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Vigilância e Poder

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Vigilância e Poder

Catarina Frois

Vigilância e Poder

LISBOA, 2011

© Catarina Frois, 2011

Catarina FroisVigilância e Poder

Primeira edição: Outubro de 2011Tiragem: 500 exemplares

ISBN: 978-989-8536-01-3Depósito legal:

Composição em caracteres Palatino, corpo 10Concepção gráfica e composição: Lina CardosoCapa: Nuno FonsecaRevisão de texto: Manuel CoelhoImpressão e acabamentos: Publidisa, Espanha

Este livro foi objecto de avaliação científica

Reservados todos os direitos para a língua portuguesa,de acordo com a legislação em vigor, por Editora Mundos Sociais

Editora Mundos Sociais, CIES, ISCTE-IUL, Av. das Forças Armadas,1649-026 LisboaTel.: (+351) 217 903 238Fax: (+351) 217 940 074E-mail: [email protected]: http://mundossociais.com

Índice

Índice de figuras e quadros.................................................. viiAgradecimentos ................................................................. ixPrefácio ················································································ xi

Introdução ......................................................................... 3Apresentação da obra...................................................... 9

1 Estudar a “vigilância”..................................................... 13Michel Foucault e o “panóptico”................................... 16O retrato europeu da videovigilância........................... 20Vigilância em Portugal .................................................... 26

2 O Programa Nacional de Videovigilância ................. 31Videovigilância na Zona Histórica do Porto ............... 42Videovigilância em Lisboa: a Baixa Pombalina .......... 48A protecção de milhares.................................................. 51

3 As vicissitudes de um projecto tecnológico .............. 65A Comissão Nacional de Protecção de Dados............. 67As forças de segurança.................................................... 73Forças políticas e lógicas partidárias ............................ 80

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A opinião pública e os meios de comunicação social 84

4 Medo-política-economia ................................................ 101Barómetros da (in)segurança ......................................... 108

Conclusão

Videovigilância: controlar e/ou proteger? ................... 117

AnexoDeclaração da Comissão Nacional de Protecçãode Dados............................................................................ 131

Referências bibliográficas............................................. 135

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Índice de figuras e quadros

Figuras

2.1 Câmara tubular (fotografia da autora) ......................... 33

2.2 Câmara speed dome (fotografia da autora) .................... 34

2.3 Sala de controlo e monitorização, Guarda NacionalRepublicana, Posto Territorial de Fátima,Destacamento de Tomar (imagem cedida pelaGuarda Nacional Republicana)...................................... 35

2.4 Sala de controlo e monitorização, Polícia de SegurançaPública, Ribeira do Porto (imagem cedida pelaPolícia de Segurança Pública) ........................................ 36

Quadro

2.1 Decisões dos projectos de videovigilância requeridosentre 2005 e 2010............................................................... 40

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Prefácio

Vigilância e Poder é uma investigação sobre a história davideovigilância no espaço público em Portugal: os avanços eos recuos, as indefinições e as solicitações que a implementa-ção desta tecnologia de vigilância tem conhecido. Represen-ta, neste sentido, um contributo para um debate que se encon-tra em grande parte por fazer, não só na esfera política mastambém nas ciências sociais. Mas a investigação não se limi-tou a descrever e analisar as vicissitudes do processo de im-plementação. É também uma reflexão sobre os horizontes eos limites das tecnologias de vigilância, sobre as relações como poder e o controlo nas sociedades. Uma reflexão que temcomo pano de fundo o medo do crime e a insegurança queatormentam os cidadãos e preocupam os poderes públicos.A reflexão sobre a videovigilância conduz a que nos interro-guemos sobre as políticas de segurança e o lugar que as tecno-logias de vigilância nelas ocupam.

