Victoria Aveyard - A Rainha Vermelha

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Livro de Victoria Aveyard A Rainha vermelha

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    "Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e no mais lutando pordinheiro e poder, ento nossa sociedade poder enfim evoluir a um novo nvel."

  • Para mame, papai e Morgan, que queriam saber o que acontecia depois, mesmo quando eumesma no queria.

  • UM

    ODEIO A PRIMEIRA SEXTA. O vilarejo fica lotado, o que agora, no auge do vero, a ltimacoisa que algum desejaria. No to ruim aqui na sombra, mas o fedor dos corpos suados dotrabalho da manh forte o bastante para azedar o leite. O ar tremeluz com o calor e aumidade, e at as poas da tempestade de ontem esto quentes e agitam-se com pequenos arco-ris de leo e graxa.

    A feira esvazia medida que as barracas vo fechando. Os mercadores esto distrados,despreocupados. fcil pegar o que eu quiser dos estoques. Quando terminar, estarei com osbolsos abarrotados de quinquilharias e ainda terei uma ma para a viagem. Nada mal parapoucos minutos de trabalho. A multido se move e eu me deixo ser arrastada pela correntehumana. Minhas mos entram e saem num s gesto, sempre toques rpidos. Umas notas dobolso de um homem, a pulseira de uma mulher, nada muito grande. Os aldeos esto ocupadosdemais seguindo o fluxo para notar uma batedora de carteira.

    As altas construes sobre palafitas que do nome ao vilarejo (Palafitas, quantaoriginalidade) erguem-se ao redor, trs metros acima do solo lamacento. Na primavera, amargem sul do rio geralmente fica alagada, mas estamos em agosto, ms em que desidrataoe insolao afligem o vilarejo. Quase todo mundo espera ansiosamente a primeira sexta-feirado ms, quando a escola e o trabalho terminam mais cedo. Eu no. Preferiria estar na escolanuma sala cheia de crianas sem aprender nada.

    No que eu v permanecer muito mais tempo na escola. Meu dcimo oitavo aniversrio estchegando e, com ele, o recrutamento. No tenho formao profissional nem emprego, de modoque acabarei na guerra com outros desocupados. No de estranhar a falta de trabalho: todohomem, mulher e criana faz de tudo para ficar longe do Exrcito.

    Meus irmos foram para a guerra quando completaram dezoito anos; mandaram os trscombater Lakeland. Apenas Shade sabe escrever um pouco, e ele me manda cartas sempre quepode. No tenho informaes sobre meus outros irmos, Bree e Tramy, h mais de um ano.Mas notcia ruim sempre chega depressa. As famlias podem passar anos sem novidades paraum dia se deparar com os filhos na porta de casa de licena ou s vezes felizes por teremsido dispensados. No geral, porm, o que as pessoas recebem uma carta em papel grossocom o selo da Coroa estampado ao p de um curto agradecimento pela vida do filho. Talvezganhem at alguns botes de seus uniformes despedaados.

    Eu tinha treze anos quando Bree partiu. Ele me deu um beijo na bochecha e um par debrincos que eu teria de dividir com minha irm mais nova, Gisa. Eram dois pingentes comcontas de vidro rosado como o pr do sol. Naquela mesma noite, ns duas furamos a orelhasozinhas. Tramy e Shade mantiveram a tradio. Agora Gisa e eu levamos as trs pequenasjoias numa orelha, para lembrar dos nossos irmos que lutam em algum lugar. No acrediteique eles teriam mesmo de ir embora at o dia em que o legionrio apareceu com sua armadurareluzente e os levou consigo, um aps o outro. No prximo outono, ele vir me buscar. Jcomecei a economizar e roubar para comprar os brincos de Gisa quando partir.

    No pense nisso. o que minha me sempre diz sobre o Exrcito, sobre meus irmos, sobretudo. timo conselho, me.

    No fim da rua, no cruzamento da Mill com a Marcher, mais aldees juntam-se marcha e a

  • multido aumenta. Um bando de moleques ladrezinhos em treinamento se move pelotumulto com seus dedos grudentos e curiosos. So jovens demais para serem bons nisso, e osagentes de segurana logo intervm. Normalmente as crianas seriam mandadas para o troncoou para a cadeia no entreposto, mas os agentes querem ver a Primeira Sexta. Eles se contentamem dar algumas surras e deixar os ladres irem. Pequenas caridades.

    A menor presso na minha cintura me faz virar para trs instintivamente. Agarro aquela motola o bastante para tentar furtar de mim. Aperto to forte que o diabinho no vai conseguirescapar. Mas, em vez de um moleque mirrado, me deparo com um rosto sorridente.

    Kilorn Warren. Aprendiz de pescador, rfo de guerra e provavelmente meu nico amigo deverdade. Costumvamos brincar de lutinha quando crianas, mas agora que estamos maisvelhos e ele tem uns trinta centmetros a mais que eu, procuro evitar disputas. Acho que Kilornpode ser til. Para alcanar prateleiras altas, por exemplo.

    Voc est mais rpida ele ri, soltando-se da minha mo. Ou voc mais lento.Ele faz uma cara de tdio e apanha a ma da minha mo. Esperamos Gisa? pergunta, abocanhando a ma. Ela tem um passe para ficar o dia inteiro. Trabalhando. Ento melhor irmos. No quero perder o espetculo. Que tragdia seria Tsc, tsc, Mare ele provoca, balanando o dedo na minha cara. pra ser divertido. pra ser um aviso, seu burro.Nisso ele j caminha a passos largos, forando-me a quase correr para acompanhar o ritmo.

    O andar gingado, desequilibrado. Passos de marujo como ele chama, embora nunca tenhaestado em alto-mar. Mas acho que as longas horas no pesqueiro do seu mestre, ainda que norio, tendem a produzir algum efeito.

    O pai de Kilorn foi mandado guerra, assim como o meu. Mas, enquanto o meu regressousem uma perna e um pulmo, o sr. Warren voltou dentro de uma caixa de sapatos. A me deKilorn fugiu logo em seguida, deixando o filho abandonado prpria sorte. Ele quase morreude fome, mas por algum motivo continuou pegando no meu p. Eu o alimentava s para no terde enxotar aquele saco de ossos o tempo todo. Hoje, dez anos depois, aqui est ele. Pelomenos ocupa um posto de aprendiz e no vai ter que encarar a guerra.

    Chegamos ao p do monte onde a multido se apinha entre empurres e cutuces. obrigatrio comparecer Primeira Sexta, a menos que voc seja um trabalhador essencial,como minha irm. Como se bordar seda fosse essencial. Mas os prateados adoram seda Atos agentes de segurana podem ser subornados com peas costuradas pela minha irm. Noque eu saiba algo sobre isso.

    As sombras ao redor escurecem medida que subimos os degraus de pedra rumo ao topo damontanha. Kilorn vai de dois em dois e quase me deixa para trs. Mas ele se detm e espera,sorrindo para mim com malcia, e tirando uma mecha do cabelo castanho de seus olhosverdes.

    De vez em quando esqueo que voc tem pernas de criana. Melhor do que ter crebro de criana rebato, dando-lhe um tapinha na bochecha ao

    passar. O som da sua risada sobe os degraus atrs de mim. Voc est mais mal-humorada do que o normal.

  • que odeio essas coisas. Eu sei ele sussurra, srio pela primeira vez.Eis que chegamos arena, com o sol escaldante sobre nossa cabea. Construda h dez

    anos, a arena de longe a maior estrutura de Palafitas. No nada perto das construescolossais das cidades, mas ainda assim os arcos ascendentes de metal e os milhares de metrosde concreto bastam para fazer uma menina da aldeia perder o flego.

    Os agentes de segurana esto por toda parte; os uniformes preto e prata destacam-se namultido. a Primeira Sexta, e eles no veem a hora de assistir aos eventos. Portam armaspequenas, apesar de no precisarem. Os agentes so prateados, e os prateados no tm nada atemer de ns, vermelhos. Todo mundo sabe disso. No somos iguais, embora talvez no dpara perceber s de olhar. A nica coisa que nos diferencia ao menos por fora que osprateados andam eretos. J nossas costas so curvadas pelo trabalho, pela esperana frustradae pela inevitvel desiluso com nosso fardo na vida.

    O calor dentro da arena descoberta o mesmo do lado de fora, e Kilorn, sempre na pontados ps, me conduz para debaixo de uma sombra. No h assentos para ns, apenas uns bancosgrandes de concreto, mas os poucos nobres prateados desfrutam de camarotes frescos econfortveis na parte superior. L, dispem de bebidas, comida, gelo mesmo no auge dovero , cadeiras estofadas, luz eltrica e outras comodidades que jamais teremos. Osprateados nem ligam para isso e reclamam da sua condio miservel. Vou dar a eles umacondio miservel se um dia tiver a chance. Tudo o que h para ns so bancos duros ealguns teles com tantos chuviscos e chiados que mal podemos enxergar.

    Aposto um dia de salrio que hoje haver mais um forador Kilorn diz enquanto jogao resto da ma no cho da arena.

    Sem apostas disparo.Muitos vermelhos apostam nas lutas com a esperana de ganhar um pouquinho de dinheiro

    que os ajude a atravessar mais uma semana. Eu no aposto nem com Kilorn. mais fcilsurrupiar a bolsa do corretor de apostas do que ganhar algum dinheiro jogando.

    Voc no devia desperdiar seu dinheiro desse jeito. No desperdcio quando voc tem razo. Sempre tem um forador espancando algum.Os foradores geralmente participam de metade das lutas. Seu talento e sua tcnica os

    tornam mais aptos arena do que a maioria dos prateados. Para eles, parece prazeroso usarsua fora sobre-humana para arremessar outros campees como bonecas de pano.

    E o outro? pergunto, pensando na gama de prateados que poderiam aparecer. Telecs,lpidos, ninfoides, verdes, ptreos: todos uma dureza de ver.

    No sei direito. Tomara que seja legal. Um pouco de diverso no cairia mal.Kilorn e eu no vemos as Efemrides da Primeira Sexta com os mesmos olhos. Para mim,

    assistir a dois campees se digladiando no nada agradvel, mas Kilorn adora. Deixe quese destruam, diz. No so nossa gente.

    Ele no entende o que so esses shows. No se trata de um simples entretenimento, umdescanso para o nosso trabalho cansativo. uma mensagem fria e calculista. Apenasprateados podem lutar na arena porque apenas eles podem sobreviver arena. Lutam para nosmostrar sua fora e seu poder. Vocs no so preo para ns. Somos melhores. Somosdeuses: isso que cada golpe dado pelos campees quer dizer.

    E eles tm toda a razo. No ms passado, assisti a uma luta entre um lpido e um telec.

  • Embora o lpido se movesse mais rpido do que conseguamos ver, o telec o imobilizoucompletamente. Ele ergueu o adversrio do cho apenas com o poder da mente. O lpidocomeou a sufocar; acho que o telec agarrou a garganta dele de algum jeito invisvel. A lutaterminou quando o lpido ficou azul. Kilorn comemorou. Ele tinha apostado no telec.

    Senhoras e senhores, prateados e vermelhos, bem-vindos Primeira Sexta, a Efemridede agosto.

    A voz do locutor ecoa pela arena, amplificada pelas muralhas. Soa entediada, como decostume, mas no o culpo por isso.

    Antes as Efemrides estavam bem longe de serem disputas; eram simples execues.Prisioneiros e inimigos do Estado eram transportados para Archeon, a capital, e mortos diantede uma plateia de prateados. Acho que os prateados gostavam disso, ento comearam aslutas. No para matar, mas para divertir. Foi ento que surgiram as Efemrides de hoje, que seespalharam por outras cidades, para arenas e pblicos diferentes. Com o tempo, permitiu-se aentrada de vermelhos, confinados aos assentos mais baratos. No demorou muito at osprateados construrem arenas por toda parte, mesmo em vilarejos como Palafitas. E aparticipao dos vermelhos, que antes era um ato de benevolncia, tornou-se obrigatria. Meuirmo Shade diz que porque nas cidades com arena os vermelhos cometem menos crimes ediscordam menos do regime; at o nmero de atos rebeldes cai. Agora os prateados noprecisam apelar para execues, ou mesmo legies de agentes de segurana para manter a paz:dois campees j bastam para nos assustar.

