Vida Nova nº 4

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Vida Nova nº 4 Dezembro de 2012 Página 1 Nº 4 Dezembro de 2012 Não há crise nos Açores As notícias que têm circulado, nos Açores, nos últimos tempos são deveras animadoras para os seus habitantes. Com efeito, o novo governo regional, resultante do ato eleitoral que ocorreu no passado mês de Outubro, está a desenvolver um trabalho exemplar que fará com que os Açores fiquem imunes à crise que afeta todos os portugueses. A Universidade dos Açores está a atravessar um dos períodos melhores da sua vida e a ameaça de fechar em Fevereiro por falta de verbas não passa de uma forma de pressão para que o governo da República desembolse mais alguns euros. Não havendo problemas ambientais nos Açores, os estudantes de engenharia do ambiente passaram a estudar as touradas. Os hospitais dos Açores não sentem qualquer dificuldade no seu funcionamento e as dívidas que possuem aos fornecedores são pura invenção dos contabilistas. A Associação de Municípios da Ilha de São Miguel está apostada na instalação de uma incineradora para queimar tudo o que for lixo, contribuindo assim para a criação de muitos empregos, para a produção de energia verde e para o enriquecimento de uns pobres capitalistas que são os mesmos do costume. A população de São Miguel está radiante pois vai ver a sua taxa de resíduos aumentada para que o empreendimento seja rentável para os seus algozes. Na ilha Terceira os políticos atacam-se uns aos outros por causa da quase garantida saída de grande parte dos militares americanos da Base Militar que como sabemos só era usada para missões de paz, sobretudo no Médio Oriente. Ao contrário do que parece, apesar do despedimento de muitos trabalhadores açorianos não haverá grandes problemas para a ilha pois a sua grande riqueza é a tauromaquia que contribui significativamente para o PIB do arquipélago, para além de ser uma mina para meia dúzia de famílias da nobreza local. José Libertário

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Boletim Libertário

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Vida Nova nº 4 Dezembro de 2012 Página 1

Nº 4 Dezembro de 2012

Não há crise nos Açores

As notícias que têm circulado, nos Açores, nos últimos tempos são deveras animadoras para os

seus habitantes. Com efeito, o novo governo regional, resultante do ato eleitoral que ocorreu no

passado mês de Outubro, está a desenvolver um trabalho exemplar que fará com que os Açores

fiquem imunes à crise que afeta todos os portugueses.

A Universidade dos Açores está a atravessar um dos períodos melhores da sua vida e a ameaça

de fechar em Fevereiro por falta de verbas não passa de uma forma de pressão para que o

governo da República desembolse mais alguns euros. Não havendo problemas ambientais nos

Açores, os estudantes de engenharia do ambiente passaram a estudar as touradas.

Os hospitais dos Açores não sentem qualquer dificuldade no seu funcionamento e as dívidas que

possuem aos fornecedores são pura invenção dos contabilistas.

A Associação de Municípios da Ilha de São Miguel está apostada na instalação de uma

incineradora para queimar tudo o que for lixo, contribuindo assim para a criação de muitos

empregos, para a produção de energia verde e para o enriquecimento de uns pobres capitalistas

que são os mesmos do costume. A população de São Miguel está radiante pois vai ver a sua taxa

de resíduos aumentada para que o empreendimento seja rentável para os seus algozes.

Na ilha Terceira os políticos atacam-se uns aos outros por causa da quase garantida saída de

grande parte dos militares americanos da Base Militar que como sabemos só era usada para

missões de paz, sobretudo no Médio Oriente. Ao contrário do que parece, apesar do

despedimento de muitos trabalhadores açorianos não haverá grandes problemas para a ilha pois

a sua grande riqueza é a tauromaquia que contribui significativamente para o PIB do

arquipélago, para além de ser uma mina para meia dúzia de famílias da nobreza local.

José Libertário

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por Maria Lacerda de Moura

A palavra "feminismo", de significação elástica, deturpada, corrompida, mal

interpretada, já não diz nada das reivindicações feministas. Resvalou para o

ridículo, numa concepção vaga, adaptada incondicionalmente a tudo quanto se

refere à mulher.Em qualquer gazela, a cada passo, vemos a expressão "vitórias do

feminismo" – referente, às vezes, a uma simples questão de modas! Ocupar uma

posição de destaque em qualquer repartição pública, cortar os cabelos "à la

garçonne", viajar só, estudar em academias, publ icar um livro de versos, ser

"diseuse", divorciar-se três ou quatro vezes, pelas colunas do "Para Todos",

atravessar a nado o Canal da Mancha, ser campeã de qualquer esporte. – tudo isso

consiste "nas vitórias do feminismo", vitórias que nada significam pe rante o

problema da emancipação integral da mulher.

