Viking - Daniel de Carvalho

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1 A ESFERA

UMA ESFERA DESLOCAVA-SE silenciosamente através

do impressionante e imponderável espaço intergaláctico. Entre os bilhões de galáxias, ela percorria enormes distâncias a uma velocidade próxima da velocidade da luz. Havia partido de uma longínqua região do cosmo, rumo a um alvo situado a milhões de anos luz de seu local de origem.

Para um ser humano que pudesse estar próximo da Esfera, ela lhe pareceria ter cerca de 30 metros de diâmetro e ser feita de metal altamente polido. Não havia nenhuma rugosidade em sua superfície extremamente lisa.

O espaço intergaláctico seria assustador para tal ser humano. Não fora ele apenas hipotético, não suportaria as inóspitas características dessa região. Uma região quase totalmente desprovida de matéria e muito próxima do vácuo absoluto, onde a temperatura chega a níveis inconcebíveis para a vida humana.

Mesmo que esse hipotético ser humano pudesse sobreviver no espaço intergaláctico, ele não teria a mínima disposição para ficar observando a Esfera. Ficaria atordoado pela falta de referência espacial e temporal. Não haveria para ele a noção do “em cima” e do “em baixo”, nem do quando e do onde. E ainda estaria submetido às angustiantes sensações do nada absoluto, do silêncio e da desolação. Ele não teria como saber em que época tal fato estaria ocorrendo. Não saberia se aquele evento estaria ocorrendo em um momento posterior, anterior, ou contemporâneo à existência da Terra.

Mas deixemos de lado esse ser humano hipotético e voltemos à Esfera. Ela seguia voando pelas vazias regiões situadas entre as bordas das galáxias, sem entrar nos domínios de nenhuma delas.

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A ALDEIA MORS

Ano 200 A.C. Escandinávia Litoral da Noruega OS VIKINGS TORNARAM-SE conhecidos a partir do ano

790 D.C. quando iniciaram suas incursões pela Europa Ocidental. Antes dessa época, apenas existiam na região aldeias isoladas formando pequenos reinos independentes que lutavam ferozmente entre si.

Um desses reinos era a fictícia aldeia Mors, próxima a um majestoso fiorde localizado bem ao norte da atual Noruega. Os fiordes são golfos estreitos e profundos, espremidos entre altas escarpas pelos quais as águas geladas do mar invadem o interior do continente.

SENTADOS NUMA PLATAFORMA natural, no topo do

mais alto dos penhascos que contornavam o fiorde de Mors, uma moça e um rapaz apreciavam o início da tarde. A paisagem era deslumbrante. Lá do alto, eles podiam ver as límpidas águas do golfo e os punhados de neve acumulados nas saliências dos rochedos. Acostumados ao clima severo da região, eles suportavam com naturalidade a nevasca, o intenso frio e o vento que os açoitava. Na verdade, estavam muito mais interessados na atração que sentiam um pelo outro.

— É a segunda vez que viemos aqui — comentou a moça

aconchegando-se ao calor do casaco felpudo de pele de urso que servia de agasalho ao rapaz.

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— Com você, eu virei aqui mais mil vezes! — respondeu ele envolvendo-a carinhosamente em seu braço.

— Gosta tanto assim da neve? — maliciou a jovem. O rapaz sorriu sem desviar o olhar daqueles grandes e

provocadores olhos azuis. Depois, murmurou-lhe no ouvido: — Gosto tanto assim... de você. Um beijo demorado ignorou a neve que se acumulava sobre

os gorros e sobre os ombros dos casacos. Depois, permaneceram longo tempo juntinhos, aos beijos, aquecidos pelo calor de seus corpos e agasalhos.

Passados os momentos mais intensos da paixão, voltaram a contemplar a paisagem. Puseram-se então a falar de fatos do dia-a-dia.

— Quando o Magni vai voltar? — perguntou Modi. — Faz muitos dias que meu pai partiu em incursão —

comentou Dalia. — Certamente, logo estará de volta. — Estou ansioso para ouvir o que ele vai contar desta vez. — Você não participou dessa última incursão, Modi.

