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Villa-Lobos, intelectual: a música inventando outra nação
MARIA DAS GRAÇAS REIS GONÇALVES
Mas, afinal, o nacional existe? No Brasil, o debate em torno do nacional é tão antigo
quanto controverso, provocando polêmicas entre pesquisadores de diversas áreas. Escritores,
educadores, músicos e poetas entram nessa discussão para formularem uma resposta do que seria
o nacional. Ao se considerar que a nacionalidade é uma construção simbólica, não se pode falar
da existência de uma identidade brasileira, mas sim, de uma pluralidade de identidades
construídas por diferentes grupos sociais em diferentes momentos históricos.
Neste trabalho, tentarei mostrar que a busca de uma definição do que seria uma cultura
brasileira foi a forma de se delimitar as fronteiras de uma política que procurava se impor como
legítima, bem como, correspondente tanto aos interesses de diferentes grupos sociais envolvidos,
quanto à relação que estes mantinham com o Estado. Buscar-se-á apontar também as diferentes
maneiras pelas quais a cultura brasileira foi considerada no debate travado entre os intelectuais
brasileiros, principalmente, no final do século XIX e início do século XX, em torno da construção
da nação. Esse debate será analisado em três movimentos distintos: o primeiro é a proposta dos
letrados românticos; o segundo é o da geração de 1870 e o terceiro, o dos modernistas.
Pensar o país para esses intelectuais era pensar na tradição colonial; era pensar numa
população mestiça que conferia ao país uma essência singular, no qual se assentavam as raízes de
nossa cultura. É interessante observar o quanto essas questões vão desaguar no movimento
modernista da década de 1920, especialmente num Mário de Andrade e num Gilberto Freyre,
assim como nas discussões acerca de nossa essência cultural levantadas também por músicos da
chamada escola nacionalista, dentre eles, Villa-Lobos. Nesse contexto, qual o sentido de uma
identidade ou de uma memória que se querem nacionais? Acredito que a problemática foi, e
ainda permanece sendo, uma questão política, intrinsecamente ligada à própria construção do
Estado brasileiro.
Falar em cultura nacional é, portanto, falar em relações de poder. Relações que se
manifestaram em vários espaços da sociedade e que expressaram a luta política em busca dessa
identidade sejam na academia, no meio artístico e em instituições políticas. Utilizarei aqui o
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exemplo da música de Villa-Lobos, pois acredito que esta, enquanto linguagem política
constituiu um dos elementos que o Estado Varguista lançará mão para solucionar o problema da
nacionalidade e da identidade brasileira, produzindo um determinado discurso sobre o que era o
nacional e o que era o popular, identificando e valorizando uma memória coletiva de nosso povo,
constituída pela nossa cultura e nossas tradições. História e cultura foram rememoradas, pois só
assim haveria um verdadeiro “redescobrimento do Brasil” (GOMES,1982:111).
O debate em torno da busca da alma nacional
No Brasil, essa questão perpassou por todo século XIX e se confundiu com a própria
criação do Estado guardando “tensões e acomodações no interior das elites”, bem como remete a
uma discussão complexa acerca dos contrastes regionais e da persistência de práticas econômicas,
sociais, políticas e culturais que permaneceram até o século XX, como uma oposição entre o país
real e o país ideal. Para os contemporâneos da época e, principalmente para a elite letrada, a
única forma possível para construir uma nação seria através da disseminação das Luzes do
conhecimento, com a eliminação dos entraves que levavam o Brasil à barbárie: à imagem de um
país real – de estrutura escravocrata, das cidades carentes de abastecimento, higiene e obras
públicas, de uma grande massa de analfabetos e de redes de sociabilidades regidas por favores e
proteções – contrapunha-se um país ideal desejado e concebido pelos homens ilustrados. Logo o
sentimento de nacionalidade parte de uma pretensa identificação, por meio da qual os indivíduos
se uniram, e da diferença em relação aos outros; afinal, naquele momento, ser brasileiro
significava, sobretudo, não ser português (NEVES&MACHADO,1999:100).
Mas se essa oposição ao português foi a forma encontrada pela elite política para criar o
conceito de brasileiro, este, contudo, se colocou como um conceito negativo, já que era
identificado pelo que não era. Impunha-se, assim, a necessidade de convertê-lo em conceito
positivo. E esta tarefa ficou a cargo dos letrados românticos, que foram buscar as raízes da
nacionalidade naquilo que o Brasil tinha de positivo ou original: a sua natureza. Sua fauna e sua
flora foram eleitas personagens da realidade a ser descrita nos livros e nos poemas; nos quadros a
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serem pintados; enfim, tornam elementos intrinsecamente dotados de caráter nacional ou com
uma possibilidade potencial para denotar o ser brasileiro.
A produção literária do século XIX foi de grande importância para a instauração e para a
divulgação de uma realidade nacional, não restam dúvidas; mas a geração romântica não foi
capaz de construir a alma da nação. O que eles conseguiram foi colocar a questão da identidade
brasileira como problema, como uma questão a ser debatida numa sociedade cindida entre uma
elite culta e uma massa de despossuídos e de analfabetos, excluída de qualquer tipo de cidadania.
