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VIII Mostra de Pesquisa

Produzindo História

a partir defontes primárias

Porto Alegre / RSCORAG - 2010

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Governo do Estado do Rio Grande do SulGovernadora Yeda Rorato Crusius

Secretaria da Administração e dos Recursos HumanosSecretário Elói Guimarães

Departamento de Arquivo PúblicoDiretora Rosani Gorete Feron

Corag - Companhia Rio-grandense de Artes Gráficas:Responsável pelos dados técnicosMaria Helena Bueno GargioniEditoraçãoIngrid SchuckCapaSid Monza

Ficha Técnica:Seleção e organização de textos: Comissão de Avaliação e Seleção da VIII MOSTRA DE PESQUISA- Associação Nacional de História – ANPUH/RS: Elisabete Leal- Associação dos Arquivistas do Estado do Rio Grande do Sul – AARS: Karine Georg Dressler- Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul – APERS: Maria Cristina Kneipp Fernandes, Cla-rissa de Lourdes Sommer Alves, Gerson Saldanha Costa.

Organização e formatação dos textos:Clarissa de Lourdes Sommer Alves

Catalogação elaborada pela Biblioteca da Secretaria da Administração e dos Recursos Humanos – Bibliotecária responsável: Adriana Arruda Flores, CRB10-1285.

M915a Mostra de pesquisa do Arquivo Público do Estado do RioGrande do Sul (8. : 2010 : Porto Alegre, RS).

Anais : produzindo história a partir de fontes primárias / 8.Mostra de Pesquisa do Arquivo Público do Estado do RioGrande do Sul, Porto Alegre 14, 21, 28 de agosto e 04 desetembro de 2010. – Porto Alegre : Companhia Rio-grandensede Artes Gráficas - CORAG, 2010.

p.428ISBN: 978-85-7770-077-6

1. Pesquisa histórica 2.Fontes primárias 3.História – Brasil 4.Documentação histórica 5. Fontes históricas

I. Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul II. Alves,Clarissa de Lourdes Sommer III. Título

CDU – 930”2010”(81)

ISBN: 978-95-7770-115-5

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S U M Á R I O

Apresentação ________________________________________________ 5Introdução __________________________________________________ 11

Apresentação de Pôster

A Revolução Farroupilha e a Igreja de Santa Maria (1838-1840) Alessandro de Almeida Pereira ___________________________________ 17

Através da voz viva dos seus sócios, para edcidir dos seus próprios destinos. Disputas (políticas?) no Aero Clube de Pelotas durante o Estado Novo. Natasha Dias Castelli __________________________________________ 19

1Valores Sociais e Moralidade no Brasil Moderno

Modernidade e Cidadania em Porto Alegre: o combate à vadiagem e a questão habitacional. Carlos Eduardo Martins Torcato _________________________________ 23

O Juizado de Órfãos de Porto Alegre: um reflexo da SociedadeJosé Carlos da Silva Cardozo ____________________________________ 39

2Repressão e Protesto na História do Tempro Presente

Coração de Luto: Teixeirinha e o protesto dos esquecidosFrancisco Alcides Cougo Junior __________________________________ 59

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A Atuação repressiva da ditadura civil-militar brasileira durante a construção da AnistiaJulio Mangini Fernandes ________________________________________ 73

3Escravidão: Trabalho, Resistência e Liberdade

A organização do trabalho escravo nas charqueadas pelotenses na segunda metade do século XIXBruno Stelmach Pessi __________________________________________ 97

Uma economia escravista? Apontamentos sobre a população e a estrutura de posse de escravos em Porto Alegre (1779-1792) Luciano Costa Gomes _________________________________________ 115

Por ter ido ao Estado Oriental: Guerra e Fronteira nas Cartas de Alforria de Alegrete (1832-1871) Marcelo Santos Matheus _______________________________________ 139

Firmando (e afrouxando) os laços: compadrio, alforria e expectativas em torno da liberdade – Rio Pardo/RS, últimas décadas da escravidão. Melina Kleinert Perussatto ______________________________________ 161

Escravos em Bagé: fugas, quilombos e insurreiçõesVinicius Pereira de Oliveira _____________________________________ 177

4Elites e Redes de Sociabilidade

Valsas, Contradanças e Bailados: espaços de sociabilidade enre agentes da elite no Rio Grande de São Pedro no século XIX. Adriano Comissoli ___________________________________________ 201

Pai monarquista, filho republicano: propaganda republicana, eleições e relações familiares a partir da trajetória de Joaquim Francisco de Assis Brasil (1877-1889) Jonas Moreira Vargas e Tassiana Maria Parcianello Saccol ______________ 225

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Poder e Parentesco nos Confins da América Portuguesa: uma análise sobre a rede de compadrios do governador Veiga Cabral da Câmara (Porto Alegre, 1774-1798) Márcio Munhoz Blanco ________________________________________ 251

Em nome de “nossos amigos políticos”: vinculos pessoais, poder e influência ao tempo do Império do BrasilMiguel Ângelo Silva da Costa ____________________________________ 275

Do Provedor à Rede de SociabilidadePaula Andrea Dombkowitsch Arpini ______________________________ 303

5História e Economia no Século XiX

Fortunas, Bens e Investimentos: a caracterização econômica de uma elite política municipal a partir dos inventários post-mortem (final do Século XIX) Carina Martiny _______________________________________________ 319

A Atividade Econômica Rio-grandense em Tempos de Guerra (Vila de Rio Grande, 1811-1850) Gabriel Santos Berute _________________________________________ 343

Contratos Conflituosos: arrendamentos, arrendatários e litígios judiciais em Uruguaiana, Segunda Metade do Século XIXGuinter Tlaija Leipnitz _________________________________________ 365

6A Atuação do Santo Ofício e dos Jesuítas no Brasil Colonial

As Crônicas Jesuíticas como Fonte de Pesquisa: o Início das Missões de MaynasFernanda Girotto e Fernanda Wisniewski ___________________________ 389

A Inquisição no extremo sul da América Portuguesa: o perfil dos Familiares do Santo Ofício em Colônia de Sacramento (século XVIII) Lucas Maximiliano Monteiro ____________________________________ 407

Errata ______________________________________________________ 428

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APRESENTAçãO

A PesquisA nos Confins do APERS

Elói GuimarãesSecretário de Estado

O Projeto levado a cabo anualmente, pelo Arquivo Público, através da pesquisa a partir de fontes primárias, vem se tornando exito-so e ganhando qualificação, dado que reúne nesta VIII Mostra um

verdadeiro acervo de valor histórico inestimável, sob qualquer ângulo que se possa examinar.

Temática relevante é trazida, em diferentes e diversificadas áreas, abrangendo períodos de tempo, distantes e próximos, com análises que iluminam e destacam aspectos históricos vivenciados em momentos importantes da historia gaúcha.

Os trabalhos produzidos, com detalhes e riquezas de dados, conferem pela “pena“ de seus pesquisadores um brilho especial a VIII Mostra de Pesquisa - Produ-zindo História a Partir de Fontes Primárias, o que contribui para o desenvolvimento cultural e para a memória rio-grandense e brasileira.

Só a historia imortalizará o tempo! Bem-aventurados os que pesquisam!

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INTRODUçãO

Quantos de nós fomos crianças daquelas que se empolgavam ao as-sistir os filmes de Indiana Jones? Quantas vezes associamos alguma pesquisa realizada nas aulas de História com as atividades do famo-

so Sherlock Holmes? E antes que digam que as novas gerações já não se interessam pela ideia de “desvendar o passado”, não custa lembrar do sucesso que fazem jogos e filmes como Thomb Rider, em que a personagem principal, Lara Croft, é uma arqueóloga que vive muitas aventuras em seu ofício. Não é a toa que escritores e ci-neastas buscam inspiração na História e no trabalho do historiador para criar, afinal, o passado é estimulante, capaz de despertar muita curiosidade e interesse.

Sabemos que entre os filmes e realidade existem diferenças. Em geral, o tra-balho dos pesquisadores que se dedicam a conhecer o passado não possui tanto “glamour”, além de não contar com remunerações tão “espetaculares”. Mas os que vivem em contato com fontes históricas sabem o quão empolgante pode ser reunir as peças do enigma da História. Cada nova caixa de documentos, cada entrevista, imagem ou música, de acordo com as perspectivas de análise empregadas, pode ser um portal de contato com o passado, que a cada nova informação traz ao pesquisa-dor mais e mais estímulos para continuar sua busca. Se nosso trabalho não é tão gla-mouroso, com certeza não ficamos para trás quando o quesito é emoção. Mergulhar no ofício da pesquisa histórica também é se aventurar!

Mas, sendo assim, algo parece pouco lógico: se nos interessamos por filmes de temática histórica, se por muitos anos nos empolgamos com aventuras em busca do passado, em que momento esta magia se perde? Quando a grande maioria dos indivíduos passa a ser de adultos que encaram a História com receio e que não co-nhece os espaços de memória que os circunda ou as possibilidades reais de escrita da História? A resposta para estas questões não é simples ou unilateral, mas creio que uma importante “pista” surge justamente quando analisamos o tratamento e a visi-bilidade que nossa sociedade dá aos diversos tipos de documentos que são capazes de conectar os homens de nosso tempo com o passado.

Quando falo em “tratamento e visibilidade”, quero dizer que de nada adianta que o ofício do historiador seja “mágico”, ou que as fontes históricas se prestem ain-da a garantir inúmeros direitos dos cidadãos, se tais documentos, que são a matéria-prima do trabalho do historiador e o meio garantidor de direitos, não forem geridos

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e preservados por instituições de memória, como o Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul, ou se nessas instituições não houver políticas de difusão do acervo e do conhecimento produzido a partir dele. Quero dizer que quebraremos as barreiras que separam a História dos filmes e das brincadeiras infantis da História palpável e real, que é construída por cada um de nós e que serve como instrumento de transformação social, somente quando a população em geral souber da existência destes locais e puder apropriar-se deles enquanto espaços públicos de conhecimento e saber.

Nessa perspectiva é que o APERS vem desenvolvendo o Projeto Cultural Descobrindo o Arquivo Público. Buscando afastar-se de uma concepção ultrapas-sada que percebe os arquivos enquanto espaços destinados apenas ao público téc-nico, atualmente procura-se desenvolver ações que, além de facilitar a garantia do direito constitucional de acesso à informação, promovam a compreensão de que os arquivos devem ser espaços abertos e democráticos, despertando a sensibilidade dos cidadãos para com as questões referentes à preservação do patrimônio cultural, histórico e social.

Entre as ações do Projeto podemos citar as visitas guiadas, que abrem as por-tas da instituição para grupos da comunidade que desejem conhecer as dependências do Arquivo, sua estrutura e organização; as oficinas de Educação Patrimonial vol-tadas ao público escolar, em que as turmas conhecem o APERS, lidam de maneira lúdica e dinâmica com fontes primárias e com as problemáticas que envolvem a preservação do patrimônio; e a Mostra de Pesquisa, que neste ano de 2010 está em sua oitava edição e tem como principais objetivos dar visibilidade aos trabalhos de pesquisa desenvolvidos a partir de fontes primárias arquivísticas, e proporcionar um espaço rico de debates e trocas de informações entre o público acadêmico e não acadêmico que se dedica à pesquisa histórica.

A Mostra de Pesquisa vem desenvolvendo-se desde 2003 em um crescente. Iniciou como um evento destinado a pesquisadores que trabalhassem com fontes que estivessem sob guarda do APERS, e logo foi ampliada para que pudesse acolher debates suscitados por pesquisas em fontes primárias arquivadas em diversos locais. Em 2006 o evento passou a oportunizar a publicação dos trabalhos – que anterior-mente eram apenas apresentados nas mesas de discussão – além de iniciar uma pro-fícua parceria com a ANPUH-RS e a Associação dos Arquivistas do Estado do Rio Grande do Sul para a seleção dos trabalhos recebidos. A partir de 2007 o Arquivo Público passou a disponibilizar a publicação também no formato eletrônico, opor-tunizando um acesso ainda maior aos debates e ao conhecimento produzido pelos pesquisadores participantes. Em 2009 acrescentou-se a modalidade de apresentação de pôsteres com a publicação de resumos, que segue nesta edição a caminho da con-solidação de mais uma ação.

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Nesta edição recebemos trinta inscrições para apresentação de trabalhos com publicação de artigo e três para apresentação de pôster, sendo escolhidos dezenove artigos e dois pôsteres. A qualidade das produções, a relevância das problemáticas levantadas pelos pesquisadores, e a diversidade de suas fontes e metodologias de análise certificam a importância e a relevância da Mostra de Pesquisa. Todos os tra-balhos que compuseram as mesas de debate, nos dias 14, 21, 28 de Agosto e 04 de Setembro de 2010, e que hoje compõem esta publicação, contribuem para enrique-cer a historiografia e para que o APERS cumpra seu papel como instituição pública de memória na contemporaneidade, ampliando os laços que ligam o Arquivo às uni-versidades, divulgando não apenas o conhecimento, mas as inúmeras possibilidades de produzi-lo a partir de fontes primárias, e demonstrando para cada cidadão que a instituição existe em função de suas necessidades e dos seus diretos. Assim, damos um passo à diante na importante tarefa de instigar em cada indivíduo o gosto pela História, o interesse pelo saber, o conhecimento de seus direitos e a certeza de que cada um de nós pode e deve fazer parte da construção de uma nova concepção de arquivo, de patrimônio, de ensino e aprendizado.

Nas próximas páginas encontramos trabalhos que são o resultado de muita dedicação à pesquisa, de reflexões variadas que nos transportam a tempos e espaços diversos, e que são exemplos concretos do quanto pode ser gratificante e emocio-nante o trabalho do historiador, que enfim é viabilizado pela existência de espaços como o APERS e pelo trabalho sério de arquivistas e outros profissionais que se dedicam a manter o acervo organizado, preservado e disponibilizado ao público. A todos e todas, uma boa leitura!

Clarissa de Lourdes Sommer AlvesHistoriadora, membro da equipe Ação Educativa do APERS

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APresentAção de Pôster

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A revolução fArrouPilhA e A igrejA de sAntA MAriA (1838-1840)

Alessandro de Almeida Pereira¹ Acadêmico de História da Universidade Federal de Santa Maria

Bolsista PiBiC/CNPq/UFSMContato: [email protected]

Resumo: A Revolução Farroupilha e a cidade de Santa Maria integram os resultados das atividades

desenvolvidas como Bolsista PIBIC/CNPq/UFSM vinculado ao projeto de pesquisa O federalismo na história da América: os processos de construção e de consolidação dos estados nacionais no século XIX e no início do século XX, que integra o Grupo de Pesquisa CNPq/UFSM e o Comitê História, Fronteira e Região do Grupo Montevidéu. A partir da concepção de História Política objetivou-se desenvolver a investigação sobre o período da Revolução Farroupilha (1835-1845), entendida como uma variável dos processos de construção e de consolidação dos Estados nacionais no século XIX, protagonizada no espaço frontei-riço platino por personagens de diversos setores da sociedade - entre eles os sacerdotes. Partindo desse ponto, buscou-se uma bibliografia que abordasse a atuação do clero católico na cidade de Santa Maria durante a Revolução Farroupilha. Assim, especificamente nesse trabalho, apresentamos os resultados obtidos da pesquisa em fontes primárias (livros Tombos Paroquiais: Registros de batismos, óbitos e casamentos), visando à identificação e a comprovação da atuação dos sacerdotes na Capela de Santa Maria (1838-1840). Através das informações contidas nesses e documentos foi possível contestar a in-formação contida no livro História do município de Santa Maria 1797/1933, de João Belém, de que a igreja matriz de Santa Maria esteve fechada durante o período entre 1837 e 1839, uma vez que foi encontrada documentação que comprova a atuação eclesiástica nesse povoado durante o determinado período. Ou seja, tanto a história de Santa Maria como da própria Revolução Farroupilha ainda merecem revisão e preocupação por parte dos historiadores.

Palavras-chaves: Federalismo - Revolução Farroupilha – Sacerdotes – Santa Maria

¹ Trabalho orientado por Maria Medianeira Padoin, Doutora em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1999) e professora adjunta da Universidade Federal de Santa Maria. Contatos: [email protected] e (55)9166-9307.

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AtrAvés dA voz vivA dos seus sóCios, PArA edCidir dos seus PróPrios destinos. disPutAs (PolítiCAs?)

no Aero Clube de PelotAs durAnte o estAdo novo.

Natasha Dias CastelliAcadêmica do Curso de Licenciatura em História – UFPel, Pelotas, RS

Contato: [email protected]

Resumo: A presente pesquisa analisa as disputas de poder sobre a administração do Aero Clube de Pelotas num recorte de 1940-1945, com o objetivo de observar características peculiares dessa associação voluntária em meio à ditadura do Estado Novo. O tema despertou interesse ao analisar o material manuscrito e impresso do Aero Clube e observar um relatório, sobre uma assembléia realizada no ano de 1943 que previa enfaticamente “dar voz aos sócios”, bem como as disputas internas entre as chapas, que podem possuir caráter partidário e que renderam diversas matérias nos jornais locais. Para tanto, será feita a analise do relatório em questão comparado a um relatório de outra associação da mesma época. Posteriormente, serão analisados os nomes correspondentes as duas formações de chapas à direção do clube buscando vínculos partidários. Ainda serão utilizadas matérias de jornais locais sobre a disputa e, por fim, anotações pessoais dos membros das chapas. A principal fonte será o “arquivo” do Aero Clube de Pelotas disponível no Arquivo da Biblioteca Pública de Pelotas e também os periódicos pelotenses; Diário Popular e Jornal da Manhã de 1943. Não é possível falar ainda em resultados finais devido à abrangência da pesquisa que está vinculada ao projeto; O Associativismo no Rio Grande do Sul (1920-1950). Parcialmente, é passível concluir que os nomes indicados para as chapas que disputavam a administração desta associação têm um “peso” significativo nos âmbitos social e político do município de Pelotas e região, demonstrados em nomes de escola estadual, avenida, fundação, entre outros exemplos.

Palavras-chave: Aero Clube – Associativismo – Participação política – Estado Novo.

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vAlores soCiAise MorAlidAde nobrAsil Moderno

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ModernidAde e CidAdAniA eM Porto Alegre: o CoMbAte à vAdiAgeM e A questão hAbitACionAl.

Carlos Eduardo Martins Torcato

Resumo: Este artigo aborda a universalização das concepções de Estado e de cidadania deriva-das do desenvolvimento do capitalismo e da sociedade moderna que foram mundialmente dominantes a partir do século XIX. No Brasil, as tentativas de implementar tais concepções esbarraram em inúme-ras dificuldades. Em Porto Alegre, a partir da bibliografia e das fontes arquivísticas estudadas, pode-se perceber que as políticas públicas de combate à vadiagem e à política habitacional eram pensadas de acordo com o paradigma proibicionista, pois criminalizavam práticas sociais amplamente disseminadas, especialmente pelas camadas sociais mais vulneráveis, e não promoviam a cidadania. Tais políticas re-forçavam e reproduziam uma estrutura hierarquizada, autoritária e elitista de Estado.

Palavras-chave: modernidade – cidadania – políticas públicas – cultura popular – sociabili-dade moderna.

INTRODUçãO

O final do século XIX e o início do século XX foram caracterizados pelo poderio das potências europeias e pela universalização das concepções de Estado e de cidadania moderna. Fora da Europa,

entretanto, a implementação dessas concepções encontrou enorme resistência nas populações locais, sendo acolhidas somente por segmentos das elites e de alguns setores citadinos identificados com ideais de progresso e modernidade.¹

No Brasil, a tentativa de implementação de tais concepções, no sentido de adequar o país aos parâmetros internacionais de progresso, encontrou também difi-culdades. Esses empecilhos eram, sobretudo, de ordem antropológica, visto que a vi-vência moderna envolve uma exigência de ordem cultural/moral. Para que o Estado moderno se estabeleça, é preciso que as pessoas que fazem parte da sua coletividade (nação) ajam de forma propícia ao seu funcionamento.²

Este artigo pretende abordar as tensões nascidas a partir da tentativa de im-plementação de noções universalistas de humanidade e cidadania e a existência de 1 HOBSBAWM, Eric. A era dos impérios (1875-1914). São Paulo: Paz e Terra, 2002. p.52-53.² COOPER, Frederick; HOLT, Thomas C.; SCOTT, Rebecca. Introdução. In: Além da escravidão: Investigação sobre raça, trabalho e cidadania em sociedades pós-emancipação. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005, p.62-63.

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VIII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público

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concepções sobre as virtudes e as falhas de grupos específicos, assim como seus modos de agir e de ser. No caso de Porto Alegre, o período entre o final do século XIX e início do século XX foi caracterizado pelo confronto entre as elites, imbuído de um ideal modernizador, e os grupos populares da cidade.

As políticas públicas elaboradas pelas elites Porto-Alegrenses, no âmbito de orde-nar o espaço urbano de acordo com os preceitos dominantes de Estado e de cidadania moderna, encontravam resistências diversas que se manifestavam de várias formas, desde a resolução privada e violenta de conflitos circunscritos – ligados aos valores androcên-tricos – até o desejo das pessoas, atingidas por elas, em preservar a autonomia do uso do tempo – ligado à maneira como as pessoas vivem e organizam sua cotidianidade.

Procurar-se-á compreender os efeitos das políticas públicas de combate à va-diagem e as consequências da política habitacional para os diferentes estratos so-ciais, principalmente para aqueles mais pobres, tradicionalmente identificados como “classes populares”, a partir da análise dos confrontos nascidos de tais políticas na cidade de Porto Alegre.

ESPAçOS DE SOCIABILIDADE, CULTURA POPULAR E ORDEM ANDROCêNTRICA

A divisão entre um mundo “civilizado” e “atrasado” não pode ser reduzida à mera divisão da sociedade industrializada e agrícola, embora pareça bastante correto associar a modernidade à industrialização e à urbanização.³ A modernização e o “ser civilizado”, por isso, não podem ser reduzidos somente aos aspectos econômicos, em razão da ampliação das relações assalariadas ou da atividade industrial. Ela pre-cisa ser percebida também em seus aspectos cotidianos, no contato com as tecnolo-gias, nos serviços públicos essenciais para a vida moderna e na burocratização.

O que significou para a população de Porto Alegre a possibilidade de des-frutar de um serviço público de iluminação? Esse serviço propiciou o desfrute do tempo noturno como espaço de sociabilidade legítimo, fato diretamente relacionado com a urbanização das sociedades modernas. Em poucos anos, após a inauguração da luz a gás (1874), os habitantes de Porto Alegre, assim como os habitantes das principais cidades europeias, também passaram a desfrutar de espaços de sociabi-lidade legítimos durante a noite.4 Até esta data, o que existiam eram alguns poucos “bordeis” que “ofendiam a moral pública” apesar do toque de recolher5.

³ HOBSBAWM, Eric, op. cit, p.38-41.Valores Sociais e Moralidade no Brasil moderno4 CONSTANTINO, Núncia Santoro. Modernidade, noite e poder: Porto Alegre na virada do século XX. Tempo. Rio de Janeiro, vol.4, 1997, p.49-50.5 Ibidem, p.51-52.

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Para Constantino (1997), a proliferação dos espaços de sociabilidade, em Por-to Alegre, esteve ligada a diversas práticas sociais inauguradas pelos alemães que teriam sido responsáveis pela introdução de restaurantes, cafés, livrarias, boliches, bilhares e diversas agremiações. Era de costume os homens alemães se reunirem ao entardecer. Tais estabelecimentos se multiplicaram, nas últimas décadas do século XIX, a ponto de existirem centenas, no início do XX, tanto para setores da elite quanto para setores pobres.6

A multiplicação dos espaços de sociabilidade, em Porto Alegre, foi percebida como uma ameaça à ideologia do trabalho defendida por alguns setores da burocra-cia. A valorização do trabalho e a condenação à vadiagem justificaram a implemen-tação de medidas de controle social durante todo o século XIX. Os negros e os eu-ropeus podiam ser enquadrados como vadios e compelidos ao trabalho.7 O encontro de homens, com intuito de beber, jogar cartas e conversar é uma afronta ao esforço das autoridades no sentido de imposição do hábito do trabalho.

Numa sociedade escravista, a possibilidade de poder usufruir do ócio ou de usar o tempo em atividades lúdicas é uma forma de dignidade enquanto ser-livre. Então, é bem provável que, antes da chegada dos alemães, já existissem locais es-pecializados na sociabilidade daqueles que podiam gozar do seu próprio tempo. As casas de tavolagem, por exemplo, são locais específicos para esse fim. A proibição desse tipo de estabelecimento remonta ao Código Filipino do século XVII.8

A inauguração da iluminação pode ter contribuído para a ineficácia das polí-ticas de imposição do hábito do trabalho e para a legitimação de espaços de socia-bilidades noturnos, pois tais encontros poderiam ser promotores de vícios sociais – opostos à ideologia do trabalho e à moralidade das boas famílias. Segundo as elites, os jogos de azar que ocorriam, especialmente, à noite, estavam associados a diversas práticas sociais como o alcoolismo, a prostituição, o ócio e a tendência à itinerância, consideradas devassidões sociais que impediam a incorporação das pessoas à ordem moderna que se pretendia constituir.

Os limites eram tênues entre o permitido e o não-permitido. Os encontros entre pessoas, em um café, eram legítimos, no entanto o mesmo não se poderia afirmar acerca de uma reunião para um jogo de cartas. Portanto, não importava o

6 CONSTANTINO, Nuncia Santoro, op. cit.7 NEGRO, Antônio Luigi; GOMES, Flávio. Além de senzalas e fábricas: Uma história social do trabalho. Tempo Social, revista de sociologia da USP. v.18, n.1, 2006, p.288.8 Era determinado que “em nossos Reinos e Senhorios não se jogue cartas” [...] “dados” [...] nem se mantenha “tabolagem” (sic). As penas variavam desde o açoite público para os peões, até multa e degradação “para o Brazil (sic)” durante dez anos para os de “maior condição”. As normas gerais do Código Filipino (como era chamado) perduraram, no Brasil, até 1824 (ano em que foi outorgada a primeira Carta Imperial), estendendo-se outras normas, penais e processuais, até 1830 (quando passou a vigorar o Código Criminal do Império). CASTRO, Estefânia Freitas. et. al. Ordenações filipinas on-line. Disponível em: <http://www1.ci.uc.pt/ihti/proj/filipinas/ordenacoes.htm> Acesso em: 21 abr. 2010.

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espaço em que aconteciam tais devassidões, mas sim se essas práticas eram moral-mente compatíveis com a ideologia do trabalho e a moralidade dominante. No dia 4 de abril de 1897, o Delegado Pereira da Cunha foi informado que estava reunidos “um avultado numero (sic) de jogadores”, em um estabelecimento “denominado Café 17 de junho”, localizado na Rua dos Andradas, tradicional rua do centro da cidade. Acompanhado dos agentes municipais, ele deu batida no referido café, às dez horas da noite. Foram encontrados diversos indivíduos entregues “ao jogo de azar denominado ‘primeira’ com cartas de baralho espanhoes (sic)”. Todos foram multados e liberados.9

Outro episódio ocorrido em 1901 mostra que as ações policiais podiam de-sembocar para a violência física, principalmente se o evento de sociabilidade fosse praticado por indivíduos em situação de vulnerabilidade civil. Os agentes municipais foram avisados por menores de idade sobre a existência de um baile, ou maxixe, no “cortiço conhecido por curral das éguas”. Por isso, eles foram a tal baile “providen-ciar a respeital (sic) de tal desordem” e “fazer algumas prisões”. Chegando ao local, verificaram que se tratava de “um grande ajuntamento de indivíduos e mulheres das quais a maior parte negros”. Quando a proprietária do local foi falar com os poli-ciais, ao coro de vaias e assovios dos participantes do baile, acabou esbordoada com um chicote.10

O desenvolvimento urbano de Porto Alegre foi acompanhado pela multipli-cação dos espaços de sociabilidades, sejam eles ligados ou não-ligados diretamente à comunidade alemã. Independente desse possível recorte étnico, este desenvolvi-mento permitiu às pessoas, de forma geral, um acesso maior às inúmeras atividades ligadas aos vícios sociais (jogo, prostituição, ociosidade, itinerância) que eram perce-bidos na época como os grandes promotores da vadiagem. Como os exemplos que se acaba de trazer, a amplitude da ideologia do trabalho e do combate aos vadios não deixava as autoridades policiais indiferentes a tal cenário, gerando, como resposta, ações repressivas por parte da Polícia. Entretanto, qual era o alcance efetivo dessa ação repressiva contra a vadiagem? Em Salvador, por exemplo, as elites alcançaram muitos êxitos na política de combate à vadiagem, porém a pobreza das ruas era maior do que a capacidade de o Estado isolar e reprimir. Por isso, a questão da vadia-gem atravessa o período colonial, imperial e republicano como algo não resolvido.11

9 Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul (AHRGS), Códice de Polícia nº2, 04/04/1896. p.9-10v.10 Apud MAUCH, Cláudia. Vigiando a vizinhança: Policiais, classes populares e violência no sul do Brasil (1896-1929). IN: PESAVENTO, Sandra; GAYOL, Sandra. Sociabilidades, justiças e violências: Práticas e representa-ções culturais no Cone Sul (séculos XIX e XX). Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2008, p.100-101.11 FRAGA FILHO, Walter. Mendigos, moleques e vadios na Bahia do Século XiX. Campinas-Salvador: Huci-tec-EdUFBA, 1995, p.180-181.

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Pode-se avaliar que em Porto Alegre, as políticas públicas elaboradas acerca da sexualidade e da infância abandonada também não alcançaram a eficácia deseja-da, porque os fenômenos de ordem estrutural, como a pobreza generalizada, eram maiores do que a capacidade do Estado de tutelar as crianças.12 Analisando-se os modos de vida e os valores próprios dos trabalhadores ligados ao policiamento da cidade, percebe-se que os agentes policiais gozavam de um estilo de vida próximo ao dos trabalhadores pobres.13 No dia 4 de maio de 1907, por exemplo, durante ba-tida em casa de tavolagem onde se reuniam indivíduos para jogar “primeira”, foram presos 14 pessoas e um guarda.14

O jornalista carioca Vivaldo Coaracy, em visita a Porto Alegre, no ano de 1905, destacou nas suas memórias, a intensa vida dos porto-alegrenses: as ruas eram movimentadas, existiam inúmeros cafés, confeitarias e casas de jogos. Por outro lado, espantou-se com a sujeira e imundice da cidade. Como a cidade ainda não contava com serviços de esgotos, os dejetos corriam em canaletas para grandes cai-xas de madeira (revestidas de piche) que eram recolhidas, uma ou duas vezes por semana, por funcionários da prefeitura. Os jornalistas do jornal Gazeta da Tarde e Gazetinha, recorrentemente, reclamavam das imundices jogadas nas ruas e nas águas do Guaíba.15

Existia, no imaginário político brasileiro de fins do século XIX, a imagem do perigo social representado pelos “pobres” através da metáfora da doença contagio-sa. A solução defendida para essa “doença social” seria a repressão aos hábitos vicio-sos dos pais e a educação das crianças.16 Em Porto Alegre, os jornalistas da Gazeta da Tarde e da Gazetinha também se utilizavam de uma linguagem pretensamente científica baseada em pretextos higienistas. Estes serviam para reativar temores e preconceitos arraigados contra negros e pobres em geral, associando cortiços, becos e botequins a focos de irradiação de epidemias.17

Os discursos jornalísticos apresentavam Porto Alegre como uma cidade to-mada pelo desregramento e pela constante ameaça da “horda” de vagabundos que existiam nas ruas.18 Os jornalistas, as elites empresariais, os socialistas vanguardistas, os políticos, os respeitosos cidadãos e todos aqueles identificados com os ideais de progresso queriam a expulsão dessas pessoas e de seus hábitos dantescos do centro

12 FLECK, Eliane Cristina Deckmann. Crimes contra a moral: Infância e sexualidade (Porto Alegre, RS - 1880-1920). Métis: história & cultura. v.6, n.11, 2007, p.208-209.13 MAUCH, Cláudia. Ordem pública e moralidade: Imprensa e policiamento urbano em Porto Alegre na década de 1890. Santa Cruz do Sul: EDUNISC/ANPUH-RS, 2004, p.89-90.14 AHRGS, Códice de Polícia nº 14, 04/05/1908. p.32.15 Apud MAUCH, Cláudia, op. cit, 2004, p.75-76.16 CHALHOUB, Sidney. Trabalho lar e botequim: O cotidiano dos trabalhadores no rio de janeiro da belle epo-que. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2001, p.29.17 MAUCH, Cláudia, op. cit, 2004, p.90-92.18 Ibidem, p.106-107.

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comercial e político da cidade. Vargas (1993), analisando o jornal O Independente, destaca que os discursos moralistas eram acompanhados de idéias de decadência ci-vilizacional.19 Elmir (2004), analisando os discursos jornalísticos, literários, políticos e policiais, destaca a existência de uma ideia pessimista e da projeção de um tempo passado idealizado onde o “outro” carente de moral não existia.20

Portanto, apesar dos esforços empenhados pelo poder público, fica a impres-são que a manutenção do problema significa a incapacidade da elite de impor aos setores populares a ética do trabalho. Problemas de ordem econômica – pobreza generalizada – seriam um dos maiores obstáculos. Alguns autores também destacam fatores de ordem cultural.

Kowarick (1994) acredita que não bastaram mudanças nas relações de produção e no aumento da coerção econômica para o correto desenvolvimento do capitalismo. Segundo ele, era necessária uma mudança cultural, capaz de alterar o estigma que o trabalho carrega.21 Para Fraga Filho (1995), na perspectiva dos homens livres, existia clareza sobre sua dignidade enquanto livres e uma cultura do trabalho e noções de tem-po próprias. O que transparece nos discursos das elites é que essa cultura do trabalho popular, identificada como vadiagem, era o principal obstáculo à incorporação do livre ao trabalho regular.22 Esta-se diante, enfim, também de uma disputa cultural.

Para alguns autores da historiografia de Porto Alegre, a intenção disciplina-dora e normatizadora das instituições políticas foram vistas como uma arma da elite contra a “detestável” cultura popular. Segundo Vargas (1993), para os jornalistas do jornal O Independente, a coexistência de duas culturas antagônicas dentro da socie-dade do período era considerado um fator de desagregação na cidade. Para reverter tal quadro, eram necessárias medidas autoritárias, principalmente contra determina-das áreas da cidade (subterrâneos). 23

Para Arend (2001), as ações normatizadoras recaíram sobre os populares, vi-sando a alterar também as formas de relacionamento afetivo próprias de sua cultura. Assim, a partir da “descrição densa” de alguns processos-crimes selecionados, seria possível perceber que os grupos populares de Porto Alegre desenvolveram uma for-ma particular de união, similar ao casamento, conhecido pelo nome de amasiamento, que era moralmente condenado. 24 Segundo essa autora, tal relacionamento ocorria 19 VARGAS, Anderson Zalewski. “Os subterrâneos de Porto Alegre”: Imprensa, ideologia autoritária e reforma social (1900-1919). Dissertação. (PPGHIS/UFRGS), 1993, p.101-103.20 ELMIR, C. P. Porto Alegre: A perdida cidade una (Fragmentos de modernidade e exclusão social no sul do Brasil). Estudos ibero-americanos. PUCRS, v. XXX, n. 2, 2004, p. 107.21 KOWARICK, Lúcio. Trabalho e vadiagem: A origem do trabalho livre no Brasil. São Paulo: Paz e Terra, 1994, p. 11-12.22 FRAGA FILHO, Walter, op. cit, p.175-176.23 VARGAS, Anderson Zalewski, op. cit, p.308-312.24 AREND, Silvia Maria Fávero. Amasiar ou casar? A família popular no final do século XIX. Porto Alegre: Edi-tora da UFRGS, 2001, p.61.

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quando: o casal se encontrava com certa regularidade, existia responsabilidade mú-tua entre o homem e a mulher, além do reconhecimento por parentes, vizinhos e amigos. O namoro, considerado a etapa anterior ao amasiamento, também possuía algumas características distintas daquelas da classe dominante: as escolhas dos na-morados eram feitas pelas partes envolvidas, “diferente da família patriarcal e/ou aristocrática, onde havia uma preocupação com a perpetuação da linhagem para manutenção do poder político e econômico”. 25 As carícias entre os casais populares não eram restritas ao espaço privado, sendo sutil a vigilância de pais, de parentes e de vizinhos. Os populares mantinham relações sexuais durante o período de namoro, o que era considerado imoral pela moralidade dominante.26

Dessa forma, “para os populares, estar amasiado era considerado um estado próprio da sua cultura, equivalente a um estado civil na ordem jurídica”.27 O Judiciá-rio, além de não reconhecer essa forma de relacionamento, classificando os pares desse tipo de relação como solteiros, tentava impor aos envolvidos que se portas-sem de acordo com um padrão de comportamento próprio da elite, simbolizado na instituição do casamento, o que poderia garantir um controle maior do Estado em relação ao cidadão. Portanto, os grupos populares estavam inseridos num combate cultural com as elites.28 É possível pensar os populares como um grupo distinto da elite devido o compartilhamento de experiências comuns, tais como a pobreza, as relações violentas no cotidiano e a construção de laços de solidariedade. As insti-tuições públicas tentavam introduzir a norma familiar burguesa que era contrária às práticas da família popular como o amasiamento, as relações sexuais durante o namoro, a circulação de crianças e a construção de parentesco a partir de laços con-sanguíneos.29

As conclusões de Arend (2001) influenciaram outros trabalhos sobre as mu-lheres, como os de Careli (1997) e, posteriormente, o de Santos (2008) sobre a pros-tituição. Talvez nenhum estudo tenha antagonizado mais as diferenças entre cultura popular e de elite como o de Grosso (2007). Segundo este autor, o final do século XIX foi caracterizado pelo desenvolvimento de um novo modo de vida das elites da cidade de acordo com o ideal modernizante. Já os grupos populares e moradores do centro se destacavam pelo seu comportamento desviante, apresentando-se como grande obstáculo ao projeto idealizado por uma elite “já desgarrada dos valores e códigos sociais nativos”.30

25 AREND, Silvia Maria Fávero, op. cit., p.54.26 Ibidem, p.54-56.27 Ibidem, p.61.28 Ibidem, p.76-78.29 Ibidem, p.85-86.30 GROSSO, Carlos Eduardo Millen. Poderiam viver juntos? Identidade e visão de mundo em grupos populares na Porto Alegre da virada do século XIX (1890-1909). DISSERTAçãO. (PPGHIS-PUCRS), 2007, p.30.

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Mais do que negar a existência de uma cultura popular agredida pelo projeto modernizador, acredita-se que a ênfase demasiada ao antagonismo entre popular e erudito pode esconder formas generalizadas de dominação calcadas na ordem pa-triarcal e masculina. Formas não apenas presentes em todas as classes sociais, como diversas vezes respeitada pelos agentes burocráticos.

Em todas as esferas, são constituídas formas de inculcação que visam cons-tituir, por um lado, a virilidade masculina e, por outro, a feminilidade. Ser homem implica um dever-ser, uma forma de honra/virtude que se impõe por si mesma, sem discussão. 31 A mulher, por sua vez, é definida “como uma entidade negativa, defini-da apenas por falta, suas virtudes mesmas só podem se afirmar em uma dupla nega-ção, como vício negado e superado, ou como mal menor”.32 A dominação masculina e patriarcal precisa ser compreendida a partir de uma perspectiva que relacione o feminino e o masculino.

No que se refere ao contexto histórico específico da cidade de Porto Alegre na virada do século XIX para o século XX, a mulher (pobre, principalmente) possuía uma conjuntura que diminuía traços da dominação. Primeiramente, trata-se de uma sociedade de enorme desigualdade econômica e de disseminada pobreza, fato que proporcionava à mulher a possibilidade de acesso ao mercado de trabalho. Não se criando as condições materiais necessárias para confinar a mulher e, por ventura, as filhas, no espaço privado, os homens pobres viam-se em posição precária para controlar a castidade das mulheres sobre sua posse. Isso não significa, entretanto, que eles não utilizavam suas filhas como objeto de trocas simbólicas, características do mercado matrimonial.33 Consoante a isso, Arend (2001) concorda sobre a im-portância da construção de parentescos a partir de laços consanguíneos como uma estratégia de sobrevivência das famílias populares.34

Outro quesito que influenciava no sentido de diminuir os traços da domina-ção era a disparidade no número entre homens e mulheres. Apesar de não existirem dados demográficos confiáveis para o período, é possível atribuir tal disparidade ao forte fluxo de imigrantes que chegavam à capital, em geral homens solteiros. O de-sequilíbrio entre os sexos, aliado ao fato de as mulheres terem inserção no mercado de trabalho, ampliava, consideravelmente, a possibilidade de escolha seletiva de seus companheiros. No entanto, mesmo com todas essas possibilidades, a mulher conti-nuava reproduzindo a lógica androcêntrica que convinha ao seu gênero, operando uma escolha seletiva entre homens em troca da exclusividade sexual.35 A oportunida-

31 BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007, p.63-64.32 Ibidem, p.37.33 Ibidem, p.55.34 AREND, Silvia Maria Fávero, op. cit, p.61.35 BOURDIEU, Pierre, op. cit, p.40-41.

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de representada pelo casamento de sair da tutela paterna não significava, necessaria-mente, uma menor sujeição ao poder masculino, vista as inúmeras obrigações morais e sexuais que as mulheres assumiam, seja com os maridos, seja com os amásios.

Careli (1997), contrapondo os discursos jornalísticos ao das autoridades poli-ciais, percebe a grande “similaridade que o conjunto de falas apresentam”.36 Ao lado do modelo feminino ligado a valorização do matrimônio, da maternidade, da redu-ção social da mulher ao espaço privado, coexistia um modelo masculino ligado ao trabalho, à honestidade, à capacidade de zelo e de tutela sobre membros da família.37

A análise de Careli (1997) se limita, todavia, a destacar os papéis atribuídos a cada sexo pelos discursos jornalísticos, policiais e judiciais. Neles, existe um “des-prezo ao mundo das jovens populares”38, pois os valores eram preconizados em “preceitos baseadas nos parâmetros associados às classes abastadas”.39 Os ideais do-minantes, entretanto, não ficavam restritos àquele grupo social, “sendo de diversas formas incorporados por indivíduos alheios a ele”40, apesar dos poucos recursos materiais existentes. A autora sugere também que os inúmeros artigos veiculados nos jornais, solicitando que as famílias “decentes” casem suas filhas com jovens que, apesar de serem pobres, eram honestos e trabalhadores, seria fruto de um fator demográfico - menor número de homens que mulheres.41 Mais do que um fator demográfico, acredita-se que a seletividade dos pretendentes, igualmente, era fruto de uma estratégia de ascensão social do grupo familiar como um todo, independen-temente de serem populares ou de elite. Por fim, a justiça criminalizava os compor-tamentos sociais provenientes dos grupos populares, associando os amasiamentos a várias imoralidades próprias da cultura popular.42 Contrariamente, percebe-se que os valores provenientes da ordem patriarcal e androcêntrica como amplamente disse-minados em toda a sociedade, ultrapassando as divisões raciais, sociais e culturais. A troca de mulheres entre famílias pode ser considerada um elemento importante nas estratégias de ascensão social do grupo familiar. Como o valor simbólico construí-do sobre as mulheres dependia da sua reputação, ou seja, da sua castidade e da sua submissão, os homens do grupo familiar (pai e irmãos) despendiam grande preocu-pação e controle sobre as mulheres do mesmo núcleo.43

36 CARELI, Sandra da Silva. Texto e contexto: Virtude e comportamento sexual adequado às mulheres na visão da imprensa porto-alegrense da segunda metade do século XIX. (Dissertação. (PPGHIS/UFRGS), 1997, p.280.37 Ibidem, p.76-78.38 P.277.39 Ibidem.40 Ibidem, p.278.41 Ibidem.42 Ibidem, p.281-283.43 BOURDIEU, Pierre, op. cit, p.58-59.

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Ao destacar a enorme assimetria instaurada entre homens e mulheres no terreno das trocas simbólicas existentes no mercado matrimonial, não se pretende diminuir o papel das mulheres como agente. O acesso ao mercado de trabalho, o envolvimento com homens fora do círculo familiar e mesmo uma denúncia de deflo-ramento à Justiça poderia ser parte da estratégia feminina de se desvincular da tutela masculina do grupo familiar. Ao contrário do que defende Arend (2001), justiça não é a alternativa preferencial dos pobres para solução de seus conflitos, mas apenas uma das formas possíveis deles alcançarem seus objetivos. Talvez fosse uma alterna-tiva dificilmente acionada pelos grupos pobres, pois

o aparelho policial e judicial representa uma perigosa máquina, mo-vimentada segundo regras que lhe são estranhas. É bastante inibidor falar diante dela; falar o menos possível parece a tática mais adequada para fugir às suas garras.44

Um aspecto dificilmente considerado, quando se analisa o comportamento popular nas relações entre os sexos, é a representação dominante da masculinidade. O privilégio masculino também é uma cilada, na medida em que “impõe a todo o homem o dever de afirmar, em toda e qualquer circunstância, sua virilidade”.45 É possível que o controle da sexualidade feminina por parte dos homens populares também seja uma forma deles afirmarem sua virilidade.

A violência, amplamente difundida nas classes populares, mais do que uma experiência comum capaz de definir os populares como grupo social distinto, é re-curso exigido pela ordem simbólica ligada a valores patriarcais e androcêntricos. Mais do que um modelo cultural imposto pelas elites, essa lógica era amplamente disseminada em diferentes estratos sociais, variando apenas os recursos que os ho-mens dispunham para sujeitar as mulheres ligadas ao seu grupo familiar.

Os contatos com as tecnologias modernas e a proliferação de espaços de sociabilidades ampliaram as possibilidades da população em geral de acessar novos e diferentes tipos de entretenimento. Na visão das autoridades responsáveis pela organização do espaço urbano, tal contexto era visto como uma ameaça à mora-lidade pública, fato que gerou inúmeras ações policiais. Dentro desses espaços, a lógica androcêntrica, baseada no ideal de virilidade, era amplamente disseminado, fato que gerava conflitos violentos que fugiam da capacidade dos agentes municipais de controlá-los efetivamente.

44 FAUSTO, Boris. Crime e cotidiano. A criminalidade em São Paulo (1880-1924). São Paulo: Brasilense, 1984, p.22.45 BOURDIEU, Pierre, op. cit, p.65.

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URBANIZAçãO, QUESTãO HABITACIONALE CASA PRóPRIA

A partir das observações feitas sobre a amplitude das relações patriarcais no ordenamento social, é possível perceber, além do desejo das elites de expulsar os populares do centro, outras dinâmicas e motivações que influenciavam no cresci-mento urbano da cidade. O problema da moradia que atingiu diversas cidades do país e ficou conhecido como “questão habitacional”46, possuiu significados diversos, dependendo da classe e da etnia. Essa questão foi uma das principais demandas en-frentadas pelos quadros administrativos da prefeitura. A centralidade do problema pode ser percebida tanto pelo fato de o assunto ter sido posto como uma das prin-cipais reivindicações do Partido Socialista, fundado em 1897, quanto pelas inúmeras críticas publicadas nos jornais, sobre a ineficiência e a incapacidade dos gestores públicos de resolverem esse problema.47

O modo como a elite política encaminhou a questão habitacional parece ser revelador da própria capacidade da mesma em encaminhar políticas públicas capazes de promover as mudanças modernizantes tão alardeadas como necessárias no período em questão. No Rio de Janeiro, durante o início do XX, por exemplo, os tecnocratas conseguiram impor projetos higienistas e expulsar os populares do centro - foi o fa-moso “bota abaixo” da administração Pereira Passos. Durante o Império, as investidas desses segmentos, mesmo quando contavam com claro apoio governamental, ainda ti-nham que enfrentar resistências no Judiciário, graças às atuações dos liberais na defesa da propriedade. Tal obstáculo foi superado com o advento da República.48

No Rio Grande do Sul, a saída autoritária para o problema habitacional cer-tamente encontraria justificativa na influência positivista e na tradição militarizada e autoritária da sociedade. O grande obstáculo para a higienização do centro foi, sobretudo, financeiro. Apenas dois anos após a guerra civil, o governo já enfrentava crise econômica. Sinal emblemático dessa situação foi a aceitação, por parte do Ban-co da Província do Rio Grande do Sul, de imóveis para liquidar os débitos de seus clientes. Essa situação perdura até pelo menos 1907, quando as dificuldades come-çam a diminuir. O tempo de crescimento econômico durou pouco, pois, em 1914, iniciou-se outro período de recessão devido à Guerra Mundial. O governo municipal só conseguiu articular empréstimo externo depois de 1924.49

46 BAKOS, M. M. A habitação em Porto Alegre: Problemas e projetos administrativos. (1897-1937). Dissertação. (PPGHIS/UFRGS), 1988, p.04.47 Ibidem, p.07.48 CHALHOUB, Sidney. Cidade febril: Cortiços e epidemias na corte imperial. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p.44-46.49 BAKOS, M. M, op. cit, p.07-09.

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A política habitacional promovida pelos agentes políticos se direcionou, so-bretudo, ao aumento progressivo da tributação das áreas do centro e na promulga-ção de leis que exigia o cumprimento de medidas higiênicas. Em 1897, o imposto se estendeu a todas as áreas que contavam com serviço de bonde. No começo dos anos 1900, inúmeras tentativas foram tentadas no intuito de conter a corrupção genera-lizada existente entre os funcionários que cobravam impostos, sem muito sucesso. Em 1914, ocorre a promulgação do “Regulamento Geral de Construções”, estabele-cendo diretrizes básicas com a ampliação das obrigações higiênicas. A tributação in-cidiu, do mesmo modo, sobre os terrenos não construídos. Os jornais da época no-ticiam, fartamente, a elitização do solo.50 Ao aumentar as obrigações higiênicas para regulamentar a propriedade, o governo criava um enorme campo de marginalidade, visto que a maioria das pessoas não tinha condições financeiras de cumprir a lei.

A consequência mais óbvia da falta de moradias é a superlotação de pré-dios habitacionais e a formação de cortiços. No centro, bem próximo aos locais de moradia dos setores tradicionais da elite, encontram-se inúmeras propriedades que pagavam impostos como cortiços. Foi essa convivência incômoda que levou alguns segmentos emergentes da elite a ocupar a região em torno da Av. Independência, um pouco mais afastado do centro da cidade.51 A vontade de se isolar dos populares também levou a elite a buscar alternativas habitacionais fora do centro.

A região da Cidade Baixa, tradicional local de habitação das populações mais pobres, nas áreas de colonização portuguesa, passou a receber, nas primeiras décadas do XX, a população italiana que chegava à cidade. Os novos proprietários foram, gradativamente, melhorando a qualidade das moradias, operando qualificações higiê-nicas e arquitetônicas, fatores fundamentais na definição do status social de um local respeitável, mesmo se inserido em territorialidades marcadamente pobres. Entretan-to, até 1920, ainda era possível detectar a presença de cortiços nessa área.52

A região do Bom Fim, provavelmente, devido à sua proximidade com a Co-lônia Africana, era uma área bastante desprestigiada até o final do século XIX. Em 1910, todavia, já é possível detectar tanto a presença de italianos quanto a prolifera-ções dos cortiços. Somente em um segundo momento o bairro passou a receber os imigrantes judeus, que acabaram criando uma nova dinâmica de ocupação para esse espaço.53

Em termos de densidade populacional, as áreas em torno da Cidade Baixa e da Colônia Africana eram as mais importantes depois do centro. A ocupação des-

50 Ibidem, p.07-09.51 CONSTANTINO, Núncia Santoro de. Espaço urbano e imigrantes: Porto Alegre na virada do século. Estudos ibero-americanos. PUCRS, v.XXIV, n.1, 1998, p. 156-158.52 Ibidem, p.160-161.53 Ibidem, p.161-162.

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tas áreas ocorreu ao longo do século XIX e estava ligada à dinâmica da sociedade escravista, na medida em que as primeiras populações dessas áreas eram de etnias africanas.54

A principal aposta para o escoamento da população trabalhadora do centro foi a urbanização do terceiro e quarto distritos, na zona norte da capital. As pri-meiras ruas foram traçadas em 1896, porém o serviço de bonde só chegou à região em 1907. As indústrias se instalavam naquela região tanto pela proximidade com o centro quanto pela facilidade no escoamento da produção. A relevância econômica, política e social desse espaço da capital cresceu bastante. Meios de sociabilidade pró-prios e diferentes daqueles da “cidade velha” também se desenvolveram nessa área.55

Em associação com esse processo de expansão, percebe-se o estabelecimento de comércio ao longo da Av. Voluntários da Pátria56 e de algumas famílias de ita-lianos e alemães ao longo eixo da Av. Cristovão Colombo. Em 1900, registram-se inúmeras propriedades para alugar nessas áreas. Fortemente marcada pela presença estrangeira, a ocupação desses espaços trazia consigo o desejo das pessoas de alcan-çar a segurança econômica e o respeito, cujo signo maior era o acesso à casa própria. Gradativamente, graças às dinâmicas próprias dessa região, alguns espaços foram se destacando pela ocupação de uma classe média ascendente, como é o caso do bairro Higienópolis.57

Em suma, a ida para a periferia, mais do que um plano da elite desejosa por expulsar os populares do centro, podia fazer parte das estratégias de grupos sociais para a obtenção da casa própria. Esta, além da segurança econômica, podia repre-sentar o acesso à dignidade civil, que uma unidade familiar estruturada, segundo a lógica patriarcal, representava. Também podia representar maior qualidade de vida, pois tais residências eram, sobre o ponto de vista higiênico, mais adequadas que os cortiços. Portanto, qual o significado dessa política habitacional para as pessoas que não possuíam as condições materiais para se adequar à legislação? Assim como em outras regulamentações, entre elas a que combatia os jogos de azar, tal política criava um enorme campo de criminalidade, ampliando as prerrogativas de atuação do poder público e vulnerabilizando grande parcela da população. A busca pela casa própria com condições higiênicas, nestes termos, representava o acesso à dignidade civil e à segurança econômica.

54 FORTES, Alexandre. Nós do quarto distrito: A classe trabalhadora porto-alegrense e a era Vargas. Caxias do Sul: Editora da EDUSC, 2004, p.35.55 Ibidem, p.35-38.56 Tal avenida começa no centro e dirigi-se a Av. Farrapos, principal via de acesso do 4º e 3º Distrito.57 CONSTANTINO, Núncia Santoro de, op. cit, 1998, p.158-163.

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CONCLUSãO

Durante todo o século XIX e em grande parte do século XX, vários grupos sociais (mulheres, negros, indígenas, pobres em geral) eram alijados de participação da vida política por serem considerados pelas elites incapazes de agirem de forma autônoma. As concepções de Estado e de cidadania, na sua forma universal, im-plicam uma condição moral, baseada na agência, não condizente com aquilo que a alta burocracia porto-alegrense, responsável pelas políticas públicas, pensava sobre a população de maneira geral, principalmente os pobres.

As políticas públicas de combate à vadiagem e as legislações promulgadas resultantes da política habitacional implementada eram importantes para reproduzir as hierarquias sociais ligadas aos valores patriarcais e elitistas. Isso ocorria porque a criminalização de práticas sociais amplamente disseminadas, como o desemprego, no caso da vadiagem, ou as obrigações higiênicas, no caso das habitações, vulnera-biliza civilmente parte da população. Assim, a diminuta parcela da população que consegue se adequar às normas promulgadas é a única capaz de gozar, plenamente, de dignidade civil e de segurança econômica, condições fundamentais para o funcio-namento de uma sociedade moderna.

Políticas públicas centradas em uma concepção que a ordenação social deve ser alcançada, a partir da possibilidade ou ameaça de punição, são tipicamente au-toritárias, pois não estão preocupadas com a promoção da capacidade de agência. Portanto, políticas públicas baseadas numa perspectiva meramente proibicionista impedem a burocratização dos conflitos sociais e o estabelecimento de direitos e princípios válidos universalmente ao conjunto da população.

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o juizAdo de órfãos de Porto Alegre: uM reflexo dA soCiedAde

José Carlos da Silva Cardozo*

Resumo: O Juizado de órfãos de Porto Alegre foi uma importante instituição pública, ele contribuiu para a regularização social das famílias porto-alegrenses que passavam por alguma situação de desagregação familiar envolvendo menores nos anos iniciais do século XX. A partir dos processos de Tutela, iniciados no 3º Cartório de Porto Alegre, entre os anos de 1902 a 1925, será apresentado que os valores sociais e morais possuíam importância nas decisões e desfechos para se tutelar um menor.

Palavras-chave: Porto Alegre – Juízo dos órfãos – Tutela.

O FARMACêUTICO, A MENINA E O JUIZ

José Antônio de Figueiredo Filho, farmacêutico, residente à Rua Garibaldi número 22, em Porto Alegre, no dia 18 de agosto de 1916, deu entrada no 3º Cartório do Juizado Distrital da Vara de órfãos de Porto Alegre a

um pedido para tutelar uma menina. Afirmando que a menor Virginia Cardozo de Lima¹, de 13 anos de idade incompletos, órfã de pai e mãe, trabalhando de aluguel em sua casa há quase um mês, o procurou declarando, “categoricamente”, que não desejava mais voltar para a casa onde mora por lá ser maltratada por seus patrões que a cuidam. A menor possui como parentes apenas um irmão de 11 anos de idade e duas tias de “vida má” que lhe aconselharam a procurar “uma casa de boa família para nela servir”.

O Juiz do caso, Sinval Saldanha, com base nas informações prestadas por uma pessoa íntegra, como um farmacêutico, em apenas 6 dias defere a solicitação de tu-tela a favor de José Figueiredo Filho, que, em 24 de agosto de 1916, assina o Termo de Tutela e Compromisso da menor Virginia Cardozo de Lima.

* Professor do Município de Esteio. Mestrando em História Latino-Americana pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). Bolsista CAPES/MEC.¹ Processo número 623 de 1916 do APERS.

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Essa rapidez deve-se ao não esclarecimento dos fatos apresentado pelo supli-cante, por meio da intimação dos envolvidos no caso, os patrões da menina, que não são identificados no processo, ou das tias de “vida má”, ou mesmo da menor, para ratificar ou não as afirmações de José. Isso ocorreu pelo suplicante a tutor ter uma profissão declarada, reconhecida e possuir moradia fixa, pois nem mesmo o Curador Geral², quando solicitada sua vista³ sobre o caso, pediu maiores detalhes a respeito das alegações, escrevendo, de forma rápida, as iniciais F.J. (Faça Justiça).

Que sociedade era essa? Em que o simples fato de um suplicante a tutor, ter uma profissão íntegra, ser pretexto marcante de confiança para receber a tutela de uma criança e essa ser aceita sem maiores explicações das partes envolvidas?

O CENÁRIO

Os anos iniciais do século XX para o Brasil marcaram um período em que se consolidou o novo regime político-administrativo no país e se incorporou os ideais europeus de modernização pelo Estado e pela sociedade. Contudo, este não foi um período de esperança e felicidade para a grande maioria da população que, devido às políticas de moralização e higienização, promovidas pelo Estado e pela burguesia, sofreu bruscamente a força estatal na sua ambição de tornar o país, o mais rápido possível, moderno como os do hemisfério norte.

O fim da escravidão, juntamente com migrações e imigrações, ocasionou o aumento populacional nas cidades trazendo dificuldades ao novo regime. Esses no-vos moradores, saídos das antigas senzalas e das choupanas do interior, juntamente com os imigrantes vindos de outras nações, chegavam às cidades, em busca de me-lhores condições de trabalho e moradia. Desses, muitos não conseguiram alcançar seus anseios nos centros urbanos, sendo considerados pelo Estado como figuras ameaçadoras da ordem social. Assim, a “massa de ‘cidadãos’ pobre e perigosa, vi-ciosa, a qual emergia da multidão de casas térreas, de estalagens e cortiços, de casas de cômodo, de palafitas e mocambos que eram a vastidão da paisagem das cidades herdadas do Império”4 .

Esses pobres começaram a receber especial atenção do Estado, mas não vi-sando promover a solução para os problemas desses desvalidos e sim os afastando progressivamente dos centros urbanos. Cobrando altos valores pelos aluguéis, exi-gências sanitárias de alto custo e altos impostos, a sociedade burguesa e o Estado

2 Promotor Público do Juízo dos órfãos.3 Ato de falar ou tomar ciência do conteúdo de um processo.4 MARINS, Paulo César Garcez. Habitação e Vizinhança: Limites da Privacidade no surgimento da metrópole. In: NOVAIS, Fernando A. História da Vida Privada no Brasil, 3. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p.133.

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dificultaram o habitar dessa população nessas localidades, levando-os a se inserirem em locais periféricos a estes centros.

Os estudos de Margareth Bakos5 para Porto Alegre mostram esse processo, indicando que o morar muito custoso foi uma das soluções encontradas pelo Estado para afastar os pobres para longe do perímetro urbano, levando-os a residir nas pe-riferias da cidade, onde não eram cobrados impostos ou estes eram mais acessíveis. Clarice Nunes, para o Rio de Janeiro, refere em relação aos pobres que

a presença incômoda de pobres e miseráveis acentuou-se no centro da cidade com o crescimento populacional e forçou, ainda nas décadas anteriores, o seu progressivo deslocamento para as zonas suburbana e rural. Este deslocamento, fruto de uma política de higienização do espaço urbano com suas obras de saneamento básico e demolição dos cortiços, não foi suficiente para ‘limpar’ a pobreza da cidade. Permitiu, no entanto, redimensioná-la6.

O Estado aplicava as mesmas estratégias empregadas pelo exemplo maior de cidade moderna a ser seguida, a cidade de Paris, aonde os pobres foram aos poucos tendo que se mudar para locais que não eram privilegiados, pela elite, habitando em bairros que aos poucos foram se tornando bairros operários ou mesmo favelas. Mar-cando uma política de modificação centrada não somente na reorganização espacial do urbano, mas também nas posições dentro do status social.

A elite preocupava-se em influenciar a consciência popular, até mesmo da-queles que habitavam lugares afastados dos centros urbanos, todos deveriam ter comportamentos dignos de cidadãos urbanos; tentando evitar que a população se direcionasse para os locais de jogos de azar e prostituição, pois os jogos de azar eram mal vistos e, conforme os dirigentes sociais, ameaçavam a formação dos cidadãos disciplinados e a prostituição ameaçava a integridade da família e da sociedade.

A família nesse período foi então, como na Europa, o centro das atenções do Estado. Ela era referida pelos setores privilegiados da sociedade como sendo a protetora dos valores da moral e dos bons costumes.

A família que se desejava nesses anos iniciais do século XX pela República brasileira era a família burguesa. Quando referimos esse tipo de arranjo familiar como modelo social, compartilhamos da interpretação de Maria Ângela D’Incao ao afirmar que a família burguesa é

aquela que nasceu com a burguesia e vai em seguida, com o tempo, caracterizando-se por um certo conjunto de valores, que são o amor

5 BAKOS, Margaret Marchiori. A habitação em Porto Alegre: Problemas e projetos administrativos (1897-1937). Ca-dernos de Estudo: Programa de Pós-Graduação em História, UFRGS. Porto Alegre: UFRGS, n.1, p.1-85. Nov. 1988. BAKOS, Margaret Marchiori. Porto Alegre e seus eternos intendentes. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1996.6 NUNES, Clarice. A escola reinventa a cidade. In: HERSCHMANN, Micael; PEREIRA, Carlos A. M. (Org.). A in-venção do Brasil Moderno: medicina, educação e engenharia nos anos 20-30. Rio de Janeiro: Rocco, 1994, p.183.

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entre os cônjuges, a maternidade, o cultivo da mãe como um ser espe-cial e do pai como um ser responsável pelo bem-estar e educação dos filhos, presença do amor pelas crianças e a compreensão delas como seres em formação e necessitados, nas suas dificuldades de crescimen-to, de amor e compreensão dos pais. Seria ainda próprio dessa situa-ção o distanciamento cada vez maior da família em relação à sociedade circundante, circunscrevendo-se, dessa maneira, uma área doméstica privada em oposição a área pública; esta última é sentida pela família como sendo cada vez mais hostil e estranha, não digna de confiança7.

Ao longo desse período os grupos populares e médios iam tentando se mol-dar de acordo com os parâmetros dessa família padronizada e elitizada para poder usufruir do respeito e da valorização atribuídos a ela.

O Juizado de órfãos de Porto Alegre é um exemplo de como o Poder Judiciá-rio estava a intervir na uniformização da conduta familiar e, principalmente, preocu-pado com a formação do futuro cidadão – o menor. O Juízo dos órfãos foi, desde o período colonial até o início da República, umas das instituições mais importantes para a regularização da família e da criança, desempenhando ao longo do tempo atividades de proteção ao menor. Cuidou, num primeiro momento, dos menores da elite nas questões envolvendo suas heranças, da relação entre os menores e seus familiares ou tutores, como também de sua renda e de seus bens para depois, com a elaboração de políticas reguladoras para a nova sociedade, essa instituição passou a direcionar uma vigilância distinta para com o cuidado (abandono, saúde, educação etc.) da criança pobre. O Estado tornou esses indivíduos figuras centrais no espaço familiar, pois as crianças seriam os futuros cidadãos e cidadãs da República brasilei-ra. O Juizado de órfãos, dessa forma, era um órgão essencial para se encaminhar e solucionar questões quanto ao abandono de crianças e a marginalização destas.

Preocupado com o universo infantil, o Juízo dos órfãos mediou as ações praticadas pela família, pois essa era considerada como espaço gestor dos padrões e regras de comportamento social.

Assim, a assistência à vida infantil incluía uma constante vigilância sobre os atos de seus pais. Um deslize, uma ‘falta de moral’ ou um de-semprego eram suficientes para a ‘mão protetora do Estado’ interferir na vida privada e entregar a posse do menor a outra pessoa. Quando o juiz ‘comprovava’ as denúncias feitas por terceiros, ele poderia retirar dos pais a posse da criança, nomeando-lhe um tutor, ou até mesmo destituir, definitivamente os pais do pátrio poder8.

7 D’INCAO, Maria Ângela. Introdução. In:______. (Org.). Amor e família no Brasil. São Paulo: Editora Contexto, 1989, p.10-1.8 AZEVEDO, Gislane Campos. De Sebastianas e Geovannis: o universo do menor nos processos dos juízes de órfãos da cidade de São Paulo (1871-1917). São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 1995, p.107.

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Dessa forma, a instituição da Tutela foi um dos instrumentos empregados por este órgão jurídico para regulamentar a família.

Nesta sociedade que desejava ser moderna como as europeiashá toda uma ideia de adestramento dos instintos naturais e de molda-gem de corpos e mentes a uma nova ordem que se impõe. Este princí-pio converte, sob certo aspecto, todo ‘homem novo’ a uma situação de criança: ele é alguém que se intenta conformar as habilidades, inculcar valores, coibir comportamentos e treinar segundo um parâmetro de-sejado. Nesse raciocínio, quanto mais cedo este processo se iniciasse, maior a probabilidade de êxito teria na obtenção de um ‘tipo ideal’. Não é de espantar, pois, que esta estratégia formativa se voltasse para a infância9.

Assim, a família recebeu atenção, principalmente seus membros mais jovens, os quais possuíam um Juizado específico para tratar das questões relacionadas a estes.

OS PROCESSOS DO JUíZO DOS óRFãOS

A primeira pesquisa, que temos conhecimento, que se direcionou sobre este órgão jurídico foi a da antropóloga Cláudia Fonseca10, que buscou apresentar a cir-culação das crianças, no início do século XX, por várias casas/famílias, demonstran-do que a prática, hoje tão comum nas famílias populares, de um terceiro (parente consanguíneo ou não) cuidar de um menor, já era recorrente no início deste século.

Neste estudo, Cláudia Fonseca investigou 149 processos de “Apreensão de Menores” no município de Porto Alegre. Embora o livro de Cláudia Fonseca, em que estava incluso este trabalho, tenha sido publicado somente em 1995, a primeira edição; este estudo já havia sido publicado, com poucas alterações, em 1989. Dessa forma, faz mais de 20 anos que foi publicado um estudo que utilizou o Juizado dos órfãos de Porto Alegre como fonte para pesquisar a situação das crianças nesse município11.

Estudos posteriores, realizados em outras localidades, direcionaram sua vi-são para os processos de Tutela que igualmente eram produzidos pelo Juizado de

9 PESAVENTO, Sandra Jatahy. Os trabalhadores do futuro. O emprego do trabalho infantil no Rio Grande do Sul da República Velha. História. São Paulo, 14, 1995, p.191.10 FONSECA, Cláudia. Uma Tradição de Gerações. In:______. Caminhos da Adoção. 3ª edição. São Paulo: Cor-tez, 2006.11 Cláudia Fonseca publicou em vários períodos os avanços de suas pesquisas baseadas nessa fonte documental; em 1989 o artigo - Pais e Filhos na família popular; em 1995 o livro – Caminhos da Adoção, que teve sua terceira edição em 2006 e, por fim, em 2000 o artigo – Ser mulher, mãe e pobre.

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órfãos. A Tutela era um encargo conferido pelo Juiz de órfãos a uma pessoa (tu-tor) para que esta gerenciasse os bens e cuidasse da integridade física do menor12, representando-o tanto em Juízo como fora deste. Isso ocorria quando uma criança era órfã de pai, ou quando este era ausente; o Juiz de órfãos nomeava um tutor para cuidar da criança, exceto quando não houvesse algum nome indicado em testamen-to. Acontecendo mesmo que o menor tivesse ou vivesse com a mãe, pois a esta era, geralmente, dificultada de assumir a responsabilidade jurídica de seus filhos. Esse fato ocorria por a mulher, nessa época, ser vista com desconfiança pela elite, em virtude dela possuir a capacidade de desvirtuar a sociedade com seus atos.

A grande maioria dos estudos que utilizaram essa fonte judicial (os processos de tutela) se deteve mais nas mudanças promovidas pela Lei do Ventre Livre de 1871 até a Abolição em 188813. Esses trabalhos apresentaram as estratégias empregadas pelos senhores de escravos na manutenção dos serviços, tanto os praticados no âmbito do público, quanto àqueles realizados no âmbito do doméstico, por meio da tutela dos filhos das escravas.

Essas pesquisas têm uma problemática muito clara, a qual facilita o trabalho para pesquisas em outras localidades brasileiras que tiveram esse Juizado no período de 1871 a 1888. Mas nossa pretensão é justamente avançar no tempo na busca por novos fragmentos da História. Acreditamos que nosso estudo possa apresentar uma nova possibilidade de utilização desta fonte para outras questões decorrentes dos anos iniciais do século XX, buscando compreender como esta instituição judiciária estava a influenciar a organização das famílias e suas práticas sociais e como esta zelava pela educação e saúde dos menores dentro do período republicano, período este de grandes mudanças na sociedade brasileira.

Sabemos em relação aos processos de tutelas que esses “são uma excelente fonte qualitativa porque permitem recuperar histórias de famílias pobres”14, assim, por meio dessa fonte, considerando o período de análise, verificamos várias modi-

12 No período compreendido nesse texto, o início do século XX, o termo menor referia-se aos indivíduos com até 21 anos de idade, além de, “na passagem do século, menor deixou de ser uma palavra associada [somente] à idade, quando se queria definir a responsabilidade de um indivíduo perante a lei, para designar principalmente as crianças pobres abandonadas ou que incorriam em delitos” (LONDOÑO, 1998, p. 142), assim, além de representar indiví-duos com até 21 anos de idade, a maioridade penal, esse termo ganhou um sentido pejorativo como confirmado nos estudos de Adriana Vianna (1999).13 Alguns pesquisadores já utilizaram esse tipo de processo como fonte primária em seus estudos acadêmicos como Gislane Campos Azevedo (1995), que embora afirme na introdução de seu trabalho e nas datas limites da pesquisa, 1871 e 1917, não se deter nessa problemática, não consegue se desvencilhar dela fazendo apenas pequenas incur-sões pelo século XX; Anna Gicelle Allaniz (1997); Luciana Araújo Pinheiro (2003); Maria Aparecida Papali (2003); Arethuza Helena Zero (2004) e Heloísa Maria Teixeira (2006).14 SAMARA, Eni de Mesquita; TUPY, Ismênia S. Silveira T.. O Trabalho com o documento. In:______. História & Documento e metodologia de pesquisa. Belo Horizonte: Autêntica, 2007, p.113.

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ficações na sociedade brasileira, que foram incorporadas pelas instituições públicas como o Judiciário com o foco de regular a sociedade frente aos novos padrões sociais.

O 3º CARTóRIO DO JUIZADO DISTRITAL DA VARA DE óRFãOS DE PORTO ALEGRE

O Juizado de órfãos de Porto Alegre, no período de 1900 a 1927, era dividi-do em três Cartórios que, posteriormente, receberam o nome de Varas de Família e Sucessão do Município de Porto Alegre. Neste texto analisamos as informações contidas nos processos abertos no 3º Cartório ou 3ª Vara do Município de Porto Alegre, correspondendo a 167 processos de tutela, do total de 823 processos15, para os anos de 1900 a 1927, ou seja, 20% do total que está depositados no Arquivo Pú-blico do Estado do Rio Grande do Sul (APERS), como aponta o gráfico 1 abaixo.

Gráfico 1: Processos por Vara baseado nos processos de tutela de 1900 a 1927 depositados no APERS.

Os dados analisados nessa fonte referem-se ao período de 1902 a 192516 e nos revelam uma preferência pelos menores do sexo feminino (gráfico 2), pois no total de 267 menores tutelados nesse período, 59% eram meninas. Este grande número de

15 É importante salientar que há a grande possibilidade de inúmeros outros casos em condições semelhantes a da instituição da Tutela, atribuída pelo Juízo dos órfãos, não ter chegado ao conhecimento das autoridades; fato que nos apresenta uma pequena amostra da situação das crianças que passavam por alguma desestruturação familiar.16 1902 é o ano de início dos processos que estão depositados no APERS e 1925 marca o fim destes já que não há registros da abertura de processos posterior a essa data.

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meninas acredita-se que tenha ocorrido pela necessidade da proteção da integridade moral das menores, perpetuada pela virgindade dessas, ou também por elas ajuda-rem no trabalho doméstico. Pois a moral vigente na época ditava que as mulheres, ou meninas, deviam ficar “... resguardadas em casa, se ocupando dos afazeres domésti-cos, enquanto os homens asseguravam o sustento da família trabalhando no espaço da rua”17 . Embora essa não fosse a prática fiel, tendo em vista que muitas mulheres trabalhavam fora do espaço privado, a casa, os suplicantes a tutor valorizavam essa moralidade em suas petições.

Gráfico 2: Sexo dos Menores baseado nos processos de tutela de 1902 a 1925depositados no APERS.

A família dentro desse novo ideal se tornou um dos alvos da regularização social, ela deveria ser: nuclear, conjugal, monogâmica, buscando a disciplinaridade sexual18, e um dos membros desta união era a mulher que deveria receber atenção redobrada, pois, como Sandra Pesavento afirma, as mulheres são vistas pela socieda-de no início do século XX sendo

basicamente, perigosas. Elas são uma alteridade inquietante, a mar-car, pela sua natureza mutável um risco permanente para a sociedade da qual deveriam ser o esteio. A ameaça reside, basicamente, no seu poder de ação, sedução, autodeterminação, o que mostrava que, não sendo postas sobre controle, as mulheres ameaçavam toda a ordem social19.

17 FONSECA, Cláudia. Ser mulher, mãe e pobre. In: PRIORE, Mary Del (Org.); BASSANEZI, Carla (Coord. De Textos). História das Mulheres no Brasil. 3ª edição. São Paulo: Editora Contexto, 2000, p.517.18 COSTA, Jurandir Freira. Ordem médica e norma familiar. 5ª edição. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2004.19 PESAVENTO, Sandra Jatahy. Os sete pecados de uma capital. In:______. Os sete pecados da capital. São Paulo: Editora Hucitec, 2008, p.12.

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O gráfico 3 apresenta que essas concepções sociais sobre as mulheres se refle-tiam no Juizado de órfãos, pois apenas 17% dos tutores eram do sexo feminino, ou seja, dos 171 tutores que foram investidos por este Juízo no período, apenas 29 eram mulheres, das quais a grande maioria eram avós, mulheres já de idade que corriam menos riscos de caírem ou conduzirem um menor para o lado da imoralidade, do desapego ao trabalho ou do descaso com a educação.

Gráfico 3: Sexo dos Tutores baseado nos processos de tutela de 1902 a 1925depositados no APERS.

Ainda neste gráfico 3 pode-se perceber que havia certa difusão da importân-cia da figura masculina no cuidado para com o menor, principalmente se este fosse uma menina, para protegê-la. Dessa forma, os homens teriam um respaldo maior para conseguir a tutela de um menor, pois a grande maioria dos processos foi ini-ciada por indivíduos do sexo masculino, os quais tiveram a maioria de seus pedidos deferidos pelo Judiciário.

Esses dados nos permitem ver que a regulamentação do inciso 10º do Novo Roteiro dos órphãos de 1903, que diz: “Perdem o direito a Tutela as mães e avós, deixando de viver honestamente, ou casando-se; e não podem reavê-la ainda que viúvem outra vez (Ord. liv. 4º, tite. 102 § 4º)20” ou mesmo o Código Civil Brasileiro, que começa a vigorar em 1917 substituindo as Ordenações Filipinas como código jurídico, que no artigo 395, inciso 3º, também coloca em linha tênue o comporta-mento dos pais ao apresentar que se perde o direito ao pátrio poder aquele “que praticar atos contrários a moral e aos bons costumes”.

20 As citações foram transcritas respeitando-se a pontuação e a gramática original, mas atualizou-se a ortografia.

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Dessa forma, podemos perceber que as mulheres, dentro da legislação que regulamentava a tutela dos menores, estavam em constante vigilância, pois se estas apresentassem um comportamento desviante segundo concepções de moralidade vigente na época ou mesmo se contraíssem novo casamento perderiam a tutela do menor, mesmo que este fosse seu filho.

Um caso que podemos tomar como exemplo de atitude por parte do Juizado de órfãos é o processo da menor Alice21 de 14 anos de idade, filha natural de Mar-colina da Silva.

Este processo foi encaminhado ao Juizado de órfãos por Balbina Brühl de Albuquerque, viúva, que denunciou que a mãe da menor Alice não tem condições “nenhuma” para cuidar da referida menor. A senhora Balbina pediu que a mãe da menor fosse ouvida, pois ela poderia confirmar suas declarações; quando esta foi intimada afirmou não se opor em sua filha ser tutelada por aquela senhora. Entre-tanto, o Juiz João Soares não deu o cargo de tutor à Balbina Brühl e indicou o senhor Alfredo Melo para exercer o cargo, sujeito o qual a mãe não concordou que fosse tutor de sua filha, apresentando no processo a reclamação contra esse homem, sem explicitar os motivos para a não investidura de Alfredo Melo. No mesmo dia o Juiz respondeu afirmando que “independente da carta acima (pedido de destituição do tutor feito pela mãe), intime o tutor nomeado para prestar o compromisso”.

Podemos perceber que por causa da mãe não ter condições “nenhuma”, se-jam elas quais fossem, pois o processo não as apresenta, o Juiz não considerou sua vontade no momento de deferir a tutela de sua filha a um terceiro, mesmo que este não pertencesse ao circulo familiar da referida menor.

O gráfico 4 nos apresenta justamente que casos como da menor Alice, em que um terceiro que não tinha qualquer relação com a menor recebesse a tutela dessa, não eram a exceção, pois em 51% dos casos os tutores não possuíam qualquer víncu-lo seja consanguíneo (pai, mãe, avós, tios, irmãos etc.), de ofício (patrão) ou mesmo espiritual (padrinho ou madrinha) para com o seu tutelado.

21 Processo número 630 de 1916 do APERS.

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Gráfico 4: Relação com o Menor baseado nos processos de tutela de 1902 a 1925 depositados no APERS.

Outros tantos processos foram iniciados porque a mãe contraiu segundas núpcias, assim o processo da menor Ernestina de Azambuja Moré22 é um desses que exemplificam muitos outros casos que transcorreram pelo Juizado de órfãos de Porto Alegre neste período. Nesse processo sua mãe Arabella Bittencourt de Azambuja, viúva do Alferes Ernesto Emmanuel Moré, pede ao Juiz Hugo Teixeira que este dê um tutor para sua filha, pois ela, a mãe, contraiu segundas núpcias e dessa forma perdeu o pátrio poder sobre a referida filha. Como em outros casos, a senhora Arabella indica um familiar para, dessa forma, não perder contato com a menor e nem esta a referência familiar; indicando seu irmão, casado, Octavio Bittencourt de Azambuja. Uma estratégia legal encontrada pela mãe para esta não perder sua filha para outra pessoa.

Mas o caso da menor Ernestina, em que há a indicação do tutor e este recebe a tutoria não era a regra, pois os gráfico 5 indica que justamente isso era a exceção, pois, por meio dele, evidencia-se que apenas 1% dos tutores que receberam a guar-da de um menor foram indicados pelos suplicantes e a grande maioria destes, 94% não possuíam indicação, ou seja, a maioria dos aspirantes ao cargo de tutor entrou pessoalmente com a solicitação da tutela para si, ou mesmo o Juiz, com a autoridade que o revestia, indicava o tutor, de toda a forma, o Juiz tinha total autonomia para investir uma pessoa com o cargo de tutor, mesmo que isso viesse a romper com os laços familiares do menor, como o caso da menor Alice, visto anteriormente, em que um terceiro recebeu sua guarda.

22 Processo número 611 de 1915 do APERS.

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Gráfico 5: Tutor indicado baseado nos processos de tutela de 1902 a 1925 depositados no APERS.

O gráfico 6 nos apresenta a idade dos menores tutelados e essa informação evidencia o que Silvia Arend já constatou para as famílias dos populares porto-alegrenses do início do século XX, pois “para os populares, os filhos [ou os menores tutelados], após certa idade (em torno de 7 anos), deixavam de ser ‘uma boca a mais’ para se tornar mão-de-obra”23, podendo contribuir na renda familiar, assim, expli-cando, um pouco, os motivo das maiores incidências de tutelas estavam atribuídas aos menores com 13 e 15 anos de idade.

23 AREND, Silvia Maria Fávero. Dramas: A Família Popular. In:______. Amasiar ou Casar? A Família Popular no Final do Século XiX. Porto Alegre: Editora da Universidade/UFRGS, 2001, p.67.

Gráfico 6: idade dos Menores baseado nos processos de tutela de 1902 a 1925 depositados no APERS.

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A maior parte dos processos foi iniciado devido ao falecimento do pai ou da mãe ou mesmo pelo menor não ter qualquer um de seus progenitores vivos (gráfico 7), fazendo-se necessário um adulto legalmente constituído para ser responsável le-gal por esse menor, “em juízo ou fora dele”, até esse completar a maior idade, quan-do cessa-se a autoridade e a responsabilidade legal sobre um menor, consanguíneo ou não.

Gráfico 7: Motivos do pedido de tutela baseado nos processos de tutela de 1902 a 1925 depositados no APERS.

Isso também se reflete na abertura dos processos estarem concentrados nos anos de 1923 a 1925, ou seja, 42% dos processos abertos nesse Cartório se centra-lizam nesses anos que, não por acaso, foram os anos posteriores a Gripe Espanhola que assolou o Estado do Rio Grande do Sul em finais do ano 1918 provocando um grande número de órfãos.

CONCLUINDO, MAS NãO EM ABSOLUTO

Temos muito que aprofundar nesta temática, mas a partir dos dados apresen-tados podemos observar que ocorreu, sim, um reflexo dos valores cultivados pela sociedade nos processos de tutela, bem como, uma forte influência masculina na legislação que regulava as questões dos menores. Este último fato foi somente rom-pido em 1962, com o artigo 380 do Código Civil o qual colocou marido e mulher em termos iguais quanto ao pátrio poder e que a viúva recasada não perderia mais o pátrio poder de seus filhos de casamentos anteriores.

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Além disso, verificamos que as menores do sexo feminino possivelmente eram tuteladas em maior quantidade dos que os do sexo masculino por causa da necessidade moral de proteção da mulher e por ela poder contribuir nos afazeres domésticos. Os homens por não receberem tanta vigilância legal quanto às mulheres sobre os seus procedimentos acabavam com maior frequência revestidos do cargo de tutor de um menor. Os homens tanto quanto as mulheres eram vigiados em rela-ção a sua conduta moral, mas as segundas sofriam mais, pois a vigilância sobre seus atos eram mais intensos que sobre os primeiros.

O Juizado Distrital da Vara de órfãos de Porto Alegre, dessa forma, foi de grande valor para o Estado organizar as famílias que passavam por alguma situação de desagregação familiar ou mesmo nas composições de novas estruturas familiares já que mais da metade dos tutores não possuía vínculo com os menores e que esse Juízo, nas épocas de epidemia ou não, cuidou para que os menores tivessem um responsável legal sobre suas vidas e seus atos.

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REFERêNCIAS DOCUMENTAIS

impressaNovo roteiro dos orphãos: ou guia pratica do processo orphanologico no Brazil : fundamentado na legislação respectiva, e illustrado pela lição dos praxistas, contendo muitas disposições novas a aréstos dos tribunaes, até ao presente, com o formulario de todos os processos. 3ª edição. Rio de Janeiro: Laemmert, 1903. 1 p.l., [v]-vi, 276p. Biblioteca da Faculdade de Direito da UFRGS.

On LineALMEIDA, Cândido Mendes de. Código Filipino ou Ordenações e leis do Rei-no de Portugal, recompiladas por mandado do rei D. Philippe i. 14ª edição. Rio de Janeiro: Tipografia do Instituto Philomathico, 1870. Disponível em: <http://www1.ci.uc.pt/ihti/proj/filipinas/>. Acesso em 25/04/2010.

Manuscrita3ª Vara de Família e SucessãoAPERS - Fundo Poder Judiciário, 3ª Vara de Família e Sucessão, Tutelas, Estante 91, maço 24, [Caixa 004.1837, Estante 121G], autos 595-665 [autos 595-649]. Anos 1913-1919 [Data limite: 01/01/1913-31/12/1918].APERS - Fundo Poder Judiciário, 3ª Vara de Família e Sucessão, Tutelas, Estante 91, maço 23, [Caixa 004.1836 estante 121G], autos 536-594. [autos 543-594]. Anos 1895-1946.APERS - Fundo Poder Judiciário, 3ª Vara de Família e Sucessão, Tutelas, Estante 31, maço 26, autos 752-832. Anos 1923-1932.APERS - Fundo Poder Judiciário, 3ª Vara de Família e Sucessão, Tutelas, Estante 121G, autos 650-976. Caixa 004.1838. Data limite: 01/01/1878-31/12/1919.

REFERêNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALANIZ, Anna Gicelle García. ingênuos e libertos: estratégias de sobrevivência

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familiar em épocas de transição (1871-1895). Campinas/São Paulo: CMU/UNI-CAMP, 1997. 107p.AREND, Silvia Maria Fávero. Dramas: A Família Popular. In:______. Amasiar ou Casar? A Família Popular no Final do Século XIX. Porto Alegre: Editora da Uni-versidade/UFRGS, 2001. p. 49-69. 98p.AZEVEDO, Gislane Campos. De Sebastianas e Geovannis: o universo do menor nos processos dos juízes de órfãos da cidade de São Paulo (1871-1917). São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 1995. (Dissertação de Mestrado em História).BAKOS, Margaret Marchiori. A habitação em Porto Alegre: Problemas e projetos administrativos (1897-1937). Cadernos de Estudo: Programa de Pós-Graduação em História, UFRGS. Porto Alegre: UFRGS, n.1, p. 1-85. Nov. 1988. BAKOS, Margaret Marchiori. Porto Alegre e seus eternos intendentes. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1996. 218p.COSTA, Jurandir Freira. Ordem médica e norma familiar. 5ª edição. Rio de Janei-ro: Edições Graal, 2004. 282p.FONSECA, Cláudia. Pais e filhos na família popular. In: D’INCAO, Maria Ângela (Org.). Amor e família no Brasil. São Paulo: Editora Contexto, 1989. p. 95-128p. 160p.FONSECA, Cláudia. Ser mulher, mãe e pobre. In: PRIORE, Mary Del (Org.); BAS-SANEZI, Carla (Coord. de Textos). História das Mulheres no Brasil. 3ª edição. São Paulo: Editora Contexto, 2000. p. 510-553. 678p.FONSECA, Cláudia. Uma Tradição de Gerações. In:______. Caminhos da Ado-ção. 3ª edição. São Paulo: Cortez, 2006. p. 43-74. 152p.LONDOÑO, Fernando Torres. A origem do conceito menor. In: DEL PRIORE, Mary (Org.). História da Criança no Brasil. 5ª edição. São Paulo: Contexto, 1998. p. 129-145. 176p.MARINS, Paulo César Garcez. Habitação e Vizinhança: Limites da Privacidade no surgimento da metrópole. In: NOVAIS, Fernando A. História da Vida Privada no Brasil, 3. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p. 131-214. 724p.NUNES, Clarice. A escola reinventa a cidade. In: HERSCHMANN, Micael; PE-REIRA, Carlos A. M. (Org.). A invenção do Brasil Moderno: medicina, educação e engenharia nos anos 20-30. Rio de Janeiro: Rocco, 1994. p. 180-201. 226p.PAPALI, Maria Aparecida C. R. Escravos, libertos e órfãos: A construção da liber-dade em Taubaté (1871-1895). São Paulo: Annablume; FAPESP, 2003. 220p.PESAVENTO, Sandra Jatahy. Os sete pecados de uma capital. In:______. Os sete pecados da capital. São Paulo: Editora Hucitec, 2008. p. 9-21. 455p.

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PESAVENTO, Sandra Jatahy. Os trabalhadores do futuro. O emprego do trabalho infantil no Rio Grande do Sul da República Velha. História. São Paulo, 14, p. 189-201, 1995.PINHEIRO, Luciana de Araújo. A civilização do Brasil através da infância: pro-postas e ações voltadas à criança pobre nos finais do Império (1879-1889). Rio de Janeiro: Universidade Federal Fluminense, 2003. (Dissertação de Mestrado em His-tória).SAMARA, Eni de Mesquita; TUPY, Ismênia S. Silveira T.. O Trabalho com o do-cumento. In:______. História & Documento e metodologia de pesquisa. Belo Horizonte: Autêntica, 2007. p. 67-116. 168p.TEIXEIRA, Heloísa Maria. A Labuta sem Ciranda: crianças pobres e trabalho em Mariana (1850-1900). Revista Diálogos. UEM - Maringá/PR, v. 10, n. 3, p. 185-214, 2006.VIANNA, Adriana de Resende Barreto. O Mal que se adivinha: Polícia e Menori-dade no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1999. 198p.ZERO, Arethuza Helena. O preço da liberdade: caminhos da infância tutelada – Rio Clara (1871-1888). Campinas/São Paulo: Universidade Estadual de Campinas, 2004. (Dissertação de Mestrado em Economia).

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rePressão e Protesto

nA históriA do teMPo Presente

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CorAção de luto: teixeirinhA e o Protesto dos esqueCidos

Francisco Alcides Cougo Junior*

Resumo: Este artigo tem por objetivo analisar parte da produção musical do cantor e compo-sitor Vitor Mateus Teixeira, o Teixeirinha, autor de canções que permanecem como grandes sucessos de público. No trabalho, enfoco alguns porquês deste sucesso e, especialmente, de sua perenidade, dando destaque ao que a historiadora e jornalista Mirian de Souza Rossini chamou de “laço empático”, isto é, o elo que ligava o público à música de Teixeirinha. Ao abordar parte do cancioneiro de Teixeira, aponto para algumas gravações que enfatizaram valores, sentimentos e até protestos de determinado segmento social, especificamente aquele descrito pela filósofa Marilena Chauí como a “população po-pular”.

Palavras-chave: Teixeirinha – música popular – canção de protesto.

INTRODUçãO

Teixeirinha (Vitor Mateus Teixeira, 1927-1985) faleceu há 25 anos, mas, mesmo assim, inúmeros programas de rádio dedicam espaço a seu cancioneiro. Em Porto Alegre, as emissoras Liberdade FM e Ru-

ral AM possuem horários específicos em que só tocam o repertório do astro gaúcho. No interior do Rio Grande do Sul, rádios como a Planalto FM (de Passo Fundo) e a Santa-Mariense AM, também mantêm produções regulares em homenagem ao cantor. Até no Rio de Janeiro e no Sergipe, Teixeirinha segue sendo ouvido.¹

Estes programas, quase todos campeões de audiência em seus horários, re-presentam apenas uma parte do “fenômeno social” que é a produção musical de Teixeirinha, um sucesso que segue rompendo paradigmas e recordes, fronteiras e

* Licenciado em História pela Universidade Federal do Rio Grande (FURG) e Mestre em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).¹ Em Porto Alegre, a Rádio Rural AM 1220 leva ao ar, de segunda à sexta, às 20h, o programa Querência Amada e, aos domingos, às 12h, o Estúdio Betha, ambos apresentados por Elizabeth Teixeira, filha de Teixeirinha. Em Passo Fundo, o Programa Teixeirinha é transmitido pela Rádio Planalto FM aos domingos, entre 8 e 10h, sob a apresentação de João do Prado. Em Santa Maria, a Rádio Santa-Mariense produz o programa Abre a porteira, Rio Grande, sob o comando de João Caetano Brum. Já em Nova Friburgo (RJ), Joel de Sá Martins apresenta Relembrando Teixeirinha, de segunda à sexta, entre 4 e 6 da manhã. Na cidade de Lagarto (SE), a Rádio Jenipapo FM homenageia o cantor com um programa exclusivo veiculado aos sábados, às 6 da manhã.

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gerações. O cantor, que teria vendido cerca de 80 milhões de discos (segundo as sempre controversas cifras da indústria fonográfica), é um dos mais populares ar-tistas brasileiros, conhecido do Oiapoque ao Chuí e ouvido à exaustão por fãs de diferentes regiões, idades e classes sociais. Seus 573 fonogramas revelam uma infi-nidade de temas, ritmos, gêneros e construções criativas, elementos que sobrevivem ao tempo, cativando cada vez mais ouvintes.

A perenidade do sucesso musical de Teixeirinha intriga. Os porquês de tama-nho êxito mesmo passados tantos anos de seu “estouro”, podem encontrar respos-tas na própria atualidade do repertório que o artista criou. A historiadora e jornalista Mirian de Souza Rossini revela que o sucesso de Teixeirinha só foi possível porque a vida do artista, contada continuamente em sua obra, fez com que “vasta gama da população, que normalmente não tem voz na mídia, se visse representada pela sua própria ótica”.² A este fenômeno, a pesquisadora dá o nome de “laço empático”.

É curioso perceber que este “laço” segue presente na relação entre a produ-ção musical do artista e seus ouvintes. Enquanto canções emblemáticas dos anos 1960 e 1970 parecem ter perdido popularidade, a maior parte do cancioneiro de Teixeirinha segue vigorando como de grande sucesso. Neste artigo, irei redimensio-nar este fenômeno a partir de uma parcela do repertório de Vitor Mateus Teixeira, mais especificamente aquela que discorre sobre as agruras da chamada “população popular”3, segmentos compostos pelos baixos extratos da sociedade, para os quais, em geral, as composições de Teixeirinha eram direcionadas. Se algumas canções que marcaram época, como Alegria, alegria4 e Cálice5 – reverenciadas pela historiografia como referências da oposição da MPB à ditadura civil-militar instaurada no Brasil, em 1964 – perderam o fôlego de sua popularidade (estando muito mais consolidadas como registros históricos pela academia/crítica do que pela memória coletiva popu-lar em si), a música de Teixeirinha atravessa a via contrária: é pouco lembrada pelas esferas da formação de pensamento e memória “oficial”, mas muito recordada pela memória coletiva (e afetiva) popular. Este trabalho discorre sobre os porquês de tal fenômeno e enfoca a atualidade do discurso cancionista de Teixeirinha, elemento fundamental, responsável direto por sua perenidade, tendo em vista sua validade.

Como fontes deste trabalho, utilizo, primordialmente, algumas peças musicais do acervo fonográfico de Teixeirinha (composto por 573 fonogramas gravados em quatro empresas fonográficas diferentes) e alguns depoimentos do artista, colhidos

² ROSSINI, Mirian de Souza. O popular cinema de Teixeirinha. BECKER, Tuio. Cinema no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: UE/Porto Alegre, 1995, p. 73.³ CHAUí, Marilena. Conformismo e resistência. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 10.4 Alegria, alegria (Caetano Veloso) Gravação de Caetano Veloso. LP “Caetano Veloso” – Philips P.1967.5 Cálice (Chico Buarque – Gilberto Gil) Gravação de Chico Buarque. LP “Chico Buarque” – Philips P.1978.

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em pesquisas no arquivo da Rede Brasil Sul de Televisão (RBSTV) e no acervo da Fundação Vitor Mateus Teixeira - Teixeirinha. Com esta análise, pretendo também enfatizar a importância do objeto documental fonograma (em seus mais diferentes dispositivos: discos, fitas, mídia digital), produzido à exaustão durante todo o século XX, mas ainda tão parcamente utilizado como registro histórico.

PAULADA NO PAPAI NOEL, TAPA NA GRANFINA

Vitor Mateus Teixeira nasceu em 3 de março de 1927, no município gaú-cho de Rolante, na época distrito da cidade de Santo Antônio da Patrulha, 95km distante da capital do Rio Grande do Sul. Aos seis anos, o futuro cantor perdeu o pai, o carreteiro Saturnino Francisco Teixeira, que faleceu vitimado por um ataque cardíaco. Três anos depois, foi a lavradora Ledurina Mateus, mãe de Tei-xeirinha, que morreu. Ela caiu sobre uma pequena fogueira, logo após sofrer um ataque epilético, e não resistiu às queimaduras. Em 1936, “sozinho no mundo”, o menino Vitor começava uma verdadeira peregrinação, que só teve fim às por-tas da década de 1960, quando ele casou-se e fixou residência no município de Passo Fundo. Dali, o cantor que já fazia sucesso excursionando pelo interior do Estado, saiu para São Paulo, onde – em 1959 – gravou suas primeiras canções. Em 1960, o disco de 78 rotações contendo o xote Gaúcho de Passo Fundo e a toa-da-milonga Coração de luto chamou a atenção do público brasileiro e alcançou o topo da parada de sucessos. Teixeirinha ficou rico, mudou-se para Porto Alegre e lançou 49 LPs inéditos e uma infinidade de discos compactos, numa carreira de sucesso que perdurou por 26 anos. Em 1961, o cantor firmou parceria com a jovem acordeonista Mary Terezinha, dando início a uma das mais populares duplas da música no Brasil. A partir de 1967, Teixeirinha também passou a atuar no cinema, onde contracenou em 12 longas-metragens – dez deles produzidos pela Teixeirinha Produções Artísticas.

Dos 58 anos que viveu, Teixeirinha passou quase metade deles em sérias difi-culdades. Quando criança, habitou as ruas, “fazendo bicos” e convivendo, de perto, com a incerteza da sobrevivência:

Esse foi o momento mais triste da minha vida. Porque ele não só doeu na hora. Ele doeu por muitos anos, porque os nove anos perdidos pelo mundo, passando fome, passando frio, dormindo em viadutos, dormindo dentro de canos, dormindo dentro de matos, comendo fo-lha de araçá ou de pitangueiras para matar a fome... Então, eu tive dias que eu sentava na calçada ou na beira da estrada e dizia: ‘Mãe, vem me buscar que eu não agüento mais a fome. Não agüento mais o sofri-mento’. Ela não veio, Deus quis que fosse assim e depois de dezoito

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anos – que eu tive documentos, fui trabalhar e tudo – me acompanha só a grande saudade e o grande amor, porque amor de mãe não existe nenhum igual.6

Ainda jovem, Vitor Mateus Teixeira trabalhou em granjas, pensões e foi tra-torista do DAER (Departamento Autárquico de Estradas e Rodagens), seu último emprego antes de decidir tornar-se cantor profissional. A meu ver, esta vida de ex-tremas incertezas e dificuldades forjou a personalidade do compositor Teixeirinha, um artista de grande fluidez criativa, que, se por um lado herdou explícitos traços artísticos dos nomes da “Era do Rádio” (décadas de 30-40), por outro, criou um am-biente musical completamente próprio, especialmente no que tange às temáticas de suas gravações. É dentro deste contexto que enxergo o “laço empático” citado por Mirian Rossini. Tendo vivenciado na carne as agruras da maior parte da população brasileira, em geral pobre e esquecida pelo poder econômico subjugador, Teixeirinha conseguiu transportar uma espécie de “sentimento de classe” para seu cancioneiro, o que lhe facilitou a comunicação com seus ouvintes. Acrescente-se a isso a explosão do mercado de bens de consumo culturais no Brasil dos anos 60 e 70 e o caráter eminentemente popular de sua carreira (gestada no rádio e alimentada por apre-sentações simplíssimas em carrocerias de caminhões e circos de chão batido, Brasil afora), e temos o perfil de sucesso do cantor.

Um sucesso que, aliás, fica ainda mais claro quando abordamos as minúcias da produção musical de Teixeirinha, ainda hoje parcamente analisada em sua totalidade (até porque, a historiografia da música no Brasil continua sendo bastante preconcei-tuosa em relação à “canção popular”).7 Variada, mas focada, a música de Teixeirinha possui um mote temático muito comum: o enfoque na tristeza, no sentimento de abandono, na orfandade, na pobreza e nas desigualdades sociais. Dirigida a um pú-blico eminentemente pobre, o cancioneiro do artista é autobiográfico e, ao mesmo tempo, reflexivo de um contexto que, infelizmente, pouco se alterou. Ele discorre sobre a fuga do campo para as cidades, a pobreza dos menores abandonados e as disparidades sociais. Das 573 canções gravadas por Teixeirinha e que compõem o su-porte documental deste trabalho, 171 trazem as palavras “triste”, “tristeza” ou “tris-tonho” no corpo do texto, o que representa cerca de 30% de toda a produção do ar-tista. Mais do que uma estatística, este dado nos leva a concluir que – ao contrário de Pedro Raymundo ou José Mendes, por exemplo, artistas gaúchos reconhecidos por repertório baseado em “causos” humorísticos cantados – Teixeirinha primou por uma temática essencialmente melancólica, boa parte dela evocativa de seu próprio

6 Depoimento de Teixeirinha ao programa J. Silvestre. Disponível no documentário Teixeirinha – O Gaúcho Coração do Rio Grande. RBSTV, 2005.7 Para maiores informações, consultar: NAPOLITANO, Marcos. A historiografia da música popular brasileira (1970-1990): síntese bibliográfica e desafios atuais da pesquisa histórica. ArtCultura. Uberlândia, v.8, n.13, jul.-dez. 2006.

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passado de pobreza e abandono, o mesmo vivido por alguns de seus milhares de fãs.Além disso, esta produção musical com enfoque na “tristeza brasileira” é qua-

se toda cantada em primeira pessoa, um fato de fundamental importância. O autor que substitui o “nós” pelo “eu” dá voz às suas vivências, traumas e emoções. O emprego desta modalidade verbal, tanto nas letras quanto nos títulos das canções, recupera um sentir presente num espaço-tempo determinado. A historiadora Maria Izilda Matos afirma que “a construção na primeira pessoa dá à canção e a todos que cantam a possibilidade da subjetivação da mensagem, uma identificação com o compositor, um sentimento que passa a ser também coletivo, ou seja, uma interpre-tação individual de uma sensação geral”.8 Tal interpretação só é possível na medida em que o público-ouvinte assimila a mensagem que lhe é transmitida. Para isso, é necessário que este mesmo público tenha vivenciado o que é cantado, ainda que subjetivamente.

A experiência afetiva só tem sentido para quem viveu. A relação do público com a canção efetiva-se na forma de relatar as experiências e provocar uma empatia por aproximação com elas. O desafio do com-positor é fazer com que a experiência relatada pareça ter sido realmen-te vivida, recuperando o sentimento e dando credibilidade à canção.9

Esta identificação parece ter acompanhado a carreira de Vitor Mateus Tei-xeira durante toda sua vida. Como é comum, por exemplo, na música caipira (uma das inegáveis referências de Teixeirinha), suas canções – mesmo as autobiográficas – “denunciam a transferência de pobreza de áreas rurais para áreas urbanas”10 e apontam para as péssimas condições criadas pelo desenvolvimento da sociedade ca-pitalista brasileira entre as décadas de 1960 e 1970, principalmente. Em certa medida, elas representam a forma de vida imposta a milhares de brasileiros e, por isso, uma considerável parcela da população sentia-se como se sua própria história de dificul-dades estivesse sendo contada, formando-se, pois, o “laço empático” que deu tanta popularidade a Teixeirinha. Entrevistado em 1985 sobre o assunto, o cantor revelou crer nesta identificação tácita entre o público e suas canções: “Num caso como Co-ração de luto, que fez tanta gente chorar, a gente vê muita gente chorando, puxando lenço, relembrando um caso que passou, porque já não tem mais mãe, ou com pena de tantas crianças que não tem” – afirmou.11

A propósito, Coração de luto, a canção citada por Teixeirinha, é um grande exemplo do quanto seu repertório buscou e conseguiu identificação com a “po-

8 MATOS, Maria Izilda Santos de. Dolores Duran: Experiências boêmias em Copacabana nos anos 50. Rio de Janeiro: Ber-trand Brasil, 1997, p. 88.9 TATIT, Luiz. O cancionista: composições de canções no Brasil. São Paulo: Edusp, 1996, s/p.10 ULHÔA, Martha Tupinambá de. Música sertaneja em Uberlândia na década de 1990. ArtCultura, Uberlândia-MG, nº9, jul.-dez./2004, p.61.11 Depoimento de Teixeirinha em Teixeirinha Especial. RBSTV, 5-12-1985.

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pulação popular”. Lançada em julho de 1960, a toada-milonga conta a história da infância de Teixeirinha, mais especificamente a morte de sua mãe, ocorrida quando ele contava apenas nove anos. Na letra, o cantor explora a temática da perda e, prin-cipalmente, da orfandade. Só que o resultado de sua canção-autobiográfica vai mais além: em versos bastante diretos, o cantor enfatiza sua condição de pobre abandona-do – “passei fome, passei frio / por este mundo, perdido”.12 Coração de luto tornou-se um grande sucesso no exato momento em que o Brasil vivia um período de otimis-mo extremo, embalado pela série de inaugurações do governo Juscelino Kubitscheck (dentre elas a moderna capital Brasília) e seu programa de desenvolvimento capita-lista “50 anos em 5”. A propaganda institucional do governo investia na idéia de que o país transpirava progresso, que entrara de vez na era das grandes potências e no “Primeiro Mundo”. Acontece que, por detrás daquele cenário de modernidade, nem tudo ia bem: a inflação, de quase 25%, consumia as finanças do Estado13; mais de 40% dos brasileiros vivia abaixo da linha da pobreza14 e a expectativa média de vida chegava a apenas 41 anos em alguns Estados do Nordeste brasileiro.15 Inúmeros me-nores abandonados, iguais aos cantados por Teixeirinha em Coração de luto, vagavam pelas ruas das grandes cidades, levando uma vida subumana e de poucas perspecti-vas. Não é descabido imaginar o quanto eles se identificassem com a canção.

Em Conformismo e resistência, Marilena Chauí afirma que a sociedade civil bra-sileira é tradicionalmente autoritária, independentemente do regime governamental responsável pelo controle do Estado. É claro que em determinados momentos este autoritarismo se investe de outras roupagens e mesmo se redimensiona, muitas vezes ampliando-se. No entanto, para determinado segmento da população, ele é sempre forte. No Brasil, a história da música popular brasileira tem – não sem razões – atri-buído grande importância à “canção engajada” ou “canção de protesto”, gestada a partir dos anos 1960, quando os movimentos musicais “pós-bossa nova” passaram a buscar formas de firmar uma arte engajada no combate ao regime antidemocrático e violento da ditadura civil-militar instaurada no país através do golpe de Estado, ocorrido em 1964. Esta idéia de protesto, que se firmou através de passeatas, peças teatrais e, principalmente, da música popular, enfrentou ampla perseguição por par-te do Estado brasileiro, uma verdadeira caça que, através de um eficaz sistema de censura, tentou de todas as formas calar a voz de compositores politicamente ativos, como Geraldo Vandré ou Chico Buarque de Holanda.

No entanto, fora da esfera universitária (onde o prostest song brasileiro foi ges-

12 Versos de Coração de luto (Teixeirinha) Gravação de Teixeirinha. 78rpm PTJ 10.104 – Chantecler P.1960.13 SOARES, Gláucio Ary Dillon; D’ARAÚJO, Maria Celina (orgs.). 21 anos de regime militar: balanços e perspectivas. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1994, p. 16.14 Id., p. 300.15 BENEVIDES, Maria Victoria de Mesquita. O Governo Kubitscheck. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979, p. 286.

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tado), outro tipo de canção de protesto circulava, mostrando uma realidade que perpassa a própria ditadura civil-militar do período, sendo um composto tradicional da história brasileira. Paulo Cesar de Araújo afirma que “é tênue a linha que separa uma simples e triste canção de amor de uma elogiada canção de protesto. Ambos os estilos podem conter o grito de milhões de brasileiros excluídos do sistema so-cial, sem acesso à informação, educação e saúde pública”.16 O historiador Marcos Napolitano também endossa essa idéia a partir de referências do chileno Juan Pablo Gonzalez. Analisando o texto performativo gravado em seus mais diversos níveis de significação, ele chega à conclusão de que

(...) mesmo a canção estandardizada, catalogada como ‘comercial, im-pura, simplória e corporal’, tem algo a dizer sobre a sociedade e sobre os sujeitos que a consomem, nem sempre apenas pelo viés da ‘aliena-ção’, como quer a tradição adorniana, ainda muito presente no meio acadêmico brasileiro.17

É este tipo de protesto sem “refutação” ou “combate aberto”, que “opera no interior da mitologia sem destruí-la, mas revelando suas ilusões”18 que aparece em boa parte do cancioneiro de Teixeirinha. Se Coração de luto traz um relato autobiográ-fico de agruras e sofrimentos, outras canções vão mais além e escancaram relações diretas de desigualdade e pobreza, muitas vezes protestando contra a ordem vigente. Papai Noel, toada gravada em 1968, é um destes exemplos. Na canção, Teixeirinha in-terpreta (mais uma vez em primeira pessoa) a história de um menino magoado com a reconhecida figura natalina que, como em outras ocasiões, não lhe trouxe o tão desejado presente. O cantor lembra o grande número de pobres no país, revelando-se condolente com os mesmos. Um verso é peculiar em relação a isso:

Papai Noel,lhe esperei o ano inteiro.Só por falta do dinheiro,você esqueceu de mim!19

Note-se que esta canção é lançada exatamente às portas do Governo Médici, o mesmo que ficou reconhecido pela explosão do “Milagre Econômico” brasileiro, um momento de otimismo e de mensagens ufanistas que apregoavam o progresso do “país que vai pra frente”. Anos depois, mais ríspido e muito provavelmente leva-do pelo aumento das dificuldades de vida no país (fruto, justamente, da crise “pós-Milagre”), Teixeirinha volta a dirigir-se ao “bom velhinho”, desta vez cobrando-o

16 ARAÚJO, Paulo Cesar de. Eu não sou cachorro, não. Rio de Janeiro: Record, 2002, p. 263.17 NAPOLITANO, Marcos. História e música popular: um mapa de leituras e questões. Revista de História 157. (2º semestre de 2007), p. 166.18 CHAUí, op. cit., p. 100.19 Versos de Papai Noel (Teixeirinha) Gravação de Teixeirinha. LP “Última tropeada” – Copacabana P.1968.

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diretamente por não tê-lo atendido quando criança e por, invariavelmente, esquecer-se dos órfãos e pobres. Em Infância frustrada, de 1982, logo depois das primeiras estrofes, o cantor pergunta: “Porque, Papai Noel? Porque você não me visitava?”. Em seguida, ele volta à carga: “Papai Noel... / Velhinho esnobe, é comercial. / Papai Noel... / Por isso os pobres não ganham o Natal...”. Na seqüência a canção é en-cerrada com “Papai Noel, hoje em entendo quem é você. / É um comerciante que só propaga na televisão...”.20 Neste caso, é importante notar que Teixeirinha buscou realmente criar um cenário de crítica social ao consumismo e à frustração que os po-bres sentem por não poderem compartilhar das benesses do mundo capitalista. Isso fica claro quando ouvimos o ensaio de Infância frustrada, registrado em fita cassete e esquecido no acervo pessoal do cantor. Dirigindo-se ao produtor do disco, Leonir, Teixeirinha pede a ele que o arranjo do rasqueado faça alguma referência ao Natal (“um sininho, uma coisinha qualquer assim...”), mas, entretanto, revela estar rebaten-do à figura do Papai Noel, “que me traiu muito quando eu era criança”. Teixeirinha prossegue: “Isso é frustração. Mas quem é que não se frustra quando, na infância, não tem as coisas, não é? E eu estou dando uma paulada no Papai Noel!”.21

Tão emblemática quanto a briga de Teixeirinha contra a falta de condições dos pobres e explorados é sua rusga com um fato que o cantor vivenciou na pele, e que transportou para seu cancioneiro com vigor, certamente por saber que o público ouvinte se identificaria. Trata-se da disparidade social entre classes, tão comum no Brasil desde longa data. Diversas canções de Vitor Mateus Teixeira deram conta do problema da desigual distribuição de renda e dos conflitos sociais provocados por ela, algo muito dissimulado pelos governantes, mas crônico na sociedade brasileira. Em 1960, quando Coração de luto tornou-se campeã de vendas em todo o país, “os 10% mais pobres da população receberam 1,9% da renda total, enquanto os 10% e os 1% mais ricos receberam, respectivamente, 39,6% e 11,9% de toda a riqueza produzida no país”.22 Graças à inércia governamental dos períodos posteriores, este quadro só piorou: em 1999, a título de exemplo, os 10% mais ricos da população receberam 45,7% de toda a riqueza gerada no país, enquanto os 10% mais pobres, apenas 1%, recebendo pouco mais de 100 reais por mês.

A desigualdade econômica brasileira gerou uma clivagem social acentuada que se reflete até hoje nas mais variadas instâncias. Uma conseqüência real dela diz

20 Versos de Infância frustrada (Teixeirinha) Gravação de Teixeirinha. LP “Que droga de vida” – Chantecler P.1982.21 A fita contendo a gravação encontra-se, sem identificação, no acervo pessoal de Teixeirinha, na casa do cantor, em Porto Alegre. Para maiores informações, consultar: COUGO JUNIOR, Francisco; REIS, Nicole Isabel dos. Nos porões da Glória: uma reflexão sobre arquivos pessoais, Teixeirinha e alguns cruzamentos entre História e Antro-pologia. Aedos. Porto Alegre, v.1, n.1, 2008. (Disponível em http://www.seer.ufrgs.br/index.php/aedos/article/view/9819/5620).22 TEIXEIRA, Ricardo Augusto Grecco. Breves retratos do Brasil: a distribuição de renda. Estudos. Londrina: CLAI / Fé, Economia e Sociedade, julho/2002, p.2.

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respeito às impossibilidades de bom relacionamento entre classes distintas, sem que haja sobreposição de uma por outra. Em termos reais, pobres e ricos vivem em realidades diferentes e estão o mais afastados possível. Neste processo, chamam atenção as formas pelas quais a camada mais pobre da sociedade acaba manifestando seu descontentamento com tal situação. Em relação a isso, a música tem sido um importante veículo de protesto – consciente ou inconscientemente. Neste ínterim, Teixeirinha foi pródigo, pois muitas de suas composições trazem histórias nas quais ele é ora narrador, ora personagem principal. Estas narrativas tratam de questões ex-tremamente interessantes, em especial relativas às divergências sociais entre pobres e ricos (ou empregados e patrões), ao sonho da ascensão social – seja na zona urbana, seja no cotidiano rural (geralmente ligada a golpes de sorte, casamentos ou proezas conquistadas graças à humildade e confiança no destino que um dia atende a quem nele acredita) – e também ao sofrimento de quem trabalha duro, mas ganha pouco. Estas composições, a meu ver, mostram o que Araújo chama de “luta de classes na sociedade – e na perspectiva dos oprimidos”.23

Canções de temática aparentemente amorosa são peculiares neste sentido. O tango Vida fantasia, de 1969, é um bom exemplo. Nele, o personagem principal – in-terpretado pelo próprio Teixeirinha – está apaixonado por uma mulher rica, mas não é correspondido justamente por ter se atrevido a “lhe querer bem, sem pensar que não devia”, já que ela “ao ver que eu não era rico / voltou com sua nobreza”. A mu-lher amada não suporta a vida de misérias, pois, nas palavras do autor, “quem nasceu para ser nobre / não acostuma à pobreza”. Um dos versos da composição mostra, além disso, que não basta apenas uma posição financeira favorável para que o amor seja possível. Um elevado grau de educação e um status social adequado também são imprescindíveis. É por isso que, em meio a toda sua melancolia (ressaltada pela tristonha melodia do tango e de um plangente violino realizando o complemento harmônico), o personagem principal diz:

Nunca foi o seu dinheiroque pra mim teve valor.Apenas lhe amo tanto,só queria o seu amor.

Não reconheci que sousimplesmente um trovador.Você está com a razão,merece um nobre doutor.24

23 ARAÚJO, op. cit., p. 85.24 Versos de Vida fantasia (Teixeirinha) Gravação de Teixeirinha. LP “Volume de prata” – Copacabana P.1969.

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No elenco dos velados protestos contra as disparidades entre os brasileiros, algumas canções de Teixeirinha foram ainda mais longe. E digo isso, justamente porque elas não evocaram histórias fictícias ou relatos autobiográficos na transmis-são das mensagens objetivadas, mas sim desenharam protestos explícitos, dirigidos a qualquer rico que, porventura, possa ter ultrajado aos pobres. Nesta linha, algumas das composições mais significativas dão conta da figura do “granfino”, indivíduo “metido a rico, elegante, aristocrata”25, “que vive com luxo”26, uma figura comum nos anos 1960-1970, rotulada como um abastado ou ainda o “bacana”. Em algumas canções evocativas ao “granfino”, Teixeirinha dirige-se diretamente ao personagem. Sintomaticamente, a principal peça artística relativa ao tema data do início dos anos 1980, quando o país vivia um dos piores momentos de sua economia, após o colapso pós-Milagre. O tango Granfina, de 1979, opõe a rica – “esnobe da cabeça aos pés” – àquela que “lava o chão”, numa nítida defesa à emprega doméstica, muitas vezes obrigada a morar em seu quarto de fundos, pequeno e escuro, uma espécie de anexo à residência, renegado ao isolamento e remontando à própria tradição da casa grande e da senzala do Brasil-colônia – na qual criados e senhores não podiam misturar-se. No tango, Teixeirinha iguala as duas mulheres: “Tu não pensa que o teu sangue / só por ser de gente nobre, / é diferente da pobre / que lava o chão e a vidraça. / Gran-fina, a tua arrogância / provocou os versos meus. / Neste mundo de um só Deus / preconceito é uma desgraça!”. No desfecho da canção, ele as equipara novamente, chegando a citar o grande abismo social entre ambas:

Granfina, já foste minhasem roupa e sem maquiagem.Vi em ti a mesma imagemda mulher que lava o chão.

