inaugural.

    No entanto, para Alfredo Bosi, a produo lrica inicial de Vinicius, assim como a de

    outros poetas do mesmo perodo, foi vista como fruto da profunda influncia que a poesia

    catlica francesa exerceu sobre a produo artstica brasileira na dcada de 1930. Bosi (1994,

    p. 448) afirma que:

    A renovao da literatura crist, que nos anos de 30 contou com os nomes de Ismael Nery, Jorgede Lima, Augusto Frederico Schmidt, Otvio de Faria, Vincius de Moraes, Tristo de Atade eoutros, teve, como se sabe, razes neo-simbolistas francesas. Um Pguy, um Bloy, um Bernanos,um Claudel, dariam temas e formas ao novo catolicismo latino-americano que neles e nos ensaiosde Maritain viu uma ponte segura entre a ortodoxia e algumas formas modernas de pensamento(Bergson), de prxis (democracia, socialismo) e de arte.

    A afirmao de Bosi traz simultaneamente duas informaes relevantes sobre as

    condies dessa poesia de teor catlico na dcada de 1930. De um lado, a influncia da poesia

    francesa nesse processo; de outro, o momento profcuo da poesia catlica, permeando a obra

    de diversos poetas brasileiros. O movimento antiliberal, alicerado em ideais monrquicos e

    catlicos, que se fortaleceu nesse perodo3, est na base do perodo frtil que a lrica de feio

    catlica viveu em meados de 30. O grande interesse pela poesia catlica francesa pode ento

    3Para maiores informaes a esse respeito, consultar a obra Integralismo o fascismo brasileiro na dcada de30, de Hlgio Trindade.

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    ser vinculado a tais condies histricas, ao sentimento de poca vivenciado no Brasil de

    1930, o que enfraquece muito a argumentao de uma mera importao esttica.

    Alm disso, converge para essa produo potica de teor mstico, religioso a formao

    catlica que Vinicius recebeu do Colgio Santo Incio e mesmo uma especial sensibilidade do

    poeta que, em algumas ocasies, havia pressentido, sonhado com situaes que haveriam de

    se concretizar (Cf. CASTELLO, 1994). O sentimento religioso de Vinicius encontra

    ressonncia nesse momento de revitalizao de valores catlicos, fazendo surgir

    definitivamente o poeta. Mas a sua lrica no se desenvolve meramente por condies que lhe

    so alheias. Questes como a espiritualidade, a morte ou o amor, com toda a carga de mistrio

    que trazem consigo, esto na base dos mais belos poemas de Vinicius.

    Podemos retomar nesse momento as palavras de Adorno em seu discurso Lrica e

    sociedade: No se trata de deduzir a lrica da sociedade; seu contedo social exatamente o

    espontneo, aquilo que no se segue das relaes j vigentes em dado momento (1980, p.

    198). A fora da poesia inicial de Vinicius no est no uso de imagens bblicas como uma

    tentativa de representar ou defender uma ideologia catlica com a qual dialogava, mas est na

    construo de uma poesia permeada de sentimentos tais como a angstia, a solido, o

    encontro com a espiritualidade ou o medo da morte, estes sim capazes de revelar o que h de

    social e, ao mesmo tempo, universal e eterno na poesia de Vinicius de Moraes.O segundo grupo apresenta uma outra tendncia na anlise da produo potica de

    Vinicius, j que percebe a permanncia dos elementos poticos iniciais e da religiosidade que

    caracteriazam a poesia inaugural viniciana. Dessa forma, rompe com a parcela da crtica que

    compreende a produo inicial de Vinicius como um mero artificialismo, desvinculada da

    produo que vir a seguir. Participam dessa tendncia crticos como David Mouro Ferreira,

    Dalma Braune Portugal do Nascimento, Antonio Candido e Jos Castello.

    Do trabalho desenvolvido pelo crtico David Mouro Ferreira, extramos a seguinteafirmao: No apenas aqui ou ali, neste ou naquele pormenor, que a religiosidade da

    primeira fase se manifesta; elapercorre, na verdade, a obra toda, de um extremo ao outro, e,

    percorrendo-a, f-la incessantemente latejar [...] (In MORAES, 2004, p. 105).

    Para Dalma Nascimento (1984, p. 106),

    quem foi ulcerado pelas chagas como mostram tantos e tantos poemas fica com irremovveiscicatrizes. Repdio [ao misticismo inicial], pois, no houve. Apenas depurao. E acalmia dosopro indmito da juventude audaz.

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    Note-se que Dalma retoma as palavras de Vinicius na advertncia sua Antologia

    potica (a difcil mas consistente repulsa ao idealismo dos primeiros anos) de modo a

    contestar as afirmaes do poeta. Alm disso, a autora compreende as mudanas na criao

    potica do autor como processo natural de depurao e amadurecimento, sem compartilhar da

    percepo de artificialidade proposta pelos crticos analisados anteriormente.

    Jos Castello, bigrafo do poeta, tambm ir colocar-se ao lado dessa tese de que a

    explorao do mistrio da existncia, das questes metafsicas estar na base da criao de

    Vinicius. No entanto, percebe uma modulao diferente no que tange questo da

    religiosidade no decorrer de sua produo. Castello (1994, p. 14) afirma que a grande

    aventura de Vinicius foi deslocar o mistrio do domnio do dogma espiritual para o territrio

    do humano. O crtico entende que a criao que se construa bastante enraizada nos preceitose imagens do catolicismo ir dirigir-se a construes lricas menos atreladas a esses dogmas,

    aproximando-se das questes humanas e universais, como o mistrio da vida e da condio

    humana, o sofrimento pela morte, a fora do amor ou a condio imperfeita e frgil do

    homem. Essa humanizao da poesia no significa, no entanto, um completo abandono das

    imagens e temas que caracterizam a sua produo inicial, conforme veremos adiante.

    Antonio Candido, ao referir-se ao livroPoemas, sonetos e baladas (1946), afirma que,

    nesta obra, talvez seja o momento de sntese das suas capacidades e ritmos. Neleencontramos Vinicius inteiro, o de antes e o de depois; o que apela para a transcendncia e o

    que realiza o verso correndo os dedos pelo violo (In MORAES, 2004, p. 121). Candido

    percebe a reelaborao articulada pelo poeta, em que rene e entrecruza as diversas faces de

    sua produo artstica.

    Com estas consideraes iniciais, procuramos mostrar as duas linhas gerais que a

    crtica assume no que diz respeito diviso da obra potica de Vinicius de Moraes e, a partir

    delas, assumir uma posio, que, conforme j foi dito, se alia concepo de que sua lricainicial revela-se como uma proposta artstica condizente com a natureza do poeta e, portanto,

    profcua em seu processo artstico, perceptvel pelo fato de vislumbrarmos ainda nas ltimas

    publicaes de Vinicius muitos traos caractersticos de suas primeiras obras. Dessa forma,

    colocamo-nos em posio contrria tese de que esta lrica inaugural corresponde aos

    fundamentos estticos e morais presentes em suas leituras e apregoados por seus

    companheiros e que no encontra terreno frtil na verdadeira criao potica viniciana que

    vir a se consolidar somente nas prximas obras. No decorrer deste trabalho, nosso

    posicionamento crtico dever tornar-se mais claro e justificado.

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    2. A conturbada e plural dcada de 1930

    Embora a crtica reserve para a segunda fase de Vinicius o ttulo de Poesia social,

    podemos perceber em sua poesia inicial uma ntima relao com o momento histrico e

    poltico de sua produo. Joo Luiz Lafet (1974, p. 17) sintetiza com clareza a crise poltica

    e social vivenciada no Brasil e em todo o mundo durante a dcada de 1930 e que encontraria

    na Literatura uma grande fonte de expresso:

    O decnio de 30 marcado, no mundo inteiro, por um recrudescimento da luta ideolgica:fascismo, nazismo, comunismo, socialismo e liberalismo medem suas foras em disputa ativa; osimperialismos se expandem, o capitalismo monopolista se consolida e, em contraparte, as FrentesPopulares se organizam para enfrent-lo. No Brasil a fase de crescimento do Partido Comunista,de organizao da Aliana Nacional Libertadora, da Ao Integralista, de Getlio e seu populismotrabalhista. A conscincia da luta de classes, embora de forma confusa, penetra em todos oslugares na literatura inclusive, e com uma profundidade que vai causar transformaesimportantes.

