Vieira, Barros, Lima (2007) Uma abordagem da Psicologia do Trabalho, na presença do trabalho

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    Uma abordagem da Psicologia do Trabalho, na presena do trabalho

    Uma abordagem da Psicologia do Trabalho, na

    presena do trabalho

    (An approach of Work Psychology, in the presence of work)

    Carlos Eduardo Carrusca Vieira

    Vanessa Andrade Barros

    Francisco de Paula Antunes Lima

    Resumo

    O presente artigo discute fundamentos e pressuposiesfreqentemente utilizados como ponto de partida para acompreenso dos fenmenos ligados ao trabalho, que o colocamcomo um mero apndice. Com base na discusso dos conceitosde trabalho prescrito e trabalho real, dos marcos terico-metodolgicos da ergonomia, ergologia e da psicologia materialista,o texto aponta as implicaes problemticas de tais perspectivas e

    apresenta a abordagem da Psicologia do Trabalho, para a qual aexperincia do trabalho real e dos trabalhadores se configura comocategoria central na compreenso da subjetividade, dodesenvolvimento do sujeito e dos processos de sade/doena, comoa concebe Yves Clot. Relata-se aqui a experincia do projeto depesquisa/extenso Conexes de Saberes sobre o Trabalho,realizado na perspectiva metodolgica da Comunidade Cientfica

    Ampliada e do Dispositivo Dinmico a Trs Plos. Discutem-se os fatores que conduzem ao assdio moral, que, analisado sob a

    tica do trabalho real, reconfigurado como assdiopsicossocial.

    Palavras-chave: Trabalho; Psicologia do Trabalho; Ergologia;Ergonomia; Subjetividade.

    Texto recebido em maro/2007 e aprovado para publicao em abril/2007.* Mestre em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais, professor na Pontifcia Universidade Catlica de Minas

    Gerais Unidade So Gabriel, e-mail: [email protected]**

    Doutora em Sociologia pela Universit de Paris VII, professora da Universidade Federal de Minas Gerais, e-mail:[email protected]

    ***Doutor em Ergonomia pela Universit dAix en Provence, professorda Universidade Federal de Minas Gerais, e-mail:[email protected]

    O Processo editorial deste artigo foi acompanhado pelo Editor Responsvel e pelos membros da Comisso Executiva.

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    Carlos Eduardo Carrusca Vieira, Vanessa Andrade Barros, Francisco de Paula Antunes Lima

    Sobre os trabalhos em psicologia do trabalho

    No campo da psicologia, o trabalho tem sido considerado de distintas formas,cada qual reservando-lhe um lugar prprio na determinao dos processos deconstruo dos sujeitos, das sociabilidades e das relaes sociais. Em muitas

    das anlises psicolgicas, observa-se um obscurecimento da funo e daspotencialidades positivas e/ou negativas do trabalho, decorrentes de orientaesmetodolgicas enviesadas, que o relegam a um lugar de apndice.

    Diferentemente das perspectivas tradicionais da psicologia, que assumem aexistncia de uma subjetividade do trabalhador na ausncia de sua prpriaatividade de trabalho, postulando, por conseguinte, a possibilidade de umaanlise da subjetividade dos trabalhadores, sem considerar o que realmentefazem e vivem, a Psicologia do Trabalho oriunda dos estudos de Yves Clot(2006) , tem balizado a subjetividade como o continente escondido daatividade (Clot, 2006), com implicaes fundamentais para a anlise dequestes ligadas ao universo laboral.

    De fato, embora esteja associada ao campo dos processos psquicos, asubjetividade s pode ser apreendida a partir das condies concretas e materiaisde vida, o que define igualmente sua importncia na construo de umaPsicologia do Trabalho, para a qual os sujeitos so ativos e sua experincia

    gerada na vida material. No se trata de um sujeito abstrato, mas concreto, eo trabalho entendido em seu sentido genrico, como expresso da relao doser com a natureza, em sua dupla dimenso: transformar a natureza e, ao mesmotempo, autotransformar-se, como ser que trabalha, por meio da relao com acultura, da identificao com o grupo, da auto-realizao e do sentimento deauto-estima. Em outras palavras, o trabalho se apresenta como elementoconstituinte da essncia humana, da experincia, do saber/aprender fazer decada um.

