Victor Nunes Leal

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SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

Memória JurisprudencialMINISTRO VICTOR NUNES

FERNANDO DIAS MENEZES DE ALMEIDABrasília2006

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SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

Ministra ELLEN GRACIE Northfleet (14-12-2000), Presidente

Ministro GILMAR Ferreira MENDES (20-6-2002), Vice-Presidente

Ministro José Paulo SEPÚLVEDA PERTENCE (17-5-1989)

Ministro José CELSO DE MELLO Filho (17-8-1989)

Ministro MARCO AURÉLIO Mendes de Farias Mello (13-6-1990)

Ministro Antonio CEZAR PELUSO (25-6-2003)

Ministro CARLOS Augusto Ayres de Freitas BRITTO (25-6-2003)

Ministro JOAQUIM Benedito BARBOSA Gomes (25-6-2003)

Ministro EROS Roberto GRAU (30-6-2004)

Ministro Enrique RICARDO LEWANDOWSKI (9-3-2006)

Ministra CÁRMEN LÚCIA Antunes Rocha (21-6-2006)

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Diretoria-GeralSérgio José Américo Pedreira

Secretaria de DocumentaçãoAltair Maria Damiani Costa

Coordenadoria de Divulgação de JurisprudênciaNayse Hillesheim

Seção de Preparo de PublicaçõesNeiva Maria de Moura Ludwig

Seção de Padronização e RevisãoKelly Patrícia Varjão de Moraes

Seção de Distribuição de EdiçõesMargarida Caetano de Miranda

Diagramação: Manoel Vieira Santana

Capa: Jorge Luis Villar Peres

Edição: Supremo Tribunal Federal

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Supremo Tribunal Federal – Biblioteca Ministro Victor Nunes Leal)

Almeida, Fernando Dias Menezes de.Memória jurisprudencial: Ministro Victor Nunes / Fernando

Dias Menezes de Almeida. – Brasília: Supremo TribunalFederal, 2006. – (Série memória jurisprudencial)

1. Ministro do Supremo Tribunal Federal. 2. Brasil. Su-premo Tribunal Federal (STF). 3. Nunes, Victor — Jurispru-dência. I. Título. II. Série.

CDD-341.4191081

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Ministro Victor Nunes

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APRESENTAÇÃO

A Constituição de 1988 retomou o processo democrático interrompido peloperíodo militar.

Na esteira desse novo ambiente institucional, a Constituição significouuma renovada época.

Passamos para a busca de efetividade dos direitos no campo das presta-ções de natureza pública, como pelo respeito desses direitos no âmbito da socie-dade civil.

É na calmaria institucional que se destaca a função do Poder Judiciário.

É inegável sua importância como instrumento na concretização dos valoresexpressos na Carta Política e como faceta do Poder Público, em que os horizontesde defesa dos direitos individuais e coletivos se viabilizam.

O papel central na defesa dos direitos fundamentais não poderia ser alcan-çado sem a atuação decisiva do Supremo Tribunal Federal na construção daunidade e do prestígio de que goza hoje o Poder Judiciário.

A história do SUPREMO se confunde com a própria história de constru-ção do sistema republicano-democrático que temos atualmente e com a consoli-dação da função do próprio Poder Judiciário.

Esses quase 120 anos (desde a transformação do antigo Supremo Tribunalde Justiça no Supremo Tribunal Federal, em 28-2-1891) não significaram sim-plesmente uma seqüência de decisões de cunho protocolar.

Trata-se de uma importante seqüência político-jurídica da história nacionalem que atuação institucional, por vários momentos, se confundiu com defesaintransigente de direitos e combate aos abusos do poder político.

Essa história foi escrita em períodos de tranqüilidade, mas houve tambémdelicados momentos de verdadeiros regimes de exceção e resguardo da indepen-dência e da autonomia no exercício da função jurisdicional.

Conhecer a história do SUPREMO é conhecer uma das dimensões docaminho político que trilhamos até aqui e que nos constituiu como cidadãos brasi-leiros em um regime constitucional democrático.

Entretanto, ao contrário do que a comunidade jurídica muitas vezes tende aenxergar, o SUPREMO não é — nem nunca foi — apenas um prédio, um plená-rio, uma decisão coletada no repertório oficial, uma jurisprudência.

O SUPREMO é formado por homens que, ao longo dos anos, abraçaramo munus público de se dedicarem ao resguardo dos direitos do cidadão e àdefesa das instituições democráticas.

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Conhecer os vários “perfis” do SUPREMO.

Entender suas decisões e sua jurisprudência.

Analisar as circunstâncias políticas e sociais que envolveram determinadojulgamento.

Interpretar a história de fortalecimento da instituição.

Tudo isso passa por conhecer os seus membros, os valores em que acredi-tavam, os princípios que seguiam, a formação profissional e acadêmica que tive-ram, a carreira jurídica ou política que trilharam.

Os protagonistas dessa história sempre foram, de uma forma ou de outra,colocados de lado em nome de uma imagem insensível e impessoal do Tribunal.

Vários desses homens públicos, muito embora tenham ajudado, de formadecisiva, a firmar institutos e instituições de nosso direito por meio de seus votose manifestações, são desconhecidos do grande público e mesmo ignorados entreos juristas.

A injustiça dessa realidade não vem sem preço.

O desconhecimento dessa história paralela também ajudou a formar umavisão burocrática do Tribunal.

Uma visão muito pouco crítica ou científica, além de não prestar homena-gem aos Ministros que, no passado, dedicaram suas vidas na edificação de umregime democrático e na proteção de um Poder Judiciário forte e independente.

Por isso esta coleção, que ora se inicia, vem completar, finalmente, umainaceitável lacuna em nossos estudos de direito constitucional e da própria forma-ção do pensamento político brasileiro.

Ao longo das edições desta coletânea, o aluno de direito, o estudioso dodireito, o professor, o advogado, enfim, o jurista poderá conhecer com mais pro-fundidade a vida e a obra dos membros do Supremo Tribunal Federal de ontem econsultar peças e julgados de suas carreiras como magistrados do Tribunal, queconstituem trabalhos inestimáveis e valorosas contribuições no campo da inter-pretação constitucional.

As Constituições Brasileiras (1824, 1891, 1934, 1937, 1946, 1967 e 1988)consubstanciaram documentos orgânicos e vivos durante suas vigências.

Elas, ao mesmo tempo em que condicionaram os rumos político-institucio-nais do país, também foram influenciadas pelos valores, práticas e circunstânciaspolíticas e sociais de cada um desses períodos.

Nesse sentido, não há como segmentar essa história sem entender a dinâ-mica própria dessas transformações.

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Há que se compreender os contextos históricos em que estavam inseridas.

Há que se conhecer a mentalidade dos homens que moldaram tambémessa realidade no âmbito do SUPREMO.

A Constituição, nesse sentido, é um dado cultural e histórico, datada notempo e localizada no espaço.

Exige, para ser compreendida, o conhecimento dos juristas e políticos quetiveram papel determinante em cada um dos períodos constitucionais tanto no campoda elaboração legislativa como no campo jurisdicional de sua interpretação.

A Constituição, por outro lado, não é um “pedaço de papel” na expressãoempregada por FERDINAND LASSALE.

O sentido da Constituição, em seus múltiplos significados, se renova e éconstantemente redescoberto em processo de diálogo entre o momento do intér-prete e de sua pré-compreensão e o tempo do texto constitucional.

É a “espiral hermenêutica” de HANS GEORG GADAMER.

O papel exercido pelos Ministros do SUPREMO, como intérpretes oficiaisda Constituição, sempre teve caráter fundamental.

Se a interpretação é procedimento criativo e de natureza jurídico-política,não é exagero dizer que o SUPREMO, ao longo de sua história, completou o traba-lho dos poderes constituintes que se sucederam ao aditar conteúdo normativo aosdispositivos da Constituição.

Isso se fez na medida em que o Tribunal fixava pautas interpretativas econsolidava jurisprudências.

Não há dúvida, portanto, de que um estudo, de fato, aprofundado no campoda política judiciária e no âmbito do direito constitucional requer, como fonte pri-mária, a delimitação do pensamento das autoridades que participaram, em pri-meiro plano, da montagem das linhas constitucionais fundamentais.

Nesse sentido, não há dúvida de que, por exemplo, o princípio federativoou o princípio da separação dos poderes, em larga medida, tiveram suas frontei-ras de entendimento fixadas pelo SUPREMO e pela carga valorativa que seusmembros traziam de suas experiências profissionais.

Não é possível se compreender temas como “controle de constitucionali-dade”, “intervenção federal”, “processo legislativo” e outros tantos sem se saberquem foram as pessoas que examinaram esses problemas e que definiram as pau-tas hermenêuticas que, em regra, seguimos até hoje no trabalho contínuo da Corte.

Por isso, esta coleção visa recuperar a memória institucional, política ejurídica do SUPREMO.

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A idéia e finalidade é trazer a vida, a obra e a contribuição dada por Minis-tros como CASTRO NUNES, OROZIMBO NONATO, VICTOR NUNESLEAL e ALIOMAR BALEEIRO, além de outros.

A redescoberta do pensamento desses juristas contribuirá para a melhorcompreensão de nossa história institucional.

Contribuirá para o aprofundamento dos estudos de teoria constitucional noBrasil.

Contribuirá, principalmente, para o resgate do pensamento jurídico-políticobrasileiro, que tantas vezes cedeu espaço para posições teóricas construídasalhures.

E, mais, demonstrará ser falaciosa a afirmação de que o SUPREMO deveser um Tribunal da carreira da magistratura.

Nunca deverá ser capturado pelas corporações.

Brasília, março de 2006

Ministro Nelson A. Jobim

Presidente do Supremo Tribunal Federal

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SUMÁRIO

DADOS BIOGRÁFICOS ............................................................................... 13

NOTA DO AUTOR ........................................................................................ 17

ÍNDICE COM PALAVRAS-CHAVE ............................................................ 21

1. TEMAS DE DIREITO CONSTITUCIONAL........................................... 31

1.1 Função do Supremo Tribunal Federal .............................................. 31

1.2 Controle de constitucionalidade ....................................................... 50

1.3 Federalismo ..................................................................................... 76

1.4 Direitos fundamentais .................................................................... 141

1.5 Poder Legislativo ........................................................................... 163

1.6 Regime de 1964 ............................................................................. 180

2. TEMAS DE DIREITO ADMINISTRATIVO .......................................... 193

2.1 Autarquias ...................................................................................... 193

2.2 Atos administrativos ....................................................................... 213

2.3 Concessão ..................................................................................... 221

2.4 Desapropriação e bens públicos .................................................... 227

APÊNDICE ................................................................................................... 235

ÍNDICE NUMÉRICO .................................................................................. 539

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DADOS BIOGRÁFICOS

VICTOR NUNES LEAL, filho de Nascimento Nunes Leal e de D. Ange-lina de Oliveira Leal, nasceu em 11 de novembro de 1914, no Município deCarangola, Estado de Minas Gerais.

Após os estudos secundários, realizados na terra natal, ingressou na Facul-dade Nacional de Direito, onde se diplomou em 1936.

Durante o curso, militou na imprensa, como redator de O Jornal, Diárioda Noite, Diário de Notícias e Rádio Tupi e como correspondente, no Rio deJaneiro, de O Diário, de Santos. Após diplomado, foi admitido na redação daRevista Forense, onde trabalhavam, entre outros, Gonçalves de Oliveira, AguiarDias, Lúcio Bittencourt, Miranda Lima, Antônio Pereira Pinto e Carlos MedeirosSilva. Posteriormente, foi encarregado da seção jurídica do Observador Econô-mico e Financeiro, participando da equipe fundadora da Revista de DireitoAdministrativo e do Conselho Consultivo da Revista Brasileira de EstudosPolíticos, da Universidade de Minas Gerais.

Quando do início de seus estudos jurídicos, trabalhou no escritório do advo-gado Pedro Batista Martins, a quem auxiliou, mais tarde, juntamente com CarlosMedeiros Silva, no exame das sugestões ao anteprojeto do Código de ProcessoCivil.

Chamado a servir no Gabinete do então Ministro da Educação, Gustavo Capa-nema, em 1939, foi nomeado, no ano seguinte, Diretor do recém-criado Serviço deDocumentação.

Em 1943, foi investido, interinamente, na cadeira de Ciência Política daFaculdade Nacional de Filosofia, na qual se efetivou mediante concurso. Emdesdobramento de suas atividades de Professor, regeu cursos e funcionou comoexaminador do Dasp, lecionou na Escola de Estado-Maior do Exército e realizouconferências na Escola Superior de Guerra, participando do corpo de professoresda Universidade de Brasília desde a sua fundação.

Integrou o Conselho Diretor do Instituto Brasileiro de Ciências Adminis-trativas e do Conselho do IBBEC, tendo sido o primeiro Presidente do Instituto deCiências Sociais da Universidade do Brasil (1959), além de membro fundador daAcademia Nacional de Cultura e da Associação Brasileira de Escritores,sediadas em Brasília.

Desde a formatura, militou, ininterruptamente, na advocacia, até ser no-meado Procurador-Geral da Justiça do antigo Distrito Federal, cargo em quepermaneceu de março a novembro de 1956, quando foi investido na Chefia daCasa Civil da Presidência da República, que exerceu até agosto de 1959.

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Desempenhou, ainda, os cargos de Advogado da antiga Prefeitura do Dis-trito Federal, de Consultor-Geral da República (fevereiro a outubro de 1960) e deProcurador do Tribunal de Contas do atual Distrito Federal (outubro a dezembrode 1960), participando de dois Congressos Nacionais de Tribunais de Contas —em Salvador e Porto Alegre.

Representou o Brasil na IV Reunião do Conselho de Jurisconsultos daOrganização dos Estados Americanos (Santiago, Chile, 1959), no Congresso deDireito Administrativo (Itália, 1960) e nas missões de observadores estrangeirosnas eleições presidenciais da República Dominicana (1962) e da Nicarágua(1963).

Foi nomeado Ministro do Supremo Tribunal Federal por decreto de 26 denovembro de 1960, do Presidente Juscelino Kubitschek de Oliveira, na vagadecorrente da aposentadoria do Ministro Francisco de Paula Rocha Lagôa,tendo tomado posse em 7 do mês seguinte. Eleito Vice-Presidente em 11 dedezembro de 1968, foi empossado na data imediata.

Participou da composição do Tribunal Superior Eleitoral, como Juiz Substi-tuto (1963) e Efetivo (1966). Exerceu a Vice-Presidência no período de 17 denovembro de 1966 a 16 de janeiro de 1969.

Foi aposentado por decreto de 16 de janeiro de 1969, baseado no AtoInstitucional n. 5, de 13 de dezembro de 1968, não tendo sido preenchida a vagaem face do Ato Institucional n. 6, de 1º de fevereiro de 1969, que reduziu de 16para 11 o número de Ministros do Supremo Tribunal Federal, restabelecendo acomposição anterior ao Ato Institucional n. 2, de 27 de outubro de 1965.

Recebeu homenagem do Tribunal em sessão de 5 de fevereiro de 1969,quando se manifestaram o Ministro Luiz Gallotti, Presidente em exercício, o Dr.Décio Miranda, Procurador-Geral da República, e o Professor Francisco ManoelXavier de Albuquerque, pelos advogados.

Publicou estudos em revistas especializadas, notadamente na Revista Fo-rense e na Revista de Direito Administrativo, alguns dos quais foram enfeixadosno volume Problemas de Direito Público (1960) e no opúsculo Três Ensaios deAdministração (1958). Também foram coligidos em volume seus pareceres emiti-dos como Consultor-Geral da República (1966). Sua tese de concurso, O Muni-cípio e o Regime Representativo no Brasil — Contribuição ao Estudo do Co-ronelismo (1948), teve circulação comercial sob o título Coronelismo, Enxada eVoto. Duas conferências sobre o Supremo Tribunal Federal foram editadas emseparata da Revista de Informação Legislativa, do Senado Federal: Aspectos daReforma Judiciária (1965). Os cursos de Sociologia e Política (Escola de Estado-Maior), Teoria do Estado (Dasp) e Direito Constitucional (Dasp) foram mimeo-grafados.

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Teve, ainda, destacada atuação na Comissão de Jurisprudência do SupremoTribunal Federal, com a implantação da Súmula da Jurisprudência Predominantedo Supremo Tribunal Federal e, ainda, com a regularização da publicação daRevista Trimestral de Jurisprudência.

Em 1997, na série Arquivos do Ministério da Justiça, foi publicada aobra Problemas de Direito Público e outros problemas, com apresentação doMinistro Nelson Jobim, então titular da pasta da Justiça, e introdução do MinistroSepúlveda Pertence, que exercia a Presidência do Supremo Tribunal Federal.

Após a aposentadoria, voltou a desenvolver atividades advocatícias.

Faleceu em 17 de maio de 1985, no Rio de Janeiro, sendo reverenciada asua memória em sessão de 14 de agosto do mesmo ano, quando expressou osentimento da Corte o Ministro Aldir Passarinho, falando pelo Ministério PúblicoFederal o Dr. José Paulo Sepúlveda Pertence, Procurador-Geral da República, epelos advogados, o Dr. Hélio Sabóia.

Em sessão administrativa de 7 de março de 2001, o Supremo TribunalFederal deliberou homenageá-lo, atribuindo à biblioteca da Corte o nome de “Bi-blioteca Ministro Victor Nunes Leal”.

Dados biográficos extraídos da obra Supremo Tribunal de Justiça e Supremo TribunalFederal — Dados Biográficos (1828 – 2001), de Laurenio Lago. Este texto também podeser encontrado no sítio do Supremo Tribunal Federal na Internet.

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NOTA DO AUTOR

Foi uma grande honra para mim ter sido convidado a desenvolver estetrabalho, tendo por objeto a produção jurisprudencial de Victor Nunes Leal,nesta série que se propõe ao estudo e à divulgação da história do Supremo Tribu-nal Federal por meio de sua jurisprudência mais relevante.

É também uma enorme satisfação poder aprofundar-me nos votos do ju-rista e homem público cuja obra doutrinária é muito presente em meus estudosacadêmicos e por quem sempre cultivei profunda admiração e respeito.

Com efeito, Victor Nunes Leal personifica tanto a dignidade do Supre-mo Tribunal Federal, tendo desempenhado com absoluta integridade sua mis-são constitucional em período tão delicado para a democracia brasileira1,como a excelência da atuação do Tribunal, tendo proferido votos que aliam,com profundidade, saber jurídico, sensibilidade política e conhecimento darealidade socioeconômica brasileira2.

A proposta deste trabalho não é produzir uma biografia de Victor NunesLeal nem uma análise de sua obra doutrinária. O objetivo que procurei alcançarfoi trazer ao conhecimento do leitor alguns dos que me pareceram ser seus votosmais relevantes como Ministro do STF.

Nesse sentido, tive em mente ser fiel ao pensamento de Victor NunesLeal, evitando contaminá-lo com idéias minhas, ainda que caiba bem frisar que,na grande maioria dos casos, concordo com suas conclusões e admiro o rigor e aclareza de seu pensar.

Por outro lado, foram de minha responsabilidade a escolha e a análise dosjulgados a seguir apresentados. Recebi da Secretaria de Documentação do STF,em meio eletrônico, arquivos de imagens de todos os acórdãos nos quais VictorNunes Leal proferiu votos: desde votos como Relator, até simples manifestaçõesde sua concordância com a posição de outros Ministros. Isso totalizava aproxi-madamente 10.000 acórdãos.

Adotei alguns critérios para a seleção do material que resultou nesta obra.

Em primeiro lugar, busquei acórdãos em que a manifestação de VictorNunes Leal se mostrasse relevante para a solução da questão. Assim, não traba-lhei com votos muito sucintos ou de simples concordância, ainda que se referis-sem a casos interessantes.

1 Victor Nunes Leal, que fora Chefe da Casa Civil do Governo Juscelino Kubitscheck,foi Ministro do STF de dezembro de 1960 a janeiro de 1969.2 Destaca-se, ainda, como fundamental contribuição do Ministro Victor Nunes Leal, ainiciativa em propor a adoção, pelo Tribunal, do mecanismo da Súmula. Ver, nesse senti-do, a análise do RE 54.190, que dá início a esta obra.

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Em segundo lugar, procurei escolher acórdãos que comportassem discussãorelevante em termos de Direito, ou discussão que se referisse a situação de fatode interesse histórico, ou ainda que expressassem o modo pelo qual VictorNunes Leal posicionava-se política ou institucionalmente. Não aproveiteiacórdãos, ainda que contendo votos mais extensos e trabalhados, que acentuada-mente se referissem a questões de fato, ou que cuidassem de matéria jurídicasem maior repercussão.

Mesmo com a aplicação desses dois critérios, selecionei um conjunto deaproximadamente mil acórdãos — número excessivo para os propósitos da obra.Adotei, então, um corte temático, considerando áreas do Direito que mais seaproximassem da produção científica de Victor Nunes Leal, sendo, ao mesmotempo, minha área de especialização: Direito Constitucional (incluídas questõesinstitucionais relativas ao STF e ao Poder Judiciário em geral, e questões commaior conteúdo político) e Direito Administrativo (excluídas questões relativasa servidores públicos).

Aplicados esses critérios, resultaram os 104 acórdãos que compõem a obra.A partir de sua análise, pareceu-me mais adequado comentar cada qual indivi-dualmente, classificados por temas e, quando possível, identificando tendênciase evoluções jurisprudenciais.

Interessante recordar que o período de Victor Nunes Leal no STF trans-correu em parte sob a vigência da Constituição de 1946 e em parte sob a de1967, sofrendo ainda o impacto político e jurídico do Regime de 1964 e de seuscinco primeiros Atos Institucionais.

Trata-se de período em que as competências do STF eram diversas dasatuais — por exemplo, incluindo o julgamento, via recurso extraordinário, dequestões que envolvessem violação de leis federais (Constituição de 1946, art.101, III; Constituição de 1967, art. 114, III) — e sofreram importantes transfor-mações, sobretudo com a criação da representação de inconstitucionalidade, nomodelo de controle abstrato de constitucionalidade das normas, introduzidopela Emenda n. 16, de 19653.

Igualmente, a composição numérica do STF sofreu alterações: passou dosoriginais onze membros para dezesseis, com a edição do AI 2, em outubro de1965, retornando a onze apenas com o AI 6, em fevereiro de 1969, quandoVictor Nunes Leal já fora aposentado.

Ainda em sede desta apresentação, cabem algumas observações quanto àforma.

3 Até então, o controle concentrado de constitucionalidade dava-se por meio da repre-sentação interventiva.

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Considerando que o trabalho foi sistematizado em duas partes, subdividi-das em alguns grandes temas, entendi adequado, para melhor identificação doobjeto próprio de cada acórdão, acrescentar, no início da respectiva análise, al-gumas palavras ou frases-chave. Não se trata das ementas oficiais dos acórdãos,que por vezes não espelhariam os aspectos específicos analisados e enfatizadosdos votos de Victor Nunes Leal.

Alguns dos votos, que me pareceram de especial relevância, foram trans-critos na íntegra, ao final. Por certo, trata-se de pequena amostra, compatívelcom as possibilidades desta edição. Dadas a qualidade e a amplitude da produ-ção jurisprudencial de Victor Nunes Leal, recomenda-se a busca a outrosacórdãos na íntegra, que podem ser localizados no sítio de internet do STF.

Para finalidade de simplificação de leitura, os nomes das classes proces-suais foram apresentados abreviadamente, conforme as siglas utilizadas pelo STF.E o nome de Victor Nunes Leal foi referido “Ministro Victor Nunes”, tal comoconsta dos acórdãos.

Por fim, gostaria de registrar alguns agradecimentos: à Ministra EllenGracie, Presidente do Supremo Tribunal Fedral, e aos Ministros Gilmar Mendese Nelson Jobim, pelo convite para elaborar esta obra, e a quem também cum-primento pela Série Memória Jurisprudencial; à equipe da Secretaria de Docu-mentação do STF, na pessoa de sua Secretária, Dra. Altair Maria Damiani Cos-ta, pela atenção e pela gentileza dispensadas ao longo desses meses de trabalho— aliás, importante registrar a extrema competência da equipe, desde alocalização e o fornecimento do material de pesquisa até a cuidadosa revisãodo texto final; menciono especialmente Nayse Hillesheim (Coordenadora de Di-vulgação de Jurisprudência) e Kelly Patrícia Varjão de Moraes (Chefe da Se-ção de Padronização e Revisão). Ainda pela ajuda com a seleção do material,agradeço à minha amiga Natasha Schmitt Caccia. E à amiga Maria AparecidaCorreia de Souza, pela ajuda com várias transcrições.

Fernando Dias Menezes de Almeida

São Paulo, junho de 2006.

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Ministro Victor Nunes

ÍNDICE COM PALAVRAS-CHAVE

1. TEMAS DE DIREITO CONSTITUCIONAL ..................................... 311.1 Função do Supremo Tribunal Federal ................................................. 31Recurso Extraordinário 54.190 .................................................................. 31

Súmula: finalidade, aplicação e interpretação.Recurso em Mandado de Segurança 16.912 ............................................ 37

Igualdade — Abuso e desvio de poder nos atos legislativos — Função doSTF e sua relação com os demais Poderes — Controle de constitucionalidadeem face de princípios constitucionais — Controle de constitucionalidade nosEUA — Importância da jurisprudência.

Mandado de Segurança 9.137 ..................................................................... 42Função do STF como intérprete último da Constituição — Aspectos defunção legislativa na atuação do STF.

Recurso Ordinário Eleitoral 366 ................................................................ 43Função do STF como intérprete último da Constituição — Unidade nainterpretação da Constituição.

Recurso Ordinário Eleitoral 371 ................................................................ 46Função do STF como intérprete último da Constituição — Alteração dejurisprudência.

Mandado de Segurança 9.077 ..................................................................... 47Limites à apreciação, pelo STF, de política de governo — Poder regula-mentar.

Recurso Extraordinário 35.230 .................................................................. 48Tecnicismo processual como obstáculo à realização da justiça — Propostade forma única para ações.

Mandado de Segurança 13.203 ................................................................... 49Justificativa para competência do STF — Distinção entre União eautarquias.

1.2 Controle de constitucionalidade .......................................................... 50Mandado de Segurança 15.886 ................................................................... 50

Discussão sobre possibilidade de negativa de aplicação de lei, pelo PoderExecutivo, por alegação de inconstitucionalidade — Emenda Constitucio-nal 16/65 — Presunção de constitucionalidade das leis — Retroatividadeda declaração de inconstitucionalidade — Crítica à disciplina por lei deprerrogativa constitucional do STF.

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Memória Jurisprudencial

Mandado de Segurança 16.003 ................................................................... 54Discussão sobre possibilidade de negativa de aplicação de lei, pelo PoderExecutivo, por alegação de inconstitucionalidade — Discussão sobrecabimento de mandado de segurança para solucionar, em abstrato, essaquestão.

Mandado de Segurança 16.512 ................................................................... 56Resolução do Senado Federal que suspende a execução de lei julgadainconstitucional pelo STF — Discussão sobre possibilidade de revogaçãoda resolução por outra — Natureza da resolução do Senado Federal, paraefeito de controle via representação de inconstitucionalidade — Conceitode “lei em tese” — Efeitos da resolução do Senado Federal — Sentido desuspensão “no todo ou em parte” — Caráter discricionário ou vinculadoda resolução do Senado Federal.

Recurso em Mandado de Segurança 8.069 .............................................. 61Conceito de taxa — Conflito entre norma legal e posicionamento doutri-nário — Defesa do federalismo — Sistema tributário como instrumentode reforço do federalismo.

Recurso em Mandado de Segurança 8.533 .............................................. 63Conceito de taxa — Conflito entre norma legal e posicionamento doutri-nário.

Recurso Extraordinário 23.937 .................................................................. 64Aplicação da Súmula 400 — Não-cabimento de recurso extraordinárioem face de decisão que deu razoável interpretação a lei.

Recurso Extraordinário 32.921 .................................................................. 65Interpretação conforme a Constituição.

Recurso em Mandado de Segurança 14.710 ............................................ 66Suspensão de julgamento em Câmara de Tribunal local, para que o Plenodecida sobre questão de constitucionalidade — Discussão sobre trânsitoem julgado da decisão do Pleno e do momento para se recorrer ao STF.

Recurso em Mandado de Segurança 15.212 ............................................ 69Suspensão de julgamento em Câmara de Tribunal local, para que o Plenodecida sobre questão de constitucionalidade — Discussão sobre trânsitoem julgado da decisão do Pleno e do momento para se recorrer ao STF.

Mandado de Segurança 17.484 ................................................................... 70Mandado de segurança preventivo para evitar negativa de aplicação, peloPoder Executivo, de lei julgada constitucional pelo STF.

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Ministro Victor Nunes

Casos “Testamento do Rio Grande do Norte” (Rp 512, RE 48.655,RE 54.908, RE 61.513, RE 61.324, RE 61.316, RE 61.340, RE 61.354,RE 61.511, RE 61.524 e RE 61.554) ......................................................... 71

Suspensão de aplicação de lei por ato do Poder Executivo — Interpretaçãodos princípios constitucionais sensíveis — Flexibilidade para cabimento derecurso extraordinário em mandado de segurança — Discussão sobrejulgamento de constitucionalidade de lei como impedimento para a aprecia-ção de argüição de sua inconstitucionalidade em casos concretos.

Representação 725 ....................................................................................... 76Discussão sobre a ocorrência de inconstitucionalidade ou revogação de leianterior que conflita com nova Constituição — Conseqüências.

1.3 Federalismo ............................................................................................ 76Recurso em Mandado de Segurança 11.687 ............................................ 76

Repartição constitucional de competências — Censura a exibição cine-matográfica — Poder de polícia em face de direitos fundamentais —Poderes implícitos da União — Competência concorrente e supremaciada lei federal — Poder de polícia e eficácia da força material disponível.

Habeas Corpus 41.296 ................................................................................ 84Julgamento histórico: caso da ameaça de impeachment do GovernadorMauro Borges Teixeira — Competência para julgamento — Autonomia dosEstados — Respeito à instância política estadual.

Representação 748 ....................................................................................... 89Vinculação de tributos — Previsão de reserva de percentual orçamentá-rio para fundo ligado à educação e à cultura — Argumentos de naturezapolítica — Influência da experiência pessoal dos Ministros na interpreta-ção da Constituição.

Representação 775 ....................................................................................... 92Competência legislativa em matéria de edificações urbanas — Autonomiamunicipal.

Representação 676 ....................................................................................... 93Ingresso de professores de ensino primário na rede pública independen-temente de concurso público — Ingresso a partir de curso específico deformação — Competência legislativa em matéria de ensino primário.

Representação 760 ....................................................................................... 94Ingresso de professores de ensino primário na rede pública independente-mente de concurso público — Argumentos de natureza política e social —Competência legislativa em matéria de ensino primário.

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Memória Jurisprudencial

Representação 669 ....................................................................................... 97Repartição constitucional de competências — Competência para legislar sobreatos de diretores de sociedades de economia mista e autarquias.

Representação 467 ....................................................................................... 99Repartição constitucional de competências — Teoria dos poderes implí-citos — Observância de parâmetros do Distrito Federal pelos Estados —Criação de Tribunal de Contas.

Representação 477 ..................................................................................... 101Criação do Estado da Guanabara — “Lei San Tiago Dantas” — Possi-bilidade de Constituição estadual alterar mandatos legislativos dos pró-prios deputados constituintes — Observância de princípios da Constitui-ção Federal por Constituição estadual — Poder constituinte originário ederivado — Origem do poder na democracia.

Recurso em Mandado de Segurança 9.558 ............................................ 104Criação do Estado da Guanabara — “Lei San Tiago Dantas” — Obser-vância de princípios da Constituição Federal por Constituição estadual —Princípio da intangibilidade do mandato político.

Representação 602 ..................................................................................... 106Aplicação automática por Estado de norma sobre processo legislativo, cons-tante em ato institucional — Questões políticas — “Forma republicana repre-sentativa” — “Independência e harmonia dos Poderes” — Função do STF.

Recurso Extraordinário 58.505 ................................................................ 108Observância de princípios da Constituição Federal por Constituição estaduale lei orgânica de Municípios — Eleição de prefeito em caso de vacância —Posição do Município na Federação brasileira — Autonomia municipal.

Representação 718 ...................................................................................... 114Repartição constitucional de competências — Competência para desa-propriar para fim de reforma agrária — Distinção entre desapropriaçãocom pagamento em títulos da dívida pública e desapropriação com paga-mento em dinheiro.

Representação 515 ...................................................................................... 116Observância de princípios da Constituição Federal por Constituição esta-dual — Sucessão de vice-governador em caso de vacância — Ordem desucessão — Eleição indireta — “Forma republicana representativa”.

Representação 600 ...................................................................................... 118Observância de princípios da Constituição Federal por Constituição esta-dual — Sucessão de vice-governador em caso de vacância — Eleiçãoindireta.

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Ministro Victor Nunes

Representação 561 ..................................................................................... 120Regra sobre elegibilidade de governador contida em Constituição esta-dual — Violação de princípio constitucional da “forma republicana re-presentativa” — Interpretação dos princípios constitucionais sensíveis.

Representação 753 ..................................................................................... 121Adaptação de Constituição estadual à Federal, por força de norma daConstituição de 1967 — Recepção de normas de Constituição anteriorcomo normas com hierarquia de leis ordinárias.

Representação 494 ..................................................................................... 123Autonomia municipal — Majoração de tributos — Controle dos Municípiospelos Estados — Controle político pelo eleitorado.

Representação 505 ..................................................................................... 125Autonomia municipal — Competência em matéria de majoração de tributos.

Representação 654 ..................................................................................... 126Competência municipal em matéria de serviço de água e esgoto.

Representação 503 ..................................................................................... 127Autonomia municipal — Disposição, por lei estadual, sobre critério departilha de arrecadação de imposto estadual com Municípios.

Recurso em Habeas Corpus 39.708 ........................................................ 128Aplicação de norma de lei federal sobre crime de responsabilidade a pre-feito — Função política e administrativa do prefeito.

Representação 423 ..................................................................................... 130Criação de Município — Discussão sobre divisão distrital como critériopara oitiva da população do território a ser desmembrado — Hierarquiade leis.

Representação 583 ..................................................................................... 133Criação de Município — Autonomia municipal — Convalidação de víciosno processo de criação ante concordância do Município do qual houvedesmembramento — Conflito entre Lei Orgânica dos Municípios e lei decriação de Município — Lei em sentido formal e lei em sentido material.

Representação 632 ..................................................................................... 135Conflito entre Lei Orgânica dos Municípios e lei de criação de Município.

Representação 657 ..................................................................................... 136Conflito entre Lei Orgânica dos Municípios e lei de criação de Município.

Representação 507 ..................................................................................... 136Criação de Município — Autonomia municipal — Concordância do Muni-cípio do qual houve desmembramento.

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Memória Jurisprudencial

Representação 534 ................................................................................... 137Criação de Município — Autonomia municipal — Concordância do Muni-cípio do qual houve desmembramento.

Representação 586 ................................................................................... 138Criação de Município — Autonomia municipal — Concordância do Muni-cípio do qual houve desmembramento.

Representação 574 ................................................................................... 138Criação de Município — Autonomia municipal — Concordância do Muni-cípio do qual houve desmembramento — Decisão divergente das anteriores.

Representação 513 ................................................................................... 139Criação de Município — Autonomia municipal — Concordância do Muni-cípio do qual houve desmembramento — Critério para interpretação maisampla dos princípios constitucionais sensíveis.

Representação 617 ................................................................................... 140Criação de Município — Autonomia municipal — Saneamento de falhasformais ante aprovação de lei estadual.

1.4 Direitos fundamentais ........................................................................ 141Extradição 232 — Segunda ...................................................................... 141

Extradição — Revolução Cubana — Ausência de garantias institucionais —Distinção entre motivo ou fim político e crime político — Descaracterização,como crime político, de atos de barbaria e vandalismo.

Extradição 274 ............................................................................................ 144Julgamento histórico: Caso Stangl — Regime nazista — Extradição —Reciprocidade — Competência e preferência ante multiplicidade de pedidosde extradição — Comutação de pena — Genocídio — Julgamento regular —Crime político e cumprimento de ordem superior.

Recurso em Mandado de Segurança 12.468 .......................................... 153Intervenção do Estado no domínio econômico — Limites ao direito depropriedade.

Recurso Extraordinário 41.710 ................................................................ 155Liberdade de pensamento e liberdade de ensino — Curso livre — Poderde polícia.

Recurso Extraordinário 37.142 ................................................................ 156Direito de propriedade — Confisco de bens para indenização de guerra —Caráter regulamentar como exigência para decreto ser objeto de recursoextraordinário.

Mandado de Segurança 7.711 ................................................................... 158Princípio da motivação obrigatória das decisões judiciais.

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Ministro Victor Nunes

Recurso em Mandado de Segurança 9.963 ............................................ 159Igualdade — Concurso público — Distinção pelo critério de gênero.

Recurso Extraordinário 47.630 — Segundo .......................................... 161Igualdade — Concurso público — Distinção pelo critério de gênero —Papel da lei e do regulamento.

1.5 Poder Legislativo ................................................................................. 163Recurso Extraordinário 62.731 ................................................................ 163

Decreto-lei — Limites — Discricionariedade do Executivo no reconheci-mento da hipótese material de cabimento — Possibilidade de apreciaçãojudicial.

Representação 696 ..................................................................................... 167Lei de caráter administrativo — Anistia a faltas de servidores públicos — Har-monia dos Poderes.

Representação 465 ..................................................................................... 168Limites ao poder de emenda do Legislativo em projetos de iniciativa doExecutivo.

Representação 468 ..................................................................................... 171Limites ao poder de emenda do Legislativo em projetos de iniciativa doExecutivo — “Prática da Constituição” como integrante do Direito Cons-titucional positivo.

Representação 687 ..................................................................................... 172Limites ao poder de emenda do Legislativo em projetos de iniciativa doExecutivo — Introdução de matéria estranha ao projeto original.

Representação 700 ..................................................................................... 173Limites ao poder de emenda do Legislativo em projetos de iniciativa doExecutivo — Introdução de matéria estranha ao projeto original — Aumentode despesas.

Representação 741 ..................................................................................... 175Limites à iniciativa do Legislativo quanto a projeto de lei.

Representação 762 ..................................................................................... 176Limites ao poder de emenda do Legislativo em projetos de iniciativa doExecutivo.

Habeas Corpus 40.400 .............................................................................. 176Caso do confronto entre os Senadores Arnon de Mello e Silvestre Péricles,que resultou na morte do Senador Kairala — Competência do SenadoFederal para promover inquérito policial quanto a senador — Naturezajudicial dessa função do Senado Federal.

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Memória Jurisprudencial

1.6 Regime de 1964 ................................................................................... 180Inquérito Policial 2 ..................................................................................... 180

Julgamento histórico: Caso João Goulart — Competência para julgamentode ex-Presidente da República — Acusação, em inquérito policial militar,de prática de crimes comuns durante o exercício do cargo — Direitospolíticos suspensos pelo AI 2, com cessação de privilégio de foro por prer-rogativa de função — Discussão sobre prevalência da Constituição de1967 sobre o AI 2 — Natureza dos atos institucionais — Efeitos da apro-vação, pela Constituição, dos atos governamentais praticados com baseem ato institucional.

Mandado de Segurança 17.957 ................................................................. 185Decreto-lei — Configuração de lei em tese para efeito do não-cabimentode mandado de segurança — Lei com efeitos concretos — Interpretaçãoda regra do afastamento da apreciação pelo Judiciário de atos praticadosno regime militar — Supremacia da Constituição.

Mandado de Segurança 14.746 ................................................................. 188Interpretação da regra do afastamento da apreciação pelo Judiciário de atospraticados no regime militar — Natureza dos atos institucionais.

Mandado de Segurança 15.050 ................................................................. 189Perda de objeto da ação ante alteração no tratamento constitucional damatéria versada.

Mandado de Segurança 18.973 ................................................................. 190Limites à aprovação, pela Constituição de 1967, de atos praticados noregime militar — Prevalência exclusiva da Constituição.

2. TEMAS DE DIREITO ADMINISTRATIVO .................................... 1932.1 Autarquias ............................................................................................. 193Mandado de Segurança 8.693 ................................................................... 193

Investidura com prazo certo de dirigentes de autarquias — Analogia comregulatory agencies dos EUA — Autonomia de entes da administração indi-reta no Brasil — Limites ao poder de exonerar do Chefe do Executivo —Argumentos de ordem constitucional, legal, política e administrativa — Limi-tes à apreciação judicial sobre opções políticas do Legislativo.

Mandado de Segurança 8.651 ................................................................... 203Investidura com prazo certo de dirigentes de autarquias — Analogia comregulatory agencies dos EUA — Autonomia de entes da administraçãoindireta no Brasil — Limites ao poder de exonerar do Chefe do Executivo —Argumentos de ordem constitucional, legal, política e administrativa —Limites à apreciação judicial sobre opções políticas do Legislativo —Função política do STF — Relevância da estabilidade da jurisprudência.

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Ministro Victor Nunes

Mandado de Segurança 8.802 ................................................................... 205Investidura com prazo certo de dirigentes de autarquias — Analogia comregulatory agencies dos EUA — Autonomia de entes da administração indi-reta no Brasil — Limites ao poder de exonerar do Chefe do Executivo —Argumentos de ordem constitucional, legal, política e administrativa — Limi-tes à apreciação judicial sobre opções políticas do Legislativo.

Mandado de Segurança 10.213 ................................................................. 208Investidura com prazo certo de dirigentes de autarquias — Reitor —Autonomia de entes da administração indireta no Brasil — Autonomiauniversitária — Liberdade de cátedra — Limites ao poder de exonerar doChefe do Executivo.

Mandado de Segurança 11.109 ................................................................. 209Investidura com prazo certo de dirigentes de autarquias — Autonomia deentes da administração indireta no Brasil — Limites ao poder de exonerardo Chefe do Executivo — Extinção dos cargos por lei.

Mandado de Segurança 10.272 ................................................................. 210Caracterização de autarquia — Enquadramento de seu patrimônio comobem público — Tutela e hierarquia.

Mandado de Segurança 10.882 .................................................................. 211Autonomia universitária — Regime peculiar para servidores.

Mandado de Segurança 15.186 ................................................................. 212Autarquias — Sentido histórico da autonomia — Criação de cargos.

2.2 Atos administrativos ............................................................................ 213Recurso em Mandado de Segurança 8.147 ............................................ 213

Sujeição de ato administrativo individual e concreto ao ato regulamentar,ainda que emanados da mesma autoridade — Ausência de direito à reno-vação de licença, ante mudança de legislação.

Mandado de Segurança 12.800 ................................................................. 216Poder regulamentar: margem de interpretação de lei — Limites à apre-ciação judicial de atos discricionários.

Embargos no Agravo de Instrumento 26.603 ........................................ 217Cassação de licença para construir — Proteção de imóvel tombado.

Mandado de Segurança 15.194 ................................................................. 218Anulação de ato de exoneração — Teoria dos motivos determinantes.

Embargos no Recurso Extraordinário 45.110 ........................................ 220Nulidade de ato administrativo por vício de forma — Código Civil.

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2.3 Concessão ............................................................................................. 221Mandado de Segurança 18.028 ................................................................. 221

Concessão de serviços públicos — Processo administrativo como garan-tia do concessionário.

Mandado de Segurança 16.132 ................................................................. 223Concessão de serviço de radiodifusão — Caducidade — Aplicação delegislação em sentido contrário ao que a inspirara.

Recurso em Mandado de Segurança 14.230 .......................................... 226Concessão — Exploração de minérios — Desrespeito a normas de pro-cesso administrativo.

2.4 Desapropriação e bens públicos ........................................................ 227Recurso Extraordinário 54.011 ................................................................ 227

Retrocessão — Distinção entre desapropriação amigável e compra e venda.Recurso em Mandado de Segurança 9.549 ............................................ 229

Desapropriação de ações de companhia ferroviária — Abusividade —Desapropriação do serviço ou das ações — Mandado de segurança comoa “ação direta” da Lei de Desapropriações.

Recurso Extraordinário 44.585 ................................................................ 231Terras indígenas — Sentido de “posse” constitucionalmente protegida.

Mandado de Segurança 16.443 ................................................................. 232Caracterização das terras indígenas e seus frutos como bens públicos —Formalidades para alienação.

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Ministro Victor Nunes

1. TEMAS DE DIREITO CONSTITUCIONAL

1.1 Função do Supremo Tribunal Federal

Recurso Extraordinário 54.190

Súmula: finalidade, aplicação e interpretação.

Parece muito adequado iniciar este trabalho com a análise de um acórdãoque permita abordar uma das maiores contribuições do Ministro Victor Nunes,em sua passagem pelo Supremo Tribunal Federal: a criação da Súmula.

Trata-se de acórdão cujo interesse diz respeito não à questão de fundodebatida, mas à invocação de determinada Súmula, o que, no caso, deu ensejo aamplos debates sobre o modo de se aplicarem as Súmulas e, em especial, de seas interpretar.

Ao longo desta obra, os comentários a vários julgados permitem explicitar oapreço do Ministro Victor Nunes para com a jurisprudência do Supremo Tribunal1.

O Ministro Victor Nunes regularmente busca acrescentar aos seus votos —que aliam, com profundidade, saber jurídico, sensibilidade política e conhecimentoda realidade socioeconômica brasileira — referências a casos já decididos outendências já estabelecidas, sem prejuízo de, sempre que entenda pertinente,apresentar posicionamento divergente2.

Aliado a esse aspecto do perfil de atuação do Ministro Victor Nunes, outroque se destaca é sua dedicação ao aprimoramento de ritos e procedimentos doTribunal, sempre visando a dotar-lhe de instrumentos que permitam o melhordesempenho de sua missão.

1 O Ministro Aliomar Baleeiro, ao votar no MS 15.886, referiu-se ao Ministro VictorNunes como “a própria jurisprudência viva do Supremo Tribunal andando pelas ruas”.2 Ver, adiante, por exemplo, trecho do voto do Ministro Victor Nunes transcrito nocomentário ao ROE 366. Nesse sentido, ilustrativo é o trecho de palestra proferida peloMinistro Victor Nunes, com o título “Atualidade do Supremo Tribunal Federal” (publicadana Revista dos Tribunais, v. 349, pp. 623/629): “firmar a jurisprudência de modo rígidonão seria um bem, nem mesmo viável. A vida não pára, nem cessa a criação legislativae doutrinária do direito. Mas vai uma enorme diferença entre a mudança, que éfreqüentemente necessária, e a anarquia jurisprudencial, que é descalabro e tormento.Razoável e possível é o meio termo, para que o Supremo Tribunal Federal possa cum-prir o seu mister de definir o direito federal, eliminando ou diminuindo os dissídios dajurisprudência”. Com essas e outras idéias expressas no referido texto, defendia o insti-tuto da Súmula.

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Memória Jurisprudencial

Nesse sentido, foi do Ministro Victor Nunes a iniciativa de propor a ado-ção, pelo Supremo Tribunal Federal, do mecanismo da Súmula, instituída regi-mentalmente em 1963 e que importou um marco na história do Tribunal 3.

Oportuno, a propósito, lembrar palavras de José Paulo Sepúlveda Pertence,hoje Ministro do Supremo Tribunal e então Procurador-Geral da República, emsua manifestação4 proferida na sessão ordinária daquele Tribunal, de 14 de agostode 1985, em homenagem ao Ministro Victor Nunes Leal, falecido no dia 17 demaio do mesmo ano:

“Mais do que os de Relator, chamavam a atenção os seus vo-tos como vogal: o improviso e o não-conhecimento direto dos autosrealçavam a atenção sem intervalos que dedicava aos debates e,sendo o caso, o estudo prévio dos memoriais; a concatenação e ovigor do raciocínio, em que a ênfase (que subia quando interrom-pido pelo aparte adverso, sem perder, porém, a lhaneza de trato)não obscurecia a clareza habitual. (Inesquecíveis algumas polê-micas suas com o saudoso Luiz Gallotti, outra vocação incomumpara o debate oral.)

Pouco depois, o que viria a singularizá-lo, na recordação dassessões da Corte: a informação imediata dos precedentes da juris-prudência, documentada com a menção ao número do processo, àdata do julgamento, ao nome do Relator e — a princípio para des-conforto dos menos atentos — ao voto de cada um dos Ministros. Sóo conhecimento do sistema de referências cruzadas entre os colecio-nadores pretos e os cadernos de capa verde, sempre dispostos à suafrente, na bancada, fazia diminuir o espanto do observador, emborafizesse crescer a admiração pela disciplina de trabalho que o métodoreclamava.

O importante é que os cadernos de Victor Nunes entrariampara a história do Tribunal. Da sua eficiência, cotidianamente de-monstrada nas sessões, nasceria a credibilidade do novo juiz para a

3 Integrando a Comissão de Jurisprudência do Tribunal, juntamente com os MinistrosGonçalves de Oliveira e Pedro Chaves, o Ministro Victor Nunes apresentou a idéia e foi oRelator da emenda regimental que criou a Súmula. Foi ainda, por ocasião da introdução daSúmula, o Relator de seus primeiros 370 enunciados. Note-se que, na terminologia originale ainda na terminologia regimental, a expressão “Súmula” se referia ao conjunto dos“enunciados”, publicada e atualizada periodicamente; a prática posterior consagrou tam-bém o uso de “Súmula” significando cada enunciado.4 Rica fonte de informações sobre o Ministro Victor Nunes, sua história e seus valores,e bela oração de homenagem àquele que considera “mestre”, “amigo”, “pai” e “irmão”(ver Diário da Justiça, 26-8-1985, pp. 13905 e seguintes).

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aceitação e a implantação das reformas nos métodos de trabalho daCorte, que abalariam o misoneismo tradicional dos velhos juízes.

Da mais célebre das inovações, a Súmula, o próprio Victor con-taria em conferência de 1981, em Santa Catarina, minimizando-lhe,embora, as dificuldades da aceitação:

‘Por falta de técnicas mais sofisticadas, a Súmula nasceu —e colateralmente adquiriu efeitos de natureza processual — dadificuldade, para os Ministros, de identificar as matérias que jánão convinha discutir de novo, salvo se sobreviesse algum mo-tivo relevante. O hábito, então, era reportar-se cada qual a suamemória, testemunhando, para os colegas mais modernos, queera tal ou qual a jurisprudência assente na Corte. Juiz calouro,com o agravante da falta de memória, tive que tomar, nos pri-meiros anos, numerosas notas e bem assim sistematizá-las, parapronta consulta durante as sessões de julgamento.

Daí surgiu a idéia da Súmula, que os colegas mais expe-rientes — em especial os companheiros da Comissão de Juris-prudência, Ministros Gonçalves de Oliveira e Pedro Chaves —tanto estimularam. E se logrou, rápido, o assentamento da Pre-sidência e dos demais Ministros. Por isso, mais de uma vez, te-nho mencionado que a Súmula é subproduto de minha falta dememória, pois fui eu afinal o Relator não só da respectivaemenda regimental como dos seus primeiros 370 enunciados.Esse trabalho estendeu-se até as minúcias da apresentaçãográfica da edição oficial, sempre com o apoio dos colegas daComissão, já que nos reuníamos, facilmente, pelo telefone’.

A Súmula significou, ao mesmo tempo, melhoria qualitativa(dadas a estabilização, sem petrificação, da jurisprudência e a con-seqüente equanimização das decisões) e racionalização quantitativados trabalhos da Corte (funcionando, ele o diria, como “princípio darelevância às avessas”). Só ela bastaria para singularizar, na passa-gem de Victor Nunes pelo Supremo Tribunal, essa combinaçãoincomum de um jurista de brilho intelectual invulgar com umorganizador extraordinário”.

A referência ao RE 54.190, a seguir analisado, justifica-se por permitir oregistro, indispensável nesta obra, do papel fundamental exercido pelo MinistroVictor Nunes quanto à criação do instrumento da Súmula, e ainda por importarilustração da clareza de raciocínio do Ministro quanto ao modo adequado de seutilizar tal instrumento.

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Discutia-se, no caso, a incidência do então dito “imposto do selo” em umcontrato firmado com autarquia. Especificamente, uma determinada construtoraajuizara mandado de segurança para não ter de “pagar selos” sobre contrato queiria celebrar com o Departamento Nacional de Estradas de Rodagem – DNER.Concedida a segurança, recorre a União Federal, pela via extraordinária, ao Su-premo Tribunal.

A matéria tributária apresentada, além de aspectos específicos que pare-cem menos interessantes em face do direito vigente, envolve relevante questãode princípio, a qual, todavia, ora não se aprofunda, dado o corte temático destaobra5.

Todavia, permeava a discussão a existência da Súmula 303: “Não é devidoo imposto federal do selo em contrato firmado com autarquia anteriormenteà vigência da Emenda Constitucional 5, de 21-11-61”.

Como o caso concreto envolvia contrato firmado posteriormente a talEmenda, a maioria dos Ministros pretendia aplicar a Súmula, interpretando-a acontrario sensu, ou seja, por se afirmar não ser devido o imposto em caso decontrato firmado anteriormente à Emenda, haveria de se concluir ser devido oimposto em caso de contrato firmado posteriormente.

Ao discordar desse entendimento, o Ministro Victor Nunes apresenta racio-cínio de extrema lucidez e demonstra que a Súmula não pode ser aplicada comose fora lei, não comportando interpretação a contrario sensu6.

Por outras palavras, se se tratasse de uma norma jurídica, contendo oenunciado da vontade expressa na lei, seria cabível o raciocínio de que o legisla-dor, tendo explicitado uma hipótese, possa ter pretendido excluir outra nãoexplicitada.

No entanto, sendo a Súmula mera descrição do fato de que o Tribunal tementendimento consolidado sobre certo aspecto de uma matéria, dela não podedecorrer qualquer conclusão sobre qual seria o entendimento do Tribunal quantoa outro aspecto do tema, não abordado na Súmula.

5 Discutia-se o princípio da imunidade recíproca dos entes tributantes. Sustentava oMinistro Victor Nunes que “não será devido o selo nos casos em que se verificar ofenômeno da repercussão contra entidade protegida pela imunidade”. (...) “Se houverrepercussão do imposto sobre o patrimônio de pessoa jurídica de direito público, pro-tegida pela imunidade, o imposto é indevido; se não houver repercussão, o imposto édevido”.6 Com efeito, parece-me que a Súmula não configura, em essência, um comandonormativo, mas apenas descreve um fato: o fato de haver entendimento jurisprudencial doTribunal consolidado sobre determinada questão.

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Assim, da afirmativa de não ser devido o imposto por contrato anterior acerta data, nada se pode concluir quanto a ser ou não ser devido por contratoposterior a essa data. Na verdade, tal afirmativa apenas significa que o Tribunalentende não ser devido imposto em certa situação, não havendo ainda entendi-mento consolidado sobre outra hipótese.

E não há nenhuma relação lógica, derivada dessa afirmativa, que permitaconcluir que o eventual entendimento do Tribunal quanto a outra hipótese será nomesmo ou em diverso sentido.

Em seu voto, o Ministro Victor Nunes inicia por frisar que, tratando-se decontrato firmado posteriormente à referida Emenda Constitucional, o assunto emdebate não está regulado na Súmula 303. Em aparte, o Ministro Gonçalves deOliveira objeta que “está, a contrario sensu”. Segue-se, então, o debate:

“O Sr. Ministro Victor Nunes: Exatamente por isso, eminenteMinistro Gonçalves de Oliveira, é que me parece não estar previsto.

O Sr. Ministro Gonçalves de Oliveira: Interpreto a Súmula,posto tenha sido redigida por V. Exa., que está. O que diz a Súmula éo seguinte: ‘Não é devido o imposto federal de selo em contrato fir-mado com autarquia anteriormente à vigência da Emenda Constitucio-nal 5, de 21-11-61’.

Por mais que V. Exa. queira interpretar esse dispositivo, evi-dentemente ele estabeleceu que, depois da emenda, é devido. Do con-trário, que sentido teria a referência à Emenda 5? Podemos fazeruma revisão, evidentemente, em face dos argumentos que V. Exa.apresentar, mas que está prevista a não-isenção, a meu ver, está, nosentido de que é devido o selo nos contratos posteriores à EmendaConstitucional 5.

O Sr. Ministro Pedro Chaves: Seria inócua a emenda, se não sechegasse a essa conclusão.

O Sr. Ministro Victor Nunes: Retomando o fio de meu raciocínio,contraditado, antecipadamente, pelos eminentes Ministros Gonçalvesde Oliveira e Pedro Chaves7, peço vênia para uma consideração pre-liminar. Se tivermos de interpretar a Súmula com todos os recursos de

7 Curiosamente, os dois Ministros que, juntamente com o Ministro Victor Nunes, inte-gravam a Comissão de Jurisprudência do Tribunal, por ocasião da introdução da Súmula.

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hermenêutica, como interpretamos as leis, parece-me que a Súmulaperderá sua principal vantagem. Muitas vezes, será apenas uma novacomplicação sobre as complicações já existentes. A Súmula deve serentendida pelo que exprime claramente, e não a contrario sensu, comentrelinhas, ampliações ou restrições. Ela pretende pôr termo a dúvi-das de interpretação e não gerar outras dúvidas.

No ponto em debate, a Súmula declara que não é devido o selonos contratos celebrados anteriormente à Emenda Constitucional 5.Mas não afirma que, celebrado o contrato posteriormente, o seloseja devido.

(...)

O Sr. Ministro Victor Nunes: A Súmula foi criada para pôrtermo a dúvidas. Se ela própria puder ser objeto de interpretaçãolaboriosa, de modo que tenhamos de interpretar, com novas dúvidas,o sentido da Súmula, então ela perderá a sua razão de ser.

(...)

O Sr. Ministro Pedro Chaves: O que é lamentável é que V. Exa.esteja destruindo a sua grande obra, que é a confecção da Súmula.

O Sr. Ministro Victor Nunes: Faço um apelo aos eminentes cole-gas, para não interpretarmos a Súmula de forma diferente do quenela se exprime, intencional e claramente. Do contrário, ela falhará,em grande parte, à sua finalidade. Quando a Súmula afirma que nãoé devido o selo se o contrato for celebrado anteriormente à vigênciada Emenda Constitucional 5, sobre esta afirmação, e somente sobreela, é que já está tranqüila a orientação do Tribunal. Quanto a serdevido o selo nos contratos posteriores, o Tribunal Pleno ainda nãodefiniu a sua jurisprudência”.

No caso, entretanto, o resultado do julgamento foi o provimento do recurso,contra os votos dos Ministros Victor Nunes, Hermes Lima, Lafayette deAndrada e do Relator Vilas Boas.8

8 Em que pese vencida nesse caso, a opinião do Ministro Victor Nunes sobre interpre-tação de súmula é presente até hoje nos debates travados no Supremo Tribunal Federal.Verifiquem-se, por exemplo, as ponderações do Ministro Sepúlveda Pertence no HabeasCorpus 85.185, julgado pelo Plenário do Tribunal, em 10-8-2005.

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Recurso em Mandado de Segurança 16.912

Igualdade — Abuso e desvio de poder nos atoslegislativos — Função do STF e sua relação com osdemais Poderes — Controle de constitucionalidade emface de princípios constitucionais — Controle de consti-tucionalidade nos EUA — Importância da jurisprudência.

A situação de fato envolvida neste caso é a criação do Cartório de Re-gistro de Imóveis e Anexos, da Comarca de Suzano/SP, a partir de desmembra-mento do Cartório do Primeiro Ofício de Notas e Anexos, o qual, por sua vez,fora desmembrado, cinco anos antes, do Cartório de Registro Civil das PessoasNaturais.

A lei estadual que promoveu o segundo desmembramento estabeleceu, atítulo explícito de compensação pela “perda do anexo de tabelionato” — o queocorrera, como visto, anos antes —, “prioridade absoluta de opção” para onovo Cartório de Imóveis ao “atual Oficial do Registro Civil das Pessoas Natu-rais” da Comarca. E esse oficial veio efetivamente a ser provido na novaserventia.

Inconformado, o titular do Tabelionato de Notas impetrou mandado de se-gurança contra esse provimento, alegando a inconstitucionalidade da norma queprevira a “prioridade absoluta”.

Em seu voto, o Ministro Relator, Djaci Falcão, demonstrando que já hou-vera compensações ao Titular do Cartório de Registro Civil das Pessoas Natu-rais quando do desmembramento do Cartório de Notas, acolhe a tese da in-constitucionalidade da lei estadual — não a inconstitucionalidade dodesmembramento, pois “a vitaliciedade dos titulares de ofício de justiçanão constitui óbice à divisão dos ofícios”, mas da prioridade estabelecidapara o provimento.

Agindo desse modo, o legislador paulista teria editado, segundo o Relator,“norma de caráter pessoal9, ao arrepio, pois, do princípio da igualdade detodos perante a lei. Vê-se que a regra não guarda o caráter da generalidade,eis que personaliza. Estabelecendo um critério de provimento em benefícioexclusivo de um serventuário da Justiça, afetou o direito dos demaisserventuários do Estado que se encontrem nas mesmas condições de disputaro preenchimento do cargo criado”.

9 Note-se que a lei se referia à prioridade do “atual” titular.

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Memória Jurisprudencial

O Ministro Victor Nunes vota acompanhando o Relator, mas apresentaimportantes considerações sobre o desvio e o abuso de poder nos atos legislativose a possibilidade de controle desses abusos pelo Supremo Tribunal Federal.

O voto, que segue transcrito na íntegra ao final desta obra, merece serlido. Dele se extraem importantes elementos estruturantes do pensamento doMinistro Victor Nunes, que aparecerão em inúmeros outros julgados aqui ana-lisados.

Em particular, neste caso, são abordados temas como:

a) o alcance das atribuições do Supremo Tribunal Federal em sua relaçãocom os demais Poderes, demonstrando o Ministro Victor Nunes posição de gran-de equilíbrio, com o reconhecimento dos aspectos políticos da atuação de cadaPoder e os limites que se lhe devem impor, particularmente ao Poder Judiciário,em face das decisões políticas tomadas, em conformidade com o ordenamentoconstitucional, dentro de um regime democrático, pelos demais Poderes10.

b) a importância da jurisprudência, tanto para formar posicionamentos coe-rentes do Supremo Tribunal Federal, como para construir interpretações maisdefinidas, a partir de noções pouco precisas empregadas por textos legais. Seuapreço pela jurisprudência — que motivou, no MS 15.886, o Ministro AliomarBaleeiro a referir-se ao Ministro Victor Nunes como “a própria jurisprudênciaviva do Supremo Tribunal andando pelas ruas” — levou-o a ser o idealizadordo instituto da Súmula11 no âmbito do Tribunal, mas também não o impede devotar, quando entenda devido, em sentido diverso12, permitindo que a jurisprudên-cia acompanhe a evolução dos tempos.

c) a definição das competências do Supremo Tribunal Federal, particular-mente em matéria de controle de constitucionalidade. Sobre esse aspecto, asponderações do Ministro Victor Nunes sempre se mostram contextualizadas coma evolução política do Brasil, sem prejuízo de buscar subsídios na experiênciaestrangeira, em especial, da Suprema Corte norte-americana, da qual demonstraser grande conhecedor.

Quanto ao caso ora analisado, em que pese concorde com as conclusõesdo Relator, produz importante digressão teórica, de grande aplicação concretapara reforçar a solução apontada. Trata-se da noção de “abuso” como balizadorada atuação do Poder Judiciário, controlando atos dos demais Poderes:

10 Esse tema volta a aparecer, nitidamente, em outros casos, tais como: MS 8.693, MS8.651 e MS 8.802.11 Cf. análise do RE 54.190.12 Cf., para ilustrar, observações feitas no MS 8.651.

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Ministro Victor Nunes

“Não estou inteiramente em desacordo com V. Exa., mas achoque a noção de abuso é que permite ao Judiciário exercer uma fun-ção moderadora no controle da ação de outros Poderes. Tanto a no-ção de uso como a de abuso não têm definição muito precisa, mas ajurisprudência as vai construindo, lentamente, com seus precedentes.Aliás, é importante notar, é à base de noções não muito precisas, nãocompletamente definidas no texto legal, que a jurisprudência realizasuas mais valiosas construções”.

Essa idéia está implícita no voto do Ministro Prado Kelly, que entendeinconstitucional todo o dispositivo questionado, inclusive no tocante aodesmembramento do ofício, pois, mesmo nesse passo, o legislador teria agidoinspirado não pelo interesse público, mas por favorecimento pessoal13. A únicaemenda parlamentar apresentada foi a criação dessa serventia, evidenciando-se,pela regra de prioridade que a acompanhava, que fora idealizada como modo defavorecimento pessoal.

Quanto a esse aspecto, o Ministro Victor Nunes não vislumbra desvio depoder no referido desmembramento, sendo coisa corriqueira na organização judi-ciária. Nesse mesmo sentido, o Ministro Aliomar Baleeiro alerta para que não sepretenda investigar o “subconsciente do espírito legislativo. As intençõespertencem a Deus”.

Segue-se, então, intenso debate entre os Ministros Victor Nunes e Alio-mar Baleeiro, sobre abuso e desvio de poder da lei fora dos casos de inconsti-tucionalidade; sobre a distinção entre abuso e desvio de poder, ensejando, emdeterminadas hipóteses, controle de constitucionalidade; sobre a extensão dospoderes do Supremo Tribunal Federal em comparação com a Suprema Cortenorte-americana; e sobre aspectos legislativos da função do Supremo TribunalFederal.

Dada a profundidade do pensamento e o modo preciso com que é apresen-tado, impõe-se, como já recomendada, a leitura do voto na íntegra. Porém, embreve síntese, eis as idéias expressas pelo Ministro Victor Nunes:

a) abuso e desvio de poder devem ser distintos, como ensina a doutrinaadministrativista francesa. “O desvio de poder se configura não apenasquando o ato deixa de atender a um fim de interesse público, mas tambémquando, pressuposto pela norma jurídica determinado fim de interessepúblico, o ato é praticado com outra finalidade, ainda que de interesse

13 Há nesse voto interessantes citações de Duguit e Rousseau sobre a “generalidade”como aspecto essencial das leis.

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Memória Jurisprudencial

público”, caso em que o desvio conduziria, indiretamente, ao vício de incom-petência do agente. Já o abuso importa necessariamente desatendimento aointeresse público, traduzindo violação a normas expressas ou mesmo a princípiosdo ordenamento;

b) aplicando essas noções à questão debatida — possibilidade de controle,pelo Tribunal, de atos legislativos —, o Ministro Victor Nunes entende que não sepode exercer tal controle invocando “desvio de poder”, o que aliás, mesmo quantoao controle jurisdicional dos atos administrativos, aceita com ressalvas;

c) já quanto ao “abuso”, seria sim cabível estender os poderes de controlejurisdicional do domínio do Direito Administrativo para o Constitucional, ou seja, docontrole judicial dos atos administrativos para o controle da constitucionalidade dosatos legislativos. E isso — respondendo ao Ministro Aliomar Baleeiro — nãosignifica reconhecer possibilidade de controle do ato legislativo fora do campo daargüição de inconstitucionalidade, “porque esta não se traduz somente naviolação de norma expressa; também se traduz em violação de princípioconstitucional. Havendo evidente abuso do Congresso, sempre é possívelenquadrar esse abuso na infração de algum princípio constitucional”. Eprossegue mais adiante: “A noção de abuso é controvertida, tanto noDireito Civil, como no Processual, como no Administrativo, como tambémno Direito Constitucional. Mas, controvertida ou não, ela vai fazendo oseu caminho vitorioso na doutrina e na legislação.”;

d) a seu turno, o Ministro Aliomar Baleeiro registra temer que a aplicaçãoda noção de “abuso” ao controle jurisdicional possa levar ao fenômeno criticadonos Estados Unidos, no início da década de 30, em que a atuação da SupremaCorte era vista como expressão da “oligarquia judiciária”, ou “despotismo” doJudiciário, ou ainda “governo”, ou “poder dos Juízes”. Nesse sentido, entende jáextraordinariamente amplos os poderes do Supremo Tribunal Federal ao contro-lar a constitucionalidade de leis em tese14; e para tais poderes não haveria limitesse o Tribunal achasse que pode anular o que considere abuso de poder do Con-gresso; a essas ponderações, o Ministro Victor Nunes responde que espera “terexplicado por que não aceita um noção exagerada do controle judiciário.Infelizmente, não podemos fazer, agora, um estudo monográfico do tema.Temos que nos limitar ao enunciado de algumas idéias gerais”;

e) quanto à comparação com os poderes da Suprema Corte norte-ameri-cana, o Ministro Victor Nunes reconhece que lá não se chega ao controle de

14 Este julgamento é posterior à Emenda Constitucional n. 16/65, que introduziu a repre-sentação de inconstitucionalidade de lei em tese, ampliando significativamente o alcanceda representação, antes aplicada como pressuposto de intervenção federal.