    Hoje, os dois em questo fazem bem seu trabalho. O primeiro a pisar na areia branca apresentado como Cantos Carros, um prateado de Harbor Bay, a leste de Palafitas. O teloexplode em cores para formar uma imagem ntida do guerreiro. Ningum precisa dizer que um forador. Os braos so como troncos de rvores, cheios de nervos e veias, a pele todarepuxada. Quando ele sorri, reparo que os dentes ou esto quebrados ou j no esto na boca.Talvez ele tenha brigado com a escova de dentes na infncia.

    Do meu lado, Kilorn est aos gritos, e os outros aldees rugem com ele. Um agente desegurana atira pes aos que gritam mais alto para premiar o esforo. minha esquerda, outroagente entrega um papelzinho amarelo brilhante para uma criana que se esgoela. um lec, umvale de cota extra de eletricidade. Tudo isso para que toramos e gritemos; tudo para nosforar a ver, ainda que no queiramos.

    Isso mesmo, ele quer ouvir vocs! o locutor quase bocejou, forando o entusiasmo navoz o mximo que podia. E aqui temos seu oponente. Diretamente da capital, SamsonMerandus.

    Provavelmente um parente distante de algum famoso tentando ganhar renome na arena.Parece plido e lnguido ao lado do conjunto de msculos em forma humana que era seuoponente, mas sua armadura de ao temperado boa e reluzente. Embora devesse estarassustado, parece estranhamente calmo.

    O sobrenome soa familiar, o que no incomum. Muitos prateados pertencem a famliasilustres chamadas Casas , com dzias de membros. A Casa que governa nossa regio,Capital Valley, a Casa Welle, embora eu nunca tenha visto o governador Welle na vida. Elenunca aparece mais de uma ou duas vezes por ano, e mesmo assim nunca se rebaixa a pontode entrar num vilarejo vermelho como o meu. Vi uma vez seu barco cruzar o rio, uma mquinaelegante com bandeiras auriverdes. Ele um verde. Quando passou, as rvores nas margens

  • floresceram e o cho recobriu-se de flores. Achei bonito, at um dos garotos mais velhosjogar pedras no barco. Elas caram no rio, inofensivas. Mas o menino foi para o tronco mesmoassim.

    O forador leva, sem dvida.Kilorn observa o campeo mirrado. Como voc sabe? Qual o poder de Samson? Isso importa? Ele vai perder de qualquer jeito zombo, preparando-me para assistir.O gongo soa na arena. Muitos se levantam, ansiosos para assistir, mas permaneo sentada

    em um protesto silencioso. Por mais calma que parea, a raiva ferve dentro de mim. Raiva einveja. Somos deuses a frase que ecoa na minha cabea.

    Campees, adentrem a arena.Eles entram, pisando forte, um de cada lado. Armas de fogo so proibidas nos combates em

    arena, ento Cantos puxa uma espada curta e larga. Duvido que v precisar dela. Samson nosaca nenhuma arma, mal contrai os dedos.

    Um zumbido eltrico baixo soa na arena. Odeio esta parte! O som reverbera nos meusossos e dentes, que latejam tanto que chego a pensar que vo trincar. O rudo termina com umacampainha aguda. Comeou. Suspiro.

    Logo de cara parece que vai ser um banho de sangue. Cantos avana como um touro,levantando areia. Samson tenta desviar, usando o ombro para deslizar por trs do prateado,mas o forador rpido. Ele agarra a perna de Samson e o arremessa pela arena feito umapeteca. Os gritos da torcida encobrem o urro de dor que Samson solta ao bater no muro decimento, mas o sofrimento est escrito em sua testa. Antes de sonhar em levantar, Cantos jest em cima dele e o lana para o alto. O campeo de armadura cai na areia feito um saco deossos quebrados, mas se levanta, no sei como.

    Ele um saco de pancada? ri Kilorn. Vai pra cima, Cantos!Kilorn no liga para um po a mais ou uns minutos extras de eletricidade. No por isso

    que torce. Ele sinceramente quer ver sangue, sangue dos prateados, sangue prata manchar aarena. No importa que o sangue seja tudo o que no somos, tudo o que no podemos ser, tudoo que queremos ser. Kilorn s quer v-lo e se ilude com a ideia de que eles so humanos deverdade, que podem ser feridos e derrotados. Mas sei que no assim. O sangue deles umaameaa, um aviso, uma promessa. No somos iguais e jamais seremos.

    Kilorn no se decepciona. At as pessoas do camarote podem ver o lquido metlico efurta-cor pingar da boca de Samson. O sol de vero reflete-se nele como num espelho dgua epinta um rio correndo do seu pescoo at a armadura.

    Esta a verdadeira distino entre prateados e vermelhos: a cor do sangue. Esta nicadiferena os torna mais fortes, mais inteligentes e melhores que ns.

    Samson cospe e mais sangue prata reluz na arena. Uns dez metros frente, Cantos seguraforte a espada na mo, pronto para pr um fim na luta.

    Pobre coitado murmuro.Parece que Kilorn tinha razo: ele no passa de um saco de pancadas.Cantos faz a arena tremer com seus passos. Espada na mo, olhos em chamas. E ento ele

    para. Um p se mantm suspenso; a armadura ressoa com a interrupo abrupta. No meio daarena, o guerreiro sangrando aponta para Cantos; seu olhar parece capaz de partir ossos.

    Samson move os dedos e Cantos caminha, perfeitamente sincronizado com os gestos

  • manuais dele. A boca do forador se abre, como se no fosse bom da cabea. Como se tivesseperdido a mente.

    No acredito no que vejo.Um silncio mortal recai sobre a arena enquanto assistimos cena sem entender. At Kilorn

    no tinha o que dizer. Um murmurador suspiro em voz alta.Nunca tinha visto um deles na arena Duvido que algum tivesse. Murmuradores so

    raros, perigosos e poderosos mesmo entre os prateados, mesmo na capital. Os rumores a seurespeito variam, mas no final todos soam simples e aterrorizantes: eles podem entrar na suacabea, ler seus pensamentos e controlar sua mente. E exatamente isso que Samson fazagora, depois de atravessar a armadura e os msculos de Canto e chegar ao seu crebro, ondeno h defesas.

    Cantos ergue a espada com as mos trmulas. Tenta combater o poder de Samson. Mas, pormais fora que tenha, incapaz de lutar contra sua mente.

    Outro gesto da mo de Samson faz sangue prata respingar pela arena. Canto enfia a espadana armadura, na prpria barriga. Posso ouvir o rangido doentio do metal cortando carnemesmo do meu pssimo lugar.

    Sangue jorra de Cantos. A arena ecoa de espanto. Nunca vimos tanto sangue aqui antes.Luzes azuis acendem e banham a arena com um brilho etreo que marca o fim da disputa.

    Curandeiros prateados correm pela areia para chegar a Cantos, que est cado. Prateados nopodem morrer aqui. A ideia que lutem com braveza, ostentem seus talentos e deem umespetculo, mas nada de morrer. Afinal, eles no so vermelhos.

    Nunca vi os guardas moverem-se to rpido. Alguns so lpidos e seus vultos nos cercampor todos os lados para nos conduzir sada. No nos querem por perto caso Cantos morra naarena. Enquanto isso, Samson se retira como um tit. Seu olhar repousa sobre o corpo deCantos. Pensei que encontraria um ar de arrependimento nele, mas no. Seu rosto estimpassvel, inexpressivo e frio. O combate no significava nada para ele. Ns no somos nadapara ele.

    Na escola, aprendemos sobre o mundo antes de ns, sobre anjos e deuses que viviam no cue governavam a Terra com mos ternas e gentis. Alguns dizem que no passam de histrias,mas no acredito nisso.

    Os deuses ainda governam. Ainda descem das estrelas. S no so mais gentis.

  • DOIS

    NOSSA CASA PEQUENA, mesmo para os padres de Palafitas, mas ao menos temos uma boavista. Antes dos ferimentos, durante uma das licenas do Exrcito, meu pai construiu uma casato alta que podamos avistar o outro lado do rio. Mesmo atravs da neblina do vero, possvel ver as clareiras que antes formavam uma floresta, destinada ao esquecimento pelosmachados. Parecem uma doena, mas as colinas intocadas ao norte e ao oeste tranquilizamnossa memria: h muito mais l fora. Alm de ns, alm dos prateados, alm de tudo o queconheo.

    Subo a escada da minha casa escalando os degraus de madeira deformados pelas mos quesobem e descem diariamente. Dessa altura, vejo alguns barcos que percorrem o rio combandeiras brilhantes hasteadas. Prateados. So os nicos ricos o bastante para usar transporteprivado. Enquanto desfrutam de veculos com rodas, lanchas e at jatinhos para rasgar oscus, no temos mais que os prprios ps ou bicicletas, se tivermos sorte.

    O destino dos barcos deve ser Summerton, a pequena cidade da casa de vero do rei que seenche de vida nessa poca. Gisa esteve l hoje para ajudar a costureira de quem aprendiz.Durante as visitas do rei, as duas sempre vo feira de l para vender seus produtos aosmercadores e nobres prateados que seguem a famlia real como filhotinhos. O palcio em si conhecido como Palacete do Sol. Teoricamente uma maravilha, mas nunca o vi. No sei porque a famlia real possui uma segunda casa, principalmente se o palcio na capital toincrvel. S que, como todos os prateados, eles no agem por necessidade. So movidos pelodesejo. E o que desejam, conseguem.

    Antes de abrir a porta para o caos habitual, acaricio a bandeira que tremula na varanda.Trs estrelas vermelhas, uma para cada irmo, sobre um fundo amarelado. E h espao paramais. Espao para mim. A maioria das casas possui bandeiras como esta, algumas com faixasnegras em vez de estrelas, um silencioso lembrete dos filhos mortos.

    Dentro de casa, minha me transpira beira do forno enquanto mexe um guisado. Meu paiobserva-a da cadeira de rodas. Gisa borda na mesa, produzindo algo belo e requintado,inteiramente fora da minha compreenso.

    Cheguei anuncio a ningum em particular.Meu pai responde com um aceno e minha me move a cabea. Gisa no levanta o olhar do

    seu retalho de seda.Solto meu saco de bens roubados do lado dela, deixando as moedas tilintarem o mximo

    possvel. Acho que consegui o bastante para um bolo decente no aniversrio do papai. E mais

    baterias, suficientes para durar um ms.Gisa olha o saco e fecha a cara de desgosto. Um dia as pessoas viro aqui e tomaro tudo o que voc tem. Inveja no do seu feitio, Gisa retruco, dando-lhe tapinhas na cabea. Imediatamente,

    suas mos sobem at seu cabelo ruivo, perfeito e brilhante, e o ajeitam de volta num coquemeticuloso.

    Sempre quis ter o cabelo dela, embora nunca tenha dito isso. Enquanto seu cabelo como ofogo, o meu castanho como um rio, como costumamos dizer. Escuro na raiz e desbotado nas

  • pontas; as cores desvanecem com o desgaste da vida em Palafitas. A maioria das mulheresdeixa o cabelo curto para esconder as pontas grisalhas. Eu no. Gosto de lembrar que at meucabelo sabe que a vida no deveria ser assim.

    No estou com inveja ela bufa antes de retomar o trabalho. Ela borda flores de fogo,como se cada uma fosse uma bela chama de pontos sobre a seda negra e brilhante.

    Que bonito, Gi.Deixo minha mo contornar uma das flores, maravilhada com o toque sedoso. Gisa lana-

    me um olhar e abre um sorriso gentil que revela at seus dentes. Apesar das brigas, ela sabeque minha pequena estrela.