O debate sobre a videovigilância centra-se normalmenteem torno de dois pólos. Num deles, estão os que consideramque a videovigilância é mais do que o amigável “olho do céu”,preocupando-se sobretudo com o facto de a liberdade dos indi-víduos poder ser posta em causa, ou pelo menos afectada, porintrusões não autorizadas e não controladas no seu território ín-timo. Argumentam que o escrutínio das câmaras não pode ser

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contestado por quem é alvo dele, nem os motivos de quem esobre o que monitoriza, nem ainda o destino das imagens gra-vadas. A vigilância instaurada pela videovigilância é completa-mente distinta das interacções entre sujeitos que momentanea-mente se observam no espaço público. Nesta situação os indiví-duos podem reagir, mais não seja por afastamento. Nada dissoocorre com a videovigilância. O sujeito muitas vezes não sabeque é observado, monitorizado, porventura comentado, pelo quenão pode esboçar qualquer reacção de protecção ou de resistência.O sujeito passa a constituir um registo numa qualquer base de da-dos da qual não tem conhecimento, sem qualquer garantia de quedesse registo não resultem consequências imprevisíveis.

Do outro lado, a argumentação traduz a preocupação securi-tária. O medo do crime e a insegurança instalaram-se um poucopor todo o lado, mas sobretudo nos grandes espaços urbanos.O esvaziamento do espaço público, sobretudo à noite, a preferên-cia pelas deslocações em viatura própria em detrimento das des-locações pedestres ou em transporte colectivo, o declínio do con-trolo social informal são algumas das razões que contribuírampara tornar a insegurança uma das inquietações existenciais davida moderna. Os apelos securitários fazem-se sentir nas ruas,nas escolas, nos espaços residenciais. Primeiramente, reclaman-do a protecção da integridade física de si próprio e dos familia-res; em segundo lugar, protecção dos bens patrimoniais em rela-ção à criminalidade predadora. Perante estas preocupações, osreceios, certamente legítimos, em relação à videovigilância sãominimizados, sobretudo tendo em conta que poderão ser contor-nados, se não no todo pelo menos em grande parte, através de ga-rantias e de mecanismos de controlo.

Se para uns o olhar vigilante se revela poderoso e ameaça-dor, para outros é a melhor forma de devolver a segurançaperdida, sem a qual não se pode assegurar a liberdade indivi-dual. O debate sobre a videovigilância reintroduz noutra es-cala o dilema entre a liberdade e a segurança, que está tam-bém no cerne de outros fenómenos, como o terrorismo, que

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afectam igualmente as sociedades. O debate sobre a videovi-gilância tende por vezes para uma excessiva polarização,caracterizada por uma divisão entre posições políticas e as re-acções emocionais que suscitam. Há pouco a ganhar se a divi-são entre as reservas de uns e o entusiasmo de outros não forultrapassada. O debate sobre a videovigilância precisa deequacionar, por um lado, as garantias e direitos colectivos eindividuais e, por outro, os equilíbrios e compromissos queentre eles devem existir. É esse edifício que é necessário co-lectivamente construir.

Vigilância e Poder é também uma reflexão sobre os dispositi-vos tecnológicos de vigilância. Estes dispositivos de vigilânciasão também dispositivos de controlo e de monitorização. Elesespalham-se cada vez mais nos meandros da vida quotidiana.Desde os dispositivos médicos controlados cada vez mais à dis-tância até ao controlo do trânsito das cidades, passando aindapela vigilância das nossas casas ou dos filhos nas escolas. A vi-deovigilância é um dispositivo de controlo social que, de certomodo, se sobrepõe, ou que pretende substituir-se, ao controlodébil das redes informais de sociabilidade. O esvaziamento doespaço social leva a que este seja preenchido pela presença vir-tual, comandada à distância, como forma de devolver um senti-do de segurança que contrarie ou anule o sentimento de isola-mento social. A videovigilância faz acreditar na possibilidadede impor um controlo sobre o espaço e os indivíduos que nele seencontram. Nesta perspectiva, mais não seria do que um dispo-sitivo disciplinador que visaria o ajustamento dos indivíduos aregras colectivas que, na ausência de mecanismos operacionaisde controlo informal, apenas poderia ser regulado por mecanis-mos coercivos e vigilantes.