A verdadeira emancipação é posta de lado

É uma tática bem manejada. Enquanto as mulheres se contentam com essas

"vitórias", a sua emancipação é posta de lado ou nem chega a ser descoberta pelos

tais reivindicadores de direitos adquiridos... E essas reivindicações não se podem

limitar a ação caridosa ou a um simples direito de voto que não vem, de modo

algum, solucionar a questão da felicidade humana e se restringirá a um número

limitadíssimo de mulheres. Aliás, quando os homens sérios retiram-se, num

ostracismo voluntário, dessa política de latroc ínios oficializados, desse bacanal

parasitário, desse despudor em se tratando dos negócios públicos; quando se

decreta, positivamente a falência, o descrédito do parlamentarismo em toda uma

sociedade em plena decomposição, – é agora que a mulher acorda e sai correndo

atrás do voto, coisa que deveria ser reivindicado a cem ou duzentos anos atrás... o

supõe, ingenuamente, estar cuidando dos interesses femininos ou dos interesses

sociais.

A solução para os problemas humanos não é a caridade

E quando chegamos à conclusão de que a caridade humilha, deprecia, desviriliza;

desfibra a quem dá e a quem recebe; quando sentimos que a solução para os

problemas humanos não é a caridade que sufoca todas as fibras interiores de que

tira, às faces escancaradas da miséria, as sobras, o supérfluo; a caridade que

estrangula todas as energias latentes daquele que estende as mãos para receber,

Feminismo? Caridade?

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servilmente, o que sobra das orgias e da exploração dos que vivem à custa do

trabalho alheio; quando por si mesma, a moral de que se ali menta

a sociedade vigente decreta a falência, essa moral odiosa, de classes de ricos

piedosos e de pobres a receberem esmolas, de exploradores caridosos e explorados

calculadamente vigiados pela força armada, mantenedora da passividade exterior e

da revolta latente dos ilótas modernos; essa moral farisaica que, para os ricos

aconselha a caridade, a distribuição ostentosa do supérfluo adquirido à custa do

suor proletário, e para os pobres recomenda a resignação passiva, o receber

humildemente as sobras que espirram, por acaso, das mesas dos ricos e olhar ainda

agradecidos, para essas mãos orgulhosas que se divertem nas caridades

exibicionistas dos salões elegantes, tirando partido das misérias sociais para o seu

prazer; quando novas fórmulas de uma moral mais pura se nos apresentam para

outra organização social de mais eqüidade, – ainda a mulher está convencida de

que a sua mais alta missão na vida é a caridade e só conhece a questão social

através da caridade, mas, dessa caridade de chás, tangos e requebros n os salões...

Gastam somas fabulosas com a construção de igrejas e exploram torpemente

os criados

Essa mesma mulher que reparte altas somas para a construção de igrejas ou

"creches" religiosas, explora, torpemente, os criados, a cozinheira, a lavadeira, a

costureirinha contratada para trabalhar em sua casa, horas e horas, sob o olhar

impertinente da mundana ociosa, da criatura virtuosíssima que, pelas colunas da

imprensa, espalma as mãos dadivosas consolando os infelizes, os mal instalados

na vida... Dá por um chapéu, por uma pluma, um brinco, um vestido de baile, um

leque, uma sombrinha, uma jóia, por qualquer fantasia, somas fabulosas,

inacreditáveis, entretanto, exerce pressão vergonhosa sobre a sua bordadeira que

lhe cobra uma miséria por qualquer trabalho feito com sacrifício inaudito, em

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horas triturantes de agonia, à noite depois de exausta do trabalho diário do atelier

– no qual também já lhe tiraram gotas de sangue, na amargura da exploração pelo

salário quotidiano.