    E todo mundo sabe que a invejosa sou eu, Gisa. No sei fazer nada alm de roubardaqueles que realmente fazem alguma coisa.

    Assim que deixar de ser aprendiz, ela poder abrir sua prpria loja. Prateados viro detodo lugar para comprar seus lencinhos, bandeiras e roupas. Gisa conquistar o que poucosvermelhos tm e viver bem. Ela cuidar dos nossos pais e contratar meus irmos e eu comoseus ajudantes para nos tirar da guerra. Um dia Gisa nos salvar apenas com uma linha e umaagulha.

    Minhas meninas Como o dia e a noite murmura minha me. Ela no quer ofender,mas uma verdade espinhosa. Gisa talentosa, linda e doce. Eu sou mais durona, naspalavras de mame. O fundo escuro para a luz de Gisa. Acredito que nossos nicos pontos emcomum sejam os brincos compartilhados e as lembranas dos nossos irmos.

    Meu pai est ofegante em seu canto e bate no prprio peito. comum, j que ele s tem umpulmo de verdade. Por sorte, um mdico vermelho habilidoso o salvou, substituindo opulmo destrudo por um dispositivo que respira pelo meu pai. No foi inveno dosprateados, que no precisam dessas coisas. Eles tm os curandeiros, que no perdem seutempo salvando vermelhos, nem mesmo para manter os soldados na linha de frente vivos. Amaioria fica nas cidades, prolongando a vida dos velhos prateados, consertando fgadosdestrudos pelo lcool e coisas do gnero. Assim, somos forados a depender de um mercadonegro de invenes se tivermos problemas. Alguns inventos so idiotas e muitos nofuncionam. Mas um metal ruidoso salvou a vida de meu pai. Sempre escuto seu tique-taque,pequenos pulsos que mantm meu pai respirando.

    No quero bolo. Bom, ento diga o que quer, pai. Um relgio novo ou Mare, no considero novo algo que voc arrancou do pulso de algum.Antes de uma nova guerra eclodir na casa dos Barrow, minha me tira o guisado do fogo. O jantar est servido.Quando pe a panela na mesa, o vapor vai em minha direo. O cheiro est timo, me Gisa mente. Meu pai no tem o mesmo tato e abre um

    sorriso amarelo diante da refeio.No quero ser exigente, ento foro um pouco da carne goela abaixo. Para minha surpresa,

    no est to ruim quanto de costume. Voc usou a pimenta que eu trouxe?Em vez de assentir e sorrir, agradecida por eu ter notado, minha me cora e no responde.

    Sabe que a pimenta roubada, como tudo que eu trago para casa.Gisa faz uma careta de desnimo e olha para o prato, desconfiando do rumo da conversa.

  • Talvez voc pense que a essa altura eu deveria estar acostumada, mas a reprovao delesainda me incomoda.

    Minha me solta um suspiro e enterra a cabea entre as mos. Mare, eu reconheo seu gesto S queria que Que eu fosse como Gisa? completo a frase.Minha me sacode a cabea. Outra mentira. No, claro que no. No minha inteno. Certo.Certo mesmo que o vilarejo inteiro deve ter sentido a amargura da minha fala. Esforo-me

    ao mximo para minha voz no desandar num choro: o nico jeito de ajudar vocs antes antes de eu ir embora.Menes guerra so uma maneira rpida de chegar ao silncio. At meu pai respira

    silencioso. Minha me vira a cara com as bochechas vermelhas de raiva. Sob a mesa, a mode Gisa enlaa a minha.

    Sei que voc faz o que pode, pelos motivos certos balbucia minha me. Custa-lhemuito dizer isso, mas me serve de conforto mesmo assim.

    Fico de boca fechada e apenas concordo com a cabea.Ento Gisa pula da cadeira, como se tivesse levado um choque. Ai, quase esqueci! Passei no correio na volta de Summerton. Havia uma carta de Shade. como se tivesse soltado uma bomba. Meus pais, atrapalhados, pegam o envelope

    encardido que Gisa tira do bolso do casaco. Deixo ambos manusear a carta, examin-la.Nenhum dos dois sabe ler, ento tentam concluir algo a partir do prprio papel.

    Meu pai cheira a carta na tentativa de adivinhar sua origem. Pinheiros. Sem fumaa. Isso bom. Ele est longe do Gargalo.O Gargalo a faixa de terra bombardeada que liga Norta a Lakeland, onde ocorre a maior

    parte das batalhas. l que os soldados passam quase todo o tempo, encolhendo-se atrs detrincheiras fadadas a explodir ou avanando bravamente em ofensivas que acabam emmassacres. O resto da fronteira formado por lagos, embora a parte ao extremo norte seja detundra, fria e desolada demais para ser disputada. Meu pai feriu-se no Gargalo anos atrs,quando uma bomba caiu sobre sua unidade. Agora o Gargalo est to destrudo por dcadas deguerra que a fumaa das exploses forma uma neblina permanente e nada brota ali. O solo estmorto e cinza, e assim ser com o futuro da guerra.

    Ele finalmente me passa a carta, e eu a abro, sfrega e ao mesmo tempo receosa do queShade tem a dizer.

    Querida famlia, estou vivo. bvio.Isso arranca uma risadinha de meu pai e de mim, e at um sorriso de Gisa. Minha me no

    se impressiona, embora Shade comece todas as cartas assim.Recuamos da frente de batalha, como o papai farejador deve ter adivinhado. bomvoltar aos acampamentos principais. Tudo vermelho como a aurora aqui; mal dpara ver os oficiais prateados. Sem a fumaa do Gargalo, d at para ver o sol selevantar cada dia mais forte. Mas no ficarei muito por aqui. O comando planejareorganizar a unidade de combate nos lagos, e ns fomos destinados a um dos novosnavios de guerra. Conheci uma mdica transferida de outra unidade; ela disse que

  • conhece Tramy e que ele est bem. Foi atingido por estilhaos na retirada do Gargalo,mas se recuperou bem. Sem infeces, sem sequelas.

    Minha me suspira alto, balanando a cabea: Sem sequelas ironiza.

    Ainda nada de notcias de Bree, mas no me preocupo. Ele o melhor entre ns e logoreceber sua licena quinquenal. Vai estar em casa em breve, me, ento pare de sepreocupar. Nada mais a relatar, ao menos nada que eu possa escrever numa carta.Gisa, no seja exibida demais, apesar de ter motivos para isso. Mare, no seja tochata o tempo todo e pare de bater naquele Warren. Pai, tenho orgulho de voc.Sempre. Amo todos. Seu filho e irmo favorito, Shade.

    Como sempre, as palavras de Shade penetram fundo no meu peito. Quase consigo ouvir suavoz se me esforar bastante. E ento a luz sobre ns comea a oscilar.

    Ningum usou os vales de energia que eu trouxe ontem? pergunto um pouco antes de aluz apagar de vez e nos deixar na escurido. Meus olhos tentam se ajustar e mal enxergo minhame balanar a cabea.

    Podemos no repetir a discusso? Gisa resmunga enquanto afasta a cadeira e selevanta. Vou pra cama. Tentem no gritar.

    Mas no gritamos. Parece que meu mundo assim: cansada demais para lutar. Meus paisretiram-se para o quarto, deixando-me sozinha na mesa. Normalmente eu sairia um pouco decasa, mas no estou com disposio para nada alm de ir dormir.

    Subo outra escada at o sto, onde Gisa j est roncando. Ela dorme como ningum; apagadepois de mais ou menos um minuto, enquanto eu levo horas para cair no sono. Deito nobeliche, feliz simplesmente por estar ali, segurando a carta de Shade. Como percebeu meu pai,o cheiro de pinheiros forte.

    O som do rio agradvel: a gua resvala nas pedras da margem e parece cantar para que eudurma. At a velha geladeira um troo enferrujado que costuma chiar ao ponto de me dardor de cabea no me incomoda esta noite. Mas ento um pio de passarinho interrompemeu mergulho no sono. Kilorn.

    No. Vai embora.Outro pio, mais alto. Gisa vira um pouco na cama e enfia a cabea no travesseiro.Resmungando baixo, com dio de Kilorn, rolo o corpo para fora da cama e escorrego

    escada abaixo. Qualquer um tropearia na baguna da sala, mas me equilibro como ningumaps anos de experincia fugindo dos agentes. Um segundo depois j estou descendo a escadada palafita. A lama bate na altura do meu joelho. Kilorn est minha espera, misturado ssombras em torno da casa.

    Tomara que voc goste de olhos roxos, porque o que vou fazer com voc depoisdessa

    Sua expresso me interrompe.Ele esteve chorando. Kilorn no chora. Os ns dos dedos sangram, e aposto que em algum

    lugar uma parede tambm est machucada. Apesar do incmodo, apesar de ser tarde da noite,no consigo deixar de sentir preocupao, medo at, por ele.

    O que isso? O que houve?Sem pensar, tomo sua mo entre as minhas. Posso sentir seu sangue sob meus dedos.

  • O que aconteceu? pergunto de novo.Ele demora para responder, como se juntasse foras. Fico aterrorizada. Meu mestre caiu. Morreu. No sou mais aprendiz.Tento disfarar o espanto, mas ecoa em minha respirao. Apesar de no haver

    necessidade, apesar de saber o que Kilorn quer dizer, ele continua: No terminei o aprendizado e agora ele engasga com as palavras. Tenho dezoito

    anos. Os outros pescadores tm aprendizes. No trabalho. No posso arranjar um trabalho.As palavras seguintes so como uma faca no meu corao. Kilorn toma flego nervoso,

    enquanto eu desejo no precisar ouvi-lo. Vo me mandar pra guerra.

  • TRS

    J EST ACONTECENDO desde a maior parte dos ltimos cem anos. Acho que nem d parachamar de guerra, s que no existe uma palavra para essa forma superior de destruio. Naescola, disseram que comeou por causa de terras. Lakeland uma plancie frtil rodeada delagos imensos cheios de peixe. Bem diferente das montanhas de Norta, rochosas e cobertas deflorestas. As fazendas mal conseguem alimentar metade de ns. At os prateados sentiram opeso, e o rei declarou guerra, afundando todos num conflito que nenhum dos lados tinha chancereal de vencer.

    O rei de Lakeland, outro prateado, retribuiu na mesma moeda, totalmente apoiado por seusnobres. Queriam nossos rios para ter acesso a um mar que no passe metade do anocongelado, e os moinhos dgua que os rodeiam. Os moinhos so a fora do pas; fornecemeletricidade suficiente para que at os vermelhos possam receber um pouco. Ouvi rumores decidades mais ao sul, perto da capital Archeon, onde vermelhos muito habilidosos constroemmquinas que esto alm da minha compreenso. Para transporte na terra, na gua e no cu, ouarmas para semear a destruio onde os prateados quiserem. Nossa professora nos contavacheia de orgulho que Norta era a luz do mundo, uma nao grande por sua tecnologia e seupoder. Todo o resto, como Lakeland ou Piedmont, ao sul, vive nas trevas. Tnhamos sorte deter nascido aqui. Sorte. Essa palavra me d vontade de gritar.

    Mas, apesar da nossa eletricidade, da comida de Lakeland, das nossas armas e dos nmerosdeles, nenhum dos lados tinha muita vantagem sobre o outro. Ambos contam com oficiaisprateados e soldados vermelhos, valendo-se em combate de seus poderes, pistolas e doescudo de mil corpos vermelhos. Uma guerra que devia ter acabado h menos de um sculoainda se arrasta. Sempre achei engraado termos de lutar por comida e gua. Mesmo osgrandes e poderosos prateados precisam comer.

    Mas agora no tem graa nenhuma, no quando Kilorn vai ser o prximo para quem direiadeus. Pergunto-me se ele vai me dar um brinco para que me lembre dele depois que olegionrio o levar.