Aideia de que tudo pode ser registado, de que é possível re-constituir os factos ocorridos sem testemunhas com base emimagens gravadas, de que há sempre alguém vigilante e prontoa dar o alarme em caso de perigo ou ameaça contribui, sem dú-vida, para tornar a videovigilância atractiva aos olhos dos que

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sentem a insegurança como um dos principais problemas que asociedade enfrenta. Desde logo, os cidadãos, para quem a inse-gurança é vivida como uma inquietação e ameaça ao seu modode vida. As estatísticas criminais, apresentadas muitas vezescomo mais ou menos tranquilas em termos de comparações in-ternacionais ou com o passado recente pelos responsáveis polí-ticos da área da segurança, são incapazes de anular o medo queos cidadãos experimentam perante o esvaziamento da vida ur-bana, o declínio das redes informais, o sentimento de desconfi-ança perante o outro, visto cada vez mais como um estranho,quer por causa das rotas da imigração, quer devido à exclusãoque a crise económica acentua. Mas também desconfiança pe-rante um Estado cada vez mais ausente da vida social e menoscapaz de proporcionar e assegurar a protecção aos cidadãos.A segurança é apenas mais um dos domínios em que se reflecteo declínio da intervenção do Estado.

Mas, contrariamente a outras áreas de intervenção, a segu-rança faz parte das funções essenciais que legitimam a sua exis-tência. O Estado não pode abandonar a segurança sem se negara si próprio. Por isso é urgente devolver um sentimento de segu-rança aos cidadãos. Face a constrangimentos orçamentais cres-centes, que limitam as opções possíveis, a videovigilância surgecomo uma alternativa, porventura menos onerosa, para resta-belecer uma ordem que muitos vêem como ameaçada. A derra-deira possibilidade de reforçar a visibilidade do Estado no es-paço público, mesmo que de forma virtual e à distância.

Apesar desta crença, a investigação que sustenta o livromostra as ilusões que estão associadas ao processo da videovi-gilância, à sua suposta eficácia enquanto dispositivo dissuasorda criminalidade. Sem entrar nas dificuldades técnicas, opera-cionais e orçamentais que as tecnologias de vigilância impli-cam, basta referir que a monitorização de certos espaços podeapenas conduzir a alterações no modus operandi criminal ou àdeslocação da criminalidade para áreas adjacentes, sem resol-ver os problemas de fundo. Aliás, a distinção feita por Foucault

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entre dispositivos disciplinadores, nos quais as tecnologias devigilância se podem incluir, e de segurança indicia as limitaçõesda vigilância em termos de controlo da criminalidade. Enquan-to os primeiros procuram exercer uma acção externa sobre oscorpos para que estes tenham uma conduta socialmente ade-quada, os segundos procuram articular diferentes mecanismosque intervêm no funcionamento da realidade de forma a obterum efeito socialmente desejável. Por outras palavras, a acção devigilância terá sempre efeitos bastante limitados por não afectaras causas da criminalidade nem os mecanismos que permitemmantê-la sob controlo.

Apesar das objecções que coloca à sua eficácia dissuasora, ainvestigação chama a atenção para o facto de a proposta da vi-deovigilância poder constituir um mecanismo eficaz na econo-mia do discurso securitário e representar uma resposta políticaàs inquietações dos cidadãos. A videovigilância cria a sensaçãodo espaço vigiado, por conseguinte seguro, e mesmo que essavigilância seja exercida à distância não deixa de devolver umcerto sentimento de controlo. Face às pressões dos cidadãos,pouco importa que a segurança proporcionada pela videovigi-lância seja largamente ilusória, desde que diminua o sentimen-to de insegurança e reforce a convicção da capacidade de inter-venção do Estado.

Ainda que procure desmontar as ilusões do discurso secu-ritário e as respostas políticas que lhe estão subjacentes, a inves-tigação preocupa-se sobretudo em identificar as condições soci-ais e políticas que sustentam as propostas da videovigilância.Neste sentido, identifica e explora as motivações dos agentes, assituações que justificam os mecanismos de vigilância, os objec-tivos que são visados, além da argumentação que sustenta a vi-deovigilância enquanto mecanismo eficaz de prevenção da cri-minalidade, em nome da qual se compensariam ou se minimi-zariam os riscos que poderão advir à liberdade e privacidadedos cidadãos. Recusando qualquer posição maniqueísta, a au-tora analisa os argumentos expostos no sentido de justificar as

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medidas de videovigilância nos três casos estudados e as objec-ções que são colocadas para indeferir ou restringir as soluçõespropostas por parte da Comissão Nacional de Protecção de Da-dos. Mais do que avaliar a “justeza” das posições em causa, a in-vestigação realizada procura evidenciar as lógicas sociais queinfluenciam o compromisso que urge estabelecer entre a segu-rança e a liberdade em Portugal.