Chora ante o ecrã do cinema e fica impassível ante as injustiças sociais

Sentimentalismo de epiderme que faz chorar ante o écran do cinema e, todavia,

soluça em torno da elegância caridosa, toda a miséria ciclópica da luta pela vida e

ela não vê, não quer ver o sofrimento milenar da mulhe r proletária ,

calculadamente cultivada a sua ignorância através do pão duro de cada dia, no

trabalho exaustivo da fábrica, das oficinas e no lidar doméstico – servindo à

ociosidade farta da alta sociedade ou dos bordéis do vício elegante.A piedade das

senhoras caridosas não vê, não sabe da luta dantesca de uma pobre moça do povo

que resvala na miséria mais negra se não cai nos braços escancarados da

prostituição "necessária" nesta sociedade bestial e moraliteísta. A atividade da

mulher elegante só sabe votar-se a essa caridade exibicionista dos salões

iluminados, onde ostenta a sua beleza e sentimentos problemáticos de uma

bondade estudada no espelho... A mulher é vaidosa e comodista e os psicólogos

femininos preocupados em agradar, em fazer psicologia de " boudoir" – não

perscrutam, não querem ver a falsidade dos altos sentimentos caridosos do

mundanismo elegante. Prefere continuar a sofrer as conseqüências do seu

servilismo, da sua submissão a desenvolver o caráter, as faculdades de iniciativa

para lutar contando com as suas próprias energias. Procura conservar o seu

parasitismo dourado, indiferente aos males sociais: é odalisca e cortesã, mas, vai à

Igreja, em horas chics, rezar pelo próximo e, dançando um passo moderno, exerce

a caridade. Como é odiosa e perversa essa caridade!

Civilização de protetores e protegidos

E a mulher duplamente escravizada não compreendeu que é necessário sim,

alevantar o ânimo abatido do que luta, do que pensa sucumbir aos embates da

injustiça social, dar-lhe meios de subsistência pelo próprio esforço e fazer dele

um indivíduo capaz de ver a casta civilização de fartos e famintos, de ociosos

parasitas vivendo à custa do sacrifício alheio, civilização de protetores e

protegidos, de lobos e cordeiros, em que os mais altos sentimento s se confundem

com as mais torpes baixezas, de chibata azorrague, de avariose e cafetismo, de

excesso de ociosidade e excesso de miséria. E tudo, inclusive, principalmente a

literatura, essa literatura nefasta, de elogios, de louvores incondicionais, liter atura

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odiosa endeusando a fêmea, literatura à Júlio Dantas tudo contribui para o cultivo

sistemático da pieguice, de chiliques e requebros, do falso sentimento, do

sentimentalismo para o público. E o raciocínio, por si obscurecido através da

escravidão feminina secular, da tutela dos dogmas e da moda, dos prejuízos e da

rotina, fecha-se sob a chuva de galanteios, de frases feitas. E a mulher esquece -se

de que tem mais alguma coisa além da sua carne, do seus contornos perturbadores.

Deixa de ser mulher para ser apenas o animal do homem. A grande miséria, a

enorme dor das injustiças sociais vive ao seu lado e a mulher desvia o olhar para

poder divertir-se, gozar das regalias e do seu comodismo de "bibelot", de lulu

número 1, prisioneira nas gaiolas douradas das avenidas elegantes, sempre a

mesma escrava, odalisca e cortesã.

Adormecida dentro dos trapos

A alma feminina jaz adormecida dentro dos trapos, das jóias, do império da moda,

– a eterna sultana desse harém de civilizados que ainda compram, vendem,

exploram, seduzem, abandonam por imprestável a mesma mulher, cuja posse

exclusiva consiste a sua preocupação única. É deprimente a situação da mulher

superior, neste meio de cafetismo social, em que os homens não sabem olhar uma

mulher senão desrespeitando-a.

E para quê enumerar essas associações atrasadas do feminismo de caridades?

Sem dúvida é doloroso perscrutar as misérias dos famintos, da nudez, dos

cortiços.

Mas, não se trata de esverrumar a causa da chaga sangrenta da miséria, mesmo

do coração da opulência, ao lado da ociosidade que se diverte cinicamente, depois

de atirar uns níqueis para os esfaimados, níqueis roubados ao trabalho árduo dos

explorados do salário.

Divertimentos à custa da dor

Há apenas a preocupação de se jogar migalha na boca escancarada da fome, talvez

para que nos deixem em paz... E, divertir -se a custa da dor, da amargura, da fome,

é insultar o sofrimento.