Pretende participar das próximas? — Sim. Eu gosto de lutar pela nossa Aldeia. Você sabe

disso... Dalia permanecia pensativa enquanto, distraidamente, atirava

pequenos seixos nas profundezas do abismo. Não demorou muito até que fez nova pergunta:

— Não está satisfeito com o seu trabalho de extrair e fundir o ferro?

— Claro que estou! Mas todos os homens de Mors, além de seus trabalhos, também são guerreiros.

— Forseti não precisa de você no estaleiro?

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— Sim. Meu pai até gostaria que eu trabalhasse o tempo todo com ele e meu irmão no estaleiro. Mas eu gosto do meu trabalho na fundição.

Mais alguns beijos e carinhos interromperam momentaneamente a conversa. Mas logo depois, Dalia voltou às perguntas:

— Seu pai espera algum dia ficar no lugar do velho rei Vidar. Não é mesmo?

— Vidar está muito velho — concordou Modi aderindo à distração de lançar pedrinhas ribanceira abaixo. — Talvez não demore muito para morrer. Mas não esqueça que Loki também deseja o lugar do Rei...

A nevasca começou a ficar mais forte enquanto o vento

gelado assobiava sonoramente entre as encostas. — É melhor voltarmos! — sugeriu Dalia. Modi sorriu concordando. Levantou-se e deu a mão para

ajudá-la a se erguer. Depois pegou seu machado que deixara no chão e o prendeu na cinta, onde também trazia um facão. Os homens de Mors jamais saiam da Aldeia sem alguma arma para defender-se de algum animal feroz ou de um forasteiro inesperado.

Do local onde estavam, chegariam à Mors descendo em direção a um extenso bosque situado ao nível do mar. Depois de cruzá-lo, ainda seria necessário atravessar um rio saltando sobre as pedras que afloravam na superfície da correnteza. Finalmente, bastaria contornar um grande lago para chegar até a paliçada que cercava a aldeia.

Iniciaram, então, a tortuosa descida, quase vertical, em

direção ao bosque. A nevasca se tornara violenta. Eles precisavam de todo cuidado para não rolar penhasco abaixo, pois pisar em

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falso num dos muitos seixos roliços, seria escorregar e cair. Entretanto, a nevasca só durou enquanto eles desciam. Assim que chegaram ao sopé do despenhadeiro e alcançaram o terreno plano do bosque, o tempo mudou completamente e a neve cessou de cair.

— Mais alguns instantes e estaremos na margem do Rio

Mors — comentou Modi enquanto caminhavam afundando os pés no manto branco de neve.

Dalia parou um instante e voltou-se para observar o caminho que haviam feito até então. Tudo estava muito calmo e silencioso. Só havia suas próprias pegadas além de algumas lebres que corriam ariscas de um lado para outro. Dalia respirou fundo e sorriu para Modi demonstrando que poderiam continuar caminhando.

Pouco depois avistaram o Rio Mors. Começaram a atravessá-lo saltando com agilidade de uma pedra para outra, com cuidado para não escorregar e cair nas águas geladas. O rio não era profundo naquele trecho, mas uma queda sobre as pedras poderia causar ferimentos além de deixá-los molhados, o que não seria nada agradável em tão baixa temperatura.

Já estavam quase alcançando a margem oposta quando ouviram um melodioso cantarolar. Pararam sobre as pedras em que estavam e ficaram prestando atenção na voz que se aproximava.

— Conheço essa voz! — exclamou Dalia. — É o Ull! — Ull, o arqueiro? — Sim! Só ele canta bonito desse jeito! Modi já o ouvira cantar. Concordava que a voz dele era

bonita mesmo, mas não ficou muito satisfeito com o entusiasmado elogio de Dalia.

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— Vamos, Dalia! — convidou-a Modi para que continuassem.

— Espere! Acho que ele está vindo para cá... — Esperar para quê? Só para ver aquele arqueiro? Dalia sorriu. Haviam saltado mais algumas pedras quando o cantarolar

cessou abruptamente. Olharam para a margem e lá estava o vistoso Arqueiro trazendo um gamo abatido sobre os ombros. Ao ver o casal, Ull parou de cantar.