Pedro Moura Ferreira

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Os olhos da nossa memória vêem melhor que os nossos.Almada Negreiros, Nome de Guerra

Para se distrair, trouxe à baila uma consideração. Filosófi-ca? Talvez sim, mas pertencente ao universo do pensamen-to débil, do pensamento extenuado. A essa consideraçãodeu até um título: “A civilização de hoje e o ritual de aces-so”. O que é que aquilo queria dizer? Queria dizer que hojeem dia, para entrar um local qualquer – um aeroporto, umbanco, uma joalharia, uma relojoaria – é preciso subme-ter-se a um especial ritual de controlo. Porquê ritual? Por-que, concretamente, não serve para nada: um ladrão, umsequestrador de aviões, um terrorista – se quiserem entrar,entram na mesma. O ritual tão-pouco serve para protegerquem se encontra do outro lado do acesso. Mas para queserve, então? Serve precisamente para quem está a entrar,para lhe dar a entender que, uma vez lá dentro, poderá sen-tir-se seguro.Andrea Camilleri, A Lua de Papel

Introdução

Este livro procura colmatar uma lacuna no panorama portu-guês no que respeita ao estudo e análise do uso de sistemas devideovigilância na via pública. Não há em Portugal, até ao mo-mento, uma discussão aprofundada sobre o aumento de dispo-sitivos tecnológicos de vigilância, nem um debate informado econcertado por parte de decisores políticos e de todos aquelesque directamente intervêm e se ocupam destas matérias. Estaausência determina um outro factor de suma importância: o daconsciência pública do exercício da cidadania.

Ao longo de uma investigação qualitativa com trabalho em-pírico de longa duração, o cientista social tem acesso a inúmerosmateriais, faz entrevistas e discute com vários actores sociais,acompanhando de perto uma determinada realidade. Foi-mepedido em diversas ocasiões que explicasse como se operava avideovigilância nas várias cidades onde está em funcionamen-to, que interpretasse pareceres e legislação, que fizesse reco-mendações e sugestões de como as diversas entidades deveri-am actuar. Estes pedidos demonstravam, em meu entender, avontade de saber mais e de aprender o que fazer e como. De-monstravam ainda a importância de uma voz sem conotaçõespartidárias ou corporativas, que oferecesse um conhecimentoabrangente sobre o assunto. É neste quadro que surge este livro,que procura estimular o debate sobre uma temática cada vez

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mais transversal e pertinente na actualidade, com implicaçõespolíticas, sociais e culturais que urge conhecer. Seguindo esteraciocínio, procura-se assumir como o início de um debate, e aprincipal preocupação na escrita deste curto ensaio foi a de pro-duzir um documento informado e simultaneamente acessível aum público alargado, reconhecendo à partida algumas limita-ções teóricas e analíticas que se lhe possam imputar.

Tomando como exemplo o caso português, em que a video-vigilância na via pública só muito recentemente começou a ope-rar — aprovada a lei em 2005, a primeira instalação aconteceapenas em 2009 —, este livro identifica e discute os meandrospolíticos subjacentes ao uso desta tecnologia de vigilância emonitorização de espaços públicos. Enquanto parte de umprograma governamental que surge num regime de excepçãoaquando da realização do Campeonato Europeu de Futebol emPortugal em 2004, a sua utilização a nível nacional tem sido pau-tada pela divergência, pelos silêncios e contradições entre osprincipais intervenientes de que depende.

Ao longo de um estudo de três anos (2007-2010) e abrangen-do as cidades de Lisboa, Porto, Coimbra, Loures, Amadora e Fá-tima, realizei mais de 50 entrevistas a cidadãos, membros dasforças de segurança (Polícia de Segurança Pública e Guarda Na-cional Republicana), membros de associações de comerciantes,representantes dos vários quadrantes políticos implicados noPrograma Nacional de Videovigilância, deputados pertencen-tes à Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberda-des e Garantias, membros do Ministério da AdministraçãoInterna e da Comissão Nacional de Protecção de Dados. Procediainda ao estudo da legislação e pareceres produzidos durante operíodo de 2005 a 2010, bem como à análise de notícias divulga-das em jornais de grande tiragem diária a nível nacional (Públi-co, Jornal de Notícias e Diário de Notícias). Nem todos os dados se-rão discutidos de forma exaustiva, mas todos contribuíram emgrande medida para o conhecimento que fui construindo emtorno da temática.