    Uma semana, Mare. Uma semana e j era. Sua voz comea a falhar, embora ele tentedisfarar tossindo. No posso fazer isso. Eles eles no vo me levar.

    Mas posso ver a resistncia deixar seus olhos. Deve ter alguma coisa que a gente possa fazer solto. No tem nada que ningum possa fazer. Ningum escapou do recrutamento e viveu para

    contar a histria.Ele no precisa me dizer isso. Todo ano algum tenta fugir. E todo ano esse algum

    arrastado para o pao municipal e enforcado. No. A gente vai descobrir um jeito.Mesmo nessa situao, ele arranja foras para fazer graa: A gente?Minhas bochechas ardem mais que qualquer fogueira. Estou destinada ao recrutamento tanto quanto voc, mas eles no vo me pegar. Vamos

    fugir.O Exrcito sempre foi meu destino, meu castigo. Eu sei disso. Mas no o dele. A guerra j

  • arrancou coisas demais de Kilorn. No h para onde ir ele dispara. Pelo menos estamos discutindo a ideia. Pelo menos

    ele no desistiu. Nunca sobreviveramos ao inverno do norte; o leste s mar; no oeste, hmais guerra; o sul um inferno radiativo e qualquer lugar no meio disso est lotado deprateados e agentes de segurana.

    As palavras transbordam da minha boca como um rio: Igual ao vilarejo. Lotado de prateados e agentes de segurana. E a gente consegue roubar

    bem debaixo do nariz deles e escapar ainda com a cabea sobre o pescoo.Meu crebro trabalha em seu esforo mximo para encontrar uma coisa, qualquer coisa, que

    possa ser til. E ento vem uma luz, clara como um relmpago. O mercado negro, o mercado que ns ajudamos a manter, contrabandeia tudo. De gros a

    lmpadas. Quem disse que no pode contrabandear pessoas?Sua boca abre, prestes a metralhar mil razes para no dar certo. Mas ento ele sorri. E

    concorda com a cabea.No gosto de me meter nos assuntos dos outros. No tenho tempo para isso. E, contudo, aqui

    estou, me ouvindo dizer duas palavras fatais: Deixa comigo.

    Aquilo que no conseguimos vender para os comerciantes habituais levamos para WillWhistle. Ele velho e fraco demais para trabalhos braais, mas sua mente afiada como umprego. Ele vende de tudo no seu trailer mofado, desde caf altamente proibido a esquisiticesde Archeon. Eu tinha nove anos e um punhado de botes roubados quando tentei a sorte comele pela primeira vez. Will me pagou com trs moedinhas de cobre e no fez nenhumapergunta. Agora sou sua melhor fornecedora e talvez o motivo de ele no ter ido falncianum lugarzinho como este. Algum dia, quem sabe, poderei at cham-lo de amigo.

    Levou anos para eu descobrir que Will fazia parte de um esquema muito maior. Algunschamam de submundo, outros de mercado negro. Para mim, s importa o que eles podem fazer.Seus atravessadores, pessoas como Will, esto em toda parte. At em Archeon, por incrvelque parea. Eles transportam bens ilegais pelo pas inteiro. E agora aposto minhas fichas naideia de que abram uma exceo e transportem pessoas.

    Absolutamente no.Em oito anos, Will nunca me disse no. Agora, o velho tolo e enrugado praticamente bate a

    porta do trailer na minha cara. Fico feliz por Kilorn no ter ido junto. Assim no precisa mever fracassar.

    Will, por favor. Sei que voc podeEle balana a cabea e sua barba branca se agita. Mesmo se pudesse, eu sou um negociante. As pessoas com quem trabalho no so do

    tipo que gasta tempo e energia dando carona pra um desertor. No nosso negcio.Sinto minha nica esperana, a nica esperana de Kilorn, escorregar por entre os dedos.Will deve ter notado o desespero em meus olhos. Ele se desarma e encosta na porta do

    trailer. Deixa escapar um suspiro pesado e lana um olhar para trs, em direo escuridoda van. Alguns instantes depois, entra no veculo e gesticula para que o acompanhe. Vou com amaior alegria.

    Obrigada, Will balbucio. Voc no sabe o que isso significa para mim

  • Sente-se e fique quieta, menina uma voz aguda diz.Nas sombras do trailer, quase invisvel luz da solitria vela azul de Will, uma mulher

    levanta. Uma garota, eu diria, pois parece ser pouco mais velha que eu. Mas muito mais alta.Tem um ar de guerreira experiente. A pistola na cintura, enfiada num cinturo vermelhoestampado com sis, certamente no permitida. Ela loira e bonita demais para ser dePalafitas; a julgar pelo suor em seu rosto, no est acostumada ao calor e umidade. umaestrangeira, uma forasteira e, por isso, uma fora da lei. Exatamente o tipo de pessoa quepreciso.

    Ela aponta para um banco e, assim que me sento, ela faz o mesmo. Will vem logo atrs edesaba numa cadeira gasta. Seu olhar alterna entre mim e a garota.

    Mare Barrow, esta Farley sussurra ele, e a mulher fecha a cara.Seus olhos cravam-se em meu rosto. Voc quer transportar uma carga. Eu e um rapazEla ergue a mo grande e calejada para me interromper. Carga ela repete, com o olhar repleto de significado.Meu corao salta no peito. Essa tal de Farley pode ser do tipo que se dispe a ajudar. Qual o destino? pergunta.Racho a cabea na tentativa de encontrar um lugar seguro. O velho mapa da escola paira

    ante meus olhos desenhando o litoral e os rios, indicando as cidades e vilas e tudo entre elas.De Harbor Bay at a fronteira com Lakeland no leste, da tundra do norte at os escombrosradiativos das runas e Wash: todos terrenos perigosos para ns.

    Qualquer lugar a salvo dos prateados. isso.Farley pisca para mim sem mudar sua expresso. A segurana tem um preo, garota. Tudo tem um preo, garota retruco no mesmo tom. Ningum sabe disso melhor que

    eu.Um silncio profundo preenche o trailer. Posso sentir a noite desvanecer levando preciosos

    minutos de Kilorn consigo. Farley percebe meu desconforto e minha impacincia, mas no tempressa de falar. Depois do que me pareceu uma eternidade, sua boca finalmente se abre.

    A Guarda Escarlate aceita, Mare Barrow.Preciso de todo o meu autocontrole para no pular de alegria. Mas algo me detm e no

    permite que um sorriso se desenhe em meu rosto. O pagamento vista, mil coroas prossegue Farley.Fico quase sem ar. At Will parece surpreso; suas sobrancelhas felpudas desaparecem sob

    a franja. Mil?Consigo desentalar. Ningum negocia tanto dinheiro, no em Palafitas. Daria para alimentar

    minha famlia por um ano. Vrios anos.Mas Farley no terminou. Tenho a impresso de que gosta da situao. A quantia pode ser paga em cdulas, moedas tetrarcas ou bens. E so mil coroas para

    cada item, claro.Duas mil coroas. Uma fortuna. Nossa liberdade custa uma fortuna. A carga vai ser transportada depois de amanh. O pagamento no ato.

  • Mal consigo respirar. Menos de dois dias para juntar mais dinheiro do que roubei na vidainteira. Sem chance.

    Ela nem me d tempo de reclamar. Aceita os termos? Preciso de mais tempo.Ela nega com um aceno mnimo de cabea. Inclina o corpo para a frente, e sinto o cheiro de

    plvora. Aceita os termos? impossvel. burrice. nossa melhor chance. Aceito.

    Os momentos seguintes passam num turbilho enquanto caminho cambaleante pelas sombrasde volta para casa. Meu crebro est em chamas, tentando descobrir um jeito de botar as mosem alguma coisa com o valor ao menos prximo do preo de Farley. No ser em Palafitas,isso certo.

    Kilorn ainda aguarda na escurido, um menininho perdido. Penso que ele isso mesmo. Ms notcias? pergunta, tentando manter a voz firme, mas ela vacila mesmo assim. Eles podem nos tirar daqui.Por Kilorn, mantenho a calma durante a explicao. Duas mil coroas deve ser o preo do

    trono do rei, mas fao parecer que no nada. Se algum pode fazer isso, somos ns. Ns vamos conseguir. MareSua voz sai fria, mais fria que o inverno, mas seu olhar vazio ainda pior. Acabou. Perdemos. Mas e seEle pe as mos nos meus ombros e me segura firme distncia de um brao. No di, mas

    fico chocada como se doesse. No faa isso comigo, Mare. No me faa acreditar que existe uma sada. No me d

    esperanas.Ele tem razo. cruel dar esperanas quando no h nenhuma. Geraria apenas frustrao,

    ressentimento e raiva: tudo o que torna a vida ainda mais difcil do que j . S me deixa aceitar. Talvez Talvez assim consiga pr ordem na minha cabea, treinar

    direito e ter uma chance no combate.Minhas mos vo ao encontro dos seus punhos e os agarram firme. Voc fala como se j estivesse morto. Talvez esteja. Meus irmos Seu pai cuidou para que eles soubessem muito bem o que fazer antes de partir. E o fato

    de terem quase o tamanho desta casa ajuda.Ele fora um sorriso, na tentativa de me fazer rir. No funciona. Sei nadar bem e sou um bom marinheiro continua. Vo precisar de mim nos lagos.Somente quando ele me envolve em seus braos e me aperta forte percebo que estou

    tremendo. Kilorn balbucio contra seu peito. Mas as prximas palavras no vm. Deveria ser

  • eu. Mas minha vez chegar rpido. S posso ter esperana de que ele sobreviver pelo temposuficiente para que eu o veja de novo, nos quartis ou nas trincheiras. Talvez ento encontre aspalavras certas a dizer. Talvez ento eu entenda o que sinto.

    Obrigado, Mare. Por tudo.Ele se afasta, soltando-me rpido demais. Se voc economizar, vai ter o suficiente para quando a legio vier atrs de voc ele

    conclui.Por Kilorn, concordo com a cabea. Mas no est nos meus planos deix-lo lutar e morrer

    sozinho.Volto ao beliche, apesar da certeza de que no vou dormir. Deve haver alguma coisa que

    possa fazer e vou descobrir mesmo que leve a noite inteira.A tosse de Gisa durante o sono soa mida e doce. Mesmo inconsciente, ela consegue ser

    uma dama. No surpreende que se d to bem com os prateados. Ela tudo o que eles gostamnum vermelho: quieta, feliz e despretensiosa. bom que seja ela a lidar com eles, ajudando ostrouxas super-humanos a escolher seda e tecidos finos para roupas que usaro apenas uma vez.Gisa diz que possvel acostumar-se a isso, quantia de dinheiro que gastam com coisas tobanais. E no Grande Jardim, a feira de Summerton, o dinheiro multiplicado por dez. Juntocom sua mestra, Gisa costura rendas, sedas, peles e at pedras preciosas para criar peas dearte para serem vestidas pela elite prateada que parece seguir a famlia real a toda parte. Odesfile, como ela diz, uma marcha interminvel de paves emperiquitados, um maisorgulhoso e ridculo que o outro. Todos prateados, todos bobos e todos obcecados por seustatus.

    Eu os odeio mais que o normal esta noite. As meias que usam provavelmente bastariam parasalvar a mim, Kilorn e metade de Palafitas do recrutamento.

    Pela segunda vez na noite, uma luz. Gisa. Acorda chamo, sem cochichar. Ela dorme feito um defunto. Gisa.Minha irm se vira e abafa uma reclamao no travesseiro. s vezes quero matar voc resmunga. Que lindo. Agora acorda!Seus olhos ainda esto fechados quando pulo em cima dela, como se fosse uma gata gigante.

    Tapo sua boca antes de ela conseguir gritar, chorar ou chamar a ateno da mame. S me escuta. No precisa falar, s ouvir.Ela bufa de novo na minha mo, mas assente. KilornBastou mencionar o nome do garoto para seu rosto assumir um tom vermelho brilhante. Ela

    at deu uma risadinha, coisa que nunca faz. Mas no tenho tempo para namoricos de escola,no agora.