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constitucionalidade de lei em tese, mas aponta determinados mecanismos quedão ao poder daquela Corte larga abrangência, como o test case — “que podeser até uma demanda simulada, ou construída, dando pretexto, ou motivo,ao Tribunal para emitir julgamento de constitucionalidade” — ou o staredecisis — que leva “a decisão da Corte Suprema que fulmine uma lei” a ser“respeitada de imediato por todos os Poderes”. E prossegue: “Somos, talvez,mais racionalistas que os anglo-saxões. Por isso, traduzimos esse efeitonuma norma de competência do Supremo Tribunal, pois nossa tradição eraem sentido oposto. Mesmo os juízes inferiores não devem obediência aosnossos julgados senão nos limites estritos do caso concreto. Era, pois, ne-cessário que houvesse uma norma para romper essa tradição”;

f) o Ministro Victor Nunes recorda que, “atualmente” (naquele então), aSuprema Corte tem sido censurada por usurpar função legislativa. Mas isso re-sulta, “talvez em maior parte, de ser a Constituição americana muito sinté-tica, com algumas disposições muito genéricas, de ser uma Constituiçãoantiga, escrita em condições históricas específicas e que deve ser aplicadaem situações completamente diversas. Por isso, a Corte vai interpretando omesmo texto, que é genérico, de modo diferente, à medida que mudam ascondições sociais”. Já no caso brasileiro, questiona: “Por que não fazemos omesmo? Porque não podemos? Não. É porque temos tido Constituições mi-nuciosas, praticamente regulamentares”, o que não impede que o SupremoTribunal proceda como a Corte Suprema “nos pontos em que nossas Constitui-ções têm sido omissas, ou têm usado fórmulas amplas”;

g) e encerra a seqüência do debate, admitindo, com naturalidade, haverparcela de atuação materialmente legislativa na função do Supremo Tribunal Fe-deral: “Com base em noções doutrinárias, respeitáveis sem dúvida, e em cer-tos princípios genéricos, o Tribunal, em substância, fazia obra legislativa.Mas não procedia abusivamente. Fazia legítimo uso do seu poder de inter-pretar a Constituição. Quando a Constituição se utiliza de uma fórmulaampla, vaga, imprecisa, o Supremo Tribunal é que deve determinar o seusentido, dar-lhe conteúdo, estabelecer seus limites”.

Voltando as idéias ao caso concreto, o Ministro Victor Nunes pondera:

“No tocante à ação do Congresso, que é passível de se traduzirem abuso, evidentemente, esse abuso só pode ser reconhecido e pro-clamado pelo Supremo Tribunal Federal em razão de princípiosconstitucionais e não pelo arbítrio dos juízes. Mas há princípiosconstitucionais tão genéricos que ao próprio Tribunal incumbe defi-ni-los. Este é o temperamento que estabeleço na questão que estamosaflorando. A intervenção da Corte dependerá, então, dos elementos.

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Memória Jurisprudencial

que vierem nos autos, da evidência com que deles possa emergir oabuso, que é de si mesmo noção pouco precisa”.

E conclui não vislumbrar abuso no desmembramento do cartório, mas sim naregra que estabeleceu a prioridade para o provimento, pois “o legislador, nas pró-prias palavras com que enunciou seu pensamento, revestidas de vigor inusitadoem leis dessa natureza, deixou escapar o seu propósito de puro favoritismo”.

Acompanha, assim, o Relator e a maioria, pelo provimento parcial dorecurso, reconhecendo-se a inconstitucionalidade do dispositivo que criava aprioridade para preenchimento da nova serventia. Há cinco votos15 pelo provi-mento integral do recurso, entendendo igualmente inconstitucional o dispositivoque promovia o desmembramento do ofício. Já o Ministro Gonçalves de Oli-veira não vê direito líquido e certo do impetrante16 a legitimá-lo a impugnar oprovimento da serventia, tal como se deu, razão pela qual vota pela negativa dorecurso.

Mandado de Segurança 9.13717

Função do STF como intérprete último da Consti-tuição — Aspectos de função legislativa na atuação doSTF.

A questão de fundo envolve direito de militar passar para a reserva sendopromovido a marechal. A controvérsia decorre do fato de o Presidente JânioQuadros ter aprovado parecer do Consultor-Geral da República, Caio Mário daSilva Pereira, fixando interpretação para a lei que regia a matéria de modo diver-gente da prática estabelecida em governos anteriores e consagrada após deci-sões do Supremo Tribunal Federal.

Sobre esse aspecto, manifesta-se o Ministro Relator, Gonçalves de Oliveira:

“Assim, Senhor Presidente, entendo, estou em que o SupremoTribunal Federal autorizou uma interpretação definitiva da lei, inter-pretação da qual só poderemos, a meu ver, nos afastar em face de

15 Ministros Eloy da Rocha, Prado Kelly, Adalicio Nogueira, Hermes Lima e CandidoMotta. Houve, em alguns desses votos, também o argumento de que a vitaliciedadeimpediria a criação de nova serventia, sem preferência para seu preenchimento pelo titularda serventia cindida. Na época, eram necessários nove votos para o reconhecimento deinconstitucionalidade.16 “Esse remédio (mandado de segurança) não protege mera expectativa de direito quetem todo cidadão de ver um cargo vago e poder ser o candidato a seu provimento.”17 No mesmo sentido, ver MS 9.411.

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pronunciamento, de manifestação de ordem legislativa. Somente sehouvesse agora uma definição do Congresso a respeito, vedando aspromoções a Marechal, é que poderíamos negá-las. Do contrário,não. Tais promoções se fizeram com a responsabilidade do SupremoTribunal, desta Suprema Corte de Justiça. Surgiu a ocasião, o julga-mento dos citados Mandados de Segurança 5.782 e 5.678, para estaCorte dar a palavra definitiva sobre a controvérsia, resolvendo, devez, a questão.”

Em seu conciso voto, o Ministro Victor Nunes afirma entendimentoquanto ao papel do Supremo Tribunal Federal como último intérprete da lei, emum raciocínio que já prenuncia sua proposta, posteriormente concretizada, domecanismo que veio a ser a Súmula18:

“Senhor Presidente, em nosso regime, a interpretação final dasleis cabe ao Supremo Tribunal Federal. No uso de tal prerrogativa,esta Corte, em certos casos, procede mais ou menos como legislador,porque, pela reiteração de seus julgados, cria normas onde a lei éomissa, obscura ou confusa.

Muitas vezes, o entendimento do Supremo Tribunal gera conse-qüências práticas de ampla repercussão, o que aconselha aos novosjuízes que encontram tais precedentes a prudência de a eles se sub-meterem, para evitar que a variação dos julgados dê lugar a incon-venientes maiores do que os derivados de decisões talvez menos cor-retas quanto à interpretação da lei.

Com esta fundamentação, Sr. Presidente, concedo o mandadode segurança, tendo em vista que a promoção a marechal, na inativi-dade, já é um fato tão generalizado em nosso País, que passou a serum prêmio normal na carreira dos militares.”

Recurso Ordinário Eleitoral 36619

Função do STF como intérprete último da Consti-tuição — Unidade na interpretação da Constituição.

Este recurso ordinário eleitoral foi interposto em face de decisão do TribunalSuperior Eleitoral, que, aplicando a lei eleitoral, reconheceu inelegibilidade dedeterminado cidadão.

18 Cf. supra comentário ao RE 54.190.19 ROE 367 e 368 também tratam da mesma questão.

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Houve unanimidade de votos quanto ao não-conhecimento do recurso, pornão estar caracterizada violação à Constituição. No entanto, interessante debateregistrou-se quanto à interpretação do art. 120 da Constituição de 1946 e quantoao papel do Supremo Tribunal Federal. Eis o dispositivo:

“Art. 120. São irrecorríveis as decisões do Tribunal SuperiorEleitoral, salvo as que declararem a invalidade da lei ou ato contrárioa esta Constituição e as denegatórias de habeas corpus ou mandadode segurança, das quais caberá recurso para o Supremo TribunalFederal”.

A discussão que se travou em diversos apartes diz respeito à interpretaçãodo dispositivo citado, que, se literal, levaria à conclusão de que determinadasdecisões do TSE, ainda que importando interpretação constitucional, restariamirrecorríveis — por exemplo, as que entendem que o ato impugnado na ação nãoviola a Constituição, como ocorreu no caso em exame.

Discordando das manifestações dos Ministros Luiz Gallotti, HahnemannGuimarães e Ribeiro da Costa20, vários Ministros, entre eles destacadamenteVictor Nunes, sustentam que tal interpretação não pode prevalecer, sob pena desubtrair-se ao Supremo Tribunal Federal seu papel essencial de dar a última pala-vra em matéria de interpretação da Constituição.

O debate é longo, ainda que não altere o resultado do caso concreto, noqual, todos concordam, não houve violação da Constituição a ensejar o recurso21.Ainda assim, importante o debate para fixar a compreensão da função precípuado Supremo Tribunal Federal.

Nesse sentido, o Ministro Victor Nunes desenvolve argumento demonstrandocomo, a subsistir a interpretação literal do art. 120, poderia haver duas decisõesconflitantes e definitivas sobre a constitucionalidade de uma mesma lei: uma profe-rida pelo Supremo Tribunal Federal; outra, pelo Tribunal Superior Eleitoral.

Considere-se o exemplo no qual o TSE decida de modo fundamentado naconstitucionalidade de tal lei — sendo tal decisão, pela letra do art. 120,irrecorrível —, suponha-se ainda que a mesma lei tenha sua validade questionada

20 O Ministro Ribeiro da Costa, por exemplo, interpreta restritivamente o citado art. 120,entendendo-o exceção à regra constitucional quanto ao papel do Supremo Tribunal eafirmando que a Constituição é superior ao próprio STF, de modo que este, em face dotexto constitucional, de clareza inequívoca, não poderia interpretá-lo de modo diverso.21 Note-se que o entendimento do STF é de que, constatada a não-violação da Constitui-ção, o resultado é o não-conhecimento do recurso, e não seu não-provimento. Nas pala-vras do Ministro Relator Gonçalves de Oliveira, “se o recurso, embora fundado na Cons-tituição, vem ao Supremo Tribunal, mas este verifica que não há violação da Constitui-ção, então não se conhece do recurso.”

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perante o STF a partir de mandado de segurança negado pelo TSE — caso emque cabe recurso ao STF —, concluindo o STF pela inconstitucionalidade.

Tal situação de incongruência seria ainda agravada pelo fato de essa lei,nesse último caso, poder ter sua vigência suspensa por decisão do Senado Federal,de modo conflitante com a outra decisão pretensamente definitiva do TSE.

Como desdobramento, nos debates, o Ministro Luiz Gallotti chega a sugerirque se recorra ao mandado de segurança em face da decisão do TSE, para que seatinja o STF, no que é contraditado pelos Ministros Gonçalves de Oliveira (Relator)e Victor Nunes, que apontam a impropriedade do uso do mandado de segurançaquando não coubesse recurso.

Em suma, o Ministro Victor Nunes, acompanhado por outros Ministros,sustenta uma interpretação mais aberta do art. 120, que não leve à quebra da“unidade de interpretação da Constituição”.

Nesse sentido, o Ministro Relator, Gonçalves de Oliveira, entende o referidoart. 120 “mal redigido”, propondo que se considere a expressão “salvo as quedeclararem a invalidade de lei ou ato contrário a esta Constituição” comocompreendendo decisões do Tribunal Superior Eleitoral que “forem contrárias àprópria Constituição”.

Em seu voto, para fundamentar sua posição, o Ministro Victor Nunesassim se manifesta quanto à função do Supremo Tribunal Federal em nossoordenamento jurídico:

“Os brilhantes votos já proferidos acentuaram que, no nossosistema, há um órgão incumbido de dizer a última palavra na inter-pretação da Constituição. Esse órgão é o Supremo Tribunal Federal.Teria a Constituição, no art. 120, quebrado essa unidade, criandouma dualidade que poderia retirar do Supremo Tribunal a sua pró-pria razão de ser? O Supremo Tribunal nasceu à imagem da CorteSuprema dos Estados Unidos, cuja tarefa fundamental, nunca maisposta em dúvida depois do caso Marbury v. Madison, é a de dar aúltima palavra sobre a Constituição. O Ministro Felix Frankfurter,quando professor de Direito Constitucional, usando uma vigorosaimagem, costumava dizer aos seus alunos que a Corte Suprema é aConstituição. [Seguem-se apartes. Ministro Luiz Galotti: “A Constitui-ção é o que a Corte Suprema diz que é”. Ministro Hahnemann Guima-rães: “A Constituição é o que a lei ordinária diz que ela é. A lei ordi-nária é que regula o funcionamento da Corte Suprema.”]

Mas, quando se trata de interpretar a Constituição, a compe-tência da Corte Suprema resulta da própria Constituição, com o sen-tido que ela mesma lhe deu, e não da lei ordinária.

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Retomando o meu raciocínio, teria a Constituição brasileiraquebrado o sistema, permitindo que dois órgãos judiciários pudessemdizer a última palavra em torno de um texto da Constituição? Parece-meque não. E suponho, falando com todo o respeito, que o entendimentoaté aqui preponderante pode conduzir a esse resultado.”

Ao longo dos debates, o Ministro Luiz Gallotti, Presidente, observa que suaposição espelha posicionamento já firmado pelo Supremo Tribunal Federal emmuitos julgados desde a Constituição de 1934.

Sobre o tema, pondera o Ministro Victor Nunes:

“Senhor Presidente, V. Exa. e nossos eminentes colegas sabemdo alto apreço em que tenho a continuidade das decisões do SupremoTribunal. Entretanto, esse respeito pela nossa coerência, de que re-sulta prestígio para o Supremo Tribunal, não exclui o debateesclarecedor de questões já tranqüilizadas pelo Tribunal. Esse de-bate pode, eventualmente, levar a maioria a outras conclusões. Oque me parece inconveniente são as alterações não precedidas deampla discussão, de pleno esclarecimento, porque lançam confusãono espírito das partes e conduzem à insegurança jurídica.”

Recurso Ordinário Eleitoral 371

Função do STF como intérprete último da Consti-tuição — Alteração de jurisprudência.

Discutia-se a possibilidade de lei federal (no caso, a Lei 3.528/59) preverhipóteses de inelegibilidade não tratadas na Constituição.

No caso, o Prefeito de Santo André/SP perdera seu cargo em razão deprocesso de impeachment, por decisão da Câmara Municipal, e teve sua poste-rior inscrição como candidato a deputado estadual impugnada.

O Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo deferiu-lhe a inscrição, mas adecisão foi reformada pelo Tribunal Superior Eleitoral, por maioria de apenas umvoto, entendendo-se que cabia à Lei federal em questão prever o caso de suspen-são de direitos políticos como conseqüência do impeachment.

O TRE entendera que a Constituição de 1946, ao prever os casos de sus-pensão e perda de direitos políticos (art. 135) e de inelegibilidades (art. 138), nãocontemplava a hipótese do impeachment. Nesse sentido, não se equiparava adecisão da Câmara Municipal no impeachment à “condenação criminal” previstano art. 135 da Constituição, condenação esta proferida por tribunais judiciais.

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Recorreu-se, assim, ao Supremo Tribunal Federal, que, preliminarmente,abordou a mesma questão objeto do ROE 366, acima comentado.

Naquele caso, no entanto, a questão apenas figurara nos debates, não in-fluenciando a decisão unânime de não-conhecimento do recurso, que decorrerade outra razão. O mesmo aconteceu nos ROE 367 e 368.

Mas, no presente caso, preliminarmente, o Supremo Tribunal Federalconheceu o recurso, contra os votos dos Ministros Ribeiro da Costa (Presidente),Vilas Boas e Hahnemann Guimarães.

E, uma vez conhecido, deu-se provimento ao recurso por votação unâ-nime, ou seja, entendendo-se que não caberia à lei federal criar hipótese de inele-gibilidade e suspensão de direitos políticos não prevista constitucionalmente.

Quanto à preliminar, verifica-se, portanto, a consolidação da tendência jáapontada no ROE 366 e mantida nos ROE 367 e 368, consoante entendimentoexpresso, entre outros, pelos Ministros Victor Nunes, Gonçalves de Oliveira ePedro Chaves.

Trata-se de alteração de posicionamento22 da jurisprudência do SupremoTribunal Federal, fundamentada na idéia principal de se reconhecer o SupremoTribunal como o intérprete último da Constituição.

Mandado de Segurança 9.077

Limites à apreciação, pelo STF, de política de governo —Poder regulamentar.

A questão aqui debatida surgiu em período no qual a importação de trigopor moinhos dava-se por quotas, autorizadas pelo Governo Federal. O caso envol-via a mudança do regime estabelecido para as quotas de importação, fixado pordecreto.

A impetrante havia obtido uma quota de aquisição de trigo importado navigência de decreto anterior, editado pelo Presidente Juscelino Kubitschek. Noentanto, o Presidente Jânio Quadros editou outro decreto, revogando o anterior einstaurando novo regime, segundo o qual a intenção da impetrante quanto à aqui-sição da quota de trigo não poderia se consumar. Alegou, assim, a impetrantedireito adquirido à aquisição da tal quota.

22 No presente caso, ao justificar sua posição, alterando jurisprudência, o MinistroRelator Gonçalves de Oliveira citou o Ministro Nelson Hungria, para quem “a jurispru-dência há de ser como os navios, que não podem ser condenados a ficar ancorados,perpetuamente, num mesmo porto”.

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Memória Jurisprudencial

Não parece relevante, presentemente, o mérito da questão do trigo. Masvale ressaltar a discussão sobre direito adquirido. Nesse aspecto, o MinistroRelator, Gonçalves de Oliveira, manifestou-se no sentido de que não se podereconhecer direito adquirido decorrente de decreto, sem base em lei. Nesse caso,poderia o Poder Executivo alterar o regime, não se justificando a pretensão daimpetrante de, diferentemente dos demais moinhos, excluir-se do novo regime,até mesmo para que se respeite o princípio constitucional da igualdade.

O Ministro Victor Nunes profere voto acompanhando o Relator e a maioria,no qual, produzindo argumentos quanto à matéria de fundo, ressalta importanteponto de vista quanto ao papel do Poder Judiciário em face das competênciaspróprias do Governo:

“Trata-se, realmente, de decretos normativos. Um deles estabe-leceu condições, atendidas as quais se concedeu à firma impetranteuma determinada prerrogativa. Logo, como titular do direito(subsistente, ou não, é questão de mérito) resultante dessa conces-são, tinha ela qualidade para vir a Juízo. O que ela não pode, entre-tanto, é obter, judicialmente, a revogação do Decreto 50.318, de18-3-61, porque, como bem o disse o eminente Ministro Gonçalves deOliveira, secundado pelo eminente Ministro Pedro Chaves, esse de-creto exprime uma política do Governo em relação à importação, aocomércio e à industrialização do trigo. Não cabe ao Supremo Tribu-nal corrigir essa política, mesmo que ela possa parecer a um ou outroinjusta, não eqüitativa.”

Recurso Extraordinário 35.230

Tecnicismo processual como obstáculo à realiza-ção da justiça — Proposta de forma única para ações.

Tratava-se de recurso extraordinário, a partir de ação de divisão e demar-cação de quinhões, pelo qual se discutia a necessidade de propositura prévia deação demarcatória23.

O Ministro Victor Nunes24 produz, na motivação de seu voto, observaçõesquanto ao excesso de tecnicismo processual, que constitui obstáculo à realizaçãoda justiça:

23 De toda a gleba, vez que o título de propriedade dos autores não continha os limitesdo imóvel dividendo.24 Observando que não há, no caso, questionamento por parte dos confrontantes dagleba integral quanto aos seus limites e que o argumento da necessidade da prévia açãodemarcatória foi levantado apenas pelos réus co-proprietários — que não teriam real

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Ministro Victor Nunes

“O código processual em vigor é, sabidamente, avesso aoformalismo, que procurou reduzir ao mínimo essencial a garantia dosdireitos dos litigantes. O então Ministro da Justiça, Professor Fran-cisco Campos, na respectiva exposição de motivos, ponderou que, nosistema anterior, quanto à forma das ações, continuávamos ‘envolvi-dos nos meandros, muitas vezes inacessíveis aos próprios técnicos,do formalismo mais bisantino’. E citava, a propósito, estas palavrasde Willougbby: ‘Tornou-se geral modernamente a opinião de que afeição fundamental de uma reforma do sistema do processo deveriaser a forma única para as ações (...).’ De um só golpe, uma enormemassa de tecnicismos legais seria relegada para os arquivos históri-cos. A simplicidade substituiria a complexidade, e a justiça seria ob-tida pela abolição de inúmeros casos em que ela tem falhado porfracasso dos litigantes, pelos seus advogados, no achar o caminhoatravés da massa de tecnicismo que envolve o simples ato inicial doprocesso”.

Mandado de Segurança 13.203

Justificativa para competência do STF — Distin-ção entre União e autarquias.

Cuidava-se de mandado de segurança ajuizado pelo Instituto do Açúcar edo Álcool, autarquia federal, contra ato praticado pelo Secretário da Fazenda doEstado de São Paulo.

O debate e a decisão resumem-se à questão de competência do STF, comfundamento no art. 101 da Constituição de 1946: “Art. 101. Ao Supremo TribunalFederal compete: I - processar e julgar originariamente: (...) e) as causas econflitos entre a União e os Estados ou entre estes;”.

O Ministro Relator, Vilas Boas, conhece o mandado de segurança, afirman-do que o IAA seria a “própria União operando em um certo setor da econo-mia nacional”. E vota vencido.

Todos os demais sete Ministros presentes votam pela incompetência origi-nária do Supremo Tribunal no caso, interpretando o citado dispositivo constitucional

interesse em discutir a demarcação da gleba, senão a divisão e a demarcação dos qui-nhões — como modo de obstaculizar, por um argumento processual, a pretensão dosautores.

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Memória Jurisprudencial

estritamente, de modo a não se considerarem incluídas no conceito de “União” asautarquias federais, que têm personalidade jurídica própria.

Nesse sentido, manifesta-se o Ministro Victor Nunes:

“A Constituição, quando atribui competência originária ao Su-premo Tribunal Federal para as causas entre a União e os Estados,ou entre estes, tem em vista problemas de relevante interesse institucio-nal. A interpretação desse texto, por isso, não deve ser ampliativa.Não se pode prescindir de uma condição: que as pessoas jurídicas dedireito público, referidas no texto constitucional, estejam diretamenteem causa.

Ora, as autarquias têm personalidade jurídica diversa daUnião. Quando uma autarquia está em Juízo, não é a União que estáem Juízo, embora, patrimonialmente, possa haver, para a União, re-flexo indireto da decisão. Mas isso também pode ocorrer em outrascausas.”

1.2 Controle de constitucionalidade

Mandado de Segurança 15.886

Discussão sobre possibilidade de negativa de apli-cação de lei, pelo Poder Executivo, por alegação deinconstitucionalidade — Emenda Constitucional 16/65 —Presunção de constitucionalidade das leis — Retroativi-dade da declaração de inconstitucionalidade — Críticaà disciplina por lei de prerrogativa constitucional doSTF.

Três servidores públicos de autarquias vinculadas ao então Ministério deViação e Obras Públicas impetraram mandado de segurança, objetivando fazercumprir a Lei federal 4.449/64, que tratou sobre questões funcionais aplicáveisaos servidores das autarquias em questão.

Tal lei entrara em vigor após a derrubada, pelo Legislativo, de vetos presi-denciais a alguns de seus dispositivos.

Ocorre que o Presidente da República, Marechal Castello Branco, nega-va-se a aplicá-la, com base em parecer do então Consultor-Geral da República,

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Ministro Victor Nunes

Adroaldo Mesquita da Costa, no sentido de existir prerrogativa presidencial paranegar execução a leis inconstitucionais25.

O argumento central dos impetrantes, por sua vez, consistia em afirmarque, com a derrubada do veto, os tais dispositivos legais tornavam-se válidos,impondo-se ao Executivo. Este teria ao seu alcance submeter a questão à apre-ciação judicial26.

Tal conclusão seria ainda reforçada pela recente introdução, no sistemaconstitucional, da representação de inconstitucionalidade de lei em tese, nos ter-mos da Emenda Constitucional 16/65.

Em seu voto como Relator, o Ministro Victor Nunes registra que, anterior-mente, esposava o mesmo ponto de vista manifestado no parecer do Consultor-Geral da República, ou seja, a possibilidade de negativa de execução.

Todavia, com o advento da representação de inconstitucionalidade,introduzida pela EC 16/65 — que reputa “inovação valiosíssima” —, passou oMinistro a entender descabida tal possibilidade.

Lembra que, antes da referida Emenda, a jurisprudência do Supremo Tri-bunal Federal admitia que o chefe do Executivo optasse por levar o litígio sobre aconstitucionalidade de lei ao Judiciário, ou então simplesmente por negar-lhe exe-cução, transferindo ao interessado o ônus de ir buscar tutela judicial27.

Invoca ainda doutrina norte-americana, professada mesmo por Presiden-tes da República, no sentido de possuírem, assim como os Tribunais, poderes deinterpretação da Constituição — ainda que tenha restado estabelecido, desde ocaso Marbury x Madison, como sendo do Poder Judiciário a última palavranessa questão.

25 A razão do veto fora a inconstitucionalidade consistente em a) aumento de despesa,em projeto de lei, por iniciativa parlamentar; e b) efetivação de funcionários interinos semconcurso público.26 No mérito, argumentam que não ocorriam as inconstitucionalidades apontadas e que,quanto ao aspecto da vedação ao aumento de despesas por iniciativa parlamentar emprojeto de lei de iniciativa reservada ao Executivo, isso não seria aplicável às autarquias.Mas, por ora, interessa, em especial, aprofundar a análise do posicionamento do SupremoTribunal Federal em matéria da questão da negativa de execução a leis consideradas, peloPresidente da República, inconstitucionais.27 Em apartes, são citadas opiniões de autores sobre esse posicionamento. Por exemplo,Luiz Eulálio de Bueno Vidigal: se o ato legislativo é inconstitucional, “é nulo e não pode,por si só, ferir direitos particulares”; e Francisco Campos: posto que o Judiciário sócontrola a constitucionalidade das leis quando instado a julgar sua aplicação ao casoconcreto, não se pode subtrair aos Poderes Executivo e Legislativo a faculdade de inter-pretar as leis em face da Constituição, aplicando-as, ou não, sob pena de “instalar nosdois grandes motores da vida política do país ou do Estado o princípio da inércia e da

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Memória Jurisprudencial

Mas segue argumentando que, ante a novidade trazida pela EC 16/65, nãopode prevalecer a jurisprudência anterior do Supremo Tribunal Federal, nemmesmo aplicar-se o raciocínio norte-americano, posto não existir lá semelhanteinstrumento de controle de constitucionalidade:

“Realmente, a ampla representação de inconstitucionalidadeque o nosso Direito Constitucional agora abriga põe a questão sobuma nova luz, que me leva a não insistir nos votos proferidos anterior-mente. A interpretação advogada pelos impetrantes tem uma sólidacontextura lógica e contribui, notavelmente, para o aperfeiçoamentojurídico do nosso regime de poderes limitados e divididos, sob a vigi-lância do Judiciário, que é o fiel da Constituição.

Teremos, assim, um mecanismo coordenado e harmônico no querespeita à inconstitucionalidade das leis. O Presidente da Repúblicamanifestará o seu entendimento por meio do veto e, se este for rejeitado,poderá reiterá-lo por meio da representação de inconstitucionalidade,a ser formulada pelo Procurador-Geral, titular de sua imediataconfiança. O Congresso, por sua vez, dará o seu pronunciamento,primeiro, quando votar o projeto e, depois, quando tiver de apreciaro veto. Finalmente, o Judiciário, guarda do equilíbrio dos Poderes,solucionará a controvérsia, pela voz do Supremo Tribunal, ao julgar arepresentação.

Se é conclusiva, nessa matéria, a decisão do Supremo Tribunal,o lógico é que essa decisão seja provocada antes de se descumprir alei. Anteriormente à EC 16/65, não podíamos chegar a essa conclu-são por via interpretativa, porque não havia um meio processual sin-gelo e rápido que ensejasse o julgamento prévio do Supremo Tribu-nal. Mas esse obstáculo está arredado, porque o meio processual foiagora instituído no próprio texto da Constituição.”

Na seqüência, frisa que esse novo posicionamento “dá novo vigor à pre-sunção da constitucionalidade das leis”, já reforçada, desde a Constituição de1934, pela regra de que os Tribunais só podem declarar a inconstitucionalidadepela maioria absoluta de votos dos seus juízes, e recorda ainda que o SupremoTribunal Federal herdara, da jurisprudência norte-americana, a regra do “otherclear ground, que manda evitar a declaração de inconstitucionalidadequando a causa puder ser decidida por outros fundamentos.”

irresponsabilidade, paralisando o seu funcionamento por um sistema de frenação eobstrução permanentes”.

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Ministro Victor Nunes

“Com a nova interpretação, baseada na EC 16, a que estou aderindoapós madura reflexão, resulta que a lei, até ser declarada inconstitucionalpelo Judiciário, será obrigatória não só para os particulares como tambémpara os poderes do Estado, o que confere ao regime de legalidade umaeficácia prática proporcionada à sua projeção teórica.”

Prossegue o Ministro Victor Nunes, para demonstrar que seu novoposicionamento não conflita com o princípio da retroatividade da declaração deinconstitucionalidade, já, naquele momento, reiterado em alguns julgados do Su-premo Tribunal Federal.

Em primeiro lugar, ressalta que tal princípio não é decorrência natural dosistema de controle de constitucionalidade, lembrando, como exemplos, a Consti-tuição da Itália e a da Áustria, esta que permitiu a sua Alta Corte Constitucionalque prorrogue por até seis meses a vigência de lei declarada inconstitucional28.

Em segundo lugar, pondera que a execução da Lei — aplicada pelo Exe-cutivo —, até a declaração judicial de inconstitucionalidade, pode ser consideradacondicional, restabelecendo-se, depois, o status quo ante.

Com essas ponderações, acolhe o primeiro fundamento (suficiente) do pedido,deferindo a segurança para que o Presidente da República aplique a lei em questão.

Sendo assim, submete a matéria aos demais Ministros, posto que, com essadecisão, não prosseguirá na análise da aplicação da lei ao caso dos impetrantes29.

Todavia, a maioria, contra os votos dos Ministros Victor Nunes, CarlosMedeiros, Evandro Lins, Gonçalves de Oliveira e Vilas Boas, posiciona-se reco-nhecendo a faculdade de o Presidente da República negar execução a lei queentenda inconstitucional30.

Segue, portanto, o Ministro Relator, Victor Nunes, votando quanto ao mérito,decidindo o direito de cada um dos três impetrados no caso concreto.

Um aspecto paralelo, surgido em aparte ao voto do Ministro Aliomar Bale-eiro, que pode se mostrar relevante ainda em tempos atuais, é a crítica feita pelo

28 Vide, atualmente, o que dispõem, no Brasil, a Lei 9.868/99, art. 27, e a Lei 9.882/99, art. 11.29 Acompanhando o voto, o Ministro Evandro Lins observa que, negando execução alei, o Presidente pode eventualmente incidir em crime de responsabilidade; e o MinistroVilas Boas proclama, em defesa da relevância da lei em nosso sistema, que “o símbolo daordem jurídica é a lei e não apenas a Constituição”. E, respondendo a questão de ordemsuscitada pelo Procurador-Geral da República, pondera o Ministro Victor Nunes que nãopoderia, em sede do mandado de segurança — que não pode ter efeitos de representa-ção —, apreciar a constitucionalidade, em tese, da lei controvertida.30 Com fundamento na jurisprudência passada e em argumentos como: a nulidade abso-luta das leis inconstitucionais; a supremacia da Constituição; o dever do Presidente da

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Memória Jurisprudencial

Ministro Victor Nunes ao fato de ter havido disciplina legislativa da norma daConstituição de 1946 que previa a representação interventiva:

“A meu ver — já sustentei isso no Tribunal —, a regulamen-tação que o Congresso fez do art. 8º, parágrafo único, foi emcerto sentido, com permissão da palavra, uma exorbitância, por-que a representação do art. 8º, parágrafo único, não é um pro-cesso judiciário comum: é uma prerrogativa político-constitucio-nal do Supremo Tribunal Federal vinculada à intervenção federalnos Estados.

Assim como uma lei não poderia restringir, nessa matéria, asprerrogativas do Executivo ou do Congresso, também não o poderiaquanto às prerrogativas do Supremo Tribunal. Aliás, o Supremo Tri-bunal sempre aplicou o art. 8º, parágrafo único, mesmo antes dehaver lei que regulasse, porque não era necessária lei nenhumapara que o Supremo Tribunal exercesse aquela sua prerrogativa. Ne-nhum dispositivo de lei ordinária pode limitar nossas atribuiçõesconstitucionais, porque será dispositivo exorbitante dos poderes doLegislativo.”

Mandado de Segurança 16.003

Discussão sobre possibilidade de negativa de apli-cação de lei, pelo Poder Executivo, por alegação deinconstitucionalidade — Discussão sobre cabimento demandado de segurança para solucionar, em abstrato,essa questão.

Neste julgado, abordou-se o mesmo tema do acórdão anteriormente co-mentado. Servidores públicos de autarquias vinculadas ao então Ministério deViação e Obras Públicas impetraram mandado de segurança, também objetivandoo cumprimento da Lei federal 4.449/64.

Todavia, diferentemente do que se passou no MS 15.886, os impetrantesnão argumentaram com sua situação individual, concreta, a ensejar a aplicaçãoda referida Lei; em lugar disso, formularam pedido no sentido do reconhecimentoem tese, de modo genérico, de que o Presidente da República teria de aplicar-lhes o disposto na Lei.

República de zelar pela Constituição; a não-existência da representação de inconstitucio-nalidade quando o Presidente da República deixar, inicialmente, de aplicar a lei em debate.

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Ministro Victor Nunes

Sendo assim, acompanhando o Ministro Relator, Prado Kelly, por unanimi-dade o Supremo Tribunal Federal decide que falta idoneidade ao mandado desegurança como meio processual para que se pleiteie o reconhecimento, em abs-trato, do dever do Presidente da República de aplicar a Lei 4.449/64.

Argumenta o Relator que, apenas nas hipóteses da representaçãointerventiva e da representação de inconstitucionalidade, poderia o SupremoTribunal Federal produzir provimento declaratório de caráter abstrato, ou, comodiz em seu voto o Ministro Aliomar Baleeiro, “quer-se provocar um pronuncia-mento do Supremo Tribunal Federal, em caráter consultivo, em uma ques-tão abstrata. Nestes termos, o mandado de segurança não pode ser conhe-cido”31.

Ademais, sustenta o Relator ser lícito ao Presidente da República recusar-sea aplicar lei que considere inconstitucional. Porém, nesse passo, ao longo dosdebates, admite uma evolução na sua posição: entende que o Presidente podefazê-lo se, ao mesmo tempo, levar a questão ao Supremo Tribunal Federal porintermédio do Procurador-Geral da República, pela via da representação.

O Ministro Victor Nunes acompanha a conclusão do Relator; todavia, pordiverso fundamento.

Entende que a razão do indeferimento do pleito não seria o fato de que odeferimento importasse dar ao mandado de segurança efeito de ação de controlede constitucionalidade de lei em tese. Diferentemente, admite, por hipótese, queaté se possa decidir, preliminarmente, que o Presidente da República não podenegar execução a lei que entenda inconstitucional — tese, aliás, sustentada peloMinistro Victor Nunes e vencida no MS 15.886.

Entretanto, nessa situação, haveria que se prosseguir no julgamento, per-quirindo-se a situação concreta individual de cada impetrante, para que se con-cluísse pela aplicação, ou não, da lei a cada caso.

De todo modo, no caso deste mandado de segurança, os impetrantes nãotrazem elementos concretos, individualizados, suficientes para tal julgamento,limitando-se a pleitear que o Supremo Tribunal Federal determine, em abstrato, ocumprimento da Lei em questão.

31 Note-se, de todo modo, que os impetrantes não pediram declaração de inconstitucio-nalidade de lei, mas apenas declaração de que o chefe do Poder Executivo não podenegar-se a executar lei judicialmente não declarada inconstitucional.

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Memória Jurisprudencial

A falta de elementos concretos que permitam o julgamento da situação decada impetrante é que configura o motivo pelo qual o Ministro Victor Nunesindefere o pleito.

Interessante argumento surge no voto do Ministro convocado Oscar Saraiva,no mesmo sentido do posicionamento do Ministro Victor Nunes, ou seja, negandoao Presidente da República o poder de descumprir lei que subjetivamente entendainconstitucional: ao rebater o argumento do Ministro Relator, Prado Kelly, quecitara Francisco Campos quanto a ser um ato inexistente a lei inconstitucional,pondera que

“toda essa douta opinião parte de um pressuposto: o da demons-tração prévia de que a lei é inconstitucional. E quem declara que alei é inconstitucional? Se deixarmos a interpretação da inconstitucio-nalidade da lei, já não digo só ao eminente Presidente da Repúbli-ca, que encarna o Poder Executivo (...) mas, ao descermos na escalado Poder Executivo, a todo membro integrante da AdministraçãoPública, desde o Presidente da República, passando pelos Ministrosde Estado e pelos funcionários, todos competentes para a interpre-tação da lei, teríamos instituída a desordem legislativa, numahermenêutica semelhante ao liberalismo protestante, o da livre inter-pretação da Bíblia crente. No caso, teríamos a livre interpretação daConstituição pelo seu aplicador, in casu com a preterição manifesta doPoder Judiciário, que é o único órgão constitucionalmente capaz dedizer se a lei é ou não inconstitucional.”

No mesmo sentido votam os Ministros Gonçalves de Oliveira e EvandroLins, reiterando a tese que já sustentavam no MS 15.886. Mas, no caso, concluemvotando com o Relator pelos mesmos motivos expostos pelo Ministro VictorNunes, relativos à impossibilidade de apreciação do caso concreto dos impe-trantes.

Mandado de Segurança 16.512

Resolução do Senado Federal que suspende a exe-cução de lei julgada inconstitucional pelo STF — Dis-cussão sobre possibilidade de revogação da resoluçãopor outra — Natureza da resolução do Senado Federal,para efeito de controle via representação de inconstitu-cionalidade — Conceito de “lei em tese” — Efeitos daresolução do Senado Federal — Sentido de suspensão“no todo ou em parte” — Caráter discricionário ouvinculado da resolução do Senado Federal.

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Ministro Victor Nunes

Esta questão, dita inédita no âmbito do Supremo Tribunal Federal pelo Mi-nistro Pedro Chaves, deriva de situação de fato bastante incomum na práticainstitucional.

O Supremo Tribunal Federal julgara inconstitucional, em outro processo, viarecurso extraordinário, dispositivo do Código de Impostos e Taxas do Estado deSão Paulo (Decreto 22.022/53) que estabelecia hipóteses de incidência do impostosobre transações.

A inconstitucionalidade então reconhecida decorria do disposto em umaalínea que arrolava algumas atividades — “construção, reforma e pintura deprédios e obras congêneres, por administração ou empreitada” — comointegrantes da hipótese de incidência.

Naquela ocasião, determinado arquiteto, contratado para fiscalizar obra exe-cutada por conta do proprietário, sustentou não ser devido o imposto sobre seushonorários. Com efeito, entendera, assim, o Supremo Tribunal Federal, decidindonão ser fato gerador da cobrança a renda auferida em virtude de contrato delocação de serviços — RE 38.538, com decisão prolatada em 19-8-60. Tal decisãofoi posteriormente (21-8-62) encaminhada ao Senado Federal, para fins de eventualsuspensão de execução e, em 25-3-65, o Senado efetivamente decidiu, por meio daResolução 32, suspender a execução da alínea objeto do citado RE.

Ocorre que o Governador do Estado de São Paulo, em face da decisão doSenado Federal, em 15-9-65, apresentou representação àquela Casa Legislativacom base em interpretação fixada pela Fazenda estadual, pretendendo que aanterior decisão do Supremo Tribunal Federal apenas houvesse tido por efeitoconsiderarem-se inconstitucionais situações de fato idênticas à do arquiteto entãorecorrente. Posta desse modo a questão, em tese seriam possíveis outras aplica-ções constitucionais da mesma alínea.

Ante a Representação, o Senado Federal, em 14-10-65, editou nova Reso-lução, de número 93, revogando a anterior Resolução 32, e suspendendo a execuçãoda norma estadual paulista apenas para a hipótese de locação de serviços profis-sionais, nos termos da situação concreta submetida ao Supremo Tribunal Federalno Recurso Extraordinário 38.538.

Contra essa nova Resolução do Senado Federal é que foi impetrado, origi-nariamente, no Supremo Tribunal Federal, o mandado de segurança que ora secomenta.

Dentre os argumentos apresentados pelos impetrantes (vinte e sete em-presas construtoras), destacam-se:

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Memória Jurisprudencial

a) ao editar a nova Resolução, o Senado teria usurpado função legislativaestadual, restabelecendo norma então inexistente;

b) ademais, teria agido sem base em decisão judicial que o levasse a tanto;

c) nesse mesmo ato, o Senado teria se sobreposto em relação ao SupremoTribunal Federal, praticamente revogando decisão da Corte e atribuindo-lhe pen-samento que não expressara.

Sustentando seu parecer, o Procurador-Geral da República, AlcinoSalazar, acrescenta uma questão: entende que a matéria discutida seria própriade representação de inconstitucionalidade, mas admite que se conheça do man-dado de segurança como reclamação.

Em seu voto, o Ministro Relator, Oswaldo Trigueiro, admite que a ementado acórdão no RE 38.538 fosse imprecisa, mas afirma não ter dúvida de que, naocasião, o Supremo Tribunal Federal reconhecera a inconstitucionalidade dacobrança do imposto, nos termos do dispositivo impugnado, dando, assim, razãoaos impetrantes.

Em sua motivação, o Ministro Relator compreende o zelo da Fazenda es-tadual, mas argumenta que ela poderia, caso entendesse imprecisa a decisão doSupremo Tribunal Federal no RE 38.538, ter apresentado embargos de declara-ção; ou, ainda, caso estivesse convicta da interpretação favorável à sua tese,seguir cobrando o tributo. Mas não lhe caberia buscar — como fez — tutela doSenado Federal, a quem não compete rever decisões do Supremo Tribunal Federalnem suprir omissões da legislação estadual.

Pondera que, tivesse dúvida o Senado quanto ao alcance da decisão doSupremo Tribunal Federal, poderia ter pedido esclarecimentos; porém, uma vezeditada a Resolução, estaria exaurida a função do Senado no caso.

Quanto ao cabimento do presente Mandado de Segurança, o MinistroRelator, Oswaldo Trigueiro, entende ser incabível, posto equiparar a Resoluçãodo Senado a lei em tese.

Houvesse aplicação, pela Fazenda do Estado, da norma estadual revigoradapela Resolução do Senado, aí sim haveria lesão ou ameaça de lesão a ensejar omandado de segurança; todavia, contra ato de autoridade estadual — na Justiçalocal — e não contra ato do Senado Federal — originariamente no SupremoTribunal Federal. Por essa razão, não conhece do pedido.

Surge então discussão sobre a possibilidade de o mandado de segu-rança ser conhecido como reclamação ou representação de inconstitucio-nalidade.

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Ministro Victor Nunes

Presente ao julgamento, o Procurador-Geral da República oralmente assu-me a autoria da reclamação, que fora também apresentada pelas impetrantes, aqual é, afinal, conhecida pelo Tribunal como representação32.

Nesse ponto, sustenta o Ministro Victor Nunes que, em face de haverprocedimento33 próprio para questionamento de constitucionalidade de atonormativo em tese, em nada prejudicado, no caso, pelo fato de ter sido instauradooralmente pelo Procurador-Geral da República — detentor exclusivo da legitimi-dade para tanto —, seria de todo conveniente que se conhecesse a representa-ção, afastando-se qualquer obstáculo para que se apreciasse o mérito.

Assim decide o Tribunal. Mas vale registrar discussão que permeou o de-bate da questão processual, quanto à natureza da Resolução do Senado Federalque suspende a execução da lei julgada inconstitucional: se ato administrativo oulegislativo, ou ainda se ato de natureza sui generis, o que influenciaria a análisesobre o cabimento do mandado de segurança.

A propósito, pondera Victor Nunes quanto ao sentido de lei, no conceito de“lei em tese” — contra a qual não cabe mandado de segurança —, que se trata delei em sentido amplo, como ato normativo: “o que se leva em conta é a naturezado ato, não a sua hierarquia. Sendo o ato de substância legislativa, isto é,normativa, não se configura ainda uma lesão de direito individual. E é alesão de direito individual, ainda que iminente, que o mandado de segurançaprotege.”

Todavia, como já visto, a questão resta superada com o conhecimento darepresentação.

Quanto ao mérito, a mesma questão retorna ao debate, em refinado argu-mento oferecido pelo Ministro Victor Nunes:

a) sustenta, em primeiro lugar, que, sendo a lei ato normativo, a decisão doSenado que lhe “suspende a execução”, revogando-a para todos os efeitos, sópode ter a mesma natureza normativa: “Por outro lado, esse ato não deixa deser normativo. Se a lei é normativa, e o Senado, ao suspendê-la, retira aeficácia da lei, ele acrescenta alguma coisa à decisão, e esse acréscimo temforça tão normativa como a da lei que é posta fora de circulação. Se essa

32 De todo modo, os Ministros Pedro Chaves, Evandro Lins e Luiz Gallotti já adiantavam,em interessante raciocínio que privilegiava a análise de mérito, com relativo desapego àsformalidades, que conheceriam qualquer meio de defesa de direito dos interessados:mandado de segurança, reclamação ou representação.33 A representação de inconstitucionalidade, recentemente introduzida no sistemaconstitucional e ainda sofrendo construção jurisprudencial quanto ao seu procedimento,posto que não disciplinada no plano legal.

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Memória Jurisprudencial

eficácia normativa, que suspende a lei, não derivasse da resolução do SenadoFederal, mas do julgado do Supremo Tribunal, a intervenção do Senadoseria desnecessária: a decisão seria executada, desde logo, com efeito nor-mativo. Mas não é este o nosso sistema. Daí a necessidade de se acrescentarum plus à decisão judiciária, tornando-a obrigatória erga omnes, por ser ela,por natureza, obrigatória somente para as partes.”;

b) essa natureza normativa do ato de revogação não é afetada pelo fato deser ato emanado de outro Poder (no caso, o Senado Federal —, Poder diverso daAssembléia Legislativa ou do Congresso Nacional, aprovando leis ordinárias comsanção do Presidente da República, ou do Presidente da República editando de-cretos-lei), posto ter sido a própria Constituição a estabelecer modo excepcionalde revogação: resolução do Senado Federal;

c) por outro lado, não previu a Constituição poder ao Senado para, porresolução, criar nova norma;

d) daí por que não pode o Senado revogar resolução sua, restabelecendo avigência de norma, o que só poderia ser feito por nova norma: “Por tudo isso,parece-me que o ato suspensivo do Senado é de natureza normativa, porquetem o efeito de revogar a lei. Por ser normativo, com esse efeito revocatórioda lei, parece-me de todo evidente que o Senado não pode voltar atrás, poisa lei revogada só se restaura por outra lei. O Senado só poderia restaurara lei que ele, se suspender, revogou, se tivesse poder legislativo autônomo,se tivesse o poder de fazer a lei originária. Mas esse poder ele não temsequer quanto às leis federais, muito menos quanto às estaduais, como é ocaso dos autos.”

Outra relevante questão de mérito diz com a interpretação da norma cons-titucional que prevê a competência do Senado Federal para suspender a execução,“no todo ou em parte”, de lei julgada inconstitucional pelo Supremo TribunalFederal.

Sobre o tema, o Ministro Victor Nunes expressou entendimento no sentidode que, “no todo ou em parte”, deve guardar coerência com a decisão do SupremoTribunal Federal, ou seja, se a decisão aponta inconstitucionalidade “em parte” danorma, a suspensão, pelo Senado, será “em parte”; se o Supremo Tribunal Federalconsidera “o todo” inconstitucional, a suspensão, pelo Senado, será “no todo”.

Assim pensa o Ministro Victor Nunes:

“O Senado não pode, por iniciativa própria, suspender a vi-gência de uma lei qualquer. Ele só pode suspender uma lei no pressu-posto de haver o Supremo Tribunal decidido contra a sua validade.Está, pois, na contingência de observar os limites do que o Tribunal

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Ministro Victor Nunes

decidiu, porque o Senado não pode alterar a nossa decisão. Se oSenado, ao suspender a vigência de uma lei, pudesse escolher ape-nas parte do que decidimos e desprezar o restante, o resultado, emtese, poderia ser contraproducente, especialmente quando as diver-sas partes do julgado fossem indissociáveis.

A Constituição não deu ao Senado, no art. 64, o poder de vetarparcialmente as decisões do Supremo Tribunal. Por isso, ele suspen-derá no todo ou em parte a lei, consoante o Tribunal houver declaradoa lei inconstitucional no todo ou em parte.”

No entanto, reconhece o Ministro Victor Nunes que cabe politicamente aoSenado Federal julgar a conveniência e a oportunidade de suspender ou não aexecução de norma julgada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal:

“Mas o Senado terá o seu próprio critério de conveniência eoportunidade para praticar o ato de suspensão. Se uma questão foidecidida por maioria escassa e novos Ministros são nomeados, comohá pouco aconteceu, é de todo razoável que o Senado aguarde novopronunciamento antes de suspender a lei. Mesmo porque não há san-ção específica nem prazo certo para o Senado se manifestar.”

Após ricos debates, com forte lastro nos argumentos oferecidos peloMinistro Victor Nunes, decidiu-se dar provimento à representação, contra ovoto do Ministro Aliomar Baleeiro (no mérito) e do Ministro Hermes Lima, queconsiderava descabida a discussão em tese da questão, senão via mandado desegurança, ante a Justiça local, em caso concreto de violação do direito dosimpetrantes.

Recurso em Mandado de Segurança 8.069

Conceito de taxa — Conflito entre norma legal eposicionamento doutrinário — Defesa do federalismo —Sistema tributário como instrumento de reforço do federa-lismo.

Discute-se, neste caso, a constitucionalidade da taxa de recuperação eco-nômica, instituída pelo Estado da Paraíba. Trata-se de acórdão rico em discus-sões de Direito Tributário, envolvendo o conceito de taxa34.

Mas, dada a opção temática deste trabalho, parece adequado aquienfatizar outro aspecto relevante que transparece nos debates, a demonstrar o

34 Registre-se que, sob a vigência da Constituição de 1946, o Supremo Tribunal Federaldiscutiu, em inúmeras ocasiões, matéria envolvendo o conceito de taxa. Verifiquem-se,

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Memória Jurisprudencial

pensamento do Ministro Victor Nunes quanto ao controle de constitucionalidadedas leis.

O raciocínio que embasa o trecho do voto do Ministro Victor Nunes, aseguir transcrito, prestigia a função da lei, importando lúcida auto-restrição aoórgão incumbido do controle de constitucionalidade:

“Não quero discutir se esse conceito [de taxa] é o mais corretodo exclusivo ponto de vista da ciência das finanças. Mas, se aprópria doutrina diverge, por que não seria lícito ao legislador, nouso de competência constitucional expressa, definir o conceito detaxa num ou noutro sentido? Legem habemus, e contra essa regra dedireito positivo, para impugná-la, não me parece razoável aduzirconsiderações de ordem doutrinária, muito menos para fulminar a leicomo incompatível com a Constituição, quando o texto constitucionalnão enuncia qualquer conceito de taxa, nem amplo, nem restrito”.

Esse raciocínio é retomado mais adiante, acrescendo-se-lhe, em reforço,argumento relativo à valorização do federalismo35, que estaria implícita emoptar-se, com base na lei, por reconhecer constitucional a taxa em questão,instituída pelo Estado da Paraíba:

“Senhor Presidente, vivemos clamando contra a Constituiçãode 1946, porque a sua discriminação tributária atingiu fundamente ofederalismo brasileiro. Mas qualquer que seja o impacto desta ano-malia sobre os Estados-Membros, de uma coisa não podemos nos es-quecer: a forma do Estado que a Constituição consagra é a federa-ção, em obediência a cujos princípios informadores, inscritos no seutexto, não podemos, nem devemos, interpretar com ânimo restritivo acompetência tributária dos Estados. Não se trata, neste caso, de cor-rigir injustiça ou ilegalidade praticada contra este ou aquele contri-buinte. O que estamos julgando, num plano muito mais alto, são oslimites da competência dos Estados (da Paraíba, como de qualqueroutro) para prover os recursos necessários aos seus crescentes en-cargos. Não serviremos à Federação, antes a prejudicaremos, con-trariando o sistema que a Constituição solenemente proclama, se in-terpretarmos somiticamente, sovinamente, a competência tributáriaestadual.

No caso presente, estão em jogo os recursos com que o Estadoda Paraíba contribuirá para um programa de planificação regional.

por exemplo, os votos do Ministro Victor Nunes em: RE 54.491, RMS 8.533, RMS 10.939,RE 39.296, RE 40.206, RE 41.517, RMS 13.341e RMS 17.443.35 Além de argumento inspirado por forte senso de questões sociais.

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Ministro Victor Nunes

A planificação regional é o grande achado dos tempos contemporâ-neos para compensar a má distribuição dos recursos naturais e cor-rigir o desigual desenvolvimento das diferentes regiões, suprindo asdeficiências das menos favorecidas. Por que haveremos de compro-meter uma experiência político-administrativa de tão grande alcance,que congrega todas as correntes políticas, acima das divergênciaspartidárias? Por que haveremos de impossibilitar os Estados de obteros meios com que atender à sua quota-parte de encargos nessa cora-josa tentativa de enfrentar os graves problemas econômicos e sociaisdas áreas menos desenvolvidas do País?

Se o caso fosse de inconstitucionalidade patente, visível a olhonu, de gritante conflito com o texto expresso da Constituição, não nosrestaria outro caminho. Mas o que se apura, na espécie, é justamenteo contrário. Há texto de lei ordinária que consagra um conceito detaxa bastante amplo para que nele se abrigue, comodamente, a leiestadual impugnada. E a norma de direito positivo federal em ques-tão, se não estiver com a melhor doutrina (o que não quero, por hora,discutir), inegavelmente, não atrita com qualquer dispositivo consti-tucional; antes se enquadra, ajustadamente, na competência daUnião para legislar sobre normas de direito financeiro”.

Com esses argumentos, o Ministro Victor Nunes reconhecia a constitucio-nalidade da taxa em questão, negando provimento ao recurso. Desse modo, restavencido, juntamente com os Ministros Vilas Boas (Relator), Gonçalves de Oliveirae Sampaio Costa (substituindo o Ministro Nelson Hungria).

Recurso em Mandado de Segurança 8.533

Conceito de taxa — Conflito entre norma legal eposicionamento doutrinário.

Este é outro acórdão em que está envolvido o conceito de taxa, no caso, apartir da instituição da taxa de serviço contra fogo, pelo Estado de Minas Gerais.

Nesta oportunidade, o Ministro Victor Nunes reitera seu entendimento so-bre os limites da ação do Supremo Tribunal ao exercer controle de constituciona-lidade — em particular enfatizando a prevalência do expresso texto de lei, se emconfronto com a doutrina —, no mesmo sentido do julgado acima exposto:

“Sr. Presidente, tenho firmado, neste Tribunal, humildemente,na corrente oposta àquela em que se colocaram os eminentes Minis-tros Relator e Pedro Chaves.

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Memória Jurisprudencial

O principal argumento que eu aceito — e essa discussão é ve-lha no Tribunal e fora dele — é que a inconstitucionalidade de umalei se apura não em face da doutrina, mas em face da Constituição. Enossa Constituição alude a taxas, mas não as define.

(...)

Por ora, quero acentuar que a Constituição não define o queseja taxa, e a mesma Constituição confere à União Federal, no art.15, inciso V, n. I, expedir normas gerais de direito financeiro. Um dostextos do direito federal que contém princípios dessa natureza,definindo o que seja taxa e imposto, é o DL n. 2.416 (...).”

Mas, também neste caso, o Ministro Victor Nunes resta vencido, aoposicionar-se pela constitucionalidade da taxa, negando provimento ao recurso,acompanhado pelos Ministros Vilas Boas e Henrique D’Ávila.

Recurso Extraordinário 23.937

Aplicação da Súmula 400 — Não-cabimento derecurso extraordinário em face de decisão que deu razoá-vel interpretação a lei.

Discutia-se, nesse recurso, regra de competência, a partir de interpretaçãode dispositivos diversos do Código de Processo Civil. Menos relevante, para umaanálise feita nos dias de hoje, parece a discussão sobre a matéria de fundo nestecaso, posto tratar-se de questão pontual, a partir de regras específicas do CPCvigente na década de 60.

Mas o que parece interessante é mostrar este acórdão, proferido em ses-são de 4 de dezembro de 1964, como exemplo de aplicação da Súmula 400,aprovada em Sessão Plenária de 3 de abril do mesmo ano. A Súmula 400 doSupremo Tribunal Federal tem o seguinte teor: “decisão que deu razoável in-terpretação à lei, ainda que não seja a melhor, não autoriza recurso extraordi-nário pela letra a do art. 101, III, da Constituição Federal”36.

Por sua vez, o citado art. 101, III, a, da Constituição de 1946, assim dispunha:

“Art. 101. Ao Supremo Tribunal Federal compete: (...)

III - julgar em recurso extraordinário as causas decididas emúnica ou última instância por outros Tribunais ou Juízes: a) quando a

36 Poder-se-ia observar que essa tese se harmoniza com as idéias expostas no capítulo“Interpretação”, na Teoria Pura do Direito, por Hans Kelsen.

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Ministro Victor Nunes

decisão for contrária a dispositivo desta Constituição ou à letra detratado ou lei federal”.

Por meio de acórdão também relatado pelo Ministro Victor Nunes, queconfigura precedente em relação à citada Súmula, proferido no Agravo de Instru-mento 29.843, o Supremo Tribunal Federal negara-lhe provimento, entre outrosmotivos, pelo fato de, nas palavras do Relator, a decisão recorrida haver se limi-tado a “interpretar o texto legal”.

Recorde-se ainda outro precedente da Súmula 400, o Agravo de Instru-mento 30.500, que teve como Relator o Ministro Pedro Chaves, de cujo voto valedestacar a ponderação: “a decisão recorrida não ofendeu a lei, cujos textosinterpretou e aplicou como melhor lhe pareceu, nem contrariou jurispru-dência específica. O recurso extraordinário não se destina à discussão deteses acadêmicas”.

Relatando o caso ora comentado — RE 23.937 —, o Ministro VictorNunes registra que “o acórdão recorrido (...) entendeu que o princípio daprevenção deveria ceder o passo a outros, também contemplados pelo Có-digo de Processo Civil, ao determinar a competência”, e prossegue: “comessa interpretação, não ofendeu a lei, mas apenas a interpretou de maneiraaceitável” (...) “prevaleceram, assim, na decisão recorrida, contra o únicocritério da prevenção, em que se apóia a recorrente, três outros critérios,também admitidos na lei”37.

Recurso Extraordinário 32.921

Interpretação conforme a Constituição.

Este recurso extraordinário foi interposto contra decisão do Tribunal Supe-rior do Trabalho em dissídio coletivo.

Dentre vários fundamentos do acórdão que negou conhecimento ao re-curso, interessa mais nitidamente, do ponto de vista do controle de constituciona-lidade, a argumentação do Ministro Relator, Victor Nunes, quanto à alegação deinconstitucionalidade do art. 1º da Lei 2.510/55, assim redigido: “É defeso àJustiça do Trabalho, no julgamento dos dissídios coletivos, incluir, entre ascondições para que o empregado perceba aumento de salário, cláusulareferente à assiduidade ou freqüência no serviço”.

37 Igualmente quanto à aplicação da Súmula 400, ver, entre outros, o RE 28.797, relatadopelo Ministro Victor Nunes.

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Memória Jurisprudencial

O recorrente (sindicato), com base em parecer de Pontes de Miranda,apontava inconstitucionalidade no dispositivo, por supostamente configurar limi-tação ao exercício da função jurisdicional.

Após ponderar que o legislador, na redação do texto, foi infeliz, o MinistroVictor Nunes argumenta que “seria perfeitamente legítima a lei, se houvesseestabelecido, com o mesmo alcance, uma norma de direito substantivo”.

Desse modo, determina que se interprete o dispositivo em questão “comoenunciando regra de direito substantivo, no sentido de proibir a cláusulade assiduidade como condição para aumento coletivo de salário”.

E prossegue: “a simples deficiência de linguagem do legislador não émotivo para se declarar a inconstitucionalidade quando a lei puder serinterpretada de modo a se tornar compatível com a Constituição”.

Verifica-se que fundamenta a posição do Ministro Victor Nunes o mesmoprincípio a ensejar o que mais contemporaneamente se diria “interpretação con-forme a constituição”, qual seja, o princípio de prestigiar-se a validade de uma lei,optando-se por considerá-la constitucional caso ao menos uma de suas possíveisinterpretações seja compatível com a Constituição.

Em verdade, na situação ora analisada, não ocorreria caso típico de inter-pretação conforme — no estrito sentido dessa técnica hermenêutica consagradaa partir da jurisprudência alemã —, posto não se apresentar propriamente maisde uma interpretação da norma, como a conduzi-la a mais de uma hipótese deincidência.

Com efeito, o sentido (“o alcance”, como dito pelo Ministro) da norma éum só; apenas há que se entender seu enunciado, apesar das palavras postas,como não importando fixar limite à função jurisdicional, o que seria inconsti-tucional.

Recurso em Mandado de Segurança 14.710

Suspensão de julgamento em Câmara de Tribu-nal local, para que o Pleno decida sobre questão deconstitucionalidade — Discussão sobre trânsito emjulgado da decisão do Pleno e do momento para se recor-rer ao STF.

A questão de mérito discutida neste caso diz com o tema da possibilidadede emenda parlamentar a projetos de lei de iniciativa do Executivo, prevalecendo

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Ministro Victor Nunes

a tese de que é admissível emenda quando guarde identidade com a matéria doprojeto proposto38.

Tratava-se de projeto de lei que propunha a criação de um cargo públicopara corrigir-se situação de fato — advogado exercendo função compatível,mas ocupando cargo de médico —, e o Parlamento emendou-o para corrigirmais outra situação — técnico exercendo, de fato, função no serviço dedocumentação, mas ocupando cargo de técnico de laboratório — com cria-ção de outro cargo. O Governador de São Paulo vetou, alegando que aemenda importara, indiretamente, aumento de vencimentos; a Assembléiaderrubou o veto; o Governador descumpriu a lei; e o interessado impetroumandado de segurança.

Mas não é a questão de mérito que, neste julgamento, se mostra maisinteressante. Com efeito, os debates alongam-se quanto à questão processual docabimento do recurso, não no sentido de qual o recurso cabível, mas sim de secaberia recurso da decisão do tribunal a quo.

Não se pretende neste trabalho, dado o seu corte temático, aprofundarnuances técnicas de direito processual39 envolvidas na questão, senão destacarpontos mais diretamente relacionados com o controle de constitucionalidade.

A discussão decorre do fato de, na instância estadual, ter havido suspen-são do julgamento na Câmara, para que o Tribunal Pleno decidisse matéria cons-titucional, dada a regra constitucional de maioria necessária para tanto. Com adecisão de inconstitucionalidade, o processo retornou à Câmara, que julgou im-procedente o pedido.

Desse último julgamento, a impetrante interpôs o presente recurso ordi-nário. Todavia, os Ministros Adaucto Cardoso e Eloy da Rocha entendem quedeveria ter havido recurso, oportunamente, da decisão do Tribunal Pleno para oSupremo Tribunal Federal, sob pena de transitar em julgado.

Argumenta o Ministro Adacuto Cardoso que o Tribunal Pleno teria julgadoa “única matéria controvertida nos autos — a inconstitucionalidade da leiestadual em que se amparava a impetração”. E invoca inúmeros precedentesdo Supremo Tribunal, das décadas de 50 e 60. O Ministro Eloy da Rocha, a seuturno, argumenta que a decisão do Pleno é definitiva: “na mesma instância, amatéria de inconstitucionalidade não pode mais ser apreciada, para a rela-ção em causa”.

38 Essa questão é mais profundamente debatida em acórdãos analisados mais adiante,no item “Poder Legislativo”.39 De que, aliás, esse julgado é rico.

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Memória Jurisprudencial

Sustentando posição contrária40, a maioria dos Ministros entende que ojulgamento apenas se conclui com a decisão da lide, no caso, pela Câmara; daíentão cabendo recurso ao Supremo Tribunal. O Ministro Luiz Gallotti considera amanifestação do Pleno “uma etapa do julgamento”, e o Ministro ThompsonFlores lembra que tal manifestação “não tem efeitos em relação às partes”, oque ocorrerá com o julgamento da Câmara.

O Ministro Amaral Santos chega a afirmar que a manifestação do Plenonão é propriamente decisão, mas “norma” que irá balizar a decisão da lide; aoque o Ministro Eloy da Rocha responde ser “decisão sobre interpretação danorma” e acrescenta ser decisão passível de trânsito em julgado, para as partes,se não recorrida em tempo. Na argumentação do Ministro Amaral Santos, adecisão do Plenário sobre constitucionalidade não transita em julgado se a lidenão foi decidida.

O Ministro Victor Nunes acolhe a tese da minoria, vindo em seu apoio commais argumentos.

Em primeiro lugar, observa ser possível que tribunais locais decidamquestões constitucionais como aspecto incidental de uma demanda; o que éprivativo do Supremo Tribunal Federal é o julgamento de inconstitucionalidadeem tese.

Daí não ser incongruente admitir-se que determinada decisão de instânciainferior sobre matéria constitucional — como incidente para a solução de casoconcreto — transite em julgado sem que tenha havido apreciação pelo SupremoTribunal Federal.

Na seqüência desse raciocínio, considera normal que haja dois ou maisrecursos ao Supremo Tribunal, a partir de uma mesma lide — rebatendo, assim,argumentos que negavam essa hipótese, como situação anômala —, e lembra,nesse sentido, outros exemplos de situações processuais.

Ademais, questiona: “por que a controvérsia constitucional, em casoconcreto, não pode ser considerada lide?”. E segue: “se é uma premissa,como observou o eminente Ministro Amaral Santos, ela será, quando o pe-dido se basear na argüição de inconstitucionalidade, a premissa funda-mental. E o Código de Processo Civil41, em dispositivo que Liebman nãoconsiderava muito feliz, dispõe que a decisão sobre premissa necessáriatambém transita em julgado”.

40 Não estão aqui expostos todos os argumentos processuais debatidos.41 De 1939.

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Ministro Victor Nunes

Por fim, argumentando com aspectos de política legislativa, o MinistroVictor Nunes lembra haver interesse público em se acelerar o julgamento conclu-sivo de matéria constitucional, não havendo que se aguardar decisão integral dalide na instância inferior para que a decisão plenária sobre constitucionalidadeseja levada ao Supremo Tribunal. Esse interesse público é tão relevante que,ainda na vigência da Constituição de 1946, expandiu-se o cabimento do processopara apreciação de constitucionalidade em tese.

E mesmo o interesse das partes será mais “depressa atendido, porquemais depressa as partes terão a última palavra, que é a do Supremo Tribu-nal, sobre a questão mais importante do processo”.

No caso, restam vencidos, na matéria preliminar, os Ministros VictorNunes, Eloy da Rocha e Adaucto Cardoso, que não conheciam do recurso.

Recurso em Mandado de Segurança 15.212

Suspensão de julgamento em Câmara de Tribunallocal, para que o Pleno decida sobre questão de constitu-cionalidade — Discussão sobre trânsito em julgado dadecisão do Pleno e do momento para se recorrer ao STF.

O Ministro Victor Nunes conclui seu voto no RMS 14.710 (cf. supra) ,“ren-dendo tributo” à jurisprudência anterior ao RMS 15.212.

De fato, foi a partir desse precedente, envolvendo a mesma questão de méritodiscutida no RMS 14.710, que o Supremo Tribunal Federal alterou seu entendimentoquanto à necessidade de recurso — sob pena de trânsito em julgado —, antes dadecisão final do litígio, de decisão do Plenário de tribunais inferiores, em matériaconstitucional.

Naquela ocasião, além de apresentar argumentos em igual sentido dos jáacima expostos42, o Ministro Victor Nunes ponderara:

“A decisão que a maioria está tomando hoje não atende a essaconveniência43, porque protela o julgamento da questão constitucio-nal por esta Corte. Ela já estará decidida por outro Tribunal, emPlenário, mas só virá ao Supremo depois que a Turma ou Câmaradaquele Tribunal proferir outra decisão, que de resto será absoluta-

42 Apesar da precedência temporal do RMS 15.212, optou-se pela análise dos argumen-tos do Ministro Victor Nunes a partir do RMS 14.710, posto que neste caso foram apresen-tados (ou reiterados) com maior detalhamento.43 “A conveniência pública de serem as questões constitucionais dirimidas o quantoantes.”.

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mente inócua quanto à questão constitucional, porque as Turmas ouCâmaras não têm competência para decidir essa matéria. O que con-vém ao País é saber quanto antes a opinião do Supremo Tribunalsobre tais questões”44.

E, assim como posteriormente se passou com o RMS 14.710, no RMS15.212 os Ministros Victor Nunes, Eloy da Rocha e Adaucto Cardoso, acompa-nhados neste caso pelo Ministro Evandro Lins, votaram vencidos pelo não-co-nhecimento do recurso.

Mandado de Segurança 17.484

Mandado de segurança preventivo para evitar nega-tiva de aplicação, pelo Poder Executivo, de lei julgadaconstitucional pelo STF.

O acórdão proferido neste caso é bastante sucinto, mas revelador de ques-tão relevante tanto sobre o cabimento do mandado de segurança como sobreaplicação de lei cuja constitucionalidade já tenha sido objeto de apreciação emtese (via representação) pelo Supremo Tribunal Federal.

O Supremo Tribunal Federal já julgara constitucional determinado artigo delei sobre aposentadoria de servidores públicos. No entanto, alguns anos depois, oPresidente da República, com base em parecer do Consultor-Geral da República,vinha reiteradamente negando, pelo fundamento de inconstitucionalidade, pedidosde aposentadoria de servidores públicos formulados com base na referida lei.

Assim, o impetrante ajuizou mandado de segurança a fim de afastar anegativa de sua aposentadoria pelo Presidente da República. Ocorre que oimpetrante ainda não havia requerido aposentadoria, a qual, portanto, não lhehavia sido negada.