    Se entendermos o trabalho em sua condio genrico-humana, detransformao da natureza e do prprio homem, deparamo-nos tambm comos processos de subjetivao que so a estabelecidos. Por meio do trabalho, osujeito tem acesso ao reconhecimento de si mesmo e, simultaneamente, pelavia da alteridade, ao inelutvel reconhecimento do outro.

    O que afirmamos que no existe uma subjetividade solta numa instnciaqualquer. Ela s se d como processo, no contexto material, social, histrico,

    objetivo. Entretanto, na perspectiva tradicional, no s os modos desubjetivao, mas tambm o processo sade/doena, bem como as habilidadese os valores, passam a ser alvo de uma anlise, em nossa opinio, equivocada,que reserva ao trabalho a possibilidade de ser, no mximo, o local onde se faz

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    algo e/ou um ambiente de trabalho, o que exclui uma discusso sobre assituaes vividas por aqueles que realizam as atividades laborais.

    Pensa-se igualmente, com base nessa abordagem, ser possvel, na ausnciado trabalho, postular uma anlise da relao entre o trabalhador e o trabalho,

    os valores e as habilidades. A ingenuidade dessa pressuposio produz efeitosnefastos sobre as formas de gesto, que, no desconhecimento/desconsideraodo trabalho, passam a sugerir que o trabalhador pode vir a ser mero executantede um rol de protocolos e de prescries.

    Assim, essa perspectiva incorre em anlises e concluses problemticas. Amera descrio de uma funo no equivale quilo que realmente feito pelotrabalhador para alcanar os objetivos determinados. Alis, a ergonomia temsistematicamente demonstrado a necessidade de balizar a anlise do trabalho

    atravs da premissa de uma distncia inelutvel entre um conjunto deprescries, tambm denominado trabalho prescrito, e aquilo que se faz,localizado no real da atividade de trabalho.

    Em situao de trabalho, o trabalhador convocado a lidar com problemasque no poderiam ser antecipados ou respondidos de forma satisfatria peloschamados procedimentos padres (Vieira, 2006). H, portanto, um intervaloque no se elimina entre o trabalho que estprescrito e o trabalho real,conformenos ensina a ergonomia (Clot, 2006; Lima, 2000, Schwartz, 2002, 2006).

    nesse intervalo, caracterizado pela defasagem e insuficincia dosprocedimentos, regras e normas, que, por si s, no garantem a realizao dotrabalho, que o trabalhador ir construir, de forma parcialmente singular, ojeito de fazer sua tarefa.

    Schwartz (2006) afirma a existncia de uma ressingularizao do contedo,dada a distncia entre a tarefa e a atividade, o que aponta para a inovao queo trabalhador introduz em determinado gnero de trabalho e que corresponde

    formao de um estilo. Assim, seu modo operatrio e o desenrolar de suaatividade fundam-se, sobretudo, no reconhecimento dos problemas, dasvariabilidades e contradies que surgem no real do trabalho, que, raramente,so conhecidas ou analisadas por aqueles que compem a organizao e osprocedimentos tcnicos do trabalho.

    Ao prescindir da anlise das situaes e da organizao real do trabalho, osgestores do trabalho s conseguem entender os problemas que aparecemcomo decorrentes das dificuldades pessoais ou das relaes interpessoais. Essa

    viso conduz, freqentemente, culpabilizao do trabalhador, sendo comumatribuir apenas preguia, m-vontade ou personalidade das pessoasa razo pela qual as coisas do errado (Vieira, 2006).

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    Sem negar a importncia de se considerar as caractersticas individuais, necessrio pensar, tambm, de que forma as exigncias, condies e problemasconcretos do trabalho se relacionam com o modo de ser de cada um. Emoutras palavras, trata-se de entender a constante interao entre a subjetividade

    e a objetividade (Lima, 2002).Ao contrrio, ao se negligenciarem os paradoxos introduzidos pela prpriaorganizao do trabalho, corre-se o risco de equvocos, quando se detectam osreais problemas ou mesmo quando esses no so detectados, o que faz comque o observador se deixe seduzir por causas apenas aparentes. Sem levar emconta os paradoxos e as variabilidades aos quais um operador tem que responder,o que geralmente se observa uma atribuio arbitrria de juzos sobre umaatividade de trabalho que se v amputada de seu contexto e especificidades.