    Nas palavras de Lafet, vislumbramos as diversas correntes de pensamento e de

    conseqente postura poltica em confronto neste perodo. Cidados, pensadores e artistas

    procuram assimilar essas idias e encontrar seu espao diante destas vrias formas de

    conceber a vida e a sociedade. No ser mera coincidncia que em 1922 ouamos os

    primeiros gritos de uma reao modernista na literatura e que, muito em breve, esta receba a

    contestao de uma outra corrente, conhecida como a segunda gerao modernista,

    marcadamente ideolgica, conforme nos declara Lafet (1974, p. 17):

    Um exame comparativo, superficial que seja, da fase herica e da que se segue Revoluomostra-nos uma diferena bsica entre as duas: enquanto na primeira a nfase das discusses caipredominantemente noprojeto esttico(isto , o que se discute principalmente a linguagem), nasegunda a nfase sobre oprojeto ideolgico(isto , discute-se a funo da literatura, o papel doescritor, as ligaes da ideologia com a arte).

    Alceu Amoroso Lima tambm estabelece uma clara distino quando trata das duas

    geraes modernistas. Afirma o crtico (1956, p 122-123):

    O aparecimento de uma nova gerao, de um novo grupo de poetas, vinha retirar o carter anti-esttico, poesia versus verso, da primeira gerao. Era a poesia vitoriosa do verso, que os novos

    poetas traziam consigo. Augusto Frederico Schmidt, Carlos Drumond de Andrade, Jorge de Lima,Vinicius de Moraes, Murilo Mendes, Dante e Atlio Milano, Onestaldo de Penafort, todos osBigs da segunda gerao modernista, j no se ocupam em demolir o verso, como haviam feitoos seus predecessores. J o recebiam vencido e despojado do seu prestgio parnasiano ou

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    simbolista. [...] A poesia triunfava solitria e fazendo do verso simples elemento acidental oumarginal, totalmente subordinado forma interior, ao esprito, ao sentido profundo, ao perfume, aoncleo, a tudo o que a superioridade da poesia sobre o verso traz consigo.

    Sem desconsiderarmos o importante papel poltico da primeira gerao modernista,que intentou redescobrir e mostrar o nosso pas, refletindo igualmente sobre o papel da arte,

    percebemos na segunda gerao um recrudescimento nesta discusso ideolgica e um

    profundo entrelaamento entre o fazer literrio e a postura poltica (e mesmo tica, como

    afirmam alguns) de seus criadores. Tanto assim que Wilson Martins (1973, p. 106) chega a

    declarar que nos ltimos anos da dcada de 20 e durante toda a dcada de 30, as opes

    direita e esquerda pareceram imperativas maior parte dos intelectuais. Somada a esta

    polaridade direitaesquerda, est a forte presena do catolicismo, normalmente associado aospartidrios de direita, mas que apresenta-se como um pensamento e uma postura poltica

    parte.

    No entanto, o que chama a ateno que, no mbito da crtica literria, enquanto a

    criao potica que d enfoque aos regimes do Estado e s decises relativas ao mercado

    percebida enquanto discusso poltica e social, a criao centrada na problemtica religiosa

    geralmente vista como fuga a este debate. Porm, essa discusso de carter religioso muitas

    vezes est alicerada tambm em uma postura poltica e social e, juntamente com as demais,

    marcar presena na produo literria e artstica.

    Contraditoriamente, vemos que a prpria percepo do fundamento religioso

    enquanto postura poltica (e no enquanto evaso) que acaba fomentando acirradas crticas

    literrias. No ser ao acaso que mesmo hoje temos a obra de vrios autores compreendidas

    de forma compartimentada, em que se visualiza um perodo de divagaes religiosas ou de

    debate metafsico, quase que parte de suas outras produes. Digno de nota que no

    comum o mesmo tratamento para uma fase esquerdista ou ainda um perodo anarquista da

    obra do autor. Talvez haja algum exagero em apresentarmos a questo desta forma, mas o

    objetivo o de justamente chamar a ateno sobre o quanto, no terreno da literatura de feio

    religiosa, a anlise literria est impregnada de crtica moral e poltica.

    Pois bem, a obra inicial de Vinicius, produzida em meio a este intenso momento de

    difuso de idias catlicas, traz consigo estas marcas e, assim sendo, parece estar no centro

    desta tendncia da crtica que ora acusa o poeta de evaso mstica, de fuga ao debate social,

    ora enfatiza a influncia das companhias e das leituras enquanto origem da artificialidade de

    sua lrica inicial, conforme pudemos perceber nas amostras do captulo anterior. No entanto,

    de nossa parte, acreditamos que a poesia inicial de Vinicius revela sim uma faceta prpria ao

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    poeta, visto que dialoga at o fim de sua criao com questes de ordem metafsica e com o

    simbolismo e a linguagem religiosos. Alm disso, percebemos tambm o carter social desta

    produo, social no sentido atribudo por Adorno quando afirma que exatamente o no-social

    no poema lrico seria agora seu social, pois entende que a sedimentao [da relao

    histrica entre sujeito e objetividade, indivduo e sociedade] ser tanto mais perfeita quanto

    menos a formao lrica tematizar a relao entre eu e sociedade, quanto mais

    involuntariamente cristalizar-se essa relao, a partir de si mesma, no poema (1980, p. 197).

    Retomando a questo da formao deste perodo de intenso debate religioso, trazemos

    as palavras de Alceu Amoroso Lima (1956, p. 144) afirmando que, j no final do sculo XIX,

    surgia na Europa uma enorme movimentao que viria repercutir em nosso meio.

    Personalidades, obras e converses como as de Claudel, Lon Bloy, Pguy, Maritain, Massis,Bernanos, Mauriac, Rivire, Madaule, Du Bos, Daniel Rops e tantos outros na Frana;

    Chesterton e Belloc na Inglaterra; Eucken, Haecker, Peter Wust, Edith Stein e Romano

    Guardini na Alemanha; Papini na Itlia; Angel Herrera na Espanha; Leonardo Coimbra e

    Antnio Sardinha em Portugal, para s falar nas figuras mais eminentes, s quais se juntariam,

    em breve, nos Estados Unidos, as de Fulton Sheen e Thomas Merton exprimiam a gradativa

    mudana de posio da mocidade de ento, em face do problema religioso (1956, p. 144-145).

    Segundo o autor, uma agitao desta ordem nas idias e na literatura mundiais, nopassou despercebida em nosso pas e foi ainda em 1922 que vieram a pblico duas obras

    fundamentais para a renovao do pensamento catlico no Brasil: A Igreja, a Reforma e a

    Civilizao, de Leonel Franca, e Pascal e a inquietao moderna, de Jackson de Figueiredo.

    ainda na dcada de 1920 que os escritores comeam a se posicionar diante do

    problema religioso. Enquanto Oswald de Andrade e Srgio Buarque de Holanda se afastam,

    outros se aproximam abertamente do debate e da converso religiosa. o caso de Hamilton

    Nogueira, Perillo Gomes, Durval de Moraes, Tasso da Silveira e Sobral Pinto (Cf. LIMA,1956, p. 146).

    Jackson de Figueiredo torna-se figura fundamental da vertente catlica que ganha

    fora neste perodo. Alm de seus escritos, o pensador contribui decisivamente com a

    divulgao do movimento a partir da idealizao e realizao de importantes projetos como a

    Livraria catlica, fundada em 1918; a revista A Ordem, lanada em 1921; e o Centro Dom

    Vital4, criado em 1922. Tanto a revista quanto o Centro eram tambm dirigidos por Hamilton

    4Na biografia de Vinicius, escrita por Jos Castello, encontramos grafado Centro Dom Vidal; no entanto,estamos utilizando a grafia empregada por Alceu de Amoroso Lima e Hamilton Nogueira, que tiveram relaodireta com o Centro.

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    Nogueira, Durval de Moraes, Jos Vicente e Perillo Gomes e tinham como objetivo expor as

    idias do grupo e de outros simpatizantes do movimento, alm de editar livros catlicos em

    geral e de apologtica e organizar dentro do Centro uma grande biblioteca catlica (Cf.

    NOGUEIRA, 1976, p. 140/141). Tais motivaes nos mostram a radicalidade do projeto e sua

    matriz profundamente ideolgica.

    Em 1927, lanada a Revista Festa, que tem como principais diretores Andrade

    Murici, Henrique Ablio, Barreto Filho, Porfrio Soares Neto, Murilo Arajo e Tasso da

    Silveira. Ceclia Meireles e Adelino Magalhes tambm aparecem como seus principais

    colaboradores5.