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Importa referir que uma das surpresas que tive no decorrerda investigação — e que revelou ser um aspecto a ter em conside-ração em termos metodológicos e deontológicos — esteve rela-cionada com os meus próprios preconceitos face ao terreno queia estudar e aos interlocutores com quem iria lidar. Partia do prin-cípio que seria difícil aceder aos políticos envolvidos, que seescudariam na falta de tempo ou que reproduziriam o mesmodiscurso transmitido nos meios de comunicação social. Na Co-missão Nacional de Protecção de Dados, temia que me fosse ne-gada a consulta dos processos e, por fim, junto da Polícia de Se-gurança Pública e da Guarda Nacional Republicana, presumiaque estas grandes corporações iriam fechar-se sobre si próprias,impossibilitando o diálogo. A realidade foi bem diferente. Todosaqueles com quem contactei foram de uma abertura e generosi-dade sem paralelo. Em termos éticos, essa mesma abertura reve-lou ser problemática. Ao contrário do que inicialmente supunha,nem sempre havia consenso sobre a matéria, o que obrigava auma maior cautela no diálogo, bem como na publicação e divul-gação deste estudo. Sem pôr em causa a investigação ou os seusresultados, havia que gerir a informação sem comprometer to-dos aqueles que tão prontamente colaboraram.1

***

O que interessa sublinhar desde já é que ao pensarmos sobrevideovigilância na via pública, uma questão vasta e com impli-

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1 Gledhill explica bem as especificidades inerentes ao trabalho do antropólogo emcontextos políticos, ao salientar que este é conduzido mediante interacções presen-ciais, isto é, que produzem uma análise que visa “representar” pessoas — na suavertente qualitativa — mais do que ser apenas “representativa” — em termos quan-titativos. Tal não significa que o antropólogo se torne necessariamente um actor po-lítico, mas impõe que haja uma maior cautela no que se escreve e como se escreve(Gledhill, 2000 [1994]: 216). Kate Gardner e David Lewis (1996) problematizam o pa-pel do antropólogo junto das esferas de poder, nomeadamente enquanto consulto-res, sendo esta uma temática que muito tem vindo a ser debatida na última década,com o recrutamento de antropólogos para zonas de guerra como o Afeganistão ou oIraque (González, 2007; 2008).

cações nas esferas sociais e políticas (conflituando por vezescom direitos e liberdades civis), estamos perante um caso de es-tudo que traz uma nova perspectiva aos debates actuais sobre atemática. E esta nova perspectiva relaciona-se não só com as es-pecificidades de uma abordagem teórica e disciplinar da antro-pologia, até agora ausente na produção científica nesta área deestudos, mas também com uma observação de perto do modocomo um modelo de segurança de pessoas e bens e de combate àcriminalidade cumpre ou não as funções para as quais foi pen-sado e quais os diferentes meandros implicados nesse mesmoprocesso.

Assim sendo, podemos perguntar-nos: o que nos ofereceuma observação sobre práticas de vigilância num país periféri-co como Portugal? Que especificidades encontramos na im-plementação de políticas de segurança com recurso à tecnolo-gia relativamente a outros países europeus onde dinâmicassemelhantes se verificam, nalguns casos até com maior expres-são e relevância?

O que veremos ao longo das páginas que se seguem éque a propósito de videovigilância na via pública estamos, porum lado, a falar de políticas de combate à criminalidade e, poroutro lado, estamos também a falar de política strictu senso,aqui entendida como algo que se concretiza a partir do mo-mento em que é divulgado mas a que nem sempre correspon-de uma continuidade efectiva. O que aprendemos nós aoobservar como vigilância e poder se aliam numa proposta par-ticular? Aprendemos sobre o modo de fazer política, as formasde interacção entre instituições, a existência de alianças entreinteresses políticos e económicos; o modo como as leis, osdireitos e liberdades são entendidos e equacionados de formasdiferenciadas pelos vários interlocutores.