E a miséria está de tal modo humilhada, deprimida, que nem fo rças tem para

devolver, orgulhosamente, os restos que se lhe atiram através dos esplendores dos

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salões elegantes, por entre as pontas dos dedos enluvados para que não volte um

salpico das calçadas a enlamear-lhes as mãos dadivosas. Não houvesse ociosos

fartos, degenerados pelo tédio e pelos vícios elegantes, não houvesse a exploração

do homem pelo homem, não houvesse a exploração da mulher pelo homem, e certo

não seria "necessária" a prostituição, essa perversidade inominável em nome da

virtude.

A caridade é "a janela da consciência", aberta para a exploração diurna e noturna

do proletariado nas oficinas, nas fábricas e do camponês, do colono na

agricultura. Para que a elegância brilhe, para que triunfe o mundanismo, para que

os "cabarets" e os "cassinos chics" regorgitem de ociosos – é preciso que o

colono, campônio e o operário de ambos os sexos seja triturado, dobrado,

esmagado nas oficinas, na lavoura, nas fábricas, dia após dia, sem tréguas, sem

nenhum direito a não ser o direito ao trabalho obrigatório.

As várias superstições

É a escravidão moderna do salário para matar a fome e cobrir a nudez dos filhos,

também cedo destinados à exploração torpe e miserável do parasitismo social,

incansável na sua faina, de acumular bens para gozar à custa do suor exaus tivo

das máquinas de trabalho, dos animais de tiro, do proletariado mundial. Devemos

à superstição governamental, à superstição religiosa sectarista, à superstição

patriótica, à superstição nacionalista, à superstição do progresso material, à

ganância de uns e ao servilismo da maioria – o predomínio desta civilização de

duas classes sociais: a dos ricos e a dos pobres.

A humanidade custará a compreender que a vida social poderia desdobrar -se num

ambiente de solidariedade, de auxílio mútuo, sem amos nem escr avos, sem

protetores e protegidos, sem representações parlamentares em mediocracias

diplomadas...

Religiões - instrumentos de explorações dos incautos

Levará ainda tantos séculos a perceber que as religiões organizadas, política e

economicamente, não são senão instrumentos de exploração dos ignorantes, dos

desfibrados, dos ambiciosos, dos moluscos, dos que carecem de espinha dorsal...

Ninguém cresce na sua individualidade através da consciência ou, talvez, da

inconsciência de outrém. Não é demais repetir que a atual organização social

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baseia-se na ignorância de uns, no servilismo da maioria, na astúcia de outros, no

comodismo de muitos, na exploração dos espertos, na felicidade dos "proxenetas"

e "souteneur ", desse cafetismo, desse regime de concorrência, e m que se compra

e vende tudo, inclusive o Amor e a Consciência – as mais altas manifestações do

que é nobre e belo e grande, do que tumultua na vibração interior da nossa vida

profunda.

Representação parlamentar: circo de cavalhinhos

Sentimos que as mentalidades de "elite" ultrapassaram de há muito a moral atual

que tenta acorrentar ainda as aspirações humanas libertárias. Tudo faliu: a igreja,

o parlamentarismo, a academia, a instituição legal do casamento, o ensino

universitário, o patriotismo. Pois bem: é agora que a mulher vem reivindicar o

direito do voto – quando a representação parlamentar é circo de cavalinhos, o

sufrágio universal uma mentira. A mulher, essa energia latente formidável que

vem despertando para a atividade social, já foi enlaçada pelo passado reacionário

– para dispersar todas as suas forças na corrente das "verdades mortas".

Feminismo de votos e feminismo de caridades

É a razão por que não posso aceitar nem o feminismo de votos e muito menos o

feminismo de caridades. E enquanto isso a mulher se esquece de reivindicar o

direito de ser dona de seu próprio corpo, o direito da posse de si mesma. Sou

"indesejável", estou com os individualistas livres, os que sonham mais alto, uma

sociedade onde haja pão para todas as bocas, onde se aproveit em todas as energias

humanas, onde se possa cantar um hino à alegria de viver na expansão de todas as

forças interiores, num sentido mais alto – para uma limitação cada vez mais ampla

da sociedade sobre o indivíduo. Que representa uma "creche", um hospital ou o

direito de voto ante a vastidão dos nossos sonhos de redenção humana pela própria

humanidade? É subir mais alto o coração e o cérebro, ver horizontes mais

dilatados -além do sectarismo religioso ou da superstição social governamental.

Isso é feminismo? Dêem o nome que quiserem, pouco importa: o que esse

feminismo (não me agrada a expressão tão estreita para ideal tão amplo)

reivindica é o "Direito Humano", o Direito Individual, acima de qualquer outro

direito, além dos direitos limitados ao parlamenta rismo, além dos direitos de

classe.