— O que vocês estão fazendo tão longe da Aldeia? — perguntou-lhes Ull com um cativante sorriso.

— Fomos apreciar o fiorde lá do alto de um penhasco — respondeu Dalia no mesmo momento em que saltou para a última pedra antes da margem.

Ull apressou-se em jogar a caça no chão e estender a mão para ajudá-la. Modi, que vinha logo atrás, não gostou da gentileza do Arqueiro para com sua namorada.

— Nossa! Você caçou esse gamo? — perguntou Dalia

admirada. — Faz pouco tempo que o abati — respondeu o Arqueiro. —

Mas agora estou indo para o outro lado do rio. Ainda quero caçar alguns gansos antes de voltar para casa. Prometi aos vizinhos que dividiria tudo com eles.

Enquanto Ull e Dalia conversavam, Modi observava contrariado o vistoso Arqueiro. Ull era um rapaz novo, semelhante ao Modi em muitos aspectos. Pouco mais alto e de porte atlético, ele tinha a pele clara, cabelos louros até os ombros e cativantes olhos verdes.

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— Então vocês escalaram a escarpa? Quando quiserem fazer isso, contem comigo. Poderei protegê-la — disse Ull olhando nos olhos de Dalia.

— Por quê? Pensa que não sou capaz de protegê-la? — perguntou Modi com a voz alterada.

Ull observou que Modi apertava nervosamente o cabo de seu machado. Respondeu então com um sorriso quase irônico:

— Claro que você é capaz! Mas aposto que a Dalia não dispensaria uma companhia como a minha!

— E em que você se acha melhor que eu? — perguntou Modi em vias de sacar seu machado da cintura.

— Você sabe que sou o melhor arqueiro que existe — replicou Ull. — Não perco uma caça! E quando estou em incursões, nenhum inimigo sobrevive às minhas flechas.

Dalia se deu conta do que poderia acontecer. Segurou o musculoso braço de Modi e disse com preocupação:

— Agora vamos, Modi. Está ficando tarde! Modi e Ull ficaram se encarando em silêncio. Olho no olho. — Até logo, Ull — despediu-se Dalia interrompendo aquele

perigoso silêncio. Ull sorriu com tranquilidade e disse: — Também tenho que ir. Vocês sabem que os arqueiros

costumam proteger os elfos que vivem no bosque. Modi sorriu com desdém. Os habitantes de Mors, os morseanos, acreditavam na

existência dos elfos, criaturas que viviam no bosque em contato com a natureza e que estavam sempre acompanhados de bravos arqueiros.

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Ull pegou o gamo que deixara no chão e atleticamente jogou-o sobre os ombros pondo-se a atravessar o rio. Ainda no começo da travessia, ele parou e voltou-se:

— Dalia, depois que cair a noite, eu vou passar em sua casa para lhe dar uma parte da caça.

Ull deu novamente aquele sorriso irônico e continuou atravessando o rio. Modi e Dalia permaneceram parados, olhando para o arqueiro.

— Não quero que você o receba em sua casa — disse Modi em tom de ameaça.

— Será que ele protege mesmo os elfos? — perguntou Dalia procurando desviar o rumo da conversa.

Modi deu de ombros e rosnou entre os dentes: — Ele que não se meta comigo!

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O PLANETA ARRET

NA IMENSIDÃO DO UNIVERSO, havia um planeta fictício chamado Arret. A principal característica desse planeta era ser, em quase tudo, semelhante ao planeta Terra.

É pequena a possibilidade de um planeta ser, em quase tudo, semelhante a outro, mesmo num universo com bilhões de galáxias que nascem, vivem e morrem ao longo de tempos intermináveis. Mas essa probabilidade se confirmou com a existência dos planetas Terra e Arret.

Havia, entretanto, duas grandes diferenças entre eles: Uma dessas diferenças era quanto à localização desses

planetas no universo. Cinco milhões de anos-luz os separavam! A outra diferença era quanto à época em que eles surgiram no

universo. Arret surgiu em sua galáxia, um milhão de anos após o surgimento da Terra na Via Láctea.