Se o Império colocou a questão da identidade brasileira como tema a ser discutido, coube
à República buscar a alma nacional dispersa nos diversos Brasis. Essa experiência de busca de
uma alma nacional ficou a cargo, num primeiro momento, de uma nova geração de letrados: a de
1870. Geração esta com um “bando de ideias novas” teria dito Sílvio Romero (1911). Ideias que
esta geração vai colocar em xeque como uma nova forma de interpretar o Brasil para além das
“palmeiras e dos sabiás” da geração romântica.
A necessidade imperiosa de autoconhecimento nacional manifestou-se tanto no discurso
científico da época, quanto no discurso ficcional. O que fazer com uma nação que parecia estar
condenada ao atraso? Nação mestiça. Impregnada de vícios e de uma herança de atraso estrutural.
Essas são questões que farão parte do métier desses escritores que, preocupados em conformar
uma identidade brasileira, foram observar e documentar essa realidade, postulando uma
possibilidade de nação, mesmo que mestiça.
Segundo Ângela Alonso (2002), a geração de 1870, se dedicou a responder às seguintes
perguntas: o que somos e/ou quem somos? A vasta produção desses escritores empenhados em
compreender, explicar e mostrar a nacionalidade a si mesma revela, para além das representações
simbólicas já construídas, as dificuldades e os impasses que historiadores, romancistas, cronistas
e poetas enfrentaram nessa busca de uma unidade essencial que distinguiria o nós e o outro.
Pensar o ser brasileiro e apontar o caminho a seguir, em busca da superação do atraso e das
grandes disparidades regionais foram desafios recorrentes dessa geração. Temas como a
escravidão e a falta de instrução se viram inseridos na pauta. O progresso que se anunciava, aqui,
tinha o peso da tradição, da manutenção dos mecanismos de exclusão em relação à maioria da
população.
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Para responder a essas perguntas, os intelectuais de 1870 buscaram no repertório político-
intelectual de fins do século XIX, os recursos que lhe permitissem veicular sua crítica ao regime
monárquico, numa forma distinta da tradição liberal-romântica inventada pela elite imperial. E
essa crítica, segundo Ortiz (2006), se deu a partir da adoção de teorias de reforma da sociedade,
com influências importantes do positivismo, do Darwinismo e do evolucionismo que davam o
tom determinista do discurso, caracterizado, igualmente, pela adoção de princípios constitutivos
das ciências naturais e do saber empírico. Neste debate surgem nomes importantes como Sílvio
Romero, Euclides da Cunha e Nina Rodrigues, dentre outros precursores das Ciências Sociais no
Brasil, que apontaram as dimensões de nossa origem, resignificando a tradição imperial e
colocando em debate a relação entre a questão racial e a identidade brasileira.
Aceitar essas teorias evolucionistas significava considerar a evolução brasileira à luz das
interpretações de uma história natural da humanidade e, neste sentido, significava aceitar o
estágio de “atraso”, de “inferior” em que se encontrava frente às nações europeias. O caminho
encontrado foi identificar as nossas peculiaridades; encontrar e criar novos argumentos que
possibilitassem o entendimento de nossa especificidade. E tais argumentos foram encontrados em
duas noções particulares: o meio e a raça. A partir desse referencial, os jovens intelectuais
brasileiros do período, abordaram os termos raça, povo, nação, trópicos e miscigenação
colocando-os na ordem do dia das discussões políticas do período e vários estudiosos e ensaístas
brasileiros, como Silvio Romero e outros da chamada Escola de Recife de 18701 participaram
desse debate e analisaram a situação cultural do país.
O que teria levado esses intelectuais a considerar o mestiço, produto do cruzamento com
uma raça considerada inferior, em categoria que permitia apreender a identidade nacional? Uma
série de dificuldades, colocadas anteriormente, em relação à herança do mestiço, pode ter sido
eliminada quando a noção de raça foi substituída pela noção de cultura. A troca possibilitou
também um maior distanciamento entre o biológico e o social, transformando a negatividade do
mestiço em positividade, o que permitiu dar contornos a uma identidade que há muito tempo
vinha sendo desenhada. Ao ser reelaborado dessa forma, o ideal da mestiçagem difunde-se pela
sociedade e se torna senso comum, celebrado nas relações do dia a dia ou nos grandes eventos
1 Sobre a Escola de Recife ver PAIM (1966).
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como o carnaval, o futebol e nas concentrações orfeônicas de um Villa-Lobos; quer dizer, torna-
se tema nacional, e vira matéria oficial.
Se no âmbito da emancipação política e cultural, os românticos haviam inaugurado a
poesia e o romance como testemunhos de nossas diferenças – natureza, costumes, modos de falar
– em relação à Portugal, a geração cientificista de 1870, dividida entre o Ocidente e o Trópico, ao
empenhar-se em decifrar, de forma apaixonada, nossos enigmas e munidos de uma verdade que a
ciência da época instaurara, talvez tivesse a esperança de que as filosofias progressistas da
História esclarecessem o significado e a direção de uma unidade fragmentada e desigual chamada
Brasil. As respostas a que chegaram não foram suficientes, contudo, para resolver os problemas
de uma sociedade tradicional em processo de transição. E a nação mestiça pensada enquanto
unidade, por “bacharéis combatentes e com saber enciclopédico”2 foi apresentada, neste
momento, enquanto uma possibilidade. Possibilidade que ficou a cargo de outra República que,
com seus intelectuais partidários e especializados, se debruçaria na busca de nossa essência, de
uma alma brasileira propriamente dita.