    Chega disso, Gisa digo, depois tomo flego e continuo. Kilorn vai para oExrcito.

    Ento seu riso acaba. O Exrcito no piada, no para ns. Descobri um jeito de tir-lo daqui, de salv-lo da guerra, mas preciso da sua ajuda.Di dizer isso, mas as palavras atravessam os meus lbios mesmo assim. Preciso de voc, Gisa. Pode me ajudar?Ela no hesita e sinto meu amor por minha irm se multiplicar.

  • Sim.

    Ainda bem que sou baixinha, do contrrio no caberia no uniforme extra de Gisa. Ele grosso e escuro, nada apropriado para o sol de vero, com botes e zperes que parecemferver no calor. A mochila que levo nas costas vai sacolejando quase ao ponto de me derrubarcom o peso dos tecidos e dos materiais de costura. Gisa caminha com sua mochila e seuuniforme sufocante, mas no parecem incomod-la nem um pouco. Est acostumada comtrabalho e vida duros.

    Velejamos a maior parte do trajeto rio acima espremidas entre sacas de trigo na barca deum fazendeiro bondoso com quem Gisa fez amizade uns anos atrs. As pessoas aqui confiamnela de uma maneira que jamais confiariam em mim. O fazendeiro nos deixa a um quilmetro emeio de nosso destino, onde encontramos um cortejo de mercadores que se dirigem aSummerton. Nos misturamos a eles rumo ao que Gisa chama de Portal do Jardim, embora noexista jardim nenhum ali. Na verdade, trata-se de um porto de vidro cintilante que nos cegaantes de termos oportunidade de entrar. O resto do muro parece feito do mesmo material, masduvido que um rei prateado seja burro o bastante para se esconder atrs de muralhas de vidro.

    No vidro Gisa conta. Ou pelo menos no totalmente. Os prateados descobriramum jeito de aquecer diamantes e misturar com outros materiais. totalmente impenetrvel.Nem uma bomba consegue atravessar.

    Paredes de diamante. Parece necessrio. Fique de cabea baixa. Deixa que eu falo ela cochicha.Sigo atrs dela, com os olhos cravados nas ruas, que passam de asfalto escuro e rachado

    para pavimentos de pedras brancas. So to lisas que quase escorrego, mas Gisa me segurapelo brao e me mantm de p. Kilorn no teria problema em andar sobre isto, no com seuspassos de marujo. Por outro lado, ele nem viria at aqui. J desistiu. Mas eu no.

    medida que nos aproximamos dos portes, estreito os olhos para ver a parte de dentro,alm do reflexo do sol. Embora Summerton funcione apenas como uma residncia de vero eseja abandonada antes do primeiro floco de neve cair, a maior cidade que j vi. Ruasagitadas, lojas, bares, restaurantes, casas e ptios: tudo voltado para uma monstruosidadeofuscante feita de cristais de diamante e mrmore. E agora sei de onde veio o nome. OPalacete do Sol brilha como uma estrela com seus trinta metros de altura, como uma massasinuosa de pontes e espirais. Algumas partes parecem escurecidas segundo a vontade dosocupantes, que desejam privacidade. No se pode admitir que os camponeses fiquemobservando o rei e sua corte. sublime, intimidador, magnfico e apenas a casa devero.

    Nomes uma voz rouca urra. Gisa para no ato. Gisa Barrow. Esta minha irm Mare Barrow. Ela est me ajudando a trazer alguns itens

    para minha mestra.Gisa no vacila um instante sequer e mantm a voz no mesmo tom, quase aborrecido. O

    agente acena com a cabea para mim. Ponho a mochila na frente do corpo e abro para ele.Gisa entrega nossos cartes de identidade, ambos j rasgados, sujos, se desfazendo, mas so osuficiente.

    O homem que nos revista deve conhecer minha irm, pois mal passa os olhos na identidade

  • dela. A minha, porm, ele esmia, olhando para mim e para a foto por um minuto inteiro.Pergunto-me se ele um murmurador e pode ler minha mente. Nesse caso, meu passeiozinhochegaria ao fim bem rpido. Talvez eu tambm, com uma corda no pescoo.

    Punho ele bufa, j enfadado conosco.Hesito por um instante, mas Gisa estica a mo direita sem pestanejar. Imito seu gesto e

    mostro o brao para o policial. Ele tasca uma fita vermelha nos punhos. As voltas ficam cadavez mais apertadas, parecendo algemas: impossvel tirar isso do brao sozinha.

    Adiante o policial diz, indicando a direo com um gesto preguioso. Duas jovensgarotas no representam ameaa aos seus olhos.

    Gisa acena em agradecimento, mas eu no. Esse homem no merece um pingo do meureconhecimento. Os portes se abrem aos rangidos diante de ns. Avanamos. Enquantoadentramos esse mundo diferente, as batidas do meu corao ressoam em meus ouvidos eabafam os sons do Grande Jardim.

    Trata-se de um mercado diferente de tudo o que j vi, repleto de flores, rvores e fontes. Osvermelhos so poucos e rpidos: prestam servios e vendem suas mercadorias, todosmarcados por suas fitas vermelhas. Mesmo sem a fita, fcil identificar os prateados. Elestransbordam de joias e metais preciosos, valendo uma fortuna. Um s gesto rpido e possovoltar para casa com tudo que algum dia precisarei. Todos os prateados so altos, lindos efrios. Caminham com uma elegncia sem pressa que nenhum vermelho jamais poderia ter.Simplesmente no possumos tempo para andar desse jeito.

    Conduzida por Gisa, passo por uma padaria com bolos polvilhados de ouro, por umaquitanda repleta de frutas com cores vibrantes que nunca tinha visto e mesmo por umaexposio de animais cheia de feras alm do meu conhecimento. Uma garotinha prateada, ajulgar pelas roupas serve pedacinhos de ma a uma criatura manchada, parecida com umcavalo e de pescoo incrivelmente comprido. Umas ruas mais para a frente, uma joalheriacintila em todas as cores do arco-ris. Presto ateno no lugar, mas difcil andar de cabeaerguida aqui. O ar parece pulsar, vvido.

    Logo quando pensava que no haveria nada mais fantstico que este lugar, observo osprateados mais de perto e lembro-me exatamente de quem so. A garotinha telec e faz a malevitar a trs metros do cho para alimentar a criatura de pescoo comprido. Um florista correa mo sobre um vaso de flores brancas que disparam a crescer, chegando a enrolar-se noscotovelos de seu dono. Ele verde, capaz de manipular as plantas e o solo. Sentados beirada fonte, um par de ninfoides produz esferas flutuantes de gua para divertir a garotada semmuita animao. Um deles tem cabelo alaranjado e dio nos olhos, mesmo quando as crianasse renem ao seu redor. Por toda a praa, cada um dos tipos de prateado segue sua vidaextraordinria. H muitos, todos grandiosos, magnficos e poderosos. E to distantes domundo que conheo.

    assim que a outra metade vive murmura Gisa. J o bastante para deixarqualquer um enojado.

    Sinto-me invadida pela culpa. Sempre tive inveja de Gisa, do seu talento e de todos osprivilgios que ele garante, mas nunca pensei nos custos. Ela no frequentou a escola e tempoucos amigos em Palafitas. Se as coisas fossem diferentes, ela teria muitos. Sorriria. Em vezdisso, a menina de catorze anos arma-se de fio e agulha e parte para a batalha com o futuro dafamlia nas costas, afundada at o pescoo num mundo que odeia.

  • Obrigada, Gi cochicho em sua orelha. Ela sabe que o agradecimento no s porhoje.

    A loja de Salla ali, no toldo azul.Ela aponta para uma loja minscula no fim de uma travessa, apertada entre dois cafs. Se precisar de mim, estarei l. No vou precisar respondo rpido. Mesmo que tudo d errado, no vou envolver

    voc. timo.Ela ento agarra minha mo e a aperta por um segundo. Cuidado avisa. Isto aqui est lotado hoje, mais do que o normal. Mais lugares para se esconder digo, com um sorrisinho no rosto.Mas sua voz sria. Mais agentes tambm.Continuamos a caminhada. Cada passo nos aproxima do momento em que ela me deixar

    sozinha neste lugar estranho. Sinto uma pontada de pnico quando Gisa tira a mochila dasminhas costas com gentileza. Chegamos loja.

    Para me acalmar, murmuro para mim mesma: No falar com ningum, no encarar ningum. No parar. Saio por onde entrei, o Portal

    do Jardim. O policial remove minha fita e eu continuo a andar.Gisa confirma minhas palavras assentindo. Seus olhos esto arregalados, temerosos e talvez

    mesmo esperanosos: So dezesseis quilmetros daqui at nossa casa concluo. Dezesseis quilmetros at nossa casa ela repete.Desejando com todas as foras poder acompanh-la, observo Gisa desaparecer sob o toldo

    azul. Ela me trouxe at aqui. Agora minha vez de agir.

  • QUATRO

    J FIZ ISSO MIL VEZES: observar a multido como um lobo vigia um rebanho de ovelhas. procura dos fracos, dos lentos, dos tolos. S que, agora, pareo mais a presa. Posso escolherum lpido, que me pegar em um piscar de olhos; ou, ainda pior, um murmurador, que vaisentir minha presena a um quilmetro de distncia. At a garotinha telec tem vantagem sobremim se as coisas derem errado. Assim, tenho que ser mais rpida do que nunca, mais espertado que nunca e ter mais sorte do que nunca. enlouquecedor. Felizmente, ningum prestaateno em mais uma criada vermelha, outro inseto perambulando aos ps dos deuses.

    Volto para a praa. Deixo meus braos penderem frouxos do lado do corpo, embora estejampreparados. Normalmente esse meu jogo: caminhar pelas partes mais congestionadas damultido e deixar minhas mos apanharem bolsas e carteiras como as aranhas apanhammoscas. No sou burra a ponto de tentar isso aqui. Em vez disso, sigo a multido ao redor dapraa. Minha viso no est mais ofuscada pelo cenrio fantstico ao redor. Enxergo almdele: as fendas entre as rochas e os agentes de segurana em uniforme preto atrs de cadasombra. O impossvel mundo prateado surge mais ntido. Eles mal olham um para o outro enunca sorriem. A menina telec parece cansada de brincar com o bicho estranho, e osmercadores nem pechincham. Apenas os vermelhos parecem vivos, cruzando aqui e ali comhomens e mulheres lentos e bem de vida. Apesar do calor, do sol e dos sinais luminosos,nunca vi um lugar to frio.

    O que mais me preocupa so as cmeras de vdeo escondidas nas fachadas e vielas. Hapenas algumas no meu vilarejo, perto da sede da segurana ou da arena. Mas aqui elas estoem todos os comrcios. Consigo ouvi-las mexer, como que para recordar com firmeza:Algum mais observa voc aqui.

    A mar de pessoas me conduz pela avenida principal, por tavernas e cafs. Prateadossentam-se do lado de fora para observar a multido passar enquanto desfrutam suas bebidasmatinais. Alguns assistem a vdeos em monitores presos na parede ou pendurados em arcos.Cada um exibe algo diferente, de antigas lutas na arena a noticirios e programas coloridosque no consigo compreender. Todos se misturam em minha cabea. O som agudo dosmonitores e o chiado distante da imagem zunem em meus ouvidos. Como eles aguentam, nosei. Mas os prateados sequer piscam diante dos vdeos, como se os ignorassem por completo.

    O Palacete projeta uma sombra tnue sobre mim, e de novo me pego admirando, tola. Masento um som repetitivo me tira do transe. No comeo, parece a sirene da arena, aquela queusam para dar incio s Efemrides, mas diferente. Um pouco mais grave e pesado. Sempensar, volto-me para a direo do barulho.

