I SEMINRIO ARTE E CIDADE - Salvador, maio de 2006 PPG-AU - Faculdade de Arquitetura / PPG-AV - Escola de Belas Artes / PPG-LL - Instituto de Letras

UFBA

Vila Bela Arquitetura, cultura e

tradio negra cultivadas h 252 anos Janana Facchinetto

HISTRICO

A confluncia do rio Jauru com o Paraguai desenhava-se como um ponto de excepcional importncia

para os Portugueses: uma grande quantidade de jazidas aurferas e essencial rea de domnio para a

Bacia Amaznica. Porm, eram os espanhis que ocupavam grande parte das margens do rio

Guapor. Afim de manter seus territrios ampliados pelo Tratado de Madri (1750) - Portugal

resolveu fundar ali uma nova capitania. Assim surgiu Villa Bella da Santssima Trindade, estabelecida

como a primeira capital do estado de Mato Grosso, em 19 de Maro de 1752.

Para incentivar sua ocupao, Dom Rolim de Moura, ento governador ofereceu terras e

ttulos aqueles que ali fixassem residncia. Tambm era perdoado todo tipo de crime, a

coleta do Quinto - a quinta parte do ouro garimpado que era pago como forma de imposto

Coroa Portuguesa - , pagamento de dizimo, entre outros. Criminosos, assassinos, ladres de

todos os lados, ao chegarem na Villa eram vistos como cidades do bem, em troca de nela

permanecerem por no mnimo 3 anos para serem perdoadas suas penas judiciais. Enfim,

funcionava um estado de violao consentida s leis implantadas na Colnia em troca do

povoamento da regio.

2

Pouco tempo aps sua construo, porm, o local escolhido por Dom Rolim demonstrou no

ser o mais apropriado: a insalubridade da regio causava doenas nos moradores, e o

trabalho escravo era muito intenso, enquanto esses, eram muito mal cuidados. Logo, sua

expectativa de vida girava em torno de 35 anos de idade. No demorou para Villa Bella ser

considerada como terra doentia.

A base da economia vilabelense era o garimpo. O ouro catado era o superficial, at onde a

vista alcanava, devido falta de instrumentos adequados para o garimpo. To instvel

quanto a produo do ouro estava o comrcio, dependente de produtos vindos de capitanias

distantes barrando ainda na dificuldade de acesso vila. A produo agraria era precria: as

constantes cheias do rio arrasavam as plantaes, enquanto, por sua vez, os perodos de

seca prolongada impediam as boas colheitas.

Ainda contavam com a resistncia dos povos indgenas locais, que resistiam invaso, e

aos conflitos por estar numa rea de divisa, entre terras de Portugal e Espanha, deixando a

cidade num clima de constante tenso.

A ignorncia do preconceito da poca levava os brancos a crerem que eram uma raa

superior, frgil, e os negros, raa inferior, por serem mais fortes e resistentes doenas e

insalubridade, deveriam os negros permanecer no local, pois apenas eles conseguiriam

sobreviver, isolando complemente o fato de que os negros e ndios sobreviviam por ter

conhecimento da flora medicinal e manipulao no tratamento das doenas.

Em 1835, Cuiab oficialmente designada capital mato-grossense. Os brancos deixaram

Villa Bela para assumir seus cargos na nova capital, abandonando os escravos em Villa

Bela. A partir desse momento que os negros constrem a cidade. A terra que, at ento,

servia de explorao do trabalho escravo pela coroa Portuguesa, passa a ser territrio de

liberdade e posse conjunta.

Os negros abandonados passam a revelar a prpria cultura e construir a cidade de acordo

com seus sonhos e ideais. Cresce, assim, uma nova vida s margens do Guapor.