    Segundo Hamilton Nogueira (1976, p. 139), pouco antes do seu falecimento, Jackson

    [de Figueiredo] tivera duas grandes alegrias! A volta de Tristo de Athayde6 religio e aconverso de Tasso da Silveira. Ser talvez devido a esta ligao entre Tasso e Jackson, alm

    da evidente e enftica defesa de ideais religiosos por parte deste ltimo, que Wilson Martins

    (1973, p. 104) vai afirmar que A importncia de Festa[...] est em ter representado, no plano

    literrio, o movimento ou corrente espiritualista, cuja fonte principal Jackson de Figueiredo

    e que exerceria enorme influncia nas letras atravs de Tristo de Athayde. [...] [A Ordem]

    representaria, mais do que Festa, as tendncias jacksonianas, isto , o tradicionalismo

    religioso e as tendncias reacionrias. Atravs desta afirmao, o crtico nos refora apostura mais ideolgica de Jackson e dA Ordem, firmemente vinculadas ao catolicismo, e

    tambm aponta o vnculo entre essas duas revistas, reservando a Festaum carter espitualista

    (no estritamente religioso ou ainda catlico) e mais vinculado ao escopo literrio do que ao

    doutrinrio7.

    Com isso, Festa j parece ser um dos expoentes, marcadamente literrio, desta

    agitao de tendncia religiosa e espiritual que teve incio ainda nos primeiros anos de 1920.

    A partir de ento, percebemos, na segunda gerao modernista, os resultados de um debatereligioso que ganha profundidade e passa a se projetar maciamente nas letras, atravs da obra

    de poetas, escritores e pensadores, tais como: Augusto Frederico Schmidt, Vinicius de

    Moraes, Jorge de Lima, Murilo Mendes, Ceclia Meireles, Octavio de Faria, Lcio Cardoso,

    Adonias Filho, Andrade Murici e Barreto Filho, apenas para citar alguns nomes.

    5Quanto histria e aos dirigentes da revista, Neusa Pinsard Caccese apresenta dados mais precisos em seuestudo intitulado Festa contribuio para o estudo do Modernismo, com referncia completa ao final deste

    estudo.6Tristo de Athayde o pseudnimo utilizado por Alceu de Amoroso Lima em suas crticas.7O iderio esttico de Festa recebeu estudo recente de Joseane de Mello Rcker. Para maiores informaessobre o assunto, consultar sua dissertao, que tem referncia completa ao final deste trabalho.

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    Augusto Frederico Schmidt visto como figura central desta nova gerao literria

    que rompe com o iderio dos modernistas de 22 , pois prope uma nova poesia, que reflita

    sobre as questes ntimas e universais do esprito. Em 1928, publica sua primeira obra, Canto

    do Brasileiro, e, logo em seguida, em 1929, Cantos do Liberto. As duas obras, espcies de

    poemas-manifesto, lanam esta nova tendncia, e delas extramos alguns versos que

    exprimem sua concepo potica:

    Canto do Brasileiro

    [...]No quero mais o BrasilNo quero mais geografia

    Nem pitoresco.Quero perder-me no mundoPara fugir do mundo.[...] (SCHMIDT, 1995, p. 45)

    Canto II(de Cantos do Liberto)

    [...]No quero mais palavras falsasNo quero mais amores falsos

    No quero mais inteligncias falsasNem falsas construes.

    No quero mais obscuridadesNem mais mistrio sem mistrio algum.

    Quero ouvir do meu Deus a voz bondosaNa voz das coisas da inocncia.Quero a paz de conscincia!

    Longe de mim desnimos tremendosLonge de mim descrenas infelizes.

    Simplicidade!Simplicidade apenas. Nada mais![...] (SCHMIDT, 1995, p. 60)

    O poeta, um dos maiores smbolos desta tendncia catlica na lrica brasileira, manter-

    se- fiel a esta tendncia literria at o final de sua vida.

    Murilo Mendes e Jorge de Lima tambm tero um profcuo dilogo com o texto

    bblico e com esta feio religiosa da lrica. Os dois poetas, que, em 1935, lanam em parceria

    a obra intitulada Tempo e eternidade, estaro inseridos nesta corrente da lrica brasileira de

    teor metafsico, que, neste caso, tambm revela uma tendncia catlica.

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    Ismael Nery, amigo dos poetas, atravs de sua concepo filosfica chamada

    Essencialismo, ter papel relevante nesta produo, que tem como projeto restaurar a

    poesia em Cristo8. Segundo Nry, o sistema essencialista era em ltima anlise uma

    preparao ao catolicismo e estava baseado na abstrao do tempo e do espao. Ele

    acreditava que um homem devia representar sempre em seu presente uma soma total de seus

    momentos passados, pois a localizao de um homem num momento de sua vida contraria

    uma das condies da prpria vida, que o movimento. Alm disso, afirmava que a

    abstrao do tempo no outra coisa seno a reduo dos momentos, necessria

    classificao dos valores para uma compreenso total (Cf. MENDES, 1996, p. 47/53).

    Embalados por tal concepo filosfica, Jorge de Lima e Murilo Mendes desenvolvem

    uma potica voltada para questes do esprito, do confronto entre as noes de tempo eeternidade.

    A essncia da poesia muriliana, que tambm apresenta traos de um surrealismo

    personalssimo, reside no questionamento constante e no confronto entre o real e o irreal, o

    temporal e o eterno, o sagrado e o profano:

    A religiosidade de Murilo est impregnada de rebeldia, expressando revolta contra os dogmas daigreja. Mas o fenmeno religioso [...] atravessado por tenses prprias da existncia cotidiana, as

    quais se imbricam com as questes da f, ensejando dvidas e sentimentos de culpa. (MELLO,2006a, p. 189)

    Em sua poesia, destacam-se os inmeros contrastes, a presena de antinomias,

    paradoxos e rebeldias, cujos contornos so difceis de delinear (MELLO, 2006a, p. 189).

    J Jorge de Lima, poeta organicamente lrico, segundo Alfredo Bosi (1994, p. 452),

    a partir da publicao de Tempo e eternidade, e especialmente comA tnica inconstil(1938)

    e Anunciao e encontro de Mira-Celi (1950), segue por um caminho mais interiorizado e

    espiritual que Murilo, desenvolvendo uma poesia de grande carga simblica, proveniente emparte do uso do texto bblico, numa atmosfera permeada de lirismo, pendor mstico e

    sentimento de fraternidade9. Podemos vislumbrar um pouco desta tendncia potica nos

    8 O sistema filosfico de Ismael Nery foi batizado de Essencialismo pelo prprio Murilo Mendes (Cf.MENDES, 1996, p. 35). A obra Tempo e eternidade dedicada a Ismael Nery e apresenta como introduo afrase Restauremos a Poesia em Cristo.9Em seu auto-retrato intelectual, Jorge de Lima faz a seguinte declarao: depois dos Poemas escolhidos, [...]passei a inclinar-me no mais pelo gnero de poemas que fazia, mas por outro, de fundo mstico. E como no

    tinha compromisso de escola, senti-me inteiramente vontade para empreender a desejada renovao, jhavendo compreendido que o plano mais elevado para isso seria uma poesia que restaurasse em Cristo, que amais alta Poesia, a mais alta verdade, o nosso destino mesmo, e tivesse, no uma tradio regional ou nacional,mas sim a mais humana e universal das tradies, que a bblica (Cf. LIMA, 1997, p. 45).

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    ltimos versos do poema intitulado Distribuio da poesia que abre o livro Tempo e

    eternidade:

    Distribuio da Poesia

    [...]Mel silvestre tirei das plantas,sal tirei das guas, luz tirei do cu.S tenho poesia para vos dar.Abancai-vos, meus irmos. (LIMA; MENDES, 1935, p. 12)

    Ceclia Meireles, poeta a quem Vinicius chamou suave amiga em crnica a ela

    dedicada em razo de sua morte, apresenta uma poesia um pouco diversa da de seus

    companheiros. Isso porque Ceclia no dialoga com o catolicismo e com o texto bblico, masseu pendor religioso est mais prximo de uma concepo oriental da existncia. Ana Maria

    Lisboa de Mello, em obra intitulada Oriente e Ocidente na poesia de Ceclia Meireles, vai

    afirmar que:

    ao se estudar a poesia de Ceclia Meireles, observa-se [...] a vigncia de uma postura filosfica que marcadamente influenciada pelas linhas bsicas do pensamento oriental, cujo ncleo essencial o reconhecimento de um esprito universal o Um origem de todas as coisas e seres, estandoneles onipresente. [...] O homem oriental, ao reconhecer esta unidade essencial, sente que a sua

    alma uma partcula da anima mundi e vive o sentimento de unificao com o universo,experincia esta que se ope radicalmente separao homem/essncia, prpria da culturaocidental contempornea, na qual a filosofia dos ltimos trs sculos debrua-sepredominantemente sobre os dados da experincia sensvel. (2006b, p. 31)

    A partir desta concepo, Ceclia vai assumir em sua poesia uma atitude

    contemplativa diante dos seres, captando a Unidade na multiplicidade (2006b, p. 33). Da

    provm sua clara conscincia da transitoriedade de todas as coisas. No entanto, em Ceclia,

    esta conscincia da transitoriedade, carregada de idias como o sofrimento e as limitaes

    impostas pelo mundo terreno, muitas vezes vista de forma atenuada, j que sua poesiatambm traz a mensagem da aceitao da existncia, medida que percebe uma esperana na

    redeno, na possibilidade do retorno origem, reservada a todos os seres aps o

    cumprimento de seu destino (Cf. MELLO, 2006b, p. 33/65/81/108).