Se o movimento da geração de 1870 não resolveu a questão da consolidação da nação,
serviu, entretanto, como fonte para a geração modernista. Esta bebeu seus temas e abordagens.
Neste sentido, a geração de 1870 foi muito mais do que portadora de um simples “bando de
ideias novas”...
Absorvido por intelectuais de uma geração que se autodenominou modernista, o legado
da geração de 1870, portanto, nem sempre destacado pela historiografia, serviu de base para
marcar um pensamento que desejava se mostrar capaz de delimitar, enfim, um tempo novo na
sociedade brasileira. Nesta direção, a tradição crítica firmou sobre a Semana de Arte Moderna um
conceito que corresponde àquilo que ela desejou ser: “um marco, um divisor de águas”,
2 A participação dos juristas nesse debate sobre a nacionalidade, destacado por Roberto Ventura (1991) é muito
interessante, na medida em que, sendo grande parte dos escritores da geração de 1870 bacharéis em Direito, eles, ao
lado da discussão acerca da natureza tropical, da degeneração racial, produziram um discurso muito específico sobre
a ideia de crime, do criminoso, de processo de criminalização, de punição e da construção da ideia de cidadão
brasileiro, destacando todo o processo de ideologização que acompanhou a passagem ao capitalismo no Brasil. Em
relação à participação dos juristas neste debate da construção da nação, ver também NEDER, Gizlene. Discurso
Jurídico e Ordem Burguesa no Brasil – Criminalidade, Justiça e Constituição do Mercado de Trabalho (1890-
1927). Niterói:EDUFF, 2012. O livro traz uma análise muito interessante acerca dos processos sociais e culturais de
produção, circulação e apropriação cultural no campo jurídico brasileiro.
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inserindo-se ostensivamente na ‘tradição de ruptura’ que caracteriza a ideia de modernidade, e
que põe acentuada ênfase na oposição entre o velho e o novo. (WISNIK,1977:63).
Segundo Contier (2004), a arte moderna nasceu na Europa após um longo processo de
gestação. No século XIX, os artistas já declaravam guerra à tradição, ao decompor o objeto e
depois desintegrá-lo em processo que culminou na abstração total. Já no século XX, a explosão
da busca pelo conhecimento, a teoria da relatividade de Einstein, a construção da teoria de
sistemas, entre outras ciências, romperam com a concepção academicista de domínio da verdade
absoluta enraizada nas rígidas regras uniformes de suas escolas.
Neste cenário, o Brasil foi moderno ao seu jeito. A trajetória de quase uma década para
implantação do modernismo, com encontros entre intelectuais de diversas áreas de manifestação
artística e em processo de maturação ideológica traduziu um movimento cheio de ambiguidades
desde seu início e que assim se manteve nos anos subsequentes. Se na Europa as vanguardas
europeias se esforçavam para derrubar identidades, por aqui se afirmava a brasilidade, as cores, a
cara do povo. Se, lá, as correntes se misturavam, aqui se miscigenavam, colocando lado a lado a
expressionista Anita Malfatti com Tarsila do Amaral, e sua orientação construtiva. Aqui, todos se
uniam para fazer a ruptura, para ser moderno na projeção que faziam de si próprio.
Depois da ruptura inicial, o movimento passou por fases distintas. A união inicial entre
artistas e intelectuais terminou; surgiram grupos rivais, manifestos e tendências antagônicas; a
figuração é a única vertente permitida; Tarsila do Amaral e Oswald de Andrade produzem o
Manifesto Pau Brasil em 1924; e Oswald de Andrade, o Antropofágico, em 1928. Lasar Segall
começou a pintar o Brasil abandonando os tons sombrios; Di Cavalcanti desenvolveu seu
colorido quente, pintando mulheres, a maioria, mulatas; Portinari parte para o realismo social.
Mário de Andrade publica o seu “Prefácio Interessantíssimo” em Paulicéia Desvairada e, ao
final da década, Manuel Bandeira, Raul Bopp e Oswald de Andrade encontravam-se com a
carreira literária consolidada. O maestro Villa-Lobos compõe seus Choros com instrumentação
que recorria desde ao violão solo até a cuíca, o reco-reco e o tam-tam.
Já nos anos 30, nova fase do modernismo, consagrou Vinícius de Moraes, Augusto
Schmidt e Murilo Mendes. Neste momento também é que se dá a aproximação de modernistas
com o governo de Getúlio. Mário de Andrade e Carlos Drummond de Andrade ganham cargos
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públicos. Villa-Lobos é convidado para encarregar-se da educação musical no Distrito Federal e
compõe as Bachianas Brasileiras. Nas artes, alguns modernistas tendem ao abstracionismo,
enquanto Portinari produz painéis com a visão oficial do país, e Di Cavalcanti opta pelos
esquemas tradicionais de representação (MENDA&SANTOS,2002:59).