    Da mesma forma, certos comportamentos considerados injustificveis ouirracionais, na perspectiva dos observadores, podem ser dotados de umaracionalidade operatria astuciosa, constituda pela experincia acumulada nocotidiano do trabalho.

    Por esses motivos um equvoco avaliar as implicaes de modificaes notrabalho, por mais simples que aparentem ser, ignorando-se a anlise das situaesreais de trabalho e a racionalidade do trabalhador, subjacente ao seu fazer.

    Os mtodos e pontos de partida dessas abordagens se revelam herdeiros da

    suposio de que no h nada a ser examinado no fazer do trabalhador, poiseste reduzido a mero executante, considerado incapaz de pensar o que faz.Essa ocultao poltica e ideolgica no se faz sem conseqncias para a anlisede problemas e possibilidades de formao ligadas ao trabalho. As anlises socentralizadas no indivduo, desprezando a riqueza presente naquilo que o serhumano faz e nas situaes que enfrenta cotidianamente.

    Certas abordagens psicolgicas, por exemplo, tm sido utilizadasrecorrentemente para efetuar esses tipos de anlise, crendo ser possvel encontrar

    no sujeito as respostas de problemas que so multideterminados pelasvariabilidades inerentes s situaes de trabalho e por aspectos da histria devida individual que encontram no trabalho espao de interlocuo.

    Percebemos, assim, incoerncia nos mtodos de formao, de avaliao, depreveno de acidentes de trabalho e outros que abordam o trabalhodesconhecendo as suas reais dificuldades, sejam elas de ordem material, tcnica,organizacional e/ou relacional.

    Trabalho real e trabalhadores

    Para abordar o desenvolvimento do sujeito em articulao com o trabalho, imprescindvel evidenciar as mediaes entre determinados estilos de gesto

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    e o desenvolvimento desse sujeito, posto que a atividade de trabalho umaunidade que traduz uma complexa trama de referncias e reelaboraesestratgicas por parte do trabalhador, para atingir suas metas.

    No mbito de estudo do trabalho humano, alicerado por conhecimentos

    provenientes da ergonomia e da Psicologia do Trabalho, certos aspectos daorganizao do trabalho e o prprio desenvolvimento da atividade devem serexaminados de perto, com uma lupa, isto , junto queles que trabalham, nointuito de identificar situaes que contribuem para o desenvolvimento eaquelas que so potencialmente perigosas sade mental.

    No campo da Psicologia do Trabalho, conforme j dissemos, Yves Clot(2006), autor de A funo psicolgica do Trabalho, quem resgata asubjetividade, entendida agora como o continente escondido da atividade,

    remetendo-nos ao fato de que a gnese da conscincia mediada pela atividadeconcreta e irredutvel do sujeito.

    Nesse sentido, para entendermos o trabalho, seu sentido e suas repercusses, preciso colocar no centro da discusso o saber dos trabalhadores. Encontramosa um ensinamento indispensvel para a Psicologia do Trabalho e, por extenso,para todas as pesquisas/pesquisadores dessa rea: o conhecimento do trabalhoreal s possvel por meio dos trabalhadores, de sua experincia, do que sabeme do como sabem. Na perspectiva ergolgica, a elaborao de conhecimentos

    sobre o trabalho ser sempre incompleta e mutilante, se no incorporar, noprprio processo de sua produo, a experincia dos trabalhadores, oconhecimento dos saberes produzidos no e pelo trabalho, alm de suaconfrontao com os saberes produzidos nos diversos campos cientficos.

    Essa premissa pode ser verificada nas chamadas Comunidades CientficasAmpliadas, de Ivar Oddone (1980), que, importante fonte de inspirao deClot (2006), traz para o centro da pesquisa e da produo de conhecimento aexperincia dos trabalhadores, articulando os saberes formais (acadmicos) eos saberes informais (experincia dos trabalhadores) e do Dispositivo Dinmicoa Trs Plos, desenvolvido pelo Departamento de Ergologia da Universidadede Provence Frana (Schwartz, 1996). Nesse caso, o primeiro plo aqueledos saberes conceituais das disciplinas; o segundo plo aquele dos saberesinvestidos no exerccio do trabalho e na experincia; o terceiro plo significauma postura tica e epistemolgica, presente nos projetos em comum queacordam entre si os dois outros plos. Assim, tanto as Comunidades Cientficas

    Ampliadas quanto o Dispositivo Dinmico a Trs Plos implicam aparticipao dos trabalhadores, e todos os sujeitos envolvidos tornam-se co-autores do conhecimento produzido, portadores de saberes especficos na buscada compreenso da complexidade do trabalho real (Cunha, 2007).