Só o orgulho e o esnobismoe a diferença social.Este é o teu grande malgranfina sem coração!27

Paulo Cesar de Araújo afirma que canções como estas, cantadas em primeira pessoa, sobre temas que demarcam tacitamente o lugar-social de determinado seg-mento da população, podem ser absorvidas por seus ouvintes como um discurso que fala sobre eles próprios. Ao analisar o bolero Eu não sou cachorro, não, de Waldik Soriano, o historiador afirma:

25 LUFT, Celso Pedro. Minidicionário Luft. São Paulo: Editora Ática, 1996, p. 324.26 HOUAISS, Antonio; VILLAR, Mauro Salles. Minidicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2004, p. 375.27 Versos de Granfina (Teixeirinha) Gravação de Teixeirinha. LP “20 anos de glória” – Chantecler P.1979.

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(...) a canção reflete a condição social e os embates contra o autorita-rismo vivenciados pelo próprio autor. E tudo isto serve de ‘indícios’, ‘sinais’, de que a opressão relatada na letra de Eu não sou cachorro, não, não se refere somente a uma relação amorosa e nem que o públi-co a interpretasse apenas desta maneira.28

Ao conversar com sua parceira Mary Terezinha e com a amiga e cantora Bere-nice Azambuja (em uma descontraída conversa registrada em fitas cassete), Teixeiri-nha sinaliza saber disso. Após mostrar Granfina à Berenice (cantando, acompanhado por Mary), o cantor revela com ar de vingança: “Isso sim que é sucesso! As mulher-zinha [sic] de morro e a empregadinha doméstica vão enlouquecer tudo! Dá um tapa na granfina, não é?”.29 Ou seja, nesta gravação vemos a explícita intencionalidade de Teixeirinha em produzir uma canção que remontasse a realidade de um determinado segmento da população e seu lugar-social.

CONSIDERAçõES FINAIS

Mais do que composta por canções “comerciais” ou “popularescas” – como pretendem críticos e mesmo historiadores da música popular brasileira –, a produção musical de Teixeirinha traz elementos que podem ser tomados como protestos contra as condições subumanas de uma parte considerável da população brasileira, ora explorada pelo patrão “granfino”, ora carente de um amor que acaba por ser impossível em virtude de diferenças sociais, mas – irremediavelmente – triste e marcada pelo desafio da sobre-vivência em meio à calamidade das clivagens sociais. Canções como Coração de luto, Vida fantasia ou Granfina apresentam em seus versos uma forma de desabafo contra a opressão e o tratamento humano degradante, um clamor por melhorias, o “desejo único pelo qual o oprimido se diferencia radicalmente do opressor: o desejo da não-agressão”.30 Com isso, vemos que – mesmo em uma produção musical comumente encarada como alie-nada aos problemas sociais e criticada por um não-envolvimento político direto – uma linguagem diferente de protesto está presente. Como corrobora o professor Eduardo Granja Coutinho, “uma canção política não significa necessariamente canção revolucio-nária ou de agitação. Sem se colocar frontalmente contra o regime, uma canção pode ser política por expressar críticas sociais e de costumes, como um samba de Noel Rosa ou uma marchinha de Lamartine Babo”.31 Ou um tango de Teixeirinha que, pela atualidade das denúncias que faz, continua válido. E fazendo sucesso.

28 ARAÚJO, op. cit., p. 238.29 Fita cassete encontrada no arquivo pessoal do cantor, sem identificação.30 CHAUí, Marilena. Cultura e democracia: o discurso competente e outras falas. São Paulo: Cortez, 1997, p.54.31 COUTINHO, Eduardo Granja. Velhas histórias, memórias futuras: o sentido da tradição na obra de Paulinho da Viola. Programa de Pós-Graduação da Escola de Comunicação da UFRJ. Rio de Janeiro: Eco, 1999, p.60.

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REFERêNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARAÚJO, Paulo Cesar de. Eu não sou cachorro, não. Rio de Janeiro: Record, 2002.BENEVIDES, Maria Victoria de Mesquita. O Governo Kubitscheck. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.CHAUí, Marilena. Conformismo e resistência. São Paulo: Brasiliense, 1994._____________. Cultura e democracia: o discurso competente e outras falas. São Paulo: Cor-tez, 1997.COUGO JUNIOR, Francisco; REIS, Nicole Isabel dos. Nos porões da Glória: uma reflexão sobre arquivos pessoais, Teixeirinha e alguns cruzamentos entre História e Antropologia. Aedos. Porto Alegre, v.1, n.1, 2008.COUTINHO, Eduardo Granja. Velhas histórias, memórias futuras: o sentido da tradição na obra de Paulinho da Viola. Programa de Pós-Graduação da Escola de Comunicação da UFRJ. Rio de Janeiro: Eco, 1999.HOUAISS, Antonio; VILLAR, Mauro Salles. Minidicionário Houaiss da língua portugue-sa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2004.LUFT, Celso Pedro. Minidicionário Luft. São Paulo: Editora Ática, 1996.MATOS, Maria Izilda Santos de. Dolores Duran: Experiências boêmias em Copacabana nos anos 50. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997.NAPOLITANO, Marcos. A historiografia da música popular brasileira (1970-1990): síntese bibliográfica e desafios atuais da pesquisa histórica. ArtCultura. Uberlândia, v.8, n.13, jul.-dez. 2006.____________________. História e música popular: um mapa de leituras e ques-tões. Revista de História 157. (2º semestre de 2007).ROSSINI, Mirian de Souza. O popular cinema de Teixeirinha. BECKER, Tuio. Ci-nema no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: UE/Porto Alegre, 1995.SOARES, Gláucio Ary Dillon; D’ARAÚJO, Maria Celina (orgs.). 21 anos de regime mi-litar: balanços e perspectivas. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1994.TATIT, Luiz. O cancionista: composições de canções no Brasil. São Paulo: Edusp, 1996.TEIXEIRA, Ricardo Augusto Grecco. Breves retratos do Brasil: a distribuição de renda. Estudos. Londrina: CLAI / Fé, Economia e Sociedade, julho/2002.

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ULHÔA, Martha Tupinambá de. Música sertaneja em Uberlândia na década de 1990. ArtCultura, Uberlândia-MG, nº9, jul.-dez./2004.

REFERêNCIAS DOCUMENTAIS

Alegria, alegria (Caetano Veloso) Gravação de Caetano Veloso. LP “Caetano Veloso” – Philips P.1967.Cálice (Chico Buarque – Gilberto Gil) Gravação de Chico Buarque. LP “Chico Bu-arque” – Philips P.1978.

ACERVO DA REDE BRASIL SUL DE TELEVISãO (RBSTV, PORTO ALEGRE)

Depoimento de Teixeirinha ao programa J. Silvestre. Disponível no documentário Teixeirinha – O Gaúcho Coração do Rio Grande. RBSTV, 2005.Depoimento de Teixeirinha em Teixeirinha Especial. RBSTV, 5-12-1985.

ACERVO DA FUNDAçãO VITOR MATEUS TEIXEIRA – TEIXEIRINHA (PORTO ALEGRE)

Coração de luto (Teixeirinha) Gravação de Teixeirinha. 78rpm PTJ 10.104 – Chantecler P.1960.Diálogo gravado entre Teixeirinha, Mary Terezinha e Berenice Azambuja, fita casse-te encontrada no arquivo pessoal do cantor, sem identificação.Granfina (Teixeirinha) Gravação de Teixeirinha. LP “20 anos de glória” – Chantecler P.1979.Ensaio de Teixeirinha para o disco “Que droga de vida”, 1982, fita cassete encontra-da no arquivo pessoal do cantor.Infância frustrada (Teixeirinha) Gravação de Teixeirinha. LP “Que droga de vida” – Chantecler P.1982.Papai Noel (Teixeirinha) Gravação de Teixeirinha. LP “Última tropeada” – Copaca-bana P.1968.Vida fantasia (Teixeirinha) Gravação de Teixeirinha. LP “Volume de prata” – Copa-cabana P.1969.

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A AtuAção rePressivA dA ditAdurA Civil-MilitAr brAsileirA durAnte A Construção dA AnistiA

Julio Mangini Fernandes

Resumo: O artigo apresentado discute as práticas repressivas da Ditadura Civil-Militar do Bra-sil no contexto da luta pela Anistia, institucionalizada em 1979. Esta incursão atuou de forma autoritá-ria nas organizações e movimentos sociais que questionavam as diretrizes arregimentadas pelo Estado. Esta foi exercida através de perseguições, sequestros e desaparecimentos de militantes, políticos e pes-soas “comuns” (sem vinculação direta político-partidária). O intercâmbio da repressão e a criação de redes de informação entre os países do Cone Sul foi uma das maneiras para aniquilar a oposição externa ao governo, que se utilizou do terror para propagar o medo generalizado na sociedade, supostamente ameaçada por um inimigo da Nação. Portanto, perceber quais foram essas ações e discuti-las no âmbito acadêmico, visando analisar as relações de poder inseridas nesse momento histórico, daqueles que luta-vam pela Anistia, as práticas sociais e as maneiras pelos quais se representou o “inimigo” externo que assolava intermitentemente os países sul-americanos.

Palavras-chave: Ditadura Militar – repressão – Anistia.

O presente trabalho¹ tem como intuito pensar e discutir os meios pe-los quais a Ditadura Civil-Militar brasileira na década de 1970 po-dou quase todas as possibilidades de ação de organizações e mo-

vimentos sociais de exilados brasileiros que questionavam as diretrizes autoritárias arregimentadas pelo Estado. Essas se constituíam em perseguições, sequestros e desaparecimentos de militantes, políticos e pessoas “comuns” (sem vinculação di-reta político-partidária) que questionavam e criticavam, de alguma forma, o modelo imposto vigente na época. O intercâmbio dos métodos repressivos e a criação de redes de informação e repressão com outros países da região, tais como Uruguai, Chile e, sobretudo, com a Argentina, foi uma das maneiras para executar esse projeto de aniquilar as oposições interna e externa ao governo autoritário. Isso foi realizado através de Terrorismo de Estado propagando o medo na sociedade, supostamente ameaçada por um inimigo interno e externo da Nação, apressadamente rotulado

¹ Esse trabalho consiste em um recorte da dissertação intitulada “As práticas repressivas da ditadura civil-militar brasileira aos exilados brasileiros na Argentina (1964-1979)” defendida em setembro de 2009, pelo programa de pós-graduação em História da Universidade Federal de Mato Grosso, sob os auspícios do CNPq.

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de “comunista”. Portanto, perceber quais foram essas ações e discuti-las no âmbito acadêmico, trazem à tona a repressão aos exilados brasileiros no exterior e seus usos na propagação do Terror de Estado.

Procuro refletir sobre o Brasil no contexto da guerra fria, durante o golpe civil militar brasileiro e a atuação brasileira de cooperação e intercâmbio antes e depois da criação da chamada “Operação Condor”. As práticas exercidas antece-dem tal operação e a investigação dos exilados brasileiros datam desde pelo menos quando foi criado o CIEX – Centro de Informações do Exterior, em 1966, uma das ramificações do SNI – Serviço Nacional de Informações – criado em 1964 e vinculado ao Ministério das Relações Exteriores. O CIEX tinha como função agir de forma especializada, buscando e analisando conjunturas de países vizinhos, fazer encaminhamento e responder, através de dados, informações e processos anteriores e pedido de antecedentes, monitorando os brasileiros que buscavam exílio em países democráticos.

O CIEX fazia parte de um eficiente mecanismo repressivo usado pelo regime ditatorial civil-militar e consistia na vigilância e controle cotidiano sobre a sociedade, conhecido como “comunidade de informações”. Em nome da Segurança Nacional, montou-se um complexo sistema repressivo para combater a subversão e reprimir preventivamente qualquer atividade considerada “suspeita”, por se afigurar como potencialmente perturbadora da ordem.²

Os aparatos repressivos das forças armadas e policiais, os quais detinham certa autonomia de ação entre si, eram ordenadas a partir de um núcleo central, o SNI. Esse subordinava outros órgãos repressivos, como os centros de informações das três armas (CIE – Centro de Informação do Exército, CENIMAR – Centro de Informação da Marinha e CISA – Centro de Informação da Aeronáutica), a Polícia Federal e as polícias Estaduais (como por exemplos os DOPS – Departamento de Ordem Política e Social), além do próprio CIEX. Para integrá-los, criou-se o DOI-CODI – Destacamento de Operações de Informação - Centro de Operações de Defesa Interna, oficializado em 1970, que congregava representantes de todas as forças policiais. Dotados de recursos financeiros e tecnológicos, as atividades eram planejadas e orientadas pela lógica da disciplina militar, com propósitos de combater inimigos em uma guerra.

Além disso, a composição dos aparatos repressivos obedecia uma rígida hie-rarquia, onde o topo era composto pelo Presidente da República, tendo o Conselho de Segurança Nacional e a equipe executiva para garantir sua segurança. A esses eram subordinados os órgãos de repressão em todas as regiões do país, coordenados

² ALVES, Maria Helena Moreira. Estado e Oposição no Brasil (1964-1984). 2ª edição. Petrópolis: Editora Vozes, 1984.

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por militares. Eram assessorados por analistas de informações, vistos como a elite do sistema. Esses, por sua vez, recomendavam planos de ação e frequentavam a Escola Nacional de Informações.

A Ditadura Civil-Militar no Brasil usou vários métodos repressivos com in-tuito de aniquilar a oposição brasileira dentro e fora do país. Enquanto esteve sob a égide dos militares, o governo brasileiro montou um sistema repressivo que ia além de suas fronteiras. O Ministério das Relações Exteriores, vinculado ao SNI, destinou ao CIEX o monitoramento de brasileiros com intuito de informar às autoridades brasileiras responsáveis pela repressão, para desarticular atividades contrárias ao re-gime brasileiro e de outros países da região no exterior. Os países mais procurados pelos exilados foram os do Cone Sul da América do Sul – Chile, Uruguai e Argentina – que até aquele momento não tinham deflagrado golpe militar.

Com o advento, no Brasil, do golpe em 1964, muitos brasileiros migraram, forçosamente ou não, para países vizinhos, como o Uruguai e o Chile³. Em 1973, ambos os países sofreram golpes militares e se alinharam aos outros países domina-dos pelas ditaduras, as quais perseguiam exilados da América Latina. A Argentina, que possuía um governo democrático, tornou-se, inevitavelmente um reduto mais seguro para aqueles que sofriam com a repressão militar em seus países de origem. Tal percepção de segurança foi ruindo ainda durante o governo civil, pois suas ins-tâncias democráticas foram perdendo legitimidade com o avanço da crise econômica e política, dando espaço para atos clandestinos repressivos de grupos paramilitares com propósito de combater os movimentos sociais. Com a morte de Juan Perón, em 1974, as ações governamentais passaram a expor cada vez mais a fragilidade das democracias latino-americanas, em especial da Argentina.

Nesse contexto, é importante salientar as práticas repressivas da ditadura ci-vil-militar brasileira aos exilados brasileiros, que propagou através dos seus sistemas de informação e mecanismo de repressão a cultura do medo e terror, intimidando, cerceando a liberdade alheia em nome de uma pretensa guerra. Ou seja, um inimigo foi escolhido, uma guerra foi travada e os parentes, amigos, filhos, e a sociedade como um todo foram vítimas dessas ações, sobretudo com a lógica da suspeição que, entre outras coisas, ceifou vidas, tanto de forma física como psicológica, ética e moralmente.

Ao analisar a documentação utilizada no trabalho, sobretudo a do CIEX, aliado ao estudo referente à repressão, terrorismo de Estado, memórias e exílio com-

³ Vale ressaltar que o Chile, vizinho do Brasil em termos regionais, possuía uma tradição democrática no século XX e se tornou foco de migração de perseguidos e exilados, principalmente após a eleição direta do presidente socialista Salvador Allende.

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preendeu-se quanto a ditadura brasileira se preocupava com os sistemas políticos de países vizinhos, tais como a Argentina. Através desta rede de informações secreta, altamente organizada, padrão unânime e referência para outros órgãos repressivos do Cone Sul, órgãos brasileiros trocavam entre si, e com outros Departamentos de Informação de países que já tinha implantado o regime autoritário, informes e en-caminhamentos com intuito de organizar a repressão e evitar oposição e resistência, dentro e fora do país. O maior receio era, pois, a ação daquilo que foi rotulado de “inimigo interno” e que, ao mesmo tempo, agia também no exterior, ideia essa segui-da, sustentada, alimentada e teorizada a partir da Doutrina de Segurança Nacional, contra a “ameaça” comunista ao mundo.

As práticas empregadas com o golpe no Brasil se baseavam na tortura física e psicológica, morte, desaparição e ocultação de cadáver como política de intimidação e extermínio, além da atuação conjunta com outros países, antes, durante e depois de instaurada a “Operação Condor”. Tais ações, sustentadas e amparadas ideologi-camente pela Doutrina de Segurança Nacional, visavam a criação de uma sociedade baseada apenas em valores “ocidentais”, cristãos e capitalistas, capitaneado e lidera-do pelas Forças Armadas.

Todas essas ações representavam o temor das elites brasileiras de uma confi-guração de movimentos sociais combativos que lutavam por melhorias na sociedade, que lutavam para ampliar o sentido de democracia, através da participação popular nas decisões políticas e econômicas no Brasil. Essas posturas adotadas por homens e mulheres trabalhadoras, estudantes, religiosos, autônomos que, de alguma forma acreditavam na transformação da sociedade brasileira foram consideradas ações de inimigos da Nação, ou seja, inimigos de uma elite conservadora que controlava, e ainda controla os meios de produção e comunicação. Essas pessoas se tornaram criminosas por discordarem da situação de desigualdade social brasileira e por se organizarem em sindicatos e partidos políticos, ou seja, atuar em pleno gozo da de-mocracia era um incômodo aos golpistas.

Esse processo se perpetuou por 20 anos por conta de alguns fatores. Em primeiro lugar, é necessário destacar a atuação da ditadura brasileira em canalizar a participação política nos partidos autorizados a existirem e eleições fraudadas, controladas a base de opressão, repressão e terror de Estado. Além disso, foi feita a propagação de alguns benefícios, durante o auge da repressão brasileira, de 1968 a 1974, rotulado como “milagre brasileiro”. Essa iniciativa foi uma maneira de fazer propaganda do regime como sendo benéfico à sociedade, todavia condicionava o crescimento econômico em detrimento das liberdades individuais e coletivas. O crescimento ocorreu aliado também com um endividamento maior das contas pú-blicas, aumentando consideravelmente a dívida interna e externa do Brasil, além de agravar ainda mais o quadro de desigualdade social do país, haja vista que durante

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esse período aumentou o abismo que separa os mais ricos dos mais pobres, ou seja, houve crescimento, mas sem a preocupação da distribuição de renda.

Há, portanto, a necessidade de se rever a política de documentos no Brasil. Segundo Eliana Resende Furtado de Mendonça (1998) não existe no país uma le-gislação específica sobre prazos e acessos aos documentos relativos à privacidade, de períodos conturbados, tais como de Ditadura civil-militar. Nos países europeus, assim como os EUA e o Canadá, não se adotaram soluções extremas (de abrir ou fechar tudo), pois, segundo Mendonça,

isso não é política; uma política de acesso reconhece interesses confli-tantes e propõe alternativas que harmonizem esses interesses com um objetivo comum: o direito à informação para o exercício da cidadania. Todos esses países garantem o direito à informação, e as limitações são feitas através de sistemas de prazo que variam de país para país4.

Mendonça (1998) faz uma importante contribuição a respeito dos usos e das consequências dos documentos da repressão criados a partir do golpe de 1964. Mui-tas vezes pesquisas tratam de pessoas vivas, essas informações contidas em algum trabalho acadêmico se esbarram na questão da privacidade dos citados:

A partir da década de 1960, as informações contidas nos documentos da polícia passaram a priorizar, além das práticas políticas públicas e clandestinas, dados sobre a intimidade dos investigados e perseguidos políticos [...] Há dois tipos de informação que afetam a vida privada: aquelas produzidas pela própria polícia, na maioria das vezes por in-formantes encarregados da vigilância e infiltração, que contêm apre-ciações e comentários sobre comportamento pessoal e privacidade; e aquelas que constam de depoimentos assinados pelo preso político, nos quais ele presta informações sobre si mesmo e outras pessoas en-volvidas em organizações e ações políticas clandestinas. São registros acerca da atuação política e também sobre a vida pessoal que ferem a reputação de si mesmo e de terceiros.5

Analisando os documentos do CIEX é possível perceber tais incursões apon-tadas por Mendonça (1998). Os repressores se infiltravam em movimentos sociais, sindicatos e grupos que lutavam pela anistia. Era uma tática que facilitava o controle e perseguição daqueles que lutavam por dias melhores.

A luta dos movimentos de direitos humanos, além dos políticos, trabalha-dores e estudantes exilados buscava combater as práticas de repressão, buscando alguma alternativa pelo retorno da democracia. Nesse sentido, a vigência dos direitos

4 MENDONçA, Eliana Rezende Furtado de. Documentação da Polícia Política do Rio de Janeiro. In Estudos His-tóricos. Rio de Janeiro: FG V vol. 12, n. 22, 1998. Disponível em: http://www.cpdoc.fgv.br/revista/arq/253.pdf Acesso em 18.11.2005.5 Ibidem.

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humanos é algo relevante na legitimação os regimes políticos, sobretudo os demo-cráticos do século XX e, em sentido contrário sua violação deslegitima e coloca em crise o discurso das democracias formais.

Segundo Duhalde, La caída de la Dictadura fue el resultado de su fracaso absoluto en crear condiciones para perpetuar su permanencia, pero também de haber cumplido su objetivo fundamental; hacer tabla rasa con la con-testatación social al plan del capital monopólico y de la aristocracia financiera.6

Os grupos de contestação que atuavam no exterior, sobretudo na Argentina, sofriam dois vieses: de um lado a repressão que ocorria antes mesmo do golpe mili-tar argentino, articulado pelos grupos paramilitares, se destacando a chamada Triple A, Alianza Anti-comunista Argentina – AAA, criada no final do ano de 1973. De outro, houve a perseguição da ditadura brasileira, com auxílio dos sistemas de informação muito bem organizados e articulados (reconhecidos inclusive pelos países vizinhos e europeus) entre si e com de outros países. Segundo o documento número 360, do ano de 1975 do CIEX:

Em 03 de setembro de 1975, em Lisboa, um oficial da marinha portu-guesa [...] declarou que, em Portugal, mais que a “CIA”, é o SNI que atua. Disse calcular que, entre agentes, turistas-informantes, funcioná-rios do Banco do Brasil e da Embaixada, o SNI conta com uma rede de uns 500 elementos.7

Flávio Koutzii, exilado brasileiro, perseguido pelas ditaduras militares brasi-leira e argentina, fora preso com mais duas outras pessoas gaúchas. Ele foi detido na Argentina em 1975 e libertado anos mais tarde. Flávio Tavares e Flávia Schilling fo-ram presos pela ditadura uruguaia. Somente com a ampla mobilização da sociedade brasileira pela redemocratização do país, através da luta sindical das greves do ABC, das atividades dos intelectuais, da agitação estudantil e, especificamente, o trabalho dos comitês brasileiros pela anistia, os CBA’s, enfim, resistindo, foi possível a anistia a partir de 1979, na qual Koutzii foi liberado dos cárceres argentinos após 4 anos de prisão. Segundo o próprio Flávio Koutzii,

Saí do Brasil em 1970, quando a atividade dos grupos políticos de esquerda se tornou cada vez mais precária pelo recrudescimento da repressão desde a edição do AI-5. Passei pelo Chile, onde acompa-nhei a primeira fase do Governo de Allende, e me transferi para a

6 DUHALDE, Eduardo Luis. El Estado Terrorista Argentino. Quince años después, uma mirada crítica. Buenos Aires: Ed. Universitaria de Buenos Aires, 19997 Centro de Informações do Exterior (CIEX). Informes nº 001 a 336. v.23. Ano: 1975. Arquivo do Ministério das Relações Exteriores (AMRE), nº 360, vol. 23, 23/09/75.

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Argentina, onde retomei minha militância. Fui seqüestrado e, depois, formalmente processado e preso por atividades políticas um pouco antes do Golpe Militar do general Videla.8

Existe também o caso de uma pessoa de nacionalidade brasileira, a qual iremos chama-la pelas iniciais LM9, que saiu do Brasil em um período no qual a per-seguição estava no seu auge de sua rigidez, isto é, no início da década de 70, e que para ela estava praticamente impossível continuar no país. Quando militantes nor-destinos do partido no qual militava, o PC do B, começaram a “cair”, por conta da repressão, “feito jogo de dominó” (LM), chegando até o Rio de Janeiro e São Paulo, ela resolveu sair, junto com outros companheiros, migrando para um país vizinho.

Nós saímos basicamente porque se nós ficássemos aqui estávamos mortos, mas também para entrar, voltar a ter contato com o parti-do... porque (...) todo esse período, acho que de 71 a 72 primeiro ti-nha umas 700 pessoas do partido no Brasil. As quedas começaram no Nordeste, foi assim tipo um jogo de dominó, foi caindo, caindo, caindo...até chegar no Rio de Janeiro, São Paulo (...) do movimento estudantil10

Para “LM” foi muito ruim, teve gente que morreu e também porque ela e outros militantes perderam o contato com a direção do PC do B. Nesse momento, resolve ir a Argentina: “Nessa ocasião nós fomos pra Argentina para retomar o con-tato. A gente queria ir para o Chile, mas não deu né, por causa do Golpe”.11

A Argentina se tornou atrativa a todos que estavam fugindo da repressão, buscando o auto-exílio para continuar lutando contra não só a ditadura brasileira, mas como todas aquelas existentes no chamado Cone Sul, em especial ao golpe militar no governo socialista de Salvador Allende. Este caminho foi o mais viável se-gundo ela, pois lá existia liberdade democrática e existiam pessoas de todos os países, a fim de encontrar parceiros para fortalecer a militância (LM, 2006).

Quando LM chegou na Argentina, achou o país um “paraíso terrestre. Nunca tinha visto tanta manifestação na minha vida”12 , o que demonstrava que, inicialmen-te, sua impressão sobre este país era de um reduto seguro para a militância. Lá, mui-tos comitês de solidariedade e de luta anti-imperialista estavam sendo formados por militantes, intelectuais e políticos argentinos e estrangeiros. Ela se ligou ao COSOL-PLA – Comité de Solidariedad a los Pueblos Latino-Americanos. Esse comitê era observado pelos repressores brasileiros, como é possível perceber na citação abaixo:

8 KOUTZII, Flávio. A luta contra a ditadura. Porto Alegre, RS. Entrevista da TVE. (DVD) Setembro/ 2003 – Acervo de luta contra a ditadura.9 A pedido da própria personagem, que deseja manter sua identidade no anonimato.10 LM, 2006. Entrevista concedida ao autor no dia 07 de abril de 2006. Gravação digital.11 Ibidem.12 Ibidem

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O “comitê” de Solidariedade latinoamericano”, do qual fez parte Francisco Julião, em representação do Brasil, omitiu uma declaração através da qual formula as razões que sustentam suas atividades, bem como seus propósitos.13

Francisco Julião era advogado e ajudou a fundar as Ligas Camponesas, que seria um embrião do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra. Ele era militante do PSB – Partido Socialista Brasileiro e foi eleito deputado. Com o golpe militar de 1964, Francisco Julião teve seus direitos políticos cassados. Partiu para o exílio em dezembro de 1965, indo viver no México. Com a anistia, em 1979, voltou ao Brasil e se filiou ao partido que também pertencia seu amigo Leonel Brizola, o PDT – Parti-do Democrático Trabalhista. Brizola foi uma das personalidades políticas que atuou, de alguma forma, pela anistia no Brasil.

Além do COSOLPLA, havia outros, tais como o Movimento Argentino Anti-imperialista de Solidariedade Latino-Americano – MAASLA (CIEX nº 05, vol. 23, 1975), que, assim como outros grupos e comitês, participava de manifestações se-manais com 200 mil pessoas nas ruas contra o recente golpe no Chile e “selvagerias” (LM, 2006) que estavam sendo cometidas pelo golpe militar chileno. Por algum tem-po, os argentinos e latino-americanos acreditavam que seria revertido esse quadro, o que não se confirmou.

Muitos também achavam que jamais ocorreria algo parecido na Argentina, mesmo sabendo do recente histórico argentino, repleto de golpes e intervenções militares. Por esse motivo a Argentina se tornou destino certo de muitos brasileiros que sofriam a dupla repressão em outros países (a do país onde se encontrava o exilado e do Brasil), pois acreditavam que lá teria segurança para militar, sobretudo com o retorno de Juan Perón ao poder. Havia um otimismo muito grande e, para “LM”, o que ela viu na Argentina não se via no Brasil: pessoas discutindo política abertamente, sem medo, na maior liberdade. Eram bem progressistas e todos tinham posicionamento político, e não eram apenas estudantes, como no Brasil (LM, 2006).

Havia também na Argentina, no Uruguai e no Cone Sul algo que para “LM” era interessante: a idéia de “Pátria Grande” do povo da América Latina, de solidarie-dade contra a exploração e contra o domínio dos Estados Unidos.

Toda essa união e percepção de uma Argentina razoavelmente boa para se morar foi mudando com a criação da chamada Triple A, (criada por Lopez Rega, braço direito de Juan e Isabelita Perón, conhecido também como “El Brujo”) e principalmente após a morte de Juan Perón, aquela passava a agir clandestinamente,

13 Centro de Informações do Exterior (CIEX). Informes nº 001 a 336. v.23. Ano: 1975. Arquivo do Ministério das Relações Exteriores (AMRE), nº 363, vol. 23, 23/09/75.

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porém, com apoio da Policia Federal da Argentina e simpatia dos militares. Come-çou a matar os simpatizantes das lideranças de oposição aos regimes militares de forma acintosa, cruel e violenta: “Eles não pegavam as lideranças, eles pegavam os apoios das lideranças (...) e deixavam as lideranças isoladas”, de forma que “jogava uma bomba e matava a família inteira” (LM, 2006). LM começou a ver a situação que ela vivia no Brasil, “de você não saber se vai acordar no mesmo dia, na mesma cama, no mesmo lugar, não sabe se vai ser preso... as coisas começam a ficar compli-cadas, começo a ser perseguida” (LM, 2006). Enfim, chegou um momento em que se perseguiu e reprimiu “a tudo a que se cheirasse esquerda”, isto é, atrizes e atores, intelectuais e políticos que apenas apoiassem algum grupo de exilados combativos, ou que tivessem posicionamento mais progressista tiveram que se exilar da Argenti-na, como é o caso do ex-presidente Héctor Cámpora.

Leonel Brizola, que se instalou no Uruguai após o golpe de 1964, era visto como um grande líder capaz de organizar os primeiros comitês pró-anistia, no ano de 1975.

O grupo de políticos informou BRIZOLA de que a ala dos “autênti-cos” do MDB deseja promover em todo o Brasil a formação de comi-tês pró-anistia, como uma forma de mobilizar o povo logo nos pri-meiros meses de 1975. Segundo essas fontes é necessário aproveitar o resultado eleitoral, utilizando-o como ponto de apoio para lançar um movimento de “frente anti-imperialista” de natureza democrática di-rigida tanto a militares e estudantes quanto a camponeses e elementos da pequena burguesia, como fato determinante da luta pelo estabele-cimento das liberdades democráticas.Esse grupo lembrou ainda a BRIZOLA que ele tinha responsabilida-de no processo político brasileiro e que não podia omitir-se quanto a assumir eventualmente uma atitude, principalmente agora com o respaldo dos resultados eleitorais.Segundo o ponto de vista de determinadas áreas do MDB do sul, BRI-ZOLA poderia desempenhar agora uma importante tarefa: empreen-der uma pregação cívica pelos países do terceiro Mundo para sensi-bilizar essas áreas quanto ao problema da anistia no Brasil. Isto seria particularmente válido em relação aos países árabes e africanos, onde o Brasil deseja desenvolver grandes interesses de natureza econômica. A viagem de Brizola caso fosse efetivada seria uma iniciativa a ser desenvolvida em coordenação com a fundação do Comitê Pró-Anistia dentro do Brasil, enquanto que nos países visitados por BRIZOLA seriam fundados grupos de pessoas que se comprometeriam a lutar pelo restabelecimento dos direitos democráticos no Brasil.Esses setores do MDB acreditam que a campanha em favor da anistia política, no Brasil, deve ser implantada com uma cobertura interna-cional, inclusive nos Estados Unidos, uma vez que a medida conteria

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o governo quanto a assumir uma atitude de repressão pela própria ne-cessidade de preservar sua imagem no exterior. O primeiro país a ser visitado por BRIZOLA nessa campanha seria Portugal onde, acredita o MDB, existiriam as melhores condições para sensibilizar a opinião pública tanto brasileira quanto portuguesa.14

As investidas de políticos brasileiros15, na busca de lideranças, sobretudo a de Leonel Brizola, que se encontrava exilado, persistiram, pois acreditavam na luta por dias melhores, e alguns exilados serviam de exemplo:

Esses políticos disseram a Barlesi que a liderança de LEONEL BRI-ZOLA no rio Grande do Sul continuava intacta e que se ele se can-didatasse agora teria mais votos ainda do que quando se lançou a deputado pela Guanabara. Afirmaram ainda que decidiram viajar a Montevidéu após consultas com seu setor do MDB, presidido por Aldo Fagundes, pois acreditavam que ante a carência de lideranças de massa no Brasil Brizola era um dos poucos homens de 1964 que ainda retinha intacta sua imagem política como “anti-imperialista”. Vinham assim exigir da parte de Brizola uma postura política frente aos resul-tados das eleições no Brasil.16

Além de políticos, intelectuais sofreram algum tipo de perseguição por parte dos sistemas de informação. Foi o caso, por exemplo, de Luiz Alberto Moniz Ban-deira, renomado professor e intelectual brasileiro crítico da atuação norte-americana na América Latina. Sua trajetória, inclusive sua ida ao Uruguai e para Buenos Aires foram relatadas em documentos do CIEX17, sobretudo por ele ter tido relações de amizade e afinidade política com Leonel Brizola.

Segundo Luiz Alberto Moniz Bandeira (2009), os Estados Unidos tiveram forte influência sobre os golpes ocorridos na América do Sul, inclusive no Brasil. Suas ideias refletem, portanto, um posicionamento político oposto aos golpistas:

O Brasil está situado na área de influência direta dos Estados Unidos, que patrocinaram o golpe-militar em 1964, a fim de desvirtuar o senti-do do seu desenvolvimento nacional. Mediante esses golpes militares na América Latina, nos anos 60 e 70, os Estados Unidos trataram de promover praticamente as mesmas diretrizes neoliberais, aplicadas nos anos 90 pelos governos democráticos. No Brasil, o general Caste-

14 Centro de Informações do Exterior (CIEX). Informes nº 001 a 336. v.23. Ano: 1975. Arquivo do Ministério das Relações Exteriores (AMRE) nº 50, vol. 23, 14/02/75.15 Jairo Brum, Darci Coberlini, Calixto Letti, Fossati [...] estiveram também com o brasileiro Barlesi que se encontra semi-asilado no Uruguai. (CIEX nº 52, vol. 23, 14/02/75)16 Centro de Informações do Exterior (CIEX). Informes nº 001 a 336. v.23. Ano: 1975. Arquivo do Ministério das Relações Exteriores (AMRE), nº 52, vol. 23, 14/02/75.17 Centro de Informações do Exterior (CIEX). Informes nº 001 a 336. v.23. Ano: 1975. Arquivo do Ministério das Relações Exteriores (AMRE), nº 281, vol. 23, 03/07/75.

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lo Branco começou a adotar tais medidas. Houve reação do Exército ele, embora condenasse o estatismo por criar atritos com os Estados Unidos, teve de fazer maciços investimentos públicos, a fim de tirar o País da recessão. E só quando o Brasil voltou a desenvolver-se em ritmo acelerado, a partir de 1968-1969, os capitais estrangeiros reco-meçaram a afluir para a sua economia.18

No dia 03 de julho de 1975 foi emitido um documento do CIEX, número 281 que relatava as viagens feitas por Luiz Alberto Moniz Bandeira (tratado como “elemento” no documento), sua aproximação com João Goulart e Leonel Brizola e também seu pertencimento ao partido socialista brasileiro. Para os militares que investigavam os passos de Moniz Bandeira, era importante saber a respeito de suas conversas com militantes de esquerda, entre eles os peronistas, para estabelecer e manter contatos:

Durante cinco dias, a partir de 22 de maio de 1975, esteve em Monte-vidéu o elemento BANDEIRA MONIZ que esteve asilado no Uru-guai em princípios da revolução de 1964.Ao que se sabe, BANDEIRA MONIZ era jornalista do “Correio da Manhã” e pertencia ao PC do Brasil. Em Montevidéu manteve conta-tos com Carlos Olavo da Cunha, IVO MAGALHAES, EDMUNDO MONIZ e o ex-coronel DAGOBERTO RODRIGUES.BANDEIRA MONIZ dia 30 de maio de 1975 seguiu viagem para Buenos Aires onde esperava estabelecer outros contatos com bra-sileiros e peronistas de esquerda. Segundo informações do próprio BANDEIRA MONIZ, ele saiu do Brasil, onde diz não ter problemas na atualidade.19

O jornalista gaúcho Flávio Tavares foi também uma pessoa muito visada pe-los repressores. Sua atuação era vinculada a guerrilha e, portanto, era considerado um “subversivo” perigoso.

FLAVIO TAVARES está temporariamente Na Argentina, com a co-bertura de jornalista do jornal “Excelsior”, do México, e viajando com passaporte mexicano.FLAVIO mantém ligações com setores de superfície dos Montone-ros e das FAP (forças armadas peronistas), hoje integradas ao ERP. FLAVIO TAVARES vive, normalmente, no México, mas tem estado viajando pela América Latina e desenvolvendo contatos no Equador, Peru e Venezuela com setores da Esquerda pró-luta armada. Mantém também contatos com os cubanos de Buenos Aires e quadros da ALN que viajam a Buenos Aires.

18 BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz (entrevista). A Alca é um projeto político. Disponível em: http://www.espacoacademi-co.com.br. Acesso em: 08 de agosto de 2009.19 Centro de Informações do Exterior (CIEX). Informes nº 001 a 336. v.23. Ano: 1975. Arquivo do Ministério das Relações Exteriores (AMRE), nº 281, vol. 23, 03/07/75.

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TAVARES se encontrou posteriormente com o economista e teórico trotskista brasileiro RUI MAURO MARINI que também se encontra asilado no México, mas estava em Buenos Aires por uma semana, de-vendo seguir posteriormente para Paris, onde manteria contatos com dirigentes europeus da IV Internacional trotskista.20

Rui Mauro Marini (citado no documento anterior) foi um importante cientista social e jornalista, com ampla produção acadêmica. Ele teve que se asilar no México, mas antes foi forçado a sair do Brasil devido a circunstâncias genuinamente brasi-leiras, ou seja, a repressão no Brasil o perseguiu, prendeu e fez pressão sobre ele, amigos e a própria família. Em suas memórias, Marini diz:

Minha estada em Brasília foi cortada bruscamente pelo golpe de 1964. Naquele momento, eu me encontrava no Rio, onde -sabedor de que era procurado em Brasília- permaneci, o que não impediu que eu fos-se sumariamente demitido, com outros doze professores, na primeira medida tomada pela ditadura contra a universidade. Depois de escapar de ser preso, em maio, caí finalmente, em julho, em mãos do CENI-MAR. Em setembro, beneficiado por habeas corpus do STF (que a Justiça militar negara, anteriormente), fui sequestrado pela Marinha e entregue ao Exército, em Brasília, por conta de outro processo que se me movia por lá. Repeti o itinerário Justiça militar-STF e obtive, em dezembro, novo habeas corpus, que desta vez foi acatado. Embora por pouco tempo: não houvesse eu deixado a cidade, discretamente, horas depois da minha libertação, e teria sido preso novamente. Após um período de clandestinidade de quase três meses, quando a pressão policial-militar sobre meus companheiros e minha família tornou-se pesada, a ponto de forçar um dos meus irmãos a passar também à clandestinidade, asilei-me na Embaixada do México, no Rio, e viajei para esse país, um mês depois.21

Essa repressão clandestina, porém atuante e violenta, continuou e ainda mais forte com o golpe militar na Argentina em 1976. Era a consequência da insatisfação da direita conservadora representada pelas elites burguesas da Argentina, as quais não estavam mais aturando esse processo democrático e de crescimento de ativida-des e manifestações políticas populares.

Há vários exilados, segundo os documentos do CIEX, que sofreram algum tipo de perseguição e que buscavam, de alguma forma, organizar os comitês de anistia contra as ditaduras de segurança nacional, sobretudo a brasileira. O asilado Dagoberto Rodrigues esteve na Argentina com intuito de encontrar outros brasilei-

20 Centro de Informações do Exterior (CIEX). Informes nº 001 a 336. v.23. Ano: 1975. Arquivo do Ministério das Relações Exteriores (AMRE), nº 283, vol. 23, 03/07/75.21 MARINI, Ruy Mauro. Memória (auto biografia). Disponível em: http://www.marini-escritos.unam.mx. Acesso em: 08 de Agosto de 2009.

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ros e também membros da embaixada cubana, para articular supostas ações “conspi-rativas” contra o regime brasileiro. Vale ressaltar que nesse caso, a data de obtenção do informe foi emitido no dia 17 de março de 1976, poucos dias antes do Golpe da Junta Militar na Argentina:

O asilado brasileiro DAGOBERTO RODRIGUES esteve em Bue-nos Aires durante mais de vinte dias, ocasião em que manteve contato com setores conspirativos brasileiros (grifo meu) e com representante da Embaixada Cubana naquela capital. 22

Para o CIEX, Dagoberto Rodrigues já tencionava radicar-se na Argentina para participar de um esquema internacional de trabalho conspiratório.23

Havia ainda o monitoramento daqueles brasileiros que estavam também sob mira do governo argentino, agora já sob égide da Junta Militar liderada por Jorge Rafael Videla. Em um informe do dia 30 de Junho de 1976, o CIEX relata nome de 15 brasileiros expulsos que se encontravam detidos e a disposição do Poder Execu-tivo acusados de desenvolver atividades atentatórias contra a segurança do Estado.24

O CIEX publicou um extenso artigo de 11 páginas veiculado pela agência de noticias “Prensa Argentina (PA)”, chamado “Os instrumentos da conspiração comunista” no qual relata a preocupação de que havia uma grande conspiração in-ternacional, cuja intenção era a penetração comunista no ocidente e na Argentina. Eram organizações de fachada tais como aquelas que defendem os direitos huma-nos, a democracia, as liberdades públicas pós-45. Na verdade, tinham como intuito aniquilar os “Estados democráticos”, com delegações em quase todo o mundo livre, inclusive na Argentina.25 Vale ressaltar que Flavio Tavares, Ruy Marini e Dagoberto Rodrigues tiveram a participação nesse jornal.

Essa preocupação fez o governo ditatorial argentino publicar a lei, através do Boletim Oficial da Argentina, no qual modificava o Código Penal, acrescentando pena de morte, por fuzilamento, para atos subversivos. Essa foi uma das decisões no âmbito institucional da Argentina mais radical e violenta, criticando que no Brasil o “combate a subversivos” era feito de forma desordenada e sem organização.26

Diante desse impasse, no qual o governo militar da Argentina não controla oficialmente as mortes e a violência aos opositores do regime de ditadura militar, até

22 Centro de Informações do Exterior (CIEX). Informes nº 001 a 522. v.24. Ano: 1976. Arquivo do Ministério das Relações Exteriores (AMRE), nº 125, vol. 24, 30/04/76;23 Idem.24 Idem.25 Centro de Informações do Exterior (CIEX). Informes nº 001 a 522. v.24. Ano: 1976. Arquivo do Ministério das Relações Exteriores (AMRE), nº 172, vol. 24, 11/06/7626 Ver CIEX nº 232, nº234 e nº 235, vol 23, 1975.

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os Estados Unidos, através do Congresso norte-americano começou a ficar descon-tente com as violações dos direitos humanos. De fato, o embaixador dos EUA na Argentina, Robert Hill, alertou o presidente Videla sobre as conseqüências extrema-mente negativas no caso do Congresso norte-americano condenar a Argentina, com forte impacto interno, haja visto que caso ocorresse a medida haveria suspensão no apoio financeiro que os Estados Unidos ofereciam aos argentinos. Segundo os arquivos desclassificados da CIA, o centro de inteligência estadunidense,

As predicted by the State Department, the military Junta instituted widespread and vicious repression following the coup. Not only Ar-gentines were targeted, but also citizens from Chile, Paraguay, Bolivia and Uruguay who had taken up political exile in Argentina to escape repression in their home nations. As part of Operation Condor-a ne-twork of Southern Cone secret police services collaborating to elimi-nate opponents of their regimes--the Argentine military carried out numerous operations against foreigners trapped in Buenos Aires after the coup. 27

É possível perceber, portanto, que a repressão argentina violou de forma abrupta, sistemática e descontrolada os direitos humanos. O Brasil, em contrapar-tida, foi mais coeso em suas ações coercitivas e repressivas, ao ponto que soube propagandear suas ações como sendo algo benéfico a Nação e ainda mantendo uma imagem no Exterior mais preservada.

Na Argentina houve uma preocupação maior em rever a memória nacional, e buscar algum tipo de punição aos que cometeram crimes durante o Estado terroris-ta. No Brasil, a lei da Anistia igualou os que resistiam aos que usaram o Estado para cometer crimes e atos ilícitos da repressão, em nome de uma sociedade cristã e ca-pitalista, colocando-os no mesmo patamar de “crime político”. Como pode alguém ser anistiado de um crime sem nunca ser acusado deste? Tal medida tinha um único efeito, que corrobora com os pactos entre as elites, (prática decorrente e constante na história da República brasileira), em evitar qualquer julgamento e punição aos envolvidos.

O fato de reconhecer a morte de pessoas durante a ditadura civil-militar no Brasil28, não promoveu uma averiguação em relação aos culpados desses crimes, sobretudo na transferência de responsabilidade para provar as mortes e desapareci-mentos aos familiares.

27 NATIONAL SECURITY ARCHIVE. New declassified details on repression and U.S. support for military dic-tatorship. Disponivel em: http://www.gwu.edu/~nsarchiv/NSAEBB/NSAEBB185/index.htm Acesso em: 07 de Agosto de 2009.28 Em 1995 o governo brasileiro editou a lei da indenização, reconhecendo a morte de 136 pessoas.

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Hoje o Brasil tem uma lei sancionada através da Medida provisória, criada em 2001 pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, e ratificada por Luiz Inácio Lula da Silva que impõe prazos para o sigilo de documentos. Aqueles considerados ultra-secretos terão 50 anos de sigilo, podendo ser revogados para sempre; 30 anos, para os arquivos secretos; 20 anos para os documentos confidenciais e 10 anos para os documentos reservados. Todas essas ações demonstram que as dificuldades tanto para o julgamento quanto para investigação historiográfica desse período recente da história brasileira continuam a ser grandes, mas cabem aos movimentos pelos direitos humanos e grupos dos familiares e desaparecidos, professores e acadêmicos, militantes e sindicalistas, trabalhadores e estudantes, lutarem por melhores dias no que tange os estudos sobre a repressão durante a ditadura civil-militar no Brasil.

MEMóRIAS E A HISTóRIA DO TEMPO PRESENTE

A discussão sobre o uso das fontes orais e as memórias subterrâneas, as quais são pertencentes de culturas minoritárias e dominadas e que se opõem ao oficialismo, a memória nacional. Exponho as disputas pela memória entre a memória oficial (unifor-mizadora, opressora, reducionista) e as memórias subterrâneas, marginais e periféricas.

As grandes convulsões e cataclismos, as guerras e dramas coletivos não são lembrados constantemente na consciência social. Para Duhalde (1999), essas situ-ações afloram em momentos mais inesperados, porque recorrem internamente o corpo da nação. Segundo o autor, não há reconciliação, pois não há conciliação pos-sível enquanto seguir vigentes os antagonismos. Nesse sentido, é vital perceber que não se trata apenas de uma simples autopsia de um tempo passado, ao se recorrer às memórias sufocadas mas, assumir todas as suas implicações, desde o presente, com intuito de que a dignidade deve ser recuperada e reparada, para se tornar legado às próximas gerações.

Este é o grande desafio da memória. Alguns autores tais como Eduardo Duhalde (1999), e Josefina Cuesta (1993) são categóricos ao dizer que, ao assumir coletivamente a “culpa” e reparação, podemos resgatar o sentido ético de pertenci-mento a espécie humana.

Há ainda de se questionar, para alguns autores, tais como Beatriz Sarlo (2007), porque existe hoje tanta vontade para a desmemória. O aprofundamento das aná-lises dos crimes militares estaria indo de encontro com os interesses econômicos e financeiros, daqueles que se beneficiaram com o golpe de Estado nos países do Cone-Sul da América do Sul. Entre esses, se destacam, sobretudo, o Brasil e a Ar-gentina, os quais são os mesmos que controlaram e se beneficiaram do processo de redemocratização.

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Muito se avançou, a começar com o discurso anti-ditatorial, como uma linha de saída, uma tentativa de ruptura desde o início dos crimes praticados pela Junta Militar na Argentina e o terror psicológico da ditadura brasileira. As vozes de contes-tação ocorreram nestes países inicialmente, porém de forma minoritária, mas com o tempo tomou conta do tecido das relações sociais, o que pode ser chamado de “um espaço onde se constituiu um novo sujeito social de direito”29, que continuou crescendo, se expressando espontânea e massivamente no cenário de construção da democracia.

Esse sujeito social gira em torno do núcleo de legitimidade do sistema de-mocrático, os direitos humanos. A partir do reconhecimento institucional de tais direitos que é possível perceber as atitudes proporcionais dos poderes constituídos.

Todavia, a privação do caráter reparatório simbólico que implica em justiça e condenação dos culpados tem provocado rupturas, rachaduras na credibilidade do sistema democrático e o ceticismo manifestado cada vez mais sobre o papel do Estado como aplicador da lei. O Estado, portanto, não pode produzir um discurso que gere legitimidade sobre si mesmo.

Essa impunidade é o silêncio negador da memória coletiva. Segundo Duhalde (1999), na história da humanidade quase sempre e de forma trágica percebe-se que não é fácil cancelar o passado, quando seu cancelamento, ou esquecimento não vem acompanhado de justiça social.

Segundo Maurice Halbwachs (2004), existe o caráter destruidor, uniformiza-dor e opressor da memória coletiva nacional. Tais memórias que emergem do sub-terrâneo promovem subversão no silêncio e que pouco são percebidas, aflorando-se em momentos de crise. Há uma disputa pela memória, o conflito e competição entre memórias concorrentes é latente.

Os dominantes não podem, e não conseguem controlar até onde pode levar as reivindicações das memórias subalternas, as quais se formam e ganham espaço no mesmo tempo em que tabus criados pela memória oficial são negados. As lembran-ças dos períodos traumáticos, lembranças que esperam o momento propício para serem expressas veem a tona, no momento presente circunstanciado. Amargadas e reprimidas diante da doutrinação ideológica, essas lembranças ficam confinadas ao silêncio e muitas vezes são transmitidas de forma oral, de geração em geração, permanecendo-as vivas. A resistência, através dos silêncios sobre o passado e não esquecimento é a forma pelo qual uma sociedade civil que se sente amordaçada se opõe aos discursos oficiais (POLLAK, 1989).

29 DUHALDE, Eduardo Luis. El Estado Terrorista Argentino. Quince años después, uma mirada crítica. Buenos Aires: Ed. Universitaria de Buenos Aires, 1999, p.10.

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Há 30 anos, havia um processo em andamento que se constituiu o princípio da abertura política no Brasil, com a anistia geral do Governo do General João Baptista de Figueiredo. Nesse momento, foi possível que muitos brasileiros exilados, militantes políticos em outro país, tivessem a chance de fazer com que suas vozes silenciadas por um longo período fossem ouvidas novamente. Vários desses esta-vam engajados em comitês internacionais pela anistia no mundo todo, sobretudo na Europa.

Esse retorno ao Brasil coincidiu, ou melhor, fomentou que memórias do exí-lio, da repressão e da militância fossem divulgadas, trabalhadas e produzidas tam-bém, apesar de que algumas obras desse viés já tinham sido publicadas, algumas fora do país. Pensar as imbricações e relações que essas obras tiveram, dentro de um contexto de violência e de efeitos traumáticos, é ponto fulcral.

Nesse contexto é importante pensar na História do Tempo Presente ou His-tória Recente que elucida os temas tratados, que são latentes, se relacionam e coinci-dem com as fontes. Estas são vivas, podendo ser o testemunho oral da vítima como também pode ser algo sobre essa vítima: um relato, uma carta, uma imagem, uma reportagem de jornal, um documento oficial, filmes e fotos. Ambas as possibilida-des servem para o arcabouço do historiador que estuda a repressão nas Ditaduras civil-militares de Segurança Nacional no Cone Sul da América do Sul, através das memórias individuais e coletivas de muitos perseguidos que conseguiram sobreviver a repressão.

No entanto, a escrita da história do tempo presente foi, e ainda é um processo custoso e difícil, mesmo com o recente reconhecimento da comunidade acadêmica de sua legitimidade e de sua operacionalidade. Alguns de nossos pares continuam com a ideia de que é necessário um distanciamento temporal entre o contemporâ-neo e o historiador para se escrever a História. Apesar de parecer uma concepção retrógrada da história, essa visão positivista da historiografia, que deseja alçar uma pretensiosa “imparcialidade” dos fatos ainda impede, muitas vezes, que certos tra-balhos sigam adiante.

Para Jean Lacouture “os componentes irredutíveis da história imediata são a proximidade temporal da redação da obra em relação ao tema tratado e a proximidade material do autor em relação a crise estudada”30. Inclusive, vale destacar a interdisci-plinaridade, no entanto, sem confundir história e jornalismo, mas pensar a relação de historiadores e a imprensa. Essa história escrita e criada pelo historiador do tempo presente pretende dar a palavra aos silenciados, aos que foram atores dessa história.

30 LACOUTURE, Jean. A História Imediata. In: Le Goff, Jacques (org). A História Nova. São Paulo : Martins Fontes, 1990, p. 215.

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Para Josefina Cuesta, a história do tempo presente não é novidade. Tucidi-des, ao escrever “História da Guerra do Peloponeso” e L. Trotsky, que escreveu “História da Revolução Russa”31 revelam que o intuito de valorizar o trabalho do contemporâneo do tempo historiográfico tratado, não é somente para aspirar apenas a rapidez dos reflexos, nem privilegiar o oral e vilipendiar o argumento escrito, mas procura basear tanto em sua instantaneidade quanto na sua relação afetiva entre o autor e o objeto de pesquisa.

Ou seja, o historiador do tempo presente percebe a incapacidade quanto a conclusão do período que estuda e que isso pode ser uma virtude em seu trabalho. Conhecer o desfecho de um combate talvez leve a subestimar o rigor e o dinamismo do vencido.

Ligado ao seu tempo e cultura, independente de estar tratando de assuntos contemporâneos ou não, o historiador exprime esse feixe de condicionamento na orientação da sua pesquisa e na interpretação que se faz, ou seja, o historiador do tempo presente permanece honesto ao manifestar suas opções.

Em busca de uma definição para a história do tempo presente, Lacouture considera que “o imediatista ver-se-ia tentado a sugerir que a disciplina que ele se esforça por praticar não tem precisamente por objetos essas mudanças, menos ainda o ‘mudado’ mas sim ‘o mudar’”32. A reflexão sobre o domínio da história do tempo presente leva a um embate com a incerteza. Não apenas porque nunca se conhece o fim da história, e porque o trabalho com a incerteza trafega no próprio coração do porvir humano. O estudo do tempo presente deve levar em conta o fato de que o observador é ao mesmo tempo um contemporâneo e até um ator. Essa subjeti-vidade é necessária a toda curiosidade, mesmo a científica. O papel do historiador, sobretudo o imediatista é ativo, dinâmico, interativo. A construção do objeto está intimamente ligada a narrativa histórica.

É necessário destacar a criação dos primeiros Comitês Brasileiros de Anistia em 1978, apesar que as lutas travadas em prol da Anistia foram criadas no momento em que a repressão se intensificou com a edição do Ato Institucional nº 5, em 1968. Os comitês foram idealizados por familiares dos presos políticos, o movimento ope-rário, o estudantil e alguns parlamentares no Congresso Nacional. Foram organiza-das manifestações públicas, sempre com forte repressão.

Portanto, é necessário perceber as ações dos brasileiros em prol da anistia e o viés repressor do governo brasileiro, ao investigar, espionar e perseguir os exilados

31 Essa obra foi escrita vários anos depois da sequência dos fatos estudados, e apresenta o extraordinário interesse não apenas visto e revisto, mas vivido e criado. 32 Ibidem, p. 230-231.

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brasileiros, sobretudo da Argentina. Jornalistas, advogados, professores com ampla pesquisa e produção acadêmica foram alvos certeiros da repressão, por significarem, para a Ditadura, lideranças natas que poderiam modificar o status quo do sistema autoritário estabelecido.

Esse trabalho se propôs a discutir e apresentar algumas maneiras de perse-guição e repressão aos brasileiros no exterior, e como tais práticas produziram a apa-tia e impossibilidade de se questionar tais ações arbitrárias, por algum motivo que se remete ao medo e ao terror. Em um Estado no qual as garantias democráticas estão cortadas, mesmo que o discurso uniformizador estivesse em defesa da democracia, ficou inviável exercer o direito de cidadão de brasileiros que sofreram algum tipo de repressão. Contudo, o silêncio imposto não conseguiu provocar o esquecimento, apenas abafar as aspirações de pessoas que foram forçadas ao exílio ou se exilaram voluntariamente por discordar do regime ou por temor de algo de ruim lhes acon-tecesse. Tal esquecimento foi e continua a ser combatido através da abertura dos arquivos da repressão na América Latina, sobretudo no Paraguai, onde se encontra o chamado Arquivo do Terror. Além disso, há necessidade de salientar a importância das memórias subalternas, periféricas e fora do círculo daquilo que é considerado oficial, para o entendimento desse período nefasto recente de nossa sociedade. Os projetos do “Nunca Mais” não são revanchismos, como alguns querem crer, mas apenas a necessidade de reparação e justiça e, sobretudo, educar as gerações poste-riores ao regime contra-insurgente que se instaurou no Brasil e no Cone Sul entre as décadas de 1960 e 1980.

Tais incursões não esgotam as discussões a respeito do assunto. Aliás, o em-preendimento se configura como início de uma pesquisa que deve seguir adiante, com intuito de analisar o caráter repressivo do regime militar do Brasil, instaurado em 1964, dentro e fora do país. Nesse sentido, foi fundamental apresentar o cotidia-no de brasileiros que, mesmo afastados do seu país e de seus familiares, não se dis-tanciaram dos seus ideais e nem deixaram de contestar um regime militar que ultra-passou as fronteiras nacionais e alcançou os brasileiros exilados, através dos serviços de informações do Brasil. Foi importante também debruçar-se sobre as memórias daqueles que sofreram a repressão, por entender a importância delas na construção de um viés diferente sobre o tema, muitas vezes pouco lembrado e valorizado por alguns setores da sociedade brasileira atual. Com isso, levantar questões da memória oficial brasileira permite a elucidação do que foi esse momento conturbado na con-juntura política do nosso país – a formação dos partidos atuais, a atuação da geração passada na redemocratização e as consequências para os dias atuais.

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REFERêNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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FONTES UTILIZADAS

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LM, 2006. Entrevista concedida ao autor no dia 07 de abril de 2006. Gravação di-gital.NATIONAL SECURITY ARCHIVE. New declassified details on repression and U.S. support for military dictatorship. Disponivel em: http://www.gwu.edu. Acesso em: 07 de Agosto de 2009.

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esCrAvidão:trAbAlho, resistênCiA

e liberdAde

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A orgAnizAção do trAbAlho esCrAvo nAs ChArqueAdAs Pelotenses nA segundA

MetAde do séCulo xix

Bruno Stelmach Pessi*

Resumo: O artigo apresentado pretende analisar a organização do trabalho escravo nas char-queadas pelotenses na segunda metade do século XIX, procurando entender a manutenção da es-cravidão após o fim do tráfico trasnatlântico. Para tal, é essencial inserir-se no debate com a obra de Fernando Henrique Cardoso, Capitalismo e escravidão no Brasil Meridional. Através de estudo empírico, basicamente em inventários de charqueadores, mostramos que a lógica do trabalho escravo nas char-queadas buscava melhor organização da produção, contrariamente à irracionalidade e ao “regime do desperdício” proposta por Cardoso. Assim, a permanência do trabalho escravo nas charqueadas mes-mo após o fim do tráfico e o progressivo encarecimento dos cativos segue uma racionalidade que visava permitir condições para o seu melhor aproveitamento, o que proporcionaria a amortização ao longo de maior tempo da inversão inicial feita pelos charqueadores.

Palavras-chave: Escravidão – Charqueada – Organização do trabalho escravo.

Rever as concepções tradicionais de estudiosos do passado é um dos objetivos do estudo da História. Afinal de contas, a História é escrita e re-escrita, as interpretações sobre o passado são somadas umas às

outras, reforçando ou revisando os argumentos e construções em diversas áreas do conhecimento histórico. Quanto à escravidão, não é diferente. Através de uso de novas fontes e metodologias, diversos historiadores se propuseram e continuam se propondo a questionar a constituição tradicional da instituição escravista. O traba-lho aqui apresentado pretende debater com uma visão já clássica da escravidão no Rio Grande do Sul, a saber, a obra de Fernando Henrique Cardoso “Capitalismo e escravidão no Brasil Meridional”¹, especialmente no que se refere à racionalidade e produtividade do trabalho escravo nas charqueadas pelotenses. Para isso, partiremos

* Mestrando em História Social pela USP. Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).¹ CARDOSO, Fernando Henrique. Capitalismo e escravidão no Brasil Meridional. 2ª. Edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.

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de resultados obtidos em um estudo anterior² e procuraremos avançar – com a uti-lização de três registros de compra e venda de charqueadas - no entendimento da viabilidade ou não da escravidão nessa atividade tão importante para a aproximação econômica da província com os grandes centros do país.

Ao estudarmos os impactos do fim do tráfico na charqueada e na sua escra-varia, observamos que houve dificuldade na manutenção dos grandes plantéis exis-tentes no período anterior a 1850. Vimos que em 1870, os charqueadores investiam parcelas semelhantes às aplicadas em escravos no fim da década de 1840, mas que, por outro lado, o número médio de cativos sofreu um decréscimo de quase 50% entre os dois períodos (de 80 para 43 escravos por charqueador). Ou seja, se houve a possibilidade dos charqueadores manterem os investimentos voltados para aquisição de escravos o mesmo não ocorre quando observamos o tamanho dos plantéis. De fato, o que observamos foi que o valor dos plantéis teve um aumento considerável, impulsionado pela valorização do preço médio dos escravos ocorrida após 1850³. Também pudemos observar que essa dificuldade obrigou aos charqueadores a racio-nalizarem o investimento em escravos, adquirindo mais escravos do sexo masculino.

Se houve uma dificuldade tão grande de manutenção dos grandes plantéis, como explicar a permanência da escravidão nas charqueadas depois de 1850? Robert Slenes4 propôs a mesma pergunta ao observar a expansão dos cafezais e das compras de escravos pelos fazendeiros do Vale do Paraíba na segunda metade do século XIX mesmo frente a uma realidade que, desde o estudo de Stanley Stein5, parecia de deca-dência após os anos 1860 com o envelhecimento dos cafezais, falta de terras virgens, encarecimento dos escravos e dos custos de manutenção dos mesmos, redução de compra de cativos e venda dos que existiam na região para novas áreas cafeeiras. Inspirados no trabalho do citado autor, nos perguntamos: será que a insistência dos charqueadores na manutenção do trabalho escravo era fruto da permanência de uma mentalidade pré-capitalista, do apego a valores patriarcais? Ou o trabalho escravo poderia ser rentável mesmo com o encarecimento do preço dos cativos?

***

² PESSI, Bruno Stelmach. O impacto do fim do tráfico na escravaria das charqueadas pelotenses (C. 1846-C. 1874). (Monogra-fia de Conclusão de Curso de Graduação). Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2008.³ Ibidem, p. 28 et. seq.4 SLENES, Robert. Grandeza ou decadência? O mercado de escravos e a economia cafeeira da província do Rio de Janeiro, 1850-1888. In: DA COSTA, Iraci del Nero (Org.). Brasil: História econômica e demográfica. São Paulo: Instituto de Pesquisas Econômicas, 1986, pp.103-155.5 STEIN, Stanley J. Vassouras: a Brazilian Coffee Coutry, 1850-1900. Cambridge, Massachusetts, 1957.

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Antes de entrarmos no debate central deste artigo, é necessário observar a importância do trabalho de Fernando Henrique Cardoso para a compreensão da escravidão no Rio Grande do Sul, as suas inovações e os argumentos com os quais procuraremos dialogar. Capitalismo e escravidão no Brasil Meridional, publicado inicial-mente em 1962, foi um marco para a compreensão da escravidão no Rio Grande do Sul. É através desse estudo que a sociedade gaúcha passa a ser compreendida como essencialmente escravista, contrariamente à dita democracia racial postulada por au-tores como o General Borges Fortes, Walter Spalding e Moysés Vellinho. A perspec-tiva desses autores, que dominava a historiografia sobre o tema no Rio Grande do Sul, afirmava que os escravos tiveram um papel marginal na construção da sociedade e economia da região e mesmo que o tratamento concedido a eles pelos escravistas era bem generoso, tratando-se uns aos outros como iguais.

É a partir de Fernando Henrique Cardoso que a sociedade gaúcha passa a ser encarada como potencialmente escravista, onde a escravidão negra teve participa-ção fundamental para a economia, principalmente na região charqueadora. O autor questionou a imagem do Rio Grande do Sul formado essencialmente por uma eco-nomia de criação de gado nas estâncias, atribuindo a formação da Província a uma economia agropastoril, sendo a lavoura, atividade complementar à estância. Nessas lavouras e estâncias, a mão-de-obra utilizada era a escrava. Apesar disso, “não deve ter havido concentração de escravos nas mãos de poucos agricultores poderosos”6 por não haver um tipo de atividade compensadora para a importação de mão-de-obra. Foi com a lavoura de trigo que a acumulação de capital possibilitou a aquisição de escravos em larga escala e a articulação da Província com outras áreas coloniais: “logo que a agricultura proporcionou-os [recursos monetários para aquisição de mão de obra], o problema da mão-de-obra pôde ser resolvido pela importação de escravos”7. Mas o cultivo do trigo, para Cardoso, não explica a grande população de escravos no Rio Grande do Sul, que seria conseqüência da expansão da estância e da produção do charque8.

Quanto à produção do charque, o autor abordou o trabalho escravo nas char-queadas em contraposição ao trabalho livre nos saladeros platinos e a concorrência implicada por essa empresa capitalista à produção escravista no sul do Brasil. Segun-do o autor, o trabalho escravo nas charqueadas do Rio Grande do Sul comparativa-mente com a produção do charque no Uruguai onde o trabalho era livre, apresentava

6 CARDOSO, Op. cit, p. 54.7 Ibidem., p. 59.8 Como vimos anteriormente, essa imagem da charqueada como única atividade compensadora para a importação de mão-de-obra africana já foi refutada por estudos mais recentes que demonstram a importância da escravidão em outras atividades que não a charqueadora. Ver nota de número 4.

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menor produtividade e um custo mais elevado de produção9. A economia escravo-crata imporia certos limites à racionalização da produção que, em uma produção sazonal como a do charque, onde o trabalho dos escravos teria que ser ocupado em alguma forma de produção para mantê-los ativos e proporcionar uma “ilusão do tra-balho”, quando enfrentadas com a concorrência de uma produção nos moldes capi-talistas levariam ao fracasso inerente da produção escravocrata. Segundo o autor, de forma a ocupar os escravos ao máximo, “o senhor de escravos interessava-se antes por ocupar sempre o escravo do que por ocupá-lo melhor, ou mais produtivamente” 10, estabelecendo dessa forma um “regime do desperdício”.

Dessa forma, alguns trabalhos eram executados tardiamente, para serem executados por todos os escravos. Fazendo-os trabalhar em todos os setores do processo produtivo, não haveria momento em que os cativos não estivessem dedi-cados ao trabalho, fosse ele no abate do gado, na secagem do couro, no embarque dos produtos, ou em outras atividades, acarretando no desperdício de tempo em relação ao processo produtivo, mas fazendo com que o trabalho do escravo fosse despendido ao longo de todo o processo. Assim, não haveria incentivo à divisão e organização do trabalho, já que tais melhoramentos técnicos implicariam na redu-ção do trabalho e na possibilidade de não ocupação do escravo permanentemente, criando momentos de ociosidade, seja nos meses fora do calendário de produção do charque, seja durante o processo produtivo. É dessa forma que, segundo Fernando Henrique Cardoso, a escravidão não seria compatível com a charqueada e que seria a principal responsável pela sua decadência.

Contrariamente ao postulado por Fernando Henrique Cardoso e outros au-tores, de que a escravidão seria um obstáculo insuperável para o desenvolvimento do capitalismo e um sistema produtivo destinado ao fracasso, já que o regime es-cravocrata impediria a divisão técnica do trabalho e a especialização profissional, Berenice Corsetti afirma que havia, sim, certo grau de divisão técnica e especializa-ção nas charqueadas pelotenses. Segundo a autora, “desde as primeiras informações apresentadas sobre o tipo de organização do trabalho nas empresas charqueadoras sulinas, é possível perceber, sem dúvida, a existência de certo grau de divisão técnica do trabalho”11 . Apesar dessa afirmação, baseada em análise de inventários de char-queadores, a autora não avança na análise da organização do trabalho escravo nessas unidades produtivas.

9 CARDOSO, Op. cit, p. 172.10 Ibidem, p. 180.11 CORSETTI, Berenice. Estudo da charqueada escravista gaúcha no século XIX. (Dissertação de Mestrado). Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 1983, p. 136.

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Leonardo Monasterio12 também critica as afirmações de Fernando Henrique Cardoso quando afirma que a escravidão seria o fator responsável pela crise da char-queada no Rio Grande do Sul e o sucesso do charque platino. Utilizando-se de es-tudos sobre a produção do charque no Uruguai, Monasterio afirma que o trabalho livre não seria essencialmente mais rentável do que o trabalho escravo. Segundo o autor, os mesmos problemas de organização do trabalho, incentivo e controle eram enfrentados nos dois lados da fronteira. Através da aplicação de modelos econo-métricos, o autor procurou analisar a racionalidade da utilização e manutenção da escravidão na charqueada no que se refere à taxa de retorno esperada da aquisição de um escravo para utilização na charqueada e à rentabilidade da troca da mão-de-obra escrava para o trabalho livre. Segundo os resultados da aplicação de tais modelos, o trabalhado cativo representava para os charqueadores uma forma de, em uma situação de escassez de mão-de-obra, obter altas taxas de retorno, aproveitando-se durante muito tempo das condições favoráveis dos mercados e da exploração dos trabalhadores negros escravos. Finalmente, afirma o autor, a crise da charqueada não pode ser explicada pela utilização de mão-de-obra cativa, mas pelo boom do café nas províncias de São Paulo e Rio de Janeiro, que teria valorizado a taxa de câmbio real, reduzindo a competitividade de outros setores exportadores ou sujeitos à competi-ção internacional, como o charque. Assim, a crise aconteceu apesar da escravidão e não por causa dela.

***

Apesar de proporem a revisão de algumas afirmativas de Fernando Henri-que Cardoso a respeito da irracionalidade da produção charqueadora e afirmarem a possibilidade da melhor organização do trabalho escravo e da especialização dos trabalhadores, Corsetti e Monastério não sistematizam essa organização. Em um trabalho anterior13, ao nos centrarmos na análise dos impactos do fim do tráfico na escravaria das charqueadas pelotenses observamos uma racionalização do trabalho escravo na segunda metade do século XIX. Nesta pesquisa, analisamos 17 inventá-rios post-mortem de charqueadores, divididos em dois momentos, oito para os anos compreendidos entre 1846 e 1850 e sete para o período de 1870 a 1874. Com tal divisão, propomos analisar as transformações nas fortunas dos charqueadores, nos plantéis de escravos e na organização da charqueada.

12 MONASTERIO, Leonardo Monteiro. FHC errou? A economia da escravidão no Brasil Meridional. In: Anais do XXXI Encontro anual da Associação Nacional de Pós-Graduação em Economia, 2003. Disponível em: http://www.anpec.org.br. Acessado em: abril de 2010.13 PESSI, op. cit. Especialmente, Capítulo III: Os trabalhadores da charqueada – ofício e avaliação. pp. 52-66.

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Assim, vimos que entre 1846 e 1850, 224 dos 633 escravos listados nos inven-tários post-mortem dos charqueadores apresentam descrições sobre ofícios especia-lizados, o que representa 35% dos escravos arrolados no período. Entre 1870 e 1874, 330 dos 386 cativos apresentam descrições sobre ofícios, o que representa 85% dos plantéis. Esse aumento do número de escravos com conhecimento de algum ofício é impressionante e pode ter sido gerado por dois fatores: uma maior preocupação dos escrivães com a descrição dos escravos ou ao crescimento real do número de escra-vos especializados. Parece-nos mais convincente a segunda hipótese já que, entre as outras características dos escravos presentes nos inventários (idade e origem, prin-cipalmente) não houve um detalhamento mais significativo nas descrições. Assim, acreditamos que houve um processo de intensificação da organização do trabalho escravo nas charqueadas, o que implicou em um maior grau de especialização da escravaria.

Como mostra o gráfico 1, a intensificação da organização do trabalho escravo nas charqueadas, apresentada no aumento do número de escravos com especiali-zação, foi mais acentuada em algumas áreas do processo produtivo. Observamos que entre os cativos ligados ao serviço da charqueada, houve um grande aumento da quantidade de escravos especializados enquanto que entre os ofícios ligados ao serviço do campo e da lavoura e àqueles ligados aos serviços domésticos, houve uma redução significativa da participação dos escravos entre os dois períodos.

Gráfico 1: Participação dos escravos (%) nas categorias ocupacionais nos dois períodos

Fonte: APERS. Inventários post-mortem. Pelotas

Através do gráfico podemos ver que a maioria dos escravos especializados, em ambos períodos, está ligada ao serviço da charqueada. Porém, é preciso fazer

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uma distinção importante entre os trabalhadores que consideramos prestar o serviço da charqueada. Dentre todos os ofícios relativos à charqueada, há aqueles ligados diretamente à produção do charque, ao abate, esquartejamento do animal, retirada do couro e afins, e há os que estão ligados indiretamente, seja com o transporte ou com outros ofícios manuais. Diretamente ligados à produção do charque estão os escravos carneadores, curtidores e serventes, e indiretamente, os responsáveis pelo transporte (boleeiros, carroceiros e marinheiros), os oleiros dedicados à olaria e os escravos com ofícios manuais (carpinteiros, calafates, ferreiros, pedreiros).

Dessa forma, como pudemos ver, o trabalho ligado ao charque podia sim gerar certa divisão e especialização do trabalho. Ao contrário do afirmado por Fer-nando Henrique Cardoso14, baseado nas descrições de Louis Couty15, parece-nos que havia muito mais do que trabalhadores que se dedicassem somente às operações anteriores à salga, salgadores e trabalhadores encarregados pelos subprodutos do charque. Por mais que no processo que se estende do abate do animal até a produção do charque, couro e graxas, não nos parece haver uma subdivisão mais rigorosa do trabalho, a presença de escravos nos processos anteriores e posteriores ao citado aci-ma denota uma importante divisão do trabalho. Também, o caráter bruto do traba-lho escravo, necessário para que o escravo não se anteponha ao senhor, não parece encontrar apoio nos dados empíricos, visto a alta especialização de alguns escravos, como os calafates16, carpinteiros e ferreiros. A presença de tais escravos mostra que a lógica da charqueada escravista não era tão irracional como pretendida por Cardoso, mas procurava certa auto-suficiência, buscando minimizar as necessidades de recor-rer ao mercado, em relação a algumas atividades correlatas à produção do charque. Essa auto-suficiência se representa também no setor de transportes, com a impor-tante presença de escravos marinheiros, além dos boleeiros e carroceiros. Também nessa atividade, essencial para a produção charqueadora, a utilização de mão-de-obra escrava era importante, contando com a possibilidade de especialização dos traba-lhadores na execução de suas atividades. A preocupação com auto-suficiência da charqueada em matéria-prima e alimentos está demonstrada na importante partici-pação dos escravos ligados ao serviço do campo e da lavoura. Estão incluídos nesse grupo os campeiros, roceiros e os descritos como “serviço da lavoura”.

14 CARDOSO, op. cit., p. 178.15 A utilização dos relatos de Louis Couty é uma das grandes críticas feitas ao trabalho de Fernando Henrique Car-doso. Lembramos que Couty foi um naturalista francês que veio para o Brasil na década de 1870, viajando pelo Rio Grande do Sul entre o final da década de 1870 e o início da década de 1880. O uso indiscriminado dos seus relatos fez com que Cardoso generalizasse para todo o século XIX a imagem dos últimos anos da charqueada escravista, cometendo uma série de equívocos.16 Talvez os escravos calafates (ou “calafeteiros”, como também são apresentados na fonte) possam ser considerados como o exemplo máximo da especialização do trabalho nas charqueadas. Esses escravos eram, basicamente, carpin-teiros especializados na manutenção das embarcações.

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Por último, observamos que os escravos eram ocupados também em diversas atividades domésticas, principalmente as mulheres. De fato, somente encontramos mulheres com ofícios entre os escravos do serviço doméstico. Não nos deteremos de forma muito extensiva na análise desse grupo, mas parece-nos importante enu-merar os ofícios relacionados a essas atividades. Temos alguns escravos vinculados à costura de panos, os alfaiates, costureiras e tecedeiras, além de sapateiros, o que indica que também havia preocupação com o sustento da casa em relação ao forne-cimento de roupas para os escravos. O restante era composto por escravos relacio-nados ao serviço doméstico, como cozinheiros, lavadeiras, engomadeiras, mucamas, padeiros, etc.

O elevado crescimento do número de escravos com ofício e principalmente daqueles ligados ao serviço da charqueada entre os dois períodos estudados é com-patível com a idéia apresentada de racionalização do trabalho escravo nas charquea-das em um contexto de crise de braços. Tal incremento na organização do trabalho após o fim do tráfico foi advogado por Jacob Gorender ao estudar as fazendas de café do oeste paulista na segunda metade do século XIX. Segundo o autor, “com o braço escravo comprado a preços altíssimos, a poupança da mão-de-obra tornou-se imperativa. A tecnificação setorial abriu caminho no próprio escravismo brasileiro, prolongando sua viabilidade econômica”17. Dessa forma, parece plenamente racio-nal que, aliado à melhoria tecnológica da empresa escravista, o incremento da or-ganização do trabalho escravo visasse à poupança do escravo cada vez mais caro, a fim de perpetuar a utilização de sua força de trabalho. Além disso, cabe fazer alguns apontamentos sobre a importante questão da divisão técnica do trabalho escravo na década de 1870. Se entre 1846 e 1850, os ofícios referentes ao serviço da charque-ada se resumiam em nove especializações diferentes, na primeira metade da década de 1870 temos, além do aparecimento de cinco novas especialidades, a presença de graus de conhecimento do ofício, tais como aprendizes e mestres. Entre os ofícios que constam na documentação desse período e que não constavam anteriormente, encontramos correeiros, descarnadores, graxeiros, salgadores e tanoeiros, desapare-cendo dos inventários os carroceiros, curtidores e oleiros. O que chama a atenção é a maior divisão do processo de abate e esquartejamento do gado e salga da carne, demonstrado pela presença, além dos carneadores e serventes, de descarnadores e salgadores. Assim, enquanto os carneadores eram os responsáveis pelo abate e esquartejamento do animal, os descarnadores separavam ossos, peles e couros e os salgadores ficavam responsáveis pela última etapa do processo, a salga e empilha-mento da carne.

17 GORENDER, Jacob. O escravismo colonial. São Paulo: Editora Ática, 1980. P. 563.

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Também se mostrou interessante o fato de que, no segundo período da nossa análise, encontramos entre os escravos especializados, quatro aprendizes de carne-ador e um tanoeiro mestre. Apesar de pouca freqüência de tal tipo de descrição, isso nos indica que existiam graus de especialização mais vastos do que o simples conhecimento de ofícios variados, havendo investimento e uma rede de aprendizado entre os escravos dos charqueadores do período analisado. Assim, o estudo empírico nos inventários post-mortem nos mostra que as possibilidades de especialização do trabalho escravo nas charqueadas eram variadas e foram se intensificando ao lon-go da segunda metade do século XIX, contrariamente do postulado por Fernando Henrique Cardoso.

A partir dos dados acima expostos, podemos rever a posição de Fernando Henrique Cardoso quando afirma que não haveria interesse dos charqueadores em ocupar os escravos de forma mais produtiva, não investindo na especialização dos cativos e fazendo com que os mesmos trabalhassem em todos os setores do pro-cesso produtivo. Empiricamente, a presença de um grande número de escravos com ofícios especializados nos mostra que essa ocupação de todos os cativos ao mesmo tempo em uma única atividade não ocorria. Existiam, assim, escravos altamente especializados que se dedicavam a só uma atividade do processo produtivo, sendo ensinado a fazer aquele trabalho específico. Claro que a grande presença de “ser-ventes” pode ser uma referência que esses escravos eram alocados conforme a ne-cessidade da produção, mas não nos parece que o trabalho especializado seja tão contraditório ao regime escravocrata. Houve, sim, a necessidade e o investimento dos charqueadores na organização do trabalho em diversas esferas da produção, que foi crescente ao longo do período estudado nessas páginas. Dessa forma tendemos a acreditar ser possível que, como afirma Stuart Schwartz, a existência de hierarquias e especializações na produção se tornavam formas de incentivar a produção e a di-ferenciação dos escravos, algo semelhante a promoções entre os melhores cativos, havendo assim possibilidade de salários e recompensas para os escravos mais espe-cializados18. Além disso, a lógica escravista para a segunda metade do século XIX parece visar a economia - entendida como a melhor utilização - do trabalho escravo.

***

Neste mesmo estudo, ao compararmos os valores dos escravos entre os dois períodos, observamos um importante encarecimento dos mesmos. É importante

18 SCHWARTZ, Stuart. Trabalho e cultura: vida nos engenhos e vida dos escravos. In: Escravos, roceiros e rebeldes. Bauru: Edusc, 2001. P. 96 et. seq.

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ressaltar que não estamos lidando com o preço de compra e venda dos cativos, mas o valor de avaliação dos mesmos nos inventários post-mortem que podem não representar o valor de mercado do cativo, mas com certeza se regulam através dele. As avaliações dos bens arrolados nos inventários eram feitas por “especialistas”, pessoas que tivessem conhecimento dos bens a serem avaliados e que pudessem seguir uma “geral estimação” dos preços. Os inventários do período que se estende dos anos 1846 a 1850 nos indicam que a média geral da avaliação dos escravos é alta: aproximadamente 451$690, maior entre os homens (468$822) do que entre as mu-lheres (400$000). Já entre 1870 e 1874, o valor médio dos escravos é surpreendente, cerca de 1:065$000. Surpreendente também se compararmos a relação entre os valo-res dos homens e das mulheres. Os valores médios entre cativos do sexo masculino foram de 1:122$500 enquanto que entre as mulheres foram de 682$600 (61% do valor médio dos escravos do sexo masculino).

Como a tabela 1 nos mostra, a variação do valor da avaliação entre os homens foi muito maior do que entre as mulheres nos 20 anos que separam os períodos estudados. Enquanto entre os homens, a variação foi de 239%, entre as mulheres foi de 173%. Podemos observar que o acesso aos escravos do sexo masculino se tornou dificultoso para os charqueadores, mas que mesmo assim, grande parte do investimento na compra de cativos se direcionava para esse grupo19. Novamente, a racionalização e a melhor organização do trabalho escravo nas charqueadas, visando a “poupança” de mão-de-obra, representam soluções para compensar o alto custo de aquisição de cativos após o fim do tráfico.

Tabela 1: Variação dos preços médios dos escravos

Fonte: APERS. Inventários post-mortem. Pelotas.

Se observarmos a variação da avaliação dos escravos especializados e não-especializados, percebemos um movimento semelhante. Obviamente, os valores dos cativos especializados são mais elevados do que os sem ofício, conforme nos mostra a tabela 2. De forma geral, os valores dos homens e dos cativos com ofícios variam se-melhantemente. O mesmo ocorre entre as mulheres e os cativos sem ofício declarado.

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Tabela 2: Variação dos preços médios entre escravos com e sem ofício

Fonte: APERS. Inventários post-mortem. Pelotas.

A variação dos valores dos escravos com ofício não foi, contudo, igual em todos os ofícios. Dos 14 ofícios que se repetem nos dois períodos, em 4 a variação é menor do que a variação média dos escravos com ofício declarado, tendo uma valorização expressiva, porém semelhante à dos escravos sem ofício declarado (a avaliação das costureiras teve um aumento de 180%; das lavadeiras, 154%; dos ser-ventes, 142%; e das declaradas “serviços domésticos”, 172%). Isso demonstra que passou a se tornar cada vez mais necessária a especialização dos escravos na produ-ção do charque. Essa capacidade de desenvolver uma atividade específica gerando economia e melhor qualidade do trabalho estava “calculada” no valor do escravo e tornava-o mais bem cotado em relação aos outros.

Também utilizamos as avaliações dos inventários para analisar o valor dos cativos em relação à idade, o que nos mostrou quais eram os grupos etários mais envolvidos com a produção. Entende-se assim que, ao tratarmos o grupo de escra-vos dos períodos estudados, a variação de preços ao longo de cada período é essen-cialmente um indicativo da capacidade produtiva dos mesmos. Logo, aquele cativo em idade produtiva e com boa saúde valeria mais do que um cativo muito jovem ou muito velho para o trabalho, ou mesmo adoentado. Elaboramos o gráfico 2 procu-rando entender a variação do valor dos escravos conforme a idade dos mesmos. O gráfico representa a variação dos valores médios dos escravos agrupados por idades a cada cinco anos. Para a análise comparativa, consideramos os valores máximos en-contrados em cada período como 100%, na tentativa de mostrarmos a evolução dos mesmos em relação ao seu ápice. Os máximos encontrados correspondem à faixa de 20 a 24 anos no primeiro período (583$000) e à faixa de 25 a 29 aos no segundo (1:407$000).

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Gráfico 2: Evolução do preço dos escravos em relação à idade

Fonte: APERS. Inventários post-mortem. Pelotas.

O que podemos observar do gráfico é que, entre os escravos considerados crianças, manteve-se uma progressão semelhante nos preços entre os dois períodos. Entre o momento de nascimento do cativo até os quatro anos, os valores correspon-diam a cerca de 15% dos valores máximos. Entre os 10 e 14 anos o valor do escravo já representava em torno de 70% do valor de um adulto, situação que está intima-mente relacionada à capacidade produtiva que já era demonstrada por tais cativos nessa idade. Aos 15 anos o escravo já era um adulto com todas as competências para o trabalho e o vigor físico necessário para tal. Na faixa de idade dos 15 aos 19 anos, os escravos já alcançam 85% do valor médio máximo, pertencente aos cativos na faixa dos 20 aos 24 anos, no período que se estende de 1846 a 1850. Até os 34 anos esse valor é mais ou menos estável, atingindo pouco menos de 90% do preço máxi-mo, decaindo de forma constante a partir dos 40 anos. Se as avaliações das crianças representam um crescimento semelhante entre um período e outro, a variação dos valores quanto aos escravos em idade adulta nos períodos analisados não apresenta tantas semelhanças. Nos primeiros quatro anos da década de 1870, o valor de um escravo entre os 15 e 19 anos representava 95% da média máxima, obtida entre os escravos com 25 a 29 anos. Se o valor médio do escravo supera os 90% do máximo antes do que no primeiro período, ele volta a cair abaixo desse patamar mais tar-

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diamente, por volta dos 45 aos 49 anos, onde representa 85% do valor máximo e a partir de então decai de forma mais significativa.

Dessa forma, o que podemos analisar no gráfico acima é que os escravos na década de 1870 possuem um valor relativamente alto (entre 90% e 100% do valor médio máximo) ao longo de um período maior da sua vida, dos 15 aos 44 anos, o que representa uma maior valorização do próprio trabalho desses cativos. O que en-tendemos por isso é que, numa lógica econômica própria desse momento, o escravo se tornava velho – sinônimo de improdutivo, ou menos produtivo – em uma idade mais avançada em relação ao primeiro período. Tendo isso em mente, parece que a racionalização do trabalho escravo com o objetivo de economizar além do alto capi-tal investido, o próprio escravo, na forma de melhor organização e especialização do trabalho, pôde proporcionar a extensão da idade produtiva e o maior aproveitamen-to do cativo ao longo de sua existência.

O que esses dados nos mostram é que houve, pelo menos até a década de 1870, condições de racionalizar o trabalho escravo nas charqueadas pelotenses. As-sim, a permanência da escravidão não representa a permanência de uma “mentalida-de atrasada” ou uma “irracionalidade” como propõe Fernando Henrique Cardoso, mas um esforço de tornar o trabalho escravo especializado e produtivo, permitindo, além de uma melhor organização, o aumento da produtividade do próprio cativo. Dessa forma, além da possibilidade de uma maior organização do trabalho, houve a adoção de medidas racionalizantes para o trabalho escravo nas charqueadas, neces-sidade que se tornou premente devido à crise de mão-de-obra causada pelo fim do tráfico transatlântico de escravos e o paulatino encarecimento do preço do escravo. Como forma de compensar a crise e tornar possível a permanência da escravidão nas charqueadas, a maior especialização dos cativos pode ter sido aliada à inovações tecnológicas e ao uso cada vez maior de mão-de-obra livre, que não nos atemos a analisar.

***

Manuseando os livros notariais do tabelionato de Pelotas, encontramos três contratos de compra e venda de charqueadas. Entre os bens comercializados junto ao estabelecimento, nos três casos, houve a venda de grandes quantidades de escra-vos. As escrituras públicas de compra e venda são documentos que mostram a tran-sação comercial de algum bem, onde estavam envolvidos compradores, vendedores e testemunhas. Denominava-se uma escritura porque era realizada por um tabelião e era registrada em livros cartoriais; era também pública porque estava sob controle do Estado, escrita por um burocrata imperial; e, finalmente, era uma compra e venda

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porque tinha o fim de transacionar de forma legal qualquer bem: casas, terras, mó-veis, escravos etc. Assim, este documento produzido durante o século XIX com o objetivo de tornar público e legal as relações comerciais e também com o fim de evi-tar problemas de embargo e herança, torna-se privilegiado para entender a dinâmica comercial de escravos, já que apresenta informações relevantes sobre os tramites da obtenção de cativos na época. É importante destacarmos que havia outras formas, que não com o registro legal, para obtenção de cativos. Os dados coletados para esta pesquisa foram extraídos de escrituras de compra e venda de escravos, docu-mentos notariais. Infelizmente, a grande dificuldade observada ao utilizarmos essa fonte nesse estudo é justamente a pouca freqüência desse tipo de registro nos anos selecionados.

O primeiro registro que encontramos foi a venda de uma charqueada com 55 escravos que Cipriano Rodrigues Barcellos fez a Cândido Antônio Barcellos e Irmãos em primeiro de dezembro de 186020. É interessante observar que, dos 49 es-cravos do sexo masculino vendidos, apenas sete não tinham nenhum ofício declara-do. Entre os 16 ofícios citados, os mais freqüentes eram carneador (11), carpinteiro (6) e servente (6). O preço acertado entre as partes foi de 1:400$000 por escravo, va-lor bem elevado se comparado com a média das avaliações feitas nos inventários uti-lizados anteriormente, mas próximo dos valores médios de carneadores (1:341$758) e descarnadores (1:400$000) presentes nos mesmos.

Em 29 de novembro de 1875, Manoel Mathias da Terra Velho, morador de Rio Grande, registra a venda de uma charqueada com 25 escravos para Joaquim Ro-drigues da Silva e Antônio Joaquim da Silva Maia21. Nesta transação também encon-tramos uma maioria de escravos com ofício declarado: somente cinco não o tinham. Entre os ofícios mais freqüentes, encontramos carneador (10), oleiro (3) e marinhei-ro (3). Foi ajustado o valor de 35:000$000 pela transação, 1:400$000 por cativo.

O último registro de compra e venda que utilizaremos foi feito em nove de fevereiro de 1882. Junto à charqueada, são vendidos pela Firma Evaristo e Gonçal-ves ao Comendador Possidonio Mâncio da Cunha22 34 cativos, entre carneadores e serventes. Neste registro não há nenhum escravo sem ofício, apenas um escra-vo declarado “serviços domésticos”. O valor, porém, não demonstra semelhança com os casos anteriores: 19:000$000 pela compra de 34 escravos (aproximadamente 560$000 por escravo). É preciso lembrar que na década de 1880 a escravidão já esta-va nos seus momentos finais: as leis Eusébio de Queirós e Rio Branco estancaram as

20 APERS. Pelotas, I Tabelionato, Livro 9 (1860 – 1864), fl. 105r.21 APERS. Pelotas, II Tabelionato, Livro 16 (1875 – 1876), fl. 17r.22 APERS. Pelotas, II Tabelionato, Livro 18 (1881 – 1882), fl. 194v.

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duas fontes de aquisição de novos trabalhadores escravizados, o tráfico transatlânti-co e a reprodução interna de escravos. Talvez, pelo valor da negociação, já houvesse nesta década a consciência do fim inerente da escravidão, mas não é esse o aspecto que procuramos chamar atenção neste texto.

O que buscamos na análise desses registros de compra e venda não é a relação entre oferta/procura de escravos ou a intensidade do comércio. Apenas três regis-tros não dariam conta de perceber toda a dinâmica comercial da localidade. Procu-ramos, sim, constituir, através de uma outra fonte que não os inventários, o espaço produtivo da charqueada no período estudado e compará-lo com as características evidenciadas no estudo dos inventários. Com o uso dos registros de compra e venda, percebemos que o valor agregado à especialização do escravo estava presente não só nas avaliações em inventários, mas também no preço utilizado em transações comerciais envolvendo cativos especializados. Além disso, podemos ver a proemi-nência dos escravos com ofícios frente aqueles sem ofício, tendência que, como já destacamos, se acentuou após 1850.

***

Voltando à questão que nos propusemos anteriormente, por que os charque-adores teriam continuado, então, a investir em escravos na década de 1870? Por que foram registradas compras de charqueadas com quantidades consideráveis de escra-vos se, além do encarecimento tão significativo da aquisição de cativos, o trabalho escravo nas charqueadas não era economicamente racional? Talvez pela própria ine-xistência ou insuficiência de um mercado local de trabalhadores livres, mas com cer-teza, pela existência de condições de melhoramento da produtividade e organização do trabalho escravo nas charqueadas. Esses melhoramentos da produtividade, aqui referenciados essencialmente na melhor organização do trabalho escravo, podem ter se aliado a melhoramentos tecnológicos como máquinas a vapor, entre outros.

Compreendemos assim que a permanência do trabalho escravo nas charque-adas mesmo após o fim do tráfico e o progressivo encarecimento da aquisição de cativos segue uma racionalidade que visava permitir condições para o seu melhor aproveitamento, o que proporcionaria a amortização ao longo de maior tempo da inversão inicial feita pelos charqueadores. Assim, até pelo menos a década de 1880, quando o próprio fim da escravidão já parecia uma possibilidade real para os es-cravistas, o investimento no trabalho escravo não parecia para os charqueadores a permanência de um atraso frente a utilização de mão-de-obra livre, mas possibilitava condições de expansão e maior organização do trabalho, o que poderia tornar o escravo mais produtivo e inclusive, mais rentável.

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FONTES UTILIZADAS

Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul

Acervo dos TabelionatosI Tabelionato, Pelotas, Livros Notariais de Transmissão e Notas, Livro 9 (1860 – 1864), fl. 105r.II Tabelionato, Pelotas, Livros Notariais de Transmissão e Notas, Livro 16 (1875 – 1876), fl. 17r.II Tabelionato, Pelotas, Livros Notariais de Transmissão e Notas, Livro 18 (1881 – 1882), fl. 194v.

Acervo do JudiciárioINVENTÁRIO de Jerônimo José Coelho. Pelotas, n° 6, cx. 101, I Vara Cível, 1846.INVENTÁRIO de Emerencia Maria Teixeira. Pelotas, n° 4, cx. 18, II Vara Cível, 1847.INVENTÁRIO de José Pereira de Sá Peixoto. Pelotas, n° 276, cx. 396, Vara de Fa-mília, Sucessão e Provedoria, 1847.INVENTÁRIO de Maria Angélica Barbosa. Pelotas, n° 286, cx. 397, Vara de Famí-lia, Sucessão e Provedoria, 1847.INVENTÁRIO de Francisca Alexandrina de Castro. Pelotas, n° 293, cx. 397, Vara de Família, Sucessão e Provedoria, 1848.INVENTÁRIO de Joaquina Maria da Silva. Pelotas, n° 304, cx. 398, Vara de Família, Sucessão e Provedoria, 1849.INVENTÁRIO de Teresa da Silva Santos d’Oliveira. Pelotas, n° 310, cx. 398, Vara de Família, Sucessão e Provedoria, 1849.INVENTÁRIO de Dignatário José Rodrigues Barcellos. Pelotas, n° 15, cx. 101, I Vara Cível, 1850.INVENTÁRIO de Silvana Claudina Belchior. Pelotas, n° 727, cx. 422, Vara de Fa-mília, Sucessão e Provedoria, 1870.INVENTÁRIO de Cipriano Joaquim Rodrigues Barcellos. Pelotas, n° 02, cx. 510, II Vara de Família, 1870.

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INVENTÁRIO de Felisbina Silva Antunes. Pelotas, n° 68, cx. 103, I Vara Cível, 1871.INVENTÁRIO de Laurinda da Silva Guimarães. Pelotas, n° 71, cx. 20, II Vara Cível, 1871.INVENTÁRIO de Carlota Batista Teixeira. Pelotas, n° 733, cx. 423, Vara de Família, Sucessão e Provedoria, 1871.INVENTÁRIO de Antônio José Gonçalves Chaves. Pelotas, n° 754, cx. 424, Vara de Família, Sucessão e Provedoria, 1872.INVENTÁRIO de Maria Luiza Chaves. Pelotas, n° 770, cx. 424, Vara de Família, Sucessão e Provedoria, 1872.INVENTÁRIO de Matildes Vinhas Lopes. Pelotas, n° 775, cx. 425, Vara de Família, Sucessão e Provedoria, 1873.INVENTÁRIO de Luiz Teixeira Barcelos. Pelotas, n° 777, cx. 425, Vara de Família, Sucessão e Provedoria, 1873.

BIBLIOGRAFIA

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uMA eConoMiA esCrAvistA? APontAMentos sobre A PoPulAção e A estruturA de Posse de esCrAvos eM

Porto Alegre (1779-1792)Luciano Costa Gomes¹

Resumo: Este trabalho aborda a configuração da população e a estrutura de posse de escravos de Porto Alegre e suas mudanças entre os anos de 1779 e 1792. As fontes utilizadas são os róis de confessados de Porto Alegre de 1779, 1782 e 1792 e o mapa de população de 1780. Averiguamos que o crescimento populacional então verificado teve como principal fator o aumento do número de escra-vos e agregados. Este é um dado significativo se atentarmos para o fato de que o período em foco se caracterizou por expressivo crescimento econômico na Capitania do Rio Grande. Verificamos também que mais da metade dos domicílios listados apresentava posse de escravo e que, destes, predominaram aqueles com poucos escravos. Os dados encontrados apontam para a possibilidade de caracterizar a economia porto-alegrense de escravista.

Palavras-chave: Escravidão – Porto Alegre – População – Estrutura de posse de escravos.

INTRODUçãO

Neste estudo, pretendemos analisar a configuração e mudança da população de Porto Alegre de fins do século XVIII a partir dos róis de confessados. O rol de confessados é uma fonte de origem

eclesiástica na qual se registrava a participação dos cristãos de uma localidade nos sacramentos oferecidos pela Igreja no período da quaresma. Nesse sentido, ao se considerar que praticamente todos os moradores da Freguesia de Porto Alegre eram católicos, podemos entender os róis como um censo da mesma população. Nele, as pessoas são agrupadas a partir do fogo² em que residiam, o que nos permite obser-var a variada composição dos núcleos familiares e, especialmente quando contamos com escravos e agregados, das unidades produtivas. Contamos com os róis de 1779 até 1782 e os de 1790 e 1792. No primeiro conjunto, existem as informações de

¹ Mestrando em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Bolsista CNPq. ² Por fogo ou domicílio entende-se o conceito de unidade de censo, utilizado por Juan Garavaglia (GARAVAGLIA, 1999, p. 54):

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nome, situação matrimonial, condição social – se livre, liberto ou escravo –, posição ocupada no fogo – se pertencente ao núcleo familiar, agregado ou escravo –, cor, idade e dados referentes à participação dos cristãos nos sacramentos de confissão e comunhão. Nos róis da década de 1790, constam todas estas informações, com exceção da idade dos indivíduos.

O principal problema enfrentado no uso desta documentação é seu estado de má conservação. A partir da visualização do material, temos a impressão de que algo entre 15 e 20% se perdeu, opinião semelhante a de Fábio Kühn sobre à conservação dos róis de Viamão³. Para contornar o problema, empreendemos duas operações distintas. A primeira foi de procurar recuperar informações perdidas por meio de comparação dos róis de um mesmo período entre si. Muitas descrições de indivíduos foram assim recuperadas, especialmente as referentes aos chefes dos domicílios. Para complementar algumas informações, ou mesmo corrigi-las, foram também úteis os livros de batismos de livres e de escravos de Porto Alegre. A segunda operação foi de retirar do cômputo as descrições dos fogos muito danificados para evitar maiores distorções no conjunto dos resultados.

A partir dos dados obtidos pela análise dos róis de confessados, abordaremos dois temas. O primeiro diz respeito ao tamanho da população, seu crescimento ao longo do período e sua composição em termos da posição ocupada pelos indivíduos nos domicílios, se pertencentes ao núcleo familiar, agregados ou escravos. O segun-do tema abordado é o da configuração da estrutura de posse de cativos da localidade, isto é, a forma como se distribuía a população cativa pelos domicílios escravistas. Frisamos que nossa perspectiva é diacrônica, pois procuramos avaliar algumas das mudanças ocorridas na localidade num período de treze anos, entre 1779 e 1792. É um período curto, mas que apresenta significativas variações no conjunto da popu-lação.

Antes de continuarmos, precisamos apresentar algumas informações sobre a localidade. Foi no contexto da guerra guaranítica que alguns casais açorianos de-sembarcaram nas margens do Guaíba em 1753, onde então existia a estância de Jerônimo de Ornelas4. Assim, a paróquia de Porto Alegre estava ocupada há cerca de quarenta anos quando os róis em questão foram elaborados. Já em inícios da década de 1780 a localidade se dividia em dois espaços diferentes, o núcleo urbanizado e o entorno rural, cada qual com suas especificidades produtivas5. Este cinturão ru-

3 KÜHN, 2004, p. 50.4 FLORES, 1993, p. 50.5 Segundo o rol de 1782, que preservou as localizações de ruas e bairros rurais, o perímetro urbano se constituía pelas ruas da Praia, da Igreja, Formosa e mais uma cujo nome está corroído. O entorno rural apresenta os seguintes bairros: a região fora do portão, o Capão da Fumaça (transcrito como Tumasa), o Cristal e o Passo de Ornellas. Este tema será assunto de futuro trabalho.

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ral era composto por famílias de lavradores, em geral ilhéus, muitas das quais com escravos e agregados. Havia pequenos rebanhos com até 250 reses6 e produziam-se gêneros de subsistência para proveito próprio, para venda no mercado local e para exportação para o Rio de Janeiro. Segundo o mapa de colheita de 1780, a localidade produziu 31% do trigo plantado na Capitania neste ano7. Temos também registro de ao menos uma azenha neste período, onde se fabricava farinha de trigo, de proprie-dade de Francisco Antônio da Silveira, conhecido entre seus contemporâneos como Chico da Azenha8. No núcleo urbano encontramos comerciantes, militares de alta patente, artesãos e o porto. Era por este porto que se fazia a ligação entre o interior da Capitania, até Rio Pardo, e o porto do Rio Grande. No rol de 1792, encontramos um mínimo de 39 embarcações ancoradas9. Entre os comerciantes, encontramos 14 indivíduos, alguns deles acompanhados por caixeiros10. Dito isto, passemos à análise.

POPULAçãO

O primeiro ponto que podemos abordar é o do crescimento da população ao longo do período porque dispomos desta informação para todos os anos contem-plados pelos róis. Na tabela seguinte apresentamos os dados relativos ao tamanho da população e número de domicílios ainda preservados na fonte, sem acréscimo ou exclusão de informações. Os valores devem representar algo entre 80 e 85% do que possuíam os documentos quando ainda estavam intactos. Importa observar que não estão incluídas as relações dos andantes, nem as relações do destacamento de infantaria presente em 1782 e da população das embarcações de 1792.

Tabela 1População e domicílios nos róis de confessados de Porto Alegre, sem exclu-

são ou acréscimos de dados, do período entre 1779 a 1782

Fonte: róis de confessados de Porto Alegre, 1779-1782, AHCMPA.

6 Fonte: “Relação de moradores que têm campos e animais no Continente”, feito no início do ano de 1784, deposi-tada no Arquivo Nacional do Rio de Janeiro. Sobre a fonte, ver OSORIO, 2008, p. 79ss.7 OSóRIO, 2008, p. 179.8 CORUJA, 1983, p. 128. 9 Fonte: rol de confessados de Porto Alegre, 1792, AHCMPA. 10 Estes comerciantes descritos no rol de confessados foram encontrados pela procura dos mesmos na lista elabora-da por Adriano Comissoli (2008, p. 70) sobre os Vereadores da Câmara de Porto Alegre, pela procura de fogos que abrigassem caixeiros, indício seguro de que o chefe do fogo era comerciante, e pela pesquisa no Almanaque de Porto Alegre de 1808, de autoria do comerciante Manuel Antônio de Magalhães (obra transcrita em FREITAS, Décio. O capitalismo pastoril. Porto Alegre, EST, 1980).

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Obs.: foram consideradas apenas as descrições de indivíduos que contivessem, no mínimo, uma infor-mação. Em 1782 foram excluídas as descrições de dois domicílios repetidos e havia dois domicílios que, separados por espaço corroído, eram, em realidade, um só.

Dispondo desta série de róis podemos avaliar as mudanças na população no

espaço de treze anos11. Mesmo levando em consideração que cada rol apresenta especificidades próprias dependendo do ano e do padre que o elaborou, temos al-gumas razões para creditar ao conjunto dos documentos homogeneidade suficiente para estabelecer comparações válidas: estes documentos foram feitos com o mesmo objetivo de registrar a participação dos fregueses nos sacramentos religiosos; apare-cem apenas três padres responsáveis pela coleta das informações; além disso, as ca-tegorias utilizadas são as mesmas em todos os documentos, sem maiores alterações. Devemos enfatizar que existem especificidades, como o fato de apenas os róis de iní-cio da década de 1780 apresentarem as idades dos fregueses; apenas nos róis de 1781 e 82 aparece a categoria de guarani; algumas descrições dos róis de 1790 foram feitas com alguma informalidade, pois as informações de cor e condição social de alguns indivíduos que apareceram nos livros de batismos como pardos e libertos não foram declaradas. Ainda assim, estas peculiaridades parecem não impedir o relacionamento entre os diferentes documentos, visto as razões inicialmente apresentadas12.

Para avaliar da maneira mais precisa possível a mudança no tamanho da po-pulação entre os dois períodos em questão – fins da década de 1770 e início da dé-cada de 1790 – precisamos também que os documentos estejam com a conservação das informações em estado algo semelhante. Como os róis parecem ter perdido a mesma quantidade de dados e que a dupla operação de recuperação e exclusão de informações foi mais eficiente nos róis da década de 1780, preferimos obter o tamanho da população de cada ano a partir das informações restantes em cada rol, sem acréscimos ou decréscimos. Por isso preferimos usar os valores “brutos” que dispomos, pois assim compararemos os róis em semelhante estado de conservação.

Observamos nos valores constantes nos róis um aumento gradual e constante no número de descrições de indivíduos, com exceções nos anos de 1780 e 1781. Não temos condições, por enquanto, de avaliar o porquê desta redução no número de in-divíduos entre 1779 e 1782. Podemos considerar que os róis estejam em pior estado de conservação que os demais, motivo pelo qual apresentaram menor número de

11 O tamanho da população que encontramos nos róis de 1779 e 1782 se difere daquele encontrado por Ana Silvia Volpi Scott, em seu estudo sobre os mesmos róis de confessados, que foram de respectivamente 1562 e 1710 habi-tantes (SCOTT, 2008, p. 10).12 Sobre os cuidados ao se comparar róis de uma mesma localidade, ver SIRTORI, 2008, especialmente o capítulo 2.

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indivíduos. No entanto, uma informação constante no fechamento do rol de 1780 parece indicar que, em realidade, a causa da menor quantidade de pessoas se deva a sub-registros. No texto de fechamento do documento, após o número de crisma-dos, aparece a seguinte frase, entre palavras corroídas: “[corroído] fogos duzentos e quarenta e [corroído]”13. Se, de fato, foram descritos cerca de 240 fogos e restaram 216, podemos calcular as perdas deste rol. Antes, devemos excluir os domicílios que apresentaram muitos danos, que foram oito. Assim, chegamos a um percentual de, aproximadamente, 13% de perdas, valor próximo ao dos demais róis. É possível, então, que o rol de 1780 apresente um índice maior de sub-registros.

Entre os anos de 1779 e 1782 encontramos um crescimento populacional anual de 1,5%, enquanto que entre 1782 e 1792 verificamos um aumento significati-vo no crescimento, que passou para 2,5%. Ao que parece nos encontramos diante de um fenômeno de expansão da população da localidade, que foi também verificado em outra oportunidade, por meio de um expediente diferente. Sérgio da Costa Fran-co utilizou-se da receita do açougue de Porto Alegre, cujas arrematações perante a Câmara Municipal mostraram um aumento de 10 mil réis, em 1773, para 230 mil e 500 réis, em 1779. Embora houvesse uma série de fatores influentes na evolução das receitas anuais do açougue, o “fato de o ‘donativo das carnes’ haver-se multiplicado por 23 entre 1773 e 1779 diz bastante a respeito do aumento do consumo daquele alimento essencial”14.

Este crescimento não foi isolado, mas uma realidade que marcou as últimas décadas do século XVIII na América portuguesa. Na convergência de fatores es-truturais e de curto prazo – respectivamente, as reformas pombalinas e o impacto causado pelas lutas de independência colonial nos Estados Unidos e em Santo Do-mingo –, a América portuguesa vivenciou um período de acentuado crescimento econômico, ao qual a literatura denomina de renascimento agrícola15. Bahia, Mara-nhão, Pará, Rio de Janeiro, Pernambuco, o sul de Minas Gerais, São Paulo e também o Rio Grande do Sul participaram ativamente das efervescentes movimentações nos mercados internacional e colonial. Foram exportados algodão, açúcar, arroz, cacau, café, fumo e cachaça, se importaram fazendas e contingentes crescentes de escravos e circularam em âmbito interno fumo, cachaça, arroz, os trigos do sul, gado em pé, charque, sebos e couros, além dos próprios escravos que entraram pelos portos ca-riocas, baianos e pernambucanos16.

13 Rol de confessados de Porto Alegre de 1780.14 FRANCO, 2000, p. 21s.15 Sobre o assunto, ver SCHWARTZ, 1998, p. 337ss, que apresentar foco especial sobre a Bahia. Sobre a situação verificada no Rio de Janeiro, conferir FRAGOSO; FLORENTINO, 2001, p. 92ss. Para o Rio Grande de São Pedro, ver OSóRIO 2008, p. 183ss. 16 Ver SCHWARTZ, 1988, p. 348; FRAGOSO e FLORENTINO, 2001, p. 98-101.

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Foi paralelo e ligado ao crescimento econômico que se deu o aumento popu-lacional. No Rio Grande de São Pedro, Helen Osório constatou um período de ex-pansão econômica e demográfica, no qual a população passou de 17.923, em 1780, para 22.437 habitantes, em 1791, o que representa uma taxa anual de crescimento populacional de aproximadamente 2,1%17. A partir dos totais de população de São Paulo apresentados por Maria Luiza Marcílio, entre os anos de 1772 e 1776, verifica-mos uma taxa de 3,7%, com um crescimento de 100537 para 124825. Este pequeno recorte temporal de quatro anos se encontra numa fase demográfica mais ampla considerada pela autora, que vai de 1765 até 1808, no qual verificou um crescimento singular da população de 148% devido à introdução da economia de plantation, à aceleração da introdução de escravos importados e à retração para a região de popu-lações oriundas das áreas mineradoras decadentes18. No Recôncavo baiano, entre os anos de 1724 e 1757, período marcado por uma situação de estagnação econômica, Schwartz verificou uma taxa anual de crescimento de 1,7%, valor possivelmente au-mentado em conseqüência dos resultados incompletos do primeiro ano; já entre os anos de 1774 e 1780, a taxa encontrada foi de 3,1%, quase o dobro. O autor acredita que dita dinâmica demográfica foi consequência, em grande medida, da importação de cativos19. Mas não devemos apenas à escravidão o incremento demográfico ve-rificado no período. Sheila de Castro Faria aponta para a importância representada pelos “andarilhos da sobrevivência”, brancos e libertos pobres que migravam para áreas de exploração recente, em busca de melhores condições de vida20.

Dito isto, acreditamos ser aceitável considerar como válidos o acentuado crescimento populacional em Porto Alegre e suas respectivas taxas de crescimento anuais verificados a partir dos róis de confessados nas décadas finais do XVIII. Isso porque os dados foram obtidos a partir de fontes razoavelmente homogêneas e os resultados não diferem nem daquele verificado para o Rio Grande de São Pedro, nem extrapola aqueles verificados em áreas mais dinâmicas da América portuguesa, como São Paulo e o Recôncavo baiano. Partindo dessa premissa, faremos o esforço de tentar apontar valores absolutos mais aproximados da população de Porto Alegre entre os anos de 1782 e 1792.

Os poucos autores que se abordaram a população porto-alegrense colonial se basearam nas informações constantes no mapa de população de 1780, parte do Mapa Geográfico do Rio Grande de São Pedro, segundo o qual existiriam 1512 al-

17 OSóRIO, 2007, p. 100. 18 MARCíLIO, 2000, p. 71s.19 SCHWARTZ, 1988, p. 87s.20 FARIA, 1998. p. 108ss.

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mas na localidade21. Sem dúvida, este documento traz uma informação importante, que é o total da população que no mínimo havia recebido sacramento da comunhão constante no rol de confessados do mesmo ano22. No entanto, o valor da população apresentado não pode ser tomado como o do total da população de Porto Alegre de então porque não foram considerados os jovens que não receberam comunhão, em geral menores de sete anos. A exclusão destas crianças representaria, seguindo a proporção etária do rol de 1782, uma perda de um sexto da população do período.

O documento teoricamente mais adequado para avaliar o tamanho da popula-ção de Porto Alegre seria o rol de confessados, isso se não houvesse sofrido a perda material verificada. Nesse caso, a contabilidade da população apenas a partir dos róis não é viável porque os documentos não estão completos. Ainda assim, como já apontamos, os róis apresentam a vantagem de serem seriados, permitindo verificar a mudança na população com a passagem do tempo.

Em síntese, para o primeiro período, temos dois conjuntos de informações, um oriundo do rol de confessados e o outro do mapa de população de 1780, cada qual com limites e vantagens específicos. Pelo mapa temos os valores da população jovem e adulta sem perdas de informação, mas não temos o tamanho da população infantil. Pelos róis, temos o registro de indivíduos de todas as faixas etárias, mas com perda da descrição da população. Nesse sentido, o ideal seria cruzar os dados específicos de cada documento: somar o total da população sugerido pelo mapa ao número de crianças constantes no rol que possivelmente ainda não haviam sido iniciadas nos sacramentos cristãos. Como, teoricamente, era a idade de sete anos que marcava a iniciação do jovem na vida cristã adulta23, foram somadas aos 1512 habi-tantes indicados no mapa, as crianças com até seis anos do rol de 1780, um grupo de 168 crianças livres, que resultou num total de 1680 pessoas.

No entanto, como já relatamos, o rol de 1780 apresenta um conjunto de in-formações discrepante em relação ao dos outros róis, o que se demonstra quando verificamos a quantidade de crianças livres presentes em 1782, que é 284, diferença de mais de cem crianças para um prazo de apenas dois anos. Assim, possivelmente, o meio adequado para se obter o valor mais aproximado do que foi a população de Porto Alegre no período seja tomar o valor dos jovens de 1782 que não haviam recebido a comunhão em 1780 com aquele representado pela população constante

21 Fonte: Mapa geográfico do Rio Grande de São Pedro suas freguesias e moradores de ambos os sexos, com de-claração das diferentes condições e cidades em que se acham em 7 de outubro de 1780. 9, 4, 9 nº 134, Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Agradecemos a Prof.ª Helen Osório por ter cedido a transcrição do mapa de população referente a Porto Alegre. Sobre os autores que citaram a fonte ver, por exemplo, MACEDO, 1993, p. 75. 22 Homens e mulheres livres são divididos nas seguintes categorias: velhos, casados, solteiros e meninos e meninas de confissão. Os escravos são apresentados com um número total segundo sexo. 23 MARCíLIO, 2000, p. 38.