Fonte: Revista Utopia # 9

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De 1974 até 1990 o Anarquismo em Portugal resumiu-se a uma série de publicações e

grémios, frequentemente insulados e mesmo rivais uns dos outros. Por José Nuno

Matos

Em 1986, aquando da adesão à então Comunidade Económica Europeia, Portugal era um país

de contrastes, em que os primeiros sinais de desenvolvimento de uma sociedade de consumo se

faziam acompanhar por situações de extrema pobreza. À semelhança do que se verificou com os

grupos de oposição esquerdistas, o Anarquismo neste período – mergulhado numa realidade

complexa que não correspondia de todo aos paradigmas que defendia – debateu-se pela

sobrevivência. O objectivo do nosso artigo prende-se com uma análise do caminho percorrido

pelas ideias anarquistas durante o período histórico que vai desde a segunda metade da década

de 70 até aos inícios dos anos 90, numa tentativa de compreender até que ponto é que o

Anarquismo em Portugal se repetiu a si próprio, afundando-se num pântano em que já se

encontrava afundado.

«Em qualquer das latitudes interpretativas e explicativas que nos possamos situar, de facto

toda a década de 80 do século XX demonstrou, de uma forma inequívoca, que o Anarquismo

ortodoxo, nas suas vertentes anarco-comunista, comunista libertária e anarco-sindicalista,

estava desactualizado e em termos teóricos e práticos revela-se mais uma crença e uma

“religião” de que uma utopia consequente» [1].

Em finais da década de setenta, Portugal atravessava uma profunda crise económico-social. A

via iniciada com o golpe de Novembro de 75, simbolizada pela mítica expressão de Mário

Soares “colocar o socialismo na gaveta”, culminou com o estabelecimento de um acordo entre o

Anarquismo em Portugal: 1974-1990,

uma breve abordagem

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governo e o Fundo Monetário Internacional (FMI), celebrizado pela igualmente mítica

expressão “apertar o cinto”.

De 1977 a 1986, os vários governos [2] adoptaram uma política de contenção salarial, num

primeiro momento através da fixação de tectos salariais e mais tarde indirectamente, via

indexação dos aumentos salariais à taxa de inflação. Esta iniciativa, consubstanciada pela

desvalorização do escudo e por outras medidas de austeridade social, originou a diminuição dos

rendimentos reais dos trabalhadores, o aumento do desemprego, dos salários em atraso e a

progressiva precarização laboral (em 1985, eram já 500 000 os contratados a prazo). Como

refere Marinús Pires de Lima

«A crise agrava o dualismo, a segmentação do mercado de trabalho e as desigualdades

económico-sociais. Para ultrapassar a rigidez das normas institucionais que limitam a

mobilidade da mão-de-obra, o patronato utiliza políticas de gestão diferenciadas dos

trabalhadores: empregos precários, subempreitadas, cedência de mão-de-obra, contratos a

prazo, individualização. A economia subterrânea desenvolve-se e atinge 20% do PIB, de

acordo com cálculos aproximados» [3].

Portugal era então um país de contrastes, em que os primeiros sinais de desenvolvimento de

uma sociedade de consumo se faziam acompanhar por situações de extrema pobreza, e mesmo

de fome, nomeadamente nos antigos pólos industriais, destronados pela pós-industrialização da

economia.

À semelhança do que se verificou com os demais grupos de oposição esquerdistas, o

Anarquismo no período pós-25 de Abril debateu-se pela sobrevivência. De acordo com João

Freire, desde meados da década de 50 que o Anarquismo havia praticamente desaparecido da

cena política em Portugal, restando apenas pequenos grupos de militantes que «dispersaram os

seus esforços por várias iniciativas oposicionistas, mas não conseguiram manter a ideia de um

movimento ou organização que poderia ressurgir publicamente tão depressa as condições

políticas e repressivas o permitissem» [4].

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De facto, quando em 1974 os condicionalismos políticos se revelaram mais favoráveis ao

renascimento de um movimento social anarquista – à semelhança do que em tempos tinha sido

realidade – as interrogações sobre o que fazer sobrepunham-se às respostas:

«Ao contrário dos restantes agrupamentos de esquerda, eles [os anarquistas] não só não

tinham um programa minimamente definido de actuação em tais circunstâncias, como – dado

de base para quem queira compreender o meio militante libertário – tinham ideias bastante

diferenciadas sobre o que seria possível e desejável fazer» [5].