No entanto, o Ministro Relator, Victor Nunes, entende que atitude reiteradado Chefe do Executivo cria no impetrante justo receio de que sua situação recebao mesmo tratamento, justificando-se assim a concessão preventiva da segurança.

Sustentando voto em sentido contrário, o Ministro Prado Kelly ponderanão haver ato administrativo, no caso, a ensejar a impetração. Note-se que, aindaque não tenha havido debates explícitos nesse sentido, a tese sustentada pelo

44 E, em resposta ao Ministro Relator, Gonçalves de Oliveira, que acusava seu posici-onamento de trancar, “com a coisa julgada, o pronunciamento do Supremo TribunalFederal”, nega essa conseqüência, lembrando que “o mesmo aconteceria, se a partenão recorresse afinal”.

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Ministro Victor Nunes

Ministro Victor Nunes reconhece o caráter preventivo do mandado de segurançaem relação a ato coator ainda não praticado, mas provável em face da reiteraçãoda prática, em outros casos similares, de atos no sentido indesejado peloimpetrante, enquanto que a tese acolhida pelo Ministro Prado Kelly supõe neces-sária a prática do ato coator — caso em que o mandado seria preventivo quantoaos efeitos do ato.

E surge ainda outra nuance do voto do Ministro Relator, Victor Nunes:propõe ele a concessão da segurança como modo de vedar à Administração quenegue o futuro pedido de aposentadoria do impetrante alegando motivo de in-constitucionalidade da lei que o embasa, a qual já fora reconhecida constitucionalpelo Supremo Tribunal Federal em representação.

Argumenta Victor Nunes que “a administração pode entender que,embora afirmada pelo Tribunal a constitucionalidade da lei em tese, elaseria livre de reargüir, perante o Supremo Tribunal, a inconstitucionalidadeem casos específicos”.

Neste caso, a maioria dos Ministros não conhece o mandado de segurança,com os votos vencidos dos Ministros Victor Nunes, Evandro Lins e Lafayette deAndrada.

Casos “Testamento do Rio Grande do Norte”

(Rp 512, RE 48.655, RE 54.908, RE 61.513,RE 61.324, RE 61.316, RE 61.340, RE 61.354, RE61.511, RE 61.524 e RE 61.554)

Suspensão de aplicação de lei por ato do PoderExecutivo — Interpretação dos princípios constitucio-nais sensíveis — Flexibilidade para cabimento de recursoextraordinário em mandado de segurança — Discussãosobre julgamento de constitucionalidade de lei comoimpedimento para a apreciação de argüição de sua incons-titucionalidade em casos concretos.

Por essa expressão, ficou conhecida uma série de casos julgados peloSupremo Tribunal Federal, a partir da anulação, de uma só vez, em fevereiro de1961, de mais de 310 leis que criavam cargos e tratavam de situações funcionais,o que se fez, como registrado pelo Ministro Victor Nunes, “em circunstâncias decerto tumulto político no Estado”.

Um julgado que pode ser analisado como referência inicial da série é a Rp512 e, a partir daí, inúmeros recursos extraordinários em mandados de segurança.

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Memória Jurisprudencial

Como observa o Ministro Victor Nunes ao julgar o RE 61.324, a matéria,desde o início, não foi objeto de entendimento pacífico e ainda sofreu alteração derumos a partir da aplicação do art. 177, § 2º, da Constituição de 196745.

A questão torna-se mais complexa porque, ao se decidir a Rp 512, nãoforam abordados todos os aspectos constitucionais que poderiam ter sido suscita-dos na série, e, aliás, nem seria de se supor que mais de 310 leis tivessem omesmo enquadramento jurídico-constitucional, “suscetível de ser posto numformulário mimeografado”.

Inicie-se a análise pela Rp 512, que se voltava contra os Decretos 3.086 e3.087, de 6 de fevereiro de 1961, e a Resolução 4 da Assembléia Legislativa, de22 de fevereiro de 1961.

O primeiro dos Decretos suspendeu a execução de leis estaduais, anulouatos administrativos, vedou posse a servidores nomeados; o segundo prorrogoupara 1961 o orçamento de 1960; e a Resolução declarou a perda de mandato dequatro deputados.

A justificativa para ter o novo Governador, Aloísio Alves, assim agido seriaa inconstitucionalidade das mais de trezentas leis estaduais publicadas no períodode 14 de novembro de 1960 a 31 de janeiro de 1961 — “testamento político” doanterior Governador Dinarte Mariz —, posto que, conforme comunicação quelhe foi feita pela Assembléia Legislativa, a partir de 10 de novembro de 1960 nãomais estivera funcionando o parlamento estadual, até posterior reunião sob con-vocação extraordinária.

Nos termos da Representação, a alegada inconstitucionalidade do primeiroDecreto seria a violação, pelo Governador, de atribuição do Senado Federalquanto à suspensão de execução de leis, bem como a violação do princípio daindependência e da harmonia dos Poderes. Esse último aspecto atingiria igual-mente o segundo Decreto. Já a Resolução traria vícios de competência e de inob-servância de regras de quorum, regimentalmente definidas.

A Rp 512, por ser anterior à Emenda Constitucional 16/65, segue a regra doart. 8º da Constituição de 1946, ou seja, é a representação “interventiva”, pressu-posto, em algumas hipóteses, da intervenção federal, e não a representação —hoje substituída pela ação direta de inconstitucionalidade —, que importa a análise,em tese, da constitucionalidade de ato normativo.

45 “Art. 177. Fica assegurada a vitaliciedade aos professores catedráticos e titularesde ofício de justiça nomeados até a vigência desta Constituição, assim como a estabili-dade de funcionários já amparados pela legislação anterior. (...) § 2º São estáveis osatuais servidores da União, dos Estados e dos Municípios, da administração centrali-zada ou autárquica, que, à data da promulgação desta Constituição, contem, pelomenos, cinco anos de serviço público.”

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Ministro Victor Nunes

Nesse sentido, a declaração de inconstitucionalidade na representaçãointerventiva tem o objetivo não de uma análise em tese, mas de fazer cessar aviolação de determinados princípios constitucionais no caso concreto, com espe-cial atenção para a manutenção da harmonia entre os entes federativos.

Ao proferir seu voto, o Ministro Relator, Pedro Chaves, fundamentou anegativa de provimento à representação quanto ao Decreto que suspendera exe-cução às diversas leis, argumentando que zelar pela constitucionalidade das leis édever de todos os Poderes, não apenas do Judiciário.

Daí por que o Poder Executivo não está obrigado a aplicar leis inconstitu-cionais, sendo-lhe lícito suspender-lhes a execução (não revogá-las), ainda queantes de decisão do Senado Federal e do Supremo Tribunal Federal.

Não estaria o Governador a violar atribuição desses últimos, uma vezque nada impedia que tais órgãos ainda viessem a exercer plenamente suacompetência.

Ademais, a decisão política do Governador, contida no Decreto em ques-tão, veio a ser legitimada pela própria Assembléia Legislativa, por meio de leiposterior — Lei 2.677, de 21 de fevereiro de 1961, ratificada pela Lei 2.800, de21 de agosto de 1962.

Reconhecida a constitucionalidade do Decreto que suspendera a execuçãode leis, entre elas, a orçamentária, natural foi reconhecer-se a constitucionalidadedo segundo Decreto, que prorrogara para o novo exercício o orçamento anterior.

No tocante à Resolução da Assembléia Legislativa, quanto a ela não foisequer conhecida a representação, por não estar configurada a hipótese de cabi-mento.

O Ministro Victor Nunes acompanha o voto do Relator, apenas acrescen-tando observação doutrinária quanto ao fato de os princípios explicitados naConstituição Federal, cuja violação enseja a representação interventiva, poderemcomportar, em sua interpretação, consideração complementar de outros disposi-tivos da própria Constituição Federal ou das Constituições estaduais.

Como destacado de início, esse caso teve desdobramentos em outrasações, visando à discussão de inconstitucionalidade de leis específicas.

Tal se deu, por exemplo, no RE 48.655, em que se discutia suposto direitoadquirido de um servidor que teria sido demitido sumariamente durante seu está-gio probatório, por força do efeito retroativo da Lei estadual 2.677/61 (aquela quelegitimara o Decreto do Governador, objeto da Representação 512).

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No entanto, no julgamento desse recurso extraordinário, movido pelo Estadodo Rio Grande do Norte, o Ministro Relator, Luiz Gallotti, dando-lhe provimento,reconhece que não houve demissão, mas sim anulação de nomeação; e é acom-panhado pela maioria. Dois votos vencidos — Ministros Hermes Lima eHahnemann Guimarães — não conheciam do recurso, por não vislumbraremofensa a lei federal por parte da decisão recorrida.

Votando com a maioria, o Ministro Victor Nunes reforça os argumentos doRelator, reconhecendo, sim, questão de lei federal, posto ser problema de Direitofederal o conflito de leis de épocas diversas e de atos de diferente valor hierárquico.

De todo modo, o Ministro Victor Nunes acrescenta interessante argumentoem matéria processual, quanto ao cabimento de recurso extraordinário emmandado de segurança — como no presente caso —, sustentando que se devaadmiti-lo, com maior flexibilidade, quando interposto por ente público.

Isso porque, quando perde o mandado de segurança, o impetrante tem aoseu alcance o acesso ao Supremo Tribunal Federal pela via mais larga do recursoordinário; já a parte pública teria apenas a via estreita do recurso extraordinário.

Nesse sentido, admitir, com maior largueza, o recurso extraordinário doente público seria prestigiar a presunção de legitimidade dos atos das autoridadespúblicas e conferir tratamento que reduza ao mínimo a desigualdade processualdas partes no mandado de segurança em termos de recursos.

Vale também registrar a posição do Ministro Victor Nunes de que, tendosido reconhecida a constitucionalidade das normas impugnadas na Representa-ção 512, não poderia agora o Tribunal considerar inconstitucional a anulação danomeação do servidor, ora recorrido, a qual se dera com base nas referidasnormas.

Lembra precedentes do Supremo Tribunal Federal no sentido de que leianulatória de outra que criara cargos tem o efeito de extinguir esses cargos. E, nopresente caso, nem há mais que discutir a eventual invalidade dessa lei anulatória,já julgada constitucional na Representação 512.

Conclui citando jurisprudência firme do Tribunal quanto ao estágio probató-rio não proteger o funcionário contra a extinção do cargo (cf. Súmula 22). Essamesma conclusão é apresentada pelo Ministro Victor Nunes em outro desdobra-mento da série “Testamento do Rio Grande do Norte” — no RE 54.908, do qual éRelator.

Todavia, ao votar no RE 61.513, o Ministro Victor Nunes protagonizalongo debate com o Ministro Relator, Adaucto Cardoso, sustentando que a deci-são no RE 48.655 não teria o efeito de prejulgamento em outros casos, posto que,

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Ministro Victor Nunes

tanto na Rp 512 como naquele recurso extraordinário, não necessariamente to-dos os aspectos de constitucionalidade da lei — a lei com efeitos anulatórios deatos do anterior Governador, ratificando o Decreto original — teriam sido abor-dados, havendo que considerar os fatos específicos de eventuais outros casosconcretos.

Registra, ainda, o Ministro Victor Nunes que houve alteração de entendi-mento tanto por parte dele como por parte do Tribunal em relação ao original-mente aplicado nos casos do Rio Grande do Norte — e em casos similares,originários, por exemplo, do Ceará ou de Santa Catarina.

Inicialmente, entendia o Tribunal que “ainda que insubsistentes os motivosde inconstitucionalidade pelos quais uma lei estadual tivesse anulado leisanteriores, essa lei anulatória valeria, pelo menos, como supressora docargo”. Após algumas decisões, passou-se a admitir que, “se esses motivos fos-sem insubsistentes, o Tribunal cassava a lei anulatória e restabelecia intei-ramente a lei anterior. Portanto, restabelecia os cargos”.

Daí por diante, o Ministro Victor Nunes passa a examinar caso por caso dasérie do Rio Grande do Norte, “para verificar se todas as 310 leis ali anula-das seriam inconstitucionais e se, a respeito de cada funcionário, haviauma ilegalidade reparada pelo Governador na sua atuação saneadora”.

Desse modo, enquanto o Ministro Relator, Adaucto Cardoso, vota susten-tando que, por força da decisão na Rp 512, as centenas de leis estaduais teriamsido corretamente anuladas, o Ministro Victor Nunes entende que, em cada caso,há que verificar se cada lei anulada não deveria mesmo subsistir46.

Assim, do modo como foi trazido a julgamento o RE 61.513 — em conjuntocom outros, como o RE 61.324 —, o Ministro Victor Nunes entende não seestar julgando cada caso e acrescenta: “portanto, na impossibilidade de veri-ficar exatamente o que ocorreu em relação a cada um dos funcionáriosenvolvidos, prefiro não conhecer do recurso (interposto pelo Estado) e, ven-cido na preliminar, negar-lhe provimento”.

Acompanharam o Ministro Victor Nunes, vencidos na preliminar e nomérito, os Ministros Evandro Lins e Lafayette de Andrada.

Verifique-se ainda o posicionamento do Ministro Victor Nunes, comoRelator, nos RE 61.316, RE 61.340, RE 61.354, RE 61.511, RE 61.524 eRE 61.554, julgando prejudicado o recurso do Estado, acrescentando-se aosargumentos nova regra constitucional: Constituição de 1967, art. 177, § 2º (acimacitada).

46 Na Rp 512, julgou-se que os atos estaduais “anulatórios” não violavam prerrogativasdo Senado Federal nem ofendiam a independência dos Poderes, nada se discutindo sobrea Constitucionalidade dos atos “anulados”.

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Memória Jurisprudencial

Representação 725

Discussão sobre a ocorrência de inconstitucionali-dade ou revogação de lei anterior que conflita com novaConstituição — Conseqüências.

Registre-se ainda mais um caso, de interesse em matéria de controle deconstitucionalidade. Faz-se, todavia, apenas esta breve referência, porquanto re-lativamente reduzida a participação do Ministro Victor Nunes nos debates.

A questão de fato consistia na discussão sobre a inconstitucionalidade deato do Governador do Estado do Rio Grande do Sul, que, ao nomear o Diretor-Geral da Secretaria da Corte de Apelação da Justiça Militar daquele Estado,havia ofendido o princípio da independência dos Poderes e violado garantias doPoder Judiciário.

Deixando, por ora, de lado a questão de fundo e a solução do caso concreto,vale transcrever, do sucinto voto do Ministro Victor Nunes, este trecho que bem situaa tese jurídica discutida em questão preliminar, levantada pelo Ministro Eloy da Rocha:

“É, realmente, controvertido o problema de saber se é inconstitu-cional, ou se está revogada, a lei anterior com a qual conflita a Cons-tituição.

Em outra oportunidade, escrevi um comentário, optando pelatese da revogação, o que teria conseqüências práticas de relevo.Sendo o caso de revogação, e não de inconstitucionalidade, nãoserá, por exemplo, necessária a maioria qualificada para que osTribunais declarem a invalidade de uma lei, em tais condições.

Parece que a maioria do Tribunal se inclinou pela tese dainconstitucionalidade. Por enquanto, fico com a opinião que jáenunciei anteriormente. Por isso, adoto a conclusão do Sr. MinistroEloy da Rocha, declarando prejudicada a representação no querespeita à primeira nomeação, e procedente quanto à segunda.”Com efeito, quanto a esse aspecto da representação, ao qual se aplicava a

discussão sobre a situação da lei anterior em conflito com a nova Constituição,apenas os Ministros Victor Nunes e Eloy da Rocha julgaram-na prejudicada.

1.3 Federalismo

Recurso em Mandado de Segurança 11.687

Repartição constitucional de competências — Censuraa exibição cinematográfica — Poder de polícia em facede direitos fundamentais — Poderes implícitos da União —Competência concorrente e supremacia da lei federal —Poder de polícia e eficácia da força material disponível.

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Ministro Victor Nunes

O presente caso envolve a matéria da repartição constitucional de com-petências, aplicada ao poder de polícia voltado à censura de exibição cinemato-gráfica.

Neste processo, o Ministro Victor Nunes produz longo e riquíssimo voto.Para garantir maior clareza a esta análise — que, de todo modo, não dispensa aleitura na íntegra do texto do Ministro, transcrito ao final desta obra —, parececonveniente segmentá-la com subitens.

Síntese dos fatos e da questão jurídica trazida à apreciação judicial:

Ainda sob a vigência da Constituição de 1946, porém já sob o Regime de1964, o filme Os Cafajestes teve sua exibição vedada em Minas Gerais, por atodo Governador, apesar de haver sido “liberado para todo o território nacional”pelo órgão federal encarregado da censura — Departamento Federal de Segu-rança Pública —, que o declarara “impróprio para menores de até dezoito anos epara a televisão”.

Contra o ato do Governador, Produções Cinematográficas HerbertRichers S.A. e Empresa Nacional de Cinemas e Diversões Ltda. impetrarammandado de segurança, julgado improcedente pelo Tribunal local.

O que se discutia, no caso, era a competência para o exercício da censuracinematográfica, incluída na censura dos “espetáculos e diversões públicas”(Constituição de 1946, art. 141, § 5º).

A interdição do filme por ato estadual era defendida pela autoridadecoatora, com base em parecer de Caio Mário da Silva Pereira, que argumentavaser de competência privativa dos Estados exercer o poder de polícia, no caso,censurando a exibição do filme.

Sustentava-se a incompetência da União com base na cláusula constitucio-nal de reserva de poderes: “Art. 18, § 1º Aos Estados se reservam todos ospoderes que, implícita ou explicitamente, não lhes sejam vedados por estaConstituição”. Sendo, segundo argumentava a autoridade coatora, a censuracinematográfica ato de poder de polícia, e este não tendo sido atribuído privativa-mente à União, teria restado reservado aos Estados47.

Nos termos do citado parecer de Caio Mário da Silva Pereira, “o GovernoFederal tem suas vistas voltadas para problemas ligados com a segurança

47 O Ministro Victor Nunes, ao relatar esse argumento, já lhe aponta contradições, atéporque, na seqüência, vem a admitir a censura federal sob certos aspectos.

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Memória Jurisprudencial

nacional, para a harmonia entre os Poderes”, exercendo a censura num planonacional. Já quanto a “suscetibilidades morais”, deve haver a primazia das“sensibilidades locais”, de que é intérprete o Estado.

O Ministro Relator, Hahnemann Guimarães, concordando com a posiçãoda autoridade coatora, negou em seu voto a competência da União na matéria,entendendo, por força do citado art. 18, § 1º, da Constituição, ter ficado reservadoaos Estados o poder de censura dos espetáculos e diversões públicas. A compe-tência da União quanto à censura ficaria restrita ao Distrito Federal e aos Terri-tórios Federais. Lembra o Relator que a Constituição de 1937 dava à União opoder de legislar sobre o regime dos teatros e cinematógrafos, em norma que nãofoi reproduzida pela Constituição de 1946, o que reforçaria o argumento de que,sob o novo regime, a censura teria restado reservada, com exclusividade, aosEstados.

A tese oposta, dos impetrantes, afirmava a competência exclusiva daUnião para a matéria em questão.

Antecipando o teor de seu voto, o Ministro Victor Nunes apresenta a se-guinte síntese:

“Sem me filiar a essas conclusões radicais, procurarei demons-trar que a matéria recai na competência concorrente da União, dosEstados e dos Municípios; e, desde que haja legislação sobre a maté-ria, deverá prevalecer a censura federal sobre a estadual, e esta so-bre a municipal”.

Outro trecho completa essa síntese de seu pensamento:

“A competência concorrente não elimina a hipótese de conflito.Havendo o conflito, prepondera a competência federal. No caso, háesse conflito. A censura federal autorizou, e a censura estadual proibiu.Deve preponderar o ato da autoridade federal, que permitiu aexibição; do contrário, teremos de afirmar que, sendo concorrente acompetência da União e do Estado, deverá preponderar, em caso deconflito, a competência estadual, o que parece de todo contrário aosistema federativo. O ato estadual só prepondera sobre o federal,quando deriva de competência estadual exclusiva, porque, em talcaso, a União não tem poder. Na competência concorrente, a Uniãotem poder, e o poder federal não há de estar subordinado ao estadual,sob pena de desfigurar o regime federativo”.

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Ministro Victor Nunes

A seguir, a análise do voto do Ministro Victor Nunes:

Tratamento constitucional da censura:

Não está em discussão no caso, nem o Ministro Victor Nunes o contesta —aliás, afirma que o assunto, “pelo consenso até agora geral, está fora decontrovérsia” —, que o regime constitucional brasileiro acolhe a possibilidade decensura48:

“Art. 141, § 5º É livre a manifestação do pensamento, sem quedependa de censura, salvo quanto a espetáculos e diversões públicas,respondendo cada um, nos casos e na forma que a lei preceituar, pe-los abusos que cometer. Não é permitido o anonimato. É assegurado odireito de resposta. A publicação de livros e periódicos não dependeráde licença do Poder Público. Não será, porém, tolerada propagandade guerra, de processos violentos para subverter a ordem política esocial, ou de preconceitos de raça ou de classe”.

Lembra o Ministro Victor Nunes que, mesmo nos Estados Unidos, onde adoutrina entende que a liberdade de pensamento é incompatível com a censuraprévia, por força da Primeira Emenda, a Suprema Corte tem admitido censuraprévia a cinema, ainda que com votos vencidos.

Interpretação da repartição de competências, considerando-se oenvolvimento de direitos fundamentais:

De todo modo, o Ministro Victor Nunes naturalmente reconhece o cinemacomo atividade merecedora da proteção especial inerente aos direitos fundamen-tais: “cinema não é apenas diversão, mas cada vez mais um meio de expres-são artística e do pensamento, e também instrumento de propaganda co-mercial e política”.

A norma constitucional anteriormente citada nada dispõe sobre competên-cia, senão sobre restrição a um direito fundamental. Mas o fato de estar emquestão um direito individual — matéria de “interesse nacional, e até univer-sal” — deve ser levado em consideração no momento de se proceder à interpre-tação das competências constitucionais em matéria de censura a espetáculoscinematográficos.

Lastreando-se na doutrina norte-americana de Chafee, “valoroso adver-sário da censura do cinema”, o Ministro Victor Nunes aponta ser preferível afederalização da censura, caso tenha ela de existir, evitando-se a multiplicidadede autoridades estaduais e municipais a acarretar risco potencialmente muitomaior de lesão ao direito individual.

48 Registre-se, no entanto, frase interessante do Ministro Hermes Lima: “É preciso partirdo princípio de que a censura é sempre pouco inteligente pelo fato mesmo de ser censura”.

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Num argumento paralelo, lembrando, com as palavras de Caio Tácito, que“os conflitos sociais, dia a dia mais agudos, (...) e os primeiros sintomas dacrise econômica, afinal desencadeada em 1929, vão fortalecendo o sentidointervencionista do Estado, já então no plano federal”, o Ministro VictorNunes aponta uma tendência de federalização do poder de polícia.

Análise da repartição constitucional de competências: doutrinados poderes implícitos da União:

Afirmados esses pressupostos, o Ministro Victor Nunes passa a desenvolverconsiderações sobre a doutrina dos poderes implícitos da União no sistema consti-tucional de repartição de competências: “a doutrina dos poderes implícitos daUnião, embora menos útil na nossa prática constitucional, porque quase sem-pre desnecessária, tem assento constitucional expresso, já que o art. 18, § 1º,nega aos Estados os poderes implicitamente confiados à União”.

Em primeiro lugar, rebatendo argumento sustentado pelo Relator, ponderaque a circunstância de a Constituição de 1946 não fazer referência específica àcompetência para legislar sobre teatros e cinemas — suprimindo cláusula daConstituição de 1937, que a atribuía exclusivamente à União — apenas permiteinferir que a matéria deixou de pertencer à competência exclusiva da União, nãopodendo chegar-se à conclusão de que tenha sido passada, com exclusividade,para os Estados.

“O que fez a Constituição vigente foi situá-la na competência concor-rente, uma vez que esta não se esgota na enumeração do art. 6º da Consti-tuição”. Esse artigo não excluiu do campo das competências concorrentes nemos poderes federais implícitos, nem os poderes remanescentes dos Estados. Afalta de explicitação de ambos naturalmente é fonte de incertezas e controvérsias,cabendo ao Supremo Tribunal Federal delimitá-los, sem excluir a hipótese deconcorrência.

E, em matéria de competências concorrentes, o poder da União há deprevalecer, no caso de conflito, sobre o dos Estados49. Isso seria, de todo modo,da essência do federalismo; nesse sentido, o Ministro Victor Nunes vale-se dasidéias de Madison, em O Federalista: a preponderarem leis estaduais sobre asfederais, “o mundo teria visto, pela primeira vez, um sistema de governofundado na inversão dos princípios fundamentais de qualquer governo (...)teria visto um monstro com a cabeça sob a direção dos seus membros”; e,“convicto desse axioma do federalismo”, completa com frase síntese de seu

49 Na Constituição de 1946, o sistema de competências legislativas concorrentes nãorecebia o mesmo tratamento da atual Constituição, na qual um dispositivo específico(art. 24) arrola matérias e prevê critérios pelos quais se exerce a concorrência (normas

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pensamento, exposto em Problemas de Direito Público: “na competência con-corrente (...), a supremacia da lei federal é indiscutível”. Nesse sentido, aliás,há precedentes na jurisprudência do Tribunal: RMS 9.573, RMS 8.825, RE48.198, RE 51.485, RE 51.575 e RE 52.103.

Passa, então, o Ministro Victor Nunes a apontar diversos dispositivos so-bre competência legislativa da União nos quais estaria implícita a competênciapara legislar sobre censura cinematográfica:

a) “o cinema é, modernamente, um dos principais veículos de comuni-cação do pensamento, além de ser um instrumento de poderosa eficácia napropaganda comercial e política, sobretudo com o recente desenvolvimentoda propaganda subliminal. Sob este aspecto, não pode escapar da com-petência federal para legislar sobre o direito substantivo (direito político,civil, comercial, penal — art. 5º, XV, a)”;

b) “é (...) inconstestável a sua (do cinema) influência, benéfica oumaléfica, no plano das relações internacionais, na preparação de um ambi-ente de paz ou de guerra”, matérias de competência da União (art. 5º, I e II);

c) “o cinema é de inestimável valia no terreno da educação” e competeà União legislar sobre diretrizes e bases da educação nacional (art. 5º, XV, d);

d) a indústria do cinema também se relaciona com “produção e consu-mo” e com “comércio exterior e interestadual”, matérias de competêncialegislativa da União (art. 5º, XV, c e k);

e) dados os possíveis efeitos perniciosos do cinema, há que lembrar dacompetência federal para legislar sobre direito penal e defesa e proteção da saúde(não apenas física, mas mental) (art. 5º, XV, b);

f) “no que respeita a filmes estrangeiros, (...) não podemos esquecer acompetência federal para ‘superintender’ (...) os serviços de polícia marítima,aérea e de fronteiras (art. 5º, VII)”; e

g) por fim, é o cinema assunto de interesse nacional, sendo que o “princí-pio geral da competência da União” é a “natureza nacional, e não apenasregional, da matéria”.

Desse último aspecto, o Ministro Victor Nunes extrai ainda um argumentocontrário à alegação da necessidade de respeito a peculiaridades locais, a ensejar a

gerais federais, etc.). No sistema de 1946, além do disposto no art. 18, § 1º, acima játranscrito, cuidava da matéria o art. 6º: “A competência federal para legislar sobre asmatérias do art. 5º, n. XV, letras b, e, d, f, h, j, o e r, não exclui a legislação estadualsupletiva ou complementar”.

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prevalência da censura estadual: “havemos de confiar em que o legislador fede-ral tenha o necessário discernimento para deixar certa margem de apreciaçãodas condições locais” aos Estados ou Municípios. Mas isso não é “um problemade direito constitucional, e sim de política legislativa, cuja deliberação cabenão ao Judiciário, mas ao Congresso e ao Presidente da República”.

Demonstra, ainda, o Ministro Victor Nunes, com exemplos hipotéticos, oabsurdo de se pretender, no âmbito das competências concorrentes, dar supre-macia à legislação estadual: suponha-se um filme proibido nacionalmente (porcomprometer a segurança das instituições ou as relações internacionais) quetodos os Estados, individualmente, decidissem liberar em seu território — na prática,restaria inócua a proibição federal; ou, então, suponha-se que filme oficial produ-zido no âmbito federal pudesse ser censurado pelos Estados.

Análise da questão no plano legislativo:

Concluindo a seqüência de seus argumentos, o Ministro Victor Nunes passaa tratar da questão no plano legislativo. Produz, então, minuciosa análise dosdiplomas legais e regulamentares que dispuseram sobre a censura a cinema, des-de o regime do Estado Novo até o Governo Café Filho, passando pelas maioresalterações, havidas no período de José Linhares.

Essa análise, que não parece ser de interesse atual, leva-o à conclusão devigorar a competência concorrente dos entes da Federação na matéria de censura.

Ainda é importante frisar que Minas Gerais não possuía lei estadual sobrea censura. Desse modo, mesmo que se pretendesse admitir a prevalência dalegislação estadual quanto a censura, faltaria, no caso concreto, poder ao Gover-nador para proceder à proibição do filme em questão.

Nesse sentido, refutando argumentos da autoridade coatora, o MinistroVictor Nunes cita lições de Caio Tácito, “que é, hoje, um dos nossos melhoresespecialistas em Direito Administrativo”, para sustentar que não há a possibili-dade do exercício de poder de polícia que não seja fundado em lei. Diz CaioTácito: “é, sobretudo, em relação aos atos de polícia, por sua natureza dis-cricionária, que o controle da legalidade do fim objetivado na ação admi-nistrativa adquire relevo especial (...) O exercício do poder de polícia pres-supõe, inicialmente, uma autorização legal explícita ou implícita atribuindoa um determinado órgão ou agente administrativo a faculdade de agir”.

Poder de polícia e eficácia da força material disponível:

Votando depois do Ministro Victor Nunes, o Ministro Candido Motta intro-duz novo argumento na discussão:

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“A competência em matéria de censura teatral e cinematográficaenvolve sempre a capacidade que tem todo o poder de se fazer obede-cido. As constituições e as leis, quer nos Estados unitários, quer nosEstados federais inclinam-se, por meio de suas leis, a essa realidade.(...) No Brasil republicano e descentralizado pela Federação, o pro-blema do teatro e do filme se tornou difícil, porque ‘cada terra comseu uso, cada roda com o seu fuso’.”

O Ministro Victor Nunes, na seqüência, produz “reiteração de voto”, emque reafirma seu ponto de vista e rebate especialmente o ponto levantado peloMinistro Candido Motta:

“Permito-me ponderar, quanto ao princípio de que o poder depolícia está ligado à eficácia da força material disponível, que esseprincípio é mais político do que jurídico. Mesmo no tocante à políciade segurança, quando é insuficiente a força da autoridade local,pode ela socorrer-se das forças armadas federais, sem que isso im-porte transferência de competência. Politicamente, é recomendávelque a competência e a força material para torná-la eficaz estejamcombinadas, mas, juridicamente, não é necessário que sempre se ve-rifique essa conjugação. Do contrário, para citar um só exemplo, oSupremo Tribunal não poderia ter feito prevalecer a polícia sanitáriada União no tocante à inspeção de produtos derivados da carne,porque as autoridades locais é que, em cada Município, dispõem dosmeios materiais adequados ao exercício desse poder. Entretanto, oSupremo Tribunal afirmou, em tais casos, a preponderância do poderde polícia federal, fazendo prevalecer a inspeção da autoridade fe-deral sobre a da autoridade municipal.”

Conclusão:

O Ministro Victor Nunes, para concluir, posiciona-se: “assim, data veniado eminente Ministro Relator, a cuja preocupação pelas variações do senti-mento de moralidade pública também me associo, com a convicção de quemviveu muitos anos em cidade do interior, dou provimento ao recurso, parafazer prevalecer a censura federal sobre a estadual. De futuro, os poderescompetentes encontrarão, para esse problema, a solução que lhes parecermais adequada, sob a inspiração do interesse público, sem prejuízo dacompetência constitucional da União”.

Como resultado do julgamento, o Tribunal negou provimento ao recurso,admitindo a prevalência do poder dos Estados de censura dos espetáculos e diver-sões públicas, com fundamento no art. 18, § 1º, da Constituição. Restaram venci-dos os Ministros Victor Nunes, Evandro Lins, Hermes Lima e Vilas Boas.

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Habeas Corpus 41.296

Julgamento histórico: caso da ameaça de impeachmentdo Governador Mauro Borges Teixeira — Compe-tência para julgamento — Autonomia dos Estados —Respeito à instância política estadual.

Trata-se de caso catalogado como histórico no sítio de internet do SupremoTribunal Federal.

Os advogados Heráclito Fontoura Sobral Pinto e José Crispim Borgesimpetraram habeas corpus preventivo em favor de Mauro Borges Teixeira,Governador de Goiás, ameaçado de impeachment e prisão, pela alegada práticade crimes contra o Estado e a ordem política e social, cuja apuração se impunhapelo Ato Institucional de 9 de abril de 1964.

A apuração dos crimes foi feita por meio de inquérito policial militar, sob adireção do General Riograndino Kruel, Chefe do Departamento Federal de Segu-rança Pública.

Alegaram os impetrantes que, desde que vitorioso o movimento de 1964,os adversários políticos do Governador, eleito livremente pelo povo, vinham-seempenhando para afastá-lo do Governo, valendo-se de expedientes escusos.Nesse sentido, o citado inquérito teria forjado prova de supostos atos subversivospraticados pelo Governador, no exercício do cargo.

Pediram, assim, habeas corpus preventivo para o fim de ser o pacienteprocessado e julgado no foro especial que lhe era assegurado pela Constituiçãoestadual — Assembléia Legislativa, nos casos de crimes de responsabilidade; eTribunal de Justiça, nos casos de crime comum, após declarada a procedência daacusação pela Assembléia Legislativa — e não submetido à Justiça Militar, in-competente para o processo:

“Nem o Presidente da República, nem o Ministro da Justiça,nem o Chefe de Polícia do Departamento Federal de Segurança Pú-blica podem tomar quaisquer medidas que impliquem cerceamento daliberdade do paciente pelos atos, ainda que subversivos ou decorrupção, por ele praticados no exercício do seu cargo de Governa-dor de Goiás”.

O Ministro Relator, Gonçalves de Oliveira, tendo deferido a medida liminarrequerida pelos impetrantes, vota posteriormente pela concessão da ordem.

Em seu voto, no qual acompanha o Relator, o Ministro Victor Nunes, sem-pre prestigiando a jurisprudência do Tribunal, inicia observando que, “depois dos

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Ministro Victor Nunes

doutíssimos votos” que acabara de ouvir, “não seria necessário trazer novasconsiderações”. Mas, pela relevância do processo, pareceu-lhe “convenientecomprovar que vários aspectos que ele oferece ao nosso exame já têm sidoapreciados por este Tribunal. Não estamos desbravando floresta virgem,mas palmilhando caminho pavimentado pela jurisprudência”.

Em primeiro lugar, discutiu-se a competência originária do Supremo Tribu-nal, porque o Presidente da República negara categoricamente qualquer partici-pação pessoal nos acontecimentos de Goiás.

Porém, a competência do Tribunal para conhecer de habeas corpus emcasos urgentes, mesmo que a autoridade coatora não esteja sob sua jurisdição,está sedimentada desde a Lei 221, de 1894, posteriormente assentando-se sobrefundamento constitucional desde 1934; e dispunha, então, a Constituição de 1946,em seu art. 101, I, h, in fine, sobre competência originária do Supremo TribunalFederal para processar e julgar:

“o habeas corpus, quando o coator ou paciente for Tribunal,funcionário ou autoridade cujos atos estejam diretamente sujeitos àjurisdição do Supremo Tribunal Federal; quando se tratar de crimesujeito a essa mesma jurisdição em única instância; e quando hou-ver perigo de se consumar a violência, antes que outro Juiz ou Tribu-nal possa conhecer do pedido”.

Nesse sentido, cita célebres julgados, entre eles o Habeas Corpus 4.781,julgado em 1919, assegurando a Rui Barbosa e seus correligionários a liberdadede reunirem-se para promover atos de sua campanha presidencial.

Em segundo lugar, lembra inúmeros julgados do Tribunal, para afirmar que,segundo a interpretação do disposto no art. 141, § 23, da Constituição de 194650,sobre habeas corpus preventivo, não é necessário que se comprove a realidadeda violência iminente; “bastam fundados motivos ou razões fundadas pararecear a violência”. Ou seja, não é necessário que se prove a iminência dacoação, mas sim que se justifique o receio.

Um terceiro aspecto que menciona, com base na jurisprudência daquelaCorte, é ser de competência federal legislar sobre crimes de responsabilidade dostitulares de elevadas funções públicas, entre eles os Governadores de Estado.

Já afirmara o Tribunal em algumas ocasiões, desde o início do Século XX —HC 2.385, de 1906; HC 4.116, de 1917; Rp 97, de 1947; Rp 111, de 1948; RMS4.928, de 1957 —, a competência federal para a matéria. Desse modo, seria

50 “Dar-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrerviolência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso depoder. Nas transgressões disciplinares, não cabe o habeas corpus”.

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constitucional a Lei federal 1.079/50, restando aos Estados dispor sobre aspectosespecíficos, como o órgão jurisdicional competente para o julgamento.

Na seqüência, o quarto aspecto analisado, em decorrência da aplicação,ao caso, da Lei 1.079/50, é a necessidade de antecedência do processo deimpeachment quanto a eventual processo perante a justiça comum, nos crimesde responsabilidade dos titulares dos poderes políticos.

Para sustentar a tese da precedência do julgamento político nos crimes deresponsabilidade, remonta à doutrina de Pimenta Bueno e a expressos dispositivosconstitucionais, desde a Constituição de 189151, assim como à jurisprudência doTribunal (citando expressamente a aplicação da tese quanto aos Prefeitos, deci-dida nos casos acima analisados — cf. RHC 39.708).

O quinto ponto desenvolvido dizia respeito ao enquadramento, no rol decrimes de responsabilidade definido pela Lei 1.079/50, da “atividade subversiva”de que era acusado, no caso, o Governador.

Essa mesma atividade, nos termos da Lei de Segurança Nacional, recairiana competência da Justiça Militar.

Todavia, consoante a Lei 1.079/50, o julgamento dos crimes de responsabi-lidade dos Governadores se desdobra em dois juízos: o de acusação ou pronúncia,pela Assembléia Legislativa; e o de julgamento, pelo órgão indicado pela Consti-tuição estadual, ou, em sua falta, pelo tribunal misto, regulado na Lei 1.079/50. Nocaso, como visto, a Constituição goiana previa a competência, para julgamento, daprópria Assembléia Legislativa; ou, fosse crime comum, do Tribunal de Justiça.

Um penúltimo aspecto abordado referia-se ao argumento de que a Constitui-ção do Estado, ao dar competência ao Tribunal de Justiça para julgar o Governador“nos crimes comuns”, não incluiria os crimes militares; o mesmo raciocínio seriaaplicado à Lei 1.079/50, ao ressalvar a competência da justiça comum (art. 78).

Contudo, mostra o Ministro Victor Nunes que, em tais normas as expres-sões “crime comum” e “justiça comum” estão empregadas em oposição a “crimede responsabilidade” e “juízo político”. “A expressão justiça comum abrange,portanto, todos os ramos da justiça, que não sejam de caráter político,inclusive a Justiça Militar, e a expressão crimes comuns, todos os crimesque não sejam de responsabilidade, sem excluir os militares”.

51 Assim previa a Constituição de 1946, art. 88: “O Presidente da República, depois quea Câmara dos Deputados, pelo voto da maioria absoluta dos seus membros, declararprocedente a acusação, será submetido a julgamento perante o Supremo TribunalFederal nos crimes comuns, ou perante o Senado Federal nos de responsabilidade”.

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Ministro Victor Nunes

Argumenta, ainda, ad absurdum para demonstrar que, a prevalecer a in-terpretação diversa, o Presidente da República e todos os demais detentores deforo constitucional especial de julgamento estariam submetidos à Justiça Militarnos crimes militares — sendo que, por força de aplicação de lei que trata daquelaJustiça, os Ministros dos demais tribunais superiores, que não o Militar, acaba-riam julgados pela Justiça Militar de primeira instância. Esse entendimento, aliás,contraria decisão do Supremo Tribunal Federal no então recentemente julgadoHC 41.049.

“Haveremos, pois, de concluir que também a Justiça Militar,quando o crime de responsabilidade for igualmente crime militar, nãopode atuar antes do processo de impeachment, ou antes da cessaçãodo exercício do acusado, se por alguma razão tiver competência”.

Por fim, conclui, com ponderações políticas de extrema profundidade elucidez, demonstrando como a atribuição de competência às Casas parlamenta-res, no julgamento dos detentores de altas funções de Estado, é decorrência dolivre exercício dos poderes políticos, poderes esses emanados do povo. Esse sis-tema estaria comprometido se tais autoridades políticas pudessem ser presas outer seus poderes suspensos por decisão de qualquer juiz de primeira instância.

A extensão de tal conclusão ao caso dos Governadores de Estado, nãofosse por si evidente, pode ser sustentada como um aspecto da autonomia dosEstados-Membros da Federação: o impeachment há de se passar no âmbitoestadual — perante autoridades indicadas pela respectiva Constituição —, aindaque observadas leis federais.

A única exceção constitucional, pela qual autoridades estaduais podem serafastadas por decisão de autoridade federal, é o caso de intervenção federal, oque não contempla a hipótese de prisão preventiva de Governador por despachode juízes de primeira instância.

Ainda que longo o trecho em que tais idéias são desenvolvidas, vale suatranscrição na íntegra:

“A Constituição Federal, inspirando-se no regime norte-ameri-cano, instituiu todo esse mecanismo para, de um lado, reprimir a faltade exação no exercício das altas funções do Estado e, de outro, ga-rantir eficazmente o livre exercício dos poderes políticos, porque‘todo poder emana do povo’ (art. 1º). Para destituir os governantes,dada a relevância da função política, o prévio julgamento dos seusatos é realizado, pelo menos em uma das fases, por um órgão político,que também deriva a sua legitimidade da mesma fonte, isto é, dopovo, através de eleições.

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A contraprova dessa garantia está em que a Constituição definecomo crimes de responsabilidade, mesmo para o Presidente da Repú-blica, atentar contra o livre exercício dos poderes constitucionais,seja da União, seja dos Estados (art. 89, II).

Outra evidência de que é o exercício do poder político que seprotege encontramos na circunstância de não ser necessário o préviojulgamento político, quando o titular já estiver afastado do cargo,como decidiu o Supremo Tribunal no Caso Epitácio Pessoa. Em talhipótese, o que subsiste é o foro especial, para proteção da pessoa doex-governante, se a acusação se funda em ato praticado no exercíciodo cargo. Assim tem decidido o Supremo Tribunal, não só no CasoEpitácio como em diversos outros, referidos nas Súmulas 394 e 306.

Todo esse mecanismo de salvaguarda do exercício dos poderespolíticos ruiria, se o Presidente da República ou os Governadoresdos Estados pudessem ser presos e, portanto, suspensos ou destituí-dos por um simples despacho da Justiça Comum (incluindo nessa ex-pressão a Militar), sobretudo de juízes de primeira instância. Se issofosse possível, os juízes, mesmo os inferiores, é que governariam opaís, em lugar dos titulares legitimados pelo voto popular, de ondeemana o poder.

Que esse sistema protetivo também ampara os poderes constitu-cionais dos Estados não pode haver a menor dúvida. Em primeirolugar, como já sublinhado, porque atentar contra o exercício dessespoderes também constitui crime de responsabilidade, por expressadisposição constitucional (artigo 89, II). Em segundo, porque estaconclusão se impõe sob o ângulo da autonomia estadual.

A permanência dos Governadores em seus cargos é apenas umaspecto da autonomia dos Estados, garantida pelo regime federativoque adotamos há 75 anos. Quando, para afastá-los, é posto em movi-mento o processo político do impeachment, tudo se passa no âmbitodo Estado. São observadas as leis da União, mas fica resguardada aautonomia estadual.

Para que o afastamento possa resultar de ato de autoridade fe-deral, a Constituição estabeleceu a válvula da intervenção, definindoos casos em que será decretada. Mas não prevê outra forma de ampu-tação da autonomia estadual, e o processo da intervenção está a cargodo Presidente da República, do Congresso Nacional, do Supremo Tri-bunal Federal e do Tribunal Superior Eleitoral, com suas atribuiçõesminuciosamente definidas na própria Constituição (arts. 7 a 14).

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Ministro Victor Nunes

Nesse sistema fechado, não há base na Constituição para essaforma indireta de intervenção federal, que consistiria na prisão preven-tiva do Governador por despacho de juízes de primeira instância. Sepudesse haver uma deposição tão sumária, que federação seria esta?”

O Ministro Victor Nunes, com essas considerações, vota com o Relatorpela concessão da ordem. E esta é a posição unânime do Tribunal:

“O Supremo Tribunal Federal não conheceu do pedido dehabeas corpus em relação à alegada coação do Presidente da Repú-blica, mas, prevenindo a jurisdição, conhecendo do habeas corpus,deferiu-o para que não possa a Justiça Comum ou Militar processaro paciente sem o prévio pronunciamento da Assembléia Estadual, nostermos do art. 40 da Constituição do Estado de Goiás”52.

Representação 748

Vinculação de tributos — Previsão de reserva depercentual orçamentário para fundo ligado à educaçãoe à cultura — Argumentos de natureza política — Influ-ência da experiência pessoal dos Ministros na interpre-tação da Constituição.

Esta representação foi apresentada por solicitação do Governador doEstado da Guanabara, questionando a constitucionalidade de três dispositivos daConstituição estadual de 1967. Dois deles53 foram objeto de discussão, gerandodivergência no Tribunal.

O primeiro era o § 4º do art. 80: “o orçamento do Estado consignará aoFundo Estadual de Educação e Cultura nunca menos de 22 por cento dadespesa total aprovada no exercício orçamentário anterior”.

52 O Ministro Hahnemann Guimarães registrou considerar a Justiça Militar incompetente.Pode ser interessante registrar ainda, a fim de ilustrar ocasião em que o momento políticopermeia o pensamento de Ministro do Supremo Tribunal Federal, a consideração queexplicitamente o Ministro Pedro Chaves fez em seu voto: “Recebi a Revolução de 31 demarço como uma manifestação da providência divina em benefício da nossa Pátria.Não me mantive antes em atitude contemplativa. Tive a coragem de alertar a Nação, emdiscurso de 11 de agosto de 1962, para o desfiladeiro tenebroso a que estávamos sendoconduzidos. Resta-me, ainda hoje, ânimo para conceder a ordem de habeas corpus quenos foi impetrada, para salvar com ela a ordem jurídica, único caminho pelo qual oeminente Sr. Presidente da República poderá conduzir a Nação Brasileira, como é deseu desejo, aos seus gloriosos destinos”.53 Quanto ao outro, atinente a competência para julgamento de determinadas autorida-des por crime comum e de responsabilidade, houve rejeição unânime da argüição deinconstitucionalidade.

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Esse dispositivo foi tido por inconstitucional pelo Ministro Relator, AmaralSantos, acompanhado pela maioria, por violação da norma constitucional federalque vedava a vinculação de tributos a determinado órgão, fundo ou despesa (art.65 da Constituição de 1967).

O Ministro Victor Nunes, a seu turno, entendia que o dispositivo impugnadonão violava a Constituição Federal. Nesse sentido, lembra que o próprio art. 6554 járelativizava o princípio da não-vinculação da arrecadação de tributos.

Mas o argumento definitivo é o de que a Constituição estadual não estariacriando vinculação de tributo a despesa determinada — “o que nele [no disposi-tivo da Constituição Federal] parece vedado é a vinculação da receita, nomomento em que é criada” —, e sim disciplinando o modo de se distribuir adespesa, tomando por referência a despesa passada, do exercício anterior.

Ou seja, a Constituição estadual não estaria impondo que determinado tri-buto tivesse a receita decorrente de sua arrecadação vinculada a determinadadespesa. Diferentemente disso, estaria, sim, determinando que, do montante ge-ral de despesas, uma certa porcentagem deveria corresponder ao Fundo Estadualde Educação e Cultura. E conclui com considerações de ordem política:

“A Constituição só proíbe que se vincule determinada receita,ainda assim com várias exceções por ela previstas. Por isso, não meparece que seja manifestamente inconstitucional o dispositivo impug-nado. A Constituição adotou um critério político-administrativo. Pôsênfase nos serviços de educação, para impedir que o legislador ordi-nário seja negligente a esse respeito.55

Fala-se muito em desenvolvimento. O professor Jacques Lambert,que escreveu notável estudo sobre a sociedade dualista, incluindo nesse

54 Art. 65, § 3º. “Ressalvados os impostos únicos e as disposições desta Constituição, e deleis complementares, nenhum tributo terá a sua arrecadação vinculada a determinadoórgão, fundo ou despesa. A lei poderá, todavia, instituir tributos cuja arrecadação cons-titua receita do orçamento de capital, vedada sua aplicação no custeio de despesascorrentes”.55 Presentemente, aliás, a vinculação de despesas, por exemplo, às áreas da educação eda saúde é prática adotada pela Constituição Federal e por Constituições estaduais. E aConstituição Federal também prevê a vedação da vinculação da receita de impostos —aqui note-se diferença: não tributos, mas impostos — a órgão, fundo ou despesa (art. 167,IV). Esse mesmo dispositivo, todavia, ressalva a destinação de recursos para a saúde e aeducação, sugerindo a interpretação de que seriam modalidades, excepcionalmente admi-tidas, de vinculação de receitas e não de despesas. Ou seja, parece que o constituinte de1988 perfilha o mesmo entendimento que prevaleceu neste julgamento, contra a posiçãodo Ministro Victor Nunes. Ou, ao menos, quis expressamente fazer a ressalva para afastareventual dúvida.

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tipo a brasileira, demonstrou que não é possível um desenvolvimentoharmônico de tais sociedades sem maciço investimento na educação. AConstituição da Guanabara atende a essa realidade. Pode ser discutí-vel a orientação, mas não me parece que haja inconstitucionalidade,muito menos inconstitucionalidade manifesta”.

No entanto, o Ministro Victor Nunes, compartilhando essa posição com oMinistro Evandro Lins, vota vencido nesse ponto. E o § 4º do art. 80 da Constitui-ção da Guanabara é declarado inconstitucional.

O outro dispositivo impugnado e objeto de divergência entre os Ministrosera o art. 92: “a lei assegurará a participação de um representante dos em-pregados e da oposição parlamentar na gestão das sociedades de econo-mia mista”.

O Ministro Relator, Amaral Santos, votou pela inconstitucionalidade da ex-pressão “e da oposição parlamentar”, entendendo-a incompatível com o dispo-sitivo da Constituição de 1967 (art. 36), que proibia parlamentares de exerceremcargos em empresas de economia mista.

O Ministro Victor Nunes divergiu, acompanhando o Ministro EvandroLins, que, admitindo esse mesmo fundamento, entendia que bastava o reconheci-mento da inconstitucionalidade da expressão “parlamentar”56, tendo sido intuitodo constituinte estadual reforçar a fiscalização das sociedades de economia mis-ta por meio da participação, em sua gestão, de membro da oposição ao governo.

A propósito, o Ministro Victor Nunes travou interessante debate com oMinistro Adaucto Cardoso, sobre influência da experiência pessoal dos Ministrosna interpretação da Constituição:

“O Sr. Ministro Adaucto Cardoso: A minha experiência sobreos desajustamentos entre a realidade partidária brasileira e aquiloque o dispositivo constitucional visa...

O Sr. Ministro Victor Nunes: Isso não seria proibição constitu-cional, mas fruto da experiência pessoal de V. Exa.

O Sr. Ministro Adaucto Cardoso: A interpretação da Constitui-ção deve ser também fruto da experiência. V. Exa. nega que devamoscercar nosso entendimento da Constituição de todas as cautelas quea experiência nos dita?

O Sr. Ministro Victor Nunes: Tenho dúvida se nossa experiênciapessoal deve prevalecer sobre a experiência dos constituintes.

56 Argumentou o Ministro Evandro Lins que, “evidentemente, o que teve em vista oconstituinte estadual da Guanabara foi que um representante da oposição participasse

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Memória Jurisprudencial

O Sr. Ministro Amaral Santos (Relator): Também fico surpreen-dido.

O Sr. Ministro Victor Nunes: Nossa experiência pode valercomo argumento, mas não como vedação constitucional. Aquilo quecada um de nós acha nocivo ou benéfico não é razão de ordemconstitucional; é razão de convencimento pessoal.”

A posição dos Ministros Victor Nunes e Evandro Lins, acompanhados pe-los Ministros Luiz Gallotti (Presidente) e Gonçalves de Oliveira, quanto a esseaspecto da representação, resta vencida. Prevaleceu o reconhecimento da in-constitucionalidade da expressão “e da oposição parlamentar”57.

Representação 775

Competência legislativa em matéria de edificaçõesurbanas — Autonomia municipal.

Este caso, tratado em acórdão bastante sucinto, traz, ainda que de passa-gem, referência a tese relevante para a matéria de competências dos entes fede-rativos.

Discute-se a inconstitucionalidade de norma da Constituição do Estado doEspírito Santo que fixara, genericamente para todas as “cidades litorâneas” doEstado, exceto a Capital, limitações quanto a localização e gabaritos de edifica-ções nas proximidades do mar.

Sustentava-se na representação que tal norma violava a autonomia muni-cipal, por invadir sua competência em matéria de disciplina das edificações. Esseargumento foi acolhido pelo Ministro Relator, Lafayette de Andrada.

O Ministro Victor Nunes acompanha o Relator, por entender incabível tal in-terferência de norma estadual, de modo amplo e genérico, na matéria em questão.

Todavia, na motivação de seu voto, faz ressalva no sentido de que poderiahaver hipóteses nas quais o exercício de competências constitucionais pelos Esta-dos ou pela União acarretasse, legitimamente, restrição à competência municipalem matéria de edificações urbanas.

da direção das sociedades de economia mista e quis exprimir, mas a língua não oajudou, que esse representante seria designado pela oposição parlamentar”, mas nãoque fosse um parlamentar.57 Já os Ministros Thompson Flores e Themistocles Cavalcanti consideravam o disposi-tivo integralmente inconstitucional.

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Ministro Victor Nunes

É o que se passa, por exemplo, com limitações a edificações em áreascontíguas a sítios históricos, ou a aeroportos, ou ainda a fortes militares, limita-ções essas decorrentes de normas federais.

No caso do Espírito Santo, em certas localidades onde há areias monazíti-cas, o Ministro Victor Nunes, argumentando por hipótese, afirma não estar con-vencido de que não possa existir razão pela qual o Estado exerça competênciaprópria, restringindo a competência municipal ora discutida.

No entanto essa hipótese não se verificava no caso. E a citada norma daConstituição do Espírito Santo é julgada inconstitucional por votação unânime.

Representação 676

Ingresso de professores de ensino primário na redepública independentemente de concurso público — In-gresso a partir de curso específico de formação —Competência legislativa em matéria de ensino primário.

Discutia-se, nesta representação, a constitucionalidade de dispositivo daConstituição do Estado da Guanabara, que permitia o ingresso de professores darede pública do ensino primário independentemente de concurso público.

Como esclarecido pelo Ministro Aliomar Baleeiro, bom conhecedor da si-tuação de fato naquele Estado, “na Guanabara, para o recrutamento das pro-fessoras primárias, não há o processo comum do concurso. Adotou-se pro-cesso diferente, mas eficaz [e adianta que não lhe parece vedado pela Constitui-ção Federal]. O Estado da Guanabara não abre concurso para provimentodas cadeiras de professora primária. O concurso é a admissão no órgão doEstado, o Instituto Normal, para o curso ali a ser feito. O exame érigorosíssimo, verdadeiro concurso cada ano. Todas as candidatas que lo-gram aprovação no concurso de habilitação para essa escola e que fazemo curso ali, com aprovação mínima, têm direito a uma vaga de professora58.Nessa escola, há um padrão de ensino e um rigor mais elevados do que noscolégios particulares”.

Ocorre que o Ministro Relator, Candido Motta, entendia a regra inconstitu-cional, por violar o princípio da igualdade (Constituição de 1946, art. 141, § 10), namedida em que criava discriminação em favor de alunos que estudassem emdeterminado estabelecimento público: apenas eles teriam acesso aos cargos.

58 E compara com procedimentos análogos, por exemplo, para ingresso na carreira diplo-mática, via curso do Instituto Rio Branco, ou em carreiras militares, via as respectivasescolas.

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Memória Jurisprudencial

Além disso, argumenta que a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Na-cional (LDB — Lei 4.024/61) tinha regra expressa (arts. 19 e 58) vedando quehaja distinção de direitos de alunos que tenham realizado estudos em estabeleci-mentos públicos e alunos oriundos de estabelecimentos particulares, para acessoà carreira do magistério. Essa lei, sendo de competência privativa da União, nãopoderia deixar de ser aplicada por força de norma estadual.

A matéria é objeto de intensos e ricos debates sobre aspectos do tratamentoconstitucional da educação, do federalismo e de exemplos estrangeiros. Mas,para sintetizar os principais argumentos em sentido contrário ao defendido peloMinistro Relator, pode-se referir a posição sustentada pelo Ministro Aliomar Ba-leeiro, situando a matéria não no âmbito da LDB, e sim no âmbito da legislaçãosobre ingresso em carreira pública.

A propósito, intervém o Ministro Victor Nunes para observar que a Cons-tituição de 1946, no art. 168, VI, a contrario sensu, excepciona, para o provi-mento do cargo de professor primário, a exigência de concurso público: “para oprovimento das cátedras, no ensino secundário oficial e no superior oficialou livre, exigir-se-á concurso de títulos e provas”.

E, respondendo a argumento do Ministro Eloy da Rocha — que reitera aprevalência da LDB —, o Ministro Victor Nunes situa o cerne dos debates comosendo os limites à legislação federal em matéria de ensino primário, para prosse-guir questionando que a competência da União para estabelecer diretrizes e ba-ses da educação nacional importe em exclusividade para dispor sobre o ensinoprimário; sendo diversa a situação do ensino superior, este de competência exclu-siva da União, por disposição constitucional.

Nesse sentido, sugere que os Estados possam estabelecer exigências di-versas e mais rigorosas em matéria de ensino primário. Desse modo, os invoca-dos dispositivos da LDB não seriam inconstitucionais, mas não se aplicariam acasos em que o Estado mantém ensino primário oficial.

Esta representação acaba julgada improcedente, posto não haver sido al-cançado o quorum para declaração de inconstitucionalidade, ainda que a maioriavotasse pela procedência. Votaram pela constitucionalidade da norma da Consti-tuição da Guanabara os Ministros Victor Nunes, Hermes Lima, Aliomar Baleeiro,Evandro Lins e Adalício Nogueira.

Representação 760

Ingresso de professores de ensino primário na redepública independentemente de concurso público — Ar-gumentos de natureza política e social — Competêncialegislativa em matéria de ensino primário.

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Ministro Victor Nunes

A argumentação apresentada pelo Ministro Victor Nunes na Rp 676 émais desenvolvida em caso que também se refere à questão do concurso públicopara o magistério primário oficial.

Ocorre que, neste segundo caso, a norma de Constituição estadual —agora, de Pernambuco — impugnada dizia respeito não diretamente a regra deingresso na carreira, mas sim a regra de efetivação de professores primários,prevendo, para tanto, prazo mais curto que o estabelecido no art. 177, § 2º59, daConstituição de 1967, então recentemente promulgada.

No entanto, surge, incidentalmente, debate entre o Ministro Relator,Aliomar Baleeiro, e o Ministro Victor Nunes sobre a manutenção ou não, noregime de 1967, da dispensa constitucional para concurso de provimento do cargopúblico de professor primário.

Sustenta o Ministro Victor Nunes que o dispositivo da nova Constituição60

dava à matéria o mesmo tratamento do dispositivo equivalente na Constituição de194661. Já o Ministro Relator, Aliomar Baleeiro, entende que a Constituição de1967 estabeleceu como regra para o provimento de qualquer cargo público oconcurso; nesse sentido, o art. 168, § 3º, V, apenas trataria separadamente domagistério no ensino médio e no superior em razão de ser exigido, para estes,concurso de provas e títulos — e esse dispositivo não admitiria interpretação acontrario sensu quanto ao ensino primário.

Nesses debates, o Ministro Victor Nunes reforça sua interpretação daConstituição com relevantes argumentos extraídos da realidade brasileira:

“A prática da Constituição de 1946 foi no sentido de que osEstados podiam exigir, ou não, o concurso.

O recrutamento para o magistério primário, sobretudo no inte-rior, especialmente para as escolas rurais, é um problema tormentoso,em todo o País. É muito difícil conseguir-se que o professordiplomado, em condições de se submeter a concurso, aceite ensinarem distrito rural. Há mesmo carência de professores, no país, com tais

59 “São estáveis os atuais servidores da União, dos Estados e dos Municípios, da admi-nistração centralizada ou autárquica, que, à data da promulgação desta Constituição,contem, pelo menos, cinco anos de serviço público.”60 Art. 168, § 3º “A legislação do ensino adotará os seguintes princípios e normas: (...)V - o provimento dos cargos iniciais e finais das carreiras do magistério de grau médioe superior será feito, sempre, mediante prova de habilitação, consistindo em concursopúblico de provas e títulos quando se tratar de ensino oficial”.61 Art. 168. “A legislação do ensino adotará os seguintes princípios: (...) VI - para oprovimento das cátedras, no ensino secundário oficial e no superior oficial ou livre,exigir-se-á concurso de títulos e provas”.

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requisitos. Atendendo a essa realidade, a Constituição de 1946 dis-pôs, no art. 168, VI (como no mesmo sentido dispõe a atual, no art.168, V):

‘VI - para o provimento das cátedras, no ensino secun-dário oficial e no superior oficial ou livre, exigir-se-á concur-so de títulos e provas. Aos professores, admitidos por concursode títulos e provas, será assegurada a vitaliciedade;’

A Constituição atual só foi mais rigorosa quanto ao princípiogeral do concurso para o provimento dos cargos públicos de carrei-ra, ou isolados, passando a exigir que o concurso seja público,constando de provas ou de títulos e provas (art. 95, § 1º).”

E ainda usa raciocínio lógico para, comparando os textos das Constituiçõesde 1946 e 1967, demonstrar que o espírito da nova norma foi manter a dispensade concurso público para o provimento de cargos de professor primário:

“O legislador constituinte podia fazer sua opção. Estou discu-tindo o problema em face do texto constitucional e peço vênia parainterpretá-lo de modo diverso. O legislador constituinte conhecia otexto da Constituição anterior, e o redator do projeto, nosso eminentecolega Carlos Medeiros Silva, não ignorava o debate travado noSupremo Tribunal. Com esse conhecimento, não se limitou a reprodu-zir o texto anterior. Introduziu-lhe modificações, evidenciando que oassunto não lhe passou despercebido. Façamos, agora, um confrontodos dois textos.

(...)

Portanto, a Constituição de 1967 agravou as exigências daanterior, ao exigir, mesmo para o magistério particular, prova de ha-bilitação. Se o legislador teve a preocupação de mudar o texto, paraexigir mais que a Constituição anterior quanto ao magistério particu-lar, por que não teria estendido explicitamente aos cargos oficiais domagistério primário a condição do concurso, se esta tivesse sido asua intenção?”

O Ministro Amaral Santos, a seu turno, ressalta outro argumento a apon-tar a inconstitucionalidade da norma ora questionada da Constituição de Per-nambuco. Sustenta que, no regime de 1967, seria a Lei de Diretrizes e Bases daEducação Nacional (LDB), e não leis estaduais, que poderia dispensar concursopúblico para o magistério primário.

A propósito, o Ministro Victor Nunes admite adotar como fundamento deseu voto esse argumento; porém ressalta não ser esse o fundamento sustentado

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Ministro Victor Nunes

pela maioria dos Ministros, ao longo dos debates: “Perdoem os caros colegascerta veemência do meu voto, que reflete minha preocupação com esse pro-blema. A maioria está fechando a porta ao legislador federal, que poderiadispensar o concurso no ensino primário em atenção às condições do país,pois está dizendo que, por força da Constituição, qualquer cargo públicode ensino primário só pode ser preenchido mediante concurso”.

O Ministro Victor Nunes propõe então ao Tribunal que se conclua pelainconstitucionalidade da norma, mas que se deixe margem para que posterior-mente seja produzida “mais profunda reflexão” sobre o problema do concursono ensino primário.

Assim, além do argumento da competência do legislador federal para tra-tar da matéria na LDB, o Ministro Victor Nunes ainda lembra outro fundamentopara a procedência da representação de inconstitucionalidade: a norma pernam-bucana tem por efeito efetivar “candidatos reprovados em concurso que a leiestadual ao tempo já exigia. Essa aprovação dos reprovados é que conflitacom o sistema constitucional dos concursos”.

E conclui: “Meu voto é este: acompanho a conclusão do eminenteRelator, mas pela razão que acabei de mencionar. Entendo, como o Sr. Mi-nistro Evandro Lins, que a Constituição Federal não obriga os Estados arealizarem concurso para o magistério primário. Este assunto ficou ao cri-tério dos Estados, ressalvado o que dispuser a lei federal, que pode definiras diretrizes e bases da educação nacional”.

A representação é, enfim, julgada procedente, contra apenas o voto doMinistro Evandro Lins.

Representação 669

Repartição constitucional de competências — Com-petência para legislar sobre atos de diretores de socie-dades de economia mista e autarquias.

Examinava-se nesta representação, ensejada pelo Governo de São Paulo, aconstitucionalidade da Lei estadual paulista 8.427/64, no tocante a três aspectos:

a) fixação de competência da Assembléia Legislativa para aprovar os nomesde diretores das sociedades de economia mista indicados pelo Governador do Estado;

b) imposição de que o Governo introduza, nos estatutos das sociedades deeconomia mista de que seja acionista majoritário, limite (Cr$ 50.000.000,00) apartir do qual devam realizar concorrência pública para a contratação de serviçose obras;

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Memória Jurisprudencial

c) previsão de nulidade e ineficácia dos atos dos diretores de sociedadesde economia mista ou dos administradores de autarquias cujos nomes não sejamenviados, pelo Governador, à Assembléia Legislativa para aprovação, dentro doprazo de trinta dias a contar da respectiva indicação ou nomeação.

A representação fora oferecida antes da vigência da Emenda Constitucio-nal 16/65, que introduziu a representação de inconstitucionalidade de lei em tese.Portanto, fundamentava-se em violações do disposto no art. 7º, VII, da Constitui-ção de 1946, que fixava os princípios “sensíveis”, cuja violação era pressupostode intervenção federal mediante representação interventiva. Mas, quandojulgada, a representação pôde ser apreciada com maior amplitude quanto a qual-quer preceito constitucional violado, nos termos do art. 114, I, l, da Constituiçãode 1967.

No caso, argüia-se a colisão da lei estadual com a regra do art. 5º, XV, a,da Constituição de 1967, que estabelecia competir à União legislar sobre DireitoCivil, Comercial, etc.

Votando como Relator, o Ministro Victor Nunes entende que o primeiroaspecto está consoante o sentido da Constituição Federal, ao exigir que a indica-ção de determinados servidores seja aprovada pelo Senado (art. 45, I), além deharmonizar-se com precedente do Tribunal (Rp 96). E entende que o segundoaspecto atende perfeitamente ao princípio da moralidade administrativa, não im-portando violação da Constituição.

Esses dois aspectos inserem-se na competência dos Estados para legislarsobre Direito Administrativo.

Já o terceiro aspecto — entende o Ministro Victor Nunes — viola a com-petência federal: “embora, quanto às autarquias, haja matéria de nulidaderegulada na legislação administrativa do Estado, no tocante às sociedadesde economia mista, que operam como empresas privadas, a nulidade dosseus atos está disciplinada, quase totalmente, no direito federal”.

Além disso, o sistema criado pela lei paulista criaria situação injusta peranteterceiros que acreditassem na aparência de regularidade dos atos praticados pelosadministradores dessas entidades, devidamente indicados ou nomeados, mascujos nomes não tenham sido ainda encaminhados para aprovação pela Assem-bléia Legislativa.

Por essas razões, vota pela procedência em parte da representação, apenasquanto a esse último aspecto, julgando-a improcedente quanto aos demais. Éacompanhado pelos demais Ministros, exceto, em parte, pelo Ministro AliomarBaleeiro que julgava a representação integralmente improcedente.

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Ministro Victor Nunes

Representação 467Repartição constitucional de competências — Teo-

ria dos poderes implícitos — Observância de parâmetrosdo Distrito Federal pelos Estados — Criação de Tribunalde Contas.

A questão debatida envolvia a criação do Tribunal de Contas do Estado doRio Grande do Norte pela Lei estadual 2.152, quando a Constituição do Estado nãoera expressa a respeito62.

Em seu voto, após rejeitar preliminares, o Ministro Relator, Victor Nunes,lembra precedente, ainda que não idêntico: no caso do Estado do Amazonas, oTribunal de Contas fora criado por lei, ante delegação da Constituição estadual(“a fiscalização da administração financeira do Estado e de seus municípiosserá processada de acordo com o definido em lei ordinária”); nessa situaçãoo Supremo Tribunal Federal, no RE 21.198, Relator Ministro Luiz Gallotti, enten-deu constitucional a criação daquele órgão. No presente caso, porém, o texto daConstituição potiguar era diverso, não explicitando delegação: “Art. 35. A admi-nistração financeira e a execução dos orçamentos do Estado e do Municí-pio serão fiscalizadas, respectivamente, pela Assembléia Legislativa e CâmarasMunicipais, com auxílio dos órgãos competentes.”