RUNAS O plano urbanstico da vila foi elaborado em Portugal (fig. 01), e os projetos das residncias

(fig. 02), no Rio de Janeiro, porm, ambos tiveram que ser adaptados a realidade local, tais

3

como as elevadas temperaturas, distancia e dificuldade de acesso. Os projetos das casas

tiveram de ser simplificados: os sobrados se tornaram casas trreas e foram alargadas, as

estruturas tiveram de ser reforadas por causa do solo e a dificuldade da chegada de

materiais nobres fez com que os construtores optassem por usar materiais oriundos da

regio, como pedras, pau a pique e cobertura de capim. Apenas duas regras eram exigidas:

que o traado retilneo das ruas fossem mantidos, essas com 70 palmos de largura, e que as

casas fossem construdas no alinhamento frontal dos terrenos, as construes seguiam o

padro das casas coloniais do sculo XVIII, retilneas, com grandes portas e janelas, paredes

grossas e telhado com queda de quatro guas.

O plano previa ainda a construo de dois grandes prdios: a Igreja Matriz e a Residncia

dos Governadores, construdos a duras penas plos escravos. As construes eram de

pedra Canga, adquiridas na regio. To amplas as propores dos prdios que as

construes foram interrompidas vrias vezes, por escassez de material ou falta de recurso.

Apesar das dificuldades, no final de 1952, mesmo ano do incio das construes, a vila j

contava com 16 casas erguidas e em fase de acabamento.

Com o abandono de Villa Bela plos brancos, os negros construram inmeros quilombos

nas imediaes, com medo de ocupar a cidade e serem pegos desprevenidos numa volta

repentina dos brancos.

Nesses quilombos, faziam plantao de subsistncia e praticavam a cultura e religio de

acordo com suas crenas.

Villa Bela foi complemente abandonada prpria sorte, passando as runas.

Apenas 70 anos aps a partida dos brancos os negros ocuparam a cidade, dividindo entre si

as antigas casas da elite portuguesa.

CIDADE ATUAL De acordo com o censo do IBGE de 2000, Vila Bela da Santssima Trindade possui uma

populao de 12.880 habitantes.

O cotidiano da cidade pacato. Pessoas caminham tranqilamente pela rua, se instalam na

praa em rodinhas de conversa, quase indiferentes beleza das runa que toma todo o

centro da praa.

4

O traado urbano regular, com quadras retangulares e, como a maioria das cidades

interioranas, seu movimento gira em torno de uma praa central, onde est instalado o

comrcio local, composto por pequenas lojas de variedades (roupas, objetos para casa),

armazns e farmcia (Fig. 03).

Sem uma estrutura turstica apropriada, a economia de Vila Bela estagnada. Quando

terminam os estudos, os jovens saem da cidade em busca de emprego, ou ficam e se viram

como podem. Apesar da pobreza e falta de perspectiva futura, o ndice de roubo na cidade

quase zero. O que mais se ressalta a alegria, a amizade e o compartilhar. A solidariedade

marca mais forte desse povo.

CONSTRUES ATUAIS Atualmente, a maioria das casas construdas so de tijolos nus, com esquadrias simples de

madeira, telha de barro, beirais estreitos (fig. 04).

Fora as ruas que ladeiam a praa, revestidas por paraleleppedo, as demais so de terra

batida cujo p colore as residncias e caladas.

Imponente no centro da praa, as enormes runas da antiga igreja serve de fundo para a

cidade. Sob ela, a vida corre mansa. E sobre ela, em 02 de maio de 2006, foi inaugurada

uma cobertura de estrutura metlica e proteo em policarbonato, afim de protege-las da

ao do tempo e dos vndalos (Fig. 05). uma medida emergencial tomada plos

governantes para conter o deterioramento das runas que, segundo estudos, no resistiria

por mais dez anos. No mesmo dia, foi inaugurado o Museu Aberto, que nada mais do que a

transformao da igreja num espao de exposio aberto, provocando um intercmbio de

conhecimento entre as runas e a cidade.

o inicio da restaurao de Vila Bela da Santssima Trindade, aps 161 anos de descaso

pblico.

CULTURA

A festana do Divino Festana religiosa realizada uma vez por ano afim de homenagear o Divino Esprito Santo, a

Santssima Trindade e as Trs Pessoas, padroeira do lugar.