Nos anos de 1975-76, após o logro que se revelou ser o Movimento Libertário Português,

surgem duas organizações: a Federação Anarquista da Região Portuguesa (FARP) e Aliança

Libertária e Anarquista-Sindicalista (ALAS).

A primeira era uma federação de diversos grupos libertários portugueses, de cariz local, tendo

chegado a agrupar cerca de uma centena de pessoas. O seu principal objectivo era a criação de

ligações entre as várias tendências anarquistas, numa tentativa de quebrar o isolamento e

fomentar o apoio mútuo entre as várias associações e entre os diversos Anarquismos. Entre as

suas actividades várias, podemos referir a edição de textos, o debate e conversa em torno de

assuntos outros que não apenas os clássicos temas do Estado e do Capital – como a ecologia, a

luta antinuclear ou o feminismo –, ou as datas históricas do Anarquismo (1 de Maio, Julho de

1936, 18 de Janeiro de 1934). Organizava ainda alguns actos públicos, como o comício

realizado no salão da “Voz do Operário” em Janeiro de 1977. De destacar, a importância

concedida aos contactos com grupos e associações anarquistas de outros países, nomeadamente

França e Espanha, por razões geográficas, históricas e políticas [6].

A ALAS, formada em 1976, partia de uma abordagem anarco-sindicalista centrada sobretudo na

questão do trabalho e não em outros fenómenos sociais cada vez mais centrais.

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O que aparentava ser o ressurgimento do movimento anarquista em Portugal foi igualmente

expresso na publicação de vários jornais e revistas, como a A Batalha (ressuscitada após

décadas de censura), A Ideia, A Voz Anarquista, a Acção Directa ou A Merda [7], bem como,

mais tarde, no surgimento de espaços, como os Ateneus Libertários de Leiria (1978), do Porto e

de Coimbra (1979).

Estas organizações pautaram-se, contudo, por uma vida breve. A FARP – politicamente mais

relevante devido ao seu número de aficionados e ao cariz das suas propostas – perdeu o seu

dinamismo inicial, verificando-se, até à sua extinção em 1979, a saída de vários grupos.

Reflectir sobre as causas desta crise assume-se como uma tarefa um pouco difícil, uma vez que

a bibliografia existente não só é escassa, como é da autoria de ex-militantes que protagonizaram

estes acontecimentos e que, como tal, estão longe de ter uma visão minimamente imparcial

sobre o assunto; ainda assim, analisando os vários artigos e relatos, parece ser possível tirar

algumas conclusões.

Constatamos, em primeiro lugar, que a tentativa de fazer renascer o movimento anarquista em

Portugal partiu de paradigmas obsoletos, tanto em termos organizacionais como doutrinários.

Invocar as experiências fantásticas de Julho de 1936 em Aragão e na Catalunha – por mais

inspiradoras que estas possam ser –, num contexto de intensa mudança social, em que o

processo de alienação e exploração se tornou cada vez mais complexo, revelou-se inadequado.

Como afirmam Carvalho Ferreira e Rui Pinto, os colectivos anarquistas «esqueceram-se que

estavam inseridos numa realidade contemporânea que não correspondia mais a um passado

repleto de heróis e experiências revolucionárias mecanicamente idolatradas e mitificadas» [8].

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Em segundo lugar, podemos mencionar a diversidade de tendências [9] que, ao invés de se

concentrarem nos pontos em comum, optaram pela evocação de incompatibilidades, acusações e

“bodes expiatórios” [10]. É de referir que a fragmentação do Anarquismo esteve igualmente

associada a um conflito geracional. Analisemos, como exemplo, o seguinte excerto de João

Freire, retirado do seu livro de memórias:

«Ao lado desta prudência e atentismo dos militantes da velha geração (rapazes e raparigas

[moças] entre os 15 e os 25 anos de idade) que haviam afluído ao movimento e à sede da Rua

Angelina Vidal tinham comportamentos e orientações bem diversas. Geralmente, eram pessoas

revoltadas contra o autoritarismo da educação paterna, ávidos de experiências sexuais e de

experimentações afectivas e emocionais, para quem o Anarquismo era sobretudo a violação de

todas as normas e a vertigem de uma liberdade existencial, em busca de objectos perante os

quais ela se pudesse afirmar, contestando-os» [11].