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no mapa de população. Como entre 1780 e 1782 não temos registro de qualquer calamidade que viesse a significar decréscimo demográfico extraordinário, podemos considerar o total informado pelo mapa como o da população livre com nove anos ou mais do último ano. Isso porque a faixa etária mais jovem apresentada pelo mapa de 1780 é a dos meninos e meninas de confissão, os quais possuíam, possivelmen-te, um mínimo de sete anos. Ao fim, computamos o total de indivíduos falecidos adultos no período. Para os escravos, preferimos tomar o valor informado pelo rol de confessados do ano de 1782, já que o crescimento desta população deve estar relacionado principalmente ao tráfico. Neste caso, a participação cativa estará sub-registrada visto a perda de dados devido à má conservação dos róis.

Resumimos, agora, nosso método: 1 – tomamos o total populacional livre informado no mapa como o total da população maior de sete de 1780 e, consecuti-vamente, maior de nove anos em 1782; 2 – tomamos os dados de crianças com oito anos ou menos de 1782, pois este grupo possivelmente esteve fora da categoria de “meninos e meninas de confissão” em 1780; 3 – tomamos o total de escravos in-formado em 1782; 4 – por fim, computamos como decréscimo o total de falecidos entre os dois anos, constante nos livros de óbitos de livres. Os dados e o resultado se encontram na seguinte tabela:

Tabela 2Estimativa da população de Porto Alegre de 1782 a partir das informações

do rol de confessados, do mapa de população e dos primeiro livro de óbitos de livres e de escravos de Porto Alegre

Fonte: mapa de população de 1780; róis de confessados de 1780 e 1782, AHCMPA; primeiro livro de óbitos de livres de Porto Alegre, AHCMPA.

Precisamos apontar as limitações destes dados. A categoria das crianças de confissão em geral se aplicava às crianças maiores de sete anos, o que não impede que crianças menores possam ter participado ou, ao contrário, crianças maiores não o terem. Além disso, devido à má conservação da fonte, o número de crianças com até oito anos está sub-registrado. Outro ponto importante é o de que não temos

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acesso a um dos fatores fundamentais para o crescimento da população, que é a imigração. Não temos, por ora, nem o número de escravos aqui aportados, nem o número de indivíduos livres recém-chegados. Nesse sentido, podemos considerar o valor de 1818 indivíduos como apenas aproximativo, sendo o número real da popu-lação possivelmente maior.

Uma alternativa para tentar avaliar a população de então é acrescentar ao valor da população que restou nos róis o possível valor do que foi perdido. Isto é, acres-centar ao total indicado nos róis aquilo que corresponderia à perda entre 15 e 20% devida à má conservação da fonte. Se a perda girou, de fato, entre um sexto e um quinto, então teríamos uma população residente entre 1840 e 1955 indivíduos. Estes dois resultados estão acima da estimativa feita a partir do mapa de população, o que pode implicar em duas possibilidades distintas: ou o valor da população estimado é mínimo em relação ao que deve ter sido a população de Porto Alegre de então; ou então a perda de informações deve ter girado não entre quinze e vinte percento, mas entre dez e quinze. Por enquanto, optamos por ficar com a primeira possibilidade.

Para o ano de 1792 encontramos algumas dificuldades em estabelecer o tama-nho da população, pois não encontramos fonte alguma além do rol de confessados deste ano. Mas como já possuímos um valor absoluto mais aproximado da popula-ção no início da década de 1780 e a taxa de crescimento anual desta mesma década obtida a partir da série dos róis de confessados, podemos projetar a população de 1792 a partir daquela estimativa encontrada para 1782. Com uma população inicial de 1818 indivíduos, com um crescimento anual de 2,5% e considerado um perío-do de dez anos, encontramos uma população final de 2323 indivíduos. Utilizamos também o método de acrescentar à população constante no rol de 1792 o possível percentual de perda, que deve ter girado entre 15 e 20%, pelo qual encontramos um resultado entre 2371 e 2519 habitantes. Novamente, os resultados encontrados estão acima daquele estimado pela projeção, o que pode significar as mesmas possibili-dades apontadas para a estimativa de 1782. Neste caso, também preferimos apenas considerar que o valor encontrado para a população seja mínimo em relação a tama-nho real da população de Porto Alegre de 1792.

Lembramos que estes são apenas esforços aproximativos ao se tratar com fontes fragmentadas, que tornam qualquer investigação passível de equívoco. Uti-lizamos mais de um método para tentar avaliar o tamanho da população e, por en-quanto, os valores encontrados apresentam semelhanças entre si. Até aqui, fizemos um aproveitamento máximo das informações disponíveis para tentar montar um quadro coerente da população da Freguesia de Porto Alegre. Tomamos como base o mapa de população e os róis de confessados e averiguamos um crescimento acentu-ado da população num período de dez anos, que passou de aproximadamente 1818 pessoas em 1782 para algo em torno de 2323. A partir de agora, faremos uma análise

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privilegiando os dados mais qualificados disponíveis, que são oferecidos pelos róis de confessados. Deste documento, tomaremos apenas os registros dos indivíduos que tiverem descrita sua condição social, se livre, liberta ou cativa. A partir de ago-ra utilizaremos as informações recuperadas por meio de comparação das fontes e excluiremos da análise os domicílios muito danificados, para evitar maiores pertur-bações na amostra. No entanto, há um grupo de domicílios que, apesar de estarem significativamente danificados, devem ser preservados, que são quinze domicílios escravistas do ano de 1792 que estão com o espaço da descrição dos familiares livres completamente corroído. Tomamos esta decisão pelo fato de que englobam um total de 70 escravos, número significativo, sendo que dentre estes domicílios se encon-tram alguns dos maiores plantéis do rol. Além disso, como mostraremos a seguir, a manutenção destes domicílios não acarretará numa distorção significativa no côm-puto da distribuição da população segundo condição social. É importante avisar que trabalhamos aqui apenas com a população de moradores dos róis, tendo excluído da análise os andantes de todos os anos, a relação do destacamento de infantaria cons-tante em 1782 e a relação dos barcos de 1792, por não sabermos se estes indivíduos chegaram a criar vínculos na localidade.

Iniciamos a série com o rol de 1779, que é composto por 1468 registros individuais e de 222 fogos, sendo que cinco destes domicílios foram acrescentados posteriormente, pois foram transcritos como se pertencessem à descrição do fogo que lhes antecedia. Ao compararmos este número de registros com aquele do total de registros “brutos” constantes na fonte (ver tabela 1), verificamos que a exclusão de informações foi significativo, maior que o aumento de registros que operamos.

O rol de 1782 oferece o melhor conjunto de dados. Primeiro, porque é o que apresenta a maior quantidade de informações dos róis deste início de década; segundo, porque nele estão separados os moradores da localidade de acordo com a rua ou bairro rural em que residiam; terceiro, porque é o único em que encon-tramos a categoria de guarani anunciada. Neste rol, trabalhamos com um total de 1611 registros, o que representa 89% da estimativa populacional de 1818 indivíduos, calculados para o ano a partir do mapa de população e do rol de confessados. Do total de 279 domicílios existentes na transcrição do documento, trabalhamos agora com 248. Dois fogos foram excluídos por repetição e outro havia sido separado em dois no momento da transcrição, possivelmente por possuir informações corroídas em seu interior. Por fim, devemos ressaltar que os róis deste período apresentam a informação de idade dos moradores, que não consta nos róis posteriores.

O rol de 1792 é o que apresenta o maior número de registros de nossa série, com um total de 2007 habitantes, valor que representa 86% da projeção populacio-nal elaborada para o ano. Se compararmos com o total da população apresentado na tabela 1, notaremos que houve uma diminuição devido à re-elaboração da fonte.

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Explicamos o motivo: o processo de recuperação de informações para este conjunto de róis foi menos eficiente que aquele efetuado sobre os de início da década de 1780. Isso não apenas porque dispomos de somente dois róis para a década de 1790, como também a própria “qualidade” das informações é inferior àquela encontrada nos róis da década de 1780. Neste caso, foram menores as possibilidades de localizar os dados de um domicílio danificado em outro rol. Quando conseguimos, houve pouca segurança, em alguns casos, para avaliar se ambas as descrições referiam-se ao mes-mo domicílio. Não temos a informação de idade; alguns indivíduos aparecem sem o sobrenome; algumas descrições que verificamos serem de homens forros aparece-ram sem esta indicação. A impressão que temos é a de que este arrolamento foi feito ou com pressa ou com certo ar de informalidade, sem intenção ou necessidade de informações mais precisas. Ou as duas coisas, talvez. Ainda assim, devemos ressaltar que a recuperação de informações foi muito proveitosa, visto que conseguimos per-ceber a continuidade de numerosos domicílios ao longo de mais de dez anos, fato inicialmente não observado.

A maioria das informações recuperadas refere-se ao nome e sobrenome dos chefes de domicílio e de seus filhos que estavam corroídas, um dos motivos pelos quais preferimos manter aqueles quinze domicílios que apresentavam um contingen-te significativo de escravos. Dos 456 domicílios transcritos, trabalhamos com 431. Uma informação interessante deste rol é o de que apresenta o arrolamento dos na-vios estacionados no porto, mas que não contabilizamos por não termos indicativo algum de serem todos, ou sua maioria, de propriedade de moradores da localidade.

A comparação dos três róis traz consigo vantagens e limitações. Em princípio, trabalhamos com fontes razoavelmente homogêneas, feitas num curto espaço de tempo, em que se utilizam as mesmas categorias de descrição e que possuem entre si semelhança no que tange ao estado de conservação. Podemos, desta maneira, pensar que as comparações realizadas são, em alguma medida, seguras, representativas da dinâmica demográfica de então. Por outro lado, lembramos que não trabalhamos com a informação de toda a população. Além das possíveis pessoas que ficaram de fora durante a elaboração do arrolamento, ainda perdemos algo entre 15 e 20% das descrições. Por isso, os dados e resultados com os quais trabalhamos devem ser pensados mais como indicativos, pistas, do que provas do real passado. Mas, eviden-temente, a freqüência com que certas informações aparecem, não apenas nos róis como nos outros documentos trabalhados, pode aumentar a margem de confiança no manejo das mesmas.

Iniciaremos pela avaliação da composição da população segundo a posição ocupada pelos indivíduos dentro dos domicílios, se familiares, escravos e ou agre-gados. As duas últimas categorias são encontradas na descrição dos indivíduos; a primeira, não, e a utilizamos para fazer referência ao chefe do domicílio, sua esposa,

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filhos e outros familiares. Em alguns casos, familiares como tios, pais e sogros foram descritos como agregados e os mantivemos como tal, mas deixamos assinalada a familiaridade entre ambos.

Fonte: róis de confessados de Porto Alegre, 1779, 1782 e 1792, AHCMPA.

A primeira constatação a ser feita é a de que entre os dois primeiros anos a composição da população mudou pouco. Apenas os agregados apresentaram uma variação de 1%. Apenas decorrida uma década os valores mudam de maneira sig-nificativa. Verificamos, em primeiro lugar, que houve um aumento no tamanho da população escrava em detrimento da livre. Os escravos passaram de 37,9% da po-pulação, em 1779, para 40,7%, em 1792. Sua população aumentou 46,7%, passando de 557 para 817 indivíduos. Os agregados tiveram um aumento significativo, pois passaram de 5,3% da população em 1782 para 9,5% em 1792, com um aumento de 124,7% em seu contingente (sendo que esse aumento ficou em 297,9% para o perí-odo entre 1779 e 1792). Já os familiares aumentaram apenas 7,8% entre 1782 e 92, de 927 indivíduos para 999, o que implicou num decréscimo de sua participação no conjunto da população, que passou de 57,5 para 49,8%. Ao se levar em considera-ção o fato de que a maioria das informações recuperadas serem referentes à família nuclear descrita no início de cada fogo, podemos pensar que o possível decréscimo de participação tenha sido algo maior.

A constatação de que aumento da população se tenha verificado principal-mente entre escravos e agregado talvez indique a natureza da dinâmica demográfica agora observada. O crescimento da população de Porto Alegre parece ter se dado pelo aumento da mão-de-obra disponível na localidade por meio do incremento de escravos via tráfico e pela vinda de imigrantes livres ou libertos pobres em busca

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de oportunidades. Juntos, escravos e agregados representam 42,5% da população em 1782, enquanto que em 1792 passaram ao patamar de 50,2%. Este crescimento, se de fato ocorreu, não foi isolado do plano produtivo. Como demonstrou Helen Osório por meio da análise dos mapas de animais dos anos de 1780 e 1791, houve um crescimento acelerado do rebanho vacum na região de Porto Alegre e arredores, com uma taxa anual na ordem de 10,4%, que foi, por sinal, mais lento que aquele verificado na região do Rio Grande e do Rio Pardo24. Parece haver, desta maneira, uma inter-relação entre crescimento econômico e crescimento demográfico.

De forma evidente, nossa hipótese parece apresentar uma limitação ao as-sociar a categoria de agregado à de mão-de-obra não-familiar. No entanto, temos algumas razões empíricas para supor tal relação. A partir do rol de 1782 elaboramos um perfil do conjunto dos 85 agregados residentes em Porto Alegre dos quais temos registro. Os resultados indicam que entre os oitenta indivíduos dos quais obtivemos o sexo os homens predominam com uma razão de sexo de 150 homens para cada 100 mulheres. Excluindo seis indivíduos sem descrição de idade, a moda e a mediana etária ficaram em 20 anos, o que indica uma população bastante jovem25. A popula-ção muito idosa, com mais de 50 anos, e a muito nova, com seis ou menos, represen-tam apenas um quinto do total (22,8%). Dezessete destes agregados eram guaranis, em sua maioria crianças, dois com idade entre seis e nove anos, oito entre dez e doze anos e cinco entre vinte e trinta anos, quase todos, com duas exceções, acolhidos em domicílios escravistas. Muito provavelmente estes índios estavam encarregados de atividades domésticas e/ou produtivas26. Havia outros dezessete forros, mas com um perfil etário mais velho. Cinco dentre eles possuíam mais de 50 anos e estavam em domicílios de outros forros, possivelmente parentes que os abrigaram. Outros seis apresentavam quarenta anos e cinco possuíam entre 20 e 36 anos. Apenas um possuía menos de dez anos. Por fim, sobre o conjunto dos agregados, encontramos quatro quintos em fogos escravistas. Em suma, os agregados do ano de 1782, em sua maioria, eram homens, quase metade decididamente não era branca e poucos eram os muito idosos ou muito jovens. A maioria estava em fogos que já contavam com mão-de-obra externa ao núcleo familiar. Ao que parece, a maioria estava apta a desempenhar alguma atividade produtiva ou doméstica.

24 OSóRIO, 2008, p.129s.25 A média ficou em 25,4 anos; no entanto, o desvio-padrão em 18,3 indica uma ampla dispersão dos dados e a impossibilidade de a média servir como representativa da amostra. 26 Vide o caso encontrado por Elisa Garcia, em que a filha dos índios Martinho do Porará e Maria Simona, da Aldeia dos Anjos, foi raptada por Antônio de Vasconcelos, com justificativa de que aquela aprendesse o ofício de tecelã em sua casa e recebesse da família educação apropriada. Durante o processo, o capitão da aldeia averiguou que à criança não foi ensinado ofício algum e que, na realidade, a mesma fora empregada em atividades domésticas, como balançar os filhos do casal branco (GARCIA, 2007, p. 129).

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Sobre a população de agregados de 1792 contamos com uma qualidade pior de informações. Conforme o gráfico 1, população de agregados mais que dobra em relação aquela de 1782. Dos 191 indivíduos dos quais temos informação, apenas oito constam como forros. A taxa de masculinidade cai para 120 homens para cada cem mulheres, mas contínua favorável aos homens. Interessante notar que aumenta muito o número de agregados casados. As agregadas casadas passam de 3 para 16 no prazo de dez anos. Esta mudança pode ser resultado de diferentes fenômenos: mu-lheres agregadas no primeiro período podem ter se casado e permanecido no domi-cílio onde se encontravam; filhas de chefes de fogo que se casaram com indivíduos pobres podem ter continuado a residir ou no lar ou no terreno do pai, como foi o caso de uma agregada que aparece como filha do cabeça de fogo; os agregados che-gados no período podiam já estar casados, acompanhados de suas esposas ou não.

Como já observamos, o gráfico 1 apontou não apenas ampla participação da população escrava em Porto Alegre como um aumento da mesma no período em questão. Em 1782, 37% da população da Freguesia é composta por escravos27; dez anos mais tarde, esta participação aumenta em quatro pontos percentuais, chegando a dois quintos. Estes são indicadores altos, semelhantes àqueles encontrados nos pontos economicamente mais dinâmicos do América portuguesa de então, voltados para o mercado externo. No Recôncavo baiano, principal produtor açucareiro do período, os escravos representavam 30,8% da população nos anos de 1816-1728. Também economias voltadas para o mercado interno possuíam índices semelhantes, como Mocha, na capitania do Piauí, em 1762, e Viamão, vizinha de Porto Alegre, no ano de 1778. Ambos os espaços dedicavam-se à pecuária e possuíam respectivamen-te 69,2 e 40,5% de suas populações em cativeiro29.

Importa observar que a população escrava porto-alegrense apresentou um crescimento vegetativo negativo no ano, pois a taxa de natalidade foi de 43,4, en-quanto que a de mortalidade foi de 55,130. Isso quer dizer que o crescimento veri-

27 Este valor está algo inflado. De acordo com a reconstituição baseada no rol de confessados e no mapa de po-pulação, a população escrava representava 32,9% da população. Nesse sentido, apesar da imperfeição de ambos os métodos, podemos considerar que a população escrava compunha pouco mais de um terço da população de inícios da década de 1780. 28 MARCíLIO apud SCHWARTZ, 1988, p. 373. O valor se baseia no registro censitário, retirados por Joaquim Noberto e Souza, pesquisado por Maria Luiza Marcílio.29 KÜHN, 2004, p. 54. Ambos os valores baseados em listas nominativas paroquiais.30 Fontes: primeiro livro de batismos de escravos de Porto Alegre; primeiro livro de óbitos de escravos de Porto Alegre, AHCMPA. O período que selecionamos como recorte para obtenção do número de nascimentos e fale-cimentos não foi o civil, mas o de um ano após o início da elaboração do rol, pois assim, teoricamente, teríamos maiores chances de encontrar informações nos livros de batismo e óbitos referentes a indivíduos presentes no rol em questão. O total populacional considerado foi o de escravos constantes no rol de confessados de 1782 (ver tabela 2). Os dados referentes à população livre apontam, pelo contrário, para um crescimento vegetativo positivo, pois sua taxa de natalidade ficou em 55,8 e de mortalidade em 50,9.

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ficado está relacionado, possivelmente, à importação de cativos. Dito isto, convém avaliar como a propriedade escrava se distribuía no seio da população aqui estudada. Isto é, estudar sua estrutura de posse de escravos.

ESTRUTURA DE POSSE DE ESCRAVOS

A análise da estrutura de posse cativa consiste em averiguar a distribuição dos escravos em uma localidade e a variação no tamanho das posses. Podemos começar pela comparação do crescimento do número de posses escravistas e do número de escravos verificados em dois períodos, o primeiro entre 1779 e 82, e o segundo entre 1782 e 1792, apresentado no gráfico seguinte.

Tabela 3Crescimento relativo (%) dos fogos escravistas e da população cativa em

Porto Alegre, nos períodos de 1779 a 1782 e de 1782 a 1792

Fonte: róis de confessados de Porto Alegre, 1779, 1782 e 1792, AHCMPA

Ao longo destes treze anos, verificamos um crescimento contínuo tanto do número de fogos escravistas quanto do de escravos, em ambos os períodos com o predomínio dos primeiros. Entre os dois primeiros anos, o crescimento é quase idêntico, de 13 e 7%, respectivamente. No entanto, entre 1782 e 92, o crescimento de fogos escravistas toma uma distância ainda maior em relação ao crescimento do número de escravos. Estes crescem 36%, enquanto os primeiros têm um aumento de 50%. Verifiquemos os extremos: no ano de 1779, temos a informação de 134 fogos escravistas e 557 escravos; em 1792, os valores são de, respectivamente, 226 fogos e 817 escravos, o que implica um crescimento 67% para os primeiros e de 46% para os últimos. Ao que parece, o crescimento da Freguesia de Porto Alegre, em termos econômicos e demográficos, não apenas se deu pelo incremento no número de cativos por meio do tráfico, como foi também acompanhado por um aumento no número de domicílios comprometidos com o sistema escravista.

Na tabela a seguir, apresentaremos alguns indicadores da estrutura de posse de cativos em Porto Alegre, que são a percentagem dos fogos escravistas no conjun-

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to dos fogos de cada ano e as medidas de tendência central (média, mediana e moda) e de dispersão (desvio-padrão) relativas à posse escrava.

Tabela 4Participação (%) de fogos escravistas no conjunto dos domicílios e média,

mediana, moda e desvio-padrão de posse de escravos em Porto Alegre, 1779, 1782 e 1792

Fonte: róis de confessados de Porto Alegre, 1779, 1782 e 1792, AHCMPA.

O indicador de participação de fogos escravistas revela ampla dispersão da posse escrava em Porto Alegre, pois mais da metade dos moradores dos quais te-mos registro, em todos os anos, possuía cativos em seus domicílios. Se entre dos dois primeiros anos a porcentagem se manteve praticamente inalterada, esse valor despencou oito pontos percentuais entre 1782 e 1792. Isso, em partes, se explica pelo aumento do número de registros de domicílios com indivíduos solitários sem escravos. Em 1779, eles são 11; em 1782, são 14; em 1792, por fim, são 71. Em 1779, a proporção entre homens e mulheres que residiam sozinhos é equilibrada, com a diferença de um indivíduo a favor dos homens; em 1792, os homens cons-tituem dois terços do total dos residentes solitários sem escravos. Estes indivíduos compõem, possivelmente, o grupo dos “andarilhos da sobrevivência” que chegaram à localidade pelas possibilidades abertas pelo crescimento da triticultura. Inclusive, este aumento dos homens solitários sem escravos pode ser um dado a reforçar a hi-pótese de que o crescimento da população se deu, em alguma medida, pela entrada de mão-de-obra, representada por homens livres e libertos pobres e, principalmente, africanos escravizados, num contexto de forte crescimento econômico.

O desvio-padrão do conjunto dos dados é bastante alto, o que impede o uso da média como valor representativo do conjunto dos fogos escravistas. Ainda assim, verificamos que a média é decrescente. Os valores de mediana e moda apontam, de forma mais segura, para um traço importante da estrutura de posse porto-alegrense, que é o domínio das pequenas posses de escravos. Nos dois primeiros anos, metade

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dos escravistas possuía até três escravos, enquanto que o tamanho de posse mais recorrente foi o de apenas um escravo. Passados dez anos após 1782, a mediana reduziu-se para dois escravos, enquanto que a moda permaneceu a mesma. Temos, assim, um indicativo de que o aumento do número de fogos escravistas se deu, prin-cipalmente, pelo aumento das posses menores.

Na próxima tabela, faremos a análise da estrutura de posse de acordo com a quantidade de escravos detidos pelos senhores. Se adotássemos o padrão de tama-nho de posse comumente utilizado em regiões que apresentam escravarias muito grandes, como as da Bahia ou da região mineradora das Gerais31, a maioria das nossas posses se classificaria como pequenas posses por apresentarem até nove es-cravos. Visto a especificidade dos tamanhos das posses locais, precisamos adotar um padrão igualmente específico para perceber as características locais. Consideraremos as menores posses aquelas com até quatro escravos; como médias, com posse entre cinco a nove escravos; as maiores foram as que apresentaram dez cativos ou mais.

Tabela 5Fogos escravistas e distribuição dos escravos segundo faixas de tamanho de

posse em Porto Alegre, nos anos de 1779, 1782 e 1792

Fonte: róis de confessados de Porto Alegre, 1779, 1782 e 1792, AHCMPA.

31 Sobre a região das Minas Gerais, ver LUNA; COSTA, 1982; sobre a Bahia, ver SCHWARTZ, 1988.

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Temos que começar a análise desta tabela por suas limitações. Foram os maio-res domicílios escravistas os mais prejudicados pela perda de informações. Como estes fogos ocupam mais espaço nas folhas do documento, proporcionalmente per-deram mais informações que as descrições dos domicílios menores. Por esse moti-vo, encontramos algumas incongruências, como a queda no número de domicílios escravistas e de escravos entre os maiores escravistas do ano de 1779 para o de 1782. Nesse sentido, talvez seja correto afirmar que o grupo dos maiores escravistas pos-sui representação inferior se comparada a dos pequenos escravistas.

A constatação mais importante já foi indicada na tabela 3, que é o predomínio das pequenas posses escravistas, que aumentam entre os anos de 1782 e 1792. Com a última tabela, podemos ter uma noção da importância das pequenas posses. As posses com até quatro escravos não são inferiores a 65%. Se somarmos as posses com até nove escravos, limite das pequenas propriedades em um grande número de localidades escravistas da América portuguesa, encontramos não menos de nove décimos do total de escravos.

Podemos observar que houve aumento em termos absolutos em todas as fai-xas, tanto do número de fogos escravistas quanto o número de escravos, com a ex-ceção já apontada dos grandes escravistas de 1782. Mas, em termos relativos, houve crescimento apenas nas extremidades do conjunto, especialmente entre os pequenos escravistas, que passaram de 65 para 73% dos fogos e a deter de 33 para 39% dos escravos. Os escravistas intermediários apresentaram uma participação decrescente, mas sempre com uma parcela significativa do total dos cativos, nunca inferior a 39%. Os que possuíam mais de dez cativos eram poucos, algo entre 5 e 8% dos escravistas e detinham entre um quarto e um quinto dos escravos.

Como havíamos alertado, a tabela 5 não representa de maneira adequada os maiores proprietários de escravos, pois estes foram os que tiveram as descrições de seus domicílios mais danificadas. Para se ter uma visão mais precisa deste grupo, op-tamos por avaliar a posse daqueles que estivessem entre os 10% maiores escravistas. Os resultados se encontram na tabela seguinte.

Tabela 6Posse de escravos dos 10% maiores escravistas,

Porto Alegre, 1779 – 1792

Fonte: róis de confessados de Porto Alegre, 1779, 1782, 1792, AHCMPA.

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Obs: no ano de 1779 são 13 fogos; em 1782, são 15; no último, são 23.

Na tabela 5 verificamos um decréscimo na posse dos escravistas com mais de cinco cativos, com uma queda de 4,5 pontos percentuais, entre 1782 e 1792, enquan-to que entre os maiores escravistas houve uma perda de 3,8 pontos percentuais entre 1779 e 1792. A tabela 6 nos aponta um movimento diferente, pois os escravistas que se encontravam na faixa dos 10% maiores apresentaram um crescimento do total dos cativos possuídos, de aproximadamente quatro pontos percentuais. As medidas de tendência central apontam para uma queda no tamanho dos domicílios. A média diminuiu de quase treze para doze cativos. A mediana e a moda diminuíram entre 1779 e 82, ano a partir do qual os valores se mantiveram. Nestes dois anos, metade dos domicílios possuía até dez cativos, e o tamanho de posse mais recorrente foi o de nove escravos. Foram poucos os domicílios com mais de 15 escravos: em 1782, eram 3; dez anos mais tarde, encontramos apenas 4.

Os dois conjuntos de valores podem apontar para dois fenômenos paralelos. Por um lado, temos crescimento das pequenas posses ao longo do período em ques-tão, que pode estar relacionado tanto ao crescimento das posses urbanas como ao acesso de jovens lavradores aos seus primeiros escravos. Por outro lado, o pequeno aumento da concentração de escravos entre os maiores escravagistas parece estar ligado ao crescimento das unidades de lavradores abastados, mais velhos, que ao lon-go desses anos conseguiram aumentar o tamanho de seus plantéis. O pressuposto de que as unidades urbanas são menores que as rurais no Rio Grande foi defendido por Helen Osório, a partir de estudo de um conjunto de inventários entre os anos de 1765 e 1825, ao verificar que as posses escravas de inventários de áreas urbanas e rurais apresentam mais posses com até quatro escravos do que aqueles apenas de área rural32. Tal configuração de distribuição de escravos entre áreas urbanas e rurais também foi encontrada por Stuart Schwartz na Bahia33.

CONCLUSãO

Os róis de Porto Alegre dos anos de 1779, 1782 e 1792 apontam para um crescimento constante da população, com uma taxa de crescimento anual que acom-

32 OSóRIO, 2004, p. 9.33 Segundo o autor, “a organização dos dados [de posse de escravos] segundo a localização e o tipo de atividade econômica, em ordem crescente de concentração de posse, revela claramente o grau em que todas as medidas [coe-ficiente de gini, parcela do total de escravos mantida pelos 10% maiores escravistas e número médio de escravos por proprietário] mais baixas estão associadas à escravidão urbana” (SCHWARTZ, 1988, p. 359).

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panha aquele verificado para toda a Capitania do Rio Grande de São Pedro. Segundo nossas estimativas, a população residente teria passado da casa de 1800 pessoas para a de 2300. Se incluirmos andantes, a relação do destacamento de infantaria de 1782 e a população marítima de 1792, a população que Porto Alegre comportava era para os anos de 1782 e 92 de, respectivamente, 1879 e 2664 pessoas. Se levarmos em conta a parcela da população que certamente ficou sub-registrada, mesmo com as estimativas efetuadas, a população deve ter chegado quase à casa das 2000 pessoas, em 1782, e passado para cerca de 2800 em 1792.

Esse grande crescimento esteve provavelmente ligado ao crescimento eco-nômico da região. Como demonstrou Osório, houve enorme crescimento dos re-banhos na localidade no período em destaque. Ao mesmo tempo, os róis apontam que o crescimento das populações escravizadas e de agregados foi superior aquele verificado entre os familiares de chefes de fogo. Além disso, houve um expressivo aumento do número de descrições de domicílios compostos por homens solteiros e solitários. Ao que parece, esses dados indicam que o aumento populacional então verificado tenha como seu principal fator a imigração forçada de gente de origem africana e da migração de homens livres ou libertos pobres oriundos de outras lo-calidade do próprio Continente ou de outros cantos da América portuguesa. Isto é, constamos um possível indicativo do aumento da mão-de-obra disponível na região, num contexto de crescimento econômico em uma região de recente ocupação.

A análise da estrutura de posse demonstrou o peso e a importância da escra-vidão numa paragem tão distante dos grandes centros coloniais. Mesmo levando em consideração a significativa perda de informações pelo mal estado do rol e, também, a parcela da população que pode ter ficado de fora do arrolamento, os dados en-contrados nas descrições de domicílios disponíveis apontam para o fato de que era comum que houvesse escravos sob o teto de famílias sem grandes recursos. Fossem eles lavradores de poucas reses, fossem moradores do núcleo urbano que talvez (so-bre)vivessem do ganho diário de seus cativos.

No conjunto dos fogos escravistas, as pequenas posses se mostraram predo-minantes, com crescimento ao longo do período em foco. Isso pode estar relaciona-do ao aumento das unidades produtivas urbanas, ligadas ao artesanato, ao comércio ou às atividades portuárias, como ao ciclo de vida dos jovens lavradores cabeças de fogo que conseguiram comprar seus primeiros escravos. Ao mesmo tempo, verifi-camos o aumento das posses daqueles que mais possuíam escravos. Possivelmente, este aumento esteve relacionado ao enriquecimento dos lavradores mais abastados ao longo do período, que conseguiram aumentar o tamanho de suas posses.

Devemos lembrar que a Capitania do Rio Grande foi um dos principais des-tinos dos escravos revendidos pelos comerciantes da praça do Rio de Janeiro, como

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apontaram João Fragoso e Manolo Florentino34. Por isso, os dados encontrados não podem ser tomados como extravagantes, mas, pelo contrário, encontram sua explicação na rede formada pelo mercado interno colonial. Encontramos nestes dados um indicativo expressivo de que, talvez, a economia porto-alegrense possa ter sido escravista, dependente, em grande medida, da mão-de-obra cativa. Apesar de ainda ser cedo para tal defender tal posição, procuramos apresentar alguns dados que apontam para a importância de homens e mulheres africanos, em sua maioria de origem congo-angolana35, que participaram, mesmo que contra suas vontades, do processo de formação da sociedade meridional. Participaram, inclusive, da formação da própria capital da Capitania do Rio Grande de São Pedro, para a qual foi atribuída, durante muito tempo, origem açoriana.

34 FRAGOSO; FLORENTINO, 2001, p. 106ss. 35 OSóRIO, 2004, p. 12.

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FONTES DOCUMENTAIS

Arquivo Histórico da Cúria Metropolitana de Porto AlegreRóis de confessados de Porto Alegre dos anos de 1779, 1780, 1781, 1782, 1790, 1792;Primeiro livro de batismos de Porto Alegre;Primeiro livro de óbitos de Porto Alegre.

Biblioteca Nacional do Rio de JaneiroMapa geográfico do Rio Grande de São Pedro suas freguesias e moradores de ambos os sexos, com declaração das diferentes condições e cidades em que se acham em 7 de outubro de 1780. 9, 4, 9 nº 134.

REFERêNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Por ter ido Ao estAdo orientAl: guerrA e fronteirA nAs CArtAs de AlforriA de Alegrete (1832-1871)

Marcelo Santos Matheus¹

Resumo: O objetivo do presente artigo é analisar como duas características da região da Campanha, o espaço fronteiriço e a guerra endêmica, refletiram-se nas cartas de alforria em Alegrete, entre 1832 e 1871. Da mesma forma, espera-se capturar como estes dois elementos influenciaram os atores sociais, especialmente os escravos, na elaboração de suas estratégias – principalmente na busca da liberdade. Durante o recorte temporal proposto, foram registradas 230 manumissões, em que apa-recem 243 libertos. Com isso, espera-se demonstrar que inclusive os cativos tinham uma interpretação própria dos acontecimentos que os rondavam, bem como do espaço em que estavam inseridos.

Palavras-chave: Alegrete – alforrias – fronteira – guerra.

INTRODUçãO

Opresente artigo faz parte de uma pesquisa mais ampla, que está sen-do desenvolvida junto ao Programa de Pós-Graduação em História da Unisinos. Nesta última, busca-se compreender como ocorreu

o processo de passagem da escravidão para a liberdade, via cartas de alforria, em Alegrete entre 1832 e 1888. Para isto, serão utilizadas uma série de fontes, caso dos registros de batismo e de casamentos, além do principal corpo documental da pes-quisa, as alforrias.

Por sua vez, no texto que aqui apresentamos, muito em razão da pesquisa estar no seu início, o objetivo é mais específico. Nele, pretende-se analisar como dois elementos característicos da região da Campanha - onde estava inserido o município de Alegrete, a guerra e a fronteira refletiam-se nas cartas de alforria e influenciavam os projetos dos agentes sociais ali inseridos, especialmente os escravos e suas estra-tégias em busca da liberdade.

¹ Mestrando do Programa de Pós-graduação em História da Unisinos, bolsista CNPq, orientando do Prof. Dr. Paulo Roberto Staudt Moreira.

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Deste modo, a finalidade do texto não é analisar as manumissões como um todo, mas somente aquelas que apresentam alguma referência aos dois importantes aspectos referidos acima, entre 1832, ano do registro da primeira manumissão em Alegrete, e 1871, ano da promulgação da Lei do Ventre Livre, a qual tornou oficial o direito dos escravos à alforria, acarretando profundas transformações à instituição escravidão.

A FRONTEIRA E A GUERRA COMO OPORTUNIDADES

O estudo sobre qualquer tema referente à Campanha no século XIX deve le-var em conta duas peculiaridades da região: o espaço fronteiriço e a guerra constante. De acordo com Eduardo Neumann, em meados do século XVIII e início do século XIX, aquele espaço estava dividido “entre os interesses das duas Coroas ibéricas e a luta guarani pela autodeterminação”, com “a fronteira da América meridional” apresentando-se tripartida. Assim, estas três partes tencionavam e influenciavam os rumos que tomariam as relações sociais estabelecidas naquela região².

Por sua vez, no século XIX, teve início o processo de construção dos Estados nacionais independentes, com a questão ganhando novos contornos. Com isso, “os limites entre” Brasil e a Banda Oriental (no futuro, República Oriental do Uruguai) “durante os três primeiros quartos do século XIX não haviam sido definidos”³.

Neste sentido, conforme Luís A. Farinatti “a análise dos processos históricos ocorridos nas terras meridionais do Império não podem prescindir da percepção de que aquele espaço estava inserido em uma ampla região de fronteira”, sendo muito influenciada por essa condição4. Logo, este espaço fronteiriço dotava os sujeitos históricos ali presentes de recursos (materiais e simbólicos), e não levá-los em conta podia fazer com que indivíduos situados em pólos sociais antagônicos sofressem as consequências.

Neste contexto, mesmo antes da independência política do Brasil, as autorida-des portuguesas se preocupavam com a fuga de escravos da capitania de São Pedro

² NEUMANN, Eduardo Santos. Uma fronteira tripartida: a formação do continente do Rio Grande – século XVIII. In: Kühn, Fábio .et al (org). Capítulos de História do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: UFRGS, 2004, p. 46.³ SOUZA, Suzana Bleil de & PRADO, Fabrício Pereira. Brasileiros na fronteira uruguaia: economia e política no século XIX. In: Kühn, Fábio. et al (org). Capítulos de História do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: UFRGS, 2004, p. 121-122.4 FARINATTI, Luis Augusto Ebling. Confins Meridionais: famílias de elite e sociedade agrária na Fronteira Sul do Brasil (1825-1865). Rio de Janeiro: PPGHIS/UFRJ, 2007, p. 67-68 (Tese de Doutorado)

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do Rio Grande do Sul. Em 1813 foi expedida uma reclamação contra um decreto das Províncias Unidas do Rio da Prata, o qual tornava livre todo cativo de país estrangei-ro que conseguisse atravessar a fronteira5.

Depois de 1822, ainda em uma conjuntura de indefinições de limites nacio-nais, muitos senhores de escravos rio-grandenses eram proprietários de terras dos dois lados da fronteira. Segundo Susana B. de Souza e Fabrício Prado, em meados do século XIX, a maior parte das terras ao norte do rio Negro pertencia a pecuaris-tas brasileiros6. Com isso, um senhor que não soubesse negociar certas condições com seus escravos podia vê-lo fugir para o Estado Oriental (ou lá permanecer, já que alguns cativos já estavam trabalhando no Estado vizinho), onde a escravidão havia sido abolida em 18427. Assim, se para os senhores a fronteira podia ser uma oportunidade para negócios (ou contrabando), os escravos, por sua vez, podiam ter uma outra interpretação acerca desta condição geográfica. Da mesma forma, se por um lado a guerra podia significar ganhos ou perdas aos indivíduos mais ricos, para os escravos podia marcar uma chance de alcançar a liberdade, fugindo do cativeiro e se alistando no exército do inimigo8.

Pensar esta zona de fronteira como uma ferramenta de possível utilização também pelos subalternos, no caso os escravos, não é um paradoxo. Conforme Fre-drik Barth “pessoas situadas em posições diferentes podem acumular experiências particulares e lançar mão de diferentes esquemas de interpretação”9. Consequen-temente, compreender como os cativos “manejaram”10 a fronteira, a partir de sua posição social, ou seja, dentro de suas possibilidades e de sua lógica, torna-se funda-mental para entender as relações sociais ali construídas, bem como as estratégias que estes indivíduos elaboraram para chegar a liberdade.

5 GRINBERG, Keila. Escravidão, alforria e direito no Brasil oitocentista: reflexões sobre a lei de 1831 e o “princípio da liberdade” na fronteira sul do Império brasileiro. CARVALHO, José Murilo de (org.). In: Nação e cidadania no império: novos horizontes. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p. 274.6 De acordo com os autores “em 1857 estimava-se que os rio-grandenses possuíssem cerca de 30% do território oriental”. Informações em: SOUZA S. B. & PRADO, F. P., op. cit., p. 122 e 133.7 FARINATTI, op. cit., p. 87. Quando iniciou o movimento pela independência das áreas do Império espanhol no rio da Prata, o Cabildo de Buenos Aires decretou o fim do tráfico de cativos e a liberdade do ventre escravo, nos anos de 1812 e 1813, respectivamente, ficando estes obrigados a trabalhar de graça até os 15 anos de idade. Em 1825, na Banda Oriental, estes decretos foram promulgados em lei. Informações em: MOREIRA, Paulo Roberto Staudt. Sobre Fronteira e Liberdade: Representações e práticas dos escravos gaúchos na Guerra do Paraguai (1864/1870). Revista Anos 90 (PPGH-UFRGS), Porto Alegre, v. 6, n. 9, 1998, p. 127; FREGA, Ana. Caminos de libertad em tiempos de revolución: Los esclavos em la Província Oriental Artiguista, 1815-1820. Revista História UNiSi-NOS, São Leopoldo, v. 4, n. 2, 2000, p. 4; GRINBERG, op. cit., 2007, p. 283.8 MOREIRA, op. cit., p. 121-122 e p. 142-144. FARINATTI, op. cit., p. 328-329; BORUCKI, Alex. Caminhos Cruzados: senhores e escravos da fronteira oeste do Rio Grande. CD-ROM [do] 4º Encontro “Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional”: Curitiba, 2009, p. 7.9 BARTH, Fredrik. O guru, o iniciador e outras variações antropológicas. Rio de Janeiro: Contracapa, 2000, p. 176.10 FARINATTI, op. cit., p. 82.

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POR TER IDO AO ESTADO ORIENTAL

No primeiro dia do ano de 1868, Duarte Silveira Gomes alforriou seus es-cravos Bonifácio, Ângelo, Inocêncio e Antônio (todos crioulos) juntamente com o africano Pedro. Os cinco cativos chegaram à liberdade com a condição de “servirem no estado Oriental por tempo de 10 anos” com o seu senhor “dando-lhes durante esse tempo [...] unicamente comedoria e vestuário”11.

O acordo entre os escravos e Duarte Silveira foi feito em meio a Guerra do Paraguai, conflito que envolveu Paraguai, Brasil, Argentina e Uruguai, e marcou a história da América do Sul na segunda metade da década de 1860. Dentre os muitos e complexos motivos que levaram os países à guerra estavam, novamente, os inte-resses de criadores de gado e senhores de escravos rio-grandenses com propriedades nos dois lados da fronteira, os quais se debatiam contra leis uruguaias de taxar a passagem do rebanho pela fronteira e de não-devolução de escravos fugidos12. Para melhor entender este período e o contexto das alforrias dos cativos de Duarte Silvei-ra, é preciso voltar um pouco no tempo.

Quando a Revolução Farroupilha terminou, em 1845, a República do Uruguai estava em guerra civil. A “Guerra Grande” opunha os “blancos” de Manoel Oribe e os “colorados” de Fructuoso Rivera. Mesmo assim, durante as décadas de 1840 e 1850, os senhores brasileiros seguiam levando seus cativos para suas propriedades no Uruguai, disfarçando a escravidão com contratos de trabalhos13. Oribe, que co-mandava o interior - especialmente o norte do Uruguai, começou em 1848 a criar impedimentos para o livre trânsito de gado do Uruguai para o Brasil, da mesma forma que recebia em suas tropas os cativos de brasileiros que conseguiam escapar. Em meio a todas estas contendas, seguidamente os rio-grandenses solicitavam ajuda ao governo imperial para proteger seus bens no país vizinho14.

Com receio do aumento do poder e da influência de Juan M. Rosas na região, o Império brasileiro entrou no conflito ao lado dos colorados, ajudando-os a vencer Manuel Oribe e o caudilho “argentino”, assinando em 12 de outubro de 1851 alguns

11 Livros Notariais de Transmissões e Notas, 1º Tabelionato de Alegrete, livro 13, p. 9v, APERS.12 GUAZZELLI, César Augusto Barcellos. O Rio Grande de São Pedro na primeira metade do século XIX: estados-nações e regiões provinciais no Rio da Prata. In: Kühn, Fábio. et al (org). Capítulos de História do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: UFRGS, 2004, p. 95.13 FARINATTI, op. cit., p. 87.14 SOUZA, S. B. de & PRADO, F. P., op. cit., p. 128; FARINATTI, op. cit., p. 193.

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tratados com o Uruguai que salvaguardavam os interesses dos rio-grandenses. Den-tre eles estava a obrigação de devolução dos escravos fugidos da província15.

Contudo, os protestos dos rio-grandenses contra o desrespeito à propriedade e mesmo aos tratados continuaram, sendo que “entre 1852 e 1864 o governo brasi-leiro encaminhou 56 reclamações oficiais ao governo uruguaio”16. Esta situação pio-rou quando da ascensão dos blancos ao poder, que pôs em perigo os tratados que o Brasil havia conseguido arrancar do Uruguai e que beneficiavam os rio-grandenses17.

Neste contexto, em 1861, já durante a presidência do blanco Bernardo Berro, o governo uruguaio anuncia o término legal dos tratados de 1851, colocando “um fim no livre trânsito de gado pela fronteira e na extradição de escravos vindos do Brasil”18, além de decretar que os contratos entre cidadãos de cor e brasileiros não poderiam exceder seis anos. Após anos de conflitos, reclamações e negociações, em 1864 o governo imperial, novamente, decidiu intervir na política uruguaia, auxilian-do o levante do colorado Venâncio Flores, que derrubou o sucessor de B. Berro, o também blanco Atanásio C. Aguirre19.

Com a volta dos colorados ao poder, os tratados foram mantidos. Neste sen-tido, a negociação de Duarte Silveira com seus cinco cativos só foi possível em razão da intervenção brasileira na política uruguaia. Caso os acordos não houvessem sido respeitados, o senhor dos escravos não teria garantias de que o governo uruguaio não iria expropriá-lo, nem que em caso de fuga, os escravos não seriam devolvidos.

Por outro lado, ter ido para o lado uruguaio abriu a oportunidade dos cinco cativos, se quisessem, ter requerido a sua liberdade via justiça. Isto por que, oficial-mente, o Brasil havia abolido o tráfico de escravos em 1831. A lei de 7 de novembro daquele ano foi elaborada na esteira dos tratados de 1810, 1815 e 1817 de Portugal com a Grã-Bretanha, e do tratado de 1826 (ratificado em 1827) do Brasil com o

15 SOUZA, S. B. de & PRADO, F. P., op. cit., p. 131-132. Segundo este acordo, o senhor reclamante tinha que com-provar a posse e a propriedade do escravo, além de ficar proibido de castigar o cativo. Em 1857 o Brasil também assinou um tratado de devolução de escravos fugidos com a Confederação Argentina, onde a escravidão havia sido abolida em 1853. Informações em: GRINBERG, Keila. op. cit., 2007, p. 275 e 284; ZUBARAN, Maria Angélica. Escravidão e liberdade nas fronteiras do Rio Grande do Sul (1860-1880): o caso da lei de 1831. Estudos ibero-Americanos, Porto Alegre, v. XXXII, n. 2, p. 119-132, dezembro 2006, p. 125. Uma retificação do Tratado de Devolução de Escravos de 1851 obrigava os senhores que quisessem levar seus cativos para trabalhar no Uruguai a alforriá-los previamente, como o fez Duarte Silveira. Informação em: CARATTI, Jônatas Marques. Alforrias e contratos de trabalho: escravos rio-grandenses em estâncias uruguaias (meados do século XIX). Revista Aedos (UFRGS), Porto Alegre, v. 2, n. 4, 2009, p. 206.16 SOUZA, S. B. & PRADO. F. P., op. cit., p. 132.17 LEITMAN, Spencer. Raízes Sócio-Econômicas da Guerra dos Farrapos. Rio de Janeiro: Graal, 1979, p. 173.18 FARINATTI, op. cit., p. 78.19 SOUZA, S. B. & PRADO, F. P., op. cit., p. 136; LEITMAN, op. cit., 1979, p. 173.

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Império britânico. Ela estabelecia que os escravos que entrassem no Brasil três anos após a data do acordo (1827), seriam considerados livres20.

Este foi o caso da parda Maria Estácia, que teve a carta de alforria concedida pelo juiz municipal de Alegrete Libindo Nunes Coelho, em 13 de maio de 186821. Ela requisitou na justiça sua liberdade, provando

[...] com testemunhas e com a assistência de seu curador, o Dr. Franklin Gomes Souto, a cerca da liberdade que tem direito visto ter por diversas vezes ido ao Estado Oriental do Uruguai em companhia de sua ex-senhora Dona Mariana Romana Jacques casada com Sebas-tião Molina do Nascimento por seu livre consentimento, em virtude da Lei de 07-11-31 e Aviso de 20-05-5622.

O mesmo juiz também passou a alforria para outra escrava, a preta Maria, em 186823. No texto do registro consta que “em virtude dos senhores [herdeiros de Ar-minda Gonçalves Gomes] terem a consciência e certeza que a escrava Maria é livre por ter ido ao Estado Oriental deveras vezes em companhia de nossa mãe”. Pode ser que a conjuntura – um juiz favorável à causa do cativo, possa ter contribuído, não sendo assim uma coincidência Libindo Nunes aparecer nestes dois casos24.

Finalmente, ainda dentro do recorte temporal deste estudo, mais dois escra-vos - Joana25 (em 1869) e Braz26 (1870), de igual forma conquistaram a liberdade por terem ido ao Estado Oriental. O caso de Joana é muito interessante. Ela entrou em acordo com seu senhor, Anacleto Rodrigues Jacques, ganhando a liberdade com a condição de servi-lo por mais 7 anos. Entretanto, no momento do registro do docu-mento, Anacleto Jacques

[...] informado [...] que não podia dar liberdade a minha escrava Joana com a condição de servir-me por espaço de 7 anos, visto que ela foi ao Estado Oriental do Uruguai por meu consentimento, por meio

20 O artigo 1º da lei de 1831 estabelece que “todos os escravos, que entrarem no território ou portos do Brasil, vindos de fora, ficam livres”. Informação em: GRINBERG, op. cit., 2007, p. 269. Ver também: ZUBARAN, op. cit., p. 125.21 Livros Notariais de Registros Diversos, 2º Tabelionato de Alegrete, livro 1, p. 24r, APERS.22 O aviso 188 de 20 de maio de 1856 foi uma resposta do Conselho de Estado a uma consulta do presidente do Tribunal de Apelação, Eusébio de Queirós. Nele, os conselheiros ratificaram a validade da lei de 1831. Informação em: GRINBERG, Keila, op. cit., 2007, p. 276. Por sua vez, o Aviso de 25 de janeiro de 1843 criou o acesso dos escravos aos curadores, o que garantiu a utilização de normas jurídicas pelos cativos. Informação em: ZUBARAN, op. cit., p. 121.23 Livros Notariais de Registros Diversos, 2º Tabelionato de Alegrete, livro 1, p. 27v, APERS.24 No inventário dos bens de seus falecidos pais, o Capitão Felisberto Nunes Coelho e Ana Joaquina da Conceição, Libindo Nunes Coelho já havia “abdicado do preço do escravo” Antônio, africano, “em favor de sua liberdade”, junto com os outros herdeiros, passando a alforria a Antônio em 31 de março de 1854. Informação em: Livros Notariais de Registros Diversos, 1º Tabelionato de Alegrete, livro 3, p. 65r, APERS.25 Livros Notariais de Registros Diversos, 2º Tabelionato de Alegrete, livro 1, p. 41r, APERS.26 Livros Notariais de Registros Diversos, 2º Tabelionato de Alegrete, livro 1, p. 52r, APERS.

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desta revogo a carta de liberdade que dei a dita a minha escrava com a condição de servir-me por 7 anos.

No caso do preto Braz, de “mais de 60” anos, parece ter acontecido algo pare-cido. Após um longo texto, em que explica as razões de libertar seu escravo, Joaquina Maria Anhaia (viúva de José Manoel de Souza), expõe como último motivo o fato de ter sido “informada por pessoas fidedignas que o preto Braz por vezes esteve na Re-pública do Estado Oriental em companhia do mencionado meu marido”. Pode ser que Joaquina Anhaia pretendesse algo mais (alguma condição por tempo de serviço, certa quantia em dinheiro) para libertar seu cativo. Porém, o fato dele ter atravessado a fronteira com seu ex-senhor impossibilitou qualquer tentativa de ganho adicional para a viúva.

Portanto, dentre as quatro manumissões registradas em razão dos escravos terem ido ao Estado Oriental, a única que pareceu litigiosa foi a da crioula Maria Estácia. Tendo conhecimento de que as regras jurídicas lhe possibilitavam tentar a liberdade, em razão das “contradições criadas pelos conflitos entre as elites locais e as metropolitanas”27 sobre a interpretação da lei de 1831, e contando com a ajuda de outras pessoas – caso do advogado Franklin Gomes Souto, ela escolheu entrar na justiça. Não sabemos se antes de arriscar esta chance, Maria tentou um acordo com sua senhora28.

Keila Grinberg lembra que, embora tivesse entrado em vigência, a lei de 1831 nunca foi colocada em prática – derivando daí à máxima lei para inglês ver 29. Neste contexto, os juristas da Corte de Apelação do Rio de Janeiro tinham dúvidas em como proceder em relação às ações de liberdade que tinham como argumento cen-tral o tráfico ilegal. Por sua vez, mais complicados ainda eram os casos dos escravos do extremo sul do império, que requeriam a alforria por terem atravessado a fron-teira30.

Assim, em meio “a ambigüidade de regras” e à “necessidade de tomar deci-sões em situações de incerteza”, mesmo com uma “quantidade limitada de infor-

27 GRINBERG, Keila, op. cit., 2007, p. 104. Segundo Maria A. Zubaran ocorreram “calorosas discussões entre os senadores do Império para decidir se esta Lei estava em vigor ou se caíra em desuso”. Alguns deles consideravam a lei vigente. Já outros pensavam ser ela “caduca”, deixando de “aplicá-la”. De concreto, para a autora, foi que a lei de 1831 abriu “brechas legais que possibilitaram aos escravos, juntamente com seus curadores, pressionar as Cortes de Justiça para a interpretação da lei a favor da liberdade”. Informação em: ZUBARAN, op. cit., p. 123.28 Oportuno lembrar que Maria Estácia foi a primeira a conquistar a liberdade em Alegrete através deste argumento jurídico, não sabendo, deste modo, se iria ter êxito na sua tentativa.29 GRINBERG, Keila, op. cit., 2007, p. 269.30 Idem , 2007, p. 269-270. Até 1873, quando de uma sentença em contrário, podia-se apelar para a segunda instância, que era o tribunal de Relação do Rio de Janeiro. A partir de 1874, passou a ser o Tribunal de Relação de Porto Alegre. Informação em: ZUBARAN, op. cit., p. 121.

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mações”31, Maria Estácia, certamente amparada no grupo social ao qual pertencia, decidiu apostar na conquista da liberdade via justiça. Podemos nos questionar, caso tivesse fracassado a ação pela liberdade da cativa, o quão ruim seria seu relaciona-mento com sua senhora, com a escrava podendo sofrer retaliações pela sua ousadia. Felizmente, não foi o caso. Da mesma forma, o seu sucesso pode ter aberto “o ca-minho jurídico para a libertação de outros escravos”32, ou seja, pode ter contribuído para as liberdades de Braz, Joana, da outra Maria e de outros casos semelhantes após 187133.

Como mencionei em estudo anterior, não é possível uniformizar toda uma gama de experiências, cada uma com sua lógica34. Deste modo, apesar do fato dos cinco escravos de Duarte Silveira não terem acessado a justiça, entrando em acordo com seu senhor, isto não descaracteriza que esta oportunidade foi aberta aos mes-mos. Talvez eles pensassem ser mais vantajoso o acordo com o senhor, ou mesmo talvez esta possibilidade não tivesse chegado ao seu conhecimento.

Por sua vez, não se está aqui “supervalorizando” ou “superdimensionando”35 o caso de Maria Estácia e dos demais escravos, nem os colocando em igualdade de condições em relação aos senhores perante o poder judiciário. Apenas é fato que eles se utilizaram de um recurso legal disponível. E a utilização da estrutura judiciária de curadores e juízes não permite a ilação de que esta estratégia somente legitimou o sistema escravista, debilitando a capacidade dos escravos de revoltarem-se e organi-zarem-se em rebeliões. Prefiro entender que Maria agiu dentro dos limites possíveis e que a sua ação, mesmo que não obtivesse sucesso, ajudou a enfraquecer toda a es-trutura do regime escravista e, quem sabe, contribuiu para que o pensamento liberal de igualdade natural entre os homens, ainda que de maneira extremamente precária, se espalhasse mais rapidamente pelo país.

Neste sentido, é importante a reflexão do historiador Edward P. Thompson, o qual entende que na negociação, mesmo entre forças sociais desiguais, os mais fracos ainda tinham direitos reconhecidos por aqueles que detinham mais força36.

31 LEVI, Giovanni. A Herança imaterial: trajetória de um exorcista no Piemonte do século XVii. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000, p. 46.32 GRINBERG, Keila. Alforria, direito e direitos no Brasil e nos Estados Unidos. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, nº 27, 2001, p. 69.33 Apesar de não estarem dentro do período deste estudo, foram encontradas outras 8 alforrias, em Alegrete, com motivos idênticos aos dos 4 escravos, todas elas na década de 1870. Estas serão abordadas e analisadas quando do aprofundamento desta pesquisa.34 MATHEUS, Marcelo Santos. Alforrias em Alegrete (1832-1871). Santa Maria: TFG/UNIFRA, 2009, p. 37. (Monografia)35 GORENDER, J. A escravidão reabilitada. São Paulo: Ática, 1991, p. 29-30.36 THOMPSON, Edward P. Costumes em Comum. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p, 260.

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Da mesma forma, o autor compreende a lei como um espaço para defesa dos gru-pos subalternos e também para impor limites às classes dominantes (“muitas vezes um campo de conflito”), e não apenas como “outra máscara do domínio de uma classe”37. Foi isto que Maria - e o grupo social no qual ela estava inserida, fez. E com sucesso. Ela desafiou “o direito de propriedade” da senhora, “minimizando os aspectos coercitivos da lei”38.

Contudo, este espaço fronteiriço não abria apenas oportunidades legais aos cativos. A proximidade com Estados onde a escravidão havia sido abolida, apesar de acordos entre eles e o Império brasileiro, não impediu as tentativas de fugas – as quais, por sua vez, não inviabilizaram a reprodução da escravidão naquele contex-to39. Luís A. Farinatti analisa em sua tese de doutorado um processo-crime onde a investigação tinha como base uma denúncia de uma fuga coletiva de escravos para o Estado Oriental, em 185040. No processo aparece aproximadamente uma dezena de escravos, de cinco diferentes senhores, participando da ação juntamente com ho-mens livres41. A complexidade do caso revela que, além dos cativos se utilizarem da fronteira dentro de suas possibilidades, eles elaboravam estratégias próprias, mesmo frente a uma pesada estrutura coercitiva42.

Por fim, cabe aqui um comentário sobre uma diferenciação que a fronteira impunha ao valor dado a escolha dos padrinhos - os quais podiam ter um papel deci-

37 THOMPSON, Edward P. Senhores e caçadores: a origem da lei negra. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, p. 350-351e 352. Muito embora Thompson exclua “crianças” e “escravos” desta análise mais complexa de como a lei era produzida e aplicada na prática, releva-se o fato deste grupo social não ser o foco de seu estudo, bem como as pesquisas acerca da instituição escravidão ainda não estarem em um estágio mais avançado (nos temas e na sua complexidade) na época da publicação de Senhores e Caçadores. Portanto, considero extremamente válidas suas consi-derações sobre o acesso à lei pelos grupos subalternos, inclusive os cativos. Como ele mesmo pondera mais adiante, “a maioria dos homens tem um forte senso de justiça, pelo menos em relação aos seus próprios interesses”. Os escravos também o tinham, dentro dos seus limites. THOMPSON, Edward P., op. cit., 1987, p. 353-354.38 ZUBARAN, op. cit., p. 120.39 FARINATTI, op. cit., p. 379.40 Idem, p. 378-382.41 Aliás, eram frequentes as participações de homens livres, inclusive orientais, na “sedução de escravos”, com o objetivo de convencê-los a fugir para o Estado Oriental, especialmente a partir dos anos 1850. Nesta mesma década, Benito Varella, ex-vice-cônsul oriental de Jaguarão, foi inclusive preso acusado de aliciar cativos. Informações em: LIMA, Rafael Peter de. Violência na Fronteira: o seqüestro de negros no Estado Oriental (século XiX). IV Mostra de Pesquisa do Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: CORAG, 2006, p. 264. Muito significativa também é a tentativa de insurreição escrava na vila de Taquari, em 1864, analisada por Paulo Moreira. Nela, os cativos planejavam saquear a cidade e depois atravessar a fronteira em busca da liberdade. MO-REIRA, op. cit., p. 134-141.42 Neste mesmo sentido, é exemplar o caso do escravo Salvador, analisado por Silmei Petiz. Salvador, ameaçado de ir a leilão após a morte de seu senhor, afirma que se tal fato ocorrer, ele “fugirá para o Estado Oriental”. Informação em PETIZ, Silmei de S. Buscando a liberdade: As fugas de escravos para o além-fronteira de 1811 a 1850. Passo Fundo: UPF, 2006, p. 63.

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sivo na busca pela liberdade43. Sidney Chalhoub, analisando as relações de compra e venda de escravos na corte, faz referência a um período de testes - o senhor, insatisfeito com a compra, poderia num curto prazo devolver o cativo44. Ele argumenta que, a princípio, isto que poderia parecer apenas uma garantia ao “consumidor”, também era um espaço de interferência do escravo na transação: durante o período de adap-tação, os cativos podiam expressar ao futuro senhor o trabalho de sua preferência, a insatisfação com tarefas exigidas dele ou, no caso de não querer permanecer com o novo senhor, o cativo podia, dentre várias outras estratégias, ‘parecer’ doente.

Tanto este período de teste, quanto a preferência do escravo em relação à sua ocupação parece algo impensável para a fronteira45. Ali, distante dos centros onde se comercializavam escravos, a adaptação do cativo ao meio social era uma neces-sidade. Por isso, os primeiros laços de parentescos, como o batismo, ganham outro significado em uma região longínqua de fronteira, ao contrário do que representava em centros com uma maior população cativa, onde o rito do batismo sancionava “formalmente uma aliança forjada anteriormente”46. Inserir o escravo no mundo social da Campanha, bem como dotá-lo de uma profissão, era algo que os senhores tinham que se preocupar, sob risco de perder o investimento47.

43 Em minha monografia, analisei a alforria da parda Inácia, que teve sua liberdade paga em 4 de julho de 1837, quan-do tinha seis anos, pela madrinha Cipriana. Está pagou 300$ mil réis a Joaquim dos Santos Prado Lima. A madrinha, que no registro de batismo de Inácia consta como Sipriana Maria da Conceição, apadrinhou a menina juntamente com Jacinto, pardo e escravo. Até onde pôde ser verificado, Jacinto, entre os anos de 1830-32, foi padrinho de mais 3 crianças escravas (além de Inácia), pertencentes a dois senhores diferentes, o que demonstra que ele era um indi-víduo bastante requisitado e inserido numa extensa rede de relações, podendo apresentar atributos que auxiliavam outras pessoas a alcançar a liberdade. Informações em: Livros Notariais de Registro Diversos, 1º Tabelionato de Alegrete, livro 1, p. 73v, APERS; Livro 02 de Batismos da Capela Curada de Nossa Senhora Aparecida de Alegrete, folhas 358, 375 e 364. Arquivo da Diocese de Uruguaiana.44 CHAULOUB, Sidney. Visões da Liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na corte. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 75-77.45 Vinícius Pereira encontrou um caso semelhante aos de Sidney Chalhoub, mas em São Leopoldo e em relação a um cativo escravizado ilegalmente, pois havia sido seqüestrado no Uruguai. Informação em: OLIVEIRA, Vinícius Pereira de. De Manoel Congo a Manoel de Paula. Porto Alegre: EST, 2006, p. 67.46 ENGEMANN, Carlos. Da comunidade escrava e suas possibilidades, séculos XVII-XIX. In: MANOLO, Flo-rentino (org.). Tráfico, cativeiro e liberdade: Rio de Janeiro, séculos XVii-XiX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005, p. 189.47 Gabriel Berute observou que aproximadamente 1/3 dos escravos despachados para o Rio Grande de São Pedro do Sul, entre 1788-1802, tinham entre 10 e 14 anos, ou seja, se esta tendência de entrada de escravos jovens conti-nuou se reproduzindo até a primeira metade do século XIX, o rito do batismo ganha ainda mais importância. Infor-mação em: BERUTE, Gabriel do Santos. Dos escravos que partem para os portos do sul: características do tráfico negreiro do Rio Grande de São Pedro do Sul, 1790-1825. Porto Alegre: PPGH/UFRGS, 2006. (Disserta-ção de Mestrado). Por outro lado, mesmo utilizando-se de algumas ferramentas como o batismo, não era fácil evitar as fugas de escravos oriundos de outras províncias, como percebeu Albertina Vasconcelos. A autora, investigando a importância do tráfico da Bahia para o Rio Grande do Sul através de guias e passaportes de escravos, relata que um número considerável de cativos naturais da Bahia fugia depois de aportar em Rio Grande, segundo os jornais da época. VASCONCELOS, Albertina Lima. Tráfico interno, liberdade e cotidiano de escravos no Rio Grande do Sul: 1800-1850. CD-ROM [do] 2º Encontro “Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional”: Porto Alegre, 2005, p. 9-10.

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Neste contexto, o estudo com os registros de batismos, por exemplo, podem revelar a existência de alguns escravos que eram responsáveis pela integração dos novos cativos naquele mundo48, bem como quais padrinhos contribuíam mais para seus afilhados chegarem a liberdade. Portanto, da mesma maneira que a “condição de fronteira dotava-lhe [a elite rio-grandense] de recursos que outras elites periféricas não tinham”49, os escravos também podiam utilizá-la em beneficio próprio, confor-me suas possibilidades.

GUERRA E LIBERDADE: O DESCOMPROMETIMENTO DE ALEGRETE COM A CAUSA BRASILEIRA

A guerra, evento constante em boa parte do século XIX na capitania e de-pois província de São Pedro do Rio Grande do Sul, também influenciou as vidas e estratégias dos escravos do Brasil meridional. Gabriel Aladrén, analisando a partici-pação de pretos e pardos, livres e libertos nas Guerras Cisplatinas entre 1811 e 1828, período anterior ao deste estudo, afirma que “um dos caminhos mais sólidos para ascensão social de libertos e negros livres durante o período colonial era a partici-pação nas campanhas milicianas”50. O autor ressalta que em meio às batalhas, em 1817 e 1818, foram criados o 1º e 2º Batalhões dos Libertos para compor as tropas luso-brasileiras51. Este expediente foi utilizado, também, em função do líder oriental José G. Artigas ter formado em 1816 um “Batallón de Negros”52. Assim, os escravos “que pasasen al ejército português, ‘ganarían su libertad em el dia’”53.

Durante o período que este estudo abrange, aconteceram três grandes confli-

48 Inclusive com o papel de lhes ensinar um ofício, fazendo com que no caso de crianças escravas, por volta dos 12 anos, entrassem no mundo dos adultos. Informação em: MANOLO, Florentino. Morfologia da infância escrava: Rio de Janeiro, séculos XVII e XIX. In: MANOLO, Florentino (org.). Tráfico, cativeiro e liberdade: Rio de Janeiro, séculos XVii-XiX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005, p. 215, p. 217.49 FARINATTI, op. cit., p. 35.50 ALADRÉN, Gabriel. Liberdades Negras nas Paragens do Sul: alforrias e inserção social de libertos em Porto Alegre, 1800-1835. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2009, p. 141.51 ALADRÉN, Gabriel. Guerra, fronteira e liberdade: fuga de escravos e vivências de forros durante a cam-panha contra Artigas (Rio Grande de São Pedro, 1811-1820). Caicó: Revista d Humanidades/UFRN, v. 9, n. 24, 2008, p. 1. Sobre o tema também ver: BAKOS, Margaret Marchiori. A Escravidão Negra e os Farroupilhas. In: PESAVENTO, Sandra Jatahy [e outros] (org.). A Revolução Farroupilha: história e interpretação. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1997, p. 89-90.52 FREGA, Ana, op. cit., p. 9.53 Idem, p. 23. Nada menos do que 237 escravos conquistaram a liberdade desta forma. Informação em: ALA-DRÉN, op. cit., p. 7. No município de Rio grande, conforme Jovani Scherer, as alforrias quase triplicaram durante o período de “conquista da Cisplatina pelos luso-brasileiros, em ralação ao período anterior a 1810”. Informação em: SCHERER, Jovani de Souza. Experiências de busca da liberdade: alforria e comunidade africana em Rio Grande, século XiX. São Leopoldo: PPGH/UNISINOS, 2008, p. 66. (Dissertação de Mestrado)

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tos: a Revolução Farroupilha (1835-1845), a Guerra Grande, a qual levou a entrada brasileira no conflito configurando a Guerra contra Oribe e Rosas (1851-1852), e a Guerra do Paraguai (1864-1870). Como fenômeno que desestabilizava as relações comerciais e sociais, estas guerras também abriram a possibilidade dos escravos al-cançarem a liberdade, seja na forma de alforria, seja na fuga – facilitada pelos pro-blemas causados pelos conflitos.

No que concerne à Revolução Farroupilha, César A. Guazzeli destaca que o conflito entre parte da elite rio-grandense e o Império abriu um canal por onde os cativos podiam alcançar a liberdade, já que a utilização de libertos nas tropas dos rebeldes foi uma constante54. Assim, os escravos pagavam com o serviço militar pela alforria. Como a necessidade de tropas era enorme, ambos os lados da disputa empregaram deste expediente, com os farrapos utilizando-se, inclusive, de jornais da época para prometer a liberdade aos escravos que se engajassem no conflito55. Isto foi preciso, também, em razão de alguns senhores rio-grandenses (farrapos, dentre eles), com medo de perder seus escravos em meio ao conflito, os transferirem para o Estado Oriental56. Porém, como vimos, esta estratégia acabou por oportunizar a alguns cativos a possibilidade de requerer a liberdade57.

Em 1838, mais precisamente, o governo dos farrapos começou o recruta-mento de índios e pretos libertos para formar, oficialmente, o Corpo de Lanceiros da 1º Linha, Infantaria e Caçadores, embora o alistamento de escravos já estivesse acontecendo desde 183658. Estima-se que, ao final do conflito, quase metade das tropas dos rebeldes era composta por ex-cativos59.

54 GUAZZELLI, César Augusto Barcellos. A República rio-grandense e o rio da prata: a questão dos escravos libertos. CD-ROM [do] 2º Encontro “Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional”: Porto Alegre, 2005, p. 2 e p. 3.55 Idem, p. 9; CUNHA, Manoela Carneiro da. Sobre os silêncios da lei: lei costumeira e positiva nas alforrias de escravos no Brasil do século XIX. In: Antropologia do Brasil: mito, história, etnicidade. São Paulo: Brasiliense, 1986, p. 126; LEITMAN, op. cit., 1979, p. 70; BAKOS, op. cit., p. 91.56 GUAZZELLI, op. cit., 2005, p. 10. Silmei Petiz destaca que, em 16 de novembro de 1835, o governo do Estado Oriental proibiu, por meio de decreto, a entrada de escravos rio-grandenses em seu território. Com isto, visava atingir os senhores que transferiam seus cativos, pois tinham medo de perdê-los em meio ao conflito. Informação em: PETIZ, op. cit., p. 41.57 Maria A. Zubaran observa que em 4 ações de liberdades que tinham como justificativa o escravo ter ido ao Estado Oriental, os senhores contra-argumentaram que assim o procederam “devido à Guerra Civil na Província, a Revolução Farroupilha”. Como destaca a autora, é interessante notar que essa argumentação senhorial inverte o imaginário sobre a Revolução Farroupilha, qual seja, o de um movimento libertário. Informação em: ZUBARAN, op. cit., p. 128129.58 LEITMAN, Spencer. Negros Farrapos: hipocrisia racial no sul do Brasil no século XIX. In: PESAVENTO, Sandra Jatahy [e outros] (org.). A Revolução Farroupilha: história e interpretação. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1997, p. 64; CARVALHO, Daniela Vallandro. “Nunca o inimigo havia visto as costas destes filhos da liberdade”: Experiências negras na guerra (Brasil Meridional, 1835-1845). CD-ROM [do] 4º Encontro “Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional”: Curitiba, 2009, p. 4.59 CARVALHO, op. cit., p. 4.

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Jovani Scherer, em sua pesquisa sobre o município de Rio Grande, comenta que a quantidade de “alforrias registradas em cartório demonstram que os conflitos bélicos da província foram momentos de aumento considerável de cartas de alfor-ria, sobretudo a Guerra dos Farrapos, período em que a concessão de alforrias alcançou as maiores médias”60. É interessante notar que Scherer encontrou um aumento de mulheres alforriadas, com registro em cartório, durante a Revolução Farroupilha, sendo que no período imediatamente anterior ao conflito havia um equilíbrio entre os sexos61.

Como demonstrei em minha pesquisa anterior, o período entre 1832 e 1849 foi o que mais mulheres alcançaram a liberdade em Alegrete (59, ou 39,5% do total de mulheres manumissas entre 1832 e 1871)62. As alforrias que ocorreram somente entre 1835 e 1846, ano imediatamente após o término do conflito, representam 29,5% do total (44 manumissões de escravas), ou seja, ainda assim seria um número bastante relevante em relação aos outros recortes temporais. Com isso, é possível concluir, da mesma forma que J. Scherer, que a Guerra dos Farrapos abriu possi-bilidades dos escravos chegarem à liberdade. E, mais importante, o maior número de alforriados foi de mulheres (ocorreram 24 manumissões de homens em Alegrete entre 1835 e 1846), o que também nos leva a crer que havia uma estratégia mais complexa, e coletiva em muitos casos, por de trás destas liberdades.

Por sua vez, retornando ao caso dos libertos farrapos, também havia o receio por parte dos comandantes rebeldes de que Fructuoso Rivera, em conflito com Ma-nuel Oribe, incorpora-se nos seus batalhões os forros da Revolução Farroupilha63. Por isso, em 1838 – ano em que Rivera ocupou Montevidéu e retomou o poder, os republicanos rio-grandenses fecharam um acordo com o governo oriental, o Trata-do de Cangué, em que Rivera comprometia-se a respeitar a propriedade dos escravos que ultrapassassem a fronteira64. A partir deste momento, foi a vez de Oribe, que comandava o interior, especialmente o norte do Uruguai, receber em suas tropas os cativos que conseguiam escapar65.

60 SCHERER, op. cit., p. 66-67. (grifos meus)61 Idem, p. 75. Scherer encontrou apenas uma alforria, durante a Guerra dos Farrapos, em que o motivo direto era o escravo ir servir no lugar de seu senhor. Idem, p. 82.62 O período entre 1850 e 1859 representou 32,5% das alforriadas em Alegrete, enquanto entre 1860 e 1871, 28%. Informação em: MATHEUS, op. cit., p. 66.63 GUAZZELLI, op. cit., 2004, p. 117. Este foi o caso do africano Francisco, relatado por D. Carvalho. Informação em: CARVALHO, op. cit., p. 11-13.64 GUAZZELLI, op. cit., 2004, p. 108. Em 1838 os comandantes farroupilhas também fecharam um acordo para devolução de escravos fugidos com o governador de Corrientes, Pedro Ferré. Informação em: GUAZZELLI, César Augusto Barcellos. A República rio-grandense..., 2005, p. 8.65 FARINATTI, op. cit., p. 193.

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Finalmente, a questão do que fazer com os escravos que lutaram ao lado dos farrapos contra as tropas imperiais foi motivo de discussões, tanto por parte dos rebeldes, quanto do Conselho de Estado imperial66. Temia-se que a re-incorporação deste contingente de soldados, agora livres, pudesse criar um terrível precedente67. A solução foi o pragmatismo: com o extermínio de muitos negros que lutaram ao lado dos farrapos na Batalha de Porongos, ficou aberto o caminho para o Império aceitar o artigo quarto do Tratado de Ponche Verde, o qual reconhecia a liberdade dos escravos que serviram à revolução68.

Como se percebe, a guerra civil uruguaia, contemporânea a Farroupilha e que terminou apenas no início da década de 1850, também possibilitou a alguns escravos chegarem à liberdade, seja através da alforria - incorporando-se as tropas (tanto de colorados quantos dos blancos), seja por meio de fugas69. No fim dos anos 1840, quatro cativos do Brigadeiro Ortiz que trabalhavam na estância de Tacumbú, no Estado Oriental, aproveitaram-se da desorganização causada pela guerra e fugiram70. Na verdade, estas fugas vinham ocorrendo desde o decênio farroupilha. Por causa delas, nos anos de 1848 e 1849, os delegados de polícia dos municípios organizaram listas, as quais continham o número de escravos que estavam fugidos, bem como suas características. Ao todo, contabilizou-se 944 cativos que estavam evadidos, a maioria para o “além-fronteira”71.

Todavia, não se deve imaginar que a fuga era algo de fácil realização. Se por um lado provavelmente “havia redes de auxílio, proteção e informação que articu-lavam escravos e livres”, viabilizando as fugas, por outro também havia “redes de comunicação e vigilância” por parte dos senhores72. Além disso, as longas distâncias que o escravo teria que atravessar, junto a outras dificuldades, de igual forma trans-

66 GUAZZELLI, op. cit., 2005, p. 21-22; LEITMAN, op. cit., 1997, p. 72 e p. 74.67 GUAZZELLI, op. cit., 2004, p. 116. LEITMAN, op. cit., 1997, p. 72.68 GUAZZELLI, op. cit., 2005, p. 22-23; LEITMAN, op. cit., 1997, p. 75-76. Em relação aos sobreviventes, há indícios, segundo Daniela Carvalho, que muitos deles foram enviados para o Rio de Janeiro e re-escravizados. In-formação em: CARVALHO, op. cit., p. 5.69 Em 1850, o delegado do município de Rio grande listou 57 escravos que estariam evadidos no Estado Oriental. Informação em: SCHERER, op. cit., p. 80-81.70 A propriedade dos cativos e sua ausência constam no inventário da esposa do Brigadeiro, o qual foi analisado por Luís A. Farinatti. Informação em: FARINATTI, op. cit., p. 382.71 PÉTIZ, op. cit, p. 25-27. Jônatas Caratti encontrou outra lista, desta vez com 266 cativos que haviam fugido, ela-borada, provavelmente, no início da década de 1850. Destes, apenas 4 também estavam presentes na lista analisada por Silmei Petiz. Informação em: CARATTI, Jônatas Marques. Em busca da posse cativa: o Tratado de Devo-lução de Escravos entre a República Oriental do Uruguai e o império brasileiro a partir de uma relação nominal de escravos fugidos da Província de São Pedro do Rio Grande do Sul (1851). CD-ROM [do] 4º Encontro “Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional”: Curitiba, 2009.72 FARINATTI, Luis Augusto Ebling. Confins Meridionais...2007, p. 384.

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formava a fuga em uma empreitada difícil73. Por fim, “ao fugir para [...] outro país, o escravo extrapolava a esfera da comunidade em que estava inserido”, tendo que, algumas vezes, reconstruir do zero suas relações sociais74.

Um terceiro conflito, a Guerra do Paraguai, engendrou outra possibilidade aos cativos alcançarem a liberdade. Durante a contenda, alguns senhores alforriaram seus escravos para estes irem lutar no seu lugar (ou de algum parente). Paulo Morei-ra, analisando as cartas de alforria de Porto Alegre, encontrou 144 manumissões que tinham como finalidade a ida do liberto a guerra75. Por sua vez, Thiago Araújo des-taca em sua pesquisa sobre Cruz Alta que, provavelmente, “uma parte considerável do declínio da população escrava da vila [...] foi decorrência da Guerra do Paraguai, embora as fontes silenciem sobre esta questão”76.

Até aqui não foi mencionado nenhum caso de manumissão em Alegrete, re-lacionada a algum dos conflitos citados77. Como vimos, tanto a guerra de indepen-dência do Uruguai e seus conflitos internos posteriores, como a Revolução Farrou-pilha abriram caminhos, seja pela fuga, seja pela participação na contenda, para a liberdade. Com a Guerra do Paraguai não foi diferente. Como o exército brasileiro precisava de voluntários, a província do Rio Grande é quem melhor podia fornecê-los, dada sua localização. Analisando rapidamente as alforrias para toda a província, não foram poucas as liberdades conquistadas em troca do escravo ir lutar na guerra, principalmente com o objetivo de substituir seu senhor ou algum parente deste78.

No município de Santa Maria, região central da província, por exemplo, entre 1865 e 1867, 5 escravos foram libertos com a condição de ir lutar no lugar de seu se-nhor. Henrique Niederaner alforriou seu escravo Vicente, pardo e nascido no Brasil, em fevereiro de 1867 para

[...] servir no exército brasileiro em meu lugar, como meu substituto por me achar compreendido como Guarda Nacional do município de Santa Maria da Boca do Monte, a marchar para a guerra, sendo o

73 MOREIRA, op. cit., p. 125. PETIZ, op. cit., p. 52.74 PETIZ, op. cit., p. 139.75 MOREIRA, Paulo Roberto Staudt. Os cativos e os Homens de Bem: experiências negras no espaço urba-no. Porto Alegre: EST, 2003, p. 220.76 ARAÚJO, Thiago Leitão de. Escravidão, fronteira e liberdade: políticas de domínio, trabalho e luta em um contexto produtivo agropecuário (vila de Cruz Alta, província do Rio Grande do Sul, 1834-1884). Porto Alegre: PPGH/UFRGS, 2008, p. 107. (Dissertação de Mestrado)77 Em 1841, em meio a Farroupilha, David Canabarro alforriou Joaquim, “crioulo Rio-Grandense”, de 55 anos, “por bons serviços prestados”. Contudo, não há nenhuma referência direta que estes bons serviços tivessem sido realizados durante o conflito. Informação em: Livros Notariais de Registro Diversos, 1º Tabelionato de Alegrete, livro 1, p. 96r, APERS.78 O que só foi possível em função do importante trabalho realizado pelo Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul, e pelos estagiários envolvidos neste projeto, o qual disponibilizou todas as alforrias no seu sítio na internet

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dito meu escravo Vicente, obrigado a servir, não só durante a presen-te guerra com a Republica do Paraguai, como depois dela concluída, conforme for determinado pelo governo, sobre os substitutos escra-vos libertados para semelhante fim; e desde o momento que seja acei-to o dito meu escravo, e fique eu isento de todo o serviço, e garantido, como se lá esteja a minha própria pessoa lhe concedo a liberdade79.

Apesar de não haver nenhuma carta de alforria em Alegrete relacionada a al-gum dos três conflitos citados, o mais intrigante é a inexistência de manumissões du-rante a Guerra do Paraguai. Alegrete estava localizada na zona de conflito – a cidade de Uruguaiana, por exemplo, que foi invadida pelos paraguaios, até 1846 pertencia ao município de Alegrete80. Além disso, muitos integrantes da elite alegretense eram também militares ou tinham laços de parentesco com algum oficial81.

Assim, quase não faz sentido em Santa Maria, cidade mais afastada da zona de combate, haver cinco alforrias ligadas à guerra e em Alegrete nenhuma. Dois últimos exemplos. No município de Jaguarão, também de fronteira, mas não tão perto do palco das batalhas quanto Alegrete, nada menos do que 17 alforrias foram passadas com a condição dos escravos irem lutar na guerra. Por sua vez, Antônio Lacerda encontrou quatro alforrias para o município de Juiz de Fora (!), em Minas Gerais82.

Como já foi dito, Thiago Araújo levantou a hipótese das cartas silenciarem em relação a participação dos cativos nesta guerra, já que encontrou apenas duas alforrias em Cruz Alta relacionadas à Guerra do Paraguai83. Contudo, considero complicada está suposição, já que para tantos outros municípios as manumissões com condição de servirem ao exército aparecem explicitamente nos registros. Não é possível aqui descobrir o porquê deste falso descomprometimento dos habitantes de Alegrete para com a causa do Império. Todavia, assim como para Thiago Araújo, fica a dúvida do por que desta omissão – nos documentos ou dos proprietários de escravos, zelosos por seu patrimônio84.

Por outro lado, vimos que dentre os quatro escravos que conquistaram a liber-dade por terem ido ao Estado Oriental, todos eles foram entre os anos de 1868 e 1870,

79 Livros Notariais de Transmissões e Notas, 1º Tabelionato de Santa Maria, livro 4, p. 139r, APERS.80 FEDERAçãO DE ECONOMIA E ESTATíSTICA. De Província de São Pedro a Estado do Rio Grande do Sul - censos do RS 1803-1950. Porto Alegre: FEDERAçãO DE ECONOMIA E ESTATíSTICA, 1981, p. 30.81 FARINATTI, op. cit., 2007.82 LACERDA, Antônio Henrique Duarte. Os padrões das alforrias em um município cafeeiro em expansão: Juiz de Fora, Zona da Mata de Minas Gerais, 1844-1888. São Paulo: FABEP/Annablume, 2006, p. 66.83 ARAÚJO, op. cit., p. 250-251.84 Provavelmente as fontes referentes ao recrutamento para a guerra do Paraguai ajudem a esclarecer melhor esta questão. Nelas, talvez, seja possível encontrar quais lideranças militares locais se engajaram na organização do exér-cito.

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ou seja, no contexto da Guerra do Paraguai. Maria A. Zubaran sugere que o impacto deste conflito contribuiu para a “produção de um imaginário favorável à libertação dos escravos na província”85. Colaborou com isto a intensificação do “deslocamento de estancieiros rio-grandenses e seus escravos de um lado para o outro da fronteira [...] permitindo aos curadores rio-grandenses novas interpretações da Lei anti-tráfico de 1831”86.

Entretanto, não se pode pensar que a guerra e a própria condição de fronteira traziam apenas esperança e bons ventos aos cativos, já que oportunizava a liberdade através da fuga ou do engajamento militar. Como evento que desestabilizava o mun-do de todos os agentes históricos ali presentes, ela também trazia infortúnios aos escravos. Neste sentido, são significativos os casos de seqüestro de negros orientais, em meados do século XIX, para escravizá-los em terras brasileiras. Alguns destes eram cativos que haviam fugido, ou descendentes destes. Em outros casos, os rio-grandenses raptores falsificavam registros de batismo para provar que o indivíduo havia nascido no Brasil e, por isso, era escravo87.

***

Em trabalho anterior, argumentei ser necessário uma desnaturalização tanto do conceito da palavra liberdade, quanto o de um suposto desejo intrínseco dos escravos por ela88. Neste sentido, uma passagem do processo-crime analisado por L. A. Farinatti, referido anteriormente, é reveladora. Durante o interrogatório de vários indivíduos, envolvidos ou não no crime, o testemunho do escravo Adão é interes-santíssimo. Negando envolvimento na organização da fuga coletiva, Adão admitiu somente ter sido convidado para a mesma, não tendo aceitado em razão de já ter fugido uma vez para o Estado Oriental, e “que tendo chegado ali o prenderam e o

85 ZUBARAN, op. cit., p. 122.86 Idem, p. 122.87 Informações em: OLIVEIRA, op. cit.; LIMA, op. cit., p. 263 e p. 267-268; CARATTI, Jônatas Marques. Apre-ensão, Venda e Extradição: experiências de uma crioula oriental em terras sul-rio-grandenses (1842-1854). V Mostra de Pesquisa do Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: CORAG, 2007, p. 120. Portanto, como vimos anteriormente, da mesma forma que algumas pessoas eram “incitadas” a fugir para o lado oriental, o caminho inverso era verdadeiro, como destacam Alex Borucki, K. Chagas e Natalia Satalla: “En la frontera se establecieron corrientes migratorias de población negra em ambas direcciones. Por un lado, las fugas de esclavos brasileños, por otro, los raptos de morenos orientales llevados a Brasil”. Informação em: BORUCKI, Alex; CHAGAS, Karla; STALLA Natalia. Esclavitud Y Trabajo: Un Estudio Sobre Los Afrodescendientes En La Frontera Uruguaya (1835-1855). Montevideo: Pulmón Ediciones, 2004, P. 149.88 MATHEUS, op. cit., p. 11-12.

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mandaram para o Salto, para servir de soldado e como era inimigo de ser soldado, tinha fugido do caminho e tinha vindo apresentar-se a seu senhor”89.

Ou seja, “aquela” liberdade alcançada por Adão, não o interessava. Certamen-te ele mediu os riscos e os ganhos que teria sendo um “homem livre”, mas soldado, em um contexto onde a guerra era uma constante, e preferiu voltar ao seu senhor, mesmo que isso representasse a sua volta à condição de cativo e, quem sabe, uma severa punição90.

Portanto, “endemia bélica e irregularidade institucional compunham o ambien-te onde sujeitos buscavam desenvolver estratégias para sobreviver e ascender ou re-produzir sua posição social”91. Como vimos, com os escravos não era diferente. Ao mesmo tempo em que sofreram as consequências daquele espaço fronteiriço e das guerras, os cativos também se utilizaram destes recursos para tentar atingir alguns de seus objetivos, os quais, às vezes, era composto pelo sonho de conquista da liberdade.

89 FARINATTI, op. cit., p. 380.90 O caso de Adão é semelhante ao do cativo Antônio Maria, estudado por Paulo Moreira. Depois de delatar uma tentativa de insurreição de escravos em Porto Alegre, Antônio Maria receberia sua alforria, com a condição de servir as forças armadas na Guerra do Paraguai, o que de pronto rejeitou. MOREIRA, op. cit., 1998, p. 134; Silmei Petiz também analisa um caso de um cativo que fugiu e, sete anos depois, apresentou-se ao seu senhor. PETIZ, op. cit., p. 71.Por fim, um último exemplo da necessidade de qualificar a liberdade, não tratando-a de maneira homogênea. Na década de 1830, o escravo Caetano, depois de ter sido feito prisioneiro, foi liberto e passou a receber pensão de soldado em Buenos Aires. Entretanto, Caetano fugiu, apresentando-se ao seu senhor. Informação em: ALADRÉN, Gabriel, op. cit., 2009, p. 150-151.91 FARINATTI, op. cit., p. 78.

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FONTES PESQUISADAS

Fontes Primárias

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Arquivo da Diocese de Uruguaiana

Livro 02 de Batismos da Capela Curada de Nossa Senhora Aparecida de Ale-grete. Arquivo da Diocese de Uruguaiana.

Fontes primárias impressas

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firMAndo (e AfrouxAndo) os lAços: CoMPAdrio, AlforriA e exPeCtAtivAs eM torno dA liberdAde – rio

PArdo/rs, últiMAs déCAdAs dA esCrAvidão.

Melina Kleinert Perussatto*

Resumo: O compadrio era, sem dúvida, um laço ritual valorizado pelas famílias escravas, cujos desdobramentos frequentemente escapavam às projeções dos diferentes atores sociais envolvidos. Des-sa maneira, propomos discutir diferentes expectativas em torno das relações de compadrio no processo da alforria nas últimas décadas da escravidão. Para tanto, utilizaremos dois casos ocorridos no municí-pio de Rio Pardo/RS que têm em comum a intervenção de padrinhos na consecução da liberdade de suas afilhadas, sendo um deles liberto condicional e outro membro da casa senhorial.

Palavras-chave: família escrava – compadrio – alforria – liberdade – Rio Pardo.

Em 30 de agosto de 1870 o liberto condicional Severino ofereceu em juízo o valor da avaliação de sua afilhada para que a mesma pudesse “gozar de todos os foros e privilégios de pessoa livre”¹. A pequena

Lourença tinha somente dois anos quando foi inventariada por ocasião da morte de seu senhor, Lino Teixeira de Sá, em 1869². Assim como ela, outros três escravos adultos beneficiaram-se do que facultava o terceiro artigo de uma lei aprovada há menos de um ano da abertura do inventário, em 15 de setembro de 1869³. Entre os libertos estava Joaquina, de 50 anos de idade, avó de Lourença4. Lourença era filha natural de Bernarda e nasceu em dez de agosto de 1868. Foi batizada dois meses depois. Como padrinhos, os escravos Severino, de Dona Maria Esméria de Farias, e

* Mestre em História pela Unisinos.¹ APERS. Rio Pardo/RS. 1º Tabelionato. Livro 16, p. 150v. Carta de alforria. Concessão: 30/08/1870. Registro: 01/09/1870.² Lino Teixeira de Sá em 1869 possuía um monte mor pouco superior a 2:000$000 réis, constituído por nove escra-vos, parte de uma casa de moradia e de uma casa de atafona, além de nove animais vacuns e seis cavalares, e outros móveis e utensílios (APERS. Rio Pardo/RS. Vara da família. Inventários post-mortem. Número 726. Ano 1869).³ O referido artigo versava o seguinte: Art. 3º. Nos inventários em que não forem interessados como herdeiros ascendentes e descendentes, e ficarem salvos por outros bens ou direitos dos credores, poderá o juiz do inventário conceder cartas de liberdade aos escravos inventariados que exibirem à vista de suas avaliações judiciais (Decreto n. 1695 de 15 de setembro de 1869).4 APERS. Rio Pardo/RS. 1º Tabelionato. Livro 16, p. 150r. Carta de alforria. Concessão e registro em 29/08/1870.

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Cipriana, de Dona Ana Ubaldina de Faria Alencar5. Seu padrinho, apesar de identifi-cado como escravo no assento de batismo, já possuía título de liberdade condicional há anos. Contudo, tratava-se de uma alforria condicionada à morte de sua senhora, que só se efetivou em 1873.

Nesse mesmo ano, Severino registrou sua alf1orria em cartório6. O inventário dos bens de sua falecida senhora foi aberto somente em 1875 e apesar de Severino não constar mais entre os bens, constava na matrícula de 1872 e na classificação pela junta de emancipação em 1873. Interessante observar que no ano seguinte foi prete-rido da classificação por possuir carta de liberdade condicional, não sendo mais es-cravo aos olhos da junta. Ou seja, apesar de possuí-la há 13 anos somente foi levada em conta após o registro notarial, evidenciando as ambiguidades que caracterizavam os libertandos sob essa condição7. Na classificação em que foi preterido, Severino foi descrito como preto, crioulo, 48 anos, lavrador e campeiro. Gostaríamos de frisar que foi informado também que residia em uma chácara com sua esposa Joaquina, já liberta, sem filhos.

O teor da carta de alforria, por sua vez, nos mostra que aos olhos de sua se-nhora Severino tinha uma boa conduta, sempre servindo com obediência “durante o tempo de seu cativeiro”. Por isso mereceria a liberdade após seu falecimento – caso assim continuasse servindo, pois “se por ventura degenerar, fica de nenhum efeito este benefício que lhe outorgo”. Severino pelo jeito havia conquistado alguns espaços de autonomia durante o tempo de seu cativeiro, pois morava em uma chácara na companhia de sua esposa, a liberta Joaquina, e havia amealhado pecúlio suficiente para libertar sua afilhada Lourença. Além disso, os laços espirituais estabelecidos com Bernarda podem ter feito parte de seus projetos. Aliás, em 1875 o filho ingênuo de Bernarda, Cláudio, foi amadrinhado por Joaquina – seria a esposa de Severino?

Bernarda, comadre de Severino e talvez de Joaquina, por seu turno, era cozi-nheira e tinha 19 anos quando foi inventariada e partilhada aos herdeiros do senhor

5 AHCMPA. Rio Pardo/RS. Livro de registros de batismos de escravos. 1860-1869.6 A carta foi concedida “em remuneração dos bons serviços e obediência com que se tem sempre prestado durante o tempo de seu cativeiro [...], com a condição porém de continuar a servir-me como até agora, e se por ventura degenerar, fica de nenhum efeito este benefício que lhe outorgo, por ser de minha livre vontade que, tendo ele merecido, chegue a gozar,pela sua boa conduta, que deve continuar a ser a mesma, para depois de meu falecimento gozar como e onde lhe convier, de sua plena liberdade”. A senhora pediu ao Tabelião Francisco de Paula Liz que a fizesse (APERS. Rio Pardo/RS. 2º Tabelionato. Livro 20, p. 104r. Concessão: 06/11/1860. Registro: 15/07/1873).7 Sobre as ambiguidades e os significados da liberdade ver especialmente: CHALHOUB, Sidney. Visões da Liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na corte. São Paulo: Companhia das Letras, 1990; XAVIER, Regina. A conquista da liberdade: libertos em Campinas na segunda metade do século XIX. Campinas: UNICAMP, 1996; MOREIRA, Paulo Roberto Staudt. Os cativos e os homens de bem: experiências negras no espaço urbano: Porto Alegre 1858-1888. Porto Alegre: EST, 2003.

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Lino Teixeira de Sá. A viúva Dona Guilhermina ficou com parte de Bernarda na partilha e por meio de seu inventário, aberto dez anos depois do falecimento do ma-rido, descobrimos que Luiz, filho de Bernarda, nasceu após a partilha e foi dividido entre os herdeiros. Talvez para resolver esse impasse, decidiu-se por classificá-los em 1877. Sem obter sucesso recorreram novamente ao auxílio governamental em 1883. Dessa vez apresentou-se “o cidadão Major Feliciano de Paula Ribas por parte da escrava Bernarda”. Dizia ser de propriedade de Antônio de Souza Oliveira – genro e inventariante dos bens do falecido Lino Teixeira de Sá –, “ser casada com o indi-víduo liberto de nome Luiz José, ter 31 anos de idade e com cinco filhos, dos quais quatro livres8 e um escravo”. Na reunião seguinte declarou à junta de classificação ter ainda uma filha liberta de nome Lourença. Exibiu a quantia de 175$000 réis que foi recolhida pelo mesário e depositada no cofre dos órfãos. Bernarda e Luiz foram libertos em segundo e terceiro lugares naquele ano, podendo, assim, viver com sua família em liberdade, já que os outros quatro filhos eram ingênuos – ou seja, nasci-dos de ventre livre após a lei promulgada em 28 de setembro de 1871 –, e Lourença já ter sido liberta pelo padrinho.

A partir dessa família e suas relações pudemos perceber estratégias de liber-dade e arranjos familiares de escravos que trabalhavam em Rio Pardo/RS. Lourença, a primeira filha de Bernarda, foi batizada como natural, da mesma maneira que três de seus cinco irmãos ingênuos. Interessante observar que os dois últimos filhos in-gênuos batizados foram declarados como naturais em 1880 e 1882, ou seja, pouco tempo antes da classificação pela junta de emancipação em que Bernarda foi decla-rada como casada.

Uma hipótese refere-se a um casamento arranjado com o objetivo de gal-gar posições na ordem de libertação, já que o regulamento de 1872 determinou a preferência de escravos casados na libertação pelo fundo de emancipação. Porém, acreditamos que se tratava de uma união consensual estável e duradoura reconhecida socialmente, portanto, sem a necessidade de passar pela legitimação eclesiástica. Por esse raciocínio, os filhos de Bernarda batizados como naturais ou com condição de nascimento não declarada provavelmente eram filhos com Luiz José. Essa hipótese é sustentada também pela regularidade do intervalo intergenésico, cuja diferença média era de 2,3 anos entre o nascimento dos filhos de Bernarda.

8 Paulina, natural, batizada em 1874; Cláudio, batizado em 1875; Paulina, natural, batizada em 1880 e Damião, natu-ral, batizado em 1882 (AHCMPA. Rio Pardo/RS. Livro de registro de batismos de libertos. 1871-1888). No registro encontramos também o batismo de Marieta em 1879 que não consta na ata da junta de emancipação, talvez por ter falecido antes da classificação de sua mãe e irmão.

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Ainda podemos sustentar essa hipótese por meio dos dados obtidos junto ao levantamento dos registros de batismo de escravos e ingênuos da Paróquia de Nossa Senhora do Rosário do Rio Pardo. Essa fonte nos mostra que entre os anos de 1860 e 1888 a existência de filhos naturais de escravas era uma regra. Na tabela abaixo podemos verificar que nos registros de batismos de escravos (1860-69) o ín-dice de legitimidade era de apenas 1,8%9. Se acrescentarmos os cinco casos em que foi informado o pai, mas não a condição do nascimento, assim como os dois casos em que consta o pai e a condição natural, esse percentual sobre para 2,5%10. Por não ser informada a legitimidade, podemos pressupor que se tratavam de relações con-sensuais reconhecidas naquela paróquia. Ao informar a condição natural e o nome do pai, os párocos estavam obedecendo às Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, norma canônica que regia a feitura dos registros paroquiais. Era facultado informar o nome do pai, inclusive o da mãe: quando a relação não fosse sancionada pela Igreja, mas sabida e notória e livre de escândalos, o nome do pai poderia ser informado, caso contrário, somente constaria o nome da mãe, se esta declaração também fosse isenta de alvoroços. Nos registros de batismos de ingênuos (1871-1888), por sua vez, o índice de legitimidade era ainda menor: 1,2%11.

Tabela 1: Condição do nascimento de escravos e ingênuos – Rio Pardo/RS, 1860-1888.

Fonte: AHCMPA. Paróquia de Rio Pardo. Livro de registros de batismos de escravos (1860-1869) e Livro de registros de batismo de ingênuos (1871-1888).

9 De acordo com Sílvia Brügger: “Os registros paroquiais de batismos, ao informarem a legitimidade dos batizan-dos, constituem-se em fonte importante para a análise do comportamento conjugal de seus pais. A existência de longas séries de registros permite analisar a dinâmica de tal comportamento, constatando suas alterações ao longo do tempo”. BRÜGGER, Silvia Maria Jardim. Minas patriarcal: família e sociedade (São João Del Rei – séculos XVIII e XIX). São Paulo: Annablume, 2007, p. 72.10 Desses 21 casais, 15 eram formados por escravos, dois entre escravas e condição do cônjuge não informada, um em que não foi informada a condição de nenhum dos cônjuges e, por fim, um formado por forra com escravo. Acre-ditamos que a libertação da última tenha se dado após o nascimento do filho, batizado com nove meses de idade.11 Dentre os 14 casais legítimos, sete eram formados por escravos, dois por escrava e cônjuge sem a condição infor-mada e dois em que nenhuma das condições foi informada. Ainda encontramos outros três casais: dois indicados com naturais e um não informado, todos os três com mãe escrava e pai incógnito.12 Trata-se do ingênuo Manoel, filho ilegítimo de Belisária, escrava de Urbano Correa de Oliveira. Foram padrinhos os escravos do mesmo senhor Marciano e Corina. O batismo aconteceu em 27/11/1875 durante uma visita pastoral (AHCMPA. Rio Pardo/RS. Livro de registro de batismos de libertos. 1871-1888).

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Outras fontes como o Recenseamento de 1872, a amostra da matrícula de 1872 e os registros de casamentos confirmam o predomínio de famílias matrifocais e ilegítimas. Entre as possíveis explicações estão a estrutura de posse e a demografia escrava observada junto aos inventários post-mortem produzidos pela Vara da Família (antigo Cartório dos órfãos e Ausentes) e pelo Cartório do Cível e Crime de Rio Pardo entre os anos de 1860 e 1887. Ao todo identificamos 408 inventários, dentre os quais havia 287 proprietários de escravos. Deste último universo, observamos a predominância de pequenos proprietários de escravos (posses de 1 a 9) que se manti-veram ao longo das três décadas de nosso estudo. Essa característica, de acordo com Robert Slenes, diminuiria a oferta de parceiros afetivos dentro de uma escravaria, reduzindo, assim, as chances de se estabelecer casamentos sancionados pela Igreja, pois concorria com os projetos familiares dos escravos a proibição por parte dos senhores de uniões formais entre escravos de diferentes proprietários13. Entretanto, isso não significa, sobremaneira, a impossibilidade de formação de laços familiares nas pequenas escravarias ou para além delas, afinal, “as cercas’ entre as fazendas deixavam brechas pelas quais os escravos podiam manter e estender suas redes de amizade e parentesco”14.

No estudo de Slenes para Campinas, as pequenas posses caracterizavam-se justamente pela presença de mães solteiras com filhos naturais, enquanto as médias e grandes pela presença de famílias nucleares. Dentre as médias e grandes, Slenes per-cebeu que mesmo as mães solteiras não tardariam a encontrar um parceiro disposto a reconhecer seus filhos naturais como legítimos perante a Igreja, parceiros que pro-vavelmente eram o próprio progenitor15. Por seu turno, o fato das mães pertencentes às pequenas escravarias se manterem solteiras, não opera como ausência de parceiro afetivo ou de uniões estáveis e duradouras. Indica, provavelmente, o sub-registro de tais relações nas fontes compulsadas. Lembrando que, no momento da morte de seu senhor, este possuía nove cativos, ou seja, era um pequeno proprietário, estrutura de posse caracterizada pelo predomínio de famílias matrifocais.

Nesse sentido, enquanto a documentação paroquial aqui utilizada nos ajuda a pensar proficuamente na demografia das famílias negras16, uma pesquisa qualitativa

13 SLENES, Robert. Na Senzala, uma Flor: esperanças e recordações na formação da família escrava – Brasil, Sudeste, século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, p. 75-76.14 ROCHA, Cristiany Miranda. Histórias de famílias escravas: Campinas, século XIX. Campinas: Editora da Unicamp, 2004, p. 128.15 SLENES, Na Senzala, uma Flor... Op. Cit., p. 103.16 Utilizamos famílias negras por essa expressão dar conta da diversidade de condições existentes em tais famílias, compostas por escravos, libertos, libertandos, livres e ingênuos, sobretudo nas últimas décadas da escravidão. REIS, Isabel Cristina dos. A família negra nos tempos da escravidão: Bahia, 1850-1888. Tese de Doutorado. IFCH/UNICAMP, 2007.

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junto aos processos criminais e às perfilações nos auxiliarão futuramente a desven-dar as relações consensuais estabelecidas por essas e outras mulheres. Com isso queremos dizer que as relações afetivas não se reduziam àquelas sancionadas pela Igreja, tanto entre escravos como entre livres17. No repertório dessas mães solteiras estavam, sem dúvida, as relações consensuais e de compadrio. Sob esse aspecto, pode-mos pensar o caso de Bernarda que buscou firmar laços de compadrio com um es-cravo de boa conduta e que já possuía liberdade condicionada antes de sancionar sua relação com o liberto Luiz José. Certamente não se arrependeu dessa escolha que lhe rendeu a libertação da filha. Sobre Bernarda devemos lembrar que no momento da morte de seu senhor, o mesmo possuía nove cativos, ou seja, era um pequeno pro-prietário – estrutura de posse caracterizada pelo predomínio de famílias matrifocais.

Letícia Guterres em seu estudo sobre família escrava em Santa Maria (1844-1882) nos ajuda a pensar na importância do compadrio em um contexto de am-pliação da ilegitimidade, movimento que também observamos para Rio Pardo na segunda metade doa oitocentos18.

[...] os dados referentes à ampliação da ilegitimidade podem estar as-sociados a um movimento do compadrio, envolvendo escravos, prin-cipalmente após 1850. Em um quadro de diminuição de casamen-tos, em contrapartida, da existência de uniões que não passavam pela Igreja, as cerimônias de batismo eram momentos em que as famílias poderiam contrair laços de compadrio com compadres e comadres também cativos ou livres, ampliando os vínculos e laços para além dos limites da consanguinidade e das condições sociais semelhantes19.

Ainda sobre o predomínio da ilegitimidade devemos levar em conta as ca-racterísticas demográficas das escravarias. Luiz Mott20 para a Bahia, por exemplo, percebeu que a legitimidade reduzia em locais e épocas onde havia um equilíbrio entre os sexos, realidade análoga a que encontramos no levantamento de diferentes fontes (inventários post-mortem, matrículas de escravos, recenseamento) relativas à Rio Pardo. Ainda devemos considerar que na análise dos inventários ficou patente a constante renovação das escravarias que se mantiveram jovens, com expressiva po-

17 VASCONCELLOS, Márcia Cristina. Casar ou não casar, eis a questão. Os casais e as mães solteiras escravas no litoral sul-fluminense. 1831-1850. Estudos Afro-Asiáticos, Ano 24, n. 2, 2002. pp. 291-316.18 Silmei Petiz em estudo que compreendeu os anos de 1755 e 1835 em Rio Pardo observou um índice de legitimi-dade entre os batismos de escravos de 30,9% no período compreendido entre 1755 e 1809. Porém, o período pos-terior (1810-1835) já registrou uma redução significativa de 9,4% no índice de legitimidade que em nosso período de estudo fica abaixo dos 2%.19 GUTERRES, Letícia. Para além das fontes: im/possibilidades de laços familiares entre livres, libertos e escravos (Santa Maria – 1844-1882). Dissertação de Mestrado. Porto Alegre: PPGH/PUCRS, 2004, p. 111.20 MOTT, Luís. As alternativas eróticas dos africanos e seus descendentes no Brasil escravista. LPH: Revista de His-tória, v. 3, n. 1, 1992, p. 176-214.

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pulação adulta e infantil, sugerindo, pois, a importância da reprodução endógena da força o trabalho pelo menos ao longo do período que estudamos. Essas variáveis de-mográficas, sem dúvida, ampliavam as possibilidades de escolha do parceiro afetivo devido as redução da competitividade observada em regiões onde havia diferenças expressivas na razão de sexo21. Além disso, os dados sugerem uma pequena perda de escravos para o tráfico interno, já que esse comércio preferia homens e jovens. Caso contrário, teríamos encontrado uma população com desequilíbrio de sexo e enve-lhecida. Em suma, se o Rio Grande do Sul perdeu escravos para o tráfico interno dificilmente esse contingente foi deslocado de Rio Pardo.

Retornando ao laço de compadrio firmado entre Bernarda e Severino, embo-ra feita entre sujeitos com condições jurídicas semelhantes, não podemos desconsi-derar o fato de Severino já possuir uma carta de liberdade condicional e residir com sua mulher em uma chácara. Em outras palavras, Severino já havia conquistado uma relativa autonomia em seu cativeiro, o que sem dúvida ampliava seu prestigio junto à comunidade escrava e ampliava suas chances de ajudar seus parceiros. Quanto à escolha dos padrinhos, as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia permitiam a indicação de somente um padrinho e uma madrinha, não sendo permitidos dois padrinhos ou duas madrinhas. Percebemos que praticamente todos os escravos ou ingênuos batizados tinham ambas as indicações. Sendo assim, apesar de não sancio-narem sua relação afetiva perante a Igreja, não se furtavam em normatizar o compa-drio, o que demonstra a importância de tais laços rituais.

Tabela 2: Condição dos padrinhos e madrinhas de escravos e ingênuos – Rio Pardo/RS, 1860-1888.

Fonte: AHCMPA. Paróquia de Rio Pardo. Livro de registros de batismos de escravos (1860-1869) e Livro de registros de batismo de ingênuos (1871-1888).

21 SLENES, Na Senzala, uma Flor... Op. Cit.; MATTOS, Hebe. Das cores do silêncio: os significados da liberdade no sudeste escravista. Brasil, século XIX. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1995.

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Na tabela acima fica notório a preferência por livres tanto nos batismos de escravos, como nos de ingênuos – tendência contrária à escolha de Bernarda. Eram entre os ingênuos que esse percentual tornava-se mais significativo – mais de 65% dos padrinhos e praticamente 60% das madrinhas de ingênuos eram livres. Essa constatação confirma a tendência observada por Schwartz de que a condição dos padrinhos e madrinhas escolhidos geralmente era igual ou superior à do afilhado e quase nunca inferior22. Ou seja, se os filhos de mulheres escravas a partir da lei de 1871 nasceriam livres nada mais compreensível do que pessoas da mesma condição serem eleitos como padrinhos e madrinhas. Sílvia Brügger chamou essa relação de parentesco como uma aliança para cima23.

Por outro lado, nos chamou atenção o movimento contrário: a significativa participação de escravos apadrinhando filhos livres de mulheres escravas, cerca de 20%. Muitos deles eram parceiros de escravaria das mães dos batizandos, mas isso não nos pareceu ser uma regra, o que exige apreender sob que medida os senhores influenciavam em tais escolhas, assim como o peso das tradições africanas e dos cálculos existentes na comunidade escrava – aqueles que nem os senhores e nem os historiadores foram capaz de apreender24 – se faziam sentir. Sherol Santos nos ajuda a pensar em tais escolhas ao dizer que a hipótese de que eram os escravos – e não os senhores, como sugeriu Brügger – que escolhiam os padrinhos parecia mais pro-vável. Afinal, “ao indicar um padrinho pertencente, e por consequência, morador, a outra propriedade o senhor estava de certa forma estimulando a circulação desse sujeito entre as propriedades, dando-lhes razões para tal”25. Ao estabelecerem laços horizontais de compadrio os escravos, talvez, estivessem primando por ampliar e reforçar laços de solidariedade entre os seus. Esse nos pareceu ser o caso de Severino que não só apadrinhou como indenizou a liberdade de uma escrava pertencente a

22 SCHWARTZ, Stuart B. Segredos internos: engenhos e escravos na sociedade colonial, 1550-1835. São Paulo: Com-panhia das Letras, 1988.23 Sílvia Brügger sugere a necessidade de olhar com mais cuidado essas alianças para cima. Patentes militares, cargos políticos ou clérigos são indicativos do prestígio social do padrinho ou da madrinha. Contudo, a simples condição de livre poderia representar para mãe escravas uma aliança para cima. Além disso, problematizou a influência dos índices de legitimidade em tais escolhas e até que ponto pais ou mães solteiras adotavam os mesmos critérios dos casais legítimos. BRÜGGER, Silvia Maria Jardim. Minas patriarcal.... Op. Cit., p. 287-288.24 Slenes sugere que os senhores “eram estranhos ao mundo mais íntimo de seus cativos, e estes, por sua vez, não se interessavam em abrir-lhes ‘janelas’ para as senzalas”. SLENES, Na Senzala, uma Flor... Op. Cit. p. 207.25 Santos nos lembra que as próprias constituições primeiras que regiam tal prática designavam que os padrinhos seriam “nomeados pelo pai, ou mãe, ou pessoa, a cujo cargo estiver a criança; e sendo adulto, os que ele escolher”. Schwartz (1988) em seu estudo observou que o número de padrinhos escravos pertencentes ao mesmo senhor do batizando, se equilibrava com a participação de escravos de diferentes propriedades. SANTOS, Sherol. Apesar do Cativeiro: Família escrava em Santo Antônio da Patrulha (1773-1824). Dissertação de Mestrado. São Leopoldo: PPGH/UNISINOS, 2009, p. 154-155.

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uma escravaria diferente da sua. Consoante a Brügger podemos supor que a “esco-lha dos padrinhos pelos cativos aparecia, assim, como fundamental a suas pretensões de alianças sociais no cativeiro”26.

De todo modo, nosso objetivo consiste em deslindar o compadrio na dinâ-mica da alforria e para isso torna-se pertinente pensar também nas alianças para cima que, conforme a tabela, eram bastante valorizadas27. Se um padrinho escravo poderia ser “útil no cotidiano, como apoio nas rotinas diárias e no suporte emocional neces-sário ao viver escravo”, não podemos perder de vista, conforme nos lembra Santos, que “numa sociedade extremamente hierarquizada, um padrinho com condição ju-rídica igual ao do senhor poderia a ele, ao menos, encaminhar a demanda”28. Porém, firmar laços com pessoas livres nem sempre contemplava as expectativas sobre o ato, exemplo disso é o caso envolvendo a escrava Etelvina e seu padrinho que era membro da casa senhorial. Apesar de Etelvina contar com a ajuda do padrinho para libertar-se, sua sorte em liberdade não correspondeu as suas perspectivas.

Aos 19 de novembro de 1865 Antônio da Rocha Quebrada e Maria Emília Ribeiro apadrinharam a pequena Etelvina, nascida em oito de dezembro de 1864. Era filha natural de Silvéria, escrava de Joaquim Correa, sogro de Rocha Quebrada29. A escravaria de Joaquim Correa era composta por oito cativos aparentados, mos-trando novamente a importância da reprodução endógena. Silvéria, mãe de Etelvina, manumitiu-se pelo fundo de emancipação no ano de 1875. A indenização cobriu 600$000 réis, no qual estava incluído o pecúlio de 100$000 réis. Sua filha Antônia teve sua liberdade indenizada durante o inventário. Nos anos subsequentes – 1876

26 BRÜGGER, Silvia Maria Jardim. Minas patriarcal.... Op. Cit., p. 291. Ver também: CUNHA, Maísa Faleiros da. Demografia e família escrava: Franca/SP, século XIX. Tese de Doutorado. Campinas: IFCH/UNICAMP, 2009; FREI-RE, Jonis. Escravidão e famílias escrava na Zona da Mata Mineira oitocentista. Tese de Doutorado. Campinas: IFCH/UNICAMP, 2009.27 Nesse mesmo aspecto, Florentino & Góes sugerem que “à medida que as gerações de uma família se sucediam – isto é, à medida que ela se sedimentava no tempo –, a busca de solidariedade e proteção por intermédio do com-padrio tendia a se expressar em direção a alianças com pessoas de estatuto jurídico superior”. FLORENTINO, Manolo & GóES, José Roberto. A paz das senzalas: famílias escravas e tráfico atlântico, Rio de Janeiro, c. 1790 – c. 1850. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997, p. 87.28 SANTOS, Sherol. Apesar do Cativeiro..., p. 162.29 O monte-mor de Joaquim Correa, dono das escravas e sogro de Rocha Quebrada, somava quase sete contos no momento da abertura de seu inventário em 1872. Como principal bem de raiz uma casa na rua Barão do Triunfo, mobilhada com móveis de madeira nobre e prataria, e um terreno na rua da Imperatriz. Além disso, arrolou-se uma extensa lista de dívidas ativas e passivas e sua principal fortuna acreditamos que provinha dos oito escravos que possuía. A cozinheira Silvéria de 40 anos, avaliada em 600$000 réis, era mãe de cinco cativos listados entre os bens inventariados: Maria, 20 anos (800$000 réis); Carlos, pedreiro de 17 anos (1:000$000 réis); Paulino, sapateiro, de 14 anos (800$000 réis); Etelvina, seis anos (400$000 réis); e Antônia de três anos (200$000 réis). Ainda havia outros dois cativos arrolados: o pedreiro Florêncio de 41 anos (800$000 réis) e Zeferina, 17 anos (700$000 réis) (AHCMPA. Rio Pardo/RS. Livro de registro de batismos de escravos. Livro 1857-1879. Ano 1865, página 125v).

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e 1877 – foram classificados seus filhos Paulino e Etelvina. Dos quase 700 escravos classificados em 1877, somente três foram libertos, dentre os quais estavam a peque-na Etelvina, de serviços domésticos.