De todo modo, o Ministro Victor Nunes não entende vedada pelo constitu-inte a criação do Tribunal de Contas, sendo órgão da tradição do Direito brasileiroa exercer tal função no âmbito dos Estados (o que não se diga quanto a Municí-pios — daí o precedente de se haver julgado inconstitucional a criação de Tribu-nal de Contas pelo Município de São João de Meriti: RMS 4.343). Aplica-se aquia teoria dos poderes implícitos, assim sintetizada por Francisco Campos: “quandoa Constituição atribui a um dos poderes a competência de exercer uma fun-ção, sem que, entretanto, disponha quanto aos meios indispensáveis ao seuexercício, é implícita no poder legislativo a faculdade de prover, dentro dasdevidas limitações constitucionais, os meios ou instrumentos necessários aoexercício daquela função”.

Ao optar, dentre outras possíveis soluções, pela criação do Tribunal deContas, a lei estadual deve, de todo modo, adotar como paradigma os princípiosfundamentais constantes da Constituição Federal em matéria de organização doTribunal de Contas da União.

62 Curioso notar que o novo Procurador-Geral da República, em seu parecer, afirma en-tender ser a representação infundada; todavia não apresenta desistência formal em home-nagem a seu antecessor e ainda porque o Supremo Tribunal Federal poderia não concor-dar com os fundamentos de sua opinião.

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Nesse sentido, três pontos complementares ainda devem ser discutidos. Oprimeiro — a vitaliciedade atribuída, no caso, aos membros do Tribunal —, oMinistro Victor Nunes entende constitucional, até por uma referência expressada Constituição estadual, que remete a casos análogos da Constituição Federalem matéria de servidores públicos.

Os outros dois pontos da Lei estadual, no entanto, entende violadores daConstituição Federal: o que se refere à investidura dos Ministros e o que trata doprazo para o Governador apresentar suas contas.

Quanto à investidura, a Lei estadual não previu aprovação dos nomes pelaAssembléia Legislativa — diferentemente do que se passa no plano federal, com oSenado —, o que o Ministro Victor Nunes, pela própria essência do órgão, entendeimprescindível, dado o fato de sua função exigir simultaneamente confiança doPoder Executivo e do Legislativo. Tal regra poderia ter sido afastada pela Cons-tituição do Estado (até aí, opção legítima do poder constituinte — foi o raciocí-nio aplicado no caso do Amazonas); porém, na omissão desta, haveria o legisla-dor infraconstitucional que observar o modelo federal. O Ministro Victor Nunesrecusa ainda o argumento de que os Estados não têm Senado: o que importa éque um órgão legislativo participe da escolha.

Quanto ao prazo, a Lei estadual (art. 18) tem redação que daria a entenderque o Governador teria de apresentar suas contas de modo que o Tribunal tivesseprazo de trinta dias para emitir parecer prévio. A leitura literal do dispositivolevaria ao encurtamento do prazo que a Constituição estadual fixa para que oGovernador apresente contas à Assembléia. Sendo assim, ainda que sem usar aexpressão, o Ministro Victor Nunes emprega a técnica da “interpretação confor-me”: “parece-me, pois, que a lei há de ser entendida, para não se declarara inconstitucionalidade do citado art. 18, no sentido de que a obrigação doGovernador continua a ser, como dispõe a Constituição, de remeter suas con-tas diretamente à Assembléia, no prazo constitucionalmente marcado.”

A maioria, que acompanha o voto do Relator quanto à possibilidade dacriação do Tribunal de Contas por decisão do legislador ordinário, discorda quantoà necessidade de a Assembléia Legislativa aprovar os nomes, seja por entenderque não se trata de elemento do modelo federal de observância obrigatória, sejapor entender que nem mesmo haveria analogia entre o Senado, como parte domodelo federal, e a Assembléia — o que haveria se o modelo federal envolvesseo Congresso Nacional.

Interessante observar que, na Rp 602 (cf. infra), o Ministro Victor Nunescita tanto o presente caso como a Rp 515 (cf. infra) para ilustrar a evolução deseu entendimento. Em verdade, nem se trata de mudança na essência do entendi-

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Ministro Victor Nunes

mento, mas de alteração na abrangência de sua aplicação. Lembra o Ministroque, na representação ora comentada, entendeu, vencido, que os Estados deviamseguir o modelo federal no que diz respeito à investidura dos Ministros de Tribu-nais de Contas. E acrescenta:

“Aprendi a lição. Posteriormente, reportando-me a esse julgadoe ao Caso do Ceará (...), dizia eu: ‘Uma coisa é dizer que a Constitui-ção do Estado não violou a Constituição Federal, porque lhe seguiuo modelo; outra coisa é dizer que a Constituição estadual estavaobrigada a seguir o modelo federal. (...) onde está o preceito segundoo qual, em todas as situações, o modelo federal tem de ser respeitado,obrigatoriamente, na elaboração das Constituições estaduais? Nãoexiste esse preceito na Constituição.’ (Rp 515, 13-7-62).”

Representação 477

Criação do Estado da Guanabara — “Lei San TiagoDantas” — Possibilidade de Constituição estadual alterarmandatos legislativos dos próprios deputados constituin-tes — Observância de princípios da Constituição Federalpor Constituição estadual — Poder constituinte originárioe derivado — Origem do poder na democracia.

Cuidava este caso de situação havida quando da criação do Estado daGuanabara. Na fase de transição, até a promulgação da Constituição do novoEstado, regia a matéria de mandatos do Governador e dos Deputados a Lei federal3.752, de 14 de abril de 1960, conhecida como “Lei San Tiago Dantas”.

A Constituição estadual, contudo, veio fixar termo diverso para o encerra-mento dos mandatos parlamentares eleitos sob a regra da Lei federal, prorrogan-do-os em pouco mais de dois anos, de modo a fazê-los coincidir com o mandatodo Governador.

Fundamentava-se esta representação na prevalência da Lei federal —tida por complementar de artigo das disposições transitórias da ConstituiçãoFederal — sobre a Constituição estadual, que, ademais, seria fruto, no que tangea regra dos mandatos parlamentares, de legislação em causa própria.

Em seu voto, o Ministro Relator, Luiz Gallotti, fixa o argumento de que a leifederal (ainda que complementar) não é hierarquicamente superior à Constituiçãodo Estado nem pode limitar o poder constituinte estadual, por força do disposto noart. 18 da Constituição de 1946: “Cada Estado se regerá pela Constituição e

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Memória Jurisprudencial

pelas leis que adotar, respeitados os princípios estabelecidos nesta Consti-tuição”. Isso vale ainda que se trate de lei complementar federal.

Entende o Relator que não se cogita de conflito hierárquico entre lei federale Constituição estadual, mas de verificação de qual delas, no caso, terá se afas-tado das órbitas de competência traçadas na Constituição Federal. Lembra aindaque o próprio Deputado San Tiago Dantas observava que a lei batizada com seunome tinha “valor programático”, trazendo uma proposta da qual poderia afas-tar-se a Constituinte estadual. Vota, assim, pela improcedência da representação.

O Ministro Victor Nunes, a seu turno, vota pela procedência da represen-tação, entendendo que o mandato dos parlamentares eleitos não poderia excederao termo fixado na lei convocatória — “Lei San Tiago Dantas”.

Em voto intensamente aparteado, o Ministro Victor Nunes de plano afastaa questão do suposto conflito entre lei federal e constituição estadual, voltando-separa o que entende ser o problema central: “saber se alguém pode dar mandatoa si mesmo”. E segue: “Deputados eleitos com mandato de duração certaampliaram essa investidura, mas não há preceito da Constituição Federal,nem princípio constitucional algum que institua essa competência em seufavor.”

Reforçando a legitimidade da lei federal para reger transitoriamente acriação do Estado, o Ministro Victor Nunes invoca analogia com o caso de per-turbação a impedir o funcionamento dos poderes estaduais; hipótese em que, nostermos da Constituição, se transfere à União, pelo mecanismo da intervenção,competência para normalizar a situação do Estado em crise. No caso em tela,não se pode dizer que os poderes estaduais não funcionavam; mais do que isso,nem existiam.

E, ao convocar a Assembléia Constituinte estadual, a Lei San TiagoDantas teria mesmo de fixar mandato aos deputados que seriam eleitos constitu-intes, visto que não há hipótese de mandato ilimitado no regime constitucionalbrasileiro, nem impossibilidade de o ato convocatório de uma constituinte estadualcondicioná-la.

Nesse passo, o Ministro Victor Nunes observa que a discussão da impossi-bilidade de condicionamentos quanto à convocação de uma constituinte aplica-seao plano nacional; “sendo apenas autônomo, esse poder constituinte estadual(...) é um poder constituinte de segundo grau, um poder derivado, um poderconstituído e condicionado pela Constituição Federal”.

Avança o Ministro Victor Nunes para demonstrar que a Assembléia Cons-tituinte da Guanabara não apenas violou a Lei federal mas também a própriaConstituição Federal. “Não nasce do constituinte estadual o poder de repre-

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sentação do eleitorado; preexiste, porque já se acha inscrito na Constitui-ção Federal. E, pela Constituição Federal, não há mandato político semlimite de prazo. A assembléia constituinte instalou-se em mandato de prazocerto, porque não podia receber mandato de prazo indeterminado. Essadeterminação do termo final de seu mandato era uma imposição da própriaConstituição Federal”.

Invoca ainda a regra de que “todo poder emana do povo” para observarque, ainda que o mandato desses deputados originalmente tenha emanado dopovo, além do prazo fixado pela Lei San Tiago Dantas, o mandato terá emanadoda Assembléia — poder derivado — e não do povo.

Eleita pelo povo, para um mandato prefixado, não poderia a Assembléia terprorrogado seu próprio mandato, de modo autocrático:

“A Constituinte estadual marcou esse prazo a posteriori. O re-presentante é convocado, com certo prazo, antes da eleição; não édepois da eleição que se lhe fixa o mandato. Depois da eleição, issoimporta em aumentar ou reduzir o mandato, conforme o caso, não emfixá-lo. O princípio de que não há poder sem representação, seminvestidura expressa do povo, é tão fundamental em nosso regimeque, dentre as próprias emendas que a Constituição Federal admitesejam feitas ao seu texto, foram excluídas as que importem supressãodo regime republicano (no sentido de regime representativo). Se,amanhã, o Congresso Federal, pelo processo de reforma da Consti-tuição, prorrogasse o próprio mandato, evidentemente, estaria ne-gando o regime republicano; do contrário, não seria regime republi-cano no sentido em que a Constituição usa esse qualificativo, masuma autocracia. Quando alguém se investe a si mesmo de poderespolíticos, o regime não é republicano, mas autocrático. O que a As-sembléia da Guanabara teve foi um procedimento autocrático: dila-tou, no tempo, os seus próprios poderes”.63

Como resultado, no entanto, o Tribunal, pelo voto de desempate do Presi-dente, julgou improcedente a representação, fixando em quatro anos o mandatodos membros da Assembléia Constituinte do Estado da Guanabara, a contar desua instalação.

63 O Ministro Victor Nunes, para rebater o argumento de autoridade do Relator, que citou(cf. supra), em defesa de sua tese, pronunciamento do próprio San Tiago Dantas, trans-creve outro trecho do mesmo discurso: “Todo ato que esta Assembléia praticar paraampliar o seu mandato, quer quanto ao prazo, quer quanto ao conteúdo, constitui

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Em face desse julgamento, foram interpostos embargos (ERp 477) peloPartido Social Trabalhista e pela Procuradoria-Geral da República, os quaisresultaram em reforma do julgamento anterior.

Houve longos debates, em matéria preliminar, sobre a possibilidade deembargos no caso de representação que não tenha sido julgada por unanimidade,cotejando-se o disposto na Lei 2.271, de 22 de julho de 1954, com a norma cons-titucional e a norma regimental sobre a representação. Admitiram-se, afinal, osembargos, como, aliás, registra o Ministro Victor Nunes, tem sido posicionamentopacífico do Supremo Tribunal Federal.

No mérito, apenas reiterando seu voto vencido no julgamento anterior, oMinistro Relator, Vilas Boas, votou pelo recebimento dos embargos, para julgarprocedente a Representação 477. E quase todos os Ministros apenas reiteraramseus votos, não acrescentando argumentos.

Mas, nessa ocasião, a maioria formou-se no sentido da procedência darepresentação, acabando por prevalecer a posição que, entre outros, era doMinistro Victor Nunes — restando vencidos os Ministros Luiz Gallotti, CandidoMotta e Hahnemann Guimarães.

Recurso em Mandado de Segurança 9.558

Criação do Estado da Guanabara — “Lei San Tia-go Dantas” — Observância de princípios da Constitui-ção Federal por Constituição estadual — Princípio daintangibilidade do mandato político.

Este recurso ordinário em mandado de segurança decorreu de fato havidono mesmo contexto histórico da Rp 477, acima analisada. O recurso fora julgadotrês dias antes da representação.

A “Lei San Tiago Dantas” — Lei federal 3.752, de 14 de abril de 1960 —, aodisciplinar as regras de transição para a criação do Estado da Guanabara, quandoda transferência do Distrito Federal para o Planalto Central, convocara uma As-sembléia Constituinte, a ser integrada por trinta Deputados a serem eleitos (em 3 deoutubro de 1960), prevendo que, após concluídos os trabalhos, tais Deputados res-tariam como estaduais, até termo fixado — conforme analisado na Rp 477.

violação da lei federal, que condiciona limites à sua competência, e se resolve numausucapião de poderes”. De todo modo, para o Ministro Victor Nunes, reitere-se, a ques-tão não é o conflito da Constituição estadual com a lei federal, mas com a ConstituiçãoFederal.

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A esses Deputados juntar-se-iam, para compor o Poder Legislativo —ordinário, não a Assembléia Constituinte —, os cinqüenta Vereadores do antigoDistrito Federal, eleitos em 3 de outubro de 1958 e empossados em 31 de janeirode 1959, para mandato de quatro anos.

Ocorre que a Assembléia Constituinte, afastando-se das normas postaspela “Lei San Tiago Dantas”, deliberou que a futura Assembléia Legislativa viriaa ser composta exclusivamente pelos Deputados eleitos em 3 de outubro de 1960,extinguindo a Câmara de Vereadores eleita em 3 de outubro de 1958.

Daí por que ajuizaram o presente mandado de segurança, conhecido peloSupremo Tribunal Federal em recurso ordinário, Vereadores que se julgaram le-sados em seus direitos pela decisão da Assembléia.

Em seu voto, o Ministro Relator, Pedro Chaves, dá razão à AssembléiaConstituinte, entendendo que a autonomia de auto-constituição assegurada aosEstados pelo art. 18 da Constituição de 1946 apenas se restringe em face dosprincípios estabelecidos na própria Constituição Federal, não se limitando, pois,por lei federal, como é a “Lei San Tiago Dantas”.

Entende ainda que o artigo dessa Lei que determinou a incorporação dosVereadores antes eleitos ao novo órgão legislativo, com o objetivo de resguardar-lhes o mandato, na verdade violou os princípios constitucionais da autonomia es-tadual e do sistema republicano representativo. Tal mandato extinguir-se-ia coma extinção da função ou órgão a que se ligava.

O Ministro Victor Nunes, por sua vez, manifesta opinião divergente, coe-rente com posicionamento que já adotara, em 1959, como advogado do entãoDistrito Federal.

De início, assim como fizera na Rp 477, afasta como questão controversa osuposto conflito entre a Constituição da Guanabara e a Lei federal “San TiagoDantas”. Situa então o problema em torno da prevalência de princípios constitucio-nais federais sobre a Constituição do Estado, por força do já mencionado art. 18 —“princípios”, mais amplos, e não necessariamente textos explícitos da Constituição.

No caso, o princípio violado pela Constituição da Guanabara seria o da“intangibilidade do mandato político”, resultante de vários preceitos constitucio-nais: art. 1º (“todo poder emana do povo”), art. 7º, VII, a (“governo republicanorepresentativo”).

Assim, os Estados têm não apenas de se organizar com representação polí-tica mas também respeitar a representação política. Lembra então dois casos con-cretos em que a Constituição de 1946 assegurara tal princípio: nos arts. 3º, § 2º, e 11das Disposições Transitórias, determinando que se elegessem Governadores antes

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de elaboradas as Constituições dos Estados, as quais deveriam respeitar-lhes osmandatos; e na então recente emenda constitucional que implantara o Parlamen-tarismo, que impunha aos Estados, ao adaptarem suas Constituições, que respei-tassem os mandatos em curso dos Governadores e os demais mandatos federais,estaduais e municipais.

Também da Constituição Federal decorre o caráter legislativo da antiga Câ-mara de Vereadores — de mesma natureza da futura Assembléia Legislativa —,assim como a duração do mandato de seus membros (cf. art. 26, bem como aLei Orgânica do Distrito Federal, decorrente do art. 25). Nesse sentido, a“Lei San Tiago Dantas” não determinara, por autoridade própria, que o mandatodos Vereadores subsistisse, mas apenas declarara uma situação decorrente daConstituição.

Outro aspecto a ser considerado era o de que o novo Estado não configuraentidade política totalmente nova, mas transformação do antigo Distrito Federal —“uma mesma entidade política, sediada em determinado território e governa-da por um acervo de leis e de atos administrativos de toda a natureza” (nessesentido, as opiniões de Francisco Campos e Themistocles Cavalcanti) —, a justifi-car a continuidade do órgão representativo existente. A isso se acresce o fato deque o Distrito Federal acumulava funções de Município e Estado.

Entretanto, o Ministro Victor Nunes, juntamente com os Ministros VilasBoas e Ary Franco, restou vencido. A maioria negou provimento ao recurso.

Representação 602

Aplicação automática por Estado de norma sobreprocesso legislativo, constante em ato institucional —Questões políticas — “Forma republicana representa-tiva” — “Independência e harmonia dos Poderes” —Função do STF.

Esta representação foi ensejada pela Assembléia Legislativa do Estado daGuanabara, em face de ato do Governador. Eis os fatos: o Governador enviarapara a apreciação da Assembléia dois projetos de lei — um criando tributos,outro dispondo sobre questões de pessoal. Decorridos mais de trinta dias detramitação perante o órgão legislativo, o Governador resolveu converter os projetosem leis, publicando-as no Diário Oficial (Leis estaduais 577 e 578), invocando oart. 4º do Ato Institucional de 9 de abril de 196464.

64 “Art. 4º O Presidente da República poderá enviar ao Congresso Nacional projetosde lei sobre qualquer matéria, os quais deverão ser apreciados dentro de trinta (30)

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Fundamenta-se, pois, a representação na hipótese de intervenção federalnos Estados para assegurar a “forma republicana representativa” e a “indepen-dência e harmonia dos poderes” (Constituição de 1946, art. 7º, VII, a e b).

Em seu voto, o Ministro Relator, Gonçalves de Oliveira, acolhe os argu-mentos da representação, entendendo, com base em Rui Barbosa, que nossomodelo republicano representativo impõe o respeito à atribuição de funçãolegislativa dos representantes eleitos e, com base em Carlos Maximiliano, que ausurpação de poderes viola o princípio da independência e harmonia dos Poderesconstituídos.

Completando o raciocínio, interpreta o citado dispositivo do Ato Institucionalde modo a compreendê-lo aplicável apenas ao plano federal, seja por sua literali-dade — quando quis expressamente referir-se a poderes de Governadores, o Atofoi claro, cf. art. 7º —, seja porque a previsão do art. 4º se justifica por poderesespeciais, atribuídos ao Presidente da República, “para elaborar as reformas,que a Revolução julga necessárias”, as quais “nada têm que ver com pro-gramas estaduais”. Ou seja, invocando o dispositivo em questão, o Governadorteria usurpado competências do Poder Legislativo.

O Ministro Victor Nunes, ao votar, endossa o ponto de vista do Relator eacrescenta, com base em Seabra Fagundes, que a regra do art. 4º do AtoInstitucional não constitui norma que os Estados necessariamente tenham deaplicar: “e o Estado da Guanabara não reformou sua Constituição, para oefeito de incorporar ao processo legislativo estadual as normas excepcio-nais e provisórias que se contêm naquele dispositivo”. Note-se que esseargumento admite, em tese, que os Estados pudessem vir a aplicar mecanismosemelhante de aprovação de leis por decurso de prazo, desde que assim previs-sem as respectivas Constituições.

Mas ainda interessantes são as ponderações que o Ministro Victor Nunesfaz sobre argumento que fora trazido ao processo, no sentido de que o Tribunalnão poderia dirimir conflito posto entre o Governador e a Assembléia, por setratar de questão exclusivamente política.

Assim, nega que se trate, no caso, de “questão exclusivamente política”,posto que enquadrada na hipótese do art. 7º, VII, b, da Constituição de 1946, ouseja, hipótese na qual cabe ao Supremo Tribunal Federal apreciar a questão noâmbito de representação interventiva.

dias a contar do seu recebimento na Câmara dos Deputados e de igual prazo no SenadoFederal; caso contrário, serão tidos como aprovados.

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Por fim, cita trecho de polêmico artigo, de autoria de Carlos Lacerda, pu-blicado no calor dos debates e das movimentações políticas contrárias à posse doentão Presidente eleito, Juscelino Kubitschek. E o Ministro Victor Nunes65 o citaelegante e ironicamente.66 É que Carlos Lacerda, ao tempo de 1955, cobrava oJudiciário por supostas omissões no exercício de suas importantes atribuiçõespolíticas; e agora era o Governador interessado em sustentar a impossibilidade deo Judiciário apreciar a questão suscitada. Eis o texto de Lacerda:

“Não estamos sozinhos, quando afirmamos que o Poder Judi-ciário foi omisso em todas as crises que envolveram o Brasil. Não.Quem conosco pensa é o mesmo homem que lutou, na Constituinte de91, para que se desse ao Poder Judiciário a função de terceiro poder,nos moldes da constituição americana (...) O que há de grave nacrise brasileira (...) é que a legalidade vigente não encontra saídapara as dificuldades brasileiras. E não encontra não porque faltemleis, ou porque as existentes sejam precárias. Absolutamente. O quenos tem faltado sempre é compreensão, por parte do Poder Judiciário,de que a ele compete a guarda e a interpretação da Constituição, se-gundo determinação constitucional. O que falta ao Poder Judiciário,como órgão, como instituição, para desempenhar o papel de terceiropoder político, compondo os conflitos entre o Executivo e o Legislativo,dentro do sistema de freios e contrapesos estabelecido na Constituição.O defeito é do órgão que, despreparado, se descuida e despreza asua função política, limitando-se a decidir e compor conflitos entreparticulares. É o grande ausente nas crises brasileiras, vivendo comoque à margem da vida política brasileira, parecendo não perceberque tem gravíssimas atribuições políticas a desempenhar como intér-prete e guardião da Constituição”.

A representação foi julgada procedente, por unanimidade.

Recurso Extraordinário 58.50567

Observância de princípios da Constituição Federal porConstituição estadual e lei orgânica de Municípios — Eleiçãode prefeito em caso de vacância — Posição do Município naFederação brasileira — Autonomia municipal.

65 Recorde-se que Victor Nunes fora o Ministro Chefe da Casa Civil do Governo Jusce-lino Kubitscheck, enquanto Carlos Lacerda liderara os movimentos golpistas visando aimpedir a posse do Presidente, sendo destacado opositor daquele Governo.66 “Certamente, Sr. Presidente, estas palavras não saíram da pena de um constitucio-nalista, mas são agora muito adequadas, porque a sua autoria nominal pode ser encon-trada na Tribuna da Imprensa de 19 de outubro de 1955”.67 Julgado em conjunto com o RMS 15.207.

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Por decreto presidencial fundamentado no Ato Institucional de 9 de abrilde 1964, deu-se a suspensão dos direitos políticos do Prefeito Sereno Chaise e doVice-Prefeito Ajadil de Lemos, de Porto Alegre.

Ante a vacância desses dois cargos, assumiu a Prefeitura, consoante ordemde sucessão estabelecida pela Lei Orgânica do Município, o Presidente da Câmarade Vereadores, Célio Marques Fernandes.

No entanto, por emenda à Lei Orgânica, alterou-se o dispositivo aplicávelà situação, determinando-se a convocação de eleições indiretas para o preenchi-mento do cargo de Prefeito.

Contra tal medida, o Presidente da Câmara, no exercício do cargo de Pre-feito, ajuizou mandado de segurança, objetivando permanecer no cargo até com-pletar o mandato do Prefeito cassado. Ingressaram na lide, como litisconsortes,os cidadãos que haviam, então, sido eleitos Prefeito e Vice pelo voto dos Verea-dores.

O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul proclamou a inconstitucionalidadedos artigos 155, parágrafo único, da Constituição do Estado e do artigo 56, § 2º,da Lei Orgânica do Município, que davam, ao exercício do cargo de Prefeito peloPresidente da Câmara, a extensão do mandato para que fora eleito o substituído,independentemente de eleição, julgando também inconstitucional a emenda daLei Orgânica, na parte em que prescreveu a eleição indireta.

Dessa decisão, houve recursos ao Supremo Tribunal Federal por parte doimpetrante, Presidente da Câmara, exercendo o cargo de Prefeito, e por parte daCâmara Municipal.

Em síntese, as questões constitucionais debatidas seriam:

a) a possibilidade de a Constituição do Estado do Rio Grande do Sul (art. 155,parágrafo único) e a Lei Orgânica do Município de Porto Alegre (art. 56, § 2º)estabelecerem, diferentemente da regra prevista na Constituição Federal para asucessão do Presidente da República, que o Presidente da Câmara municipal,no caso de vacância dos cargos de Prefeito e Vice, assumisse a Prefeitura atéo término do mandado dos substituídos; e

b) a possibilidade de a Lei Orgânica do Município de Porto Alegre estabe-lecer a eleição indireta para Prefeito — tal como introduzido por Emenda —, nahipótese em análise, ainda que a vacância tenha se dado na primeira metade domandato, o que tornaria a regra municipal diferente da regra constante da Cons-tituição Federal para o Presidente da República.

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O Ministro Relator, Pedro Chaves68, vota pela constitucionalidade do art.155 da Constituição estadual e do art. 56 da Lei Orgânica, ou seja, admitindo ahipótese de o Presidente da Câmara completar o mandato do Prefeito quando ocargo for deixado vago pelo titular.

Nesse sentido, julga prejudicada a questão da constitucionalidade da regraintroduzida na Lei Orgânica por emenda, prevendo a eleição indireta. Isso por-que, no caso concreto, com a assunção do cargo de Prefeito pelo Presidente daCâmara, já não havia mais vacância a justificar as eleições.

Acompanham o Relator, em suas conclusões, os Ministros Ribeiro da Costa(Presidente), Gonçalves de Oliveira, Vilas Boas, Candido Motta, Luiz Gallotti eHahnemann Guimarães.

O Ministro Victor Nunes, juntamente com Evandro Lins e Hermes Lima,vota vencido. O Ministro Victor Nunes, ao apresentar sua argumentação, reiteraposição que já assumira ao julgar as Representações 515 e 600.

O argumento central da tese diz com a compreensão de haver a Constitui-ção de 1946, tal como vigorava ainda em 1964, adotado o princípio daobrigatoriedade da eleição direta para investidura em órgãos de representaçãopopular — art. 134 c/c art. 7º, VII —, salvo a situação de vacância, na segundametade do mandato, do cargo de chefe, e respectivo vice, do Poder Executivo. E,se houvesse vacância na segunda metade do mandato, caberia aos entes federa-tivos decidirem se deveria ocorrer eleição direta, indireta, ou, ainda, não ocorrereleição, assumindo o cargo, até o final do mandato, o presidente do PoderLegislativo.

Em verdade, seria uma regra expressamente prevista para o caso do Pre-sidente da República, mas aplicável simetricamente aos chefes do Poder Execu-tivo dos demais entes da Federação.

De início o Ministro Victor Nunes rebate o argumento — vencedor nessejulgado — de que estaria em questão matéria atinente à organização dos Poderes,tipicamente constitucional e, portanto, própria de ser decidida no âmbito da auto-

68 Interessante citar registro feito pelo Ministro Relator, Pedro Chaves, em “acréscimo aovoto”: “Senhor Presidente, não quero encerrar o meu voto sem manifestar a emoção deum velho juiz e sua admiração pelo que se encerra neste processo. Em última análise éuma homenagem que o Rio Grande do Sul presta à ordem legal. Esse lendário RioGrande, onde as paixões políticas são conhecidas, notórias, vivas, e vão até as armas,abandonou, neste caso, as lanças dos seus gaúchos e entregou o pleito à inteligênciados seus advogados, à cultura de seus juízes, numa verdadeira manifestação de prestí-gio à ordem jurídica, o único caminho, Senhor Presidente, pelo qual a Nação brasileirahá de recuperar os seus passos para o progresso e a glória, no futuro.”

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nomia dos entes federativos, mais especificamente no âmbito da competênciados Estados para organizar a si e aos seus Municípios69.

Pondera, então, o Ministro Victor Nunes que, sem dúvida, na matéria deorganização dos Poderes, há uma parcela de “pura organização”, como, porexemplo, “dizer quais são os poderes e definir-lhes a competência”; porém, noaspecto da investidura dos órgãos instituídos, “o que temos, em verdade, é umproblema misto — sendo também matéria de Direito Eleitoral, de competêncialegislativa da União —, desde que se tenha adotado o princípio de representa-ção popular, como fez a nossa Constituição, ao tornar obrigatória, para osEstados, como para a União, no art. 7º, VII, a forma republicana representa-tiva. E assim é, porque a representação popular só se realiza por meio deeleição. A república representativa não conhece outra forma de representa-ção que não seja a eleição, e a eleição pode ser direta ou indireta”.

Entretanto, como já visto, a Constituição fixara o princípio da obrigatorie-dade da eleição direta para a investidura dos órgãos de representação popular,salvo a exceção nela mesma prevista, de vacância da chefia do Poder Executivona segunda metade do mandato.

Passa, então, o Ministro Victor Nunes a enfrentar outro argumento trazidopelo voto do Ministro Relator, Pedro Chaves, de não ter o Município “o poder deauto-organização, por não ser entidade de natureza política, mas adminis-trativa. Desse argumento, se extrai a conclusão de que o Estado pode dis-por, a seu critério, da forma de investidura dos órgãos da administraçãomunicipal”.

Discordando desse ponto de vista, o Ministro Victor Nunes aponta que a“Constituição vigente garantiu, com maior amplitude do que as anteriores, aautonomia municipal, e a definiu por alguns princípios, entre os quais aeletividade do Prefeito e dos Vereadores, como dispõe o art. 28, I”. Esse prin-cípio, como não poderia deixar de ser, é tratado pelo Código Eleitoral, norma elabo-rada pelo Legislativo federal, mas, como sustentado, aplicável aos Municípios.

Na seqüência de seu voto, o Ministro Victor Nunes passa a discorrer sobresua visão acerca do tratamento constitucional da autonomia dos Municípios,citando trechos de sua célebre tese de concurso para cátedra em ciência política,intitulada “O Município e o Regime Representativo no Brasil — Contribuição ao

69 No regime de então, entendia-se predominantemente, em doutrina e jurisprudência,que a lei orgânica dos Municípios seria lei estadual, inserida na competência legislativaremanescente dos Estados. Mas a Constituição do Estado do Rio Grande do Sul admitiaque Municípios tivessem “Cartas Próprias” (cf. ALMEIDA, Fernanda Dias Menezes.Competências na Constituição de 1988. São Paulo: Atlas, 2005. 3. ed. p. 113).

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Estudo do Coronelismo”, editada comercialmente com o título Coronelismo,Enxada e Voto.

O ponto central sustentado pelo Ministro Victor Nunes quanto à questãoem discussão, discordando da citada posição do Ministro Pedro Chaves, é o deque, desde a Constituição de 1934, nosso Federalismo ganhara a peculiaridade decomportar três níveis distintos de competências privativas, os três já delimitadospela Constituição Federal: o federal, o estadual e, ainda que parcialmente, o mu-nicipal.

Desse modo, não pode norma federal — infraconstitucional — ou esta-dual alterar o constitucionalmente disposto em matéria de competências muni-cipais.

Uma conseqüência dessa conclusão é afastar no caso em julgamento aaplicabilidade da tese, sustentada em obra clássica de Castro Nunes quanto aoregime constitucional de 1891, de ser o Estado-Membro da Federação um “Estadounitário” em relação aos seus Municípios — tese essa que o Ministro VictorNunes já considera discutível mesmo em face da Constituição de 1891 —, porque“ele não tem a liberdade de organizar os seus municípios ao livre critério dolegislador ordinário, sequer da Constituição estadual, mas será compelido àobservância dos princípios que a própria Constituição Federal tem por ine-rentes à organização municipal, como expressivos de sua autonomia, por eladefinida. Um desses princípios é, precisamente, a eleição do Prefeito”.

Outro aspecto objeto da atenção do Ministro Victor Nunes decorre do argu-mento de que a Constituição de 1946 teria eliminado norma que fora prevista naConstituição de 1934, que explicitava a possibilidade de as constituições estaduaisdecidirem entre eleições diretas ou indiretas para Prefeito dos Municípios. Teriaeliminado, mas não vedado expressamente a hipótese.

Esse argumento é refutado pelo Ministro Victor Nunes, ao observar queessa supressão de regra expressa não pode ser destituída de conseqüências edeve ser interpretada como vedação, prevalecendo, também para os Municípios,o princípio geral da eleição direta — e lembra outro caso, em diversa matéria, noqual o Supremo Tribunal Federal já interpretou a lacuna decorrente da supressãode uma norma como possuidora do sentido de vedação da conduta antes expres-samente permitida pela norma suprimida.

Mais um ponto abordado pelo Ministro Victor Nunes diz com a considera-ção do Município como ente político — posição que defende e, neste julgamento,já fora sustentada pelo Ministro Hermes Lima —, ou apenas administrativo —posição sustentada pelo voto do Relator, Ministro Pedro Chaves, e antescelebrizada em entendimento de Francisco Campos.

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Novamente recorrendo a seu Coronelismo, Enxada e Voto, o MinistroVictor Nunes defende a idéia, a partir da “cotidiana evidência dos fatos”, deque, no Brasil, além de administradores, os Prefeitos têm sido, acima de tudo,chefes políticos — e cita exemplos de episódios históricos em reforço da posição,como a substituição de prefeitos, realizada pelo Governo José Linhares, com ointuito de “resguardar a pureza das eleições federais”.

Aliás, a reforçar o caráter político da função de Prefeito, lembra, em rela-ção ao próprio caso em julgamento, que, “sobre a investidura do Prefeito dePorto Alegre, se forma, no País, um clima de tanta agitação política, des-mentido contundente à asserção de que o Município seja exclusivamenteuma célula administrativa”. Lembra, enfim, que “o argumento do caráteradministrativo dos Municípios vem, a rigor, do Império, da Lei municipal de1828, mas essa lei afirmava o caráter administrativo das Câmaras, nãopara lhes negar importância política, mas para lhes recusar atribuiçõesjudiciárias”, diferentemente do que se passava com as Câmaras Municipais doperíodo colonial.

Ainda outro argumento rebatido pelo Ministro Victor Nunes é o de que asucessão do Prefeito pelo Presidente da Câmara não fere o princípio da eleiçãodireta, posto que o Presidente é um Vereador que terá sido eleito pelo povo, aomesmo tempo, como titular potencial do cargo de Prefeito.

Demonstra o Ministro Victor Nunes que tal raciocínio importaria fraude àregra constitucional das inelegibilidades, uma vez que, por hipótese, alguém, parafugir às condições de inelegibilidade específicas dos Prefeitos, poderia eleger-seVereador, sendo alçado à Presidência da Câmara e, posteriormente, à Prefeitura.Ademais, admitir tal argumento seria acolher como regular a eleição indireta paraPrefeito, o que contraria princípio constitucional.

Por fim, o Ministro Victor Nunes afasta o argumento político de que elei-ções diretas na hipótese de vacância do cargo — de Prefeito, no caso — seriam“potencialmente perturbadoras”; pondera que, se, no plano federal, a Consti-tuição prevê eleição indireta para Presidente da República apenas no caso devacância na segunda metade do mandato, é porque considera “potencialmenteperturbadora” apenas eleição direta que se desse na metade final do mandato,o que não se passa no caso em julgamento.

Concluindo, o Ministro Victor Nunes considera inconstitucional o art. 155,parágrafo único, da Constituição estadual gaúcha, ao prever a sucessão do Pre-feito pelo Presidente da Câmara na primeira metade do mandato.

Considera ainda inconstitucional o disposto na Lei Orgânica do Municípiode Porto Alegre, após sua Emenda 7, que previu a eleição indireta de Prefeito nahipótese em comento — a partir de permissivo contido na Constituição estadual

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do Rio Grande do Sul (aliás, diferindo das Constituições dos outros Estados) paraque a Câmara Municipal regule essa matéria —, posto que o Município teria usadosua competência de auto-organização com o mesmo vício de inconstitucionalidade,estabelecendo eleição indireta para sucessão de Prefeito a partir de vacância naprimeira metade do mandato.

Ante a inconstitucionalidade da Constituição estadual e da Lei Orgânicado Município, aponta o Ministro Victor Nunes que a matéria deve ser regida pelanorma federal — o Código Eleitoral, harmônico, de resto, com a ConstituiçãoFederal —, promovendo-se eleição direta para Prefeito e Vice-Prefeito.

Tal fora a decisão, ora objeto de recurso, proferida pelo Tribunal de Justiçado Rio Grande do Sul, que o Ministro Victor Nunes confirma. Porém, como visto,essa posição não prevaleceu no Supremo Tribunal Federal.

Representação 718

Repartição constitucional de competências — Com-petência para desapropriar para fim de reforma agrária —Distinção entre desapropriação com pagamento em tí-tulos da dívida pública e desapropriação com pagamentoem dinheiro.

O Governo do Estado do Rio Grande do Norte, por decreto, com base nãoem lei estadual, mas na Lei federal 4.132/62, que dispõe sobre desapropriaçãopara reforma agrária, editou decreto expropriatório de terras (Decreto 4.527/65),explicitando que as terras seriam desapropriadas para posterior doação, alienaçãoou locação, com preferência garantida aos seus ocupantes.

O Ministro Relator, Gonçalves de Oliveira, invocando jurisprudência daTerceira Turma do Supremo Tribunal Federal, manifesta entendimento de que aUnião tem competência exclusiva para desapropriar, por interesse social, parafins de reforma agrária.

Esse ponto estaria implícito no regime de 1946, tendo sido posteriormenteexplicitado pela Emenda Constitucional 10, e ainda expressamente previsto noart. 157 da Constituição de 1967:

“Art. 157. A ordem econômica tem por fim realizar a justiçasocial, com base nos seguintes princípios: (...) § 1º Para os fins pre-vistos neste artigo, a União poderá promover a desapropriação dapropriedade territorial rural, mediante pagamento de prévia e justaindenização em títulos especiais da divida pública, com cláusula deexata correção monetária, resgatáveis no prazo máximo de vinte

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Ministro Victor Nunes

anos, em parcelas anuais sucessivas, assegurada a sua aceitação, aqualquer tempo, como meio de pagamento de até cinqüenta por centodo imposto territorial rural e como pagamento do preço de terraspúblicas.”

Em seu voto, o Ministro Victor Nunes dá margem a longos debates aopropor interpretação diversa dos artigos em questão, das Constituições Federaisde 46 e de 67. Sustenta o Ministro Victor Nunes que a competência exclusiva daUnião se refere à desapropriação por interesse social, para fins de reforma agrá-ria, com pagamento em títulos da dívida pública, mas que, desapropriando ordina-riamente, com pagamento em dinheiro, poderiam os Estados destinar terras àreforma agrária.

O Ministro Victor Nunes reconhece que as duas leituras dos dispositivosconstitucionais são possíveis, mas entende mais consentânea com os objetivos daConstituição aquela que permite aos Estados executar a reforma agrária comrecursos próprios, observadas as normas federais quanto à política de reformaagrária.

Isso, ademais, reforçaria a Federação: “tenho dúvida, Sr. Presidente, seos Estados, em nossa Federação já tão enfraquecida, ficaram de tal mododestituídos de poderes, que não possam desapropriar terras para experiên-cia de reforma agrária”.

Ante a lembrança da “baderna estadual” de desapropriações, havida noRio Grande do Sul, relatada pelos Ministros Eloy da Rocha e Gonçalves de Oli-veira70, a qual teria levado o Governo de 64 a explicitar na Constituição, pelaEmenda 10, o que já estava implícito na Constituição de 46, reconhece o MinistroVictor Nunes que, “quando se fala em reforma agrária, vem à mente o riscoda subversão, ou o temor dela. Mas há planos de colonização que sãoverdadeiras experiências de reforma agrária com o nome de colonização.Ficariam os Estados impedidos de fazer planos de colonização?”

Argumenta ainda que até particulares podem fazê-lo, com terras privadas.Ao que responde o Ministro Relator, Gonçalves de Oliveira, que a diferença, nessecaso, seria o caráter compulsório da desapropriação. Entende o Relator que a posi-ção do Ministro Victor Nunes, admitindo hipótese mais larga de desapropriação —

70 Em seu voto, acompanhando o Relator, o Ministro Aliomar Baleeiro descreve episódios,pelos interiores do Brasil, de gente armada de metralhadora em defesa de sua terra; reiteraque, nesse momento, o Supremo Tribunal Federal tem de atentar para sua função política,“mais importante do que todas as demais”. O Ministro Evandro Lins também proferevoto, acompanhando o Relator, com forte conteúdo político, criticando a carência deestadistas no País que hajam resolvido a questão agrária e apontando que a “raiz da crisebrasileira está no campo”.

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supostamente não prevista pela Constituição —, importaria, de modo reflexo, res-trição indevida ao direito de propriedade. Comprar, poderia; desapropriar, não.

Em réplica, o Ministro Victor Nunes volta a afirmar que seu posiciona-mento se fundamenta na interpretação de dispositivo constitucional; portanto,sem violação de direitos individuais71.

De todo modo, o Ministro Victor Nunes admite, por outro fundamento, queo decreto em discussão na representação seria inconstitucional, pois não poderiaprever, sem autorização legislativa, a alienação das terras que pretendia fossemdesapropriadas.

A representação é, assim, julgada procedente por unanimidade, apenasdivergindo na fundamentação o Ministro Victor Nunes, seguido pelo MinistroAdaucto Cardoso72.

Representação 515

Observância de princípios da Constituição Federalpor Constituição estadual — Sucessão de vice-governadorem caso de vacância — Ordem de sucessão — Eleiçãoindireta — “Forma republicana representativa”.

Cuida-se de caso que gerou extenso debate e votação disputada, com o votode desempate do Presidente, no sentido do acolhimento da representação.

Questões processuais à parte, discutia-se a constitucionalidade de umaemenda que a Assembléia Legislativa promovera na Constituição do Estado doRio de Janeiro, passando a vigorar a regra de que, na vacância dos cargos deGovernador e Vice-Governador, ou mesmo na vacância simplesmente do cargode Vice-Governador, por ter assumido o cargo de Governador ou por qualquermotivo, a Assembléia elegeria, de modo indireto, portanto, um segundo Vice-Governador.

No caso concreto, o então Governador, Roberto Silveira, falecera, e oVice, Celso Peçanha, assumira o cargo, vindo, no entanto, a renunciar, mas apósa introdução da nova regra pela Emenda.

71 Registre-se, nesse ponto, resposta espirituosa do Ministro Victor Nunes: o MinistroGonçalves de Oliveira ainda reforça: “só a União podia legislar sobre desapropriação,tão sagrado é o direito de propriedade”; e responde o Ministro Victor Nunes: “mas é opróprio Papa, hoje, quem preconiza a reforma agrária!”72 Os Ministros Themistocles Cavalcanti e Adaucto Cardoso já haviam votado vencidosna preliminar, entendendo que não deve ser conhecida representação em fase de decretoexpropriatório, sem caráter normativo.

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Ministro Victor Nunes

O Ministro Relator, Ari Franco, inicia seu voto com interessante digressãosobre a história política do Rio de Janeiro73 e sobre virtudes do parlamentaris-mo74, ressaltando, no entanto, que os Estados permaneciam no regime presiden-cial.

Situa a controvérsia constitucional a partir da regra de que os Estadosdevem reger-se por suas constituições e leis, respeitados princípios estabelecidosno art. 18 da Constituição Federal de 1946, princípios esses enumerados no art.7º, dentre os quais a “forma republicana representativa” (inciso VII, a).

Entende o Ministro Relator que a eleição indireta do Vice-Governador, nostermos da Emenda à Constituição do Estado, viola a forma republicana represen-tativa. Haveria, assim, que se aplicar a regra anterior à emenda, segundo a qual,vagando ambos os cargos, faz-se eleição direta, se na primeira metade do man-dato; indireta, se na segunda — não havendo a figura da eleição indireta de Vice-Governador caso o anteriormente eleito assuma o cargo de Governador.

A esse argumento, o Ministro Pedro Chaves acrescenta o de que a Cons-tituição do Estado do Rio de Janeiro teria quebrado a ordem de sucessão fixadana Constituição Federal, introduzindo entre o Vice-Governador e o Presidente daAssembléia mais um Vice-Governador. “Pouco se nos dá, diante dos termosda Constituição, que tenha havido ou não tenha havido pactos. Os pactos,mesmo dos partidos, não prevalecem contra a Constituição.”

O Ministro Victor Nunes votou vencido, sendo o primeiro voto divergentea ser declarado.

Inicia por frisar que a Emenda se dera antes da renúncia do Vice-Gover-nador, portanto, sem violar qualquer direito do então Presidente da Assembléia,posto não se haver ainda implementado a condição constitucional para que sepudesse considerar Governador. Assim, entende legítimo o momento para altera-ção da ordem sucessória. E lembra, por analogia, o que se passara nos EstadosUnidos, quando se alterara a ordem sucessória para Truman substituir Roosevelt,em 1947.

Quanto ao argumento central, pondera que a Constituição Federal nãodefine o que seja “forma republicana representativa”, o que se interpreta a partirde outros dispositivos constitucionais. E o modelo federal, assim considerado,

73 Criticando lapsos de imaturidade política demonstrada em casos de “dualidade deAssembléias”.74 “Todas as convulsões do Brasil resultaram sempre das eleições presidenciais” —ainda que se mostre decepcionado com o parlamentarismo então praticado no Brasil, dito“híbrido” pelo próprio Primeiro Ministro —, “deixando de lado tudo aquilo que esperá-vamos constituísse tranqüilidade para a Nação”.

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admite a eleição indireta desde que as vacâncias dos cargos de Presidente daRepública e de seu Vice se dêem na segunda metade dos mandatos — tal comose passa no caso fluminense em discussão.

Resta verificar se — superada a questão da violação do princípio da formarepublicana representativa — ainda haveria a Constituição estadual de copiar omodelo federal, não admitindo a hipótese de eleição isolada de um Vice-Governador.

Nesse passo, o Ministro Victor Nunes interpreta o art. 18 da Constituiçãode 1946, acima referido, de modo a não impor que a Constituição Federal sejatomada “como modelo em tudo”. E, rebatendo a invocação de caso precedente,envolvendo a Constituição do Ceará e julgado em 1947, pondera que a normacearense foi julgada constitucional porque seguia o modelo federal; mas daí nãodecorre que fosse obrigada a segui-lo: ou seja, se segue, certamente é constitu-cional; se não segue, ainda assim pode ser. E adota essa conclusão como regra.

E nem se diga que a Emenda em questão violaria atribuições da Assem-bléia, comprometendo a independência do Poder Legislativo: seja com a regra daEmenda, seja com a assunção do cargo pelo Presidente da Assembléia, será aAssembléia a eleger aquele que assumirá o cargo de Governador.

Assim, o Ministro Victor Nunes conclui:

“Não sinto, no caso, qualquer emoção especial, porque supo-nho que não está envolvida neste processo a salus populi. É uma brigade políticos, em que a salvação pública não está em jogo. Mas nãoencontro, data venia qualquer preceito, qualquer princípio da Consti-tuição Federal que tenha sido violado, motivo por que julgo improce-dente a representação.”

Representação 600

Observância de princípios da Constituição Federalpor Constituição estadual — Sucessão de vice-governa-dor em caso de vacância — Eleição indireta.

Este é mais um julgado em que se discute a necessidade ou não de obser-vância do modelo federal quanto a eleições para chefia do Poder Executivoestadual.

No caso, questionava-se a constitucionalidade de ato da AssembléiaLegislativa do Estado da Guanabara, de 25 de abril de 1964, pelo qual se elegeu,por via indireta, novo Vice-Governador (Rafael de Almeida Magalhães), ante acassação dos direitos políticos de Eloy Dutra.

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A representação apontava violações: a) da regra da simultaneidade das elei-ções para os cargos do Poder Executivo (art. 79, § 2º); b) da regra da eleição direta(art. 134); c) da regra de inelegibilidade de Secretários de Estado (art. 139, II, c).

A Constituição do Estado não continha regra expressa sobre eleição antevacância do cargo de Vice-Governador. Previa, apenas, regra de sucessão doGovernador.

Em seu voto vencido, acompanhado pelo Presidente, Ministro Ribeiro daCosta, o Ministro Relator, Luiz Gallotti, julga procedente a representação, enten-dendo que, aplicado o modelo federal, não poderia um Estado eleger apenas novoVice, estando o Governador no seu cargo.

Depois reforça, em esclarecimento, que o ponto fundamental não é apenaso da simultaneidade, mas ainda o fato de ter havido eleição indireta para Vice-Governador, posto que a Constituição Federal a prevê excepcionalmente, paraquando tenha havido vacância dos cargos de Governador e Vice e, cumulativa-mente, que tal vacância tenha se dado na segunda metade dos mandatos. E lem-bra os casos da sucessão de Getúlio Vargas por Café Filho e de Jânio Quadrospor João Goulart, situações em que os cargos de Vice ficaram vagos e não forampreenchidos, ainda que, no caso de Vargas, a vacância se tivesse dado na segundametade do mandato.

O Ministro Victor Nunes, ao votar vencedor, reproduz trechos de seu votona Rp 515, reiterando seu raciocínio de que, nessa matéria, seguir o modelo federalassegura a constitucionalidade, porém não é obrigatório.

Nesse sentido, o modelo federal, adequadamente aplicado, importaria in-constitucionalidade se a eleição para Vice-Governador ocorresse de modo indiretona primeira metade do mandato, pois isso contraria a regra federal, decorrente doprincípio da eleição direta. Já na segunda metade, seria indiferente, em termosconstitucionais, realizar eleição direta ou indireta, ou mesmo não realizar eleiçãonenhuma.

O raciocínio vale para o presente caso. E a regra da simultaneidade davacância, extraída do art. 79, § 2º, da Constituição Federal, não integraria o mo-delo a ser observado obrigatoriamente pelos Estados — “a Constituição, nesteponto, quis deixar liberdade aos Estados”.

A Representação restou julgada improcedente75.

75 Na Rp 604, envolvendo caso análogo ao da Rp 600, agora quanto ao Vice-GovernadorTheodorico Bezerra, do Rio Grande do Norte, o Ministro Victor Nunes, Relator, anunciaque votaria do mesmo modo, porém acaba por julgar prejudicada a representação, pelasuperveniência de novas eleições, findo o mandato dos interessados.

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Memória Jurisprudencial

Representação 561

Regra sobre elegibilidade de governador contidaem Constituição estadual — Violação de princípio cons-titucional da “forma republicana representativa” — Inter-pretação dos princípios constitucionais sensíveis.

Nesta representação, apreciava-se a alegada inconstitucionalidade daConstituição do Estado da Guanabara, ao prever condição de elegibilidade do Go-vernador — residência no Estado por ao menos cinco anos, no decênio anterior àeleição — em desacordo com a Constituição Federal, arts. 138, 139 e 140.

O princípio constitucional violado, a ensejar a representação, seria o da“forma republicana representativa” (art. 7º, VII, a).

O Ministro Relator, Evandro Lins, acolhe a tese da representação, parareconhecer a inconstitucionalidade da Constituição da Guanabara, lembrandoainda precedentes envolvendo a Constituição paulista — Representações 96 e208.

Por sua vez, o Ministro Victor Nunes, entendendo que a definição dasinelegibilidades se insere “no cerne da investidura eletiva” e que a “origemeletiva do poder é inerente à forma republicana representativa”, estendesuas considerações para ponderar que os princípios constitucionais “sensíveis”,ensejadores da representação interventiva, devem ser interpretados de modo in-tegrado com outros dispositivos Constitucionais:

“Já tive ocasião de manifestar, em outra oportunidade, que oprincípio ‘forma republicana representativa’, que se lê no art. 7º, VII,letra a, da Constituição, não tem definição global em qualquer dosdispositivos da Constituição. É um conceito, portanto, que se integracom os demais dispositivos da Constituição que se referem aos princí-pios fundamentais do regime, entre eles, a investidura representativado governo. Evidentemente os casos de inelegibilidade se inserem nopróprio cerne da investidura eletiva, porque podem reforçá-la oucomprometê-la, e a origem eletiva do poder é inerente à forma repu-blicana representativa. O problema da inelegibilidade é, pois, um dosexemplos de integração necessária do art. 7º, VII, da Constituiçãopor outros dispositivos nela contidos. E o legislador ordinário nãotem o poder de criar, a seu arbítrio, casos de inelegibilidade, com orisco de corromper a representação política, cerceando desmedida-mente a escolha do eleitorado.”

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Esse modo de interpretação mostra-se bastante caro ao Ministro VictorNunes, que o reitera em diversas ocasiões, como, por exemplo, nas Representa-ções 423, 467, 512 e 513.

O resultado, nesse caso, foi o julgamento da procedência da representação.

Representação 753

Adaptação de Constituição estadual à Federal, porforça de norma da Constituição de 1967 — Recepçãode normas de Constituição anterior como normas comhierarquia de leis ordinárias.

Ainda envolvendo o tema do Direito Constitucional estadual conflitandocom o federal, há alguns casos que decorrem da norma contida no art. 188 daConstituição de 196776.

Para tanto, a norma federal facilitou o processo de emenda: votação emsessenta dias, em duas sessões; antes, eram exigidas duas sessões ordinárias econsecutivas, o que, na prática, poderia significar meses.

No presente caso, estava envolvida a Constituição de São Paulo. Nãoparece interessante abordar a discussão específica de cada ponto concreto quefoi analisado no julgamento, como, por exemplo, competência de Tribunais deAlçada, vencimentos dos membros do Ministério Público e do Tribunal de Contas,concursos públicos e outras questões de servidores públicos.

No entanto, uma questão com maior relevância em termos doutrináriosdestaca-se da manifestação do Ministro Victor Nunes. A posição predominanteentendia que o art. 188 da Constituição Federal de 1967 determinara a adaptaçãodas Constituições estaduais, em um processo que não se confundiria com o dopoder ordinário de emenda; assim, as regras objeto da reforma, a serem votadaspelas Assembléias Legislativas, deveriam ser aquelas que, explícita ou implicita-mente, houvessem deixado de ser compatíveis com o ordenamento federal.

O Ministro Victor Nunes entende não haver motivos para se impedir que oPoder Constituinte estadual atue quanto a outros pontos, que não aqueles objetode alteração federal, valendo-se do benefício do procedimento mais simplificado.

Nesse sentido, usa o argumento lógico de bastar que o constituinte esta-dual faça uma reforma em dois tempos:

76 “Art 188. Os Estados reformarão suas Constituições dentro em sessenta dias, paraadaptá-las, no que couber, às normas desta Constituição, as quais, findo esse prazo,considerar-se-ão incorporadas automaticamente às cartas estaduais”.

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Memória Jurisprudencial

a) num primeiro momento — promovendo aí estritamente adaptação auma alteração federal —, seria modificada a regra estadual que dispõe sobre oprocedimento de emenda, adotando-se o procedimento federal simplificado;

b) num segundo momento, poderiam ser alteradas outras regras, pelo novoprocedimento, sem o limitante de serem meras adaptações à Constituição Federal,pois essa nova conduta já estaria definitivamente incorporada no Direito estadual,para qualquer caso.

O Ministro Victor Nunes ainda pondera que o sentido de limite impostopelo art. 188 da Constituição Federal se referia ao prazo para a reforma esta-dual, findo o qual as novas normas federais seriam incorporadas automatica-mente.

Pondera que seria desnecessário esse art. 188, se se pretendesse que tam-bém impusesse limite de matéria. Ora, fosse para impor reformas limitadas acertas matérias — considerando-se que, findo o prazo, elas ocorreriam automa-ticamente —, bastava que o art. 188 as determinasse diretamente.

De resto, a inovação desse art. 188 seria o procedimento simplificado, quepersistiria para quaisquer emendas, independentemente de estarem promovendoadaptações às novas normas federais. Até porque, como bem complementa oMinistro Adaucto Cardoso, “o poder constituinte estadual não ficou privadodos poderes de que dispunha antes”. Essa posição, no entanto, restou vencida.

Outro ponto, dentre os vários específicos julgados nessa representação, masque contém mais densidade teórica, diz respeito ao art. 147 da Constituição paulista.

Tal artigo dispunha que as normas da Constituição estadual de 1947, com-patíveis com o novo ordenamento constitucional, seriam recepcionadas como leisordinárias.

A posição majoritária entendia que tal norma, além de fugir dos limites mate-riais da adaptação — consoante interpretação majoritária do art. 188 da Constitui-ção Federal —, mostrava-se incompatível com o ordenamento brasileiro, por im-portar criação de lei ordinária, sem possibilidade de sanção ou veto pelo Executivo.

Discordando, o Ministro Victor Nunes argumenta, sempre com lógica, que,se o poder constituinte, reformando a Constituição estadual, poderia ter mantidocomo normas constitucionais dispositivos até então vigentes — compatíveis como novo regime, por suposto —, por que não poderia tê-los mantido válidos, porémcomo leis ordinárias? É o típico caso de se argumentar que, podendo o mais,poderia o menos.

Todavia, esse art. 147 da Constituição paulista restou julgado inconstitucionalpela maioria, contra os votos dos Ministros Victor Nunes e Evandro Lins.

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Ainda no contexto da adaptação das Constituições estaduais à nova Cons-tituição Federal, podem ser mencionadas a Rp 751, relatada pelo Ministro VictorNunes, e a Rp 746, relatada pelo Ministro Gonçalves de Oliveira.

Porém, nesses casos, a discussão não envolve teses de maior dimensãoteórica, a matizar o pensamento do Ministro Victor Nunes, senão análisesdogmáticas, pontuais e específicas, da compatibilidade de uma série de dispositi-vos da Constituição do Estado da Guanabara, sobre Poder Judiciário, com o dis-posto sobre a matéria na Constituição Federal, como, por exemplo, a competên-cia para o julgamento de Ministros de Tribunais de Contas, critérios para a nomea-ção de desembargadores pelo “quinto constitucional”, competências do Conselhoda Magistratura e da Corregedoria de Justiça, competências do Júri. Fica, pois,apenas esse registro.

Representação 494

Autonomia municipal — Majoração de tributos —Controle dos Municípios pelos Estados — Controle polí-tico pelo eleitorado.

Esta representação tem por alvo diversos dispositivos da Constituição doEstado da Bahia, supostamente atentatórios à autonomia dos Municípios ao dis-porem sobre várias matérias, entre elas: a) julgamento de responsabilidade deprefeitos, pelo Tribunal de Contas, por suas contas; b) necessidade de autorizaçãoda Assembléia Legislativa para que Municípios se associem em busca da soluçãode problemas comuns77 e também para que façam concessão de serviços públi-cos, além da necessidade da concordância da Assembléia Legislativa para queMunicípios possam perdoar dívida ativa, conceder privilégios e isenções, majorarimpostos em mais de 20%, alienar ou aforar bens e celebrar contratos sem con-corrência pública.

O Ministro Relator, Ary Franco, originalmente, vota julgando improcedentea representação, com base nos argumentos apresentados em parecer da Procurado-ria-Geral da República.

Entende, assim, que a Constituição baiana, nos dispositivos impugnados,prevê apenas providências supletivas, representando fiscalização “oportuna,cautelosa e benéfica” por parte da Assembléia Legislativa. Nenhum dos dispo-sitivos conflitaria com a Constituição Federal, não retirando dos Municípios a

77 Esse tema ganha hoje novos contornos com a Lei 11.107/2005, sobre consórciospúblicos.

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eleição de seus prefeitos e vereadores, nem a administração própria, em especiala tributária e financeira, bem como de seus serviços públicos.

Ao votar, o Ministro Victor Nunes promove reparo, entendendo a represen-tação procedente quanto a um aspecto: o art. 104, IV, da Constituição estadual,pelo qual os Municípios não poderão, sem prévia autorização da AssembléiaLegislativa, majorar impostos em mais de 20%. Nesse passo, lembra o MinistroVictor Nunes que, consoante jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, aConstituição estadual não pode limitar a majoração de impostos municipais, es-tabelecendo-lhe teto (cf. RE 45.243, RE 29.285, RE 26.157, RMS 8.392,RE 35.719, RE 35.326, RMS 9.518 e RMS 9.566).

Se a Constituição estadual não pode fazê-lo, mais restritivo ainda seriasubordinar a majoração à decisão do Legislativo estadual. Trata-se de medidainconstitucional, por excluir competência do Município, sem, ademais, impedirdecisões discriminatórias por parte do Poder estadual.

O Ministro Victor Nunes ainda aborda dois outros pontos duvidosos, masque acaba por julgar constitucionais: os incisos II e III do mesmo art. 104, quesubordinam à aprovação da Assembléia Legislativa a concessão, por Municípios,de privilégios e isenções, bem como a alienação ou o aforamento de imóveis.

Lembra aspecto salutar do controle das finanças municipais pelo Estado,que tem a obrigação constitucional de socorrer o Município nas condições previs-tas, para lhe restaurar as finanças, podendo mesmo se valer da intervenção.

Para chegar à sua decisão, o Ministro Victor Nunes cita trecho de estudoincluído em seu livro Problemas de Direito Público, relativo à competência quea Constituição Federal deu aos Estados para a fiscalização da administraçãofinanceira dos Municípios. Entende que, para exercer tal competência, podem osEstados criar órgãos, ou confiá-la a órgãos existentes, como a AssembléiaLegislativa, determinando a forma, o processo e os critérios a que deve subor-dinar-se a fiscalização.

Tais controles sobre a administração financeira dos Municípios, segundo oMinistro Victor Nunes, ainda deveriam, em respeito à autonomia municipal, observarcinco limites, que assim enuncia: “1º, que se refiram à gestão financeira; 2º, quetenham aplicação genérica, não discriminatória; 3º, que condicionem, acaute-lem, mas não vedem a deliberação municipal; 4º, que se limitem a estabelecerpressupostos de legalidade, sem transferir a qualquer órgão não municipalcontrole da conveniência ou oportunidade; 5º, finalmente, (...) que se destinema suprir a impossibilidade de um eficiente controle por parte do eleitorado”.

Sobre esse quinto limite, o Ministro Victor Nunes observa que a Constitui-ção de 1946 “depositou grande confiança no controle político do eleitorado”,

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Ministro Victor Nunes

pois “esse tipo de controle é o único estritamente compatível com o regime deautonomia concebido em termos amplos”.

Esse controle, porém, “só tem eficácia nos casos em que a nova admi-nistração, porventura alçada ao poder pela manifestação das urnas, estejaem condições, senão de reparar, pelo menos de fazer cessar para o futuroos efeitos dos atos danosos da administração anterior”. É o que se passacom leis que reduzam ou majorem impostos, que a todo tempo podem ser modifi-cadas — daí por que julgar inconstitucional o citado inciso IV do art. 104 daConstituição baiana.

Mas a eficácia do controle político do eleitorado não se passa com “asisenções tributárias concedidas por longo prazo, com os empréstimos vul-tosos, com a nomeação de funcionários estáveis ou o aumento de seus ven-cimentos, com a venda de bens municipais, etc.” — daí a conclusão de seremconstitucionais os incisos II e III do mesmo art. 104, ao preverem controles esta-duais sobre concessão de privilégios e isenções, bem como alienação ouaforamento de imóveis pelos Municípios.

Ante a manifestação do Ministro Victor Nunes, o Ministro Relator altera seuvoto, para considerar a representação procedente quanto ao art. 104, IV, julgando-a improcedente nos demais aspectos. Essa foi a posição unânime do Tribunal.

Representação 505

Autonomia municipal — Competência em matériade majoração de tributos.

Trata-se, aqui, da mesma questão envolvendo o inciso IV do art. 104 daConstituição da Bahia, agora juntamente com os incisos I a V e o inciso IX doart. 103.

Nesse caso, o Ministro Relator, Pedro Chaves, vota pela improcedência darepresentação, inclusive quanto ao citado inciso IV, entendendo abrangido pelodever de fiscalizar a administração financeira dos Municípios, “cujo modusfaciendi o art. 22 da Constituição Federal atribuiu aos Estados, em conju-gação com o princípio geral da justiça das imposições tributárias”.

A seu turno, o Ministro Victor Nunes lembra, inicialmente, que tal dispositi-vo já fora unanimemente julgado inconstitucional na Rp 494, com o voto de maisde seis Ministros, inclusive o do Ministro Pedro Chaves. Assim, propõe, com baseno Regimento, que se ponha a votos questão prejudicial quanto à reabertura dodebate sobre o tema no Tribunal.

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Memória Jurisprudencial

Reabertos os debates, e reafirmados argumentos, o Tribunal novamentejulga inconstitucional o dispositivo em questão, contra os votos dos MinistrosPedro Chaves e Hahnemann Guimarães.

Representação 654

Competência municipal em matéria de serviço deágua e esgoto.

Nesta representação, por instância do Município de Salvador, discutia-sesuposta violação da autonomia municipal, decorrente da prestação, pelo Estadoda Bahia, dos serviços de água e esgotos, organizados pela Lei estadual 1.549, de16 de novembro de 1961.

Defendendo sua posição, o Estado sustentava que assim agia desde a dé-cada de 20, por força de convênio celebrado em 1924, envolvendo não apenas oMunicípio de Salvador mas também os de Camaçari, Candeias e São Franciscodo Conde, convênio esse nunca denunciado e ainda contendo cláusula de indeni-zação ao Estado pelos investimentos realizados, em caso de rescisão.

O Município de Salvador admitia não haver formalmente denunciado oconvênio, mas o considerava caduco.

Votando, o Ministro Relator, Vilas Boas, reconhece que, “naturalmente,os serviços de água e esgotos são de peculiar interesse do município78. Se oEstado da Bahia tivesse praticado uma usurpação, se ele tivesse assumidoesse serviço ex propria autoritate, seria o caso de se decretar a argüição deinconstitucionalidade.” No caso concreto, porém, o convênio acarreta não havera inconstitucionalidade pretendida.

Reconheciam a inconstitucionalidade os Ministros Carlos Medeiros ePedro Chaves, pretendendo prestigiar a autonomia municipal, reforçando seucaráter político e sugerindo que o Estado discutisse judicialmente, por vias ordiná-rias, a indenização de que se julgasse credor.

O Ministro Victor Nunes, em seu voto, acompanha o Relator, entendendoque teria havido violação da autonomia municipal se o Estado houvesse assumidoo serviço manu militari, ou ainda que, por meio de lei estadual, houvesse agido à

78 Essa questão, presentemente, vem sendo objeto de discussão; em São Paulo, porexemplo, tendo a Prefeitura da Capital pretendido sustentar essa tese, acabou por preva-lecer o entendimento de caber ao Estado a atividade. No caso, porém, estavam envolvidosargumentos de maior complexidade, como o abastecimento de toda a região metropolita-na, com mais de vinte milhões de habitantes e com mananciais situados fora do territórioda Capital. A matéria encontra-se atualmente em discussão no STF, por força da ADI 2.077.

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revelia da Prefeitura. O convênio, ainda que antigo, afasta a violação do princípioconstitucional invocado.

Caberia, então, ao Município discutir a validade do convênio, o que, toda-via, não cabe na representação, que foi julgada improcedente, contra os doisvotos acima referidos79.

Representação 503

Autonomia municipal — Disposição, por lei esta-dual, sobre critério de partilha de arrecadação de im-posto estadual com Municípios.

Cuidava-se, neste caso, de questão de ordem tributária, igualmente envol-vendo alegação de ofensa ao princípio constitucional da autonomia municipal(Constituição Federal, art. 7º, VII, e, c/c art. 28, II, a), assim como à regra do art.2080, sobre partilha de impostos estaduais com Municípios.

A Lei 4, de 11 de fevereiro de 1960, do Estado do Paraná alterara o critérioempregado para a partilha, com os Municípios, do Imposto de Vendas e Consig-nações: por uma ficção, passou-se a considerar arrecadado o imposto no Municí-pio de origem do produto, como se lá houvesse ocorrido a venda.

Reclamou contra tal lei, ensejando a representação, o Município deParanaguá, que se sentia prejudicado, por representar forte pólo de circulação demercadorias, em virtude do seu Porto.

O voto do Ministro Relator, Gonçalves de Oliveira, julgando procedente arepresentação, registra entendimento de não poder o Estado, por uma ficção,alterar o critério adotado pelo art. 20 da Constituição — o Ministro até admiteque pode não ser o melhor critério —, ao se referir ao Município em que tenhahavido a arrecadação. A lei estadual, desse modo, teria alterado a realidade, emdetrimento do Município em cujo território a arrecadação é feita.

Sustentando tese oposta, os Ministros Vilas Boas e Hermes Lima desta-cam que o critério da lei valoriza o Município produtor da riqueza, o que é coerentecom o sistema constitucional — “a Constituição liga muito a imposição àprodução”, observa o Ministro Vilas Boas.