    No bar perto de mim, todos os monitores exibem a mesma transmisso. No se trata de umpronunciamento real, mas de um planto de notcias. At os prateados param e assistem comum silncio extasiado. Quando o rudo termina, a reportagem comea. Uma loira de cabelosvolumosos prateada, sem dvida surge na tela assustada, e comea a ler uma ficha:

    Prateados de Norta, pedimos desculpas pela interrupo. H treze minutos houve umataque terrorista na capital.

    Os prateados ao meu redor soltam um suspiro seguido de resmungos temerosos.S consigo esfregar os olhos, descrente. Ataque terrorista? Contra os prateados?

  • Isso possvel? Ocorreram exploses concentradas em prdios governamentais no oeste de Archeon.

    Segundo relatos, a Corte, a Casa do Tesouro e o Palcio de Whitefire foram danificados, masnem a Corte nem a tesouraria estavam em sesso esta manh.

    A loira ento sai de cena para dar lugar imagem de um prdio em chamas. Agentes desegurana evacuam edifcios enquanto ninfoides lanam gua nas labaredas. Curandeiros,identificados por uma cruz preta e vermelha no brao, correm de um lado para o outro.

    A famlia real no estava na residncia de Whitefire e no h mortes confirmadas at omomento. O rei Tiberias deve se dirigir nao dentro de uma hora.

    Um prateado perto de mim cerra o punho e soca o balco, produzindo uma teia derachaduras no tampo de pedra slida. Um forador.

    Foi Lakeland! Esto perdendo no norte, ento vm nos assustar no sul!Alguns se juntam s provocaes para maldizer Lakeland. Tnhamos que varrer essa gente do mapa, avanar at Prairie! ressoa outro prateado.Muitos vibram em acordo. Precisei de toda a minha fora para no pular em cima desses

    covardes que jamais estaro na frente de batalha ou enviaro seus filhos para o combate. Aguerra prateada deles paga com sangue vermelho.

    Parte de mim se alegra com as prximas imagens transmitidas: a fachada de mrmore dotribunal pulverizada por exploses, uma muralha de diamante sob uma bola de fogo. Osprateados no so invencveis. Tm inimigos, inimigos capazes de feri-los e, pela primeiravez, no esto escondidos atrs de um escudo de vermelhos.

    A ncora retorna, mais plida do que nunca. Algum sussurra umas palavras por trs dacmera enquanto ela repassa as fichas. Suas mos tremem.

    Aparentemente uma organizao assumiu a responsabilidade pelo atentado em Archeon ela diz, gaguejando um pouco.

    Os gritos dos homens no bar cessam rapidamente. Todos esto ansiosos para escutar. Um grupo terrorista autointitulado Guarda Escarlate divulgou esse vdeo h alguns

    instantes. Guarda Escarlate? Que diabos ? alguma piada?Outras perguntas confusas ecoaram pelo balco. Ningum nunca ouviu falar da Guarda

    Escarlate.Mas eu ouvi.Foi assim que Farley se referiu a si mesma. A ela e Will. Mas ambos so contrabandistas,

    no terroristas ou homens-bomba, ou seja l o que diz o noticirio. coincidncia. Nopodem ser eles.

    No monitor, uma imagem terrvel me aguarda. Uma mulher diante de uma cmera trmula.Uma bandana vermelha cobre seu rosto, deixando mostra apenas seu cabelo dourado e osolhos azuis e vivos. Numa das mos, uma pistola; na outra, uma bandeira vermelhaesfarrapada. No peito, um medalho de bronze no formato de um sol despedaado.

    Somos a Guarda Escarlate e defendemos a liberdade e a igualdade de todos os sereshumanos a mulher diz.

    Reconheo a voz. Farley.

  • a comear pelos vermelhos.No preciso ser um gnio para saber que um bar lotado de prateados zangados e violentos

    o ltimo lugar em que uma garota vermelha gostaria de estar. Mas no consigo me mover.No consigo desgrudar os olhos do rosto de Farley.

    Vocs se consideram os donos do mundo, reis, deuses. Mas seu imprio est no fim.Enquanto no nos reconhecerem como humanos, como iguais, a guerra bater porta das suascasas. No nos campos de batalha, mas nas suas cidades. Nas suas ruas. Onde vocs moram.Vocs no nos veem, e por isso j estamos em todo lugar.

    Sua voz ressoa com autoridade e ponderao nas ltimas palavras. E ns vamos nos levantar. Vermelhos como a aurora.Vermelhos como a aurora.O vdeo termina. O monitor volta a exibir a apresentadora, agora de queixo cado. Urros

    crescentes sufocam o resto do noticirio medida que os prateados ao redor do balcorecuperam a voz. Gritam contra Farley. Chamam-na de terrorista, assassina, diabo vermelho.Antes de seus olhos recarem sobre mim, j estou de volta rua.

    S que, por toda a avenida, da praa at o Palacete, os prateados fervilham, vindos dosbares e cafs. Tento arrancar a fita vermelha do meu punho, mas ela no solta. Outrosvermelhos desaparecem nos becos e corredores, na tentativa de fugir, e eu, que no sou burra,vou atrs. Quando encontro um beco, a gritaria comea.

    Contra todos os meus instintos, viro para trs e vejo um vermelho erguido pelo pescoo.Ele suplica agressora prateada:

    Por favor, no sei nem quem so essas pessoas! O que a Guarda Escarlate? a prateada grita na cara dele.Reconheo a mulher. uma das ninfoides que brincava com as crianas h menos de meia

    hora. Quem so eles?Antes do pobre vermelho conseguir responder, um bloco de gua o acerta no rosto. A

    ninfoide levanta a mo e a gua se rene novamente para mais um golpe. Prateadosaglomeram-se em torno da cena, rindo e torcendo. O vermelho gagueja e tosse, tenta recuperaro ar. Ele refora sua inocncia a cada segundo, mas a gua continua atingindo-o. A ninfoide,com os olhos repletos de dio, no d sinais de que vai parar. Ela atrai para si gua de todasas fontes, de todos os copos, e lana contra ele, de novo e de novo.

    Vai afog-lo.

    O toldo azul meu farol, meu guia em meio ao pnico das ruas enquanto desvio tanto devermelhos quanto de prateados. Geralmente, o caos meu melhor amigo e deixa meu trabalhode ladra bem mais fcil. Ningum d pela falta de um porta-moedas quando est fugindo deuma multido. Mas minha prioridade no mais Kilorn e as duas mil coroas. S consigopensar em pegar Gisa e sair da cidade, que com certeza vai se tornar uma priso. Se fecharemos portes No quero nem pensar em ficar presa aqui, cercada por muralhas de vidro, semter como chegar liberdade.

    Os agentes correm para cima e para baixo nas ruas. No sabem o que fazer ou quemproteger. Alguns juntam vermelhos e os foram a ajoelhar. Os coitados tremem e imploram.Repetem vrias vezes que no sabem de nada. Posso apostar que sou a nica pessoa na cidade

  • inteira que ouviu falar da Guarda Escarlate antes de hoje.Uma punhalada de medo atravessa meu corpo. Se for capturada, se contar a eles o pouco

    que sei, o que faro minha famlia? A Kilorn? A Palafitas?Eles no podem me pegar.Me escondo atrs das barracas e corro o mais rpido que posso. A rua principal virou uma

    zona de guerra, mas mantenho o olhar adiante, fixo no toldo azul depois da praa. Passo emfrente joalheria. Desacelero. Uma joia bastaria para salvar Kilorn. Uma frao de segundoparada e uma chuva de estilhaos de vidro arranha meu rosto. Na rua, um telec crava osolhos em mim e mira novamente. No lhe dou chance e disparo. Escorrego por debaixo decortinas e barracas, os braos estendidos at voltar praa. Quando me dou conta, j estoucom o p encharcado, cruzando a fonte na corrida.

    Uma onda azul e espumante me joga para o lado, nas guas agitadas. Nada muito fundo,meio metro, mas a gua parece chumbo. No consigo andar, no consigo nadar, no consigorespirar. Mal consigo pensar. Minha mente s consegue gritar ninfoide e lembro do pobrevermelho na avenida, se afogando em p. Bato a cabea no fundo de pedra e vejo estrelas,fascas, at que minha viso clareia. Tenho a sensao de que cada centmetro da minha peleest eletrificado. A gua muda ao meu redor, volta ao normal e finalmente atinjo a superfcieda fonte. O ar invade meus pulmes, queimando o nariz e a garganta. No ligo: estou viva.

    Mos pequenas e fortes me agarram pelo colarinho na tentativa de me tirar da fonte. Gisa.Meus ps desgrudam do fundo e vamos ao cho juntas.

    Temos que ir grito enquanto tento ficar em p.Gisa j est correndo na minha frente, rumo ao Portal do Jardim. Que perspicaz! ela berra por cima do ombro.No consigo deixar de dar mais uma olhada na praa antes de segui-la. A multido prateada

    transborda de todas as portas, revistando as barracas com a voracidade de lobos. Os poucosvermelhos restantes se encolhem no cho e imploram por misericrdia. Na fonte de ondeacabei de escapar, um ruivo boia com o rosto para baixo.

    Meu corpo estremece. Cada nervo queima enquanto ambas avanamos na direo do Portal.Gisa segura minha mo e abre caminho para ns em meio multido.

    Dezesseis quilmetros at nossa casa ela murmura. Voc conseguiu o queprecisava?

    Sinto o peso da vergonha recair sobre meus ombros ao responder que no. No deu tempo.Mal tinha conseguido retornar avenida quando o planto comeou. No havia nada quepudesse fazer.

    O rosto de Gisa mostra pequenas rugas de preocupao. A gente pensa em algo ela afirma com uma voz to desesperada como a minha.Mas os portes j despontam diante de ns, mais prximos a cada segundo que passa.

    Encho-me de tristeza. Assim que estiver do outro lado, assim que sair, Kilorn estar perdidopara sempre.

    E acho que por isso que ela faz o que faz.Antes de eu conseguir det-la, agarr-la ou empurr-la, as mozinhas espertas de Gisa

    deslizam pela mochila de uma pessoa. Mas no uma pessoa qualquer: um prateado em fuga.Um prateado com olhar de chumbo, cara de invocado e ombros largos que gritam No mexacomigo. Gisa pode ser uma artista com a agulha e a linha, mas no batedora de carteiras. O

  • prateado leva apenas um segundo para notar o que est acontecendo. E ento algum a erguedo cho.

    o mesmo prateado. Dois deles. Gmeos? No um bom momento para comear a bater carteiras os dois dizem em unssono. E

    ento j so trs, quatro, cinco, seis, e fecham uma roda ao nosso redor. Multiplicam-se. umclonador.

    A multido d um n na minha cabea. Ela no teve a inteno. s uma criana boba Sou s uma criana boba! Gisa berra enquanto tenta chutar o clone que a segura.Eles riem juntos, uma gargalhada aterrorizante.Corro na direo de Gisa e tento pux-la, mas um deles me joga de volta para o cho. O

    impacto contra o piso duro faz o ar fugir dos meus pulmes. Fico recuperando o ar, capazapenas de ver outro gmeo botar o p na minha barriga e me imobilizar.

    Por favor gemo, mas ningum escuta. O zumbido na minha cabea se intensifica medida que as cmeras viram para focar a confuso. Sinto mais uma vez meu corpoeletrificado, agora por medo do que pode acontecer minha irm.

    Um agente de segurana o mesmo que nos deixou entrar pela manh se aproxima coma arma em punho.

    O que isso? rosna, encarando os prateados idnticos.Um por um, eles fundem-se novamente at restar somente dois: o que segura Gisa e o que

    me prende no cho. Uma ladra um deles diz, balanando minha irm. Tenho que reconhecer que ao menos

    ela no gritou.O policial a reconhece. Sua dureza se transforma em consternao numa frao de segundo. Voc conhece a lei, menina.Gisa abaixa a cabea. Sim.Luto o mximo que posso para tentar impedir o que est para acontecer. Som de vidro

    quebrando, luzes piscando: um monitor perto de ns destrudo pelo tumulto. Nem issoimpede o policial de agarrar minha irm e pr a mo dela no cho.