De resto, Arret era em tudo semelhante à Terra. A estrela que fornecia luz e energia a Arret era semelhante ao

Sol que fornecia luz e energia à Terra. E a distância entre Arret e sua estrela era a mesma distância entre a Terra e o Sol. Da mesma forma, o diâmetro de Arret, sua rotação e translação eram semelhantes aos seus equivalentes da Terra.

Arret abrigava milhares de espécies de seres vivos. E como tinha as mesmas características geológicas da Terra, Arret também possibilitara o surgimento dos arreteanos, seres humanos inteligentes e semelhantes aos seres humanos da Terrra.

Os arreteanos, que desenvolveram uma incrível civilização, tinham começado a contar o tempo havia 2010 anos. Entretanto, o ano 1 de Arret, só ocorrera um milhão de anos depois do ano 1 da Terra.

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A ESFERA ENTRA NA VIA LÁCTEA

A ESFERA DEIXOU O ESPAÇO intergaláctico e mergulhou na Via Láctea, passando a se deslocar no espaço interestelar dessa galáxia. Nessa fase da viagem, a Esfera passava ao longo de milhares de estrelas orbitadas por seus planetas. A Esfera seguia resoluta para algum lugar e para alguma época pré-determinados.

Para o hipotético ser humano que estivesse acompanhando a Esfera em sua viagem, não haveria diferença perceptível entre o espaço intergaláctico e o espaço interestelar onde ele estivera antes. O espaço entre as estrelas seria tão assustador e inóspito quanto o espaço entre as galáxias. O espaço interestelar era também uma região desprovida de matéria e muito próxima do vácuo absoluto e com temperaturas inconcebíveis para a vida humana. A falta de referência espacial e temporal continuaria tão aterradora quanto antes. Mas no espaço interestelar ele teria a impressão de estar no centro de um enorme globo negro, com milhões de estrelas cintilantes, acima, abaixo, e a toda sua volta.

Viajar pelo espaço, nessa escala, é também viajar no tempo. Tanto a Esfera como o hipotético ser humano não estavam apenas viajando no espaço. Mas também no tempo.

Esqueçamos novamente o ser humano imaginário e observemos a Esfera. Ela “viu”, ao longe, um pontinho luminoso semelhante aos milhões de outros pontinhos que a circundavam. Tal pontinho era o Sistema Solar. E esse pontinho era de seu interesse! Passou então a deslocar-se em sua direção até que entrou nos domínios da estrela chamada Sol.

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A CASA DE MODI

DEPOIS DE TEREM DEIXADO o arqueiro Ull, Modi e Dalia continuaram caminhando por mais um trecho do bosque até alcançarem a margem do lago. Como Mors ficava mais adiante, tiveram que contorná-lo. O frio aumentara muito e a temperatura caíra abaixo de zero.

— Você ainda está aborrecido por causa do Ull? — perguntou Dalia.

Modi não respondeu. Tinha uma expressão carrancuda. — Fiz uma pergunta! — insistiu Dalia. — Claro que estou aborrecido. Você falou mais do que devia

com aquele idiota. — Não acho que ele seja um idiota. Ele quis ser simpático

conosco. Só isso. — Conosco, não. Com você! — Ele é assim mesmo. É um brincalhão. — Você o admira, não é mesmo? — Realmente ele tem de tudo para ser admirado... por

qualquer pessoa... Modi olhou para ela como quem pede que se explique

melhor. Dalia começou então a enumerar as qualidades do Arqueiro:

— Ele é lindo... grandão... canta como ninguém... é valente... excelente arqueiro e ótimo caçador.

— Só isso? — perguntou Modi com ironia — Também é educado e agradável! — Então por que você não o namora, em vez de namorar a

mim? — Porque eu gosto de você!

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— Mas você acabou de falar com tanto entusiasmo das qualidades dele...

— Mas eu não disse que você não tem qualidades. Essas últimas palavras de Dalia recuperaram em parte o amor

próprio do rapaz. Pararam de caminhar e beijaram-se longamente. Depois seguiram rumo à aldeia. Quando avistaram a paliçada, já estava começando a escurecer.