79 Nessa representação há interessante voto do Ministro Aliomar Baleeiro, discorrendosobre a história do Município de Salvador e sobre sua visão de autonomia municipal.80 Constituição Federal, art. 20: “Quando a arrecadação estadual de impostos, salvo ado imposto de exportação, exceder, em Município que não seja o da Capital, o total dasrendas locais de qualquer natureza, o Estado dar-lhe-á anualmente trinta por cento doexcesso arrecadado”.

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Perfilhando a mesma tese desses dois Ministros, o Ministro Victor Nunestraz um argumento em reforço: o art. 20, ao excluir as Capitais — locais degrande circulação de mercadorias, mas não necessariamente de produção — docritério de partilha, tê-lo-ia feito justamente por adotar o critério de prestigiar oMunicípio produtor de riqueza, que é o Município da origem do produto.

Nesse sentido, o Ministro Victor Nunes lembra o precedente dos Embar-gos em Recurso Extraordinário 30.675, envolvendo lei paulista de idêntico teor —situação em que quem reclamara fora o Município de Santos —, no qual o Tribu-nal, por votação unânime, julgara a lei constitucional. Em face desse fato, o Mi-nistro Relator assume ter, agora, mudado sua posição, prendendo-se a uma inter-pretação mais literal da Constituição.

E contra a leitura literal, o Ministro Victor Nunes argumenta que a Cons-tituição teria a intenção de mencionar, em seu artigo 20, com a expressão “arre-cadado”, não o ato de arrecadar (“fato insignificante”), mas o montante dosimpostos arrecadados no Estado em razão da riqueza produzida. Com essa leitura,caberia ao legislador ordinário precisar o critério da partilha do excesso de arre-cadação, conforme a realidade de cada Estado.

Restam vencidos, no entanto, os Ministros Victor Nunes, Vilas Boas eHermes Lima, sendo julgada procedente a representação.

Recurso em Habeas Corpus 39.708

Aplicação de norma de lei federal sobre crime deresponsabilidade a prefeito — Função política e admi-nistrativa do prefeito.

A questão jurídica debatida neste caso dizia respeito à aplicação subsidiá-ria da Lei federal 1.079/50, em matéria de crime de responsabilidade dos Prefei-tos, por força da Lei 3.528/5981.

Dessa aplicação decorreria regra segundo a qual, pelo crime comum,caracterizado a partir de ato também definido como crime de responsabilidade, oPrefeito só poderia ser processado, na justiça comum, após seu afastamento docargo, por impeachment ou por outra causa.

No caso, buscava o Prefeito de Valparaíso/SP obstar o prosseguimento deinquérito policial. A situação de fato envolvia a compra de dois caminhões peloMunicípio, por determinação do Prefeito, sem audiência da Câmara Municipal,

81 Note-se que o julgamento é anterior ao Decreto-Lei 201/67.

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Ministro Victor Nunes

caracterizando, potencialmente, crime de responsabilidade, sem exclusão deeventual crime comum.

O Ministro Relator, Vilas Boas, vota dando razão ao Prefeito, para afastaro inquérito policial, mas o Ministro Ari Franco levanta tese diversa, entendendoque a abertura do inquérito policial não constituía constrangimento e que o inqué-rito nada tinha a ver com a qualidade do Prefeito.

O Ministro Victor Nunes produz então voto mais longamente fundamentado,invocando precedentes que se aplicavam a determinados aspectos da questão:RHC 38.61982, mais recente e no sentido da tese do Prefeito, e RHC 38.238, emsentido contrário.

Vota o Ministro Victor Nunes pelo provimento ao recurso do Prefeito, po-rém em termos mais amplos do que os do voto do Relator — , que, afinal, acom-panha o voto do Ministro Victor Nunes: “concedo a ordem (...) para cessar oprocedimento criminal até que o Prefeito deixe o cargo, por decisão daCâmara Municipal, em processo de impeachment, ou por qualquer outromotivo”. O provimento, no entanto, é parcial, pois pretendia o Prefeito o reco-nhecimento de ser o impeachment sempre condição para o processamento cri-minal.

Fundamentando seu entendimento, o Ministro Victor Nunes inicia porafastar possível aplicação, aos Prefeitos, de regra própria do regime da Presidên-cia da República. A doutrina mais autorizada — na época — sustenta que aabsolvição do Presidente da República no processo de impeachment — seja aonão ser admitido o processo pela Câmara, seja ao ser decidida propriamente aabsolvição pelo Senado — isenta-o de qualquer outra responsabilização por talilícito. Essa conseqüência não pode ser estendida aos Prefeitos, por decorrer deinterpretação de regra constitucional específica quanto ao Presidente da República. Ea Lei 1.079/50 deve ser aplicada aos Prefeitos apenas “no que couber”.

Isso, ademais, é coerente com o fato de os Prefeitos desempenharem fun-ção substancialmente mais administrativa que o Presidente, “que exerce o po-der político por excelência”.

Com essas considerações, manifesta posição sintetizada assim:

82 Nesse caso, a tese sustentada pelo Relator, Ministro Luiz Gallotti, acompanhada pelaunanimidade de votos do Tribunal Pleno, é a mesma que o Ministro Victor Nunes agoradefende no RHC 39.708. Todavia, naquela ocasião, ao acompanhar o Relator, o MinistroVictor Nunes ressalva sua posição, que entende não ser então oportuno desenvolver, nosentido de que determinadas regras do regime próprio do Presidente de República não seaplicam aos Prefeitos. Isso a seguir será exposto.

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“De primeiro lugar não absolve do processo criminal o Prefeito.O processo criminal contra Prefeito em exercício fica apenas sujeitoa uma dilação, que corresponde à sua permanência no exercício docargo; apenas enquanto estiver no exercício do cargo é que não po-derá ser processado. Se a Câmara Municipal decide contra ele oprocesso de impeachment, acarretando-lhe a perda do cargo, fica oPrefeito, desde logo, sujeito a procedimento penal, inclusive a inqué-rito policial. O mesmo acontecerá se deixar o cargo por outro qual-quer motivo.

Essa doutrina atende, de um lado, ao interesse da repressão dacriminalidade e também protege, por outro lado, o bom desempenhoda função pública. Um delegado de polícia atrabiliário, em cidadede interior, onde o Prefeito esteja em oposição ao Governador, pode-ria tornar impraticável a administração municipal, mediante inquéri-tos sucessivos, com buscas e apreensões, intimações para depor, etc.Dificilmente, o Juiz local poderia conceder habeas corpus para impe-dir, por exemplo, uma busca e apreensão”.83

Note-se que dessa jurisprudência, iniciada com o referido RHC 38.619,decorreu a Súmula 301 — atualmente cancelada: “Por crime de responsabili-dade, o procedimento penal contra Prefeito Municipal fica condicionadoao seu afastamento do cargo por impeachment, ou à cessação do exercíciopor outro motivo”.

É, assim, dado provimento ao Recurso — quanto ao Prefeito84 —, nostermos do voto do Ministro Victor Nunes, contra os votos dos Ministros AryFranco, Pedro Chaves e Hahnemann Guimarães.

Representação 423

Criação de Município — Discussão sobre divisãodistrital como critério para oitiva da população do terri-tório a ser desmembrado — Hierarquia de leis.

É alvo desta representação a Lei estadual fluminense 3.765, de 25 de no-vembro de 1958, que desmembrou, do Município de Vassouras, dois distritos —

83 Esse último aspecto, mais político, do voto é especificamente elogiado pelo MinistroGonçalves de Oliveira, que registra: “Morei muito tempo no interior e, quando o Prefeitoestá em oposição ao Governo do Estado, destaca-se um Delegado para a cidade ecomeça ele a abrir inquéritos absurdos, não permitindo mais que continue a adminis-tração regular do Município”.84 Note-se que há outro recorrente, também paciente no habeas corpus, quanto ao qualé negado provimento ao recurso, por não lhe assistirem as prerrogativas de Prefeito.

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Ministro Victor Nunes

Sacra Família do Tinguá e Paulo de Frontin —, que vieram a constituir o Municí-pio Engenheiro Paulo de Frontin. A representação foi ensejada pelo Município deVassouras, que se julgava prejudicado com a medida.

A polêmica decorre do fato de que a população do distrito de Sacra Famíliado Tinguá votara majoritariamente contra o desmembramento, pretendendo queo distrito continuasse ligado ao Município de Vassouras, enquanto a população dodistrito de Paulo de Frontin, bem mais populoso, votara pela emancipação, levan-do consigo o distrito de Sacra Família do Tinguá.

O Ministro Relator, Henrique D´Avila, com fundamento no texto da Cons-tituição do Estado (“Para a criação de novo Município, serão ouvidos, emescrutínio secreto, os eleitores do território que o deva constituir.”), julgavaimprocedente a representação. Não via relevância na consideração da popula-ção inserta em “distritos”, posto que o Município constitui um único território,sendo a divisão em distritos mera comodidade administrativa.

Travou-se, então, debate com o Ministro Nelson Hungria, que vislumbrava,na hipótese de um distrito de menor eleitorado ser “arrastado pelo outro, contraa sua vontade”, algo “profundamente anti-republicano e antifederativo”.

A isso, respondia o Ministro Relator, Henrique D´Avila: “o que será pro-fundamente anti-republicano e injusto é admitir que o minguado distrito deSacra Família, com sua escassíssima população, possa barrar definitiva-mente o propósito manifestado nas urnas pelo pujante distrito de Paulo deFrontin”.

Votando com o Relator, o Ministro Victor Nunes acrescenta argumento,decorrente de interpretação lógica do texto constitucional, que se refere à vota-ção dos eleitores do “território” do Município a ser criado. Tal “território” nãoprecisa ser coincidente com limites de distritos. Se, no caso, o território do novoMunicípio coincide com o de dois distritos que vão se fundir, isso pouco importa.Será ouvida, como um todo, a população desse “território”.

Restam, todavia, vencidos os Ministros Victor Nunes e Henrique D´Avila,acompanhados ainda dos Ministros Vilas Boas e Gonçalves de Oliveira. A repre-sentação é, assim, julgada procedente.

Em face dessa decisão, foram apresentados embargos — ERp 423 —pela Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro e pelo Município Engenheiro Paulode Frontin — o segundo tendo sua petição indeferida, unanimemente.

Relator dos embargos, o Ministro Luiz Gallotti os rejeita, reafirmando atese vencedora na Rp 423, e confirma o critério não explícito na norma de regên-cia — de que os votos dos distritos devem ser computados separadamente, e nãoconjuntamente, como um só território —, acrescentando que o distrito que votara a

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Memória Jurisprudencial

favor não tinha, por si só, o necessário requisito demográfico de dez mil habitan-tes, a reforçar a invalidade da lei que consagrou a criação do novo Município.

O Ministro Victor Nunes, reiterando sua posição original, vota pelo acolhi-mento dos embargos, para julgar improcedente a representação. Em sua mani-festação, situa a controvérsia em torno de ter a lei impugnada, de criação do novoMunicípio, violado a autonomia municipal. Passa então a analisar essa autonomiatal como tratada em três níveis: Constituição Federal, Constituição do Estado eLei Orgânica dos Municípios (lei estadual).

Quanto à Constituição Federal, inicialmente reitera argumento de que nãose aplica ao caso de desmembramento de Municípios a regra do art. 2º, que tratada impossibilidade de se abolir a Federação, erigindo-se o Estado Federal comounidade intangível.

Em segundo lugar, lembra que a autonomia municipal é definida no art. 28da Constituição Federal, em função do peculiar interesse do Município. “E nuncase sustentou, em boa doutrina, que a criação de novos municípios fosseassunto do peculiar interesse deste ou daquele município”. Trata-se de inte-resse, em princípio, de todo o Estado.

Como terceiro ponto, afasta a idéia de que um distrito “não poderá serprivado de sua vinculação política a determinado município, sem seu con-sentimento”, sendo vítima de espécie de “imperialismo” de distritos maiores.Assim, observa que a criação de novo Município não resulta de ato de distrito,mas de lei estadual, que fala pelo Estado, eliminando-se, pois, a idéia do “imperia-lismo distrital”.

Quanto à Constituição do Estado, a criação do Município em discussãotambém não conteria vícios. Fora ouvida a população do território do novoMunicípio, tal como exige o texto da Constituição estadual, sem descer aodetalhe de se a consulta será feita em conjunto ou separadamente em cadadistrito.

Por fim, quanto à lei estadual que trata da matéria, afasta um primeiroargumento que, analogicamente, invocava a regra de que dois Municípios têmque ser ouvidos isoladamente no caso de sua fusão. Ora, no presente caso,trata-se de um Município só — nem seriam, porventura, dois distritos situados emMunicípios diversos.

Nega também a aplicação, ao caso, da norma da Lei Orgânica dos Municí-pios, lei estadual que trata da fusão de distritos, o que pressupõe que passem aformar um distrito só. Ocorre que, no caso, os distritos não se fundiram; continuamdistritos distintos, porém integrando Município novo.

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Ministro Victor Nunes

Por fim, argumenta que, ainda que tivesse havido contrariedade à LeiOrgânica dos Municípios — o que nega —, esse problema estaria superado pelofato de a lei que aprovou a criação do novo Município ser igualmente lei estadual,posterior àquela e de mesma hierarquia, ainda que trate individualmente de casoespecial.85

No entanto, mesmo com nova composição do Tribunal, a posição do MinistroVictor Nunes resta vencida, agora acompanhada de mais quatro Ministros, tendosido os embargos rejeitados com o voto de desempate do Ministro Presidente.

Representação 583

Criação de Município — Autonomia municipal —Convalidação de vícios no processo de criação anteconcordância do Município do qual houve desmembra-mento — Conflito entre Lei Orgânica dos Municípios elei de criação de Município — Lei em sentido formal elei em sentido material.

Esta representação também se voltava contra lei estadual que aprovara acriação de Município, tida por violadora do princípio constitucional da autonomiamunicipal.

Era o caso da criação do Município de Olho D’Água Grande, Alagoas, emque houvera desrespeito às normas aplicáveis, mas contava-se com a concor-dância expressa do Município de São Braz — via deliberação de sua CâmaraMunicipal —, do qual se origina o novo Município, que seria o potencialmenteprejudicado em sua autonomia.

Essa concordância — como há se de ver na análise de casos mais abaixo —era tida pelo Supremo Tribunal Federal como argumento para negar a inconstitu-cionalidade de leis estaduais por suposta afronta ao princípio da autonomia muni-cipal (cf. infra Rp 507 e Rp 534; em sentido contrário, todavia, cf. infra Rp 574).Esses precedentes são lembrados pelo Ministro Relator, Victor Nunes, em seuvoto.

85 Nesse passo, ao ser argüido pelo Ministro Relator, Luiz Gallotti, pronunciou-se, emobservação que merece registro, manifestando relevante opinião: “Então, cada vez quese criar um município em desconformidade com a lei orgânica, esta ficará alterada (...)”(Ministro Luiz Gallotti). “Não há, no Direito Constitucional brasileiro — a não seragora, com a lei institucional do regime parlamentarista, prevista no Ato Adicional, de2-9-1961 —, qualquer distinção entre as leis ordinárias, no sentido de se colocarqualquer delas acima das outras. E falo com a maior insuspeição, porque tenho defen-dido a necessidade de haver, no Brasil, essa diferenciação. Escrevendo a respeito da

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Memória Jurisprudencial

Nesse sentido, o Ministro Victor Nunes, relatando o caso, já vê razão paraa improcedência da representação.

No entanto, observa que, neste caso, há ainda outro argumento, de maiorpeso, para o julgamento de improcedência86: não houvera violação da Constitui-ção estadual, mas sim da Lei Orgânica dos Municípios — à qual era constitucio-nalmente delegado dispor sobre a criação de Municípios —, com natureza de leiordinária, a mesma de cada lei de criação de Municípios.

Configura-se, pois, a situação hipotética lançada pelo Ministro VictorNunes, como argumento nos Embargos à Representação 423, em que lei especialde criação de Município contraria a Lei Orgânica. Retoma-se, assim, ao longo dovoto do Ministro Relator, Victor Nunes, a polêmica sobre a hierarquia da LeiOrgânica (cf. supra análise da Rp 423) e sobre seu conflito com eventual leiestadual de criação de Município.

O Ministro Luiz Gallotti, apoiado por outros Ministros, como HahnemannGuimarães, sustentando que a lei de criação de Município seria lei apenas emsentido formal, argumenta que ela não pode se sobrepor à Lei Orgânica.

O Ministro Victor Nunes, por sua vez, observa que a lei especial e posteriordeve prevalecer no caso concreto, sem, no entanto, eliminar a norma geral. Essapolêmica, com mais detalhes, resta nítida no seguinte trecho:

“O Sr. Ministro Victor Nunes (Relator): A lei orgânica obriga asmunicipalidades, porque, pela Constituição, são elas organizadas nos termosdessa lei.

O Sr. Ministro Luiz Galotti: Mas, se produzem, em lei, um sentido ma-terial, condições para que o Poder Legislativo crie municípios, está-se limi-tando a atuação do Legislativo na elaboração de leis meramente formaisque criam municípios.

criação de organismos regionais ou intermunicipais, para execução de determinadosserviços públicos, como aproveitamento de quedas d’água, transportes, açudagem, etc.,sustentei, em trabalho doutrinário, que seria conveniente uma reforma constitucionalque desse às leis de criação de tais organismos uma categoria superior, de modo quenão pudessem ser modificadas pelo voto da simples maioria relativa das assembléiaslegislativas; convinha que tivéssemos mais imaginação, para fugir à classificaçãorígida que herdamos da tradição do nosso Direito Público. Mas o fato é que não existe,até hoje, entre nós, distinção entre leis ordinárias, salvo o exemplo recente da leiinstitucional do regime parlamentarista, que, pelo Ato Adicional, deve ser votada pelamaioria absoluta da Câmara e do Senado” (Ministro Victor Nunes).86 Cita, em consonância com sua tese, o precedente consistente na Rp 578, julgada em 22de março de 1965, Relator o Ministro Vilas Boas.

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Ministro Victor Nunes

O Sr. Ministro Victor Nunes (Relator): O Poder Legislativo não seobriga a si mesmo para o futuro, salvo por emenda constitucional ou porum tipo especial de lei, cuja votação também especial lhe dê categoria maiselevada na hierarquia das leis.

O Sr. Ministro Hahnemann Guimarães: Não é possível que se crie ummunicípio por lei especial que se afaste da lei orgânica.

O Sr. Ministro Victor Nunes (Relator): Peço vênia para lembrar ameu eminente Mestre Ministro Hahnemann Guimarães que todo o campode direito excepcional, que confere privilégios ou vantagens especiais,como são as pensões individuais, repousa em leis que se têm denominadoformais. Mas essas leis, embora se refiram a casos concretos, revogam dis-posições de lei geral. E não deixamos de aplicá-las, porque são da mesmahierarquia das leis gerais, já que votadas pelo Congresso com as mesmasformalidades. Dentre as leis votadas com as mesmas formalidades, nenhumadelas é superior à outra.”

Neste caso, acaba por prevalecer a posição do Ministro Relator, VictorNunes, julgando-se improcedente a representação, contra os votos dos MinistrosLuiz Gallotti, Hanhemann Guimarães, Gonçalves de Oliveira e Prado Kelly.

Representação 632

Conflito entre Lei Orgânica dos Municípios e lei decriação de Município.

A questão da subordinação ou não da lei estadual de criação de Municípioaos mandamentos da Lei Orgânica dos Municípios é mencionada nesta represen-tação, a qual foi julgada procedente, por votação unânime.

Em seu sintético voto, o Ministro Victor Nunes acolhe a representaçãopelo fato de a Assembléia Legislativa — no caso, da Paraíba — haver admitidonão terem sido provadas as condições exigidas no Direito estadual para a criaçãodo Município de Assunção.

No entanto, na motivação, reitera seu entendimento de não estar a Assem-bléia Legislativa, ao aprovar a criação de novo município, subordinada às normasda Lei Orgânica dos Municípios, em que pese reconheça a reiteração de julgadosdo Supremo Tribunal Federal em sentido contrário. Essa tese, de qualquer modo,não é relevante para a solução deste caso.

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Memória Jurisprudencial

Representação 657

Conflito entre Lei Orgânica dos Municípios e lei decriação de Município.

Igualmente na Representação 657 está em questão prevalência ou não daLei Orgânica dos Municípios em caso de criação de municípios. Tratava-se dacriação do Município de Lagoa Salgada, no Rio Grande do Norte, por Lei estadualde 1962.

Ao votar, o Ministro Relator, Victor Nunes, ressalva o seu ponto de vistapessoal em sentido contrário (cf. Rp 583) e segue o posicionamento firmado peloTribunal (Rp 575 e Rp 664), no sentido de prevalecer o disposto na Lei Orgânica87.

Todavia, neste caso os votos são posteriormente retificados, para julgar-seprejudicada a representação, posto ter sido, pela Constituição estadual de 1967,ratificada a divisão administrativa do Estado então vigente.

Representação 507

Criação de Município — Autonomia municipal —Concordância do Município do qual houve desmembra-mento.

Esta representação refere-se ao caso da criação dos Municípios de AnitaGaribaldi e Campo Belo do Sul, ambos desmembrados do Município de Lages.Argumentava-se que, nas áreas dos novos Municípios, não havia vinte mil habi-tantes, tal como exigido pela Constituição do Estado de Santa Catarina e pela LeiOrgânica dos Municípios. Tal fato era negado pela Assembléia Legislativa.

Relatando o caso, o Ministro Victor Nunes situa a hipótese de cabimentoda representação na alegação de violação do princípio da autonomia municipal(art. 7º, VII, e, da Constituição Federal).

À parte a questão da controvérsia quanto à prova da população dos novosMunicípios, o Ministro Victor Nunes pondera que, no caso, não há nenhum Muni-cípio cuja autonomia tenha sido violada, assim como nenhum Município reclamouda criação desses dois novos — quem protestara perante a Procuradoria-Geralda República, ensejando a representação, foram moradores de um dos distritosenvolvidos no desmembramento.

87 Há debates renovados no voto do Ministro Eloy da Rocha, que não alteram, contudo,o entendimento majoritário.

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Ministro Victor Nunes

Aliás, ambos foram criados a partir de desmembramento do território doMunicípio de Lages, e o foram mediante deliberação da própria Câmara Municipalde Lages. Assim, houve prévia aquiescência do único ente com qualidade parareclamar — o Município de Lages88. De tal qualidade não desfrutam distritos,posto não terem autonomia federativa a ser preservada pela Constituição — nocaso, por meio da representação interventiva.

Desse modo, o Ministro Relator, Victor Nunes, votou pela improcedênciada representação, tendo sido acompanhado pela unanimidade do Tribunal.

Vale lembrar que, nessa época, o sistema concentrado de controle deconstitucionalidade consistia na representação dita interventiva, por configurarpressuposto de intervenção federal em algum Estado, ante violação de determi-nados princípios constitucionais.

Assim, não se trata de uma discussão em abstrato quanto à constituciona-lidade da lei estadual de criação dos novos Municípios, mas sim de uma discussãoda constitucionalidade dessa lei no que diz respeito à eventual violação do princípioconstitucional invocado, no caso, o da autonomia municipal.

Representação 534

Criação de Município — Autonomia municipal —Concordância do Município do qual houve desmembra-mento.

Também nesta representação, relatada pelo Ministro Victor Nunes ejulgada improcedente pela unanimidade do Tribunal, prevaleceu a tese consagra-da na Rp 507, acima relatada.

A ementa bem sintetiza a tese:

“Não se pode falar em ofensa à autonomia municipal, quandoo próprio município, que seria prejudicado pela criação de novos,propôs o desmembramento, em forma regular, à Assembléia Legislativaestadual. Improcedência da representação contra a criação dos Mu-nicípios de Guabiruba e Botuverá, em Santa Catarina.”

88 Nesse sentido, os precedentes invocados pelo Procurador-Geral da República — Rp275 e Rp 296, relativas ao reconhecimento da inconstitucionalidade da criação dos Muni-cípios de Santo Amaro da Imperatriz e de Araguari, ambos em Santa Catarina, em razão dainsuficiência de população — não se aplicam, pois nesses casos não ocorrera concordân-cia dos Municípios dos quais haveria o desmembramento, tendo sido esses mesmosMunicípios que demandaram a representação.

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Memória Jurisprudencial

Representação 586

Criação de Município — Autonomia municipal —Concordância do Município do qual houve desmembra-mento.

Reafirmando o mesmo argumento, porém levando à conclusão da proce-dência da representação, ou seja, da inconstitucionalidade da lei de criação deMunicípio, votou o Ministro Victor Nunes neste caso.

Trata-se da criação dos Municípios de Morros da Mariana e Bom Princípiodo Piauí, desmembrados do Município de Parnaíba.

Conforme alegações do Procurador-Geral da República na representação,houve violação de normas da Constituição do Estado sobre a criação de Municí-pios — limite temporal para alteração da divisão administrativa do Estado — eviolação do princípio da autonomia municipal — previsão de instalação dos novosMunicípios sob governo de Prefeitos nomeados pelo Governador, até realizaçãode eleições.

O Ministro Victor Nunes vota com o Relator, Ministro Luiz Gallotti, regis-trando:

“Acompanho o voto do eminente Relator, pela procedência darepresentação, tendo em vista que a argüição de inconstitucionalidadefoi formulada pelo próprio Município desfalcado (Parnaíba). Nãofora esta circunstância, eu julgaria improcedente a representação,como votei em casos anteriores”.

Representação 574

Criação de Município — Autonomia municipal —Concordância do Município do qual houve desmembra-mento — Decisão divergente das anteriores.

Em mais este caso veio à tona o argumento segundo o qual o consentimentodo Município do qual se desmembra um novo afasta a procedência de represen-tação contra a criação do novo Município, ainda que fundada a representação emviolações de outras normas que regem a matéria. Contudo, aqui o argumento nãoprevaleceu.

Cuidava-se, neste caso, da criação do Município de Piau, por desmembra-mento do Município de Goianinha, no Rio Grande do Norte.

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Ministro Victor Nunes

O Ministro Relator, Evandro Lins, reconhece a inconstitucionalidade doprocesso de criação do Município, por desrespeito à norma da Constituição esta-dual que impunha requisitos de população, número de moradias, receita, dispo-nibilidade de prédio para funcionamento da Prefeitura e existência de certosserviços de utilidade pública.

O Ministro Victor Nunes, a seu turno, invocando os precedentes da Rp 507e da Rp 534, lembra que houve a aquiescência do Município desfalcado, tal comoadmitido pela Assembléia Legislativa do Estado89, mesmo que a Assembléia en-tenda, como manifestou no processo, ter sido inconstitucional a criação do Muni-cípio — em que pese tenha, em época anterior, aprovado a lei de criação. Nãoapenas teria havido a aquiescência do Município de Goianinha, como ainda, emnenhum momento antes ou durante o processo, teria esse Município protestadocontra a criação do Município de Piau.

Lembra o Ministro Victor Nunes que “o princípio da Constituição Fe-deral que está em jogo neste processo de representação é o da autonomiamunicipal. Esse princípio é que se integra com os requisitos estabelecidospelo direito estadual para a criação de novos Municípios. Mas, se o Muni-cípio que teria sido desfalcado, cuja autonomia teria sido ofendida, está deacordo com esse desmembramento, poder-se-á falar em violação do direitoestadual, mas não do princípio constitucional da autonomia municipal”,não procedendo, assim, a representação.

O Ministro Victor Nunes, todavia, votou vencido, juntamente com os Mi-nistros Gonçalves de Oliveira, Vilas Boas e Candido Motta, tendo, nesse caso, oTribunal julgado procedente a representação.

Representação 513

Criação de Município — Autonomia municipal —Concordância do Município do qual houve desmembra-mento — Critério para interpretação mais ampla dosprincípios constitucionais sensíveis.

Cuidava-se da criação do Município de Pontas de Pedras, em Pernambuco,com alegada violação da Constituição estadual.

89 O que entende ser prova suficiente, não havendo, nos autos, o documento específicocom a deliberação da Câmara Municipal. Registre-se, ainda que não seja relevante deta-lhar, para a compreensão da tese discutida nesse processo, o extenso debate entre osMinistros Evandro Lins e Victor Nunes sobre ter ou não a Câmara Municipal de Goianinhaconsentido com a criação do Município de Piau, havendo dúvida se o consentimento sereferia ao Município de Tibau do Sul.

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Memória Jurisprudencial

Nessa representação, a questão de mérito não provocou maiores debates:estava claro o desatendimento de normas da Constituição estadual. Vale apenasressaltar, do voto do Ministro Victor Nunes, a aplicação do entendimento queexplicitara na Rp 423, na Rp 512 e na Rp 467, acima analisadas, no sentido de que“os enunciados do art. 7º, VII, da Constituição Federal — princípios queensejam a representação interventiva — são, por vezes, genéricos. Devem ser,portanto, complementados, quando for o caso, com outros da própria Consti-tuição Federal, ou das constituições estaduais. Está nesta situação o problemada autonomia municipal, cuja noção, definida no art. 29 da ConstituiçãoFederal, é complementada por dispositivos das constituições estaduais”.90

Representação 617

Criação de Município — Autonomia municipal —Saneamento de falhas formais ante aprovação de leiestadual.

Cuidava-se, nesta representação, do desmembramento de parte do territó-rio do Município de Poá, para anexação ao Município de Suzano, no Estado deSão Paulo.

A discussão judicial originou-se do fato de ter havido recurso à AssembléiaLegislativa — medida prevista na Lei Orgânica dos Municípios — quanto aoplebiscito realizado, mas ter a Assembléia, sem decidir o recurso, aprovado leisobre a anexação do território em questão.

O Ministro Relator, Hermes Lima, vislumbra inconstitucionalidade no fato,por não terem sido observados todos os requisitos para a anexação, posto quenão se concluíra adequadamente o plebiscito, ainda pendente de recurso.

Em seu voto, o Ministro Victor Nunes argumenta para demonstrar que, nocaso, teria havido descumprimento do Regimento Interno da Assembléia, e nãoda Lei Orgânica dos Municípios:

90 Nesse caso, há rápido mas interessante debate entre três Ministros, acerca da conve-niência política da criação de novos Municípios: “Sr. Presidente, vou abrir uma exceçãopara acompanhar o voto do eminente Sr. Ministro Relator, acolhendo a representação.Sou muito a favor da divisão dos Municípios para que melhor defendam os benefíciosrecebidos da União, os quais de maneira mais eficaz chegam a eles com essaretalhação” (Ministro Vilas Boas). “Estamos com mais de três mil Municípios, a maiorparte dos quais não se pode manter” (Ministro Hahnemann Guimarães). “Um bom crité-rio seria talvez não dar a quota do imposto de renda senão aos Municípios que tivessemdez anos de existência” (Ministro Gonçalves de Oliveira). “Acolho a representação nocaso” (Ministro Vilas Boas ). Vale observar a extrema atualidade das ponderações doMinistro em face dos 5.564 Municípios hoje existentes.

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Ministro Victor Nunes

“A mesma maioria (de Deputados), que poderia rejeitar o re-curso, implicitamente o rejeitou ao aprovar a lei. O que deixou dehaver, portanto, foi o julgamento explícito do recurso. Terá sido, as-sim, uma infração ao Regimento da Assembléia, porque o julgamentodo recurso não foi explícito, mas implícito”.

Nesse caso, cinco Ministros, inclusive o Presidente, votaram pela proce-dência da representação, e quatro pela improcedência — entre eles, VictorNunes. Assim, o resultado foi não ter havido quorum para a declaração dainconstitucionalidade.

1.4 Direitos fundamentais

Extradição 232 — Segunda

Extradição — Revolução Cubana — Ausência degarantias institucionais — Distinção entre motivo ou fimpolítico e crime político — Descaracterização, comocrime político, de atos de barbaria e vandalismo.

Cuida-se de caso em que se julgava pedido de extradição, formulado peloGoverno de Cuba, sob o comando de Fidel Castro, recém-instalado no poder.

Esse caso mereceu do Ministro Victor Nunes, em seu voto como Relator,considerações mais detalhadas, inclusive em termos do Direito internacional, sobreo cabimento da extradição e, indiretamente, sobre o direito ao asilo.

Pleiteava o Governo cubano a extradição de nacional seu, asilado no Brasil,primeiro sob asilo diplomático, em seguida convertido em asilo territorial. O Gover-no brasileiro concedera o asilo por ser o indivíduo alvo de “perseguição política”,conforme reconhecido pelo Ministério das Relações Exteriores brasileiro.

Esse cidadão cubano, Arsênio Pelayo Hernandez Bravo, na qualidade desoldado, integrara patrulha sob comando de oficial (Capitão Mirabal), em defesado governo Fulgêncio Batista, contra as forças revolucionárias lideradas por FidelCastro.

Tal patrulha era acusada de haver detido três indivíduos que promoviamataque a certa posição governista — um motorista, um estudante ferido e ummédico que o socorria. O médico fora morto no ato, a coronhadas, pelo CapitãoMirabal, e os demais, levados a um cemitério, onde foram metralhados pelapatrulha — inclusive o cadáver do médico.

Nessas circunstâncias, o cidadão cubano, sustentando seu direito a não serextraditado e permanecer asilado, fundamenta sua defesa em dois pontos: a) a

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Memória Jurisprudencial

existência de pena de morte e a possibilidade de ser julgado por tribunal de exce-ção em Cuba; e b) o caráter político do crime de que era acusado.

Tanto a situação institucional do país que pleiteia a extradição como anatureza do crime podem ser motivos para o indeferimento do pedido.

Analisando o primeiro bloco de argumentos, o Ministro Victor Nunes lem-bra, em primeiro lugar, que, conforme o Direito brasileiro (Decreto-Lei 394/3891),a existência de pena de morte no país que demanda a extradição não é impeditivoabsoluto, podendo ser superado mediante compromisso de comutação da pena demorte em pena de prisão.

Todavia, ao aplicar essa regra ao caso concreto, entende o Ministro VictorNunes que a “situação revolucionária existente em Cuba não oferece plenagarantia a essa ressalva, tanto mais que não há, entre os dois países, tratadode extradição”. A reforçar seu temor, há o fato de que o citado Capitão Mirabal,detido em Cuba pelo novo Governo, já viera a ser fuzilado.

Em segundo lugar, quanto à questão do tribunal de exceção — motivoexcludente de extradição nos termos da Lei brasileira —, a dúvida que se apre-senta, no caso, seria o fato de não se pretender julgar o extraditando em tribunal deexceção, mas sim na justiça regular, a qual, todavia, dada a situação revolucionária,não se poderia supor garantidora de julgamento conforme o devido processo.

Sobre esse aspecto, pondera o Ministro Victor Nunes:

“Pela ratio legis, as duas situações se aproximam. A falta de ga-rantias, que se presume no tribunal de exceção, é que fundamentaaquela ressalva ao princípio geral da extradição. E a falta de garan-tias, real, é que compromete os próprios tribunais comuns duranteuma situação revolucionária, em que o governo se reserva poderesdiscricionários. No primeiro caso, a configuração do próprio órgãojudicante é que obsta a extradição; no segundo, é a ambiência polí-tica, agitada pelo espírito da revolução, e marcada pela ilimitaçãodos poderes do governo, que pode comprometer o funcionamento dospróprios tribunais ordinários. Em uma ou em outra situação, está emrisco a liberdade, a segurança ou a vida do extraditando, e são essesbens superiores que a lei quer proteger quando veda a entrega dequem vai ser julgado por juízo de exceção”.

Na seqüência, reforçando seu pensamento com argumentos extraídos doponto de vista do direito ao asilo, outra face do problema da extradição, o MinistroVictor Nunes invoca a lição dos internacionalistas Caicedo Castilla e Filadelfo

91 Atualmente, ver o Estatuto do Estrangeiro — Lei 6.815/80.

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Ministro Victor Nunes

Azevedo sobre o “perigo” e a “urgência” como elementos justificadores do asilo.No contexto da América, os períodos de anormalidade constitucional e instabili-dade política e social devem ser considerados na análise do perigo que ameaça oasilado e da urgência de que se reconheça tal direito.

No mesmo sentido, lembra o Ministro Victor Nunes as idéias desenvolvidasno âmbito da IV Reunião do Conselho Interamericano de Jurisconsultos, daOrganização dos Estados Americanos, realizada em Santiago do Chile, em1949, da qual participou como representante do governo brasileiro.

As circunstâncias acima analisadas, quanto à pena de morte e ao julgamentosem garantias, verificadas na situação revolucionária de Cuba e que, no caso pre-sente, justificaram a concessão do asilo — conclui parcialmente o Ministro VictorNunes —, já são suficientes para negar-se a extradição pleiteada.

Entretanto, prossegue na análise do segundo ponto levantado como argu-mento pela defesa, relativo ao caráter político do crime invocado como justifica-tiva para a extradição.

Primeiramente, lembra que, por ocasião da concessão do asilo, o Ministériodas Relações Exteriores reconhecera ser o cidadão alvo de perseguição política, oque não se confunde com ser acusado da prática de crime político.

O crime político, a obstar a extradição, é definido, nos termos do Decreto-Lei 394/3892, pelo critério da prevalência, o qual é passível de críticas por serdeficiente, na medida em que “é muito difícil verificar se o elemento políticoestá em situação inferior em relação ao comum, ou vice-versa”.

Observa o Ministro Victor Nunes que critério semelhante, valendo-seda noção de prevalência, é proposto pelo Instituto de Direito Internacional:excluir-se-iam da definição de crime político as infrações mistas ou conexas,quando “se trate de crimes mais graves, sob o ponto de vista da moral e dodireito comum”, e ainda, no que diz respeito aos atos executados durante umaguerra civil, são excluídos da definição de crime político quando “constituamatos de barbaria e vandalismo proibidos pelas leis de guerra”.

Essa noção é criticada pela Comissão Jurídica Interamericana — órgãotécnico permanente do Conselho Interamericano de Jurisconsultos, acima referi-do —, pela dificuldade de aplicação do critério da prevalência, mas admite aComissão a adequação da idéia de que, embora com fim político, um delito

92 “Art. 2º, § 1º: A alegação do fim ou motivo político não impedirá a extradição,quando o fato constituir, principalmente, uma infração comum da lei penal, ou quandoo crime comum, conexo dos referidos no inciso VII (infração puramente militar, contraa religião, crime político ou de opinião), constituir o fato principal.”

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Memória Jurisprudencial

“crudelíssimo ou bestial” não afeta o interesse “de determinada ordem polí-tica, mas o da própria humanidade”. E é “o espírito humanitário dos povosamericanos” que “constitui a essência ética do asilo nos países latino-americanos”.

O Ministro Victor Nunes ainda cita as conclusões de trabalho da Comis-são Jurídica Interamericana — que qualifica de “magnífico” —, conclusões es-sas que consubstanciam sugestões à XI Conferência Interamericana:

“1) São delitos políticos as infrações contra a organização efuncionamento do Estado.

2) São delitos políticos as infrações conexas com os mesmos.Existe conexidade quando a infração se verifica: (1) para executarou favorecer o atentado configurado no número 1; (2) para obter aimpunidade pelos delitos políticos.

3) Não são delitos políticos os crimes de barbaria e vandalismo,e em geral todas as infrações que excedam os limites lícitos do ataquee da defesa.

4) Não é delito político o genocídio, de acordo com a Convençãodas Nações Unidas.”

Com base nessas idéias, aplicadas ao caso concreto, assim se posiciona oMinistro Victor Nunes quanto ao aspecto do crime político:

“Recorrendo ao item 3 dessa conceituação e tendo em vista alei brasileira (art. 2º, § 1º, do DL 394, de 1938), não me parece que ocrime de homicídio, ainda que durante uma guerra civil, praticadocontra três prisioneiros — um estudante ferido, o médico chamado asocorrê-lo e o motorista que os conduzia — deva ser tido por crimepolítico, para excluir pedido de extradição”.

No entanto, pelos motivos anteriormente expostos na primeira parte de seu voto,indefere o pedido de extradição, sendo acompanhado pela unanimidade do Tribunal.

Extradição 27493

Julgamento histórico: Caso Stangl — Regime na-zista — Extradição — Reciprocidade — Competência epreferência ante multiplicidade de pedidos de extradição —Comutação de pena — Genocídio — Julgamento regu-lar — Crime político e cumprimento de ordem superior.

93 Julgada em conjunto com Ext 272, Ext 273 e HC 44.074.

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Ministro Victor Nunes

Este caso reveste-se de extrema relevância tanto em termos históricos,como pela profundidade do voto proferido, como Relator, pelo Ministro VictorNunes. Consta até mesmo como um julgamento histórico no rol apresentado pelosítio de internet do Supremo Tribunal Federal.

Trata-se dos pedidos de extradição formulados pela República Federal daÁustria (Ext 272), pela República Popular da Polônia (Ext 273) e pela RepúblicaFederal da Alemanha (Ext 274), sendo extraditando Franz Paul Stangl, de nacio-nalidade austríaca, acusado do crime de genocídio — ou, como será visto, emdadas circunstâncias tipificado como homicídio qualificado — durante a SegundaGuerra Mundial.

Stangl, oficial das Forças SS, foi diretor do instituto de extermínio deHartheim (Áustria) e comandante dos campos de extermínio de Sobibór eTreblinka (Polônia), durante o período de ocupação nazista.

O Relatório apresentado pelo Ministro Victor Nunes em seu voto, descre-vendo as ações praticadas pelo extraditando, assim como as atrocidades em ge-ral, ocorridas naquelas localidades, é tão preciso e completo, que não se mostraconveniente tentar aqui sintetizá-lo. Impõe-se sua leitura na íntegra, no anexodesta obra94.

Considerando-se que os pedidos de extradição formulados pelos três paísesreferem-se à mesma pessoa e, em grande parte, aos mesmos fatos — assimcomo o referido habeas corpus, que, adiante-se, restou julgado prejudicado emface da decisão dos pedidos de extradição —, foram todos julgados de modoconjunto, até porque uma das questões a ser apreciada diz respeito à preferênciaentre os países no caso de procedência.

Passa então o Ministro Relator, Victor Nunes, com extrema clareza egrande profundidade de idéias tanto em termos de doutrina jurídica como emtermos de compreensão da política internacional, a abordar os vários aspectoslevantados nas manifestações dos interessados, sistematizando seu voto em capí-tulos, com o critério que será respeitado nesta análise.

Reciprocidade:

O primeiro aspecto abordado pelo Ministro Victor Nunes diz respeito àdeclaração de reciprocidade — fonte reconhecida do direito de extradição, nafalta ou na deficiência de tratado95.

94 Recomendável também a leitura do parecer sustentado pelo Procurador-Geral daRepública, Professor Haroldo Valladão.95 Ver, no Direito vigente, quanto a esse e aos demais pontos sobre extradição, o Estatutodo Estrangeiro — Lei 6.815/80.

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Memória Jurisprudencial

A defesa alegava a insuficiência das declarações constantes dos autos,por não ter havido seu referendo pelo Congresso Nacional.

A questão se põe pelo fato de a Constituição de 1967 exigir, em seu art. 83,VIII, o referendo parlamentar para atos internacionais.

Todavia, pondera o Ministro Victor Nunes que o melhor entendimento paraesse dispositivo constitucional é o de referir-se a atos de que resultem obrigaçõespara o Brasil.

Assim, quando muito caberia discutir a necessidade da aquiescência doCongresso para compromissos de reciprocidade oferecidos pelo Brasil quandopretender pedir extradição.

Mas a simples aceitação de promessa de reciprocidade, formulada porEstado estrangeiro quando pleiteia extradição, não envolve obrigação para nós.

O processo de extradição envolve, como condição prévia, a decisão favo-rável do Supremo Tribunal Federal. A partir daí, a obrigação do Executivo deefetivar a extradição “só existe nos limites do direito convencional”. “Emconseqüência, a simples aceitação da oferta de reciprocidade não criaobrigação para o Brasil, não dependendo essa aceitação de referendum doCongresso”.

Comutação da pena:

Sustentava a defesa que o compromisso assumido pelos Estados reque-rentes, de comutar a pena de morte, que já havia sido abolida na Áustria e naAlemanha, teria ainda de abranger a comutação da pena de prisão perpétua —vedada pela Constituição brasileira — para pena de prisão temporária.

Quanto a essa alegação, sustenta o Ministro Victor Nunes, citando diver-sos precedentes do Tribunal, ser correto o entendimento de o Direito brasileironão admitir extradição que sujeite o extraditando a penas inadmissíveis no Brasil.O mesmo sentimento de humanidade que inspira o Direito extradicional é o queleva o Direito Constitucional a renegar tais penalidades.

Assim, tem razão a defesa ao apontar a falta do compromisso de comu-tação da pena de prisão perpétua. Trata-se, todavia, de falta suprível: “se o Tribu-nal conceder a extadição, subordinada a esse compromisso, o governo bra-sileiro o exigirá antes de efetuar a entrega do acusado”. A lei condiciona acomutação à entrega do extraditando e não ao julgamento da admissibilidade dopedido.

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Competência:

Esse ponto fora levantado pela Alemanha, impugnando a competência daÁustria para pleitear a extradição, mediante o princípio da nacionalidade ativa: aotempo dos crimes, Stangl era alemão, em virtude do regime do Anchluss, e areaquisição da nacionalidade austríaca só teria ocorrido por força de lei de 1945,sem efeito retroativo.

Conclui, no entanto, o Ministro Victor Nunes que a competência da Áustrianão se vê abalada por esse argumento, por dois motivos.

Em primeiro lugar, o regime imposto com a anexação da Áustria acar-retou uma nacionalização compulsória; uma vez restabelecida a soberania aus-tríaca, deu-se a restauração da nacionalidade dos austríacos que já a tinhamantes do Anchluss. Admitir que os tribunais austríacos, em julgamentos queenvolvam nacionalidade, tivessem de discriminar três períodos, separando-osem dois blocos — de um lado, o período da ocupação; de outro, o períodoanterior e o posterior —, levaria, ao menos para efeitos penais, a conseqüênciasextravagantes.

Nem se argumente com o princípio da irretroatividade da naturaliza-ção, prestigiado pelo Direito brasileiro, no sentido de se evitar que a natura-lização seja usada como fraude para beneficiar-se da regra da não-extradi-ção de nacionais. Ora, no caso, a naturalização, no regime do Anchluss, foracompulsória.

Em segundo lugar, a regra — sustentada em Direito extradicional — queleva ao julgamento do acusado no país de que é nacional fundamenta-se na maiorgarantia que provavelmente encontrará em sua própria Justiça. E essa regra sófaz sentido considerando-se a atual nacionalidade do réu, não eventual nacionali-dade pretérita.

Sendo, pois, austríaco o extraditando, incontestável a competência da Áustriapara o pedido.

Por outro lado, esse fato não afasta a competência da Alemanha, incidindoaqui outro princípio, posto que o extraditando teria praticado seus atos a serviçodo governo alemão, seja na qualidade de estrangeiro, seja, como pretendeu oregime da época, na qualidade de alemão.

Esgotando o ponto, o Ministro Victor Nunes observa que “a extraterrito-rialidade das leis da Alemanha e da Áustria, fundada no princípio da nacio-nalidade ativa, não destoa do Direito brasileiro”.

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E, ainda, nenhum desses países está disputando sua jurisdição com o Brasil.A Justiça brasileira poderia, eventualmente, ser tida por competente em funçãodo princípio da universalidade, pretendidamente aplicável em casos de genocídio.Porém, tal princípio nem foi adotado integralmente pela Lei brasileira, que remetea matéria para convenções internacionais, nem constitui ele norma obrigatória deDireito internacional.

Genocídio:

A questão suscitada neste ponto diz com a invocação do princípio dairretroatividade das leis em matéria penal.

Isso porque, após a prática dos atos, os crimes imputados ao extraditandovieram a ser qualificados como “genocídio”, em Convenção que foi ratificada,entre outros países, pelo Brasil — Lei 2.889/56.

“A conceituação nova, na categoria de violação do DireitoPenal internacional, resulta da gravidade sem par desses crimes,que ofendem a própria humanidade e são cometidos em massa,freqüentemente por inspiração e com o auxílio da máquina governa-mental”.

No entanto, “na tipificação do crime de genocídio estão compreendi-das outras figuras delituosas — especialmente o homicídio, que já se en-contrava nos códigos de todos os povos civilizados”.

A extradição de Stangl é pedida com fundamento no homicídio qualificado,que sempre esteve previsto, tanto na legislação brasileira, como na dos Estadosrequerentes.

Julgamento regular:

Lembra, a propósito, o Ministro Victor Nunes que “a isenção do Estadorequerente, para garantia de um julgamento regular, é sem dúvida impor-tante no Direito extradicional”, tanto que o Supremo Tribunal Federal já negaraextradição por considerar que, de fato, a situação política e social do Estadorequerente não oferecia garantias suficientes — foi justamente o caso de Cuba,acima analisado (Ext 232).

Porém, no presente caso, Alemanha, Áustria e Polônia “têm tribunais regu-lares, funcionando normalmente”, levando à “presunção de julgamento regular”.

Pondera ainda o Ministro Victor Nunes que a “possibilidade de julga-mento parcial ou irregular só é impedimento à extradição quando resulteevidente”.

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Ministro Victor Nunes

Não fosse assim, nunca haveria extradição, posto que qualquer dos princí-pios envolvidos na definição do país legitimado a requerê-la, em alguma medida,levaria à suposição de parcialidade: a) no caso do princípio da territorialidade,poder-se-ia cogitar que o abalo social é maior nos próprios lugares em que secometeu o crime; b) no caso do princípio do Estado que sofreu os efeitos docrime, poder-se-ia supor faltar imparcialidade; c) quanto ao princípio da naciona-lidade, caberia indagar se não haveria julgamento favorecido ao nacional.

Por força dessas cogitações teóricas, há quem defenda a competência deEstados neutros para julgar, o que, concretamente, não é admitido pelo Direitobrasileiro. Enfim, o Ministro Victor Nunes observa que pareceria a solução maisadequada a jurisdição de tribunais internacionais, a qual, contudo, não fora aindainstituída.

Levando ao extremo todos os argumentos cogitados, o Brasil teria de ne-gar a extradição, chegando, no entanto, em face da falta de sua própria compe-tência, à solução absurda de uma concessão de asilo político, deixando impunesos crimes praticados pelo extraditando — que, de resto, não se enquadram nacategoria de crimes políticos, a ensejar asilo, como será visto a seguir.

Desse modo, conclui o Ministro Victor Nunes que o ponto do “julgamentoregular” não é, no caso, impeditivo da extradição.

Crime político:

Também não cabe, no caso, a exceção do crime político, admitida peloDireito brasileiro.

Em primeiro lugar, rebate um argumento da defesa no sentido de que aConvenção sobre o Genocídio, que veda a caracterização de genocídio comocrime político, seria posterior aos atos praticados pelo extraditando, de modo anão poder ser aplicada no caso, dado o princípio do nullum crimen, nula poenasine lege.

Quanto a isso, observa o Ministro Victor Nunes que nem a extradiçãopode ser considerada pena96, para fins de aplicação do tal princípio, nem é neces-sário, como já visto, invocar a tipificação de genocídio para que se caracterizemcomo crimes os atos do extraditando.

Ainda por outras razões, tais atos não podem ser considerados, no casoconcreto, crime político: a alegada motivação política do agente e o fato de ter

96 O Ministro Victor Nunes cita Hildebrando Accioly: “a extradição não é uma pena,traduzindo, no mais das vezes, o reconhecimento, pelo Estado concedente, de sua faltade competência para julgar a infração”.

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agido em nome de governo não têm a conseqüência de caracterizar um crimecomo político.

Ademais, o Ministro Victor Nunes lembra sólida doutrina e jurisprudência —inclusive o caso de Cuba acima analisado — para afastar o caráter político decrimes cometidos com crueldade, “barbaria” e “vandalismo”.

Ordem superior:

Quanto a esse argumento, o Ministro Victor Nunes de plano pondera:

“A justificativa do cumprimento de ordem superior igualmentenão levaria, só por si, à recusa dos pedidos sob julgamento. Suaaplicação, em termos irrestritos, aos chamados crimes de Estado re-sultaria em completa impunidade para criminosos cruéis”.

A Lei brasileira restringe o alcance da “ordem superior” como excusativa,posto que não elimina a culpabilidade nos casos de cumprimento de ordem mani-festamente ilegal. “E não se comprovou ainda que a ordem de matar prisio-neiros, inocentes ou não, e enfermos hospitalizados, ou de exterminar ju-deus em massa, mediante processos de horrenda eficiência, tivesse sidoautorizada por lei do Estado nazista”.

Nesse sentido, o voto segue relatando, com base em julgamentos já reali-zados de criminosos nazistas, que as ordens de extermínio quando muito se com-provavam em documentos políticos ou em manifestações individuais de autorida-des, mas nunca em norma legal.

Conforme a doutrina penal, pode-se presumir o conhecimento da ilegalidadepela condição pessoal do agente. “E Stangl era um graduado servidor dapolícia judiciária que, em razão do cargo, não deveria desconhecer a le-gislação da Alemanha sobre o homicídio”.

Além disso, o conjunto de medidas tomadas nos campos de extermínio “paramanter as vítimas inscientes do seu destino e para eliminar vestígios materiaisda carnificina é presunção mais forte ainda de que os dirigentes e executoresdessa política não ignoravam a criminalidade do seu procedimento”.

Por fim, ainda que se argumente, em defesa do extraditando, que sofrera“coação moral” de seus superiores, isso caracteriza “problema de prova cujoexame compete ao juízo da ação penal e não ao da extradição”. De qual-quer modo, pouco evidente ser esse o caso de Stangl, um comandante de camposde extermínio, com rápida ascenção no partido nazista e altamente recomendado,por seu superior, a ser promovido em virtude de ser “seu melhor chefe de campode concentração”.

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Ministro Victor Nunes

Prescrição:

Na seqüência de seu voto, após percorrer e superar tópicos — Suficiên-cia da acusação e Documentação — que diziam respeito a questões formais doprocesso e parecem menos interessantes para esta análise, o Ministro VictorNunes passa a analisar, detalhadamente, a prescrição quanto ao pedido de cadarequerente.

A propósito, vale lembrar que sua análise é feita à luz do direito comum,sem reflexo do tratamento convencional e legal do crime de genocídio, posterioraos fatos. Fosse o caso de genocídio, surgiria a questão de o Brasil ter abolido aprescrição — interpretação com a qual, de todo modo, o Ministro Victor Nunesnão concorda.

A análise quanto à prescrição envolve a consideração da regra vigente noDireito brasileiro, buscando-se no Direito dos países requerentes os institutosequivalentes aos que aqui interrompem a prescrição e investigando-se, no casoconcreto, o desenrolar de cada processo, relativo a cada grupo de crimes.

Dada a minúcia a que desce o voto, analisando o Direito brasileiro daépoca e as regras do Direito alemão, polonês e austríaco, assim como os detalhesdos processos contra o extraditando naqueles Estados, é o caso apenas de regis-trar as conclusões: a) quanto ao pedido da Alemanha, que envolve os crimespraticados em Treblinka, verificou-se não ter incidido a prescrição; b) no caso dopedido da Polônia, reconheceu-se ter havido prescrição, julgando-se o pedidoimprocedente; c) quanto ao pedido da Áustria, reconheceu-se a prescrição noque diz respeito aos processos pelos crimes de Treblinka e Sobibór, restandoapenas não atingidos pela prescrição os crimes de Hartheim.

Preferência:

Resta, para concluir o voto, analisar, entre os requerentes Áustria e Ale-manha — uma vez que já se verificara a improcedência do pedido da Polônia, porprescrição —, quem teria a preferência para receber o extraditando.

Preliminarmente, o Ministro Victor Nunes define posição quanto a ser com-petência do Supremo Tribunal Federal decidir sobre a preferência, discordando doProcurador-Geral da República, que entendia ser competência do Executivo —que, no caso, a teria transferido ao Tribunal, ao encaminhar os pedidos semdefini-la. O Ministro Victor Nunes faz a interpretação do texto constitucional —Constituição de 1967, art. 114, I, g —, que prevê a competência do SupremoTribunal Federal para “julgar” a extradição, como incluindo toda a matéria perti-nente à legalidade, aí englobada a decisão sobre a preferência, conforme os cri-térios legais.

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E são dois os critérios apreciados, segundo a Lei brasileira, para que sedefina a preferência: territorialidade e gravidade da infração. Recorde-se que, aessa altura do julgamento, estavam em questão apenas o pedido da Áustria quantoaos crimes de Hartheim, no território austríaco, e o pedido da Alemanha quantoaos crimes de Treblinka, no território polonês.

Quanto ao critério da territorialidade — território no qual a infração foicometida —, a Áustria teria preferência em relação aos crimes de Hartheim.

No tocante aos crimes de Treblinka, a Alemanha alegou tratar-se de ter-ritório sob a “soberania do Reich Alemão, na qualidade de potência deocupação”, na época da prática dos atos. Além disso, invocou, em sua defesa, aConvenção de Haia sobre leis e costumes da guerra terrestre.

Todavia, concordando com o Procurador-Geral da República, o MinistroVictor Nunes não aceita o argumento da Alemanha. É certo que a Alemanhaassumira, de fato, a autoridade do poder legal em território polonês durante aocupação. Porém não ocorreu a efetiva anexação do território polonês, que nãodeve ser, portanto, considerado território alemão.

Resta ainda o critério da gravidade da infração, que, mostra o MinistroVictor Nunes, deve ser aferida segundo a Lei brasileira.

Um dos aspectos a ser assim considerado é a gravidade da pena, queguarda correspondência com a do delito. Tratando-se, no caso, de delitos do mes-mo tipo, nessa aferição há que considerar a gravidade in concreto.

Dessa forma, reconhece o Ministro Victor Nunes ser “indiscutível que asinfrações penais cometidas em Treblinka foram muito mais graves do que asde Hartheim97, inclusive, como foi observado no memorial da Alemanha,porque não se poderia, em relação a Treblinka, invocar a eutanásia parauma possível, embora remota, qualificação de homicídio privilegiado.Cabe, pois, à Alemanha a preferência para a extradição, já que recusamoso julgamento pela Áustria quanto aos fatos de Treblinka”.

E acrescenta ainda que, definida a preferência, a Lei brasileira prevê quepode ser estipulada condição de entrega ulterior do extraditando a outros reque-rentes — no caso a Áustria — para julgá-lo pelos crimes de Hartheim.

97 Verifica-se, pelo Relatório, que Hartheim era estabelecimento médico “destinado àeliminação coletiva e metódica de insanos mentais e de pessoas idosas, fracas ou inca-pacitadas para o trabalho, bem como as consideradas politicamente perigosas”; asmortes lá havidas são da escala de uma dezena de milhar de pessoas. Já Treblinka eraespecificamente um campo de extermínio, no qual morreram mais de setecentas mil pessoas,tendo sido registrado o maior índice de mortes no período da administração de Stangl.

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Ministro Victor Nunes

Em conclusão, vota pela autorização da extradição à Alemanha, medianteo compromisso de ser convertida a pena de prisão perpétua — caso ela venha aser aplicada — em pena de prisão temporária, entregando-se o extraditando,ulteriormente, à Áustria, mediante o mesmo compromisso. O voto é acompanhadopela unanimidade dos Ministros.

Recurso em Mandado de Segurança 12.468

Intervenção do Estado no domínio econômico —Limites ao direito de propriedade.

Neste caso, discutiu-se essencialmente a possibilidade de intervenção doEstado no domínio econômico, nos termos do art. 14698 da Constituição de 1946,e seus limites em face do direito fundamental à propriedade.

Tratava-se de medida imposta pela Comissão de Abastecimento e Preçosdo Estado – COAP a sociedade proprietária de moinho de trigo e de indústria derações balanceadas, a qual aproveitava resíduos de sua produção no moinho.

Na época, a atividade de moagem de trigo era objeto de intensa intervençãodo Estado: a instalação de moinhos estava sujeita à autorização estatal e a produçãosubmetida a controle estatal quanto à distribuição, por força da Lei 1.522/51.

Insurgia-se a impetrante contra limite que lhe fora imposto pela COAP emtermos de percentual de mistura dos resíduos da produção da moagem de trigonas rações balanceadas. Argumentava ser proprietária dos resíduos e que equi-valeria à expropriação de sua produção ser compelida a vendê-los a seus concor-rentes, sem com isso poder destiná-los à fabricação própria de rações.

O Ministro Relator, Hahnemann Guimarães, entende estar amparada noDireito a medida estatal interventiva.

A seu turno, o Ministro Pedro Chaves produz voto contundente enxergandoabuso na medida estatal, a qual importaria afronta ao direito de propriedade99. Éacompanhado pelos Ministros Candido Motta e Ribeiro da Costa.

98 “Art. 146. A União poderá, mediante lei especial, intervir no domínio econômico emonopolizar determinada indústria ou atividade. A intervenção terá por base o inte-resse público e por limite os direitos fundamentais assegurados nesta Constituição.”99 Em debates com o Ministro Victor Nunes, o Ministro Pedro Chaves observa: “deconcessão em concessão, vamos abolindo todos os direitos individuais garantidos pelaConstituição”, apontando que, como próximo passo, o governo passaria a “regular odinheiro que está depositado nos bancos e dá-lo-ia aos pobres ou emprestá-lo-ia ajuros módicos”.

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Memória Jurisprudencial

O Ministro Victor Nunes vota acompanhando o Relator e acrescenta aná-lise assentada nos seguintes pontos:

a) a intervenção do Estado no domínio econômico está amparada pelo art.146 da Constituição de 1946, sendo disciplinado pela Lei 1.522/51;

b) essa Lei, entre outras medidas, admite a fixação de preços e o controledo abastecimento (art. 2º, b); esse controle, por sua vez, é um complexo de ope-rações variadas, uma das quais consiste em regular a distribuição dos produtosentregues ao consumo;

c) na regulação da distribuição, poderia o órgão competente tanto fazê-lodiretamente (por exemplo: “os moinhos produtores de farelo e farelinho po-dem usar tantos por cento desses produtos na sua industrialização própria;o restante tem de ser colocado no mercado”) ou, como fez neste caso, deter-minar que “os moinhos só podem preparar ração no limite de tantos porcento da sua produção de farelo e farelinho”;

d) esse ato não se confunde com requisição ou desapropriação.

A essa análise jurídica, acrescenta fundamento econômico:

“(...) Que ocorreria nesse regime de oligopólio da moagem detrigo, se a administração ficasse indiferente ao problema da distri-buição do produto, especialmente dos resíduos? Se não fosse possí-vel ao Estado regular a distribuição dos resíduos, somente os moi-nhos, dentro de alguns anos, poderiam fabricar rações balanceadas,porque só eles disporiam da matéria-prima. Qual seria a conseqüên-cia? Teriam de fechar as portas os pequenos e médios fabricantes deração.

(...)

Não sei quantas fábricas de rações balanceadas há no Brasil,mas, se os moinhos não forem, de algum modo, compelidos a vendera matéria-prima (se assim se pode chamar ao farelo e ao farelinho),essas fábricas terão de fechar as portas. Onde comprar farelo e fa-relinho, senão nos moinhos, que beneficiam todo o trigo em cascaimportado com autorização do Governo? Se cada moinho resolvermontar sua fábrica de rações balanceadas, nenhum deles, por iniciativaprópria, venderá matéria-prima às outras fábricas de ração.”

E, respondendo ao Ministro Pedro Chaves, que vislumbrava necessidadede previsão específica em lei para que fosse fixada a medida imposta à recor-rente no caso concreto, o Ministro Victor Nunes complementa o raciocínio ante-rior e manifesta entendimento de que a Lei 1.522/51 já contemplava a hipótese

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Ministro Victor Nunes

nas competências genéricas da COAP, aliás com certa margem de discriciona-riedade:

“Para evitar que o oligopólio da moagem também se convertano oligopólio da produção de rações balanceadas, o órgão adminis-trativo competente estabeleceu um critério de distribuição, para ga-rantir o funcionamento das outras fábricas de rações. Não me cabe,como juiz, dizer se errou na percentagem, mas, apenas, dizer se oórgão agiu dentro da faculdade que a lei lhe confere. Por outro lado,presumo que agiu com vistas ao interesse público, salvo prova emcontrário.

Por essas razões, lamento divergir do caloroso e veemente votodo eminente Ministro Pedro Chaves. Também sou muito respeitadordos direitos consagrados na Constituição, mas não me parece, nestecaso, que tenha havido violência. É a própria Constituição que auto-riza a lei a conferir a órgãos da administração pública poderes comoesses, cuja extensão estamos examinando”.

A maioria do Tribunal acabou por acompanhar o Relator, negando provi-mento ao recurso, contra os votos dos Ministros Pedro Chaves, Ribeiro da Costae Candido Motta.

Recurso Extraordinário 41.710

Liberdade de pensamento e liberdade de ensino —Curso livre — Poder de polícia.

Este caso traz um acórdão sucinto, em que declarou voto apenas o Relator,Ministro Victor Nunes. De todo modo, comporta uma interessante aplicação daliberdade de ensino e de pensamento.

Tratava-se de curso de enfermagem, teórico, por correspondência, que teveseu funcionamento proibido pelo Serviço Nacional de Fiscalização da Medicina.

O ato baseou-se em parecer da Consultoria Jurídica do Ministério da Edu-cação e Cultura, sustentando-se em dois principais fundamentos: a) o curso eradirigido por um químico e um bacharel em Direito — portanto, em desacordo coma formação profissional exigida pelo Decreto 27.426/49; b) o curso poderia seraté perigoso, por ludibriar a boa-fé de terceiros.

É de se notar que o Serviço Nacional de Educação Sanitária não vira, emparecer anteriormente expedido, inconveniente na realização do curso.

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Memória Jurisprudencial

Levando a questão ao Judiciário, a entidade que ministrava os cursos logrouêxito em primeira instância e no Tribunal Federal de Recursos. Reconheceu oTFR que “a atividade do Instituto impetrante não contraria a lei em coisaalguma. Se os seus diplomas não têm validade, isso não significa que ocurso não possa funcionar”.

Em seu voto, observa o Ministro Victor Nunes que as exigências, suposta-mente violadas, do Decreto 27.426/49 referiam-se a “cursos autorizados oureconhecidos, não para cursos livres, de que não resultam garantias legais”.Não pretendendo o impetrante — ora recorrido — expedir diploma ou certificadode habilitação, não estaria violando as normas das leis de educação e formaçãoprofissional invocadas.

Quanto ao exercício do poder de polícia sanitária, o órgão competente —como acima visto — já afirmara não ver inconveniência no curso.

Desse modo, restaria apenas uma razão de ordem jurídica a eventualmen-te indicar o fechamento do curso: evitar que possivelmente terceiros fossem ludi-briados quanto ao alcance do curso.

Mas esse aspecto deve ser cotejado com outro:

“está envolvida, neste processo, a liberdade de pensamento,como a liberdade de ensino. Esse direito não podia ser cerceado apretexto de nocividade tão duvidosa, que foi negada pelo próprioDiretor do Departamento Nacional de Saúde”.

Com essas considerações, o Ministro Relator, Victor Nunes, vota pelonão-conhecimento do recurso extraordinário, com base na Súmula 400100, sendoacompanhado pela unanimidade dos Ministros da Turma.

Recurso Extraordinário 37.142

Direito de propriedade — Confisco de bens paraindenização de guerra — Caráter regulamentar comoexigência para decreto ser objeto de recurso extraordi-nário.

100 “Decisão que deu razoável interpretação à lei, ainda que não seja a melhor, nãoautoriza recurso extraordinário pela letra a do art. 101, III, da Constituição Federal”(de 1946).

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Ministro Victor Nunes

Neste recurso extraordinário estava envolvida a aplicação do Decreto-Lei 4.166/42, que autorizou o confisco de bens e direitos dos súditos alemães,japoneses e italianos, pessoas físicas ou jurídicas, para que respondessem pelosprejuízos resultantes de atos de agressão dos países do Eixo durante a SegundaGuerra Mundial. Essa responsabilidade seria subsidiária, caso os respectivosgovernos não satisfizessem cabalmente as indenizações.

Em 1946, encerrada a Guerra, considerando-se que Alemanha, Japão eItália não haviam satisfeito até então — nem estavam em condições de fazê-lo —as indenizações, criou-se, pelo Decreto-Lei 8.553, Comissão de Reparações deGuerra, incumbida de propor, especificamente, confisco de bens dos súditos ale-mães, japoneses e italianos.

No caso dos autos, foi baixado, em 1948, o Decreto 25.069, efetivando oconfisco do imóvel situado na Rua Barão de Jaguaribe, 413, adquirido por cidadãoalemão em nome de sua mulher — que figura como recorrida no processo. Aquestão suscitada pela União Federal, após ter a recorrida logrado êxito peranteo Tribunal Federal de Recursos, dizia respeito à ofensa aos Decretos-Leis 4.166/42e 8.553/46 e ao Decreto 25.069/48.

Votando como Relator, o Ministro Victor Nunes confirma a interpretaçãodada na instância anterior aos referidos Decretos-Leis, no sentido de não possuí-rem como efeito a concretização do confisco. O primeiro claramente autorizou,mas não determinou, desde logo, o confisco. Isso é reforçado pela própria razãode ser do segundo, que objetivava a identificação concreta de bens e direitos aserem objeto da medida, visto que as indenizações ainda não haviam sido honra-das pelos países em questão. Ainda assim, o segundo também não declarou deimediato o confisco.

Foi justamente com o Decreto executivo de 1948 que se decidiu efetivar oconfisco do imóvel da recorrida. Todavia, na data em que foi baixado, “já estava emvigor novo regime constitucional e suspenso desde muito tempo o estado deguerra. Não era, pois, admissível, por simples ato administrativo, decretar-se aperda de propriedade individual”.