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    Conexo de saberes sobre o trabalho em busca do trabalho real

    Exemplo de trabalho realizado nessa perspectiva das ComunidadesCientficas Ampliadas (Oddone, 1980) e do Dispositivo Dinmico a TrsPlos (Schwartz, 1996) o projeto de pesquisa e extenso Conexes de saberes

    sobre o trabalho, iniciado em dezembro de 2005, realizado em parceria entrea Universidade Federal de Minas Gerais, o Laboratoire dErgologie da UniversitAix-en-Provence, e o movimento sindical de trabalhadores de minerao dosestados de Minas Gerais, Rio de Janeiro e Esprito Santo. Nesse projeto seassociam quatro reas disciplinares: educao, engenharia de produo/ergonomia, psicologia e medicina. Seu foco central de anlise o setor deproduo mineral e tem como objetivo principal o conhecimento dos saberesproduzidos no e pelo trabalho, assim como sua confrontao com os saberes

    produzidos nos diversos campos cientficos. Dele participam lideranas sindicaise trabalhadores de base, professores pesquisadores e alunos de graduao eps-graduao, tendo como objeto de reflexo a experincia de trabalho e comoeixo metodolgico o dilogo, com o intuito de aprendizagem mtua epermanente entre os envolvidos.

    Com esses dispositivos, aprendemos o valor da experincia operria, tomadacomo terreno de pesquisa e como potencial para transformaes nas condiesde trabalho. Os dispositivos so inovadores, seja pela centralidade da experincia

    do trabalho, como objeto de reflexo, seja porque radicalizam, no sentido deuma interrogao a propsito do estatuto poltico e epistemolgico dos saberesa produzidos. So igualmente portadores de interrogaes e respostas quetocam a dimenso poltica e epistemolgica dos saberes e das relaes que seestabelecem a partir deles. Nesse sentido, eles nos convidam reflexo e nosindicam os caminhos para uma cooperao com os movimentos sociais emtorno das questes que perpassam a experincia contempornea de trabalho.

    O eixo central desse projeto , portanto, a criao de dilogo, com intuito

    de aprendizagem mtua e permanente entre os envolvidos, constituindo umaComunidade Cientfica Ampliada ou um Dispositivo Dinmico a TrsPlos. Em sntese, o foco principal a questo dos saberes produzidos no epelo trabalho, e sua confrontao com os saberes produzidos nos diversoscampos cientficos.

    Operacionalmente, o projeto funciona em encontros mensais de toda aequipe, durante finais de semana, na Escola Sindical 7 de Outubro, em BeloHorizonte, divididos em oficinas de sistematizao e mdulos de formao,preparados coletivamente.

    Dadas as caractersticas do projeto de buscar aproximar-se, cada vez mais,do trabalho real, o planejamento dessas oficinas e mdulos objeto de

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    permanentes avaliaes, de interrogaes pluridisciplinares e pluriprofissionaise replanejamento, o que traz uma importante e rica mobilidade/flexibilidade,em termos metodolgicos. Pode-se dizer que os rumos do projeto so tomadosem tempo real, ou seja, so definidos e operacionalizados no tempo mesmo

    dos encontros.Como ferramenta de trabalho, todo um arsenal posto prova: textostericos/metodolgicos so estudados e debatidos, relatos de experincia e depesquisas, descries das empresas mineradoras, das atividades na minerao,palestras com profissionais ligados direta e indiretamente ao setor, discussode vdeos e filmes, alm de pesquisas de campo realizadas pelos mineiros. Foiconstruido um acervo de histrias, fotos, documentos, bibliografias, vdeos emateriais coletados na minerao, que contam a histria do projeto e de suas

    reflexes.Tanto nas oficinas de sistematizao quanto nos mdulos de formao, a

    preocupao sempre compreender o mundo do trabalho real, de saber noapenas aquilo que os trabalhadores sabem de seu trabalho, mas como sabem e,nesse sentido, desenvolver procedimentos e metodologias de anlise dassituaes de trabalho e dos saberes dos trabalhadores, por meio de um dilogoconstante entre pesquisadores e trabalhadores, no confronto entre produocientfica e experincia de trabalho. A grande contribuio terico-metodolgica

    desses estudos para a Psicologia do Trabalho o fato de colocar, no centro daspreocupaes, o trabalho real e as concretas condies de sua realizao.