Nos esclarecimentos prestados à junta, seu padrinho Antônio da Rocha Que-brada declarou que no inventário do falecido senhor de sua afilhada, Joaquim Cor-rea, Etelvina foi avaliada em 400$000 réis “para pagamento dos credores da mesma herança”. Rocha Quebrada na condição de “genro do finado e credor privilegiado da mesma herança fazia desistência de 58$940 réis que lhe coube na mesma, em favor da liberdade” da afilhada. No ano anterior, constava na documentação a garantia da doação feita por ele do mesmo valor com o mesmo fim. Além disso, Rocha Que-brada apresentou em 1877 uma subscrição de 116$000 réis que arrecadou para a liberdade da menor30.

Ora, havia escravos casados na classificação daquele ano, mas estranhamente não foram contemplados – em primeiro e segundo lugar foram libertas duas mulhe-res como filhos menores escravos e livres. Uma circular datada de 1883 e relatos de outros historiadores31 demonstram muitas fraudes na distribuição das cotas do fun-do, pois ao se privilegiar um indivíduo – caso de Etelvina – em detrimento de um clas-sificado que se enquadrava no critério família fica patente a burla às determinações legais. Ao olharmos de maneira ampla os classificados e os senhores que buscavam esse recurso nos parece que o fundo servia também para resolver pendências oriun-das de partilhas ou dívidas. Afinal, com tal indenização ficaria mais fácil o rateio do produto entre os credores ou herdeiros, do que partilhar a posse de um escravo – o que nos pareceu ser o caso de Etelvina, que foi dividida entre os credores da heran-ça. Com a indenização pelo fundo Etelvina alcançou a liberdade, mas também foi possível quitar as dívidas deixadas por seu falecido senhor.

Mas a história de Etelvina e de seu padrinho não se encerra por aí. Certa-mente Rocha Quebrada ficou duplamente satisfeito: se por um lado, mesmo que parcialmente, teve sua dívida ressarcida, por outro, e talvez mais importante, garantiu a gratidão da afilhada e de sua comadre. Porém suas expectativas foram frustradas diante dos planos de sua afilhada.

30 AHMRP. Livro de listas de classificação de escravos para a libertação pelo fundo de emancipação de Rio Pardo/RS, 1876 e 1877.31 Ver: CONRAD, Robert. Os últimos anos da escravatura no Brasil, 1850-1888. 1. Ed. Rio de Janeiro: Civilização Bra-sileira, 1975.

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Silvéria, e talvez as filhas libertas, residia na casa de seu amásio Antônio dos Santos Cardoso Menezes32. Etelvina, pouco tempo depois de ter alcançado a liber-dade, aproveitou um momento de distração de seu padrinho, com quem passou a residir, e fugiu em direção a casa onde residia sua mãe. Sem titubear, Rocha Quebra-da procurou trazê-la novamente junto de sua companhia. Porém, Antônio Menezes (seria pai de Etevina?) não permitiu que a mesma fosse levada de sua casa. Ora, após obter sua liberdade, acreditamos que a menina quisesse viver junto com sua mãe e irmãs libertas. Possivelmente manifestou em algum momento esse desejo e fracassa-das as negociações com seu padrinho, a estratégia que lhe pareceu viável foi a fuga.

Sem dar o braço a torcer, Rocha Quebrada exigiu que o Juiz de órfãos lhe passasse a tutoria da afilhada. Na solicitação argumentava que depois de ter se esfor-çado para libertá-la, “sem seu consentimento”, a “mulatinha” foi para a casa de An-tônio dos Santos Cardoso Menezes que vivia com a mãe de Etelvina. Segundo ele, com essa companhia não poderia sua afilhada “ter conveniente educação e mesmo exemplos de honestidade”. Portanto, “para evitar mal maior no interesse” da prote-gida, solicitou que fosse nomeado seu tutor e que se passasse “mandado de entrega da referida menor, visto como amigavelmente recusa-se fazê-lo o indivíduo em casa de quem a mesma se acha assentada”. A tutoria foi concedida logo em seguida e no juramento Rocha Quebrada comprometeu-se em doutriná-la, vesti-la, alimentá-la, educá-la, tudo as suas custas, pois a menor não possuía bens e sua mãe natural não possuía “qualidades para ser-lhe conferido o precioso encargo de Tutoria no estado de mancebia em que atualmente se acha”33.

Acionar a tutela sob o argumento da improbidade materna34 em zelar por Etelvina foi um expediente acionado por Rocha Quebrada, sem dúvida, com moti-vações que transcendiam o apresso pela afilhada. Por conseguinte, a fuga de Etelvina

32 Sílvia Arend a partir de Moreira sugere que o amasiamento caracterizava-se pelo encontro regular; pela “existência de responsabilidades mútuas entre o homem e a mulher”, e pelo caráter público da relação. “Para os populares, estar amasiado era considerado um estado próprio de sua cultura, equivalente a um estado civil da ordem jurídica”. Paulo Moreira já havia sugerido a importância das mulheres populares na conformação de tais relações. Partindo de alguns casos, constata que elas tinham fundamental importância na escolha de seus parceiros. AREND, Sílvia. Amasiar ou casar? A família popular no final do século XIX. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2001, p 61; MOREIRA, Paulo Roberto Staudt. Entre o deboche a rapina: os cenários sociais da criminalidade popular em Porto Alegre. Porto Alegre: Armazém Digital, 2009, p. 163-185.33 AHMRP. Documentação Avulsa. Pedido de Tutoria de Etelvina, 1878.34 A atuação do Juízo dos órfãos, nessa acepção, acaba por atingir as relações sociais e familiares. Na maioria dos casos era vetada a tutela feminina, com exceção das mães e avós, sobretudo entre os ricos e livres, “pois acreditava-se que as mesmas não possuíam capacidade necessária para um ato de tamanha importância”. Zero constatou que várias “mães que buscaram na justiça reaver os seus filhos não conseguiram principalmente por serem consideradas inaptas para executarem a função de tutoras”. ZERO, Arethuza. O preço da liberdade: caminhos da infância tutelada – Rio Claro (1871-1888). Dissertação de Mestrado. Campinas: UNICAMP, 2004, p. 91.

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da casa de seu padrinho, ultrapassava a rebeldia ou o afronte. Foi, antes de tudo, o desejo de conviver com sua família e romper com o domínio de seu padrinho. Percebe-se aí, claramente, um confronto entre diferentes expectativas em relação à instituição do compadrio. Se a escolha de um livre e membro da família senhorial para compadre significou para Silvéria uma possibilidade de ganhos que iam desde a proteção até a liberdade, passando pela ampliação dos recursos materiais, para o escolhido – nesse caso, Rocha Quebrada – tornava-se uma oportunidade de ampliar suas redes de dependência e controle. Porém, entrou em conflito com os interesses de Rocha Quebrada os projetos de Etelvina e Silvéria. Podemos seguramente dizer que o “despretensioso” auxílio na libertação da afilhada escondeu o interesse em trazê-la para seu poder, já que a menina seria possivelmente vendida judicialmente por ter sido separada na partilha dos bens inventariados para o pagamento dos cre-dores. Cristiany Rocha argumenta que o parentesco estabelecido entre escravos e membros da família senhorial

[...] pode ser visto como ponto culminante de uma estratégia que congregava interesses de dominantes e dominados. Afinal, tal relação enredava o cativo na malha da política de controle paternalista teci-da pelo senhor, mas, em contrapartida, também fornecia ao escravo meios para proteger e estender seus laços familiares35.

A alforria de Etelvina deixa entrever, ainda, a precariedade que marcava a mu-dança de condição jurídica – mudança que não significava o rompimento dos laços de dependência que caracterizavam o escravismo36. Com a liberdade, na maioria das vezes, essa relação não se rompia por completo e acabava por estruturar a própria ideia do que era viver em liberdade, menos associada à autonomia e o direito de ir e vir, e mais com à “segurança na dependência, ou com menor precariedade na de-pendência”37.

***

O estabelecimento de parentesco espiritual por meio da escolha dos compa-dres e comadres estava, sem dúvida, relacionado aos projetos de alforria e de vida em liberdade que extrapolavam frequentemente as políticas senhoriais. Os dois casos

35 ROCHA, Cristiany Miranda. Histórias de famílias escravas..., p. 137-138.36 De acordo com Chalhoub, a dependência era a ideologia que atravessava as relações entre desiguais na sociedade escravista, sendo que o escravo estava na condição de mais dependente, dentre todos os outros. CHALHOUB, Sidney. Machado de Assis, historiador. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.37 CHALHOUB, Sidney. Entrevista. Aedos. vol. 1. ano 1, 2008.

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aqui apresentados – de um compadrio entre uma escrava com um liberto condicio-nal e outro entre uma escrava com um livre – configuram, nesse sentido, estratégias diferenciadas, cujos resultados apesar de serem, a priori, desconhecidos, eram, ao menos, projetados38. Se no primeiro caso a indenização da liberdade pelo padrinho liberto condicional sugere laços de solidariedade no interior da comunidade escrava, o segundo evidencia as intenções do padrinho em sujeitar a afilhada ao seu domí-nio após ajudá-la filantropicamente na libertação. Porém, os significados conferidos à liberdade por Etelvina e Silvéria antes de reafirmar os laços de dependência, opera-vam no sentido de afrouxá-los, enquanto Bernarda e Lourença, provavelmente, em liberdade fortaleceram ainda mais os laços de parentesco ritual com Severino. As estratégias dos compadres e afilhados aqui apresentados, portanto, se aproximavam por congregarem interesses que traziam muitos ganhos, mas também algumas perdas que extrapolavam os cálculos prévios.

38 Henrique Espada Lima ao se reportar ao pensamento de Giovanni Levi converge para essa assertiva ao dizer que a ação do sujeito “depende da interação com ações alheias” e que por isso “o controle sobre o seu resultado é limitado por um horizonte de constante incerteza”. LIMA, Henrique Espada. A micro-história italiana: escalas, indícios, singularidades. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006, p. 262.

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FONTES

Arquivo Histórico da Cúria Metropolitana de Porto Alegre – AHCMPA.- Paróquia de Nossa Senhora do Rosário de Rio Pardo. Livro de Batismos de liber-tos39. 1871-1888.- Paróquia de Nossa Senhora do Rosário de Rio Pardo. Livro de Batismos de escra-vos. 1860-1869.

Arquivo Histórico Municipal de Rio Pardo – AHMRP.- Documentação Avulsa. Pedido de Tutoria de Etelvina, 1878.- Livro de atas da junta de emancipação de escravos de Rio Pardo/RS, 1876 e 1877.- Livro de listas de classificação de escravos para a libertação pelo fundo de emanci-pação – Rio Pardo/RS, 1876 e 1877.

Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul – APERS.- Inventários post-mortem. Vara da Família (antigo Cartório dos órfãos), 1860-1886.- Inventários post-mortem. Cartório do Cível e Crime, 1861-1887.- Cópias das listas de matrícula de escravos de 1872 anexas aos inventários, 1869-1887.- Registros notariais de alforrias selecionados: Rio Pardo/RS. 1º Tabelionato. Livro 16, p. 150v. Concessão: 30/08/1870. Registro: 01/09/1870; Rio Pardo/RS. 1º Tabe-lionato. Livro 16, p. 150r. Concessão e registro em 29/08/1870; Rio Pardo/RS. 2º Tabelionato. Livro 20, p. 104r. Concessão: 06/11/1860. Registro: 15/07/1873. In: RIO GRANDE DO SUL. Secretaria da Administração e dos Recursos Humanos. Departamento de Arquivo Público. Documentos da escravidão: catálogo seletivo de car-tas de liberdade acervo dos tabelionatos do interior do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: CORAG, 2006. Vol. 2. p. 741-864.

39 A referência correta, nesse caso, seria ingênuos ou filhos livres de mulheres escravas, pois não se tratavam de libertos. Porém, mantivemos a designação presente na catalogação.

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LEGISLAçõES CITADAS40

- Lei n. 1695, de 15 de setembro de 1869. Proíbe as vendas de escravos debaixo de pregão e em exposição pública.- Lei n. 2040, de 28 de Setembro de 1871. Declara de condição livre os filhos de mulher escrava que nascerem desde a data desta lei, libertos os escravos da Nação e outros, e providencia a criação e tratamento daqueles filhos menores e sobre a libertação anual de escravos.- Decreto n. 5135, de 13 de Novembro de 1872. Aprova o regulamento geral para a execução da lei n. 2040 de 28 de setembro de 1871.

REFERêNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AREND, Sílvia. Amasiar ou casar? A família popular no final do século XIX. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2001.BRÜGGER, Silvia Maria Jardim. Minas patriarcal: família e sociedade (São João Del Rei – séculos XVIII e XIX). São Paulo: Annablume, 2007.CHALHOUB, Sidney. Entrevista. Aedos. vol. 1. ano 1, 2008.______. Machado de Assis, historiador. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.______. Visões da Liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na corte. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.CONRAD, Robert. Os últimos anos da escravatura no Brasil, 1850-1888. 1. Ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975.CUNHA, Maísa Faleiros da. Demografia e família escrava: Franca/SP, século XIX. Tese de Doutorado. Campinas: IFCH/UNICAMP, 2009.FLORENTINO, Manolo & GóES, José Roberto. A paz das senzalas: famílias escra-vas e tráfico atlântico, Rio de Janeiro, c. 1790 – c. 1850. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997.FREIRE, Jonis. Escravidão e famílias escrava na Zona da Mata Mineira oitocentista. Tese de Doutorado. Campinas: IFCH/UNICAMP, 2009.GUTERRES, Letícia. Para além das fontes: im/possibilidades de laços familiares entre livres, libertos e escravos (Santa Maria – 1844-1882). Dissertação de Mestrado. Porto Alegre: PPGH/PUCRS, 2004.

40 Disponíveis em: http://www2.camara.gov.br/legislacao/publicacoes/doimperio

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LIMA, Henrique Espada. A micro-história italiana: escalas, indícios, singularidades. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.MATTOS, Hebe. Das cores do silêncio: os significados da liberdade no sudeste escravis-ta. Brasil, século XIX. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1995.MOREIRA, Paulo Roberto Staudt. Entre o deboche a rapina: os cenários sociais da criminalidade popular em Porto Alegre. Porto Alegre: Armazém Digital, 2009.______. Os cativos e os homens de bem: experiências negras no espaço urbano: Porto Alegre 1858-1888. Porto Alegre: EST, 2003.MOTT, Luís. As alternativas eróticas dos africanos e seus descendentes no Brasil escravista. LPH: Revista de História, v. 3, n. 1, 1992, p. 176-214.PETIZ, Silmei Sant’Anna. Caminhos Cruzados: família e estratégias escravas na fron-teira oeste do Rio Grande de São Pedro (1750-1835). Tese de Doutorado. São Leo-poldo: PPGH/UNISINOS, 2009.REIS, Isabel Cristina dos. A família negra nos tempos da escravidão: Bahia, 1850-1888. Tese de Doutorado. IFCH/UNICAMP, 2007. ROCHA, Cristiany Miranda. Histórias de famílias escravas: Campinas, século XIX. Campinas: Editora da Unicamp, 2004.SANTOS, Sherol. Apesar do Cativeiro: Família escrava em Santo Antônio da Patrulha (1773-1824). Dissertação de Mestrado. São Leopoldo: PPGH/UNISINOS, 2009.SCHWARTZ, Stuart B. Segredos internos: engenhos e escravos na sociedade colonial, 1550-1835. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.SLENES, Robert. Na Senzala, uma Flor: esperanças e recordações na formação da família escrava – Brasil, Sudeste, século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.VASCONCELLOS, Márcia Cristina. Casar ou na casar, eis a questão. Os casais e as mães solteiras escravas no litoral sul-fluminense. 1831-1850. Estudos Afro-Asiáticos, Ano 24, n. 2, 2002. pp. 291-316.XAVIER, Regina. A conquista da liberdade: libertos em Campinas na segunda metade do século XIX. Campinas: UNICAMP, 1996.ZERO, Arethuza. O preço da liberdade: caminhos da infância tutelada – Rio Claro (1871-1888). Dissertação de Mestrado. Campinas: UNICAMP, 2004.

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esCrAvos eM bAgé: fugAs, quiloMbos

e insurreições

Vinicius Pereira de Oliveira

Resumo: o artigo apresente aspectos da presença escrava em Bagé e localidades adjacentes no século XIX, analisando dados quantitativos e qualitativos como processos criminais, inventários post-morten, documentação da Polícia, da Justiça e estatísticas populacionais. Objetiva-se dar visibilidade à presença escrava na formação histórica da região, estabelecendo contraponto com a historiografia tradicional que postula a sua inexistência ou pouca expressividade. Especial destaque será conferido a ocorrências de fugas, aquilombamentos e tentativas de insurreições verificadas na documentação.

Palavras-chave: Bagé – escravos – quilombos – fugas – insurreições.

Neste artigo, apresentamos um recorte histórico de uma pesquisa maior realizada no ano de 2007 visando a elaboração de relatório histórico-antropológico para identificação e delimitação do terri-

tório remanescente de quilombo “Com unidade de Palmas”, localizado no municí-pio de Bagé/RS¹. Esta pesquisa evidenciou, mediante cruzamento de informações oriundas da memória quilombola e de documentação histórica, que a gênese desta comunidade reporta diretamente ao período final da escravidão, e particularmente a um contexto de relações de trabalho e resistência frente a famílias pecuaristas gran-des proprietárias de terras, exigindo um esforço de pesquisa no sentido de captar esta realidade.

Nas linhas que se seguem, serão apresentadas apenas considerações de caráter geral sobre a presença escrava nesta cidade, resguardando-nos da publi-cização de aspectos mais específicos da trajetória desta comunidade, uma vez que a tramitação jurídica deste processo de regularização quilombola ainda está em curso.

¹ Relatório realizado conforme Artigo 68 dos ADCT da Constituição Federal de 1988, Decreto 4887/2003 e Ins-trução Normativa no. 20/2005 do INCRA, mediante convênio firmado entre 11ª. Superintendência Regional do INCRA e o Laboratório de Observação Social da UFRGS, com interviniência da FAURGS.. A equipe foi composta pelo Doutor em Antropologia Iosvaldyr Carvalho Bittencourt Junior, pela Bacharel em Geografia Nola Patrícia Gamalho e pelo Bacharel em Ciências Sociais Lúcio D. Centeno, além do presente autor.

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Uma primeira constatação para quem se propõe a tal pesquisa é a da inexis-tência de estudos mais detidos sobre a presença negra neste município. Apesar da abundância de documentação histórica sobre o negro disponível nos arquivos – e o APERS destaca-se neste cenário –, o papel deste grupo na formação histórica da região em questão, seja como escravo ou como trabalhador livre, raramente é citada pela bibliografia.

Esta situação na realidade se estende ao Rio Grande do Sul como um todo. A historiografia tradicional deste estado por muito tempo invisibilizou e diminuiu a importância da presença negra na sua formação histórica ao postular que esta teria sido fruto basicamente de dois tipos sociais: de um lado, os grandes criadores de gado e peões luso-brasileiros, produto das estâncias da região da Campanha; e do outro o imigrante europeu (principalmente alemão e italiano), colonizador de pequenas propriedades rurais, propulsor do progresso e da civilização. Nestas elabo-rações idealizadas, pouco ou nenhum espaço é dado aos indígenas, negros, mestiços e lavradores nacionais pobres².

Seguindo esta mesma perspectiva historiográfica, a escravidão no Rio Grande do Sul foi vista como não tendo a mesma dimensão e importância verificada em outras áreas do Brasil como os engenhos de açúcar nordestinos ou as lavouras de café do sudeste. De qualquer forma, onde ela ocorreu ter-se-ia caracterizado por um tratamento mais brando e igualitário dos senhores frente aos cativos, em uma relação supostamente marcada por fortes traços de cordialidade, algo como uma “democracia racial dos pampas”³.

Resultado dos desejos e projeções de uma intelectualidade preocupados em solidificar uma representação histórica e identitária regional em contraposição ao restante do Brasil, tido como escravista, estes discursos não levaram em conside-ração referências empírica diversas, como por exemplo levantamentos estatísticos que demonstram ter sido o Rio Grande do Sul uma das mais importantes províncias escravistas no século XIX4.

² ZARTH, Paulo Afonso. Do arcaico ao moderno: o Rio Grande do Sul agrário do século XIX. Ijuí: Ed. Unijuí, 2002, p. 145.3 Ver obras como: GOULART, Jorge Salis. A formação do Rio Grande do Sul: geografia social, geografia da historia, psicologia social e sociologia. Porto Alegre: Globo, 1933; e VIANNA, Francisco José Oliveira. Populações meridio-naes do Brasil: história, organização, psycologia. São Paulo: Nacional, 1933.4 O Rio Grande do Sul era a terceira província com maior proporção de escravos em sua população no ano de 1874, atrás somente do Rio de Janeiro e Espírito Santo e a frente de estados como Bahia e Minas Gerais, tradicionalmente referidos como possuidores de grande concentração escrava (ver CONRAD, Robert Edgard. Os últimos anos da escravatura no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975). Cabe ressaltar que estes dados referem-se ao ano de 1874, quando já havia se passado 24 anos, da proibição definitiva do tráfico transatlântico de escravos para o Brasil, situação que tornou a província fornecedora de escravos no tráfico interprovincial para regiões economicamente mais prósperas do Brasil.

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Estudos diversos realizados nas últimas décadas têm, com grande eficácia, con-traposto esta leitura mais tradicional ao demonstrar que a realidade do escravo no Rio Grande do Sul, além de ter sido demograficamente importante, foi extremamente dura e cruel como no restante do país, o que pode ser verificado tanto pelo uso de documen-tação histórica como pela memória dos descendentes de escravos em todo o estado5.

Outra afirmação recorrentemente difundida no imaginário histórico regio-nal versa sobre a inadequação do trabalho escravo às atividades pecuárias, realidade econômica na qual a Comunidade de Palmas está historicamente inserida6. Segundo determinada corrente de análise, a proximidade da fronteira e a cotidiana lida com o cavalo potencializariam as fugas escravas que, somadas ao baixo grau de capitaliza-ção do setor, tornariam inviável a adoção do trabalhador cativo neste setor econômi-co riograndense. Neste sentido, Farinatti chama a atenção de que:

Até hoje, poucos foram os trabalhos que se dedicaram ao estudo espe-cífico da escravidão nas regiões de predominância pecuária no Brasil. Ao contrário, essa atividade foi, tradicionalmente, entendida como um palco privilegiado da mão-de-obra livre.7

Nos últimos anos a questão vem sendo estudada na sua devida medida, a partir da densa análise de documentação histórica diversificada e refinado aparato teórico-metodológico, o que possibilita demonstrar a importância e recorrência do negro escravizado ou mesmo livre nas atividades das estâncias, seja como campeiros, peões ou domadores, ou até mesmo em atividades acessórias como a produção de alimentos ou lides domésticas.8

Ademais, o aprofundamento das pesquisas e uma maior valorização do empí-rico ocorrida nas últimas décadas nos estudos sobre o passado brasileiro demonstra-ram que, contrariamente ao que se acreditou por muitos anos, a propriedade escrava era acessível a amplas parcelas da sociedade, estando presente não somente nas gran-des unidades produtivas agro-exportadoras (canaviais, engenhos, lavouras de café), mas também em produções ligadas ao abastecimento interno.9 O escravo esteve pre-

5 Sobre as bases da construção historiográfica do mito da benevolência do sistema escravista do RS, ver GU-TFREIND, Ieda. O negro no Rio Grande do Sul: o vazio historiográfico. In: Estudos ibero-americanos: Anais do I Simpósio gaúcho sobre a escravidão negra. Porto Alegre: EDIPUCS, 1990.6 MOURA, Clóvis. Rebeliões da Senzala. Mercado Aberto: Porto Alegre, 1988. 4ª edição; FREITAS, Décio. O capitalis-mo pastoril. Porto Alegre: EST/UCS, 1980.7 FARINATTI, Luís Augusto Ebling. Escravos nas estâncias e nos campos: escravidão e trabalho na Campanha Rio-grandense (1831-1870). Conservatória: Anais do VI Congresso Brasileiro de História Econômica, CD-ROM, 2005, p. 1.8 OSóRIO, Helen. Estancieiros, lavradores e comerciantes na constituição da estremadura portuguesa na América: Rio Grande de São Pedro, 1737-1822. Tese (Doutorado em História). UFRJ/IFCHS, 1999; ZARTH, Paulo Afonso. Do arcaico ao moderno: o Rio Grande do Sul agrário do século XIX. Ijuí: Ed. Unijuí, 2002; FARINATTI, Luís Augusto Ebling. Confins meridionais: famílias de elite e sociedade agrária na Fronteira Sul do Brasil (1825-1865). Tese de Doutorado em História. Rio de Janeiro: UFRJ, 2007.9 FRAGOSO, João Luís Ribeiro. Modelos explicativos da economia escravista no Brasil. In: CARDOSO, Ciro Fla-marion S. (org.) Escravidão e abolição no Brasil: novas perspectivas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1988, p. 24.

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sente em todos os setores produtivos da sociedade riograndense, desempenhando as mais diversas atividades urbanas e rurais, inclusive aquelas que exigiam elevado grau de especialização profissional.

Os dados abaixo apresentados possibilitam captar a importância demográfi-ca – e porque não social? – da população escravizada em Bagé ao longo do século XIX10:

População de Bagé no ano de 184611

10 É importante destacar ainda a presença considerável de população negra livre e liberta em Bagé do século XIX, indígena, além daqueles referidos nos documentos de época como “bugres”, “índios amulatados”, “amorenados”, “indiáticos”. Um exemplo pode ser verificado em: APERS, Processos Crime, Piratini, Cartório Cível e Crime, Maço 26, Processo 1080.11 AHRS, Fundo Estatística, Maço 01. Possivelmente se trate somente da sede do município, não considerando os demais distritos.12 AHRS, Fundo Estatística, Códice 1, Mapa da População da Província no fim do ano de 1858.13 Fonte: CAMARGO, Antônio E. Appenso ao Quadro estatístico e geographico da província de São Pedro do RGS. Porto Alegre: Typ. do Jornal do Comércio, 1868. Citado por ZARTH, Paulo Afonso. Do arcaico ao moderno: o Rio Grande do Sul agrário do século XIX. Ijuí: Ed. Unijuí, 2002, p. 123.

Dados Estatísticos da População de Bagé em 185812

Municípios com maior número de escravos – 185913

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Apesar desta constatação, quando nos propusemos a visualizar o passado es-cravista desta localidade nos deparamos com a inexistência de trabalhos mais detidos sobre o tema. Como praticamente inexistem documentos históricos produzidos pe-los próprios escravos temos que recorrer àqueles produzidos pelas instâncias gover-namentais para reconstituir o passado dessas populações.

Buscamos, então, uma primeira aproximação com a questão através da análise de inventários post-morten de indivíduos residentes em Bagé, o que permitiu visuali-zar algumas características da propriedade escrava nesta localidade. A partir de uma amostragem de 38 inventários, compreendendo o período de 1877-1883, podemos ter uma dimensão da difusão da posse escrava nesta localidade:

Levantamento dos inventários pesquisados: posse de escravos

Fonte: APERS, Inventários, Bagé, 1877-1883

Esta pequena amostragem revela que 65,79% dos indivíduos que legaram bens possuíam pelo menos um escravo no momento da sua morte, atestando a dis-seminação desta prática sócio-cultural na região. Cabe destacar que o recorte tempo-ral da documentação analisada se insere no período de desagregação do sistema es-cravista no Brasil, quando comprovadamente o contingente escravo no Rio Grande do Sul diminuía progressivamente, situação em grande medida atribuída aos efeitos da proibição definitiva do tráfico internacional de escravos em 1850.

A análise da documentação referida permitiu igualmente sondar a estrutura da posse escrava, ao indicar o tamanho dos plantéis quando do elaboração dos do-cumentos:

O tamanho dos plantéis de escravos em Bagé

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Constatou-se que a maior parte dos escravos vivia em plantéis pequenos, de no máximo 10 indivíduos, enquanto que o restante estava distribuído em plantéis médios, raramente ultrapassando a quantidade de 15 cativos. Estes dados atestam a predominância da pequena posse de escravos em Bagé, situação que na realidade vem sendo verificada em diversas outras áreas do Brasil ligadas ao abastecimento interno14. Essa constatação, antes de diminuir a importância da presença escrava nestas áreas, chama a atenção para a existência de distintas e complexas realidades escravistas no Brasil, variáveis em função de diferenciações regionais e econômicas15. Cabe destacar que a pecuária, por suas características produtivas, apresentava menos necessidade numérica de mão-de-obra fixa, se comparada com outros setores da economia rural da época, o que pode em parte explicar os números apresentados16.

Por si estes dados já seriam suficientes para contrapor as referidas aborda-gens tradicionais que negam a fundamental presença da população negra escravizada em Bagé e na pecuária riograndense. Entretanto, uma diversidade de outros docu-mentos históricos como os processos-criminais, cartas de alforrias, inventários post-morten, registros policiais e judiciários, aliados à riqueza dos relatos afrodesendentes, possibilitam visualizar uma diversidade de aspectos da experiência negra no Brasil escravista.

Por muito tempo tomados pela historiografia como passivas vítimas de um sistema opressivo, dados estatísticos ou unicamente como força de trabalho, os es-cravos emergiram nos estudos especializados mais recentes como um grupo que buscava, mesmo sob o jugo desigual do cativeiro, ser sujeito de sua própria história. Neste sentido, uma maior atenção tem sido dada à análise de aspectos cotidianos da

14 Fora setores produtivos específicos que exigiam maior número de trabalhadores como as charqueadas, engenhos de açúcar e fazendas de café, o padrão da posse cativa não só no Rio Grande do Sul, mas também em outras áreas do Brasil escravista seguia esta tendência de pequenos e médios plantéis. Hebe Castro observa que os pequenos plantéis formavam a maior parte dos proprietários de escravos no Brasil. Em regiões com o Recôncavo Baiano, por exem-plo, tradicionalmente referido como área de grandes plantéis escravos em função da produção açucareira, 80% dos senhores possuíam menos de 10 escravos. Ver: CASTRO, Hebe Maria Mattos de. Das cores do silêncio: os significados da liberdade no sudeste escravista - Brasil séc. XIX. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1995, p. 36; e MATTOS, Hebe Maria. Escravidão e cidadania no Brasil Monárquico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000. Série Descobrindo o Brasil, p. 18.15 Schwartz, em estudo sobre a realidade escravista no Brasil, observa a existência de uma população de trabalha-dores e famílias rurais que passou a existir à margem da economia agro-exportadora escravista desde o período colonial, criando uma classe camponesa. Nesta sociedade, a agricultura de subsistência e de exportação estavam intimamente ligadas numa relação complexa. Regiões como Maranhão, São Paulo, Paraná e Rio Grande do Sul, que anteriormente não teriam se caracterizado pela economia de exportação nem pelo uso predominante do trabalho escravo foram, a partir do final do período colonial, induzidas pela expansão das exportações “a uma dependência cada vez maior da escravidão”. Ver: SCHWARTZ, Stuart B. Escravos, roceiros e rebeldes. Bauru: EDUSC, 2001, p. 129. Quanto a Bagé, cabe quantificar se tratavam-se de pequenos famílias rurais, no sentido exposto por Schwartz, ou médios e grandes pecuaristas.16 Para uma melhor problematização da questão, ver FARINATTI, Luís Augusto Ebling. Confins meridionais: famílias de elite e sociedade agrária na Fronteira Sul do Brasil (1825-1865). Tese de Doutorado em História. Rio de Janeiro: UFRJ, 2007.

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vivência desses agentes, como, por exemplo, a possibilidade de aproveitamento das brechas do sistema para a ressignificação de suas vidas.

O contexto de opressão, de castigos e maus tratos do regime escravista levau muitos negros a elaborarem diversificadas estratégias de resistência na resistência na busca de influenciar no destino de suas vidas. Muitas delas se propunham a romper com as amarras do sistema e construir uma outra realidade, o que foi freqüentemen-te tentada através da formação de quilombos, da fuga e da organização de insurrei-ções. Vejamos alguns casos ocorridos em Bagé e arredores.

“PRENDER NOS MATOS A NEGROS FUGIDOS”: AS FUGAS ESCRAVAS

A fuga, sem dúvida, foi expediente que fez parte dos projetos de muitos indi-víduos escravizados, sendo um acontecimento corriqueiro do dia-a-dia do cativeiro. Os relatos desta prática são abundantes em todo Brasil, motivadas por uma gama ampla de questões como as condições adversas do cativeiro, os castigos e maus tratos, a separação de famílias e a imposição de ritmos de trabalho extremamente forçosos17.

Nogueról18, em artigo onde analisa os riscos de fuga escrava oferecidos pela fronteira do Rio Grande do Sul com Argentina e Uruguai, apresenta o seguinte quadro com o número de indivíduos referidos como “fugidos” em inventários de diversas comarcas, entre elas Bagé:

17 Silva sugere a interessante distinção entre “fugas-reinvidicatórias” e “fugas-rompimento”. As primeiras não se proporiam a romper com o sistema e muitas vezes tinham uma duração previsível. Seriam pequenas escapadelas que objetivavam exercer pressão e mostrar descontentamento contra alguma questão específica, como a quebra de acordos estabelecidos ou castigos considerados injustos e/ou excessivos. Já as “fugas-rompimento” eram casos mais extremos, em que se buscava a ruptura com o sistema. O autor utiliza também os conceitos de ‘fugas para fora” (ou seja, para lugares de difícil acesso, matas, montes, etc) e “fugas para dentro” (para as cidades, “para o interior da própria sociedade escravista”, onde os escravos tentavam se passar por livres). Ver: SILVA, Eduardo. Fugas, revoltas e quilombos: os limites da negociação. In: REIS, João José; SILVA, Eduardo. Negociação e Conflito: a resistência negra no Brasil escravista. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.18 NOGUERóL, L. P. F. ; MIGOWSKI, V. ; Dias, M. S. ; Rodrigues, D ; PINTO, M. S. . Elementos da Escravidão do Rio Grande do Sul: a lida com o gado e o seguro contra a fuga na fronteira com o. In: XXXV ENCONTRO NACIONAL DE ECONOMIA, 2007, Recife - PE. Anais do XXXV Encontro Nacional de Economia, 2007.

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Mesmo utilizando somente inventários como fonte, o autor demonstra que a situação de proximidade de Bagé com a fronteira uruguaia era fator potencializador das fugas escravas19. O maior número de ocorrências nesta localidade certamente estava vinculado ao fato da abolição da escravidão no Uruguai ter ocorrido na déca-da de 1840, fornecendo mais um atrativo às esperanças de liberdade da população escravizada20.

Os exemplos são múltiplos na Bagé escravista do século XIX. Em 1849, Fe-lícia Flora Ribeiro, ao efetuar o inventário pelo falecimento de seu esposo, informa que seis anos antes fugiram para o Estado Oriental os seus escravos Antonio da Costa, Matheus da Costa e Florinda Crioula, dos quais nunca mais soube notícias21. Em 1848 José Rodrigues de Lima (homem branco, solteiro, natural desta Província, morador na freguesia de Lavras) foi avisado por ordem do inspetor de quarteirão que deveria ir até uma tapera nos arredores da povoação de Lavras “prender nos matos a negros fugidos, que ali se achavam”22. Em 1845, ao ser interrogada, a preta Maria (30 anos aproximadamente, nação Mina, solteira), escrava de Manoel Marques da Silva, informou que seu senhor “sempre judiava com os escravos, que por isso um seu companheiro tinha fugido para o mato”23.

Diversos registros históricos demonstram que as fugas de escravos para o Uruguai poderiam ser incentivadas por indivíduos que “seduziam” a escravaria rio-grandense com vistas a suprir a necessidade de trabalhadores nas estâncias do ou-tro lado da fronteira ou para servirem de soldados nos conflitos platinos. No final da década de 1850, por exemplo, o correntino João Rios teria seduzido o escravo Sebastião, de José Hipólito de Oliveira Martins, para seguirem para a província de Corrientes (Argentina) ou Uruguai, com a promessa de liberdade24.

Esses são apenas alguns dos muitos exemplos presentes na documentação histórica da região, reveladores da capacidade escrava de conceber e executar proje-tos de liberdade, mas é fato que nunca saberemos a dimensão numérica dos indiví-

19 Sobre as fugas de escravos brasileiros para o além fronteiras, especialmente Uruguai, ver PETIZ, Silmei de S. Buscando a liberdade: as fugas de escravos da província de São Pedro para o além-fronteira (1815-1851) Passo Fundo: UPF Editora, 2006.20 De 1839 a 1851 o Uruguai encontrava-se dividido politicamente por ocasião da Guerra Grande. Havia o Governo de la Defensa em Montevidéu, sob controle colorado de Fructuoso Rivera que promoveu a abolição em 1842 para recrutar negros para o exército. E em 1846 o Governo do Cerrito, sob controle blanco de Manuel Oribe também faz o mesmo.21 APERS, Inventários, Caçapava do Sul, Cartório de órfãos e Ausentes, Maço 07, Inventário nº 159.22 APERS, Processos Crime, Cartório 1o Civil e Crime, Maço 35, Processo no 1107.23 APERS, Processo Crime, Caçapava do Sul, Cartório 1o Civil e Crime, Maço 34, Processo-crime no 1077, Ano 1845.24 APERS, Piratini, Processos Crime, Cartório Cível e Crime, Maço 27, Processo nº 1146. Ver outros exemplos em PICCOLO, Helga Iracema L. A resistência escrava no Rio Grande do Sul. Caderno de Estudo. Porto Alegre: Curso de Pós-Graduação em História, 1992.

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duos que obtiveram êxito em suas fugas. Apesar de algumas dessas escapadas terem caráter reivindicatório e temporário, muitas tinham como objetivo quebrar os gri-lhões do cativeiro através da constituição de quilombos em matos de difícil acesso.

“AQUILOMBADOS COM OUTROS PRETOS” – AS COMUNIDADES DE FUGITIVOS NA REGIãO DE BAGÉ25

São ricos os relatos de ocorrência de aquilombamentos em Bagé e localida-des vizinhas. Em setembro de 1834, por exemplo, foi formada uma diligencia por diversos homens brancos da região de Caçapava do Sul afim de prender os escravos fugidos que viviam aquilombados nos matos da região pois fazia mais de ano que roubos de gado, roupas e até armamentos estavam ocorrendo. Certo dia, a patrulha repressiva andava costeando os matos da chácara de Joaquim Vitório Maciel quando avistaram um negro portando uma velha vestimenta composta de japona, calças de brim branco e botas. Tratava-se de do preto Manoel (crioulo, nascido em Sorocaba), escravo de Manoel Veríssimo Esteves26, um dos quilombolas procurados.

Na tentativa de escapar, Manoel acaba descarregando um trabuco que trazia consigo sobre um dos homens que tentavam prende-lo, causando-lhe a morte, o que de nada adiantou pois foi pego em seguida antes de conseguir se ocultar novamente no mato. Devido o falecimento ocorrido, foi instaurado um processo criminal onde o quilombola figurava como réu, e em seu diversos testemunhos e interrogatórios são revelados aspectos importantes da vida quilombola no Rio Grande do Sul27.

Ao ser interrogado, o quilombola Manoel afirmou andar fugido a mais de um ano e que se achava:

[...] escondido nos matos da Chácara de Joaquim Vitório Maciel, ao sair do mato foi encontrado por Albino Francisco da Silva, Félix Ro-berto Luis da Silva, Manoel Elias de Morais, a quem apenas vendo lhe fez tiro com um trabuco que tinha em seu poder roubado da casa de um morador vizinho de Manoel de Souza Teixeira à costa do rio Santa Bárbara e cujo o tiro veio cair morto o mencionado Manoel Elias Moraes [...] porém que fora preso imediatamente pelos companheiros do morto.

Perguntado pelo juiz se possuía local certo onde se refugiasse no mato e se haviam mais escravos fugidos consigo, Manoel respondeu que:

25 Expressão retirada de processo crime referente a escravos fugidos: APERS, Processos Crime, Caçapava do Sul, Cartório 1o Civil e Crime, Maço 34, processo no: 1072.26 Também referido como Manoel Veríssimo Prestes da Fonseca. 27 APERS, Processos Crime, Caçapava do Sul, Cartório 1o Civil e Crime, Maço 34, Processo no 1072.

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[...] ele e outro seu companheiro, o preto João, escravo de Joaquim Elias de Morais e uma preta de nome Joaquina, escrava de Joaquim Claro de Jesus, tinham dois quilombos um em matos de Manoel Cor-rea Marques e outro nos matos do Coronel Olivério José Ortiz, de onde se mudavam de dias em dias para assim não serem preso.

O depoimento revela ainda outros aspectos importantes da vivência qui-lombola. Manoel informa que ao longo do tempo em que ficou aquilombado ele e seus companheiros haviam carneado pelo menos nove reses, furtado algumas rou-pas como ponchos, pala, japonas, o trabuco que usou no momento de sua prisão, pólvora e dois cargos de chumbo. Manoel foi julgado e condenado a morte em 04/03/1835, sendo o primeiro réu condenado a morte em Caçapava do Sul28.

Já em 1831 o escravo Joaquim é acusado de matar seu senhor Joaquim Martins de Araújo. Os documentos judiciais a que tivemos acesso afirmam que Joaquim cos-tumava fugir recorrentemente de seu senhor e praticar roubos de gado e em moinhos de farinha de trigo. Em uma destas situações, entrou em conflito com o escravo de um proprietário de moinho, acabando por ser preso pelo capitão-do-mato. Mesmo na cadeia, era conduzido todos os dias por seu senhor Martins de Araújo em ferros para trabalhar no o ofício de seleiro. Sendo constantemente repreendido (entenda-se castigado) por seu senhor, o escravo acaba dando-lhe uma facada e ocasionando sua morte. Segundo o documento anexado ao processo criminal contra o escravo Joaquim,

[...] vários habitantes desta cidade oferecem-se para ajudar e concorrer para a punição do criminoso com a condição porém se for sentencia-do a morte e vir a cabeça a este mesmo lugar que talvez servisse de temor a outros29.

Ansiosos por um castigo que servisse de exemplo para a ampla escravaria da região, diversos habitantes da cidade manifestaram sua vontade não só de con-denação, mas de sentença à morte e exposição pública da cabeça do escravo. Em 10/11/1834, porém, a sessão do Júri informou que o réu se achava ausente e em lugar desconhecido, não podendo dar prosseguimento ao processo.

Em 1832 a Justiça manifestava a existência de [...] pretos aquilombados nas imediações desta Vila [de Caçapava] de nome Agostinho, escravo do Tenente Antonio Prudente, Simão, escra-vo de Eugenio Alano, João, escravo de Manoel Joaquim Ferreira, Januá-rio e a preta Joaquina, que se ignora quem sejam seus senhores. 30

28 AHRS, Fundo Autoridades Municipais, Caçapava do Sul, Correspondência Expedida, Maço 24, Caixa 10, Docu-mentos 63 e 64.29 APERS, Processo Crime, Caçapava do Sul, Cartório 1o Civil e Crime, Maço 34, Processo no: 1063.30 APERS, Processos Crime, Caçapava do Sul, Cartório 1o Civil e Crime, Maço 34, Processo no: 1065.

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Em 23 de novembro do mesmo ano o escrivão da localidade narrou ao Juiz de Paz Suplente José da Silva Rocha Ribeiro as providências tomadas para por fim ao quilombo localizado na Costa do Rio Santa Bárbara:

depois de achar feito as diligências necessárias pode ao romper do dia de hoje cercar o campo onde se achavam os ditos pretos e depois de rigorosa resistência da parte destes, descarregando sobre a partida alguns tiros de clavina e pistola, que felizmente ficou ilesa, havendo-lhes gritado por 3 vezes que se entregassem a prisão à ordem de Vossa Senhoria, não obedeceram, antes se portaram com mais afoitosa, por isso que na forma da lei fui obrigado a repelir a força dos renitentes ficando mortos os pretos Simão e João, escravo de Manoel Joaquim Ferreira, cujos corpos não sendo possível conduzir perante a V.S. por ser o quilombo situado em um lugar aspérrimo cheio de barroca com bem presenciou o oficial jurado Antonio Machado, foram ali sepulta-dos, apresentando somente o preto Agostinho baleado em uma coxa tendo-se escapado uma preta e um preto sendo no todo cinco fugidos.

O preto Agostinho, o único sobreviventes que foi preso, responde a interro-gatorio, revelando primeiramente dados sobre a dimensão do aquilombamento, que abrigava

[...] quatro negros e uma negra [...] disse chamarem-se Simão, escravo de Eugenio Alamo, o outro, João, escravo de Manoel Joaquim Fer-reira, outro, Januário e uma preta de nome Joaquina e que estes dois últimos se escaparam na ocasião da prisão e que ele era escravo do Tenente Antonio Prudente.

Roubos e furtos são referidos por Agostinho como estratégias de sobrevivên-cia e supressão de necessidades básicas do dia-a-dia:

[...] perg. se eles tinham vindo as lavagens desta Vila [...] disse terem vindo algumas vezes de onde tinham roubado algumas roupas das lavadeiras [...] resp. ele terem carneado muitas reses de várias pessoas [...] perg. se foram eles que tinham roubados algumas armas da Nação depositadas em poder do tenente Joaquim Claro de Jesus, e roubado-lhe a casa [...] resp. que eles tinham sido os mesmo que tinham rouba-do o dito armamento.

Este armamento fora utilizado no momento da resistência contra a expedição que buscava prendê-los:

[...] disse que no conflito tinham feito grande resistência pois que ele tinha uma clavina e Simão seu companheiro uma pistola, e o preto João uma espada e outro que escapou com arama larga e que nunca quiseram se entregar, dispararam alguns tiros sobre a partida de que resultou serem mortos o preto Simão e João, sendo ele baleado em uma coxa, quando então se entregou a prisão e que os mais compa-nheiros se haviam escapado [...].

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No ano de 1848 o escravo Antônio, de José Carlos da Costa Ribeiro, foi preso por viver aquilombado em matos da região de Caçapava. Cerca de um ano antes ha-via fugido e se abrigado em matos de Dona Maria dos Santos. Em seu interrogatório relatou ter se encontrado:

[...] com seis negros que andavam igualmente fugidos e aquilombados e que passados alguns dias estando ele em companhia dos outros pre-tos a tirar mel foram encontrados por um morador daquelas vizinhan-ças a quem os seus companheiros queriam matar, deixando de fazer a rogo dele crioulo, que logo depois disso não lhe parecendo bem andar em companhia de semelhante gente, os abandonou e veio residir nos matos de Manoel Correa Marques perto da casa de seu senhor e que ali estando ele só, pouco dias depois se lhe reuniu o desertor Manoel Prestes, que andando também fugido encontrou com ele crioulo nos ditos matos e [...] que depois deste encontro com Manoel Prestes nun-ca mais este crioulo separou-se deste e que andavam sempre juntos até serem presos.31

Manoel Ferreira Prestes tinha cerca de 20 anos era soldado do segundo re-gimento de cavalaria de linha e, juntamente com o escravo Antônio, vivia em um rancho dentro do mato. Perguntado sobre sua forma de alimentação, Manoel Prestes afirmou

que costumava-se alimentar com o que vinha da casa de seus parentes e com mel que tirava das abelheiras e com o palmito de girivá, que cortava nos matos em que se achava.

Ao ser indagado sobre quem levava para ele comida da casa de seus parentes, Manoel respondeu “que ele mesmo ia buscar o que comer na casa de seus parentes e o levava para o mato”. Afirmou ainda que o escravo caçava passarinhos e outros animais para seu sustento. Este quilombo apresenta a não rara característica de abri-gar tanto escravos como homens livres, no caso um desertor do exército. Revela também a interessante opção do crioulo Antônio de abandonar o aquilombamen-to composto por negros para viver na companhia de um homem branco, o que, além dos motivos apontados pelo escravo, também propiciava maiores facilidades de acesso ao universo social externo aos matos, pois mesmo sendo Manoel Prestes procurado por ter desertado, levantava menos suspeitas ao circular fora dos matos por não ser cativo.

O extenso Rio Camaquã, curso d’água que corre próximo a Comunidade Quilombola de Palmas, configurava-se como um espaço privilegiado para esconde-rijo de desertores e escravos fugidos32. A documentação policial da região explicita as

31 APERS, Processos Crime, Cartório 1o Civil e Crime, Maço 35, processo no: 1107.32 A sesmaria da família Simões Pires, família proprietária e escravista que está relacionada com um dos troncos que deu origem à comunidade negra de Palmas, tinha como um de seus limites, originalmente, este curso d’água.

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preocupações das autoridades governantes da época escravista com as possibilidades de esconderijo oferecidas pelo Rio. Em 08/09/1856 o delegado de polícia de Piratini informava ao Presidente da Província, Conselheiro General Francisco Coelho, ter tido notícias de que a costa deste rio estaria servindo de refúgio a:

[...] uns sujeitos chamados Madástres33: homens perdidos carregados de vícios e de crimes que horrorizam a sociedade. O lugar de suas moradias seria uma grande ilha que há dentro dos matos daquele rio de onde saem para este lado, e para o da esquerda, que é território do município de Caçapava, oficiei ao respectivo delegado para q. depois de um plano feito entre mim e ele, puséssemos em uma noite essa ilha em sítio para de dia ser invadida [...] Estou informado que para esta importantíssima diligência será preciso 40 a 50 homens, não porque se tema esses facínoras, que consta estarem bem fortificados, mas por-que esses matos que guarnecem o rio são de uma extensão enorme, e por tais motivos, e por não ter gente suficiente para esta empresa, não a tenho posto em ação.34

Rico de matos, montes e ilhas, as proximidades do Rio Camaquã era destino de muitos escravos que buscavam quebrar os grilhões do cativeiro. Cerca de um mês depois, em 29/10/1856, o delegado suplente de polícia de Piratini remete corres-pondência ao Comandante das Armas e Presidente da Província do RS manifestan-do sua preocupação com os espaços de refúgio do Rio Camaquã:

Ilmo Exmo. Sr.Por portaria de V. Ex.a datada de 7 do presente mês, fico autorizado para requisitar ao Comandante Superior da Guarda Nacional deste município 40 a 50 praças para sob meu mando marcharem na dili-gencia de bater os facínoras que vagam e se acoitam nos montes que beiram o Rio Camaquã, os quais com gravoso peso tanto afrontam a sociedade. Já me entendi com o Comandante Superior, que já de V. Ex.a recebeu ordem para fornecer-me com esse Esquadrão, e agora só espero que fique baixo aquele grande rio para por em ação essa manobra, e entre tanto espero receber as convenientes instruções do Sr. Dr. Chefe de Polícia, conforme V. Ex.a ordena.35

Os aquilombamentos referidos permitem apreender uma diversidade de as-pectos bastante recorrente sobre estes agrupamentos no Rio Grande do Sul, que em sua maioria, se caracterizavam por terem pequenas dimensões, congregando um número pequeno de indivíduos. Uma outra questão diz respeito à presença não só de

33 Madraço, madracear e madraçarta seriam sinônimos de vadio e ocioso. Ver: FIGUEIREDO, Candido. Novo Dicio-nário da Língua Portuguesa. Lisboa: 1922, 3ª edição.34 AHRS, Piratini, Fundo Polícia, Maço 16, correspondência expedida pelo do Delegado de Piratini ao Presidente da Província Conselheiro General Francisco Coelho em 08/09/1856.35 AHRS, Piratini, Fundo Polícia, Maço 16, Correspondência Expedida por Bernado Pires, 29/10/1856.

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escravos fugidos, mas também de outros segmentos sociais que por motivos diversos buscavam nos matos um esconderijo frente uma situação considerada indesejada36.

Atualmente, diversos autores têm buscado destacar o fenômeno social do aquilombamento a partir de suas dinâmicas e complexidades, rompendo com a idéia do seu isolamento total frente à sociedade escravista. Mediante relações estabeleci-das com a população negra (escravizada ou não) e brancos pobres, por exemplo, os quilombolas procuravam ter acesso a informações estratégicas para sua sobrevivên-cia e a outros bens materiais, além da manutenção de vínculos sócio-afetivos e laços de solidariedade com negros livres e escravos que continuavam no cativeiro. Difi-culdades como a debilidade no acesso a alimentos e bens manufaturados necessários para o dia a dia levava-os ainda a manter vínculos com pequenos comerciantes, muitas vezes mediante troca de seu pequeno excedente produtivo ou mercadorias furtadas por gêneros diversos.

Impossível, porém, é apontar a totalidade destas formações, já que, devido a ausência de registros escritos deixados pelos próprios quilombolas, somente temos notícias daqueles quilombos que ‘deram errado’, ou seja, foram descobertos pelas forças repressivas, havendo assim um sub-registro de suas ocorrências.

INSURREIçõES ESCRAVAS

Além dos aquilombamentos e fugas, as revoltas, levantes e insurreições escra-vas foram outros atos que aterrorizaram a sociedade branca e senhorial da época. Bagé e seus arredores não estiveram livres destes temores.

Em dezembro de 1831 o Juiz de Paz Suplente de Caçapava informava ao Pre-sidente de Província do Rio Grande do Sul uma diversidade de crimes executados por Alexandre Luis de Queirós37. A presença deste homem era vista como amea-çadora à tranqüilidade dos moradores da região não somente pelos crimes contra a moral pública, de lesa-majestade, roubos e possíveis mortes que pudesse causar, mas também pelo temor de aliciar escravos para insurreição:

36 Piccolo apresenta uma ampla relação de ocorrências de quilombos no Rio Grande do Sul, os quais caracterizavam-se por terem pequenas dimensões. Na mesma obra apresenta diversos casos de presença de brancos e desertores nos quilombos. Ver: PICCOLO, Helga Iracema L. A resistência escrava no Rio Grande do Sul. Caderno de Estudo. Porto Alegre: Curso de Pós-Graduação em História, 1992; bem como MAESTRI, Mário J. Pampa negro: quilombos no Rio Grande do Sul. In: REIS, J. J.; GOMES, Flávio. Liberdade por um fio: história dos quilombos no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. p. 291-330. Sobre a recorrência deste aspecto em outras localidades do Brasil, ver GOMES, Flávio dos Santos; REIS, João José (orgs.). Liberdade por um fio: história dos quilombos no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1996; e GOMES, Flávio dos Santos. Histórias de quilombolas: mocambos e comunidades de senzalas no Rio de Janeiro - século XIX. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1995.37 AHRS, Justiça, Caçapava do Sul, Maço 5, correspondência do Juízo de Paz.

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Este homem mau – Excelentíssimo Senhor, é na crise atual mui peri-goso nesta Província, por todos os motivos, o que bem [?] se deixa ver sobre a escravatura desse lugar depois que ele aqui chegou, apesar de não ter-lhe saído o plano como meditou, mas a Vossa Excelência será constante que lhe é muito fácil não sendo perseguido ou preso, aliciar em poucos dias a partida da escravatura, a promessa da liberdade.

Com a promessa de liberdade, Alexandre Queirós estaria buscando conven-cer os cativos a se insurgirem contra a sociedade branca e escravista:

[...] é constante ter o dito Queirós ter convidado a grande porção de escravos cativos e alguns malévolos para reunidos ao mesmo em dia marcado, se levantarem, matando a todos os homens e pessoas bran-cas com promessa de libertá-los.

Na mobilização e arregimentação de escravos para este projeto Alexandre Queirós contava com a participação de “um seu peão ou escravo preto a que chama-va Capitão da Pátria”, o qual

[...] convidava escravos para a insurreição combinado com seu amo ou senhor, os quais foram positivamente de noite a chácara dos Senhor Damaso dos Santos de Menezes, cita nos subúrbios desta freguesia, proprietário que tem por todo 30 escravos a convidá-los para o dito fim, como com efeito se verificou por declaração dos mesmos escravos.

Infelizmente os documentos não informam o desfecho do caso. Somente sa-bemos que a comunidade da região encaminhou um abaixo-assinado ao Juiz de Paz de Caçapava solicitando a prisão de Alexandre Luis de Queirós.

A proximidade com a fronteira também era motivo de preocupação em rela-ção a levantes e insurreições. O Subdelegado de Polícia de Bagé, Matheus Teixeira Brasil, em correspondência com o Presidente da Província João Marcelino Gonzaga datada de 24/02/1865, manifesta sua vontade de estabelecer um corpo de policiais da Guarda Nacional. O temor era voltado à fronteira com o Uruguai, como se veri-fica neste documento:

Ilmo. Exmo. Snr.A invasão dos bárbaros assassinos do Governo de Montivideo, os in-tentos de sublelevarem [sic] a escravatura nesta Província; os orientais imigrados dos dois partidos que vagam pelos distritos sem mostrarem em que se ocupam, e finalmente os desertores do Exército que também aparecem tem posto os cidadãos pacíficos em sobressalto, e desassos-sego, e desejando tomar as providencias conveniente para estabelecer a tranqüilidade pública consultei Comandante Superior da G. N. deste Município para estabelecer uma Polícia dos G. N. da reserva [...].38

38 AHRS, Polícia, Bagé, Maço 44.

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O medo de levantes e revoltas escravas esteve presente no imaginário das elites brasileiras ao longo de todo o período escravista. Segundo Eduardo Silva39 as revoltas foram o pesadelo do tempo da escravidão, onde uma elite branca minoritá-ria convivia diariamente com a grande concentração de “gente de cor”. A ocorrência da Revolta dos Malês na cidade de Salvador, em 1835, entre tantas outros levantes, revoltas e insurreições negras, potencializou este medo ao tornar muito próximo o espectro da Revolução Haitiana, quando negros insurgiram-se e após 10 anos de luta acabaram com a dominação colonial na região40.

O MITO DA ABOLIçãO ANTECIPADA EM BAGÉ

Neste último ponto, teceremos breves considerações sobre a errônea afir-mação de que a escravidão teria sido abolida antecipadamente neste município41. Segundo algumas obras da historiografia local, no dia 28/09/1884 a Câmara Muni-cipal de Bagé, após grande mobilização popular, teria declarado extinta a escravidão em seus limites, libertando assim todos os “pretos” que viviam em seu território. O Club 28 de Setembro, sociedade emancipadora que existia com a finalidade de libertar escravos, teria desempenhado papel fundamental na disseminação do ideário abolicionista e na decisão do legislativo local de aprovar tal lei42.

Entretanto, uma análise mais detida da Ata da Sessão Extraordinária da Câ-mara Municipal de Bagé do dia referido revela que este legislativo se reuniu para comemorar a libertação dos escravos ocorrida por iniciativa particular de alguns pro-

39 SILVA, Eduardo. Fugas, revoltas e quilombos: os limites da negociação. In: REIS, João José; SILVA, Eduardo. Negociação e Conflito: a resistência negra no Brasil escravista. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 70.40 Sobre os temores das elites nacionais com o grande percentual de negros e mestiços na sociedade brasileira do sé-culo XIX e o papel da questão racial em seu ideário, ver AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda negra, medo branco: o negro no imaginário das elites século XIX. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987 e SCHWARCZ, Lilia Mortiz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. Sobre a Revolta dos Males ver REIS, João José. Rebelião escrava no Brasil: a história do levante dos malês em 1835. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. Edição revista e ampliada. Quanto ao impacto dos conflitos no Haiti sobre o imaginário das eites brasileiras, ver GOMES, Flávio dos Santos. Experiências transatlânticas e significados locais: idéias, temores e narra-tivas em torno do Haiti no Brasil Escravista. Tempo, Rio de Janeiro: Sette Letras, v. 7, n. 13, julho de 2002.41 Processo semelhante ocorreu em diversas outras cidades do Rio Grande do Sul. Sobre Porto Alegre, onde Moreira e Tassoni realizaram uma aprofundada análise das alforrias neste, explicitando suas lógicas de concessão e conquista. Ver: MOREIRA, Paulo Roberto Staudt; TASSONI, Tatiani de Souza. Que com seu trabalho nos sustenta: as cartas de alforria de Porto Alegre (1748-1888). Porto Alegre: EST Edições, 2007.42 Ver: TABORDA, Tarcisio Antonio Costa. A abolição da escravatura em Bagé. 28 de setembro de 1884. Bagé: Museu Dom Diogo de Souza, 1984; e MONTI, Verônica. O abolicionismo: sua hora decisiva no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Martins livreiro, 1985. A Praça da Matriz de Bagé teria passado a ser denominada “Praça da Redenção” em homena-gem ao feito. Ver: FAGUNDES, Elisabeth Macedo de. Bagé: no caminho da história do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Martins Livreiro Editor, 1995, p. 58 e 77; e FAGUNDES, Elisabeth Macedo de. Inventário Cultural de Bagé: um passeio pela história. Porto Alegre: Evangraf, 2005, p, 71.

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prietários, e não para declará-la abolida por lei, o que inclusive entraria em choque com a legislação maior do Império.

A análise da documentação histórica do período revela que estas libertações foram em grande medida uma série de alforrias condicionadas, ou seja, dependentes do cumprimento por parte dos escravos de condições estipuladas pelo proprietário, como a prestação de serviço por mais alguns anos ou a morte do senhor. Até satis-fazer estas cláusulas, os escravos deveriam continuavam a viver na esfera de depen-dência dos antigos senhores, os quais tentavam fazer com que o ato da alforria fosse internalizado pelos ex-escravos como uma concessão senhorial, resultado de um fa-vor ou doação para com isso reforçar sua ascensão moral sobre os alforriados e criar um corpo de trabalhadores dependentes. Esta realidade pode ser averiguada tanto mediante de cartas de alforria como em inventários post-morten do período onde apa-recem avaliados, ao invés dos escravos, os serviços que estes deveriam prestar a fim de obter a liberdade prometida nos documentos de manumissão.

Comparando a quantidade de cartas de alforria concedidas em Bagé em 1884 em relação aos anos anteriores percebe-se a posição de destaque ocupada por esta data:

Número de registros de alforrias em Bagé43

43 RIO GRANDE DO SUL. SECRETARIA DA ADMINISTRAçãO E DOS RECURSOS HUMANOS. DE-PARTAMENTO DE ARQUIVO PÚBLICO. Documentos da escravidão: catálogo seletivo de cartas de liberdade acervo dos tabe-lionatos do interior do Rio Grande do Sul. Porto Alegre : CORAG, 2006. A tabela seguinte está baseada na mesma fonte.

Uma análise mais detida da modalidade das concessões de alforria no mesmo ano vai ao encontro do exposto acima:

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Cartas de Alforria em Bagé – Ano de 1884

Apesar da considerável quantidade de cartas de alforrias concedidas em Bagé nos anos finais do regime escravista – que, como vimos, configurou-se como uma forma disfarçada de cativeiro –, o emprego da mão-de-obra escravizada esteve pre-sente nesta localidade até a abolição em 1888, e após esta data sob a forma de rela-ções de trabalho livre, assalariadas ou não.

Precipitadamente, parcela da historiografia nacional disseminou a idéia de que a “transição” do trabalho escravo para o livre teria ocorrido unicamente pela via da substituição do trabalhador cativo pelo trabalhador livre assalariado – esse último visto como sinônimo de branco e imigrante europeu. Por detrás desta perspectiva, emergia a idéia de que os ex-escravos teriam “desaparecido” do mercado de trabalho nacionais a partir desta “substituição” da mão-de-obra cativa pela livre44. A emergên-cia das histórias de comunidades de remanescentes de quilombos em todo Brasil é um exemplo sugestivo de como esta afirmação deve ser revista.

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elites e redes de soCiAbilidAde

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¹ Mestre em História Social pela UFF. Doutorando do PPGHIS-UFRJ. Bolsista CAPES.² Foram eles Luís Correia Teixeira de Bragança pelo Rio Grande de São Pedro, José Teixeira da Matta Bacellar por Sergipe e José Feliciano Fernandes Pinheiro por São Paulo. Bragança, contudo, faleceu antes de tomar posse sendo substituído pelo padre Antônio Vieira da Soledade.

vAlsAs, ContrAdAnçAs e bAilAdos: esPAços de soCiAbilidAde entre Agentes dA elite no rio grAnde

de são Pedro no séCulo xIX.

Adriano Comissoli¹

Resumo: Este artigo se dedica a apresentar uma interpretação do modo como surgiram e se desenvolveram os relacionamentos sociais que permitiram os matrimônios de magistrados régios com mulheres pertencentes a sociedade já estabelecida do Rio Grande de São Pedro. Para esse efeito, analisamos os espaços de sociabilidade disponíveis aos membros da elite sul rio-grandense entre os anos de 1808 a 1831 e sua capacidade de aproximar os diferentes membros da mesma em convivência sociável. A proposta é explorar os eventos sociais como oportunidades para introduzir os magistrados na sociedade e promover políticas matrimoniais.

Palavras-chave: elite – magistrados – matrimônio – sociabilidade.

O período compreendido entre os anos de 1808 e 1831 contemplou alterações decisivas na formação sócio-política da América portu-guesa, dentre as quais a que mais se destaca é a ruptura da unidade

política entre Portugal e Brasil. Nesse cenário, foram importantes para o processo as transformações nas bases institucionais administrativas ocorridas tanto antes quanto depois da separação política. O Rio Grande de São Pedro conheceu neste momento alterações fundamentais em sua malha administrativa que implicaram, dentre outros fenômenos, a solidificação de conexão com o centro do poder situado no Rio de Janeiro. Igualmente, passaram a circular pela capitania/província uma série de ofi-ciais administrativos até então inexistentes. Dentre os mesmo merecem destaque os magistrados régios, pois não só representavam o inicio do funcionamento de uma Justiça profissional, como os indivíduos que ocuparam tais cargos terminaram por desempenhar importante papel no desenvolvimento político do extremo sul. Coin-cidência ou não três bacharéis atuantes no Rio Grande foram escolhidos pelos elei-tores e pelo imperador para compor o primeiro senado brasileiro, ainda que por di-ferentes províncias.² No Continente de São Pedro estes membros da administração

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nascidos fora da capitania passaram por meio de migração, matrimônios, sociedades e alianças diversas a compor a elite local oferecendo à mesma um caráter misto, qual seja, mesclando integrantes oriundos dos grandes proprietários de terra e militares nascidos na região com estes novos elementos vindo de fora.

Para compreender os laços que atrelavam os indivíduos faz-se necessário identificar os relacionamentos desenvolvidos entre os mesmo, bem como a forma como os quais se originavam e desenvolviam. Nosso estudo se dirige a analisar as formas de integração entre os oficiais administrativos e os representantes da elite enraizada no Rio Grande de São Pedro, percebendo aí uma complementaridade que será fundamental para o desenvolvimento política da região e mais amplamente do Brasil durante o século XIX. Contemplamos aqui os meios de sociação dos mem-bros da elite em estudo, dissertando sobre os espaços de sociabilidade de que dispu-nham para conhecerem-se uns aos outros e interagirem. São abordadas as reuniões públicas, os encontros cotidianos, as irmandades religiosas, a convivência acadêmica e as atividades de entretenimento enquanto oportunidades de criação de elos e de convívio. A fim de desvendar as situações que fomentam a sociabilidade do grupo utilizamos narrativas diversas que nos fornecem indícios sobre o tema, cruzando tais informações com dados empíricos coletados em outros documentos.

OS ESPAçOS DE SOCIABILIDADE NO RIO GRANDE DE SãO PEDRO

Eis o fato. O desembargador Luís Correia Teixeira de Bragança, então ou-vidor da comarca de Santa Catarina, casou-se com Josefa Eulália de Azevedo, às 19 horas do primeiro dia do mês de fevereiro de 1807. Eis nossa interpretação. Sua união representou a aliança entre um magistrado régio representante do poder central e um ramo da primeira elite terratenente do Rio Grande de São Pedro cujas raízes se firmavam no século XVIII. Raciocínio semelhante pode ser estendido à união do magistrado José Maria de Sales Gameiro Mendonça Peçanha com Maria Pulquéria Menna Barreto ou à do juiz de fora Caetano Xavier Pereira de Brito com Francisca Godinho de Oliveira Valdez. Tratavam-se todos três de ministros régios que tomavam casamento com mulheres pertencentes às melhores famílias do extre-mo sul. Josefa Eulália era viúva do brigadeiro Rafael Pinto Bandeira, um dos homens mais ricos e poderosos do setecentos sul rio-grandense. Maria Pulquéria era filha de João de Deus Menna Barreto, militar que vivenciara as diversas campanhas do Prata e que desenvolveria intensa atividade política, fortemente alicerçada no largo alcance de sua parentela. Ao final de sua vida seria agraciado com os títulos de barão e mais tarde visconde de São Gabriel. Francisca, por sua vez, era filha do coronel Manuel

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Godinho Leitão de Alboim, de quem sabemos pouco. Dessa maneira, esses juízes e ouvidores enviados ao sul pela Coroa portuguesa se enraizavam junto à sua popula-ção por meio de matrimônios que os aproximavam de importantes figuras da região. Eles logo abandonariam a carreira de juristas preferindo realizar uma conversão de agentes do poder central para representantes de uma elite local. Essa busca por esta-belecer-se junto à sociedade sulista mostrou-se bastante bem sucedida, do ponto de vista político, uma vez que os três alcançaram postos políticos de destaque quando da reformulação das instituições de governo após a independência.³ Contudo, se o efeito social destas uniões mostra-se claro à nossa observação feita a posteriori, restam ainda dúvidas sobre o modo como se processa o encontro de tais personagens e so-bre a evolução de tais relacionamentos. A pergunta que objetivamente formulamos é como se conhecem tais pessoas e como se engendram tais matrimônios?

A 20 de junho de 1805 o então ouvidor da comarca de Santa Catarina, Luís Correia Teixeira de Bragança, encontrava-se instalado na vila de Porto Alegre, cum-prindo a ordem régia que lhe determinava assumir como vogal e juiz executor da Junta da Fazenda do Rio Grande de São Pedro e, para tanto, residir em sua capital.4 Em suas obrigações ele tratava diretamente com os membros da Câmara municipal, presidindo suas sessões, mas também como governador Paulo José da Silva Gama e com uma infinidade de oficiais menores. Contudo, sua vivência não se restringia aos aspectos burocráticos e ele também passou a relacionar-se com a comunidade porto-alegrense. Parece haver pouca dúvida de que foi nessa localidade que o bacha-rel travou contato com a viúva do brigadeiro Rafael Pinto Bandeira, a senhora Josefa Eulália, dada a moradia dela no termo da vila. No ano seguinte, em 19 de julho, o príncipe regente de Portugal passava decreto autorizando o ministro a casar-se com a dita.5 Quem primeiro se aproximou de quem é uma pergunta que não temos con-dições de responder. Não parece fora de propósito imaginar que o ouvidor tomasse conhecimento, a partir de sua chegada à vila, de quem era a viúva do brigadeiro, que herdara uma meação de cerca de 30 contos de réis e que segundo relatos da épo-ca possuía uma numerosa parentela.6 Por outro lado, não há motivos para duvidar

³ COMISSOLI, Adriano. “A Casa da família Pinto Bandeira: estratégias familiares de perpetuação de poder no Rio Grande de São Pedro (sécs. XVIII-XIX)”. In: Vi Fórum FAPA, 2007, Porto Alegre. Cadernos FAPA - Especial : VI Fórum FAPA 2007, 2007. www4.fapa.com.br/cadernosfapa/artigos/edicaoSPforum07/artigo12.pdf ; COMIS-SOLI, Adriano. “O juiz de fora que veio para ficar: um estudo sobre circulação e enraizamento de oficias da Justiça no império luso-brasileiro de Dom João e Dom Pedro”, In. Revista Territórios e Fronteiras. V. 1 N. 1, Programa de Pós-graduação - Mestrado em História, jan-jun 2008, pp. 244-262; COMISSOLI, Adriano. “O juiz de dentro: magistratura e ascensão social no extremo sul do Brasil, 1808-1831”, In. V Jornadas Regionais GT Mundos do Trabalho/Revista AEDOS, v. 2, nº 4, novembro 2009.4 AHU-SC. Carta do ouvidor geral da comarca de Santa Catarina ao príncipe regente, cx. 9, doc. 479.5 AHU-RS. Requerimento do ouvidor da comarca de Santa Catarina ao príncipe regente, cx. 11, doc. 660.6 APERS. Inventário de Rafael Pinto Bandeira, 1º Cartório de órfãos de Porto Alegre, maço 12, processo 188, ano 1796. MAGALHãES, Manoel Antônio de. “Almanack da Vila de Porto Alegre”, In: Revista do instituto Históri-co e Geográfico Brasileiro, vol. 30, 1867. P. 62.

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de que a senhora Josefa Eulália obtivesse informações sobre o magistrado, dado o tamanho reduzido de Porto Alegre e a novidade que a chegada do primeiro oficial de Justiça profissional da capitania se configurava. Com isso queremos afirmar que no plano dos interesses sociais havia motivos para ambos desejarem a aproximação.

Com os outros dois magistrados o percurso foi bastante semelhante. Caetano Xavier Pereira de Brito assumiu como juiz de fora no ano de 1820, exercendo-o até 1825, o que implica ter vivido como ministro da Justiça o processo de emancipação brasileiro. Entretanto, quaisquer que fossem as atribulações do período elas não o impediram de conhecer sua futura esposa e de tomar matrimônio durante seu man-dato como juiz. Para isso, ele solicitou e recebeu do príncipe Dom Pedro licença para efetivar suas bodas.7 Não difere do caso de Mendonça Peçanha que após atuar como juiz de fora em Porto Alegre foi designado a assumir a recém criada vara da vila de Rio Pardo em 1820. Se já conhecia Maria Pulquéria ou se veio a conhecê-la somente em Rio Pardo não temos como esclarecer, mas podemos afirmar que no ano de 1821 os dois casaram-se na “nas casas de residência e no oratório do Ilustríssimo Mare-chal João de Deus Menna Barreto” na mesma vila. Era este o segundo casamento de Maria, então viúva de um capitão do regimento de Dragões.8

É óbvio os magistrados do monarca não eram os únicos homens de fora da capitania que contraíam matrimônio com as mulheres da mesma. A população do Rio Grande de São Pedro encontrava-se em franca expansão graças, em grande me-dida ao fluxo migratório. Muitos dos oficiais de vereança eram oriundos de foram do Rio Grande de São Pedro. Ao menos 53% dos 64 oficiais da Câmara de Porto Alegre eram portugueses do reino e outros 31,2% provinham de outras capitanias Americanas, da Colônia do Sacramento ou dos Açores.9 A maioria desses cidadãos eram casados. Na listagem de elegíveis de 1814 de um total de 62 sujeitos listados, 47 eram casados e mais um era viúvo.10 Considerando que a maioria dos sujeitos migra-ra para o Rio Grande podemos concluir que seus casamentos também significaram enraizamento na sociedade sulista, sendo um signo de aceitação e de posicionamen-to dentro da mesma.

Antônio José da Silva Guimarães contratou seu casamento com Maurícia An-tônia de Oliveira, filha de Felisberto Pinto Bandeira. Antônio era natural do bispado de Braga em Portugal, mas Maurícia nascera na freguesia do Triunfo no extremo

7 AHCMPA. Auto de justificação matrimonial de Caetano Xavier Pereira de Brito e Francisca Godinho de Oliveira Valdez, 1822/62.8 AHCMPA. Livro 3º de casamentos da freguesia de Rio Pardo, fl. 163.9 COMISSOLI, Adriano. “A vila coroada: perfil social dos vereadores de Porto Alegre (1808-1828)”, In. Anais: pro-duzindo história a partir de fontes primárias. Vii mostra de pesquisa do Arquivo Público do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Companhia Rio-grandense de Artes Gráficas – CORAG, 2009. P. 149.10 ANRJ. Caderno de Informadores de 1814, Desembargo do Paço, cx. 187, PAC. 2, doc. 18.

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meridional americano. Enquanto Antônio era comerciante seu sogro era mais um representante da estirpe dos Pinto Bandeira e dedicava-se à criação de gado. Domin-gos de Almeida Lemos Peixoto também efetuou um bom casamento. Nascido na ci-dade do Porto, ao norte de Portugal, ele deixou sua terra natal muito novo e dirigiu-se ao Rio de Janeiro, passando depois a Porto Alegre, onde estabeleceu comércio. Na vila meridional ele terminou por casar-se com Luísa Joaquina da Silveira, natural de Viamão e filha de um capitão de Ordenanças e camarista, José Francisco da Silveira Casado, na altura do ano de 1790.11 Silveira Casado não era estranho ao comércio e criava gado em quantidade junto a seus sócios aproximados por parentesco. Era freqüente participante da Câmara porto-alegrense e junto a seu irmão e filhos domi-nava os postos da tropa de Ordenanças.12 Por fim, Almeida Peixoto também casaria uma de suas filhas com um negociante/camarista, o senhor Antônio Bernardes Ma-chado, homem de ativa participação política nos eventos da emancipação do Brasil.13

Roteiro semelhante foi percorrido por José Antônio da Silva Neves. Ele saiu da cidade do Porto para o Continente de São Pedro “de menor idade”, ou seja, jovem demais para haver se casado. No ano de 1795 se contratava para casar com Inocência, filha do capitão Antônio José Martins Bastos, que dividia seu tempo entre o comércio e a Câmara.14 Os depoimentos de sua justifacação matrimonial não nos permitem saber mais do que isso, mas descobrimos que Silva Neves estava inscrito na lista de comerciantes do Almanak de Porto Alegre em 1808, foi vereador em 1814 e ostentou o posto de capitão quando do ano de sua morte (1820).15 Seu sogro seguira o mesmo percurso: imigrante português que se tornou comerciante, casou com uma mulher nascida no sul do Brasil e alcançou cargo na Câmara.

Este ciclo de casamentos entre migrantes, especialmente os oriundos de Por-tugal, e os descendentes femininos de outros que se deslocaram ao Rio Grande aponta para um mecanismo de recrutamento social tanto do corpo mercantil quanto dos vereadores e demais oficiais da Câmara de Porto Alegre.16 De um ponto de vista funcionalista estas uniões parecem mesmo um tanto óbvias, visto que garantiam a

11 AHCMPA. Auto de justificação de matrimônio de Domingo de Almeida lemos Peixoto e Luís Joaquina da Silveira, 1790/18.12 COMISSOLI, Adriano. Os “homens bons” e a Câmara Municipal de Porto Alegre (1767-1808). Porto Ale-gre: Editora da UFRGS, 2008. 13 APERS. Inventário de Antônio Bernardes Machado, 1º Cartório de órfão de Porto Alegre, maço 33, processo 818, ano 1824. ANRJ. Caderno de Informadores de 1818, Desembargo do Paço, cx. 187, PAC. 2, doc. 18. PICCO-LO, Helga Iracema Landgraff. O processo de independência no Rio Grande do Sul, in. MOTA, Carlos Guilherme (org.). 1822 – Dimensões, São Paulo, Editora Perspectiva, 1972.14 AHCMPA. Auto de justificação de matrimônio de José Antônio da Silva Neves e Inocência Martins de Oliveira, 1795/55.15 MAGALHãES, Manoel Antônio de. “Almanack da Vila de Porto Alegre”, Op. Cit. P. 65. APERS. Inventário de José Antônio da Silva Neves, 1° Cartório de órfãos de Porto Alegre, processo 701, maço 28, ano 1820.16 COMISSOLI, Adriano. Os “homens bons” e a Câmara municipal de Porto Alegre (1767-1808). Op. Cit. COMISSOLI. Adriano. “A vila coroada”. Op. Cit.

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continuidade do grupo ligada à administração local ou fundiam, no caso dos ma-gistrados, duas legitimidades diferentes, otimizando o controle dos atores sobre os recursos da sociedade. Quando o desembargador Luís Correia Teixeira de Bragança desposou Josefa Eulália de Azevedo uniu-se o poder institucionalizado da Justiça régia com a riqueza material e a influência das relações pessoais dos grandes pro-prietários de terra do Rio Grande. Entretanto, tal interpretação apresenta o inconve-niente de descrever estes sujeitos como dotados de uma hiperracionalidade, como se estivessem sempre a calcular cuidadosamente seus passos e ações. Se por um lado é necessário considerar capacidade dos sujeitos de criar estratégias e aplicá-las, por ou-tro devemos igualmente respeitar as incertezas e especialmente o papel que o acaso desempenhava em suas vidas. É necessário ter em mente que estes casamentos, por mais que pudessem ser planejados tendo em vista interesses objetivos, resultavam igualmente de encontros fortuitos e da convivência entre os atores sociais localiza-dos na vila. Explicar de modo menos mecanicista o encontro entre estes sujeitos, o estabelecimento dos primeiros laços e a evolução dos relacionamentos é nossa proposta para o presente artigo. A resposta que propomos encontra-se nos espaços de sociabilidade, que, embora não descrevam nenhum dos casos específicos aqui trabalhados, estavam disponíveis aos integrantes desta sociedade na época.

Oportunidades para conhecer pessoas e para conviver com as mesmas não faltavam na Porto Alegre do século XIX. Elas estavam dispersas no cotidiano e tal-vez por se tratarem de algo tão corriqueiro tenham escapado ao registro documental mais sistemático, fato que se agrava pela inexistência de imprensa antes de 1827.17 Existem, contudo, indícios e rastros que nos permitem inferir as oportunidades de sociação dos sujeitos, em especial em momentos lúdicos. A teoria da forma lúdica de sociação como evento de convivência sociável que supera o imediatismo dos interes-ses dos sujeitos participantes é expressa por Georg Simmel. Para o sociólogo alemão a reunião de homens em torno de grupos de convivência – sociedades econômicas, comunidades de culto, irmandades de sangue – traduz não somente necessidades e interesses específicas, mas é fruto igualmente de um impulso de estar justamente so-cializado. Dessa forma, um ajuntamento de amigos carrega não somente o interesse de fortalecer ligações sociais, mas igualmente a satisfação de compartilhar a presença dos mesmos.18 Essa teoria implica reduzir por alguns instantes em nossa análise a criação de estratégias conscientes por parte dos indivíduos, mas abre espaço, en-tretanto, para os encontros casuais e para os contatos inesperados. Portanto, ela

17 PICCOLO, Helga Iracema Landgraff. “O processo de independência numa região fronteiriça: o Rio Grande de São Pedro entre duas formações históricas”, In. JANCSó, Istvan. independência: história e historiografia. São Paulo: Ed. Hucitec/FAPESP, 2005. P. 585, nota 25.18 SIMMEL, Georg. Questões fundamentais de sociologia: indivíduo e sociedade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2006. Em especial o capítulo 3.

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recupera ao mesmo tempo o acaso e a incoerência das ações sociais, pois ainda que os atores sejam capazes de se posicionar estrategicamente no tabuleiro social eles não precisam estar jogando o tempo todo. Conquanto a matriz sociológica de Max Weber seja distinta da de Simmel é pertinente lembrar que o primeiro não considera que toda ação perpetrada pelos sujeitos possa ser considerada ação social.19 Neste mesmo sentido, Fredrik Barth também não descreve que toda ação de indivíduos possa ser descrita como transação.20 O que estamos propondo na leitura efetivada sobre a sociabilidade é pensá-la junto ao fortalecimento de laços e interesses sociais, mas governada igualmente pelo sentimento de satisfação de compartilhar a presen-ça de outros sujeitos, notadamente também pertencentes ao círculo da elite sócio-econômica e política do Rio Grande de São Pedro.

No Brasil do início do século XIX os espaços de interação entre as pessoas se multiplicavam, aumentando as possibilidades de sociabilizar. Os espaços públicos têm sido analisados majoritariamente como locais de discussão da política em gran-de medida orientada pela ampliação da esfera pública, fenômeno de destaque para a época.21 “E a rua transformou-se em espaço de manifestações políticas”.22 Contudo, ainda que estes espaços se convertessem em locais de manifestações políticas eles eram antes de tudo locais de convivência cotidiana e esse caráter, portanto, misto não pode se perder de vista. A Ra era antes de tudo o local do movimento do dia a dia, dos encontros na planejados e das conversas corriqueiras. As tavernas, as boti-cas, as livrarias e demais lojas comerciais são descritas por vezes como propiciadoras do debate público da política, pois que serviam como pontos de encontro, mas po-demos igualmente interpretá-los como oportunidades de sociação. Nesse sentido, o tema da conversa – mesmo sendo de conteúdo político – servia tão somente de “su-porte indispensável do estímulo desenvolvido pelo intercâmbio vivo do discurso”.23

Em outras palavras, ainda que conversar sobre política servisse para transmitir idéias e informações por vezes se resumia a compartilhar a companhia dos semelhantes; o tema agregava os sujeitos em torno de um ponto comum sem, contudo, mobilizá-los a discutir objetivamente. Avaliar se a conversa assumia um viés subjetivo servindo somente de palco para a sociabilidade ou se tornava-se objetiva impedindo a mesma é algo impossível ao historiador que se dedica ao oitocentos, visto não ser possível

19 WEBER, Max. Economia e Sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. Brasília: Editora Univer-sidade de Brasília, 1994.20 BARTH, Fredrik. Process and form in social life. Selected essays of Fredrik Barth: volume i. London: Routledge & Kegan Paul, 1981.21 SLEMIAN, Andréa. Vida política em tempo de crise: Rio de Janeiro (1808-1824). São Paulo: Hucitec, 2006.22 PICCOLO, Helga Iracema Landgraff. “O processo de independência numa região fronteiriça...”, Op. Cit. 585-586.23 SIMMEL, Georg. Op. Cit. P. 75.

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resgatar os debates efetuados no cotidiano. Contudo, serve de aviso que nem toda a conversação assumia caráter objetivo qualquer que fosse o assunto em pauta poden-do operar tão somente como interação sociável desprovida de outros interesse.

Tendo clara essa possibilidade podemos pensar que os moradores de Porto Alegre tinham disponível diante de si tanto a expressão de opiniões políticas quanto a interação sociável por puro prazer. Segundo o naturalista francês Auguste de Saint-Hilaire, os habitantes da dita vila tinham o hábito de “frequentemente palestrar nas lojas, mas não há nenhum local de reunião”, ou seja, era nestes espaços de convívio diário que se operavam os contatos e as sociabilidades.24 As tavernas eram locais de encontro tão comuns que em dado momento tiveram de ser vigiados. Em ordem ao Coronel Francisco Antônio de Borba, a Junta de Governo Provisório da capitania determinava em 1822

Averiguará o objecto da reunião dos Cidadãos no cazo de se ajunta-rem em lugar e numero que cauze suspeita dando conta a este Gover-no no cazo que o objecto de taes ajuntamentos não seja de natureza da tranqüilidade publica e o bem do estado exija que immediatamente desbaratados pela força, e prezos os que a elles tenhão concorrido. (...) Não tolere que as Tavernas, ou quaesquer outras Cazas aonde se ven-der vinho, genebra ou água-ardente estejão abertas de noite, depois do toque da Caixa; (...) E aos donos das mencionadas Cazas, ou Tavernas que consentirem nelas ajuntamentos de homens brancos, ou faltarem ao que fica ordenado a respeito d’aqueles os fará prender e deter na prizão por tempo razoável.25

A ordem indica, ao contrário do que observou o viajante francês, os estabe-lecimentos comerciais como locais de reunião. Os ajuntamentos dos cidadãos em nenhum momento foram proibidos, pois não eram em si algo ameaçador ou ir-regular, importava saber se o objetivo das mesmas era tão somente socializar ou intentar alguma mobilização política. O que se procurou com a determinação não foi destruir os espaços cotidianos em sua função sociável, mas policiar o teor das dis-cussões neles travadas a fim de impedir a formação de facções políticas consideradas subversivas e ainda mais perigosas dada a instabilidade do início da década de 1820. As manifestações políticas do ano de 1821 haviam deixado as autoridades em alerta, bem como a possibilidade de mobilização de tropas militares contrárias à efetivação da emancipação brasileira.26

24 SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem ao Rio Grande do Sul. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2002. P. 59.25 Revista do Archivo Publico do Rio Grande do Sul, n. 7, set. 1922, p. 194.26 PICCOLO, Helga Iracema Landgraff. Op. Cit.

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Os homens do século XIX tinham oportunidade de conviver socialmente não somente nas lojas e nas tavernas. As irmandades religiosas eram igualmente ins-trumentos aglutinadores. Elas desempenhavam um papel aristocratizante para seus membros, distinguindo hierarquias sociais de acordo com o pertencimento a uma ou outra confraria. Dessa forma, eram simultaneamente indicadoras e mantenedoras da hierarquia social. Contudo, também conferiam um sentido de corpo aos irmãos que os interligava e dava-lhes um sentimento de pertença a algo mais amplo.27 Des-sa maneira, se a entrada em uma determinada irmandade religiosa revela algo da categoria social do indivíduo admitido, a vontade de partilhar sua devoção religiosa por um santo específico junto a outros crentes pode ser avaliada como igualmente importante. A reunião em torno das irmandades, assim como junto à Misericórdia local, expressava a convergência de grupos sociais tanto quanto de particularidades devocionais, elementos que aproximavam os sujeitos e possibilitavam a convivência sociável que por sua vez permitia o surgimento de laços mais duradouros entre os mesmos. As reuniões das irmandades, as procissões e o acompanhamento dos fu-nerais dos irmãos promovia o contato dos membros em situações que não incidiam necessariamente sobre a política da época.

É bem verdade que a política e a religião caminhavam em proximidade no pe-ríodo de modo que as celebrações religiosas respaldavam as legitimidades políticas. Dessa forma, a luta pelas hierarquias geravam conflitos relacionados a preeminência dos poderes estabelecidos. O panorama era especialmente sensível nos anos 1820 após a saída do governador Conde da Figueira e a instalação de governos provisó-rios dos quais participavam militares e civis de expressão local e regional. No ano de 1822 a Junta de Governo Provisório advertia ao juiz de fora e aos vereadores que atendendo ao costume vigente de sentarem-se os governadores e seus ajudantes de ordens sob o arco do cruzeiro da igreja matriz e Porto Alegre quando das festivida-des oficiais decorridas no templo que o mesmo deveria se praticar. Dessa maneira “há por bem a mesma Exma. Junta prevenir aos Senhores Dr. Juiz de Fora Presiden-te e oficiais da Câmara desta Capital que nas Festividades a que o Governo assistir na Matriz terá imediatos a si, e logo abaixo do Arco Cruzeiro os seus Ajudantes de Ordens, e oficiais do Estado Maior”.28 A decisão desabonava os vereadores que se consideravam detentores da distinção de sentarem-se no mesmo local, considerado de maior prestígio.

Outro propiciador de sociação operava fora do nível local e envolvia apenas o grupo mais restrito de sujeitos que estudaram na Universidade de Coimbra. A vida

27 KÜHN, Fábio. Gente da Fronteira: família, sociedade e poder no sul da América Portuguesa – século XViii. Niterói: Tese de Doutorado, PPG em História da Universidade Federal Fluminense, 2006.28 AHRS. Carta da Junta de Governo Provisório para a Câmara de Porto Alegre, códice A 1-11, fl. 329v-330.

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universitária que se desenvolvia para os jovens estudantes abarcava não somente a formação intelectual muito acima da média da população, mas igualmente a sociali-zação com indivíduos de fora do círculo familiar e da comunidade local. “Em Coim-bra, a formação em Direito era um processo de socialização destinado a criar um senso de lealdade e obediência ao rei”.29 Para além do serviço ao rei a vida acadêmica forjava elos entre os estudantes que por anos conviviam mais entre si do que com suas famílias ou parentes. Em Coimbra o uso do uniforme universitário distinguia os estudantes dos demais habitantes da cidade, sendo os primeiros famosos por suas bebedeiras e confusões, elementos que geravam atrito com os moradores. Essas experiências comuns, muitas delas não acadêmicas, delimitavam o grupo dos estu-dantes e futuros bacharéis como algo autônomo da sociedade, mas compartilhando vivências entre si.30 Afastados de suas famílias e das solidariedades mais imediatas os universitários desenvolviam sob forma de amizade e coleguismo – ao mesmo tempo que por rixas e concorrência – formas de sociabilidade que não necessariamente dependiam de estratégias de obtenção de prestígio ou de interesses práticos, mas muitas vezes do afeto e do reconhecimento entre iguais. Ou seja, formas autônomas de sociabilidade definidas pela “satisfação de estar justamente sociabilizado”.31

Esse tipo de socialização e de elos formados ao tempo da universidade já haviam sido mapeados para período anteriores e posteriores às três primeiras déca-das do século XIX.32 Em todos os casos, entretanto, ficava aberta a possibilidade de outras alianças a serem formadas, por vezes de caráter pessoal. Não seria este o caso dos juízes que se casaram com mulheres do extremo sul? “Mais ainda, os magistra-dos podiam também servir de mediadores entre grupos ou outras fontes de poder conflitantes entre si estabelecendo, dessa forma, uma série de alianças temporárias”.33

Nossa leitura busca justamente interpretar que tais casamentos incorporavam uma política de mediação a qual era estimulada pela Coroa na medida em que autorizava os matrimônios de seus ministros. Considerando que Teixeira Bragança serviu em Porto Alegre como juiz de fora estando previamente casado com uma moradora da vila, bem como Caetano Xavier que seguiu no mesmo cargo após desposar Fran-cisca Godinho, podemos facilmente questionar quão desligada de contendas locais sua atuação se tornara. Mendonça Peçanha, por exemplo, após seu matrimônio veio

29 SCHWARTZ, Stuart. Burocracia e sociedade no Brasil colonial. São Paulo: Editora Perspectiva, 1979. P. 60.30 Idem, ibidem. KIRKENDALL, Andrew J. Mates. Male student culture and the making of a political class in nineteenth-century Brazil. Lincoln London: University of Nebraska Press, 2002.31 SIMMEL, Georg. Op. Cit. P. 64.32 CARVALHO, José Murilo. A Construção da Ordem: a elite política imperial & Teatro de Sombras: a po-lítica imperial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. SCWARTZ, Stuart. Op. Cit. VARGAS, Jonas Moreira. Entre a paróquia e a corte: uma análise da elite política do Rio Grande do Sul (1868-1889). Porto Alegre: Dissertação de Mestrado, PPGH-UFRGS, 2007.33 SCWARTZ, Stuart. Op. Cit. P. 63.

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a assumir a ouvidoria da comarca, a mais alta posição judiciária do Rio Grande de São Pedro, na mesma época que se sogro, o marechal João de Deus Menna Barre-to, exercia a presidência da Junta de Governo Provisório. Ambos seriam, inclusive, acusados de valer-se da onipresença familiar no aparato de governo e da Justiça para perseguir desafetos político.34

Pois a vivência de Mendonça Peçanha em Coimbra havia lhe garantido ao menos uma experiência singular e particularmente radical. Estudando em Coimbra à época da invasão francesa ele integrou o Corpo Acadêmico e a 7ª Brigada de Or-denanças que atuaram no combate ao inimigo. O tenente-coronel que estava encar-regado do comando do Corpo Acadêmico era então José Bonifácio de Andrada e Silva, que lhe elogiou a atuação militar.35 Anos mais tardes ambos estariam envolvi-dos na defesa das idéias de autonomia do reino do Brasil frente ao de Portugal, ainda que a atuação de Peçanha passasse muito menos percebida que a de José Bonifácio. Essa aventura militar não apenas colocou-o em proximidade ao futuro “patriarca da independência” como pode ainda ter angariado a simpatia de seu futuro sogro, homem calejado nos combates platinos.

Ao considerarmos tais sociabilidades, afastando-as da busca imediata pela ampliação de redes e de alcance a recursos sociais, podemos conceber como os laços entre sujeitos se davam muitas vezes de forma casual e não premeditada. Ao mesmo tempo, se consideramos a vida cotidiana com seus encontros e desencontros, mesmo que dotada de regras de convívio e rituais, deixamos de entender os sujeitos somente como oficiais da administração ou potentados locais para dotá-los de maior humani-dade. Eles estavam envolvidos não somente com a administração pública ou mesmo com a gerência de suas riquezas, mas estavam constantemente sendo requisitados pelos diferentes relacionamentos que haviam construído. Por vezes os mesmos se fundiam em suas demandas. Retornando aos exemplos práticos que selecionamos, os juízes e ouvidores não restringiam suas vidas aos seus ofícios, conquanto social-mente fossem avaliados também pelos cargos que desempenhavam. Devemos aqui recordar a noção de Fredrik Barth de que os atores sociais são compostos de status múltiplos e que os mesmos são ativados ou solicitados conforme as transações con-cretas vão se sucedendo. Esta avaliação requer grande sensibilidade a fim de evitar uma leitura funcionalista. Para tanto, vale lembrar a idéia de que os sujeitos buscam soluções para seus dilemas primeiro dentro do seu círculo de relações.

For great number of our purposes we do not use random methods, or classified directories, to locate suitable alters; on the contrary, we turn

34 Anais do Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul. Vol. 8. Porto Alegre, AHRS, 1984. P. 159-166.35 BNRJ. José Maria de Sales Gameiro Mendonça Peçanha, Setor de Manuscritos, Coleção de Documentos Biográ-ficos, C 667,7.

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precisely to those persons about whom we already have information incidentally obtained in other connections, i.e., that we ‘know’, to pro-vide us with a range of potential candidates.36

Portanto, a seleção de candidatos aos intentos dos sujeitos passa, antes de mais nada, pelas relações pré-estabelecidas e estas, por sua vez, dependem da pro-gressão de relacionamentos simples a outros mais complexos. Significa que os espa-ços de sociabilidade da época tinham o importante papel de contatar sujeitos pela primeira vez ou de multiplicar os status envolvidos entre os mesmos. Assim sendo, muitos dos relacionamentos que permitiam a construção de articuladas redes sociais que viriam a determinar posicionamentos políticos e favorecimentos surgiam como resultado da interação cotidiana, muitas vezes despida da intenção de ampliar tais laços, mas que permitia o florescer de novos elos.

Um espaço de interação social, em particular, mostrava-se propício ao esta-belecimento de novas relações por meio da sociação desligada de outros interesses e em particular ao desenvolvimento dos importantes matrimônios que explicitamos acima, os bailes e jantares sociais. O século XIX conheceu um aumento neste tipo de atividade, calcado em grande medida à chegada da família real ao Rio de Janeiro e ao início das galas na Corte. Os anos de 1810 e 1820 assistiram na nova Corte a propagação dos bailes particulares, jantares sociais e chás que reuniam as famílias mais ricas, os comerciantes e os membros do corpo político. Não somente junto ao aparato da realeza, mas igualmente em diversas casas de particulares os recepções sociais se multiplicavam.

Notadamente na década de 1820, crescia também entre essa gente o hábito de festas privadas, fossem jantares, bailes ou chás, em que se encontravam as famílias mais abastadas, negociantes ricos e muitos dos integrantes da sociedade política da época. Estavam aí os indícios do surgimento de sociabilidade de tipo cortesã.37

Conquanto não possam ser descritos como acontecimentos cotidianos eles não deixavam de inserir-se na normalidade da sociedade e neles, por vezes, atavam-se novos nós das redes de relacionamentos ou apertavam-se os pré-existentes. Ainda assim é necessária cautela na comparação destes eventos como condizentes com uma sociedade de corte ou definindo um “processo civilizador” tal como o descreve Norbert Elias, pois no Brasil esse fenômeno não seria endógeno, mas resultante da sobreposição de valores europeus aos hábitos propriamente americanos.38

36 BARTH, Fredrik. “Scale and Network in Urban Western Society”. In. BARTH, Fredrik (ed.). Scale and Social Organization. Oslo: Universitetforlaget, 1978. P. 168.37 SLEMIAN, Andréa. Vida política em tempo de crise. Op. Cit. P. 61. 38 SLEMIAN, Andréa. Op. Cit. ELIAS, Norbert. O processo civilizador. Volume 1. Uma história dos costumes. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1993. ELIAS, Norbert. A Sociedade de Corte: investigação sobre a sociologia da realeza e da aristocracia de corte. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001. MALERBA, Jurandir. A corte no exílio: civilização e poder no Brasil às vésperas da independência (1808-1821). São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

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Maria Fernanda Martins percebeu o papel de tais momentos lúdicos para a sociabilidade dos sujeitos e seus efeitos sobre a política do II império brasileiro. “A convivência nos salões da moda, nos grandes eventos sociais, nas reuniões de família e até mesmo nos bancos escolares e universitários aproximava o grupo”.39 A autora sugere mesmo que tais ocasiões influenciavam tomadas de decisões referentes à po-lítica nacional, uma vez que oportunizava-se a participação de indivíduos não ligados diretamente à esfera política. “Em tais ocasiões a vida social misturava-se à política, permitindo o acesso às mais destacadas personalidades da Corte”.40 Entre danças e contradanças a proximidade afetiva e social permitia sugerir indicações de cargos e posicionamentos partidários. Contudo, para além da possibilidade de definir parte da vida pública por meio da vida privada esses eventos possibilitavam aos indivíduos interagir uns com os outros pelo simples prazer da convivência e da companhia de seus correspondentes sociais. Em outras palavras muito do que interpretamos como políticas de ascensão social e manutenção de prestígio ocorria em contatos triviais e por vezes não premeditados.41

Em Porto Alegre, ainda que carecesse do esplendor da Corte, a vida social possuía certo dinamismo. Não lhe faltavam nem as festas públicas nem as privadas. O viajante francês Auguste de Saint-Hilaire após um mês na vila escreveu em seu diário que

Aqui não há tanta vida social como nas cidades européias; porém há muito mais do que nas outras cidades do Brasil.São freqüentes as reuniões nas residências para saraus, e algumas se-nhoras tocam, com maestria, o violão e o piano, instrumento este des-conhecido no interior, por causa das dificuldades de seu transporte.42

Os pianos estavam entre os bens arrolados em alguns dos inventários de nos-sos investigados, assim como os aparelhos de chá.43 A posse desse instrumento de-monstra que se investia no refinamento da educação das mulheres, mas indica que esses proprietários estavam entre os anfitriões de alguns dos saraus acima descritos, ainda que não nos sejam dados nomes. Domingos José de Araújo Bastos (vereador em 1810 e membro do Conselho Geral da Província entre 1830 e 1833) possuía não um, mas dois pianos arrolados em suas posses, sendo um deles pertencente a uma

39 MARTINS, Maria Fernanda Vieira. A velha arte de governar: um estudo sobre política e elites a partir do Conselho de Estado (1842-1889). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2007. P. 168.40 “Em tais ocasiões a vida social misturava-se à política, permitindo o acesso às mais destacadas personalidades da Corte”. Idem, ibidem.41 Os bailes e jantares sociais podem em boa medida ser descritos enquanto atos e eventos. Significa que são simul-taneamente acontecimentos que passíveis de descrição objetiva e interpretáveis à luz dos valores sociais. BARTH, Fredrik. “Por um maior naturalismo na concepção das sociedades”. In. O guru, o iniciador e outras variações antropológicas. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2000. P. 173.42 SAINT-HILAIRE, Auguste de. Op. Cit. P. 72.43 COMISSOLI, Adriano. “Serão os números a certeza da História?”. Op. Cit.

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de suas filhas, que muito provavelmente recebera aulas.44 Francisco de Sá e Brito (vereador em 1811 e 1816) também possuía dois pianos, um descrito como usado e outro como “antigo escangalhado”, o que talvez implique em adquirir um produto de segunda mão.45 O de João Coelho Neves (procurador da Câmara em 1806, 1810, 1813 e 1828) estava ainda “em bom uso” quando de sua morte.46 Manuel Gomes Coelho do Vale, Manuel José de Freitas Travassos, Manuel José Pires da Silveira Ca-sado eram outros proprietários deste tipo de instrumento, inexistente em inventários do século XVIII no Rio Grande de São Pedro.47 A popularização dos pianos indica novos níveis de riqueza, mas igualmente demonstra a busca por entretenimento e a promoção de reuniões sociais. A menção a conjuntos de porcelana para o chá apon-ta tanto uma preocupação em seguir a tendência da propagação dessa cerimônia quanto em promover a reunião íntima dos círculos de convivência. Nesse sentido, os eventos sociais estavam ainda muito ligados ao universo da sociedade de Corte, pois que se reduziam ao âmbito privado das casas abastadas.

Saint-Hilaire nos descreve algumas das reuniões a que teve oportunidade de comparecer. Um baile ocorrido em Porto Alegre, outros dois em Rio Grande e um jantar em homenagem ao governador da capitania, também na última vila. Ao de Por-to Alegre ele não hesitou em atender o convite por saber tratar-se “de que essa casa era uma das mais prestigiosas” da vila. O anfitrião do evento foi certo Sr. Patrício, ao qual não foi possível identificar, mas que poderia muito bem tratar-se de Patrício José Correia da Câmara, alto oficial militar e futuro Visconde de Pelotas. Segundo o viajante tratava-se de “uma reunião de trinta a quarenta pessoas, entre homens e mulheres. Em se tratando de parentes e amigos íntimos não havia luxo nos trajes”. O que significa que o pequeno baile se deu entre pessoas já com prévio conhecimento uns dos outros em sua maioria, com exceção do narrador da festa que se encontrava na vila não havia muito e que se surpreendeu com os hábitos da sociedade local.48

As senhoras conversavam sem constrangimento com os homens; es-tes as cercavam de gentilezas, mas não demonstravam desvelo ou de-sejo de agradar, qualidade, aliás, quase exclusiva dos franceses. Desde que estou no Brasil ainda não tinha visto uma reunião semelhante. No interior, como já o afirmei centenas de vezes, as mulheres se escon-dem; não passam de primeiras escravas da casa.49

44 APERS. Inventário de Domingos José de Araújo Bastos, 1º Cartório do Cível e Crime de Porto Alegre, maço10, processo 175, ano 1844.45 APERS. Inventário de Francisco de Sá e Brito, 1º Cartório de órfãos de Porto Alegre, maço 63, processo 1285, ano 1839.46 APERS. Inventário de João Coelho Neves, 1º Cartório de órfãos de Porto Alegre, maço 42, processo 995, ano 1829.47 APERS. Inventário de Manuel Gomes Coelho do Vale, 2º Cartório de órfãos de Porto Alegre, maço 6, processo 79, ano 1853. Inventário de Manuel José de Freitas Travassos, 2º Cartório de órfãos de Porto Alegre, maço 86, pro-cesso 1809A, ano 1877. Inventário de Manuel José Pires da Silveira Casado, 1º Cartório de órfãos de Porto Alegre, maço 53, processo 1142, ano 1833.48 SAINT-HILAIRE, Auguste de. Op. Cit. P. 64.49 Idem, ibidem.

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A reunião não se deteve somente em conversações, pois houve danças e “al-gumas senhoras tocaram piano, outras cantaram com muita propriedade, acompa-nhadas ao violão, e o sarau terminou em jogos de salão”.50 Portanto, o que o fran-cês nos descreve é um ambiente de divertimento e descontração, dentro do qual a sociação desinteressada se mostra bastante propícia. Logicamente que a mesma obedecia a certos códigos e condutas, visto que o fenômeno da sociabilidade tende a polir as atitudes dos envolvidos, evitando excessos. Para Simmel, a conversa, o jogo e mesmo a sedução são formas de sociabilidade com fim em si mesmas, isto é, não precisam necessariamente se ligar à busca de interesses específicos. Contudo, quanto mais íntimo o grau de sociabilidade mais os sujeitos estão envolvidos como indiví-duos e tendem a regular características subjetivas da personalidade para permitir a interação sociável, isto é, o compartilhamento mútuo de conteúdos.51 Jurandir Ma-lerba faz ressalva, entretanto, quanto à obediência dos habitantes do Rio de Janeiro à etiqueta, quer à mesa, quer em outras ocasiões, destacando um desprezo comum à mesma. Ainda assim demonstra a preocupação com a regulação dos modos. Como o autor adverte não é possível afirmar se os utensílios descritos nos inventários eram utilizados no uso diário, mas eles se tornavam cada vez mais freqüentes em meio aos bens da camada mais abastada da população.52 Em Porto Alegre a interação social era elogiada, pelo naturalista francês, como superior à maior parte do Brasil, onde os hábitos lhe pareceram mais rudes e tacanhos. Na vila meridional, surpreendeu-lhe que as senhoras conversassem diretamente com os homens, um elemento a ser considerado com atenção dentro do quadro de possibilidades de sociação da época.

A esse baile numa das casas mais prestigiosas de Porto Alegre certamente foram convidadas as figuras mais destacadas da comunidade. Poderíamos aventar a hipótese de se fazer presente o governador-geral, os oficiais militares de altas pa-tentes ou os “homens bons” da Câmara local. Saint-Hilaire fora convidado por um negociante francês o que demonstra que os estrangeiros e a classe profissional dos mercadores não se via excluída. Ele anuncia que um dos bailes na vila de Rio Gran-de foi promovido justamente por um rico comerciante ali estabelecido. Alguns dos proprietários de pianos que encontramos representam justamente a classe dos ne-gociantes e os integrantes habituais da Câmara, o que aponta a convergência entre nossos investigados e os freqüentadores dos eventos que analisamos. Ainda con-siderando a posse dos instrumentos musicais é sensato supor nossos investigados também promoviam suas confraternizações, visto serem “freqüentes as reuniões nas residências para saraus”. É factível, por fim, supor uma competição entre os anfitri-

50 Idem , ibidem. 51 SIMMEL, Georg. Op Cit. P. 65-67. Sobre etiqueta ver. ELIAS, Nobert. A sociedade de corte. Op. Cit. Cap. V.52 MALERBA, Jurandir. Op. Cit.

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ões no intuito de impressionar os convidados e destacar-se frente à nata da socieda-de local. Neste sentido a mobília, a decoração, a comida, o serviço e a competência das mulheres a mostrar suas habilidades de entretenimento serviam de medida ao sucesso da festa. Se, como afirmou Malerba, não é possível averiguar o uso cotidiano das louças e prataria localizada nos inventários é mais do que razoável que a mesma fosse utilizada nos eventos sociais a fim de receber adequadamente os convidados e causar boa impressão frente aos pares de elite.

O tenente-general Manuel Marques de Souza, que logo chefiaria uma série de motins em 1821, demonstrou possuir o necessário para se fazer admirar por sua generosidade e bom gosto ao promover um jantar de recepção ao governador geral, o Conde da Figueira, quando da passagem deste por Rio Grande, antes de deixar a capitania.53 Segundo um de seus detratores Marques de Souza era não somente um mestre da guerra, mas um hábil cortesão, pois “impõem para a Corte de homem de bem por suas expressões estudadas e astuciosas”.54 Ele talvez não praticasse essas expressões estudadas somente para bajular as autoridades que lhe eram superiores, mas igualmente para fazer jus ao legado de seus antepassados “os quais os pais e avós foram pessoas nobres das famílias de Souzas e Marques, que neste Reino foram Fidalgos de Linhagem, Cota de Armas e de Valor conhecido como tais se trata-ram com cavalos, criados, e toda a mais ostentação própria da Nobreza”.55 Neste caso, suas ações seriam não somente dissimulação de suas atitudes ilegais – como o contrabando – como demonstração de qualidade social. E assim recebeu em ao governador, a Saint-Hilaire e demais convivas “num lindo salão”, no qual ofereceu uma grande diversidade de pratos entre ensopados, carnes e massas, aos quais suce-deram “uma sobremesa magnífica, composta de uma variedade de bombons e do-ces”, finalizando com café e licores. O ambiente era bastante festivo e descontraído e bebeu-se em grande quantidade. “A reunião prolongou-se até alta madrugada e a maioria dos convivas estava de pileque quando se retirou”. Ao dia seguinte estavam todos “tristes e fatigados”, claramente devido aos excessos da noite anterior. Este é um caso muito bem descrito do que afirmamos sobre impressionar os pares da so-ciedade sulista. Ao oferecer um “esplêndido jantar” em homenagem ao governador Manuel Marques de Souza de destacava enquanto anfitrião competente demonstran-do igualmente sua generosidade e liberalidade ao acolher seus iguais e garantir-lhes

53 COMISSOLI, Adriano. “Pescadores que explicam estancieiros ou mais uma sobre história e antropologia”, Métis: história & cultura. Revista de História da Universidade de Caxias do Sul, v.7, n. 14, jul/dez 2009, Caxias do Sul, RS: EDUCS, 2009. No prelo.54 BNRJ. Coleção Augusto de Lima Júnior, II – 35, 34,12.55 APERS. Registro de uma Carta Régia de Padrão de Armas Nobreza e Fidalguia ao Coronel da Legião da Cavalaria deste Continente hoje Brigadeiro Manuel Marques de Souza, 5 de maio de 1800, Fundo Câmara, Registros Diversos, Câmara de Porto Alegre livro 1 Fl. 19v.-21.

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somente o melhor. Esta breve passagem demonstra que o fazer-se elite no sul do Brasil no oitocentos passava não somente pelo controle dos homens e pela riqueza material, mas igualmente pelo oferecimento de cortesia e pela demonstração de bons modos frente à classe dominante. Se Marques de Souza, um militar experiente e ambicioso, era capaz de demonstrar seu atrelamento à etiqueta e promover uma tão bem sucedida recepção então os tempos de uma sociedade rústica e agreste faziam definitivamente parte do passado.

Uma semana mais tarde um baile foi promovido pelo sargento-mor Mateus da Cunha Teles com novos divertimentos, danças e a participação de uma orquestra. Embora elogiasse os trajes dos participantes Saint-Hilaire achou o baile um tanto aborrecido. Digno de nota se mostrou seu comentário crítico de que uma “jovem dançou solo, mas, embora reconhecendo sua graciosidade, não pude deixar de la-mentar que uma mãe honesta expusesse sua filha aos olhares de todos”.56 Contudo, considerando a qualidade dos convidados, que envolviam o governador, seus ofi-ciais e os vários comerciantes de Rio Grande, a apresentação da jovem pode ganhar novos contextos, destacadamente a exibição de qualidades visando o matrimônio. Jonas Vargas apresentou, embora não sistematicamente, a importância dos bailes como momentos de sociabilidade das elites tanto da Corte fluminense como sul rio-grandense. A função dos bailes no mercado matrimonial da segunda metade do século XIX foi um dos elementos sugeridos em sua leitura. Seria as festas uma oportunidade de conhecer as moças das mais abastadas famílias da sociedade do Rio de Janeiro, elemento importante tanto na construção de laços sociais quanto na obtenção de progressão profissional e de posses materiais.57 O que a descrição de Saint-Hilaire nos oferece é a possibilidade de pensar estas práticas como difundidas já no início do século XIX.

Extrapolando o raciocínio que estamos desenvolvendo podemos imaginar que este tipo de festividade pode ter servido de palco para que o magistrado Luís Correia Teixeira de Bragançaviesse a ser apresentado à “brigadeira” Josefa Eulália de Azevedo. Não parece fora de propósito supor que quando de sua chegada a Porto Alegre, ainda como ouvidor, ele fosse recebido com algum baile ou jantar de boas-vindas. Considerando que a seleção dos convidados passava por critérios de afinidade (“parentes e amigos”), mas igualmente de projeção social (“uma das casas mais prestigiosas”) não seria despropositado supor que a viúva do lendário Briga-deiro Rafael Pinto Bandeira viesse a estar presente no mesmo convescote ao qual comparecesse o seu futuro segundo marido. Neste tipo de evento poderiam ser apre-

56 SAINT-HILAIRE, Auguste de. Op. Cit. P. 86 e 92-93.57 VARGAS, Jonas. Op. Cit. P. 46.

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sentados por intermédio de conhecido mútuo ou ter iniciado qualquer conversação por livre iniciativa, se confiarmos na descrição de Saint-Hilaire de que mulheres e homens conversavam sem qualquer embaraço em tais episódios.

Não há dados empíricos para comprovar o encontro entre os dois persona-gens, mas podemos considerar alguns fatores desta sociedade. O primeiro refere-se ao potencial sociável dos eventos lúdicos, pois os mesmos serviam para introduzir novos membros à sociedade ao mesmo tempo em que reforçavam os laços entre os já socializados. A interação entre homens e mulheres conhecia aqui um momento especial, pois afastados da governança pública e gozando da companhia (suposta-mente) agradável de seus pares eles podiam entreter-se a conversar com as senho-ras, admirar as mesmas a tocar instrumentos musicais ou divertir-se dançando. É bastante crível que o primeiro contato dos magistrados que mais tarde se casaram com filhas de potentados locais sul rio-grandenses se efetuasse em tais ambientes de bailes, saraus ou jantares. Neste sentido, a análise dessas interações lúdicas serve para evitar uma interpretação puramente funcionalista das políticas de matrimônio, ao mesmo tempo que nos permite supor um espaço no qual o papel feminino deixa de ser passivo.

Os bailes e jantares oportunizavam às mulheres em idade matrimonial mos-trar sua educação artística e sua capacidade de convívio. Indo mais longe eram o momento ideal para familiares e amigos intercederem pelas moças de suas redes de relações. Ainda considerando a liberdade que as mulheres porto-alegrenses tratavam com os homens é interessante ponderar o papel de uma personagem em particular, a madrinha. Os eventos sociais podiam muito se tornar uma arena na qual uma ma-drinha habilidosa soubesse aproximar-se dos partidos masculinos e dirigir a atenção dos mesmos à sua afilhada. Ou talvez para incitar as moças a dançar solo, atitude que Saint-Hilaire condenou por considerar de excessiva exposição. Contudo, tal ex-posição talvez mesclava deleitar a audiência tanto quanto impressioná-la. Em termos mais amplos eram avaliadas não somente a habilidade pessoal das jovens, mas igual-mente o comprometimento de seus pais no investimento de sua educação. Se o mes-mo ocorresse então a sociabilidade lúdica se rompia e valores objetivos começavam a ser avaliados permitindo interações que sugeriam mais do que a simples convivên-cia agradável. As políticas matrimoniais começavam a se desenhar nas conversações aparentemente desinteressadas e adentrava-se outro espaço de sociabilidade, mais conformado pela etiqueta cortesão na qual apesar das gentilezas e das cortesias to-dos medem a todos a fim de saber mais do que revelar. O contato de recém chegados com a sociedade por meio de bailes, saraus, chás e a jantares, portanto, retomava o interessa em casamentos e na ampliação de redes sociais. Nas primeiras décadas do oitocentos a opção das famílias de elite sul rio-grandense em recrutar para seu seio os magistrados régios não somente incidia sobre recrutamento social como

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igualmente apresentava uma nova opção ao grupo. Não investindo na formação uni-versitária de seus próprios membros essas famílias optaram por recrutar os bacharéis naturais de outras regiões, fato que lhes garantia mediadores adequados ao trato com a Corte e a estes a chance de projeção política. Tal assunção parece correta não so-mente para o juiz Luís Correia Teixeira de Bargança, mas igualmente para Caetano Xavier Pereira de Brito e para José Maria de Sales Gameiro Mendonça Peçanha. De tal forma, os espaços de sociabilidade serviram à inserção desses agentes na socieda-de sulista e no conseqüente protagonismo político que desempenharam.