Assim, o recurso não foi conhecido, pelo voto unânime da Turma, afasta-dos os fundamentos apontados pela União: a) quanto à alegada violação dosDecretos-Leis citados, por força da Súmula 400 — cf. nota de rodapé anterior;b) e também quanto à suposta violação do Decreto 25.069/48, pois “não podeser apontado como texto de direito federal violado, para efeito de recursoextraordinário. Falta-lhe a categoria de ato regulamentar, que é integranteda própria lei”.

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Memória Jurisprudencial

Mandado de Segurança 7.711

Princípio da motivação obrigatória das decisões judiciais.

Neste mandado de segurança, impetrado em face de ato do Tribunal Supe-rior Eleitoral, pretendia o impetrante101 fosse considerado sem nenhum efeitoacórdão daquele Tribunal, por faltar-lhe a fundamentação de fato e de direito,devendo ser lavrado novo acórdão, com a conseqüente contagem de novo prazopara que lhe pudessem ser opostos embargos.

O problema teria decorrido de contradição entre o que dispunha o acórdão,ao enunciar a conclusão do julgado, e os votos então proferidos, como constamdas notas taquigráficas.

O Ministro Relator, Vilas Boas, após tecer considerações sobre a naturezados votos e do acórdão — como expressão da vontade de cada juiz e do tribunal —e sobre a origem da força material da coisa julgada — “que está no parecerfundamentado de cada juiz” e não necessariamente em texto de acórdão queeventualmente não exprima a verdadeira decisão, podendo ser corrigido102 —,vota pelo provimento ao mandado de segurança, determinando a substituição doacórdão.

O debate que se travou no Plenário envolvia fundamentalmente aspectosde Direito processual, quanto aos fatos havidos no caso e ao recurso cabível parasanar o erro em questão, cuja não-interposição impediria o cabimento do mandadode segurança.

O Ministro Victor Nunes, a seu turno, traz ponto de vista mais abrangente,invocando noção atualmente situada com clareza no plano constitucional dos direitosfundamentais, a partir de desdobramentos do sentido de devido processo legal, con-sistente no “princípio legal da motivação obrigatória das decisões judiciais”.

Lembra, primeiramente, que o Tribunal Federal de Recursos, já tendo en-frentado situação semelhante, inseriu em seu Regimento norma segundo a qual,“no caso de divergência entre o acórdão lavrado e o que informam as notastaquigráficas, prevalecem estas”.

E prossegue:

“Há razões muito valiosas para que o Regimento do TribunalFederal de Recursos tenha disposto daquela maneira e o Senhor

101 Candidato a Deputado Estadual no Rio Grande do Sul, pelo Partido Republicano, oqual, ante anulação de votos pela Justiça Eleitoral, teria restado sem direito a nenhumacadeira na Assembléia Legislativa.102 “O mandado de segurança é, lato sensu, um recurso constitucional e pode serimpetrado quando há direito líquido e certo a amparar”.

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Ministro Victor Nunes

Ministro Relator concluído pela mesma forma. Segundo preceitua oCódigo de Processo Civil, no art. 118, parágrafo único, ‘o juiz indi-cará na sentença ou despacho os fatos e circunstâncias que motiva-ram o seu convencimento’. Abriga tal preceito a regra de que todadecisão judiciária deve ser motivada, e significa isso que tem dehaver coerência entre a conclusão e os seus motivos determinantes.Com mais forte razão, como o acórdão resulta da apuração dosvotos, os quais exprimem e resumem, como ponderou o SenhorMinistro Relator, é preciso que na apuração desses votos hajacoerência entre o que eles dispõem e o que dispõe o acórdão.

Assim, a meu ver, o mandado de segurança impetrado temapoio no princípio legal da motivação obrigatória das decisões judi-ciárias. É tão imotivada uma sentença cuja conclusão seja contradi-tória com as premissas, quanto um acórdão cuja conclusão seja con-traditória com os votos tomados na assentada do julgamento.

Acompanho, pois, o voto do Senhor Ministro Vilas Boas.”

No entanto, o Ministro Victor Nunes e o Ministro Relator, Vilas Boas, votamvencidos. Negam os demais Ministros a segurança, por serem cabíveis, no caso,os embargos declaratórios.

Recurso em Mandado de Segurança 9.963

Igualdade — Concurso público — Distinção pelocritério de gênero.

Os fatos tratados neste caso envolviam critérios para admissão em con-curso público. Vale destacar, no entanto, não os aspectos discutidos quanto aoregime jurídico de servidores públicos, mas sim a questão constitucional envolvi-da: o direito de igualdade.

Esse recurso foi interposto por cidadão que iniciara o concurso para aprofissão de parteira e dele fora excluído sob o fundamento de que o concursoseria apenas acessível a mulheres.

Votando, o Ministro Relator, Gonçalves de Oliveira, invoca o art. 141, § 14,da Constituição de 1946, que garantia o livre “exercício de qualquer profissão,observadas as condições de capacidade que a lei estabelecer”, e o art. 184,que dispõe serem os cargos públicos “acessíveis a todos os brasileiros, obser-vados os requisitos que a lei estabelecer”.

Segue observando que não há lei proibindo o acesso de homens ao cargode “parteira” — palavra usada no feminino pela prática — e, caso houvesse,.

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Memória Jurisprudencial

seria inconstitucional — arts. 141 e 144 —, “estabelecendo diferença entrehomens e mulheres na aquisição de direitos”.

Após rico debate sobre doutrina, história e tradições, relativas às dife-renças, jurídicas e práticas, entre homens e mulheres, considerando-se ainda ocontraponto do caráter mais liberal da Constituição de 1946103, formou-se maioriacontra o pleito do impetrante.

O Ministro Victor Nunes vota com a maioria. Inicia seu raciocínio pelosdispositivos já citados pelo Relator, quanto à igualdade para acesso a cargos pú-blicos e à liberdade de exercício de profissões, para destacar a referência a con-dições estabelecidas em lei.

Assim, estabelece premissa de que o legislador, respeitando, entre outrosaspectos, capacidades específicas e costumes vigentes, pode definir profissõesrestritas a um dos sexos ou acessíveis a ambos: “o critério do legislador variacom o tempo, porque mudam os nossos conceitos de convivência social”.Exemplifica com a restrição, de todo razoável, no sentido de que apenas policiaisfemininas exerçam a função de revistar mulheres.

Há, pois, que buscar na lei a solução para o caso. E o Decreto-Lei 8.778,aplicado na situação concreta, regula os exames de habilitação104 para “os Auxi-liares de Enfermagem” e “as Parteiras Práticas”.

Percebe-se, assim, o plural masculino quanto a auxiliares de enfermagem eo plural feminino para as parteiras, o que se repete em diversos dispositivos, sendo“sabido que, no português, o plural masculino inclui o feminino, mas oplural feminino não inclui o masculino”.

Acresça-se a isso o fato de ser tradição, no Brasil, haver parteiras mulhe-res, a reforçar a interpretação da lei nesse sentido. Pretendesse dar outro sentido,deveria o legislador ter sido expresso.

E ainda que, por hipótese, a lei facultasse o acesso à profissão tanto ahomens como a mulheres, o fato é — prossegue o Ministro Victor Nunes — queo concurso, no caso concreto, foi aberto apenas para mulheres. E isso é lícito,devendo-se compreender “que o Estado, por alguma razão, desejava recru-tar profissionais do sexo feminino e não do sexo masculino”.

Respondendo ao argumento do Ministro Relator, Gonçalves de Oliveira —quanto à hipotética situação de um renomado médico ginecologista pretendersubmeter-se ao regime do Decreto-Lei 8.778, para receber certificação que o

103 Vale referência aos votos dos Ministros Cunha Mello, Candido Motta e Pedro Chaves.104 Note-se que o Decreto-Lei não cuida do concurso, mas de elemento anterior: ahabilitação profissional, cuja comprovação, posteriormente, se exige no concurso.

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Ministro Victor Nunes

habilitasse para exercer funções de “parteira prática” —, o Ministro Victor Nunesfaz duas ponderações: a) em primeiro lugar, tal hipótese nem caberia como argu-mento, pois não condizente com a prática; b) em segundo lugar, um médico, porforça de seu diploma, já poderia exercer as atividades que cabem às parteiraspráticas. “O diploma de médico não tem a restrição; seu portador pode exer-cer a função de parteiro, não por ser parteiro prático, mas por ser médico. Alei não restringe o exercício da profissão de médico em relação ao sexo dospacientes. Mas restringe o exercício da profissão de parteira prática”.

Lembra, por fim, precedentes, quanto a restrições por sexo (cf. RMS8.783105) ou por idade em concursos públicos (cf. RMS 8.784106), para fixar, comoregra, que o Tribunal há que, em cada caso, considerar se há lei proibitiva e se ocritério da Administração é razoável — inclusive em face de costumes e tradições.

Como resultado, o Tribunal, por maioria de votos, negou provimento ao re-curso do Impetrante — mantendo a vedação à sua participação —, contra os votosdos Ministros Gonçalves de Oliveira (Relator), Pedro Chaves e Henrique D’Ávila.

Recurso Extraordinário 47.630 — Segundo

Igualdade — Concurso público — Distinção pelocritério de gênero — Papel da lei e do regulamento.

Cuidava-se de recurso no qual se argüia a inconstitucionalidade da exigên-cia de sexo masculino em concurso para provimento de cargo de fiscal de rendas,promovido pela Secretaria da Fazenda do Estado de São Paulo (mesma questão jádiscutida no RMS 8.783107).

105 Nesse caso, julgado em 1961, o Ministro Relator, Vilas Boas, votara considerandoconstitucional a exclusão de mulheres em concurso para fiscal de rendas em São Paulo: “Atendência hodierna é, inquestionavelmente, para a equiparação da mulher ao homem.Há, porém, setores da atividade humana em que a exação só adquire plenitude — enisso é que está o interesse público — quando à pontualidade do servidor se conjuga aenergia física, e não simplesmente a força da persuasão. Ora, a Administração doEstado resolveu não conferir às mulheres, por enquanto, os encargos da Fiscalizaçãode Rendas, sempre difíceis e ásperos, e o seu critério, que não é anticonstitucional, deveser acatado”. Esse posicionamento foi acompanhado pela unanimidade do TribunalPleno, inclusive pelo Ministro Victor Nunes.106 Nesse caso, relatado pelo Ministro Victor Nunes, porém sem acrescentar maioresconsiderações pessoais ao acórdão recorrido, cuja fundamentação adota como razão dedecidir, é admitido pela unanimidade do Tribunal Pleno que lei estabeleça limite de idadepara concurso público, não restando ofendido o art. 184 da Constituição de 1946, queapenas previa: “os cargos públicos são acessíveis a todos os brasileiros, observados osrequisitos que a lei estabelecer”, sem nada antecipar sobre critérios.107 Nesse caso, julgado em 1961, o Ministro Relator, Vilas Boas, votara considerandoconstitucional a exclusão de mulheres em concurso para fiscal de rendas em São Paulo: “Atendência hodierna é, inquestionavelmente, para a equiparação da mulher ao homem.

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Memória Jurisprudencial

O Ministro Relator, Gonçalves de Oliveira, acompanhado pelo MinistroHahnemann Guimarães, entendia inconstitucional a exigência de sexo masculino,posto só ser cabível se prevista em lei, por força do disposto no art. 184 daConstituição de 1946: “os cargos públicos são acessíveis a todos os brasi-leiros, observados os requisitos que a lei estabelecer”. No caso, a exigênciadecorrera de regulamento, não sendo explícita a lei nesse sentido.

Em seu voto, o Ministro Victor Nunes inicia por esclarecer que não setrata de discutir distinção entre sexos, mas sim de discutir aptidão de homens emulheres para determinado cargo. Não se trata, pois, de discriminação, como sese considerassem abstratamente homens e mulheres. Lembra, nesse sentido, oprecedente julgamento do RMS 8.783, envolvendo o mesmo cargo ora em questão,quando se entendera constitucional a exigência.

A tese sustentada, portanto, é a de que a distinção entre sexos, para efeitosde admissão em concurso público, é constitucional se efetivamente fundamenta-da em requisitos que demonstrem estarem os candidatos realmente aptos para ocargo, incluindo fatores físicos e culturais.

Nesse sentido, observa o Ministro Victor Nunes, acompanhando idéia ex-pressa em aparte do Ministro Hermes Lima:

“O Sr. Ministro Hermes Lima: V. Exa. me perdoe, mas há paísesem que a mulher exerce efetivamente o serviço militar (Israel é umdeles). Isso depende unicamente do conjunto de costumes, valores epadrões culturais reinantes em cada sociedade. Por isso é que é ne-cessário haver flexibilidade.

O Sr. Ministro Victor Nunes: O eminente Ministro Hermes Limaacentuou bem: os padrões culturais variam, não só em razão dolugar, mas igualmente em função do tempo. A mesma autoridadepública de São Paulo, que hoje está vedando o ingresso de mulheresna carreira de fiscal de rendas, tendo em vista, talvez, que ainda há,em São Paulo, regiões onde seria inconveniente confiar-lhes esse en-cargo, poderá, amanhã, quando todo o Estado tiver o alto nível decivilização já alcançado por muitas de suas cidades, permitir o in-gresso de mulheres nessa carreira.

Há, porém, setores da atividade humana em que a exação só adquire plenitude — enisso é que está o interesse público — quando à pontualidade do servidor se conjuga aenergia física, e não simplesmente a força da persuasão. Ora, a Administração doEstado resolveu não conferir às mulheres, por enquanto, os encargos da Fiscalizaçãode Rendas, sempre difíceis e ásperos, e o seu critério, que não é anticonstitucional, deveser acatado”. Esse posicionamento foi acompanhado pela unanimidade do TribunalPleno, inclusive pelo Ministro Victor Nunes.

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Ministro Victor Nunes

Penso, Sr. Presidente, no interior de outros Estados, em algumasregiões de Minas Gerais, do Nordeste...”.

Esse argumento da necessidade de consideração da realidade social éusado em reforço pelo Ministro Victor Nunes para interpretar o citado art. 184 daConstituição de 1946 como se referindo a “lei” em sentido amplo: “Estou inter-pretando a Constituição atual, que fala em ‘lei’ no sentido mais amplo dovocábulo. Há dificuldades que resultam da natureza das coisas. A lei, pelaimpossibilidade de regular adequadamente o assunto de que trata, tem, ne-cessariamente, que deixar claro para o regulamento, porque, do contrário,a Constituição não admitiria o poder regulamentar.”

Entende, assim, que não seria juridicamente incorreto — nem mesmo seriaadministrativamente inconveniente — que a autoridade do Executivo avaliasse,de maneira concreta, ser o caso de admitir ou não, sempre com justificativa,mulheres em determinada carreira108.

Como resultado de julgamento, decidiu-se pela constitucionalidade da nor-ma paulista, contra os votos dos Ministros Gonçalves de Oliveira (Relator) eHahnemann Guimarães.

1.5 Poder Legislativo

Recurso Extraordinário 62.731

Decreto-lei — Limites — Discricionariedade doExecutivo no reconhecimento da hipótese material decabimento — Possibilidade de apreciação judicial.

Tratava-se de acórdão que envolvia, como questão de fundo, norma conti-da no Decreto-Lei 322, sobre purgação de mora pelo locatário em locações co-merciais — configurando um “assunto miúdo de direito privado”, conforme aexpressão do Relator, Ministro Aliomar Baleeiro.

No entanto, a matéria constitucional discutida mostrou-se extremamenterelevante e atual, permitindo comparação com o tratamento dado à medida provi-sória pelo Direito vigente.

108 No caso em exame, nota-se que já havia mulheres na carreira de fiscal de rendas, o queé invocado por alguns Ministros para ilustrar a arbitrariedade da autoridade administrativaem convocar concurso que vedasse a entrada de mais mulheres, mas é usado por outrosMinistros para argumentar ser a experiência que tenha levado o administrador a mudar aorientação de subseqüentes concursos de ingresso.

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Memória Jurisprudencial

Com efeito, a matéria constitucional em questão dizia respeito à discricio-nariedade do Poder Executivo para decidir sobre as hipóteses nas quais se mos-trava cabível o decreto-lei, previsto na Constituição de 1967, no art. 58109:

“O Presidente da República, em casos de urgência ou de inte-resse público relevante, e desde que não resulte aumento de despesa,poderá expedir decretos com força de lei sobre as seguintes matérias:I - segurança nacional; II - finanças públicas. Parágrafo único -Publicado, o texto, que terá vigência imediata, o Congresso Nacionalo aprovará ou rejeitará, dentro de sessenta dias, não podendoemendá-lo; se, nesse prazo, não houver deliberação o texto será tidocomo aprovado”.

Este julgamento ocorreu em 23 de agosto de 1967, em um momento deafirmação do posicionamento do STF quanto a esse importante aspecto típico doregime constitucional de então. Vale lembrar que a Constituição de 1967 foi pro-mulgada em 24 de janeiro e entrou em vigor em 15 de março do mesmo ano.

O Ministro Aliomar Baleeiro, Relator do processo, identifica, prelimi-narmente, dois pontos a serem superados para que, eventualmente, se possa julgara questão de fundo.

Em primeiro lugar, cabe apreciar se o art. 5º do Decreto-Lei 322 teriaefeito retroativo. Caso positivo, em segundo lugar, haveria que analisar aconstitucionalidade desse dispositivo, considerando-se ser um decreto-lei a tra-tar de questão relativa a regras do inquilinato.

A seqüência de apreciação desses pontos no julgamento decorre de “velharegra” do Supremo Tribunal Federal, lembrada pelo Ministro Relator, Aliomar Ba-leeiro, no sentido de que “não se pronuncia a inconstitucionalidade se nãofor o estritamente necessário”. Ou seja, se se entendesse não retroativo odispositivo em análise — portanto não aplicável ao caso concreto —, não serianecessário apreciar a constitucionalidade da norma enquanto objeto de decreto-lei.

No caso, adentrou-se efetivamente na apreciação dessa questão deconstitucionalidade, aspecto efetivamente mais interessante para este comentá-rio. Nesse sentido, manifestou-se o Ministro Relator, Aliomar Baleeiro:

“Não me parece duvidoso que a apreciação da ‘urgência’ oudo ‘interesse público relevante’ assume caráter político: é urgente ourelevante o que o Presidente entender como tal, ressalvado que oCongresso pode chegar a julgamento de valor contrário, para rejeitar

109 Texto anterior à Emenda 1/69.

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Ministro Victor Nunes

o decreto-lei. Destarte, não pode haver revisão judicial desses doisaspectos ao discricionarismo do Executivo, que sofrerá apenas correçãopelo discricionarismo do Congresso.

Por aí não há inconstitucionalidade.

Mas o conceito de ‘segurança nacional’, a meu ver, não cons-titui algo indefinido, vago e plástico, algo que pode ser ou não entre-gue ao discricionarismo do Presidente e do Congresso. De direitos egarantias individuais, o federalismo e outros alvos fundamentais daConstituição ficarão abalados nos alicerces e ruirão se admitirmosque representa ‘segurança nacional’ toda matéria que o Presidenteda República declarar que o é, sem oposição do Congresso.

(...)

Segurança Nacional, a meus olhos, não é o que o Presidente eo Congresso dizem que é, mas apenas o que se concilia com o queestá expresso e implícito nos arts. 89 e 91 da Constituição, sob aepígrafe ‘Da Segurança Nacional’. E, por certo, purgação da moraem locações não residenciais não se harmoniza com o conceito dasegurança nacional.

(...)

Se nisso se contém a matéria de segurança nacional, toda elade ordem pública e de Direito Público, repugna que ali se intrometaassunto miúdo de Direito Civil, que apenas joga com os interessestambém miúdos e privados de particulares, como a purgação da moranas locações em que seja locatário o comerciante.”

Acompanhando o Ministro Relator, votaram pela inconstitucionalidade doart. 5º do referido Decreto-Lei — dando provimento ao Recurso Extraordinário —outros treze Ministros, sendo vencido apenas o Ministro Hermes Lima, que de-fendia ser o conceito de segurança nacional “extremamente flexível e aberto”,sendo, pois, passível da apreciação discricionária do Presidente da República,sujeita a controle não pelos tribunais, mas pelo Congresso Nacional, “órgão po-lítico por excelência”. Igualmente sustentara a constitucionalidade da medida oProcurador-Geral da República, Prof. Haroldo Valadão.

Em seu voto, o Ministro Victor Nunes, acompanhando o Relator, acres-centa relevantes argumentos ao debate.

Para contrapor-se ao ponto de vista do Ministro Hermes Lima — quantoà limitação do controle dos decretos-leis ao Congresso Nacional —, observa quenão se pode negar que o Congresso Nacional e a previsão constitucional de ga-rantias individuais sejam importantes “freios constitucionais para o Presidente.

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da República”; no entanto, não são os únicos, a eles se acrescentando a atuaçãodo Supremo Tribunal Federal:

“O art. 58 (da Constituição Federal) não suprimiu qualquer dasprerrogativas do Supremo Tribunal Federal, definidas nos arts. 114e 115. O fato de poder o Congresso apreciar os decretos-leis do art.58 não lhes confere categoria superior à das leis votadas pelo Con-gresso, quer este aprove esses decretos-leis pelo silêncio ou em formaexpressa. Se o Supremo Tribunal pode julgar as leis, em face daConstituição, também pode apreciar, em face da Constituição,aqueles decretos-leis”.

Em seguida, aponta como problema fundamental, no caso em exame,saber se o conceito de segurança nacional, referido no art. 58 da Constituição,é matéria da competência discricionária do Executivo e do Congresso Nacio-nal.

E manifesta-se negativamente. Lembra, nesse sentido, que o texto consti-tucional distinguiu os conceitos de “interesse público relevante” e “segurançanacional”.

O “interesse público relevante” juntamente com a “urgência” seriam deapreciação discricionária do Presidente da República e do Congresso Nacional,configurando uma primeira condição de cabimento dos decretos-leis.

A “segurança nacional” juntamente com as “finanças públicas” configura-riam uma segunda condição de cabimento dos decretos-leis, limitando a matériasobre a qual podem versar, não sendo tais conceitos sujeitos a discricionariedadedo Poder Executivo ou do Legislativo, que devem interpretá-los, no tocante à“segurança nacional”, atentando ao sentido que a Constituição lhe dá nos artigos89 a 91, dispositivos esses que também configuram parâmetro para o controle deconstitucionalidade realizado pelo Supremo Tribunal Federal.

E acrescenta:

“a definição dessa matéria não é discricionária, pois o nossosistema constitucional seria ilusório, se um conceito tão básico, tãoimportante, tão fundamental, seja para a segurança do Estado, sejapara a segurança dos indivíduos, dependesse tão-só do critério ilimi-tado e exclusivo dos órgãos políticos.”

Desse modo, o Ministro Victor Nunes vota com o Relator, mas expressa-mente incorporando à motivação de seu voto o fundamento da inconstitucionali-dade do Decreto-Lei 322 como um todo, por não versar sobre matéria de segu-rança nacional..

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Ministro Victor Nunes

Note-se que surgiu nos debates motivação diversa para o provimento doRecurso Extraordinário. O Ministro Prado Kelly, seguido pelo Ministro AdalicioNogueira, também votara pelo provimento, porém por entender o art. 5º do De-creto-Lei 322 não aplicável ao caso em discussão (a vigência imediata do Decreto-Lei não importaria que se aplicasse a casos já sub judice); desse modo, pelaregra considerada tradicional no Supremo Tribunal Federal de apenas discutir ainconstitucionalidade de lei se indispensável ao julgamento do feito, não motivaseu voto na inconstitucionalidade.

O Ministro Victor Nunes observa, ao motivar seu voto, que “os Tribunaispodem decidir — e freqüentemente o fazem — por mais de um fundamento”.E não aplica a regra invocada pelo Ministro Prado Kelly por entender que aquestão da constitucionalidade é prejudicial à questão da aplicabilidade de novoDecreto-Lei a casos pendentes de julgamento: “como poderia eu, sem contra-dição, dizer que esse Decreto-Lei se aplica aos casos pendentes, se o consi-dero inconstitucional?”.

Representação 696

Lei de caráter administrativo — Anistia a faltas deservidores públicos — Harmonia dos Poderes.

A questão em discussão dizia respeito à possibilidade de o PoderLegislativo — no caso, a Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo —estabelecer “anistia110”, de modo genérico, a faltas disciplinares cometidas porservidores públicos.

Acompanhando o Ministro Relator, Aliomar Baleeiro, o Ministro VictorNunes entende que a lei impugnada, ainda que de caráter administrativo, nãoviola a harmonia dos Poderes.

Isso ocorreria caso se tratasse de lei afastando a penalidade aplicada emum caso concreto específico; isso seria o equivalente a tornar o Poder Legislativouma instância recursal em que se questionasse decisão da Administração. Eprossegue:

“O Sr. Ministro Victor Nunes: Mas, quando, por lei geral, oCongresso, na esfera da União, ou a Assembléia Legislativa, na es-fera do Estado, perdoa certas faltas administrativas, cometidas emdeterminadas circunstâncias de tempo ou lugar, levando em conta

110“Anistia” assume, aqui, acepção ampla, como esclarecido na ementa do acórdão, paraincluir também faltas disciplinares de servidores públicos.

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Memória Jurisprudencial

razões de ordem social, ou mesmo funcional, com espírito de benevo-lência ou intenção de estímulo...

O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: Por que não dizer logo apalavra política?

O Sr. Ministro Victor Nunes: Sim, razões de ordem política, nosentido mais geral da palavra. Em tal hipótese, não vejo qualquerimpedimento na Constituição.”

Para concluir, o Ministro Victor Nunes aponta o fundamento constitucionalda competência do Poder Legislativo para tratar da matéria:

“Esse poder de perdoar faltas funcionais, em caráter geral,deriva do poder de organizar o serviço público, que cabe ao legisla-dor, em primeiro lugar, e, em segundo, subordinadamente, ao PoderExecutivo, pois os regulamentos estão subordinados às leis. No querespeita à organização do serviço público — o que inclui o sistema depenalidades administrativas —, o Executivo só não deve acatamentoao Legislativo quanto às atribuições que a Constituição lhe confereem caráter privativo. Fora daí, a lei tem primazia sobre a ação doExecutivo. Não vejo, pois, como negar validade a uma lei que perdoafaltas funcionais em caráter genérico.”

A representação resta julgada improcedente, vencidos os Ministros Eloyda Rocha, Oswaldo Trigueiro, Prado Kelly, Adalicio Nogueira e Luiz Gallotti, quevislumbravam na lei paulista invasão da esfera própria da Administração.

Representação 465

Limites ao poder de emenda do Legislativo em pro-jetos de iniciativa do Executivo.

Esta representação, fundamentada em suposta violação do princípio da“independência e harmonia dos Poderes” (Constituição Federal, art. 7º, VII, b),voltava-se contra diversos dispositivos da Lei estadual 14, de 24 de outubro de1960, do Estado da Guanabara.

Tratava-se do mesmo contexto de criação desse Estado, já verificado naRp 477 e no RMS 9.558.

Nesse período, nos termos da Lei federal 3.752, de 14 de abril de 1960(conhecida como “Lei San Tiago Dantas”), que regia a fase de transiçãoinstitucional para a criação do Estado, a Guanabara possuía um Executivo, repre-sentado por um Governador provisório — sucessor do Prefeito do antigo Distrito.

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Ministro Victor Nunes

Federal —, e um Legislativo, consistente na Câmara de Vereadores, a ser posterior-mente substituída, após o processo constituinte, por uma Assembléia Legislativa.

Nos termos do disposto na Lei federal 217, aspecto mantido pela Lei fe-deral 3.752, era de competência do Prefeito do Distrito Federal — e, portanto,num primeiro momento da transição, do Governador Provisório — “a iniciati-va de leis que ampliem, reduzam ou criem empregos em serviços existen-tes, alterem as categorias do funcionalismo, ou seus vencimentos e o sis-tema de remuneração”.

Toda a polêmica quanto à Lei estadual 14 dizia respeito a dúvida quanto asua iniciativa. Em síntese, ainda na época do Distrito Federal, o então PrefeitoNegrão de Lima enviara mensagem à Câmara, dispondo sobre matéria de fun-cionalismo público. Já durante a gestão do Governador provisório, houve umincidente extravagante, tendo sido enviada mensagem, para tratar dos mesmosassuntos, porém não assinada pelo Chefe do Executivo (“uma mensagem am-bígua que não se sabe se estava ou não assinada”, nas palavras do Minis-tro Relator, Candido Motta; ou ainda, como observara o Ministro Ary Franco,“aquilo não era mensagem, era um papel servido, um papel sujo que oGovernador mandou para a Assembléia”). Nessa situação, a Câmaratransformou em iniciativa própria a mensagem do Governador, sob a forma deum substitutivo, apresentado por um Vereador, à mensagem que originalmentefora enviada pelo Prefeito Negrão de Lima, mensagem essa que, até então, nãohavia sido nem rejeitada, nem arquivada. O resultado dessa situação foi que o Go-vernador vetou todos os artigos da lei aprovada pela Câmara — com exceção dosdispositivos referentes ao funcionalismo do próprio Legislativo —, veto esse queveio a ser derrubado, levando o Governador a ensejar a presente representação.

Sem que se adentre na minúcia da discussão acerca de cada situaçãolongamente debatida no acórdão de mais de uma centena de páginas — sobrecriação e reclassificação de cargos, alteração de vencimentos, etc; isso para diver-sas categorias de servidores —, relevante se mostra a discussão sobre o poder deemenda do Legislativo em projetos de iniciativa exclusiva do Executivo.111

O seguinte trecho do voto do Ministro Victor Nunes é bem ilustrativo daquestão e do seu pensamento:

111A Constituição de 1946 assim dispunha: “Art 67. A iniciativa das leis, ressalvados oscasos de competência exclusiva, cabe ao Presidente da República e a qualquer membroou Comissão da Câmara dos Deputados e do Senado Federal. (...) § 2º Ressalvada acompetência da Câmara dos Deputados, do Senado e dos Tribunais Federais, no queconcerne aos respectivos serviços administrativos, compete exclusivamente ao Presi-dente da República a iniciativa das leis que criem empregos em serviços existentes,aumentem vencimentos ou modifiquem, no decurso de cada Legislatura, a lei de fixação

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Memória Jurisprudencial

“O Sr. Ministro Victor Nunes: Estou procurando mostrar que otexto final da lei, resultante de iniciativa do Executivo, não há de ser,por força, absolutamente idêntica ao da proposta governamental,porque, então, não teria o Legislativo o poder de emendar.

O Sr. Ministro Hahnemann Guimarães: Ela tem o poder deemendar, desde que não invada área do Poder Executivo.

O Sr. Ministro Candido Motta Filho (Relator): Parece-me que,no caso, não é evidente o aumento de vencimentos, e como, em matériaconstitucional, deve haver evidência, entendo que não se pode im-pugnar a argüição de inconstitucionalidade.

O Sr. Ministro Victor Nunes: É muito difícil uma lei de reclassi-ficação não acarretar aumento de vencimentos. Esses planos de re-classificação, de que nos temos utilizado, envolvem, sempre, aumentode despesas, e o do antigo Distrito Federal não fugia à regra. É im-possível, em tais casos, exigir-se do Poder Legislativo que se atenhaexclusivamente aos termos da iniciativa; ficaria ele reduzido àqueleSenado napoleônico, que poderia ser constituído de surdos-mudos,porque bastaria baixar a cabeça, no sentido vertical ou no horizontal,para aprovar ou rejeitar as medidas propostas, e nada mais. Não éeste o nosso sistema. Tratando-se, portanto, de reclassificação, émais amplo o âmbito do poder de emendar do Legislativo do que emrelação a projeto de simples criação de cargos. Sou, por isso, maisrigoroso em relação às emendas que criam cargos do que em relaçãoàs de reestruturação. No caso destes autos, o projeto do Executivoem momento nenhum foi repudiado pela Câmara, mas apenas modi-ficado pelo substitutivo a que se referiu o eminente Relator. Por issomesmo, votou-se um substitutivo e não um projeto novo. Com o emi-nente Relator, rejeito a argüição de inconstitucionalidade.”

O resultado específico da representação, todavia, não parece mereceranálise rigorosa neste momento. São várias dezenas de dispositivos de lei, rece-bendo uma votação caso a caso quanto à sua inconstitucionalidade — ou a in-constitucionalidade da rejeição do respectivo veto —, com diversos resultados,ora por votação unânime, ora por maiorias.

Numa possível síntese, pode-se apontar que prevaleceu a posição da cons-titucionalidade dos dispositivos emendados pelo Legislativo, no que importassemsimples reorganização da matéria proposta pelo Executivo — com eventuais

das forças armadas”. Todavia, não havia, no regime de 1946, antes do primeiro AtoInstitucional, de 1964, regra expressa — como a atual previsão do art. 63, I, da CF — nosentido de vedar ao Legislativo, por emenda, aumentar despesa em projeto de iniciativaexclusiva do Executivo.

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Ministro Victor Nunes

acréscimos diferenciais entre cargos das carreiras; do contrário, inconstitucionaisseriam os artigos que, resultantes de emendas parlamentares, criassem cargos eaumento de vencimentos112. Restaram vencidos, quanto a diversos dispositivos,por perfilharem interpretação mais flexível do poder de emenda parlamentar, osMinistros Pedro Chaves, Vilas Boas e Ary Franco.

Observe-se que a decisão nessa representação foi objeto de embargos,que levaram a nova discussão sobre diversos dispositivos e ainda sobre o aspectoprocessual (embargos recebidos em parte “para julgar constitucionais todosos dispositivos da Lei 14, de 24 de outubro de 1960, impugnados por víciode inconstitucionalidade, que não tenham alcançado pelo menos 6 votospela inconstitucionalidade”).

Representação 468

Limites ao poder de emenda do Legislativo em pro-jetos de iniciativa do Executivo — “Prática da Constitui-ção” como integrante do Direito Constitucional positivo.

A questão do poder de emenda da Assembléia Legislativa, em projeto deiniciativa exclusiva do Chefe do Executivo, novamente apareceu nesta represen-tação, fundamentada em violação do princípio constitucional da “independência eharmonia dos Poderes” (Constituição Federal, art. 7º, VII, b).

Tratava-se de emenda havida na tramitação de projeto de lei, perante aAssembléia Legislativa de São Paulo, que criou dois cargos públicos, no âmbitoda Universidade de São Paulo, além dos vinte originalmente constantes do projeto.O Governador Carvalho Pinto, que não contemplara tais cargos em sua iniciativa,vetou a lei nessa parte, sendo seu veto posteriormente derrubado.

O Ministro Hermes Lima, nos debates travados, liderou a sustentação deque criação de cargos, ainda que sem aumento de despesas — cuidava-se datransformação de funções gratificadas já existentes —, era matéria afeita à efici-ência da Administração, própria do Executivo; seu tratamento pela Assembléia,além de inconveniente, importaria usurpação de poder constitucional do Executivo.

Relatando o processo, o Ministro Victor Nunes entende que a emenda, nocaso, respeitou “a essência da proposta do Executivo, tendo em vista seusobjetivos”. Mais uma vez invoca a menção ao Senado napoleônico (cf. supra

112 Essa tese é acolhida pelo Ministro Relator, Candido Motta, em extenso voto, rico emdoutrina sobre possibilidade de emendas parlamentares e sobre as competências doPoder Legislativo.

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Memória Jurisprudencial

análise da Rp 465), para afastar a hipótese de um Congresso reduzido a dizer simou não, sem em nada contribuir para o aprimoramento dos projetos.113

E acrescenta lúcida observação sobre a “prática da Constituição” a confi-gurar o Direito Constitucional positivo:

“No ponto específico em debate, a prática da Constituição, pe-los três Poderes, tem sido no sentido de uma relativa tolerância paraque o poder de emendar do Congresso não fique totalmente esvazia-do do seu conteúdo. (...) Estou aludindo à prática da Constituição. V.Exa., eminente Professor de Direito Público [o Ministro Hermes Lima],bem sabe que a Constituição vale pela sua letra e pela sua prática,pela sua execução. Nos Estados Unidos, país, como o nosso, deConstituição rígida, algumas práticas não previstas na Constituiçãointegram o Direito Constitucional positivo. O mesmo ocorre em outrospaíses. E há práticas que se estabelecem contra a Constituição e aca-bam valendo tanto como a própria Constituição. (...) Ao aludir a prá-ticas que se firmam contra a Constituição, não estou incluindo o po-der de emendar. A sua interpretação moderadamente ampliativa nãoé desarrazoada”.

Como resultado, a representação foi julgada improcedente114, contra osvotos dos Ministros Hermes Lima e Candido Motta.

Representação 687

Limites ao poder de emenda do Legislativo em pro-jetos de iniciativa do Executivo — Introdução de matériaestranha ao projeto original.

Aqui, mais um processo envolvendo o poder de emenda da AssembléiaLegislativa, em projeto de iniciativa do Chefe do Executivo, a ensejar representa-ção, fundamentada em violação do princípio constitucional da “independência eharmonia dos Poderes” (Constituição Federal, art. 7º, VII, b).

113 Interessante debate se segue a partir desse argumento: “Essas considerações, quetive oportunidade de ouvir, no Congresso, uma vez, eu as classifico como a ‘teologia doempreguismo’” (Ministro Hermes Lima). “É possível, Sr. Ministro Hermes Lima. Mas oempreguismo do Congresso faz tanto mal quanto o do Executivo. Sabe V. Exa. que, nasautarquias, os cargos são criados sem intervenção do Legislativo, e há muito empre-guismo nas autarquias” (Ministro Victor Nunes Leal). “Sou contra o empreguismo doExecutivo e do Legislativo e, às vezes, também até do Judiciário” (Ministro HermesLima) (...) “O mal é mais profundo. Está vinculado às nossas condições sociais” (Minis-tro Victor Nunes Leal).114 Ver a indicação de outros julgados no mesmo sentido na análise da Rp 700, infra.

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Ministro Victor Nunes

A questão apresentada nesta representação situava-se em uma variantedo argumento desenvolvido nos casos acima analisados, sem enfatizar o aspectoaumento de despesas: a Assembléia do Estado da Guanabara teria emendadoprojeto de lei, que cuidava apenas de matéria tributária, para nele introduziraumento de vencimentos de servidores, assunto alegadamente estranho às finali-dades da lei. Vetado o projeto, derrubou-se o veto do Governador.

Em seu voto, o Relator, Ministro Adalicio Nogueira, reconhece a jurispru-dência do Supremo Tribunal Federal “no sentido de que o poder de emenda daAssembléia só lhe é reconhecido quando existe correlação evidente e claraentre as emendas e o projeto que elas visam modificar”. Portanto, julga pro-cedente a representação.

Por sua vez, o Ministro Victor Nunes reafirma que, “quanto aos princípiosfundamentais que regem o poder de emenda das Assembléias Legislativas,parece que existe acordo geral neste Tribunal”. De fato, ao longo de váriosjulgados, alguns dos quais acima analisados, fixou-se a regra geral de entendimen-to. Restava apenas, o que não era tão simples, aplicá-la a cada caso concreto.

Neste caso, por exemplo, partindo do mesmo princípio, o Ministro VictorNunes chega a outra conclusão, entendendo que havia, em alguns dispositivos dalei, matéria atinente à previsão de despesas, compatível com as emendas queteriam equiparado vencimentos de funcionários, cumprindo, ademais, dispositivoda Constituição do Estado.

Nesse sentido, vota o Ministro Victor Nunes pela procedência apenas par-cial — quanto a alguns artigos da Lei — da representação, enquanto os demaisMinistros julgam-na procedente integralmente.

Representação 700

Limites ao poder de emenda do Legislativo em pro-jetos de iniciativa do Executivo — Introdução de matériaestranha ao projeto original — Aumento de despesas.

Esta representação também cuidava do poder de emenda do Legislativo,porém novo fundamento se apresentava: o Ato Institucional 2, de 1965. O seuart. 4º vedava, na votação de projetos do Governo, quaisquer emendas parlamenta-res de que resultasse aumento de despesa.

No caso, tratava-se da Lei 9.271, de 16 de março de 1966, aprovada pelaAssembléia Legislativa de São Paulo, a partir de projeto de iniciativa exclusivado Executivo, que cuidava da carreira e vantagens funcionais dos delegados depolícia. Houve emendas parlamentares. Todavia, ocorreram, em algumas hipóte-.

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Memória Jurisprudencial

ses, alterações substanciais e relevante aumento de despesas, por exemplo, esten-dendo-se gratificações a inativos.

O Governador Adhemar de Barros, nessa situação, vetou integralmente oprojeto, inclusive quanto aos aspectos que correspondiam a sua iniciativa, e aAssembléia derrubou o veto.

O Ministro Victor Nunes, Relator do caso, de início já afasta a representa-ção quanto à matéria que constava originalmente do projeto do Executivo.

Quanto aos demais dispositivos, inicia por discutir a aplicabilidade do AI 2ao caso. Lembra que, na Rp 610 e na Rp 670, decidiu-se que o citado art. 4º doAI 2 não tinha efeito retroativo em relação aos Estados, até porque previaperíodo de vacatio legis de sessenta dias, para adaptação das Constituiçõesestaduais, após o que teria alguns de seus dispositivos aplicados automatica-mente aos Estados.

Agora, o Ministro Relator, Victor Nunes, sustenta que o art. 4º do AI 2 nãoalcance projetos que já tenham tido sua votação concluída, ainda que não envia-dos à sanção do Executivo115 — e é o caso dos autos. Isso porque, se se querproibir a votação de emendas, a norma só pode ter valor para emendas ainda nãovotadas.

O mesmo raciocínio não se aplica à fase do veto, até porque veto não podeter efeito de emenda. Nesse sentido, o Ministro Victor Nunes lembra as críticasdoutrinárias ao abuso do veto parcial, se aplicado a palavras: por exemplo, vetando-se um “não”, alterar-se-ia o sentido da norma, com efeito de emenda.

Daí por que já afasta o fundamento da representação quanto ao AI 2. E,para apreciá-la quanto a outros aspectos, supera o entendimento de que não sepode julgá-la além dos estritos termos em que é apresentada. Nesse sentido,entende que não se pode incluir matéria nova na representação, o que não signi-fica que não se possam apreciar novos fundamentos.

Passa então a julgar a lei paulista em face de dispositivos da Constituição doEstado, que não proibia emendas para aumento de despesa, senão para aumento devencimentos.

115 Registre-se que essa tese o Ministro Victor Nunes já aventara ao votar na Rp 727.Todavia, naquele caso, por outro fundamento, nem houvera oportunidade para umpronunciamento final sobre esse ponto. Aquela representação, em que se discutiaigualmente limites ao poder de emenda do Legislativo, acabou julgada procedente emparte, em face da violação de dispositivo específico da Constituição do Estado do RioGrande do Sul e do AI 2, tendo o Ministro Victor Nunes acompanhado o voto vencedordo Relator, Ministro Prado Kelly.

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Ministro Victor Nunes

Lembra precedentes no sentido de se interpretar o limite ao poder deemendas parlamentares de modo a não suprimi-lo, mas, sim, conciliá-lo com oespírito do projeto emendado (Rp 610, Rp 611, Rp 627, Rp 670116, RE 55.084, MS12.342, RMS 15.015, RMS 15.110, RMS 14.405, RE 57.713 e RMS 147.970).

Nesse sentido, passa a examinar vários dispositivos da Lei em questão. Emconclusão, rejeita a representação quanto aos artigos nos quais “há apenas a ex-tensão do favor que se continha na proposição do Governo” e a acolhe quantoa artigos que promovem reestruturação da carreira, com aumento de vencimentos.

Assim, seguindo-se o voto do Relator, julgou-se a representação parcial-mente procedente, embora alguns Ministros a tivessem julgado procedente demodo mais amplo.

Note-se que neste caso houve embargos, resultando em ampliação parcialda procedência da representação.

Representação 741

Limites à iniciativa do Legislativo quanto a projeto de lei.

Em mais um caso, estava em questão o limite da iniciativa legislativa doparlamento, aqui não mais apenas quanto a emendas. O fundamento da represen-tação também era violação do princípio da separação e harmonia dos Poderes(art. 10, VIII, d, agora da Constituição Federal de 1967).

Cuidava-se de lei estadual paulista (Lei 8.308, de 21 de setembro de 1964),que criara e disciplinara o Fundo Estadual de Bolsas de Estudos, vinculado aoConselho Estadual de Educação; vetada totalmente a lei, fora o veto rejeitado.

Para o Ministro Relator, Aliomar Baleeiro, não havia inconstitucionalidadena lei, pois reconhecia ao Legislativo “atribuição ampla de regular todos osserviços do Estado, sem outros limites senão aqueles levantados pela Cons-tituição expressa ou implicitamente, mas de modo inequívoco”.

Observa ainda, na esteira da jurisprudência da Suprema Corte norte-ame-ricana, que só se devem pronunciar inconstitucionalidades manifestas. No caso,apenas “coibiu-se o arbítrio puro e simples do Governador e do ConselhoEstadual, indicando-lhes standards jurídicos flexíveis para que fosse aten-dido fim nobre”.

116 Nesse caso, o Ministro Relator, Pedro Chaves, apresenta boa síntese da tese, que éesposada pelo Ministro Victor Nunes: a emenda só é “admissível sem extravasamento doassunto constante da proposição, sem quebra da unidade da proposta e sem violaçãodos propósitos do projeto”.

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Memória Jurisprudencial

Acompanhando o Relator, o Ministro Victor Nunes reforça a posição,mostrando que não houve criação de cargos, nem de órgãos, o que se veda espe-cialmente com preocupação de ordem financeira. No caso, a lei versava apenassobre a organização de um serviço.

Não foi esse, entretanto, o entendimento da maioria, que julgou procedentea representação. Essa posição, todavia, não negava o princípio afirmado peloMinistro Victor Nunes, entre outros; apenas o aplicava com outra compreensãodo caso concreto: a de que a lei em questão havia criado, sim, um órgão.

Representação 762

Limites ao poder de emenda do Legislativo em pro-jetos de iniciativa do Executivo.

Para concluir esta série sobre poder de iniciativa do Parlamento, cotejadocom o princípio da separação e harmonia dos Poderes, há mais esta representação,cuidando da Lei federal 5.291, de 31 de maio de 1967, sobre assunto funcional deservidores do Ministério da Fazenda, que fora emendada pelo Congresso, comefeito de reclassificação de cargos e aumento de vencimentos.

Comenta-se mais este caso, não para adentrar o mérito da discussão espe-cífica nele travada, mas para reforçar que, ainda que assentado o princípio sobreos limites da iniciativa do Legislativo, em relação a projetos do Executivo, a apli-cação de tal princípio, na prática, leva a divergências.

Neste caso, o Ministro Relator, Evandro Lins, e o Ministro Victor Nunesrestaram vencidos, julgando improcedente a representação, por entenderem queas emendas apresentadas não acarretavam aumento de despesas.

Habeas Corpus 40.400

Caso do confronto entre os Senadores Arnon deMello e Silvestre Péricles, que resultou na morte doSenador Kairala — Competência do Senado Federalpara promover inquérito policial quanto a senador —Natureza judicial dessa função do Senado Federal.

Este habeas corpus refere-se ao caso, notório na história do Senado Federal,em que o Senador Arnon Afonso de Farias Mello, disparando em Plenário tiros deseu revólver contra seu desafeto, e também Senador por Alagoas, SilvestrePéricles de Góes Monteiro, acabou por atingir e matar o Senador Kairala JoséKairala..

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Ministro Victor Nunes

O presente processo referia-se a ato havido na seqüência, de autoria do Sena-dor Silvestre Péricles, a caracterizar eventualmente tentativa de homicídio contra oSenador Arnon de Mello, cuja narrativa é bem sintetizada neste trecho da denúncia:

“Os denunciados, chefes políticos do Estado de Alagoas, sãonotórios e violentos inimigos pessoais. E aos insultos e alegadas amea-ças do último, correspondia o primeiro com outros insultos e a signi-ficativa advertência de que ‘a paciência tem limites’. Para falar nasessão ordinária de 4 de dezembro p.p., inscreveu-se o denunciadoArnon de Mello, revelando tencionar responder a acusações que lhefizera o outro em discurso recente. De fato, inicia seu discurso pedin-do licença para, ao contrário do prescrito pelo regimento da Casa,falar voltado para Silvestre Péricles, que, neste instante, ia se assen-tando na cadeira que costumava ocupar no plenário. Este, ouvindo aprovocação, levanta-se e, braço direito erguido, dedo em riste, dirige-se ao orador, chamando-o ‘crápula’. Foi quando o denunciado Arnonde Melo sacou de seu revólver e, visando seu desafeto, fez dois dispa-ros, que não conseguiram atingir o inimigo mortal, vindo um deles,porém, a alcançar o senador Kairala José Kairala, produzindo-lhe aslesões descritas no laudo de exame cadavérico de fls, determinando-lhea morte. Após cessada a agressão da parte de Arnon, já, então, seguroe dominado, o denunciado Silvestre Péricles assesta contra o mesmo asua arma e dá ao gatilho, só não logrando disparar o projétil pelasúbita intervenção do senador João Agripino, colocando seu dedo deforma a paralisar o mecanismo do revólver, já acionado”.

Tratava-se, pois, de habeas corpus tendo por paciente o Senador SilvestrePéricles, cuja prisão em flagrante havia sido aprovada pelo Senado Federal, que igual-mente conduzira o inquérito e autorizara abertura do competente processo penal.

O conteúdo do voto aqui proferido pelo Ministro Victor Nunes, comoRelator, consta — por remissão às notas taquigráficas — do HC 40.398, relatadopelo Ministro Pedro Chaves e julgado em conjunto com este. Em verdade, já erao terceiro habeas corpus impetrado em favor do Senador Silvestre Péricles117,tratando de diversos aspectos da matéria processual penal.

117 Como se percebe da leitura da íntegra dos votos constantes do Apêndice desta obra,não é no HC 40.400, mas no HC 40.398, que formalmente se encontra em toda sua extensãoo voto do Ministro Victor Nunes. Contudo, optou-se pela referência ao primeiro, por sercaso em que o Ministro Victor Nunes atuou como Relator. Quanto ao HC 40.382, em queigualmente o Ministro Victor Nunes foi Relator, nele discutia-se questão decorrente domesmo fato, porém abordada de modo mais restrito. Estando tal questão contida e reitera-da no julgamento dos HCs 40.400 e 40.398, foi feita apenas breve referência ao HC 40.382,que, todavia, tem seu voto também transcrito no apêndice.

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Memória Jurisprudencial

Dado o enfoque desta obra, parece adequado ater-se aos pontos do HC40.400 atinentes a matéria constitucional.

Em primeiro lugar, a competência de julgamento por prerrogativa de fun-ção, aliás, questão já decidida no HC 40.382.

Sustentava-se na impetração a competência do Supremo Tribunal Federalpara julgar o Senador na sua condição de Ministro aposentado do Tribunal deContas da União (art. 101, I, c, da Constituição de 1946), uma vez que a compe-tência para julgamento de Senador seria da justiça comum.

Sobre esse aspecto, manifesta o Ministro Victor Nunes entendimento,amparado em sólida jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, no sentido deque, tendo sido o ato praticado após a cessação do exercício da função, deixa deincidir a prerrogativa quanto à competência de julgamento.

Em segundo lugar, a irregularidade do flagrante118 e do inquérito. Esse pontose desdobra em alguns aspectos.

Conforme argumento do impetrante, apenas a autoridade policial poderiapromover o inquérito, competência essa eventualmente atribuída à autoridadeadministrativa — no caso, o Senado — desde que por força de lei. E, no caso,não haveria tal previsão legal.

Entretanto, o Ministro Victor Nunes demonstra que

“o regimento interno das câmaras legislativas, no que toca àsua própria polícia, tem força de lei, pois essa prerrogativa lhes foiatribuída com caráter de exclusividade pelo art. 40 da Constituição”(de 1946).

O impetrante apresentou ainda o argumento de que a polícia das Casas doCongresso somente alcançava seus parlamentares por atos praticados no exercí-cio da função legislativa.

Sobre esse aspecto, o Ministro Victor Nunes, lembrando inúmerosprecedentes da Suprema Corte norte-americana, sustenta o poder da Casalegislativa, ora impugnado, com base no princípio da independência dos Po-deres.

118 Quanto à regularidade do flagrante, aliás, nem muito enfatizada pelo impetrante, oMinistro Victor Nunes lembra que qualquer autoridade, assim como qualquer do povo,pode — ou deve, no caso da autoridade — prender em flagrante.

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Ministro Victor Nunes

Mais um aspecto é abordado pela defesa do Senador Silvestre Péricles,para apontar a ilegalidade do inquérito. Invocando-se o Código de ProcessoPenal, sustentava-se que apenas a autoridade policial poderia conduzir o in-quérito.

No entanto, mostra o Ministro Victor Nunes que a lei processual penaladmite a hipótese de, tendo sido o crime cometido perante a autoridade judiciária,o próprio juiz presidir o inquérito.

Assim, resta perguntar se, na hipótese ora tratada, o Senado estaria nodesempenho de função judiciária, devendo, portanto, ser equiparado às autoridadesjudiciárias, para efeito de poder a sua Mesa realizar o inquérito.

O Ministro Victor Nunes, lembrando que em matéria de impeachment oSenado indubitavelmente exerce função judiciária119, pondera que a competênciado Senado para resolver sobre a prisão em flagrante de Senadores, prevista noart. 45 da Constituição de 1946, é também tipicamente função judiciária120, tantoque ordinariamente atribuída ao juiz (art. 141, § 22).

É justamente essa função que está envolvida no caso em análise: aprovadaa prisão e realizado o inquérito, o Senado encaminhou os autos à justiça comum.Completa, ainda, o Ministro Victor Nunes:

“o Senado agiu autorizado pela própria Constituição, não ha-vendo necessidade de invocar argumento de ordem legal para quepudesse usar de uma prerrogativa envolvida no princípio da inde-pendência dos Poderes”.

De resto, o Ministro Victor Nunes encerra seu voto tratando da questãoda justa causa, que entende presente. Para tanto, analisa detidamente as cir-cunstâncias do caso concreto (que não parece ser o caso de aqui relatar), emespecial sobre ter ou não o Senador Silvestre Péricles acionado o gatilho dorevólver.

Vota, portanto, pela denegação da ordem. E esse foi o posicionamento damaioria, vencidos os Ministros Hermes Lima, Gonçalves de Oliveira e Vilas Boas —que não reconheciam justa causa.

119 Independentemente de se adotar entendimento de tratar-se de natureza penal oupolítica, o fato é que se cuida de julgamento judiciário, posto que a absolvição, no regimede então, impede a responsabilização pelo mesmo fato pela justiça comum.120 Observe-se que, no voto do Ministro Victor Nunes, empregam-se as expressões “fun-ção judiciária” e “função jurisdicional”, no caso, com o mesmo sentido.

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Memória Jurisprudencial

1.6 Regime de 1964

Inquérito Policial 2

Julgamento histórico: Caso João Goulart — Compe-tência para julgamento de ex-Presidente da Repú-blica — Acusação, em inquérito policial militar, deprática de crimes comuns durante o exercício do cargo —Direitos políticos suspensos pelo AI 2, com cessaçãode privilégio de foro por prerrogativa de função —Discussão sobre prevalência da Constituição de 1967sobre o AI 2 — Natureza dos atos institucionais —Efeitos da aprovação, pela Constituição, dos atos gover-namentais praticados com base em ato institucional.

Este é um julgamento catalogado como histórico no sítio de internet doSupremo Tribunal Federal.

Conforme lá sintetizado, discutia-se “essencialmente qual o tribunal oujuízo competente para julgar, em face da Constituição, o ex-Presidente daRepública João Belchior Marques Goulart, acusado em inquérito policialmilitar da prática de crimes comuns durante o exercício do cargo e que teveseus direitos políticos suspensos por regra transitória, de direito excepcio-nal — o AI 2”.

Em que pese a relevância histórica do julgamento, o Ministro Relator, Gonçal-ves de Oliveira, assim resume com precisão e simplicidade a questão jurídica contro-vertida: “devo dizer que estamos discutindo uma simples norma de competência.Do ponto de vista de garantia de defesa, a causa não tem relevância. Vamos,apenas, fixar uma norma processual constitucional.121”

O fundamento jurídico da questão deriva do art. 16 do Ato Institucional 2,que determinava como conseqüência da suspensão de direitos políticos a “cessa-ção de privilégio de foro por prerrogativa de função”. Tal seria, em princípio, o

121 E, mais adiante em seu voto, complementa: “A questão, como disse no início, não temrelevância, porque ser julgado pelo Superior Tribunal Militar, no fundo, é a mesmacoisa. Todos são juízes dignos, para acertar ou errar, porque o erro é da própria contin-gência humana. Mas a questão é processual, e parece que a Constituição atual não fazdistinção. Ela quis dar ênfase, maior garantia, maior certeza de decisão acertada e foipor isso que cometeu ao mais Alto Tribunal do País a competência para julgar as altasautoridades, entre as quais, o Presidente da República”. Por certo o Relator, nas entre-linhas da aparente neutralidade das ponderações “técnico-jurídicas”, reconhecia a rele-vância política do caso e a diversa conseqüência das possíveis soluções. Note-se que,não prevalecendo a competência do Supremo Tribunal, por crimes contra a segurançanacional, o julgamento seria pela Justiça Federal Militar; e, por outros crimes comuns, pelaJustiça Federal Comum.

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Ministro Victor Nunes

caso do ex-Presidente João Goulart, que, portanto, deixaria de ter foro junto aoSupremo Tribunal Federal para ser julgado pelos crimes de que era acusado.

Ocorre que tal processo se desenrolava após o início da vigência da Constitui-ção de 1967, havendo o AI 2 cessado sua vigência em 15 de março daquele ano122.

No entanto, a Constituição de 1967, ao mesmo tempo que explicitara(art. 114) a prerrogativa do foro para os Presidentes da República junto ao STF,em julgamento por crimes comuns, aprovara e afastara da apreciação judicial(art. 173) os atos praticados pelo “Comando Supremo da Revolução”, assimcomo pelo Governo Federal, com base nos Atos Institucionais 2, 3 e 4.

A compor, ainda, o espectro do Direito aplicável à matéria, havia a Súmula394 do STF: “Cometido o crime durante o exercício funcional, prevalece acompetência especial por prerrogativa de função, ainda que o inquérito oua ação penal sejam iniciados após a cessação daquele exercício”.

Considerando esses elementos, o Ministro Relator, Gonçalves de Oliveira,apresenta argumentos que o levam a concluir pela competência do STF para ojulgamento do ex-Presidente. Nesse sentido, fundamenta-se na nova normaconstitucional a estabelecer tal foro.

De outro lado, entende que a regra especial trazida pela Constituição, quan-to à aprovação de determinados atos praticados pelo governo, não tem por conse-qüência afastar a aplicação de regra de competência para julgamento: “ora, anorma que estabelece o foro para o processo penal não pode ser erigidacomo pena, é mandamento de ordem constitucional processual”.

E ainda argumenta que não haveria sentido em dar tratamento diverso, emmatéria de foro de julgamento, a ex-Presidentes processados após o término deseus mandatos, discriminando a causa da cessação dos mandatos (por exemplo:suspensão de direitos políticos, renúncia ou simples término do mandato em seutermo regular). Essa distinção não encontraria acolhida do texto constitucional.123

Na seqüência dos votos, o Ministro Djaci Falcão124, divergindo do Relator,reitera argumentos apresentados em caso que anteriormente relatara (Ação Pe-nal 158).

Em suma, entende que a suspensão dos direitos políticos, por força do AI 2,produz como efeito imediato a cessação da competência por prerrogativa de função.

122 Por expressa disposição de seu art. 33.123 Em seu voto, o Relator observa ainda que, em julgamento recente e análogo (AçãoPenal 157), votara com o Relator, Ministro Victor Nunes, e a maioria pelo reconhecimento dacompetência da justiça comum; agora, aprofundando a questão, altera seu pensamento.Entretanto, o Ministro Victor Nunes, em aparte, esclarece que o problema constitucional oradebatido não fora suscitado naquele caso, de modo que entende conservar “inteira liber-dade para examiná-lo, porque é a primeira vez que se põe perante o Supremo Tribunal”.124 Que acabará designado Relator para o acórdão.

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Memória Jurisprudencial

Esse efeito não haveria de se considerar modificado pela vigência da novaConstituição, salvo se o texto constitucional houvesse desfeito aquela sanção (asuspensão dos direitos políticos); e, de fato, não apenas a sanção fora mantida,como a Constituição de 1967 aprovara os atos praticados pelo Governo com baseno AI 2. E mais: aprovara o próprio AI 2, assim como outros atos de naturezalegislativa editados pelo Governo.

Daí concluir que os efeitos da suspensão dos direitos políticos, previstos noAI 2, entre eles o relativo ao foro de julgamento, devessem se manter na vigênciado prazo dessa suspensão. Seria, assim, da Justiça Federal a competência para ojulgamento do ex-Presidente João Goulart.

Esse último argumento do Ministro Djaci Falcão é objetado pelo MinistroThemistocles Cavalcanti, que, concordando com o Ministro Gonçalves de Olivei-ra, invoca a lição de Pontes de Miranda para sustentar que a Constituição de1967 (art. 173) não aprovara os Atos Institucionais em si, mas atos praticadoscom base neles; de outro lado, não tendo sido tais Atos Institucionais revogados,foram mantidos no novo regime constitucional, porém com natureza de lei, nãosendo admissível contrapô-los ao texto constitucional.

Desse modo, no caso concreto, haveria de prevalecer a regra quanto aforo por prerrogativa de função fixada no art. 114 da Constituição, e não a regradecorrente da aplicação do AI 2.125

O Ministro Victor Nunes, a seu turno, em voto curto, mas tocando comprecisão os argumentos centrais em debate, manifesta sua concordância com aposição sustentada pelo Ministro Relator, Gonçalves de Oliveira.

São dois os pontos principais. Em primeiro lugar, não pode decorrer do art.173 da Constituição de 1967 que tenham passado a coexistir duas regras consti-tucionais: “no caso presente, o que se pretende [a prevalecer a posição oposta]é fazer sobreviver, em face da Constituição em vigor, um ato normativo in-compatível com ela, o qual, por seu caráter de exceção, tinha vigência porprazo determinado” (o AI 2).

Em segundo lugar, não cabe invocar a aprovação, pela Constituição de1967 (art. 173), de um ato pretérito, praticado com base no AI 2: “aqui nãoestamos discutindo a validade do ato de suspensão de direitos políticos. Oque estamos discutindo é um problema de competência para julgar processoque ainda está pendente”.

125 Os extensos debates que se seguem explicitam entendimentos divergentes, sendoapresentados ricos argumentos. Contudo, dado o propósito deste trabalho, não pareceoportuno analisar aqui todas as posições, além dos argumentos centrais acima sinteti-zados. A íntegra do acórdão é facilmente encontrada no sítio de internet do STF e estápublicada na Revista Trimestral de Jurisprudência, vol. 46.

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Ministro Victor Nunes

E prossegue com considerações sobre atos consumados, em se tratandode regra de competência:

“Em matéria de competência, só se pode falar em ato consuma-do, quando a autoridade o tenha praticado no tempo em que tinha acompetência. Se o presente processo tivesse sido julgado pela JustiçaMilitar antes da vigência da atual Constituição, teríamos uma situa-ção consumada, porque a competência teria sido exercida legitima-mente, ao tempo em que o Ato Institucional a conferia à Justiça Mili-tar e não ao Supremo Tribunal. Mas ainda não julgado o processo,que nem se iniciou por não ter havido denúncia, prevalece integral-mente a competência originária do Supremo Tribunal, que a Consti-tuição de 67 restabeleceu, sem distinguir entre acusados com direitospolíticos suspensos ou na plenitude dos seus direitos políticos”.

Colhidos todos os votos, inclusive o do Ministro Presidente, Luiz Gallotti,houve empate de sete votos contra sete.

Nessa situação, o Ministro Presidente entende não ter sido alcançada amaioria de nove votos para que se declarasse a inconstitucionalidade do art. 16do AI 2, devendo prevalecer essa norma. Mas outros Ministros sustentam não setratar do julgamento de inconstitucionalidade de lei, não havendo que cogitar dessequorum especial.

Lembra, então, o Ministro Presidente que, antes de votar, estando ele próprioem dúvida quanto a se estar tratando de julgamento de constitucionalidade — casoem que o presidente sempre tem voto —, questionara o Tribunal, havendo-seconcluído unanimemente ser o caso de votar. Surge então questão de ordem,consistente em saber se o caso pode ser decidido por maioria simples ou se seexige o quorum de nove votos.

Ao longo da votação, dois argumentos contrapostos se destacam: há Minis-tros que entendem que se estava a decidir a validade de norma do AI 2 em face daConstituição de 1967; outros sustentam que não se estava a declarar a inconstituci-onalidade de nenhuma norma ou ato, mas apenas decidindo-se aplicação de regrade competência a determinado caso, ou seja, interpretando-se a Constituição.

Mas, durante os debates, o primeiro desses argumentos ganha uma deriva-ção. Discute-se se o AI 2 seria norma revogada ou norma que restara inconstitu-cional em face da nova Constituição.

Isso porque, naquele tempo, havia majoritariamente no STF o entendimentode que a lei anterior que se mostrasse incompatível com a nova Constituiçãodeveria ser considerada inconstitucional126.

126 O Ministro Victor Nunes sustentava posição minoritária no sentido de tal normadever ser considerada revogada (cf. supra comentários à Rp 725).

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Memória Jurisprudencial

Mesmo em face do entendimento majoritário — que levaria à considera-ção de ser inconstitucional a regra do AI 2 —, o Ministro Victor Nunes sustentaque não se pode cogitar de inconstitucionalidade entre duas normas tidas comode nível constitucional, como seriam o AI 2 e a Constituição de 1967.

Concluindo a votação da questão de ordem, majoritariamente o Tribunalentendeu não ser necessário quorum especial, por não se estar tratando de declara-ção de inconstitucionalidade de lei ou de ato do Poder Público, e sim cuidando-sede interpretação constitucional.

No entanto, nova questão de ordem é apresentada. Isso porque, com esseresultado, o Ministro Presidente pretende retirar seu voto de mérito — que erafavorável à prevalência da regra do AI 2 —, entendendo ser cabível votar apenasem casos de declaração de inconstitucionalidade, nos quais é exigido quorumespecial. Mas o Ministro Eloy da Rocha diverge, sustentando que o Presidentedeve votar sempre que se trate de matéria constitucional.

A votação dessa segunda questão de ordem resulta em empate.

Ao longo dos debates — nos quais se destaca a extrema prudência esenso de responsabilidade dos Ministros e do Presidente, ao decidirem matéria degrande relevância jurídica, política e institucional —, antes que se resolvesse emdefinitivo a questão do voto do Presidente, o Ministro Themistocles Cavalcantilevanta mais uma questão de ordem, decorrente de ponto suscitado, de passa-gem, em seu voto: teria sido o AI 2 recebido pela Constituição como norma cons-titucional ou como norma legal?

Em face dessa questão, o Ministro Victor Nunes decide retificar seu voto naquestão de ordem referente à necessidade de quorum especial. Lembre-se queseu argumento era, então, o de que não se poderia cogitar de inconstitucionalidadeentre duas normas de nível constitucional; daí por que dispensar-se o quorumespecial.

Com essa última questão levantada, assim se manifesta o Ministro VictorNunes:

“A ponderação, em que acaba de insistir o eminente MinistroThemistocles Cavalcanti, me leva a reconsiderar meu voto. Os atosinstitucionais têm sido considerados de categoria constitucional noperíodo de sua plena vigência. Aqui se discute se tais normassobrevivem na vigência de nova Constituição; e também, no caso desobreviverem, em que categoria deverão ser situadas.

Parece-me incontestável que elas não podem sobreviver comonormas constitucionais, como sustentei no caso das Docas daBahia, onde salientei a impossibilidade de coexistirem dois sistemas

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constitucionais colidentes. Portanto, Sr. Presidente, a sobreviveremessas normas pretéritas, constantes dos Atos Institucionais, terãoelas de ficar situadas em categoria inferior à da Constituição. Jánão teremos normas da mesma hierarquia, que era o pressuposto domeu voto.

Reconsidero, pois, o meu pronunciamento, entendendo que énecessário o voto de nove juízes para ser declarada a inconstitucio-nalidade.”

Nesse passo, apenas para que se recorde: (a) está empatada a questão demérito; (b) estava decidida a questão de ordem quanto à desnecessidade de quo-rum especial, mas a questão volta a ficar em aberto com a alteração de voto doMinistro Victor Nunes; (c) está empatada a questão de ordem quanto ao cabimentodo voto do Presidente, mas essa questão será afetada caso se altere o resultadoda primeira questão de ordem; (d) está em aberto a questão de ordem levantadapelo Ministro Themistocles Cavalcanti, quanto a se tratar o AI 2 no nível denorma constitucional, depois do advento da Constituição de 1967.

Ao votar nessa última questão de ordem, o Ministro Gonçalves de Oliveirasugere o adiamento do julgamento, para que dois Ministros ausentes — AliomarBaleeiro e Adalicio Nogueira — também votem no mérito. Essa proposta é aco-lhida, contra o voto do Ministro Evandro Lins.

E esses dois Ministros votam no sentido de não admitir a competência doSupremo Tribunal Federal, no caso.

Assim, o resultado do julgamento foi a decisão pela competência da Justi-ça Federal, contra os votos dos Ministros Gonçalves de Oliveira (Relator),Themistocles Cavalcanti, Adaucto Cardoso, Evandro Lins, Hermes Lima, VictorNunes e Lafayette de Andrada.