    Assdio moral ou psicossocial?

    Com esse entendimento, a dissertao de mestrado Desautorizao, paradoxoe conflito: a sade mental dos vigilantes bancrios, recentemente defendida noPrograma de Mestrado em Psicologia, da Universidade Federal de Minas Gerais,

    analisa os fatores que conduzem ao assdio moral, partindo dessa novaabordagem. O assdio moral, tema to especulado nos mbitos acadmicose pelos meios de comunicao, embora pouco explorado cientificamente, analisado sob a tica do trabalho real.

    O estudo indica que certos problemas, geralmente percebidos comodificuldades originadas nas relaes humanas, tm sua origem em problemasna organizao do trabalho e podem, freqentemente, degradar o convvioentre as pessoas, a ponto de torn-lo fonte de sofrimento e de atentado sade

    fsica e mental do trabalhador.A pesquisa realizada evidencia ainda que algumas dificuldades vivenciadas

    em relao organizao do trabalho (normas, contedo do trabalho, jornada,

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    ritmo, comunicao, hierarquia) podem ser transferidas e convertidas emproblemas aparentemente pessoais, entre trabalhadores, usurios e gerentes.

    As anlises feitas sob o ttulo do assdio moral, geralmente, traduzem a idiade um conflito, que determinado unicamente pela personalidade e

    sentimentos das pessoas. Entretanto, para alm dessa abordagem, o estudoprope o conceito de assdio psicossocial, que inclui o trabalho e suascondies objetivas de realizao como fatores intimamente associados aosconflitos.

    O caso do vigilante Ricardo exemplifica essa abordagem e o novo conceito.O estudo recupera situaes problemticas vividas pelo trabalhador (isolamento,humilhao, contradies, assalto, sofrimento) e realiza uma anlise do pontode vista da Psicologia do Trabalho.

    Tendo adoecido aps um assalto ao banco no qual trabalhava, Ricardo foiafastado do trabalho por problemas mentais. O estudo de seu caso, no entanto,evidencia que a ameaa sua vida, na ocasio do assalto, no se caracterizacomo o nico fator determinante de seu adoecimento. Mais do que a situaode perceber a vida ameaada pelos infratores, a forma de organizao do prpriotrabalho, as contradies e o advento das crticas, deboches e humilhaes,ocorridas antes e depois do assalto, foram os fatos que se converteram em umprocesso de fragilizao da identidade e da sade do vigilante, motivo pelo

    qual a doena mental emergiu de forma bastante incisiva, afetando as relaesfamiliares, com o agravante de t-lo levado, alm do distrbio mental, a algumastentativas de suicdio.

    Ricardo trabalhou por mais de dez anos na referida agncia bancria, semrelatar quaisquer problemas que julgasse relevantes ou graves. Contudo, a partirdo ano de 2002, passou a vivenciar mudanas em sua relao com os colegas,o que, segundo ele, ocorreu devido introduo de novas normas de segurana.Os conflitos interpessoais s surgiram aps Ricardo ter recebido a incumbncia

    de garantir o cumprimento, por parte dos funcionrios do banco, das novasnormas de segurana. No entanto, ele era constantemente desautorizado aassegurar a atribuio que lhe fora delegada, fato cuja recorrncia se tornoufonte de sofrimento.

    Por sua vez, o obscurecimento das contradies presentes na organizaoreal do trabalho traduziu-se em uma srie de acontecimentos nas quais essevigilante experimentou situaes de ridicularizao e isolamento: [] o quefazia com que as pessoas estavam me isolando era justamente o meu trabalho eno a minha pessoa.

    Paradoxalmente, aquele trabalhador, cujo dever consistia em zelar pelasegurana do patrimnio e das pessoas, encontrou-se em uma condio de

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    instabilidade e insegurana. Esses fatos impactaram a mobilizao subjetiva deRicardo, em relao ao seu trabalho e s suas relaes afetivo-sociais.