A Semana de Arte Moderna ocorreu entre os dias 11 e 18 de fevereiro de 1922 no Teatro
Municipal de São Paulo. Foram oito dias de exposição de artes e três de festivais de poesias,
música, literatura e conferências nos dias 13, 15 e 17 e que provocaram muita polêmica. “O susto
começava pelo saguão, transformado em galeria, onde os artistas – que se intitulavam
vanguardistas – chocavam o público com suas obras. Foi um escândalo – e esta era a verdadeira
intenção dos organizadores” (MENDA&SANTOS,2002:6).
Segundo Contier (1988) é realmente impressionante a prontidão com que a elite
paulistana acolheu o convite modernista, não apenas patrocinando o movimento, mas tomando-o
como inspiração para planos ambiciosos de fazer de São Paulo o berço de um futuro racial,
industrial e econômico. A Semana de Arte Moderna de 1922 e, mais tarde, a criação da
Universidade de São Paulo (USP) e do Departamento de Cultura de São Paulo devem ser
compreendidas, para o autor, como esforços no sentido de consolidar uma hegemonia paulista na
área cultural. Seria uma espécie de desabafo para todos os grupos intelectuais marginalizados do
poder e contrários à política cultural praticada na República Velha.
A Semana tinha como objetivo mais importante o de transmitir um novo pensamento em
relação às artes no Brasil. A polêmica acerca de que seriam ou não os modernistas futuristas
ocupou as páginas da imprensa da época e envolveu seus principais participantes, mas não se
tratava apenas de um rótulo ou adjetivo. A discussão conduz à identificação de um campo
político, onde se travava a discussão de um projeto de nação, da criação de uma identidade
brasileira; enfim, de tornar possível uma nação mestiça. E, para isso, os modernistas paulistas
negaram os estrangeirismos, na tentativa de fundar uma identidade nacional, a fim de dar conta
de uma diversidade chamada Brasil. Ao inaugurar uma visão sistêmica da arte, os modernistas
promoveram a interdisciplinaridade entre literatura, pintura, escultura, música, enfim, a expressão
artística como um todo o que permitiu conduzir diálogos entre linguagens distintas. A partir daí, a
discussão acerca da identidade brasileira e da cultura nacional ganhou novos matizes, sejam
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culturais, políticos, econômicos, sociais ou ideológicos. Os modernistas produziram um discurso
autoritário que elegeu a cultura e a concepção de diversidade como parte do Estado e não da
sociedade. A grande modernidade do Modernismo foi colocar a diferença como forma de
unidade, ou seja, trazer o regional para o nacional. Aqui a nação mestiça foi tratada enquanto
diversidade cultural e não apenas racial, por isso pode transfigurar o individual em coletivo e o
que era possibilidade pode se tornar realidade.
A Semana significou também uma mudança importante no campo da música e a grande
presença foi, sem dúvida, o maestro Villa-Lobos. Como outros artistas ligados ao Modernismo,
ele desejava transformar o panorama cultural do país. Como compositor e instrumentista, Villa-
Lobos já tinha uma importante atuação no cenário musical brasileiro, embora a “reação da
intelectualidade acadêmica” a sua música “ter sido sempre de uma violência escandalizada”.
Desde antes da Semana de Arte Moderna, o compositor já lutava com dificuldades em virtude da
repugnância que a sua obra provocava em parte da crítica, só enxergando nela “cacofonias e
tumultos, ruídos desencontrados em peças, que segundo um crítico, não resistiria a qualquer
análise” (WISNIK,1977:36).
Em sua análise do papel da música na Semana de Arte Moderna, José Miguel Wisnik é
categórico em afirmar que o projeto nacionalista para a música não surgiu com o movimento
modernista. Ele aponta que muito antes de 1922, o nacionalismo musical já fazia parte dos
“anseios da intelectualidade brasileira”. Coelho Neto, “um dos defensores mais tenazes da
tradição, nas polêmicas do Modernismo, pertence ao rol dos que, aferrados ao passado romântico,
são incapazes de aceitar os procedimentos pelos quais a música do século XX inseriu, cada vez,
mais elementos perturbadores no código tonal”, defendendo um projeto para a construção de uma
nova música brasileira através da fusão dos elementos musicais das três raças formadoras do
povo brasileiro: o branco, o negro e o índio. Para Coelho Neto, era chegada a hora dessa ideia,
que já se manifestava na literatura, afirmar-se também no campo musical (WISNIK,1977:36).
Nesta perspectiva, se a música de Villa-Lobos, permeada por influências colhidas em
Debussy por um lado, estaria em desacordo com o sistema tonal tradicional defendido por Coelho
Neto, por outro, é possível identificar diversos pontos em comum com as proposições do escritor.
Segundo Wisnik, esses pontos comuns seriam o caráter descritivo de suas obras e seus hinos
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patrióticos que, mesmo publicados na época do Estado Novo, datam de 1922, aderindo assim à
exaltação da nacionalidade, na versão de Coelho Neto. O próprio Coelho Neto exaltou a obra de
Villa-Lobos pelo lado descritivo, a partir de colocações do próprio compositor, numa entrevista
dada à revista Nosotros, de Buenos Aires: “Não sou músico, sou um artista que se serve de sons.
[...] Para mim a música não é um fim, se não um meio, para traduzir e transmitir minhas
emoções” (WISNIK,1977:37).