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REFERêNCIAS DOCUMENTAIS

AHCMPA – Arquivo Histórico da Cúria Metropolitana de Porto AlegreAutos de justificação de matrimônio- Domingo de Almeida lemos Peixoto e Luís Joaquina da Silveira, 1790/18.- José Antônio da Silva Neves e Inocência Martins de Oliveira, 1795/55.- Caetano Xavier Pereira de Brito e Francisca Godinho de Oliveira Valdez, 1822/62.Livro 3º de casamentos da freguesia de Rio Pardo, fl. 163.

AHRS – Arquivo Histórico do Rio Grande do SulA.1-11. Registro de correspondência para autoridades da capitania Carta da Junta de Governo Provisório para a Câmara de Porto Alegre.Anais do Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul. Vol. 8. Porto Alegre, AHRS, 1984.AHU - Arquivo Histórico UltramarinoManuscritos Avulsos da Capitania do Rio Grande do Sul 1732-1825 (CD-ROM do Projeto Resgate Barão do Rio Branco)Manuscritos Avulsos da Capitania de Santa Catarina (CD-ROM do Projeto Resgate Barão do Rio Branco)

ANRJ – Arquivo Nacional do Rio de JaneiroDesembargo do Paço, Caderno de Informadores de 1814, cx. 187, PAC. 2, doc. 18.Desembargo do Paço, Caderno de Informadores de 1818, cx. 187, PAC. 2, doc. 18.

APERS – Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul Inventários-Antônio Bernardes Machado, 1º Cartório de órfão de Porto Alegre, maço 33, pro-cesso 818, ano 1824. -Domingos José de Araújo Bastos, 1º Cartório do Cível e Crime de Porto Alegre, maço10, processo 175, ano 1844.

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-Francisco de Sá e Brito, 1º Cartório de órfãos de Porto Alegre, maço 63, processo 1285, ano 1839.-João Coelho Neves, 1º Cartório de órfãos de Porto Alegre, maço 42, processo 995, ano 1829.-José Antônio da Silva Neves, 1° Cartório de órfãos de Porto Alegre, processo 701, maço 28, ano 1820.-José Antônio de Azevedo, 2° Cartório do Cível e Crime Porto Alegre, maço 8, pro-cesso 196, ano 1833.-Manuel Gomes Coelho do Vale, 2º Cartório de órfãos de Porto Alegre, maço 6, processo 79, ano 1853. -Manuel José de Freitas Travassos, 2º Cartório de órfãos de Porto Alegre, maço 86, processo 1809A, ano 1877. -Manuel José Pires da Silveira Casado, 1º Cartório de órfãos de Porto Alegre, maço 53, processo 1142, ano 1833.-Rafael Pinto Bandeira, 1º Cartório de órfãos de Porto Alegre, maço 12, processo 188, ano 1796.Fundo Câmara, Registros Diversos, Câmara de Porto Alegre livro 1 Fl. 19v.-21.Revista do Archivo Publico do Rio Grande do Sul, n. 7, set. 1922.

BNRJ – Biblioteca Nacional do Rio de JaneiroSetor de Manuscritos- Coleção Augusto de Lima Júnior, II – 35, 34,12.- Coleção de Documentos Biográficos.

REFERêNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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PAi MonArquistA, filho rePubliCAno: ProPAgAndA rePubliCAnA, eleições e relAções fAMiliAres A PArtir dA trAjetóriA de joAquiM frAnCisCo

de Assis brAsil (1877-1889)

Jonas Moreira Vargas*Tassiana Maria Parcianello Saccol**

Resumo: Joaquim Francisco de Assis Brasil foi o único deputado eleito pelo Partido Republi-cano Rio-grandense durante o período monárquico. O presente artigo busca analisar como o mesmo conseguiu eleger-se, assim como a sua atuação na Assembléia Legislativa Provincial. Tal episódio foi importante para fortalecer a propaganda republicana no Rio Grande do Sul, apesar da força dos par-tidos monárquicos. A análise das atas das eleições e das famílias dos principais propagandistas revela que os republicanos estavam vinculados à elite monárquica por diferentes laços de parentesco, o que acabou auxiliando a vitória de Assis Brasil. Além disso, a partir da sua trajetória é possível perceber que a região da campanha era um forte reduto dos estancieiros conservadores e não somente dos liberais como se costuma afirmar.

Palavras-chave: Assis Brasil – Partido Republicano Rio-grandense – Propaganda republicana – Elite política

Aos 19 dias de janeiro de 1885, o jornal A Federação, órgão oficial do Partido Republicano Rio-grandense (PRR), trazia em suas páginas um entusiástico editorial parabenizando o jovem advogado Assis Brasil

pela vitória nas eleições provinciais¹. Certamente foi um duro combate. Foram ne-cessários dois pleitos nos fins de 1884 e início de 1885 para consagrá-lo como o primeiro e único deputado eleito pelo PRR ao longo da monarquia. Contando com apenas 27 anos, Joaquim Francisco era natural de São Gabriel, município da região

* Doutorando do Programa de Pós-graduação em História Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Bol-sista CNPq. E-mail: [email protected]** Graduanda do curso de História da Universidade Federal de Santa Maria¹ A Federação. 19.01.1885. Museu de Comunicação Social Hipólito José da Costa.

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da campanha, cuja base econômica era essencialmente pecuarista. Ainda adolescen-te, foi fazer os estudos preparatórios em Porto Alegre e mais tarde formou-se em Direito na faculdade de São Paulo. Com o diploma na mão, Assis Brasil retornou para a sua cidade natal, onde abriu banca de advogado e dedicou os próximos anos de sua vida ao Partido Republicano, do qual foi um dos principais líderes².

O autor do empolgante artigo que comemorava a eleição de Assis Brasil era Júlio de Castilhos, seu colega de faculdade em São Paulo, onde o Republicanismo se difundia aceleradamente. Amigos inseparáveis, acabaram tornando-se cunhados, pois Assis Brasil casou-se com a irmã de Júlio. A data escolhida para o matrimônio foi o dia 20 de setembro de 1885, ou seja, nos 50 anos de comemoração do início da Revolução Farroupilha. A memorável Guerra que havia tornado o Rio Grande uma república por quase 10 anos era referência marcante para a mocidade republicana rio-grandense³.

A estréia de Assis Brasil no Parlamento, em novembro de 1885, encheu de or-gulho seus correligionários e a notícia correu por todas as províncias onde existiam partidos republicanos. Os defensores da abolição da escravidão, do federalismo, do republicanismo, do sufrágio universal, entre outros, multiplicavam-se em todo o país. Certamente, em poucas épocas na história do Brasil, viveu-se e respirou-se um fluxo de idéias estrangeiras, teorias sociais, projetos e ações políticas tão diversas e intensas como nos anos 1870 e 1880 do século XIX4. No entanto, aquela geração que agia em nome de seus ideais não podia romper totalmente com o mundo considerado “arcaico” e que tanto combatiam. Se a monarquia e a escravidão estavam em crise, como os mesmos declaravam, elas eram fundamentais para manter a posição política e econômica de muitos de seus familiares e eleitores, por exemplo. Portanto, ingres-sar na elite política provincial por vias legais, como Assis Brasil o fez, exigia apoio e conivência com parte das práticas política vigentes, muito embora, no discurso, os mesmos adotassem uma postura mais radical.

O eleitorado republicano era pequeno, oscilando entre 10% e 15% da provín-cia, e permaneceu assim até a queda da monarquia5. A ênfase na trajetória de Assis

2 Os principais dados biográficos sobre Assis Brasil estão presentes em REVERBEL, Carlos. Assis Brasil. Porto Alegre: IEL, 1996 e AITA, Carmen. Perfil biográfico de Assis Brasil. In: ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA DO ES-TADO DO RIO GRANDE DO SUL. Perfis Parlamentares: Joaquim Francisco de Assis Brasil. Porto Alegre: ALRS, 2006, p. 17-207.³ Tamanha importância resultou num livro, A História da República Rio-grandense, publicado por Assis Brasil sob enco-menda do Club 20 de setembro – que reunia rio-grandenses que estudavam direito em São Paulo.4 Ver, por exemplo, ALONSO, Ângela. idéias em movimento: a Geração de 1870 na crise do Brasil-império. São Paulo: Paz e Terra, 2002.5 É bem verdade que nas eleições gerais de agosto de 1889, os liberais preencheram todas as cadeiras e os conser-vadores foram pela primeira vez ultrapassados pelos republicanos, que ficaram em segundo lugar. Entretanto, tal façanha foi conseqüência da enorme conversão de saquaremas para as hostes do PRR, após o Partido Liberal ter subido ao poder em julho e da nomeação de Silveira Martins para presidente da província.

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Brasil e na análise das eleições que o elegeram nos ajuda a iluminar a história do pró-prio PRR, da propaganda republicana e do mundo da política no século XIX. Mas antes disso é preciso compreender como o jovem gabrielense conseguiu eleger-se num forte reduto de estancieiros monarquistas.

I – DAVI CONTRA GOLIAS OU DE COMO ASSIS BRASIL CONSEGUIU VENCER OS LIBERAIS

NA REGIãO DA CAMPANHA

O sucesso de uma candidatura no período monárquico dependia da combi-nação de uma série de fatores. Os mais importantes eram convencer o eleitorado local e os líderes dos partidos das suas competências e propostas. A livre consulta aos eleitores por meio de palestras individuais e excursões políticas era fundamental, assim como os pedidos de votos através da imprensa. Mas antes disso era necessário conquistar o apoio dos líderes locais e principais chefes do partido que, caso aceitas-sem, emitiam dezenas de circulares aos eleitores mais influentes aconselhando-os a acolherem às candidaturas. Entretanto, conquistar a confiança dos chefes do partido e dos eleitores não era fácil. Ter um diploma de curso superior e pertencer a uma família tradicional e rica na região eram pré-requisitos importantes. Quanto maiores os vínculos pessoais com os grandes líderes e obviamente a aceitação de sua política, maiores eram as chances. Firmando-se as alianças eleitorais, os estancieiros e demais eleitores empregavam toda a sua clientela local e influência na Guarda Nacional, nos juizados de paz e de direito, na delegacia de Policia e na Câmara municipal para vencer os pleitos. Como as eleições eram bastante freqüentes (praticamente todo ano se votava), as alianças tinham que ser renovadas continuamente, pois os eleitores trocavam de candidatos tornando todo o processo bastante complexo6.

Assis Brasil teve a oportunidade de pular ao menos uma etapa deste com-plexo processo, pois ele constituía-se num dos principais chefes do PRR, ou seja, não precisava conquistar a aceitação dos mesmos. Entretanto, teve que legitimar tal liderança entre seus pares e a mesma foi conquistada intelectualmente desde a época em que era estudante de Direito7. A primeira vez que Assis Brasil concorreu

6 Ver, por exemplo, GRAHAM, Richard. Clientelismo e Política no Brasil do Século XiX. Rio de Janeiro: UFRJ, 1997. Para a dinâmica no Rio Grande do Sul, com muitos exemplos, ver VARGAS, Jonas Moreira. Os políticos de aldeia: eleições, negociações e prática política nas paróquias do Rio Grande do Sul (1868-1889). In: Vi Mostra de Pesquisa do Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: CORAG, 2008, p. 39-57.7 É necessário lembrar que por trás da fundação do PRR, em 1882, não estavam somente os jovens estudantes como Assis Brasil e Júlio de Castilhos. O Partido apenas agregou republicanos espalhados esparsamente em “clubes” municipais e trouxe para o seu interior antigos e insistentes militantes, como Venâncio Ayres e Apolinário Porto Alegre, entre outros. Entretanto, ninguém pode negar que os jovens bacharéis egressos de São Paulo renovaram as bases ideológicas do Republicanismo rio-grandense, pois os mesmos auxiliaram na difusão de idéias intensamente debatidas entre os políticos e intelectuais paulistas, como o positivismo e o evolucionismo, entre outros.

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às eleições provinciais foi em dezembro de 18838. A Assembléia Legislativa reunia 30 deputados, sendo 5 para cada um dos 6 círculos eleitorais em que o território do Rio Grande do Sul estava dividido e cada eleitor votava em apenas um candidato. O 3º círculo, pelo qual Assis Brasil concorria, estava composto pelos municípios de Alegrete, Quarai, Itaqui, São Gabriel, Santo Ângelo, São Luís Gonzaga, Rosário, São Borja, Santiago, São Vicente, São Francisco de Assis e Uruguaiana. Sua estréia foi decepcionante, pois os pleitos resultaram numa vitória esmagadora do Major Ge-raldo de Faria Corrêa (liberal) que recebeu 592 votos em toda a região contra 72 de Assis Brasil, que ficou em segundo lugar9.

Para ampliar os votos do partido, a estratégia seria intensificar a propaganda pela imprensa e negociar o apoio de estancieiros da região. Em janeiro de 1884, os republicanos fundaram o jornal A Federação, e Venâncio Ayres assumiu a chefia da redação. Uma nova batalha estava marcada para dezembro de 1884, nas eleições provinciais. O resultado das urnas foi o seguinte: Egídio Barbosa Itaqui (384), Seve-rino Ribeiro (361), Propício Barreto (331), Francisco Azevedo e Souza (319), Assis Brasil (277), Eduardo Lima (52) e Jayme Couto (03)10. A Lei mandava considerar eleitos somente os deputados que atingissem o quoficiente eleitoral. Portanto, o liberal Egídio e o conservador Severino receberam seus diplomas de deputados e os outros foram alçados ao 2º escrutínio, onde somente três candidatos poderiam tornar-se deputados.

No dia 12 de janeiro de 1885, nas diferentes paróquias do 3º círculo, os elei-tores foram mais uma vez escolher os outros três deputados da região. Como Egídio e Severino já estavam eleitos, aqueles eleitores que votaram em ambos teriam que escolher novos candidatos para deputado. Abria-se, assim, uma brecha para todo e qualquer tipo de negociação. Desta vez o resultado foi o seguinte: Francisco Aze-

8 Nesta ocasião, as eleições foram organizadas para eleger somente um deputado, pois uma cadeira havia ficado vaga na Assembléia Provincial.9 Livros de Registros Diversos, Primeiro Tabelionato de Alegrete, Fundo 2, Estante 24, 1881-1890 (APERS). Os conservadores parecerem ter agido em abstenção. Os resultados das eleições no 3º círculo citado daqui em diante estão contidos nos mesmos livros.10 Egídio Barbosa Itaqui era advogado na cidade que adotou como sobrenome e membro do Partido Liberal na região. Severino Ribeiro também era advogado em Alegrete. Neto de Banto Manoel Ribeiro, foi o um dos políticos mais influentes na região da campanha e chefe conservador de enorme prestígio. Francisco de Azevedo e Souza também era conservador e pertencia a uma família de ricos charqueadores pelotenses. Propício Pinto era proprie-tário em São Gabriel e representante liberal do município. Eduardo Lima também era advogado em Itaqui, mas seu posicionamento em 1885 é uma incógnita. Pertenceu ao PRR em 1882 e neste ano foi candidato no 3º círculo. Mas em 1884, perdeu esta posição para Assis Brasil e é provável que tenha rompido com o partido e concorrido como dissidente, algo não raro na época. Também é possível que tenha feito alianças com os liberais, pois parece ter recebido muitos votos deles no 2º escrutínio.

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vedo e Souza (549), Propício Barreto (517), Assis Brasil (429), Eduardo Lima (272). Assis Brasil conquistara a última vaga do círculo e estava eleito! Mas como conseguiu ampliar tanto os seus votos em poucos dias?

A historiografia gaúcha costuma mencionar que Assis Brasil elegeu-se com o auxílio dos conservadores, mas demonstraremos tal apoio empiricamente. A quan-tificação dos votos revela que os eleitores do conservador Severino Ribeiro foram fundamentais na vitória de Assis Brasil. Dos 4 candidatos que passaram para o 2º es-crutínio somente Francisco Souza era conservador. Se os 361 eleitores conservado-res que votaram em Severino Ribeiro no 1º escrutínio também tivessem votado em Francisco ele teria somado 680 votos, mas não foi isto que ocorreu, pois ele obteve apenas 549. Portanto, 131 conservadores não votaram no candidato do seu próprio partido e decidiram apoiar outro11. Ora, de 277 votos recebidos no 1º escrutínio, Assis Brasil saltou para 429, conseguindo, portanto, o apoio de 157 eleitores em poucos dias. E como sabemos que estes votos foram dados pelos conservadores? Dias depois da apuração, o próprio Assis Brasil admitiu ao escrever para um amigo, esboçando certo desconforto pelo apoio saquarema:

“Os cento e tantos votos que o Severino mandou-me dar não im-portaram retribuição alguma. Este teve em vista evitar que fossem eleitos dois liberais, preferindo um oposicionista a um governista. Eu nem sequer tive ciência disto, senão nas vésperas da eleição, e nunca dei grande crédito ao que diziam os conservadores, mesmo porque entendi que eles me queriam passar mel pelos beiços”12.

É importante notar que se estes conservadores tivessem votado em Eduardo Lima, a vitória de Assis Brasil poderia ter naufragado, o que evidencia mais ainda a importância da aliança momentânea13. Os liberais, indignados, denunciaram que conservadores e republicanos estavam na verdade trocando votos, pois Severino estaria retribuindo o apoio que havia recebido do PRR nas eleições para deputado geral, alguns dias antes. Nesta ocasião, ele disputou e venceu as eleições contra o liberal Egídio Itaqui. Na carta que Assis Brasil escreveu a Aparício Mariense, ele pa-recia estar dando satisfações ao mesmo e negou tal negociação: “Se nós tivéssemos protegido o Severino sequer com um terço da votação republicana, o que seria do

11 Também é possível que alguns eleitores que no 1º escrutínio votaram em Francisco, Assis Brasil, Propício e Edu-ardo tenham alterado seu voto no 2º escrutínio, mas tal ação deve ter sido pouco significativa.12 Carta de Assis Brasil a Aparício Mariense. São Gabriel, 29.01.1885 apud RAMOS, Eloísa H. Capovilla. O Partido Republicano Rio-grandense e o poder local no litoral norte do Rio Grande do Sul (1882-1895). Porto Alegre: Dissertação de Mestrado. PPG em História - UFRGS, 1990, p. 245-249.13 A maioria dos eleitores que votou no liberal Egídio Itaqui converteu seu apoio ao também liberal Propício Barreto e ao “dissidente” Eduardo Lima, que, por ser advogado em Itaqui, devia possuir eleitores em comum com Egídio.

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nosso Itaqui?”. Era um tanto constrangedor que republicanos estivessem votando em líderes saquaremas que defendiam o escravismo, o senado vitalício e o Poder Moderador. Mas ao falar dos correligionários, o próprio Assis Brasil acabou admitin-do que “3 votaram no Severino em 1º escrutínio e mais 4 em 2º, para deputado geral, mas por excesso de dedicação ao partido republicano. Erraram, mas não praticaram a infâmia de se deixarem arrastar pelo vil interesse”14. O fato é que Severino venceu Egídio supostamente com votos republicanos e decidiu retribuir a “gentileza” ele-gendo Assis Brasil15.

Mas seriam somente 3 ou 4 eleitores republicanos os que votaram em Seve-rino? Analisando as atas de duas eleições para deputado geral, em 1886, é possível observar não apenas que este número era bem maior, mas também que a aliança entre conservadores e republicanos manteve-se por muito tempo. Na primeira delas, em abril de 1886, novamente o conservador Severino Ribeiro enfrentou o liberal Egídio Itaqui por uma vaga na câmara dos deputados na Corte. Severino venceu, mas faleceu dias depois. Por conseqüência da fatalidade, novas eleições foram con-vocadas para setembro, mas desta vez os conservadores, representados pelo Dr. Borges Fortes, foram derrotados pelos liberais que escolheram Francisco Antunes Maciel como candidato16. A prova de que os republicanos votaram nos conservado-res pode ser verificada através do cruzamento das atas eleitorais destas duas eleições com outra realizada no fim do mesmo ano. Examinando as eleições provinciais de dezembro de 1886, quando Assis Brasil foi reeleito, é possível notar que ele venceu todos os outros 8 candidatos monárquicos em dois municípios: São Vicente e São Luís (1º distrito). Em São Vicente, ele obteve 17 dos 19 votos, o que revela que a localidade era um forte reduto do republicanismo17. Entretanto, nas eleições de abril e setembro, em que o PRR não possuía candidatos concorrendo, como os eleitores de São Vicente se comportaram?

A análise das referidas atas de abril e setembro de 1886 revela que o eleitorado do pequeno município apoiou em massa os conservadores: Severino 38 X 02 Egídio; Borges Fortes 45 X 01 Antunes Maciel. Ou seja, os republicanos de São Vicente empenharam-se bastante para eleger os candidatos saquaremas. Em São Luís, onde

14 Carta de Assis Brasil a Aparício Mariense. São Gabriel, 29.01.1885 apud RAMOS, Eloísa H. Capovilla. Op. Cit.15 Apesar disso, os liberais, que eram governistas, deram um jeito de caçar o mandato de Severino na Comissão de Verificação de Poderes na Corte e Egídio acabou assumindo.16 Tanto nesta eleição como na anterior, Assis Brasil não atingiu a votação necessária para ser alçado ao 2º escrutínio. Isto revela que quando os cargos principais estavam em jogo (deputado geral e senador), o PRR não tinha muitas chances. 17 Em 1883, cinco dos seis vereadores de São Vicente eram republicanos. No congresso do PRR do mesmo ano, As-sis Brasil participou como representante do município, o que indica as íntimas relações que possuía com o mesmo.

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o propagandista Pinheiro Machado era líder político de destaque, aconteceu algo se-melhante, embora com menor intensidade. É possível que em outras localidades os republicanos também tenham prestado seu apoio aos conservadores, contrariando o que Assis Brasil argumentou. As explicações do jovem deputado eram coerentes com a decisão dos republicanos na primeira convenção do partido, em fevereiro de 1882. Nesta ocasião, seus líderes estipularam que em todas as localidades os republi-canos deveriam concorrer às urnas para eleger seus correligionários, mas “no caso de naufragar no 1º escrutínio”, a ordem era a “abstenção no 2º”. Para o PRR, o 2º escrutínio era “um meio de facilitar essas transações por demais perigosas e nocivas à boa ordem do Partido”18. Entretanto, como demonstramos, tal prática não foi respeitada.

Tais acordos revelam que os republicanos não estavam “isolados” das lutas faccionais entre os monarquistas. Na prática, não tinha como jogar o jogo eleitoral sem flertar com as regras monárquicas estabelecidas. Assis Brasil foi ainda mais lon-ge. Na longa carta transcrita abaixo, notamos que para aumentar o número de elei-tores do PRR, ele orientou os clubes republicanos do 3º círculo a criarem um fundo que arrecadasse dinheiro para fraudar documentos comprobatórios e necessários na qualificação:

“Aqui estou afiando-me para a qualificação. Pretendo meter pelo me-nos mais 30 eleitores neste município. Na qualificação está o segredo da causa. Não se descuidem lá. Se é preciso eu ir é só avisarem-me. Mas São Borja é o município onde há bons companheiros em maior número: façam tudo por si. É bom desde logo irem organizando uma lista dos cidadãos que se podem qualificar, para que tudo se facili-te na ocasião. Tive aqui uma idéia excelente, que espero que dará os melhores resultados. É sabido que há companheiros excelentes que não se podem qualificar por não poderem provar a renda. A minha idéia consiste no modo de arranjar a prova, que é a seguinte: Desde já os clubes das diferentes localidades irão formando por meio de donativos, benefícios, mensalidades, enfim, como melhor puderem, um fundo destinado à qualificação. No mês de agosto deste ano, os correligionários que possuírem terras passarão escrituras no valor de 2 contos de réis aos que tem deficiência de renda. O fundo do clube será empregado no pagamento da siza e da escritura. As propriedades vendidas podem ser as mais insignificantes, marcando-se as divisas, a siza de 2 contos à 140 réis, e, por conseguinte, um conto e quatrocen-tos dão para 10 eleitores. Destes, muitos já terão escrituras de menor

MONTEIRO, Hiram Ayres. Venâncio Ayres: o cavaleiro do ideal. São Paulo: Editora Grill, 1997, p. 322-323. O Partido não condenava o recebimento de votos dos monarquistas, pois isto era visto como um indício de possível conversão do eleitorado. Entretanto, o contrário não era recomendado.

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valor, e, nesse caso a que se passar está no que basta para inteirar os 2 contos. Outros poderão pagar por si, senão tudo, ao menos parte. Assim é que não será necessário que os clubes reúnam exatamente os 1.400 réis para fazerem por esta forma 10 eleitores. Temos 10 clubes no círculo; se todos fizerem isto são 100 eleitores que vamos ter de mais, e boa gente, porque está claro que devemos escolher compa-nheiros muito firmes para esta jogada”19.

O Assis Brasil que escreveu esta carta é o mesmo que, anos antes, condenou a diminuição do número de eleitores implementada pela Lei Saraiva, em 1881. O su-frágio restrito, para ele, concretizava um privilégio e apenas beneficiava algumas clas-ses em detrimento de outras. “A prática do sufrágio censitário é digna do princípio de onde emana. Proposital ou não, o alvo dos governos, estabelecendo as exclusões em massa é corromper mais facilmente o corpo eleitoral. Mais depressa se corrompe e disciplina um pequeno do que um grande número de eleitores (...)”20. Assis Brasil estava correto, mas esqueceu de mencionar que ele poderia ser o principal discipli-nador dos eleitores. Na mesma carta, ele destacou como seu plano deveria ser exe-cutado: “Tudo se deve fazer em segredo, que é para os adversários não nos imitarem (...). Estas coisas só deves comunicar a bons companheiros (...). A alma do negócio é o segredo”21. Concluindo a missiva, Assis Brasil defendeu-se argumentando que não havia nenhuma ilegalidade no procedimento, pois para ele todos possuíam a renda necessária, embora não tivessem como comprová-la. A renda de 200 mil réis anuais de fato era baixa, mas não justifica que as transações de terras forjadas com a finalidade de adquirir comprovantes de rendas não fossem consideradas fraudes.

Portanto, existiam muitas coisas em comum entre monarquistas e republica-nos. E o apoio que estes últimos deram aos conservadores, assim como a retribuição saquarema, também poderia ter outra motivação bastante significativa. Severino Ri-beiro e Borges Fortes possuíam íntimas ligações com importantes lideranças repu-blicanas por meio do vínculo mais elementar do mundo da política: a própria família.

II – OS FILHOS PRóDIGOS: PAI MONARQUISTA, FILHO REPUBLICANO

Não apenas Assis Brasil, mas toda a mocidade republicana, por intermédio de seus familiares, estava conectada ao eleitorado de suas respectivas regiões de origem.

19 Carta de Assis Brasil a Aparício Mariense. São Gabriel, 29.01.1885 apud RAMOS, Eloísa H. Capovilla. Op. Cit.20 ASSIS BRASIL, Joaquim F. de. A República Federal. In: Senado Federal (Org.). A Democracia representativa na República: antologia. Brasília: Senado Federal, 1998, Ed. Fac-similar, p. 82.21 Carta de Assis Brasil a Aparício Mariense. São Gabriel, 29.01.1885 apud RAMOS, Eloísa H. Capovilla. Op. Cit.

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Este eleitorado, não é difícil imaginar, era monarquista e votava ou nos liberais ou nos conservadores, únicas possibilidades na década de 1870. Portanto, seus fami-liares não estavam descolados da elite local, mas sim, profundamente vinculados à mesma, visto que manter um filho estudando em alguma academia do Império era um investimento bastante custoso. A análise de algumas trajetórias é reveladora. Podemos começar por Júlio de Castilhos. Se o pai era um estancieiro de considerável fortuna em São Martinho, “pelo lado materno descendia de família aristocrática”. O avô de Castilhos era o Capitão Fidelis Nepomuceno Prates, grande estancieiro em São Gabriel, que chegou a ajudar financeiramente os rebeldes farrapos e foi de-putado na Constituinte da República Rio-grandense. Outros dois parentes também ligavam a família à elite provincial. O primeiro deles foi Dom Feliciano José Rodri-gues Prates, primeiro bispo do Rio Grande do Sul e cuja influência política devia ser grande22. O segundo foi Fidêncio Nepomuceno Prates, médico em São Gabriel e deputado provincial entre 1848 e 1859 e geral entre 1853 e 1856. As redes sociais da família de Castilhos estenderam-se até o mundo da Corte quando Fidêncio casou-se com a filha do Barão de Antonina. Este era senador do Império pela província do Paraná e já havia sido deputado em São Paulo, para onde enviava tropas de mulas. O Barão de Antonina era irmão do Barão de Ibicuí, rico estancieiro com terras em Cruz Alta, São Martinho, Palmeira e Santo Ângelo. Ambos os irmãos foram impor-tantes chefes conservadores23.

Outro exemplo foi José Gomes Pinheiro Machado. Propagandista da região missioneira, era filho de Antônio Pinheiro Machado, advogado renomado em São Paulo e que ao se envolver com a Revolta de 1842, teve que refugiar-se na região serrana do Rio Grande, onde já possuía parentes e negócios com tropas de animais. Fixados em São Luís, os Pinheiro Machado tornaram-se ricos estancieiros. Antônio foi deputado provincial (1858 a 1864) e geral (1864 a 1866) – quando defendeu os progressistas e derrotou Silveira Martins. Os Pinheiro Machado eram parentes dos Oliveira Ayres, família a qual pertencia o também paulista Venâncio Ayres, cunhado de José Gomes, e que contribuiu muito com a propaganda republicana na Província, após ter sido deputado em São Paulo, pelo Partido Conservador.

Vejamos os exemplos dos Abbott e dos Ribeiro de Almeida. Os Abbott eram uma família de estancieiros e médicos com base em São Gabriel e eleitores do Partido Conservador. Fernando e João foram os principais membros da família

22 SOARES, Mozart Pereira Soares. Júlio de Castilhos. Porto Alegre: IEL, 1996, p. 9.²³ Todas as referências aos laços de parentesco envolvendo os indivíduos nobilitados pertencem a CARVALHO, Mário Teixeira de. Nobiliário Sul-riograndense. Porto Alegre: Oficinas Gráficas da Livraria do Globo, 1937.

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a aderirem ao republicanismo na década de 1880. Ambos eram cunhados de João Borges Fortes Filho, cujo pai era o grande chefe do Partido Conservador na região da campanha. O Doutor Borges Fortes foi deputado provincial (1850 a 1863; 1869 a 1872 e 1887 a 1888) e geral (1857 a 1860)24. Os Ribeiro de Almeida eram uma família igualmente conservadora com forte influência em Alegrete, Quarai, Uruguaiana e Livramento, onde possuíam estâncias. Severino Ribeiro foi o chefe político máximo da família, tornando-se deputado provincial (1885-1886) e geral (1877; 1882-1884; 1886). O republicano da família foi seu irmão caçula, Vitorino, que havia sido colega de Assis Brasil e de Castilhos na faculdade de Direito. Ambos eram filhos do Barão de São Borja – comandante de destaque na Guerra do Paraguai e um dos principais chefes conservadores da região da campanha – e netos de Bento Manoel Ribeiro, estancieiro que pegou em armas em 1835, mas passou para o lado legalista por duas vezes. A partir destas linhas é possível considerar que os laços de parentesco devem ter facilitado com que Severino Ribeiro convencesse seus eleitores a votarem no amigo de seu irmão Vitorino, Assis Brasil, e os republicanos retribuírem apoiando Borges Fortes e o próprio Severino, como demonstramos antes.

Podemos citar outros casos de forma mais resumida. Ramiro Barcellos, por exemplo, era sobrinho do Barão de Viamão, o principal chefe conservador de Ca-choeira, e primo de Borges de Medeiros, outro importante propagandista e que, na República, governou o Rio Grande por 25 anos. Joaquim Pereira da Costa era sobri-nho e acabou tornando-se genro do Barão de Nonoai, rico estancieiro e importante chefe conservador em Cruz Alta. Joaquim foi colega de Faculdade de Castilhos e ambos acabaram tornando-se cunhados. João Jacintho Mendonça pertencia a uma importante família de charqueadores saquaremas de Pelotas e Demétrio Ribeiro era sobrinho do Barão de Santana do Livramento, antigo líder conservador de Alegrete, mas que por desavenças com os Ribeiro de Almeida tornou-se o principal chefe gas-parista da região. Possidônio Cunha era sobrinho do Barão de Corrientes, capitalista e charqueador pelotenses, e Marçal Escobar, neto do poderoso Barão de São Lucas – rico estancieiro são borjense.

Muitos destes propagandistas pertenciam ao “Club 20 de setembro”, que reunia estudantes republicanos rio-grandenses na academia de São Paulo. Exami-nando a lista dos sócios e pesquisando suas vidas percebemos que outros membros deste grupo também possuíam trajetória semelhante aos citados anteriormente. Al-fredo Lobo d’Eça era filho do Barão de Batovi, estancieiro com enorme destaque

24 Além disso, uma das filhas do Doutor Borges Fortes casou-se com Carlos Prates de Castilhos que provavelmente era um parente próximo de Júlio. (CARVALHO, Mário Teixeira. Op. Cit., p. 92).

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na campanha do Paraguai e com terras em São Gabriel. Enéias Galvão era filho do Visconde de Maracajú, outro militar que chegou a ser ministro da Guerra, e que era irmão do Barão de Rio Apa, principal repressor da Revolta do Vintém, na Corte. O Barão de Candiota, outro importante estancieiro gabrielense que possuía terras em diversos municípios da região da campanha e que era primo do Senador e Ministro Henrique D’Avila, era pai de José Maria Chagas. E Adolpho Osório era filho do General Osório e Marquês do Herval, principal chefe político do Rio Grande do Sul nos anos 1870.

Outros exemplos poderiam ser dados e Assis Brasil também se encaixa no perfil descrito. Filho do estancieiro Francisco de Assis Brasil, a família era aparen-tada com os Jobim – conservadores e íntimos do Imperador. Um de seus membros ilustres era o Barão de Cambaí, tio-avô de Assis Brasil e que na juventude foi ne-gociante no Rio de Janeiro e depois se tornou estancieiro em São Gabriel. Irmão da Viscondessa de Sabóia e filho do Senador José Cruz Jobim, o Barão era “senhor de avultados bens de fortuna” e “contribuiu, largamente, para a campanha do Para-guai”25. Na década de 1870, Assis Brasil também se tornou cunhado do estancieiro Antônio de Castro Jobim, casado com sua irmã Felisberta.

Filhos, netos, sobrinhos, em suma, parentes de barões, viscondes e marque-ses. Pode-se dizer que a grande maioria destes propagandistas pertencia às famílias mais nobres do Império. Tinham ascendentes conhecidos no mundo da Corte, seja pelos títulos de nobreza, seja pelos altos cargos ocupados, e respiravam a política desde a sua infância. Provenientes de famílias da elite monárquica é possível consi-derar que sua conversão ao republicanismo tenha acontecido em algum momento de suas vidas, seja na adolescência, nas escolas preparatórias, seja na juventude, já na academia. Esta simples constatação evidencia que ao retornarem para sua terra na-tal, estes jovens republicanos viam-se como membros de uma extensa parentela de monarquistas. Devido às novas posições políticas trazidas para o interior da família, o relacionamento com seus pais podia tornar-se problemático. Mas por outro lado, caso fosse tolerado, um possível apoio da família nas negociações políticas do filho recém chegado poderia facilitar seus contatos iniciais.

O fato é que o convívio com outros estudantes mais velhos e o contato com novas idéias mexiam com a cabeça dos rapazes. No caso dos rio-grandenses, muitas vezes o calor do republicanismo já era sentido nos estudos preparatórios realizados em Porto Alegre, no Colégio de Fernando Gomes, por exemplo. Este professor era

25 CARVALHO, Mário Teixeira de. Op. Cit., p. 51.

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republicano e abolicionista declarado e ensinava a doutrina de Comte aos seus jo-vens alunos. Freqüentaram suas aulas Júlio de Castilhos, Assis Brasil, Barros Cassal, Ernesto Alves, entre outros26. Posteriormente, nas Escolas Militares ou nas Acade-mias de Medicina e Direito eles tinham contato com as elites de todo o Brasil, suas experiências se renovavam e eles conheciam um caldeirão de idéias, por muitos con-sideradas subversivas. Um trecho das memórias do abolicionista Joaquim Nabuco ilustra o impacto deste encontro:

“QUANDO ENTREI PARA A ACADEMIA, LEVAVA A MINHA FÉ CATóLICA VIRGEM; SEMPRE ME RECORDAREI DO ES-PANTO, DO DESPREZO, DA COMOçãO COM QUE OUVI PELA PRIMEIRA VEZ TRATAR A VIRGEM MARIA EM TOM LIBERTINO; EM POUCO TEMPO, PORÉM, NãO ME RESTA-VA DAQUELA IMAGEM SENãO Pó DOURADO DE SAU-DADE (...) AS MINHAS IDÉIAS ERAM, ENTRETANTO, UMA MISTURA E UMA CONFUSãO; HAVIA DE TUDO EM MEU ESPíRITO. ÁVIDO DE IMPRESSõES NOVAS, FAZENDO OS MEUS PRIMEIROS CONHECIMENTOS COM OS GRANDES AUTORES, COM OS LIVROS DE PRESTíGIO, COM AS IDÉIAS LIVRES, TUDO O QUE ERA BRILHANTE, ORIGINAL, HAR-MONIOSO, ME SEDUZIA E ARREBATAVA POR IGUAL”.27

No Rio Grande do Sul, no fim dos anos 1870 e início dos anos 1880, não era novidade para as elites que a faculdade de Direito de São Paulo estava tornando-se um reduto de jovens rio-grandenses convertidos ao republicanismo. Da turma formada em 1878, retornaram para o Rio Grande os propagandistas José Gomes Pinheiro Machado e Marçal Escobar. Da turma de 1880, foi a vez de Wenceslau Es-cobar, Alexandre Cassiano do Nascimento e Antônio Pinheiro Machado Júnior. Em 1881, formaram-se Eduardo Lima, Júlio de Castilhos e João Mendonça. Cruzando a lista dos formados nas turmas posteriores com a dos propagandistas, percebemos que a grande maioria dos formados já voltava ao Rio Grande pronta para abastecer as fileiras do PRR. Mas o que os pais monarquistas vinham pensando sobre isto?

Resolvemos construir um gráfico demonstrando o número de rio-grandenses diplomados em Direito a cada ano. Como os anos indicados são os da formatura, devemos considerar que os pais enviaram seus filhos para a academia sempre cinco anos antes da conclusão do curso. O gráfico apresenta quatro momentos em que a elite rio-grandense reduziu o envio dos filhos para São Paulo. Três delas tem nítida

26 RIBEIRO, Célia. Fernando Gomes: um mestre no século XiX. Porto Alegre: LP & M, 2008.27 NABUCO, Joaquim. Minha Formação. Brasília. UnB, 1963, p. 10-11.

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vinculação com as épocas em que o Rio Grande do Sul envolveu-se em guerras. A primeira queda brusca nos envios inicia-se em 1842, o que evidencia que a partir de 1837, os rio-grandenses foram cada vez menos estudar na Academia Paulista. A segunda queda inicia-se em 1857, ou seja, cinco anos depois da Guerra contra Oribe e Rosas. Esta queda foi pequena, assim como o impacto da mesma Guerra. A terceira queda, relacionada com a Guerra do Paraguai, foi igualmente brusca como a primeira. Ela inicia-se em 1872 e demonstra que a partir de 1867 os rio-grandeses di-minuíram o envio de seus filhos para São Paulo. Estes três ciclos de queda demons-tram que as guerras provocaram significativa crise política e econômica e acabaram alterando o projeto de muitas famílias, reduzindo as possibilidades de manterem um filho estudando fora da Província, algo muito custoso. Mas como explicar a enorme diminuição iniciada em 1887?

Não houve nenhuma guerra no início da década de 1880 e nem é possível falar de uma grande crise econômica que inviabilizasse tal investimento familiar. A mencionada crise nas charqueadas é discutível. O número de estabelecimentos sala-deris em 1882, por exemplo, era maior que na década anterior e as vendas do produ-to não caíram tanto28. A população rio-grandense continuou a crescer bastante e as exportações de alimentos da região colonial também aumentavam a cada ano. Nossa hipótese é que um dos motivos pelo qual os rio-grandenses diminuíram o envio de filhos para São Paulo se deu exatamente pela explosão do movimento republicano. As primeiras manifestações de Castilhos e Assis Brasil, a fundação do PRR e a defesa de idéias perigosas, como a abolição da escravidão, por exemplo, deve ter incomoda-do muitos estancieiros monarquistas e charqueadores fiéis à Coroa. A academia pau-lista estava se tornando um espaço anti-monárquico e é provável que pais de famílias da elite proprietária não quisessem ver seus filhos convertidos a “tais” doutrinas.

28 O estudo das charqueadas pelotenses constitui-se no tema atual de pesquisa de Jonas Vargas. Resultados parciais podem ser acompanhados em VARGAS, Jonas Moreira. A elite charqueadora de Pelotas (1850-1890): algumas notas sobre as suas estratégias familiares e a transmissão de propriedade. In: GARCIA, Graciela B. (Org.). Anais do ii Encontro do GT de História Agrária (ANPUH-RS). Porto Alegre, 2009, CD-ROM, p. 1-20.

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Gráfico – Bacharéis em direito rio-grandenses formados em São Paulo (1832-1895)

Fonte: FRANCO, Sérgio da Costa. Gaúchos na Academia de Direito de São Paulo no século XIX in: Revista Justiça & História. Porto Alegre: CEMJUG, 2001, pp. 107-129.

Muitas famílias, no Brasil inteiro, devem ter vivido este dilema. Pais monar-quistas e filhos republicanos. Pais escravocratas e filhos abolicionistas. Pais excessi-vamente religiosos e filhos anti-clericais. As famílias se desentendo ou se acertando, em conflitos com diferentes intensidades, muitas vezes dentro da própria casa. Mas para Júlio de Castilhos, Assis Brasil, Pinheiro Machado, Ramiro Barcellos, Vitorino Monteiro, e talvez alguns outros, contornar a vontade paterna não foi problema, pois os mesmos eram órfãos de pai quando foram estudar em São Paulo29. Tal fata-lidade pode ter contribuído para favorecer uma militância mais livre de tensões den-tro da própria casa. Além disso, ter ficado órfão desde a juventude deve ter exigido dos mesmos uma precoce e constante busca por padrinhos políticos. A ausência da figura paterna trazia dificuldade para muitas coisas, mas acabava abrindo outras portas. Nenhum biógrafo declarou, mas conforme a mãe de Assis Brasil, o mesmo seria encaminhado à carreira da medicina, para a qual possuía “caracterizada voca-ção”30. Não sabemos se este era seu desejo, mas com a morte do pai, ele acabou indo estudar Direito. O mesmo pode ser dito de Vitorino Ribeiro. O pai enviou-o para estudar na Academia Militar da Corte, mas tendo falecido, em 1877, Vitorino acabou transferindo-se para São Paulo, o que talvez fosse sua verdadeira vontade31. Se tais

29 Com exceção de Ramiro, formado em medicina na Corte.30 Inventário de Francisco de Assis Brasil. Processo 247, maço 12, ano 1872, São Gabriel, Cartório de órfãos e ausentes (APERS), p. 62.31 VARGAS, Jonas Moreira. Entre a paróquia e a Corte: os mediadores e as estratégias familiares da elite política do Rio Grande do Sul (1868-1889). Santa Maria: Editora da UFSM/ Anpuh-RS, 2010.

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fatalidades não tivessem ocorrido é provável que a relação de ambos com Castilhos, efetivadas em São Paulo, não tivessem se estreitado tanto.

As relações familiares dentro do mundo da política eram importantes tanto para os monarquistas quanto para os republicanos e tais vínculos acabavam conec-tando a todos. As alianças eleitorais entre conservadores e republicanos, portanto, também deve ter sido fruto de uma retribuição parental só perceptível quando se analisa a fundo as famílias desta elite. Na região da campanha esta ligação parece ter sido mais forte. Assis Brasil, Fernando Abbott e Vitorino Ribeiro, por exem-plo, tinham importantes lideranças conservadoras na própria família, o que pode ter facilitado a aliança partidária e os votos depositados em Assis Brasil. Para muitos, portanto, o ódio familiar contra Silveira Martins e seu séquito já vinha de família, mesmo antes da década de 1870 e foi apenas reatualizado na fase da propaganda republicana e elevada a uma nova etapa na Revolução Federalista (1893-1895). Os inimigos de Gaspar eram bem-vindos nas hostes republicanas. Isto ajuda a explicar porque os parentes do General Osório e todos os liberais expurgados por Silveira Martins foram acolhidos no seio do PRR. Quando Assis Brasil tomou a palavra na sessão parlamentar do dia 8 de dezembro de 1885 e enfrentou Silveira Martins de forma impetuosa é provável que muitos membros da velha guarda saquarema da província, que tanto sofrera nas mãos do intransigente tribuno liberal, estivessem satisfeitos, certos de que fizeram um bom negócio ao apoiar ocasionalmente aquele rapaz de apenas 28 anos.

III – JOAQUIM NA COVA DOS LEõES: UM REPUBLICANO NO PARLAMENTO PROVINCIAL

As sessões da Assembléia Legislativa provincial duravam pouco mais que dois meses, mas era a oportunidade dos partidos implementarem a sua política. Na leitura dos anais do parlamento é possível perceber que Assis Brasil demonstrou-se bastante ativo na defesa da região da campanha. A hipótese que defendemos é que não apenas os votos conservadores o deram a vitória, mas também a ha-bilidade com que o mesmo preencheu um espaço que estava aberto para novos representantes daquela região. Logo que foi eleito, em janeiro de 1885, ele escre-veu ao mesmo Aparício Mariense convidando-o para a convenção do Partido na capital: “Espero que cumpras a palavra que me deste, sendo representante de São Borja. É um passeio que dás a Porto Alegre e com isso aproveitas a ver funcionar a Assembléia, onde já vai tomar parte um republicano”. E na mesma carta deixou clara a insatisfação dos eleitores da fronteira: “Não podemos continuar, nós da

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Campanha, a ser representados por gente da capital. É o amor ao partido que exige a tua ida, ou de algum de nossos bons companheiros daí”32.

Mas porque “gente da capital”? A insatisfação de Assis Brasil apenas refletia o fato de que muitos candidatos monarquistas que concorriam com ele nas eleições residiam em Porto Alegre. Albino Pinto e Egídio Itaqui, embora fossem naturais da campanha, há muito haviam trocado sua residência para a capital, onde advogavam. O engenheiro Adriano Ribeiro fizera o mesmo. Mas outros concorrentes como José Bittencourt, Francisco Souza e Hemetério Silveira nem da campanha eram e pre-tendiam representá-la no parlamento. O próprio Silveira Martins e seus seguidores como Joaquim Salgado e Eleuthério de Camargo, constituíam-se em homens que haviam migrado para a capital. O Partido Liberal era forte em Porto Alegre. Em 1882, por pressão dos comerciantes da capital que reclamavam do contrabando na fronteira oeste, Silveira Martins empenhou-se em aprovar no Senado a tarifa especial que favorecia aqueles negociantes, em detrimento dos da campanha. Muito come-morado na capital, Gaspar teve seu retrato exposto na sala de reuniões da Associa-ção Comercial de Porto alegre33. Soma-se a isto o fato de que Silveira Martins já nem concorria mais às eleições pelos círculos eleitorais da campanha. Na década de 1880, ele sempre se elegeu pelo 6º círculo, que reunia a região de colonização alemã, além de importantes cidades como Rio Pardo, Santa Maria e Cachoeira.

Assis Brasil, portanto, parecia estar tentando legitimar um discurso onde ele seria o verdadeiro representante da região da campanha. Jamais saberemos o conte-údo de suas conversas pessoais com os eleitores da fronteira, mas é provável que ele estivesse utilizando isto para conseguir votos. As críticas aos deputados monarquis-tas daquela região já vinham sendo realizadas antes dele, o que deve ter facilitado a sua missão. Anos antes, Wenceslau Escobar, advogado em São Borja, e Propício Barreto Pinto, proprietário em São Gabriel, acusavam o próprio partido que repre-sentavam, o liberal, de ter abandonado a campanha. Eleuthério de Camargo, em defesa, tentou contornar a situação, mas não apresentou argumentos capazes de contrariar os dois jovens34. Meses mais tarde, Wenceslau acabou ingressando no PRR. Talvez esta nova agremiação fosse uma saída para aqueles homens da campa-

32 Carta de Assis Brasil a Aparício Mariense. São Gabriel, 29.01.1885 apud RAMOS, Eloísa H. C. da Luz. Op. Cit., p. 245-249.33 FRANCO, Sérgio da Costa. Porto Alegre e seu comércio. Porto Alegre: Associação Comercial de Poa, 1983, p. 78.34 Anais da Assembléia Legislativa Provincial, sessão de 21 de abril de 1881. Eleuthério dizia que as críticas eram coisas de jovens radicais, mas Antônio Ribas, um velho deputado de Itaqui concordou com eles. Eleuthério admitiu o abandono e concluiu que o Partido não governava por localidades, mas sim pelo crescimento de toda Província, discurso muito comum entre os situacionistas.

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nha que estavam descontentes com a administração dos liberais e de sua política para com aquela região. Estes e outros episódios devem ter contribuído para o aumento do eleitorado republicano na campanha. Conforme Eloísa Ramos, a maioria das ade-sões ao PRR, logo após a sua fundação, em 1882, aconteceu na região da campanha. Em quase todos os municípios eles conseguiram eleger um vereador, sendo que, em Alegrete, assumiram dois35.

Algumas das manifestações de Assis Brasil foram em defesa dos estancieiros daquela região. Favorecendo São Gabriel, por exemplo, ele tentou aumentar sua arrecadação ao propor uma lei obrigando todo o gado vindo da região missioneira para Pelotas a pagar pedágio na ponte recém criada sobre o Vacacaí36. Em outro discurso, ele buscou vetar o projeto de lei encaminhado pelos liberais para diminuí-rem o corpo policial na fronteira. Segundo ele, o mal para as estâncias da campanha era exatamente a falta de policiamento. Assis Brasil acrescentava: “Venho de lá do interior da província, onde vejo com os meus olhos (...) o descrédito com que os homens públicos aparecem aos olhos dos nossos patrícios, desiludidos de promessas (...)”37. Em abril de 1886, ele defendeu a criação de gado como a principal fonte de riqueza da província e atacou todos os deputados por não estarem se empenhando na melhoria da atividade pecuária. E ao condenar ambos os partidos monárquicos por este abandono, ele enfatizava: “não falo desta legislatura; refiro-me a todas (...) Pouco se tem feito pelo bem real da província, e pela indústria pastoril particular-mente quase nada”38.

Com relação à abolição da escravidão Assis Brasil também foi um parlamen-tar ativo. No ano de 1886, a única medida legislativa relativa à questão servil foi enviada por ele, que encaminhou uma emenda ao projeto de orçamento das câmaras municipais onde dizia: “de cada individuo que tiver escravos ou libertos, com cláusu-

35 A autora acrescenta que nesta região fronteiriça os assinantes d’A Federação, jornal oficial do partido, também eram bastante numerosos. Esta inclinação ao republicanismo só poderia significar uma insatisfação com os representantes políticos liberais e conservadores, além de servir como mais um espaço às elites paroquiais alijadas da política local. (RAMOS, Eloísa H. C. da Luz. Op. cit, p. 109-110).36 Anais da Assembléia Legislativa do RS. Sessão do dia 9 de novembro de 1885.37 Anais da Assembléia Legislativa do RS. Sessão do dia 20 de novembro de 1885.38 Anais da Assembléia Legislativa. Sessão do dia 02.04.1886. Assis Brasil, habilmente, estava preenchendo um espaço aberto à “mediação”. Era bom orador e palestrante e, de fato, preocupava-se com os problemas relativos à criação de gado, como demonstram os livros que escreveu já no século XX. Tornara-se, aos 28 anos, um jovem líder político com uma clientela formada a todo custo. Mas buscava ampliá-la e com isto deveria beneficiar a comu-nidade local, cujos estancieiros eram seus principais chefes. O reconhecimento dos mesmos legitimava a posição de Assis Brasil, que conectava a região da campanha com a capital – centro administrativo da província e da qual os estancieiros esperavam favores e cargos. Mas esta era uma tarefa difícil e muitos cobiçavam o seu posto de mediador político. Para uma reflexão teórico-metodológica do papel do mediador nas sociedades agrárias e pré-industriais ver VARGAS, Jonas Moreira. Op. Cit., 2010.

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la de prestação de serviços por mais de três anos se cobrará 50$000 por cada escravo ou liberto”. A emenda foi vetada pela maioria. Um ano depois, em novembro de 1887, dois deputados propuseram a criação de um imposto de 500$000 sobre cada escravo que fosse importado em qualquer município rio-grandense. Assis Brasil no-vamente ofereceu uma emenda, ampliando os impostos a todos os escravos, quer de passagem de um município para outro, quer fixos em um só município, sugerindo o imposto de 100$000 sobre cada liberto com a condição de servir. Encontrando nova oposição, Assis Brasil retirou sua emenda para não prejudicar a aceitação de todo o projeto. Incansável, o jovem republicano propôs outra emenda juntamente com o liberal Severino Prestes, sob “o imposto de 200$000 a que ficam sujeitas as cartas de alforria concedidas da data desta lei em diante com a cláusula de serviços por mais de três anos”. Desta vez a emenda foi aprovada e incorporada à lei39..

Assis Brasil vinha-se demonstrando empenhado em representar a região da campanha, mas não conseguiu se reeleger em 1888. É provável que a abolição da escravidão, em maio deste ano, tenha auxiliado no afastamento entre conservadores e republicanos, pois ambos ocupavam posições distintas com relação ao delicado tema40. Além disso, a votação que ele obteve no 1º escrutínio de 1884 foi pratica-mente a mesma que em 1886, o que demonstra que o Partido não havia crescido em quase nada, mas pelo contrário, perdido seu potencial eleitoral, pois em 1888, sua candidatura naufragou. Estaria Assis Brasil afastando-se do seu eleitorado da fronteira? O fato é que nos dois únicos discursos publicados nos Anais para o ano de 1888, ele defendeu interesses de outras regiões. Numa delas, propôs a criação de uma aula pública num distrito rural de Santa Maria. Na outra, ele estava representado “os mais respeitáveis comerciantes e proprietários” de Porto Alegre, e exigindo a restituição total de impostos supostamente cobrados de forma ilegal41. Ele que tanto criticara os representantes da campanha que estavam vinculadas à capital, agora es-tava ligado aos ricos negociantes de Porto Alegre.

No entanto, outro fator contribuiu para que o mesmo não fosse eleito. Apro-vada em 1887, entrou em vigor no ano seguinte a “lei do terço”, que havia sido aban-donada em 1881, mas retornava como salvação para a representação das minorias. Ela exigia que cada eleitor ao invés de votar num candidato, votasse em 2/3 das ca-

39 Em dezembro de 1887, Assis Brasil e Albino Pereira Pinto apresentaram um projeto, logo aprovado, que dispen-sava “das dívidas provenientes da taxa de escravos os senhores que derem ou deram liberdade incondicional aos escravos sobre os que versaram as dívidas”, bem como as pessoas que desistirem dos serviços dos libertos com cláu-sula (BAKOS, Margaret Marchiori. RS: escravismo & abolição. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1982, p. 63-77). 40 Muito embora alguns conservadores tenham participado do movimento abolicionista e outros republicanos fos-sem mais receosos a cerca da abolição.41 Anais da Assembléia Legislativa do RS. Sessões dos dias 29 e 30 de novembro de 1888.

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deiras a serem preenchidas, ou seja, cada eleitor votaria em 4 candidatos. Os liberais e conservadores que antes tinham que escolher apenas um candidato do seu partido para votar, agora podiam votar em quatro. A minoria beneficiada acabou sendo a conservadora e os republicanos não elegeram nenhum candidato. É provável que o PRR não estivesse suportando todo o peso de jogar o jogo eleitoral completamente controlado pelos monarquistas. A nova lei foi mais um indício de que o sistema po-lítico monárquico precisava ser derrubado. Não foi coincidência que meses depois, em março de 1889, na fazenda da Reserva, eles passaram a aceitar a via revolucioná-ria, muito embora ela ainda não fosse considerada a principal42.

IV – ALGUMAS NOTAS CONCLUSIVAS

Costuradas lenta e habilmente ao longo da década de 1880 e em parte herda-das de seus pais e parentes estabelecidos na região, as alianças e relações de amizade que os jovens propagandistas estabeleceram com estancieiros e eleitores foi uma exigência para a sua sobrevivência política. Por serem novatos na cena política, mui-tas destas ligações tiveram que ser realizadas com lideranças monarquistas ou recém convertidas ao republicanismo. Tanto estas alianças quanto inúmeras dissidências no interior das facções locais eram tomadas de posição conjunturais, sendo que algumas acabavam tornando-se mais duradouras. Mas toda e qualquer transação, sem impor-tar o partido ou credo em questão, tinha como principais protagonistas elementos pertencentes às elites de cada município, fosse no papel de candidatos, fosse no papel de eleitores43. Elites estas formadas por ricos estancieiros, comerciantes, char-queadores, profissionais liberais e empregados públicos civis e militares distribuídos em suas diferentes facções e muitas vezes vinculados por laços de parentesco.

É importante fazermos tal consideração, pois o quadro construído por Celi Pinto ainda mantém-se com significativa importância historiográfica, visto que sín-teses mais recentes, como a realizada por Ricardo Pacheco, seguem na íntegra tal

42 “Reconhecendo a necessidade de organizar a oposição em qualquer terreno ao futuro terceiro reinado (...) e a necessidade de preparar elementos para, no momento oportuno, garantir o sucesso da revolução, declaramos que temos nomeado nossos amigos, José Gomes Pinheiro Machado, Júlio de Castilhos, Fernando Abbott, Assis Brasil, Ramiro Barcellos e Demétrio Ribeiro para trabalharem para que consiga aqueles fins, empregando livremente os meios que escolherem. Nós juramos não nos deter diante de dificuldade alguma, a não ser o sacrifício inútil de nossos cidadãos. Excluída esta hipótese, só haveremos de parar diante da vitória ou da morte”. PESSOA, Reynaldo Carneiro (Org.). A idéia republicana no Brasil através de documentos. São Paulo: Alfa-ômega, 1973, p. 93.43 Com isto não estamos querendo dizer que as camadas subalternas da sociedade e pequenos e médios estancieiros e comerciantes não tinham participação ativa. Para uma análise mais completa acerca da participação dos mesmos ver VARGAS, Jonas Moreira. Op. Cit., 2010. Em especial o capítulo segundo.

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análise. Para Celi Pinto, o perfil dos propagandistas era o de um grupo de indivíduos muito jovens e com uma instrução educacional “excepcional” para a época em que viviam. Em sua grande maioria, eles pertenciam à “classe média urbana” e não es-tavam envolvidos diretamente nos interesses do grupo dominante da campanha ou das regiões mais pobres do norte da Província. A autora conclui enfatizando que a propaganda republicana foi feita à revelia destes segmentos da sociedade44.

Ora, a maioria destas afirmações está equivocada e ao longo do texto foi pos-sível demonstrá-las. As mesmas são tributárias de um tipo de interpretação bastante em voga nos anos 1970, que vinculava, de forma simplista, a história das idéias a um determinismo de classe e geográfico. Primeiramente, a instrução escolar dos políti-cos monárquicos também era bastante alta. Entre os líderes monarquistas da política provincial, 80% possuíam formação superior. Entre os deputados gerais este índice ultrapassava os 90%, e para os ministros e senadores ele era ainda maior45. Segundo, a relação “juventude = republicanismo” deve ser relativizada, pois ela aconteceu justamente porque as academias estavam tornando-se importantes focos de crítica à monarquia e, obviamente, era um reduto de estudantes. Fora dali, e até mesmo na-quele espaço, existiam jovens monarquistas e republicanos de idade mais avançada. Terceiro, depois de tudo que foi visto aqui não é possível afirmar que os propagan-distas pertencessem a uma “classe média urbana” e sem vínculos com a região da campanha, pois foi exatamente nesta região que o republicanismo cresceu ao ponto de eleger o único deputado do PRR.

A tese de Celi Pinto estava em perfeita sintonia com aqueles autores que bus-caram analisar os partidos monárquicos no Segundo Reinado. Todos estes autores insistiam em afirmar que o Partido Liberal era o representante dos interesses dos estancieiros da campanha46. Nas páginas escritas até aqui, foi possível perceber que a

44 PINTO, Celi Regina Jardim. Contribuição ao Estudo do Partido Republicano Rio-Grandense. Porto Alegre, UFRGS. Dissertação de mestrado. PPG – Ciência Política da UFRGS, 1979. O texto referido é o de PACHECO, Ricardo de Aguiar. Conservadorismo na tradição liberal: movimento republicano (1870-1889). In: PICCOLO, Helga e PADOIN, Maria M. História Geral do Rio Grande do Sul: Império. Porto Alegre: Editora Méritos, 2007, v. 2, p. 139-153. 45 VARGAS, Jonas Moreira. Op. Cit., 2010.46 Como, por exemplo, GUTFREIND, Ieda. Rio Grande do Sul: 1889-1896. A Proclamação da República e a reação liberal através da sua imprensa. Dissertação de mestrado. PPG em História da PUCRS, 1979; ISAIA, Arthur. A imprensa liberal rio-grandense e o regime eleitoral do império: 1878-1889. Dissertação de mestrado. PPG em História da PUCRS, 1988; ALVES, Francisco das Neves. O Discurso político partidário sul-rio-gran-dense sob o prisma da imprensa rio-grandina (1868-1895). Tese de Doutorado. Porto Alegre: PPG em História da PUCRS, 1998; CARNEIRO, Newton Luis Garcia. A identidade inacabada: o regionalismo políticos no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2000; TARGA, Luiz R. (org.). Gaúchos e Paulistas: dez escritos de história regional comparada. Porto Alegre: Fundação de Economia e Estatística, 1996, p. 81-92; KLIEMANN, Luíza H. Schmitz. RS: Terra & Poder. História da Questão Agrária. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1986; TRIN-DADE, Helgio & NOLL, Maria Izabel. Rio Grande da América do Sul: Partidos e eleições (1823-1990). Porto Alegre: EDUFRGS/Sulina, 1991; PESAVENTO, Sandra. História do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1997, 8.a edição; FONSECA, Pedro Dutra. Economia e conflitos políticos na República Velha. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1983; FÉLIX, Loiva Otero. Coronelismo, Borgismo e cooptação política. Porto Ale-gre: Mercado Aberto, 1987; FRANCO, Sérgio da Costa. Julio de Castilhos e sua época. Porto Alegre: EDUFRGS, 1996.

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campanha estava repleta de conservadores. Sem estes, Assis Brasil não teria sido eleito. Na realidade, na década de 1880, os conservadores venceram muitas eleições para de-putado geral e provincial no 3º círculo – o coração da campanha47 Tal esquematismo é tributário do antigo mito do gaúcho amante da liberdade, farroupilha quase que por natureza, seguidor de Silveira Martins, guerreiro e, que logicamente, não teria outra posição política a não ser votar nos liberais. É interessante que esta mesma raiz farrapa também serviu para Assis Brasil naturalizar o republicanismo entre os rio-granden-ses48. A memória da Guerra acabou sendo disputada por liberais e republicanos. O preço de tais interpretações foi pago pelos legalistas e conservadores que caíram num secular ostracismo historiográfico, pois nenhuma pesquisa buscou investigar de forma profunda os saquaremas da província. Entretanto, não havia nada que impedisse um estancieiro de ser conservador, nem mesmo em nível discursivo49.

Este esquematismo teve forte influência sobre a vinculação que se fez entre o movimento abolicionista e a participação do PRR, por exemplo. Margareth Bakos afirmou que se para os castilhistas, que se baseavam ampla e profundamente nos fundamentos de Comte, a posição tomada era a de abolição imediata e sem indeniza-ção, a posição de Assis Brasil e Ramiro Barcellos na Assembléia mostrava um outro caminho a ser seguido. Sua atuação se deu no sentido de propor emendas e projetos que onerassem a posse de escravos e nesse sentido, dificultassem a continuação da instituição escravocrata. Bakos argumentou que as posições de Assis e Ramiro foram conseqüência destes serem grandes proprietários de terra, enquanto os “represen-tantes padrão do partido republicano provincial”, eram pertencentes em sua maioria ao “setor médio urbano”50. Ora, cremos que a posição de Assis Brasil deve ser com-preendida na medida em que ele sabia que um projeto mais radical evidentemente seria vetado na Assembléia, assim como outras propostas dele já haviam sido. Além disso, ele não podia desagradar seu eleitorado da região da campanha, onde a ausên-cia de mão-de-obra já vinha sendo sentida há anos51. Sua defesa a favor da abolição se deu, ainda que de forma mais gradual, onerando a posse de escravos, ou seja, da forma que era possível dentro da Assembléia.

47 Mesmo antes disso, Severino Ribeiro acumulou mandatos para deputado geral no círculo. Durante a época em que os liberais estiveram no poder (1878-1885), Severino venceu-os por duas vezes, exatamente na região em que se diz que os liberais eram imbatíveis.48 Ver, por exemplo, GRIJó, Luiz Alberto. Articuladores do Partido Republicano se apropriam da “Revolução”. Artigo apre-sentado como Comunicação no Vi Encontro Estadual de História da ANPUH/RS. Passo Fundo, 2002. dat.49 Para uma análise mais aprofundada do perfil sócio-econômico dos conservadores no Rio Grande do Sul, ver VARGAS, Jonas Moreira. Op. Cit., 2010.50 BAKOS, Margareth. Op. Cit., p. 63-77.51 FARINATTI, Luis Augusto. Confins Meridionais: Famílias de Elite e Sociedade Agrária na Fronteira Sul do Brasil (1825-1865). Tese de Doutorado. Rio de Janeiro: PPG em História Social do IFCS-UFRJ, 2007.

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Portanto, os partidos monárquicos não eram partidos classistas e nem se pre-tendiam como tal. Todos os setores sócio-econômicos estavam representados nas três agremiações políticas da província, com possíveis variações que respeitavam conjunturas específicas e peculiaridades regionais. Existiam importantes lideranças liberais entre os setores médios urbanos, estancieiros republicanos sem educação superior e conservadores mandando e desmandando na região da campanha. O descaso para com a composição social dos membros dos partidos monárquicos é conseqüência de uma história política somente preocupada com as idéias defen-didas pelos partidos monárquicos, construídas a partir da leitura dos editoriais de imprensa, dos anais da Assembléia Legislativa e dos programas partidários52. Mas todas estas pesquisas possuem seus méritos e, a partir delas, podemos afirmar que a principal diferença entre republicanos e monarquistas estava no terreno ideológico e não no sócio-econômico e geográfico. Em alguns momentos podia haver uma con-centração de votos num partido em uma determinada região, mas estes fenômenos conjunturais não podem ser essencializados e a busca da sua contrapartida enriquece ainda mais o panorama político do oitocentos. Novas pesquisas devem ser realizadas para deixar mais nítidas as aproximações e os afastamentos entre republicanos e monarquistas, levando em conta suas incoerências e sem mitificar nenhum dos seus líderes. A partir do que foi exposto aqui, as alianças e conflitos ocorridos entre a Pro-clamação da República e a Revolução Federalista, por exemplo, podem ser revistos e contados sob outro ponto de vista.

52 Como as pesquisas de PICCOLO, Helga. A Política Rio-Grandense no ii império (1868-1882). Porto Alegre: UFRGS, 1974; CARNEIRO, Newton. Op cit.

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FONTES

Anais da Assembléia Legislativa Provincial. Anos de 1885, 1886, 1887 e 1888. Biblio-teca do Solar dos Câmara – ALRS.Jornal A Federação. Edição de 19.01.1885. Museu de Comunicação Social Hipólito José da Costa.

Inventário de Francisco de Assis Brasil. Processo 247, maço 12, ano 1872, São Ga-briel, Cartório de órfãos e ausentes (APERS).Livros de Registros Diversos, Primeiro Tabelionato de Alegrete, Fundo 2, Estante 24, Livros 8 ao 13, 1881-1890 (APERS)

BIBLIOGRAFIA

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Poder e PArentesCo nos Confins dA AMériCA PortuguesA: uMA Análise sobre A rede de CoMPAdrios

do governAdor veigA CAbrAl dA CâMArA

(Porto Alegre, 1774-1798)

Márcio Munhoz Blanco¹

Resumo: Este trabalho estuda a inserção social do governador Sebastião Xavier da Veiga Ca-bral da Câmara na capitania do Rio Grande de São Pedro. Para tal, observa os compadrios estabelecidos na freguesia Nossa Senhora Madre de Deus de Porto Alegre, o que ocorreu entre os anos de 1774 e 1798. O principal corpus documental são os registros de batismo nos quais esse administrador apa-rece apadrinhando infantes. Através do método onomástico procurou-se identificar o lócus ocupado naquela sociedade pelos compadres do governador, a fim de entender quais foram as estratégias que nortearam a criação daqueles vínculos. Discute-se a importância do parentesco e das relações inerentes a ele para a formação de redes sociais na Época Moderna.

Palavras-chave: redes sociais – parentesco – compadrio – poder – Antigo Regime

Governar nunca foi tarefa simples. O poder não advém meramente de uma posição de mando, uma lei ou do esforço de um espírito elevado; ele precisa ser conquistado, ou ao menos negociado. Poder

é movimento. As relações de poder são uma via de mão dupla, onde para cada ação existirá uma reação. Mesmo nos tempos do Antigo Regime, quando homens singra-vam os oceanos em nome de Sua Majestade Fidelíssima para administrar os povos do Império Ultramarino português, era necessário legitimar-se perante aquelas po-pulações, fossem elas autóctones ou reinóis migrantes. Alguns obtiveram êxito, ou-tros quebraram por não quererem se dobrar. Assim aconteceu ao longo dos séculos, do Rio de Janeiro à índia, do Maranhão a Sacramento.

Esta pesquisa se dedica a um desses governantes do período colonial: Sebas-tião Xavier da Veiga Cabral da Câmara. Este militar fidalgo administrou a capitania

¹ Graduado em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). E-mail: [email protected]. Telefone: (51) 9307-9814.

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do Rio Grande de São Pedro, no extremo-Sul da América lusitana, entre 1780 e 1801. Foi o governante do século XVIII que permaneceu mais tempo no cargo. Datam de seu período de gestão o princípio da produção de charque, produto que dinamizou a economia local, tornando-se o grande elemento de exportação rio-grandense no século seguinte. Incentivou o cultivo da cochonilha, criação de ovelhas e plantio de trigo. Foi Sebastião, ainda, o comissário português responsável pela demarcação do Tratado de Santo Ildefonso, assinado em 1777, mas cujos trabalhos iniciaram-se ape-nas alguns anos mais tarde. Esse acordo firmado entre Portugal e Espanha redefinia os limites meridionais dos dois impérios, devolvendo a Colônia de Sacramento ao domínio castelhano. Embora seu governo tenha sido um período de paz, Sebastião dedicou seus últimos dias à retomada das Missões, em 1801, empreitada na qual faleceu sem poder ver o resultado.

Não há nenhum estudo específico sobre sua trajetória, figurando sempre como coadjuvante em obras sobre o Rio Grande do Sul colonial. Normalmente são ressaltados, em poucas páginas, os aspectos político-administrativos de sua gestão ou seus feitos militares, em obras que se dedicam à formação ou afirmação da iden-tidade sul-riograndense. Tratam-se de olhares similares², que retratam um homem que, em certo sentido, esteve à frente do seu tempo.

Neste estudo, entretanto, busca-se um homem de seu tempo, um homem de Antigo Regime. A partir da proposta de Giovanni Levi, procuro ver um sujeito histórico dotado de uma racionalidade específica do contexto em que vivia, “porém não em termos de uma realidade cultural inconsciente destinada a sufocá-lo progres-sivamente. Esta racionalidade pode ser mais bem descrita se admitirmos que ela [...] fosse também empregada na obra de transformação e utilização do mundo social [...].”³ Observo um indivíduo que, apesar de possuir visibilidade naquela sociedade, precisou se adaptar e inserir nos modos de ser e viver das pessoas da localidade que fora governar, o que por vezes esteve de acordo com as práticas as quais era acostu-mado e em outras se mostrou conflituosa. Sobre essa inserção, os laços mais segura-

² À exceção de Tiago Luís Gil e Adriano Comissoli, que mostraram esse governador em outro viés, lançando algu-mas das bases para minha análise. Nessas duas pesquisas Veiga Cabral da Câmara figura como um indivíduo ciente da conjuntura em que vivia e que agia conforme as exigências do momento. Teria uma postura política coerente com a rede administrativa da qual faria parte e tato suficiente para um bom relacionamento com homens poderosos do Rio Grande de São Pedro. Ver: GIL, Tiago Luís. Infiéis transgressores: os contrabandistas da fronteira (1760-1810). (Dissertação de mestrado)Universidade Federal do Rio de Janeiro: Rio de Janeiro, 2002; COMISSOLI, Adriano. Os “homens bons” e a Câmara de Porto Alegre (1767-1808). (Dissertação de mestrado) Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2006.³ LEVI, Giovanni. A herança imaterial. Trajetória de um exorcista no Piemonte do século XVII. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2001, p. 45.

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mente observáveis são os estabelecidos através do compadrio, importante mecanis-mo de sociabilidade no Antigo Regime, dado a importância que as relações de cunho familiar possuíam naquele período. Portanto, o Sebastião Xavier da Veiga Cabral da Câmara que procuro é, parafraseando Jacques Revel, o homem ao “rés-do-chão”4.

O texto que o leitor tem em mãos originou-se de uma pesquisa modesta e baseada em dados fragmentados, visando acender algumas fagulhas para iluminar a historiografia sobre o Rio Grande colonial, introduzindo um número de variáveis e destacando algumas ambigüidades, conflitos e contradições existentes na época. Fei-tas essas considerações, façamos um esforço de voltar nossas mentes para o passado a fim de olhar mais detidamente, a partir de agora, alguns fragmentos das ações de Sebastião no Rio Grande de São Pedro.

O HOMEM QUE VEM D’ALÉM-MAR

Sebastião nasceu no povoado de Santa Maria do Soutello, pertencente à pro-víncia de Chaves, ao norte de Portugal. Viveu sob o signo de uma distinta família daquele Reino, cresceu em meio a alguns homens que se dedicaram ao mando nos territórios d’El-Rey. Trata-se de uma família cuja trajetória se mistura com a história da administração do Império Ultramarino português, e revela mecanismos de ascen-são, distinção social e poder.

Essa trajetória familiar começa com Sebastião da Veiga Cabral, o velho. Foi mestre de campo general e governador de armas de Trás-os-Montes. Descendente da “nação hebréia” por via paterna, conseguiu o hábito da ordem de Cristo em 1667, graças à dispensa papal. Tornou-se fidalgo da Casa Real e comendador das Comendas de Beilão, Robeal e Santa Maria de Bragança5. Trata-se de uma forma de reconhecimento que certamente beneficiou os que dele descendiam. Teve dois filhos, Francisco, filho legítimo, e Sebastião, filho natural, isto é, fruto de uma relação extraconjugal. O primeiro é o pai de nosso personagem e o segundo, por possuir o mesmo nome, será chamado aqui como Sebastião, o tio, para fins de melhor enten-dimento.

Pois é este Sebastião, o tio, o primeiro a levar o nome da família para o Novo Mundo. Nascido em Bragança, começou a carreira como um simples soldado e foi

4 REVEL, Jacques. A história ao “rés-do-chão”. In: LEVI, Giovanni, op. cit. p. 7- 37.5 SOUZA, Laura de Mello e. O sol e a sombra. Política e administração na América portuguesa do século XVIII. São Paulo: Companhia das letras, 2006, p. 261.

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galgando postos na hierarquia militar devido a seus feitos. Como retribuição aos seus serviços foi nomeado governador da Colônia de Sacramento, ponto extremo meri-dional do Império lusitano. Ocupou o posto entre os anos de 1699 e 1705. Procurou estratagemas para se manter no cargo, supostamente interessado no gado bovino e negócios de couro, muito lucrativos na época. Sua gestão foi tida como competente. Durante o tempo em que esteve no governo batizou diversos índios. Após voltar ao Reino pleiteou, sem êxito, os cargos de governador de Minas Gerais e São Paulo. Em 1720 encontrava-se novamente na América portuguesa, mais especificamente em Vila Rica, onde participou do levante conhecido como Revolta de Felipe dos Santos. Possuía muito interesse nas Minas Gerais, supostamente pela possibilidade de acu-mulação de riquezas, assim como alguns governantes daquela capitania obtiveram6.

O outro filho de Sebastião, o velho. Sobre ele possuo poucas informações: sei que exerceu o mesmo cargo de seu pai e foi governador da província de Chaves; teve cinco filhos varões. Em 17427, veio ao mundo Sebastião, nosso personagem, que muito possivelmente cresceu vendo o pai exercer seus cargos administrativos, e em meio às memórias dos feitos do avô e histórias do tio sobre o Novo Mundo. Não é difícil supor que o pequeno respirava o poder e status que sua família gozava, o que provavelmente lhe serviu como escola para a maneira de proceder quando chegasse a sua vez de cruzar o mar.

O certo é que Sebastião tornou-se engenheiro geógrafo e em 1767, com 25 anos de idade, rumou para a América portuguesa. Na ocasião exercia a patente de tenente-coronel do Regimento de Infantaria de Bragança, estabelecendo-se no Rio de Janeiro. Em 1774 seguiu para a capitania do Rio Grande de São Pedro8 para, sob o comando do general João Henrique Böhm, combater as tropas castelhanas que há uma década ocupavam a metade sul daquela capitania9.

COISAS SAGRADAS E PROFANAS: FORMAS DE SOCIABILIDADE (PAUSA)

Façamos uma pequena pausa em nossa história, pois para entender a inserção social de Veiga Cabral da Câmara no Rio Grande de São Pedro é mister entender

6 SOUZA, op. cit. p. 253- 283.7 BARRETO, Abeillard. Bibliografia sul-riograndense: a contribuição portuguesa e estrangeira para o conhecimento e a integração do Rio Grande do Sul. Rio de Janeiro: Conselho Federal de Cultura, 1973-1976, p. 254-255.8 BENTO, Cláudio Moreira. A guerra de restauração. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército editora, 1996, p. 261- 262. 9 Em 1763, tropas vindas de Buenos Aires comandadas por Dom Pedro de Cevallos invadiram a Vila de Rio Grande afugentando a população para a margem norte do rio Jacuí e tomando posse da metade sul da capitania. Durante treze anos a região foi palco de batalhas entre portugueses e espanhóis.

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o cotidiano das relações sociais durante o Antigo Regime. As sociabilidades desse período calcavam-se na reciprocidade entre as partes, onde para cada benefício ma-terial ou simbólico feito a alguém haveria a obrigação de retribuir. Essa forma de relacionamento, que perpassava todos os segmentos da sociedade chegando até o rei, encontrava na família um suporte. Por família trato aqui não apenas o grupo consangüíneo, de filiação e que compartilha o mesmo sobrenome, mas também toda a parentela, isto é, o conjunto de laços de parentesco fundados na consangüinidade, sobrenome, matrimônio ou laço espiritual (tal como o compadrio)10.

A família atuava como base para as demais formas de sociabilidade, pois constituía-se no primeiro lócus onde um indivíduo encontra o apoio e laços de que necessitava. Era no seio da família que se realizavam os primeiros fenômenos de mobilidade em uma sociedade de ordens. As estratégias pessoais se enquadravam na convicção de que as decisões tomadas reverberariam nos demais membros do gru-po. Essa constatação tente a reforçar a solidariedade do coletivo, sem, no entanto, ignorar toda gama de conflitos e tensões passíveis de ocorrer entre seus membros11. O conjunto de relações de um individuo constitui o que se denomina redes sociais.

Michel Bertrand define rede social como uma “estructura construída por la existencia de lazos o de relaciones entre diversos individuos [...] sería también un sistema de intercambios en el seno del cual los vínculos o las relaciones permiten la realización de la circulación de bienes e de servicios.” Numa rede, nem todas as relações entre os atores sociais se manifestam da mesma maneira, existem relações efetivas, que se traduzem em trocas constituindo um vínculo de fato; e relações po-tenciais, que podem vir a ser mobilizadas - dependendo das circunstâncias - dando lugar a um intercâmbio¹².

Os vínculos entre os membros de uma rede se enquadram na economia do dom13. No entanto, a tríade de obrigações (dar, receber e restituir) não significa igualdade entre as partes, isso dependeria da posição social de cada indivíduo. Havia a tendên-cia de relações simétricas entre sujeitos pertencentes à mesma camada social. Já entre indivíduos de camadas distintas a tendência era haver uma relação de desigualdade, onde um pólo deve mais; a esse tipo de laço chamamos de clientelar. Insisto que re-ciprocidade não pode ser tomada como igualdade. Nesse caso, o dom estabelece um elo que para o pólo dominante (credor), se traduz na disponibilidade de quem dá um

10 BERTRAND, Michel. De la família a la red de sociabilidad. In: Revista Mexicana de Sociología. Vol. 61, n°. 2., Abr. - Jun., 1999, p.117- 118.11 Idem, p. 134.¹² Idem, p. 119- 120.¹³ Ver: XAVIER, Ângela Barreto; HESPANHA, António Manuel. As redes clientelares. In: MATTOSO, José (dir). História de Portugal: o Antigo Regime. Lisboa: editorial Estampa, s/d. p. 381-393

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benefício e não exige uma contrapartida expressa e/ou imediata, e, do lado do pólo do dominado (devedor), está associada às idéias de “respeito”, “serviço”, “atenção”, significando a disponibilidade para prestar serviços futuros e incertos14.

Estes e outros hábitos e formas de sociabilidade se estenderam aos quatro cantos do Império ultramarino português. A sociedade formada no Rio Grande de São Pedro ao longo do século XVIII viveu sob os costumes e valores da desse mun-do, tanto nos planos material quanto simbólico, mundano e sagrado. Se no Reino a religião oficial era o catolicismo, a sombra da cruz se projetou para as colônias no ultramar. Assim, são interessantes para a compreensão de meu objeto de estudo algumas considerações acerca da doutrina católica e significados do batismo.

De acordo com o dogma católico, quando Adão provou o fruto proibido perpassou seu pecado a todos os seus descendentes. Dessa maneira, o ser humano nasceria impuro, e todos os aspectos desse nascimento carnal estariam vinculados ao pecado, imperfeição, vergonha e introspecção. A concepção de uma criança restrin-ge-se à cópula do casal, realizada em local privado e longe de olhares. O parto é um momento de dor, onde a mãe perde muito sangue e só há o testemunho do médico ou parteira. O pós-parto é um período delicado, pois ainda há o risco de morte tanto da mãe quanto do recém-nascido. Devido a essas máculas, seria necessário um re-nascimento, não mais no plano material, mas espiritual. Essa é a função do batismo, o primeiro dos sete sacramentos da Igreja Católica. A criança batizada renasceria no mundo espiritual, purificando-se do pecado original através da imersão em água benta e demais atos do ritual. Se o nascimento carnal era feito quase às escondidas e marcado por dor e lágrimas, o nascimento espiritual era um momento de alegria realizado numa cerimônia pública. O ato do batismo é a representação sacramental tanto da paixão de Cristo (pois haveria a morte no plano carnal e renascimento espi-ritual) quanto da sua natureza ao mesmo tempo humana e divina15.

Para o renascer espiritual seria necessário uma outra filiação, e essa é a função dos padrinhos. No rito de batismo são eles que respondem as perguntas em nome do infante (ainda incapaz para tal) dando-lhe fiança aos olhos de Deus. Se padrinhos tornavam-se pais espirituais do rebento, por conseqüência tornavam-se irmãos es-pirituais dos pais biológicos. Padrinhos estabelecem laços imateriais, portanto, tanto com seus afilhados quanto com seus compadres16.

14 XAVIER, Ângela Barreto, HESPANHA, António Manuel. op. cit. p. 382.15 HAMEISTER, Martha Daisson. Para dar calor á nova povoação: estudo sobre estratégias sociais e familiares a partir de regis-tros batismais da vila do Rio Grande (1738-1763). (Tese de doutorado). Universidade Federal do Rio de Janeiro: Rio de Janeiro, 2006, p.185-214.16 Idem.

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Mas o batismo e os vínculos intrínsecos a ele, de acordo com Stephen Gude-man, possuem duas faces: uma voltada para a esfera do sagrado e outra voltada para a esfera das relações sociais17. “O pecado original purgado das almas dos batizandos os insere, ao mesmo tempo, no rebanho divino e no mundo social. Os pais dão à criança o ser e os padrinhos dão o ser social no seio da cristandade.”18 Percebe-se, então, o quão importante era para aquela sociedade formada sob o signo da Igreja Católica o ato do batismo e os vínculos estabelecidos por ele. Ficaria a cargo dos pa-drinhos cuidar da educação, acompanhamento religioso, conselhos, encaminhamen-to para profissão e matrimônio de seus afilhados, que, em contrapartida, deveriam apoio, respeito e obediência. O vínculo estabelecido entre os compadres (chamado de compadrio) deveria ser de solidariedade mútua.

Mas se aos olhos de Deus havia igualdade entre as partes, aos olhos dos ho-mens os vínculos originados do batismo se revestiam da mesma hierarquia e dife-renças existentes naquela sociedade. Privilegio em minha análise o caráter mundano do compadrio, por considerá-lo o mais relevante para o entendimento das questões propostas. Parto do pressuposto que ao escolher os padrinhos para seus filhos, os indivíduos o faziam de acordo com seus interesses de aproximação social, o mesmo valendo para o aceite do compadrio.

O elo espiritual criado com o batismo projeta-se para a o plano material, originando a cadeia de préstimos e retribuições revestidas das mesmas hierarquias existentes naquela sociedade. Essa relação de afinidade, chamada de parentesco fictício, segundo Giovanni Levi, tem tanto a função de reforçar os vínculos já existentes entre as partes quanto de criar outros novos. Estes vínculos podem se manifestar de forma horizontal (ou simétrica) se estabelecido entre amigos e parentes do mes-mo status, ou vertical (ou assimétrico) se evolvendo pessoas de categorias distin-tas. Membros das elites tenderiam a buscar o compadrio entre seus pares, servindo como estratégia de proteção e demarcação de seu prestígio, bem como a exclusão de indivíduos de categoria considerada inferior. Essas alianças poderiam mobilizar cré-ditos e contatos. Por seu turno, pessoas de estratos sociais mais baixos tenderiam a procurar estabelecer compadrios verticais, isto é, com pessoas de uma categoria mais alta, formando um vínculo patrão-cliente. Esse tipo de ligação, apesar dos deveres mencionados acima, pode ser encarado como uma estratégia de ascensão social por parte do pólo inferior19. Nota-se que, embora os compadres fossem iguais aos olhos

17 GUDEMAN, Stephen. Spiritual relationship and selecting godparent. In: Man, new series. Vol. 10 (2), Jun. 1975. Royal Anthropological Institute of Great Britain and Ireland, 1975,p 222.18 HAMEISTER, Martha daisson, op. cit., p. 208.19 LEVI, Giovanni. Family and kin- a few thoughts. In: Journal of family history. Vol. 15, n° 4, 1990. p. 571- 572

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de Deus, estavam à mercê do mesmo tipo de diferenças e desigualdades criadas pelos homens.

Feitas essas digressões, voltemos agora à história de Sebastião ao sul dos tró-picos.

ENTRE A CORTE E A ALDEIA

Após o traslado para o Rio Grande, escrevia o cirurgião-mor do 1° Regimen-to de Infantaria do Rio de Janeiro:

Amenizava nosso afastamento do Rio, virmos na companhia do Sr, Sebastião Xavier da Veiga Cabral da Câmara, comandante das tropas do Sul, pelo seu gênio amável, pelas suas virtudes admirado e pelo seu ilustre nome respeitado20.

Nessa correspondência se evidencia o prestígio que Sebastião gozava entre seus pares, características essas que parecem ter sido reconhecidas por outras pes-soas. Logo após a sua chegada às paragens sulinas, o casal Tomás José da Costa e Souza e Ana Joaquina da Costa e Souza, convidou-o para apadrinhar seu pequeno rebento. Sebastião aceitou o convite para conduzir o menino (que recebeu o nome do padrinho) à pia batismal²¹. Não possuo registros de quem seja esse referido casal, mas com certeza queriam que seu filho fosse bem representado aos olhos de Deus e da sociedade, pois para madrinha convidaram dona Clara Maria de Oliveira, viúva do ilustre Francisco Pinto Bandeira e mãe do prestigiado Rafael.

Essa simples ação denota que Veiga Cabral da Câmara, embora não tenha contraído matrimônio nem deixado filhos, tentou estabelecer imediatamente laços com a população local, procurando formar sua rede de relações. Afinal de contas, deveria ter consciência de que apenas o fato de ser fidalgo não era garantia suficiente para boas sociabilidades na América meridional. Assim como aquelas pessoas da elite precisavam constantemente reafirmar seus espaços através de ações, o mesmo servia para ele. Era preciso provar a fidalguia, conquistar um lugar. Era preciso, de al-guma maneira, tornar-se parte daquela elite. E foi isso que, ao que parece, Sebastião

20 BENTO, op. cit., p. 261.Grifo meu.21 1° livro de batismos de Porto Alegre, fl. 9, 07.08.1774. In: NEUMANN, Eduardo; KÜHN, Fábio (coord.). Projeto resgate de fontes paroquiais. Porto Alegre- Viamão (século XVIII).

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começou a construir desde seus primeiros momentos no Rio Grande. Certamente era importante para um forasteiro, mesmo que detentor de boa fama e títulos sociais, ser reconhecido como alguém que fez par à pia batismal com a referida dona Clara Maria.

Esse patrimônio imaterial, cuja construção iniciou-se logo após a chegada ao Continente do Rio Grande, se efetivou no campo de batalha. Segundo Bento, Sebastião atuou com bravura na reconquista dos territórios perdidos aos espanhóis, tendo tomado parte ativa no assalto à Vila de Rio Grande, batalha que selou a vitória portuguesa em 1776. Devido a esse feito foi promovido a brigadeiro²². Certamente um ato dessa importância era razão de prestígio frente aos companheiros de caserna. Possivelmente essa boa fama se estendia à população em geral, devido aos ares de guerra que aquela gente se acostumara a respirar. Vemos então, que Sebastião desde cedo procurou conquistar seu lugar naquela sociedade, valendo-se de sua fidalguia e ações militares como catalisadores para bons relacionamentos.

Quatro anos mais tarde Veiga Cabral da Câmara foi nomeado governador da capitania do Rio Grande de São Pedro²³. O número de batismos realizados por ele esteve intimamente ligado à sua práxis administrativa, que pode ser dividida em duas fases: antes e depois da demarcação do Tratado de Santo Ildefonso, que embora tenha sido assinado em 1777 foi efetivado entre 1784 e 1792.

Quadro 1Compadrios e fases da administração de Veiga Cabral da Câmara, 1774-1801

Fontes: 1° e 2° livros de batismos de Porto Alegre. In: Projeto resgate de fontes paroquiais (2009)

Após ter sido nomeado governador em 1780 o número de batismos aumen-tou significativamente, como evidencia o Quadro 1. Sebastião ficou oito anos afas-

22 BENTO, Cláudio Moreira. Canguçu, reencontro com a história. Um exemplo de reconstrução da memória comunitária. Porto Alegre: Instituto estadual do livro, 1983, p. 40.²³ Projeto Resgate- Arquivo Histórico Ultramarino- Capitania do Rio Grande do Sul. Cx. 2, doc. 206.

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tado da governança, situação em que foi substituído pelos interinos Rafael Pinto Bandeira e Joaquim José Ribeiro da Costa. Se levarmos em conta esse afastamento, podemos ter uma boa idéia acerca da relação entre compadrio e exercício do poder por parte do governador fidalgo. Analisando os registros batismais de Porto Alegre, detectei que Sebastião batizou 21 crianças e um adulto, tornando-se compadre de 20 casais24. Trata-se de um número bastante expressivo se comparado ao seu antecessor José Marcelino de Figueiredo –que batizou seis crianças-25 e um pouco inferior aos 28 batismos efetuados pelo Provedor da Fazenda Real Inácio Osório Vieira26. Se-gundo Kühn, quando governou o Rio Grande José Marcelino procurou estabelecer compadrio com oficiais militares e burocratas, em detrimento de membros da elite mercantil e agrária27. Veiga Cabral da Câmara, no entanto, adotou outras estratégias.

Observando o Quadro 2, evidencia-se que Sebastião Xavier da Veiga Cabral da Câmara, durante a primeira fase de seu governo, optou em estabelecer compadrio com companheiros de armas. Desses compadres nenhum ocupou cargos na admi-nistração pública ou ofícios no Senado da Câmara. Embora todos possuíssem pa-tente inferior a de Sebastião, tomo os laços estabelecidos como de cunho horizontal, confirmando a busca de reconhecimento e prestígio junto a militares. Alguns nomes de visibilidade naquela sociedade figuraram junto ao de Sebastião nas cerimônias de batismo, mostrando como esse governante procurou, num primeiro momento, cercar-se de pessoas com status. Trata-se, portanto, do estabelecimento de vínculos entre seus pares.

24 O governador batizou Sebastião e Inácio, ambos filhos do casal Francisco Rodrigues da Silva e Angélica de Jesus. 2° livro de batismos de Porto Alegre, fl. 8v, 21.12.1792; fl. 84v, 21.04.1797. In: NEUMANN, Eduardo; KÜHN, Fábio (coord.). Projeto resgate de fontes paroquiais. Porto Alegre- Viamão (século XVIII).25 KÜHN, Fábio. Os homens do governador: relações de parentesco e redes sociais no Continente do Rio Grande ((1769- 1780). In: GUAZZELLI, César Augusto Barcellos; FLORES, Mariana Flores da Cunha Thompson; AVI-LA, Arthur Lima de. Fronteiras americanas: teoria e práticas de pesquisa. Porto Alegre: Suliani letra e vida, 2009, p.34- 48.26 NEUMANN, Eduardo; KÜHN, Fábio (coord.). Projeto resgate de fontes paroquiais. Porto Alegre- Viamão (século XVIII).27 KÜHN, Fábio. op. cit. p. 45.

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Quadro 2Relações de compadrio do governador Veiga Cabral da Câmara, 1780- 1784

Fontes: 1° livro de batismos de Porto Alegre. In: Projeto resgate de fontes paroquiais (2009)

A terceira criança que Veiga Cabral da Câmara batizou foi a pequena Clara, filha de Felisberto Pinto Bandeira e sua primeira esposa, dona Ana Clara do Espí-rito Santo29. Se a ligação com essa poderosa família da capitania já havia dado seus primeiros passos quando Sebastião e dona Clara Maria de Oliveira batizaram o filho do casal Costa e Souza, agora ela se tornava mais sólida. Novamente dona Clara Maria apadrinhou uma criança ao lado do governador fidalgo, no entanto quem a representou na cerimônia foi ninguém menos que seu primogênito Rafael. Esse vínculo estabelecido com Felisberto pode ser mais significativo do que parece. Os Pinto Bandeira não eram apenas uma linhagem descendente dos primeiros conquista-dores do Rio Grande e uma das famílias mais ricas e prestigiadas daquele lugar, mas também o único grupo responsável pelo contrabando de couros e gados naquela fronteira. Felisberto era um dos líderes “menores” do bando liderado por seu irmão Rafael30, e utilizava sua chefia militar como um facilitador para os negócios ilícitos que conduzia.

Penso o compadrio entre Felisberto Pinto Bandeira e Sebastião Xavier da Vei-ga Cabral da Câmara como um indício que corrobora a afirmação de Gil de que Ra-

28 GIL, Tiago Luís. Infiéis transgressores: os contrabandistas da fronteira (1760-1810). (Dissertação de mestrado)Universida-de Federal do Rio de Janeiro: Rio de Janeiro, p. 140.29 1° livro de batismos de Porto Alegre, fl. 57v, 16.07.1780. In: NEUMANN, Eduardo; KÜHN, Fábio (coord.). Projeto resgate de fontes paroquiais. Porto Alegre- Viamão (século XVIII).30 GIL, Tiago Luis, op. Cit., p. 152.

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fael Pinto Bandeira e os seus teriam nesse governante um aliado. Assim, a tentativa de Sebastião em embargar uma investigação contra os negócios escusos de Rafael no ano de 1784, torna-se mais compreensível. O vínculo de compadrio entre Felisberto e o governador selou a aliança entre uma das famílias mais poderosas do Rio Grande e um dos governantes mais prestigiados do período colonial. Logo, trata-se de um laço de cunho horizontal, onde as nobrezas do Rio Grande e de Portugal se sauda-ram. Isso não significa, necessariamente, que Veiga Cabral da Câmara tivesse alguma participação efetiva no contrabando, mas certamente a amizade com a referida famí-lia foi um dos principais passos para fazer-se elite de fato nas paragens meridionais.

Outro vínculo importante foi com Patrício José Correia da Câmara e sua esposa dona Joaquina Leocádia. É bem possível que Patrício e Sebastião tenham se conhecido nas batalhas de reconquista dos territórios rio-grandenses que estavam sob o jugo dos castelhanos até 1776. Naquela ocasião Patrício ainda ocupava a pa-tente de sargento-mor e não estava bem articulado nos arranjos locais de poder.31 Foi esse mesmo Patrício que representou, através de procuração em outubro de 1780, o governador na cerimônia de batismo do filho do tenente de Dragões Francisco Barreto Pereira Pinto e sua mulher Eulália Joaquina de Oliveira.32 Trata-se de uma demonstração do bom relacionamento entre Correia da Câmara e o governador. Em março do ano seguinte, a recém-nascida Rita (primeira filha de Joaquina e Patrício) receberia os santos óleos de Sebastião Xavier da Veiga Cabral da Câmara. Duas se-manas após essa cerimônia, Patrício Câmara ingressava na Irmandade do Santíssimo Sacramento, ordem religiosa local da qual fazia parte seu mais recente compadre33. Não tenho como precisar se a entrada de Patrício na confraria e o compadrio com o governador foram mera coincidência, mas é bem possível que o tenente-coronel tenha sido indicado por seu compadre fidalgo. Se Patrício era à época das escaramu-ças contra os espanhóis alguém ainda sem arranjos locais de poder, em poucos anos essa situação se modificou: galgou diversos postos na hierarquia militar, passando de sargento-mor a tenente-coronel, era compadre do ilustre governador da capitania e ingressara em uma ordem religiosa, denotando seu reconhecimento como perten-cente à elite local.

31 HAMEISTER, Martha Daisson; GIL, Tiago Luís. Fazer-se elite no extremo-Sul do Estado do Brasil: uma obra em três movimentos. Continente do Rio Grande de São Pedro (século XVIII). In: FRAGOSO, João; ALMEIDA, Carla Maria Carvalho de; SAMPAIO, Antônio Carlos Jucá de. Conquistadores e negociantes: histórias de elites no Antigo Regime nos trópicos. América lusa, séculos XVI a XVIII. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2007, p. 292.32 1° livro de batismos de Porto Alegre, fl. 60, 14.10.1780. In: NEUMANN, Eduardo; KÜHN, Fábio (coord.). Pro-jeto resgate de fontes paroquiais. Porto Alegre- Viamão (século XVIII).³³ AHCMPA. Livro de entrada de irmãos da Irmandade do Santíssimo Sacramento de Porto Alegre, 1774- 1798, fl. 1- 3v, 10v.

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Ainda em 1781, Sebastião batizou o filho do tenente João Carneiro da Fon-toura e sua esposa Josefa Bernardina34. Na cerimônia a madrinha não pode compa-recer e foi representada pelo Provedor da Fazenda Inácio Osório Vieira. Esta era a primeira vez que Osório e Veiga Cabral da Câmara estariam lado a lado na pia batismal. Em 1792 ambos apadrinhariam (de fato, não apenas como representante de outra pessoa) o filho de Francisco Rodrigues da Silva e Teresa Angélica de Jesus35, que recebera o nome do governador. Cinco anos mais tarde Sebastião batizaria outro filho desse mesmo casal, mas desta vez como único padrinho36.

Durante o período em que Veiga Cabral da Câmara esteve afastado do go-verno devido às demarcações do Tratado de Santo Ildefonso, batizou apenas duas crianças. Uma delas é o acima mencionado filho do casal Francisco e Teresa Angé-lica; a outra é a infanta Maria, filha de Antero José Ferreira de Brito e Bernardina Azevedo Lima37. Esse segundo casal merece nossa atenção.

Antero nasceu no Rio de Janeiro e estudou em Coimbra, formando-se em Leis. Com muito esforço, conseguiu o Hábito da Ordem de Cristo em 1768. Foi secretário no gabinete do Marquês de Pombal, mas devido a desentendimentos com este passou sete anos no cárcere, recuperando a liberdade após a ascensão de dona Maria I. Em seguida rumou para o Rio Grande, assumindo as propriedades que her-dara de um tio. Ao sul dos trópicos era conhecido como “doutor Antero”, por ser um dos poucos homens letrados naqueles tempos onde a maioria da população era analfabeta. Casara com Bernardina, filha do capitão Domingos da Lima Veiga, juiz de órfãos e escrivão da Fazenda Real, homem de vistosa reputação38. Era, portanto, um casal de notáveis este com quem Veiga Cabral da Câmara estabeleceu compadrio. Após retornar às funções de governador, no entanto, o governador adotou critérios diferentes para a escolha de seus compadres. Atentemos para o quadro a seguir.

34 1° livro de batismos de Porto Alegre, fl. 72v, 24.11.1781. In: NEUMANN, Eduardo; KÜHN, Fábio (coord.). Projeto resgate de fontes paroquiais. Porto Alegre- Viamão (século XVIII).35 2° livro de batismos de Porto Alegre, fl. 8v, 21.12.1792. In: NEUMANN, Eduardo; KÜHN, Fábio (coord.). Projeto resgate de fontes paroquiais. Porto Alegre- Viamão (século XVIII).36 2° livro de batismos de Porto Alegre, fl. 111v, 12.05.1785. In: NEUMANN, Eduardo; KÜHN, Fábio (coord.). Projeto resgate de fontes paroquiais. Porto Alegre- Viamão (século XVIII).37 1° livro de batismos de Porto Alegre, fl. 72v, 24.11.1781. In: NEUMANN, Eduardo; KÜHN, Fábio (coord.). Projeto resgate de fontes paroquiais. Porto Alegre- Viamão (século XVIII).38 KÜHN, Fábio. Gente da fronteira : família, sociedade e poder no sul da América Portuguesa - século XVIII. (Tese de douto-rado). Universidade Federal Fluminense: Niterói, 2006, p. 367- 370.

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Quadro 3Relações de compadrio do governador Veiga Cabral da Câmara, 1793- 1798

Fontes: 1° e 2° livros de batismos de Porto Alegre. In: Projeto resgate de fontes paroquiais (2009); COMISSOLI (2006).

Dos doze39 indivíduos com quem Veiga Cabral da Câmara estabeleceu com-padrio na segunda fase de seu governo não sei a ocupação de nove. Para tal seria ne-

39 No Quadro 2 são indicados 13 batismos, pois levamos em consideração o caso de Tomás, homem inglês de 30 anos para quem não consta filiação ou demais informações sobre sua procedência. Devido à carência de dados exclui esse indivíduo da análise, embora, pelas informações que constam no registro batismal trate-se de um sujeito sem reconhecimento social naquela localidade, indicando mais uma relação clientelar.

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cessário consultar registros matrimoniais, testamentos e inventários post-mortem para verificar suas atividades, o que extrapola os limites deste artigo. No entanto, desses nove com ocupação desconhecida, sei que três40 integraram a Câmara Municipal, todos em mais de uma ocasião, o que significa que eram homens de cabedal e reco-nhecimento social, portanto, membros da elite sócio-econômica local. Daqueles que tenho conhecimento da atividade à qual se dedicavam, um era capitão de Dragões, outro era comerciante e o terceiro dividia seu tempo entre as atividade militares e a mercancia.

Este terceiro é André Álvares Pereira Viana, um dos únicos oito comerciantes do Continente do Rio Grande a ser agraciado com o Hábito da Ordem de Cristo. Sabe-se que nasceu em Portugal e ainda rapaz transferiu-se para a cidade do Rio de Janeiro, residindo na casa do comerciante João Gomes da Costa, com quem apren-deu as artes do comércio. Quando seu tutor faleceu, André veio a casar-se com a viúva. Era reconhecido como um sujeito de grandes créditos e avultado cabedal.41

Observemos outro exemplo. Sobre o negociante Antônio Monteiro de Bar-ros não tenho como precisar o volume de seus negócios e o valor de seu patrimônio. Todavia, o fato de ter composto a Câmara em quatro ocasiões, prova que era um homem de posses. Reinol nascido na cidade do Porto42 e casado com Ana Maurícia, natural de Viamão, é provável que, assim como André Álvares Pereira Viana, tenha realizado o trajeto Portugal- Rio de Janeiro- Rio Grande. Segundo Osório, esta rota foi a mais usual, pois diversos jovens seguiram a trilha das gerações anteriores, sain-do sobretudo de localidades ao norte de Portugal, ainda em tenra idade, para a casa de parentes, padrinhos ou conhecidos sediados no Rio de Janeiro para aprender as lidas do trato mercantil. O início mais comum da carreira era através da função de caixeiro na expectativa de uma futura ascensão. Frequentemente esses negociantes migravam, ou enviavam seus representantes para diversas praças mercantis, sendo que os bem sucedidos normalmente retornavam ao Rio de Janeiro. Os negociantes de menor cabedal e com maior espírito de aventura tendiam a se fixar pelas paisa-gens sulinas 43

40 Na listagem de oficiais da Câmara elaborada por Comissoli consta um tal Francisco Rodrigues de Almeida e Silva, que talvez seja o já mencionado Francisco Rodrigues da Silva, por duas vezes compadre do governador. Na dúvida, consideramos prudente tratar como camaristas apenas aqueles em que há certeza da participação em tal instituição. Ver: COMISSOLI, Adriano. Os “homens bons” e a Câmara de Porto Alegre (1767-1808). (Dissertação de mestrado) Uni-versidade Federal Fluminense, Niterói, 2006, anexo II.41 OSóRIO, Helen. O império português no sul da América: estancieiros, lavradores e comerciantes. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2007, p. 288.42 2° livro de batismos de Porto Alegre, fl. 68v, 09.06.1796. In: NEUMANN, Eduardo; KÜHN, Fábio (coord.). Projeto resgate de fontes paroquiais. Porto Alegre- Viamão (século XVIII).43 OSóRIO, Helen. op. cit., p. 277- 299.

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Levando em consideração esses homens que participaram da governança lo-cal ou que conheço as atividades, é possível perceber como Veiga Cabral da Câmara modificou suas estratégias de escolha de compadres. Se num primeiro momento a escolha recaia sobre militares, num segundo momento os homens bons e indivíduos de reconhecimento social parecem ter caído nas graças do governador. É possível que essa tenha sido uma tentativa de Sebastião em se espraiar por um lócus ainda não “conquistado” por ele: a Câmara Municipal. A capitania do Rio Grande de São Pedro contava com apenas uma Câmara, situada em Porto Alegre. Os laços do governador com integrantes dessa instituição podem ter sido uma tentativa de har-monização política, procurando evitar conflitos entre poderes administrativos, tais como os que ocorreram entre os camaristas e o governador José Marcelino44.

Sobre os outros seis compadres que não compuseram a Câmara local em ne-nhuma ocasião, é difícil precisar suas atividades e esboçar uma trajetória sem consul-tar inventários e testamentos. Poderiam ser pessoas que se dedicassem ao comércio, à criação de animais ou agricultura. Se a participação na Câmara é um indicativo de riqueza e prestígio, o fato de não compor essa instituição não é, necessariamente, sinônimo de qualquer tipo de marginalização, pois, poderia ser uma escolha desses homens não atuar na governança local. Mesmo sem consultar os mencionados in-ventários, fiz um levantamento dessa documentação visando a continuidade dessa pesquisa, e dos seis sujeitos em questão, localizei o inventário apenas de um, Vito-rino Pereira Coelho. A inexistência dos demais inventários pode indicar a pobreza daqueles homens que nada, ou muito pouco, tinham a legar para seus herdeiros. Também é possível que estes indivíduos tenham inventariado seus bens em outras regiões da Colônia, caso se tratassem de migrantes.

Vê-se aqui, mais uma mudança nas estratégias do compadre governador: a aliança com as camadas baixas da sociedade, denotando uma relação de clientelismo. É difícil saber exatamente qual a contrapartida que estes homens poderiam dar ao governador, entretanto

o acto de “dar” podia corresponder a um importante investimento de poder, de consolidação de certas posições sociais, ou a uma estratégia de diferenciação social. O “dar” com liberalidade, com caridade e com magnificência parece, por outro lado, essencial para o próprio impacte [sic] político do acto45

44 Para informações sobre a Câmara Municipal e atritos entre seus integrantes e o governador José Marcelino de Figueiredo, ver: COMISSOLI, Adriano, op. cit.45 XAVIER, Ângela Barreto; HESPANHA, António Manuel. op. cit. p. 388.

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Apadrinhar filhos de pessoas de pouca visibilidade naquele tipo de sociedade era um ato de nobreza, fundamental para um fidalgo que tem que provar seu valor ao sul dos trópicos. Ato essencial para quem se torna elite. Além de aumentar seu prestígio, no jogo de relações sociais o governador conquistava alguns curingas, in-divíduos que lhe prestariam serviços quando necessário. Portanto, esses indivíduos de baixos estratos sociais parecem orbitar a periferia da rede de relacionamentos do governador, constituindo-se não como relações efetivas de fato, mas como relações potenciais.

Se, em tese, o vínculo entre compadres deveria ser de solidariedade mútua, isso não significa que na prática assim o fosse. Apesar de eternos e igualitários no mundo espiritual, os laços de compadrio eram traspassado por todas as hierarquias existentes no mundo dos homens. Reitero que reciprocidade não significa igualdade. E mesmo as relações horizontais poderiam se desmanchar em meio a raios e tem-pestades.

QUEM SE ALIANçA AOS OLHOS DE DEUS E DOS HOMENS

Devido ao caráter estratégico dos vínculos entre os compadres criados ou re-forçados através do batismo, os padrinhos escolhiam bem quais crianças receberiam a nova filiação aos olhos de Deus e da sociedade a qual faziam parte. Nos tempos do Antigo Regime, os valores de cor e prestígio se misturavam. Indígenas e negros (bem como sua descendência) eram considerados como categoria inferior, vivendo, via de regra, à margem do mundo dos brancos.

Olhemos para a recém-nascida Sebastiana, que recebeu os santos óleos do governador Sebastião Xavier da Veiga Cabral da Câmara em julho de 1794. A pe-quena era filha de Inácio José Filgueira e Rosa Ferreira, ambos pardos livres. Sobre os avós nada é informado, o que serve como indício de que se tratavam de pessoas de baixa importância para aquela sociedade. Segundo Faria, os pardos tiveram maior possibilidade de incorporação aos padrões do mundo livre, em especial no referente a práticas católicas. Netos de forros que casassem com pessoas da mesma condição já não receberiam nenhuma referência após seus nomes46. É possível que fosse esse o caso do casal Rosa e Inácio, ou ainda que mesmo sem ter o referido distancia-

46 FARIA, Sheila de Castro A Colônia em Movimento: fortuna e família no cotidiano colonial. Rio de Janeiro: Nova fronteira, 1998, p. 305.

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mento dos antepassados escravos, o simples fato de ter uma filha apadrinhada pelo governador fidalgo fosse o suficiente para constarem nos registros com designação de pardos, demonstrando o processo de “branqueamento” social.

Mas o que o batismo de crianças pardas pode nos indicar? Por se tratarem de pessoas de categoria considerada inferior, os laços estabelecidos pelo compa-drio com indivíduos do alto escalão administrativo (como era o caso de Sebastião) tendem a ser verticais, onde os brancos estariam na posição superior, para quem os respectivos compadres deveriam lealdade e prestação de serviços e favores. Essa tendência se torna especialmente forte no caso de Veiga Cabral da Câmara, por ser ele fidalgo.

Analisando os registros batismais percebe-se ainda que grande parte dos ba-tismos não era realizado por marido e esposa, mas pessoas de casais diferentes. Vejo essa prática como a valorização dos laços de reciprocidade entre compadres, pois assim os pais da criança, ao invés de estabelecerem laços com uma única família (o caso de marido e esposa) estabeleceriam com duas. Mas além de compadres e afilhados o ato do batismo proporcionava um laço entre os padrinhos. No caso do padrinho e da madrinha não serem casados, o fato de numa cerimônia pública estarem lado a lado batizando uma criança, reconhecendo-a como filha espiritual, representa o reconhecimento do status um do outro, como na cerimônia referida algumas páginas atrás, em que Veiga Cabral da Câmara e Clara Maria de Oliveira estiveram lado a lado.

A GRAçA DO ESPíRITO E A VIDA ALÉM DO SER

O caro leitor já deve ter percebido que o governador Sebastião batizou di-versas crianças que receberam a seu nome. Dos seus 21 afilhados, onze meninos chamaram-se Sebastião e duas meninas foram nomeadas como Sebastiana. Hameis-ter comenta que segundo as normas da Santa Madre Igreja o nome de uma criança deveria ser escolhido pelo padrinho, mas no entanto não há como precisar se na prática era de fato o que ocorria ou se a nomeação era decidida pelos pais e ape-nas ratificada pelos padrinhos47. De qualquer forma, seja pela autopromoção de seu nome ou por homenagem dos compadres, a criança receber o nome do padrinho é sinônimo de prestigio deste frente aos novos irmãos espirituais.

47 HAMEISTER, Martha Daisson. op. cit. p. 78- 137.

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Era recomendado ainda que o nome escolhido fosse cristão ou nome de um santo. De acordo com a lenda, São Sebastião foi um soldado romano brutalmente assassinado por defender os cristãos, tornando-se um mártir. O nome Sebastião, de origem grega, significa venerável, sagrado, características essas coincidentemente co-erentes com a postura do governador em questão. Não sei se na América portuguesa setecentista havia preocupação com a etimologia do nome, mas certamente havia preocupação do rebento possuir o nome de alguém importante naquela localidade, pois

nomear, estabelecer uma nomenclatura familiar e pessoal, nessas cir-cunstâncias, é uma prática social que visa, antes de mais nada, estabe-lecer e perpetuar o “nicho” de certos homens e famílias no grupo ao qual pertenciam e ante outros grupos, podendo assumir, assim, um aspecto místico48.

Dessa forma, dar ao filho o nome do valoroso governador, herói na recon-quista de territórios frente aos espanhóis, pode ser visto como uma tentativa de preservar ou conquistar um lugar de destaque na sociedade, uma vez que a família já planejava o matrimônio e carreira da criança, visando o engrandecimento familiar. Esta deve ter sido a intenção do capitão José Ferreira da Silva Santos, ao talvez plane-jar a brilhante carreira militar de seu pequeno Sebastião, cujas façanhas preservariam a reputação da família. O comerciante Antônio Monteiro de Barros possivelmente pensou algo parecido, visando a prosperidade dos negócios familiares e uma venera-da posição no alto da hierarquia social. Estes são dois exemplos de homens de elite que prestigiavam Sebastião Xavier da Veiga Cabral da Câmara, comprovando como este foi conquistando seu lócus entre as camadas dominantes com o passar dos anos.

Para Hameister, o nome tinha por finalidade promover a continuidade do indivíduo em termos simbólicos. “Eram dois e ao mesmo tempo um, pois continu-avam-se um no outro. O nome não era apenas desinência de um indivíduo; antes, designava uma espécie de entidade, entidade esta pertencente à família ou ao grupo no qual estavam inseridos.”49 Nomear uma criança era a tentativa de transmitir-lhe as qualidades do dono do primeiro nome, servindo de inspiração para a vida adulta.

Da mesma forma que a atribuição do nome era usada para a manutenção de determinados padrões de vida e status por indivíduos pertencentes às elites, poderia ser utilizada como um mecanismo - ainda que as vezes de forma um tanto quimérica – de ascensão social e busca de um nicho por parte da arraia miúda. Não esqueçamos de Sebastiana, filha do casal de pardos Inácio e Rosa. O legado que a vida lhe dera

48 HAMEISTER, Martha Daisson, op. cit., p. 118.49 Idem, p. 108.

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não era nada auspicioso. Embora livre, nascera mulher, pobre e com ascendência africana. A perspectiva de vida dessa menina não era das mais animadoras, e talvez o único bem que seus pais pudessem lhe legar fosse um nome, que não era o deles ou dos ancestrais, mas de um homem importante naquele Rio Grande do século XVIII. Era o nome de um fidalgo, herói e governador. Rosa e Inácio devem ter projetado na filha seu desejo de uma vida melhor. Mesmo na pobreza, Sebastiana poderia arrogar-se de possuir um nome imponente e de ser a extensão, metafórica, de um padrinho importante. Esse exemplo ilustra que Veiga Cabral da Câmara também se fez presente entre as camadas subalternas da sociedade colonial, verticalizando sua rede de relacionamentos.

Assim como os compadres do governador procuraram conquistar ou manter um lugar ao sol através do nome de seus filhos, esse administrador também imorta-lizou a si e a sua família através desses rebentos. Sebastião faleceu em 1801, aos 59 anos de idade, durante as batalhas de retomada dos Sete Povos das Missões; naquele momento já havia sido nomeado capitão-general de Pernambuco.50 Seu nome conti-nuou sendo lembrado e utilizado pelos anos que se seguiram. Embora não mais no plano dos homens, Sebastião continuou vivendo através de seus afilhados.

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FONTES PRIMÁRIAS

1° e 2° livros de batismos de Porto Alegre. NEUMANN, Eduardo; KÜHN, Fábio (coord.). Projeto resgate de fontes paroquiais. Porto Alegre- Viamão (século XVIII).AHCMPA- Arquivo Histórico da Cúria Metropolitana de Porto Alegre. Livro de entrada de irmãos da Irmandade do Santíssimo Sacramento de Porto Alegre, 1774- 1798, fl. 1- 3v, 10v.AHU- Arquivo Histórico Ultramarino- Projeto Resgate- RS. Caixa 2, documento 206.

REFERêNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARRETO, Abeillard. Bibliografia sul-riograndense: a contribuição portuguesa e estrangeira para o conhecimento e a integração do Rio Grande do Sul. Rio de Janeiro: Conselho Federal de Cultura, 1973-1976, p. 254-255.BENTO, Cláudio Moreira. A guerra de restauração. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exér-cito editora, 1996BERTRAND, Michel. De la família a la red de sociabilidad. In: Revista Mexicana de Sociología. Vol. 61, n°. 2, Abr. - Jun., 1999. p. 107-135.CESAR, Guilhermino. História do Rio Grande do Sul. Período colonial. Porto Alegre: Martins livreiro, 2002.COMISSOLI, Adriano. Os “homens bons” e a Câmara de Porto Alegre (1767-1808). (Dis-sertação de mestrado) Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2006.FARIA, Sheila de Castro. A Colônia em Movimento: fortuna e família no cotidiano colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.FRAGOSO, João. Fidalgos e parentes de pretos: notas sobre a nobreza principal da terra do Rio de Janeiro (1600- 1750). In: FRAGOSO, João; ALMEIDA, Carla Maria Carvalho de; SAMPAIO, Antônio Carlos Jucá de. Conquistadores e negociantes: histórias de elites no Antigo Regime nos trópicos. América lusa, séculos XVI a XVIII. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2007, p. 35- 120.FRAGOSO, João; ALMEIDA, Carla Maria Carvalho de ; SAMPAIO, Antônio

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eM noMe de “nossos AMigos PolítiCos”: vinCulos PessoAis, Poder e influênCiA

Ao teMPo do iMPério do brAsil

Miguel Ângelo Silva da Costa

Resumo: o presente trabalho dedica-se ao tema dos vínculos pessoais, das redes sociais e da ação política de seus protagonistas sob a perspectiva do historiador de ofício. Para tanto, adotará como recorte analítico as tramas constituintes da política local, do poder e da influência nos idos do Império do Brasil a partir de duas linhas de raciocínio: a) as relações de poder embutidas em vínculos pessoais como canais transacionais de lealdades por proteção social e b) os intercâmbios recíprocos entre indi-víduos com recursos e necessidades similares, dentro de um espaço de sociabilidade e (des)confiança, como as facções políticas.

Palavras-Chave: Redes Sociais – Ação Política – Política Local – Império do Brasil.

PRIMEIRAS PALAVRAS

Partindo da assertiva de que o social é feito de relações, inicialmente poderíamos indagar como os indivíduos se relacionam entre si e com as instituições do social. Evidentemente, essas indagações e o debate

na qual se inscrevem não são novos no âmbito intelectual. Seria demasiado preten-sioso e desnecessário querer explorar genealogicamente um conceito amplamente debatido por intelectuais filiados à sociologia, antropologia, economia, psicologia social, geografia humana, história, entre outras ciências dedicadas à compreensão da complexidade que permeia o que convencionalmente chamamos de sociedade. Po-rém, não resta dúvida de que, independente da filiação disciplinar, faz-se necessário definir um quadro de referência em relação ao objeto de estudo e as lentes com quais se vai observá-lo. Portanto, partiremos da idéia defendida por José Maria ímizcoz de que

La trame d’une société, ce sont les liens et les réseaux de relations entre individus et/ ou collectivités. Ils organisaient les individus se-lon des modes de fonctionnement déterminés en fonction d’actions précises, de telle sorte que chaque société se caractérisaint par

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l´existence d´um systèma de relations particulier ou muni de carac-téristiques propres.¹

Parafraseando Peter Burke, também poderíamos indagar-nos qual a utilidade das teorias formuladas no campo das ciências sociais para os historiadores. A respos-ta dessa aparente simples questão não é óbvia, pois, como observou Burke, “diferen-tes historiadores, ou tipos de historiadores, reconheceram a utilidade das diferentes teorias em formas diversas, algumas como um arcabouço abrangente e outras como um problema específico”². No entanto, tratando-se do espaço de reflexão no qual se encontra o debate sobre redes sociais e sua aplicabilidade no campo da pesquisa histórica, o que seria possível apreender em termos de instrumentalização analítica? Qual a especificidade deste “olhar” sobre as sociedades do passado? Por que a me-todologia tem atraído um número cada vez maior de historiadores?

Responder essas indagações não é tarefa fácil. Contudo, ao ocuparem lugar na agenda de pesquisa, parece indiscutível a necessidade de refletirmos sobre elas. Esse, portanto, é o objetivo mais amplo desse trabalho. O esforço consistirá em condensar algumas reflexões que orientam nossa pesquisa de doutoramento. Para tanto, busca-remos balizar nossa contribuição para a VIII Amostra de Pesquisa do Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul – APERS, explorando algumas possibilidades de análise acerca dos vínculos pessoais de amizade e seus desdobramentos no campo das dis-putas políticas locais.

“COM ELE DE ENVOLTA FOMOS TODOS OS SEUS AMIGOS E PARENTES”

Província de São Pedro do Rio Grande do Sul, década de 1860. O contexto era de guerra contra o Paraguai, ecoavam valores construídos em torno da figura idealizada do intrépido guerreiro sul-rio-grandense e pulverizava-se o chamado à peleja. No rastro do recrutamento de quem iria seguir destacado para o campo de batalha, setores diversos da população, cada qual ao seu modo, sentiam os efeitos da intensa mobilização de tropas para o teatro de operações. Sujeitos com influência política local – comandantes ou não dos corpos militares –, empregavam diferentes formas de ação para formar e dar sustentabilidade às suas clientelas. Não raro, lan-çavam mão de indulgências paternalistas para atender os interesses de seus subordi-

¹ IMíZCOZ, José Maria. Communauté, réseau social, élites. L’armature sociale de l’Ancien Régime. In: CAS-TELLANO, J. L.; DEDIEU, J. P. Réseaux, familles et pouvoirs dans le monde ibérique à la fin de l’Ancien Régime. Paris: CNRS Éditions, 2002. p. 36² BURKE, Peter. História e Teoria Social. São Paulo: UNESP, 2002. p. 11.

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nados. De modo associado ao patronato que exerciam ou que pretendiam exercer, buscavam enfraquecer seus adversários qualificando seus desafetos políticos para as tropas da ativa.³ Foi no centro de um movimento de mão dupla, recheado por histórias absolutamente banais e ao mesmo tempo sintomáticas dos mecanismos sociais que virtualmente estruturavam as engrenagens de funcionamento do poder político local, que um sujeito chamado Francisco Pinto Porto, amigo próximo do General José Joaquim de Andrade Neves, assim se dirigiu ao Dr. Francisco Ignácio Marcondes Homem de Mello, à época presidente da província:

Rio Pardo, 9 de março de 1867.[...] Desgraçadamente, nesta localidade a intolerância política e a sede ardente de mando não se têm extinguido diante da grave situação porque passa o país. Duas facções antes que dois partidos dividem a população deste termo: à frente de uma sempre se achou o General Andrade Neves, que há mais de dois anos está em campanha, tendo le-vado consigo a maior parte de nossos amigos particulares e políticos; os poucos que restamos, ou são de lá vindos inválidos, enfermos ou os que não ocuparam postos estão para marchar. [...] À frente da segunda facção, o Coronel reformado da Guarda Nacional João Luis Gomes, tristemente celebridade desde a revolução desta província, depois que obteve posição e alguns meios que lhe facilitou seu protetor e cunha-do o General Andrade Neves, declarou-lhe uma guerra de extermínio. Nada poupou àquele que lhe serviu de pai! Na praça pública como na imprensa o general Andrade Neves foi atacado miseravelmente; com ele de envolta fomos todos os seus amigos e parentes. V.Exa., crerá talvez que tanta ousadia terá fonte em uma robusta coragem; perfeito engano: é apenas uma regateira que quer disputar os foros de honra! Fez-se cercar este Chefe de indivíduos que adrede colocou em posi-ções oficiais por meio de seus patronos o Sr. Desembargador Sayão, falecido Oliveira Bello e Dr. João Mendonça, o acaso lhe trouxe mais um juiz ad hoc que lhe serviu de guia, pois que perfeito saúde-o, era então assessorado por um mestre escola. Entre os de sua escolta está o comandante superior interino, que sendo reformado foi nomeado chefe do Estado Maior. É homem de bons precedentes, creio mesmo ser honesto, mas sem energia alguma e pronto a subscrever o que diz o seu chefe de Partido. [...]4

³ Diversos autores já enfocaram a questão. Todavia, entre os trabalhos mais recentes sobre o tema no Rio Grande do Sul, ver: FERTIG, André Atila. Clientelismo político em tempos belicoso : a Guarda Nacional da Provincia do Rio Grande do Sul na defesa do Estado Imperial centralizado (1850-1873). Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Programa de Pós-Graduação em História, Tese de Doutorado. 2003 e RIBEIRO, José Iran. Quando o serviço os chamava: os milicianos e os guardas nacionais gaúchos (1825-1845). Santa Maria. E. UFSM. 2005.4 Correspondência enviada por Francisco Pinto Porto ao Dr. Francisco Ignácio Marcondes Homem de Mello, 09/03/1867. AHRS – GN. 22º C. Cav. Rio Pardo, maço n.º 97.

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Michel Foucault já observou que o poder deve ser analisado como algo que circula, que funcionada em forma de cadeia e sem localização precisa. Não está nas mãos de ninguém, de forma fluída transita entre os indivíduos. Em suas redes e numa relação dialética, estes mesmos indivíduos estão constantemente em vias de exercitar ou de sofrer seus impactos. De modo reticular e de forma inerente às relações sociais, o poder apresenta-se como elemento de conexão entre os sujeitos. Ou seja, o poder não está aqui ou ali, ele flui transversalmente entre os indivíduos5.

Sem dúvida, este é um dos conceitos que nas palavras de Jacques Revel “fasci-na os historiadores e os cientistas sociais”. Mas o historiador adverte que aqueles que o estudam, constantemente o alocam ao “lado do comando, de um capital de estima ou de fidelidade, do lado da detenção de um capital de bens materiais e culturais, ou ainda nos esforçamentos para demonstrar que todos esses capitais obedecem a uma lei tendencial de concentração, que eles se acumulam de acordo com regras mais ou menos complexas”. Todavia, o poder não é um atributo dos atores, mas sim uma relação sobre a qual confluem interesses. Neste caso, se a definição de poder não pode ser pensada de modo descolado de um “campo onde agem forças instáveis e que estão sempre sendo reclassificas” e, se ele, ou certas de suas formas, são as recompensas dos “que sabem explorar os recursos de uma situação, tirar partido das ambigüidades e das tensões que caracterizam o jogo social”6, François Xavier Guerra assevera que enquanto uma relação entre atores “cada actor lo es de una forma diferente según lá posición que ocupa con respecto a tal o cual outro actor, y o éxito en la práctica política se basa en un conocimiento, muy a menudo intiuitivo, de estas relaciones”7.

Sob esta perspectiva poderíamos considerar que a carta enviada pelo Tenente Coronel Pinto Porto ao presidente Homem de Mello coloca em cena um sujeito que sabia o modo como seria possível acionar recursos e tirar vantagens das ambigüida-des e tensões próprias de um jogo político que interconectavam sujeitos em redes de poder. Consciente das regras e dos dispositivos inerentes à prática política, falou em

5 Segundo Roberto Machado, o que Foucault procurou demonstrar em sua microfísica do poder foram as formas como os poderes de diferentes ordens se efetuam em distintos níveis do corpo social. Gestos, atitudes, comportamentos, hábitos, discursos são algumas das formas de manifestação. Assim sendo, ao pensar em poder e na sua análise, deve-se levar em conta seu caráter relacional e suas múltiplas formas de exercício. Trata-se, portanto, de refletir sobre seus mecanismos e seus efeitos, seus domínios e suas extensões no corpo social e sobre os agentes que nele interagem. MACHADO, Roberto. Por uma genealogia do poder. In: FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1981. p.XII.6 REVEL, Jacques. Prefácio à Herança Imaterial: In: LEVI, Giovanni. A Herança Imaterial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. p. 31-33.7 GUERRA, François Xavier. México: Del Antiguo Régimen a la Revolución. Tomo I. México: Fondo de Cultura Eco-nómica, 1988. p. 127.

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nome de seus “amigos políticos”. Sua mobilização assinala o apelo de quem acom-panhava o gradual fortalecimento de uma facção contrária a sua, pois, segundo suas palavras, “uma grande parte senão todos que foram com o General Andrade Neves nos eram dedicados”. Não obstante, sua correspondência ainda lança luzes sobre o modo como se processavam agências da política e do poder local. Na senda da “in-tolerância política” e sobre a “sede ardente de mando”, convergia um intricado e di-nâmico processo atravessado por interesses, alianças e interdependências, no qual os indivíduos e os grupos implicados mobilizavam diferentes formas de ação política.

A narrativa de caráter retrospectivo nos fornece pistas importantes sobre a forma como o parentesco e a amizade, as fidelidades e as traições, os favores e os desfavores permeavam a história do dia-a-dia das relações sociais e políticas. A ob-jetividade das informações prestadas ao presidente da província dispensa qualquer comentário quanto ao clima de disputas pelo poder na localidade. Para os objetivos desse trabalho, mais proveito são os sinais que Pinto Porto nos fornece acerca das relações de poder imersas num “campo onde agem forças instáveis”, permeadas por intercâmbios recíprocos entre indivíduos com recursos e necessidades simila-res. Suas impressões sobre o comportamento de um sujeito que após ter obtido “posição” à custa de seu “protetor e cunhado abriu-lhe uma guerra de extermínio”, são indicativos pontuais de que os vínculos mais característicos de nossa formação social oitocentista não eram simplesmente relações interpessoais entre indivíduos de uma sociedade atomizada que se associavam segundo uma adesão livre ou vo-luntária. Eram, pois, vínculos alinhavados por diferentes formas: por nascimento, pertencimento a uma família, comunidade; ou contraídos como laços de amizade, de alianças matrimoniais, compadrio ou relações de clientela que exigiam pautas de comportamento baseadas em trocas de obrigações. Como tais, esses vínculos foram particularmente estruturantes, pois, por um lado, articulavam de forma privilegiada a autoridade, a integração e a subordinação, os direitos e obrigações, os negócios, economias e intercâmbios de serviços; por outro, aglutinavam sujeitos em grupos ou redes que atuavam habitualmente de forma solidária no campo social, em negócios comuns, conflitos e lutas pelo poder, ou se quisermos, traduzem em parte as la trame d’une société.

A questão abordada pelo nosso informante era profunda e envolvia disputas internas localizadas entre membros de uma família política local cindida. É correto afirmar que os laços parentais (sanguíneos ou rituais) eram canais facilitadores no processo de formatação das redes políticas. Em torno de um indivíduo com re-conhecida expressividade no campo político como o General Andrade Neves – o mesmo se poderia dizer para outros campos do social – gravitavam “todos os seus amigos e parentes”. No grupo relacional entravam todos: irmãos, primos, sobri-nhos, filhos, tios, cunhados, amigos, etc. Também é verdadeira a assertiva de que

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as relações baseadas em parentesco de sangue certamente eram mais sólidas e, por natureza, hereditárias. Na maioria dos casos, denotavam laços afetivos intensos que se reforçavam pela confluência de interesses, pois os membros da família tendiam a ser solidários tanto no êxito, como no fracasso de seus entes. Poderíamos afirmar que não era por acaso que as famílias políticas regionais investiam decididamente em alianças vantajosas. A permanência de uma família numa determinada região não resultava exclusivamente das fortunas distribuídas entre os seus membros (terras, escravos, propriedades em geral), mas também do interesse de manterem, agrega-rem e redistribuírem suas heranças imateriais: a influência política e a capacidade de manipularem amplos repertórios relacionais.

Em segundo lugar, o parentesco sanguíneo poderia ser reforçado com uma aliança matrimonial. O matrimônio poderia colocar fim a determinadas rivalidades, pois não se convertiam apenas em aliança entre cônjuges, mas entre famílias ou grupos supostamente rivais. Poderia é o termo mais apropriado, pois, como bem o observou Francisco Pinto Porto, um cunhado poderia abrir uma verdadeira “guerra de extermínio” contra quem há pouco havia lhe garantido posição e lhe servido de pai. Todos esses laços de parentesco acabam revelando conjuntos humanos extre-mante amplos, com manifestações inesperadas, favorecidas pela existência de famí-lias numerosas. No espaço relacional não só se objetivavam laços de amizade e de relações de clientela de diferentes formas, como também se produziam interações que poderiam convergir tanto para a coesão como desagregação social.

Em linhas gerais, poderíamos considerar que os vínculos políticos ao impo-rem direitos e deveres que justificavam ações e comportamentos, também reforça-vam laços já existentes de amizade, de interesse e de clientela. Contudo, as relações não tinham o mesmo significado nem a mesma virtualidade aglutinadora. Dentro da abordagem das redes sociais, as relações clientelares e paternalistas são consi-deradas verdadeiros protótipos do vínculo vertical. Através daquelas formas rela-cionais se configurava uma relação implicitamente pautada por trocas e obrigações mais ou menos explícitas cujos estatutos normativos se baseavam numa situação de dominação e de dependência. Todavia, tanto a prática do clientelismo como do paternalismo são apenas alguns dos caminhos possíveis de observação das relações entre desiguais, relações que nem sempre correspondem às características de ante-mão convencionadas historiograficamente. Ao invertermos a lógica de abordagem das relações verticais que se desenvolviam quando existia diferença, mas não neces-sariamente distância social, podemos contemplar a existência de vínculos individuais que colocam em relação sujeitos com status sociais distintos.8

8 IMíZCOZ, José Maria. Actores sociales y redes de relaciones: reflexiones para una historia global. In: Revista da Faculdade de Letras e História. Porto: III Série, Vol. 05, 2004. pp. 115-140.

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Essas questões se inserem num universo de pesquisa no qual os historiadores tem buscado dar conta das relações entre família, poder, política e sociedade. Penso não ser necessário enveredar na direção de uma ampla revisão sobre os diferentes percursos que os estudiosos da questão trilharam, até porque outros historiadores bem mais habilitados já o fizeram.9 Entretanto, gostaria de apenas observar alguns aspectos que poderão contribuir para evitar algum tipo de confusão quanto ao nosso propósito, pois, de antemão, devemos esclarecer que não se trata de um trabalho de-dicado à família em si, antes às redes de interação social e de articulação política se-gundo as quais, famílias e sujeitos diversos compartilhavam suas experiências. Nesse sentido, como observou Sheila de Castro Faria, “ao invés de demarcar a família como um objeto em si mesmo, deve-se levar em conta a sociedade à sua volta”10. Ou seja, atentaremos para as redes de relações sociais e o amplo espectro de sociabilida-de em que o indivíduo se inscreve.

Sob este aspecto, a amizade coloca-se como um elemento importante para a questão. As amizades engendram-se nas intricadas disputas políticas, mesclam-se às famílias e às unidades faccionais. Pode converter-se num instrumento político, uma espécie de “amizade política”, uma relação recíproca entre pessoas onde se entrela-çam direitos e deveres reconhecidos pelos diferentes estratos sociais. Nas relações verticais, os direitos e deveres não assumem o mesmo peso e significado para os intervenientes. Do lado dos protegidos, quanto mais baixa a posição social do ator, maiores são os deveres: mobilização dos “amigos” por um chefe político para ofe-recer oposição numa disputa política local, para obter informações, para reafirmar manifestações de adesão ao poder ou para apoiar um representante oficial daquele mesmo poder. De parte dos personagens proeminentes, seus dependentes esperam intervenções ante as autoridades para obter exceções a lei e a disposições gerais teo-

9 Para uma revisão sobre os diferentes percursos que os estudiosos da questão tem trilhado, além de FARIA, Sheila de Castro. A Colônia em Movimento... 1998, também ver, entre outros: MUAZE, Maria de Aguiar Ferreira. O Império do retrato: família, riqueza e representação social no Brasil oitocentista. Tese Doutorado em História - Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense, Niterói. 2006; CASTELLANO, J. L.; DEDIEU, J. P. Réseaux, familles et pouvoirs dans le monde ibérique à la fin de l’Ancien Régime. Paris: CNRS Éditions. 2002. Para o caso especifico do Rio Grande do Sul, entre outros trabalhos, KUHN Fábio. Gente da Fronteira: família, sociedade e poder no Sul da América Portuguesa – Século XVIII. Tese Doutorado em História - Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense, Niterói. 2006, HAMEISTER, Martha Daisson. Para dar calor à nova povoação: estudo sobre estratégias sociais e familiares a partir dos registros batismais da vila do Rio Grande (1738-1763). Tese de Doutorado. Programa de Pós-graduação em História Social da UFRJ. Rio de Janeiro, 2006; FARINATTI, Luís Augusto Ebling. Confins Meridionais: famílias de elite e sociedade agrária na Fronteira Sul do Brasil (1825-1865). Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro. Instituto de Filosofia e Ciências Sociais: Tese de Doutorado, Programa de Pós-Graduação em História Social, 2007; VARGAS, Jonas Moreira. Entre a paróquia e a Corte: Uma análise da elite política do Rio Grande do Sul (1868-1889). Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Dissertação de Mestrado, PPGH, 2007.10 FARIA, Sheila de Castro. A Colônia em Movimento.... p. 43.

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ricamente aplicáveis a todos. O recrutamento militar, enquanto instrumento político utilizado pelos chefes para coerção dos menos favorecidos e proteção de seus apa-niguados, é um exemplo cabal de relações perpetradas em torno desses elos sociais. Debaixo de uma forte propaganda que incentivava a deserção, as autoridades locais do grupo em oposição abrigavam seus dependentes em torno de si mesmos. Não raro, chegavam a abrirem as portas de suas próprias casas para abrigá-los.

Expressando seu desabafo, o sectário e amigo do General Andrade Neves rei-terou a necessidade de uma intervenção firme do presidente e também correligio-nário daquele “distinto e bravo general”. Francisco Pinto Porto despediu-se do Dr. Homem de Mello dizendo-lhe que

independentemente destes entraves que adrede se levanta para des-prestigiarmos, a reunião seria mesquinha, mas ainda assim se poderia fazer; com estas armas porém, e tendo o fiel da balança um compa-nheiro dedicado desse perturbador nada se fará. No destacamento da Guarda Nacional, às ordens do comandante da Guarnição e do Delegado de Polícia, em casa do Coronel João Luis Gomes e outros, existem indivíduos maiores de 20 e menores de 30 anos, solteiros e ro-bustos que não foram e nem serão designados para marchar, a menos que isso terminantemente VExa o não faça.VExa relevará o tempo precioso que lhe roubei; preciso ser franco e por isso fui prolixo; sirva em desculpas a causa em que todos os bons brasileiros se empenham e VExa tão patrioticamente tem sabido sustentar. VExa se dignará dar-me as ordens que entender a respeito.Reitero a VExa minha mais alta consideração e sou de VExa atento e venerador criado. Tente. Coronel Francisco Pinto Porto.

Não seria nenhum exagero insinuar que é no território dos diálogos sociais – sejam estes no sentido literal ou metafórico – entre amigos ou camaradas que podemos observar iniciativas voluntárias, espontâneas, imprevisíveis e, que, eventualmente, podem apresentar uma mudança de sentido da situação de dependência. Desde a antiguidade romana, a palavra amigo é uma das palavras chaves do vocabulário polí-tico. Contudo, lembra-nos Xavier Guerra que assim como em Roma, é providencial desconfiarmos do termo, “pues puede designar tanto personajes de un nível seme-jante a quien emplea este calificativo, como a hombres situados mucho abajo en la escala social, y cujas relaciones no pueden poseer la igualdad relativa de condiciones que hacem posible la verdadera amistad”. Por conseguinte, o cuidado para não cair-mos em generalizações exige que tenhamos atenção redobrada no que diz respeito aos vínculos que de alguma forma nos remetam à relações provenientes destes tipos enlaces sociais. Em seu Clientelismo e política no Brasil do século XIX, o brasilianista Ri-chard Graham já observou a complexidade inerente às teias de relações que ligavam

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sujeitos com recursos desiguais¹¹, também observou o peso dos vínculos verticais para sustentabilidade das redes clientelares e o modo como se buscava conferir le-gitimidade para a diferença entre os intervenientes. Assim, poderíamos considerar que onde se produzem relações entre homens de níveis sociais diferentes o termo clientela parece mais adequado. Já o termo amizade, demonstra-se uma referência e/ou elemento de conexão entre atores de níveis sociais equivalentes¹². Ainda assim, a distinção na prática não é fácil, visto ser possível a existência de elementos afetivos entre atores desiguais. Talvez, um desses exemplos possa ser um caso que mobilizou o coronel João Luis Gomes, desafeto político de Pinto Porto e de outros sectários do General Andrade Neves, na Rio Pardo dos tempos de Pedro II.

ENTRE O CORONEL E O DELEGADO HAVIA “UM PRETO QUE SE DIZIA ESCRAVO PARA NãO PRESTAR

SERVIçO ALGUM À NAçãO”

Em 5 de agosto de 1860, na esteira do velho hábito da conscrição compulsó-ria, um sujeito chamado Francisco Cardoso foi preso por outro de nome Juvêncio Juvino do Rego Rangel. No centro da questão havia um terceiro, ninguém menos que o tão mencionado coronel João Luis Gomes, com quem o primeiro apresentava laços de camaradagem e contra quem o segundo guardava mágoas difíceis de serem digeridas. Cardoso era negro, morador do Distrito de São Sepé e andava por Rio Pardo “intitulando-se escravo para não prestar serviço algum à Nação”¹³. Rangel era formado em Direito pela Faculdade de Pernambuco, havia chegado à localidade em 1855 para ocupar a vaga de juiz municipal, mas na ocasião desempenhava as fun-ções de delegado de polícia daquele termo e tinha ligações políticas com o Liberal Progressista José Joaquim de Andrade Neves. João Luis Gomes da Silva era filho do português Francisco Gomes da Silva Guimarães e de Dona Ana Bernardina da Silva Jacques, era homem de expressividade política nas fileiras locais do Partido Conservador.

O núcleo urbano do município não apresentava grandes dimensões e a apa-rente arbitrariedade praticada pelo delegado Rangel circulou rapidamente pela loca-lidade. Talvez mais rápido por se tratar de um ato que poderia reanimar uma querela

¹¹ GRAHAM, Richard. Clientelismo e Política no Brasil do século XIX. Rio de Janeiro: UFRJ, 1997, p. 37.¹² GUERRA, François Xavier. México: Del Antiguo Régimen a la Revolución..., p. 150¹³ APERS – Comarca de Rio Pardo, Cível e Crime, n.º 4704, maço 94, ano 1860.

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antiga entre membros das facções que disputavam o controle político local. João Luis Gomes havia se ausentado por alguns dias da cidade, mas, ao desembarcar na rampa do rio Jacuí, foi informado de que Francisco havia sido recolhido ao xadrez. Na companhia de seu informante, o alferes João Francisco de Moraes, saiu à cata de Juvêncio Rangel “afim de se saber por qual motivo estava preso o seu camarada”14. Não precisou muito para que aqueles homens se encontrassem. Ao avistar Rangel na casa de negócio do vereador Bernardo Gomes Souto, o coronel não hesitou em lhe exigir posicionamento sobre a detenção do preto Francisco. Tenazmente inter-pelado, o delegado respondeu em altas vozes que “como recruta e que não tinha que lhe dar satisfação!!!”15. Faltou pouco para que o bate boca chegasse às vias de fato. Publicamente chamado de “biltre” e acusado de praticar as mais descabidas cana-lhices, Juvêncio Rangel sentiu o ímpeto de um sujeito que buscava constantemente reiterar sua posição social e capacidade de mando. O alarido ganhou a rua, atraiu vários espectadores e em meio à troca de ofensas recíprocas, gritos e “deixa disso”, o delegado não teve outra alternativa a não ser evocar o nome de “Sua Majestade o Imperador” e dar voz de prisão ao seu inimigo capital.

Essa é outra daquelas situações cotidianas que, apesar de serem absoluta-mente banais, podem auxiliar a detectar o modo como a solidariedade e o conflito transitavam pelos fios que interconectavam tanto homens de alto como de baixo es-calão social. O recurso microanalítico de relações tecidas no centro de antagonismos equilibrados e móveis, coloca-se com uma alternativa metodológica que possibilita a observação das diferentes formas de ativação tanto dos vínculos como dos próprios antagonismos sociais. Não se trata aqui de uma inovação sob o ponto de vista mais amplo da produção historiográfica, até porque os estudos desenvolvidos na área têm contribuído para que o tema das relations interpesonnelles se consolide cada vez mais como um véritable objet historiographique.16 Em grande medida, os trabalhos dedicados a refletirem sobre o que tange os diferentes tipos sociabilidades (culturais, políticas e econômicas) encontram-se associados às reflexões nascidas no âmbito da antropo-logia social. Sobretudo, a que postula o tecido social como uma rede de interações, negociações e conflitos sociais concretos. Como lembra M. Gribaudi,

14 Auto de depoimento de João Luis Gomes. APERS – Comarca de Rio Pardo, Cível e Crime, n.º 4704, maço 94, ano 1860. fls 40-41.15 Auto de depoimento do comerciante Bernardo Gomes Souto. APERS – Comarca de Rio Pardo, Cível e Crime, n.º 4704, maço 94, ano 1860. fls 9-10.16 DEDIEU, Jean-Pierre; MOUTOUKIAS, Zacarias. Approche de la théorie des réseaux sociaux: intoductcion. In: CASTELLANO, Juan Luis; DEUDIEU, Jean-Pierre. Réseaux, familles et pouviers dans le monde ibérique. Paris: CNRS Éditions. 2002, p. 07.

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dans réseaux de relations se lisent les traces de l’histoire des interac-tions et des négociations qui ont eu lieu entre chaque individu et les mileux dont il est issu et qui’l a traversés tout au long de son parcours social. Les itinéraires se déroulent à l’interieur d’espaces differente-ment articulés , maqués par formes et des logiques de cohésion di-fferentes.17

É no centro desses espaços de interlocução social (nas redes de relações) que se encontra o locus onde podemos observar a história das interações entre os indivíduos, suas margens de negociação, seus itinerários em fluxos de diferentes sociabilidades e de distintas lógicas de coesão social. A estrutura de funcionamento das redes sociais baseia-se nos vínculos – horizontais e verticais –, firmados entre os atores implicados. Mas, como observou Michel Bertrand, “on peut définir un réseau comme un système de liens permettant d’englober et aussi de dépasser l’ensemble des relations ou des liens noués par un individu membre d’un lignage”. Ao chamar a atenção para um sistema de laços efetivos que podem englobar e ultrapassar o conjunto de relações ou de laços agregados por um indivíduo membro de uma li-nhagem, o historiador francês nos faz refletir sobre os vínculos que configuram as relações, os intercâmbios (simétricos e assimétricos) que, articulados entre si, ope-ram como elementos de composição do tecido social. Assim, poderíamos considerar que numa sociedade atravessada por redes relacionais sobrepostas é justamente a existência dessas redes “qui determine la configuration et e’lexistence d’une socié-té”18. Ainda poderíamos considerar que a sobreposição de redes e suas combinações acabam conferindo sentido a cultura política. Isso significa dizer que na medida em que os repertórios culturais reforçam e legitimam as estruturas das redes, eles in-cluem manifestações que refletem as normas, os códigos, os costumes sociais, entre outros elementos imateriais constitutivos das estruturas relacionais. Em síntese, o fluxo dessas interconexões evidencia referencias importantes sobre os mecanismos de consciência que, por sua vez, subsidiam as formas de (inter)agir dos atores.

Foi baseado num sistema relacional alicerçado pela lógica do favor e da coo-peração que poucos dias após o ocorrido supracitado, Juvêncio Rangel dirigiu-se ao promotor público Joaquim José da Silveira, sujeito cujo currículo trazia notícias de sua destacada atuação nas hostes farroupilhas durante os arrancos de 1835. O con-

17 GRIBAUDI, Maurizio. Les descontinuités du social: un modéle configurationnel. In: LEPETIT, Bernard (direc-tion). Les formes de l’expérience: une autre histoire sociale. Paris, Éditions Albin Michel, 1995.p. 192.18 BERTRAND. Michel. Familles, fidèles et réseaux: les relations sociales dans une société d’Acien Régime. In: CASTELLANO, Juan Luis; DEDIEU, Jean-Pierre. Réseaux, familles et pouviers dans le monde ibérique. Paris: CNRS Éditions. 2002. p. 182.19 APERS – Comarca de Rio Pardo, Cível e Crime, n.º 4704, maço 94, ano 1860.

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teúdo do documento não só refletia o desgosto e a vergonha que perturbavam seu raciocínio, como, também, sua dúvida em relação ao resultado do processo crime que movia por injúrias verbais e desacato contra João Luis Gomes da Silva19. Rangel empenhava-se “por todos meios, colhendo indícios e provas” para “desagravar a força moral” de sua autoridade. Impor os rigores da lei a um sujeito cuja capacidade política e eficiência em arregimentar clientes eram reconhecidas entre seus pares se fazia necessário. Mas, para isso, era preciso mobilizar os laços políticos alinhavados com homens que também tinham interesses nos enfrentamentos com João Luis Gomes. Diante daquela constatação, o delegado observou ao promotor que

[...] Esse coronel, fiado no patronato político de uma facção de quem se tem constituído cabeça, animou-se a ir publicamente ameaçar-me com gritos e insultos para que mandasse soltar um seu peão ou agregado que havia sido recrutado. Foi tal o modo in-sólito com que exigiu essa soltura que tendo-lhe dado em flagrante delito vozes de prisão não encontrei nenhuma pessoa que então me coadjuvas-se; sendo cercado de empenhos para desistir fiquei tão coagido e aterrado por me ver assim isolado e ameaçado que quatro cidadãos se empenha-ram por aquela desistência.20

Mas além do promotor público Joaquim da Silveira, o delegado contava com outros interlocutores solidários à causa. Em “nome da verdade, da justiça e dos nobres sentimentos de homem que preza a honra e a dignidade social”, rogou ao capitão Joaquim José de Brito que não se deixasse “trepidar um só momento em proclamar mesmo que com receio do compromisso e considerações que possam fazer calar a voz da sua consciência” os insultos e ameaças praticados pelo coronel João Luis Gomes ao “negociante português José Francisco da Silva, cidadão respei-tável pela sua avançada idade e por iguais predicados”. Mesmo “retraído de julgar os atos do coronel João Luis Gomes”, o capitão não se esquivou da solicitação e, em reposta ao “afetuoso amigo”, asseverou que

estava este ancião sentado à porta da casa de minha residência, quando para ele dirigiu-se o supradito coronel agredindo-o de palavras e ame-açando dar-lhe com um chicote, ao que eu e mais pessoas que comigo então se achavam nos apressamos metendo-nos de permeio a eles acomodando-os, o que podemos conseguir antes que chegasse a vias de fato, retirando-se para logo o agressor conduzido pelo seu cunhado o Brigadeiro José Joaquim de Andrade Neves. Se não me consta que

20 Ofício apresentado ao promotor público Joaquim José da Silveira, pelo delegado de polícia Juvêncio Juvino do Rego Rangel. 16/08/1860. APERS – Comarca de Rio Pardo, Cível e Crime, n.º 4704, maço 94, ano 1860. fls 31- 32. 21 Correspondência enviada por Juvêncio Juvino do Rego Rangel ao capitão Joaquim José de Brito. Sem data. APERS – Comarca de Rio Pardo, Cível e Crime, n.º 4704, maço 94, ano 1860. fls 35. A resposta do capitão encontra-se no verso da correspondência.

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o agressor fosse responsabilizado pelo respectivo fato. É o que, por amor a verdade e aos princípios por vossa senhoria encovados em seu apelo, posso declarar sobre o fato que dá origem a esta resposta. Com a mais perfeita consideração sou de VSa afetuoso amigo e criado, Jo-aquim José de Brito.21

Entre os outros interlocutores de Rangel se encontrava Patrício Falkenback e José Joaquim de Andrade Neves, ambos cunhados de João Luis Gomes.

Em resposta a “desinteligência havida entre o coronel e o cidadão José Fran-cisco de Silva”, Falkenback observou “que cumpria-lhe dizer que é certo que este cidadão foi insultado pelo dito coronel, que armado de um chicote veio repreendê-lo em frente de uma obra que o mesmo Silva estava fazendo na rua da Imperatriz, cuja repreensão não foi mais adiante por ter intervindo diversas pessoas que presentes se achavam”22. Andrade Neves foi mais contundente e além de corroborar as informa-ções de Brito e Falkenback considerou ser “com grande pesar que respondo a carta retro por meu presente punho sobre os atropelos que tem praticado contra mim e outros cidadãos o homem de que fala vossa senhoria, do qual é meu inimigo como todo o Rio Pardo e Província sabem”23.

Mais uma vez estava criada uma situação sobre a qual convergia todo um intricado jogo de interesses, de entrosamento e de adesão social. Há poucos meses, um embate travado entre João Luis Gomes e Juvêncio Rangel descortinou nuanças de um processo em que seus protagonistas se mobilizaram, acionaram alianças e investiram com afinco na defesa de seus objetivos. Mas, no centro do novo atrito estava um sujeito que ocupava um lugar pouco privilegiado na hierarquia daquela so-ciedade. É verdade que o preto Francisco Cardoso não dispunha dos mesmos recur-sos que seus contemporâneos bem afortunados, tampouco tinha acesso às mesmas regalias dos senhores da boa sociedade. No entanto, tal posição lhe exigia colocar em prática as especificidades de uma rede de sentidos que consubstanciava ações de sujeitos que viviam sob as tensões próprias de um refinado sistema de controle social. Em outras palavras, o embrulho em que se viu metido suscitou que aquele praticamente invisível homem de cor colocasse em prática o aprendizado comparti-lhado em larga escala com seus contemporâneos.

Infelizmente não foi possível obter maiores informações sobre quem exa-tamente era Francisco Cardoso. Apesar disso, quis o destino que Juvêncio Rangel

²² Correspondência enviada por Patrício Falkenback a Juvêncio Juvino do Rego Rangel. 13/08/1860. APERS – Comarca de Rio Pardo, Cível e Crime, n.º 4704, maço 94, ano 1860. fl 36.²³ Correspondência enviada por José Joaquim de Andrade Neves a Juvêncio Juvino do Rego Rangel. 9/08/1860. APERS – Comarca de Rio Pardo, Cível e Crime, n.º 4704, maço 94, ano 1860. fl 37.

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deixasse registrado na documentação anexa ao processo crime movido contra o coronel João Luis Gomes, um detalhe que lança luzes sobre o recurso acionado na tentativa de exercer algum tipo de pressão sobre o delegado num momento crucial de sua vida. Mesmo sem saber os reais motivos que o levaram à cidade, o delegado observou que se tratava de um agregado de João Luis Gomes que andava pelas ruas da localidade. Mas tão logo recebeu voz de prisão, intitulou-se “escravo pra não prestar serviço algum à Nação”24.

Sem querer empregar um tom impressionista a atitude de Francisco Cardoso, a frase é digna de ser repetida. Justifica-se na medida em que demonstra sua habili-dade para mover-se num mundo pautado por relações de deferência e subordinação. Com eficiência, colocou-se entre o coronel e o delegado acionando o que definimos como uma espécie de deferência calculada/ instrumental. Ou seja, Francisco sabia que sua existência social estava atrelada a sua inserção em redes de dependência e de pro-teção próprias a uma sociedade que diferenciava seus membros, atribuindo-lhes po-deres e competências, e para nela mover-se, se fazia necessário acionar uma prática política sutil e inteligentemente articulada ao interesse de agir por entre as eventuais brechas de relações alicerçadas sob os princípios da autoridade e da subordinação25.

Valer-se do vínculo de camaradagem alicerçado com João Luis Gomes e ao mesmo tempo recorrer à rede de dependência que envolvia senhores e cativos são subsídios que nos permitem insinuar sobre os cálculos cotidianos de um homem que conhecia de perto a lógica da autoridade e da subordinação. Neste caso, o que menos importa é se Francisco era ou não escravo, mas sim o modo como instru-mentalizou politicamente sua condição social de subordinado e de supostamente cativo do desafeto de Rangel. Este, no mínimo, parece ter sido um fator que influiu no raciocínio do delegado, pois naquele mesmo dia cinco de agosto, após os de-sentendimentos com o coronel, o algoz de Francisco ordenou ao carcereiro João Bernardino de Abreu que o soltassem “imediatamente, visto ser o mesmo recrutado, segundo me consta, peão ou agregado do Coronel João Luis Gomes, o qual é meu inimigo capital”26.

24 Auto de denúncia apresentado ao promotor público Joaquim José da Silveira, pelo delegado de polícia Juvêncio Juvino do Rego Rangel. APERS – Comarca de Rio Pardo, Cível e Crime, n.º 4704, maço 94, ano 1860. 06/08/1860. fls 4-5.25 THOMPSON, E.P. Costumes em Comum. Estudos sobre a Cultura Popular Tradicional. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 57.26 Auto de soltura [sic] do preto Francisco Cardoso, expedido pelo delegado de polícia Juvêncio Juvino do Rego Rangel. 05/08/1860. APERS – Comarca de Rio Pardo, Cível e Crime, n.º 4704, maço 94, ano 1860. fls 34.

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Francisco saiu novamente de cena, não foi ouvido no processo. Contudo, a pendenga entre aqueles homens ainda teria novas repercussões. Outrossim, mesmo que o panorama daquela polêmica de cor política nos remeta a um conflito nascido na fronteira entre facções locais, parece lícito imaginar que tais embates não forma protagonizados por indivíduos mecânicos ou demasiadamente racionais, mas por indivíduos cujos comportamentos eram atravessados por um repertório de senti-mentos variados, nascidos nos bojo de tensões anteriores à prisão daquele simples homem de cor.

“AMEAçA-ME ESSE JUIZ COM UM PROCESSO,

O QUE RESPONDO COM UMA RISADA...”

Os embates pessoais entre João Luis Gomes e Juvêncio Juvino do Rego Ran-gel não eram tão recentes. Até onde sabemos, eles se agudizaram numa acalorada qualificação eleitoral. Mais especificamente, no dia 25 de abril de 1859, quando no consistório da igreja Matriz de Nossa Senhora do Rosário do Rio Pardo, o então juiz municipal Juvêncio Rangel foi surpreendido pelo coronel. Na ocasião, o líder da fac-ção saquarema não só observou ao juiz que vinha pessoalmente receber as sentenças dos recursos eleitorais despachados, como, também, intrepidamente meteu a mão no bolso e sobre a mesa jogou um maço de papel cujo conteúdo lançava suspeita sob a isenção política do presidente do conselho municipal de recursos eleitorais27. Ins-tilado pelo que definiu como fruto de uma “acintosa arquitetura política” esboçada a partir do dia em que a junta de qualificação havia sido instalada, João Luis Gomes não economizou palavras para também atacar o coronel José Joaquim de Andrade Neves. Conhecendo intimamente seu principal adversário político e consciente de que sua influência teria peso na lista final de votantes, João Luis Gomes assim se dirigiu aos “Ilustríssimos senhores do Conselho Municipal de Recurso”:

[...]Esse juiz trata de respeitável a junta de qualificação sem saber tal-vez o que exercem, porque para qualquer tribunal se torna respeitável é preciso que não se deixe corromper por empenhos, utilidades pró-prias, ou partidos políticos; e desde o dia que essa junta se instalou, já se fazia recomendações para não haver esquecimento de qualificarem o Tenente [Miguel Pereira de Oliveira] Meireles que estava em Porto Alegre. Sendo por fim o nome dele mandado escrever no final da lista geral dos votantes pelo Chefe desorganizador deste município às cin-

27 Depoimento de Francisco de Paula Liz, escrivão do judicial e notas do município. APERS – Comarca de Rio Pardo, Júri, Maço: 02, Processo Crime, n.º 47, 1859, fls.29v e 30r.

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co horas da tarde da véspera do dia que deveria assinar esta lista o que submissamente animaram os membros da junta esquecendo-se assim do cumprimento da lei e só tendo em vista a obediência à vontade desse que reconheciam como por seu chefe [...];Agora, ameaça-me esse juiz com um processo, o que respondo com uma risada, pois só teria medo de processo quando me forem eles instaurados por preva-ricações ou outros crimes semelhantes. [...] Rio Pardo, vinte e cinco de abril de 1859. João Luis Gomes.28

Embora longo, o documento não poderia deixar de ser citado praticamente na íntegra. Não é demais referir a escassez de fontes como os recursos eleitorais, mais ainda por se tratarem de documentos que podem nos oferecer pistas sobre os grupos que disputavam palmo a palmo o controle político local. Além disso, é pos-sível visualizar relances de um ambiente atravessado por conchavos e manobras que se colocavam em evidência ao longo das etapas de preparação dos pleitos eleitorais.

Ainda que a lei conferisse o direito de recurso eleitoral a qualquer cidadão, a prerrogativa transcendia as especificidades legais. Habituados a buscar subterfúgios para denunciar seus adversários, sobretudo quando urgia a necessidade de firmar oposição, sujeitos com certa influência já adquirida se valiam dessas prerrogativas institucionalizadas para denunciar publicamente os membros da facção no poder. Normalmente à frente de uma facção alternativa, um líder político rival testava o poder de seu competidor acusando-o de atos ilegais nas etapas que antecediam os pleitos ou nas eleições propriamente ditas.29 Foi o que João Luis Gomes não deixou de fazer ao acusar Juvêncio Rangel de mandachuva político de Joaquim José de An-drade Neves, por ele reconhecido como “chefe desorganizador” do município. Sob este ponto de vista, o recurso eleitoral apresentado além de um direito de contesta-ção ao poder de mando exercido pelo Liberal Progressista Andrade Neves, também pode ser pensado como um instrumento político acionado contra a “opinião pública corrupta” e de reivindicação da “honra, dignidade e ordem”.

João Luis Gomes sabia que desafiar uma liderança local e seus seguidores exigia certa capacidade de enfretamento, principalmente por se tratar de sujeitos aquilatados politicamente. Em outras palavras, e com certa obviedade, é coerente considerar que o coronel não iria aventurar-se ao enfrentamento caso não tivesse consciência dos recursos que para tanto dispunha. Questionar a conduta pública do

28 Documento apresentado por João Luis Gomes ao Conselho Municipal de Recursos Eleitorais. APERS – Comarca de Rio Pardo, Júri, Maço: 02, Processo Crime, n.º 47, 1859. Anexo, fls.21 – 25. (grifo meu)29 GRAHAM, Richard. Clientelismo e Política no Brasil do século XIX..., p. 165.

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juiz Juvêncio Rangel e também fustigar seu cunhado José Joaquim de Andrade Ne-ves talvez fosse uma ação estimulada pelo seu interesse de expor e reiterar prestígio, o que poderia evidenciar sua capacidade para enfrentar publicamente seus adversá-rios. Por outro lado, fazer-se ver capaz para tanto aos olhos de seus concidadãos e das autoridades superiores do Império era parte integrante e necessária de toda a parafernália que constituía a luta política, pois, de outro modo, somente com ações de violência explícita poderia evidenciar sua capacidade de criar uma clientela e fazer parte do jogo político graúdo.

Mas Juvêncio Rangel não estava sozinho naquela peleja. Ciente da necessida-de de reiterar constantemente sua imagem enquanto homem público e imbuído pelo propósito de honrar os compromissos firmados com seus sectários, o bacharel não teve outra alternativa a não ser aceitar o confronto e, em face das “injúrias, insultos e insinuações” amargamente digeridas, contra-atacar o coronel no campo da justiça. Sua queixa foi acolhida pelo juiz municipal suplente Manoel Assumpção Vianna e João Luis Gomes viu seu nome citado numa intimação judicial. Porém, o coronel optou em esquivar-se da audiência marcada para o dia 21 de maio daquele ano de 185930. Talvez, a necessidade de estabelecer adequada estratégia para enfrentar a es-caramuça tenha concorrido para que decidisse não comparecer em juízo³¹.

Ainda que João Luis Gomes não tivesse comparecido à audiência, as teste-munhas arroladas por Juvêncio Rangel foram ouvidas em juízo. O primeiro a depor foi o vereador municipal Antônio José Martins de Menezes, à época com 28 anos de idade e praticante do ofício de comerciante. Menezes pouco ou quase nada disse so-bre o ocorrido. Apenas considerou que havia ouvido ruídos sobre o desentendimen-to entre aqueles cidadãos e que no caso “dela testemunha passar por situação idênti-ca, também se sentiria injuriado”. Com mesma opinião se manifestou o comerciante e capitão da Guarda Nacional Antônio José Landim. Em seu depoimento salientou

30 Intimação expedida pelo juiz municipal suplente Manoel Assumpção Vianna, 18 de maio de 1859. APERS – Co-marca de Rio Pardo, Júri, Maço: 02, Processo Crime, n.º 47, 1859.31 A intimação foi assim respondia pelo Coronel João Luis Gomes: Acho-me doente de um pé desde que cheguei a este lugar [Fazenda das Ouveiras] e sem poder montar a cavalo, por isso não compareço no dia 21 do corrente como quer o senhor tenente coronel reformado, que, por má conduta habitual e o mais que consta do Conselho de Guerra a que respondeu não lhe tremeu a mão quando assinou um mandado para citar um coronel que sempre trilhou a estrada da honra a quem ora trata de criminoso. [...] E que talvez saiba de alguns bons bocados passados na Guarda Nacional do Rio Pardo, quando efetivamente exerceu o lugar de chefe do Estado Maior. Por isso senhor tenente coronel, se vossa senhoria tivesse dignidade, sendo nós como somos adversários há muito tempo, não deveria de aceitar ser juiz em pendência que comigo se movesse; mas cá, deste meu retiro das Ouveiras, eu bem calculei que só Vossa Senhoria no meu Rio Pardo poderia querer ser juiz no tal processo Juvêncio. Lembre-se, porém, que este pro-cesso não há de ser tão gostoso como foi o da dispensa do serviço de destacamento do filho do finado José Ferreira da Costa Terra. Fazenda das Ouveiras, 19 de maio de 1859. Coronel João Luis Gomes. Resposta à intimação expedi-da pelo juiz municipal suplente, o tenente coronel José Manoel de Assunção Viana ao coronel João Luis Gomes da Silva, em 18/05/1859. APERS – Comarca de Rio Pardo, Júri, Maço: 02, Processo Crime, n.º 47, 1859. fls. 26 e 27.

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que se inteirou dos fatos após ser noticiado por várias pessoas da localidade, todavia, concordava com o queixoso na medida em que se a ele testemunha fosse dirigida ofensa semelhante também se sentiria injuriado. O último a depor foi o tabelião do judicial e de notas Francisco de Paula Liz, homem de 44 anos e única testemunha ocular do desentendimento. Aparentemente bem relacionados, o tabelião e o coro-nel haviam se encontrado logo cedo na residência do primeiro, de onde seguiram para igreja pouco antes das nove horas. Contudo, mesmo com “mágoa”, revelou “não poder deixar de confessar” que as expressões utilizadas pelo amigo denotaram “injúrias graves”³². O processo correu a revelia do coronel João Luis Gomes e, ao que parece, a economia de palavras das testemunhas refletiu-se sobre o seu desfecho.

É verdade que o embate no âmbito formal da justiça se polarizou entre o coronel e o juiz. Porém, um “dossiê” montado pelo bacharel e seus correligionários não só ilustra que àqueles pólos conflitantes sujeitos outros estavam associados, como, também, revela a manobra política utilizada para comprovar os traços tempe-ramentais e os abusos praticados por João Luis Gomes, inclusive contra alguns de seus pares na pirâmide social. Conforme observou o juiz na queixa crime, constava no currículo do “odioso homem que tem por norma habitual e costume insultar impulsivamente a quase todos”, a forma desrespeitosa com que tratou “os restos mortais do infeliz Major João Manoel de Lima e Silva, então general dos dissidentes, durante a desgraçada revolução que assolou esta leal e valorosa província”. Contan-do com o auxilio de Andrade Neves, então comandante do Estado Maior da Guarda Nacional de Rio Pardo e Encruzilhada, Rangel teve acesso a cópia da ordem do dia na qual constava o relaxamento da prisão do à época capitão João Luis Gomes33.

Mas Andrade Neves fez mais. Demonstrando efetiva solidariedade política a Rangel “rogou” ao Tenente-Coronel Manoel Assumpção Vianna para que o militar dissesse “quem foi o oficial que foi à Vila e desmanchou o túmulo ou catacumba do falecido Major João Manuel de Lima e Silva, então general dos rebeldes”; solicitou ainda que fosse informado por escrito sobre a “maneira por que foi desmancha-

32 APERS – Comarca de Rio Pardo, Júri, Maço: 02, Processo Crime, n.º 47, 1859. fls. 29 e 30.33 “Exmo. Senhor Barão de Caxias, presidente e comandante em chefe do Exército, [...] manda publicar para que se cumpra o seguinte: Seja relaxado da prisão em que se acha o Sr. Capitão do 11º Corpo de Cavalaria de Guardas Nacionais João Luis Gomes da Silva e repreendido pela falta de subordinação com que se houve para com seu Ma-jor, como se acha provado no conselho de investigação que se procedeu sobre a parte dada pelo senhor dito Major. Sua Exa. está convencida de que a simples cerceação [sic] que tem sofrido o dito capitão Gomes da Silva será mais do que suficiente para por termo as suas maneiras pouco atenciosas para com seus superiores”. Quartel General do Comando em chefe do Exército, nesta leal cidade de Porto Alegre. 30 de dezembro de 1842. Ordem do dia n.º 11.Documento anexo à queixa crime. APERS – Comarca de Rio Pardo, Júri, Maço: 02, Processo Crime, n.º 47, 1859.34 Carta de José Joaquim e Andrade Neves a Manoel Assumpção Vianna. Rio Pardo, 8 de fevereiro de 1859. Docu-mento anexo à queixa crime. APERS – Comarca de Rio Pardo, Júri, Maço: 02, Processo Crime, n.º 47, 1859.

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do”. Finalizou o pedido reiterando ao seu sectário para que não se negasse de dizer a verdade, assim como “considerar-me a apresentar a resposta disto quando seja preciso”34. Andrade Neves obteve a reposta de Manoel Vianna tão logo às suas mãos chegou a correspondência. Sem titubear e “com estima e particular amiza-de” considerou que em 1841, quando marchava com 2º Batalhão de Caçadores de Linha, encontrou uma “força de Cavalaria a pé” na Vila de Caçapava; não ocasião, “disseram-lhe que iam arrasar o Túmulo do General dos Farrapos o Major João Manoel de Lima e Silva debaixo do comando do capitão então seu ajudante de nome João Luis Gomes”.35

Não obstante o desejo de oferecer outras notícias sobre os meandros do aten-tado praticado contra os restos mortais do farroupilha João Manoel de Lima e Silva, acredito não ser o caso de fazê-lo neste momento. Outrossim, parece claro que inde-pendentemente do lado em que “rebeldes” ou “valorosos legalistas” estavam, alguns códigos de conduta se impunham aos contemporâneos daquela sociedade. O epi-sódio ficou registrado na memória regional, pois, como lembrou Juvêncio Rangel, representou um “feito estranho e horroroso nos anais da história das nações cultas”. Quanto aos documentos propriamente ditos, José Joaquim de Andrade Neves não deixou de observar ao juiz Rangel que o mesmo poderia “fazer o uso que desta qui-ser fazer”. De forma astuta, também informou seu sectário que possuía mais duas cartas com o mesmo teor emitidas por “dois cidadãos distintos, sendo um General que me escreveu”. Blefe ou não, o futuro Barão do Triunfo registrou que não as mandaria por cópia em virtude de não tê-las em “[seu] poder nesta Vila”, contudo, “para o que convier asseguro a VSa serem do mesmo teor do que diz esta”36.

Circunstancialmente em desvantagem, o coronel João Luis Gomes acabou condenado “a quatro meses e meio de prisão e multa correspondente a metade do tempo de reclusão”37. Mas valendo-se do direito de recurso, apelou da sentença ao juiz de direito da Comarca de Rio Pardo, o Dr. Antônio Cerqueira Lima Júnior. Sem poder, contudo, contar diretamente com os “préstimos” do recém conhecido magis-trado, visto ter se afastado temporariamente do cargo sob a justificativa de “atacar

35 Carta de Manoel Assumpção Vianna a José Joaquim e Andrade Neves. Rio Pardo, sem data. Documento anexo à queixa crime. APERS – Comarca de Rio Pardo, Júri, Maço: 02, Processo Crime, n.º 47, 185936 Correspondência emitida por José Joaquim e Andrade Neves a Juvêncio Rangel. Rio Pardo, 28/04/1859. Docu-mento anexo à queixa crime. APERS – Comarca de Rio Pardo, Júri, Maço: 02, Processo Crime, n.º 47, 185937 Sentença pronunciada pelo juiz municipal suplente Joaquim Manoel de Assumpção Vianna, 23/05/1859. APERS – Comarca de Rio Pardo, Júri, Maço: 02, Processo Crime, n.º 47, 1859, fl. 30.38 Carta emitida por João Luis Gomes a Pedro Rodrigues Chaves. Rio Pardo, 23 de maio de 1859. AINSPRP -Bor-rador de correspondências de João Luis Gomes.

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a moléstia que lhe acometia o peito”38, João Luis Gomes apresentou o recurso ao segundo suplente Dr. Júlio Armando de Castro, então juiz municipal de Cachoeira.

Ao poucos, o embate travado na justiça foi oferecendo novas pistas sobre as redes de relações que aqueles sujeitos entretinham. Juvêncio Rangel era “amigo ín-timo” de Armando de Castro, havia sido inclusive “testemunha” de seu casamento. O elo de amizade entre aqueles bacharéis foi observado por João Luis Gomes como um impedimento legal para que o juiz de Cachoeira apreciasse sua apelação.39 Nestes termos, o julgamento ficou aos encargos de João Thomaz de Menezes, substituto imediato do compadre de Rangel.

Até onde foi possível saber, não há elementos suficientes para deduzir que o juiz de direito suplente da comarca de Rio Pardo tivesse algum tipo de laço mais sólido (parental ou não) com o coronel João Luis Gomes. Nesse sentido, também fica a dúvida quanto ao tipo de relação que Menezes e Rangel poderiam ter e se é que tiveram alguma. De qualquer forma, o fato é que, apesar do esforço mobilizado em torno da condenação de João Luis Gomes, a sentença foi reformada no dia 25 de junho de 1859. Thomaz de Menezes considerou que o processo não obedeceu às aplicações ordinárias da lei. No seu entender, a circunstância exigia que antes da efetiva pronúncia criminal, a parte acusatória “pedisse explicações” ao acusado “em juízo ou fora dele, como exige o artigo 240” do Código Criminal do Império.40 Não tendo Rangel “satisfeito a este preceito da lei para que se pudesse verificar a existên-cia do delito”, o juiz observou que a “causa” correu a revelia de Gomes, “ficando ele inibido de defender-se no juízo de primeira instância”. Além das questões de ordem prática que a lei impunha, o “meritíssimo julgador” sublinhou a subjetividade ine-rente aos termos “insolente”, “insolência” e “orgulho”. Segundo o juiz, as diversas acepções, “umas inofensivas e outras injuriosas”, impunham e ao mesmo tempo reforçavam a caráter duvidoso do sentido que foram empregados nos documentos. Diante disso, considerou infundada a acusação e a respectiva sentença41.

É elementar a assertiva de que o historiador não pode se deixar contagiar pelo conteúdo da informação instantaneamente oferecida pela fonte. Todavia, indepen-

39 Auto de protesto apresentado pelo coronel João Luis Gomes da Silva, 11/06/1859. APERS – Comarca de Rio Pardo, Júri, Maço: 02, Processo Crime, n.º 47, 1859, fl. 36.40 O coronel João Luis Gomes havia sido pronunciado pelo crime de injúrias verbais e a ele imputado “o grau máxi-mo das penas do art. 237 § 2º do Código Crime, combinado com art. 238 do mesmo código”.41 Auto de julgamento de segunda instância. Cachoeira, 27/06/1959. APERS – Comarca de Rio Pardo, Júri, Maço: 02, Processo Crime, n.º 47, 1859. fls 56-57.42 SILVA, Antonio de Moraes. Diccionario da Língua Portuguesa. Tomo 2, Lisboa, Tipografia Lacerdina, 1813, p. 173

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dentemente do acesso às pistas pontuais sobre as motivações que levaram Thomaz de Menezes a absolver João Luis Gomes, aparentemente não foi a quebra da rotina jurídica exigida pelo Código de Processo Crime, tampouco a ambigüidade dos ter-mos utilizados pelo coronel os elementos determinantes no julgamento do magistra-do de Cachoeira. Resta bastante claro que o termo “insolente” utilizado pelo coronel torna-se sinônimo acusatório de um suposto “crime de grande escândalo”42 público a que Rangel havia se prestado. Também não resta incerteza quanto ao qualificativo utilizado para contrapor pessoalmente os despachos efetuados por Rangel. Ao afir-mar que o juiz presidente do Conselho de Recursos não sabia “respeitar a honra de seus semelhantes, caindo no mesmo vício de seus algozes e irrogando ao apelante as mais atrozes injúrias”, fica claro que o coronel interpretou o ato de seu desafeto como uma “insolência” no sentido de um “desaforo, atrevimento, arrogância, arro-jamento extraordinário”43; no seu entendimento, algo que feriu o “orgulho”44 de um homem de alma elevada que se tinha como “nobre”, “pessoa egrégia, condecorada” e que deveria ser tratada “com toda a urbanidade”.

O caso foi encerrado no âmbito da justiça e o senhor da Fazenda das Ouvei-ras demonstrou sua capacidade de firmar oposição ao bando político liderado por Andrade Neves. Contudo, não seria muito difícil supor que aqueles homens ainda iriam protagonizar novos reboliços na Rio Pardo dos tempos de Pedro II, ainda mais se considerarmos que o episódio se desenvolveu no rastro de tensões animadas por acirradas disputas em torno do controle político local. Essas possibilidades de fato viraram realidade, pois, como vimos, a correspondência do Tenente Coronel Pinto Porto, assim como a prisão de Francisco Cardoso e os embates entre João Luis Gomes e Juvêncio Rangel são alguns dos eventos que nos ajudam a refletir sobre aqueles jogos de disputas políticas locais e ainda se encontram a espera de análises que ampliem o microscópio de observação para além do recorrente estudo das elites como principais agenciadores das tramas do social. Em proximidade com homens de elite, os populares em geral (livres ou cativos) também eram agentes reais de histórias aparentemente fragmentadas, porém constituídas a partir de expectativas levadas a efeito na senda de uma deferência instrumental. Portanto, seus compor-tamentos e formas de interação social também denotavam protagonismo político.

43 SILVA, Antonio de Moraes. Diccionario da Língua Portuguesa... p. 174.44 “Orgulho: ufania; soberba, elevação da alma, nobre ou repreensível segundo os motivos [...]”. SILVA, Antonio de Moraes. Diccionario da Língua Portuguesa... p. 369.

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PALAVRAS FINAIS

Em tempos que a historiografia volta-se cada vez mais para as dimensões políticas das tramas do social, parece possível falarmos numa história social das cul-turas políticas decididamente voltada para o enfoque dos comportamentos, sentidos e ações dos atores sociais. Focada na idéia de que por trás da ação social existem repertórios culturais com os quais, e em relação aos quais, os atores se movem, a recente historiografia tem demonstrado que as ações individuais e/ou coletivas não se situam em nível superficial, mas que possuem um determinado sentido anterior, um sentido que é adquirido e ressignificado de forma gradual pelos atores sociais. Sob essa perspectiva, amplia-se o espectro de análise em relação ao comportamento individual, aos mecanismos de consciência e aos significados atribuídos pelo atores em relação a uma dada realidade e forma de ação. Em outras palavras, significa dizer que toda a ação individual pode ser considerada uma ação social e política ao mesmo tempo, pois se origina de uma acumulação de conhecimentos e de interações concre-tas entre os atores implicados numa dada configuração relacional.

De um modo geral, poderíamos considerar que não faltam motivos para que o social seja interrogado sob novas lentes. Do ponto de vista da história social, destaca-se o interesse cada vez maior pelos grupos e suas dinâmicas sociais; no amplo espectro de abordagem do social não interessa apenas quem são os indivíduos (se senhores, populares, comerciantes, militares, escravos ou trabalhadores em geral), mas o que esses indivíduos fazem, suas práticas sociais (com quem casam, com quem comerciam, com quem se aliam ou quem se enfrentam). Convertida em história do poder e suas práticas, a nova historiografia da política tem buscado indagar com maior precisão que tipos de poderes existem numa dada formação social, sobre suas bases legitimadoras, suas formas de exercício, linguagens e conteúdos convertidos em ação política45.

Assim sendo, perseguir respostas em torno do processo de formação de clientelas, da prática política paternalista de integração e de dominação exige que o pesquisador leve em conta os aspectos concernentes às interações sociais efetivas que ligam sujeitos com recurso (materiais e imateriais) desiguais. Quando nos depa-ramos com um emaranhado de ligações entre sujeitos imersos em relações de poder como as que fundamentam as redes de ordem clientelar e paternalistas, nos damos conta de que seus comportamentos não podem ser considerados como decorrentes de um simples “agregado de relações sociais”. Talvez, mais proveitoso possa ser bus-car compreendê-las a partir de uma concepção de rede de relações sociais que seja capaz de privilegiar as interações contínuas das diferentes estratégias individuais46. 45 PILAR, Ponce Leiva; ARRIGO, Amadori. Historiografía sobre élites en la América Hispana: 1992-2005. Chronica Nova. n.º32. Granada, 2006.46 BARTH, Fredrik. O guru, o iniciador e outras variações antropológicas. Rio de Janeiro/RJ: Contra Capa Livraria, 2000. p. 170.

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Nesse sentido, a ênfase de observação recai sobre os vínculos (temporários ou du-radores) que se estabelecem entre os indivíduos suas formas de ação social baseadas nesses vínculos.

Assim pensadas, as relações interpessoais passam a ser interpretadas como um espaço de interação política que articula diferentes esferas da sociabilidade. To-davia, as unidades sociais (sujeitos, famílias ou facções) não podem ser consideradas de modo isolado, como links relacionados às normas que definem um conjunto de práticas e expectativas recíprocas, mas como um espaço de interação que liga o poder, a cooperação e o conflito em uma determinada configuração social47. Talvez não seja demasiado considerar que a análise das relações interpessoais pode nos oferecer possibilidades para descrevermos os comportamentos e ações sociais de sujeitos singulares diante das limitações de uma realidade normativa intrínseca à sociedade (ou sistema social) estudada, pois, como observou Giovanni Levi, “toda ação social é vista como resultado de uma constante negociação, manipulação, esco-lhas e decisões do indivíduo, diante de uma realidade normativa que, embora difusa, não obstante oferece muitas possibilidades de interpretações e liberdade pessoais”. Portanto, a questão conforme Levi, passa a ser a de “como definir as margens – por mais estreitas que possam ser – da liberdade garantida a um indivíduo pelas brechas e contradições dos sistemas normativos”48.

Definir empiricamente essas interações, assim como as margens de liberdade e de ação dos atores sociais não resta tarefa simples. Ainda mais se tratando de for-mas relacionais configuradas entre sujeitos que viveram num tempo relativamente distante do nosso e que infelizmente não temos como entrevistá-los como fazem os antropólogos ou cientistas políticos. Enquanto historiadores nos restam apenas pos-sibilidades de acessar fragmentos, restos, vestígios instantâneos daquelas interações sociais. Giovanni Levi já observou que “los hombres son todos iguales y, en teoría, todos tienen la razón, aunque producen comportamientos y actuaciones distintas, dependiendo de la cantidad de información que poseen”49. Nesse sentido, para além dos limites impostos pela distância temporal parece ser a utilização criativa dos frag-mentos que nos chegam através de papéis envelhecidos depositados em diferentes fundos documentais as ferramentas que poderão nos auxiliar a detectar não apenas como operavam as interconexões sociais, senão, como essas se convertiam em vín-culos, informações, recursos através do quais se efetivava distintas racionalidades.

47 MOUTOUKIAS, Z; DEDIEU, J. P.. Introduction. In: CASTELLANO, J. L.; DEDIEU, J. P. Réseaux, familles et pouvoirs dans le monde ibérique à la fin de l’Ancien Régime. Paris: CNRS Éditions. 2002. p. 09.48 LEVI, Giovanni. Sobre a micro-história. In: BURKE, Peter. A escrita da História: novas perspectivas. Trad. Magda Lopes. São Paulo: UNESP. 1992. p. 13549 LEVI, Giovanni. Antropologia y microhistoria... In: Revista Manuscrits, Barcelona nº 1, Enero,1993, p.24.

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Portanto, podemos concluir que no campo de reflexão no qual se encontra o debate sobre redes sociais e sua aplicabilidade na pesquisa histórica, os vínculos sociais situam-se como elementos fundamentais da análise. Pois o que interessa ao pesquisador são as formas como eles operam na constituição de um corpo político, nas redes de poder e no modo como são transmitidos e/ou redistribuídos recursos, serviços e saberes; em fim, como essas articulações colocam os atores sociais em dinâmicas e processos históricos.

Assim observadas, as sociedades do passado poderão ser compreendidas de um modo mais próximo da realidade vivida. Estudar os atores sociais a partir de uma perspectiva mais abrangente e dedicada a compreender os diálogos sociais efetivos, exige que se leve em conta a globalidade dos elementos que constituem os atores sociais e que sobre suas relações convergem: os contextos e os processos sociais. Conforme observou José Maria Imízcoz, será deste modo que a história de homens e mulheres como atores históricos poderá ser uma historia social da política, das ins-tituições, da economia, da sociedade e da cultura. Em síntese, sob o ponto da vista dos estudos históricos, os modelos de análise focados nos atores sociais e em suas redes deve atentar para tudo o que os historiadores e cientistas sociais tem aprendido com o tempo:

la relación entre acção racional y habitus, la relacipon entre decisión individual y sistemas normativos; la relacipon entre redes de indivídu-os e instituiciones politicas y sociales; la relación entre las realidades económicas materiales y las visiones de los actores sociales; las expe-riencias productivas, laborales, societarias y la generación de formas de conciencia, de ideología y de acción social y política; la historia dife-rencial de grupos con dinámicas y endogamias diferentes que puedem convivir tangencialmente, sin encontrarse apenas, hasta que se inter-sectan y entran em conflicto abierto o en procesos revolucionarios50.

Certamente não seria nos espaço deste texto o momento para oferecermos resultados finais de uma pesquisa em andamento. Antes, nossa expectativa é a de apenas abrir espaço para o debate sobre as potencialidades que o recurso analítico das redes pode oferecer para a análise dos vínculos sociais entre os quais entram os de amizade e camaradagem, assim como sobre seus desdobramentos no campo das disputas políticas locais. Por meio de correspondências e de processos criminais buscamos oferecer indícios sobre eventos que envolveram sujeitos com diferentes gradações sociais. Com essa perspectiva tentamos oferecer vestígios de relações de

50 IMíZCOZ, José Maria. Introducción: Actores sociales y redes de relaciones: reflexiones para una historia global. ________(dir.). Redes familiares y patronazgo. Aproximación al entramado social del País Vasco y Navarra en el Antiguo Régimen (siglos XV-XIX). Bilbao: Universidad del País Vasco, 2001, p. 29.

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poder imersas em relações pessoais nas quais se negociavam lealdades por proteção social, como a que envolveu João Luis Gomes da Silva e seu camarada Francisco Cardoso; sobre os intercâmbios recíprocos entre indivíduos com recursos e neces-sidades similares dentro de um contexto de sociabilidade e de confiança, como foi o caso do apoio oferecido por Joaquim José de Brito, Patrício Falkenback e José Joaquim de Andrade Neves à causa de Juvêncio Rangel. Na senda dessas dinâmicas relacionais também pensamos ter consegui desvelar alguns fragmentos do jogo de poder e influência que atravessava e, ao mesmo tempo, interconectava as facções políticas locais no campo das disputas por facilidades de acesso aos intercâmbios de serviços entre poderosos e seus dependentes.

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SiglaS

AHRS - Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul APERS - Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul Acervo da Irmandade de Nosso Senhor dos Passos – Rio PardoC.Cav. - Corpo de CavalariaGN - Guarda Nacional

FONTES PESQUISADAS

Correspondência 22º C.Cav. maço n.º 97. Guarda Nacional - Rio Pardo – AHRS Processo Crime n.º 4704, maço 94, ano 1860. Cível e Crime, Comarca de Rio Pardo – APERS.Processo Crime, n.º 47, maço 02, ano 1859. Júri, Comarca de Rio Pardo - – APERS.Borrador de correspondências de João Luis Gomes (sem especificação) – AINS-PRP

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do Provedor à rede de soCiAbilidAde

Paula Andrea Dombkowitsch Arpini

Resumo: O artigo busca analisar algumas redes de sociabilidade de Inácio Osório Vieira, que foi provedor da Capitania do Rio Grande de São Pedro, subalterna do Rio de Janeiro, durante mais de 30 anos, no período que se entende aproximadamente de 1765 até 1799. O recorte temporal da pesquisa será de 1760, com a chegada de Inácio Osório a Capitania de São Pedro, até 1798, com o fim definitivo da Provedoria da Fazenda Real. Mediante a trajetória individual de Inácio Osório Vieira, bus-caremos evidenciar como as práticas individuais deste oficial régio podem revelar aspectos importantes da trama social, contribuindo para entendermos como ele foi tecendo suas relações sociais, em cons-tantes negociações com as elites locais e seus subalternos para viabilizar sua administração enquanto provedor da Fazenda Real.

Palavras-chave: Provedor – Espaços de Interação – Redes de Sociabilidade

INTRODUçãO

O presente artigo tem por objetivo contribuir com algumas considerações sobre as redes de sociabilidade existentes na configuração do Império Ultramarino Português. O trabalho versa

especialmente sobre o provedor Inácio Osório Vieira e as redes de sociabilidade nas quais esteve envolvido, enfocando suas relações de compadrio e sua participação das Confrarias Religiosas.

A escolha de Inácio Osório se fez pelos atributos que definiam esse persona-gem, tais como as suas relações de poder, seus compadrios, seu status de provedor, além da reflexão que podemos fazer acerca do mando da Coroa no ultramar, as práticas da monarquia corporativa, como a concessão de dons e mercês e as tensões entre o público e o privado, típicas de sociedades de Antigo Regime. Sua trajetória, só interessa na medida em que foi provedor da fazenda, pois as opções de Osório estavam disponíveis a outros sujeitos desde que ocupassem seu cargo.

O PROVEDOR

Natural da cidade de Lamego, em Portugal, Inácio Osório Vieira era um ho-mem de origem nobre que veio para Brasil, ao que tudo indica, com sua mãe, suas

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duas irmãs e um irmão, após a morte de seu pai, na tentativa de obter algum meio de sobrevivência. Ao vir para a América, Inácio Osório detinha consigo a possibilidade de alargamento de seu cabedal material. Numa percepção de mundo de sociedade hierarquizada Osório veio buscar meios para sobreviver mais conducentes “ao san-gue de seus progenitores”¹.

Já na colônia, Osório consegue ocupar alguns cargos em Santo Antonio de Sá no Rio de Janeiro² e na Ilha do Desterro de Santa Catarina³. Vem então para o Rio Grande de São Pedro onde se estabelece como Juiz de órfãos4, Escrivão da Câmara5 e, posteriormente, provedor da Fazenda Real.6

órgão administrativo muito importante, a provedoria7 proporcionava inúme-ros privilégios8, bem como detinha uma determinada autonomia, podendo recorrer, em suas decisões, diretamente ao Vice-rei do Brasil. Segundo Cunha9, o atributo central da função de um provedor “era em boa medida relacionada com sua posição econômica privilegiada e o crédito que gozava entre os outros homens de negócio”. Desta maneira, o cargo de provedor da Fazenda era muito valorizado, tanto devido às honras e liberdades de que dispunha, quanto pelo status social que proporcionava.

A imagem de Inácio Osório como Provedor da Real Fazenda é a de um fun-cionário cumpridor e atento às determinações régias, dedicado, zeloso e honesto. No momento em que defendia os interesses da Coroa, Osório defendia, portanto,

¹ AHU- Rio de Janeiro, Cx 67, doc. 15.784, Requerimento 14 de Abril de 1752.² AHRS Códice 1244, p. 121r-121v.³ AHU, Rio de Janeiro Caixa 58 doc. 13573. Requerimento, 15 de julho de 1748.4 Carta do ouvidor da Comarca Duarte de Almeida Sampaio, em que faz referência ao Juiz de órfãos Inácio Osório Vieira. ANRJ. Fundo Vice-Reinado. caixa 749, pct. 03, fl.41-52. Material fornecido pelo meu orientador professor Fábio Kühn.5 Registro de uma Provisão. AHRS. Códice F1243, p. 36, 36v, 37. 6 AHPAMV. Códice 1.26, p. 60- 61v.7 A Provedoria da Fazenda Real do Rio Grande de São Pedro foi criada em 1748, juntamente com as Provedorias da Colônia do Sacramento e Santa Catarina. Um dos órgãos que viabilizaram o mando português na América foi o responsável por tudo que dissesse respeito aos contratos e rendas reais, como pagamento de côngruas e pelo recebimento do valor relativo à arrematação dos contratos de cobrança dos dízimos eclesiásticos. Além disso, ficava com um terço do valor recolhido pela Câmara do arrendamento do direito de exploração de seus bens e serviços públicos. Era responsável também pelo pagamento e munício de tropas, pagamento de clérigos, auxílio de povoado-res e arrecadação de recursos para as despesas na manutenção do território. MIRANDA, Márcia Eckert. Continente do Rio Grande de São Pedro: a administração pública no período colonial. Porto Alegre: Assembléia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul. Ministério Público do Estado do RS/ CORAG, 2000, p. 89. 8 Privilégios políticos, sociais ou mesmo mercantis. In: FRAGOSO, João. BICALHO, Maria Fernanda e GOUVêA, Maria de Fátima (Org.). O Antigo Regime nos Trópicos: A dinâmica imperial portuguesa. (Séculos XVI – XVIII). Civilização Brasileira: Rio de Janeiro, 2001, p. 44. 9 CUNHA, Alexandre Mendes. Minas Gerais, da capitania à província: elites políticas e a administração fazendária em um espaço em transformação.Tese de Doutorado. UFF: Niterói, 2007, p. 263.

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o bem comum10. Na maioria dos documentos, além de expor seu zelo em relação ao Rei, coloca sua apurada “limpeza de mãos”11, denunciando os comércios ilícitos na Capitania, como o contrabando de mulas. Nesse sentido, era muito importante o “zelo” pelos assuntos régios, bem como o “desinteresse” diante de possíveis ambi-ções particulares. O Rei, por ser justo, deve ter um bom vassalo, e este, por sua vez, deve responsabilidade com seu monarca.

Esses dirigentes administrativos, como o provedor, obedeciam às determina-ções emanadas do poder central, e, ao mesmo tempo, teciam relações que recriavam o contexto político da prática cotidiana. Por isso, é necessário entendermos como funcionava essa monarquia corporativa e como essas redes sociais e políticas atraves-savam variados espaços de interação.

OS ESPAçOS DE INTERAçãO DA MONARQUIA CORPORATIVA

Em uma monarquia corporativa como a do Antigo Regime era necessário que a Coroa tivesse capacidade de lidar e negociar com as elites coloniais, seja por dis-tribuição de honrarias, títulos, concessão de privilégios ou mercês. Segundo Maria Fernanda Martins12 essas estratégias de ação “não devem ser vistas como um projeto predeterminado, como um conjunto de ações coerentes e homogêneas por parte das elites”, mas sim como um movimento baseado em relações sociais em constan-te tensão. A concessão de mercês no ultramar - sistema de benesses – ou Economia de Serviços é uma prática comum que se estabelece a partir de redes de reciprocidade. A elite, então constituída por beneficiários do rei, monopolizava os principais cargos, em troca de serem bons súditos, ou vassalos. Nesse paradigma corporativista, o Rei é patrono e a sociedade é vista como um todo, onde as partes têm funções específicas e dependem umas das outras.

10 A economia de bem comum pode ser entendida como um tipo de economia de serviços em que a elite mono-polizava os principais cargos e ofícios. A partir do século XV, essa prática começou a ser transmitida no ultramar. A Coroa portuguesa concedia então postos administrativos ou militares, que proporcionavam além de ordenados, privilégios, isenções alfandegárias e honras. Essa prática de concessão de dons e mercês era muito comum na monarquia corporativa. FRAGOSO, João. A nobreza da República: nota sobre a origem da primeira elite senhorial do Rio de Janeiro (séculos XVI e XVII), Topi, número 1, Rio de Janeiro: 7Letras, 2000, pp. 94-101. FRAGOSO, 2001, pp. 43-50. 11 AHRS. Códice F1244 , p.147.12 MARTINS, Maria Fernanda. Os tempos da Mudança: elites, poder e redes familiares no Brasil, séculos XVIII e XIX. In: FRAGOSO, João. CARVALHO de ALMEIDA, Carla Maria e SAMPAIO, Antônio Carlos Jucá de (org.). Conquistadores e Negociantes. : História de elites no Antigo Regime dos Trópicos. América Lusa, Séculos XVI a XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p. 430.

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A intricada rede de cargos e jurisdições que viabilizavam a presença da autoridade régia, identificando o bom governo à aplicação da justiça, constituía-se numa extensa rede de clientela cujo patrono era o pró-prio rei, pessoalmente ou na figura de seus conselhos ou tribunais. [...] é a partir dessa relação que se pode caracterizar a lógica comum que informava as estratégias dos diferentes agentes na disputa por ganhos materiais ou simbólicos13.

Percebemos assim, que as redes clientelares se estabelecem nas práticas desse universo político do Antigo Regime, perpassando inclusive a sua dimensão política (formal), na flexibilidade da economia de favores (informal). Essa economia reforça-va e legitimava a hierarquia social, na medida em que colaborava para o processo de constituição e reprodução das redes clientelares. Nessa perspectiva, existia a disputa de cargos, que possibilitava para os vassalos uma determinada mobilidade social, com ganhos simbólicos ou/e materiais. O Rei ou benfeitor tinha flexibilidade para se fazer valer disso, mantendo um determinado poder sobre as ações de restituição e redistribuição de mercês. “Mais do que um rei acima das disputas, tem-se um rei imerso nelas”14.

Em vista disso, esses benfeitores poderiam ser intermediários, como o Vice-Rei do Brasil, ou o governador, o provedor, um agente da Câmara, ou até mesmo um estancieiro. A questão é que, em relação ao rei, sempre serão intermediários15. A política então, não era algo descolado da sociedade, mas estava imersa nas próprias relações sociais. As redes de poder não pressupunham apenas relações políticas, pois antes de estruturar a política elas se organizavam no próprio tecido social.

Desta forma, as práticas clientelares e as redes que estas alimentaram exerce-ram papel fundamental no próprio processo de centralização. Como poderes parale-los, poderiam funcionar como obstáculos à expansão do poder real, mas paradoxal-mente, uma vez controlados, abriam caminho para um maior domínio da política e para o próprio reforço da unidade central16.

Nesse sentido, a concentração de poderes não ficava apenas nas mãos do mo-narca, mas abarcava todos seus súditos. Essa “identidade corporativa” atravessava o âmbito público e se ressignificava em outras associações, como redes de parentesco, compadrio ou alianças políticas e religiosas.

13 BARROS, Edval de Souza. Redes de Clientela, Funcionários Régios e Apropriação de renda no Império Português (séculos XVI- XVIII). In: Revista de Sociologia e Política. nº 17. 2001, p. 135.14 “Ao dar, o benfeitor ou patrono confirmava sua posição social, e tais atos deveriam ser marcados pela liberalidade, e magnificência, garantindo o impacto político desejado.” Ibid., p. 132. 15 XAVIER & HAESPANHA, XAVIER & HESPANHA, Antônio Manuel. In: MATTOSO, José (dir.). História de Portugal. O Antigo Regime. Lisboa: Ed. Estampa, vol. 4, 1993, p. 381-389.16 MARTINS, 2007, p. 421.

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Nesse contexto, podemos pensar a trajetória de Inácio Osório Vieira nos di-versos cargos que ocupou até se tornar provedor. A concessão de pequenos cargos, como o tabelião de notas e escrivão da Câmara, demonstra que esses administrado-res régios realizavam um determinado percurso, passando por cargos mais modestos até chegarem aos cargos mais disputados. Por outro lado, esses cargos menores eram concedidos por um tempo mais curto, geralmente três anos, e, embora muitas vezes não tivessem nenhum ordenado, ou ganhos materiais imediatos, colaboravam para arrecadação de emolumentos17. Já o posto de Capitão da Ordenança, graça recebida em 1764 pelo futuro provedor,18 significou não apenas ganhos simbólicos, mas tam-bém privilégios, honras e isenções. Portanto, esses pequenos e médios cargos eram estratégicos, na medida em que serviam de elo para posições mais distintas. Mesmo o Rio Grande de São Pedro não ser uma região de muita atração, tendo em vista que era uma Capitania subalterna do Brasil, tornar-se provedor da Fazenda Real signifi-cava uma posição de preeminência. Esse posto de maior prestígio, junto com todo seu percurso, possibilitou Osório não apenas acumular relações, mas estabelecer vínculos permanentes com muitos membros da elite na Capitania.

OS COMPADRES DE INÁCIO OSóRIO VIEIRA

Ao detectarmos os compadres de Inácio Osório pudemos verificar melhor o quão importante são esses laços numa rede de reciprocidade. Analisando essas rela-ções compreendemos melhor a dimensão desses vínculos, além da sólida estratégia de manutenção nos estatutos sociais. Segundo Fábio Kühn, o compadrio pode ter uma dupla função:

Por um lado, ele reforça os vínculos prévios existentes entre as pesso-as [o caso dos cunhados que também eram compadres, por exemplo], por outro ele cria laços entre as famílias de elite e indivíduos de pres-tígio naquela sociedade19.

17 Para João Fragoso, nesse sistema de benesses na forma de ofícios, o que estava em jogo não eram tanto os sa-lários pagos pela Fazenda Real, mas sim, e principalmente, os emolumentos que deles, entre outras possibilidades, poderiam auferir. FRAGOSO, 2001, p. 45. Entretanto, verificamos em um documento sobre rendimentos públicos, que o ordenado do provedor da Real Fazenda regulava-se m 640 mil réis, enquanto os emolumentos eram em torno de 50 mil réis. Isso significa que os emolumentos, no caso do cargo de provedor da fazenda, equivalia a menos de 10% do valor do ordenado. ANRJ. Códice 68. Vol. 5. [1782]. Correspondência dos Vice-Reis para Corte. Material concedido por Adriano Comissoli. 18 Este cargo não recebe soldo algum, mas goza de graças, privilégios, liberdades e isenções. A pessoa que assume o posto também fica obrigada a residir na Vila ou no distrito solicitado. Registro de patente. AHPA. Códice 1.26 p. 27v- 28v.19 KÜHN, Fábio. Gente da fronteira: família, sociedade e poder no sul da América Portuguesa - século XVIII. UFF. Tese de Doutorado em História. 2006, p. 236.

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No caso de Osório, acreditamos que suas relações se estabeleceram de forma a aproximar os vínculos existentes com outros indivíduos. Ao total, encontramos nos registros de batismos 45 afilhados20, o que demonstra que ser afilhado de um provedor, cargo de prestígio e distinção social tinha grande significado. Para além disso, ao batizar alguém, Inácio Osório Vieira estabelecia relações que poderiam reforçar laços já existentes ou que estavam para ser cultivados. Nesse sentido, o compadrio aparece como uma prática que colaborava para o provedor cercear-se de uma rede de reciprocidade e até mesmo estruturá-la. Era uma forma de reforço no seu círculo relacional, que garantia sua própria lógica de governação.

Apesar de ter vindo para o Brasil com as irmãs, o irmão e a mãe, não encon-tramos nenhum documento referente a possíveis casamentos das irmãs e irmão e, sendo assim, nenhum laço com cunhados. Ao que tudo indica, Osório Vieira era solteiro21 e não se casou, bem como não aparece morando com familiares. Tal cons-tatação sugere que o provedor não tenha tido filhos, e, portanto, sua grande lista de afilhados pode nos levar a crer que o provedor estivesse querendo formar uma clientela. Desta forma, sua presença freqüente nos livros de batismo, e o quadro de relacionamentos que a partir disso se cria, podem sugerir uma estratégia de garantir apoio, decorrentes de contatos, para manter sua governabilidade.

Nesse sentido, podemos acrescentar que no compadrio de Osório se estabe-leceram relações horizontais, entre seus pares da elite, e verticais, quando se formava uma clientela. Evidentemente, os laços verticais podem sugerir o quão poderoso era o provedor, que acabava por estabelecer esses laços de dependência pessoal, e um séqüito de subordinados, como coloca o governador José Marcelino de Figueiredo22. Esse séqüito, como bem expõe Kuhn, “talvez não servisse para ampliar seu poderio, mas tinha um significado simbólico importante naquela sociedade, tão impregnada pelos conceitos de distinção e valorizadora do prestígio decorrente desses marcadores sociais”.23

Analisando seus batismos, verificamos que dos 45 afilhados Osório tinha 37 compadres, pois, em alguns casos, batizava mais de um filho do respectivo, como foi o caso de Domingos de Lima e Veiga, José Francisco de Faria, Leandro José da Costa e Manuel Fernandes Vieira. Outro ponto importante é que, pelo que podemos

20 KÜHN, Fábio; NEUMANN, Eduardo (org). Projeto Regate de Fontes Paroquiais. Porto Alegre – Viamão (século XVIII). Porto Alegre: UFRGS, 2009. CD-ROM. Livro 1º de batismos de Porto Alegre (1772 – 1797); 2° Livro de Batismos de Porto Alegre (1792-1799) Livro 2º de batismos de Viamão (1759 – 1765), Livro 3º batismos de Viamão (1769- 1782) ,Livro 4º batismos de Viamão (1782-1799). 21 Na maioria dos batismos, Osório aparecia como solteiro. 22 Carta de José Marcelino para o Vice-Rei Marques do Lavradio, Porto Alegre 06/02/1775. BNL. Divisão dos Reservados. Cód. 10854. 23 KÜHN, op. cit, p. 245.

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verificar, em torno de 70% dos afilhados de Osório são de estratos sociais inferio-res ao provedor, estabelecendo, assim, relações assimétricas (verticais). Essa extensa rede de protegidos nos leva a pensar como Osório Vieira conseguia influenciar não apenas em âmbito público, mas perpassando também em âmbito privado, a partir de relações sociais estabelecidas com subalternos, que se subordinavam em função da hierarquia social. Da mesma forma, não nos parece coincidência o fato de que 14, de seus 45 afilhados, chamavam-se Inácio ou Inácia, nos levando a supor a homena-gem do nome ao padrinho provedor.

(...) a noção de ‘prestígio’ vinculava-se à capacidade de dispor de recur-sos (fossem eles pessoais ou do aparelho de Estado), gerando assim uma ‘economia de favores’, de dom e contra-dom; em outras palavras, de reciprocidade social envolvendo desiguais. Ao benfeitor cabia con-ceder e ao beneficiado cabia ser fiel, não sendo esse gesto visto como um desvio da ‘norma’, mas sim como sua corporificação.24

Já entre seus pares, encontramos nomes como o de Domingos de Lima Vei-ga25, que foi escrivão da Fazenda Real durante muitos anos, o Capitão e oficial da Câmara Manuel Fernandes Vieira26, o Capitão José Francisco da Silveira Casado27, Antônio José de Alencastro28, André Pereira Maciel29, José Francisco de Faria30, o Te-nente de Dragões João Carneiro da Fontoura, entre outros. Nesse período, Osório Vieira também apadrinhou, por procuração, afilhados de Sebastião Xavier da Veiga Cabral, um dos governadores da Capitania, o Tenente João Alberto de Miranda, José Gomes de Faria, o Coronel Gaspar José de Matos Ferreira31, João Alberto de Miranda, Antônio Guedes da Silva e Domingos Borges Freire32. Da mesma forma,

24 VENÂNCIO, Renato Pinto, SOUSA, José Ferro, PEREIRA, Maria Teresa Gonçalves. O Compadre Governador: redes de compadrio em Vila Rica de fins do século XVIII. Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 26, nº 52, 2006, p. 273-294.25 Domingos de Lima Veiga foi nomeado escrivão da fazenda real em 1770. F1243 p. 224-224v. Registro de um provimento.26 Manuel Fernandes Vieira ocupou diversos cargos: Tabelião e Escrivão de órfãos da Vila de Rio Grande em 1752, vereador, juiz e almotacé nas décadas de 1770 e 1780. Era cunhado de Francisco Pires Casado e Manuel Bento da Rocha. Foi Contratador dos dízimos e arrematante do contrato do munício de carne para as tropas. COMISSOLI, 2008, p. 86-87 e 178. OSóRIO, 1990, p. 200. 27 Francisco da Silveira Casado também era um homem de governança. Foi Vereador; juiz, procurador, almotacé, tesoureiro da Santa Casa, almoxarife da Fazenda Real, Juiz de órfãos, entre outros cargos. Era sócio de Manuel Bento da Rocha e irmão de Francisco Pires Casado. COMISSOLI, op. cit. , p. 87-88 e 91. 28 Oficial da Câmara. Ibid, p. 175. 29 Maciel foi Guarda-mor, procurador. Almotacé. Ibid, p. 175. AHRS. F1198.30 Oficial da Câmara. Ibid., p. 176.31 Gaspar era mesmo homem de confiança do Vice-Rei Lavradio e serviu sob suas ordens no regimento de Cascais, em Portugal. Veio para o Brasil junto com o Marquês e no Rio de Janeiro se tornou inspetor da guarda vice-reinal. Veio posteriormente para o Rio Grande de São Pedro em 1774. Entre 1780 e 1796 serviu como coronel do Re-gimento de Dragões do Rio Grande. ALDEN, Dauril. Royal Government in Colonial Brazil. Berkeley: University of Califórnia Press, 1968, p. 451-452, nota 17.32 Oficial da Câmara. COMISSOLI, op. cit., p. 176.

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deu procuração para Antonio José de Alencastro, também seu compadre, para que este batizasse um de seus afilhados. Ao se formalizar um batismo por via de procu-ração, automaticamente se estabelece uma relação de confiança entre o padrinho e a pessoa que vai substituí-lo. Isso significa dizer que é provável que Osório detivesse com esses últimos, um certo vínculo relacional.

Outro ponto bastante importante das relações políticas e sociais formalizadas através dos batismos do provedor é a data que ele começa a apadrinhar: partir de 1765, ano em que assumiu o posto de Provedor da Fazenda. Antes disso, não se tem nenhum registro de batismo de Osório33. Isso pode significar que muitas vezes o compadrio não se fazia apenas no convívio social, mas pelo posto assumido do padrinho, de distinção social. Assim, a própria escolha da figura de Inácio Osório se faz nas circunstâncias políticas do momento. O prestígio do provedor se faz na medida em que é capaz de dispensar ou retribuir benefícios34.

Dentro do período, que engloba seus mais de trinta anos no poder, verifica-mos que o provedor manteve-se com uma média de pelo menos um batismo anual. Além disso, podemos dizer que o maior número de apadrinhamentos se faz nesses primeiros vinte anos, que aqui consideramos como um momento em que Osório se estabelece enquanto um homem de grande importância na sociedade do Rio Gran-de. Após seu afastamento definitivo do cargo, verificamos que Osório não estabelece mais relações de compadrio, comprovando a hipótese de que a escolha da figura do provedor como padrinho se faz nas circunstancias das relações de poder e prestígio social.

PARTICIPAçãO NAS CONFRARIAS RELIGIOSAS

Inácio Osório Vieira era membro de duas importantes confrarias religioas: A Ordem Terceira de São Francisco em Viamão e a Irmandade do Santíssimo Sacra-mento.

A Ordem Terceira era uma associação religiosa que congregava boa parte da elite do Continente e tinha critérios rígidos de seleção e, por isso, seus membros gozavam de um estatuto mais elevado em relação às demais irmandades.35

33 Não verificamos os Livros de Batismos da Vila do Rio Grande. Somente a partir da ida de Osório para Viamão. 34 XAVIER & HESPANHA, 1993, p. 340. 35 KÜNH, Fábio. Um corpo, ainda que particular: Irmandades legais e Ordens Terceiras no Rio Grande do Sul Colonial. 2009, p. 15. No prelo.

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Não por acaso, muitos dos mais destacados membros da elite colonial pediam para ser sepultados no hábito do “seráfico padre São Francis-co”, prova contundente da sua distinção social e abastança. Sabe-se que “a profissão nas ordens terceiras era sinônimo de status e privilé-gios das classes dominantes.36

Pertencentes às camadas superiores da sociedade, os integrantes de uma Or-dem Terceira gozavam de elevada distinção social que os sustentavam como mem-bros da elite.

No Rio Grande de São Pedro existiu uma única Ordem Terceira de São Fran-cisco atuante, com filiais estabelecidas em Viamão, Rio Grande e Rio Pardo. Inácio Osório Vieira, não apenas era membro da Ordem Terceira, como também Ministro dela, sendo forte seu controle na mesa diretora. Sua rede de relações novamente se faz presente, e entre os membros da Ordem encontramos Manuel Bento da Rocha, poderoso homem de negócios do Continente, além de outros membros do bando dos cunhados37.

As irmandades, assim como a Ordem Terceira, eram espaços de sociabilidade de diferentes sujeitos sociais e colaborava, assim como o compadrio, para manuten-ção de relações.

Ser membro de uma irmandade do Santíssimo Sacramento era não só pertencer a uma organização social. Significava também ter acesso ao interior dos estratos superiores de uma sociedade, evidenciando assim, status aos seus membros, status esse que vinha acompanhado de privilégios e graças. Independente de a irmandade ser de negros ou da elite local, cada uma, dentro de suas possibilidades, dava essas facilidades aos seus membros38.

Inácio Osório Vieira era um dos integrantes da Irmandade do Santíssimo Sacramento da freguesia de Porto Alegre. Com isso, verificamos que alguns de seus compadres também eram membros da Irmandade do Santíssimo como João Carnei-ro da Fontoura, Manuel Fernandes Vieira, capitão Francisco Pires Casado, Manuel Marques de Sampaio e Patrício José Correia da Câmara. Compartilhavam desse mes-mo espaço de sociabilidade Manuel Bento da Rocha, bem como Sebastião Xavier da Veiga Cabral, que também mantinham boas relações com o provedor.

36 Ibid., p. 15.37 Manuel Bento da Rocha era o líder e um dos integrantes do chamado bando dos cunhados, uma facção política composta pelos mais importantes homens de negócio do Rio Grande de São Pedro, cujos membros tinham ampla participação na Câmara. COMISSOLI, 2008, p.86-95.38 MONTEMEZZO, Laura Ferrari. A Irmandade do Santíssimo Sacramento e Nossa Senhora Madre Deus de Porto Alegre e seus membros: um estudo prosopográfico. (1774-1780). Monografia. 2007.

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Observamos, desta forma, que o estreitamento dos vínculos se fazia na aju-da mútua entre seus membros, nos apadrinhamentos e nos laços de amizade. Essa prática relacional colaborava para a própria ascensão social, ou, pelo menos, para manutenção da escala social, pois era tida “como uma atividade dignificante e eno-brecedora”.39

A própria seleção desses laços se fazia presente no caráter seletivo de inserção na Irmandade, como o pagamento de admissão e ser de origem nobre, com a exclu-são dos indivíduos que não tivessem a devida “limpeza de sangue”40. Desta maneira, a maioria dos homens da Irmandade do Santíssimo eram homens proeminentes, como oficiais camarários, militares, dirigentes administrativos, homens de negócios e estancieiros.

Assim, podemos dizer que tanto os compadrios, como as confrarias religiosas em que Osório estava inserido, faziam parte das esferas da sociedade colonial do Rio Grande de São Pedro. Observar a dinâmica dessas redes é importante na medida em que não se estabeleciam apenas a partir de relações políticas e econômicas, mas de relações sociais, que buscavam naquilo a extensão de laços, para a conservação daquela sociedade hierarquizada de Antigo Regime.

CONSIDERAçõES FINAIS

Ao concluirmos esse artigo, podemos dizer que homens como Inácio Osório Vieira detinham em suas mãos poderes administrativos relativamente autônomos, para sobrepujar a imensa distância existente entre as colônias e a Metrópole. Era um “viver em colônia”, repleto de estranhamentos e pertencimentos, que fazia com que exercessem essa prática governativa cotidiana constituindo redes de alianças e sociabilidade. A questão não era apenas governar, mas governar com as pessoas existentes nas capitanias, saber lidar com a elite colonial e também com os possíveis inimigos internos41, utilizando os instrumentos que tinha a sua disposição diante da distância do poder real42. Ou seja, a própria heterogeneidade de laços políticos

39 KÜNH, 2009, p. 7. 40 Ibid., p.5.41 No caso de Inácio Osório, sua relação conturbada com o governador da capitania, José Marcelino de Figueiredo e o ouvidor da Comarca Duarte de Almeida Sampaio, devido, principalmente, à ausência de linhas hierárquicas e de jurisdição claras, gerando conflitos (diretos e indiretos) constantes entre as autoridades locais.42Aqui nos referimos tanto a distância da metrópole lusa, Portugal, quando da sede do vice-reinado, Rio de Janeiro.

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nos vários níveis do aparelho ultramarino impedia o estabelecimento de uma regra uniforme de governo, estabelecendo assim, limites entre o poder da Coroa e seus administradores periféricos.43

Entender isso significa pensar o quanto esses sujeitos, como Osório, depen-diam fortemente de seu conjunto de relações sociais. Dentro de uma pluralidade de campos e possibilidades, foi alternando progressivamente de cargos e regiões, criando diversas teias de relações sociais, formando uma “engenharia” política que garantia sua função administrativa régia. Os mecanismos de formação de redes de poder nos demonstram a questão não era apenas subir nos degraus do topo social, mas manter-se nessa posição. Dessa maneira, tão importante quanto o status e au-toridade que a instituição fazendária possibilitava a Osório era a manutenção dessas redes de sociabilidade não-oficiais.

Nessa perspectiva, sua longa permanência no exercício do cargo de provedor, como seu percurso nos dizem muito sobre os homens a quem cabia a administração fazendária e sobre as próprias Juntas da Fazenda Real. Inácio Osório estava inserido tanto no aparelho burocrático do Império ultramarino, com seu cargo de provedor , como também buscava apoio através de relações sociais, como os compadrios, sua relação com os homens bons e governadores, a inserção na Irmandade e na Ordem Terceira, entre outros. As redes clientelares auxiliam para entendermos o funcio-namento da máquina administrativa em um período em que o público e o privado misturavam-se dentro de relações personalistas. Estas constituíam uma trama que atravessavam as instituições e orientavam seu próprio funcionamento44.

43 HESPANHA, Antônio Manuel. In: FRAGOSO, 2001, p. 166. 44 MOUTOUKIAS, Zacharias. Redes personales y autoridad colonial: los comerciantes de Buenos Aires en el siglo XVIII. Revista Annales Histoire. Sciences Sociales. Paris: 1992,p. 6.

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REFERêNCIAS DOCUMENTAIS

Documentos Manuscritos

AHPAMV (Arquivo Histórico Moysés Velhinho)Fundo: Câmara. Códice 1.26 - Registros diversos (1765-1777)AHRS (Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul)Livro de Registro Geral da Fazenda Real do Rio Grande de São Pedro Códices F1243, F1244, F1249, F1250Livro de Registro de Alvarás e ProvisõesCódice B.2.001ANRJ (Arquivo Nacional do Rio de Janeiro) Secretaria de Estado do Brasil. Correspondência dos Vice-Reis para Corte. Códice 68. Vol. 5. [1782]. Fundo Vice-Reinado. caixa 749, pct. 03. fl.41-52.BNL (Biblioteca Nacional de Lisboa)Códice 10854. Coleção de Correspondência de José Marcelino de Figueiredo, go-vernador do Rio Grande do Sul, para o Marquês do Lavradio, Vice-rei do Brasil. Originais 1773 – 1778. Biblioteca Nacional de Lisboa [ca. 345 fls.]AHU ( Arquivo Histórico Ultramarino) Projeto ResgateRio de Janeiro - AHU–RJ. Cx. 58, 67.Rio Grande do Sul - AHU-RS. Cx. 8.

Documentos impressosKÜHN, Fábio; NEUMANN, Eduardo (org). Projeto Regate de Fontes Paroquiais. Porto Alegre – Viamão (século XVIII). Porto Alegre: UFRGS, 2009. CD-ROM.

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históriA e eConoMiAno séCulo xix

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fortunAs, bens e investiMentos: A CArACterizAção eConôMiCA de uMA elite PolítiCA MuniCiPAl A PArtir dos

inventários Post-MorteM (finAl do séCulo xix)

Carina Martiny¹

Resumo: Os inventários post-mortem constituem importante fonte de pesquisa quando o intento do historiador é analisar características econômicas de um indivíduo ou grupo específico, uma vez que fornecem importantes e, muitas vezes, detalhadas informações acerca dos bens que os inven-tariados possuíam. Entretanto, se esta fonte apresenta inúmeras possibilidades de análise econômica e social, também possui alguns limites que precisam ser levados em conta. Assim, este artigo busca explorar algumas possibilidades de análise histórica a partir dos inventários post-mortem de membros da elite política do município de São Sebastião do Caí (RS), atentando também para algumas problemáti-cas intrínsecas à utilização desta fonte documental.

Palavras-chave: Inventários post-mortem – Elite política municipal – Perfil econômico

INTRODUçãO: OS CAMINHOS DA PESQUISA

Aescolha do método a ser utilizado na análise documental está direta-mente dependente dos objetivos da pesquisa e do conjunto documen-tal trabalhado. Maria Yedda Leite Linhares bem observou que “ao

historiador cabe elaborar suas técnicas de forma criativa, de acordo com o universo histórico de sua análise e segundo as fontes de que dispõe”². Este artigo constitui uma reflexão sobre alguns caminhos trilhados ao longo da pesquisa realizada para a elaboração da Dissertação de Mestrado. Nesta, analisamos uma parcela da sociedade do município de São Sebastião do Caí³: a elite política.

¹ Mestre História pelo Programa de Pós-Graduação em História da UNISINOS. Este artigo constitui parte da análise desenvolvida no segundo capítulo de nossa Dissertação de Mestrado “Os seus serviços públicos e políticos estão de certo modo li-gados à prosperidade do município” Constituindo redes e consolidando o poder: uma elite política local (São Sebastião do Caí, 1875-1900).² LINHARES, Maria Yedda Leite. Metodologia da história quantitativa: balanço e perspectivas. In: BOTELHO, Tarcí-sio Rodrigues et al. (Org.). História quantitativa e serial no Brasil: um balanço. Goiânia: ANPUH-MG, 2001. p. 17.³ O município de São Sebastião do Caí, localizado à margem esquerda do rio Caí, na zona colonial do Rio Grande do Sul, foi criado em 1875, através da lei provincial nº 995 de 1º de maio. O povoado de Porto do Guimarães – ou São Sebastião do Caí, como então já era conhecido em alusão ao padroeiro da paróquia – e as freguesias de São José do Hortêncio e Santana do Rio dos Sinos passaram a constituir o novo município, desanexado do de São Leopoldo, ao qual haviam pertencido desde 1846.

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Baseados em José Murilo de Carvalho, para quem os membros de uma elite política são aqueles que tomam decisões políticas e que fazem, portanto, escolhas entre alternativas4 consideramos que a partir do momento em que o novo município passou a contar com uma Câmara Municipal própria para administrar seus negócios, delineou-se, claramente, um grupo especial na sociedade local – uma elite política – constituído pelos vereadores, ou seja, pelos indivíduos que ocuparam os postos da Câmara Municipal. Assim, a análise que realizamos centra-se nos indivíduos que entre os anos de 1877 – ano em que assume a primeira Câmara Municipal – e 1900 exerceram o cargo de vereador em São Sebastião do Caí, compreendendo este perí-odo, portanto, as primeiras sete primeiras formações camarárias de São Sebastião do Caí (1877 a 1880; 1881 a 1882; 1883 a 1886; 1887 a 1890; 1890; 1892 a 1896; e 1896-1900).5 Analisamos, entre eleitos e suplentes que assumiram a tarefa de administrar o município, um total de 55 vereadores, que correspondem a 38 indivíduos, dado o fato de que alguns estiveram presentes em mais de uma formação camarária.6 Temos assim, um grupo de elite a ser trabalhado.

Ao definir elite, Fábio Kühn afirma que “De fato, uma elite se define por três atributos essenciais: riqueza, status e poder”7. Acerca do primeiro atributo o mesmo historiador destaca que “O primeiro aspecto é o mais óbvio de todos, condição preli-minar para a própria existência do grupo”8. De fato, a riqueza criava condições favo-ráveis, ao permitir o acesso facilitado, por exemplo, a meios diversos de sociabilidade9,

4 CARVALHO, José Murilo de. A Construção da ordem: a elite política imperial. Teatro de Sombras: a política imperial. 3. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. p. 19-20.5 As quatro primeiras composições camarárias correspondem às Câmaras Municipais do período imperial. A com-posição de 1890 refere-se à Junta Municipal nomeada pelo governo do Estado, com a instituição da República, para administrar provisoriamente o município. Desta, acompanhamos seus trabalhos até o dia 28 de junho do mesmo ano, uma vez que o livro de registros das sessões subseqüentes não foi localizado. O mesmo motivo explica a exclusão da análise da administração municipal entre os anos de 1891 e 1892, que também carecem de registros administrativos. Já as duas últimas composições analisadas, a de 1892 a 1896 e a de 1896 a 1900, correspondem aos Conselhos Municipais do período republicano. 6 Contabilizamos apenas os vereadores que participaram, em cada composição analisada, de pelo menos cinco sessões da Câmara Municipal.7 O conceito de elite que apresenta Fábio Kühn está baseado na definição de Peter Burke, presente na obra Ve-neza e Amsterdã: um estudo das elites do século XVII (1991), para quem elites são grupos superiores definidos por três critérios: status, poder e riqueza (BURKE, Peter. Veneza e Amsterdã: um estudo das elites do século XVII. São Paulo: Brasiliense, 1991. p. 16). Kühn identifica estes três atributos na sociedade sul-rio-grandense do século XVIII (KÜHN, Fábio. Gente da fronteira: sociedade e família no sul da América portuguesa – século XVIII. In: GRIJó, Luiz Alberto et al. (Org.). Capítulos de História do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Ed. UFRGS, 2004. p. 62).8 KÜHN, Fábio. A prática do dom: família, dote e sucessão. In: GOLIN, Tau; BOEIRA, Nelson (Org.). CAMAR-GO, Fernando; GUTFREIND, Ieda; REICHEL, Heloisa (Coord.). Colônia. Passo Fundo: Méritos, 2006a. p. 226.9 Entendemos sociabilidade no sentido dado por Agulhon: “la aptitud de vivir en grupos y consolidar los grupos mediante la cons-tituición de asociaciones voluntarias”, sendo necessário considerar tanto as formas de associação formal (que estão reguladas, como o são as associações) quanto informal (baseadas em relações tecidas pelos indivíduos no cotidiano) (AGULHON, Maurice. Historia vagabunda: etnologia y política en la Francia Contemporánea. México: Instituto Mora, 1994. p. 55).

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dava condições maiores de distribuição de favores, de possuir um maior número de dependentes e, assim, participar mais ativamente do caráter clientelista das relações políticas.

Mas, como apreender a riqueza destes indivíduos? A que fontes recorrer? As fontes utilizadas na pesquisa, que buscou atentar para a ação e para as relações tecidas pela elite municipal de São Sebastião do Caí, foram essencialmente fontes oficiais, como atas da Câmara Municipal, suas correspondências e registros orça-mentários, listas de qualificação de votantes, mapas de população e inventários. Jun-tos, estes documentos forneceram importantes informações acerca do perfil tanto dos indivíduos que compunham o grupo analisado quanto das instituições próprias da estrutura do Estado imperial e republicano na esfera municipal. Foram, porém, os inventários que nos forneceram importantes indícios sobre as condições econô-micas e o modo de vida da elite caiense e é acerca das possibilidades, dos limites e da utilização desta fonte documental que está centrado o presente artigo.

OS INVENTÁRIOS COMO FONTE DE PESQUISA: LIMITES E POSSIBILIDADES

Ao utilizar os inventários post-mortem como fonte para a pesquisa histórica o historiador deve estar ciente não somente das possibilidades de trabalho que estes oferecem, como também dos limites a eles intrínsecos. O inventário nada mais é do que uma fotografia da fortuna de um indivíduo em um dado momento – o momento de seu falecimento -, o que nos priva de saber o que este possa ter feito antes, de que forma administrou ou mesmo distribuiu previamente seus bens. Sabemos que mui-tas práticas e estratégias de concentração de riqueza poderiam ser levadas a cabo por famílias que desejavam manter intactos seus patrimônios, ou mesmo como forma de ampliá-los. Como já demonstrado por Farinatti, mesmo que a legislação previsse uma divisão igualitária dos bens entre os herdeiros – a metade (“meação”) para o (a) viúvo(a) e a outra metade dividida “entre seus herdeiros necessários (descendentes e, se estes não existissem, os ascendentes)” -, muitos chefes de famílias buscavam, an-tes mesmo de morrer, beneficiar um ou outro filho para garantir a continuidade do poder econômico da família. Práticas de antecipação de herança são apontadas pelo historiador como muito comuns10. Também Marcos Witt observou que imigrantes

10 FARINATTI, Luís Augusto Ebling. Confins Meridionais: famílias de elite e sociedade agrária na Fronteira Sul do Brasil (1825-1865). 2007. Tese (Doutorado em História) --Programa de Pós-Graduação em História. Universida-de Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, 2007.

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alemães fizeram uso de “mecanismos de transmissão e concentração de bens na fi-gura de uma só pessoa” com o intuito de assegurar “o status de ‘exponencial’”¹¹. Ao que parece, a família Trein, uma das famílias por nós analisadas – uma vez que dois de seus membros foram vereadores em São Sebastião do Caí no período analisado: Christiano Jacob Trein e Felipe Carlos Trein – fez uso de uma destas estratégias de antecipação de herança visando preservar a unidade do patrimônio.

Sabemos que Francisco Trein, imigrante, pai dos vereadores em questão, abriu, em 1847, uma casa de negócios em São José do Hortêncio, e uma filial, em 1869, junto à povoação de Porto do Guimarães. Com seu falecimento a 8 de janeiro de 1883, seguiu-se a abertura do processo de seu inventário, no qual, porém, não consta nem a casa de negócios de São José do Hortêncio, nem a localizada em Por-to do Guimarães, então Vila de São Sebastião do Caí. O inventário faz referência apenas a armários e balcões da casa de negócio, a uma balança decimal com pesos e a latas, sacos e 125 kg de banha, provavelmente pertencentes à casa de negócios de São José do Hortêncio12. E as demais mercadorias, porque não foram arroladas? E a casa de negócio existente na Vila? Tudo nos leva a supor que Francisco Trein tivesse passado, ainda em vida, tais propriedades a seus filhos. De acordo com Jean Roche, à frente da filial de Porto do Guimarães estava o filho Christiano Jacob Trein13. No que diz respeito à casa comercial de São José do Hortêncio, é possível que Frederico Guilherme Trein ou João Jacob Trein, ou ainda ambos, tivessem passado a adminis-trar os negócios, já que esses dois filhos de Francisco Trein aparecem no alistamento eleitoral de 1890 como sendo negociantes moradores de São José do Hortêncio14. O mesmo podem ter feito os vereadores Carlos Berto Círio, Pedro Franzen Filho e Guilherme Zirbes, todos negociantes, mas que não têm arrolado em seus inventários o valor de bens referentes à casa comercial, o que nos leva a crer que estes tenham feito a transferência desta, ainda em vida, para algum filho ou herdeiro.

11 WITT, Marcos Antônio. Em busca de um lugar ao sol: estratégias políticas, imigração alemã, Rio Grande do Sul, Século XIX. São Leopoldo: Oikos, 2008. p.116-117. p. 130. Ao analisar os inventários das famílias Voges e Grassmann, Witt constatou um “redirecionamento dos bens”, de modo que as propriedades se concentrassem nas mãos de poucos, não sendo divididas, mantendo assim o poder econômico e simbólico da família (WITT, 2008, p. 130-135).12 TREIN, Francisco (Inventariado); TREIN, Catharina (Inventariante). [inventário]. São Sebastião do Caí, 1883 [Manuscrito]. Localização: Cartório órfãos e Ausentes, Auto n. 150, Maço n. 6, Ano 1883, APERS. 13 ROCHE, Jean. A colonização alemã e o Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Editora Globo, 1969. p. 435.14 SãO SEBASTIãO DO CAí. Junta Municipal de São Sebastião do Caí. Alistamento dos eleitores do Municí-pio de São Sebastião do Caí. 1890 jun. 20 [Manuscrito]. Localização: AHMBM. f. 27v - 29.

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Outro problema com o qual o historiador pode se deparar ao trabalhar com inventários diz respeito à deturpação que pode ser realizada quando do arrolamento e avaliação dos bens inventariados. Em muitos casos, como pudemos observar, fica evidente a tentativa de subestimá-los, descrevendo-os de forma a desvalorizá-los, como se pode constatar no uso de alguns termos na descrição realizada, como “ve-lho”, “em mau estado”, “usado” ou mesmo “em estado de ruína”, a eles atribuídos. Desta maneira, eram descritos tanto bens imóveis, quanto os móveis. Assim, tanto o não-arrolamento de alguns bens15 quanto a subestimação de outros foram estraté-gias levadas a cabo por algumas famílias para diminuir o valor dos impostos a serem pagos por ocasião do processo de inventário.

Entretanto, apesar das limitações que os inventários impõem à análise histó-rica, estes ainda constituem uma importante fonte documental. Mesmo que os pro-tagonistas dos inventários (os inventariados) tenham utilizado diversos mecanismos que resultaram em um reagrupamento da fortuna de suas famílias de diferentes ma-neiras, o que dificilmente pode ser captado a partir dos inventários, as informações, mesmo que parciais ou deturpadas que esta fonte oferece permitem-nos traçar, ao menos aproximadamente, um padrão econômico de vida do grupo analisado, identi-ficando alguns dos bens que possuíam e tendências de investimentos.

Apesar de todas as problemáticas que uma análise baseada em inventários possa apresentar, no nosso caso, eles são fundamentais para demonstrar que a elite política de que tratamos faz parte de uma outra fração da elite municipal, que é a elite econômica. Ela é composta pelos indivíduos que detêm significativas fortunas e que ocupam e controlam os postos-chave da vida econômica local – no caso de São Sebastião do Caí, os que controlam a produção e comercialização de produtos agrícolas e bens agro-manufaturados e importam outros bens de consumo então vendidos à população local. Considerando que “os inventários post mortem são uma fonte que tende a sobre-representar as camadas mais favorecidas da sociedade”16,e

15 Nos inventários de Antônio Otto Rühee e de Guilherme Zirbes, por exemplo, não há qualquer bem móvel arrolado, fato que, supomos, possa ser atribuído a uma distribuição – feita previamente ao inventário – entre os herdeiros. RÜHEE, Antônio Otto (Inventariado); RÜHEE, Maria Júlia L. e outros (Inventariante). [inventário]. São Sebastião do Caí, 1921 [Manuscrito]. Localização: Cartório do Cível, Auto n. 434, Maço n. 8, Ano 1921, APERS; e ZIRBES, Guilherme (Inventariado); ZIRBES, Margaria; e outros (Inventariante). [inventário]. São Sebastião do Caí, 1915 [Manuscrito]. Localização: Cartório do Cível, Auto n. 325, Maço n. 7, Ano 1915, APERS. 16 FARINATTI, 2007, p. 91.