    Minha voz sai por vontade prpria, unindo-se ao rudo do caos: Fui eu! Foi minha ideia! Me castiguem!Mas eles no ouvem. No se importam.Posso apenas observar o policial deitar minha irm ao meu lado. Seus olhos fixam-se nos

    meus enquanto ele desce a coronha da arma e esmaga os ossos da mo que ela usa paracosturar.

  • CINCO

    KILORN VAI ME ENCONTRAR EM QUALQUER ESCONDERIJO, ento sigo em frente. Corro. Como seassim pudesse deixar para trs o que fiz com Gisa, a falha com Kilorn, tudo o que arruinei.Mas at eu sou incapaz de deixar para trs o olhar da minha me quando deixo Gisa em casa.Vi a sombra do desespero em seu rosto e corri, antes que meu pai pudesse arrastar sua cadeirade rodas cena. No consigo encarar os dois. Sou uma covarde.

    Ento corro at no conseguir pensar, at cada lembrana ruim se desfazer, at sentir apenasmeus msculos queimarem. Chego a dizer para mim mesma que as lgrimas em meus olhos sochuva.

    Quando finalmente diminuo o passo para tomar flego, estou fora do vilarejo, unsquilmetros adentro da terrvel estrada para o norte. As rvores filtram a luz sobre a curva e aprojetam sobre uma estalagem, uma das muitas presentes nas velhas estradas. Oestabelecimento est lotado, como em todos os veres; cheio de criados e trabalhadoressazonais que acompanham a Corte. Eles no moram em Palafitas, no conhecem meu rosto, demodo que so presas fceis para furtos. Fao isso todo vero, mas Kilorn est sempre comigo,sorrindo enquanto bebe e me v trabalhar. Acho que j no vou v-lo sorrir por muito tempo.

    Risadas escandalosas surgem quando um punhado de homens, bbados e felizes, sai daestalagem aos tropeos. Seus porta-moedas tilintam sob o peso do pagamento do dia. Dinheiroprateado, por servir, sorrir e ajoelhar-se a monstros vestidos de senhores.

    Causei tantos estragos hoje, tanta dor queles que mais amo. Deveria dar meia-volta e irpara casa, encarar todos, ter pelo menos um pouco de coragem. Em vez disso, detenho-me sobas sombras da estalagem, contente por permanecer na escurido.

    Acho que s sirvo para machucar as pessoas.No demora muito para os bolsos do meu casaco ficarem cheios. Bbados aparecem a cada

    cinco minutos, e avano sobre eles com um sorriso no rosto para esconder minhas mos.Ningum nota, ningum sequer liga quando torno a desaparecer. Sou uma sombra, e ningum selembra de sombras.

    Chega a meia-noite. Ainda estou de p, espera. Do alto, a lua um indicativo luminosodas horas, de quanto tempo faz que estou fora de casa. Um ltimo bolso. Um ltimo bolso evou embora. J faz uma hora que digo isso a mim mesma.

    No penso quando o prximo cliente sai. Seus olhos se voltam para o cu e ele no me nota. fcil demais alcanar sua bolsa, fcil demais passar os dedos pelos cordes do porta-moedas. Eu devia ter aprendido a esta altura: nada aqui fcil. Mas o tumulto, os olhos ocosde Gisa e o sofrimento me emburreceram.

    A mo dele se fecha sobre meu punho, com fora e um calor estranho. Ele me puxa para foradas sombras. Tento resistir, escapar, mas forte demais. Ele se volta para mim, e o fogo emseus olhos me enche de medo, o mesmo que senti de manh. Mas ser bem-vindo qualquercastigo que ele queira infligir. Mereo tudo.

    Ladra ele diz, com uma estranha surpresa na voz.Pisco para ele, esforando-me para conter o riso. Nem tenho foras para negar. Claro.Ele me encara, analisa cada detalhe, do rosto at as botas gastas. Fico constrangida. Depois

  • de um longo momento, ele deixa escapar um suspiro e me solta. Confusa, sou apenas capaz deencar-lo. Uma moeda de prata rodopia no ar, e quase no tenho a astcia de apanh-la. Umtetrarca. Um tetrarca de prata, que vale uma coroa. Bem mais que todas as moedinhasroubadas no meu bolso.

    Isso deve ser mais que o suficiente para voc se manter diz, antes que eu possaresponder.

    luz da estalagem, seus olhos reluzem um vermelho dourado, a cor do fogo. Os anos quegastei estudando o jeito das pessoas no me deixam na mo, nem mesmo agora. Cabelos pretossedosos demais, pele plida demais: ele tudo menos um criado. Seu fsico, porm, mais delenhador, com ombros largos e pernas fortes. Ele jovem, um pouco mais velho que eu,embora bem longe de ter a autoconfiana que qualquer outro jovem de dezenove ou vinte anostem.

    Eu devia beijar suas botas por me deixar ir e me dar tamanho presente, mas sou vencidapela curiosidade. Como sempre.

    Por qu? as palavras saem duras e rspidas. Depois de um dia como hoje, comopoderiam ser diferentes?

    A pergunta o surpreende e ele d de ombros. Voc precisa mais do que eu.Tenho vontade de jogar a moeda na cara dele, de dizer que sei me cuidar, mas um pedao de

    mim mais prudente. Voc no aprendeu nada hoje? Obrigada foro por entre os dentes.Por algum motivo, ele ri da minha gratido relutante. No v se machucar.Ento ele muda de posio e chega mais perto. a pessoa mais estranha que j conheci. Voc mora num vilarejo, no ? Sim respondo, gesticulando para mim mesma. Com meu cabelo desbotado, minhas

    roupas imundas e meus olhos submissos, onde mais moraria? O contraste impressionante:ele veste uma camisa boa e limpa, sapatos de couro brilhantes e macios. Reparo que elebrinca com sua correntinha, agitado. Eu o deixo nervoso.

    Plido sob o luar, com olhos incisivos, ele pergunta, para disfarar: E voc gosta? De viver l, digo.A pergunta quase me provoca gargalhadas, mas ele no se impressiona. Algum gosta? respondo enquanto tento descobrir qual a dele.Mas, em vez de contestar rpido, de emendar algo como Kilorn faria, ele se cala. Sua

    expresso torna-se sombria. Voc j vai voltar? indaga de repente, apontando para a estrada. Por qu? Voc tem medo do escuro? pergunto, falando devagar e cruzando os braos.

    Mas l no fundo me questiono se no deveria estar com medo. Ele forte e rpido, e vocest sozinha aqui fora.

    Seu sorriso reaparece, e o alvio que isso me causa arrebatador. No, mas quero garantir que voc vai manter as mos longe dos outros pelo resto da

    noite. No pode ficar aqui sugando metade do bar, pode? A propsito, meu nome Cal acrescenta, estendendo a mo para me cumprimentar.

    Recuso a mo, ainda me lembrando do calor escaldante de sua pele. Tomo o rumo da

  • estrada a passos silenciosos e ligeiros. Mare Barrow digo sobre o ombro.No demora muito e suas longas pernas me alcanam. Voc sempre assim to simptica? ele provoca. Por algum motivo, tenho a sensao

    de estar sendo analisada. Mas a fria moeda de prata na minha mo me mantm calma e melembra do que mais ele carrega nos bolsos. Prata para Farley. Muito apropriado.

    Seus senhores devem pagar bem para voc carregar coroas de prata disparo naesperana de mudar de assunto. Funciona, e ele recua, um pouco assustado.

    Tenho um bom emprego explica, fingindo no ligar. No o meu caso. Mas voc Jovem. Tenho dezessete anos completo. Ainda tenho tempo antes do recrutamento.Ele aperta os olhos e os lbios. H um qu de dureza na sua voz que torna suas palavras

    mais afiadas. Quanto tempo? Cada dia menos.Di por dentro s de dizer isso em voz alta. E Kilorn tem ainda menos tempo que eu.Suas palavras secam. Ele volta a me observar e a me estudar enquanto andamos pela

    floresta. Pensando. E no h trabalho ele murmura, mais para si mesmo. No h como escapar do

    recrutamento.Fico intrigada com sua confuso mental. Talvez as coisas sejam diferentes de onde voc vem. Por isso voc rouba.Roubo. o que posso fazer deixo escapar. De novo, lembro que s sirvo para causar dor.

    Mas minha irm trabalha solto, antes de lembrar. No, ela no trabalha. No mais. Porminha culpa.

    Cal apenas observa enquanto luto com as palavras, pensando se me corrijo ou no. o queposso fazer para manter as aparncias, para no desabar por inteiro diante de um completoestranho. Mas ele nota o que tento esconder.

    Voc estava no Palacete hoje?Acho que ele j sabe a resposta. Mesmo assim continua. Os tumultos foram terrveis. ForamQuase engasgo com as palavras. VocEle prossegue com as perguntas mais tranquilo. como fazer um furo numa represa para

    que toda a gua jorre para fora. Eu no seria capaz de deter as palavras mesmo se quisesse.No menciono Farley, a Guarda Escarlate, nem mesmo Kilorn. S conto que minha irm me

    infiltrou no Grande Jardim para me ajudar a juntar o dinheiro de que precisvamos parasobreviver. Ento veio o erro de Gisa, a fratura e o que ela significa para ns. O que causei minha famlia. O que andei fazendo, a decepo da minha me, a vergonha do meu pai, osfurtos dentro da prpria comunidade. Aqui, na escurido, conto a um estranho como sou

  • pssima. Ele no faz perguntas, mesmo quando minhas palavras saem sem sentido. Apenasescuta.

    o que posso fazer digo novamente antes da minha voz sumir por completo.Ento capto um brilho prata pelo canto do olho. Ele saca outra moeda. Sob a luz do luar, s

    consigo ver os contornos da coroa flamejante do rei estampada no metal. Quando Cal a apertacontra minha mo, tenho a esperana de sentir seu calor de novo, mas ele est frio.

    No quero sua piedade, sinto vontade de gritar, mas seria burrice. A moeda vai comprar oque Gisa j no pode.

    Sinto muito mesmo por voc, Mare. As coisas no deveriam ser assim.No consigo nem reunir foras para fechar a cara. H vidas piores. No lamente por mim.

    Ele me acompanha at a entrada do vilarejo, me deixando caminhar pelas palafitas sozinha.Algo na lama e nas sombras deixa Cal desconfortvel, e ele desaparece antes de eu ter achance de olhar para trs e agradecer ao estranho criado.

    A casa est escura e silenciosa, mas mesmo assim tremo de medo. A manh parece estar acem anos de distncia, parte de outra vida em que fui idiota, egosta e talvez um pouco feliz.Agora s me restam um amigo recrutado e uma irm de ossos quebrados.

    Voc no devia deixar sua me preocupada desse jeito a voz de meu pai sai de detrsdas vigas das palafitas e ressoa em meus ouvidos. Faz tantos anos que nem lembro mais daltima vez em que o vi no cho.

    Minha voz se exalta de susto e medo. Pai? O que voc est fazendo? Como voc?Antes de eu terminar, ele aponta para trs, para a polia pendendo da casa. a primeira vez

    que a usa. Acabou a energia. Pensei em dar uma olhada ele diz, rouco como sempre.Ele passa por mim com sua cadeira e para diante da caixa de fora fincada no cho. Toda

    casa possui uma dessas para regular a carga eltrica que mantm as luzes acesas.Meu pai est ofegante, seu peito estala a cada respirao. Talvez Gisa fique como ele: a

    mo, uma baguna metlica; o crebro, despedaado e amargurado por causa do que poderiater sido.

    Por que voc no usa os lecs que eu trago?Sua resposta tirar um vale de energia da camisa e enfiar na caixa. Geralmente isso faz a

    caixa de fora funcionar. Mas agora nada acontece. Est quebrada. No adianta suspira meu pai, voltando a se acomodar na cadeira.Ambos permanecemos olhando para a caixa de fora, sem assunto, sem querer sair, sem

    querer voltar l para cima. Meu pai fugiu, como eu. No suportou ficar dentro de casa comminha me chorando sobre a mo de Gisa, lamentando sonhos perdidos enquanto minha irmtentava no fazer o mesmo.