É interessante na fala do maestro perceber que o som é usado com a intenção descritiva,
da mesma forma com o que acontece com o traçado e a cor na escultura, na pintura ou na letra de
um poema. O som visto dessa forma faz da música não um fim em si mesmo, mas um veículo
para as ideias e emoções exteriores à obra; e faz do artista o porta-voz desses sentimentos. Essas
colocações, contudo, nos reportam às concepções do maestro acerca da própria arte e da função
do artista:
A arte é a religião da Alma Humana. O artista é o sacerdote desta religião. A música é
um dos motivos principais para a disciplina da multidão em favor de uma vontade
coletiva e uníssona dos povos para a conservação do princípio racial de um patriotismo
sadio e puro, podendo irradiar depois por toda a humanidade. Se, quando no turbilhão
das raças de uma nação nova, surge um artista de temperamento, embora sem um meio
suscetível e suficientemente educado como as tradicionais civilizações dos velhos
países, meio de um povo em formação, por conseguinte difícil de compreendê-lo, ele
sofrerá fatalmente os embates de uma luta inglória no caminho sinuoso da sua
predestinação. [...] O compositor invulgar é o único que poderá reagir dentro da sua
época e do seu meio à vertigem exagerada do progresso. O compositor original é aquele
que empregando, de uma maneira elevada, motivos folclóricos do país onde tem vivido e
formado sua mentalidade, deixa transparecer nas suas composições as tendências
naturais da sua predestinação e influências étnicas do seu feitio, formando assim, o
traço característico de sua personalidade e do país onde nasceu cuja terra marcará um
ponto distinto entre todas as nações do mundo.
A nação que não tem uma ideia exata de arte não tem cultura, por conseguinte, sem
nenhuma possibilidade para poder definir as mais raras manifestações da alma de um
povo.3
Na fala do maestro, a arte se apresentou como possibilidade de coesão social, como
forma de manifestação da alma nacional. Assim, cabia a um compositor – original e invulgar
enquanto predestinado – universalizar e dar direção a esse sentimento nacional. Não resta dúvida
que o maestro falava de si próprio como o compositor predestinado. Como também ficava clara
sua concepção de arte como totalidade e instrumento de ação social, indicando que a obra do
3 Documento disponível na Seção de Manuscritos do Museu Villa-Lobos: Pasta 1: HVL.01.01.02. Não há qualquer
indicação de data no documento, fato que se repete na maioria de seus escritos.
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maestro respondia não só a intuitos renovadores, aqui se aproximando dos modernistas, mas
também às tendências mais profundas da cultura, tendências mais amplas, já presentes nesta fase
do Modernismo e que mais adiante vieram corresponder às expectativas de um novo Estado. Se o
texto for anterior, aqui já estava pré-anunciada a sua função de maestro do Estado Novo.
Apesar de a tradição crítica considerar a Semana enquanto marco de um novo tempo, a
Semana não chega a ser, na concepção de Wisnik, a realização acabada da modernidade. Há um
movimento intenso para recortar tendências, marcar terreno, dividi-lo e, neste sentido, pode
afirmar-se que o movimento modernista colocou em cena as ambiguidades e inquietações
próprias de uma elite intelectual, muitas vezes, ainda imbuída por ideais de civilização e
progresso, que pretendiam eliminar os vestígios de atraso brasileiro, simbolizado pela escravidão
e pela predominância da economia rural. Elite que procurara “nos espetáculos refinados do
Municipal” instaurar “um teatro generalizado de atitudes, onde tudo significa um ato de significar
[...] resumidas no confronto entre passadismo e futurismo”, [...] até mesmo “um chinelo equívoco
de Villa-Lobos”. A música nesse contexto funcionava, ao mesmo tempo, como uma amostra do
que de mais moderno vinha sendo executado no Brasil e como preenchimento do tempo de
espetáculo, “de fazer continuar o show”, atraindo o público com figuras conhecidas no mundo da
música, como a virtuose Guiomar Novaes e Ernani Braga que, independentes de serem
modernistas, serviram de pólo de atração para o público nos festivais, muito mais do que o
próprio Graça Aranha (WISNIK,1977:64-67).
Se a Semana, para Wisnik (1977), não foi um marco acabado da modernidade, para
Contier (1988), no entanto, ela representou o canal de divulgação da obra de Villa-Lobos e do
ideal de brasilidade. A Semana teria servido ainda para transformar Villa-Lobos na
corporificação da alma brasileira, em oposição à tradição representada por Carlos Gomes. Da
mesma forma, a Semana também serviu para aproximar o compositor do seleto público
paulistano, que elegeu a França como berço da civilização e da cultura e que recebeu o maestro
em várias apresentações que fez em São Paulo, como também o apoiou com o mecenato de
Freitas Valle, da Villa Kyrial. Além disso, também foi o momento em que o maestro fez contato
com Mário de Andrade e Menotti del Picchia, mantendo relações com estes por longa data. Para
Kiefer, este foi um momento de autoafirmação de Villa-Lobos enquanto compositor nacional.
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Desse período, datam as partituras das primeiras exortações cívicas do maestro-compositor, como
os hinos Brasil Novo e Prá Frente, ó Brasil, além da imortalizada série dos Choros
(KIEFER,1986:93).