Adriano Botelho

O antagonismo entre velhos e novos militantes, mais do que conflituoso, caracterizava-se por

uma atitude de indiferença, incomunicabilidade e mútua ignorância em relação às tácticas

utilizadas: os velhos discursos anarco-sindicalistas de um lado, e a ideia de abolição do trabalho,

de outro; a necessidade de um corpo organizado, com funções delimitadas e quotas a pagar, em

contraste com a organização baseada na espontaneidade; os chavões anarquistas, por um lado, e

as frases non sense pintadas nas paredes, por outro.

Finalmente, importa citar uma quase total ausência anarquista das (poucas) lutas sociais que

então se travavam salvo raras excepções a algumas lutas operárias e empresas autogeridas [12],

ou a participação de alguns libertários em grupos ecológicos activos na luta contra o nuclear em

Portugal [13], um factor essencial na divulgação das ideias anarquistas na sociedade portuguesa

dos anos 80.

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Assim, ao longo desta década, o Anarquismo em Portugal resumiu-se a uma série de

publicações e grémios, frequentemente insulados e mesmo rivais uns dos outros.

Notas

[1] Ferreira, José Maria Carvalho, Pinto, Mário Rui, “Que futuro para o Anarquismo”, In

Revista Utopia, Nº17, Lisboa, Associação Cultural A Vida, 2004, pg.16.

[2] Governos do Partido Socialista – PS – (mais tarde em coligação com o Centro Democrático

Social – CDS –), de iniciativa presidencial e da Aliança Democrática (Partido Social Democrata

– PSD – coligado com o CDS e o Partido Popular Monárquico – PPM –).

[3] Lima, Marinús Pires, “Relações de trabalho, estratégias sindicais e emprego”, In AAVV,

Estruturas Sociais e Desenvolvimento: Actas do II Congresso Português de Sociologia, Vol. I,

Lisboa, Edições Fragmentos, 1992, pgs.613,614.

[4] Freire, João, “1974-1984: Evocação ou Renovação da Ideia Anarquista”, in Revista Crítica

das Ciênciais Sociais, Nº15/16/17, Coimbra, 1985, pg.163.

[5] Idem, pg.164.

[6] Por parte do movimento anarquista francês, onde se encontravam muitos exilados ibéricos,

havia um forte apoio logístico. No que respeita à relação com os anarquistas das várias regiões

de Espanha, esta fundava-se não só na solidariedade para com companheiros ainda sujeitos a

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uma campanha de terror por parte do Estado, mas igualmente pela esperança de que uma

alteração radical da situação política espanhola pudesse vir a influenciar directamente o

contexto português.

[7] De referir ainda o Pasquim (Cascais), o Satanaz (Almada), a Sabotagem, o Rastilho e a

Terra Livre (Amesterdão), a Revolta (Leiria), a Acção (Tomar), a Libertação (Pombal) e, mais

tarde, o Apoio Mútuo (Évora), A Sementeira (Lisboa), a Lanterna Negra (Lisboa) e o

Anarquista (Leiria), (Tavares, 2004).

[8] Ferreira, José Maria Carvalho, Pinto, Mário Rui, op. cit., pg.15.

[9] João Freire defende que no Anarquismo português de 1974 a 1984, é possível distinguir três

grupos, com base em atitudes distintas: os possibilistas ou realistas, que encaravam com

realismo as condições sociais (sem contudo descriminar os princípios e valores), mantendo

“uma linha de referência aos movimentos sociais que lhe parecem poder escutar o discurso

libertário” (Freire, 1985: 167); os populistas ou colectivistas, nos quais a preocupação de

militar junto das massas – nas comissões de trabalhadores, nos sindicatos, nas comissões de

moradores – originou um esvaziamento ideológico e, ocasionalmente, a adesão a forças

estranhas e até antagónicas com os princípios anarquistas; e finalmente, os pessoalistas e

inflexíveis, adeptos da mudança rápida e intransigente da realidade social. O negrito é nosso.

[10] Ferreira, José Maria Carvalho, Pinto, Mário Rui, op. cit., pg.15.

[11] Freire, João, Pessoa Comum no Seu Tempo. Memórias de Um Médio-Burguês de Lisboa na

Segunda Metade do Século XX, Porto, Edições Afrontamento, 2007, pg.437.

[12] Como o apoio por parte de alguns militantes, definidos por João Freire como “marxistas

libertários”. Freire, João, op.cit., 2007, pg.450.