    Meu pai comea a bater naquela porcaria de caixa, como se pancadas de repente fossemcapazes de trazer de volta luz, calor e esperana. Os golpes ficam mais irritados, maisdesesperados, e ele comea a irradiar dio. No por mim ou Gisa, mas pelo mundo. H muitotempo ele nos chamou de formigas, formigas vermelhas ardendo sob a luz de um sol prateado.Destrudas pela grandeza dos outros, quase derrotadas na batalha pelo nosso direito de existir,

  • porque no somos especiais. No evolumos como eles, que tm poderes e foras alm danossa imaginao limitada. Permanecemos os mesmos, presos em nossos corpos. O mundomudou ao nosso redor e permanecemos os mesmos.

    A raiva tambm toma conta de mim: xingo Farley, Kilorn, o recrutamento, cada coisa emque consigo pensar. A caixa de metal fria ao toque, faz tempo que perdeu o calor daeletricidade. Mas algo ainda vibra sob todo aquele mecanismo, algo espera reconectar-se.Perco a cabea e me lano tarefa de encontrar eletricidade, de traz-la de volta e provar queao menos sei fazer direito alguma coisa neste mundo to torto. Meus dedos topam com algumacoisa pontiaguda e meu corpo estremece. Um fio desencapado e afiado ou uma chavedefeituosa, digo a mim mesma. Pareceu uma picada de agulha, como se um alfinete meacertasse bem no nervo, mas sem dor.

    Acima de ns, a luz da varanda ressuscita. Bom, vai entender resmunga meu pai.Ele gira as rodas enlameadas da cadeira de volta para a polia. Vou atrs, calada, sem

    vontade de mencionar o motivo de ambos estarmos com tanto medo do lugar que chamamos delar.

    Chega de fugir ele suspira, prendendo a cadeira na plataforma. Chega de fugir concordo, mais por mim que por ele.A plataforma geme sob o peso ao i-lo at a varanda. Vou mais rpido pela escada e

    espero no andar de cima para ajudar, sem palavras, meu pai a se soltar da plataforma. Porcaria resmunga ele quando finalmente consigo soltar a fivela. Mame vai ficar feliz por voc ter sado de casa.Ele crava os olhos em mim e segura minha mo. Embora meu pai mal trabalhe ele s

    conserta bugigangas para crianas , suas mos ainda so speras e calejadas, como setivesse acabado de voltar da frente de batalha. A guerra nunca acaba.

    No conte para sua me. Mas Sei que no parece nada, mas d pano pra manga. Ela vai pensar que um pequeno

    passo de uma grande jornada, entende? Primeiro saio de casa noite, depois de dia, depoisvou feira com ela como h vinte anos. Ento as coisas voltam a ser como antes.

    Seus olhos escurecem enquanto ele fala. Meu pai luta para manter a voz baixa e constante. Nunca vou ficar bem, Mare. Nunca vou me sentir bem. No posso deixar sua me ter

    essa esperana quando sei que nunca vai acontecer. Voc entende?Bem demais, pai.Ele sabe o que a esperana fez comigo e ameniza o tom. Queria que as coisas fossem diferentes. Todos queramos.Apesar das sombras, consigo avistar a mo quebrada de Gisa quando chego ao sto.

    Normalmente ela dorme encolhida, enrolada num cobertor fino, mas agora est de barriga paracima, com a mo fraturada apoiada sobre uma pilha de roupas. Minha me ajeitou a tala melhorando assim minha nfima tentativa de ajudar e trocou as gazes. No preciso de luzpara saber que sua pobre mo est roxa dos machucados. O sono de Gisa inquieto, seu corpose agita, mas o brao permanece imvel. Di mesmo durante o sono.

    Quero tocar minha irm, mas como posso consertar os acontecimentos trgicos do dia?

  • Pego uma carta de Shade na caixinha onde guardo toda a sua correspondncia. Ao menosvai me deixar mais calma. Suas piadas, suas palavras, sua voz presa nas pginas sempre metranquilizam. Mas, ao correr os olhos novamente pela carta, sou tomada por tristeza.

    Vermelho como a aurora, diz a carta. A est, na minha cara. As palavras de Farley novdeo, o grito de guerra da Guarda Escarlate, na caligrafia do meu irmo. A frase estranhademais para ser ignorada, singular demais para ser posta de lado. E a prxima frase: ver osol se levantar cada dia mais forte Meu irmo esperto, mas prtico. No liga para onascer nem para o pr do sol, menos ainda para frases de estilo. O se levantar ressoa em mim.Em vez de Farley, meu irmo que fala. Se levantar, vermelho como a aurora.

    De algum modo, Shade sabia. Muitas semanas atrs, antes do atentado, antes da transmissode Farley, ele sabia da Guarda Escarlate e tentou nos avisar. Por qu?

    Porque um deles.

  • SEIS

    NO ME ASSUSTO QUANDO ESCANCARAM AS PORTAS AO AMANHECER. Revistas so normais,embora geralmente s tenhamos duas por ano. Esta vai ser a terceira.

    Venha, Gi balbucio ao ajudar minha irm a sair da cama e descer a escada. Ela andacom dificuldade, apoiando-se no brao bom. L embaixo, minha me est espera. Seusbraos envolvem Gisa, mas os olhos focam em mim. Para minha surpresa, ela no parecebrava ou decepcionada comigo. Pelo contrrio, seu olhar at suave.

    Dois agentes esperam porta, armas na cintura. J vi os dois no entreposto do vilarejo, mash uma terceira figura: uma jovem de vermelho com uma insgnia tricolor no peito. Umacriada real, uma vermelha que serve o rei. Percebo que esta no vai ser uma revista usual.

    Submetemo-nos revista e apreenso meu pai resmunga. Ele obrigado a dizeressas palavras sempre que isso acontece. Mas, em vez de dividir-se para revirar a casa, osagentes permanecem de guarda.

    A jovem d um passo frente e, para meu horror, se dirige a mim: Mare Barrow, voc foi intimada a ir a Summerton.A mo boa de Gisa se fecha sobre a minha, como se pudesse me prender aqui. Como? gaguejo a muito custo. Voc foi intimada a ir a Summerton ela repete, apontando para a porta. Vamos

    escolt-la. Por favor, venha.Uma intimao. Para um vermelho. Nunca na vida ouvi falar disso. Ento, por que eu? O

    que fiz para merecer isso?Por outro lado, sou uma criminosa e provavelmente considerada terrorista por causa do meu

    envolvimento com Farley. Sinto todos os nervos do meu corpo pinicarem; cada um dos meusmsculos est tenso e pronto. Preciso correr, apesar dos agentes bloquearem a porta. Vai serum milagre se conseguir chegar at a janela.

    Acalme-se. Tudo j voltou ao normal ela brinca, enganada quanto ao meu medo. OPalacete e a feira j esto sob controle. Por favor, venha.

    Para minha surpresa, ela at sorri, apesar de os agentes levarem a mo arma. Isso gelameu sangue.

    Negar uma ordem da polcia, recusar uma intimao real significa pena de morte noapenas para mim.

    Tudo bem digo baixinho enquanto solto a mo de Gisa. Ela tenta me agarrar de novo,mas mame a puxa para trs. Vejo vocs mais tarde?

    Minha pergunta paira no ar. Sinto a mo clida de meu pai acariciar meu brao. seu jeitode dizer adeus. Os olhos de minha me marejam de lgrimas no derramadas, ao passo queGisa tenta no piscar a fim de se lembrar de cada segundo comigo. E nem tenho algo para lhedar. Mas, antes que eu hesite ou solte o choro, um policial me toma pelo brao e me leva parafora.

    As palavras foram passagem por entre meus lbios, embora sejam pouco mais que umsuspiro.

    Amo vocs.E ento a porta bate atrs de mim, acabando com meu lar e minha vida.

  • Eles me apressam pelo vilarejo ao longo da estrada que d para a praa do mercado.Passamos na frente do casebre de Kilorn. Ele costumava estar acordado a essa hora, j nametade do caminho at o rio para comear o trabalho com o dia ainda fresco. Mas issoacabou. Imagino que ele durma at meio-dia na tentativa de aproveitar o pouco conforto quelhe resta antes do recrutamento. Parte de mim quer dar um grito de despedida, mas me seguro.Ele vai aparecer em casa atrs de mim e Gisa contar tudo. Lembro que hoje Farley estaresperando por mim e pela fortuna que teria que pagar. No consigo segurar um riso silencioso.Ela vai ficar decepcionada.

    Na praa, um veculo preto brilhante est espera. Estacionado com quatro rodas, janelasde vidro: parece uma fera pronta para me devorar. Um oficial sentado diante dos controlesliga o motor quando nos aproximamos. A cusparada de fumaa preta tinge o ar matinal. Souforada a entrar na parte de trs sem que me digam qualquer coisa. A jovem criada se ajeita aomeu lado pouco antes de o veculo acelerar pela estrada a uma velocidade inimaginvel. Estaser minha primeira e ltima viagem num destes.

    Quero falar, perguntar o que est acontecendo, como vo me punir pelos meus crimes, massei que minhas palavras no seriam ouvidas. Ento apenas olho pela janela o vilarejodesaparecer medida que entramos na floresta, avanando pela familiar estrada do norte. Noest to cheia quanto ontem, e o trajeto est pontilhado de agentes. O Palacete est sobcontrole, tinha dito a criada. Acho que era a isso que ela se referia.

    A muralha de diamante brilha adiante, refletindo o sol que se levanta nos bosques. Querofechar os olhos, mas resisto. Sei que tenho que mant-los abertos aqui.

    O porto est cercado de uniformes pretos, agentes que verificam os viajantes que entram.Quando o veculo encosta, a criada me tira de l e me conduz at o porto sem pegar a fila.Ningum protesta ou se d ao trabalho de verificar sua identidade. Ela deve ser conhecida poraqui.

    Assim que entramos, a criada me encara. Meu nome Ann, a propsito, mas aqui quase sempre atendemos pelo sobrenome. Voc

    pode me chamar de Walsh.Walsh. O nome soa familiar. Combinado com o seu cabelo desbotado e com a pele

    bronzeada, s pode significar uma coisa. Voc de? De Palafitas, como voc. Conheci seu irmo Tramy e gostaria de no ter conhecido Bree,

    aquele safado.Bree ficou famoso no vilarejo antes de partir. Uma vez me disse que no tinha tanto medo

    do recrutamento como os outros porque o grupo de garotas sedentas de sangue que ele iadeixar para trs era bem mais perigoso.

    No conheo voc, mas logo conhecerei muito bem.No consigo mais segurar: O que isso quer dizer? Quer dizer que sua jornada de trabalho aqui vai ser longa. No sei quem contratou voc

    ou o que disseram sobre o emprego, mas cedo ou tarde voc sente o peso. No s trocarlenis e fronhas e lavar pratos. Voc precisa olhar sem ver, ouvir sem escutar. Somos objetosaqui, esttuas vivas feitas para servir. Ela suspira baixo e abre uma porta pesadaconstruda bem ao lado do porto. Especialmente com esse negcio de Guarda Escarlate.

  • Nunca bom ser vermelho, mas agora pior.Ela cruza a porta e, aparentemente, tambm o muro. Leva um tempo para eu perceber que

    est descendo uma escada, e por isso sumiu em meio semiescurido. O emprego? insisto. Que emprego? O que isso?Ela se vira para mim com cara de tdio. Voc foi intimada a assumir um posto de criada diz, como se fosse a coisa mais bvia

    do mundo.Trabalhar. Um emprego. Quase desmaio s de pensar.Cal. Ele disse que tinha um bom trabalho e agora mexeu os pauzinhos p