No que respeita à videovigilância na via pública, podemosfacilmente reconhecer a sua disseminação na maioria das gran-des cidades europeias, sendo de assinalar o exemplo britânicocomo o seu expoente máximo, mas não devemos presumir que

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tem o mesmo impacto, importância e características em todosos locais e países onde está em operação. Estando a generali-zar-se, existem variações nos estádios de implementação, querentre países quer dentro de um mesmo país, que trazem à su-perfície questões pertinentes numa análise socioantropológicado fenómeno. São estas mesmas particularidades que se procu-ra escrutinar. Para tal, segue-se uma narrativa temporalmentesituada entre os anos de 2005 e 2010, reconstituindo os passosdo que é hoje a realidade portuguesa no que respeita ao uso decâmaras de vigilância na via pública. Essa perspectiva cronoló-gica permitirá identificar de forma concisa alguns dos princi-pais pressupostos no que respeita ao uso de dispositivos devigilância, já que estes visam, ou assim se defende política e me-diaticamente, conferir segurança a Estados, regiões e cidadãos,combater a criminalidade de forma mais eficaz e reduzir o sen-timento de insegurança. Ao longo das páginas que se seguem fi-cará explícito que este não é, como presumia, um processo pací-fico e linear, mas antes uma iniciativa que, tal como em tantosoutros países, obedece a dinâmicas em que se conjugam interes-ses políticos, económicos e mesmo legislativos que por diversasvezes se opõem e contradizem.

Na sua abordagem teórica, este livro inscreve-se na antropo-logia política (Ferguson, 1994; 2006; Li, 2007; Spencer, 2007; Inda,2006), apoiando-se na sociologia, na ciência política e na história(Rosanvallon, 2008; Rose, 2008 [1999]). No que respeita à antro-pologia política, os principais trabalhos em que esta pesquisa seancorou foram aqueles levados a cabo em países em desenvolvi-mento e em países não europeus, nomeadamente por JamesFerguson, com The Anti-Politics Machine (1994), decorrido nocontinente africano, e The Will to Improve de Tania Murray Li(2007), sobre a Indonésia. A razão para o enquadramento episte-mológico em trabalhos que apresentam contextos aparentementetão diferenciados e, para além disso, em países cujo grau de “de-senvolvimento” é também à primeira vista tão contrastante com ocaso português, na Europa, justifica-se tanto por se centrarem em

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programas e iniciativas governamentais, como pelo facto de sali-entarem as fragilidades dessas mesmas iniciativas, os insucessosface aos objectivos propostos e, por fim, os resultados que, embo-ra não esperados, se revelaram frutuosos.

De certa forma pareceria mais lógico analisar o projectoportuguês circunscrito ao contexto europeu, e sobretudo aoconsiderarmos o fenómeno da videovigilância. Porém, o queaqui nos interessa tem a ver com a leitura e interpretação deum projecto governamental, a sua aplicabilidade, intenções evicissitudes independentemente de uma noção apriorística do“campo” (e aqui uso campo na sua acepção mais abrangentepossível) onde nos situamos. Estes serão temas exploradosmais adiante no capítulo 3, ao considerarmos as “vicissitudesdo projecto tecnológico”. O caso explorado por Ferguson de-monstra-se relevante téorica e empiricamente na medida emque, independentemente de estarmos a considerar Portugalou o Lesoto, a Europa ou a África, estarmos a pensar em pro-jectos que são influenciados, financiados ou apoiados por mo-delos e entidades externas. No caso português, os projectos devideovigilância na via pública são quase sempre referidos to-mando como exemplo comparativo a “Europa”, as outras“grandes cidades europeias”, e tal é tanto mais notório quan-do observamos nos relatos feitos por várias das pessoas queparticipam na elaboração das propostas que “foram manda-dos vir especialistas de fora” (do país); quando se comparamzonas das cidades portuguesas (sobretudo de diversão noctur-na) com o Red Light District em Amesterdão; ou mesmo, ao ní-vel de financiamento, quando se refere a “videovigilância daBaixa [de Lisboa] financiada com fundos europeus”,2 fazendosobressair um alegado apoio europeu, em tudo conotado coma “modernização”.