    Essas situaes perduraram por quase dois anos; somente aps um segundoepisdio de assalto o vigilante foi afastado e a doena mental emergiu. Pode-se

    dizer que, pelo menos, trs fatores, alm da situao de tenso prolongada,contriburam para a suscetibilidade a um quadro de transtorno mental, nessaocasio: a) a abordagem direta dos assaltantes e o risco iminente sua integridadefsica e psquica; b) a ausncia de uma interveno teraputica adequada, apso ocorrido; c) os comentrios proferidos pelos gerentes do banco, queculpabilizaram o vigilante, como este mesmo relata abaixo:

    O gerente de segurana de So Paulo falou comigo que foi monitorado oassalto inclusive. [] Ele falou: no, voc fez o correto. O gerente de segurana

    falou. Mas o gerente do banco me chamou de tapado. Isso me machucou pracaramba, Cara! O gerente da empresa falou que ns era bundo. [] Issoacabou comigo, cara! Isso me levou Foi uma das coisas que me levou profundo do poo tambm.

    O episdio do assalto, composto por um conjunto de fatores que impactaramRicardo, fizeram emergir o chamado Transtorno de estresse ps-traumtico,um quadro psiquitrico que tem uma sintomatologia caracterstica, incluindo,segundo a Classificao Internacional de Doenas (OMS, 1998), a revivncia

    persistente do evento traumtico; a esquiva persistente de estmulos associadoscom o trauma e o embotamento da responsividade geral; a presena de sintomaspersistentes de excitao aumentada; uma perturbao que causa sofrimentosignificativo no funcionamento social.

    Entretanto, para alm do quadro clnico, trata-se de considerar como agota dagua se inscreve na histria de vida do vigilante. Quanto a isso, possvel afirmar que, para Ricardo, que cursava Gesto de SeguranaPatrimonial no Ensino Superior e pretendia tornar-se um gestor de segurana,

    as crticas feitas constituram uma ameaa aos seus valores, ao seu valor comotrabalhador e, assim, sua prpria auto-estima, desta vez arruinada, motivopelo qual sente ter perdido a dignidade e se tornado o vilo da histria.

    Por meio da anlise do caso, podemos sinalizar como as contradies naprpria organizao do trabalho, tais como a constante desautorizao paraexercer a atribuio que lhe foi delegada, as condies instveis nas quais,paradoxalmente, o vigilante deveria garantir segurana do patrimnio e deoutrem, impactaram a sua vida. Esses acontecimentos afetaramsignificativamente suas relaes afetivo-sociais, seu vnculo com o trabalho,trazendo repercusses para sua identidade: De um cara bonzinho eu passei aser o vilo da histria. A culpabilizao aparece como o desfecho produzidopelas contradies e conflitos gerados pelo trabalho.

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    Carlos Eduardo Carrusca Vieira, Vanessa Andrade Barros, Francisco de Paula Antunes Lima

    Esses estudos, realizados junto aos trabalhadores mineiros e ao vigilante,mostram-nos, claramente, que os enigmas do trabalho real no so simplesmenteextrados por deduo, a partir de uma teoria; eles devem ser examinadoscuidadosamente, recorrendo-se anlise ergonmica e psicossocial do trabalho

    (Lima, 2002).

    guisa de concluso

    Pesquisar uma atividade de trabalho e, como tal, jamais se reduz prescrio, requerendo, assim, ajustes e estratgias, por parte do pesquisador,estratgias essas a serem reelaboradas, em funo das dificuldades decompreenso de um problema e do material emprico obtido. Essa premissapermite-nos entender que a prtica de investigao supe que as questes de

    pesquisa propostas sejam retrabalhadas pela confrontao com a empiria, oque exige do pesquisador uma escuta cuidadosa da interao entre o sujeito eseu trabalho. Isso nos permite, tambm, apreender as mediaes que intervmno curso da histria de vida do trabalhador, produzindo rupturas, continuidadese/ou emergncia de novas histrias. Exige do pesquisador reconhecer-se emfalta, do princpio ao fim, justamente por saber que as respostas no serodefinidas por sua subjetividade, embora suas experincias, competncias econhecimentos sejam fundamentais na consecuo da investigao. Esse

    posicionamento oferece, juntamente com o estudo e a prtica de pesquisa, ascondies possveis para a apreenso do objeto.

    notrio, entretanto, o desconhecimento e/ou a negligncia, na prtica depsiclogos, dos fatores objetivos que medeiam o desenvolvimento da atividadedo trabalho. No fim de contas, reduzem-se responsabilidade individual asquestes ligadas organizao e s condies de trabalho. Ora, psicologiacaberia, justamente, analisar, reconhecer e discutir a razo de seus reducionismos.