A paliçada, construída com toras de madeira na posição

vertical, cercava a aldeia incluindo uma grande enseada que se comunicava com o mar por um estreito canal. A paliçada cruzava esse canal, havendo um grande portão que só era aberto para a passagem de um barco por vez. No contorno da enseada, ficava o estaleiro de Forseti e também o cais para os barcos de pesca e dos barcos de guerra, chamados de drakkar pelos morseanos.

Na área protegida pela paliçada, além do estaleiro e do cais, ficavam as casas e também algumas atividades produtivas tais como a carpintaria do artesão Karl, pai do Arqueiro Ull, e a oficina onde Magni, pai de Dalia, forjava armaduras, armas e utensílios de uso doméstico.

Do lado de fora, ficavam as fazendas, os currais, os vinhedos, a olaria para produção de peças de cerâmica, o curtume do arqueiro Ull para produção de peles e couros, a fundição de ferro do Modi, e a madeireira de seu irmão Hoenir, onde os lenhadores transformavam as árvores derrubadas no bosque, em pranchas para construção de casas, móveis e cascos de embarcações.

Os morseanos não eram tão cuidadosos a ponto de manter

sentinelas nos portões da Aldeia. Estavam tranquilos, pois o medo que os povos vizinhos tinham de seus guerreiros era tão grande que ninguém se atreveria a atacá-los. O portão que ficava no canal e o portão que dava para o bosque permaneciam sempre

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destrancados, pois havia constantemente grande movimento através deles.

O terreno da aldeia era plano e ficava pouco acima do nível do mar. Não havia ruas e as casas não mantinham uniformidade em sua distribuição. Na maioria, eram casas pequenas e construídas de madeira e pedra com cobertura de capim embebido em turfa, uma espécie de barro. Na parte mais alta dos telhados, havia uma abertura para o escape da fumaça proveniente do fogo que se costumava acender internamente para aquecimento e cocção. O chão era de terra batida, ou de tábuas nas casas das famílias mais privilegiadas. Os sanitários eram coletivos e ficavam sobre o mar, em construções tipo palafitas. Um costume comum da maioria das famílias era abrigar, dentro da casa, animais domésticos como cabras, porcos e galinhas.

Modi e Dália passaram pelo portão semiaberto e

atravessaram a aldeia. Quando chegaram à frente da casa de Dalia, pararam para conversar antes que ela entrasse.

A casa da moça era bem maior que a maioria das outras casas da aldeia. Afinal, aquela era a casa de seu pai, o mais respeitado e temido guerreiro de toda a região. Magni, como uma das mais importantes figuras da aldeia, gozava de grande consideração por parte do rei Vidar, pois quando não estava em uma de suas incursões, fabricava as armas e as armaduras essenciais para que os guerreiros de Mors pudessem impor seu poderio na região.

O casal conversou mais um pouco e logo depois Modi rumou

para sua casa. Atravessou a Aldeia pisando na espessa camada de lama formada pela terra e pela neve derretida, até que chegou a sua casa. Era também uma casa grande, pois Forseti, o pai de Modi, era um respeitado construtor de barcos, além do que, candidato à sucessão do rei Vidar.

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Já estava escurecendo e a luminosidade do interior da casa podia ser vista pelo lado de fora. Modi aproximou-se da porta e, ao abri-la, constatou que toda sua família estava lá dentro ocupada com seus afazeres.

Antes que entrasse, Snotra, sua mãe, o alertou: — Deixe as botas, aí fora, Modi. — Estou tirando, mãe. Deixando as botas de couro do lado de fora, Modi entrou no

grande cômodo onde a família estava reunida. — Onde você estava até agora, filho? — perguntou Forseti,

sentado num banco de madeira enquanto examinava a miniatura de um novo barco de guerra que ele idealizara.

— Passeando pelo bosque com a Dalia, pai. A menininha de três anos puxava a perna da calça de linho

que Modi estava usando. — Olhe minha boneca, tio! Modi estava acabando de se desvencilhar do comprido casaco

de pele de urso, pois o calor do fogareiro e do fogão instalados dentro da casa mantinha o ambiente muito aquecido.