    Vinicius inicia sua trajetria potica com o poema Transfigurao da montanha,

    publicado, em 1932, na revista A Ordem, que nesta poca era dirigida por Tristo de

    Athayde10. J no ano seguinte, em 1933, tem o seu primeiro livro de poemas, O caminho

    10Com a morte prematura de Jackson de Figueiredo, em 1928, Alceu Amoroso Lima, o Tristo de Athayde,passa a dirigir o Centro Dom Vital, a Livraria Catlica e a Revista A Ordem. Cabe salientar que a morte deJackson foi atribuda a suicdio por John Tolman, em seu estudo intitulado Augusto Frederico Schmidt. No

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    para a distncia, publicado pela Schmidt Editora11. Octavio de Faria quem apresenta

    Vinicius ao seu editor, e ento com a publicao deste livro que o poeta passa a conhecer o

    futuro amigo.

    Segundo Laetitia Cruz de Moraes, irm de Vinicius, Octavio foi um dos grandes

    amigos do poeta e tambm o primeiro que acreditou na poesia de seu irmo, tendo escrito a

    obraDois poetas, em que a colocava ao lado da criao do j consagrado Augusto Frederico

    Schmidt (In MORAES, 2004, p. 43). Vinicius e Octavio travaram uma ntima amizade, e,

    nesta poca, Vinicius via no amigo uma espcie de mestre, de mentor, que orientava seus

    primeiros passos literrios.

    Foi com a Tragdia Burguesaque Octavio de Faria ganhou algum espao nas letras

    nacionais. Sua obra romanesca, composta de 13 volumes, escritos entre 1937 e 1977, d vidaa diversas personagens que vivenciam os conflitos espirituais e sociais da poca e que

    fundamentam a sua crtica runa social e espiritual da burguesia. O romance revela a

    tragdia burguesa, que o destino de toda a civilizao ocidental expressa na tranqilidade

    sem Deus das vidas burguesas ou das vidas voltadas para a santidade ou para o demonaco

    (Cf. REICHMANN, 1978, p. 192).

    Os romances trazem muito de seu posicionamento poltico, que teve formao e

    divulgao anterior ao preparo das obras ficcionais, fato que provavelmente influencioubastante a leitura que deles se fez. As primeiras publicaes de Octavio foram ensaios

    polticos, intitulados Machiavel e o Brasil (1931) e Destino do Socialismo (1933), que so,

    segundo Jos Castello (1994, p. 61), respectivamente, um livro em defesa do fascismo e um

    panfleto antimarxista, que o autor, anos depois, com a mente mais arejada pelo ps-guerra,

    decidir no mais reeditar.

    Segundo Ernani Reichmann (1978, p. 86-87), a motivao principal dos estudos

    histricos e sociolgicos de Octavio de Faria estava concentrada na idia de uma necessriareforma e revoluo interior do homem. o prprio Octavio, em Machiavel e o Brasil, quem

    nos revela o seu posicionamento poltico:

    entanto, Hamilton Nogueira, bastante prximo de Jackson, em sua obra intituladaJackson de Figueiredo, revela-nos que a morte do amigo foi causada por um afogamento, enquanto pescava com Rmulo de Castro e seu filhoLuiz, ento com 9 anos.11 Em 1931, Augusto Frederico Schmidt adquire a antiga Livraria Catlica e torna-se o Schmidt-Editor,

    responsvel por um frutfero trabalho editorial e notvel pelo lanamento de novos autores, com ttulos hojeconsagrados no mundo das letras, tais como: Caets, de Graciliano Ramos; Casa grande & senzala, de GilbertoFreire;Maleita, de Lcio Cardoso; O pas do carnaval, de Jorge Amado, entre outros (Cf. SCHMIDT, 1995, p.36).

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    No nos iludamos, s a revoluo interior, essa revoluo de criao, capaz de desviar o homemdo caminho errado que segue, s ela poder salv-lo. No Brasil em especial, s a revoluointerior, s a renncia a todas essas facilidades que a vida oferece aos que no se importam depassar por cima, com a livre aceitao que for necessria, s a volta a certos princpios de moralde que no possvel se apartar sem que a nao e o prprio indivduo logo se ressintam, s essa

    moralizao absoluta e com o mximo de princpios religiosos que seja possvel sinceramente acada um, s esse movimento de olhos que consiste em fixar as alturas e no sistematicamente ocho de onde viemos, mas para onde nao devamos voltar pelo menos enquanto ainda com vida s assim, parece-me, a nao poder um dia sorrir, s ento os que a compem podero serotimistas. (In REICHMANN, 1978, p. 87-88)

    Para Octavio, a soluo dos problemas do Brasil comeava pela reforma do homem, a

    quem era preciso atacar e cercear, dominar e corrigir, orientar, vigiar, para que depois o

    homem no Brasil possa ser honesto diante do Estado, til sociedade, capaz na sua vida de

    famlia, forte diante de si mesmo (In REICHMANN, 1978, p. 87).

    Somente aps a queda de regimes ditatoriais, como o nazismo alemo e o fascismo

    italiano, que muitos pases tomaram conhecimento da tragdia provocada pelo terror e pelo

    extermnio promovidos por estes regimes. No entanto, no incio dos anos 1930, a postura

    poltica de Octavio, que est na base destes regimes de represso, era compartilhada por

    muitas pessoas, e mesmo Vinicius simpatizava com estas idias, ainda que, posteriormente,

    tenha sido visto como figura emblemtica do socialismo ou do movimento hippie.

    A freqente negao desta poesia inicial por parte de Vinicius (sua difcil mas

    consistente repulsa ao idealismo dos primeiros anos) e tambm por parte de muitos crticos

    parece relacionar-se negao deste contexto ideolgico que permeia seus primeiros escritos,

    o que, acreditamos, prejudica a sua avaliao.

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    3. Caracterizao e principais momentos da poesia metafsica12

    Segundo Ferrater Mora (1984, p. 2195-2196), o termo metafsica tem origem com a

    obra de Aristteles. Vejamos:

    O termo metafsica foi o nome dado por Andrnico de Rodas, no sculo I antes de Cristo, sriede livros de Aristteles concernentes ao que o prprio Aristteles chamou de filosofia primeira,teologia ou sabedoria. Como os livros em questo foram colocados na classificao epublicao [...] atrs dos oito livros da Fsica, foram chamados t met t physic, que quer dizeros que esto atrs da fsica ou, mais exatamente, as coisas que esto atrs das coisas fsicas.

    [...] Esta designao, que teve no princpio uma funo meramente classificatria, acabou sendomuito adequada, pois [...], com a filosofia primeira constitui-se um saber que aspira a penetrarmais alm de ou por trs dos estudos fsicos, isto , dos estudos concernentes Natureza, demodo que a metafsica um saber que transcende ao saber fsico ou natural13.

    Alm dessa concepo original, a metafsica pode ser entendida como uma rea da

    filosofia que tem por tarefa fazer uma investigao racional de um conjunto de interrogaes

    fundamentais acerca do ser absoluto, das causas do universo e dos princpios primeiros do

    conhecimento (Cf. ROBERT, 1988, p. 1190). Da decorre que o problema do ser (a relao

    entre essncia e existncia); a liberdade; a noo de Deus; o sentido da matria, do tempo e doespao; a cosmologia sejam domnios investigados pelos metafsicos (Cf. SON, 2002, p. 8).

    Existem basicamente duas perspectivas para a investigao metafsica: uma mais

    voltada para o contedo teolgico e outra para o ontolgico, ou seja, enquanto uma concebe e

    procura fundamentar a noo da divindade como base para existncia do ser e do universo, a

    outra tende a uma investigao mais cientfica ou formal que procura conceitar o ser,

    dirigindo-se para a dualidade entre ser e ente, essncia e aparncia. Porm so muitos os

    pensadores voltados a estas questes e, a partir da diversidade de seus postulados, difcilestabelecer com exatido um conceito para a metafsica.