Após a realização da Semana, os modernistas partiram para uma série de artigos,
publicados em jornais e revistas, nos quais a questão da renovação da linguagem foi cedendo
lugar aos problemas da formação dos intérpretes e dos grupos musicais; à análise dos repertórios
abordados e a suas interpretações; e a crítica à ópera e aos recitais pianísticos – a pianolatria. Esse
debate envolvia questões que abordavam não só a renovação e a afirmação de uma linguagem
moderna, mas estendia-se igualmente à necessidade de abrir canais para o surgimento de uma
nova música de característica nacionalista. Para Wisnik (1977), esse foi o motivo que levou os
modernistas a voltarem suas preocupações para a questão educacional, dando ênfase ao papel
pedagógico do artista e da subordinação de sua atividade às necessidades sociais de um meio tão
precário.
Importante destacar também que esse debate sobre o nacional no campo das artes e da
cultura estava inserido numa conjuntura mundial específica, a do final da Primeira Grande Guerra
Mundial e da intensificação do interesse dos intelectuais europeus na busca de suas identidades
culturais calcadas num espírito nacionalista. Aqui destacamos Jean Coteau, na França,
defendendo uma música erudita nitidamente francesa, inspirada na cultura popular – o circo, o
vaudeville e, na Hungria, Béla Bártok defendendo a modernidade musical a partir de critérios
metodológicos semelhantes aos de Mário de Andrade. Essa (re)descoberta da cultura popular
está relacionada também com a ascensão do nacionalismo na Alemanha, Suécia, Finlândia,
Grécia, Polônia, entre outros povos (CONTIER,2004:9-11).
No Brasil, esse debate se firmou a partir da Semana de Arte Moderna, como já visto, onde
o encontro entre a tradição e a modernidade evidenciou duas grandes tendências opostas, mas
complementares em muitos sentidos: a do futurismo, focado nas questões do progresso e da
renovação das linguagens artísticas, e a do primitivismo, que procurava no homem da terra, nas
suas antigas raízes nacionais e nas culturas populares as bases para a construção de uma arte
erudita. Na perspectiva de Mário de Andrade, por exemplo, os compositores Villa-Lobos,
Camargo Guarnieri, Lorenzo Fernandez e Luciano Gallet procuravam atribuir novos significados
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às concepções sobre o popular e o erudito, ainda sob a influência do Romantismo do século XIX,
mas tendo como eixo principal o papel do povo na elaboração de uma música erudita nacional e
modernista, sem deixar, porém, de manter o diálogo com as tendências estéticas europeias.
Neste sentido, quais os elementos sonoros deviam entrar na composição da música
nacionalista brasileira? O projeto defendido por Mário, de uma música nacional a partir de base
nacionalista folclórica, consolidou-se na década de 1920, a partir das pesquisas folclóricas sobre
o jongo, o martelo, o pastoril, entre outras manifestações populares (ANDRADE,1958). Nesse
período, Villa-Lobos já estava em plena produção4 e, nas suas internalizações, conscientes ou
não, o compositor modernista procurou, paralelamente, utilizar novos elementos técnicos
introduzidos nas linguagens musicais contemporâneas – polimodalidade, polirritmia e
politonalidade. De um lado, a inspiração na temática folclórica e, de outro lado, o emprego de
técnicas compatíveis implicou na procura dos traços fundamentais para elaborar o retrato sonoro
do Brasil. Fundamentando-se nessa metodologia, os modernistas procuraram consolidar e
fortalecer o nacional, visando opor-se à música estrangeira ou à música exótica ou regional.
Nesta direção, os Choros nº 2 de Villa-Lobos foi dedicado a Mário de Andrade, em 1924,
havendo, assim, uma confluência entre o que era falado pelo autor de Macunaíma e Pauliceia
Desvairada e o discurso musical do compositor da série de Choros e das Bachianas: o diálogo
entre as inovações técnicas dos modernistas brasileiros e dos vanguardistas europeus. Mas,
fortemente envolvido pelas modas de viola mineiras e pelos mais diversos gêneros populares
executados pelos chorões (mazurcas, valsas, modinhas), Villa-Lobos, independente do projeto
modernista, já vinha, de certa forma, propondo a construção da nação através da música. Nessa
construção, o maestro estava preocupado com as raízes do Brasil, com o seu folclore. Sobre este,
assim se expressou o maestro: “Folclore é o cultivo, das manifestações intuitivas e recreativas-
fisiológicas do povo, como sejam a arquitetura, a dansa [sic], literatura, musica, pintura,
escultura”.5 Essas manifestações para o maestro tinham origem nos elementos que constituíram o
nosso povo, no cruzamento de “raças e sub-raças” que deram origem a nossa “Alma artística”.
Num fragmento de documento intitulado “Sobre os sertanejos”, assim se pronunciou:
4 Na década de 20 produziu as Serestas, os Choros, os Estudos para violão e as Cirandas para piano. Informações
disponíveis em Villa-Lobos, Música Fala no site oficial do museu: www.museuvillalobos.org.br. Acesso em 08 de
maio de 2013.