— Deixe-me ver essa boneca! — disse Modi, pegando carinhosamente sua sobrinha no colo.

Era uma boneca feita de uma colher de pau com a carinha desenhada em sua parte convexa. Um trapo de tecido velho servia-lhe de roupa.

— Quem fez a bonequinha pra você? — perguntou Modi beijando o rosto da menininha.

Gna apontou o dedinho para sua mãe que trabalhava no tear instalado no fundo do cômodo. Fulla parou o trabalho que estava tecendo e disse sorrindo para o cunhado:

— A Gna ficou tão contente com essa bonequinha que brincou o dia todo com ela...

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Modi olhou carinhosamente para a sobrinha em seu colo e acariciou-lhe o queixinho.

Em Mors, quase tudo que as famílias possuíam era feito por

elas mesmas. Isso incluía roupas, utensílios de cozinha, pequenos móveis e até suas próprias casas. Entretanto, Mors era bastante evoluída em relação às aldeias vizinhas, possuindo bons artesãos, carpintaria, fabricação de cerâmicas, couros e peles, produção de artigos de ferro e cobre, produção de lã e fios para tecelagem além das atividades de pesca, agricultura e criação de ovelhas. Dessa forma, as famílias tinham também a opção de adquirir o que precisassem por meio de trocas internas. Praticamente não havia comércio com outras aldeias.

Os homens, quando não estavam participando de incursões a serviço do rei, se dedicavam ao trabalho em suas respectivas profissões. As mulheres cuidavam da casa e da família. Preparavam os alimentos, o que também implicava em moer os grãos para obter a farinha, fazer o pão e ordenar as ovelhas. E ainda se encarregavam de tecer e produzir roupas para toda família.

Continuando seu amoroso relacionamento com a família,

Modi pôs Gna no chão e foi até o fogão xeretar a comida que sua mãe estava preparando para o jantar. Destampou o caldeirão de ferro onde o cozido de pato selvagem estava quase no ponto. Depois, roubou um dos pães quentes que estavam sobre a pá de madeira que havia acabado de ser retirada do forno.

— Modi — chamou-o Forseti —, venha ver o modelo do novo barco de guerra drakkar que vamos construir.

Hoenir, pai da Gna e irmão mais velho de Modi, estava sentado ao lado de Forseti examinando o modelo. Forseti e seus dois filhos puseram-se a discutir com entusiasmo as características

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do drakkar que começariam a construir nos próximos dias. Em dado momento, Snotra chamou Modi à atenção:

— Modi! Você não reparou que temos visita? Modi já havia percebido a presença da jovem Iounn que

estava junto ao tear, ao lado de sua cunhada Fulla. — Como vai, Iounn? — perguntou-lhe com um sorriso. Iounn apenas correspondeu ao sorriso. — Iounn veio nos trazer um recado do rei Vidar! — disse

Snotra com um ar misterioso. Modi arregalou os olhos. — Do rei Vidar? Forseti sorriu confirmando. Modi olhou para o irmão e para a mãe quase adivinhando de

que se tratava. Depois olhou para Iounn e perguntou: — Qual é o recado, Iounn? Forseti e a família estavam orgulhosos, aguardando para

ouvir novamente o recado do rei Vidar. — Hoje — revelou Iounn —, quando levei ao Rei as maçãs

do meu pomar, ele disse que amanhã reunirá o senhor Forseti e o Loki para discutirem a sucessão. E o conselheiro Kvasir também vai.

Iounn não escondeu a aversão que sentia por Loki ao fazer uma careta de desagrado quando mencionara seu nome.

— Pai! Será que o senhor vai ser escolhido para suceder ao Rei? — perguntou Modi.

— Eu... ou o Loki... — observou Forseti. — Mas o Rei seria capaz de escolher uma pessoa como o

Loki? — comentou Hoenir ainda examinando o modelo. Forseti fez uma cara de dúvida. — Não sei... Não sei...