    12Algumas destas consideraes sobre a poesia metafsica j foram apresentadas anteriormente por mim quandodo estudo da obra potica de Augusto Frederico Schmidt, que tem sua referncia completa ao final destetrabalho.13No original: El trmino metafsica fue el nombre dado por Andrnico de Rodas, en el siglo I antes de J. C., ala serie de libros de Aristteles que concernan a lo que el propio Aristteles llam filosofa primera,teologa o sabidura. Como los libros en cuestin fueron colocados en la clasificacin y publicacin [...]detrs de los ocho libros de la Fsica, se los llam t met t physic, es decir, los que estn detrs de la fsicao, ms exactamente, las cosas que estn detrs de las cosas fsicas. [...] Esta designacin, que tuvo al principio

    una funcin meramente clasificatoria, result muy adecuada, porque [...] la filosofa primera se constituye unsaber que aspira a penetrar ms all de o detrs de los estudios fsicos, esto es, de los estudiosconcernientes a la Naturaleza, de modo que la metafsica es un saber que transciende al saber fsico onatural. (MORA, 1984, p. 2195-2196)

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    No entanto, seja qual for a tendncia em questo, podemos identificar que a

    responsabilidade do metafsico se coloca mais em termos de interrogaes do que em termos

    de soluo, mediante a impossibilidade de se chegar a um conhecimento efetivo e absoluto

    acerca de interrogaes desta ordem. Vale dizer que ser essa falta de um conhecimento

    absoluto e a incerteza diante do ser que estaro na origem da aventura potica empreendida

    pelos poetas denominados metafsicos (Cf. SON, 2002, p. 8). E no por acaso Mara

    Zambrano (1993, p. 86) vai afirmar que a angstia parece ser a raiz originria da

    metafsica14.

    O questionamento sobre o ser e o no-ser; sobre a Verdade e o Amor; a afirmao ou

    negao da transcendncia e de entidades divinas; a busca por um sentido para a existncia e

    para a morte; as noes de finitude e eternidade, corpo e alma, todos esses impassesuniversais, que acompanham o homem durante a sua existncia, sero a matriz, o fundamento

    da poesia denominada metafsica.

    Podemos ver a criao dos mitos cosmognicos como a primeira manifestao

    humana que dar origem ao questionamento filosfico e s representaes artsticas no que

    concerne ao problema metafsico. E a esse momento seguiram-se muitas outras manifestaes

    que dialogaram, de diferentes formas, com estas questes que esto na base da perquirio

    metafsica. Dessa forma, percebemos que no s extremamente difcil definir a poesiametafsica, mas tambm determinar que poetas a praticaram e em quais versos (ELIOT,

    1989, p. 113).

    somente no sculo XVII que os primeiros poetas foram identificados como

    metafsicos. Tratava-se de um grupo de poetas ingleses composto por personalidades como

    Robert Southwell, visto como iniciador desse movimento potico; John Donne, o maior nome

    do grupo e outros seguidores como George Herbert, Henry Vaughan, Richard Crashaw,

    Andrew Marwell, Henry King, entre outros. Tal movimento acreditava na unificao entrepensamento e sensibilidade e praticava a meditao sobre temas religiosos fundamentais

    como forma de incitar a espiritualidade e os pensamentos embebidos de vivncia emocional e

    de contemplao potica. Esses poetas deram origem a uma lrica acentuadamente dramtica,

    mas ao mesmo tempo aliada a um controle racional, gerando uma poesia do inslito, em que

    se fazia aproximaes impensadas entre elementos prosaicos em um contexto potico, atravs

    de uma analogia de carter conceitual, seguindo um procedimento racional (Cf. GOMES,

    1991, p. 11-33).

    14No original: la angustia parece ser la raz originaria de la metafsica(ZAMBRANO, 1993, p. 86).

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    Segundo T.S. Eliot, difcil encontrar qualquer uso preciso da metfora, do smile,

    ou de outro conceito, que comum a todos os poetas [metafsicos ingleses] e, ao mesmo

    tempo, suficientemente importante como figura de estilo para isolar estes poetas como um

    grupo (1989, p. 114). No entanto, Eliot percebe algumas qualidades que os aproximam: a

    riqueza da associao [de idias], mas que mantm um significado claro, com uma

    linguagem simples e elegante. Alm disso, apresentam uma estrutura de frases que no

    de modo algum simples e que demonstra fidelidade ao pensamento e emoo (1989, p.

    118).

    Podemos tomar como exemplos dessas caractersticas alguns versos de John Donne e

    de George Herbert:

    Um bracelete de cabeloReluzente em torno do osso (DONNE apud ELIOT, 1989, p. 115)15

    Nem parafusos, nem verrumas podemPerfurar ou enroscar-se tanto numa pea de madeiraComo as aflies de Deus dentro de um homem. (HERBERT apud GOMES,1991, p. 17)16

    Aps uma viagem to penosa, a morte, que agradvel, uma cadeira. (HERBERT apud GOMES, 1991, p. 18)17

    Entre os temas desenvolvidos pelos poetas ingleses destacam-se o tema do tempo e da

    eternidade, o tema do amor e o da morte, que muitas vezes vo estar relacionados. Os

    elementos da natureza vo surgir apenas simbolicamente para falar de uma outra realidade.

    Outro grande momento da poesia metafsica se deu com os simbolistas franceses.

    Anna Balakian, retomando as palavras de Paul Valry, afirma que no houve uma esttica

    simbolista comum ao grupo, pois cada poeta apresentou concepes estticas distintas, mas

    todos estavam unidos por uma tica idntica, em que se buscava alcanar a essncia das

    coisas, penetrando no mundo do mistrio e das coisas ocultas (1985, p. 90). Esses poetas

    estavam inseridos dentro do chamado esprito decadente, que pode ser entendido como um

    sentimento de preocupao constante com o significado da existncia, com o mistrio da vida,

    com a inutilidade do livre arbtrio, a iminncia da morte e a fragilidade humana, o que leva a

    uma poesia densa, profunda e, em alguns momentos, a um tom pessimista.

    15No original: A bracelet of bright hair about the bone. (DONNE apud ELIOT, 1989, p. 115)16No original: No screw, no pierce can / Into a piece of timber work and winde, /As Gods afflictions into man.(HERBERT apud GOMES, 1991, p. 17)17No original: After so foul a journey death is fair, / And but a chair. (HERBERT apud GOMES, 1991, p. 17)

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    Essa preocupao em alcanar o plano transcendente e no apenas o plano material da

    existncia vai se traduzir em uma potica baseada na valorizao da sugesto e no resgate dos

    sentidos, alcanados atravs do uso de uma linguagem simblica e na aproximao com a

    msica. A palavra, a poesia vo ento ser vistas como meio privilegiado para evocar,

    despertar tudo aquilo que est na essncia das coisas, fora do plano material, promovendo o

    questionamento do plano metafsico, transcendental.

    Dentro dessa tendncia lrica, destacam-se poetas como Mallarm, Baudelaire,

    Verlaine e Rimbaud, inspiradores de outros poetas franceses, chamados neo-simbolistas ou

    catlicos, que, partindo desse questionamento sobre o plano transcendente da existncia,

    dentro de uma perspectiva mais marcadamente religiosa, daro continuidade poesia de teor

    metafsico.Paul Claudel, o grande nome da poesia catlica francesa, vai levar adiante a

    inspirao, ou mesmo a iluminao, que o possuiu ao ler a poesia de Rimbaud e que estar na

    origem de sua criao potica:

    O primeiro vislumbre de verdade me foi dado pelo encontro dos livros de um grande poeta, aquem eu devo um eterno reconhecimento e que teve na formao de meu pensamento umaparte preponderante, Arthur Rimbaud. A leitura das Iluminaes e, alguns meses depois, deUma Estao no Inferno, foram para mim um acontecimento capital. Pela primeira vez, estes

    livros abriam uma fissura em minha priso materialista e me davam a impresso viva e quasefsica do sobrenatural... (Apud LAGARDE et MICHARD, 1973, p. 177) 18

    O abandono a uma inspirao, a liberdade na forma de versificar, adaptando o verso

    livre ao versculo, iniciados por Rimbaud, serviro de base para a criao potica e para a

    formulao do versetclaudeliano, que vai gerar frutos no apenas na poesia francesa.

    A teoria claudeliana partiu da noo de que o pensamento no funciona como um ato

    contnuo, mas como um movimento marcado por clares, interrompidos por momentos de

    vazio, que logo so preenchidos com novos clares. Alm disso, essas iluminaes soantecedidas por um momento de intensidade, de tenso espiritual de onde brota essa massa

    desorganizada de idias, imagens, sonhos e noes, que formariam o nosso pensamento.