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São quatro os elementos que influíram na música popular e que poderão servir para um
estilo base da futura música artística nacional: indígena (nativo selvagem), português,
espanhol (Europa) e o negro (África selvagem). É do choque da fusão de temperamentos
instintivos musicais destas raças, que surgem as nossas músicas e danças, tão
irregulares e chocantes talvez para os apegados às tradições europeias, mas tão
humanamente sublimes para os progressistas.6
Villa-Lobos procurou estabelecer características para cada raça formadora do povo
brasileiro, pois assim podia encontrar os elementos constitutivos da origem de nossa música
nacional. Em outro documento, ele estabeleceu uma espécie de tabela, em que discriminou as
“raças e sub-raças”, dando as características de cada uma. Cada item tem um título, de acordo
com o período de nossa história. No primeiro item, intitulado Época 1500 (Encontro da terra
selvagem), “as raças” foram assim organizadas com seus respectivos cruzamentos: índio e branco
– curiboca (sub-raça semi-civilizado); curiboca e branco – mameluco, caboclo e bugre; curiboca
e índio – mameluco e bugre. No segundo item, intitulado: Época 1500 a 1600 (Implantação da
colônia portuguesa), a organização das “raças” era: mameluco e curiboca – mestiço. E continua
com a época de 1700 e depois 1889: índio e negro – cafuz, cafuzo ou carafuzo, caborés e
mestiço; curiboca e negro – mulato (sub-raça que abrange quase todo o litoral civilizado do
Brasil); branco e negro – mulato; negro e mulato – creoulo, crioulo ou crioullo, jagunço e cabra;
mulato e branco – terção. Época 1889 (Transformação do regime): os cruzamentos simultâneos e
sucessivos destas “raças e sub-raças”, produziram três espécies de tipos característicos para
firmar a nossa alma artística, no que se refere a poesia, lendas, danças e música, segundo o
maestro. São eles: Localizados, Profissionais e Qualificados. Os Localizados são tipos incultos
que se estacionaram nos sertões mais afastados das pequenas vilas e cidades de província. São
admiráveis poetas repentistas, imaginadores de lendas fantásticas, improvisadores de músicas,
com ritmos e melodias estranhas e criadoras de danças originais. São tipos que nunca ouviram
falar em nenhum poeta civilizado de qualquer época do país. Chamam-no de: sertanejos, caipiras,
matutos, jecas, capiau, tabaréu e gaúcho. Os Profissionais são, às vezes, os mesmos Localizados
ou tipos aventureiros, supersticiosos. São inconscientemente orgulhosos e valentões, prosando-se
sempre de já conhecerem grandes poetas, ouvirem música italiana e adaptarem danças e todas de
5 Documento, sem data, disponível no Acervo do Museu Villa-Lobos: Seção de Manuscrito: Pasta 2: HVL: 01.01.30. 6 Fragmento, sem data, de documento disponível no Acervo do Museu Villa-Lobos: Seção de Manuscritos: Pasta 1:
HVL: 01.01.29.
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origem portuguesa, espanhola e dos negros africanos. São, geralmente, cantores, poetas e músicos
de inclinação. Chamam-no de: cantadôs,vaqueiros, violeiros, gaiteiros, boiadeiros, cangaceiros,
pioneiros, tropeiros. Os Qualificados poderão também ser deformados dos Localizados e
Profissionais, porém, estão convictos de já conhecerem a civilização de uma importante cidade
ou capital. Cultos ou incultos, colocados ou desclassificados, inteligentes ou estúpidos, com
caráter ou péssima índole, hábeis e às vezes geniais, são tipos que mais decantam a nossa
natureza (os nossos aborígenes), positivamente, usam a escola. São boêmios da rua, que fazem
serenatas sentimentais, picantes e pitorescas ao luar, cantando ou compondo trechos musicais
populares, que muito concorreram para identificar o característico do nosso folclore pela maneira
pessoal que o fazem, sobretudo, quanto ao ritmo. São os “implantadores” do nosso carnaval. Eis
os fotótipos de várias “sub-raças” que fazem personificar o temperamento do povo brasileiro:
cuero, capadócio, capanga, moleque, malandro, capoeira, bilontra, seresteiro, águia, chorão,
cafagésia, pau-d’água e pernóstico.7
O maestro apresenta uma espécie de tipologia étnica, no mínimo, bastante sugestiva pela
variedade de tipos apresentados. Ele não só se preocupava em estudar os cruzamentos e os tipos
resultantes, como também teorizar com os aspectos psicológicos de cada tipo de seu esquema.
Outro dado interessante é a diferença que estabelece entre os Localizados – incultos, mas
admiráveis poetas repentistas; os Profissionais – aventureiros, orgulhosos, mas são cantadores e
poetas com destaque; e os Qualificados – petulantes por já se acharem bem formados, são os
boêmios e seresteiros: os três tipos compunham o que havia de mais sugestivo em nosso folclore.
Esses dados apresentados pelo maestro lembram muito as discussões acerca da formação de
nossa nacionalidade, no início do século XX, muito marcadas pelo discurso cientificista. Ao
mesmo tempo, reporta-se a traços da tradição (as três raças formadoras), lembrando os letrados
românticos, e apresenta também uma variedade de elementos constitutivos de nossa
nacionalidade, o que leva a considerar o Brasil uma nação ricamente diferenciada, do jeito
modernista de ser. Ele vai se dedicar a essa diversidade para entender a alma nacional.