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— O Loki é um homem detestável — comentou a linda jovem Iounn. — Se ele for escolhido, eu vou desaparecer de Mors. Ele já me persegue agora... imagine se chegar a rei!

Todos ficaram pensativos, pois Loki era um gigante feioso e imprevisível. Um comerciante extremamente sagaz.

Depois de várias conjecturas sobre a sucessão do rei Vidar, Iounn ficou para jantar com a família de Forseti. Mais tarde, como já era noite, Modi a acompanhou até a fazenda onde ela morava com os pais.

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O HOMEM DE ARRET

SENDO ARRET GEOLOGICAMENTE semelhante à Terra, eram também semelhantes as condições gerais que deram origem aos seres vivos do planeta. Portanto, o homem de Arret era física e mentalmente semelhante ao homem da Terra.

Os arreteanos tinham duas teorias quanto à origem da vida: Uma delas era a teoria do Criacionismo, segundo a qual um

deus teria criado Arret e todos os seres vivos. A outra teoria era a da Geração Espontânea, que considerava

que a vida surgira espontaneamente a partir da matéria inerte. Exceto por essa questão controversa sobre o surgimento da

vida, os arreteanos possuíam bom conhecimento de sua história. Os cientistas acreditavam que os arreteanos surgiram numa mesma era, numa mesma região, e depois se espalharam atravessando rios e mares, vales e montanhas. E, ao longo de milhares de anos, foram se estabelecendo em todas as regiões do planeta.

No início, os arreteanos eram nômades, deslocando-se constantemente para terras onde o alimento fosse mais farto e os riscos menores. Até que aprenderam a cultivar o solo e a criar rebanhos, ficando menos dependentes do extrativismo e da caça. Assim, os arreteanos deixaram de ser nômades e fixaram-se à terra, passando a viver em grupos maiores. Com o passar do tempo foram criando meios para facilitar a vida, desenvolvendo ferramentas e objetos de usos diversos. O progresso da ciência a da tecnologia, inicialmente lento, foi se desenvolvendo de forma acelerada, até que no ano de 2010, de Arret, a forma de viver dos arreteanos mudara radicalmente em relação aos primeiros tempos de sua história.

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As antigas aldeias e povoados foram crescendo e ocupando territórios cada vez maiores. Alguns povoados progrediam, outros eram atacados e destruídos. Enquanto alguns se subdividiam, outros se juntavam. Assim, foram se formando países e impérios. Porém, mesmo os grandes impérios acabavam voltando a se fragmentar. A história de Arret era uma história de lutas de homens contra homens, de povos contra povos, de países contra países.

Os progressos científicos e tecnológicos eram maravilhosos, podendo propiciar uma vida cada vez melhor ao homem de Arret. Mas o mesmo não ocorria com sua organização social. Desentendimentos e guerras constantes não permitiam aos arreteanos usufruírem totalmente suas descobertas e seu belo planeta. Quase todas as descobertas científicas, antes de serem aplicadas para o conforto da humanidade, eram imediatamente usadas como armas de guerra. A história de Arret era uma história de constantes conflitos.

Nos primeiros tempos, as distâncias entre as aldeias eram tão

grandes que pouco ou nada um povo podia saber sobre o que se passava com seus vizinhos. O que um povoado fazia ou deixava de fazer em seu território não incomodava outros povoados. Mas, pouco a pouco, a expansão territorial foi aproximando as fronteiras até que elas se encontrassem. Assim, acabaram-se os espaços “sem dono”.

O desenvolvimento dos transportes e das comunicações foi tão grande que transformou Arret numa pequena e confusa aldeia global, formada por países soberanos, uns incomodando e ameaçando os outros. O que se fazia num país afetava a todos os demais, consciente ou inconscientemente.

O ideal de perpetuação e felicidade da espécie humana ficava em segundo plano. Em primeiro plano estavam os interesses

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particulares e imediatos de cada indivíduo, de cada país e de cada geração.

Mergulhado em problemas, Arret chegou em 2010 como um navio naufragando, no qual cada camarote era soberano e tinha seu próprio comandante. E cada comandante punha seu camarote acima do interesse do navio.