    Claudel vai afirmar ento que o verso essencial e puro deve-se formar a partir da

    captao do momento primeiro de tenso, em que se origina a linguagem, proporcionando um

    ritmo natural e essencialmente humano. Da resulta que o verso primordial no poder se

    18Traduo nossa. No original: La premire lueur de vrit me fut donne par la rencontre des livres dun grandpote, qui je dois une ternelle reconnaissance et qui a eu dans la formation de ma pense une partprpondrante, Arthur Rimbaud. La lecture des Illuminations, puis, quelques mois aprs, dUne Saison en Enfer,fut pour moi un vnement capital. Pour la premire fois, ces livres ouvraient une fissure dans mon bagne

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    render a limitaes impostas de mtrica e de rima, por quebrarem sua fluidez natural e

    vivacidade, feitas de uma harmonia sutil. Esse verso estaria fundamentado em um ritmo

    imbico, considerado como o ritmo do mundo, numa concepo de poesia espontnea, sem

    artificialismos, em que elementos rtmicos e sonoros como a rima, a repetio ou a assonncia

    surgiriam naturalmente, impostos pela natureza e pelo esprito (Cf. LECHERBONNIER et

    alii, 1994, p. 144/160). Tal procedimento baseia-se na noo de que h uma ligao recproca

    entre a libertao da linguagem e a libertao do esprito e procura, atravs do ritmo natural

    da respirao humana, atingir um ritmo vital, csmico.

    Nesse ponto, entramos em um segundo elemento importante que vai compor o

    chamado versetclaudeliano. O poeta, voltado f catlica, acreditava que, a partir do resgate

    desse ritmo natural, csmico, chegaramos a uma unidade entre duas foras convergentes, afora potica e a fora religiosa. Claudel vai ento unir essa concepo de ritmo potico

    fora proftica, mstica do texto bblico, unindo f e poesia num nico movimento (Cf.

    LAGARDE et MICHARD, 1973, p. 177-182).

    O verset concebido por Paul Claudel veio a influenciar alguns notveis poetas

    franceses de geraes posteriores, tais como Saint-John Perse, Pierre Emmanuel e Jean-

    Claude Renard (Cf. LAGARDE et MICHARD, 1973, p. 179), alm de muitos poetas de

    outros pases. No Brasil, conforme vimos no captulo precedente, a concepo potica deClaudel ficou bastante difundida durante a dcada de 1930. Este perodo pode ser visto como

    um dos mais profcuos momentos da poesia metafsica brasileira, a partir da produo intensa

    dos poetas j mencionados: Jorge de Lima, Murilo Mendes, Ceclia Meireles, Augusto

    Frederico Schmidt, Vinicius de Moraes, entre outros. Esta vertente metafsica da poesia

    brasileira, que tem um tmido incio j com a segunda gerao romntica, mostra-se na

    produo dos simbolistas, na poesia quase marginal de Augusto dos Anjos, nos poetas da

    Revista Festae amplia-se ainda mais durante a chamada segunda gerao modernista

    19

    , quetem sua produo potica voltada para a perquirio existencial e religiosa.

    matrialiste et me donnaient limpression vivante et presque physique du surnaturel... (CLAUDEL apudLAGARDE et MICHARD, 1973, p. 177)19O percurso da poesia metafsica no Brasil j havia sido delineado por Ana Maria Lisboa de Mello no artigointitulado A poesia metafsica no Brasil, cuja referncia completa encontra-se nas referncias deste trabalho.

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    4. Vinicius e a poesia metafsica

    Conforme mencionamos em captulo anterior, a crtica atribui s primeiras publicaes

    de Vinicius algumas qualidades que, ao mesmo tempo, as caracterizam enquanto poesia

    mstica e tambm as distinguem das futuras publicaes. Tais caractersticas incluem tanto

    atributos formais, como a extenso dos versos, quanto as recorrncias temticas ou ainda as

    influncias recebidas. Antes de passarmos propriamente anlise dos poemas, teceremos

    algumas consideraes acerca destas caractersticas.

    Quase todos os crticos chamam a ateno para os versos desusadamente longos20deVinicius em suas primeiras publicaes. Alm disso, muitos dentre eles, como Mrio de

    Andrade, Otto Lara Resende, dison Jos da Costa e Renata Pallotini, momeiam tais versos

    de claudelianos, identificando esta forma utilizada por Vinicius ao verset concebido por

    Claudel.

    Vinicius, ao lado de Augusto Frederico Schmidt, um dos grandes nomes que revela

    esta influncia da forma potica claudeliana na poesia brasileira. Hnio Tavares (1981, p.

    312) conceitua formalmente esta espcie lrica, nomeando-a versculo ou verseto, eafirma ser um conjunto de versos extensos ou brbaros (conforme a terminologia

    tradicional), sem rimas, sem cesuras nem ritmo mecnico ou metro. Alm disso,

    complementa dizendo que muitas vezes, os versos, ou a maioria deles, no cabem na linha

    impressa. E no ser ao acaso que o terico exemplifica com poemas de Vinicius e Schmidt.

    A concepo potica de Claudel, que, como vimos, vai alm de uma simples opo

    pelo verso longo e no-metrificado, fornece as modulaes necessrias para a produo de

    uma poesia que procura estabelecer o questionamento acerca do plano divino, do destino dohomem e do sentido de nossa precria existncia. Verificamos ento, a partir do uso destes

    versos longos e livres, do uso aparentemente apenas intuitivo de repeties e assonncias, do

    ritmo langoroso e do tom proftico, a aproximao de Vinicius com o poeta francs.

    Renata Pallotini faz a aproximao com o verset de Paul Claudel, mas atribui os

    moldes dos versos de Vinicius tambm a dois de seus companheiros: Octavio de Faria e

    Augusto Frederico Schmidt. Vejamos: Seus versos longos, livres, claudelianos de ento

    traem a influncia de seu prprio editor e do amigo Otvio de Faria (In MORAES, 2004, p.

    20Expresso utilizada por Octavio de Faria (In MORAES, 2004, p. 76).

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    124). Ildzio Marques Tavares (1972, p. 187), de modo semelhante, afirma que sob

    influncia pessoal das idias e poesia de Schmidt que Vinicius parte para o seu primeiro

    livro. No entanto, conforme atesta dson Jos da Costa, VM somente o ter concretamente

    em mos [o livro de Schmidt, Navio Perdido] ao preparar a edio de O caminho para a

    distncia (2002, p. 62). O prprio poeta, em artigo intitulado Encontros, afirma ter

    conhecido Schmidt somente quando seu primeiro livro acabava de ser publicado. Alm disso,

    assume o seu desconforto quanto comparao que costumavam fazer entre as obras. Diz o

    poeta:

    Durante um certo tempo, Schmidt passou a ser uma presena incmoda. No havia crtica, notinhade jornal onde se mencionasse meu livro, que no falasse nos poetas irmos, um prosseguindo no

    caminho que o outro abrira. A coisa para mim tomou um ar de pendenga, de corrida rasa, comSchmidt frente, e eu em segundo, fazendo fora para emparelhar. (MORAES, 2004, p. 736)

    Podemos entender esta proximidade entre a criao de Vinicius e a de Schmidt como

    resultado de fontes e tendncias que compartilhavam, entre elas a concepo potica de

    Claudel ou o interesse por questes ligadas morte e espiritualidade, mas sem ver nestas

    semelhanas uma relao direta de influncia. Alm disso, entendemos que a semelhana com

    a poesia de Schmidt limita-se apenas primeira obra publicada por Vinicius, perodo em que

    este apenas recentemente tivera acesso obra de seu editor.

    Outro trao que se destaca na poesia inicial de Vinicius, e que est intimamente ligado

    ao uso do versetcomo meio de expresso, a sua aproximao com o texto bblico, tanto em

    relao linguagem, no que diz respeito a estruturas e vocabulrio, quanto aos temas e

    imagens.

    Segundo John Tolman, o que caracteriza o estilo da Bblia a relativa predominncia

    de formas paralelas (1976, p. 46) e ele cita como exemplo o trecho abaixo:

    E disse Deus: Faa-se a luz; e fez-se a luz.E Deus viu que a luz era boa; e dividiu a luz das trevas.E chamou luz dia, e s trevas noite; e da tarde e da manh se fez o primeiro dia. (Gnesis 1, 3-5)21

    Nos versos de Vinicius tambm encontramos um uso bastante significativo de tais

    estruturas. Nos versos abaixo, temos amostras de estruturas paralelas binrias e tercirias.