Em termos metodológicos, este trabalho assenta numapesquisa multi-situada, que considera programas, práticas,

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2 Diário de Notícias, 20 de Dezembro de 2007.

discursos e legislação para informar um estudo interpretativoe comparativo (Melhuus, Mitchell e Wulff, 2010; Lima e Sarró,2006; Pina Cabral 1991; 2006). Para alguns colegas de outrasáreas disciplinares, habituados a trabalhar com inquéritoscuja representatividade a larga escala ascende a centenas deinterlocutores, ensaios como este podem ser consideradossubjectivos ou parciais. Todavia, a grande mais-valia do méto-do antropológico não reside no aspecto quantitativo, passívelde ser traduzido em tabelas ou estatísticas e que se preste a ge-neralizações abrangentes, mas sim na abordagem qualitativa,in loco. É a aliança da capacidade de obter, analisar e interpre-tar dados quantitativos e objectivos com esta outra componen-te qualitativa, e que é parte integrante de um discurso elabora-do e consolidado, que melhor nos permite conhecer e avaliar arealidade considerada.

Apresentação da obra

Este livro foca a videovigilância na via pública, mas não se limi-ta a esta área, antes tomando-a como ponto de partida paraquestões mais complexas da vida social, política e económica.Neste sentido, partindo de uma observação detalhada de políti-cas e da implementação efectiva de videovigilância na via pú-blica em Portugal, será possível verificar como discurso e práti-ca têm variantes e interpretações que em muito ultrapassam asnoções mais alargadas do que são a privacidade, a segurança, acriminalidade, questionando o papel que o Estado assume nestasmatérias, bem como as expectativas dos cidadãos.

No capítulo 1, considera-se o tema da vigilância enquantoárea de estudos que tem vindo a ganhar terreno nas ciênciassociais ao longo da última década, nomeadamente após o 11 de Se-tembro de 2001. São também apresentadas algumas das principaislinhas teóricas seguidas por Michel Foucault na sua discussão do“panóptico” e a influência do seu pensamento na interpretação

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das capacidades e potencialidades das modernas câmaras de vigi-lância. Traçando em linhas gerais o modo como os sistemas de vi-deovigilância em locais semipúblicos e na via pública têm vindo aganhar expressão por toda a Europa, este capítulo apresenta su-mariamente o contexto português, sobretudo no período pós-25de Abril de 1974.

No capítulo 2 distinguem-se dois momentos: num primeiromomento, é apresentada a Lei n.º 1/2005, que vem permitir o usode videovigilância em “locais públicos de utilização comum” apartir de 2005. Dentro desse quadro, considera-se ainda a inicia-tiva governamental, lançada em 2007, intitulada Programa Naci-onal de Videovigilância. Estas duas propostas governamentaispermitem-nos situar o quadro legal e político em que se insereeste projecto de reforço tecnológico da segurança. Num segundomomento, de cariz mais etnográfico, são descritas em pormenoras fases de elaboração e formulação de dois processos requeren-tes de videovigilância na via pública: o da Zona Histórica da Ri-beira do Porto e o da Baixa Pombalina, em Lisboa. Nesta leitura,ficam bem presentes as especificidades que os dois casos desta-cam, bem como os fundamentos que conduzem a desfechos dife-rentes. Assim, é autorizada a videovigilância na Zona Históricado Porto, embora com limitações; a Baixa Pombalina, pelo con-trário, vê negada essa possibilidade. Para compreender os moti-vos subjacentes a estas decisões por parte da Comissão Nacionalde Protecção de Dados, este capítulo fecha com uma análise com-parativa de processos que visaram a instalação de câmaras de vi-gilância na via pública noutros pontos do país, também eles comdecisões de autorização diferenciadas: a Praia da Rocha (Porti-mão), o Santuário de Fátima, o Bairro Alto (Lisboa) e a vila daBatalha.