Ao lado dessa busca do moderno, identificado com valores como progresso e civilização,
podemos afirmar que o movimento modernista se afirmou como um esforço de construção de
7 O documento está disponível no Acervo do Museu Villa-Lobos na Seção de Manuscritos: Pasta 2: HVL. 01.01.32.
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uma identidade nacional e de uma estética. A estética modernista na música brasileira é
concebida como a harmonização do nacional com o universal. O universal seria aqui
representado pelos movimentos de vanguarda europeia e o nacional devia ser identificado com as
“raízes” culturais do Brasil. Aqui é interessante notar que a formação musical de Villa-Lobos se
dá não apenas pelo contato com a tradição erudita, mas também no intenso convívio com a
música dos chorões, com a música popular urbana, o que fica registrado em muitas de suas
composições: como a Suite Popular Brasileira, por exemplo.8 Além disso, compor para o violão
no início do século, já é uma escolha reveladora de vínculos com a cultura popular urbana, da
qual o choro era uma das expressões musicais mais importantes.
Tudo isso parece apontar para uma tensão entre a valorização do folclore na constituição
de uma consciência da nacionalidade e a relação com o novo representado, tanto pelos elementos
urbanos e industriais emergentes no período (e aí deve ser incluída a própria expansão da música
popular através da nascente indústria fonográfica e do rádio), como pelos novos modelos e
valores da vanguarda estética europeia.
Como maestro-compositor em busca da alma nacional, Villa-Lobos colocou sua música à
serviço da nação. E, neste sentido, participou das discussões acerca da educação musical de sua
época que, assim como o modernismo, teve de enfrentar conflitos e divisões. Nessa área
apresentavam-se, simultaneamente, as questões ligadas ao debate entre as tendências
pedagógicas, em disputa e aquelas relacionadas à formulações sobre as bases da música no
período: o das escolhas estéticas, onde diferentes linhas de composição revelavam diferentes
visões de mundo e as das propostas pedagógicas, com diferentes posições em relação ao poder.
Neste último caso, as duas metodologias em confronto eram o canto orfeônico e a iniciação
musical. Neste confronto, o maestro não foi neutro. Suas atitudes revelaram suas posições
políticas e deixaram transparecer uma nova época no Brasil. Época de nacionalismo exacerbado e
ufanista, que tentava construir e identificar o verdadeiro espírito da nacionalidade e a consciência
do coletivo, ao mesmo tempo em que se procurava forjar um novo homem adaptado às novas
condições de trabalho em uma sociedade cada vez mais urbana. O Estado Novo encontrou na
8 A Suíte Popular Brasileira, obra para violão, é formada por cinco peças compostas entre 1908 e 1912 (salvo o
Chorinho que é de 1923): 1- Mazurka-Choro; 2- Schottish-Choro; 3- Valsa-Choro; 4- Gavotta-Choro e Chorinho
(SANTOS,1996:47).
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música a melhor forma de expressão; daí a necessidade de não ultrapassar a sintaxe e a harmonia
do estilo. É na construção do nacional, enquanto veículo do popular, que a nação mestiça ganha
sentido de nação brasileira e garante ao Estado falar em nome da sociedade. A música se torna o
discurso político da nação.
Referências Bibliográficas:
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ANDRADE. Mário. A lição do amigo. Carta de Mário de Andrade a Carlos Drummond de Andrade. Rio de
Janeiro:José Olympio, 1982.
CONTIER, Arnaldo Daraya. Brasil Novo, Música, Nação e Modernidade: os anos 20 e 30. Tese apresentada na
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, para obtenção do título de
Livre Docente em História. São Paulo, 1988.
GOMES, Ângela de Castro. “O Redescobrimento do Brasil”. In: GOMES, Ângela de Castro et alli. Estado Novo –
Ideologia e Poder. Rio de Janeiro:Zahar Ed. S.A., 1982.
MENDA, Marli Elizabeth & SANTOS, Vanessa Costa. 80 anos da Semana de Arte Moderna de 1922. São
Paulo:Lemos Editorial, 2002.
NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das & MACHADO, Humberto Fernandes. O Império do Brasil. Rio de
Janeiro:Nova Fronteira, 1999.
ORTIZ, Renato. Cultura Brasileira e Identidade Nacional. 5ª edição.São Paulo:Brasiliense, 2006.
SANTOS, Marco Antonio Carvalho. Música e Hegemonia: dimensões político-educativas da obra de Villa-Lobos.
Dissertação de Mestrado/Faculdade de Educação/Universidade Federal Fluminense, Niterói, 1996.
VENTURA, Roberto. Estilo Tropical. História Cultural e Polêmicas Literárias no Brasil 1870-1914. São Paulo:Cia
das Letras, 1991.
WISNIK, José Miguel. O coro dos contrários: a música em torno da Semana de 22. São Paulo, Duas Cidades,
Secretaria da Cultura, Ciência e Tecnologia, 1977.
Site: www.museivillalobos.org.br. Acesso em 08/05/2013.
Arquivo: Seção de manuscritos do Museu Villa-Lobos.
Mestranda do Programa de Pós-graduação em História, da Universidade Federal Fluminense.