    Vejamos:

    21Os trechos da Bblia selecionados por John Tolman foram reproduzidos integralmente como constam em suaobra e no seguem o texto utilizado para o restante deste trabalho.

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    E o olhar estaria ansioso/ esperandoE a cabea ao sabor da mgoa/ balanandoE o corao fugindo/ e o corao voltando

    E os minutos passando/ e os minutos passando... (MORAES, 2004, p. 208 FE)22

    Tem o lugar dos escolhidosDos que sofreram,/ dos que viveram/ e dos que compreenderam. (p. 171 CD)

    Alm disso, outros recursos que caracterizam o estilo bblico so a exergasia, ou seja,

    o uso sistemtico de estruturas sinonmicas, e a redundncia (TOLMAN, 1976, p. 47/51).

    Vejamos mais um trecho da Bblia:

    Porm os que esperam no senhor tero sempre novas foras, subiro com asas como de guias,correro e no se fatigaro, andaro e no desfalecero. (Isaas 40, 31)

    A seguir, temos alguns versos de Vinicius em que podemos verificar esse

    procedimento de combinar estruturas sinonmicas e, atravs delas, construir sentidos por meio

    da aproximao de idias semelhantes e at redundantes:

    Maldito o que bebeu o leite dos seios da virgem que no era me mas era amanteMaldito o que se banhou na luz que no era pura mas ardente

    Maldito o que se demorou na contemplao do sexo que no era calmo mas amargo (p. 239 FE)

    S ento vi as folhas caindo, os rios correndo, os troncos pulsando, as flores se erguendo (p.245 AM)

    Eu vinha passando to calmo, Alba, to longe da angstia, to suavizado (p. 223 FE)

    A Bblia tambm se caracteriza pelo carter oratrio, proclamatrio de sua escritura e

    pelo uso freqente de figuras de linguagem, tais como a metfora, a comparao ou a

    hiprbole. Em muitos poemas, Vinicius tambm apresenta essas caractersticas. Alm disso,

    em sua lrica inicial, tem bastante destaque o emprego de imagens e episdios que

    caracterizam o texto bblico. Em seus versos, vislumbramos vales e lrios, montanhas e aves

    do cu, cordeiros e lobos, chagas, leo santo, ptalas e mel. Da mesma forma, seus poemas,

    muitas vezes, remetem-nos diretamente a episdios como o do bom ladro, do filho prdigo

    ou da cura de cegos e leprosos.

    22Todos os poemas de Vinicius de Moraes foram extrados da obra Vinicius de Moraes:Poesia Completa eProsa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2004. A partir daqui sero indicadas apenas as pginas. Utilizamos asabreviaturas CD, FE e AM para referirmos as obras O caminho para a distncia, Forma e exegesee Ariana, amulher.

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    Alm da proximidade com a Bblia, outra caracterstica desta lrica inicial a presena

    marcante do eu-lrico, caracterizado pelo uso constante da primeira pessoa do singular. O tom

    confessional e o franco dilogo com Deus, construdos em torno deste eu, so bastante

    representativos na poesia de Vinicius.

    A atmosfera conflituosa, repleta de sofrimento e de angstia, tambm marca bastante

    evidente desta potica inaugural. Tais sentimentos esto intimamente ligados aos temas

    desenvolvidos: o conflito entre o corpo e a alma, a solido, a f e a dvida, a morte, o pecado.

    David Mouro Ferreira faz uma interessante leitura acerca destes conflitos poetizados por

    Vinicius. Vejamos:

    Deixou escritas Novalis, num dos seus admirveis fragmentos, estas proposies: Para o homem,a equao corpo-alma. Para a espcie, homem-mulher. A evoluo potica de Vinicius deMoraes documenta, flagrantemente, apassagemde um plano para o outro. No entanto, a primeiraequao no ficou resolvida; e o conflito que refletia essa procura, insidiosamente se introduziu nasegunda, frustrando-lhe tambm a soluo desejada. Nesse malogro residem, todavia, a grandeza ea originalidade de Vinicius de Moraes. (2004, p. 102-103)

    Finalmente, identificamos o dilogo com o simbolismo e o surrelismo francs como

    outra caracterstica das primeiras publicaes do poeta. Apenas as epgrafes utilizadas e os

    poemas dedicados a poetas como Rimbaud, principalmente, Verlaine, Claudel, Baudelaire,

    Rilke, Gide, entre outros, j nos remetem ao iderio e concepo esttica destes

    movimentos.

    Octavio de Faria, em seu estudo Dois poetas, acerca das obras de Schmidt e Vinicius,

    faz as seguintes consideraes ao tratar das relaes entre os poetas brasileiros e os franceses:

    Uma vez constatada a impossibilidade de estabelecer a filiao nacional destes poetas, precisoreconhecer que os seus antecedentes mais prximos se encontram nessa linha de grandes poetasfranceses que a histria literria chamou poetas malditos: Baudelaire, Verlaine, Rimbaud, entreoutros... [...] No se cogita de estabelecer filiaes ou derivaes, mas de reconhecerproximidades, semelhanas de almas [...] em torno desses elementos comuns: compreensoidntica da funo privilegiada do poeta, mesma viso da alma humana e do mundo que a envolve.[...] O sentimento da maldio terrestre o trao comum que possuem de modo maispronunciado, verdadeiro sentimento-inspirao bsico em todos esses poetas. (1935, p. 81-82)23

    ainda Octavio de Faria quem vai nos mostrar ou sugerir as formas de aproximao

    ou distanciamento entre a lrica de Vinicius e dos poetas franceses:

    O caminho de Rimbaud no o seu. Seu desespero outro. Muito antes de ser essa revolta de

    Rimbaud que tudo renega desde o sangue cristo que lhe corre nas veias at o ltimo dos versosque essa mesma revolta lhe ditou o seu desespero [o de Vinicius] um movimento de oscilao

    23Optamos por fazer a atualizao ortogrfica dos trechos citados desta obra.

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    entre plos opostos num outro caminho, no caminho do Baudelaire que sente as duaspostulaes simultneas, uma para Deus, outra para Satan, ou no de Verlaine, no desse pobre eimenso Verlaine que viveu oscilando de um extremo a outro, da pureza lama e da lama pureza.(1935, p. 101-102)

    No entanto, se Vinicius se distancia de Rimbaud no que tange questo da revolta e

    conseqente negao de todas as coisas; o poeta assemelha-se ao autor de Illuminationsem

    sua qualidade de voyant. O segundo livro de Vinicius, Forma e exegese, perpassado pela

    mesma fora e abundncia imagtica das composies do poeta-vidente. Alm disso, esta

    obra, segundo Octavio de Faria, apresenta a sonoridade, a beleza musical, toda uma seduo

    que est nas melhores coisas de Verlaine como est nos grandes momentos de viso de

    Rimbaud e na obra de Claudel (1935, p. 253). Da herana simbolista, Vinicius se apropria de

    diversos recursos como a noo da sugesto e da sinestesia, o gosto pela experimentao da

    linguagem, o uso do verso longo e livre, a musicalidade, um certo pessimismo ou sentimento

    de angstia, o gosto pelo universo simblico e transcendente, a comunho com a natureza,

    entre outros.

    Da escola surrealista, Vinicius tambm absorve algumas de suas concepes estticas.

    Esse dilogo concretiza-se principalmente em algumas composies em que o eu-lrico parece

    penetrar em seu universo inconsciente ou onrico, atravs de uma profuso de imagens e de

    ilogicidades. O verso longo, nestes poemas, assume uma cadncia narrativa que nos faz

    lembrar o propsito surrealista do automatismo psquico, da narrao de sonhos, como forma

    de libertao da subjetividade, de acesso ao inconsciente. Alm disso, a compreenso da

    mulher enquanto caminho de regenerao e de comunho csmica apresentada pelo poeta

    uma das facetas da criao surrealista.

    Dalma Nascimento, em seu ensaio intitulado Sedues de Eros: Vinicius de Moraes

    em dilogo com o surrealismo francs, estabelece relaes entre o projeto esttico de

    Vinicius e algumas obras dos surrealistas Andr Breton, Paul Eluard, Louis Aragon e RobertDesnos. O dilogo se estabelece a partir da viso da Mulher como ser panteisticamente

    ligado a Deus e como energia organizadora do Caos. Nesse sentido, a busca pela Mulher,

    travada pelo Homem, estaria relacionada nostalgia da integrao originria e ao processo de

    comunho csmica. Em sua tese, O teorema potico de Vinicius de Moraes, Dalma prope

    ainda que, ao contrrio dos surrealistas, que tangenciaram o grande problema do divino,

    deslocando-o para outras reas: para o valor humano, para a criao potica tnicas tambm

    do poeta brasileiro, Vinicius assumiu de frente o conflito de Deus. Conflito autenticamentehumano da imanncia com a transcendncia, que nunca o abandonou (1984, p. 220).