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levando em conta que tivemos acesso aos inventários de 23 dos 38 vereadores, pode-mos afirmar – com boa margem de acerto – que a elite econômica de São Sebastião do Caí, ao final do século XIX, era também uma elite política.17

UMA ELITE POLíTICA QUE ERA TAMBÉM ELITE ECONÔMICA

Uma vez cientes das limitações dos inventários enquanto fonte documental e acreditando que estes possam nos oferecer parâmetros gerais acerca do acúmulo de riquezas do grupo em estudo, passamos a analisar, a partir do arrolamento dos bens pertencentes ao inventariado e sua família e da avaliação destes no momento de elaboração do inventário, o perfil econômico da elite política de São Sebastião do Caí e alguns indícios de seu modo de vida.

Infelizmente, não conseguimos localizar os inventários de todos os 38 ve-readores em questão. Localizamos os inventários de 23 vereadores, sendo que em alguns casos encontramos o seu inventário, outras vezes apenas o de sua esposa e, em alguns casos, o de ambos.18 No caso em que possuímos o inventário de ambos, adotamos o critério de utilizar, para a análise quantitativa, aquele que apresentava o maior capital, ou seja, o maior valor na soma total de bens avaliados somadas as dívidas ativas e deduzidas suas dívidas passivas.

No Gráfico 1 agrupamos os vereadores por nível de fortuna, permitindo as-sim uma avaliação geral da fortuna da elite política.

17 Esclarecemos que nossa busca se restringiu aos cartórios de São Sebastião do Caí, considerando que nosso objetivo foi o de evidenciar a atuação política de determinados indivíduos neste município, no quartel final dos Oi-tocentos. Acreditamos que alguns dos indivíduos, cujos inventários não localizamos, possam ter mudado de cidade ao longo das primeiras décadas do século XX, razão pela qual o processo de inventário pode não ter ocorrido em São Sebastião do Caí.18 Assim, trabalhamos com um total de 27 inventários.

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Gráfico 1 - Níveis de fortunas dos vereadores de acordo com o total de bens arrolados nos inventários post-mortem (em nº)

Elaborado pela autora com base nos Inventários post-mortem, São Sebastião do Caí (1868 a 1935) localizados no APERS.

De acordo com o gráfico, a análise dos inventários post-mortem revelou que o grupo com o qual trabalhamos era, em boa medida, bastante heterogêneo economi-camente. Ou seja, entre os vereadores encontramos alguns que possuíam pequenas fortunas, como Antônio Otto Rühee, cuja soma de bens em seu inventário era de 4:500$000 (4 contos e 500 mil-réis)19 e César Augusto Góes Pinto, cuja soma dos bens em 1890, era de 3:004$850 (3 contos, 4 mil e 850 réis)20. Outros, entretanto, possuíam um capital superior a 100 contos de réis, como Pedro Noll, que tem ar-rolado em seu inventário, datado de 1899, 210:899$500 (210 contos, 899 mil e 500 réis)²¹. Mas, o gráfico também é revelador da boa condição econômica da elite polí-tica analisada, afinal, possuir um capital de 3 contos correspondia, na época, a uma considerável fortuna, como observou Roche.²²

A tabela que segue nos permite analisar o perfil econômico da elite caiense com base em critérios como profissão e origem étnica.

19 RÜHEE; RÜHEE, 1921.20 PINTO, César Augusto Góes (Inventariado); PINTO, Modestina Coutinho dos Santos (Inventariante). [Inven-tário]. São Sebastião do Caí, 1890 [Manuscrito]. Localização: Cartório órfãos e Ausentes, Auto n. 308, Maço n. 11, Ano 1890, APERS. 21 NOLL, Pedro (Inventariado); NOLL, Elisabetha (Inventariante). [inventário]. São Sebastião do Caí, 1899 [Ma-nuscrito]. Localização: Cartório órfãos e Ausentes, Auto n. 561, Maço n. 18, Ano 1899, APERS. ²² ROCHE, 1969, p. 561- 562.

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TABELA 1 – Perfil econômico da elite política caiense com base no total de bens constante nos inventários post-mortem por profissão e origem étnica

Valor total de bens Fazendeiros e

proprietários

Negociantes Outros (ativ.

mecânicas, náuticas

e liberais)

TOTAL

Luso Teuto Luso Teuto Luso Teuto

Menos de 10 contos

de réis

4 1 1 4 - 1 11

Mais de 10 e menos

de 50 contos de réis

2 1 - 3 - 2 8

Mais de 50 e menos

de 100 contos de réis

- - 1 1 - - 2

Mais de 100 contos

de réis

- - - 2 - - 2

Total parcial por

origem étnica

6 2 2 10 - 3

Total por profissão 8 12 3 23

Elaborado pela autora com base nos Inventários Post-Mortem (APERS).

Uma primeira constatação é a de que dos 23 vereadores dos quais localizamos algum inventário, 12 (52,17%) eram negociantes, o que já sinaliza para a importância deste grupo na economia local, sendo que destes, 10 eram negociantes de origem teuta, indicando o sucesso que imigrantes e descendentes tiveram ao atuarem no co-mércio, sucesso econômico que muito possivelmente foi reconvertido para o campo político. No tocante à origem étnica, chama a atenção que 15 dos 23 vereadores dos quais temos inventários (ou 65,22%) eram teuto-brasileiros, o que demonstra que, não raro, imigrantes ou seus descendentes conseguiram alcançar sucesso econômico. Se utilizarmos como padrão de análise os critérios de Jean Roche, que classificou os colonos imigrantes em duas categorias, a dos pobres e a dos abastados – sendo que os primeiros eram os que possuíam um patrimônio inferior a 2 contos de réis, enquanto os abastados eram os que tinham um patrimônio superior a tal quantia – constataremos que a elite política caiense era formada por homens de muitas posses, constituindo-se, efetivamente, numa elite econômica. Se levarmos em conta o cál-culo feito por Roche de que, em 1870, o valor médio dos patrimônios dos colonos abastados girava em torno de 3 contos de réis, então a análise dos inventários dos vereadores caienses demonstra que, tanto no caso de teuto-brasileiros quanto de luso-brasileiros, a fortuna ultrapassava, e muito, na maior parte dos casos, os 3 con-tos de réis aos quais Roche se refere.²³

23 ROCHE, 1969, p. 561- 562.

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Mas, do que se constituía a fortuna destes indivíduos? Mais uma vez os inven-tários nos servem de fonte.24 Através do arrolamento e da avaliação dos bens cons-tantes nestes processos podemos ter acesso a importantes informações de como vivia e o que possuía esta elite política. Através da listagem dos bens constantes nos inventários podemos também tecer algumas considerações acerca da tendência de investimentos da elite em análise.

A NATUREZA DOS INVESTIMENTOS

Certamente, as perspectivas surgidas com a criação do município e a pos-sibilidade de um maior envolvimento com a administração municipal, levaram a um enraizamento dos indivíduos analisados no próprio município, refletindo-se em investimentos locais, assim como na aquisição de bens que lhes garantissem uma diferenciação social capaz de manter seu pretendido status de “elite”25. A análise dos inventários de alguns dos membros da elite caiense revela, por exemplo, que grande parte dos investimentos esteve concentrada em imóveis. Apesar da dificuldade que encontramos em identificar o percentual de riqueza que investiram em terras, uma vez que estas apareciam, na grande maioria das vezes, avaliadas de forma conjunta com as casas de moradia e outras benfeitorias, ainda assim é possível afirmar que, diante do altíssimo percentual de riqueza concentrada em imóveis e da constatação de que, em muitos casos, entre estes imóveis havia terras cultiváveis, terras de mato e campos, boa parte das fortunas estava concentrada em bens rurais. Tal constatação é compreensível se levarmos em conta que, no contexto do século XIX, a propriedade rural era um importante elemento de distinção social. Mesmo entre os negociantes, que representam pouco mais de 52% do total de inventários analisados, o investi-

24 Em sua Tese, Fábio Kuhn faz uso dos inventários para determinar a fortuna do grupo em análise, mas também para desvendar seus bens materiais e seus hábitos, assim como para entender o funcionamento da prática costumeira do dote no Rio Grande do Sul do século XVIII (KÜHN, Fábio. Gente de fronteira: família, sociedade e poder no sul da América Portuguesa – século XVIII. 2006. Tese (Doutorado em História) -- Programa de Pós Graduação em História. Universidade Federal Fluminense, Rio de Janeiro, RJ, 2006b). Também Marcos Ferreira de Andrade se vale dos inventários para “destacar alguns aspectos do cotidiano das famílias da elite do sul de Minas, seguindo os passos do que antropólogos e arqueólogos definem como cultura material” (ANDRADE, Marcos Ferreira de. Elites regionais e a formação do Estado imperial brasileiro: Minas Gerais – Campanha da Princesa (1799-1850). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2008. p. 115, grifo do autor).25 Afirmar que estes indivíduos buscaram manter um status compatível com o de uma “elite” é atribuir-lhes consci-ência de que constituíam a elite de São Sebastião do Caí. E é exatamente esta a hipótese que sustentamos: de que os homens envolvidos com a política municipal não somente tinham consciência do status diferenciado que possuíam e desfrutavam, como também empregaram meios diversos para mantê-lo, meios estes que se refletiram também na composição de suas fortunas.

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mento em imóveis é bastante significativo. Dos 12 negociantes, somente um não ti-nha a maior parte da riqueza investida em imóveis. Era Felipe Carlos Trein que, entre todos os analisados, possuía a menor parte de bens investida em imóveis (19,31%) e a maior parte investida na sua casa de negócios (62,17%)26. É interessante notar, também, que os demais negociantes – sobre os quais se tem informações a partir dos inventários – tinham uma percentagem bastante pequena da riqueza correspondente aos seus negócios. É o caso de João Stoffels, negociante de Kronenthal, no distrito de Santa Catarina da Feliz que, ao falecer, em 1903, tinha apenas 1% do total de bens referidos correspondente à casa de negócios que mantinha, enquanto 93,82% do total de seus bens aparecem convertidos em imóveis.27 Assim, é possível supor que os negociantes, em sua maioria, convertiam o capital que adquiriam no comércio na aquisição de imóveis, entre terras rurais, terrenos urbanos, prédios residenciais e benfeitorias.

A análise mais detalhada da composição das fortunas destes homens leva a crer que o investimento em novas terras, sobretudo lotes coloniais, tornou-se uma estratégia de aumento de riqueza. Witt observou que, a expansão dos núcleos iniciais de colonização e o surgimento de companhias particulares de colonização, associa-dos à própria “pressão demográfica e a procura de novas terras, ampliaram e valori-zaram o mercado imobiliário”28. Possivelmente, muitos dos indivíduos dentre os que analisamos compravam lotes coloniais com a finalidade de uma posterior revenda, mesmo porque a terra continuava sendo encarada como aquela capaz de gerar mais riquezas, razão pela qual procuraram aproveitar-se do processo de colonização para aplicar e multiplicar seu patrimônio. É este o caso de pelo menos seis dos vereadores analisados. Carlos Eckert possuía duas colônias no fim da linha São Salvador e meia colônia em Santo Amaro, no Termo de Taquari.29 Já Frederico Arnoldo Engel era proprietário de 3 e meia colônias de terra cultivada no primeiro distrito do municí-pio de Taquara do Mundo Novo.30 Reinhold Feix, aparece, no seu inventário, como dono de um quarto do lote colonial nº 9 da ex-colônia de Santa Maria da Soledade, no município de Montenegro.31 Mais interessante nos parece ser o caso de Pedro

26 TREIN; TREIN, 1899. 27 STOFFELS, João (Inventariado); STOFFELS, Catharina (Inventariante). [inventário]. São Sebastião do Caí, 1903 [Manuscrito]. Localização: Cartório órfãos e Ausentes, Auto n. 693, Maço n. 22, Ano 1903, APERS. 28 WITT, 2008. p.116-117.29 ECKERT, Luiza (Inventariado); ECKERT, Carlos (Inventariante). [inventário]. São Sebastião do Caí, 1878 [Ma-nuscrito]. Localização: Cartório órfãos e Ausentes, Auto n. 57, Maço n. 2, Ano 1878, APERS. p. 11v-12.30 ENGEL, Frederico Arnoldo (Inventariado); ENGEL, Júlia Carolina (Inventariante). [inventário]. São Sebastião do Caí, 1904 [Manuscrito]. Localização: Cartório órfãos e Ausentes, Auto n. 719, Maço n. 23, Ano 1904, APERS. p. 4v.³¹ FEIX, Reinhold (Inventariado); FEIX, Anna Maria (Inventariante). [inventário]. São Sebastião do Caí, 1906 [Manuscrito]. Localização: Cartório órfãos e Ausentes, Auto n. 808, Maço n. 25, Ano 1906, APERS. p. 3v-4.

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Noll que, além de um elevado número de colônias em Taquara do Mundo Novo – 16 no total –, era proprietário de um pedaço de terra em São Vincenzo, na primeira légua de Caxias, portanto, em território de imigração italiana.32

Entretanto, esse negócio nem sempre resultava em lucros. Em alguns casos, tornou-se um grande prejuízo, como revelam os inventários de João Weissheimer e Felipe Carlos Trein. Weissheimer havia comprado 3 colônias em Lajeado, tendo descoberto, posteriormente, que tais colônias não existiam, como esclarece seu in-ventário: “O finado foi como muitos outros victima de uma cavalheiro de industria que, na qualidade de procurador de pessoa que talvez nem exista vendeu lhes tres colonias que dizia sitas no municipio de Lageado, mas cuja existência é igualmente problemática”.33 Já a casa comercial que Felipe Carlos Trein tinha em sociedade com Adolfo Oderich adquiriu, em 6 de março de 1899, 30 colônias de Ernesto Mehring, situadas na Barra Funda, segundo distrito de Lajeado, pelo significativo valor de 8 contos de réis. Tais colônias, entretanto, eram fictícias. Segundo Guilhermina Trein, viúva de Felipe Carlos Trein, o mesmo ocorrera com “muitos outros que compraram terras deste indivíduo, que não existem”34.

De todo modo, lucrativos ou não, os negócios de compra de lotes coloniais realizados por alguns dos vereadores de São Sebastião do Caí os inserem num con-texto de expansão do mercado imobiliário, em função da constante chegada e insta-lação de imigrantes europeus.

Se o investimento em terras foi comum entre a elite, pudemos constatar, por outro lado, que poucos foram os indivíduos que possuíam capital em espécie arrola-do nos inventários, pois encontramos referência a capital em conta corrente em ape-nas dois dos 23 vereadores com inventários. Eram eles, Pedro Noll e Felipe Carlos Trein, ambos negociantes. Noll possuía 7 contos de réis, o que representava 3,32% do total de seu patrimônio, depositado no Banco da Província.35 Já Trein, possuía uma quantia bem maior, 21:443$490 réis, correspondentes a 12,84% de seus bens, depositados em conta corrente com Edmundo Dreher & Cia, de Porto Alegre, a 6% de juros ao ano.36 O interessante é que nos dois únicos casos em que há referência a

³² NOLL; NOLL, 1899, f. 10-10v.³³ WEISSHEIMER, João (Inventariado); WEISSHEIMER, Elisabetha (Inventariante). [inventário]. São Sebastião do Caí, 1900 [Manuscrito]. Localização: Cartório do Cível, Auto n. 92, Maço n. 3, Ano 1900, APERS. f. 14v.34 TREIN; TREIN, 1899, f. 14.35 NOLL; NOLL, 1900, f. 52.36 TREIN; TREIN, 1899, f. 54.

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dinheiro depositado em contas correntes, ambos eram negociantes, apontando para uma diferenciação importante quanto ao poder econômico e ao espírito investidor destes. Segundo Witt, tal procedimento [o depósito em dinheiro em conta corrente], “não estava ao alcance da maioria dos colonos em virtude das exigências e do conhe-cimento que o futuro cliente deveria ter para abrir a sua conta”. Witt completa que “Essa dificuldade ou temerosidade – de abrir conta bancária – chegou até a década de 1990” quando muitos, ao invés de o fazerem optavam por confiar quantias de dinheiro “aos donos da venda mais forte do lugarejo”, que então abatia da quantia as compras que o colono fazia na venda.37

Mas os inventários informam, também, que pelo menos quatro vereadores (10,53% do total de vereadores ou 17,39% dos vereadores com inventários) possu-íam algum capital investido em ações. A natureza das ações variava. César Augusto Góes Pinto possuía uma ação da Estrada de Ferro de São Leopoldo, desvalorizada em 1890 a 100 mil réis.38 Já Carlos Eckert, possuía 2 ações do Vapor Barão do Cahy, que juntas valiam 200 mil réis.39 Mas quem investiu o maior capital em ações foram Pedro Noll e João Weissheimer, ambos comerciantes no distrito de Santa Catarina da Feliz. Weissheimer possuía 4 ações na Companhia de Navegação Cahy, que juntas somavam 800$000 réis e 2 ações na Sociedade Irmãos Corrêa & Cia, no valor total de 400$000 réis, sociedade esta que tinha por objetivo construir uma ponte junto ao passo existente naquele distrito.40 Já Pedro Noll possuía 5 ações na Companhia de Navegação Cahy, totalizando 1:250$000 réis; 4 ações na mesma Sociedade Irmãos Corrêa & Cia, a 800 mil-réis; e 20 ações na Sociedade de Atiradores de Feliz, com valor total de 1 conto de réis. Além destas, possuía ainda 5 ações na Companhia de Melhoramentos Cahy – cuja finalidade era melhorar as condições do rio Caí, para facilitar a navegação –, e 3 ações na Estrada de Ferro Novo Hamburgo, todas estas sem valor em 1899, quando da abertura dos autos do inventário de Pedro Noll.41 A natureza das ações revela o espírito investidor destes homens. Os dois negociantes em questão investiram diretamente em ações relacionadas a sua atividade, como é o caso das ações na Sociedade Irmãos Corrêa & Cia., na Companhia de Navegação Cahy e na Companhia de Melhoramentos Cahy, todas relacionadas ao transporte de

37 WITT, 2008, p. 122, grifo do autor.38 PINTO; PINTO, 1890, f.3.39 ECKERT; ECKERT, 1878, f. 12.40 WEISSHEIMER; WEISSHEIMER, 1900, f. 13-13v.41 NOLL; NOLL, 1899, f. 15-15v.

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mercadorias pelo rio Caí. A aquisição de ações de estradas de ferro, no caso da estra-da de ferro Novo Hamburgo e da estrada de ferro São Leopoldo, revelam, segundo observado por Marcos Witt, “a importância desse novo veículo de comunicação entre a capital da província e a Colônia-Mãe [São Leopoldo], já expandida até Novo Hamburgo”.42

Para além de uma possível orientação dos investimentos para o benefício do município, a aquisição destas ações deve ter sido feita, muito provavelmente, para gerar lucros, o que efetivamente nem sempre ocorreu, como se percebe pelos inven-tários de César Augusto Góes Pinto, em que a ação da estrada de ferro São Leopoldo aparece desvalorizada, e no de Pedro Noll, em que constam que suas três ações na estrada de ferro Novo Hamburgo não possuíam qualquer valor. Talvez nas ações que Pedro Noll e João Weissheimer tinham na Sociedade Irmãos Correa & Cia. possamos encontrar mais nitidamente esse espírito colaborador a que se refere Witt. Conforme foi possível acompanhar através de correspondências, relatórios e atas da Câmara Municipal de São Sebastião do Caí era premente a necessidade de uma ponte junto ao Passo da Boa Esperança, na povoação de Picada Feliz. Por diversas vezes, moradores locais – em especial, negociantes – e a Câmara Municipal solicita-ram a construção de tal ponte ao governo provincial, sem que tal empreendimento fosse realizado. Assim, ao que parece, a construção de tal ponte deu-se por volta de final do século XIX e início do XX, através de uma sociedade da qual tomaram parte muitos moradores locais, interessados na realização da obra, como é o caso de Weissheimer e Noll, que, como negociantes locais, dependiam desta para melhor transportar suas mercadorias.43

Foi a partir do arrolamento e avaliação dos bens constantes nos inventários que nos foi possível traçar esse quadro de investimentos feitos pela elite caiense de final do século XIX. Mas os inventários podem também ser importante fonte para perscrutarmos aspectos do modo de vida da elite caiense, sobretudo de seu espaço privado, como a seguir demonstramos.44

42 Witt, ao observar os investimentos feitos por Jacob Diefenthäler na aquisição de papéis de estrada de ferro, deduziu que este pudesse ter “vislumbrado o crescimento econômico que a nova forma de deslocamento poderia proporcionar ao mundo colonial em que estava inserido”, já que até então o rio constituía a via principal de trans-porte de mercadorias, concluindo então que “Portanto, adquirir ações e títulos poderia ser uma forma de contribuir e garantir a conclusão da obra ferroviária” (WITT, 2008, p. 116).43 É preciso ainda destacar que as ações que Pedro Noll possuía junto à Sociedade de Atiradores de Feliz podem ser reveladores de uma faceta da sociabilidade desta elite.44 Procedimento semelhante foi adotado por Jurandir Malerba, para “observar ‘esses índices de civilidade’, constituí-dos por objetos de uso cotidiano” da elite imperial no Rio de Janeiro no início do século XIX (MALERBA, Jurandir. A corte no exílio: civilização e poder no Brasil às vésperas da Independência (1808-1821). São Paulo: Companhia das Letras, 2000. p. 148); por Fábio Kühn (2006b), com a finalidade de desvendar aspectos do modo de vida nos Campos de Viamão no século XVIII; e por Marcos Ferreira de Andrade (2008), para caracterizar a vida material da elite de Campanha da Princesa, Minas Gerais, na primeira metade do século XIX.

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A AVALIAçãO DOS BENS: INDíCIOS DE UM MODO DE VIDA

Nos inventários encontramos, muitas vezes, além da menção aos bens de pro-priedade do inventariado, a descrição – algumas vezes bem detalhada – destes bens, de modo que podemos ter uma noção não somente dos bens que possuíam como também de características mais específicas destes.

A descrição realizada em muitos inventários, por exemplo, pode revelar como eram as casas habitadas pelos membros da elite analisada. Em alguns casos encon-tramos uma descrição bastante detalhada das casas de moradia dos inventariados, revelando, então, mais detalhadamente, o padrão de vida da elite analisada e os meios materiais que esta utilizava para expressar o status elevado que a diferenciava do restante da população.

O contexto de desenvolvimento da região colonial ao longo do século XIX ajuda a explicar a significativa melhoria nos padrões de moradia da elite caiense constatada em nossa pesquisa. O fato de o povoamento da região do vale do rio Caí, ao longo do século XIX, ter-se inserido em um projeto maior de colonização, enca-beçado pelo governo imperial, e o desenvolvimento alcançado ao longo da segunda metade do século, sobretudo demográfico e econômico, conferiram maior confiança na prosperidade do povoado, derivando desta condição, maiores investimento, por parte da elite local, em bens imóveis como terras rurais e terrenos urbanos, benfei-torias e casas de moradia de melhor padrão.

Ao analisarmos as características das casas da elite política caiense, perce-bemos que tais possuíam um bom padrão de moradia, apesar de que há uma clara diferenciação interna ao grupo. Algumas das residências aparecem descritas como construídas de pedra. É o caso da casa de moradia de Pedro Noll, no distrito de San-ta Catarina da Feliz: “construída de pedra, coberta com telhas de barro e de zinco, forrada e assoalhada com 20m de frente e 13,2m de fundo; com 2 portas e 6 janellas na frente”. Tal construção constitui um imóvel típico de um indivíduo de significati-vas posses, afinal, foi avaliado em 15 contos de réis.45 Mas, muito comuns, neste final do século XIX e início do XX eram as casas construídas de tijolos. Assim era a casa de Alberto Thomaz Scherer, na Vila de São Sebastião do Caí e a de Justino Antônio da Silva, em Costa da Serra, no distrito de Santana do Rio dos Sinos. A cobertura das

45 NOLL; NOLL, 1899, f. 8.

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casas ou era feita de telhas de barro ou então de zinco. Algumas, inclusive, combina-vam estes dois tipos de cobertura em um mesmo imóvel.46

Nos inventários que analisamos, a maioria das residências é descrita como sen-do “forradas e assoalhadas”, denotando que tais condições constituíam um diferen-cial em relação à construção de outras. Para o caso de São Leopoldo e Litoral Norte do Rio Grande do Sul, Marcos Witt também constatou que três itens – ser construída “de pedra, forrada e assoalhada” – identificavam que se tratava de uma residência que estava acima dos padrões da maioria das ocupadas pelos colonos.47 Dos inven-tários em que constam descrições dos imóveis, somente em três deles encontramos referências a sobrados, que, definitivamente, eram os mais bem avaliados. É o caso das residências de Frederico Arnoldo Engel, Pedro Franzen Filho e Felipe Carlos Trein, ambos na Vila de São Sebastião do Caí. Engel possuía um sobrado avaliado em 15 contos de réis, enquanto Trein era proprietário de dois sobrados, adquiridos após o falecimento de sua primeira esposa, Henriqueta Trein, em 1878.48 Juntos, os dois sobrados de Trein valiam 27 contos de réis, ou seja, 16,17% de todos os bens de Trein. Entretanto, a avaliação do sobrado de Pedro Franzen Filho destoa da dos demais, pois este foi avaliado em apenas 1 conto e 200 mil-réis, o que pode denotar uma considerável diferença entre as condições da construção em relação aos demais sobrados, ou estar diretamente relacionado à não incomum prática de sub-avaliação do valor dos bens com vistas ao pagamento de taxas de impostos menores49.

A grandiosidade de algumas residências pode ser constatada pelo número de portas e janelas descritas. De acordo com Mara Regina Kramer Silva, que analisa o simbolismo dos traços arquitetônicos das residências da elite republicana nos Cam-pos de Cima da Serra (RS), a concentração de aberturas na fachada principal “conota receptividade para com os visitantes”.50 Um dos sobrados de Felipe Carlos Trein

46 Essa maior incidência de casas feitas de paredes de tijolos e cobertas com telhas de barro podem ser representati-vas da existência de um número significativo de olarias no município. Somente no primeiro trimestre de 1885, cinco impostos sobre olaria foram pagos à Câmara Municipal. SãO SEBASTIãO DO CAí. Câmara Municipal. Livro para Lançamento das Receitas e Despesas da Câmara Municipal da Vila de São Sebastião do Caí. São Sebastião do Caí: 1876-1885 [Manuscrito]. Localização: AHMBM.47 WITT, 2008, p. 115.48 Não sabemos precisar a forma de aquisição destes imóveis por Felipe Carlos Trein, pois trabalhamos apenas com os cruzamentos de informações entre o inventário de Henriqueta Trein, sua primeira esposa, datado de 1878, quan-do então os sobrados não são arrolados entre os bens, e o inventário do próprio Felipe Carlos Trein, que data de 1899 e no qual constam entre seus bens dois sobrados, que se comunicavam entre si, na Vila de São Sebastião do Caí. 49 Muito possivelmente, essa segunda opção – a de subavaliação dos bens – é o que pode explicar o valor menor com que é avaliada a casa assobradada de Franzen, pois no inventário deste constam acusações de que tal prática teria ocorrido.50 SILVA, Mara Regina Kramer. Linguagem simbólica de poder: arquitetura rural gaúcha. 1996. Dissertação (Mestrado em História) -- Programa de Pós-Graduação em História. Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, RS, 1996. p. 118.

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possuía 1 porta e cinco janelas de frente. O sobrado de Frederico Engel possuía uma porta que fazia ângulo com a esquina da rua Tiradentes com a rua General Câmara e 4 janelas em cada frente, segundo informações do inventário do próprio Engel, e que podem ser confirmadas pela fotografia do sobrado.51 Se considerarmos a pers-pectiva de análise proposta por Silva, então as duas fachadas principais do sobrado de Engel apontam para a sua condição de homem público, vereador e figura ativa na comunidade evangélica de São Sebastião do Caí.

Ainda acerca da casa de Engel é interessante notar que sua residência possuía traços característicos da arquitetura luso-açoriana, como as janelas retangulares emol-duradas externamente por um friso, denotando assim a assimilação de valores da nova sociedade em que este imigrante alemão se inseriu.52 O porão alto existente no sobra-do, como se pode constatar pela fotografia abaixo, constitui, segundo Reis Filho, uma característica de casas abastadas típicas da primeira metade do século XIX.53

51 Para além do caráter simbólico das aberturas, é preciso considerar que estas tinham a função de garantir a incidên-cia do sol e a ventilação no interior das edificações, sobretudo em regiões marcadas por um inverno mais rigoroso, havendo, inclusive, prescrições fixadas no Código de Posturas do município em relação às medidas que deveriam ser observadas nas portas e janelas das construções localizadas na Vila. (SILVA, 1996. p. 116).52 Se foi possível observar traços da arquitetura lusitana nas residências do município, não podemos deixar de referir a influência da arquitetura germânica em muitas delas, mesmo porque muitos dos vereadores eram imigrantes ou descendentes de alemães. Este é o caso da residência de Georg Henrique Ritter, pai do vereador Henrique Ritter Filho, construída em Linha Nova, então pertencente à freguesia de São José do Hortêncio, dotada do característico estilo enxaimel, herança da arquitetura westfaliana (WEIMER, Günter. A arquitetura rural da imigração alemã. In: BERTUSSI, Paulo Iroquez et al. A arquitetura no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1983. p. 110).53 REIS FILHO, Nestor Goulart. Quadro da arquitetura no Brasil. São Paulo: Perspectiva, 1970. p. 40.

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Figura 1 - Sobrado de Frederico Arnoldo Engel na Vila de São Sebastião do Caí54

Fonte: Acervo AHMBM

Mas, como se pode constatar pela análise dos inventários, as grandes e impo-nentes residências não se restringiam à vila, já que casa de Antônio José da Rocha Júnior, em Santana do Rio dos Sinos, possuía 7 janelas de frente, e a de Justino An-tônio da Silva, no mesmo distrito, possuía 4 portas de frente e 3 janelas.

Poucos são os inventários que descrevem e realizam a avaliação das casas de moradia em separado dos terrenos em que estas estavam construídas, o que, então, dificulta a determinação do valor destas residências. O que se pode observar, entretanto, é que as casas construídas no Termo da Vila eram melhor avaliadas em comparação à maioria das residências construídas em distritos do interior, em zona propriamente rural. A casa de Paulino Ignácio Teixeira, no distrito de Santana do Rio dos Sinos, mesmo sendo uma ampla casa, composta de diversas peças e avaliada conjuntamente ao terreno e mais benfeitorias, não ultrapassou o valor de 4 contos de réis, valor bastante inferior se comparado aos sobrados de Trein e ao de Engel loca-lizados na Vila, termo-sede do município. Apesar desta diferenciação, é importante ressaltar que muitas das residências destes vereadores, mesmo que muito distintas dos pesados e sólidos sobrados patriarcais descritos por Freyre55 denotavam, pois, sua melhor condição econômica. Quer se localizassem no meio rural, quer no meio

54 Fotografia sem data.55 FREYRE, Gilberto. Casa grande & sensala. 18. Ed. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1977. p. 77.

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urbano, destacavam-se no conjunto de residências do município, aspecto este que foi também constatado por Silva quando esta observou, inclusive, a existência de distinções significativas entre as residências de membros da própria elite republicana por ela estudada.56

Mas também os móveis – funcionais ou decorativos – existentes nas residên-cias podem revelar os padrões de vida desta elite que buscamos caracterizar, apesar de muitas vezes serem subestimados na avaliação ou nem sequer constarem nesta. A análise que realizamos dos bens móveis constantes nos inventários permite-nos afirmar que a elite caiense não possuía muitos bens de conforto, afinal, apenas uma pequena parte da fortuna destes indivíduos estava aplicada em bens móveis. Em nenhum dos inventários a percentagem de bens móveis ultrapassou 5% do total dos bens avaliados.

Além disso, muitos dos bens arrolados, que se repetiam constantemente nos diversos inventários, eram bens que poderíamos denominar de “primeira necessida-de”, tais como utensílios de cozinha, camas, mesas e cadeiras. Entretanto, em alguns casos foi possível identificar a presença de objetos mais sofisticados, denotando um maior poder aquisitivo, bem como um status social mais elevado. Cômodas, mar-quesas, aparadores e mobílias apareceram em muitos dos arrolamentos de bens dos inventários. Essa presença, em uma mesma residência, de artigos muito simples e de bens de luxo foi percebida e descrita por Malerba que, ao analisar os bens da elite carioca, nas primeiras décadas dos oitocentos, no contexto da transferência da Corte portuguesa para o Brasil, constatou que: “Mas se há, mesas com tampo de pedra ou colunas torneadas, é significativo constarem ao lado de referências singelas, como ‘caixas’ ou ‘dois barris’, ou ‘duas gamelas pequenas’”.57

Assim, a heterogeneidade econômica desta elite política local, apontada an-teriormente no Gráfico 1, é referendada pela composição dos bens móveis destes indivíduos, nas quais pode-se perceber distintos padrões de vida, já que algumas

56 Em sua Dissertação, Mara Silva analisou duas fazendas na região dos Campos de Cima da Serra (RS) – a Fazenda Estrela, do Coronel Libório Rodrigues, e a Fazenda Branca, de propriedade do Coronel Avelino Paim – com o intui-to de “decifrar a linguagem simbólica relativa à construção, manutenção e legitimação do poder de seus proprietários junto a seus subordinados, objetivando verificar a interferência da arquitetura nas relações de força” (SILVA, 1996, p. 99). Ao analisar a cobertura das duas casas-sede, Silva constatou a existência de um padrão nos dois casos anali-sados – ambas seguem o modelo de telhado quatro águas, característico do sobrado na arquitetura colonial brasileira – que as distingue das edificações de outros membros da elite econômica da região: “A grande maioria das demais residências rurais contemporâneas, por nós trabalhadas, embora também pertencentes à oligarquia rural, exibem uma cobertura de duas águas com inclinações laterais” (SILVA, 1996, p. 113-114).57 MALERBA, 2000, p.149.

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residências aparecem mais sofisticadas que outras. Alguns inventários chamam a atenção por apresentarem os bens móveis avaliados em mais de 2 contos de réis, diferenciando-se de outros que possuíam apenas 22 ou 100 mil-réis em bens móveis. Felipe Carlos Trein, por exemplo, possuía 2:816$000 em bens móveis. Sua casa na vila de São Sebastião do Caí era bem localizada e, com certeza, chamava a atenção dada a sua imponência, pois se tratava de uma casa assobradada, tendo à frente uma porta e cinco janelas, localizada à rua Tiradentes esquina com a Praça Ramiro Bar-celos. Em seu interior, podiam ser encontradas duas mobílias estofadas – que juntas valiam 750 mil-réis –, camas, bidê, armários – inclusive, armário para livros! –, guar-da-roupas, mesa e cadeiras. Além da mobília, a casa contava com artigos decorativos, como relógios, quadros, tapetes e cortinas que encobriam as janelas (no inventário estão listadas 4 pares de cortinas que juntas foram avaliadas em 210 mil-réis).58

Já a casa de Carlos Berto Círio, em Santana do Rio dos Sinos, era bem mais modesta. Podiam ser encontradas nela mesas, cadeiras de pau, uma cadeira de balan-ço, baús, armário para louças e uma velha cômoda.59 Entretanto, nenhum artigo de decoração como as cortinas, os quadros e tapetes existentes na casa de Felipe Trein. E, se acaso existiram, não constaram no arrolamento, provavelmente por não possu-írem valor monetário significativo.

Se na casa de Trein que morava na Vila de São Sebastião do Caí existiam artigos de luxo, o fato de residir em um distrito do interior do município não signifi-cava que alguns dos membros da elite abrissem mão de possuir bens mais luxuosos. Paulino Ignácio Teixeira, residente em Santana do Rio dos Sinos, não se furtou de ter artigos de luxo em sua casa. Teixeira possuía uma casa térrea, bastante ampla – com sala, alcovas, varanda e cozinha – feita de paredes de pedra e coberta de telha, sendo a edificação forrada e assoalhada. Junto à casa, que ficava em terreno cerca-do, encontravam-se algumas benfeitorias, como casa de atafona, paiol e um galpão para guardar as carretas. Dentre a mobília, destacavam-se um sofá feito de madeira e palhinha, duas cadeiras de braço e duas de encosto feitas de palhinha, uma mesa redonda, dois consolos com pedra de mármore e dois grandes espelhos. Castiçais, tapete, caixinha de música e piano, artigos estes de luxo, completavam a decora-ção.60 A presença de tais objetos pode ser representativo do processo de aumento

58 TREI; TREIN, 1899, f. 21-22v.59 CIRIO, Narcisa Amélia (Inventariado); CIRIO, Carlos Berto (Inventariante). [inventário]. São Sebastião do Caí, 1888 [Manuscrito]. Localização: Cartório órfãos e Ausentes, Auto n. 278, Maço n. 10, Ano 1888, APERS. f. 12.60 TEIXEIRA, Isolina Lopes Mariante (Inventariado); TEIXEIRA, paulino Ignácio (Inventariante). [inventário]. São Sebastião do Caí, 1891 [Manuscrito]. Localização: Cartório órfãos e Ausentes, Auto n. 343, Maço n. 12, Ano 1891, APERS. p. 24-26.

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das importações de bens de consumo destinados a consumidores endinheirados – semiduráveis, duráveis, supérfluos – descrito por Luiz Felipe de Alencastro como característico da segunda metade do século XIX. Assim, jóias, objetos de ouro e prata, relógios de algibeira e piano se tornaram mais comuns, segundo Alencastro, nas residências da elite imperial.61

Mas não eram somente imóveis e bens móveis que podiam traduzir o status supe-rior da elite caiense. Não se deve desconsiderar o fato de que esta elite, mesmo vivendo em uma zona colonial – o que, muitas vezes, foi utilizado pela historiografia como mo-tivo para que fosse negada a posse de escravos por colonos imigrantes –, encontrava-se inserida em uma lógica social escravista. Isto foi demonstrado por Witt que, ao analisar o caso da família Voges, de São Leopoldo, constatou que, a exemplo de muitas outras estabelecidas na região colonial, os Voges compravam e mantinham escravos em suas propriedades.62 Raul Róiz Shefer Cardoso, detendo-se especificamente sobre a região do vale do rio Caí, observou que a presença escrava foi significativa nesta região:

Localizamos, no Vale do Caí, a presença de várias fazendas, algumas das quais destacaram-se pela sua extensão ou pela representatividade de seus proprietários na re-gião, pelos bens arrolados nos inventários ou pelo expressivo número de escravos encon-trados na matrícula de registro ou na partilha dos bens inventariados. Sobressaíram-se na nossa pesquisa as fazendas: Carioca, Demanda, Morretes, Boa Vista, Estrela, Rio dos Sinos, das Palmas.63

Esta presença pôde ser confirmada em dois inventários da amostra de 27 que ana-lisamos, sendo estes de dois vereadores de origem luso-brasileira. Como as informações de inventários eram bastante escassas, recorremos a outras fontes documentais que de-monstram a presença de escravos no município entre as propriedades da elite local64: nas

61 ALENCASTRO, 1997, p. 36-37.62 WITT, 2008, p. 43.63 CARDOSO, Raul Róis Schefer. Capítulos de formação de um território negro: a escravidão rural no Vale do Caí (RS- 1870/1888). 2005. Dissertação (Mestrado em História) -- Programa de Pós-Graduação em História. Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, RS, 2005. p. 40.64 Os inventários em que constam escravos arrolados entre os bens são os de Emília Angélica Loureiro, esposa de Agostinho de Souza Loureiro, e o de Antônio José da Rocha Júnior. Quando da morte de sua esposa Emília Angélica Loureiro, em 1876, Agostinho de Souza Loureiro possuía 4 escravos. Jorge, “preto velho” e Manoel, tam-bém descrito como “preto velho”, avaliados em 600 mil-réis cada; o “criolo moço” Marcos, que valia 1:200$000 e o “Crioulinho” Olimpio, de 600 mil-réis (LOUREIRO, Emília Angélica (Inventariado); LOUREIRO, Agostinho de Souza (Inventariante). [inventário]. São Sebastião do Caí, 1876 [Manuscrito]. Localização: Cartório órfãos e Ausentes, Auto n. 23, Maço n. 1, Ano 1876, APERS). Já no inventário de Antônio José da Rocha Júnior, datado de 1884, consta como sendo de sua propriedade a preta Luiza, que lhe prestava serviços e fora avaliada em 100 mil-réis (ROCHA JÚNIOR, Antônio José da (Inventariado); ROCHA, Fausta Corte Real da (Inventariante). [Inventário]. São Sebastião do Caí, 1884 [Manuscrito]. Localização: Cartório órfãos e Ausentes, Auto n. 165, Maço n. 6, Ano 1884, APERS).

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receitas da Câmara Municipal, encontramos arrolados como compradores de escra-vos – e, portanto, pagantes de 2% do valor do escravo em imposto – Antônio Pires Cerveira e Paulino Ignácio Teixeira. Cerveira comprou em 1880, de José Fernandes Vieira, a escrava Leopoldina, por quem pagou a quantia de 1:200$000. Já Paulino Ignácio Teixeira comprou em 1883 de Joaquim Pires da Cruz a escrava Izabel pelo valor de 500 mil-réis.65 Se todas as fontes até agora referidas trazem luso-brasileiros como proprietários de escravos, o Mapa de População do primeiro quarteirão de Porto do Guimarães demonstra que imigrantes e descendentes teutos também pos-suíam bens de tal natureza. De acordo com o Mapa de População, datado, provavel-mente, de 1868, Guilherme Zirbes era proprietário de um escravo, de naturalidade brasileira, 24 anos, chamado Gregório.66 No mesmo documento, encontramos dados sobre a família de Cristiano Sauer. Nele, além da menção ao pardo Panciano Fran-cisco Santos – que, acreditamos possa ter sido uma espécie de agregado da família Sauer, já que não está arrolado como escravo – encontramos a informação de que Cristiano Sauer era proprietário do escravo Stefânio, preto, brasileiro de 18 anos.67

Como evidenciamos, o fato de esta elite residir em um município que não possuía traços de um grande centro urbano – uma vez que, no máximo, podia ser considerado um entreposto comercial – não impediu que ela buscasse, através da aquisição de bens móveis, mais do que conforto, a garantia de prestígio. Esta mes-

65 SãO SEBASTIãO DO CAí. Câmara Municipal. Livro para Lançamento das Receitas e Despesas da Câmara Mu-nicipal da Vila de São Sebastião do Caí. São Sebastião do Caí: 1876-1885 [Manuscrito]. Localização: AHMBM. f. 30v.66 JUNG, J. Pedro (Inspetor de Quarteirão). Mappa da população do Quarteirão de Porto Guimarães n. 1. [Manuscrito]. Localização: Fundo Polícia, Maço 40, São Leopoldo, 1º Quarteirão do 5º Distrito de São Leopoldo, [1868?], AHRGS.67 Assim, valendo-nos de diferentes fontes documentais, podemos afirmar que, dos 38 vereadores, temos informa-ções de que pelo menos 6 foram donos de escravos. Entretanto, acreditamos que este número possa ter sido muito mais elevado, já que as fontes de que nos valemos – listas de população, receitas da Câmara Municipal e inventários – não são propriamente as mais adequadas para isso. Os últimos, por si só, não são suficientes, afinal, a grande maioria dos inventários é do período pós-abolição, de modo que não podemos saber se, antes disto, o indivíduo possuía ou não escravos. Já no caso das receitas da Câmara, estas só nos revelam a propriedade de escravos no caso de uma transação comercial, ocasião em que o comprador tinha que, necessariamente, pagar uma taxa aos cofres públicos. Obviamente, não encontramos nenhuma escravaria como as existentes em outras regiões do Brasil e mes-mo em outras regiões do Rio Grande do Sul, como foi observado também por Cardoso: “[...] A opção dos grandes proprietários de terras da freguesia de Santana do Rio dos Sinos foi a de utilizar-se da mão-de-obra escrava. Para os parâmetros das Charqueadas do Rio Grande do Sul, o contingente escravo não era tão significativo. Contudo, foi o escravo o personagem que ocupou, em maior número, essas grandes fazendas, trabalhando como cozinheiro, lavrador, campeiro e costureira, entre outras atividades” (CARDOSO, 2005, p. 31-32). O maior número de escravos que localizamos – 28, no total – eram de propriedade de Antônio José da Silva Guimarães Júnior, pai do vereador Pedro de Alencastro Guimarães. JUNG, J. Pedro (Inspetor de Quarteirão). Mappa da população do Quarteirão de Porto Guimarães n. 1. [Manuscrito]. Localização: Fundo Polícia, Maço 40, São Leopoldo, 1º Quarteirão do 5º Distrito de São Leopoldo, [1868?], AHRGS.

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ma constatação foi feita por Mariana Muaze que, ao analisar a relação dos objetos comprados pela família Ribeiro de Avellar, quando de sua transferência da Corte para a fazenda Pau Grande, no interior do Rio de Janeiro, percebeu que “apesar de abrir mão da vida na cidade [...], a família Ribeiro de Avellar não pretendia fazer o mesmo no que se referia a sua vida material e ao cultivo de objetos de prestígio que correspondessem ao seu lugar social diferenciado”.68

CONCLUSãO

A utilização de inventários post-mortem, associados a outras fontes documentais, revela-nos facetas do modo de vida da elite política caiense e aponta para caracterís-ticas que garantiam a este grupo diferenciação em relação aos demais setores sociais, denotando seu status superior de “elite”. A partir da análise do perfil econômico da elite política caiense acreditamos que, de fato, a riqueza criou condições favoráveis aos indivíduos que estavam à frente de cargos de poder político, uma vez que lhes dava maiores condições de distribuir favores, angariar aliados, e sustentar seu status diferenciado na sociedade local. Se, por um lado, muitos aspectos diferenciam os membros da elite política de São Sebastião do Caí, que então se revela um grupo heterogêneo em função da origem étnica, da profissão e do local de residência,69 por outro lado sua privilegiada condição econômica garante-lhe certa homogeneidade. Foi, pois, esta privilegiada condição econômica dos indivíduos analisados – revelada, sobretudo, a partir da análise dos inventários post-mortem – que possibilitou, em boa medida, o acesso e a manutenção destes indivíduos ao grupo minoritário da elite política municipal.

68 MUAZE, Mariana de Aguiar Ferreira. O Império do Retrato: família, riqueza e representação social no Brasil oito-centista (1840-1889). 2006. Tese (Doutorado em História) – Programa de Pós-Graduação em História. Universidade Federal Fluminense, Rio de Janeiro, RJ, 2006. p. 164.69 Dos 38 vereadores, 13 eram luso-brasileiros e 25 eram teuto-brasileiros. Quanto ao perfil profissional, temos 20 negociantes, 10 fazendeiros, 2 proprietários, 2 ferreiros, 1 marceneiro, 1 serreiro, 1 maquinista/náutico e 1 professor público. Quanto ao local de residência, 18 moravam na Vila de São Sebastião do Caí, termo-sede do município. Os demais residiam em distritos do interior do município: 11 em Santana do Rio dos Sinos, 5 em São José do Hortêncio e 4 em Santa Catarina da Feliz.

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FONTES PESQUISADAS

Alistamento dos eleitores do Município de São Sebastião do Caí. 1890 jun. 20 [Ma-nuscrito]. Arquivo Histórico Municipal Bernardo Mateus (AHMBM).Inventários. São Sebastião do Caí, 1868 a 1935. Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul (APERS).Livro para Lançamento das Receitas e Despesas da Câmara Municipal da Vila de São Sebastião do Caí. São Sebastião do Caí: 1876-1885 [Manuscrito]. Arquivo Histórico Municipal Bernardo Mateus (AHMBM).Mappa da população do Quarteirão de Porto Guimarães n. 1. [Manuscrito]. Locali-zação: Fundo Polícia, Maço 40, São Leopoldo, 1º Quarteirão do 5º Distrito de São Leopoldo, [1868?]. Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul (AHRGS).

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A AtividAde eConôMiCA rio-grAndense eM teMPos de guerrA (vilA de rio grAnde, 1811-1850)

Gabriel Santos Berute*

Resumo: É plausível supor que os períodos de guerra nos quais o Rio Grande do Sul esteve envolvido durante a primeira metade dos oitocentos – as Guerras Cisplatinas, 1811-28, e a Guerra dos Farrapos, 1835-40 – tenham influenciado o ritmo da sua atividade econômica. Nesta comunicação tenho como objetivo investigar o impacto que estas tiveram na economia da região. A principal fonte utilizada são as escrituras públicas de venda, crédito e sociedade registradas em Rio Grande entre 1811-50. A documentação permitiu observar que os bens rurais apresentaram uma redução no número de transações e quedas importantes no seu valor, especialmente nos primeiros anos da Guerra dos Farra-pos, concomitante a valorização dos bens urbanos.

Palavras-chave: Rio Grande do Sul – escrituras públicas – comércio – guerra – agentes mercantis

Opadrão de investimento observado na economia rio-grandense, es-pecialmente no que diz respeito ao impacto econômico das Guerras Cisplatinas (1811-28) e da Guerra dos Farrapos (1835-40) é o tema

abordado nesta comunicação. Para tanto utilizei as escrituras públicas registradas em Rio Grande entre 1811 e 1850¹.

Juridicamente, as escrituras são instrumentos destinados a registrar formal-mente todas as condições de um determinado contrato, “seja para assumir uma obrigação ou seja para determinar a execução de outro ato qualquer”. Estas podem ser tanto privadas, restritas aos nela interessados, quanto públicas, lavradas por um funcionário ou oficial público e de acordo com “as solenidades previstas em lei”. No caso das particulares, estavam restritas àquelas transações que a lei não obrigava registrar em documento público. “E para que opere em relação a terceiros, [é] neces-sário que seja transcrito no registro público”². Na documentação por mim analisada, pude verificar a ocorrência de escrituras particulares que posteriormente foram re-

* Aluno do curso de doutorado do PPG-História/UFRGS. Bolsista CAPES.¹ ARQUIVO PÚBLICO DO EESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. Transmissões e Notas. Rio Grande, 2º Tabelionato, Livro 2-21 (1811-1850). Doravante: APERS. Transmissões e Notas. 2 Tab. RG, L, fl.² SILVA, De Plácido e. Vocabulário jurídico. Rio de Janeiro: Forense, 1975. Volume II, p. 616-17.

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gistradas nos livros do Tabelionato. Em 12 de janeiro de 1843, por exemplo, Vicente Manuel de Espíndola e sua esposa, constam com outorgantes de uma escritura de ratificação referente à venda de um terreno de 100$000 réis (2.581 libras) feita por documento particular em outubro de 1842 para José Gomes Madeira³.

Jucá de Sampaio observou que as Ordenações Filipinas determinavam que era necessário o registro público de contratos, compras e vendas, empréstimos, per-mutas, dotes, entre outros. Assim, todas as transações envolvendo bens de raiz de valor acima de 4$000 réis, bens móveis e dívidas com valor superior a 60$000 réis deveriam ser registradas em escrituras públicas4. Portanto, estas não dizem respeito à totalidade das transações efetuadas em uma sociedade. Acrescenta-se ainda que muitas negociações podem ter permanecido no âmbito particular, ainda que seu registro fosse obrigatório.

Apesar destas limitações, os registros notariais permitem conhecer, mesmo que parcialmente, o padrão dos investimentos econômicos vigentes em uma socie-dade. Estudos como os de João Fragoso e Jucá de Sampaio, e mais recentes como os de Fábio Pesavento e Alexandre Vieira Ribeiro, têm demonstrado a pertinência desta fonte para a investigação histórica5. Sendo assim, as escrituras públicas lavradas em Rio Grande constituem-se na principal fonte deste trabalho.

Nos livros de Transmissões e Notas de Rio Grande para o período considera-do, foram registradas 1.949 escrituras no valor total de 162.592.182 libras esterlinas6. Nesta comunicação selecionei as escrituras reunidas sob os títulos de Venda, Cré-dito e Sociedade que somam 1.096 escrituras, correspondentes a 56% do total de

³ APERS. Transmissões e Notas. 2 Tab. RG, L17, fl. 67v.4 SAMPAIO, Antonio Carlos Jucá de. Na encruzilhada do império: hierarquias sociais e conjunturas econô-micas no Rio de Janeiro (c. 1650-c. 1750). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2003, p. 54. Ver também CÓDiGO FiLiPiNO, OU, ORDENAÇÕES E LEiS DO REiNO DE PORTUGAL: RECOPiLADAS POR MAN-DADO D’EL-REi D. FiLiPE i. Brasília: Senado Federal, Conselho editorial, 2004, Livro Terceiro, 2º Tomo, Título LIX, p. 651-52.5 FRAGOSO, João Luís Ribeiro. Homens de grossa aventura: acumulação e hierarquia na praça mercantil do Rio de Janeiro (1790-1830). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998; SAMPAIO, Antonio Carlos Jucá de. Na encruzilhada do império: hierarquias sociais e conjunturas econômicas no Rio de Janeiro (c. 1650-c. 1750). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2003; PESAVENTO, Fábio. Um pouco antes da Corte: a economia do Rio de Janeiro na segunda metade do Setecentos. Niterói: Centro de Ciências Sociais Aplicadas-Faculdade de Economia/UFF, 2009 [tese de doutorado]; RIBEIRO, Alexandre Vieira. A cidade de Salvador: estrutura economia, comércio de escravos, grupo mercantil Salvador (c.1750 c.1800). Rio de Janeiro: PPGHIS-UFRJ, 2009 [tese de doutorado].6 Para obter uma avaliação mais precisa dos valores dos bens negociados e sua evolução ao longo período em ques-tão optou-se por considerar os valores em libras. Para a conversão foi utilizada a tabela IPEA. Taxa de câmbio média anual da libra esterlina (réis por pence) na praça do Rio de Janeiro (RJ). Disponível em: <http://www.ipeadata.gov.br/ipeaweb.dll/ipeadata?SessionID=582221975&Tick=1237039310077&VAR_FUNCAO=Ser_Hist(122)&Mod=M>. Acesso em 11 jan. 2009.

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registros e 72% (116.820.910 libras) do valor total das mesmas. Para melhor análise dos dados, as escrituras selecionadas foram organizadas nas seguintes categorias, conforme o tipo de escritura e dos bens negociados: Bens urbanos; Bens rurais; Crédito; Embarcações, Sociedades e Outras.

Assim, foi possível construir o Gráfico 1, mostrando a quantidade de escri-turas e seus valores, de acordo com as categorias estabelecidas. A categoria Urbano possui 497 escrituras (45%), o correspondente a 25% do valor (29.676.245 libras). As escrituras reunidas sob o título Rural, embora reúnam pouco mais da metade das escrituras de bens urbanos (23%), concentram 30% do valor (35.497.480 libras) das mesmas. Apesar de reduzidas no que diz respeito ao número de registros, as escri-turas das categorias Embarcações e Crédito são responsáveis por parcelas significativas dos valores transacionados: 23.093.763 libras (20%) e 22.679.858 libras (19%), res-pectivamente. No caso das poucas escrituras de Sociedade, chama a atenção o mon-tante considerável que elas alcançaram (4.006.218 libras ou 3% do total), sugerindo que tinham valores individuais elevados. O peso dos negócios ligados à atividade mercantil fica mais evidente ao se somar as escrituras de bens urbanos e as embar-cações. Juntas, as duas categorias reúnem 61% das escrituras e 45% do valor total envolvido.

Gráfico 1 – Número e valor total das escrituras por categoria, 1811-1850 (Libras esterlinas)

Fonte: APERS. Transmissões e Notas. 2 Tab. RG, L 2-21, 1811-50

A análise da distribuição das escrituras de acordo com suas categorias e fai-xas de valor permite perceber a grandeza das transações registradas nos livros de “Transmissões e Notas” de Rio Grande. Na Tabela 1, que apresenta os valores das diferentes categorias de escrituras, é possível observar que a maior parte das escri-turas valia menos de 100 mil libras, com valor médio de 33.333 libras. Apenas 30

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escrituras (cerca de 3%) encontram-se entre aquelas cujos valores foram superiores a 500 mil libras esterlinas, mas concentram um terço do montante total das escrituras selecionadas.

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Considerando cada uma das categorias, percebe-se que em todas elas a maio-ria das escrituras encontra-se na faixa de menos de 100 mil libras. A maior parte do valor das transações de bens rurais encontra-se nas faixas de 100 a 499 mil libras e mais de 1 milhão de libras (66%). Em ambas as faixas, os bens rurais concentram 53 e 50% do valor total, seguidas dos urbanos, com 23,5% das escrituras com valores entre 100 e 499 mil libras e dos créditos com 29% da faixa de mais de 1 milhão de libras em apenas 4 escrituras.

Quanto às escrituras da categoria urbano, percebe-se que 472 das 497 escri-turas valiam no máximo 499 mil libras. Nas faixas de menos de 100 mil e de 100 a 499 mil libras estão distribuídas 87% do valor destas escrituras. Entre as de menor valor (menos de 100 mil libras) as urbanas são predominantes, seguidas das rurais. Na faixa de valor entre 100 e 499 mil libras há certo equilíbrio na distribuição das escrituras entre as categorias: rural, urbano, embarcações e crédito.

Quase todas as escrituras de venda de embarcações estão nas duas primeiras faixas de valor. Dois terços do valor destas escrituras estão na faixa de 100 a 499 mil libras. Destaca-se que a única embarcação com valor maior que 1 milhão de li-bras esterlinas concentra quase 6% dos 26.481.772 de libras acumuladas nesta faixa. Quanto ao crédito, embora a maior parte destas escrituras fosse de menos de 100 mil libras, aproximadamente a metade dos 35.497.480 de libras estava concentrada nas escrituras com valore entre 100 e 499 mil libras esterlinas.

Constata-se, portanto, que os bens urbanos mesmo sendo mais numerosos são individualmente menos valiosos em relação aos bens rurais que, por sua vez, con-centram as escrituras com os bens de valor mais avultado. Considerando os valores médios, os bens urbanos são mais valiosos apenas entre os bens da terceira faixa de valor (500 a 999 mil libras). Quanto às embarcações, destaca-se que elas possuem valor médio mais elevado do que as escrituras rurais e urbanas da primeira faixa de valor.

Na Tabela 2, apresento a distribuição qüinqüenal das escrituras e seus valores a fim de observar sua evolução ao longo do período investigado. As escrituras de venda de bens rurais concentram a maior parcela do valor total negociado (39%), embora mais da metade das escrituras registradas fossem urbanas que acumulavam 33% do valor total das vendas. Percebe-se que até o início da rebelião contra o do-mínio da Banda Oriental pelo Império do Brasil (1825) o investimento em bens ru-rais superava amplamente o montante aplicado nos bens rurais e nas embarcações7. Ao analisar escrituras de compra e venda registradas no Rio de Janeiro entre 1800 e 1816, João Fragoso observou que os negócios rurais eram a segunda opção em

7 Avaliando a participação dos bens de produção no patrimônio produtivo total da capitania rio-grandense a partir de inventários post-mortem para os anos entre 1765 e 1825, Helen Osório constatou que nos períodos de guerra (1765-85 e 1815-25) os animais compunham a maior parte do patrimônio. Entre 1815-25, os animais e as terras representavam, respectivamente, 37,9 e 37,3% do patrimônio total. A autora afirma que “os preços do gado vacum aumentavam mais, e rapidamente, em tempos de guerra, enquanto as terras aumentavam lenta e progressivamente,

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número de escrituras, mas não acumulavam parcela correspondente no valor total negociado, pois eram bens de baixo valor. Estes negócios representavam no mínimo 11,68% e no máximo 34,8% do valor negociado8. Na cidade de Salvador, Alexan-dre Ribeiro constatou que os bens rurais correspondiam a uma parcela entre 33,2 e 54,6% do valor das vendas registradas entre 1751 e 18009. No caso de Rio Grande, as escrituras rurais deixaram de ser as mais valiosas apenas no qüinqüênio 1826-30 quando as embarcações concentraram cerca de 35% e as rurais 29% dos 8.947.941 de libras acumulados por todas as vendas deste período. Nos qüinqüênios seguintes, os recursos investidos no setor agrário foram sempre superiores a 26%, exceto no lustro de 1836-40, quando a conjuntura de guerra contribuiu para uma queda bas-tante acentuada no número de escrituras e, principalmente, no valor. No primeiro lustro da série, dentro da conjuntura analisada por Fragoso, as escrituras rurais re-presentavam 74% do valor negociado. Em 1816-20, elas alcançaram o seu máximo, quase 79%. Percebe-se assim, que ao contrário da Corte e da capital soteropolitana, em Rio Grande os investimentos rurais ainda concentravam parcelas consideráveis dos recursos envolvidos nestas transações10.

refletindo-se esse movimento na composição do patrimônio produtivo”. Osório ressalta que “A guerra configurava-se como um momento propício para arrear e roubar gado e, simultaneamente, como uma ocasião em que o consu-mo desse bem crescia muito, tanto por se a base da alimentação das tropas, como por se apresentar como o butim passível a ser conquistado”. OSóRIO, Helen. O império português no sul da América: estancieiros, lavradores e comerciantes. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2007, p. 67-75; a citação é da p. 72-3.8 FRAGOSO, João Luís Ribeiro. Homens de grossa aventura: acumulação e hierarquia na praça mercantil do Rio de Janeiro (1790-1830). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998, p. 336-37.9 RIBEIRO, Alexandre Vieira. A cidade de Salvador: estrutura economia, comércio de escravos, grupo mer-cantil Salvador (c.1750 c.1800). Rio de Janeiro: PPGHIS-UFRJ, 2009 [tese de doutorado], p. 88.10 Neste ponto, os resultados são semelhantes ao observado por Jucá de Sampaio para o período entre a segunda metade do século XVII e a primeira metade do século seguinte, quando o investimento nos “negócios rurais” era preponderante em termos de valor (mas não preponderavam no número de escrituras registradas) e concentraram parcelas entre 32,47 e 79,45% do valor total das escrituras de compra e venda. SAMPAIO, Antonio Carlos Jucá de. Na encruzilhada do império: hierarquias sociais e conjunturas econômicas no Rio de Janeiro (c. 1650-c. 1750). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2003, p. 68-9.

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A queda verificada no percentual correspondente às escrituras de bens rurais a partir do lustro de 1826-30 foi acompanhada por uma elevação do investimento em bens urbanos. Cabe observar que este é um período crítico da disputa pela Banda Oriental, que teve do desdobramento a perda da Província Cisplatina e a criação do Uruguai como nação independente (1828). Apesar de algumas variações, há uma tendência de crescimento no total de escrituras realizadas e nos seus respectivos valores. Os primeiros anos do conflito farroupilha foram justamente os que apresen-taram a maior representatividade das escrituras urbanas: 66% das escrituras e 52% do valor total das vendas do qüinqüênio 1836-40. A partir da segunda metade do conflito há indícios de uma recuperação dos valores dos bens rurais, uma vez que o percentual do montante investido em bens urbanos e em embarcações foi reduzido em favor dos bens rurais.

A participação das escrituras envolvendo a negociação de embarcações oscilou bastante entre 1811-50. Ao longo da primeira metade dos oitocentos, constatou-se crescimentos significativos no total de escrituras nos qüinqüênios de 1816-20, 1826-30 e 1846-50. Quanto aos valores, os percentuais acumulados foram baixos até 1816-20 e verificou-se um crescimento bastante acentuado nos lustros 1826-30 e 1836-40, na primeira metade da década de conflito entre farroupilhas e imperiais.

Percebe-se, portanto, que as duas conjunturas de guerra enfrentadas pela pro-víncia exerceram influência importante no padrão de investimento verificado através das escrituras de venda. O fim da ocupação da Banda Oriental e o início da Guer-ra dos Farrapos representaram momentos cruciais para a economia da província rio-grandense, pois a partir de 1826-30 parte do investimento antes direcionado majoritariamente nos bens rurais passou a ser aplicado nas negociações envolvendo bens urbanos e embarcações. Somados, os recursos acumulados nestas escrituras representavam 59% dos 90.134.834 libras esterlinas negociados entre 1811 e 1850. Apesar da tendência de recuperação do valor aplicado na aquisição de bens rurais a partir de 1841-45, este tipo de investimento não retomou os patamares verificados antes de 1826, demonstrando que os investimentos em bens ligados a atividade mer-cantil (urbanos e embarcações) estavam em processo de crescimento na sociedade rio-grandense a partir de meados da década de 1820, indicando que também crescia o nível de urbanização. Helen Osório constatou que entre 1765 e 1825 as aglome-rações urbanas eram muito incipientes nesta região. Apenas 26% dos inventários post-mortem da capitania eram exclusivamente urbanos e que os bens rurais oscilavam entre 25,7 e 56% do total do patrimônio declarado, enquanto os bens urbanos atingi-ram no máximo 18,8%¹¹. Sendo assim, o padrão verificado nas escrituras indica uma alteração significativa em relação ao período analisado pela autora.

¹¹ OSóRIO, Helen. O império português no sul da América: estancieiros, lavradores e comerciantes. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2007, p. 259-61.

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Em termos numéricos, as sociedades não permitem grandes considerações. Fo-ram localizadas apenas nove escrituras de sociedades registradas no tabelionato. Tal característica não deve levar a uma conclusão precipitada quanto à importância das mesmas, pois é possível que parte delas tenha sido formalizada através de docu-mentos particulares, portanto estritos aos diretamente interessados. Naquelas que mereceram o registro nos livros notariais de Rio Grande, destaca-se que em apenas uma escritura lavrada em 1824, no valor de 3.167.500 libras, concentrava 79% do va-lor total representado pelas escrituras de sociedade. Tratava-se da ratificação de um documento particular de sociedade feito em 1821 referente ao Campo do Serro Alegre (campos e gados). A sociedade era composta por Ismael Soares de Paiva da Cidade de Porto Alegre e o casal de José Antonio de Freitas, residente em Serro Alegre, Distrito da Vila do Rio Pardo, onde se localizava a propriedade. A duração prevista era de nove anos e Paiva era definido como caixa enquanto Freitas ficava responsável pela administração da mesma¹².

As escrituras de crédito concentram o equivalente a um quarto do valor in-vestido nas vendas. O melhor resultado foi verificado no lustro 1821-25, quando as 3.127.480 libras negociadas representaram quase 65% do valor das escrituras de venda no mesmo período, enquanto o menor percentual foi de 8%. Em relação ao número de escrituras, em todo o período considerado os percentuais foram menores em relação às de venda e apresentou a parcela mais significativa em 1846-50 (29% das escrituras de venda)13.

Considerando a distribuição dos 22.679.857 de libras, percebe-se que a maior parte do valor das escrituras de crédito concentra-se nos três últimos qüinqüênios. É possível que tal característica tenha relação com a Guerra dos Farrapos, pois as dificuldades impostas pelo conflito à plena realização das atividades econômicas da província podem ter dificultado a manutenção das unidades produtivas por parte de seus proprietários. Os interessados em adquiri-las, por sua vez, não possuiriam os recursos suficientes para a realização dos negócios, tornando necessário o parcela-mento das dívidas ou a tomada de recursos monetários para saldar suas obrigações.

O conjunto dos dados apresentados na Tabela 2 indica, portanto, que as conjunturas de guerra foram marcantes para o padrão de investimento verificado

12 APERS. Transmissões e Notas. 2 Tab. RG, L10, fl.168.¹³ Alexandre Ribeiro demonstra que nos anos entre 1751 e 1800 (tomados por décadas), os “empréstimos” re-presentavam de 48,4 a 86,5% do total investido nas vendas em Salvador. RIBEIRO, Alexandre Vieira. A cidade de Salvador: estrutura economia, comércio de escravos, grupo mercantil Salvador (c.1750 c.1800). Rio de Janeiro: PPGHIS-UFRJ, 2009 [tese de doutorado], p. 88.

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na província rio-grandense ao longo da primeira metade do século XIX. Além dis-so, percebe-se um incremento no investimento direcionado aos bens urbanos e às embarcações, que podem ser considerados como indicativo da importância que as atividades mercantis tinham naquele momento.

A análise mais específica das categorias permite considerações mais detalha-das a respeito da evolução dos valores dos bens reunidos em cada uma delas ao longo do período estudado. Na Tabela 3 observa-se que a média14 dos bens urbanos negociados alternou altas e baixas ao longo dos anos considerados e apresentou uma queda significativa entre 1831-35, enquanto no último qüinqüênio houve um aumen-to importante no valor médio e total dos bens. Em termos gerais, chama a atenção que estas médias são inferiores em relação às médias verificadas nas vendas de bens rurais, embarcações e nos créditos. Apesar disso, com exceção do lustro 1816-20, o valor total acumulado nas escrituras apresentou uma tendência de crescimento constante a partir da anexação da Província Cisplatina (1821), atingindo o montante mais elevado no último qüinqüênio da série. O mesmo padrão pôde ser observado no número de escrituras registradas a partir de 1816-25.

Tabela 3 – Evolução qüinqüenal do valor total e médio dos bens urbanos (Libras esterlinas)

VT: Valor Total; VM: Valor Médio; N.E: Número de EscriturasFonte: Fonte: APERS. Transmissões e Notas. 2 Tab. RG, L 2-21, 1811-50

Para avaliar a evolução individual dos bens que compõem a categoria urbano, elaborei a Tabela 4 que reúne os principais tipos de bens reunidos nesta categoria. Destaca-se o alto valor dos sobrados, apesar da pouca ocorrência deles ao longo do período. Com a exceção dos qüinqüênios 1831-35 e 1841-45, esta edificação teve valor médio superior a 200.000 libras.

14 Há escrituras referentes à venda de partes dos bens nas quais, na maioria das vezes, foi registrada a parte exata que estava sendo negociada. Para o cálculo das médias foram corrigidos os valores de parcelas claramente indicadas (metade, dois terços, etc) e desconsideradas aquelas escrituras que indicam a parcela negociada com expressões genéricas como “parte que tem em uma propriedade de Casas” ou “maior parte de umas Casas”. No caso dos bens rurais foram consideradas as expressões como “pedaço de campo”, “porção de terras“ e “sorte de estância”

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Tabela 4 – Valor médio dos bens urbanos (Libras esterlinas)

VM: Valor Médio; N.E: Número de EscriturasFonte: APERS. Transmissões e Notas. 2 Tab. RG, L 2-21, 1811-50

As casas foram os bens urbanos com maior número de escrituras registradas. O período da segunda metade da Guerra dos Farrapos foi o que apresentou o maior número de transações enquanto a maior média foi verificada no último qüinqüênio analisado. Os terrenos urbanos, por sua vez, apesar do total de escrituras ser grande, apresentaram as menores médias.

Os dados referentes aos bens rurais (Tabela 5) apresentaram valores médios em decréscimo entre os qüinqüênios 1821-25 e 1836-40. O mesmo ocorre com o valor total, que apresentou o montante mais baixo no último lustro da década de 1830. Este padrão indica novamente que o início da guerra que perduraria por dez anos teve impacto significativo nos negócios rurais de uma das principais praças da província rio-grandense. Naturalmente, a existência de um conflito dentro de seu território interferia na economia da região tanto pelo recrutamento de homens para os combates, como também pelas requisições de animais, farinha e demais provisões necessárias às tropas combatentes.

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Tabela 5 – Evolução qüinqüenal do valor total e médio dos bens rurais (Libras esterlinas)

VT: Valor Total; VM: Valor Médio; N.E: Número de EscriturasFonte: APERS. Transmissões e Notas. 2 Tab. RG, L 2-21, 1811-50

Para a construção da Tabela 6 considerei apenas os bens rurais mais estatis-ticamente representativos ou importantes para os objetivos da análise. É possível perceber que as escrituras de venda de terras são as de menor valor médio apesar de relativamente presentes ao longo do período e ser o segundo maior montante total. Observa-se uma desvalorização bastante acentuada entre 1831-35 e o qüinqüênio seguinte (no início da guerra, quando foi registrada apenas uma negociação de terras. As chácaras apresentam um comportamento oscilante, sendo o momento de maior desvalorização observado no lustro de 1836-40, enquanto a menor média ocorreu entre 1826 e 1830.

Já as charqueadas apresentam poucas transações, mas com valor médio elevado. Em geral, estas unidades produtivas eram compostas pelas terras, suas edificações e benfeitorias, escravos e embarcações (geralmente canoas). Por exemplo, o “estabele-cimento de charqueada com edifícios, benfeitorias e toda qualidade de serviços nele encontrados” localizado na Costa do Rio Pelotas que foi vendido em julho de 1825 por José Gonçalves da Silva & Companhia (os irmãos José Gonçalves da Silva e Manuel Gonçalves da Silva) ao negociante de grosso trato de Rio Grande, o Capitão-Mor Antonio José Afonso Guimarães. Esta foi negociada juntamente com seus 31 escravos, 50 cavalos, equipamentos como guindastes, caldeiras, forno de secar sal, atafona, carretão e demais utensílios. O valor total da propriedade alcançou 661.406 libras, sendo 440.938 libras pagas à vista e o restante no prazo de um ano15.

15 APERS. Transmissões e Notas. 2 Tab. RG, L11, fl.50. O Capitão-Mor Antonio José Afonso Guimarães era “Negociante de grosso trato da Praça do Rio Grande de São Pedro do Sul” matriculado na Junta do Comércio (Rio de Janeiro), desde 07/09/1813. ARQUIVO NACIONAL, RIO DE JANEIRO. REAL JUNTA DO COMÉRCIO, AGRICULTURA, FÁBRICAS E NAVEGAçãO. Matrícula dos Negociantes de grosso trato e seus Guarda Livros e Caixeiros. Códice 170, v. 1 (1809-1826), fl. 100v.

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Tabela 6 – Valor médio dos bens rurais (Libras esterlinas)

VT: Valor Total; VM: Valor Médio; N.E: Número de Escrituras; 1 Inclusive 1 “rincão”; 2 Inclusive 1 “sítio”

Fonte: APERS. Transmissões e Notas. 2 Tab. RG, L 2-21, 1811-50

Os bens reunidos no título estância/fazenda/campo apresentaram os maiores valores médios e concentraram a 77% dos 35.467.480 de libras esterlinas investi-dos nos bens rurais. Tal como ocorria com as charqueadas, estas unidades produti-vas, principalmente as estâncias e fazendas, em muitos casos foram negociadas com todas as suas terras, edificações, benfeitorias, escravos e, principalmente com seus animais. Este é o caso da transação que envolveu a venda da mais valiosa destas pro-priedades. Em agosto de 1813, o Tenente Manuel Pinto de Moraes e sua esposa ven-deram a Estância São José da Boa Vista, com suas edificações, cavalos e animais vacuns e cavalares para José da Rosa Machado, pela quantia de 2.177.000 libras esterlinas. A estância localizava-se em uma “sesmaria cedida pelo vice-Rei Conde de Rezende, antes era do Brigadeiro Rafael Pinto Bandeira que (...) havia comprado do falecido José Carneiro Gonçalves”16.

16 APERS. Transmissões e Notas. 2 Tab. RG, L3, fl. 127.

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É possível observar que a maior parte do valor destes bens concentrava-se nos dois primeiros e no último qüinqüênio. Apesar da coincidência com as duas conjunturas de guerra do período, deve-se acrescentar que entre 1811 e 1820 foram negociadas 7 estâncias e 1 fazenda que contribuíram para a elevação do montante acumulado nestes lustros. As duas estâncias negociadas em 1811-15 custaram, em média, 1.604.500 libras, enquanto as 3 estâncias e a fazenda vendida entre 1816-20 valiam aproximadamente 1.757.795 libras cada uma17. A partir de 1841-45, verifica-se um aumento no número de escrituras, no valor investido e nas médias verificadas, conforme a tendência anteriormente observada a partir da análise da Tabela 2.

Assim, corroborando o que já havia sido constatado na apreciação do conjun-to dos bens rurais, a análise individual das principais propriedades deste tipo tam-bém demonstrou que no período entre 1826-30 e 1836-40 ocorreu uma tendência de redução dos investimentos em bens rurais e apesar da recuperação iniciada a partir da metade da Guerra dos Farrapos, o volume investido nestes bens não recuperou os níveis verificados até a década de 1820.

As negociações envolvendo embarcações (Tabela 7) eram poucas nos primeiros anos da série e apresentou um crescimento importante a partir de 1826-30. Apesar das oscilações nos dois lustros seguintes, o número de negociações ficou em pata-mares superiores aos verificados no início da série.

Tabela 7 – Evolução qüinqüenal do valor total e médio das embarcações (Libras esterlinas)

VT: Valor Total; VM: Valor Médio; N.E: Número de EscriturasFonte: APERS. Transmissões e Notas. 2 Tab. RG, L 2-21, 1811-50

17 APERS. Transmissões e Notas. 2 Tab. RG, L3, fl. 127; L5, fl. 230v; L6, fl.163v; L7 158v; L8, fl. 164; L9, fl. 32v. Em 1829 e em 1840, foram vendidas mais duas estâncias que custaram 590.760 e 99.200 libras, respectivamente. Este última refere-se a metade da Estância denominada “Conventos”. APERS. Transmissões e Notas. 2 Tab. RG, L13, fl. 33v; L16, fl. 41v.

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Quanto aos valores médios das embarcações transacionadas, percebe-se que tal como o ocorrido com os valores totais, apresentam-se em queda até 1821-25. Este foi o momento no qual as três variáveis analisadas apresentaram os níveis mais baixos. A partir do lustro seguinte houve oscilações até o final da série. Entre 1841 e 1845, apesar do aumento do total negociado, houve uma nova redução no seu valor médio em relação ao lustro anterior. O último qüinqüênio analisado foi aquele no qual foi contabilizado o maior número de escrituras e o maior valor total negociado, aproximadamente 39% do montante acumulado nas vendas de embarcações. No mesmo período foi verificada a terceira maior média (162.983 libras). Em compara-ção com os bens urbanos, observa-se que os preços médios das embarcações eram muito superiores. O maior preço médio daqueles foi verificado em 1846-50 (89.900 libras) só é superior ao alcançado pelas embarcações em 1821-25 (68.092 libras). Contudo, as oscilações verificadas nas embarcações foram mais acentuadas.

Em relação ao conjunto dos dados, o que se percebe é um movimento oposto ao dos bens rurais, pois o momento de diminuição dos investimentos no setor agrá-rio coincide com o de valorização das embarcações e do montante acumulado nas transações envolvendo este tipo de propriedade, principalmente a partir de 1826-30. Em relação aos bens urbanos, observa-se que em ambos os tipos de bens os qüin-qüênios entre 1826 e 1845 foram marcados pelo crescimento do investimento total e no número de escrituras registradas (Tabela 5). Trata-se conseqüentemente de um indício de valorização dos bens ligados ao exercício das atividades mercantis – des-tacadamente, sobrados e embarcações. Cabe sublinhar que aparentemente os bens urbanos concentraram uma fatia maior em relação às embarcações dos investimen-tos anteriormente direcionados aos bens rurais.

Na Tabela 8 estão dispostas as embarcações negociadas de acordo com o seu tipo. Os iates, bergantins, escunas, sumacas e patachos reuniam 85% das embarcações e aproximadamente 69% do seu valor. Os dois primeiros tipos reuniram cerca de 34 e 20% delas, mas os bergantins foram os de maior valor negociado: 4.896.988 libras (21%). Apesar disso, o valor médio não era o mais elevado: 175.108 libras.

Os iates eram as embarcações mais negociadas, mas apresentaram o segundo menor valor médio: 73.004 libras. Tratava-se de um navio de dois mastros latinos ao qual era dada uma utilização recreativa e para o transporte de pessoas distintas18. Na província rio-grandense, todavia, eram intensamente utilizados no transporte de

18 GODOY, José Eduardo Pimentel de. Naus da colônia. Brasília: Senado Federal, 2007, p. 672.

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mercadorias, conforme corrobora a observação dos registros de entrada e saída de embarcações de seu porto marítimo19. Além disso, ao menos até 1823, quando a dra-gagem do cais e a construção do porto melhoraram as condições de navegabilidade, permitindo a entrada de embarcações de maior calado no porto de Rio Grande20, os iates cumpriam um importante papel para a atividade mercantil rio-grandense.

Tabela 8 – Tipos de embarcações: valor médio e mediano (Libras esterlinas)

VT: Valor Total; VM: Valor Médio; N.E: Número de Escrituras¹ Foi incluído um “caíque armado a iate” ² Um Bergantim e um Patacho vendidos na mesma

escritura; ³ Duas metades de duas embarcações diferentes; 4 Uma “canoa” e uma “canoa latina”Fonte: APERS. Transmissões e Notas. 2 Tab. RG, L 2-21, 1811-50

A pequena profundidade da barra de Rio Grande oferecia grandes dificul-dades para a navegação de embarcações de grande porte. Estas precisavam ir até o

19 ARQUIVO HISTóRICO DO RIO GRANDE DO SUL. Autoridades Militares. Maços: 14, 16, 18, 22, 27, 46, 51. Marinha – “Praticagem da Barra”: Maços: 22, 23, 24; 27 e 28; “Diversos”: maço 72.20 QUEIROZ, Maria Luiza Bertulini. A Vila do Rio Grande de São Pedro, 1737-1822. Rio Grande: FURG, 1987, p. 157.

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porto da vizinha povoação de São José do Norte para desembarcar as mercadorias. Como era necessário registrar a entrada das mesmas na Alfândega de Rio Grande, depois de desembarcadas na “aldeia do Norte”, as mercadorias eram então transpor-tadas até a vila através de iates, as únicas embarcações em condições de ancorar no seu porto, segundo registrou Saint-Hilaire em 1820. O mesmo afirmava ainda que este deslocamento entre São José do Norte e Rio Grande facilitava a ocorrência das atividades de contrabando21.

Os bergantins, por sua vez, eram embarcações a remo de pequeno porte e mui-to velozes que contavam com um ou dois mastros e velas redondas ou latinas. Eram utilizados no comércio e para transporte, preferencialmente em pequenas rotas. José Virgílio Amaro Pissarra afirma tratar-se do “mais subtil e veloz dos navios de remo de traça européia utilizados pelos portugueses”²². José de Godoy lembra que os brigues se assemelhavam aos bergantins e que no século XIX essas denominações passaram a ser equivalentes e confundiram-se. Quanto às sumacas, o mesmo autor sublinha que estas possuíam dois mastros e eram muito utilizadas em toda a América do Sul, especialmente no Brasil e na região do Rio da Prata²³.

Embora fossem apenas três, as barcas a vapor apresentaram a maior média (773.438 libras) e concentraram 10% do total negociado. De acordo com Francis-co Contente Domingues, o termo “barca” era bastante comum na documentação portuguesa dos séculos XVI ao XIX e não caracterizava um tipo específico de em-barcação, sendo considerado sinônimo de “navio”. Apesar disso, também podia ser utilizado como forma de designação das embarcações de menor porte, enquanto o termo “navio” era utilizado para as de maior porte24.

A navegação a vapor no Rio Grande de São Pedro, de acordo com Alvarino Marques, foi inaugurada por Antonio José Marques, Domingos José de Almeida, Antonio José Gonçalves Chaves e José Vieira Viana. Estes financiaram a constru-

²¹ SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem ao Rio Grande do Sul. Brasília: Senado Federal/Conselho Editorial, 2002, p. 89; 97; 106. Luccock também faz considerações a respeito da necessidade de ancorar em São José do Norte e das dificuldades que as embarcações de grande porte tinham para transpor o canal da barra de Rio Grande. LUC-COCK, John. Notas sobre o Rio de Janeiro e partes meridionais do Brasil. São Paulo: Livraria Martins, 1942, p. 115.-16. Sobre a barra de Rio Grande, ver também NEVES, Hugo Alberto Pereira. Estudo do porto e da barra do Rio Grande. In: ALVES, Francisco das Neves; TORRES, Luiz Henrique (Orgs.). A Cidade do Rio Grande: estudos históricos. Rio Grande: Universidade do Rio Grande: Secretaria Municipal de Educação e Cultura, 1995, p. 91-106.²² PISSARRA, José Virgílio Amaro. Navegações Portuguesas. Lisboa: Instituto Camões Portugal/Ministério dos Negócios Estrangeiros, 2005. Verbete “Bergantim”. Disponível em: <http://cvc.instituto-camoes.pt/navegaport/c05.html>. Acesso em: 31 mar. 2009.23 GODOY, José Eduardo Pimentel de. Naus da colônia. Brasília: Senado Federal, 2007, p. 663-64; 679.24 DOMINGUES, Francisco Contente. Navegações Portuguesas. Lisboa: Instituto Camões Portugal/Ministério dos Negócios Estrangeiros, 2005. Verbete “Barca”. Disponível em: <http://cvc.instituto-camoes.pt/navegaport/c03.html>. Acesso em: 31 mar. 2009.

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ção de uma embarcação a vapor Liberal, que passou a fazer viagens regulares entre Pelotas e Rio Grande a partir de 1832. Poucos anos depois, já se contava com linhas regulares a vapor entre Porto Alegre, Rio Grande e Rio Pardo25.

A transação de maior valor presente nas escrituras de embarcações foi a da barca a vapor Porto-alegrense, em março de 1850. O Coronel Tomás José de Campos e seu sócio Carlos W. Dichl venderam a embarcação para a Companhia de Vapores Porto-alegrense, por 1.293.750 libras. Todos os sócios estavam estabelecidos em Rio Grande: Hugentobler & Doutey, Holland Davis & Companhia, Carruthers Souza & Companhia, Law Irmãos & Companhia, Comendador José de Souza Gomes, e Proudfoot Meira & Moffat26. Destaca-se o fato de serem quase todos estrangeiros, indicando o aumento da concorrência enfrentada pelos luso-brasileiros envolvidos na atividade mercantil na primeira metade dos oitocentos.

Ressalta-se ainda que Hugentobler & Douley, Holland Davis & Companhia estavam envolvidos no comércio marítimo e de cabotagem da província, especial-mente nas exportações de couros e na importação de sal27. Já Proudfoot Meira & Moffat, segundo informa Riopardense de Macedo, era a firma comercial sob a qual atuava o britânico, nascido em Glasgow, John Proudfoot. O abastado homem de negócio chegou a Buenos Aires (1835) e em seguida estabeleceu-se em Rio Grande. Atuava nos principais negócios da província: teve fazendas onde cultivava algodão, construiu o cabo submarino ligando Buenos Aires e Montevidéu, em 1864, e foi o responsável pelo estabelecimento das linhas de barco a vapor que ligavam Porto Alegre e Rio Grande (1873). Investiu ainda em estradas de ferro e companhias de gás28. Acrescenta-se, por fim, que Proudfoot Meira & Moffat e todos os demais re-presentantes da Companhia de Vapores Porto-alegrense estavam entre os setenta sócios da Praça do Comércio de Rio Grande, fundada em 184429, que em 15 de dezembro de 1849 fizeram doações em dinheiro para a edificação do prédio que serviria como sede da mesma30.

25 MARQUES, Alvarino da Fontoura. Evolução das charqueadas rio-grandenses. Porto Alegre: Martins Livreiro Editor, 1990, p. 133-35.26 APERS. Transmissões e Notas. 2 Tab. RG, L20, fl.106v.27 ARQUIVO HISTóRICO DO RIO GRANDE DO SUL. Autoridades Militares. Maços: 14, 16, 18, 22, 27, 46, 51. Marinha – “Praticagem da Barra”: Maços: 22, 23, 24; 27 e 28; “Diversos”: maço 72..28 Proudfoot faleceu em 1875, na cidade de Lisboa, e sua fortuna ficou para um sobrinho. MACEDO, Francisco Riopardense de. ingleses no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: A Nação, 1975, p. 61-2.29 MACEDO, Francisco Riopardense de. ingleses no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: A Nação, 1975, p. 58. Sobre a Praça do Comércio de Rio Grande, ver também MUNHOZ, Cláudia Simone de Freitas. A Associação Co-mercial do Rio Grande de 1844 a 1852: interesses e atuação representativa do setor mercantil. São Leopoldo: PPG-História/UNISINOS, 2003.30 APERS. Transmissões e Notas. 2 Tab. RG, L21, fl. 39v.

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A comparação do preço desta embarcação com o das estâncias (bens rurais de maior valor médio) permite avaliar melhor a dimensão deste investimento. Em 1819, a Estância São Lourenço foi vendida por 6.146.052 libras esterlinas com todos seus ani-mais, escravos, gêneros e uma embarcação. Somente as 6 “sesmarias incompletas” e as casas de vivenda e benfeitorias foram avaliadas em 1.548.999 libras³¹. A metade da Estância Conventos (no Uruguai) com alguns animais e sua sede, por sua vez, foi ven-dida em 1840 por 99.200 libras³². Assim, além da valorização das embarcações frente aos bens rurais, fica sugerido que os 1.293.750 libras pagos pelo “vapor” Porto-alegrense tratava-se de um investimento bastante pesado para um único negociante, justificando-se assim a sua aquisição por uma companhia comercial constituída por importantes agentes mercantis estabelecidos em Rio Grande, principalmente estrangeiros.

A rubrica crédito concentra aproximadamente um quarto do valor investido nas vendas entre 1811 e 1850, ou 19% dos 116.820.610 de libras esterlinas reunidos nas escrituras analisadas nesta comunicação. Quanto ao número de escrituras regis-tradas, os percentuais são de 15,5% em relação às vendas e de 13% das 1.096 escri-turas selecionadas. A maior parte das 146 escrituras da categoria crédito é de “dívida e hipoteca” (108) que representam 59%% do valor total concentrado nos créditos (22.679.854 libras).

Os valores médios destes créditos apresentaram grandes oscilações (Tabela 9). O período entre 1831 e 1835 apresenta a menor média (71.829 libras). O número de transações realizadas é o segundo menor, assim como seu valor total (502.854 libras). A partir daí as médias foram crescentes até 1841-45, quando alcançou as 302.399 libras. O lustro 1846-50 concentra a maior parcela do valor total e do nú-mero de registros, mas o valor médio das escrituras diminuiu consideravelmente em relação ao período anterior.

Tabela 9 – Evolução qüinqüenal do valor total e médio dos créditos (Libras esterlinas)

VT: Valor Total; VM: Valor Médio; N.E: Número de EscriturasFonte: APERS. Transmissões e Notas. 2 Tab. RG, L 2-21, 1811-50

31 APERS. Transmissões e Notas. 2 Tab. RG, L9, fl.32v.³² APERS. Transmissões e Notas. 2 Tab. RG, L16, fl.41v.

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Nota-se que o valor total concentrado nas escrituras de crédito foi crescente até 1821-25 e decrescente entre o fim da ocupação da Banda Oriental e o primeiro qüinqüênio da Guerra dos Farrapos, quando voltou a crescer até o final do período analisado. As conjunturas de guerra (1811-25 e 1835-45), portanto, foram momen-tos importantes para a realização de transações envolvendo crédito e concentraram quase a metade dos recursos destinados a este tipo de negócio e 37% do total das escrituras. Quanto ao qüinqüênio 1846-50, é provável que o elevado número de es-crituras de crédito e o alto valor verificado neste momento estivessem relacionados às necessidades advindas do encerramento dos combates entre farroupilhas e impe-riais. Considerando que a guerra gerou prejuízos para a atividade produtiva, se fez necessário a reorganização da economia e para a retomada da normalidade produtiva foi preciso recorrer aos empréstimos. Comparando a distribuição do valor total dos créditos com a observada nas demais categorias de escrituras analisadas (tabelas 3, 5 e 7), constata-se que em todas elas a passagem do lustro 1841-45 para o seguinte caracteriza-se pela elevação expressiva no valor investido nos bens rurais e urbanos, nas embarcações e nos créditos.

Após a análise das escrituras aqui apresentadas, conclui-se que o período final da ocupação luso-brasileira no território do Uruguai e a primeira metade da Guer-ra dos Farrapos constituíram-se em pontos chaves para a economia rio-grandense. Neste intervalo, os bens ligados ao setor produtivo (rurais) sofreram grande desvalo-rização, concomitante à valorização dos bens urbanos e das embarcações, indicando que a província passava por um processo de crescente desenvolvimento urbano. O resultado final da distribuição do valor investimento em bens rurais, urbanos e embarcações indicam que estes concentravam, respectivamente, 39, 33 e 18,6% dos recursos. Assim, mesmo que os bens rurais respondessem pela maior parcela, fica evidenciado o incremento da atividade mercantil ao longo do período considerado.

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FONTES

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ARQUIVO NACIONAL, RIO DE JANEIRO. REAL JUNTA DO COMÉRCIO, AGRICULTURA, FÁBRICAS E NAVEGAçãO. Matrícula dos Negociantes de grosso trato e seus Guarda Livros e Caixeiros. Códice 170, v. 1 (1809-1826).

ARQUIVO PÚBLICO DO EESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. Transmis-sões e Notas. Rio Grande, 2º Tabelionato, Livro 2-21 (1811-1850).

CóDIGO FILIPINO, OU, ORDENAçõES E LEIS DO REINO DE PORTU-GAL: RECOPILADAS POR MANDADO D’EL-REI D. FILIPE I. Brasília: Sena-do Federal, Conselho editorial, 2004, Livro Terceiro, 2º Tomo.

IPEA. Taxa de câmbio média anual da libra esterlina (réis por pence) na pra-ça do Rio de Janeiro (RJ). Disponível em: http://www.ipeadata.gov.br. Acesso em 11 jan. 2009.

BIBLIOGRAFIA

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LUCCOCK, John. Notas sobre o Rio de Janeiro e partes meridionais do Brasil. São Paulo: Livraria Martins, 1942.MACEDO, Francisco Riopardense de. ingleses no Rio Grande do Sul. Porto Ale-gre: A Nação, 1975.MARQUES, Alvarino da Fontoura. Evolução das charqueadas rio-grandenses. Porto Alegre: Martins Livreiro Editor, 1990.MUNHOZ, Cláudia Simone de Freitas. A Associação Comercial do Rio Grande de 1844 a 1852: interesses e atuação representativa do setor mercantil. São Le-opoldo: PPG-História/UNISINOS, 2003.NEVES, Hugo Alberto Pereira. Estudo do porto e da barra do Rio Grande. In: ALVES, Francisco das Neves; TORRES, Luiz Henrique (Orgs.). A Cidade do Rio Grande: estudos históricos. Rio Grande: Universidade do Rio Grande: Secretaria Municipal de Educação e Cultura, 1995.OSóRIO, Helen. O império português no sul da América: estancieiros, lavra-dores e comerciantes. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2007.PESAVENTO, Fábio. Um pouco antes da Corte: a economia do Rio de Janeiro na segunda metade do Setecentos. Niterói: Centro de Ciências Sociais Aplicadas-Faculdade de Economia/UFF, 2009 [tese de doutorado].PISSARRA, José Virgílio Amaro. Navegações Portuguesas. Lisboa: Instituto Ca-mões Portugal/Ministério dos Negócios Estrangeiros, 2005. Verbete “Bergantim”. Disponível em: <http://cvc.instituto-camoes.pt/navegaport/c05.html>. Acesso em: 31 mar. 2009.

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ContrAtos Conflituosos: ArrendAMentos, ArrendAtários e litígios judiCiAis eM uruguAiAnA,

segundA MetAde do séCulo xix¹

Guinter Tlaija Leipnitz*

Resumo: Na segunda metade do século XIX, o meio rural brasileiro passava por transfor-mações, no âmbito das relações socioeconômicas, principalmente com o advento da Lei Eusébio de Queiroz (proibição do tráfico de escravos) e da “Lei de Terras” (discriminação entre terras públicas e privadas). Na Campanha rio-grandense, a relação dos produtores com a terra se modificava gradual-mente: produtores sem a propriedade jurídica da terra, que criavam e plantavam em campos alheios, eram cada vez menos tolerados pelos proprietários. Nesse contexto, os arrendamentos cresciam como alternativa de acesso à terra. Contudo, os contratos e as relações concernentes aos mesmos foram alvos de disputas entre os contratantes, chegando algumas vezes à arena judicial. Através de alguns litígios produzidos em Uruguaiana e localizados no Acervo Judicial do Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul, pudemos analisar alguns aspectos desses conflitos, referentes ao cumprimento de cláusulas contratuais e aos direitos de propriedade implicados pelos arrendamentos.

Palavras-chave: arrendamentos – conflitos agrários – relações de propriedade – direitos de propriedade – história agrária do Rio Grande do Sul

INTRODUçãO

As relações socioeconômicas estavam se redefinindo no Brasil da se-gunda metade do século XIX. A Lei Eusébio de Queiroz - que proi-bia o tráfico de escravos -, e a Lei nº 601, mais conhecida como “Lei

de Terras” - que impunha uma discriminação entre terras públicas e privadas -, pro-mulgadas em 1850, trouxeram novos elementos à realidade do meio rural brasileiro.

Na Campanha rio-grandense, onde a pecuária era a atividade econômica pre-dominante, ocorria um processo gradual importante. As relações de propriedade

* Endereço eletrônico: [email protected] . Licenciado e bacharel em História pela UFRGS – mestrando com bolsa do CNPQ pelo Programa de Pós-graduação em História da UFRGS¹ Este artigo corresponde a discussões que integram o terceiro capítulo de minha dissertação de mestrado, ainda em elaboração.

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estavam sendo transformadas: o “livre” acesso à terra estava sendo obstaculizado, e a existência de muitos produtores que viviam e desempenhavam suas atividades de subsistência em campos alheios, não possuindo a propriedade jurídica desses cam-pos, era cada vez menos toleradas pelos proprietários.²

Em Uruguaiana, município localizado nessa paisagem agrária, o arrendamen-to – uma prática já exercida na região – se constituiu em uma das alternativas de aces-so à terra para muitos produtores que ficaram desprovidos desse bem, mas também para aqueles que desejavam ampliar seus empreendimentos pecuários, reproduzindo a criação de gado extensiva através da incorporação de novas frações de campo.

Porém, algumas cláusulas e circunstâncias sob as quais contratos de arrenda-mento eram realizados poderiam fomentar conflitos entre as partes envolvidas. E de fato, entre o início da segunda metade do século XIX e a primeira década do século XX, algumas vezes esses conflitos se transformaram em litígios judiciais.

Dos 113 processos judiciais preeminentemente rurais³ abertos em Uruguaia-na (98 ações possessórias e 15 processos de despejo), entre os anos de 1847 e 1910, 16 envolviam arrendatários como autores ou réus da causa que era movida. Anali-sando-os conjuntamente, vemos que estes processos compõem um quadro bastante heterogêneo, conquanto os casos em particular guardem alguns aspectos semelhan-tes entre si. Começando pela variedade do tipo de ação proposta, percebemos que situações diversas eram geradoras de tensões que acabavam sendo mediadas pelas vias judiciais. A maior parte dos litígios se dava em torno de disputas a respeito de direitos de propriedade, e em segundo lugar, do cumprimento de condições con-tratuais. Entretanto, essas motivações, abrigadas sob essas duas égides, escondiam situações concretas distintas entre si, como a definição dos limites físicos de um campo, o levantamento de uma cerca, a indenização por benfeitorias, dentre outros. Cada um desses casos instiga discussões sobre relações e direitos de propriedade e relações contratuais entre os agentes históricos da Campanha de Uruguaiana. Em outras palavras, são reveladoras da dinâmica das relações sociais que se estabeleciam naquele contexto.

Como os conflitos judiciais envolvendo arrendatários iluminam esses aspec-tos? Ocuparemos-nos neste artigo de responder esta questão, trabalhando somente

² A respeito desse processo, ver GARCIA, Graciela. O domínio da terra: conflitos e estrutura agrária na Campanha rio-grandense oitocentista. Porto Alegre: UFRGS, 2005. Dissertação de mestrado, e FARINATTI, Luís Augusto Ebling. Confins meridionais: famílias de elite e sociedade agrária na Fronteira Sul do Brasil (1825-1865). Rio de Janeiro: UFRJ, 2007. Tese de doutorado.³ Consideramos como “rurais” os processos que envolviam disputas sobre bens como campo (inclusive chácaras situadas fora do espaço urbano) e gado.

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com 6 desses litígios: em primeiro lugar, com aqueles que versavam acerca do cum-primento de condições contratuais (3 processos), pelos quais podemos perceber de que maneiras os litigiosos procuravam validar suas posições por meio do confronto de documentos públicos e privados, e em segundo lugar, com litígios cujas disputas principais se davam em torno da propriedade (3 processos), que fornecem indícios de como o reconhecimento da condição de arrendatário poderia ou não ser interes-sante em conflitos que colocavam em jogo direitos de propriedade distintos.

DOCUMENTOS PÚBLICOS VERSUS DOCUMENTOS PRIVADOS NO RIGOR DO CUMPRIMENTO DE

CONDIçõES CONTRATUAIS

Um aspecto importante dos arrendamentos é o fato de conformarem con-tratos; logo, eles traziam em si uma série de condições que implicavam obrigações mútuas entre os contratantes.

A respeito disto, firmá-los por meio de escrituras públicas não devia ser uma opção aleatória para aqueles neles envolvidos. Procurando a mediação do Estado, os contratantes fortaleciam o rigor das cláusulas, pois as submetiam à legitimidade do arbítrio legal. Este, caso alguma das partes infringisse as prévias combinações con-tratuais, faria valer a “sacralidade” do teor da escritura, decidindo em favor do escrito original do contrato, com a devida imparcialidade esperada, ao menos teoricamente.

Assim, os contratos de arrendamento se configuravam como obrigações re-cíprocas, e as escrituras públicas pelas quais tomavam forma, a garantia legal do seu cumprimento. Contudo, o que acontecia quando eles eram de fato “quebrados”, e um dos seus pólos sentia-se lesado? O que era firmado no texto das escrituras pú-blicas era inquestionável?

Vejamos alguns casos. O primeiro trata de um arrendamento de gado. Joa-quina Ferreira da Fonseca apresentou, em fevereiro de 1866, uma petição na qual demandava que Antônio José Dornelles recebesse as 800 reses arrendadas por seu fi-nado marido Silvano Rodrigues Soares em 1859, contrato que deveria durar por seis anos.4 O réu se recusava em receber o gado mesmo tendo assinado com o procura-dor da autora – o irmão da mesma, Ignacio Manoel da Fonseca, que se encarregava “particularmente dos negócios da [Suplicante] que não pode andar à testa deles”

4 Uruguaiana. Possessórias, 1º Cartório de Cível e Crime (daqui em diante, CC), maço (daqui em diante, m).20, nº465, 1866. Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul (daqui em diante, APERS).

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- um recibo comprovando ter recebido a quantia do último ano do arrendamento, além de sua obrigação de receber o casco das 800 reses.

Dornelles, por sua vez, oferecia embargos à ação de preceito cominatório, na qual declarava que o contrato original previa a compra do gado por parte dos ar-rendatários, e que só assinou o “ajuste extrajudicial” – o recibo - com o procurador da autora porque era “um rústico e quase analfabeto, ao passo que o Advogado da [autora] é um homem de letras, formado em Direito, inteligente e sagaz; pelo que teve de ser vítima o [réu] embargante da sua própria ignorância”, tendo depois se reportado “do que havia levianamente prometido, logo que, consultando suas filhas, donas de parte desse gado arrendado, achou nelas inteira desaprovação do referido ajuste por ser um negócio inviável, prejudicial”, e

[...] que se por ventura viesse a prevalecer esse incurial convênio, teria [ele] de sofrer mais do que enorme lesão, atendendo-se à redução dos preços feita já na ocasião do contrato de arrendamento e venda a que agora se propunha fazer [a autora] entregando em espécie pelo valor de 4 [...] que devia ser satisfeito em Dinheiro pelo valor de 8, e só por causa dessa lesão substancialmente viciado se torna esse ajuste por ser de pleno direito nulo e de nenhum efeito.

Para contestar o recibo apresentado pela autora, Dornelles anexou aos autos uma escritura pública de hipoteca, com a qual os arrendatários hipotecavam sua fazenda de légua e meia para cobrir todos os seis anos de contrato mais o valor de venda do gado. Este documento fazia referência à escritura pública de arrendamento original, mas por algum motivo ela não foi anexada, embora existisse. Nas linhas desta, estava claramente expresso que Antônio José Dornelles e o marido da autora Silvano José Rodrigues se obrigavam “reciprocamente por suas livres e espontâneas vontades, o primeiro proprietário a vender, e o segundo arrendatário a comprar as referidas oitocentas reses de criar no fim do prazo de seis anos que há de durar este arrendamento”.5

Depois de quase um mês e meio de litígio, as partes, por meio de petição conjunta, diziam ter se harmonizado, fechando um acordo para por fim ao conflito: o réu aceitava reduzir de 8$000 para 6$500 réis o preço de venda do gado arrendado, em troca da efetuação da compra do mesmo pela autora, por meio de uma parcela de entrada mais duas letras de dívida firmadas em seu favor. Desse modo, o juiz sentenciou a desistência e o acordo, ordenando que tanto a autora quanto o réu arcassem com as custas.

5 Uruguaiana, 1° Tabelionato. Livro de Transmissões e Notas volume 3, 1858-1860, f.62-62v. APERS.

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Relatado o caso, é interessante perceber como a exigência do cumprimento de condições previstas no contrato dependeu do interesse particular de cada um. Assim, na petição de abertura a autora não mencionou a existência de obrigação de compra do gado arrendado; por seu turno, o réu, que não obstante tivesse admitido sua aquiescência em relação ao documento apresentado pela autora, justificou esse consentimento por sua ignorância, conforme sua fala reproduzida nos parágrafos anteriores.

E é justamente na fala de Dornelles que emana a questão do peso dos do-cumentos públicos em relação aos particulares, exemplificado na contestação do “ajuste extrajudicial” firmado entre o réu e o procurador da autora: “[...] esse ajuste extrajudicial feito meramente de palavra entre o [réu] e o Advogado da [autora] não pode prevalecer contra o ajustado e tratado em escritura pública, mesmo abstraindo e deixando à margem a falta de formalidade com que foi celebrado”, sendo “corrente em Di-reito ser a escritura pública essencial para o distrato quando o contrato foi celebrado por escritura pública; e por isso não pode a combinação em que entrou o [réu] com o Advogado da [autora] desfazer o contrato preexistente”.6 Em outras palavras, o réu argumentava em sua defesa que mesmo tendo assinado uma modificação em relação ao contrato original, esta não podia valer devido à circunstância em que fora firmada – o “ludi-brio” do advogado “culto” sobre o homem “rústico e ingênuo” - mas principalmen-te por ser contrário ao Direito, uma vez que o documento particular não poderia desfazer ou modificar um acordo firmado publicamente.

Infelizmente para nossos propósitos, por ser encerrado pela desistência mú-tua, o processo não teve o fôlego suficiente a ponto de o juiz analisá-lo a luz do embate entre os documentos públicos e os documentos privados. Apesar disso, é notável que o réu procurasse legitimar sua reivindicação através do peso do docu-mento público.

Da mesma maneira procederia o réu de um outro processo, uma ação ordiná-ria, iniciada quase trinta anos depois, em agosto de 1894. Joaquim Máximo da Silva requeria que Antônio dos Santos Moraes fosse intimado a pagar as quantias referen-tes à indenização de duas benfeitorias – açude e aramado de invernada, no valor de 150 pesos – que havia construído no campo arrendado ao mesmo réu, localizado na República Oriental do Uruguai, por sete anos desde 1887.7 Segundo o autor, o contrato havia terminado uma vez que o réu vendera o campo ao governo daquele país sem ressalvar o arrendamento.

6 Grifos nossos.7 Uruguaiana. Embargos, 2º CC, m.62, nº1725, 1894. APERS

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Defendendo-se, Antônio Moraes contestava a ação, ao alegar que o autor não havia provado ter realizado tais benfeitorias, e que considerava nulo o contrato fir-mado ante escritura pública depois que vendido o campo, pois Joaquim Máximo es-tabelecera um novo contrato com o novo dono. Logo, o contrato particular assinado por ambos acordando as condições da construção dessas benfeitorias não mais tinha validade, e mesmo que tivesse, não anularia o que constava da escritura pública, na qual estava expressamente declarado que quaisquer benfeitorias realizadas ficariam em benefício do proprietário.

O contrato particular mencionado por Moraes referia-se a um documento que o autor apresentou. Do seu teor constava que o proprietário Antônio dos Santos Moraes contratava com o arrendatário Joaquim Máximo da Silva a construção de um açude e de um aramado, adiantando este o capital e sendo indenizado no fim do contrato pelo proprietário. Além deste documento, que foi o cerne dos principais debates dos advogados, o autor anexou aos autos a escritura pública do arrendamen-to em questão, além de outros documentos particulares.

Para embasar a sua versão, o réu juntou ao processo um documento em es-panhol, o qual expressava um acordo entre Joaquim Máximo e o novo proprietário do campo, o uruguaio Allende, que havia comprado o mesmo junto ao governo de seu país. Com esse acordo, o autor dissolveria o contrato que havia firmado com o réu, além de se obrigar a despejar o campo em troca do arrendamento de um ou-tro campo do mesmo Allende. Moraes também anexou cartas trocadas entre ele e Joaquim Máximo, que expressavam a quitação dos pagamentos do arrendamento, e uma carta assinada pelo uruguaio cujo teor relatava que o autor só se comprometia em desalojar o campo caso Allende comprasse o açude e o aramado construídos, e que essa condição teria de fato se realizado, trocando Joaquim Máximo as benfeito-rias pelo acréscimo de uma parcela de terras no contrato de arrendamento que havia firmado com Allende.

O primeiro artigo da contestação do réu – “que o Autor não provou ter feito o açude e a invernada de que trata a presente ação nos campos que lhe foram arrendados” - foi rechaçado por uma testemunha do autor, que declarou ter traba-lhado junto com o mesmo em sua construção, e admitido pelo próprio réu em seu depoimento, quando disse “que o autor deu cumprimento ao contrato, mas que ele réu nunca foi ver o açude”. Restava a ele então tentar invalidar o contrato particular para a construção daquelas benfeitorias. Assim, constava no arrazoado articulado por seu advogado:

[...] ao autor não cabe direito algum de cobrar-se de açudes e inverna-das, que tenha feito, porque são benfeitorias no campo arrendado, em face da cláusula final do contrato [público de arrendamento], que não pode ser nulo pelo [particular, de combinação da construção do açude e aramado].

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Diz a escritura [pública] infine: “quaisquer benfeitorias que o outorga-do arrendatário aumentar no Estabelecimento ou campo ficarão a be-nefício dos outorgantes proprietários, sem que estes sejam obrigados ao pagamento ou indenização alguma.” O documento citado é uma escritura pública e assinada também pela mulher do réu outorgante, e o documento [acerca do levantamento das benfeitorias] é uma escritu-ra particular assinada somente pelo réu!8

O advogado segue, citando Teixeira de Freitas, e recupera a mesma noção utilizada pelo advogado do réu do caso anterior: “o que se dispõe sobre os contra-tos procede também nos distratos; e sempre que o contrato for feito por escritura pública o distrato não se pode provar se não por outra escritura pública”. Como se vê, a base do argumento do réu era estabelecer uma prioridade de importância entre os documentos, que eram de natureza diferente: um público, que deveria prevalecer sobre o outro, privado.

O julgador da causa, contudo, não se satisfez com esse argumento, no mo-mento em que embasou sua sentença. Ele, mesmo considerando

[...] que uma modificação a um contrato de locação rural feito por escritura pública deverá ser também por escritura pública feita, ainda assim o contrato [particular] é em direito equiparado a esse instrumento porquanto [no seu depoimento] o Réu reconhece judicialmente a sua validade e a obrigação que ele estipula, e o “escrito particular que for reconhecido em juízo pela parte que o passou e assinou, ou que o assinou somente, será atendido como se fora escritura pública”. Teixeira de Freitas obra cit. Art.º 373. 9

O réu Antônio dos Santos Moraes fora traído mais uma vez por suas próprias palavras, fornecendo ferramentas judiciais decisivas para a vitória do autor: primei-ro, produziu prova contra si mesmo ao reconhecer que o acertado no documento particular – a construção do açude e do aramado – fora realizado pelo arrendatário Joaquim Máximo da Silva, e segundo, involuntariamente, equiparou esse mesmo documento – a principal prova do autor – à escritura pública de arrendamento, que garantia teoricamente seu direito de não ser obrigado a indenizar benfeitorias, no momento em que admitiu em juízo tê-lo firmado.

Ocorrências como esta demonstram que os contratos de arrendamento fir-mados por escritura pública, não obstante sua importância legal, não eram estan-ques, nem garantias plenas da realização das cláusulas estabelecidas em seu conte-údo. Foi nisso que apostou a defesa do autor ao elaborar a estratégia para provar a

8 Grifos nossos (em itálico).9 Grifos nossos (em itálico).

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pertinência da ação que movia. A efetivação dos documentos – fossem públicos ou particulares – enquanto provas, dependiam sempre das circunstâncias em que eram firmados, e obviamente, da interpretação das autoridades a respeito de seu encade-amento hierárquico.

Uma outra ação ordinária, cuja abertura aconteceu em agosto de 1897, ilustra bem como a letra escrita do contrato poderia ser flexibilizada por situações con-cretas vivenciadas pelos contratantes. Nesta ação, Clara da Cunha Alfaro requeria que Cândido da Rosa Freitas restituísse-lhe a “fração de três quadras de sesmaria de campo” que a ele havia arrendado por seis anos desde julho de 1891.10 Conforme a solicitação da autora, a restituição deveria ser feita “nos termos da escritura do con-trato”, ou seja, conforme o arrendatário havia recebido a parcela arrendada: segundo a reclamante, “toda cercada de arame com postes de inhanduraí”.

O réu, por sua vez, afirmava que nunca havia se recusado a entregar o cam-po, tanto que assim havia procedido quando do término do contrato em julho do mesmo ano. Ele contestava que o recebera no estado descrito pela autora, estando o campo, por suas palavras, parcialmente cercado com postes de angico. Entretanto, como principal argumento em sua defesa, Cândido Freitas alegava que durante o “período revolucionário” – correspondente à Revolução Federalista, ocorrida entre 1893 e 1895 no território rio-grandense - as forças haviam nele acampado e queima-do postes, inutilizando parcelas do aramado, “não sendo [ele] responsável por esses atos de força maior, impostos pela necessidade da guerra”.

Os advogados da autora insistiram em fundamentar a pertinência da ação no cumprimento rigoroso da cláusula “entrega dos bens no estado em que recebeu”, tão comum nos contratos de arrendamento de Uruguaiana firmados por escritura pública. O caso da autora não dizia respeito a uma falta de entrega “de fato” do cam-po arrendado por parte do arrendatário, isto é, o impedimento de que ela entrasse novamente na posse de suas terras ou a relutância do arrendatário em desalojar a referida propriedade. Na verdade, o único sentido que ela dava a uma suposta recusa de entrega do seu bem era justamente que esta não havia sido conforme o esta-belecido originalmente no contrato, isto é, “no mesmo estado em que recebeu” o arrendatário. Isso fica bastante evidente em inúmeras passagens das falas produzidas por sua defesa. Por exemplo, perguntado Salvador de Lima, que depôs em favor da autora, “porque calcula que o réu não tenha feito a entrega da invernada?”, respon-deu que ela ainda não havia recebido “porque se a tivesse [...] ela estaria em bom

10 Uruguaiana. Possessórias, 2º CC, m.5, nº1730, 1897. APERS

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estado. Perguntado porque calcula que a autora não tivesse recebido a invernada no estado em que estava ao tempo do vencimento do arrendamento? Respondeu que porque a invernada estava em aberto”.¹¹ Neste ponto insistiu o advogado de Clara Alfaro no seu arrazoado final:

[...] a prova de que o réu não restituiu o campo é o estado em que ele está, e que não podia, não devia ser recebido senão nas condições estipuladas na escritura [pública de arrendamento]. E tanta consciência tinha o réu de que a autora não o receberia senão nas condições em que arrendou, que não cogitou de entregá-lo nem mesmo de explicar-se nesse sentido, fazendo antes convencer a autora que a demora na entrega era para pô-lo no estado em que o recebeu.[...]O fato de não ter o réu entregado a dita invernada à sua proprietá-ria também está provado pelas testemunhas, e mais cabalmente pela presunção de que a autora não a reconhecia senão nas condições em que a entregou e mediante as quais pela escritura era o réu obrigado a entregar-lhe.¹²

Ao insistir nessa interpretação da “entrega” do bem arrendado, os letrados encarregados do caso de Dona Clara da Cunha Alfaro queriam ratificar a rigidez que algumas linhas da escritura impunham – ou deveriam impor – à efetivação do seu cumprimento na realidade prática da relação contratual. A insistência era tamanha que chegava a ser redundante: “O réu obrigou-se expressamente por cláusula ex-pressa a entregar o bem arrendado no estado em que recebeu, chamou a si todas as eventualidades, não pode agora sob fúteis pretextos, contrariar a verdade e ao direito, fugir ao cumprimento da obrigação”.¹³

Respondendo a essa ofensiva da autora, que anexou ao processo a escritura pública de arrendamento, na qual constava a obrigação do arrendatário em “entre-gar o campo, que é cercado de arame e postes de Inhanduraí, no mesmo estado em que receber”, o réu juntou dois recibos de quitação, referentes ao pagamento dos dois últimos anos de arrendamento. O último recibo, na visão do advogado do réu, constituía prova de que o campo havia sido entregue, argumento que era contesta-do pela defesa da autora. A essa contestação, a defesa de Cândido Freitas replicava sarcasticamente:

Diz sobre este ponto [a validade do recibo enquanto prova] o ilus-trado patrono ex-adverso: a entrega do preço do arrendamento não induz a verificação da entrega do bem arrendado. Sim, se fora um

¹¹ Grifos nossos.¹² Grifos nossos.¹³ Grifos nossos.

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bem móvel, um bem semovente, era natural que a parte arrendatária o recebesse, mas mesmo assim clandestina ou velhacamente podia dizer que não recebeu.Sabe, entretanto, de vantagem, quando o arrendamento versa sobre bens de raiz, porque compreende o mais vulgar dos beócios, que não se agarram três quartos de sesmaria de campo, para colocar sobre o colo de uma senhora.