[13] No dia 15 de Março de 1976, o povo de Ferrel, conjuntamente com grupos e militantes

ecologistas, marchou sobre o local onde decorriam trabalhos preparatórios para a então

projectada central nuclear. Uma demonstração de recusa que marcou o início da luta contra o

nuclear em Portugal.

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Bibliografia

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Lisboa, Edições Antipáticas, 2006.

Ferreira, José Maria Carvalho, Pinto, Mário Rui, “Que futuro para o Anarquismo”, In Revista Utopia,

Nº17, Lisboa, Associação Cultural A Vida, 2004.

Freire, João, “1974-1984: Evocação ou Renovação da Ideia Anarquista”, in Revista Crítica das Ciênciais

Sociais, Nº15/16/17, Coimbra, 1985.

Freire, João, Pessoa Comum no Seu Tempo. Memórias de Um Médio-Burguês de Lisboa na Segunda

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Lima, Marinús Pires, “Relações de trabalho, estratégias sindicais e emprego”, In AAVV, Estruturas

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Santos, Boaventura de Sousa, O Estado e a Sociedade em Portugal (1974-1984), Porto, Edições

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Tavares, José, “Anarquismo em Portugal (1974-1984): Conclusão provisória”, In Revista Utopia, Nº17,

Lisboa, Associação Cultural A Vida, 2004.

Fonte: ttp://passapalavra.info/?p=54819

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Artur Jaime Brasil Luquet Neto foi escritor e jornalista.

(N. Angra do Heroísmo, 1896 – m. Lisboa, 1966)

Cursou o liceu e, durante a Grande Guerra, a escola de oficiais milicianos, entrando para o

Exército como alferes.

Jornalista brilhante, crítico literário e de arte, foi redactor do Primeiro de Janeiro, do Século, do

Século da Noite, da República, do Diabo, dirigiu o jornal O Globo, de efémera duração, e

muitos foram os jornais e revistas em que colaborou, sendo à data da sua morte chefe da

delegação em Lisboa de O Primeiro de Janeiro, cuja excelente página «Das Artes, das Letras»

organizou, desde início, durante muitos anos, e na qual colaboraram José Régio, Casais

Monteiro, Gaspar Simões, Jorge de Sena, bem como inúmeros dos melhores autores das

décadas de 40 e 50; as recensões críticas eram, nessa página – que passou a ser dirigida pelo

poeta Alberto de Serpa –, assinadas com a letra A. (correspondente a Artur, de seu primeiro

nome).

Grande amigo do seu patrício Vitorino Nemésio, ajudou-o quando este, em 1921, vindo dos

Açores, se estreou no jornalismo profissional.

Jaime Brasil, para além de jornalista culto e probo, distinguiu-se como polemista, não poupando

o adversário nas pugnas que travou (com o diário católico Novidades, a propósito do livro A

Questão Sexual; com Agustina Bessa-Luís, acerca de Os Super-Homens, em 1950; e com um

camilianista a quem chama «camelianista», em 1958).

Em 1925 fundou o Sindicato dos Profissionais de Imprensa de Lisboa, do qual foi o primeiro

secretário-geral. Em Paris, onde residia desde 1937 e para onde voltou, algum tempo, no final

dos anos 40, fundou em 1939 a Union des Journalistes Amis de la République Française.

Obras principais: O Problema Sexual, 1931; A Questão Sexual, 1932; Os Padres e a Questão

Sexual, 1932; Os Órgãos Sexuais, 1933; A União dos Sexos, 1933; O Japão Actual, 1936;

Diderot e a Sua Época, 1941; Vida e Obras de Zola (assinado A. Luquet), 1943; Rodin, 1944;

Os Novos Escritores e o Movimento Chamado «Neo-Realismo», 1945; Vítor Hugo, 1940;

Chalom…Chalom!... Uma Reportagem na Palestina, 1948; O Caso de «A Infanta Capelista» de

Camilo Castelo Branco ou Como se Arrancam as Penas a Um Empavonado «Camelianista»,

1958; Leonardo Da Vinci e o Seu Tempo, 1959;Velásquez,1961; Ferreira de Castro. A obra e o

Homem, 1961; Zola – O Escritor e a Sua Época, 1966.

Fonte: http://pimentanegra.blogspot.pt/2007/11/jaime-brasil-notvel-escritor-e.html (Fotografia e

textos retirados do jornal O Primeiro de Janeiro)

JAIME BRASIL