    Aqui, referimo-nos, particularmente, ao risco da psicologizao defenmenos, ou seja, ao fato de que as determinaes materiais, histricas esociais possam ser, eventualmente, reduzidas pura dimenso individual,embora as primeiras no possam prescindir desta, compreendida como locusde suas manifestaes. A psicologia tem procedido freqentemente, e emdistintos mbitos de atuao, a uma anlise do psiquismo humano distanciadadas condies concretas de sua formao e transformao.

    Obviamente, no cabe tambm deixar de lado a subjetividade que emerge

    das realidades objetivaeintersubjetiva. Na busca de novos caminhos para lidarcom esses impasses, uma vez que eles so inerentes prpria natureza do objetode estudo, as produes cientficas, no campo da Psicologia do Trabalho, tentamlevantar as diversas determinaes de um dado fenmeno, abrangendo a

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    singularidade da pessoa do trabalhador. A esse respeito, cabe acrescentar que ametodologia da histria de vida (Barros & Silva, 2002) tem oferecidoimportantes contribuies. A atividade e a organizao do trabalho, com suasmediaes scio-histricas, tm sido passveis de anlise, respectivamente, pelas

    abordagens que tomam a atividade como uma categoria central de anlise(Clot, 2006; Schwartz, 2006; Gurin, 2001) e pelas anlises de cunhopsicossocial (Lima, 2002; Le Guillant, 2006).

    mister ter em vista que a abordagem da organizao do trabalho transcendeaspectos individuais e possibilita ampliar as reflexes, tendo em vista que amaneira de se organizar um trabalho um fator social determinado edeterminante de uma lgica social. As condies de trabalho portam, ento, asmarcas de uma relao de foras e dos valores da sociedade em que elas so

    geradas (Assuno, 2003, p. 1.015).Alm disso, especificamente no campo da sade mental e trabalho,

    lembremos tambm as pesquisas que recorrem confrontao entre dadosepidemiolgicos e estudos qualitativos, como forma de investigao (Lima,2004). Os estudos apresentados neste artigo buscaram resgatar modos de anlisecoerentes com o material emprico disponvel.

    Nesse sentido, indicamos a importncia, em toda a construo aquiapresentada, da psicologia materialista ou concreta, de Georges Politzer (1968,

    p. 23), em sua proposta de analisar os fatos de forma verdadeiramente objetiva,ou seja, considerando o fato psicolgico na sua efetividade, propondo umaabordagem concreta tanto do indivduo como dos acontecimentos humanos.Para esse autor, em vez de se inventar uma determinao materialista, deve-setentar alcanar aquela que existe efetivamente. Em nossa opinio, esse ocaminho a seguir, em direo ao entendimento da complexidade do mundodo trabalho, permitindo a construo de saberes nos quais outros trabalhospodero se ancorar.

    Abstract

    This article discusses fundamentals and assumptions often usedfor the understanding of work-related phenomena, in which workis seen as a mere appendix. Discussing the concepts of prescribed

    work and real work, the theoretical-methodological marks of

    ergonomics, ergologics and materialistic psychology, it points outproblematic implications of such perspectives and presents theWork Psychology approach, according to which real workexperiences and workers experiences are a central category in the

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    166 Psicologia em Revista, Belo Horizonte, v. 13, n. 1, p. 155-168, jun. 2007

    Carlos Eduardo Carrusca Vieira, Vanessa Andrade Barros, Francisco de Paula Antunes Lima

    understanding of subjectivity, of the subjects development and ofthe health/illness processes, as conceived by Yves Clot. It gives anaccount of the experience of the research/extension projectConnexions of Knowledge about Work, carried out in themethodological perspective of Enlarged Scientific Community

    and the Three-Pole Dynamic Device. Factors leading to moralharassment, which, analyzed in the light of real work, isreconfigured as psycho-social harassment, are discussed.

    Key words: Work; Work Psychology; Ergologics; Ergonomics;Subjectivity.

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