O conhecimento aprofundado dos diferentes processos, con-siderando os seus objectivos e propósitos, serve de base para dis-cutir, no capítulo 3, aquelas que considero serem as “vicissitudesde um projecto tecnológico”. Ou seja, para explicar porque é quea decisão de permitir a instalação de videovigilância na via

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pública é distinta consoante os casos, é relevante compreenderquais as posições e os interesses implicados sob uma outra pers-pectiva: a dos seus intervenientes. Recorrendo a uma diversida-de de fontes — a legislação e os pareceres produzidos, as entre-vistas com interlocutores com poder de decisão nestas matérias ea informação transmitida pelos meios de comunicação social — éanalisado o desempenho da Comissão Nacional de Protecção deDados, das forças de segurança e de diversos membros das for-ças políticas, e o impacto da opinião pública sobre este assunto.Ficará claro que, como em tantas outras matérias políticas, es-tá-se longe de um consenso ou da partilha de interesses, bempelo contrário. Estamos perante lógicas de poder diferenciadas esão precisamente estas dinâmicas que tornam o caso portuguêspertinente para pensar a videovigilância na via pública numaperspectiva até agora ausente da produção académica sobre a te-mática, sobretudo a nível europeu.

Dito de outra forma, a falta de concertação e articulação en-tre os vários actores sociais e políticos marca o sucesso oufalhanço de uma proposta de videovigilância na via pública edemonstra inequivocamente várias dimensões deste tipo deiniciativas, ao pôr em causa aquele que numa primeira aborda-gem parece ser um modelo hegemónico de segurança que temvindo a ser seguido um pouco por todo o mundo.

Sobre a temática de que nos iremos ocupar, a da videovigi-lância de pessoas e bens na via pública e sobretudo no espaço ur-bano, vemos colidirem alguns dos principais interesses em causanos Estados democráticos, nomeadamente ao nível dos direitos eliberdades civis, como o direito à imagem, à reserva da vida ínti-ma e da privacidade ou o direito à livre circulação. Ao considerar,no capítulo 4, a equação medo-política-economia, procuro discu-tir como o “medo do crime” ou o “sentimento de insegurança”são, em simultâneo, produtos e produtores de políticas. Isto é,o discurso em torno do “medo” sentido pelas populações oudo combate ao “sentimento de insegurança” está na base dosprincipais argumentos das propostas de videovigilância na via

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pública numa determinada localidade. Contudo, quando anali-samos este fenómeno pormenorizadamente, vemos que estasiniciativas políticas são influenciadas também, e em grande me-dida, por factores económicos e, mais ainda, vemos que o senti-mento de “insegurança”, ou de falta de segurança, assume vari-antes que obedecem mais a uma dinâmica mediática de contágio,do que a uma realidade objectiva.

Na Conclusão, é seguindo os caminhos de uma iniciativagovernamental que visa uma das áreas soberanas da vida hu-mana, a da segurança, que discuto o que subjaz à ideia de “vigi-ar”, quer enquanto acto que visa a protecção, quer enquanto ini-ciativa que visa controlar e restringir. Em que medida é que asegurança é condição essencial da liberdade? Em que medida éque a videovigilância na via pública é um dos garantes para queestas condições se verifiquem no mundo actual, caracterizadopor riscos e ameaças que aparentemente exigem uma actuaçãomais “excepcional”?

Neste sentido, veremos que em Portugal entre 2005 e 2010houve de facto uma intenção e todas as condições para que se vi-essem a instalar câmaras de videovigilância na via pública nasmais diversas localidades. O que não houve foi concertação entreas entidades que deveriam levar esse processo avante, nomeada-mente o Ministério da Administração Interna, seu apoiante; asautarquias e a Polícia de Segurança Pública, seus proponentes; ea Comissão Nacional de Protecção de Dados, avaliadora e autori-dade máxima na decisao final. Este aparente falhanço será aquiconsiderado, não para ilustrar o fracasso de uma medida gover-namental mas observado, pelo contrário, pelo que revela de afir-mação de poder de cada uma destas instituições. E quando faloem poder penso na sua acepção mais ampla: o poder de cada in-terveniente em manter-se fiel aos seus ditames sem contudo dei-xar transparecer publicamente a sua posição; o poder do discur-so político enquanto algo que anuncia sem ter efectivamente deconcretizar.

12 Vigilância e Poder