5

uma grande festa, dividida em duas partes: a preparao, caracterizada por reza, folia,

levantamento do mastro e alvorada danante; a segunda, os rituais, que so reza solene

(missa), sorteio dos novos festeiros e os banquetes do dia (almoo e jantar).

A banda acompanha toda peregrinao. A festa gira em torno de duas bandeiras: a pobre e a

rica. A bandeira pobre levada pelo Alferes da Bandeira, e somente ela pode cruzar todo o

municpio, zona rural e urbana. Quando chega na moradia, a bandeira pobre recebida com

festa e alegria. Comida, bebida e pouso so oferecidos aos que acompanham a marcha, e

ganham oferendas para a festa. A bandeira rica levada pelo Capito do Mastro, e apenas

pode desfilar na zona urbana, porm ela s entra na residncia se for chamada, pois

necessrio dar algum tipo de prenda em troca de receber a bandeira em sua casa.

Quando as bandeiras se encontram, so unidas e levadas pelo cortejo at a igreja Matriz,

onde so hasteadas ao som de cnticos e rezas.

A inteno proteger todo o Vale, permitindo que o fluxo da vida prossiga nas graas do

Santo.

A Dana do Chorado

A exuberante e sensual Dana do Chorado , hoje, objeto de admirao e rito cultural. Sua

origem, no entanto, no nada especial assim: a Dana do Chorado teve incio numa mgoa

profunda e dolorida. Ao verem seus entes queridos castigados por feitores, as escravas

usavam a dana para atrair a ateno deles e amenizar a pena de seus queridos. Da o

nome Chorado, do choro dos que apanhavam e das escravas que viam.

A marca do Chorado a seduo. Vestidos coloridos, passos compassados, ritmo constante,

piscadelas insinuantes e um olhar de desafio constante. As mulheres encaram, deixando o

observador numa sensao de inferioridade e submisso. No meio da dana, sacam uma

garrafa de Canjinjin e colocam sobre a cabea, sem perder o ritmo e o gingado. O equilbrio

que mostram as deixam ainda mais surpreendentes e exuberantes.

A Dana do Congo

A Dana do Congo , na verdade, um jogo, uma pea de teatro a cu aberto, nas ruas da

cidade, com um elenco repleto de personagens de vestes coloridas e devidamente armados

com espadas de brinquedo.

6

O enredo gira em torno de dois personagens: o rei do Congo, acompanhado de seu filho

Canjinjin e de seu secretrio de guerra; e o rei de Bamba, representado pelo seu embaixador

e seu exrcito, formado por 12 pares de guerreiros.

Se iniciam ento as encenaes de uma guerra, de 3 homens contra 25. E ganha pelo Rei

do Congo, que com palavras, expresses e magia africana derrota todos os inimigos. E ajuda

a alimentar e manter viva a cultura de seus antepassados para seus antecessores.

A Festana de Vila Bela da Santssima Trindade hoje um dos ritos mais belos de Mato

Grosso. Memrias de um passado que no pode ser esquecido, ela estende suas teias por

lembranas longnquas, resgata lutas de antepassados, reconsidera o papel dos santos

catlicos e, mais importante, celebra a identidade de um povo que soube interferir em seu

prprio destino.

Fig. 01. Plano de Villa Bela da Santssima Trindade, de Festana de Vila Bela da santssima Trindade, pg. 25

Fig. 02. Prospecto da povoao de Villa Bela, de Festana de Vila Bela da santssima Trindade, pg. 31

7

Fig. 03 Traado urbano atuais. Foto area, de Festana de Vila Bela da santssima Trindade, pg. 18

8

Fig. 04 Casas atuais e Festa do Divino, de Festana de Vila Bela da santssima Trindade, pg. 53

Fig. 05 Runas cobertas, de Festana de Vila Bela da santssima Trindade, pg. 31

9

BIBLIOGRAFIA:

VILELA, Mrio. Festana de Vila bela da Santssima Trindade. Cuiab: Secretaria do Estado de Comunicao social, 2002.

FERREIRA, Joo Carlos Vicente. Mato Grosso e seus municpios. Cuiab: Secretaria de Estado de Educao, 2001