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    Todas estas caractersticas apresentadas so percebidas enquanto marcas da poesia

    inicial de Vinicius. No entanto, quase todas elas so encontradas tambm em suas produes

    posteriores, mas em menor nmero ou ainda de forma dispersa. Ou seja, nas primeiras obras,

    em um nico poema, podemos encontrar todas estas qualidades apresentadas, enquanto que,

    nas obras que se sucedem, cada uma destas caractersticas surge normalmente isolada em cada

    poema. A religiosidade, o uso do verset, o toque surrealista, a sinestesia e a sugesto

    simbolistas, todas estas marcas estaro presentes na poesia final de Vinicius, mas raramente

    concentradas em um nico poema. H uma espcie de diluio da atmosfera construda em

    suas primeiras obras. Alm disso, mesmo as primeiras obras, apresentam, cada uma,

    caractersticas que lhes so peculiares, motivo pelo qual optamos por dividir este captulo

    entre as obras que compem esta fase inicial.Essa visvel diferenciao entre as obras de Vinicius, levando em considerao toda a

    sua produo, j nos parece um argumento bastante importante para o questionamento da

    diviso estanque entre duas fases em sua criao. O poeta demostra uma grande capacidade de

    renovao em cada obra que entrega ao pblico24. Somada ao nosso posicionamento,

    trazemos a crtica a esta diviso, posio j formulada por Dalma Nascimento em sua tese,

    fundamentada sobre a percepo de uma continuidade que se estabelece entre as obras, no que

    diz respeito concepo mtica da mulher e da existncia25

    . Ou seja, se, por um lado, Viniciusapresenta constantemente variaes em sua proposta esttica, por outro, ele mantm um vivo

    dilogo entre suas criaes, num movimento de renovao e de continuidade.

    4.1. O caminho para a distncia (1933)

    Octavio de Faria, ao referir-se obra O caminho para a distncia,diz tratar-se de uma

    massa de poemas que se chocam, se repelem uns aos outros (penso na oposio de fundo entreA grande voz e A que h de vir, ou na de forma entre O terceiro filho e Vinte anos) [...]e por menos evidente que primeira vista isso parea, esto todos eles unidos num movimento s,vivem todos eles, uns contra os outros, uns negando momentaneamente os outros, aquele, menosimportante, abrindo caminho para esse, essencial, e j aquele outro repetindo esse num tom maisalto, num verdadeiro movimento de fuga que a chave do inegvel encanto musical que o livroexerce. (2004, p. 73-74)

    24Marcamos aqui a posio de Vinicius, que dizia ser, primeiramente e acima de tudo, poeta, mas destacamos

    tambm a sua grande e variada produo, que contava com cano, crnica, teatro, entre outros. Acreditamosque esse fato problematiza ainda mais a diviso proposta.25Fornecemos aqui apenas uma indicao bastante simplificada do posicionamento defendido em sua tese. Paraaprofundar esta concepo aconselhvel consultar diretamente a obra.

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    Essa imagem, percebida por Octavio, bastante ilustrativa do confronto de estados

    opostos e complementares que caracterizam essa primeira publicao de Vinicius e que, de

    certa forma, tambm se revela no conjunto de sua obra. A imagem do conflito, no que diz

    respeito ao confronto de temas e de perspectivas do sujeito lrico em relao a eles, e o

    movimento de contenso e distenso, construdo a partir de uma variada extenso de versos e

    de poemas que acompanham estas significaes, so as marcas mais representativas de O

    caminho para a distncia.

    A poesia de Vinicius oscila entre uma atmosfera de sofrimento e desespero e um

    sentimento de harmonia, de pureza ao sentir-se ligado ao mundo divino. Os prprios ttulos

    dos poemas j do mostras do seu contedo. De um lado, temos Revolta, Inatingvel,nsia, Sacrifcio, Olhos Mortos, Fim, entre outros. Na direo oposta, temos poemas

    como O Bom-Pastor, Mstico, Purificao, O Vale do Paraso, entre outros. Apenas a

    observao destes ttulos j nos demonstra e antecipa a matria dessas composies.

    Os termos empregados nestes versos tambm levam-nos a diferentes plos de sua

    lrica. De um lado, temos nsia, dor, misria, lama, moribundo, clamar, gritar.

    De outro, espiritualizao, tenussimo, beleza plcida, luz, esprito, interiorizado.

    O primeiro livro de Vinicius revela-nos com muita intensidade e por vezes com muitaclareza os grandes conflitos experenciados pelo poeta, este ser que vive pisando a terra e

    olhando o cu/ Preso, eternamente preso pelos extremos intangveis (p. 183) e que se

    dilacera em busca de respostas e de apaziguamento. A solido, a incerteza sobre o sentido da

    existncia, o medo da morte estaro na base desta lrica inaugural. Observemos estes traos no

    poema abaixo, intitulado Inatingvel:

    Inatingvel

    O que sou eu, gritei um dia para o infinitoE o meu grito subiu, subiu sempreAt se diluir na distncia.Um pssaro no alto planou voE mergulhou no espao.Eu segui porque tinha que seguirCom as mos na boca, em conchaGritando para o infinito a minha dvida.

    Mas a noite espiava a minha dvidaE eu me deitei beira do caminhoVendo o vulto dos outros que passavamNa esperana da aurora.Eu continuo beira do caminhoVendo a luz do infinito

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    Que responde ao peregrino a imensa dvida.

    Eu estou moribundo beira do caminho.O dia j passou milhes de vezesE se aproxima a noite do desfecho.

    Morrerei gritando a minha nsiaClamando a crueldade do infinitoE os pssaros cantaro quando o dia chegarE eu j hei de estar morto beira do caminho. (p. 173-174)

    O poema parte da imagem da passagem do tempo, do ciclo entre dias e noites, mas,

    enquanto outros acreditam e esperam pela aurora, o eu-lrico sofre diante da incerteza sobre o

    sentido de sua existncia. Tomado de angstia, acelera a percepo do fluir dos dias, prevendo

    um trgico fim, envolto na ignorncia e no medo. Destaca-se ainda a marcante presena do

    eu-lrico nestes versos, seu tom confessional, e o franco dilogo que estabelece com oinfinito. O poema, de extenso mais contida, traz a repetio de versos e estruturas,

    procedimento usual do texto bblico, que aqui refora a idia da circularidade e da passagem

    dos dias.

    O prximo poema em destaque intitula-se nsia e tem como conflito central o terror

    do pecado. O poeta d voz ao impasse da impossvel pureza e da impureza inaceitvel,

    para usarmos os termos de Octavio de Faria (1935, p. 327):

    nsia

    Na treva que se fez em torno a mimEu vi a carne.Eu senti a carne que me afogava o peitoE me trazia boca o beijo maldito.Eu gritei.De horror eu gritei que a perdio me possua a almaE ningum me atendeu.Eu me debati em nsias impurasA treva ficou rubra em torno a mim

    E eu ca![...]O pavor da morte me possuiu.No vazio interior ouvi gritos lgubres[...]

    A carne desapareceu na trevaE eu senti que desaparecia na dor[...]

    Caminhei sem rumo, para o rudo longnquoQue eu ouvia, do mar.

    Caminhei talvez para a carneQue vira fugir de mim.

    [...]

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    Nos rudos do mar ouvi o grito de revoltaE de pavor fugi.

    Nada mais existe para mimS talvez tu, Senhor.

    Mas eu sinto em mim o aniquilamento...

    D-me apenas a aurora, SenhorJ que eu no poderei jamais ver a luz do dia. (p. 174-176)

    O poema construdo a partir de muitos ndices que nos remetem ao universo do

    pecado e da morte. Sons, movimentos, imagens e cores constituem sua atmosfera angustiante,

    que se desenvolve a partir da imagem central do beijo maldito. a partir do desejo, das

    solicitaes da carne, que o mundo transfigura-se aos olhos do eu-lrico. Metaforicamente,

    temos a mulher enquanto caminho de perdio e responsvel por sua queda. Vislumbramosum sujeito sendo chamado pelos rudos do mar, tomado pela cor rubra do pecado e que por

    fim no encontrar mais a claridade do dia e da vida. Somente Deus surge como possibilidade

    e como esperana de salvao para este ser, concedendo-lhe a aurora, imagem que comporta

    sentimentos como a esperana, a ascenso e a luminosidade.

    Todas estas imagens presentes no poema remetem-nos