Mandado de Segurança 17.957

Decreto-lei — Configuração de lei em tese paraefeito do não-cabimento de mandado de segurança —Lei com efeitos concretos — Interpretação da regra doafastamento da apreciação pelo Judiciário de atos prati-cados no regime militar — Supremacia da Constituição.

Neste caso, o Decreto-Lei 128, de 31-1-67, editado no período “revolucio-nário”, antes porém da entrada em vigor da Constituição de 1967, alterara regraaplicável aos contratos de concessão dos serviços portuários, criando vedaçãoantes não existente..

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Memória Jurisprudencial

Tal vedação referia-se a determinadas operações que os concessionáriospudessem realizar com seus bens, atingindo, entre outras hipóteses, direitos sobreterrenos de marinha e acrescidos127.

O mandado de segurança foi impetrado pela Companhia Docas da Bahiacontra o Decreto-Lei 128/67. Duas questões preliminares mais relevantes foramobjeto de debates, restando o mandado não conhecido, nos termos do voto doMinistro Relator, Aliomar Baleeiro, vencidos os Ministros Victor Nunes, PradoKelly, Evandro Lins e Hermes Lima.

A primeira questão dizia respeito a considerar tal Decreto-Lei como “leiem tese”, fazendo incidir a Súmula 266. A segunda se referia à norma contida naConstituição de 1967128, que exclui do controle jurisdicional os decretos-leis ex-pedidos a partir do AI 4, de 1966, e antes de 15 de março de 1967 — data daentrada em vigor da Constituição.

O Ministro Relator, Aliomar Baleeiro, quanto ao primeiro ponto, invocandoo conceito consolidado por Duguit de “ato-regra”, entende que o Decreto-Lei128/67 assim se enquadra, configurando lei em sentido material por conter man-damento de alcance geral e impessoal, impondo vedação a todos os concessioná-rios de portos.

Desse modo, o Decreto-Lei 128/67 seria “lei em tese”, contra a qual nãocabia mandado de segurança, nos termos da Súmula STF 266.

E, quanto ao segundo ponto, também posiciona-se pela impossibilidade deapreciação judicial do Decreto-Lei 128/67, ainda que o advogado da impetrantehaja esclarecido que não argüia sua inconstitucionalidade, mas apenas sustentavaa possibilidade de que o Supremo Tribunal Federal reconhecesse que, em dadocaso concreto, tal norma violasse direito líquido e certo.

O Ministro Relator, ressaltando ser a primeira ocasião em que o SupremoTribunal Federal julgava contestação a um dos 115 decretos-leis abrangidos pelaregra do art. 173 da Constituição, apenas reitera, invocando tal norma constitucio-nal, a impossibilidade de se afastar a validade do Decreto-Lei 128/67, de restoafirmando não ser relevante que esse Decreto-Lei tenha sido editado em 31 dejaneiro, após a “assinatura” do novo texto constitucional — 24 de janeiro —,posto que de todo modo seria anterior à promulgação e início da vigência daConstituição — 15 de março.

127 Não é pertinente, no entanto, aqui adentrar nessa análise do mérito, posto que essemandado de segurança restou não conhecido e o Ministro Victor Nunes não abordou taisaspectos em seu voto.128 “Art. 173. Ficam aprovados e excluídos de apreciação judicial os atos praticadospelo Comando Supremo da Revolução de 31 de março de 1964, assim como: I - peloGoverno Federal, com base nos Atos Institucionais n. 1, de 9 de abril de 1964; n. 2, de 27

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Ministro Victor Nunes

Eis a parte da ementa do acórdão que dizia respeito a essas questões preli-minares: “1 – Não é admissível mandado de segurança contra o Decreto-Lei128, de 31-1-67, como lei em tese (Súmula 266). 2 – São válidas, constitucio-nais e estão salvaguardadas pelas Disposições Transitórias da Constituiçãode 1967 os 115 decretos-leis expedidos entre 24-1-67 e 15-3-67, data depromulgação e início de vigência dessa Carta Política”.

Em seu voto, o Ministro Victor Nunes sustenta posição divergente quantoa essas duas questões.

Quanto à primeira, admite, com o Relator, que esse Decreto-Lei deve, sim,ser enquadrado no sentido de lei em tese, dada a generalidade de seu comando129.

No entanto, apresenta lúcida ponderação quanto a determinadas leis, aindaque tomadas em tese, serem passíveis de impugnação via mandado de segurança.Isso se dá com as leis proibitivas, cujo comando já produza efeitos diretos supos-tamente violadores de direito líquido e certo, sem depender da edição de qualquerato administrativo (v.g. autorização, licença130) de execução da lei.

Nesses casos, entende o Ministro Victor Nunes cabível o mandado de segu-rança contra a “lei”, afastando sua incidência de determinado caso concreto131.

Quanto ao segundo ponto, o Ministro Victor Nunes interpreta a norma doart. 173 da Constituição de 1967 como não impeditiva da análise da compatibilidadedas normas a que se refere com o regime estabelecido pela própria Constituição.

“Não podemos extrair do texto constitucional a conclusão deque o Poder Revolucionário imunizou todo o conteúdo da legislaçãopré-constitucional, mesmo nas partes a que contrarie a própriaConstituição. Isso seria um contra-senso.

de outubro de 1965; n. 3, de 5 de fevereiro de 1966; e n. 4, de 6 de dezembro de 1966, enos Atos Complementares dos mesmos Atos Institucionais; II - as resoluções das Assem-bléias Legislativas e Câmaras de Vereadores que hajam cassado mandatos eletivos oudeclarado o impedimento de Governadores, Deputados, Prefeitos e Vereadores, funda-dos nos referidos Atos Institucionais; III - os atos de natureza legislativa expedidos combase nos Atos Institucionais e Complementares referidos no item I; IV - as correções que,até 27 de outubro de 1965, hajam incidido, em decorrência da desvalorização damoeda e elevação do custo de vida, sobre vencimentos, ajuda de custo e subsídios decomponentes de qualquer dos Poderes da República.”129 Este o critério definidor: a generalidade do comando, o que não se confunde compluralidade: pode ser que uma norma individual atinja diversos indivíduos; nem por issoserá “lei em tese”.130 Se depender desses atos, seriam estes, e não a lei, o alvo do mandado de segurança.131 Com essa interpretação, admitir-se-ia o mandado de segurança para questionar aaplicação de uma norma de comando genérico, não no sentido de discutir em abstrato suavalidade, mas no sentido de obstar sua aplicação em um caso concreto.

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Memória Jurisprudencial

Não é possível haver, simultaneamente, dois regimes constitucio-nais. Antes da constituição, havia, por exemplo, uma tramitação le-gislativa estabelecida em ato institucional. A Constituição estabeleceuoutra. Pelo fato de ter a Constituição aprovado os atos institucionais,podem subsistir os dois processos legislativos? Evidentemente não.Vigora somente o da Constituição. E a razão disso é que os atos pra-ticados pelo Governo Revolucionário, e que se projetavam para ofuturo, não foram aprovados em todo o seu conteúdo. Essas suasconseqüências ulteriores estão sujeitas ao que a respeito dispõe aConstituição. O país não foi constitucionalizado pela metade. A Cons-tituição substituiu inteiramente a ordem pré-constitucional. Ao ressal-var atos anteriores, referiu-se aos efeitos já produzidos, mas nãocriou dois sistemas constitucionais, porque isso seria uma aberração.Não pode haver, no regime constitucional, um outro sistema de nor-mas que o Supremo Tribunal tenha de aplicar contra a letra e o espí-rito da Constituição.”

Assim, o sentido da norma constitucional em análise seria afastar da apre-ciação judicial, em primeiro lugar, atos praticados com base em normas editadasno “período revolucionário” anteriormente a 15 de março de 1967; e, em segundolugar, a legitimidade da expedição das normas — no caso, a competência do Presi-dente da República para expedir o Decreto-Lei 128/67.

Mas não seria razoável supor que a Constituição pretendesse ter criado asituação na qual persistiria válido, produzindo efeitos futuros, ato normativo in-compatível com o conteúdo da própria Constituição.

Tal posição, contudo, como já apontado, não prevaleceu, não tendo sido omandado de segurança conhecido pelo Tribunal, pelas duas preliminares.

Mandado de Segurança 14.746

Interpretação da regra do afastamento da aprecia-ção pelo Judiciário de atos praticados no regime militar —Natureza dos atos institucionais.

A referência a este caso, assim como aos MS 14.801, 14.821, 14.826,14.833, 14.837, 14.839, 14.845, 14.865, 14.867, 14.885, 14.888, 14.889,14.890, 14.903, 14.909, 14.920, 14.924, 14.950, 14.967 e 14.988, todos relata-dos pelo Ministro Victor Nunes, concentradamente nos dias 9 de fevereiro e 22 dejunho de 1966 — além de possíveis outros exemplos no mesmo sentido, relatados poroutros Ministros —, justifica-se para registrar o reiterado posicionamento do Supremo.

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Ministro Victor Nunes

Tribunal Federal, em matéria da aplicação do disposto no art. 19, I, do AtoInstitucional 2, de 27 de outubro de 1965:

“Ficam excluídos da apreciação judicial os atos praticadospelo Comando Supremo da Revolução e pelo Governo Federal, comfundamento no Ato Institucional de 9 de abril de 1964, no presenteAto Institucional e nos Atos Complementares deste”.

Verifica-se assim que o Tribunal aceitou que tais atos não fossem passíveisde controle judicial. E aceitou pacificamente, tanto assim que todos esses exem-plos foram decididos por unanimidade quanto ao não-conhecimento dos manda-dos de segurança, tendo o voto do Relator nada mais que um parágrafo de moti-vação, sem gerar debates.

Vale lembrar que tanto o primeiro Ato Institucional como o Ato Institucio-nal 2, além dos outros que se seguiram, procuraram justificar-se juridicamente —e, ademais, impuseram-se na prática — como exercício do Poder ConstituinteOriginário. Nesse sentido, extrai-se do preâmbulo do primeiro: “Fica, assim, bemclaro que a revolução não procura legitimar-se através do Congresso. Esteé que recebe deste Ato Institucional, resultante do exercício do Poder Cons-tituinte, inerente a todas as revoluções, a sua legitimação”. E do preâmbulodo AI 2: “(...) o Poder Constituinte da Revolução lhe é intrínseco, não ape-nas para institucionalizá-la, mas para assegurar a continuidade da obra aque se propôs”.

O reconhecimento do caráter revolucionário — no sentido jurídico defundante de nova ordem — dos Atos Institucionais e, posteriormente, da Constitui-ção de 1967, surge claro em outras manifestações, como, por exemplo, na Rp 753,acima comentada por outros aspectos.

Mandado de Segurança 15.050

Perda de objeto da ação ante alteração no tratamentoconstitucional da matéria versada.

Trata-se de caso relatado pelo Ministro Victor Nunes, resultando emacórdão unânime do Tribunal Pleno. O voto é bastante sucinto, mas mostra-seconveniente para registrar a aplicação pacífica da tese de que, ante mudança daordem constitucional, com o início da vigência da Constituição de 1967, acarre-tando tratamento diverso para a matéria em questão — fiscalização financeira eorçamentária pelo Tribunal de Contas —, resta prejudicado o pedido formuladoneste mandado de segurança.

Com efeito, a causa de pedir decorria do procedimento antes previsto, peloqual a recusa do Tribunal de Contas da União ao registro de um contrato adminis-trativo suspenderá sua execução até que se pronuncie o Congresso Nacional..

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Memória Jurisprudencial

A questão litigiosa dizia respeito a eventuais direitos do particular contratadode defender a manutenção do contrato perante o Tribunal de Contas, quando aAdministração aceitasse o posicionamento de recusa de registro pelo Tribunal.

Com a mudança da Constituição, agora prevendo-se procedimento diverso —o Tribunal de Contas, verificando a ilegalidade da despesa, solicita ao CongressoNacional a suspensão do contrato ou outra medida que julgar necessária ao resguardodos objetivos legais —, e não tendo havido novo pronunciamento pelo Tribunal, julgou-se prejudicado o pedido.

Mandado de Segurança 18.973

Limites à aprovação, pela Constituição de 1967, deatos praticados no regime militar — Prevalência exclu-siva da Constituição.

Tratava-se de mandado de segurança, pelo qual os impetrantes, juízesfederais substitutos em São Paulo, pretendiam direito ao provimento do cargoefetivo, por acesso.

Nesse sentido, argumentavam que os juízes federais recentementeempossados foram nomeados livremente pelo Presidente da República — comopreviam o Ato Institucional 2 e a Lei Federal 5.010/66 —, em desacordo com aConstituição de 1967, que passou a exigir, para tanto, concurso de provas e títulos.Estando, assim, vagos esses cargos, entenderam os impetrantes, juízes substitutos,ter direito de ascender na carreira, preenchendo-os.

A Presidência da República, defendendo o ato impugnado, sustentava quea previsão do AI 2, assim como da Lei Federal 5.010/66, referia-se às primeirasnomeações dos juízes federais e juízes federais substitutos, ou seja, que as nomea-ções para as primeiras vagas — todas elas — poderiam processar-se indepen-dentemente de concurso. No caso de São Paulo, diferentemente do restante doPaís, por alguma demora, tais vagas não haviam sido preenchidas antes da Cons-tituição de 1967.

O Ministro Relator, Themistocles Cavalcanti, acolhendo a tese da Presi-dência, posiciona-se no sentido de entender que as nomeações em São Pauloconfiguravam

“continuidade da aplicação de um mesmo dispositivo legal sobreuma série de fatos da mesma natureza: o primeiro provimento de JuízesFederais. O advento da Constituição e a adoção de um sistema novo

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não justificariam a interrupção da aplicação de um processo apoiadoem um texto legal que tem o seu fundamento no Ato Institucional,aprovados esses Atos pela Constituição que os revigora”.

De todo modo, entende que não assistiria direito aos impetrantes, seja por-que a Lei de Organização da Justiça Federal não previa o acesso direto de juízessubstitutos a juízes federais — senão por lista tríplice elaborada pelo Tribunal Fe-deral de Recursos, em concorrência com outros bacharéis em Direito; e issotambém já não mais seria possível em face da Constituição de 1967 —, sejaporque o acesso ao cargo de juiz federal que vinha a vagar, na época daimpetração, já exigiria concurso público; e os impetrantes foram nomeados juízessubstitutos ainda pela forma do direito anterior, ou seja, livre provimento.

Por essa razão, indefere a segurança.

Em seu voto, o Ministro Victor Nunes, divergindo do Relator, apresentarelevantes considerações sobre direito intertemporal, envolvendo o período ex-cepcional do regime de 1964.

Inicia por frisar duas teses, aplicáveis ao caso, mas generalizáveis paraoutras situações.

Em primeiro lugar, reiterando argumento do Ministro Evandro Lins, sus-tenta que

“uma lei do período revolucionário, mas legitimamente ema-nada do Congresso, não pode estar abrigada na exceção do art.173 da Constituição de 1967132, porque a validade daquele ato legisla-tivo de modo algum dependeria de ratificação constitucional poste-rior”.

Era esse o caso da Lei 5.010/66.

132 “Art. 173. Ficam aprovados e excluídos de apreciação judicial os atos praticadospelo Comando Supremo da Revolução de 31 de março de 1964, assim como: I - peloGoverno Federal, com base nos Atos Institucionais n. 1, de 9 de abril de 1964; n. 2, de27 de outubro de 1965; n. 3, de 5 de fevereiro de 1966; e n. 4, de 6 de dezembro de 1966,e nos Atos Complementares dos mesmos Atos Institucionais; II - as resoluções das Assem-bléias Legislativas e Câmaras de Vereadores que hajam cassado mandatos eletivos oudeclarado o impedimento de Governadores, Deputados, Prefeitos e Vereadores, funda-dos nos referidos Atos Institucionais; III - os atos de natureza legislativa expedidos combase nos Atos Institucionais e Complementares referidos no item I; IV - as correções que,até 27 de outubro de 1965, hajam incidido, em decorrência da desvalorização damoeda e elevação do custo de vida, sobre vencimentos, ajuda de custo e subsídios decomponentes de qualquer dos Poderes da República.”

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Além da lucidez da ponderação, valorizando, no caso, o princípio constitu-cional da inafastabilidade do controle jurisdicional, observe-se que, contrariosensu, o Tribunal pacificamente admitia as exceções a esse princípio (cf. supracomentários ao MS 14.746).

Em segundo lugar, defende a idéia de que não seria admissível conside-rar aprovados em sua plenitude, pela Constituição de 1967, com efeitos para ofuturo, os atos normativos do período revolucionário. Entende ainda ser essaponderação especialmente apropriada para disposições que conferem compe-tência.

Idéia contrária poderia levar à situação paradoxal de, eventualmente, aConstituição projetar para o futuro normas anteriormente editadas, ainda que amesma Constituição tenha disposto de modo diverso sobre a matéria.

“O regime constitucional é um só e não pode admitir duascompetências simultâneas e conflitantes. A nova Constituição, aoaprovar atos de um período anterior, tanto mais que se tratava deperíodo excepcional, o que aprovou, na verdade, foram os atospraticados pelo governo revolucionário e os efeitos que resultaramdesses atos.

Não me parece que se possam considerar aprovadas normas,para que produzam efeitos no futuro, contrariamente ao que dispõe aprópria Constituição, já em pleno vigor, principalmente, repito, emmatéria de competência.”

Exemplifica, para reforçar seu argumento, com o caso dos decretos-leis,que, nos termos do Ato Institucional 2, em dadas circunstâncias (recesso parla-mentar), poderiam abranger todas as matérias de competência da União. AConstituição de 1967, por sua vez, impôs limites de matéria mais restritivos aosdecretos-leis. Conclui, naturalmente, que, após a vigência da Constituição, devemser respeitados os limites constitucionais, sendo certo, por outro lado, que os de-cretos-leis editados anteriormente, ainda que abrangendo matéria mais extensa,permanecerão válidos.

Aplicando o raciocínio ao caso concreto, observa que, após a Constituiçãode 1967, que alterou o modo de provimento dos cargos de juiz federal, não podemais o Presidente da República “nomear livremente” juízes, “dentre brasileirosde saber jurídico e reputação ilibada”, como previa o AI 2. O que não impedeque permaneçam válidas as nomeações anteriormente feitas, com fundamentonaquele Ato, não sendo esse o caso dos Juízes de São Paulo.

Todavia, quanto ao direito dos impetrantes, reconhece, no mesmo sentidodo voto do Ministro Evandro Lins — aliás, conforme também já se manifestara o.

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Relator, ainda que com outros argumentos —, que os juízes substitutos não teriamdireito, por acesso, a preencher, sem concurso ou sem observar o rito decorrenteda Constituição de 1967133, os cargos de juiz federal.

Teriam direito, no entanto, à substituição dos cargos de juiz federal — queos Ministros Evandro Lins e Victor Nunes entendem estejam vagos —, até que,regularmente, por concurso, sejam investidos novos juízes.

Nesse sentido, o Ministro Victor Nunes acompanha o voto do MinistroEvandro Lins, concedendo parcialmente a segurança, restando vencidos, junta-mente com o Ministro Hermes Lima. A maioria decidiu pela denegação da segu-rança.

2. TEMAS DE DIREITO ADMINISTRATIVO

2.1 Autarquias

Mandado de Segurança 8.693

Investidura com prazo certo de dirigentes de autar-quias — Analogia com regulatory agencies dos EUA —Autonomia de entes da administração indireta no Brasil —Limites ao poder de exonerar do Chefe do Executivo —Argumentos de ordem constitucional, legal, política eadministrativa — Limites à apreciação judicial sobreopções políticas do Legislativo.

Trata-se de caso no qual o Ministro Victor Nunes produz longo voto, con-tendo rica argumentação e fundamentação doutrinária e jurisprudencial. Nestecaso, o Ministro busca prestigiar precedentes do Supremo Tribunal Federal e, aomesmo tempo, firma entendimento que voltará a ser invocado em outros julga-mentos.

A questão discutida mostra-se bastante atual, no contexto da discussão doregime especial de determinadas autarquias, particularmente das ditas agênciasreguladoras, no tocante à fixação de prazo para a investidura de seus dirigentes.

Este mandado de segurança foi impetrado por Murillo Gondim Coutinho,ocupante de cargo no Conselho Administrativo do Instituto de Aposentadorias e

133 A Constituição distinguira os cargos de juiz federal — esses necessariamente provi-dos por concurso de provas e títulos — e os cargos de juiz substituto — cujo provimentodeveria ser disciplinado por lei (art. 118, caput e § 2º).

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Pensões dos Industriários, do qual fora exonerado por ato do Presidente da Re-pública, Jânio Quadros, em que pese a previsão legal de investidura com o prazocerto134 de quatro anos.

O Ministro Relator, Ribeiro da Costa, produz extenso voto, negando asegurança.

O Ministro Victor Nunes sistematiza seu voto abordando, em três fases,argumentos de ordem constitucional, legal e político-administrativa.

Inicia pelo plano constitucional. Aqui, quatro argumentos favoráveis à po-sição da autoridade coatora são analisados e rebatidos.

O primeiro argumento a ser superado é o de que a Constituição de 1946,ao prever que compete ao Presidente da República “prover, na forma da lei ecom as ressalvas estatuídas por esta Constituição, os cargos públicos fe-derais”, teria deixado implícito, no poder de nomear, o de destituir.

De plano, o Ministro Victor Nunes observa que tal entendimento levaria àconseqüência de que “a Constituição democrática de 1946 dá mais poderesao Presidente da República, em certos setores, do que a Constituição auto-ritária de 1937”.

Pretendiam os defensores dessa tese que a expressão constitucional “naforma da lei” importasse em que a lei apenas pudesse dispor sobre a “forma” doexercício do poder em questão.

Já, por força da expressão “com as ressalvas estatuídas por estaConstituição”, as restrições e condicionamentos possíveis ao poder de no-mear — e, implicitamente, de destituir — seriam apenas os previstos constitu-cionalmente.

O Ministro Victor Nunes demonstra que essa interpretação não é a maisadequada. Em primeiro lugar, a expressão “na forma da lei”, freqüente na reda-ção legislativa, nunca quis dizer “de acordo com as formalidades estabelecidasna lei”, mas sempre foi entendida no sentido mais amplo de “na conformidade dalei, consoante a lei, segundo a lei, segundo o que dispuser a lei”, tanto emtermos de forma, como em termos de conteúdo, respeitadas, por óbvio, as normasconstitucionais.

Já a referência constitucional a “ressalvas” diria respeito a outros casos deprovimentos de cargos, previstos na Constituição, porém fora do âmbito do Exe-cutivo, ou seja, cargos no Congresso ou nos Tribunais.

134 O Ministro Victor Nunes, com precisa argumentação, critica o uso da expressão “man-dato” nesses casos, como mais adiante se vai esclarecer. Os demais Ministros empregam,sem maiores ressalvas, essa expressão, aliás corrente ainda hoje.

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Em reforço ao seu argumento, lembra, citando Rui Barbosa e CarlosMaximiliano que, sob a Constituição de 1891, na qual, em dispositivo equivalente,nem se mencionava “lei”, admitiam-se as restrições legais. E, mesmo interpre-tando a Constituição de 1946, nesse sentido posicionam-se Pontes de Miranda eThemistocles Cavalcanti.

Por outro lado, deve-se notar que a Constituição, do dispositivo acimatranscrito, refere-se a “prover”, o que é mais amplo que “nomear”. A prevalecerentendimento diverso, chegar-se-ia à conclusão de que a lei não poderiacondicionar outras formas de provimento — exemplo: promoção, transferência,aproveitamento, etc. —, tornando assim inconstitucionais normas de todos osestatutos de servidores públicos.

Observa, ainda, que a participação do Poder Legislativo, disciplinando amatéria relativa ao provimento de cargos pelo Poder Executivo, é natural no“regime adotado pela Constituição, que é o da divisão de poderes, cujopressuposto é a harmonia e não a guerra dos poderes”.

Outros dispositivos da Constituição vêm, sistematicamente, corroboraresse entendimento da legitimidade de atuação do Legislativo na matéria: o art.184 prevê que os cargos públicos sejam acessíveis a todos os brasileiros, “obser-vados os requisitos que a lei estabelecer”; e o art. 188 trata de cargos que a “lei”declare de livre nomeação e demissão135.

Feita a análise de Direito positivo, o Ministro Victor Nunes passa a argumentarcom o sentido finalístico da investidura do servidor público por prazo certo:

“eis uma providência que se integra, com toda a naturalidade,no regime de autonomia administrativa atribuído, por lei, a certosórgãos. Visa a investidura de prazo certo a garantir a continuidadede orientação e a independência de ação de tais entidades autôno-mas, de modo que os titulares, assim protegidos contra as injunçõesdo momento, possam dar plena execução à política adotada peloPoder Legislativo, ao instituir o órgão autônomo”.136

Continua o Ministro Victor Nunes, em seu raciocínio, produzindo profundaanálise da jurisprudência e da doutrina norte-americana sobre o assunto, paramostrar que seu ponto de vista é aceito com naturalidade também nos Estados

135 “Demissão” é a palavra usada pela Constituição de 1946, querendo dizer não neces-sariamente “demissão” no sentido técnico corrente de punição, mas, sim, o que tecnica-mente se diz “exoneração”.136 Aliás, a clara noção da distinção das funções dos três Poderes, no contexto de umregime democrático, marca o pensamento do Ministro Victor Nunes neste e em tantosoutros casos. Mais adiante, neste voto, esse aspecto voltará a ser abordado.

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Unidos. E a invocação desse paradigma é de todo justificável, dada a “identida-de dos regimes políticos, em seus traços essenciais, como também pela cir-cunstância de que os norte-americanos estão praticando o presidencialismo,que inventaram, desde mais de cem anos antes de nós”137.

Nesse sentido, cita as normas de regência de mais de uma dezena deindependent regulatory agencies, ou comissions, que prevêem investiduracom prazo certo.

Passando a analisar a evolução da jurisprudência norte-americana sobre amatéria, assim a sintetiza:

“O significado e o alcance jurídico da investidura do prazocerto ficam a depender da natureza do cargo ou função. No tocanteaos que se situam, estritamente, na linha hierárquica do Poder Exe-cutivo, isto é, dentro da estrutura a que chamamos, no Brasil, a admi-nistração direta, entende-se que a investidura de prazo certo apenasmarca o seu termo final, mas não impede o Chefe de Governo deexonerar o funcionário antes desse termo. Essa foi a doutrina de umjulgamento famoso, o Myers Case (272 U.S. 52), de 1926. Foi Relatoro Chief Justice William Taft, que por coincidência tinha sido Presi-dente dos Estados Unidos. Ficaram vencidos McReynolds e os doisluminares Holmes e Brandeis.

Entretanto, nas duas outras decisões, igualmente famosas, pos-teriores àquela, uma de 27-5-1935, outra de 30-6-1958, ficou decidi-do que a doutrina do Myers Case não se aplicava às nomeações deprazo certo para órgãos dotados de autonomia administrativa, dosquais, nos Estados Unidos, se diz que exercem funções quase-legisla-tivas ou quase-judiciárias, entidades criadas por lei e que corres-pondem, lato sensu, às nossas autarquias, dotadas, nos limites da lei,de funções normativas e jurisdicionais, não obstante o seu caráter deórgãos administrativos, integrantes da administração descentralizada.Refiro-me ao Caso Humprey (295 U.S. 602, 1935) e ao Caso Wiener(357 U.S. 349, 1958)”.

137 E, registrando estranhar a ironia com que alguns colegas de Tribunal trataram,anteriormente, a invocação da experiência dos Estados Unidos, lembra, além dessesargumentos, que “grandes juristas brasileiros, entre eles Rui Barbosa, o maior dosque já pleitearam perante o Supremo Tribunal, nunca se pejaram de recorrer às fontesnorte-americanas”.

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E prossegue:

“o objetivo da nova doutrina, que a Corte Suprema anuncioude maneira explícita, foi justamente garantir o exercício das funçõese atribuições dos mencionados órgãos autônomos com a necessáriaindependência, em face do Poder Executivo, para que pudessemcumprir, a salvo de injunções, a política ou orientação traçada peloPoder Legislativo, ao instituir tais entidades autônomas”.138

Nesse ponto, o Ministro Relator, Ribeiro da Costa, objeta não guardar asituação invocada pertinência com o Direito brasileiro, ao que o Ministro VictorNunes responde que, “nos Estados Unidos, o que se chamam funções quase-judiciárias e quase-legislativas é, precisamente, o que nós chamamos, aqui,funções normativas e jurisdicionais de órgãos administrativos”. No caso, osconselhos pertinentes ao sistema previdenciário brasileiro cumprem funçõesequivalentes às regulatory agencies norte-americanas, decidindo “sobre direitosdas partes interessadas” e expedindo “normas reguladoras da aplicaçãodas leis da previdência”.

Um segundo argumento — ainda de ordem constitucional — apresentadopela tese favorável à autoridade impetrada é o de que, derivando do poder denomear, o poder de destituir lhe seria co-extensivo.

O Ministro Victor Nunes não concorda com a conclusão: ainda que derivedo poder de nomear, o poder de destituir pode ser mais amplo — por exemplo:exoneração, diretamente pelo Presidente, de titulares de cargos cuja investiduradepende de aprovação pelo Senado — ou menos amplo que aquele — como aaplicação da teoria dos motivos determinantes. O caso dos autos — cargos cominvestidura por prazo certo — recairia no rol de situações em que o poder dedestituir é mais restrito do que o de nomear: “a Constituição não ampara ainterpretação napoleônica do Executivo no caso presente”.

O terceiro argumento que o Ministro Victor Nunes rebate em seu voto é ode que a impossibilidade de destituição do impetrante criaria caso de estabilidadetemporária, não admitido pela Constituição.

Porém, tal argumento parte de pressuposto equivocado: a assimilação daestabilidade com a garantia do exercício do cargo por prazo certo. Trata-se deinstitutos com finalidades distintas: “a estabilidade visa, sobretudo, à proteçãoda pessoa do servidor; a investidura de prazo certo, o que protege, atravésda permanência do servidor no cargo, é o interesse mais alto, da continui-

138 Extrai-se do caso Humphrey: “Pois é inequivocamente evidente que quem exerce ocargo somente enquanto agrada a outro, não pode, por isso mesmo, manter uma atitudede independência ante a vontade desse outro”.

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dade e independência da função por ele exercida num órgão dotado deautonomia”.

Em quarto lugar, argumentava-se que, no caso dos autos, as funções en-volvidas seriam de confiança, excluídas da estabilidade.

Quanto a isso, o Ministro Victor Nunes mostra que, além da improprieda-de, já comentada, de se invocar a estabilidade, não se pode confundir a situaçãodos cargos de confiança, declarados em lei de livre nomeação e demissão (Cons-tituição de 1946, art. 188, parágrafo único), com cargos de investidura com prazocerto, nos quais não está presente a demissibilidade ad nutum.

Os objetivos envolvidos nesses dois tipos de caso são “opostos” e“antinômicos”: “o objetivo do legislador, com a investidura de prazo certo,é justamente tornar o titular do cargo independente das injunções do Chefedo Poder Executivo”.

Note-se que, como frisa o Ministro, tal objetivo é fixado pelo legislador, justa-mente afastando a possibilidade de que o administrador, nesses casos, exerça adiscricionariedade típica das situações dos cargos de confiança. E prossegue:

“pode errar o legislador, ao adotar esse critério, em relação atal ou qual serviço a que concede autonomia, mas não cabe ao Judi-ciário corrigir a política do Poder Legislativo. Se o que visa oLegislativo é, justamente, tornar determinado funcionário indepen-dente no exercício de suas atribuições, como podemos nós dizer, aocontrário da lei, que esse funcionário exerce função de confiança,que o tornaria inteiramente submetido ao Chefe do Governo?”

Encerrada a análise de argumentos no plano constitucional, passa o Minis-tro Victor Nunes a argumentar no plano legal, para demonstrar que a improprie-dade da linguagem corrente, ao se referir aos “cargos de investidura de prazocerto” como “cargos com mandato”, leva a equívocos consistentes na aplicaçãode regras próprias do mandato político-representativo ou do mandato do DireitoCivil.

Em primeiro lugar, o mandato político. Sobre esse ponto, a tese favorável àautoridade impetrada, acolhida pelo Procurador-Geral da República, defendia arevogabilidade do mandato ao arbítrio do mandante, lembrando o caso doimpeachment.

Quanto a isso, o Ministro Victor Nunes mostra, de início, que a invocação doimpeachment conceitualmente não seria pertinente, pois não envolve revogação, esim perda do mandato. Esse exemplo reforçaria, em verdade, a tese ora sustentadapelo Ministro Victor Nunes: assim como, no plano político, o impeachment pressu-põe a prática de crime de responsabilidade, no plano administrativo, a demissão.

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de servidor nomeado com prazo certo pressupõe a prática de falta grave, apura-da em processo disciplinar. Num e noutro caso, portanto, não está em jogo asimples discricionariedade do suposto mandante.

Por outro lado, a figura que conceitualmente deveria ser invocada pelatese oposta seria a do recall, por meio da qual os próprios eleitores retiram omandato conferido ao seu representante. O recall, porém, não pode ser “admiti-do como implícito na própria noção de mandato político”. Assim, a adoçãoda revogabilidade do mandato político dependeria de previsão em norma constitu-cional ou legal, o que não há no Brasil. O mesmo se diga, nessa analogia, doregime de investidura e vacância dos cargos públicos.

Quanto ao mandato de Direito privado, a tese oposta à do Ministro VictorNunes invoca a assimilação ao mandato de Direito privado, para sustentar aaplicação da regra de sua revogabilidade pelo mandante, no caso, o Presidente daRepública.

O equívoco aqui, demonstra o Ministro Victor Nunes, também é concei-tual. “O uso impróprio do vocábulo mandato não pode mudar o preto embranco, para fazer surgir, em tais casos, a figura jurídica do mandato”.

Pela norma do Código Civil139, tem-se o mandato “quando alguém rece-be de outrem poderes, para, em seu nome, praticar atos, ou administrarinteresses”. Daí resulta que a atividade a ser exercida pelo mandatário pertence,originalmente, ao mandante, sendo-lhe por este delegada.

Mas “nada disso acontece nas nomeações de prazo certo. No casodos autos, por exemplo, quem pode pretender que as atribuições exercidaspelo nomeado fossem, originalmente, do Presidente da República, de modoa constituir-se aquele em mandatário deste?”

Em verdade, no caso das nomeações por prazo certo, as atribuições defunções decorrem da lei, sendo inerentes ao cargo e não à transferência feita porato de quem nomeia.

Nem se pretenda que a nomeação envolva delegação de poderes. Concei-tualmente, não há. E, de todo modo, delegação exige estrutura hierarquizada; háhierarquia entre o Presidente da República e integrantes da administração direta,mas não em relação a integrantes de órgãos dotados de autonomia — como asautarquias —, nos quais se justifica haver nomeações por prazo certo.

Ainda outro aspecto, no plano dos argumentos de legalidade, é abordado peloMinistro Victor Nunes, respondendo a intervenções dos Ministros HahnemannGuimarães e Ribeiro da Costa. A Lei da Previdência Social, ao dispor sobre o

139 Art. 1.208 do Código Civil de 1916.

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Conselho que era integrado pelo impetrante, previa “representantes” da classedos empregados, “representantes” da classe patronal e “representantes” doGoverno.

Sobre isso, os citados Ministros argumentavam, alternativamente à idéiaacima exposta, tratar-se de uma relação de representação sem mandato.

O Ministro Victor Nunes, a seu turno, mostra que se trata, igualmente, deuso impróprio da expressão “representantes”. Não se cuida propriamente de re-presentação, mas, sim, de indicação, escolha, nomeação. Lembra, nesse sentido,que os “Juízes Classistas”, da Justiça do Trabalho, são nomeados pelo Presidenteda República como “representantes” da classe patronal ou de trabalhadores. E“haverá quem sustente que esses Juízes possam ser destituídos?”

Por fim, o Ministro Victor Nunes aborda uma terceira ordem de argumentos,de natureza administrativa e política.

Nesse plano, o argumento do Governo é o da impropriedade de o novoPresidente ficar vinculado às nomeações do antecessor. Por esse raciocínio, nãoseria aceitável que um “Presidente, prestes a sair, pudesse fazer nomeações,cuja duração se prolongasse pelo seguinte período presidencial, numa es-pécie de manobra política de ação retardada”.

O Ministro Victor Nunes demonstra que esse último argumento é de natu-reza puramente circunstancial. Ainda que não se mude a essência do sistema deprazo certo, a nomeação poderia acontecer logo no início do mandato de umPresidente, vinculando praticamente apenas sua própria gestão. “Essa possibili-dade tira, portanto, ao argumento, qualquer valor de ordem teórica”.

Na verdade, na lógica dos cargos de investidura por prazo certo, é indife-rente a coincidência desse prazo com os períodos presidenciais, pois o que sequer garantir é a “independência do exercício das funções dirigentes doórgão autônomo, contra qualquer ocupante da Chefia do Poder Executivo,mesmo contra o Presidente que tiver feito as nomeações”.

Outro argumento da tese contrária à do Ministro Victor Nunes seria a faltade entrosamento com o novo governo, que poderia resultar da permanência denomeado por governo anterior.

Recuperando os citados casos Humphrey e Wiener, julgados pela SupremaCorte dos Estados Unidos, o Ministro Victor Nunes observa que se decidiu, na-quelas ocasiões, ser mais valiosa a independência do órgão legalmente dotado deautonomia do que a alegada conveniência administrativa140.

140 No primeiro caso, Humphrey, respondendo a pedido do Presidente Roosevelt paraque deixasse o cargo (pois “os objetivos e propósitos da administração relativamente

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Reconhece o Ministro Victor Nunes que o bom entendimento entre o Chefede Governo e os dirigentes e executores da política do Estado é, em tese, positivopara a administração. Mas isso é uma consideração de conveniência administra-tiva que não há de se sobrepor à lei.

Se, em cada caso, o legislador pondera vantagens e desvantagens e opta porgarantir a continuidade e independência na execução de tais tarefas confiadas aórgão autônomo, não deve o Judiciário interpretar as normas de modo a chegar àconclusão oposta141.

E, para evitar abusos por parte desses titulares de cargo com prazo certoem órgãos autônomos, o Direito Administrativo conhece os mecanismos que adoutrina chama genericamente de tutela.

“E o legislador, certamente, teve por menos pernicioso esseeventual desvio do que o poder incontrastável do Chefe do Governosobre toda a administração descentralizada, pois isso desvirtuaria aprópria razão de ser da descentralização”.

A prevalecer, no caso, a tese do Governo, estariam sendo consagrados os“extremos do sistema dos despojos”. A legislação que, em todos os países civi-lizados — alerta o Ministro Victor Nunes —, “procura resguardar o serviçopúblico civil da influência ilimitada da política foi precisamente uma con-quista, lenta e penosa, contra o spoil system”.

Igualmente, todos os órgãos autônomos perderiam sua autonomia. Reito-res de universidades, representantes de congregações e conselhos universitários,membros de conselhos de diversas autarquias,

“enfim, toda uma série de altos titulares, cujo desempenho ca-rece de ser protegido, em face do Poder Executivo, toda essa gente,que forma a cúpula da administração descentralizada, poderia sermudada de um momento para outro, ao simples critério, arbítrio oucapricho do soberano eletivo, que seria, entre nós, o Presidente daRepública”.

aos trabalhos da Comissão podem ser levados a efeito mais eficazmente com pessoal deminha própria escolha”), assim se manifestou: “Sei que o senhor está consciente de queo seu pensamento e o meu não se ajustam, nem sobre a política, nem sobre a administra-ção da Comissão Federal do Comércio, e, falando com franqueza, acho que será melhorpara o povo deste país que haja plena confiança em mim”.141 Nesse passo, lembra o Ministro Victor Nunes voto vencido do Juiz Brandeis no casoMyers: “A doutrina da separação de poderes foi adotada pela Convenção de 1787, nãopara promover a eficiência, mas para prevenir o exercício do poder arbitrário”.

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E conclui:

“Estou, portanto, convencido de que, mesmo do ponto de vistada conveniência administrativa e política, seria um mal, não um bem,o retorno ao sistema dos despojos, que ainda prevalece, largamente,em nosso país e que, neste processo, se pretende reimplantar nas áreasreduzidas em que a lei procurou cerceá-lo”.

Numa observação final, pondera que suas observações, feitas a propósitodo regime presidencialista, têm maior adequação ao parlamentarismo, em querecentemente se ingressara142, porque, neste, à posição preeminente que assumeo Congresso, diante do Executivo, há de corresponder maior prestígio da lei.

Vota, desse modo, o Ministro Victor Nunes pela concessão da segurança,anulando o ato demissório e fazendo retornar o impetrante ao cargo que ocupava.E vota vencido, juntamente com os Ministros Gonçalves de Oliveira143, VilasBoas e Luiz Gallotti. O Tribunal, por maioria, acompanha o Relator144, negandoa segurança.

A mesma questão debatida no MS 8.693 é objeto de outros casos, dosquais vale destacar os dois seguintes145.

142 A Emenda Constitucional 4, que adotou o parlamentarismo, é de 2 de setembro de1961. O julgamento em tela iniciara-se em sessão anterior a essa data, mas o voto doMinistro Victor Nunes foi proferido em 25 de outubro de 1961.143 O Ministro Gonçalves de Oliveira também produz longo voto, em que comenta prece-dentes do Supremo Tribunal Federal favoráveis à tese ora vencida.144 Dentre outros argumentos desenvolvidos pelo Ministro Relator, Ribeiro da Costa, em seuvoto e em sua posterior explicação de voto — cuja análise não parece aqui pertinente —, valeobservar que, além de discordar do Ministro Victor Nunes em conclusões de ordem polí-tica e relativas à interpretação da Constituição, também discorda de que a entidade daadministração indireta em questão efetivamente tenha o status de autonomia alegado.145 O presente MS, assim como os MS 8.651 e 8.802, que em seguida serão analisados,constituem precedentes da Súmula 25 do Supremo Tribunal Federal, aprovada em SessãoPlenária de 13-12-1963: “A nomeação a termo não impede a livre demissão pelo Presi-dente da República de ocupante de cargo dirigente de autarquia.” A mesma matéria,recentemente (julgamento em 18-11-1999, com publicação de acórdão em 25-11-2005), foiapreciada pelo Tribunal, no julgamento da Medida Cautelar na Ação Direta deInconstitucionalidade 1.949-0/RS, resultando em longo acórdão, com mais de 200 pági-nas. Em seu voto, o Ministro Nelson Jobim analisa em detalhes o julgamento do MS 8.693,explicitando em especial o posicionamento do Ministro Victor Nunes. Das manifestaçõesdo Ministro Nelson Jobim nesse julgamento extraem-se considerações como: “A históriadeu razão a Victor Nunes.” (...) “Ditas há quase mais de 40 anos, são atualíssimas asobservações de Victor Nunes. É admirável a sua percepção e antecipação.” (...) “Querodeixar claro, e acho importante tendo em vista a natureza da decisão, que se deve muitodo que se procedeu aqui a Victor Nunes. Ou seja, viabilizou a divergência de quarentaanos atrás para que pudéssemos, em cima de um caso concreto, criar uma situação novaem termos de apreciação de inconstitucionalidade.” Também o Ministro Moreira Alves,no julgamento da referida MC em ADI, manifestou-se quanto ao voto do Ministro VictorNunes no MS 8.693, observando que “esse voto parece que foi proferido para este caso”.Resultou do julgamento, tal como consta de sua ementa, que o Tribunal deferiu, por

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Ministro Victor Nunes

Mandado de Segurança 8.651

Investidura com prazo certo de dirigentes de au-tarquias — Analogia com regulatory agencies dosEUA — Autonomia de entes da administração indiretano Brasil — Limites ao poder de exonerar do Chefe doExecutivo — Argumentos de ordem constitucional, le-gal, política e administrativa — Limites à apreciaçãojudicial sobre opções políticas do Legislativo — Fun-ção política do STF — Relevância da estabilidade dajurisprudência.

Trata-se de caso julgado menos de um mês depois do mandado de segu-rança acima analisado146.

Neste processo, discutiu-se a demissão, pelo Presidente Jânio Quadros,“sem motivo ou justa causa”, de Armando Simone Pereira, que fora nomeadoem 12-11-1960 para o Conselho Administrativo da Caixa Econômica Federal,para o “mandato147” de cinco anos.

O Ministro Relator, Luiz Gallotti, reproduz, neste caso, o voto que dera nocaso anterior, no sentido da concessão da ordem, ressaltando apenas que o fato deo “mandato” ter sido fixado em Decreto que regulamentava a Caixa EconômicaFederal — Decreto 24.427, de 19 de junho de 1934 — não modifica sua conclu-são, pois, nesse período, “o Chefe do Governo Provisório exercia cumulativa-mente as funções dos Poderes Executivo e Legislativo” e, naquele tempo,“não existia a distinção que surgiu após a Constituição de 1937 entredecretos (executivos) e decretos-leis”.

Por sua vez, o Ministro Victor Nunes também reitera os argumentos queapresentara no MS 8.693, exceto no que diz respeito à questão de ser ou não oimpetrante “representante” do Governo no cargo que ocupava. Rebater esse

maioria de votos (vencido o Ministro Marco Aurélio), medida liminar para suspendereficácia de artigo de lei estadual gaúcha que previa a possibilidade de destituição demembros de conselho de uma agência reguladora, no curso de seus mandatos, por deci-são da Assembléia Legislativa, ressalvando o Tribunal, ao assim decidir, que tal suspen-são de eficácia se dava “sem prejuízo de restrições à demissibilidade, pelo Governadordo Estado, sem justo motivo, conseqüentes da investidura a termo dos Conselheiros daAgência Estadual de Regulação dos Serviços Públicos Delegados do Rio Grande doSul – AGERGS”.146 Ver nota n. 145.147 Ver, nos comentários ao caso anterior, a crítica do Ministro Victor Nunes ao uso dessaexpressão. No entanto, o Ministro Relator a emprega, citando o Decreto de regência damatéria.

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Memória Jurisprudencial

argumento nem se faz necessário, posto que o Decreto 24.427/34 não se refere atal qualificação, senão ao “mandato” de cinco anos.

E, quanto à expressão “mandato”, o Ministro Victor Nunes demonstra,como antes já o fizera, que não deve ser entendida em sentido próprio, senão nosentido de “duração”.

A reforçar essa tese, no caso específico, há o fato de que o citado Decretodistingue claramente duas situações: a do Presidente da Caixa, demissível adnutum, e a dos diretores, investidos por prazo certo. Essa distinção legislativanaturalmente há de ser interpretada de modo a levar a situações diversas.

Após renovar debate, particularmente com o Ministro Hahnemann Guima-rães, sobre o não-cabimento do conceito de mandato ao caso e sobre a questãoda eventual discordância política entre o Chefe do Executivo e o servidor nome-ado com prazo certo, o Ministro Victor Nunes, considerando que fundamentavasua conclusão na norma legal que disciplina o cargo em questão, afirma: “nãosou juiz do legislador. O Presidente da República não tem o monopólio dapolítica do País”.

E conclui seu voto com dois trechos de enorme densidade de idéias ebastante ilustrativos de seu pensamento.

O primeiro, quanto à função política dos três ramos do Poder Público:

“Não é só política administrativa. A Constituição Federal in-cumbe a definição da política do país aos três ramos do Poder públi-co, aos três Poderes, ao Legislativo, ao Executivo e ao Judiciário.Incluo o Judiciário, porque o Supremo Tribunal Federal exerce fun-ção política relevante, quando interpreta a Constituição e as leis equando, por exemplo, apreciando as conseqüências que resultam dasua execução, altera a sua própria jurisprudência. Quanto à funçãopolítica do Congresso, nem há necessidade de acrescentar uma sópalavra. Como, pois, argumentar como se o Executivo tivesse o mo-nopólio da política nacional?

Se a lei, ao instituir um órgão autônomo, quer proteger seusdirigentes do arbítrio ou capricho de quem os nomeou, o que ela fazé definir uma política que não podemos neutralizar em nome da polí-tica do Executivo.

Negar validade às normas legais de nomeação a termo, Sr. Pre-sidente, é golpear, nos alicerces, o princípio da autonomia adminis-trativa. Realmente, esse problema só surge em função dos órgãosautônomos; se negamos validade às nomeações a termo, por maisque a lei queira dotá-los de autonomia, eles não o serão, porque seus

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Ministro Victor Nunes

dirigentes estarão dependendo sempre ou do prudente critério, ou doarbítrio desarrazoado do Presidente da República”.

O segundo, sobre seu respeito à estabilidade da jurisprudência do SupremoTribunal Federal — que sustenta neste caso, posto que, anteriormente ao MS8.693, houvera inúmeros julgados garantindo o direito do servidor investido emcargo por prazo certo —, ainda que defenda que, quando justificado, seja renovada:

“Pleiteio que se observe, sobre o assunto, a jurisprudência desteTribunal, e me advertem que jurisprudência não pode ser imutável.Não sou contrário em tese, Sr. Presidente, a que o Tribunal mude dejurisprudência. É certo que sou, em princípio, partidário de que tenha-mos uma jurisprudência estável. É muito mais conveniente que a juris-prudência do Tribunal se defina em tal ou qual sentido, embora nãoseja sempre no mais acertado, do que seja uma hoje, outra amanhã,implantando a incerteza e o ceticismo nos espíritos. Todavia, emborafavorável à estabilidade da jurisprudência, não poderia deixar de serpartidário da sua renovação, sempre que necessária. Eu próprio metenho batido, com ardor, para que este Tribunal adote, em relação àstaxas, um conceito mais flexível do que aquele que aqui tem predomi-nado, pois, em nome de um conceito doutrinário, e não de princípiosconstitucionais, temos anulado taxas criadas pelos Estados dentro deuma conceituação de taxa definida em decreto-lei federal. Se são pre-mentes as necessidades financeiras dos Estados, se a Constituição nãodefine taxa, se há uma lei federal que lhe dá uma conceituação flexívele compreensiva, por que havemos de fazer prevalecer, no silêncio daConstituição, contra uma lei federal, indiferentes à notória escassez doerário estadual, uma restritiva conceituação doutrinária de taxa, deresto controvertida? Entretanto, meu apelo caloroso, infelizmente, nãotem sido atendido pela maioria do Tribunal”.

A decisão do Tribunal foi, no entanto, no mesmo sentido do MS 8.693,vencidos novamente o Ministro Relator, Luiz Gallotti, e os Ministros VictorNunes, Gonçalves de Oliveira e Vilas Boas.

Mandado de Segurança 8.802

Investidura com prazo certo de dirigentes de autar-quias — Analogia com regulatory agencies dos EUA —Autonomia de entes da administração indireta no Brasil —Limites ao poder de exonerar do Chefe do Executivo —Argumentos de ordem constitucional, legal, política eadministrativa — Limites à apreciação judicial sobreopções políticas do Legislativo.

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Este outro caso, julgado aproximadamente um ano depois dos dois anterio-res, traz novamente à discussão os cargos com investidura de prazo certo148.

O cargo aqui em questão era de membro do Conselho de Administraçãodo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico, cujo ocupante, JoséToqueville de Carvalho Filho, foi destituído pelo Presidente da República antes defindo seu “mandato”149 de três anos.

Em seu voto, o Ministro Relator, Pedro Chaves, apresenta argumentospara a negativa da segurança, lembrando ainda votos anteriormente proferidospelo Ministro Ribeiro da Costa (Relator do MS 8.693) e pelo Ministro CandidoMotta, este interpretando politicamente o sentido do prazo fixo como uma espéciede limite, que impõe termo máximo (hipótese em que se há de cogitar renovaçãoou não), mas que não impede sua interrupção, por falta de confiança, em especialante a mudança do Presidente da República.

O Ministro Victor Nunes, a seu turno, invoca seus argumentos expostos noMS 8.693, aprofundando dois aspectos.

Em primeiro lugar, apresenta e discute caso da jurisprudência norte-ameri-cana — Caso Morgan —, que fora citado pelo Ministro Candido Motta por oca-sião daquele julgamento, como contrário e posterior ao Caso Humphrey. O Mi-nistro Victor Nunes mostra, entretanto, que, no caso em que o PresidenteRoosevelt demitira Morgan do cargo de Presidente da Tenesse Valley Authority,o fizera com justa causa, legalmente prevista para a demissão150.

Em segundo lugar, também respondendo à referência do Ministro CandidoMotta quanto a críticas que nos Estados Unidos se fazem à autonomia das agên-cias reguladoras151, aponta “tendências recentes”, naquele país, “a respeito dasregulatory agencies”.

Nesse sentido, o Ministro Victor Nunes passa a relatar experiência queteve, em março de 1961, visitando os Estados Unidos e tendo contato comprojetos de governo do Presidente Kennedy, particularmente o “Plano Landis”,sobre reforma das agências independentes.

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148 Ver nota n. 145.149 Lembrar as críticas apropriadas ao uso da expressão: cf. voto do Ministro VictorNunes no MS 8.693.150 No caso, recusa de fornecer provas em relação à má conduta de membros da agência.151 O Ministro Candido Motta citara artigo doutrinário em que se afirmava que o sistemade autonomia das “comissões” (ou agências) do Poder Executivo estava tirando de talforma desse Poder sua competência que “os Estados Unidos se estavam transformandonum país sem cabeça, completamente sem diretivas, o que é uma crise do Executivoamericano”.

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Ministro Victor Nunes

Tal plano, em essência, propõe a livre nomeação e demissão — ao mesmotempo que o aumento dos poderes — do Presidente da Interestate CommerceCommission e da Federal Power Commission. Mas não propõe a livre demissãodos demais diretores, entendendo que a permanência no cargo (tenure) é condiçãopara a independência e a oportunidade para planejamento a longo prazo.

Assim, o Presidente da República não teria poder de demitir os outrosdiretores, mas apenas o “Presidente da instituição, se não tiver condiçõespessoais de liderança para manter o respeito e a estima de seus colegas,dos outros membros do colegiado, nomeados com prazo certo”.

Por fim, o Ministro Victor Nunes mais uma vez reitera, com coerência, seuponto de vista sobre o papel constitucional de cada um dos Poderes:

“Sr. Presidente, prosseguindo em minhas considerações, volto aum argumento anteriormente desenvolvido, a saber, que a doutrinafirmada pelo Supremo Tribunal Federal, nos precedentes aqui invo-cados, que são os casos Murilo Gondim e Armando Simone, é total-mente contrária à própria idéia da criação de órgãos administrativosautônomos. A criação desses órgãos visa, precisamente, a objetivosdiversos daqueles que presidiram às decisões deste Tribunal. Mas aquem cabe traçar a alta política administrativa do País? Não é aoSupremo Tribunal; é ao Poder Legislativo, dentro dos limites constitu-cionais. E nada há, na Constituição, que corrobore, de maneira tãocategórica, as afirmativas que aqui se fizeram, no sentido de que,havendo a lei instituído um órgão administrativo com autonomia am-pla e garantido essa autonomia com a investidura de prazo certo dosseus diretores, seja isso incompatível com a Constituição! Essa inter-pretação, o Tribunal a está construindo contra os objetivos da lei,isto é, atribuindo-se o papel de formulador da alta política adminis-trativa do País, que compete ao Poder Legislativo”.

No caso em exame, esses argumentos ganham ainda mais relevância, postoque na mensagem pela qual o Governo encaminhara ao Parlamento o projeto delei de criação do BNDE constava expressamente que a “investidura por prazocerto visa a dar ao Conselho a necessária estabilidade, que lhe permitaresistir às injunções a que costumam estar sujeitos os organismos estatais”.

Isso se justifica porque, no BNDE, o Conselho tinha uma série de atribui-ções de controle e fiscalização dos atos do Presidente do Banco, este, sim,demissível ad nutum, posto que tipicamente agente do Presidente da República.E “que espécie de controle pode ele [Conselho] exercer sobre o agente do

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Memória Jurisprudencial

Presidente da República, se também for de livre demissão pelo Presidenteda República?”.

Esse caso acaba sem decisão de mérito, uma vez que o impetrante desistedo mandado, sendo homologada a desistência. Dos votos até então proferidos,todavia, verifica-se que os Ministros Victor Nunes, Luiz Gallotti e Gonçalves deOliveira concediam a segurança, enquanto os Ministros Pedro Chaves (Relator),Ary Franco, Candido Motta e Hahnemann Guimarães a negavam.

Mandado de Segurança 10.213

Investidura com prazo certo de dirigentes de autar-quias — Reitor — Autonomia de entes da administra-ção indireta no Brasil — Autonomia universitária —Liberdade de cátedra — Limites ao poder de exonerardo Chefe do Executivo.

Aqui mais um caso em que se tratava de cargo com investidura por prazocerto, tendo o Presidente da República pretendido destituir, antes do prazo, seuocupante.

Cuidava-se do Reitor da Universidade Rural de Pernambuco, exonera-do por Decreto do Presidente João Goulart, no curso de seu mandato de trêsanos.

No mandado de segurança, argumentou o Reitor que sua exoneração foiilegal por basear-se em norma do Estatuto dos Funcionários Públicos aplicávelaos ocupantes de cargos de confiança, mas não aos Reitores das Universidades.A estas seriam aplicáveis as regras de seus Estatutos, em face da sua autonomia;daí decorreria a competência do Conselho Universitário para destituí-lo, ou do Con-selho Federal de Educação para suspendê-lo.

Em seu voto, o Ministro Relator, Victor Nunes, tratando genericamentedos cargos com investidura de prazo certo, reitera seu posicionamento nos MS8.693, 8.651 e 8.802 (acima examinados).

Mas, no caso concreto, acresce estar sendo violada regra própria dasuniversidades, dado seu regime de “autonomia didática, administrativa, fi-nanceira e disciplinar”, fixada na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Na-cional.

Mais do que isso, é interessante notar que o Ministro Victor Nunes apresentafundamento constitucional, no regime de 1946, para a autonomia universitária: aliberdade de cátedra, prevista no art. 168, VII: “Art. 168. A legislação do

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Ministro Victor Nunes

ensino adotará os seguintes princípios: (...) VII - é garantida a liberdadede cátedra”.152

Esse argumento afasta, no caso concreto, a competência do Presidente daRepública para a exoneração, independentemente da discussão de poder-se ou nãodestituir, antes do termo final, titulares de cargos de investidura por prazo certo.

Nesse caso, o Ministro Victor Nunes vota pela concessão da ordem, sendoacompanhado pela unanimidade do Tribunal Pleno. Esse caso configura o prece-dente que dá origem à Súmula 47 (Sessão Plenária de 13-12-1963): “Reitor deUniversidade não é livremente demissível pelo Presidente da República du-rante o prazo de sua investidura.”

Mandado de Segurança 11.109

Investidura com prazo certo de dirigentes de autar-quias — Autonomia de entes da administração indiretano Brasil — Limites ao poder de exonerar do Chefe doExecutivo — Extinção dos cargos por lei.

Por fim, apresenta-se outro caso em que a mesma questão é discutida —destituição de servidor em cargo de provimento por prazo certo —, porém comsituação peculiar a justificar a improcedência da impetração.

Neste caso, a Confederação Rural Brasileira, órgão nacional de represen-tação de classe rural, voltou-se contra ato do Presidente da República que exone-rou o Presidente e os membros do Conselho Nacional do Serviço Social Rural.

Ocorre que o Presidente da República assim agira em conseqüência daLei Delegada 11, que incorporou o Serviço Social Rural à Superintendência dePolítica Agrária, extinguindo aquele órgão e interrompendo e extinguindo os“mandatos” dos membros de seu Conselho.

O Ministro Relator, Ribeiro da Costa, que já tinha, em geral, posiçãofavorável à possibilidade de o Presidente da República exonerar titulares decargos com prazo fixo de investidura (cf. supra MS 8.693), neste casoacresce o fundamento da extinção, por lei, do órgão e dos cargos. Nega, pois,a segurança.

152 Note-se que em 1946 não havia regra explícita sobre a autonomia universitária, comohá na Constituição de 1988, art. 207: “As universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, e obedecerão ao princí-pio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão”.

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Memória Jurisprudencial

O Ministro Victor Nunes, lembrando sua posição nos casos anteriormenteanalisados, entende, contudo, tratar-se de situação diversa: a própria investidurafoi extinta por lei superveniente. Por essa razão, acompanha o Relator.

E a segurança foi denegada por votação unânime.

Mandado de Segurança 10.272

Caracterização de autarquia — Enquadramento deseu patrimônio como bem público — Tutela e hierar-quia.

Este mandado de segurança foi proposto pelo Presidente do ConselhoFederal de Medicina, pretendendo, em síntese, ver reconhecida a desnecessidadede que tal órgão prestasse contas ao Tribunal de Contas da União.

Sem entrar em particularidades do regime do Conselho naquela época, atese em que se fundamentava a questão parece interessante: como caracterizaruma autarquia153 e qual a natureza de seus bens, posto que a Constituição de1946, art. 77, II, previa competência para o Tribunal de Contas “julgar as contasdos responsáveis por dinheiros e outros bens públicos, e as dos administra-dores das entidades autárquicas”.

E mostra o Ministro Victor Nunes, como Relator do caso, que o ConselhoFederal de Medicina é, indiscutivelmente, uma autarquia, por definição expressade sua lei de criação. “Embora, em doutrina, os traços definidores da autar-quia sejam imprecisos, os autores são concordes em considerar autarquia aentidade que a lei assim o declare”.

Em outro argumento, especificamente relacionado à prestação de contasdo Conselho, o impetrante alegou não ser o Conselho responsável por dinheiropúblico, posto que seus fundos eram constituídos por contribuições dos membrose não por receitas tributárias ou subvenções estatais.

Afastando esse argumento, o Ministro Victor Nunes afirma que

“o patrimônio das autarquias — já o temos decidido numerosasvezes a propósito da imunidade tributária — é bem público, aindaque formado de contribuições de natureza não tributária. Mesmo osbens doados por particulares a pessoas jurídicas de direito públicopassam a constituir patrimônio público”.

153 Lembrando-se que então ainda não vigorava o Decreto-Lei 200/67.

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Ministro Victor Nunes

Aprofundando a questão quanto ao Conselho, mostra ainda que acontrapartida de prerrogativas de ordem pública que a lei lhe confere, inclusive acobrança compulsória de contribuições, é o cumprimento de obrigações igual-mente de ordem pública, tal como a prestação de contas.

Por fim, há que refutar um último argumento do impetrante, no sentido deque o dever de prestação de contas seria derivado da subordinação hierárquica,situação em que não estaria inserido o Conselho Federal de Medicina.

A propósito, o Ministro Victor Nunes, invocando “a melhor doutrina doDireito Administrativo”, lembra que a “noção de dependência hierárquica éincompatível com a noção de autarquia”, em cuja organização “é básica anoção de autonomia”. Apesar disso, sobre as autarquias se exerce certo con-trole, que os autores denominam “tutela”. “Varia a tutela na sua extensão equanto à matéria sobre que se exerce”, conforme preveja a lei; “pode consis-tir na aprovação prévia ou posterior de seus atos; pode consistir, também,na tomada de contas, etc”.

Assim, vota pelo indeferimento do pedido, sendo acompanhado pela unani-midade do Tribunal Pleno.

Mandado de Segurança 10.882

Autonomia universitária — Regime peculiar paraservidores.

Trata-se de acórdão bastante sucinto, relatado pelo Ministro Gonçalves deOliveira, com declaração de voto do Ministro Victor Nunes. O interesse em refe-ri-lo está no fato de ser um exemplo de caso em que se reconhece que a autono-mia universitária afasta das universidades determinadas normas aplicáveis aoserviço público em geral.

A situação de fato envolvida era a seguinte: professor interino da Faculdadede Medicina da Paraíba pretendia sua efetivação no cargo de professor catedrá-tico, por força de lei que previa efetivação de servidores interinos das autarquiasfederais e de cargos isolados de carreira da União.

O Ministro Relator, Gonçalves de Oliveira, indefere o pedido, lembrandoregra específica da Constituição de 1946 (art. 168, VI) quanto ao provimento docargo de professor catedrático, incompatível com a efetivação de interinos:“para o provimento das cátedras, no ensino secundário oficial e no superioroficial ou livre, exigir-se-á concurso de títulos e provas”.

A questão nem mereceu debates no Tribunal, mas vale registrar que oMinistro Victor Nunes, em seu voto, acrescenta o aspecto de estar envolvido, no.

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Memória Jurisprudencial

caso, o “princípio da autonomia universitária, que é objeto de leis especiaise não da legislação comum do funcionalismo público”.

Ressalta ainda o Ministro Victor Nunes que a autonomia universitária, quecompreende a autonomia didática, está vinculada à liberdade de cátedra154, con-sagrada em norma expressa da Constituição (art. 168, III).

Mandado de Segurança 15.186

Autarquias — Sentido histórico da autonomia —Criação de cargos.

Trata-se de caso155 envolvendo discussão sobre o poder do Presidente daRepública de criar e extinguir, por decreto, cargos em autarquias.

A referência, muito sucinta, a esses casos justifica-se apenas para registrar,de passagem, algumas referências históricas sobre autarquias e sua autonomia.

O caso específico sub judice, ainda que tenha merecido amplos debatesdos Ministros, parece não ser de interesse atual, posto referir-se a questão cir-cunstancial em torno de aplicação da Lei 4.345/64, que determinara revisão dosquadros do Instituto de Previdência e Assistência dos Servidores do Estado. Apartir daí, discutia-se, com fundamento nessa Lei — e menos com fundamentona competência constitucional do Presidente da República para expedir decretose regulamentos para a fiel execução das leis (Constituição de 1946, art. 87, I), apossibilidade de o Presidente ter extinguido determinados cargos.

Quanto às referências históricas, o Ministro Victor Nunes156 lembra emseu voto que

“as autarquias foram criadas com grande autonomia, atenden-do-se às peculiaridades de cada uma, pela necessidade ou conveni-ência de ser flexibilizado o serviço público. Por isso as autarquiasforam autorizadas a criar seus próprios cargos. Mas foram muitos osabusos dessa descentralização. Surgiu então o primeiro controle, queconsistiu na criação desses cargos por decreto do Poder Executivo”.

Com efeito, a Lei 2.745, de 1956, previu a competência temporária, peloprazo de 30 dias, para o Presidente da República, por decreto, organizar o quadrode pessoal das autarquias.

154 Sobre o tema, ver também o MS 10.213, abaixo analisado.155 Idêntico, aliás, ao MS 14.631.156 Em diálogo com o Ministro Gonçalves de Oliveira.

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Ministro Victor Nunes

Mas a praxe administrativa, “por anos e anos”, seguiu sendo a criação,por decreto, de cargos das autarquias com a tolerância dos Poderes Legislativo eJudiciário, tornando-se “costume jurídico-administrativo”, nas palavras do Mi-nistro Victor Nunes, que ainda observa: “se tivéssemos, agora, de declararilegal a criação de tais cargos, faríamos desmoronar quase toda a estrutu-ra das nossas autarquias”.

2.2 Atos administrativos

Recurso em Mandado de Segurança 8.147

Sujeição de ato administrativo individual e concretoao ato regulamentar, ainda que emanados da mesmaautoridade — Ausência de direito à renovação de licença,ante mudança de legislação.

A questão debatida neste recurso de mandado de segurança resta bemsintetizada no despacho do Prefeito do Distrito Federal157, impugnado peloimpetrante:

“casso a licença que, inicialmente concedida em 1944 e sucessi-vas vezes prorrogada, somente agora se pretende utilizar. O decreto8.613, de 6 de setembro de 1946, não permite a construção de dezpavimentos no local. Se a obra não foi iniciada na vigência da legisla-ção que a autorizava nas condições então apresentadas, não o podeser agora, infringente das novas disposições que ora disciplinam ahipótese. A revalidação não podia ser dada contra a lei em vigor”.

Negada razão ao impetrante pelo Tribunal estadual, apresentou-se o pre-sente recurso.

Apreciando-o como Relator, o Ministro Victor Nunes inicia seu voto pelaquestão de haver ou não direito à renovação de uma licença de construir, antesuperveniência de legislação que modifica as condições de licenciamento, quan-do ainda não iniciadas as obras.

Lembra situação semelhante, na qual opinara como advogado da Prefeiturado Distrito Federal, mas com a diferença de tratar-se de obra iniciada e concluídana vigência de licença; antes, porém, de concedido o “habite-se”, surgira dúvidasobre a validade da renovação da licença, ante novas exigências legais. Hesitava

157 Já transformado em Estado da Guanabara, por ocasião do julgamento.

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então a Prefeitura entre anular a renovação — o que acarretaria a demolição doprédio — e convalidá-la.

Na ocasião, Victor Nunes, citando Seabra Fagundes158, sustentara que“nem sempre convém à Administração declarar a nulidade do ato adminis-trativo, porque (...) ‘em face das razões concretamente consideradas, se temcomo melhor atendido o interesse público pela sua parcial validez’”. E reco-mendara que a Prefeitura levasse a questão a juízo, o que não acarretaria prejuízoà parte, pois a lei dava efeito de autorização provisória à demora em decidir opedido de “habite-se”, além de certo prazo159.

No caso sub judice, porém, a situação era diversa. A obra nem se iniciara.E, por força da nova disciplina da matéria de construções, não mais havia apossibilidade de renovação da licença, posto que a obra deixara de atender àsnovas exigências.

Sobre esse aspecto, argumentara o recorrente que a norma que criaranovas exigências para a construção fora prevista em decreto; e, tendo o Prefeitoo poder de até mesmo revogar o decreto, teria o poder de fazer o “menos”,simplesmente não o aplicando a determinado caso concreto, ou seja, renovando alicença dada sob a vigência de norma anterior.

Por outras palavras, argumentava-se que o ato administrativo individual econcreto (renovação da licença) poderia vir a contrariar ato administrativo geral eabstrato (decreto), posto que ambos emanados da mesma autoridade (prefeito).