Dificilmente o tom ácido da fala do advogado do réu levou o juiz da primeira instância a proferir sua sentença. Todavia, muito menos a estratégia da autora de ba-ter repetidamente na mesma tecla foi suficiente para convencer ele ou os julgadores do Tribunal de Relação. As autoridades judiciais pareciam ver menos rigor nas obri-gações, atenuadas pelas circunstâncias. A sentença decretou Clara da Cunha Alfaro carecedora da ação, uma vez que, recaindo a ela o ônus da prova, não conseguiu cumprir tal quesito. Não obstante assim o fizesse, o fato de o réu não ter entregue o campo no estado em que recebeu havia sido motivada por um caso fortuito, provado pelos depoimentos das testemunhas, inclusive daquelas produzidas pela autora – a destruição causada pela ocupação dos campos pelas “tropas revolucionárias” – e que pelos termos das “Ordenações Filipinas, Liv. 4 Tit. 53 § 3”, versava sobre a questão de “casos de força maior”: a responsabilidade somente deveria recair sobre o locatá-rio, “salvo quando no dito caso fortuito interviesse culpa sua... ou se foi em mora de tomar [...] à coisa emprestada a seu tempo... Teixeira de Freitas Consol. Art.º 657”. Não estando o réu em mora, conforme provavam os recibos anexados ao processo, então não se aplicava a disposição citada.

A exemplo do litígio motivado pela falta de indenização de benfeitorias, este processo ilumina a forma pela qual se efetivavam (ou não) as obrigações que os con-tratantes firmavam mutuamente, e de que maneira procediam na busca pela garantia dos direitos decorrentes desses contratos perante a esfera judicial.

SER OU NãO SER ARRENDATÁRIO

Os arrendamentos, apesar de algumas especificidades, estavam integrados a uma estrutura socioeconômica mais ampla, da Campanha rio-grandense, e por isso, refletiam sob diferentes ângulos características desta estrutura. Os contratos repro-duziam elementos da atividade econômica tradicional dali – a pecuária. Além disso, implicavam diferentes facetas das relações de propriedade que se constituíam no seio daquela sociedade. Sendo assim, os arrendatários compartilhavam, em grande me-dida, das mesmas práticas econômicas, e de relações de propriedade similares com indivíduos não-arrendatários.

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No entanto, a opção pela formalização de uma relação social através de um contrato escrito tinha outras conseqüências. O arrendamento implicava um vínculo formal; ao tornar-se arrendatário, um indivíduo reconhecia explicitamente ocupar uma posição específica em uma relação desigual com aquele que lhe cedia um bem em arrendamento. Na expressão “ser arrendatário”, conjugamos o verbo transitiva-mente – “ser arrendatário de...”; além disso, o objeto da oração, muito mais do que “algo”, é “alguém”: em outras palavras, o indivíduo que contraía um arrendamento se tornava arrendatário não apenas de um bem (campo, estabelecimento, rebanho), mas principalmente, de um outro indivíduo. Logo, uma vez que A toma em arrenda-mento algum bem de B, A torna-se arrendatário de B, ou seja, cristaliza uma relação de dependência com B.

Assim, declarar-se ou ser declarado como arrendatário, a exemplo do termo “agregado”, evidenciava a existência de uma relação preestabelecida entre aquele assim declarado e uma outra pessoa. Analisando-se sob a ótica de uma relação de propriedade, isso implicava – ao menos juridicamente – reconhecer que o desfrute do bem arrendado era concedido pelo proprietário, em troca de uma compensação financeira, isto é, que o bem não pertencia ao arrendatário.

O que queremos dizer por meio desta linha de raciocínio é que, sob este as-pecto, em um conflito judicial cujo objeto de disputa fosse algum elemento referente a direitos de propriedade, o fato de ser arrendatário imprimia de antemão um dife-rencial em relação a outros conflitos de mesma natureza que não envolvessem ar-rendatários. Havia claramente o reconhecimento do consentimento de outrem para o desfrute do bem em questão.

Porém, o rumo que os conflitos tomariam, e as expectativas daqueles decla-rados como arrendatários não estavam predeterminados, a começar pela própria questão da transferência de direitos prevista pelo arrendamento. De acordo com o Alvará de 3 de novembro de 1757, promulgado quando o território brasileiro ainda pertencia à Coroa portuguesa,

[...] todos os contratos que não forem de aforamento em Fatiota ou em Vidas, com inteira transação do útil domínio, ou para sempre, ou pelo menos, pelas referidas três vidas; se julguem de simples locação ordinária; sem que seja visto transferir-se por eles domínio algum a favor dos Locatários para lhes dar direito de excluírem os outros inquilinos, ou Rendeiros anteriores, senão nos outros casos, em que por Direito é permitido aos Locadores despedirem os seus respectivos Locatários.14

14 Aditamentos ao Livro IV. In: ALMEIDA, Cândido Mendes de. Código Philippino ou ordenações e Leis do Reino de Por-tugal anotadas. Rio de Janeiro: Typografhia do Instituto Philimathico, 1870, p.1023. Grifos nossos

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Isso não impediu que, em 1869, Cândido José de Camargo promovesse um embargo de obra nova contra Cândida Alves dos Santos pela construção de um rancho no campo em que o primeiro era arrendatário da segunda.15 O autor apre-sentou uma escritura particular de arrendamento na qual constava que a ré arrendava a ele todo o campo de sua meação, mais o gado que viria a receber de herança, e considerava, na sua petição inicial, que o levantamento do rancho ordenado pela arrendadora era um verdadeiro “esbulho”, causando-lhe “grave prejuízo no costeio dos seus animais”, um ato cometido “sem que a suplicada [proprietária] tenha mais campo algum, pois o arrendou todo”.16 No seu entendimento, a cessão do campo em arrenda-mento lhe transferia todo o direito de sua exploração, e quaisquer tipos de violações no exercício da mesma, ainda que proviesse da proprietária da terra arrendada, eram compreendidos como “atos arbitrários, violentos e criminosos”, que manifestavam um desrespeito “a si própria e aos direitos alheios”.

Os litigantes, em petição conjunta, acabariam acordando que o autor desistiria do embargo e do contrato em troca da indenização da ré pelos pagamentos adianta-dos e pelas benfeitorias realizadas (que somava ao todo 292$000 réis). Embora curto (decorreu cerca de todo o mês de julho de 1869), este caso é revelador da comple-xidade das relações de propriedade que poderiam estar imbricadas em um contrato de arrendamento. O arrendatário Cândido Camargo não estava excluindo “outros inquilinos, ou Rendeiros anteriores” mencionados no texto do alvará, mas a proprie-tária em pessoa! Essa exclusão não era absoluta, ou seja, ele não desejava que Dona Cândida despejasse o campo em que ela era proprietária arrendadora; ainda assim, se constituía como uma limitação no direito de desfrute do mesmo: ela não tinha mais “campo algum”, uma vez que “o arrendou todo”. Este ousado arrendatário desejava um desfrute exclusivo do campo.

Não temos como saber se seu embargo seria competente aos olhos da senten-ça do juiz caso o processo não fosse interrompido, mas o simples fato de Cândido José de Camargo ter recorrido à Justiça para buscar legitimidade em sua reivindica-ção não pode ser desprezado. Mesmo sendo seu arrendatário, ele compreendia que poderia dispor de direitos suficientes para ousar desafiar Cândida Alves dos Santos em relação ao usufruto da propriedade arrendada junto a ela. Dessa forma, ele se via também como um proprietário, no sentido utilizado por Congost, como alguém que possui um direito de uso sobre algo;17 o seu era apenas mais uma das diferentes formas de manifestação desse direito.

15 Uruguaiana. Possessórias, 1º CC, m.20, nº467, 1869. APERS.16 Grifos nossos.17 CONGOST, Rosa. Tierras, leyes, historia: estudios sobre “la gran obra de la propiedad”. Barcelona: Crítica, 2007, p.15.

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Este foi um caso limite, a única ação movida por um arrendatário de terra contra o proprietário do bem arrendado. Portanto, não obstante a ousadia desse arrendatário permitir-nos refletir sobre a amplitude de interpretação dos sujeitos acerca de seus direitos, mesmo quando sua posição relacional era – pelo contrato de arrendamento – formalmente inferior, ela não devia ter uma ocorrência muito fre-qüente entre os conflitos sobre direitos de propriedade. Certamente não teve entre as contendas mediadas pela Justiça civil de Uruguaiana.

O estabelecimento de um contrato de arrendamento poderia servir como uma formalização ou cristalização de uma relação de propriedade preexistente. Em Alegrete, o maior município da Campanha, vizinho de Uruguaiana, uma das estra-tégias mais utilizadas nos litígios agrários “foi a apresentação de documentos que comprovavam, ou tinham a intenção de comprovar que o réu reconhecia o domínio do autor, [e] escrituras de arrendamento foram utilizadas nesse sentido”.18 E em Uruguaiana, poderiam ter sido utilizados com os mesmos propósitos?

Em dezembro de 1858, Valentim Moraes de Palma e sua mulher, juntamente com seus irmãos, irmãs, cunhados e cunhadas, foram ao 1º Cartório de Cível e Cri-me de Uruguaiana para abrir um processo de libelo de força nova e esbulho contra Felisberto dos Santos e sua mulher.19 Os autores exigiam que os réus restituíssem-lhes um pedaço da sesmaria de campo que diziam ser de sua propriedade. Pelo histórico por eles apresentado, Felisberto e sua mulher foram primeiro agregados de seu pai José Maria de Moraes Palma, porquanto este “consentiu que em um dos extremos divisórios da sesmaria” aqueles se arranchassem. Mais tarde, tendo faleci-do seu pai, sua mãe Dona Dorothea Muniz da Câmara havia ordenado “a seu filho e administrador da fazenda Valentim [...], que fizesse o sobredito Felisberto dos Santos despejar o campo que ocupava, ou pagar um módico arrendamento, [e] este sujeitou-se a pagar um exíguo arrendamento de ¼ de alqueire de trigo por ano e pelo prazo de seis anos”; o arrendamento principiou-se no dia 1º de outubro de 1847, tendo terminado na mesma data em 1853. Vencido este contrato, a sesmaria foi ar-rendada a Manoel Rodrigues de Cardoso, tornando-se os réus seus agregados, por consentimento do novo arrendatário. Com a morte da mãe dos autores, terminava o contrato de arrendamento de Rodrigues. Em virtude disto, este

18 GARCIA, O domínio da terra..., op. cit., p.127.19 Uruguaiana. Possessórias, 1º CC, m.19, nº428, 1858. APERS.

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[...] despejou o campo, casa e mais acessórios, sem opor a menor dú-vida obstáculo ou relutância; mas o contrário praticou o precitado Felisberto dos Santos o qual sendo lhe ordenado pelos [suplicantes] a evacuação do campo reluta ao despejo, fazendo nisso força aos [supli-cantes], e esbulhando-os da posse em que estavam seus progenitores, de quem são legítimos herdeiros.

Os réus Felisberto e sua mulher narraram uma outra versão em sua defesa. Segundo os artigos de sua contrariedade, entre os anos de 1827 e 1829 eles haviam estabelecido e fundado “uma posse em campos que não estavam ocupados, e dos quais ninguém se chamava senhor, [...] sem que sofressem [...] a menor oposição, nem necessitassem de consentimento de pessoa alguma”. Alegavam que, por terem na posse se “mantido, em diuturna e constante ocupação têm adquirido o direito de propriedade no campo em que fundaram sua posse”, apoiando-se na a lei de 18 de setembro de 1850, garantidora da “posse mansa e pacífica em toda sua plenitude”. Por fim, afirmavam explicitamente que nunca haviam reconhecido os pais e sogros dos autores como donos dessa posse, nem se obrigado a nada com José Maria da Palma, ocupante de campos vizinhos aos seus.

Iniciada a guerra de versões, igualmente iniciado estava o embate de docu-mentos. Os autores apresentaram carta de sesmaria, escrituras de transferência de terras, e documentos particulares, inclusive um papel de arrendamento, cujo teor expressava que o réu reconhecia-se como um antigo agregado, e naquele momento, arrendatário da parcela de campo dos autores. Este papel foi duramente rechaçado pelos réus, denunciando ter o mesmo aparecido “depois de 19 anos de posse, e quan-do já não existia José Maria da Palma”, fruto de “um procedimento menos digno, e também criminoso”, pois eles em nenhum momento pretérito haviam “consentido em que fosse a posse dos campos pertencentes aos [autores]”, e portanto, “nenhum merecimento e valor” poderia receber o referido documento. De fato, o réu não sa-bia ler nem escrever, tendo sido o papel de arrendamento assinado por outra pessoa a seu rogo; além do mais, conforme duas de suas testemunhas, os autores teriam embriagado Felisberto para que ele consentisse com o contrato. Os autores também anexaram um documento na qual o arrendatário Manoel Rodrigues de Cardoso dava seu consentimento para que os réus fossem seus agregados durante o período de seu arrendamento. É curioso que Cardoso afirmasse em sua resposta que consentira na permanência dos réus “a pedido do Sr. João Palma”.

Por sua vez, os réus apresentaram documentos particulares com os quais ten-tavam provar, por meio de respostas de moradores há muito estabelecidos na região, a antigüidade e legitimidade de sua posse, embora as respostas não certificassem que a ocupação do campo fosse feita sem o consentimento de alguém.

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Depois de um longo processo (mais de dois anos, contando com o período de apelação), no qual foram ouvidas oito testemunhas produzidas pelos autores e seis produzidas pelos réus, sendo inclusive realizada uma vistoria no campo em litígio, o juiz proferiu sua sentença:

Do exame de todas as provas se patenteia, que os [autores] com os depoimentos contestes de suas testemunhas provaram: terem sido os [réus] agregados de seu finado Pai José Maria de Moraes: que depois pelo contrato de arrendamento [...] passou a ser arrendatário; cujo contrato de arrendamento está perfeitamente provado pelos depoi-mentos das 2ª, 3ª e 4ª testemunhas [dos autores] sendo as duas últimas presentes ao contrato. Provaram mais, e ficou patente pela vistoria que o terreno ocupado pelos [réus] está dentro dos limites dos campos dos [autores].Entretanto as provas apresentadas pelos [réus], além de limitar-se ao fato de terem os mesmos residido nesse terreno, é elidida pelas dos [autores] em tudo o mais.

Para Feliciano Ribeiro d’Almeida, Juiz Municipal substituto, estava provado o consentimento de Felisberto dos Santos acerca do contrato de arrendamento, e logo, o reconhecimento de que aquele campo no qual alegava ter posse mansa e pacífica não era seu. Os réus foram condenados a restituírem aos autores o campo com seus rendimentos, além de arcarem com as custas do processo. Sua tentativa de embargo da sentença foi impugnada, e a ação terminou com uma certidão de execução do mandado de despejo realizado pelo oficial de justiça.

Tomado por inteiro, este litígio induz-nos a pensar as relações de propriedade como relações de hierarquia, na qual se tencionam a todo momento o controle e a autonomia (o primeiro personificado pelos autores e o segundo pelos réus), ou seja, a prova da existência ou não do consentimento dos autores para que os réus ocupas-sem aquele campo implicava conseqüências significativas para essa relação.

Este aspecto fica demonstrado em vários momentos nas falas dos litigantes (intermediadas pelos seus advogados e procuradores), fundamentalmente dos auto-res: assim, por exemplo, o seu procurador afirmava, ao contestar o depoimento de uma das testemunhas dos réus sobre o histórico de ocupação do campo em con-tenda, que entre 1828 e 1829, o pai dos autores, que havia fugido do exército que invadiu a região, voltou à mesma,

[...] de novo povoou sua Fazenda [e] por amizade e compaixão chamou aos Réus para virem povoar uma das divisas da Fazenda em questão; como agregado[s] ali se [conservaram] até o falecimento de José Maria da Palma, Pai dos Autores, e depois julgando sua viúva e filhos, fracos para resistir-lhe à sua ambição, começou de propalar que estava em campos de sobras, e conseqüentemente devoluto; chegando a notícia da finada Mãe dos Autores de que ele se inculcava já possuidor desse campo que

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ocupa, o convidou o seu administrador para lhe passar um escrito de arrendamento [...] sem força de coação ou constrangimento.20

Em outras palavras, a “ingratidão” dos réus para com a “benevolência” de seus senhores teria os levado à ambição de usurpar-lhes sua propriedade, e o contra-to de arrendamento, cujos valores eram nada mais que “simbólicos”, serviria somen-te como um corretivo para lembrar os réus de seu lugar na hierarquia social.

Nas alegações finais dos autores, esse sentimento de “quebra” na relação de dependência fica ainda mais evidente:

[os réus] existiam contentes como agregados até que o Gênio do Mal lhes sugeriu a idéia de locupletarem-se com as terras que ocuparam [...]. [Desse modo, cometiam fraude os réus] querendo locupletar-se nas ter-ras dos Autores, daqueles que lhes [...] estenderam uma mão piedosa, daqueles que condoídos do seu isolamento e desamparo os chamaram para dar-lhes um asilo, campo para pastagem de seus gados, terras de uberdade para agricultar, pagando um módico foro por ano esse mesmo exíguo foro, somente para que jamais deixasse de reconhecer o domínio, e Senhorio em tais terras de seus benfeitorias, ou por sua cobiça e ingratidão ou dos seus herdeiros, e conjuntos; [...] já arrancaram a máscara, e mostraram patentemente a monstruosa ingratidão queren-do perfaz ou punifaz [?] apropriarem-se de campos dos Autores [...]. ²¹

O texto terminava com um alerta a outros senhores e possuidores de terras que abrigavam agregados: “[...] porém servirá este iníquo procedimento de proveito-sa lição a todos que quiserem asilar a desgraçados.”

A “insolência” dos réus parecia advir de sua condição de “desgraçados”, con-dição essa tão extrema a ponto de ser ressaltada por seu advogado – “todos que os conhecem [os réus], sabem que sua cor os coloca na última escala da sociedade, [e] que os mesmos não têm bens da fortuna” -, obrigando-o a solicitar “ao Meritíssimo Julgador sua proteção, em favor do fraco, do ignorante e do pobre sem proteção”. No entanto, sob sua própria perspectiva, e de seus apoiadores, sua resistência e dis-posição ao litígio era motivada por seu anseio de autonomia, isto é, de se afirmarem como seus próprios senhores, independentemente do consentimento alheio. É isso que permeava a fala de uma de suas testemunhas, quando afirmou que

[...] nunca lhe constou e nem soubera que os ditos réus fossem agre-gados da Estância da Palma, e que pelo contrário sabe e sempre ob-servou que os réus têm se conservado em sua posse como verdadeiros senhores, fazendo o serviço próprio de estabelecimento de criação de gado in-teiramente independente daquela Estância [pertencente aos autores].²²

20 Grifos nossos.²¹ Grifos nossos.²² Grifos nossos.

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Em vista disso, serem reconhecidos como agregados ou arrendatários não era de interesse dos réus, pois o seu enquadramento dentro de uma dessas situações implicava justamente a perda de sua situação autônoma, a aceitação de sua posição de dependência, em outras palavras, a ausência da condição de senhores de si mes-mos. Por isso que alegavam insistentemente em sua defesa a nulidade do contrato de arrendamento em questão: até o fim, negavam veementemente terem consentido com o mesmo. A confirmação de ter Felisberto sido “arrendatário”, pelo papel de arrendamento e por boa parte dos depoimentos em favor dos autores, determinou seu insucesso na defesa dos direitos que acreditava possuir sobre o pedaço do campo em disputa.

Cerca de trinta anos mais tarde, era a vez de um arrendatário propor uma ação judicial. Em fevereiro de 1886, Marcelino Antônio Pereira promovia ação de força nova turbativa contra Orlando da Silva Genro.²³ O autor declarava-se “possuidor, como arrendatário, [...] do estabelecimento denominado Destino, de propriedade de Joaquim da Silva Genro”, acusando que os réus mantinham “nos campos do dito estabelecimento grande quantidade de gado vacum, cavalar e lanar, os quais não têm querido retirar pelos meios suasórios”, e pelo fato de por meio do arrendamento transferir o arrendador, “por certo tempo ao arrendatário, os seus direitos de uso e gozo exclusivo da coisa arrendada, e juntamente com esses direitos as ações, que os defendam contra os ataques de terceiros”, recorria aos meios judiciais para ver seu direito restabelecido.

Por seu lado, os réus alegavam que o autor estava “desforçado”, que por se-rem os campos abertos tanto os seus animais quanto os do autor passavam de um lado ao outro das parcelas que cada um ocupava, e questionava a validade do con-trato de arrendamento do autor, ao afirmarem “que a posse que, pela escritura que junta o [autor], tem jus, é fundada em contrato expressamente nulo: que o campo arrendado pelo [autor] não é nem pode ser da propriedade do arrendante, Joaquim da Silva Genro”, pai do réu.

O questionamento direto de Orlando Genro a respeito do campo em litígio como propriedade legítima de seu pai Joaquim estava baseado em uma série de do-cumentos. O primeiro era um traslado dos autos de inventário de sua mãe, de 1854 (morta em 1847) no qual se afirmava que seu pai, o inventariante, havia adquirido uma sesmaria (a mesma que envolvia a parcela disputada) depois da morte de sua esposa, deixando de declará-la entre os bens inventariados justamente por achar que não o devia por não ser parte do patrimônio de seu casal. Mais tarde, Joaquim

²³ Uruguaiana. Possessórias, 1º CC, m.5, nº54, 1886. APERS

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da Silva Genro decidiu solicitar a sobrepartilha do campo, que, no entanto, não foi realizada, pois, voltando atrás, alegava o inventariante que, precisando saldar dívidas que somavam mais de quatro contos (dívidas questionadas pelo réu, que duvidava da existência desses credores), teve que reter o campo, avaliado por essa quantia. O réu igualmente apresentou uma carta de sentença formal da partilha dos bens legados por seu avô materno em 1848, entre os quais ficava de herança ao réu 120$000 réis da sesmaria avaliada em seis contos, situada exatamente entre Pindaí e Toropasso, lugar correspondente ao campo mencionado no traslado de inventário, o que estava em disputa. Por fim, apresentou uma certidão de casamento do autor com a sua mulher, neta de Joaquim Genro, pai do réu e arrendador do autor.

Já Marcelino Pereira, para legitimar sua causa, anexou aos autos uma escritura pública de arrendamento, na qual Joaquim Genro o cedia uma parte de campo por cinco anos, três documentos particulares assinados pelo mesmo que lhe concede-riam o desfrute daqueles campos, e uma escritura particular de arrendamento do potreiro lá existente entre Joaquim Genro e seu filho, o réu Orlando.

Bem como no caso anterior, é interessante perceber aqui o enquadramento dos litigantes em categorias de exercício do direito de propriedade, e os modos pelo quais eles jogavam com essas categorias a seu favor. O autor Marcelino Pereira apre-sentava-se como arrendatário, e o réu Orlando Genro como herdeiro de um mesmo campo. Há uma terceira pessoa, Joaquim da Silva Genro, que cedeu o campo em ar-rendamento ao primeiro, ao mesmo tempo em que era pai do segundo. Orlando não reconhecia seu pai como proprietário do campo em questão, porquanto este havia dissuadido as autoridades para conservar o campo como propriedade sua. Em virtu-de disto, por diversos momentos do processo, a defesa do réu atacou a legalidade do contrato de arrendamento firmado entre o autor e Joaquim Genro, principalmente na inquirição de suas testemunhas, procurando desqualificar Marcelino Pereira en-quanto arrendatário ao afirmar que ele morava “a favor” de Joaquim Genro. Em contrapartida, o autor, igualmente através dos depoimentos dos que testemunharam por sua escolha, intentava por diversas vezes legitimar-se como arrendatário:

Perguntado há quanto tempo e em que categoria ocupa Marcelino Pe-reira o campo descrito? Respondeu que faz mais de seis anos e que ocupa esse campo como arrendatário, tendo reformado esse respectivo contrato, o que sabe por ouvir dizer pelo mesmo Marcelino. 24

Ou seja, o próprio autor se auto-declarava diante de seus conhecidos como arrendatário dos campos de Joaquim Genro. Então, ser enquadrado enquanto tal lhe era bastante interessante para as circunstâncias que envolviam o litígio. Conforme o

24 Grifos nossos.

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que já referimos, desde sua petição inicial ele fazia questão de explicitar seu arren-damento e os direitos que este contrato lhe imbuía. Simultaneamente, dizia que era o réu quem morava “a favor” de seu pai, e que a posse que este alegava conservar em dita sesmaria se reduzia ao potreiro próximo à divisa da parcela que arrendava. Assim, Marcelino Pereira apostava na força do contrato para vencer a causa que se processava.

De fato, o julgador em primeira instância do caso não pensava muito diferen-te quando pesou os argumentos em favor do autor, à medida que, em sua sentença, qualificava o ato cometido pelos réus como “flagrante violação do direito a que este [o autor] assiste por força do referido contrato”, e “que o direito [que] têm os [réus] sobre os ditos campos, em face do documento [de carta de sentença formal de par-tilha] todavia não se pode admitir que seja ele tão extensivo que lhes faculte o uso e gozo de maneira ampla porque o exercem”. A decisão deixava claro, no entendi-mento do juiz, que o arrendatário era desrespeitado em seu direito de propriedade, ao mesmo tempo em que explicitava que o direito de herança possuído pelo réu em relação ao campo não o imputava um melhor direito de propriedade em relação àquele produzido pelos efeitos legais do contrato de arrendamento.

Nos processos judiciais produzidos em Paraíba do Sul, município fluminense, Márcia Motta observou que essa aparente “confusão” entre termos como “agrega-do” e “arrendatário” não era incomum.

As diferenças na denominação entre estes sujeitos sociais talvez se-jam uma pista capaz de elucidar as possibilidades abertas de ascensão social de alguns agregados, no seu esforço de se verem reconhecidos como arrendatários. Neste sentido, ao se autodenominarem arrenda-tários, os trabalhadores estariam procurando garantir a sua autono-mia em relação ao senhor de terras. Os fazendeiros, ao contrário, ao reconhecê-los como agregados, estariam enfatizando a sua relação de dependência.25

Assim como o conflito ocorrido entre 1859 e 1861, envolvendo Felisberto dos Santos e sua mulher, sustenta o uso das escrituras de arrendamento como pro-va de reconhecimento de domínio pelos proprietários, este litígio confirma a outra hipótese que havíamos levantado na seção 2.3 do capítulo anterior, isto é, que as escrituras poderiam servir aos interesses não apenas dos proprietários, mas também aos anseios dos próprios arrendatários. No primeiro litígio, a luta dos réus era por não serem classificados como arrendatários – como queriam aqueles que lhes mo-viam a ação -, e sim, proprietários das terras que ocupavam; quase trinta anos depois,

25 MOTTA, Márcia Maria Menendes. Nas fronteiras do poder. Conflito e direito à terra no Brasil do século XIX. 2ª edição revista e ampliada. Niterói: EDUFF, 2008, p.79. Grifos do original.

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o mesmo tipo de qualificação que aqueles réus evitavam foi decisiva em favor de Marcelino Pereira. Portanto, o fato de ser arrendatário não necessariamente colocava um litigante em desvantagem em relação ao seu adversário judicial. Desejar ser assim reconhecido dependia sempre da circunstância da disputa, e contra quem se litigava.

CONCLUSãO

Arrendatários colocaram uns e foram colocados por outros no banco dos réus dos tribunais de Uruguaiana. Seus adversários foram novos proprietários, ve-lhos agregados, posseiros, e algumas vezes, até mesmo os arrendadores de seus bens.

No cerne dos conflitos estiveram quase sempre discussões a respeito de rela-ções e direitos de propriedade que se constituíam sobre os bens arrendados. Essas discussões, em alguns casos, estavam perpassadas por tensões entre controle e au-tonomia e a garantia do cumprimento de cláusulas contratuais, elementos próprios a uma relação de arrendamento. Em outros, espelhavam problemas mais amplos, próprios ao embate de direitos coletivos e individuais e ao choque entre velhas prá-ticas de propriedade e novas percepções acerca do uso e do acesso aos recursos produtivos como terra e gado. Havia situações em que essa dupla perspectiva sobre os conflitos poderia estar até mesmo combinada em litígios ricos em detalhes de ar-gumentação jurídica, de debate de concepções sobre direitos e de estratégias variadas para fazer prevalecer os respectivos interesses.

Enfim, os litígios agrários de Uruguaiana que levaram arrendatários a juízo integravam uma gama maior de conflitos judiciais e extrajudiciais que ocorreram no município. As disputas nos quais os mesmos estavam imbricados manifesta-vam as transformações que aconteciam na Campanha rio-grandense desde meados do século XIX até as primeiras décadas do século XX. E como salienta Graciela Garcia, apoiando-se em Fradkin, esses conflitos devem ser levados em conta como condicionantes dessas mudanças, não apenas seus meros reflexos.26 Trocando-se os termos, elementos que sinalizavam uma transformação, como a alta valorização da terra, a mercantilização e as mudanças no estatuto jurídico deste bem de produção, e em torno do qual se estabeleciam as principais relações sociais daquele contexto, constituíram um processo em que os próprios agentes sociohistóricos tiveram atu-ação decisiva. Assim, os arrendatários, tais quais outras categorias de produtores existentes no universo rural da Campanha, ao mesmo tempo em que produziam conflitos, produziam sua própria realidade. As respostas que davam às situações que se apresentavam diante de si ajudaram a construir o complexo cenário desse período da história brasileira.26 GARCIA, G., O domínio da terra..., op. cit., pp.174-177.

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FONTES PESQUISADAS

Arquivo Público do Estado do Rio Grande do SulAções possessórias:Uruguaiana. Possessórias, 1º CC, m.20, nº465, 1866.Uruguaiana. Embargos, 2º CC, m.62, nº1725, 1894.Uruguaiana. Possessórias, 2º CC, m.5, nº1730, 1897Uruguaiana. Possessórias, 1º CC, m.20, nº467, 1869Uruguaiana. Possessórias, 1º CC, m.19, nº428, 1858Uruguaiana. Possessórias, 1º CC, m.5, nº54, 1886.

Escritura pública de arrendamento:Uruguaiana, 1° Tabelionato. Livro de Transmissões e Notas volume.3, 1858-1860, f.62-62v.

REFERêNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALMEIDA, Cândido Mendes de. Código Philippino ou ordenações e Leis do Reino de Portu-gal anotadas. Rio de Janeiro: Typografhia do Instituto Philimathico, 1870.CONGOST, Rosa. Tierras, leyes, historia: estudios sobre “la gran obra de la propie-dad”. Barcelona: Crítica, 2007.FARINATTI, Luís Augusto Ebling. Confins meridionais: famílias de elite e sociedade agrária na Fronteira Sul do Brasil (1825-1865). Rio de Janeiro: UFRJ, 2007. Tese de doutorado.GARCIA, Graciela. O domínio da terra: conflitos e estrutura agrária na Campanha rio-grandense oitocentista. Porto Alegre: UFRGS, 2005. Dissertação de mestrado.MOTTA, Márcia Maria Menendes. Nas fronteiras do poder. Conflito e direito à terra no Brasil do século XIX. 2ª edição revista e ampliada. Niterói: EDUFF, 2008.

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A AtuAção do sAnto ofíCio e dos jesuítAs no brAsil

ColoniAl

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As CrôniCAs jesuítiCAs CoMo fonte de PesquisA: o iníCio dAs Missões de MAynAs

Fernanda Girotto¹ Fernanda Wisniewski ²

Resumo: O presente artigo visa analisar o início da ação jesuítica e sua importância na região do Alto Amazonas durante o século XVII. Para tanto, valemo-nos de documentos de natureza primária como fontes de pesquisa, a saber, algumas crônicas escritas por jesuítas que estiveram na região durante o referido período. Uma reflexão sobre a utilização deste tipo de fonte para compreender-se como os sujeitos envolvidos viveram esta dinâmica, também é objetivo deste trabalho. Vale salientar que este texto é fruto de um projeto de pesquisa maior: “Cartografias da Floresta: as crônicas coloniais e o es-paço amazônico”, desenvolvida por um grupo de pesquisa³ vinculado ao programa de Pós Graduação em História da Unisinos.

Palavras-chave: Jesuítas – Missões de Maynas – Crônicas Coloniais

As crônicas que narram as primeiras incursões feitas pelos europeus na região amazônica ilustram o imaginário dos pioneiros nestas aventu-ras. Um imaginário que era povoado de mitos e histórias fantásticas.

Com a descoberta da América ansiou-se por encontrar as riquezas e mistérios nestas terras, que para eles, eram completamente desconhecidas. É justamente a partir des-te imaginário e da necessidade de conhecer e dominar as “dilatadíssimas terras não conquistadas”4 (Rodríguez, 1684, p.5) que diversas expedições foram organizadas durante o século XVI.

Estamos compreendendo aqui o conceito de imaginário segundo Baczo (1985) para quem o imaginário social faz parte do sistema simbólico que os grupos produzem a partir de suas experiências. Isto é, ele:

¹ Graduanda do curso de História e bolsista UNIBIC – Unisinos. Contatos: [email protected]; 3591-2100.² Graduada em História, Graduanda em Ciências Sócias e bolsista FAPERGS – Unisinos. Contatos: [email protected]; 3591-2100.³ O grupo é atualmente composto por: Deise Cristina Schell (mestranda e bolsista CNPq), Fernanda Wisniewski (Graduada em História, graduanda em Ciências Sociais e bolsista FAPERGS), Fernanda Girotto (bolsista UNIBIC); Ismael Calvi Silveira (Bolsista PIBIC), Juliana Camilo (graduanda da Licenciatura de História) sob orientação de Maria Cristina Bohn Martins (Dra em História, Bolsista Produtividade CNPq).4 No original: “dilatadífsimas tierras no conquiftadas”. Tradução das autoras

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informa acerca da realidade, ao mesmo tempo que constitui um ape-lo à acção, um apelo a comportar-se de determinada maneira. Es-quema de interpretação mas também de valorização, o dispositivo imaginário suscita a adesão a um sistema de valores e intervém efi-cazmente nos processos de sua interiorização pelos indivíduos, mo-delando os comportamentos, capturando as energias e, em caso de necessidade,arrastando os indivíduos para uma acção comum.5

Uma das primeiras incursões que trazem à tona a Amazônia aos olhos dos espanhóis é aquela liderada por Gonzalo Pizarro. Esta foi uma grande expedição, que mobilizou mais de duzentos espanhóis, em torno de cem cavalos e muitas esperanças. Mesmo assim, foi marcada pelas dificuldades impostas pelo ambiente e pelos conflitos entre os que dela participaram. Nesta expedição encontram o rio que chamaram de Marañón, uma vez que possuía tantos afluentes que a paisagem mais parecia um “emaranhado” de cursos de água. As notícias desta viagem alimentaram as fantasias e expectativas sobre o que o ambiente amazônico e suas populações guardavam. Exemplo disto seriam as portentosas terras de Omágua, o El Dorado, o País da Canela, o reino das amazonas, entre outras histórias.

Esta expedição incentivou outras e, assim, com o tempo, alguns destes espa-nhóis decidem fixar-se em pontos estratégicos para explorar o potencial de riquezas da região, extraindo os produtos encontrados a fim de comercializá-los. Além disso, a descobertas de populações que poderiam servir como mão-de-obra para o traba-lho foi também fator de grande influência na fixação dos espanhóis na região.

As origens destas ações apresadoras, nas margens do rio Amazonas e seus afluentes, estavam vinculadas ao desenvolvimento das empresas coloniais sob dois aspectos. Os primeiro se refere à demanda pala mão-de-obra indígena para erigir construções, trabalhar na agricultura e pecuária, abastecendo a sociedade colonial de gêneros de primeira necessidade. O segundo ponto, que reforçava o interesse no apresa-mento de mão-de-obra indígena, diz respeito aos empreendimentos de exploração das riquezas da América: o trabalho nas minas, a co-leta de canela, salsaparrilha, cacau e outras drogas que, na Europa, eram extremamente valorizadas, consolidando uma atividade lucrati-va. Como as informações das viagens de exploração eram muito oti-mistas a respeito das possibilidades oferecidas, o interesse econômico em extrair lucros da área era crescente, assim como a expectativa de conduzir grandes populações à doutrina cristã.6

5 BACZO, 1985, p. 3096 CYPRIANO, 2005, p. 127

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1. A FUNDAçãO DE BORJA

No final do século XVI a extração aurífera é que ganha maior destaque na região. A demanda de mão-de-obra é crescente, o que faz com que os indígenas sintam os efeitos da presença espanhola de forma cada vez mais penosa. A captura de nativos se fazia em diversas regiões para suprir as necessidades da mineração, principalmente. O contexto, para os europeus de fins do século XVI e início do XVII, pode ser descrito a partir otimismo dos colonizadores que, ao perceberem o potencial da região, passam a praticar as chamadas correrias para explorar o que encontraram. Mesmo que este otimismo fosse um tanto utópico, a persistência regeu os desejos de permanecer no local e explorar tudo o que fosse possível.

Em uma destas expedições em busca de mão-de-obra, os espanhóis entraram em contato com uma população indígena, os maynas, com os quais os primeiros contatos foram amistosos, o que permitiu a fixação na região sob o sistema de enco-miendas. O nome “Maynas” mais tarde vem originar o nome das missões jesuíticas. Conforme Figueroa [1661] (1986):

En 1616 entraron algunos soldados españoles en tierras de los May-nas, y D. Francisco de Borja, Príncipe de Esquilache, Virrey Del Perú, dió á D. Diego de Vaca y Vega la gobernación de aquellos indios quie-nes lo recibieron benévolamente: con objeto de afirmar la dominación española, fundó éste, cerca del famoso canal del Pongo, la villa de San Francisco de Borja.7

Podemos perceber que a fundação da vila tem por objetivo legitimar a pre-sença espanhola, de acordo com as práticas de colonização que foram empregadas em diversos locais. Trata-se, em outras palavras, de uma forma de demarcar seu domínio. Lembremos que, mesmo no período da União Ibérica8, a disputa entre espanhóis e portugueses por territórios americanos jamais foi totalmente afastada, e a presença e o interesse tanto português quanto espanhol no Marañón geravam diversos atritos e turbulências.

Como afirmado anteriormente, o primeiro contato com a sociedade dos maynas se dá em 1616, momento em que D. Diego de Vaca y Vega solicita ao rei permissão para ali fundar uma cidade. Esta cidade seria povoada por espanhóis e por estes indígenas “amigos”, com a finalidade de extrair o ouro da região, além de

7 FIGUEROA [1661],1986, p. 145-1468 Entre 1580 e 1640 acontece o que a historiografia denomina de União Ibérica, período em que Portugal e Espanha são governados pelo mesmo rei. Isso ocorre devido à morte de Dom Sebastião, que deixa o trono sem herdeiro direto, o que permite a Dom Felipe II, seu tio, reivindicar o título.

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outras drogas típicas do local. Desta forma, em 1619 é feita a concessão. O nome da vila é uma homenagem ao vice-rei que permitiu sua fundação: San Francisco de Borja. Os indígenas aliados logo foram distribuídos para iniciar o trabalho e consolidar o sistema de encomiendas.

Como é característico do sistema colonial, o trabalho indígena era demasiado penoso e insalubre. As mortes causadas pelos abusos cometidos nas encomiendas atin-giram proporções altas e cada vez mais se aprisionavam indígenas para explorar sua força de trabalho. Como forma de resistência a isto, as atitudes mais comuns eram a fuga ou as rebeliões, que começam a tomar sempre mais violentas, ameaçando a estabilidade da vila. No ano de 1635 ocorre uma grande rebelião, que mudaria o destino de muitos indígenas da região e que daria início às missões que hoje são alvo de nossos estudos.

Sucedió el año de 35, en que mataron hasta trienta y quatro personas, lãs veinte y nuve españolas, lãs más de cuenta, encomenderos, y de oficio, capitanes, alférezes, sargentos, que exercitaban unos y otros re-formados en estas tierras, cogiéndolos en suspueblos y repartimientos descuydados y dormidos, y aonmetieron a la ciudad de San Francis-co de Borja, única frontera y cabeza en este Govierno, pretendiendo acabar con todo; pero fueron rechazados de los pocos españoles que havia al presente en ella, que se havian hecho fuertes em la yglesia con lãs mugeres, quienes tambien se mostraron animosas, previendo la cuerda, pólvora y otros menesteres, com que acudian á los soldados.9

A revolta mostrará aos espanhóis que os meios de repressão e controle em-pregados contra os indígenas, não eram suficientes para permitir sua estabilidade no local. Desta forma, Pedro Vaca de la Cadena (filho e sucessor do governador ante-rior) lança a proposta de tentar a pacificação dos nativos através de catequese. Em virtude disto, a Companhia de Jesus é chamada para enviar religiosos com o intuito de pacificar e cristianizar os nativos, de maneira a não prejudicar a estabilidade da empresa colonial.

2. AS CRÔNICAS JESUíTICAS COMO FONTE

A presença jesuítica na região amazônica é que gerou as crônicas estudadas no presente artigo. Antes de qualquer outra reflexão, seria interessante definir a que estamos nos referindo quanto utilizamos o termo “crônicas”. Esta expressão abran-

9 FIGUEROA [1661], 1986, p. 154

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ge, em nossa pesquisa, um conjunto de registros escritos que descrevem aspectos da conquista e colonização espanhola, segundo a produziram os contemporâneos. En-contramos, naqueles textos que dizem respeito a este trabalho, informações sobre a Amazônia no que tange à cultura das populações locais, à natureza, ao contato entre europeus e americanos, entre outras informações. Diversos tipos de documentos primários se encaixam nesta perspectiva: cartas, livros, informes, mapas, diários, etc. Para o presente artigo exploramos especialmente duas crônicas: um Informe, escrito por Francisco Figueroa em 1661, e uma “História”, tal qual a denominou seu autor, Manuel Rodríguez em 1684.

A compreensão mais correta destes escritos do XVII deve levar em conside-ração o contexto em que foram gestados. Aqueles que foram deixados pelos jesuítas são testemunhos valiosos dos tempos coloniais e da evangelização de diversos po-vos. A riqueza destas crônicas se dá pelo valor que os inacianos atribuíam à troca de informações entre os missionários. Através desta prática, era possível acompanhar a situação da ação jesuíta em diversos lugares do mundo. Para além das prestações de contas, era possível ter um panorama de como se dava a catequese, de quais eram os métodos utilizados com cada população, de como era a região em que estavam e etc. Esta escrita contribuía para que os jesuítas pudessem não somente trocar expe-riências, como trocar sugestões, solicitar auxílio, fazer críticas, apontar dificuldades, sugerir soluções, entre tantas outras facetas esta comunicação deveras complexa.

Vale salientar que a Companhia de Jesus é uma instituição hierarquizada, onde os superiores fazem um controle centralizado das atividades de todos os integrantes da Ordem. Havia, por exemplo, correspondências regulares que deveriam prestar contas dos acontecimentos sob um modelo padrão de carta (Cartas Ânuas), ou mo-delos especiais para descrever determinados locais (Informes); bem como, existia a correspondência informal, que tinha por objetivo dar e receber notícias entre os padres que missionavam em locais relativamente próximos ou distantes.

Segundo Franzen, Fleck e Martins (2007, p. 9-10), as cartas ânuas, ou litterae annuae:são constituídas por informes que o Superior da Província (...) remetia periodicamente ao Geral da Companhia de Jesus em Roma, com uma ampla informação dos acontecimentos observados na sua área de jurisdição durante o lapso de um ou vários anos. Estas Cartas “gerais” eram produzidas a partir de informações de duas naturezas. Por um lado, elas sistematizavam outras Ânuas parciais, provenientes das Mis-sões ou Reduções, e dos Colégios. De outro, agregavam informações colhidas pelos Superiores em suas viagens de visita, assim como aque-las contidas em cartas particulares.10

10 FRANZEN, FLECK e MARTINS, 2007, p. 9-10

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Além disso, a Companhia é portadora de uma consciência história bastante notável. Para tanto, se empenhou em anotar os feitos realizados por seus membros. Diversas vezes podemos acompanhar padres historiando acontecimentos conside-rados importantes e não somente repassando as informações para os superiores. Podemos afirmar que estas crônicas além de haverem gozado de um considerável prestígio quando foram feitas, ainda hoje são dignas desta admiração e respeito. Nas palavras de Oliveira (2009):

As cartas ainda são as fontes mais ricas para o estudo das culturas indígenas sob a dominação colonial. Elas testemunham não apenas a ação evangelizadora e aculturadora, mas também permitem ver, dado o seu caráter etnográfico, as reações dos índios diante da presença dos religiosos em suas terras e das mudanças que traziam.

Creio que não somente as cartas, mas todas as crônicas possuem este valor e esta complexidade. A análise e interpretação do discurso nelas contido nos permi-tem refletir até mesmo sobre o protagonismo dos sujeitos indígenas dentro da dinâ-mica do contato. Mesmo que nos escritos jesuítas, como é o caso de nosso estudo, os autores estejam preocupados em narrar os feitos dos europeus, é possível extrair uma série de informações importantes sobre as culturas americanas. Baptista (2003), em sua reflexão sobre a análise do discurso das escritas jesuíticas, afirma que isto ocorre através do que Michel de Certeau chamou de “lapsos no discurso”

... aqueles “instantes” que fogem do “consagrado sistema de interpre-tação” ocidental. É aí que os registros deixam transparecer determi-nadas informações riquíssimas para um olhar etnohistórico. É onde possivelmente resida o indígena, sua forma de reagir naquele deter-minado período.¹¹

Traduzindo para nossa reflexão, quando o padre descreve o indígena e es-creve sobre este indígena, muitas vezes dá vazão para que ouçamos o discurso do próprio nativo sobre o padre e sobre o contexto do contato. Em outras palavras, quando o cronista escreve, deixa transparecer, mesmo que de forma implícita, o que o sujeito ao qual ele está se referindo, também mostre o que pensa.

Acreditamos, portanto, que a interpretação das crônicas jesuíticas pode trazer à tona questões importantes a serem analisadas e/ou revisadas. O olhar atento de um historiador que avalia os discursos contidos em documentos tão valiosos pode nos aproximar de uma melhor compreensão de como se deu o processo de catequi-zação e colonização dentro de uma perspectiva cultural.

¹¹ BAPTISTA, 2003, p. 05

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Além disso, partimos do ponto de vista de que toda escrita tem uma intenção e um contexto em que é formulada. Sem conhecer estes aspectos de forte influência sobre o texto, estamos mais propensos a compreender erroneamente as expressões e pontos de vista dos autores. Para tanto, faremos aqui uma breve apresentação das crônicas estudadas e de seus respectivos autores.

3. O PADRE FIGUEROA E SEU INFORME.

Francisco Figueroa nasceu no “Nuevo Reino de Granada”, hoje, território colombiano, em, em 1607, portanto, dentro do contexto colonial americano, em um local de dominação espanhola. Bastante jovem ingressa no Seminário de São Luis de Quito, onde desenvolveu diversas faculdades intelectuais. Aos 23 anos de idade entrou para a Ordem Jesuítica, isso em 1630. Chegou a lecionar, durante algum tempo, no colégio onde estudara, porém logo é destinado a trabalhar no Colégio de Cuenca¹², juntamente com o Padre Cristóbal de Acuña, no ano de 1638.

Durante o tempo em que Acuña se ausentou, visto que fora acompanhar Pe-dro Teixeira em uma longa e arriscada viagem¹³, Figueroa permanece no Colégio de Cuenca onde se prepara para missionar na Amazônia. Em seus estudos, aprende in-clusive o que se denominou na época de “lengua del Inga”, ou seja, o quéchua. Devido à grande quantidade de idiomas diferentes falados na América, os padres entende-ram a comunicação que se tornaria mais fácil em uma “língua geral’, escolhendo-se o idioma incaico para tanto. Entretanto, isso não significa que não ensinassem para os indígenas o espanhol também, ou outra língua européia, até mesmo para formar seus “intérpretes” (“lenguas”).

Em 13 de julho de 1642 Figueroa chegou à região de Maynas, onde dedicou seu trabalho não somente aos indígenas, mas também aos espanhóis que habitam a região. Conforme as notas de Regan (1986), ele promoveu o trabalho espiritual na vila de São Francisco de Borja durante dez anos, quando passou a catequizar indíge-nas em regiões mais afastadas.

Entre os anos de 1656 e 1665 foi Superior das Missões de Maynas. Desta forma, em 1659, o provincial da Companhia de Jesus do Novo Reino e Quito, Padre

¹² Localizado atualmente em território equatoriano.¹³ Sobre esta expedição, o religioso produziu um documento: ACUÑA, Christóbal de. Novo Descobrimento do Grande Rio das Amazonas. Pelo padre Christóbal de Acuña, Religioso da Companhia de Jesus e Qualificador da Suprema Inquisição Geral, ao qual se foi, e se fez por ordem de sua Majestade, no ano de 1639, pela Província de Quito, nos Reinos do Peru. In: ESTEVES, Antônio R. (ed). Novo Descobrimento do Grande Rio das Amazonas. Monte-vidéu: Consejeria de Educación de Embajada de España en Brasil; Oltaver, 1994

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Hernando Cavero, solicita a Figueroa um informe sobre os “pueblos” que estavam sob sua supervisão. O documento é concluído em 1661, levando o títulos de “Yn-forme de las Missiones de el Marañon, Gran Pará ó Río de lãs Amazonas”.

Seus últimos trabalhos espirituais foram realizados no pueblo de “Limpia Con-cepción de Jeberos”. O jesuíta foi assassinado durante uma rebelião promovida pe-los índios Cocama, junto com alguns nativos Jeberos, no dia 15 de março de 1666. Nas crônicas que falam sobre a morte do padre, podemos encontrar algumas expli-cações e descrições de sua morte. Um carta de um “capitão Marcos Salazar” lê-se que Figueroa estava indo ao encontro do Padre Tomás Majano (superior das missões naquele momento) para aconselhar-se, quando, em um rancho na ribeira do rio en-controu alguns índios Cocama que:

Llegando a saludarle, como lo acostumbraban, comenzaron algunos de ellos á coger lo que habia en la canoa del Padre, y á un muchacho que lo defendia le derribaron de un golpe, á que el Padre les dijo: ¡ Jesús! ¿qué os há hecho esse muchacho que asi lo maltratais? Y vol-viendo á los indios les dijo: ¿Que por qué causa le habían hecho aquel daño? Y los indios le dijeron al Padre: ¿Y hablas? Dándole un golpe le derribaron. Volvió en si diciéndoles: ¿Este es el pago que me dais después que He trabajado en enseñaros la ley de Dios? Y los índios diciéndole: ¿Todavia hablais? Yo haré que no prediqueis, le ataron á un árbol y le fueron cortando y sacando por las conyunturas todos los huesos uno por uno, hasta que quedo tronco el cuerpo. Y en todo este martírio no cesó el dicho mártir de predicar, y alzando los ojos al cielo, conto, entiéndese que algun himno, y com ello Dio el alma á su criador.Los índios le asaron el cuerpo para comérsele y se llevarón la cabeza.14

Alguns historiadores acreditam que o padre foi assassinado por engano, que os indígenas rebeldes queriam, na verdade, vingar-se dos espanhóis que tantos males lhes causavam. Esta possibilidade é válida, pois os padres geralmente defendiam os nativos dos espanhóis e de outros europeus que os capturavam para realizar tra-balhos forçados nas encomiendas. Muitas vezes os indígenas procuravam as missões como abrigo da ameaça que representavam os soldados e encomenderos. Preferiam, muitas vezes, a proteção e assistência dos padres do que a insegurança de continuar em suas aldeias e serem escravizados pelos europeus.

14 FIGUEROA, 1986, p. 314

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3.1 O “YNFORME DE LAS MISSIONES DE EL MARAÑON, GRAN PARÁ ó RíO DE LAS AMAZONAS”

Conforme mencionado anteriormente, o informe solicitado ao Padre Figue-roa pelo Superior Hernando Cavero em 1659 é escrito durante cerca de dois anos; fica pronto em oito de agosto de 1661. Este Informe, que hoje se tornou nossa fonte de pesquisa, é um documento de ordem primária riquíssimo em informações, descrições e detalhes acerca das Missões Jesuítas de Maynas.

As duas principais cópias da obra estão na Espanha: uma na coleção da Bi-blioteca Nacional de Madrid; e a outra no colégio jesuíta de Chamartín de la Rosa. A versão que utilizo é de 1986, resultado do Projeto Monumenta Amazónica, que tem por objetivo editar ou reeditar as principais obras relacionadas à história da Amazô-nia entre os séculos XVI e XX15.

A obra de Francisco Figueroa, reeditada por este projeto, foi publicada dentro de uma coleção de documentos que se refere a um primeiro momento das Missões de Maynas. Como Figueroa e Cristóbal de Acuña trabalharam em conjunto no Co-légio de Cuenca e ofereceram valiosas descrições do ambiente amazônico, além de suas obras serem de datas bastante próximas; foram reeditadas em um único volu-me. Além dos escritos destes dois cronistas, a coleção de documentos é completada por algumas cartas e relações que complementam a compreensão e estudo das obras dos jesuítas.

O informe é um documento que abrange descrições acerca, por exemplo, do ambiente, das populações nativas e seus costumes, dos idiomas, bem como das práticas dos missionários e reações dos índios a elas. Registra também os problemas das missões, como as doenças, etc. Para além destas informações mais descritivas, podemos utilizarmo-nos delas a fim de aproximarmo-nos do imaginário da época.

O informe de Figueroa nos permite ter acesso não somente às informações mais explícitas, mas também às questões de caráter mais subjetivo como, por exem-plo, a forma pela qual os padres interpretavam a organização político-social das populações ribeirinhas; com percebiam a prática do canibalismo; como lidavam com a “dificuldade” do indígenas em assimilar as “leis de Deus”, entre outros.

15 Pertence a série temática “missionários”, uma vez que as obras editadas por este projeto são classificadas por temas: conquistadores, missionários, agentes governamentais, cientistas e viajantes, e exploradores. O projeto é re-sultado da iniciativa do Centro de Estudos Teológicos da Amazônia (CETA); que através de encontros e pesquisas pôde definir os títulos a serem publicados e realizar os trabalhos necessários para as edições.

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4. O PADRE MANUEL RODRíGUEZ

Manuel Rodriguez estudou no Colégio dos jesuítas de Quito. Em 1678, tor-nou-se “Procurador general de las Províncias de índias”. Em função de seu cargo, vai para a Europa com o intuito de divulgar os trabalhos realizados pelas missões jesuíticas espanholas,. Além de divulgar as missões, o elogio ao esforço dos padres é uma estratégia o para conquistar “nuevos operarios”16 para as missões.

Em sua crônica descreve as primeiras viagens para a área, em especial a de Gonzalo Pizarro (1539) em busca de terras ainda não conquistadas. A fundação da Vila de São Francisco de Borja é também narrada por Rodríguez, bem como a che-gada dos primeiros missionários que fundaram o Colégio de Cuenca no ano de 1637:

A fundação da Casa de Cuenca, foi o Padre Cristobal de Acuña, na-quele ano de mil seiscentos e trinta e sete, em que se fundou, ainda pobremente, e teve como um dos primeitos companheiros o Padre Francisco de Figueroa, posto como a porta das Missões de Gentis, que desejava, e empenhado em aperfeiçoar-se na língua geral dos ín-dios do Perú, nela predicava fervorosaemnte na cidade de Cuenca.17

Como podemos perceber este livro complementa diversas informações contidas no informe de Figueroa. Além do mais, ele exalta a atividade não somente de Figueroa, mas de todos os jesuítas que predicam na região das Missões de Maynas. Termos como “fervorosamente”, “com amor”, “carinho”, “boas obras”, não são raros de encontrar nas descrições que faz sobre o trabalho de catequese dos padres com os indígenas.

A potencialidade para a obra catequética que a região às margens do Marañón possui é um dos enfoques de sua obra. Fernando Torres Londoño (2006), que tam-bém estuda a crônica do jesuíta Manuel Rodríguez afirma que:

Rodríguez redige a crônica sob a idéia de que o Marañón tinha sido reservado por Deus como campo de ação para a Companhia de Jesus. Aparece no texto como um espaço distante, desconhecido, de mon-tanhas impenetráveis e rios perigosos, mas com enorme multidão de gentio que precisava ser salva, sendo a Companhia de Jesus o melhor instrumento de que dispunham a Igreja e o Rei para chegar àqueles confins e neles implantar reduções.18

16 Neste trabalho estamos nos valendo da edição facsimilar de El Marañon y Amazonas, acessível no site da Biblio-teca Digital de Obras raras e Especiais da USP. http://www.obrasraras.usp.br/obras/001543/.17 RODRíGUEZ,, 1684, p. 91. Tradução nossa, no original: “A la fundacion de la Cafa de Cuenca, fue el Padre Christóbal de Acuña, aquel año de feifeienntos , treinta, y fiete, em que se fundo, aunque pobremente, y tubo por Compañero de los primeros al Padre Francisco de Figueroa, peufto como á la puerta para las Miffiones de Gentiles, que defeaba, y empleado em perfecionarse em la lengua general de los índios del Peru, em ella predicava fervoro-famente em la Ciudad de Cuenca”18 LONDOÑO, 2006, p. 19

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As notas deste autor vêm reforçar o que eu afirmava anteriormente quanto ao universo de possibilidades que a região da várzea amazônica representava. Além do mais, está claro que o missionário percebe a região como um local à espera dos missionários e suas grandiosas ações.

Sabemos que Rodriguez colheu informações na América, quando aqui atuou. Continuou o trabalho de busca de informações na Espanha e em Roma, o que fi-nalmente lhe deu condições de escrever o livro sobre as missões do Marañón. Esta obra recebeu o título de “El Marañón y Amazonas, Historia de los descubrimientos, entradas y reducción de naciones, trabajos malogrados de algunos conquistadores y dichosos de otros, así tem-porales, como espirituales, en las dilatas montañas y mayores ríos de América, escrita por el padre Manuel Rodríguez, de la Compañía de Jesús, procurador general de las provincias de Indias en la corte de Madrid”, que foi publicada pela primeira vez em Madrid em 1684. Em 1990, novamente em Madrid, pela Editora Alianza o texto foi editado e novamente pu-blicado, apresentando um prólogo e notas de Angeles Durán, um dos responsáveis por esta edição.

5. AS MISSõES DE MAYNAS

A região da Missão de Maynas corresponde à área que se estende desde o pie-monte andino até a confluência do rio Negro com o Marañón, hoje, área que per-tence ao Equador, Peru, Colômbia e Brasil (LONDOÑO, 2006). Ela estava ligada à Província Jesuítica de Quito.

Ao contrário do que se poderia presumir após ler sobre as rebeliões de 1635 e fundação da Vila de San Francisco de Borja, no Alto Amazonas, o trabalho catequé-tico na região é anterior a estes fatos. Em três momentos anteriores já haviam sido enviados religiosos na tentativa de evangelizar as populações amazônicas:

Em 1606, o Padre Rafael Ferrer já tinha visitado o território dos Oma-gua; em 1621, os Padres Simon de Rojas, Humberto Coronado e o irmão coadjutor Petrus Limón haviam permanecido junto ao grupo e, em 1630, uma nova tentativa havia sido empreendida pelo Padre Francisco Rugi. Confirme os relatos, estas três tentativas de evangeli-zação haviam sido efêmeras por enfrentarem as dificuldades comuns às outras missões, mas, principalmente, por irem contra o interesse da sociedade colonial em obter indígenas através da encomienda.19

19 CYPRIANO, 2005, p. 128

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Além destas tentativas, em 1633, padres franciscanos também empreenderam alguns trabalhos na região. A situação desde estas primeiras missões, até o quadro instaurado com a rebelião de 1635 mudara muito. Agora, os soldados e encomenderos que estavam instalados na região, desejavam a presença de missionários e, a partir disso, solicitam junto à Companhia, o envio de padres.

Gaspar de Cugia e Lucas de la Cueva chegam a São Francisco de Borja em 1638. Consta na relação de Francisco Figueroa (escrita, como vimos, em 1661) que, durante o caminho percorrido até a vila, estes padres já vieram trabalhando na conversão e batismo de populações indígenas. Contudo, os trabalhos em São Francisco de Borja foram dedicados, primeiramente, aos próprios espanhóis que lá se encontravam:

Llegaron los Padres Gaspar de Cujia y Lucas de la Cueva, com el governador D. Pedro Baca de la Cadena (que los acompañó, ayudó y fomento en todo el camino y SUS ministérios), á esta ciudad de San Francisco de Borja á los seis de Febrero del año 1638, quatro meses, como he dicho, después que salieron del Collegio de Quito (...) Por ser ya cerca de Quaresma trataron de obrar lo que á la saçon instava, que eran sermones, exemplos, confessiones y que cumplissen com la Iglesia, que algunos años no lo avian hecho por falta de sacerdote.20

Empreenderam seu trabalho, a partir deste dia em vinte e quatro encomien-das. Além disso, os religiosos participavam de expedições para atender as necessida-des espirituais da tropa e evangelizar os indígenas encontrados.

Conforme vimos anteriormente, para realizar a catequese a comunicação é essencial. Desta forma, quando um grupo aceitava a presença do padre, muitas ve-zes eles solicitavam que se lhes confiassem alguma criança para a qual ensinariam o espanhol. O pequeno aprendiz., quando estivesse apto, servia de intérprete/tradutor para que a catequese pudesse ocorrer. Sempre que possível, os próprios padres pro-curavam aprender a língua específica de cada tribo. Porém, a presença e participação dos intérpretes são recorrentes. Em alguns relatos, percebemos que além de intér-pretes, essas estes índios serviam de “embaixadores’, de mediadores para o contato dos jesuítas com os grupos:

Si no los ay sacan consigo algunos muchachos, que despues de algun tiempo, hechos ladinos en algun idioma de los nuestros, bolbiendo á sus tierras sirben de intérpretes para reducir á sus parientes. (FIGUE-ROA [1661], 1986, p. 248)

20 FIGUEROA, 1986, p. 157

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A ação missionária levada a cabo através de tradutores e com apoio militar de soldados, rapidamente permitiria fundar alguns pueblos. Estes pueblos, também chama-dos de reduções permitiam um trabalho mais direcionado e intenso do missionário. Conforme Londoño (2006), desde a primeira redução fundada por Cugia e de la Cueva em 1638²¹:

(...) outras 152 reduções ou anexos seriam fundados às margens dos rios Marañón, Amazonas e afluentes, que a partir dos anos quarenta do século XVII passaram a ser conhecidos como missões de Maynas. (...) Nessa ampla área os missionários entrariam em contato com um universo indígena pluriétnico e plurilingüístico. Entre outros, habita-vam a região os grupos Mayna, Andoa, Pinche, Urarina, Jebero, Co-cama, Mayoruna e Omágua, que não formavam uma unidade política, mas mantinham relações fluidas entre si. ²²

Como o universo lingüístico era variado, intérpretes eram essenciais. Isso porque seria humanamente impossível assimilar o grande número de línguas ne-cessárias a catequese dos grupos desta região. Além disso, a diversidade cultural era um agravante, pois mesmo possuindo traços em comum, as populações amazônicas possuíam especificidades. Neste ponto, os intérpretes também contribuíam para a mediação entre o padre e os grupos.

Além da diversidade cultural e lingüística, havia outros fatores que tornavam a catequese um trabalho delicado e desafiador. A longa distância entre um e outro grupo e é um exemplo disso. Eles eram dispersos e de difícil acesso. Nas crônicas estudadas, os padres sempre comentam a necessidade de mais missionários para a região pelo fato de eles demorarem muito tempo para se locomover de uma redu-ção à outra, e de necessitarem quem atuasse junto às tribos ainda não convertidas. A falata de mais missionários, queixam-se eles, fazia com que boa parte do trabalho fosse perdida, em função do espaço de tempo que os indígenas ficavam sem praticar os ensinamentos recebidos. Além do mais, a presença do missionário é tida como de grande importância pois, mesmo doutrinados, os indígenas não se mantêm nas reduções se o padre se ausentar por muito tempo.

Van saliendo poco á poco, vnos aora, otros despues, y tambien se van y se vienen, porque no ay modo de apretarlos más para retenerlos en su poblacion. Lo principal es no tener sacerdote proprio en su pueblo que los dotrine y mantenga ²³

²¹ Figueroa em seu informe registra existia um contingente populacional tão grande que novas províncias não paravam de surgir: “De modo que son por todas vnas cuarenta províncias ó naciones las que caen y se contienen en este contorno y esphera de mission, y puede ser que otras más no ayan llegado á nuestra noticia” (FIGUROA [1661], 1986, p. 241).²² LONDOÑO, 2006, p. 02.²³ FIGUEROA [1661], 1986, p. 219.

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Ainda outras dificuldades, além do difícil acesso, faziam parte do cotidiano dos missionários que estiveram nas missões amazônicas, como o perigo que repre-sentavam os indígenas que não se convertiam e ameaçavam a segurança dos padres. Já vimos que isto causou, inclusive, a morte do autor do Informe. Comentando sobre as viagens de Padre Raymundo de Santa Cruz às reduções de Chamicuro, Fi-gueroa (1986) explica que viajava:

La tierra adentro, tres y quatro dias de camino de á pie, con las inco-modidades y mojaduras destas montañas, con muchas llagas que se le abrian, y apreturas del pecho hasmático, que llegava casi á caerse muerto, segun lo que ahogando le apretava. Tomava este travajo y aun otros riesgos de la vida por que varias vezes le dijeron que le querian matar y comérselo, con fin de atraherlos á que acaben de salir á poblar-se en partes que se puedan dotrinar.24

Em outro momento, também é narrada uma situação em que o padre passa por momentos de medo e insegurança:

Hicímolos assí, y aiendo atravesado, desembarcaron todos, porque aunque estava inundado el suelo, no tanto, en aquella parte que no pudiessen hacer pié; fuéronse todos, diciéndome quedasse yo en mi canoa, en tanto que bolviessen por mí, aviendo visto la disposicion del camino y estado de la troge. Hícelo assí; pero ellos no bolvieron, ó porque lo inundadodel camino les emperezó, ó porque, entreteni-dos en apagar su hambre y necessidad tan antigua con unas maçocas de maiz que hallaron, se olvidaron, ó porque el cansacio y sueñoles rindió. Aguardélos un rato u otro rato, y tanto, que entré en no pe-queño cuydado. Díles voze, no se oian; repetílas muchas veces, pero sin efecto. En verme solo en medio del mayor riesgode cocamas, me congojava con demasia: enjambres de mosquitos çancudos plaga la másinsufrible deste rio, en que hervia me sajaban; la inquietud de la canoa no me concedia el menor reposo, con que sin coajar cueño y gritando, passé la noche.25

Em função deste quadro, era comum que os jesuítas recorressem à “justiça de Borja”, solicitando que fossem acompanhados por soldados nas expedições, a fim de obterem um pouco mais de segurança nas tentativas de conversão à fé em Cristo. Além de trazer mais segurança para os padres, em alguns casos os soldados eram utilizados para impor a catequese ou para resgatar os indígenas que fugiam dos pueblo,. Em outras palavras, serviam para capturar os que não estivessem dispostos a aceitar os ensinamentos dos padres, ou para assegurar a vida do missionário, que

24 Idem, p. 222.25 Idem, p. 177.

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eram poucos para a demanda da região, através do respeito que as armas de fogo impunham aos nativos. “O Padre Gaspar de Cujia, entrava para buscá-los, e recolhê-los, insistindo sempre, ainda que em vão, para que se povoassem, para insistir em instruí-los juntos26”.

O objetivo, na região de Maynas, era criar uma rede de missões que permitis-se superar as dificuldades de comunicação e controle e que permitisse um melhor acompanhamento do desenvolvimento espiritual e político-econômico. Lembremos que a fundação das missões implicava a adoção do modo de vida europeu, inclusive no que se refere à organização política (pois agora eram vassalos del Rey, além de servos de Cristo) e no que tange à economia (que passa a ter as características e utilizar muitos produtos, europeus). Desta forma, o empreendimento missionário não implicava somente em levar a palavra de Cristo aos nativos americanos, mas em transformar o modo de vida destes de acordo com o que se acreditava ser a maneira civilizada de viver; deveriam deixar de ser bárbaros e toscos para se tornarem verda-deiros filhos de Deus e vassalos do rei da Espanha.

De fato, encontramos com freqüência nas descrições, padres que percebem os indígenas como bárbaros rústicos, que precisavam ser educados e civilizados ur-gentemente. E, mais do que isso, não bastava ensinar-lhes como viver, era preciso acompanhar de perto suas atitudes porque, segundo entendiam os missionários, eles logo se desvirtuavam do caminho que lhe fora mostrado. A visão dos missionários sobre eles, diversas vezes é a do professor sobre uma criança que pouco ou nada compreende sobre o que lhe falam, o que os leva a necessitar de demasiada paciência e tempo. Em muitos momentos, nas crônicas, encontramos descrições que minimi-zam a capacidade intelectual dos indígenas:

bautizarlos con mucho travajo, por la incomodidad de los caminos y puestos donde están, y mucho más por la barbaridad é ignorancia de los indios, su gran rudeza y tosquedad, que se halla principalmente em los viejos; se cansa y quiebra el Padre la cabeça, como sí pusiera todo su conato em querer darse á entender y cathequizar vn tronco 27

Podemos perceber o grau de dificuldade que os padres consideravam conter o trabalho catequético: a dificuldade de fazer os índios compreender os ensinamentos;

25 RODRíGUEZ, 1684, p. 76. Tradução nossa; no original: “El Padre Gafpar de Cuxia, entraba à bufcarlos, y reco-gerlos, inftando fiempre, aunque fue en vano, em que fe poblaffen, para infiftir em inftruilos juntos”26 FIGUEROA [1661], 1987, p.252.

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as distâncias entre os povoados; as dificuldades impostas pela geografia, pelo clima e pela natureza do lugar; etc28.

Uma das principais características das Missões do Alto Amazonas, sem som-bra de dúvida, foi a sua instabilidade. Instabilidade esta, devida não somente aos obstáculos que vimos descrevendo, mas também às constantes epidemias e rebeliões que não se extinguiram com a implantação das missões, conforme foi desejado pelos espanhóis. Muito pelo contrário, quanto maior o contato entre índios e europeus, maior era a quantidade de nativos que sucumbiam às doenças, às armas de fogo e à escravidão.

CONSIDERAçõES FINAIS

O valor das informações contidas nas crônicas para o trabalho historiográfico é imenso. Como aprofundado anteriormente, elas variam entre descrições sobre o ambiente, sobre as populações, sobre os costumes, sobre as relações entre as pessoas que estavam na região, etc. No caso do Alto Amazonas é possível, através da utili-zação destas fontes, por exemplo, dar suporte às teorias arqueológicas que afirmam que a região ribeirinha, foi cenário de grandes populações humanas, portadoras de culturas bastante complexas. Sob outra perspectiva, também é possível fazer uma análise mais etnológica, no sentido de compreender as mudanças e permanências nas identidades e nas sociedades locais. Devemos ainda ressaltar que essas são fontes essenciais para podermos também compreender o contexto em que se desenvolve-ram as missões jesuíticas na região.

Utilizar fontes primárias nas pesquisas históricas abre um leque de possibi-lidades muito grande. Afirmo isso, no sentido de que as representações contidas nos permitem não somente perceber o que o autor diz, mas porque o está fazendo. Uma análise crítica cuidadosa e atenta pode trazer à tona uma série de questões que passaram despercebidas por muito tempo.

Se a história é um relato acerca do passado, os fatos e as mensagens subjetivas contidas nestes documentos podem enriquecer as reflexões do presente. Por isso, a ação jesuítica pode nos contar muito sobre um passado ainda pouco estudado e que precisa ser repensado pela historiografia.

28 É importante pensar que em muitos casos, os padres descreviam as dificuldades encontradas de maneira um tanto exagerada, como se o trabalho catequético estivesse sempre em processo de desenvolvimento, mas nunca concluído. Lembremos, portanto, que a Igreja e o corpo social se fundem de modo que a fé determina, também, a categoria social do indivíduo. Em outras palavras, no momento que o índio fosse reconhecido como cristão ele abandonaria a categoria que justificava sua inferioridade e, com isso, poria um fim na situação colonial.

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FONTES

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REFERêNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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jesuítica do Paraguai e o glorioso martírio do venerável padre Roque Gonzáles nas tierras de Ñezu. Porto Alegre: UFRGS, 2009POUTIGNAT, Philippe; STREIFF-FENART, Jocelyne. Teorias da Etnicidade. Segui-do de grupos étnicos e suas Fronteiras de Frederik Barth. São Paulo: Editora da UNESP, 1998.RODRIGUEIRO, Jane. Tensão e Redução na várzea: as relações de contato entre os cocama e jesuítas na Amazônia do século XVII (1664 – 1680). São Paulo: PUC, 2007.

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A inquisição no extreMo sul dA AMériCA PortuguesA: o Perfil dos fAMiliAres do sAnto ofíCio eM

ColôniA de sACrAMento (séCulo XVIII)

Lucas Maximiliano Monteiro*

Resumo: O Tribunal do Santo Ofício Português tinha por objetivo vigiar as práticas religiosas não apenas em seu território na Península Ibérica, mas também em seus domínios do além-mar, como era o caso da América Portuguesa. Uma das formas encontradas para a Inquisição se fazer presente foi a atuação de funcionários inquisitoriais. Este trabalho visa traçar um perfil dos Familiares do Santo Ofício em Colônia de Sacramento ao longo do século XVIII. Esta Praça Mercantil contou com estes agentes inquisitoriais que serviam como os olhos do Tribunal de Lisboa na região. Baseando-se em um estudo prosopográfico, será realizado um levantamento para identificar a profissão, naturalidade, ca-bedais e estado civil com o objetivo de definir o padrão de recrutamento destes funcionários a serviço da Inquisição.

Palavras-chave: Inquisição – Colônia de Sacramento – Familiares do Santo Ofício

A Inquisição Portuguesa tinha no Tribunal do Santo Ofício de Lisboa, criado em 1540, a responsabilidade pelo controle da fé nos territó-rios portugueses ultramarinos. Este tribunal exerceu seu poder nas

colônias, primeiramente, através da atuação dos bispos locais. Posteriormente atuou através das Visitações oficiais. Nos séculos XVI e XVII a América Portuguesa teve a oportunidade de duas visitas oficiais do Santo Ofício na Bahia e Pernambuco. Nes-tas oportunidades, os visitadores recolheram diversas denúncias e confissões dos moradores das respectivas capitanias do nordeste brasileiro.¹ Já na segunda metade do século XVIII, uma visitação realizada no Grão-Pará fechou o ciclo deste tipo de

* Graduado em História pela UFRGS. Aluno de Mestrado do Programa de Pós-graduação em História da UFRGS. Bolsista CAPES.¹ A este respeito, ver, por exemplo, meu estudo sobre as narrativas dos cristãos-novos no Livro das Confissões da Bahia. MONTEIRO, Lucas Maximiliano. De frente com o inquisidor: os cristãos-novos e suas narrativas no Livro das Confissões (Bahia, 1591-1592). In: Mostra de Pesquisa do Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul. Anais: Produzindo história a partir de fontes primárias. Porto Alegre: CORAG, 2009, p. 19- 37.

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atuação do Tribunal de Lisboa no território da América Portuguesa. Lina Gorenstein ainda demonstra que houve uma quarta visitação, ainda no século XVII, na capitania do Rio de Janeiro em 1627, e cuja documentação fora perdida no naufrágio do navio que transportava Isabel Mendes, cristã-nova e processada pela Inquisição.²

Contudo, esta forma de controle exercido pelo tribunal representava uma ex-ceção dentro da atividade repressiva inquisitorial. De outras maneiras a Inquisição se fazia presente na realidade e no dia a dia da população colonial. Uma destas formas era a atuação de um corpo de funcionários inquisitoriais residentes nas capitanias, convivendo com a população e reportando os desvios de fé encontrados para Lis-boa. Por meio destes agentes, era possível uma maior alcance do braço inquisitorial sobre as heresias praticadas nos territórios do além-mar. O objetivo do presente artigo é tratar de um destes funcionários: os Familiares do Santo Ofício. Estes eram funcionários leigos que habitavam as capitanias e tinham um papel fundamental na engrenagem de denúncias e prisões por parte do Tribunal de Lisboa. Ao mesmo tempo, estes agentes também se valiam de seu “título de aliados da Inquisição” como uma forma de prestígio social. O foco deste trabalho será no estudo prosopográfico desde grupo social em Colônia de Sacramento, levantando dados para que se possa traçar o seu perfil social. Com isso, será possível identificar quem eram estes agentes inquisitoriais e que posição ocupavam na sociedade de Colônia de Sacramento.

OS FAMILIARES DO SANTO OFíCIO: REQUISITOS E DEVERES

Segundo Aldair Carlos Rodrigues, o crescimento do número de familiares, verificado a partir do século XVII, atesta que foi por meio da atuação destes agentes que o Tribunal de Lisboa modificou a sua forma de atuação, passando das visitações para o trabalho dos agentes inquisitoriais.³

Os Familiares do Santo Ofício eram membros da sociedade local que faziam parte do corpo de funcionários da Inquisição. São agentes “leigos” pois não necessi-tava serem eclesiásticos para se candidatarem ao posto, bastava que encaminhassem uma petição solicitando a habilitação ao Santo Ofício. Esta petição seria endereçada ao Conselho Geral e deveria conter informações como naturalidade, local de resi-

² A autora encontrou referências desta Visitação no Rio de Janeiro principalmente nos Cadernos do Promotor, juntamente com outros casos constantes na mesma documentação que atestam a existência deste trabalho do Santo Ofício em 1627. GORENSTEIN, Lina. A Terceira Visitação do Santo Ofício às partes do Brasil (século XVII). IN: VAINFAS, Ronaldo, FEITLER, Bruno & LIMA, Lana Lage da Gama. A inquisição em Xeque: temas, contro-vérsias, estudos de caso. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2006, p. 25-31.³ RODRIGUES, Aldair Carlos, Sociedade e inquisição em Minas Colonial: os Familiares do Santo Ofício (1711-1808). (Dissertação) USP, São Paulo, 2007, p. 27.

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dência, e ocupação. Da mesma forma, era necessário conter os nomes dos pais e as suas naturalidades, exigência estendida também aos avôs paternos e maternos. Estas informações seriam utilizadas pelo Santo Ofício para apurar e atestar a sua “pureza de sangue”. Se o candidato fosse casado, deveria constar o mesmo já mencionado referente a sua esposa, obrigatoriedade dada também em caso de o habilitando pos-suir filhos, legítimos ou não.

Nesta petição, o candidato a familiar relatava o motivo pelo qual se candi-datava ao cargo. Antônio de Azevedo Souza, familiar de Colônia do Sacramento habilitado em 1758, por exemplo, em sua petição disse que desejava servir ao Santo Ofício “por concorrerem os requisitos necessários”.4 Após encaminhar o pedido, o habilitando realizava um depósito em dinheiro o qual cobriria os custos do processo.

Para se candidatar a Familiar, era necessário estar dentro de uma série de re-quisitos exigidos pelo Tribunal do Santo Ofício. Estas prerrogativas ao cargo estão descritas nos Regimentos Inquisitoriais datados de 1640 e 1774. No primeiro regi-mento, do período em que o Bispo D. Francisco de Castro era o Inquisidor Geral de Portugal, constam os seguintes pré-requisitos aos candidatos a familiares: “se-rão pessoas de bom procedimento e de confiança e capacidade reconhecida”. Além disso, deveriam possuir “fazenda de que possam viver abastadamente” e, como os outros ministros e funcionários da Inquisição, serem

[...] naturais do reino, cristãos-velhos, de limpo sangue, sem raça de mouro, judeu ou gente novamente convertida à nossa santa fé e sem fama em contrário, que não tenham incorrido em alguma infâmia pública de feito ou de direito, nem fossem presos ou penitenciados pela Inquisição, nem sejam descendentes de pessoas que ti-vessem algum dos defeitos sobreditos [...] saberão ler e escrever e, se forem casados, terão a mesma limpeza suas mulheres e filhos que por qualquer via tiverem.5

O mesmo regimento também estabelecia uma regulamentação na conduta destes agentes inquisitoriais. Os Familiares do Santo Ofício habilitados tinham de possuir e guardar o regimento que lhes cabia, manter segredo em todos os assuntos referentes às atividades inquisitoriais, manter bom comportamento e não abusar em proveito próprio do título de Familiar. Também não poderiam manter relações com pessoas que tivessem qualquer assunto em haver com o Santo Ofício e nem contrair dívidas que pudessem levantar qualquer suspeita de suas qualidades, principalmente

4 ANTT, HSO. Mç. 129, proc. 2167.5 Os Regimentos Inquisitórias de 1640 e 1774 estão publicados em FRANCO, Eduardo & ASSUNçãO, Paulo de. As Metamorfoses de um Polvo: religião e política nos Regimentos da inquisição Portuguesa (Séc. XVi-XiX). Lisboa; Précio, 2004. p. 229-481

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se endividar com as pessoas da nação, ou seja, judeus ou cristãos-novos. Sempre que chamado, deveriam se apresentar ao Tribunal, assim como no dia de São Pedro Mártir – santo de invocação dos agentes da Inquisição – utilizando o seu hábito de familiar. Somente nestes dias e naqueles em que iriam realizar alguma prisão ou conduzir algum preso da Inquisição e nos Autos-de-fé – nos quais acompanhariam os penitenciados – é que poderiam fazer uso do seu hábito.

O Regimento de Inquisitorial de 1774, período do Inquisidor Geral Cardeal da Cunha, foi redigido posteriormente às reformas empreendidas por Pombal nos assuntos referentes à Inquisição. O Ministro português, que esteve à frente do go-verno de D. José I entre 1750 e 1777, a partir de 1769 iniciou uma série de medidas: acabou com a função do censor de livros e criou a Real Mesa Censória, que teria as mesmas obrigações, mas que passava para o controle direto do Estado. Em 1769 retirou o poder inquisitorial como tribunal independente e, além disso, ordenou que os bens confiscados pelo tribunal, que antes ficavam em poder da Inquisição, passassem a ser direcionados para o Tesouro Real e colocou seu irmão Paulo de Carvalho como inquisidor-geral. Por fim, acabou com a distinção entre cristão-novo e cristão velho.6

Em relação à última medida, o Marquês de Pombal pôs fim a uma distinção social existente desde o reinado de D. Manuel e seu decreto de conversão dos judeus em 1497. Assim sendo, no Regimento de 1774 não se encontram mais referências à pureza de sangue. No que tange aos agentes inquisitoriais, e aos Familiares do Santo Ofício, não é mais requisitado ser puro de sangue ou qualquer referência em relação aos cristãos-novos, como no caso da proibição de contrair dívidas com este grupo social. No restante, os mesmos requisitos já descritos no Regimento de 1640 permanecem.

Há ainda um regimento destinado especificamente aos Familiares. Embora não possua referências de quando foi publicado, é possível deduzir que seja anterior ao regimento do Cardeal Cunha. No Regimento dos Familiares há praticamente o mesmo já exigido nos regimentos anteriores.7

Todos estes requisitos seriam averiguados no momento do processo de habi-litação. Seriam feitas diligências nas cidades em que os pais do habilitando residiam a fim de atestar a veracidade em relação à pureza de sangue. Havia também as di-

6 Para Kenneth Maxwell, o objetivo de Pombal era a secularização da Inquisição, tornando-a, assim, diretamente ligada ao Estado Português. MAXWELL, Kenneth. Marquês do Pombal: o paradoxo do iluminismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996, p. 99 e 100.7 O Regimento dos Familiares foi publicado por Luiz Mott em Cadernos de Estudos Baianos, Salvador, n. 140, 1990.

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ligências voltadas a averiguar as condições econômicas do mesmo, ou seja, se era pessoa que vivia abastadamente, e se sabia ler e escrever. Após as diligências, e sendo comprovados os requisitos, o comissário emitia seu parecer.

Os Familiares do Santo Ofício tinham por obrigação prender, realizar de-núncias ou encaminhar aquelas recebidas aos comissários, e acompanhar os presos e penitenciados até o Santo Ofício. Não poderiam realizar qualquer ação sem que tivessem recebido ordem direta do Tribunal. Quanto a isso, o regimento é bem claro:

Se nos lugares em que viverem acontecer algum caso que pareça que pertence à nossa santa fé ou se os penitenciados não cumprirem suas penitências com toda a brevidade e segredo, darão pessoalmente conta na Mesa do Santo Ofício, sendo na terra em que assiste o Tribunal, e, fora dela, avisarão ao comissário. E quando o não haja, avisarão por carta aos inquisidores e nunca por si sós obrarão noutra forma em matéria que tocar à Inquisição, pelos inconvenientes que podem suceder, se fizerem o contrário.8

Ainda segundo o seu regimento, quando estivessem a mando da Inquisição, receberiam quinhentos réis por dia e poderiam ser acompanhados apenas por um homem, o qual seria pago “conforme o uso da terra”.

Para Aldair Rodrigues, os Familiares do Santo Ofício eram o meio de comu-nicação entre a sociedade local e o Tribunal Lisboeta, principalmente nas ocasiões de denúncias de heresias, que poderiam ser recolhidas por estes agentes inquisito-riais, as quais seriam remetidas aos comissários. Em algumas localidades que estavam muito longe da sede do bispado ou do acesso aos comissários, eram os Familiares os únicos representantes da Inquisição. Para o autor, estes agentes estavam tão enrai-zados e participavam tanto da vida social, que mesmo nos lugares mais distantes da sede da Comarca, todos os moradores sabiam da sua existência e, principalmente, a quem procurar.9

A presença destes funcionários da Inquisição fortalecia a atuação da institui-ção. Segundo Daniela Calainho, esta era uma estratégia para o Santo Ofício exercer o controle da população:

Espionando, prendendo e delatando, esses agentes eram tanto na Colônia como no Reino um dos mais poderosos tentáculos da Inquisição. [...] Espionavam

8 Regimento de 1640. In: FRANCO, Eduaro & ASSUNçÂO, Paulo de. As Metamorfoses de um Polvo. Op. cit. Embora com sua atuação delimitada pelos regimentos, não raro foi o caso de familiares que transgrediram as suas ordens. Daniela Buono Calainho mostra diversos agentes que agiam por si só e abusavam do poder concedido por meio da carta de Familiar. Agentes da fé: Familiares da inquisição Portuguesa no Brasil Colonial. Bauru, SP: EDUSC, 2006, p. 147-157.9 RODRIGES, Aldair Carlos. Op. cit., p. 69 e 72

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prisioneiros nos cárceres; por vezes investigavam a vida de suspeitos; faziam diligên-cias; prendiam ao menor sinal do Inquisidor.10

Logo, os Familiares do Santo Ofício eram os olhos da Inquisição. Nas locali-dades em que viviam, auxiliavam a instituição a denunciar, prender e manter a pre-sença inquisitorial mesmo nas menores localidades tanto do Reino como também na Colônia.

O NÚMERO DE FAMILIARES NA AMÉRICA PORTUGUESA

O número de Familiares do Santo Ofício foi contabilizado por diversos histo-riadores que se ocuparam do tema em suas pesquisas. Seus levantamentos auxiliam na visualização da distribuição destes agentes no território do Império Português. José Veiga Torres, em pesquisa na qual consultou cerca de vinte mil processos de habilitação, constatou que o número total de familiaturas expedidas entre 1580 até o final da atuação do Tribunal do Santo Ofício de Lisboa em 1820 foi de 19.901. O período que contou com um maior número de familiares habilitados foi entre o final do século XVII e até meados da segunda metade do XVIII, com 14168 no período entre 1671 e 1770, contra 2987 familiares entre 1580 e 1670. Da mesma forma, per-cebe-se a influência das Reformas Pombalinas em relação à Inquisição: para o perío-do posterior a 1770, ou seja, pós-reformas, o número de habilitações caiu para 2746.

FONTE: TORRES, José Veiga. Da repressão religiosa para a promoção social: a Inquisição como instância legitimadora da promoção social da burguesia mercantil. In: Revista Crítica de Ciências

Sociais. Coimbra, n. 40, outubro de 1994, p. 135.

Em relação à distribuição dos familiares entre Lisboa e Brasil, Veiga Torres encontrou 3114 familiares habilitados na América Portuguesa. Já o número de agen-

10 CALAINHO, Daniela Buono. Op. cit., p. 129

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tes em Lisboa era de 5711. Na tabela abaixo se percebe que Lisboa contou com um número de familiares maior que os seus domínios americanos até o final de 1770, quando a América Portuguesa passou a contar com 872 familiares contra 363 da ca-pital lusitana. Ao mesmo tempo, é possível verificar que a procura à carta de familiar se acentuou nos domínios americanos a partir de 1670, acompanhando o crescimen-to significativo de habilitações lisboetas.

Tabela 1: N° de Familiares Habilitados no Brasil e Lisboa (1570-1820)

FONTE: TORRES, José Veiga. Da repressão religiosa para a promoção social: a Inquisição como instância legitimadora da promoção social da burguesia mercantil. In: Revista Crítica de Ciências

Sociais. Coimbra, n. 40, outubro de 1994, p. 134.

Daniela Calainho encontrou para todo o período de presença da atividade in-quisitorial no Brasil 1708 familiares, sendo que desses, 1546 apenas no século XVIII. No levantamento realizado por Fábio Kuhn, o número de familiares encontrados para o período de 1737 e 1789 foi de cerca de 1700. Estes números, em comparação ao trabalho de Veiga Torres estão próximos uma vez que, para o período de 1721 a 1770, o autor português encontrou 1687 familiares habilitados em solo americano. O trabalho mais recente acerca do número de familiares é o de Aldair Rodrigues. Nele, o autor fez um levantamento de 1907 habilitações entre 1713 e 1785. De qual-quer forma, estes dados demonstram que a procura pela carta de familiar foi intensa, principalmente no século XVIII.

Fazendo uma comparação do número de familiaturas entre as capitanias bra-sileiras se percebe que aquela com o maior índice de Familiares do Santo Ofício foi o Rio de Janeiro. Em seguida vinha a capitania Mineira e, logo atrás, Bahia e Per-nambuco respectivamente. Segundo estes dados – apresentados na tabela n° 2 – é possível perceber a importância e a distribuição populacional de cada capitania. A capitania carioca contava com a produção de açúcar desde meados do século XVII. Além disso, há a presença massiva da elite mercantil – principal grupo a se habilitar

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– a qual estava em processo de ascensão social, ocupando postos nas ordenanças e espaços na Câmara local.¹¹ Já o número de habilitações em Minas acompanha o pro-cesso de urbanização conduzido pelo surto mineiro. Com a descoberta de ouro no território houve um fluxo migratório intenso e rápido, a ponto de, em 1711, cálculos jesuítas darem conta de 30 mil habitantes.¹²

No entanto, qual foi o número de Familiares do Santo Ofício em Colônia do Sacramento? Esta pesquisa se apóia – sobretudo – nos dados levantados por Fábio Kuhn que, para o período de 1737 e 1785, encontrou 18 familiares residentes em Colônia de Sacramento. Segundo Aldair Rodrigues, a Praça Mercantil contou com 19 familiares, pois contabilizou um Familiar habilitado em 1736.¹³

Tabela n° 2: Habilitações do Santo Ofício por Capitanias no Século XViii

FONTE: RODRIGUES, Aldair Carlos, Sociedade e Inquisição em Minas Colonial: os Familiares do Santo Ofício (1711-1808). (Dissertação) USP, São Paulo, 2007, p. 136-137.¹4

Na tabela a seguir estão os Familiares do Santo Ofício residentes em Colônia de Sacramento.

¹¹ CALAINHO, Daniela Buono. Op. cit., p. 82. KUHN. Fábio. Op. cit., p. 340.¹² RODRIGUES, Aldair Carlos. Op. cit., p. 126.¹³ A análise deste trabalho se concentrará nos 18 Familiares do Santo Ofício levantados por Fábio Kuhn Contudo, até o momento só foi possível acesso a 16 Processos de Habilitação.¹4No trabalho de Aldair não são contabilizados os Familiares do Rio Grande de São Pedro.

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Tabela n° 3: Familiares do Santo Ofício em Colônia de Sacramento15

FONTE: ANTT, HBSO

PERFIL DOS FAMILIARES EM COLÔNIA DE SACRAMENTO

No momento em que solicitavam a habilitação como Familiar do Santo Ofí-cio, os candidatos ao cargo inquisitorial deveriam informar a sua naturalidade, filia-ção, estado civil, profissão e cabedais. Todas essas informações seriam confirmadas por meio das inquirições realizadas pelos comissários nas localidades onde os ha-bilitandos haviam nascido e nas regiões de suas moradias. Logo, os Processos de Habilitação fornecem dados muito ricos para se traçar um perfil dos Familiares em Colônia de Sacramento.

15 Até o momento não tive acesso aos Processos de Habilitação de José da Costa Pereira, Bento Martins Ferreira e João Álvares de Araújo. As datas de habilitação aqui referidas foram levantadas por Fábio Kuhn.

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Em relação à naturalidade, os Familiares de Colônia de Sacramento são, em sua maioria, provenientes do Reino: dentre os 16 processos de habilitação que tive acesso, 11 são de habilitandos nascidos em Portugal e cinco na da Praça Mercantil.

Sobre o estado civil dos habilitandos no momento da petição, tem-se a seguinte configuração: 10 são solteiros, enquanto que seis eram casados no momento em que solicitaram a habilitação. Contudo, alguns Familiares da Praça Mercantil contraíram casamento após receberem a sua carta de Familiar. Antônio Fernandes Pereira era solteiro em 1753, ano em que entrou para o quadro de agentes inquisitoriais. Posterior-mente, casou-se com Luiza Máxima Sarmento, irmã de Antônio Ribeiro de Moraes, futuro Familiar na mesma Praça em 1768. Esta informação consta no próprio proces-so de habilitação de Antônio Ribeiro que, na sua petição de 1766, informou ser irmão mais velho de Luiza e cunhado de Antônio Fernandes. No mesmo processo consta na informação extrajudicial de 1767 que Luiza era viúva: Segundo o conhecimento que tenho, por ser o habilitando meu freguês há perto de 26 anos, que o habilitando Antônio Ribeiro de Moraes é natural desta Praça, filho legítimo do Cirurgião Manuel Ribeiro e de Antônia de Moraes, já defuntos, e irmão legítimo de Luiza Máxima Sarmento, viúva de Antônio Fernandes Pereira, Familiar do Santo Ofício; [...] que vive da ocupação de negócio de fazendas, que é abastado, mas que não sabem que cabedal terá de seu, que sabe ler e escrever muito bem, que terá 30 anos de idade[...]16

Logo, Antônio Fernandes faleceu entre 1766 e 1767, enquanto seu cunhado encaminhava sua petição. Conforme já mencionado, quando um Familiar desejasse se casar era necessário que sua esposa também fosse habilitada e, logo, passasse pelas mesmas investigações de linhagem para atestar a sua pureza de sangue. Caso já fosse casado, as investigações eram feitas no mesmo processo. Não foi o caso de Antônio Fernandes já que não consta nenhuma informação acerca de Luiza Máxima durante a sua habilitação que data de 1753. Provavelmente tenha se casado antes de 1766, data da petição de Antônio Ribeiro. O ponto principal é: como Antônio Ribeiro so-licitou sua Carta de Familiar após ter a sua irmã se casado com um Familiar do Santo Ofício e, por conseqüência, passado pelas investigações linhagísticas atestando a sua pureza de sangue, ele, por ser irmão legítimo, teve automaticamente a sua atestada sem maiores investigações. Aldair Rodrigues afirma que quem possuía algum pa-rente Familiar acabava tendo menos despesas em sua habilitação uma vez que “nos casos dos que tinham irmão ou pai habilitados, os avós não eram investigados, fato que significava menos diligências, papéis e, conseqüentemente, menos despesas”.17

16 ANTT, HSO, Mç. 163, proc. 2546. O grifo é meu.17 RODRIGUES, Aldair Carlos. Op. cit., p. 104. Não se teve acesso aos custos dos Processos de Habilitação dos Familiares de Rio Grande de São Pedro e Colônia de Sacramento

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Aqueles Familiares que contraíram casamento, assim o fizeram com mulheres que possuíam alguma distinção social. João da Costa Quintão se casou com Damásia Maria de São João, filha de Domingos de Siqueira de Araújo, Cavaleiro da Ordem de Cristo, e Paula Maria de Caldas.18 Silvestre Ferreira da Silva foi casado com Luisa Conceição, neta de João Ricardo, também Cavaleiro da Ordem de Cristo.19 É pos-sível que estes familiares tenham se casado com filhas de representantes da Ordem de Cristo como uma forma de ascensão social e também como porta de acesso à familiatura. O processo para o ingresso como Cavaleiro do Hábito de Cristo era considerado como o mais rigoroso, assim como o Processo de Habilitação de Fa-miliar do Santo Ofício, principalmente no que se refere à pureza de sangue.20 Desta forma, aqueles candidatos ao cargo inquisitorial, ao se casarem anteriormente com filhas de Cavaleiros da Ordem de Cristo teriam a certeza da pureza de sangue das suas esposas, afastando a possibilidade de terem seu pedido à carta de familiar nega-da por serem casados com mulheres de sangue impuro.

A faixa etária dos Familiares de Colônia de Sacramento estava entre 23, idade de Bartolomeu Cesário Nogueira, e 47 anos, idade de Eusébio de Araújo Faria. Con-tudo, a maioria dos Familiares da Praça Mercantil se encontrava na faixa dos 30 anos de idade, no momento de sua habilitação.

No entanto, a informação mais importante para se traçar o perfil desses agen-tes inquisitoriais é quanto a sua profissão. Neste caso, leva-se em consideração a profissão declarada no momento da petição. Assim posto. A tabela a seguir ilustra as profissões dos Familiares de Colônia do Sacramento:

18 ANTT, HSO, Mç. 72, proc. 1331.19 ANTT, HSO, Mç. 2, proc. 21.20 RODRIGUES, Aldair Carlos. Op. cit., p. 203. De fato, para ingressar nas Ordens Militares era necessário “não descender de mouros, mas sobretudo de judeus”. Elas foram as primeiras instituições a exigirem de seus candidatos a pureza de sangue, inserindo-se no contexto dos preconceitos existentes contra os de sangue impuro, descrito anteriormente. Segundo Fernanda Olival, “por todo este contexto, e pela cotação de rigor que tinham as provanças, que, até 1773, o hábito das Ordens Militares veiculava limpeza. Para grupos sociais podia ser muito importante, se não decisivo, ostentar uma cruz das Ordens: reiterava um estatuto e uma condição, afugentava rumores”. OLIVAL, Fernanda. As Ordens Militares e o Estado Moderno: honra, mercê e venalidade em Portugal (1641-1789). Lisboa: Estar Editora, 2001, p. 284-285. Fabio Kuhn levantou no Rio Grande de São Pedro seis integrantes do Hábito de Cristo, dentre eles o Familiar Manuel de Araújo Gomes. KÜHN, Fabio. Gente da fronteira: família, sociedade e poder no sul da América portuguesa: século XViii. Tese (Doutorado em História)-UFF, Niterói, 2006., p. 358.

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Tabela n° 4: Profissão dos Familiares do Santo Ofício em Colônia do Sacra-mento²¹

FONTE: ANTT, HSO.

Foram contabilizados como “homem de negócio” aqueles que, ao declararem a sua profissão, incluíram alguma outra ocupação além da primeira. Por meio destes dados se conclui que a maioria dos Familiares tinha a sua profissão ligada ao comér-cio. O Gráfico n° 2, mostra que os homens de negócio ocupam 76% da profissão declarada pelos habilitandos quando realizaram seu pedido junto com Conselho da Inquisição.

O grupo dos homens de negócio tem sido considerado pela historiografia recente como a elite econômica colonial. Sua acumulação de capital se dava por meio das atividades mercantis de exportação e distribuição de produtos para o mercado interno. No caso dos comerciantes do Rio de Janeiro, principal grupo mercantil colonial, essas atividades eram favorecidas pela posição que o porto carioca ocupava no cenário econômico da América Portuguesa. A produção colonial era distribuída para o mercado interno via Porto do Rio de Janeiro, o qual abastecia as regiões com produtos e escravos:

²¹ João Borges de Freitas está contabilizado como “Homem de Negócio” e “Militar”.

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[...] a praça do Rio de Janeiro desempenhava um papel fundamental na repro-dução, via mercado interno, da plantation exportadora. O que siginifica dizer também que tal praça era uma área privilegiada para as operações das produções coloniais de abastecimento interno. Isso nos ajuda a compreender a preponderância da acumula-ção mercantil [...] Em outras palavras, além de porto exportador e importador, o Rio de Janeiro, no período considerado, surgia como espaço da reprodução, via mercado interno, da formação econômico-social colonial.²²

É via Praça do Rio de Janeiro que se estabelece o surgimento de um novo gru-po econômico: os comerciantes de grosso trato.²³ Estes são definidos como “nego-ciantes, em geral, envolvidos simultaneamente no tráfico internacional de escravos, no abastecimento interno e nas finanças coloniais”.24 Pela definição de Fragoso se compreende a principal característica dos comerciantes de grosso trato: a diversi-ficação de sua atuação. Os homens de negócio tinham por característica atuar não apenas em um ponto de comércio, possuíam negócios nas mais variadas frentes mer-cantis, tanto no comércio interno, quanto no externo, ou seja, “o negociante colonial nunca o era de um só ramo”:

O fato de a elite mercantil estar simultaneamente envolvida no comércio de abastecimento e no de exportação e importação, além de aparecer no tráfico de escravos, por seu turno, nos fornece um outro traço desse grupo, ou seja, o caráter múltiplo de sua atuação empresarial.25

Os comerciantes agiam desta forma como uma maneira de se precaverem das flutuações econômicas. Desta forma, caso um negócio não conseguisse render o esperado, ainda era possível contar com outros investimentos que poderiam garantir o valor desejado e, assim, reduzir as perdas. Os negociantes conseguiam diversificar a sua atuação agindo em outros ramos que não o comércio. É o caso dos arremata-

²² FRAGOSO, João Luís R. Homens de grossa aventura: Acumulação e hierarquia na praça mercantil do Rio de Janeiro (1790-1830). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998, p. 307. Grifo do autor. É a partir do século XVIII que o porto carioca ganha importância no cenário colonial: “A partir do terceiro decênio do século, a praça do Rio de Janeiro começou a transformar-se no principal centro comercial da América portuguesa – ou, o que é o mesmo, no mais importante porto receptor de importações de outras partes do Ultramar e das reexportações de produtos europeus”. FRAGOSO, João Luís R. & FLORENTINO, Manolo. O Arcaísmo como Projeto. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, p. 75.²³ FRAGOSO & FLORENTINO. Op. cit., p.81.24 FRAGOSO. Op. cit., p. 92.25 Ibidem, p. 324 e 325. Em Tese defendida em 2009, Fábio Pesavento mostra que os negociantes cariocas também agiam como procuradores de negociantes estrangeiros em seus comércios com a América Portuguesa. Esta seria mais uma forma de diversificação da atuação dos homens de negócios, servindo de “atravessadores” dos produtos consumidos pela população colonial. PESAVENTO, Fábio. Um pouco antes da Corte: a economia do Rio de Janeiro na segunda metade do Setecentos. Tese-Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2009, p. 104-149.

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dores de impostos, uma forma que, segundo Fragoso, permitia uma ampliação co-mercial do homem de negócio e, assim, obtinha o monopólio de determinada região. Porém, embora diversificassem a sua atuação mercantil, os comerciantes o faziam de uma forma monopolista. Para isso recorriam a redes de parentesco, o que surtia um efeito restritivo no número de membros da elite mercantil.26

A situação dos negociantes em Colônia de Sacramento está diretamente re-lacionada com a atuação dos homens de negócio do Rio de Janeiro no comércio da região.27 Por se tratar de uma região de escoamento de parte da prata vinda do Potosi, muitos comerciantes cariocas realizavam comércio permanente, principal-mente com os espanhóis, via contrabando. Aliás, o contrabando foi a principal via de comércio entre os portugueses de Colônia de Sacramento e os vizinhos sediados em Buenos Aires.

Os homens de negócio encontravam na Praça Mercantil garantias de lucros de cerca de 90% do valor das mercadorias, além da vantagem da venda à vista com os castelhanos em troca da prata peruana. A prática da venda à vista era uma garantia que o comerciante tinha, devido, principalmente, à característica de contrabando, constantemente reprimida pelas autoridades.28

Os negociantes de Sacramento buscavam com seu comércio a prata do Poto-sí. Contudo a principal moeda de troca da região era o couro dos colonos espanhóis. Entre 1721 e 1736 a Praça Mercantil foi responsável por cerca de “75% das exporta-ções de couro do Rio da Prata.29 Em troca, os portugueses vendiam tecidos e tabaco:

Embora os tecidos fossem, de longe, o principal produto vendido na Colônia do Sacramento, outras mercadorias também forneciam elevadas taxas de lucro aos comer-ciantes. A principal dessas mercadorias secundárias era o tabaco que, em sua maior par-te, vinha da Bahia. Por volta de 1725, o seu consumo em Colônia, era de uns quarenta a cinqüenta rolos por ano, vendidos à vara por preços de 240 a 320 réis. Os principais compradores eram os soldados da guarnição, mas o tabaco também era vendido aos espanhóis, colonos e, principalmente, aos índios, que o trocavam por gado e couros.30

26 FRAGOSO, Op. cit., p. 326-330.27 Segundo Fabrício Pereira Prado, “a comunidade de mercadores do Rio de Janeiro, bastante poderosa e com uma elite mercantil estruturada na primeira metade do XVIII, mantinha relações com Sacramento”. Colônia de Sacra-mento: comércio e sociedade na Fronteira Platina (1716-1753). Dissertação (Mestrado). Porto Alegre: UFRGS, 2002, p. 136.28 POSSAMAI. Paulo César. Aspectos do Cotidiano dos Mercadores na Colônia de Sacramento durante o Governo de Antônio Pedro de Vasconcelos (1722-1749). Revista ibero-Americanos. Porto Alegre: PUC-RS, v. XXVIII, n°2, dezembro de 2002, p. 4.29 PRADO, Fabrício Pereira. Op. cit., p. 133.30 Ibidem, p. 7.

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Embora os comerciantes de Colônia de Sacramento obtivessem lucros com a venda de suas mercadorias aos espanhóis, eles tinham que encarar a concorrência britânica na região. Esta concorrência causou diversos conflitos entre portugueses e ingleses, uma vez que o principal lucro dos primeiros se baseava em recambiar os produtos europeus, principalmente da Inglaterra. Logo, quando os britânicos pas-saram a realizar trocas comerciais diretamente com os espanhóis, os homens de negócio de Colônia de Sacramento perdiam mercado, pois não conseguiam vender a preços tão baixos que seus concorrentes. Para Paulo Possamai, “a concorrência inglesa era diretamente responsável pela situação do comércio na Colônia de Sacra-mento”³¹.

Esta situação favorável ao comércio vinha do fato da Praça Mercantil estar em ótima posição geográfica, o que fazia dela um dos pontos principais das rotas comerciais do atlântico. Porém, segundo Fabrício Prado, mesmo com esta posição estratégica, devido a se posicionar em região de fronteira, “Colônia de Sacramento não constituía um centro de poder”:

Podemos perceber um movimento de parte de alguns dos principais homens de negócio estabelecidos ao longo da primeira metade do século XVIII de mudarem para centros mais estáveis, e onde a vida econômica e social fosse mais ativa e com maior potencial. Enfim, muitos buscavam a proximidade com o poder.³²

Enfim, parece que os comerciantes sediados em Colônia de Sacramento, após acumular capital mercantil suficientemente grande, retiravam-se para os grandes centros econômicos sediados, geralmente, no Rio de Janeiro.

Ao compararmos os Familiares estudados aqui com os de outras regiões da Colônia, percebe-se a mesma tendência de ocupação profissional. Em Minas Gerais, os homens de negócio eram mais de 76% dentre os 436 Familiares do Santo Ofício estudados por Aldair Rodrigues e no Rio de Janeiro, dentre os 29 aos quais Daniela Calainho teve acesso, 23 tinham ocupações com negócios. Mas qual era o interesse dos homens de negócio na Carta de Familiar do Santo Ofício?

Uma resposta pode ser dada por uma das características deste grupo social. Esta profissão estava muito ligada ao estigma da presença dos cristãos-novos. O fato de haver presença cristã-nova entre os comerciantes fazia levantar suspeitas de heresias dentre quaisquer negociantes. Logo, a Carta de Familiar, por realizar uma investigação da linhagem do habilitando, afastava a dúvida de raça infecta entre

³¹ POSSAMAI, Paulo César. Op. cit., p. 11.³² PRADO, Fabrício Pereira. Op. cit., p. 141-142.

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aqueles que a obtinham. Isso pode explicar porque o universo de homens de negócio é tão grande entre os habilitados a familiar. A outra pode ser encontrada pela posição social deste grupo profissional. Os homens de negócio eram a elite econômica colo-nial. No Regimento Inquisitorial, quando são apresentados os requisitos para se habi-litar familiar, constava que os candidatos deviam ter cabedais suficientes para viverem abastadamente. Além disso, as custas do processo eram onerosas aos habilitandos, sendo necessário um depósito em dinheiro para custear as diligências para averigua-ção da limpeza de sangue e, logo que habilitados, deviam oferecer doações aos cofres inquisitoriais.³³ Além disso, os privilégios concedidos aos Familiares do Santo Ofício pareciam atrair os negociantes: dentre eles a isenção de impostos e o porte de armas. Para Daniela Calainho, este último vinha a qualificar o ofício dos comerciantes, pois uma de suas características era a grande movimentação entre as regiões:

O ofício de negociante ou mercador tinha por característica o trânsito cons-tante por muitos lugares e o contato freqüente com muitas pessoas. O privilégio do porte de armas aos Familiares era importantíssimo, mediante os perigos que a atividade comercial envolvia.34

Ainda segundo Calainho a mobilidade dos homens de negócio pode ter in-fluenciado o Santo Ofício a recrutar este grupo profissional, pois, devido a sua cons-tante movimentação pelas capitanias, seria possível um controle de diversas localida-des, observando os desvios e atos suspeitos.

Como foi dito, para se tornar Familiar era necessário possuir cabedais sufi-cientes para viver abastadamente. Dos familiares aos quais obtive informação de seus cabedais, no caso 10, metade chegava à quantia de 12 contos de réis. A outra metade se dividia entre os que tinham até quatro contos de réis – Antônio de Aze-vedo e Souza e João Roiz de Carvalho – e os de riqueza até os oito contos de réis – Antônio Fernandes Pereira, Simão da Silva Guimarães e Pedro de Almeida Cardoso.

Observando-se os cabedais dos Familiares de Minas Gerais e Rio de Janeiro, tem-se o seguinte: para o caso de Mariana estudado por Aldair Rodrigues, dos 111 familiares, 33 deles tinham fortuna até quatro contos de réis; e no Rio de Janeiro, segundo Calainho, nove de seus 29 habilitados possuíam riqueza no mesmo patamar que os mineiros. Logo, ao se realizar uma comparação entre as regiões, percebe-se uma pequena vantagem nos de Colônia de Sacramento, pois metade estava com riqueza estimada acima dos quatro contos de réis, igualando-se aos grandes homens de negócio cariocas.

³³ CALAINHO, Daniela Buono. Agentes da Fé. Op. cit., p. 97.34 Ibidem, p. 98.

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Tabela n° 5: Cabedais dos Familiares do Santo Ofício em Colônia de Sacra-mento em cruzados

FONTE: KÜHN, F. Gente da fronteira: família, sociedade e poder no sul da América portuguesa: século XViii. 2006. Tese (Doutorado em História)-UFF, Niterói, 2006, p. 345.

Por fim, resta citar o caso do Familiar do Santo Ofício Pedro de Almeida Cardoso. Sua habilitação é um caso em que os candidatos possuíam parentesco com outros agentes inquisitoriais. Nascido em Colônia de Sacramento, e filho de pais que foram povoar a Praça Mercantil, Pedro fez sua petição ao Conselho Inquisitorial em 1754. Suas inquirições para atestar a sua limpeza de sangue e capacidade foram realizadas no Rio de Janeiro pelo comissário Francisco Fernandes Simões, o qual afirmou os motivos de não as terem feito em Colônia de Sacramento:

Fiz esta diligência nesta Cidade, tanto por não ser fácil a Comissão dela para a Praça da Colônia, por me não ocorrer sujeito a quem encarregar, não sendo ao Vigário dela, como por saber haviam (sic) aqui pessoas que podiam depor com co-nhecimento e verdade, como as que inquiri, as quais assistiram na mesma terra com negócio e vieram de próximo, e me persuado juraram verdade, pelas boas notícias que de antes tinha do habilitando[...]35

Este poderia ser apenas mais um caso bem sucedido de Habilitação do Santo Oficio, não fosse uma peculiaridade. Pedro de Almeida Cardoso tinha dois irmãos eclesiásticos, os quais se habilitaram como Comissários do Santo Ofício: João de Almeida Cardoso e Joaquim de Almeida Cardoso. No processo de habilitação de Pedro, há informações acerca da data em que João tenha sido habilitado Comissário:

35 ANTT, HSO, Mç. 31, proc. 551.

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Certifico que [no] livro 16 da criação dos Ministros e oficiais desta Inquisição de Lisboa, nela a fl. 130 se acha cópia de uma Provisão [...], passada em 11 de abril deste ano, pela qual consta haverem os ditos senhores criado Comissário do Santo Ofício desta Inquisição de Lisboa ao Padre João de Almeida Cardoso, Vigário Co-lado na Igreja Matriz da Praça da Nova Colônia de Sacramento, bispado do Rio de Janeiro[...]36

Esta informação anexada ao processo de Pedro é datada de 1755, ou seja, data de habilitação de João como Comissário do Santo Ofício.37 O caso dos Comissários do Santo Ofício eram outros agentes inquisitoriais que serviam nos locais de sua residência, porém, ao contrário dos Familiares, deveriam ser do corpo eclesiástico. Dentre outras atribuições, eram eles que conduziam as inquisições sobre a capa-cidade e limpeza de sangue nos Processos de Habilitação dos Familiares. João de Almeida Cardoso foi o responsável pelas diligências de quase todos os Familiares do Santo Ofício encontrados em Colônia de Sacramento: João Borges de Freitas (1747); João Francisco Vianna (1753); Tomé Barbosa (1754); Manuel Lopes Marinho (1756); Luiza Máxima Sarmento, mulher do Familiar Antônio Fernandes Pereira (1759); Antônio Ribeiro de Moraes (1768); Bartolomeu Cesário Nogueira (1769) e Antônio Pereira Gonçalves (1773). Já seu irmão Joaquim não aparece em nenhuma diligência dos Familiares encontrados em Colônia de Sacramento. Observando-se as datas das diligências realizadas por João, percebe-se que três delas se deram antes de sua habilitação como Comissário em 1755. Esse dado é importante para atestar as relações de reciprocidade entre a Inquisição e as autoridades eclesiásticas locais, pois mesmo antes de se tornar um agente inquisitorial, João já prestava serviços ao tribunal lisboeta.38

É possível deduzir que foi estratégia da família Almeida Cardoso, ingressar no quadro inquisitorial. No caso dos Irmãos Joaquim e João, por fazerem parte do corpo eclesiástico, a sua alternativa foi habilitarem-se Comissários do Santo Ofício, sendo responsáveis pelas diligências e pareceres acerca dos candidatos a Familiar. Já Pedro, por não ser padre e atuar como homem de negócio, restou-lhe o meio que lhe cabia, assim como geralmente ocorria aos seus colegas de profissão: habilitar-se Familiar do Santo Ofício.

36 ANTT, HSO, Mç. 31, proc. 551.37 Até o momento não foi possível o acesso aos processos de habilitação a Comissários dos Irmãos Cardoso. Porém se sabe que Joaquim se tornou Comissário em 1769.38 Sobre a ligação da Inquisição e a estrutura eclesiástica local ver: FEITLER, Bruno. Poder episcopal e ação inquisi-torial no Brasil. In: VAINFAS, Ronaldo, FEITLER, Bruno e LIMA, Lana L. G. (Orgs.). A inquisição em Xeque: temas, controvérsias e estudos de caso. Rio de Janeiro: Eduerj, 2006.

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Familiares do Santo Ofício tinham importância para o funcionamento da ati-vidade inquisitorial. Por circularem na sociedade, exercendo suas atividades profis-sionais, serviam de olhos para o Tribunal de Lisboa. Como foi possível identificar, estes agentes inquisitoriais em tinham origem portuguesa, atuação no ramo mercan-til e cabedais em torno de 12 contos de réis. Estes se assemelhavam com seus colegas inquisitoriais das outras capitanias da América Portuguesa, em relação a sua profis-são e naturalidade, assim como na sua fortuna. Essas suas características os colocam como pessoas de destaque entre a sociedade presente em Colônia de Sacramento.

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BIBLIOGRAFIA

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FONTES

Arquivo Nacional da Torre do TomboInquisição de LisboaHabilitações do Santo Ofício:Antônio de Azevedo e Sousa (1758, Mç. 129, Proc. 2167)Antônio Fernandes Pereira (1753, Mç. 117, Proc. 2021)Antônio Pereira Gonçalves ( 1776, Mç. 188, Proc. 2783)Antônio Ribeiro de Moras (1768, Mç. 163, Proc. 2546)Bartolomeu Cesário Nogueira (1772, Mç. 6, Proc. 105)Brás Batista de Castro (1754, Mç. 4, Proc. 61)Eusébio de Araújo Faria (1757, Mç. 1, Proc. 11)João Borges de Freitas (1749, Mç. 91, Proc. 1562)João da Costa Quintão (1738, Mç. 72, Proc. 1331)João Francisco Viana (1772, Mç, 153, Proc. 2229)João Roiz de Carvalho (1758, Mç. 109, Proc. 1776)Manuel Lopes Marinho (1757, Mç. 169, Proc. 1790)Pedro de Almeida Cardoso (1755, Mç. 31, Proc. 551)Silvestre Ferreira da Silva (1741, Mç. 2, Proc. 21)Simão da Silva Guimarães (1755, Mç. 10, Proc. 158)Tomé Barbosa (1760, Mç. 5, Proc. 74)

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ERRATA

GOMES, Luciano Costa; Estrutura etária e de gênero da população cativa e estrutu-ra de posse de escravos em Porto Alegre, a partir do rol de confessados de 1782. In: APERS. VII Mostra de Pesquisa do Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Corag, 2009. p. 243-262

1) p. 251, tabela 4

Tabela 4 - Distribuição da propriedade de escravos entre fogos escravistas por faixas de tamanho de plantel*

Referências: SCHWARTZ, 1988, p. 374; LUNA, 1982, p. 38s; e GUTIÉRREZ, 1991, p. 310.Fonte: Rol de Confessados de Porto Alegre – 1782. AHCMPA

2) p. 255, linha 16: quando se lê “mediana em 463”, o certo é “mediana em 46”.