A esse propósito, o Ministro Victor Nunes apresenta relevantes considera-ções que merecem ser transcritas na íntegra:

“Essa tese não encontra guarida no regime de legalidade emque vivemos. No regime de 1937, como houvesse alguma tendência anão diferenciar a competência legislativa da competência regula-mentar do Chefe do Governo, tive oportunidade de examinar o as-sunto, com certa extensão, na Revista de Direito Administrativo (‘Leie Regulamento’, reprod. em Problemas de Direito Público, 1960, pp.57 e ss.). Acentuava eu, nesse trabalho, que, ‘mesmo no sistema daConstituição de 1937, e principalmente tendo em vista o exercíciototal da função legislativa conferida transitoriamente ao Presidenteda República pelo seu art. 180, não desapareceu a distinção formalentre regulamento e lei, como atos de categoria diferente e valor di-verso, subordinadas que estão as normas regulamentares aos preceitos

158 O Controle dos Atos Administrativos pelo Poder Judiciário.159 Mas, no caso, a Prefeitura acabou decidindo convalidar a obra e conceder o “habite-se”.

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Ministro Victor Nunes

legais. A identidade do órgão que expede umas e outras não bastapara desfazer a diferenciação, porque não é a natureza do órgão,mas a competência ou qualidade em que age que deve prevalecer’.Observava eu, em outra passagem, extraindo as conseqüências adabsurdum do entendimento contrário: ‘(...) como o Presidente ficouacumulando a função constituinte, podendo emendar a Constituição,também não haveria a possibilidade de ser qualquer ato seu declaradoinconstitucional pelo Poder Judiciário, o que aberra do disposto noart. 96 da Carta de 10 de novembro (...). E também seria letra morta adisposição do art. 85, que define os crimes de responsabilidade doChefe de Estado, pois os seus atos seriam sempre legítimos, mesmoofendendo as leis ou a Constituição. Pelo simples fato de acumular oPresidente funções legislativas, estaria, ao agir como poder executivoe não como poder legislativo, absolvido das leis; e por acumulartransitoriamente o poder constituinte, estaria igualmente absolvidoda Constituição. E chegaríamos a concluir ainda que os atos prati-cados pelo Chefe de Estado, como simples cidadão, também seriamintangíveis, pois a pessoa do cidadão e a do Presidente é uma só’ (ob.cit., pp. 71/72).

O que procurei pôr de manifesto, nesse estudo, é que, dispondoqualquer autoridade de mais de uma competência legal ou constituci-onal, não é a origem do ato que assinala a sua categoria no ordena-mento jurídico positivo, mas a competência em virtude da qual o atofoi praticado. O regulamento é expedido no uso da competência regu-lamentar, enquanto que o ato administrativo deriva da competênciaordinária para gerir a coisa pública. Esta competência administrati-va rotineira está evidentemente subordinada à competência para ex-pedir regulamentos. É através desse escalonamento dos atos do Esta-do, dentro de uma ordem hierárquica definida, que o poder públicose autolimita, princípio esse fundamental para garantia dos direitosindividuais e boa ordem da administração.

No caso, os atos administrativos dos dois Prefeitos, que acolhe-ram a pretensão do ora recorrente, teriam de subordinar-se às nor-mas regulamentares de categoria superior. A Justiça cotidianamenteaplica esse critério que, por ser evidente, ninguém se dá mais ao tra-balho de demonstrar”.

Por essa razão, nega provimento ao recurso, sendo acompanhado pelaunanimidade do Tribunal Pleno..

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Memória Jurisprudencial

Mandado de Segurança 12.800

Poder regulamentar: margem de interpretação delei — Limites à apreciação judicial de atos discricionários.

Discutiam-se, nesse julgado, os requisitos para reconhecimento de entidadecomo de utilidade pública.

O Ministro Relator, Evandro Lins, afasta a pretensão da impetrante, enten-dendo válidos dispositivos de decreto, com a seguinte observação:

“Se os dispositivos não devem contradizer os preceitos legais,também não devem, curialmente, copiar-lhes servilmente as expres-sões. Pois, de outras formas, seriam perfeitamente inúteis. A funçãoespecífica do regulamento é justamente a de desenvolver ou explici-tar o pensamento legal, a fim de facilitar-lhe a execução. E nestatarefa, é óbvio que o Poder regulamentar deve gozar de uma razoávelmargem de interpretação.”

Seguiu-se intenso debate sobre a questão de fundo, com interpretaçõesdiversas quanto ao sentido das exigências contidas no decreto.

O Ministro Victor Nunes, em um primeiro momento, em aparte ao MinistroHermes Lima — que vota vencido —, produz interpretação no sentido de que anorma regulamentar estabeleceria poder discricionário ao Presidente da Repúblicapara que, uma vez atendidos os requisitos, reconhecesse ou não uma entidadecomo de utilidade pública (“A Lei deixou essa declaração ao prudente critériodo Executivo. É ato que recai na esfera de suas atribuições discricionárias,isto é, de oportunidade e conveniência. Não podemos compelir o Executivoa declarar a utilidade pública desta ou daquela sociedade.”), ao que respon-de o Ministro Hermes Lima apontando que tal interpretação daria ao Executivomargem para decidir de modo discriminatório.

Posteriormente, em seu voto, o Ministro Victor Nunes reconhece falha noato coator: o motivo alegado pelo Presidente da República não subsistiria. Aindaassim, o Ministro Victor Nunes manifesta-se — mais interessante frisar esteaspecto que a solução da questão de fundo — no sentido de que, tratando-se deato discricionário, não pode o Supremo Tribunal Federal substituir-se ao PoderExecutivo, ainda que se possa entender que a entidade impetrante pareça mere-cedora da obtenção do título pleiteado.

A solução, assim, seria devolver a matéria ao Presidente da República,para que decidisse por outro fundamento, deferindo, parcialmente, a segurança..

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Ministro Victor Nunes

Por fim, ante aparte do Ministro Relator, Evandro Lins, apontando outrosfundamentos já declarados para que o Presidente da República houvesse negado otítulo à impetrante, o Ministro Victor Nunes retifica seu voto e nega a segurança.

Embargos no Agravo de Instrumento 26.603

Cassação de licença para construir — Proteção deimóvel tombado.

Trata-se de embargos infringentes em agravo, levados a julgamento peloTribunal Pleno, contra decisão da Primeira Turma. O caso resolveu-se pelo não-conhecimento dos embargos, com fundamento na lei que então regia seu cabi-mento em hipóteses de divergência jurisprudencial.

Não parece, para os fins desta análise, relevante a discussão processualrelativa a esse aspecto. Todavia, do voto do Ministro Victor Nunes — que conhe-cia dos embargos, por vislumbrar divergência de julgados —, ressaltam-se algunselementos interessantes a respeito da possibilidade de cassação de licença paraconstruir, no caso invocando-se normas de proteção de bem tombado.

No caso concreto, houvera licença da Prefeitura do Município de Petrópo-lis para a construção de edifício nas proximidades do Palácio Imperial.

Com a obra quase concluída, o Serviço do Patrimônio Histórico e ArtísticoNacional160 determinou que a Prefeitura embargasse a obra, alegando que preju-dicava a visibilidade do Palácio, imóvel tombado.

Discutia-se, a partir daí, se, de fato, havia vizinhança a justificar a interdição;se havia direito da construtora a prosseguir na obra, ou se poderia a Prefeituracassar licença que concedera; se a Prefeitura poderia embargar administrativa-mente obra que licenciara, ou se União e Município deveriam buscar tutela judi-cial por meio de ação cominatória.

O Ministro Victor Nunes, em primeiro lugar, registra que a legislação e asposturas municipais não podem ignorar definições e regras estabelecidas em leisfederais, em se tratando de matérias de competência da União: “a Prefeitura dePetrópolis tinha de considerar implícita, em suas posturas, a observânciada lei federal”.

Tal se aplica quanto ao conceito de vizinhança, trazido pelo Código Civil eaplicado pelo Decreto-Lei 25/37, que disciplina o tombamento, e igualmente notocante à consulta prévia ao SPHAN quanto à possibilidade de construções dasvizinhanças de bens tombados.

160 SPHAN, hoje com o nome alterado para IPHAN, substituindo-se “Serviço” por “Ins-tituto”.

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Memória Jurisprudencial

Tratando-se de matéria da competência da lei federal, “as posturas mu-nicipais não poderiam desconhecer ou dispensar o que a lei federal exi-ge”. Assim, não poderia a Prefeitura, alegando falta de determinação expressaem norma municipal, deferir a licença para construção nas vizinhanças de imó-vel tombado pela autoridade federal, sem antes ouvir o órgão federal compe-tente161.

Em segundo lugar, quanto à hipótese de a Prefeitura cassar, por ato admi-nistrativo, licença que previamente concedera, alguns Ministros162 entendiam nãoser possível, reconhecendo-se o direito da construtora, uma vez licenciada a obra,configurando a licença um ato administrativo já completo.

Contra esse argumento, observa o Ministro Victor Nunes que, sendoirregular o ato da licença (porque não ouvido o SPHAN), não poderia ser con-siderado completo: “a licença concedida foi um ato administrativo imperfeito,incorreto, do qual não poderia resultar direito a ser protegido por mandadode segurança”. Daí a possibilidade de a Prefeitura cassar a licença por decisãoadministrativa.

Porém, como de início registrado, o resultado do julgamento foi pelo não-conhecimento dos embargos, contra os votos dos Ministros Victor Nunes eHermes Lima.

Mandado de Segurança 15.194

Anulação do ato de exoneração — Teoria dos mo-tivos determinantes.

Trata este caso de direito de servidor público. Não é, no entanto, a peculi-aridade da questão funcional que parece relevante para ser analisada, senão areferência à aplicação da teoria dos motivos determinantes.

Consoante síntese oferecida pelo Ministro Relator, Candido Motta,

“a requerente, por ato regular do Executivo, era funcionáriado Ministério da Fazenda. Por ato também do Executivo foi nomeada

161 Essa falta de consulta ao SPHAN é também lembrada pelo Ministro Victor Nunes paraafastar o argumento de que fora tardia a intervenção daquele órgão federal. O Ministroquestiona de que forma a intervenção poderia ser tardia, se o órgão não fora previamenteconsultado quanto à construção, não sendo razoável supor que pudesse ter ciência, poriniciativa própria, de todos os fatos ocorridos no território nacional, nas proximidades debens tombados.162 Explicitaram esse entendimento Hahnemann Guimarães e Gonçalves de Oliveira.

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Ministro Victor Nunes

Tesoureira Auxiliar do Instituto de Previdência e Assistência dos Ser-vidores do Estado. Surpreendeu-se com a extinção deste cargo e per-deu o anterior. Não foi demitida. Não cometeu imprudência, mas tão-sóconfiou na autoridade pública, no caso, o Presidente da República”.

No caso, com a perspectiva de ser nomeada para o segundo cargo, aimpetrante pediu exoneração do cargo anterior. Mas viu, em seguida, ser tornadosem efeito o Decreto que criara o novo cargo.

O Ministro Relator entende que, com a extinção do novo cargo, deve aimpetrante retornar ao primeiro, em posição na qual tinha situação jurídica defini-da, não tendo contribuído para perdê-la. Ou, caso esteja o primeiro cargo já pre-enchido, deve permanecer em disponibilidade remunerada.

O Ministro Prado Kelly, ao seu turno, concordando com o Relator, vislum-bra, no caso, a aplicação da teoria dos motivos determinantes: a impetrante, deboa-fé, exonerara-se do cargo que antes ocupava para poder ocupar cargo re-centemente criado no Ipase.

“Tal o motivo determinante do pedido de exoneração. (...) Ora,se perdeu eficácia o decreto que criara o cargo ao qual aspirava afuncionária, a ponto de solicitar exoneração de outro para poderocupá-lo, perdeu também o motivo do pedido de exoneração. E en-contro, já aí, uma razão que vai além da eqüidade, para acompanharo voto do eminente Relator”.

Em seu voto, o Ministro Victor Nunes acompanha o Ministro Prado Kelly,concordando com a aplicação da teoria dos motivos determinantes do ato admi-nistrativo.

É curioso notar, no entanto, ainda que esse aspecto não tenha sidoexplicitado no acórdão, que o Ministro Prado Kelly discutira os motivosdeterminantes não propriamente de um ato administrativo, mas de um ato pessoaldo servidor — pedido de exoneração — que acarreta o ato administrativo propria-mente dito: a exoneração. E, de todo modo, entendeu-se que, revelando-seinsubsistentes os motivos do pedido, seria o caso de anular a exoneração.

Completando seu voto, o Ministro Victor Nunes lembra outros casos emque o Tribunal já aplicara a teoria dos motivos determinantes (“que FranciscoCampos perfilhou, em conhecido parecer, firmado nas lições de Jèze”),por exemplo, anulando exoneração de servidor ocupante de cargo em comis-são, por não se haver comprovado o motivo que a Administração alegara paraexonerá-lo.

O Tribunal, por maioria, vota com o Relator, concedendo a segurança paraque a impetrante retorne ao seu cargo anterior. Cinco Ministros votaram vencidos,deferindo in totum o pedido, para reintegração ao cargo que fora extinto..

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Memória Jurisprudencial

Embargos no Recurso Extraordinário 45.110

Nulidade de ato administrativo por vício de forma —Código Civil.

Este caso resolveu-se, originalmente, por questão processual: não-cabi-mento de recurso extraordinário, por tratar-se de violação de lei estadual — nojulgamento do recurso, a Turma, por esse motivo, dele não conhecera.

Interessa, no entanto, um detalhe do argumento do recorrente e embargante,que diz respeito ao fundamento da invalidade dos atos administrativos.

Em que pese se discutisse, no caso, nulidade de ato administrativo porviolação de forma prescrita em lei estadual, invocava o recorrente violação, peloTribunal a quo, de lei federal: o Código Civil163, ao prever como nulidade do atojurídico o desrespeito à forma legalmente estabelecida.

Apresentados embargos, o Ministro Victor Nunes, reconhecendo ter con-siderado interessante o argumento apresentado pelo advogado do embargante —Seabra Fagundes —, acaba por afastá-lo, mostrando que,

“quando se trata de nulidade de ato administrativo, a matériatanto cabe na legislação federal como na legislação estadual e não épreciso arrimo do Código Civil para sustentar-se a nulidade de umato administrativo estadual em desacordo com a forma prescrita nalei do Estado. A nulidade resulta, aí, da própria doutrina do DireitoAdministrativo, sem necessidade de recorrer do campo da lei localpara o âmbito da lei federal. A discussão, de qualquer modo, ficaráencerrada no plano da lei local.”

Pondera ainda que, a prevalecer a tese do recorrente, seria considerada,para efeito de conhecimento do recurso extraordinário, mais importante uma leiestadual que disponha sobre forma do ato — cujo cumprimento fosse eventual-mente negado por julgamento da instância anterior, ensejando assim o recurso,por automaticamente estar implicada violação do Código Civil — do que outraque disponha sobre a substância da relação jurídica controvertida.

Nesse sentido, acompanha o voto do Ministro Relator, Ribeiro da Costa,não conhecendo dos embargos164. A votação foi unânime no Tribunal Pleno.

163 De 1916, arts. 82 e 145, III.164 Havia outra questão processual, esta a ensejar o não-conhecimento dos embargos. Oembargante mudara o fundamento do recurso extraordinário nos embargos. Recorreracom fundamento no art. 101, III, a, e embargara com fundamento na alínea c desse dispo-sitivo.

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Ministro Victor Nunes

2.3 Concessão

Mandado de Segurança 18.028

Concessão de serviços públicos — Processo admi-nistrativo como garantia do concessionário.

Tratava-se de caso em que o Governo Federal decidiu extinguir a conces-são para a exploração dos serviços do Porto de Ilhéus. Tal extinção deu-se pordecreto do Presidente da República, de 1967, sob a modalidade de rescisão.

O contrato de concessão para a Cia. Industrial de Ilhéus S.A. fora cele-brado em 1923, com prazo de sessenta anos, admitindo duas formas de extinção:encampação — a qualquer tempo, passado um terço do prazo — e rescisão —por inadimplemento da concessionária, após a aplicação de duas ou mais multasou por falta de caução.

No caso concreto, estando o serviço já sob intervenção da União165, ini-ciou-se processo de encampação, o qual, todavia, foi transformado em rescisão,que veio a ser sumariamente decretada, sem que a concessionária houvesse in-corrido na penalidade de multa ou deixado de apresentar caução.

A concessionária alegava que a rescisão não respeitou, pois, as formalida-des previstas no próprio contrato. Além disso, apontava grave desequilíbrio eco-nômico-financeiro do contrato, imputando ao concedente prejuízos que sofria.

O Ministro Relator, Evandro Lins, negando a segurança, resume assim seupensamento:

“o mandado de segurança não é meio idôneo para impedir aopoder concedente o exercício da faculdade, que está implícita em todasas concessões, ou seja, a rescisão unilateral do contrato, tendo emvista o interesse público”.

E isso não impede que o concessionário busque indenização por seus prejuízos,pelas vias ordinárias.

165 Por não se ter conseguido arcar com aumentos salariais definidos em acordo coletivo.O Ministro Aliomar Baleeiro, conhecedor da realidade da Bahia, faz fortes críticas a pro-blemas históricos do Porto de Ilhéus..

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Memória Jurisprudencial

A denegação da ordem é seguida pelos demais Ministros, inclusive peloMinistro Victor Nunes, que, todavia, ressalva fazê-lo pela existência de matériade prova a demandar maior exame.

De todo modo, o Ministro Victor Nunes traz em seu voto pensamentocrítico, de natureza política, sobre distorções que o exagero da posição defendidapela maioria dos Ministros pode causar no instituto da concessão:

“Vivemos num regime declaradamente capitalista, em que aConstituição exprime seu apoio, não digo irrestrito, mas vigoroso, àiniciativa privada, opondo mais óbices que a de 1946 à atividadeeconômica do Estado. Não compreendo, neste regime, que a adminis-tração sustente, sobre a concessão de serviço público, uma doutrinaque deixa o capital completamente desamparado. Num empreendi-mento em que o concessionário, presumidamente, aplica vultosos re-cursos, deve ele ficar privado desse patrimônio, até ninguém sabequando, à espera da indenização a que tiver direito, sem que se lhereconheça, pelo menos, a garantia de um processo administrativo?”

Em que pese a Constituição de 1967, em seu art. 160, preveja, em matériade concessão de serviços públicos, “tarifas que permitam a justa remuneraçãodo capital, o melhoramento e a expansão dos serviços e assegurem o equi-líbrio econômico financeiro do contrato”, o Ministro Victor Nunes observaque o Governo tem feito dessa regra letra morta.

No caso concreto, o Ministro Victor Nunes reforça seu ponto de vista como fato de a concessão já estar sob intervenção e de os problemas persistiremdesde longa data. Tudo isso retira justificativa da precipitação em se promover arescisão, sendo perfeitamente cabível levar mais vinte ou trinta dias, oferecendo-se à concessionária a oportunidade de se defender.

Neste voto, o Ministro Victor Nunes lembra outro mandado de segurança,que teve ampla repercussão na época, em que também votou pela denegação,mas fez observações semelhantes a essas. Trata-se do caso da Panair, no qualhavia uma situação anômala, estando os serviços claramente comprometidos, “eo governo, inopinadamente, sem processo administrativo regular, fez cessarsuas atividades, para transferi-las a outras companhias. Não foi uma inter-venção para garantir a continuidade do serviço, mas para liqüidá-lo”.

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Ministro Victor Nunes

Mandado de Segurança 16.132

Concessão de serviço de radiodifusão — Caduci-dade — Aplicação de legislação em sentido contrárioao que a inspirara.

Tratava-se de julgamento que ensejou divergência e relevantes debatessobre caducidade ou cassação166 de concessão outorgada à Rádio SociedadeMayrink Veiga.

A tese vitoriosa no julgamento, dando razão ao Presidente da República,autoridade impetrada, está bem sintetizada na ementa do acórdão, relatado peloMinistro Vilas Boas:

“Consumada uma concessão em razão do tempo, não é possívelao Poder Judiciário revigorá-la, porque a recondução é da exclusivacompetência do Executivo. No caso, haveria motivo até para rescisão(...) e assim não existe direito líquido e certo a amparar”.

À sociedade impetrante foi imputado ato violador das normas sobre con-cessão de telecomunicações, consistente em alienar seu controle acionário semconcordância do Poder Público. Ainda lhe foram atribuídos, em período maisrecente, atos atentatórios à segurança nacional.

A questão, todavia, mostrou-se bastante complexa, envolvendo atos prati-cados antes e depois da vigência do Código Brasileiro de Telecomunicações —Lei 4.117, de 21 de agosto de 1962.

Em seu voto divergente, o Ministro Victor Nunes cita trecho de parecer,elaborado no âmbito do Ministério da Justiça, que bem ilustra as dúvidasensejadas a partir dos fatos praticados pela impetrante:

“Examinando o assunto, os Srs. Membros do Conselho Nacio-nal de Telecomunicações dividiram-se em três grupos, sustentandocada um opinião própria, a saber:

a) a caducidade da concessão pela violação de dispositivoslegais vigentes à época do contrato e de cláusulas contratuais. Se-gundo esse ponto de vista, os direitos e obrigações das concessioná-rias se regem pela lei vigente, na data da celebração de contrato, nãose aplicando, à hipótese, os preceitos do Código brasileiro de Comu-nicações;

166 Essa distinção é reconhecida, discutindo-se, no caso, qual a figura a ser aplicada.

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Memória Jurisprudencial

b) a cassação da concessão, porque, tendo praticado delitoscontra a segurança nacional, os dirigentes da entidade não têmidoneidade moral para continuar respondendo pela execução de umserviço público como a radiodifusão, arrimando-se esse grupo noart. 74, c, do Código Brasileiro de Telecomunicações. Essa penalida-de seria, ainda, cumulada com a multa, nos termos dos arts. 62 e 63do mesmo diploma legal.

c) a insubsistência de transferência das ações, de modo que asociedade voltaria ao controle do antigo grupo punindo-se a entida-de com a pena de suspensão por 30 dias.

Predominou, porém, o primeiro grupo. (...)”

E ainda do voto do Ministro Victor Nunes extrai-se síntese esclarecedorado raciocínio do Governo no caso:

“Aqui está mais ou menos explicado o raciocínio que levou oGoverno a essa solução. O Governo entende que, tendo expirado oprazo de concessão da Rádio Mayrink Veiga antes da vigência doCódigo Brasileiro de Telecomunicações, embora não declarada antesa caducidade, o Governo poderia deixar de lado o Código de Teleco-municações, para aplicar a pena de caducidade da lei anterior. Nãoimportava que as infrações atribuídas à empresa tivessem carátercontinuado, tendo começado antes da lei nova, com a transferêncianão autorizada de ações, prosseguindo, depois dela, com outras in-frações que poderiam, eventualmente, recair no âmbito da Lei de Se-gurança Nacional. Segundo esse entendimento, seriam aplicáveisdois tipos de sanções, umas pela lei nova, outras pela lei antiga”.

Antes de entrar na discussão das questões jurídicas específicas do caso, oMinistro Victor Nunes ainda produz análise política de postura que tem marcadoas atitudes do Governo após 1964:

“Sr. Presidente, o que me parece ter havido, neste caso, é umaconfusão que já temos encontrado em outros. Houve uma revolução enem todo o sistema jurídico que essa revolução encontrou foi aindamudado. Apesar disso, algumas autoridades querem aplicar leis dosistema anterior, contrariamente à sua letra e ao seu espírito, como seelas fossem inspiradas pelos objetivos do novo regime. Às vezes, oque há nestes casos é uma incompatibilidade total, como mostrou oeminente Ministro Evandro Lins.

O Código de Telecomunicações, como todos sabemos, foi feitocontra o Governo, contra o Executivo. Sendo uma lei restritiva do

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Ministro Victor Nunes

Poder Executivo, não pode agora ser invocada para alargar os po-deres do Presidente da República. Ela foi promulgada precisamentepara limitar esses poderes, pois se argumentava, no Congresso, que alegislação anterior era de cunho ditatorial”.

Daí afirmar, em relação ao caso concreto, que poderia o Governo facil-mente, pelos poderes que tem, alterar o Código de Telecomunicações, mas nuncaaplicá-lo contra o particular — justamente quem o Código quis proteger —, invo-cando poderes que o Código não lhe dá.

O Código revogou todo o sistema de penalidades da legislação anterior,Decreto de 1932, na qual se encontrava, para a transferência não autorizada deações, a pena de caducidade da concessão. Pelo Código, essa mesma infração épunida com pena de suspensão.

Em aparte, lembra o Ministro Relator, Vilas Boas, ser, nos termos do Código,vinculada a validade da transferência de ações à autorização do Governo. Ao queresponde o Ministro Evandro Lins que a validade ou não da operação não temrelação com a penalidade imposta. E daí conclui o Ministro Victor Nunes:

“a conseqüência, portanto, é a seguinte: inválida que seja atransferência de ações, delas continuam a ser titulares, por esta lei,os alienantes. Restaura-se o status quo anterior. Se os alienantes nãotêm capacidade econômica, ou técnica, ou legal, para continuarem oserviço, então, sim, o Governo, verificada essa situação, aplicará apena de cassação”.

Lembra ainda o Ministro Victor Nunes — respondendo novamente aoRelator, que observou que o ato do Governo, ora impugnado, fora de declaraçãode caducidade e não de cassação — que o Código mantivera, pelo prazo de dezanos, as concessões dos serviços em funcionamento, não havendo que falar, pois,em caducidade.

Em mais um aparte, o Relator observa o fato de que, em que pese a previ-são legal da invalidade da transferência de ações, a Rádio está operando emoutras mãos, violando o intuitu personae do contrato. A isso responde o MinistroVictor Nunes que “a lei não considerou os contratos existentes intuitupersonae, porque prorrogou a concessão de todos os serviços que estives-sem em funcionamento”.

Mostra, por fim, o Ministro Victor Nunes que a hipótese, ventilada nosautos, de que a Rádio impetrante estaria praticando atividades subversivas pode-ria levar a penalidades — por exemplo: dissolução de sociedade, suspensão deatividades —, por força de normas de defesa da segurança nacional, mas não doCódigo de Telecomunicações..

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Memória Jurisprudencial

Por essas razões, vota, acompanhando o Ministro Evandro Lins, pela con-cessão da segurança, visando à anulação do decreto que declarou a caducidadeda concessão outorgada à impetrante. Restam vencidos os dois Ministros, tendoos demais votado com o Relator, pela denegação da ordem.

Recurso em Mandado de Segurança 14.230167

Concessão — Exploração de minérios — Desres-peito a normas de processo administrativo.

Este processo derivou de situação de ampla repercussão na época, restandoconhecido como Caso Hanna. O Presidente Jânio Quadros determinou que seprocedesse a investigação a respeito da regularidade de certas concessões ou au-torizações para a exploração de minérios168.

Ocorre que, instaurados procedimentos investigatórios no âmbito do Mi-nistério de Minas e Energia, independentemente da oitiva das empresas investi-gadas ou de decisão final do Presidente da República, o Ministro proferiu despachocancelando determinadas averbações169 de minas e jazidas e ordenando a cessaçãoimediata das explorações concedidas em virtude de tais averbações.

Nessa situação, a Companhia de Mineração Novalimense e a IcominasS.A. Empresa de Mineração, sucessoras da St. John del Rey Co., impetrarammandado de segurança contra o ato do Ministro e agora apresentaram recurso demandado de segurança ao Supremo Tribunal Federal. Quanto ao recurso extra-ordinário e ao agravo de instrumento, julgados em conjunto nesse caso, inverte-ram-se as posições, sendo recorrente a União Federal.

Esse caso mereceu longos votos por parte de vários Ministros, com ampladiscussão da situação de fato e de regras próprias do Código de Minas, de 1934.

Sem adentrar-se em pormenores desses âmbitos, parece interessante res-saltar que, em essência, a solução da questão decorreu de normas do Código deMinas, relativas a caducidade ou anulação de concessões de lavra ou autoriza-ções de pesquisa, normas essas que instituíam procedimentos “processualiza-dos170”, com previsão de contraditório e defesa das partes interessadas, além deapontar o Presidente da República como autoridade para proferir a decisão final,após despacho do Ministro.

167 Julgado conjuntamente com o RE 56.880 e o AI 32.869.168 Havia subjacente ampla discussão política e ideológica sobre possibilidade de capi-tais estrangeiros atuarem no setor. E apontava-se perseguição discriminatória contra asrecorrentes, por parte da União.169 Procedimento do Direito minerário, que não parece ser o caso de aqui aprofundar.170 Empregando-se a expressão atual.

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Ministro Victor Nunes

No caso, nem as partes haviam sido ouvidas, e o Ministro proferira despa-cho com caráter terminativo do procedimento.

O Ministro Victor Nunes votou, acompanhando o Ministro Relator, Gon-çalves de Oliveira, nos seguintes termos: “pondero que já há um processoadministrativo instaurado por ordem do Presidente da República. Este pro-cesso, corrigido nas suas irregularidades — que são a falta de defesa e ocaráter executório que se pretende dar ao despacho ministerial —, é quedeve subir à deliberação presidencial”.

O processo administrativo ainda não estava, portanto, terminado, por faltade decisão do Presidente da República. Assim, entende o Ministro Victor Nunesque qualquer decisão do Tribunal que vá além de determinar o saneamento dosvícios e o encaminhamento do processo ao Chefe do Poder Executivo importariaprejulgamento do mérito do processo administrativo.

Essa posição — importando provimento parcial do recurso de mandado desegurança — prevaleceu com o voto de desempate do Presidente.

Restaram vencidos sete Ministros que davam integral provimento, anulandoo despacho do Ministro de Minas e Energia e devolvendo o processo ao Ministé-rio, para que lhe fosse dado adequado andamento. E os recursos da União foramjulgados prejudicados.

2.4 Desapropriação e bens públicos

Recurso Extraordinário 54.011

Retrocessão — Distinção entre desapropriaçãoamigável e compra e venda.

Discutia-se neste caso a retrocessão. Tratava-se de desapropriação,promovida pelo Estado do Rio Grande do Norte, quanto ao domínio útil deimóvel de que os recorrentes eram titulares, como enfiteutas. Concluída a de-sapropriação, a finalidade171 para a qual se desapropriara não se consumou, eo imóvel foi cedido a terceiros. Nessa situação, pleitearam os recorrentesretrocessão.

A decisão a quo ora recorrida, do Tribunal Federal de Recursos, apontoudois fundamentos para negar o direito dos recorrentes à retorcessão: a) (decisãodo primeiro julgamento no TFR) o art. 35 da Lei de Desapropriações — Decreto-

171 Transformação da área em campo de manobras da guarnição federal.

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Memória Jurisprudencial

Lei 3.365/41 — teria afastado a incidência do art. 1.150 do Código Civil de1916172, tornando irremediavelmente incorporadas ao patrimônio do exproprianteas coisas desapropriadas, ou seja, eliminando o instituto da retrocessão; a questãoteria de se resolver não pela devolução do bem, mas por indenização; b) (decisãode embargos no TFR) apenas o proprietário poderia valer-se do disposto no art.1.150 do Código Civil e não os recorrentes, que são titulares apenas do domínioútil, como foreiros.

O interesse em comentar esse acórdão se encontra no registro de um mo-mento em que a jurisprudência ainda se consolidava sobre a aplicação do institutoda retrocessão, em face do previsto no art. 35 da Lei de Desapropriações.

O Ministro Victor Nunes, em seu voto, lembra precedente do SupremoTribunal Federal — RE 47.259 —, que levou à formação da Súmula 111173 eaborda indiretamente a questão da retrocessão. Essa Súmula trata do pagamentodo imposto de transmissão inter vivos, quando o bem desapropriado retorna aodono anterior, por não ter sido utilizado nos fins a que se destinava.

A maioria, no citado RE 47.259, entende devido o imposto, por considerarque a desapropriação se esgota com a passagem do bem ao expropriante. Oretorno do bem ao expropriado seria uma segunda alienação, a título do direito depreferência, previsto no Código Civil (art. 1.150); uma vez não aplicada a prefe-rência, a situação resolver-se-ia em indenização. O Ministro Victor Nunes votavencido, entendendo indevido o imposto, uma vez que o retorno do bem ao expro-priado seria decorrente de tornar-se sem efeito a desapropriação, não caracteri-zando nova alienação.

Todavia, no presente caso, o Ministro Victor Nunes não chega a se pronun-ciar sobre o mérito da retrocessão. Isso porque sua decisão parou no ponto em queafastou argumento do Tribunal a quo, que acolhera preliminar de ilegitimidade dosrecorrentes, como foreiros, para pleitearem o direito previsto no art. 1.150 doCódigo Civil.

172 Decreto-Lei 3.365/41, art. 35: “Os bens expropriados, uma vez incorporados à FazendaPública, não podem ser objeto de reivindicação, ainda que fundada em nulidade doprocesso de desapropriação. Qualquer ação, julgada procedente, resolver-se-á em per-das e danos.”; Código Civil (1916), art. 1.150: “A União, o Estado, ou o Município ofere-cerá ao ex-proprietário o imóvel desapropriado, pelo preço por que o foi, caso nãotenha destino, para que se desapropriou.” Hoje o Código Civil (2002) assim trata damatéria no art. 519: “Se a coisa expropriada para fins de necessidade ou utilidadepública, ou por interesse social, não tiver o destino para que se desapropriou, ou nãofor utilizada em obras ou serviços públicos, caberá ao expropriado direito de preferên-cia, pelo preço atual da coisa.”173 Súmula 111: É legítima a incidência do imposto de transmissão inter vivos sobre arestituição, ao antigo proprietário, de imóvel que deixou de servir à finalidade da suadesapropriação..

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Ministro Victor Nunes

Sobre esse ponto, o Ministro Victor Nunes considera que o texto do art.1.150 do Código Civil, que se referia a “ex-proprietário”, tem que ser entendidocomo se referindo a “sujeito passivo da desapropriação”, o que inclui os titularesde domínio útil — caso dos recorrentes —, até porque o domínio útil pode serisoladamente objeto de desapropriação, sem que se afete o domínio pleno ou anua propriedade.

Vota, assim, pelo provimento do recurso, para que se devolva o processoao TFR, a fim de que julgue o mérito: direito do expropriado de reaver a propri-edade ou apenas direito de pedir indenização.

Assim vota a maioria, vencido o Relator, Ministro Vilas Boas, que negavaprovimento ao recurso.

Vale ainda um comentário a partir de questão levantada pelo MinistroVictor Nunes. A desapropriação foi amigável, o que pode fazê-la assemelhada auma compra e venda. Nesse sentido, o Ministro Victor Nunes atenta para detalhesda escritura — que foi de simples composição de preço e não de acordo quantoà vontade de vender —, concluindo que a transferência de domínio se originou navontade unilateral expressa no decreto expropriatório e não no acordo das partes.Ficasse caracterizada compra e venda, não haveria que cogitar de retrocessãocom base nos dispositivos legais invocados.

Recurso em Mandado de Segurança 9.549

Desapropriação de ações de companhia ferroviária —Abusividade — Desapropriação do serviço ou das ações —Mandado de segurança como a “ação direta” da Lei deDesapropriações.

Cuida-se, neste caso, da desapropriação, pelo Governo do Estado de SãoPaulo, das ações da Companhia Paulista de Estradas de Ferro, que, uma vezestatizada, configurou-se como a Fepasa.

Como destacado pelo Ministro Relator, Ribeiro da Costa, a recorrente,Cia. Paulista, impetrara mandado de segurança contra diversos aspectos dosatos praticados pelo expropriante no processo de desapropriação, questionandodesde a abusividade da expropriação em si até ilegalidades em sua execução(v.g. ausência de determinada deliberação da Assembléia Legislativa; o preçoofertado; não-cabimento, no caso, de imissão provisória na posse).

No entanto, não foram discutidas as questões de fundo levantadas. O jul-gamento centrou-se na análise do cabimento do mandado de segurança, para afinalidade almejada pela recorrente.

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Prevaleceu a tese sustentada pelo Relator no sentido de que o mandado desegurança174 não pode ser utilizado como a “ação direta” a que se refere o art.20175 do Decreto-Lei 3.365/41 (Lei de Desapropriações).

Votaram vencidos os Ministros Luiz Gallotti, Pedro Chaves e Gonçalvesde Oliveira, entendendo cabível apreciar determinadas questões trazidas viamandado de segurança.

O Ministro Victor Nunes acompanha a conclusão do Relator, porém nãoconcorda com a tese de que a expressão “ação direta”, da Lei de Desapropria-ções, seja excludente do mandado de segurança:

“O art. 20 da Lei de Desapropriações, quando veda o examede certas controvérsias no processo expropriatório, remetendo a par-te para a ação direta, a meu ver, não remete a parte para a açãoordinária, mas para o procedimento cabível. O procedimento será odo mandado de segurança, se nele couber o pedido — estranho aoprocesso expropriatório —, nos termos da Lei n. 1.533; em outraspalavras, se o pedido envolver questões de direito, baseadas em ma-téria de fato incontroversa”.

Ocorre que, no caso concreto, dadas as questões específicas trazidas ajulgamento, o Ministro Victor Nunes conclui pelo não-cabimento do mandado desegurança.

Para chegar a tal conclusão, centra-se, como argumento suficiente, naalegação dos autores176 de que a desapropriação seria abusiva porque o Governodo Estado de São Paulo, tendo por finalidade desapropriar o serviço ferroviárioexecutado pela expropriada, optou por desapropriar as ações da sociedade, o queteria implicado a desapropriação de patrimônio não vinculado à exploração doserviço177.

Quanto a esse argumento, o Ministro Victor Nunes conclui que sua análisedependeria de prova — que não se apresentava pré-constituída nos autos —quanto à existência desse patrimônio não vinculado, incompatível com a via pro-cessual escolhida.

174 Consta da ementa do acórdão: “O mandado de segurança não deve ser manejadocomo a clava nas mãos dos bárbaros possuídos de todas as iras. É remédio jurídico cujaforça drástica tem limitações postas pelo legislador bem avisado” .175 “Art. 20. A contestação só poderá versar sobre vício do processo judicial ouimpugnação do preço; qualquer outra questão deverá ser decidida por ação direta.”176 Que o Ministro Victor Nunes considera a questão fundamental do caso.177 Sustentava a expropriada que o Governo deveria ter desapropriado a ferrovia e osserviços a ela conexos.

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Ministro Victor Nunes

Recurso Extraordinário 44.585

Terras indígenas — Sentido de “posse” constitucio-nalmente protegida.

Discutia-se, neste caso, a aplicação do art. 216 da Constituição de 1946:“será respeitada aos silvícolas a posse das terras onde se achem permanen-temente localizados, com a condição de não a transferirem”.

No caso, por disposição de lei estadual de Mato Grosso que aprovarademarcação das terras dos índios Caidinéos, “se, dentro de dez anos, a Inspe-toria não houver cumprido as condições estabelecidas, e, em especial, senão houver providenciado o aumento dos habitantes nessa região, fica oEstado no direito de restringir a área concedida”. Passado o período, nova leiestadual restringiu a área da reserva indígena, mantendo-a, de todo modo, emcem mil hectares. E é essa lei que tem sua constitucionalidade questionada nesteprocesso: o tribunal local a considerara inconstitucional e agora recorre dessadecisão a Assembléia Legislativa.

Em seu voto, o Ministro Relator, Ribeiro da Costa, dá razão à recorrente,entendendo que a lei em questão não violara a Constituição ao reduzir a áreareservada aos indígenas, “pois conservou intacto o respeito à posse das ter-ras pelos silvícolas onde os mesmos se acham permanentemente localiza-dos”. Entendeu, assim, que a essa posse é que se referia o citado dispositivoconstitucional.

A seu turno, o Ministro Victor Nunes discorda do Relator. Entende que aConstituição não se referiu a “posse”, nesse caso, no sentido civilista da expres-são. E nem mesmo se trata de propriedade. O que se reservou foi o “território”dos índios, com o objetivo de que “ali permaneçam os traços culturais dosantigos habitantes, não só para sobrevivência dessa tribo, como para estu-do dos etnólogos e para outros efeitos de natureza cultural ou intelectual”.

A palavra “posse”, no dispositivo da Constituição, deveria ser entendidacomo utilização da área como “ambiente ecológico”, território em que se vivecom as características culturais primitivas.

E continua:

“Se os índios, na data da Constituição Federal, ocupavam deter-minado território, porque desse território tiravam seus recursos ali-mentícios, embora sem terem construções ou obras permanentes quetestemunhassem posse de acordo com o nosso conceito, essa área, naqual e da qual viviam, era necessária à sua subsistência. Essa área,existente na data da Constituição Federal, é que se mandou respeitar.

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Memória Jurisprudencial

Se ela foi reduzida por lei posterior; se o Estado a diminuiu em dez milhectares, amanhã a reduziria em outros dez, depois, mais dez, e poderiaacabar confinando os índios a um pequeno trato, até ao território daaldeia, porque ali é que a ‘posse’ estaria materializada nas malocas.Não foi isso que a Constituição quis”.

Nesse sentido, nega provimento ao recurso, declarando inconstitucional areferida lei estadual que restringiu o parque indígena. E foi acompanhado pelamaioria, vencidos os Ministros Ribeiro da Costa e Pedro Chaves.

Mandado de Segurança 16.443

Caracterização das terras indígenas e seus frutoscomo bens públicos — Formalidades para alienação.

O caso concreto subjacente a esse processo é uma concorrência que foraaberta para a venda de “50.000 pinheiros do Patrimônio Indígena”, situadosem reserva do Estado do Paraná.

Concluída a licitação e paga parte do preço pela ora impetrante, outraconcorrente pleiteou a nulidade do certame, por desrespeito a certas formalidadesda lei de regência das concorrências públicas. Em conseqüência, o Presidente daRepública anulou a concorrência em ato que é objeto deste mandado de segurança.

Deixando de lado as questões atinentes às formalidades então exigidas emuma concorrência, discutia-se, no caso, a necessidade de se proceder a umaconcorrência pública propriamente dita, com todos os rigores, para que se ven-desse patrimônio indígena.

Segundo a impetrante, o patrimônio indígena não estaria no mesmo níveldo patrimônio público, “não se encontrando os silvícolas proscritos da ordemjurídica”. Desse modo, não seria necessária a aplicação das normas legais so-bre alienação dos bens públicos.

O Relator, Ministro Barros Monteiro, no entanto, nega razão à impetrante,lembrando que “hoje em dia (...) não há mais que se questionar a respeito,em face do preceito do art. 4º da vigente Constituição178, que, entre os bensda União, incluiu, em seu inciso IV, as terras ocupadas pelos silvícolas”. E,no art. 186, previu ainda o usufruto exclusivo dos índios quanto aos recursosnaturais existentes nessas terras.

178 A de 1967. Já a Constituição de 1946 não trazia tal previsão, apenas se referindo aorespeito à “posse” dos índios, como visto no caso anteriormente analisado.

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Há, pois, que se aplicar à alienação dos pinheiros em questão as normasatinentes à alienação de bens públicos.

Concordando com as conclusões do Relator, o Ministro Victor Nunes faz,todavia, uma ressalva, para firmar o entendimento de não se poder afirmar que ésempre aplicável às terras ocupadas pelos índios e aos seus frutos a mesmadisciplina jurídica dos demais bens públicos.

Lembrando o julgamento do RE 44.585, em que se invocou o art. 216 daConstituição de 1946 — segundo o qual não apenas a posse das terras habitadaspelos índios seria respeitada como também não poderia ser transferida, nem pelospróprios silvícolas —, acrescenta que a Constituição de 1967 (art. 186) foi além,reconhecendo aos índios direito ao usufruto exclusivo dos recursos naturais e detodas as utilidades existentes nas terras por eles ocupadas.

Em seu modo de pensar, o regime traçado pela Constituição de 1967 levaà conclusão de que outras condições, além das normalmente previstas para aalienação de bens públicos, podem ser impostas para a alienação de frutos dasterras indígenas:

“pela Constituição, mesmo a alienação de certos frutos dessasáreas pode ficar dependendo de condições que não sejam normal-mente exigidas para a alienação dos bens públicos em geral. Nocaso, trata-se da venda de pinheiros. Não posso saber em que medidaa permanência dos pinheirais, como árvores vivas, deva ser conside-rada elemento essencial ao habitat dos silvícolas”.

E, ainda que não esteja em questão nesse caso, observa, quanto a alienaçãodas próprias terras ocupadas pelos índios,

“que o simples fato de pertencerem à União (...) não as sujeitaintegralmente ao regime legal dos bens públicos, dado o seu caráterde inalienabilidade. Não está envolvida, no caso, uma simples ques-tão de direito patrimonial, mas também um problema de ordem cultu-ral, no sentido antropológico, porque essas terras são o habitat dosremanescentes das populações indígenas do País. A permanênciadessas terras em sua posse é condição de vida e de sobrevivênciadesses grupos, já tão dizimados pelo tratamento recebido dos civili-zados e pelo abandono em que ficaram”.

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APÊNDICE

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INQUÉRITO POLICIAL 2 — GB(Tribunal Pleno — Matéria Constitucional)

Por força do art. 16, I, do AI 2, de 27-10-65, com efeitoretro-operante, a suspensão dos direitos políticos acarreta,simultaneamente, a cessação da competência por prerroga-tiva de função. A cessação da competência ratione personaeconstitui efeito imediato da suspensão dos direitos políticos.

Os efeitos da suspensão dos direitos políticos, taxativamenteenumerados no art. 16 do AI 2, aprovados pelo art. 173 da CF,que os procurou resguardar, hão de viger no decurso do prazoda suspensão. Inaplicabilidade do art. 144 da CF de 1967.

A norma ínsita no art. 114, I, a, da Carta Política de 1967,não se aplica àqueles que tiveram suspensos seus direitospolíticos.

Competência da Justiça Federal do Estado da Guanabarapara processar e julgar o ex-Presidente João Goulart.

VOTO

O Sr. Ministro Victor Nunes: Já esclareci, em aparte, que, ao ser julgado opedido de remessa da AP 157 à Justiça Militar, em 13-3-67, a questão, que ora sediscute, não tinha sido focalizada.

Certa vez, o eminente Ministro Lafayette de Andrada observou em tomamistoso: O Ministro Victor Nunes, em vez de julgar o processo, fica suscitandoproblemas!

Na AP 157, procurei não incidir nessa censura. Como de outras vezes oTribunal havia atendido a requerimento idêntico do Procurador, deixei para apre-ciar a matéria, ora em debate, quando ela fosse discutida nos autos.

Se a questão tivesse sido posta naquela oportunidade, eu teria votadocomo agora se pronunciou o Senhor Ministro Gonçalves de Oliveira. Lembro arespeito as considerações que fiz, incidentemente, na sessão de 6-12-67, aojulgarmos o MS 17.957, impetrado a este Tribunal pelo ilustre advogado Dr.Sabóia de Medeiros.

Argumentei, então, que a Constituição havia aprovado os atos do Governorevolucionário e, portanto, teria aprovado o ato contra cujos efeitos a impetrantese insurgira, ponderando que esses efeitos se chocavam com o princípio constitu-cional do direito adquirido. Disse eu naquela oportunidade:

“Não desejo prolongar mais... (lê voto escrito) ...não é possívelhaver, simultaneamente, duas regras constitucionais”.

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Essa mesma observação foi feita, há pouco, pelo Sr. Ministro ThemistoclesCavalcanti. Prossigo na leitura daquele meu voto:

“(...) não é possível haver, simultaneamente, duas regrasconstitucionais... (lê voto escrito) ...espírito da Constituição”.

No caso presente, o que se pretende é fazer sobreviver, em face da Cons-tituição em vigor, um ato normativo incompatível com ela, o qual, por seu caráterde exceção, tinha vigência por prazo predeterminado.

Dir-se-á que a suspensão de direitos, ora em discussão, resultou de um atopretérito, que se deve ter por aprovado, mesmo em face das considerações quefiz na sessão de 6 de dezembro.

A objeção não procederia, porque aqui não estamos discutindo a validade doato de suspensão de direitos políticos. O que estamos discutindo é um problemade competência para julgar processo que ainda está pendente.

Em matéria de competência, só se pode falar em ato consumado quando aautoridade o tenha praticado no tempo em que tinha tal competência. Se o pre-sente processo tivesse sido julgado pela Justiça Militar antes da vigência da atualConstituição, teríamos uma situação consumada, porque a competência teria sidoexercida legitimamente, ao tempo em que o ato institucional a conferia à JustiçaMilitar e não ao Supremo Tribunal. Mas, ainda não julgado o processo, que nemse iniciou por não ter havido denúncia, prevalece integralmente a competênciaoriginária do Supremo Tribunal, que a Constituição de 67 restabeleceu, sem dis-tinguir entre acusados com direitos políticos suspensos ou na plenitude dos seusdireitos políticos.

Acompanho, Sr. Presidente, o voto do eminente Ministro Relator, enrique-cido pelas brilhantes considerações dos Srs. Ministros Themistocles Cavalcanti,Adaucto Cardoso, Evandro Lins e Hermes Lima.

VOTO(Questão de ordem)

O Sr. Ministro Victor Nunes: De começo, eu me inclinava pela necessida-de da maioria especial, mas fui alertado pelo Sr. Ministro Gonçalves de Oliveirapara o fato de estar sendo confrontada com a Constituição outra norma — de atoinstitucional —, a que geralmente se tem atribuído a categoria de norma constitu-cional. Não há problema de inconstitucionalidade no confronto de duas normasde categoria constitucional. A inconstitucionalidade pressupõe o exame de umanorma subordinada em face da Constituição.

Acompanho os Srs. Ministros Gonçalves de Oliveira e Thompson Flores.

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Ministro Victor Nunes

VOTO

(Questão de ordem levantada pelo Senhor Ministro Themistocles Cavalcantisobre inconstitucionalidade).

O Sr. Ministro Victor Nunes: Sr. Presidente, peço a palavra pela ordem.

O eminente Ministro Themistocles Cavalcanti está agora dando relevo aum ponto que, realmente, constava da fundamentação do seu voto, mas que ficouum pouco obscurecido pela discussão em torno de haver ou não argüição deinconstitucionalidade que só pudesse ser acolhida por nove votos.

Ao votar pela dispensa da maioria qualificada, observei que estavam emconfronto duas normas da mesma categoria, já que os atos institucionais, no entendi-mento corrente, estão no plano das normas constitucionais.

Mas a ponderação, em que acaba de insistir o eminente MinistroThemistocles Cavalcanti, me leva a reconsiderar meu voto. Os atos institucionaistêm sido considerados de categoria constitucional no período de sua plena vigên-cia. Aqui se discute se tais normas sobrevivem na vigência da nova Constituição;e também, no caso de sobreviverem, em que categoria deverão ser situadas.

Parece-me incontestável que elas não podem sobreviver como normasconstitucionais, como sustentei no caso das Docas da Bahia, onde salientei aimpossibilidade de coexistirem dois sistemas constitucionais colidentes. Portan-to, Sr. Presidente, ao sobreviverem essas normas pretéritas, constantes dosatos institucionais, terão elas de ficar situadas em categoria inferior à da Cons-tituição. Já não teremos normas de mesma hierarquia, que era o pressuposto domeu voto.

Reconsidero, pois, o meu pronunciamento, entendendo que é necessário ovoto de nove juízes para ser declarada a inconstitucionalidade.

EXTRADIÇÃO 232 — CUBA

Relator: O Sr. Ministro Victor Nunes

Requerente: Governo de Cuba — Extraditando: Arsênio Pelayo HernandezBravo

A situação revolucionária de Cuba não oferece garantiapara um julgamento imparcial do extraditando, nem para quese conceda a extradição com ressalva de não se aplicar a penade morte. 2. Tradição liberal da América Latina na concessão

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de asilo por motivos políticos. 3. Falta de garantias conside-rada não somente pela formal supressão ou suspensão mastambém por efeito de fatores circunstanciais. 4. A concessãodo asilo diplomático ou territorial não impede, só por si, aextradição, cuja procedência é apreciada pelo Supremo Tribu-nal, e não pelo Governo. 5. Conceituação de crime políticoproposta pela Comissão Jurídica Interamericana, do Rio deJaneiro, por incumbência da IV Reunião do Conselho Interamericanode Jurisconsultos (Santiago do Chile, 1949), excluindo “atosde barbaria ou vandalismo proibidos pelas leis de guerra”,ainda que “executados durante uma guerra civil, por uma ououtra das partes”.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos os autos acima identificados, acordam osMinistros do Supremo Tribunal Federal, em Sessão Plenária, na conformidade daata do julgamento e das notas taquigráficas, por unanimidade de votos, negar aextradição.

Brasília, 9 de outubro de 1961 — Ribeiro da Costa, Presidente — VictorNunes, Relator.

RELATÓRIO

O Sr. Ministro Victor Nunes: O Governo de Cuba solicitou ao do Brasil aextradição do cidadão cubano Arsenio Pelayo Hernandez Bravo, nos termos daseguinte carta rogatória do Juiz de Instrução de Sancti-Spiritus (fl. 34):

“Em cumprimento ao disposto no Processo número 1993, de 1959,por delito de assassinato, tenho a honra de passar-lhe a presenteRogatória para que, se a acolher, se digne dar-lhe o curso correspondente,para os fins de se solicitar, pelo Governo Revolucionário da República deCuba ao da República do Brasil a extradição do processado no referidoprocesso, Arsenio Pelayo Hernández Bravo, para o que se faz constar oseguinte:

Primeiro: que o delito imputado ao acusado, cuja extradição sepretende e pelo que foi processado no dito Processo, por auto de data de19 de março 1960, com exclusão de toda fiança para gozar de liberdadeprovisória, é o de assassinato, previsto no artigo 431-A-2-3-4-5-8-9 doCódigo de Defesa Social, que diz: É réu de assassinato quem matar aoutrem concorrendo alguma das seguintes circunstâncias: 2) Ter cometidoo delito em virtude de ordem arbitrária da autoridade ou de seus agentes.3) Ter usado de perfídia. 4) Ter empregado assanhamento. 5) Ter agidocom premeditação patente. 8) Ter agido por impulsos sádicos ou de

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perversidade brutal. 9) Ter precedido o homicídio, o rapto, o seqüestro ouseqüestro para obter resgate, do morto, ou a detenção arbitrária ou ilegaldo mesmo.

Segundo: que as generalidades e sinais particulares do processado,cuja extradição se interessa, são os seguintes: Arsenio PelayoHernández Bravo, natural de Consolación del Sur, província de Pinar delRío, de trinta e sete anos de idade, de Estado civil solteiro, filho de PedroAntonio y Bruna, ex-guarda rural do Governo da ditadura presidida porFulgencio Batista y Zaldívar, de cabelos castanhos, olhos pardos, pelebranca e uma estatura de seis pés e três polegadas.

Terceiro: que o delito imputado ao processado foi cometido najurisdição da República de Cuba, no distrito judicial de Sancti-Spiritus,província de Las Villas, presumindo-se que o dito processado tenhaprocurado refúgio na República do Brasil, para cujo país saiu com salvo-conduto no dia 27 de março de 1960, para não responder às acusaçõesque pesam contra o mesmo ante os tribunais cubanos.

Quarto: à presente Rogatória, acompanham as seguintes certidões:A) Auto de processo e as provas que foram levadas em conta comoindícios racionais de responsabilidade criminal para ditar o automencionado. B) De que na data em que se cometeu o delito, 24 de outubrode 1957, se encontrava em vigor o Código de Defesa Social, (CódigoPenal de Cuba), em cujo artigo 431-A-2-3-4-5-8-9 se encontra definido odelito pelo qual se processou o acusado Arsenio Pelayo Hernandez Bravo,assim como o tempo da sanção imputável e o preceito que assinala omesmo. C) Do mandado de prisão e a informação do funcionárioencarregado de cumpri-lo, explicando os motivos de não tê-lo podidocumprir. D) De que o secretário que visa as autuações se acha noexercício do cargo.

Todos os documentos anexos são em duplicata, para fins de seremtraduzidos para o idioma do país a que se insta a extradição pelostradutores do Ministério do Estado.

Quinto: que a extradição interessada se verifica com amparo nopreceituado nos artigos 351, 352 e 354 do Código de Bustamante, emvirtude de não ter o Governo de Cuba celebrado tratado de extradiçãocom a República do Brasil, cujos dois governos assinaram e ratificaram odito tratado, fazendo-se ao Governo da República do Brasil a promessa dereciprocidade em casos análogos. De V. Sa. com a maior consideração erespeito (as) Dr. José A. Montesino, Juiz de Instrução.”

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Contra o extraditando, citado por edital (fl. 41v), fora expedida, em 19-3-1960, a seguinte ordem judicial de prisão preventiva (fl. 48):

“Auto do Juiz, Senhora Doutora Lydia M. Yiock Gutierrez. Sti-Spiritus, 19 de março de 1960. Dada conta: Resultando: Que do autuadoaté agora no presente sumário, número 1993 de 1959, pelo delito dehomicídio, aparece que no dia 24 de outubro de 1957, quando o Dr. JorgeRuiz Ramírez, vizinho que era do povoado de Taguasco, neste Distrito,vinha em direção a esta cidade procedente do referido povoado, noautomóvel de Agapito Moya Soriano, com o propósito de internar numaclínica o jovem Pedro Rodríguez Palmero, que se achava ferido, foraminterceptados antes de chegar a esta cidade por membros do Exército daderrocada Tirania, sob o comando do acusado, então Tenente do ditocorpo Armando Campos León, cujas generalidades constam, os quais játinham notícias do transporte do ferido por um aviso telefônico feito deTaguasco pelo também acusado Isidro D. Figueroa, sendo conduzidos aoquartel desta cidade, onde foi assassinado o Dr. Ruiz Ramírez e levadoseu cadáver posteriormente e junto com o motorista e o jovem ferido atéum lugar próximo de Jiquima de Pelaez, onde foram metralhados os doisúltimos, juntamente com o cadáver do primeiro, deixando-os abandonadosno referido lugar, participando ademais desses eventos os tambémacusados José González e Arsenio Hernández Bravo. Resultando: queinstruído de acusações, o acusado Armando Campos León negou-as edeclarou o que achou conveniente, não assim os demais acusados por nãoser havidos. Considerando: que os fatos anteriormente relatadosrevestem os caracteres de um delito de homicídio, previsto e sancionadosegundo o artigo 431-2-3-4-5-8 e 9 do Código de Defesa Social e que doautuado até agora existem indícios racionais de criminalidade contra osacusados Armando Campos León, José González González, ArsenioHernandez Bravo e Isidro D. Figueros, pelo que se está no caso de dirigircontra os mesmos este processo, consoante o disposto no art. 384 da Leide Processo Criminal. Considerando: que em atenção à natureza dodelito e sanção que em definitivo se possa impor aos acusados, o queresolve estima necessária sua prisão preventiva com exclusão de todafiança. Considerando: que toda responsabilidade criminal origina outracivil. Vistos os artigos 1, 15, 17, 25, 27, 51 e demais concordantes doCódigo de Defesa Social, os 502, 503, 529 e 589 da Lei de ProcessoCriminal e a Ordem 109 de 1899. Declara-se público o presentesumário, e processados pelo delito de homicídio os acusados ArmandoCampos Leon, branco, filho de Rogelio e de Mariana, natural deCabaiguán, de 56 anos de idade, casado, ex-tenente do Exército, com

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instrução e recluso no Reclusório Nacional para homens da Ilha de Pinos;José Gonzalez Gonzalez, ex-soldado do Exército e cujas demaisgeneralidades se ignora; Arsenio Hernandez Bravo, ex-soldado doExército e cujos dados e domicílio também são ignorados e IsidroFigueroa, branco, de 52 anos de idade, casado, com instrução, ex-soldado, filho de Juan e de Sotera, e cujo domicílio se ignora; e se decretasua prisão preventiva com exclusão de toda fiança, instruindo-se-lhesdos direitos e recursos que lhes concede a Lei”.

O processo fora iniciado perante Tribunal Revolucionário, passando paraa jurisdição ordinária, em virtude de uma lei de 1959, conforme consta do traslado(fl. 38v):

“Resultando: que o presente juízo se instrui pelo fato dacompetência deste Tribunal Revolucionário, de conformidade com oestatuído no Regulamento n. 1 do Exército Rebelde, promulgado emSierra Maestra aos 21 de fevereiro de 1958. Considerando: que o art. 14da Lei n. 425 de 1959, publicada na Gazeta Oficial de data de 9 de julhoúltimo, se declarou cessada a competência dos Tribunais Revolucionáriospara conhecer dos delitos cometidos por militares e civis ao serviço daTirania, previsto e sancionado no Regulamento n. 1 do Exército Rebelde,promulgado em Sierra Maestra, e que, no sucessivo, a jurisdição ordináriaserá a única competente para conhecer dos referidos delitos, pelo que éprocedente deduzir traslado dos lugares pertinentes e remetê-lo àjurisdição ordinária na forma que se dirá”.

Transcreve-se, no traslado, o dispositivo legal aplicável, art. 431 A, 2, 3, 4,5, 8, 9 do Código de Defesa Social, nestes termos (fl. 51v):

“Artigo 431. A) É réu de homicídio quem matar a outremconcorrendo alguma das seguintes circunstâncias: 2) Ter cometido odelito em virtude de ordem arbitrária da autoridade ou seus agentes. 3)Ter usado de perfídia. 4) Ter empregado de assanhamento. 5) Ter agidocom premeditação patente. 8) Ter agido por impulsos sádicos ou deperversidade brutal. 9) Ter precedido o homicídio, o rapto, o seqüestro ouseqüestro para obter resgate, do morto, ou a detenção arbitrária ou ilegaldo mesmo”.

Veio, igualmente, este esclarecimento quanto à pena aplicável e quanto àvigência da lei (fl. 56v):

“Eu, Doutor Jose A. Montesino y Rodriguez, Juiz de Instruçãode Sancti-Spiritus e sua Divisão Judicial, certifico que o delito de homicídiopelo qual se radicou por este Juizado a Causa número 1993 de 1959, está

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Memória Jurisprudencial

previsto e cominado no artigo 431-2-3-4-5-8 e 9 do Código de DefesaSocial, que se encontra vigente nesta República de Cuba desde o dia 9outubro de 1938. Aparecendo no inciso B) do retro mencionado artigo comopena para este delito a de vinte anos de privação de liberdade à de morte.

Que o Código de Defesa Social e seu Artigo 431 se encontravamem vigor no dia 24 de outubro de 1957, data esta em que sucederam osfatos que são atribuídos ao processado Arsenio Pelayo Hernández Bravo,e ainda está em vigor nesta República de Cuba”.

Ao ser interrogado (fl. 62), negou o extraditando sua participação no delito,e, como não houvesse constituído advogado, nomeei-lhe o Dr. Claudio PennaLacombe, que ofereceu a defesa de fl. 67.

Foi-lhe concedida, dias depois, liberdade vigiada, por decisão do SupremoTribunal (fls. 93 e segs.).

A requerimento do advogado, solicitei informações ao Sr. Ministro dasRelações Exteriores (fl. 66), que as prestou nos seguintes termos (fl. 104):

“Em resposta, cumpre-me informar Vossa Excelência de que aEmbaixada do Brasil em Havana procedeu de acordo com as normasinternacionais que regem a matéria, concedendo asilo diplomático aocidadão cubano em apreço, ao verificar que o mesmo se encontrava emperigo de ser privado de sua liberdade por motivos de perseguição política.

Tratava-se de caso de urgência e o asilo foi concedido pelo temponecessário para que o Senhor Arsenio Pelayo Hernandez y Bravodeixasse o país com as garantias do Governo de Cuba.

No que concerne ao asilo territorial, a sua concessão decorreu doasilo diplomático, tendo o asilado em questão partido para o Brasil em 27de março de 1960, conforme comunicação feita pelo DepartamentoPolítico e Cultural do Ministério ao Departamento do Interior e Justiça doMinistério da Justiça, pelo aviso verbal n. DPo/180/922.31 (24h) (42), de 6de abril daquele ano”.

Na defesa do Dr. Claudio Lacombe, assinalo os lances que contêm suaargumentação principal:

“Não há dúvida de que os objetivos a que se propusera o Sr. FidelCastro na histórica defesa, A história me absolverá (History willAbsolve Me, New York, Liberal Press 1959), foram realizadosparcialmente. A lei da reforma agrária foi promulgada, os aluguéis foramdrasticamente reduzidos, as cidades-escola estão em construção. Nãotiveram, porém, os novos dirigentes de Cuba, a serenidade ou habilidadenecessárias para superar as suas dúvidas e contradições internas (...).

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Estimulados pela ausência inicial de reação, foram intensificandoprovidências, cuja violência e caráter ditatorial se acentuavam à medidaque a dinâmica interna da própria posição assumida forçava o governorevolucionário a cobrir erros ou a esmagar resistências. E a mesmaplatéia que acompanhava vibrante e comovida a jornada gloriosa darevolução, assiste, com surpresa e decepção, ao espetáculo terrível dosbrutais atentados cometidos contra a vida, a liberdade e a propriedade doscidadãos cubanos. (...) À luz dessa situação de fato criada pelo novoGoverno do Estado requerente, que é do conhecimento de todos, deve serapreciado o presente pedido de extradição. Dispõe o art. 2º do Decreto-Lei n. 394, de 28 de abril de 1938:

‘Não será, também, concedida a extradição, nos seguintescasos:

VI - quando o extraditando tiver que responder, no paísrequerente, perante juízo ou tribunal de exceção.’

O princípio estava inscrito no art. 2º, IV, da Lei n. 2.416, de 28-6-1911, e é da tradição do direito extradicional. (...) No caso submetido àapreciação do E. Tribunal, o Estado requerente informa que oextraditando está sendo processado pela justiça comum, havendo,segundo se afirma, cessado a competência dos tribunais revolucionários.Ora, é público e notório, porém, que a justiça cubana se achaintegralmente submetida ao governo revolucionário. Em 21-12-60 foirealizada uma reforma judiciária (doc. n.1) por decreto do Executivo,que autoriza o Presidente da República e o gabinete a demitirem enomearem livremente os magistrados. E no mesmo decreto, aboliu-se oTribunal de Garantias Constitucionais e Sociais, criado no art. 182 daConstituição de Cuba, de 1940, que o Governo revolucionário afirmahaver restabelecido. A demonstração mais eloqüente da absolutaausência de garantias à uma distribuição de justiça imparcial e serena é orecente episódio da fuga do Presidente da Corte Suprema (doc. n. 2),conduzido a este gesto extremo, por haver protestado contra a prisão e oespancamento do Dr. Elio Alvarez, também Juiz do Supremo Tribunal.(...) O que se verifica, portanto, com base no testemunho dosobservadores mais insuspeitos e no noticiário da imprensa mundial, é queCuba não oferece, no momento atual, as condições indispensáveis a umaaplicação de justiça isenta, a garantia jurídica que decorre daindependência do Poder Judiciário. E como tribunal de exceção deveentender-se não apenas o constituído post factum para as necessidadesda causa, mas todo aquele que não ofereça garantias de independência eestabilidade (...). Que garantia de isenção pode oferecer o atual regime

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cubano para o julgamento de um ex-soldado do antigo governo, acusadode, em plena revolução, haver concorrido para o fuzilamento de umestudante revolucionário, ferido quando fugia, após o assalto malogradode uma guarnição militar, fiel ao Sr. Fulgencio Batista? (...) Que valor teriao compromisso a ser exigido do atual Governo cubano de aplicar o art. 378do Código Bustamante, em que se baseia o pedido de extradição, quandose sabe que o chefe da patrulha, que se afirma haver cometido oassassinato, já foi fuzilado, conforme se verifica pelo documento de fl. 11?(...) A defesa confia em que este argumento, por si só, prevalecerá comorazão suficiente para o indeferimento do pedido de extradição. Repugna àconsciência jurídica do Brasil a entrega de um homem, antecipadamentecondenado à morte, por um simulacro de julgamento, em que as garantiasda defesa são suprimidas ou reduzidas ao mínimo. (...) Dispõe o art. 141,§ 33, da Constituição Federal, em termos incisivos:

‘Não será concedida a extradição de estrangeiro por crimepolítico ou de opinião e, em caso nenhum, a de brasileiro.’

(...) A defesa se propõe a demonstrar que o delito de que é acusadoo extraditando — cuja autoria se nega peremptoriamente — é umcrime político e, como tal, exclui a possibilidade da extradição, de acordocom o preceito constitucional. Como delito político se entende ‘o queatente diretamente contra a personalidade do Estado, lesando ouameaçando de lesão a independência nacional, a integridade do território,as relações do Estado com os demais Estados, o regime político ou aforma de governo, a formação e atividade dos poderes públicos’ (NelsonHungria, Comentários, v. I, tomo I, p. 187). (...) Cumpre assinalar: a) odelito teria sido cometido em plena revolução; b) aceita como verdadeiraa denúncia, o extraditando seria soldado do exército de Batista e, nomomento da infração, participava de uma patrulha comandada pelocapitão Mirabal y Mirabal; c) o fuzilamento teria sido assistido e apoiadopelo comandante do destacamento de Sancti-Spiritus, Tenente Portela; d)as vítimas passavam pelo povoado, fugindo à perseguição que lhes eramovida pelas tropas do governo, depois de haverem assaltado o posto daguarda rural de Taguaco, onde haviam ‘dado muerte al Teniente y a unsoldado del puesto’ (fl. 20).

O delito, portanto, teria sido cometido durante a guerra civil,deflagrada contra o regime político em vigor. E o extraditando era soldado,devendo obediência aos seus superiores hierárquicos, empenhados nadefesa desse mesmo regime, cuja legitimidade não lhe competia julgar. Aapreciação do caráter político do delito deve ser feita, no caso, por umcritério ainda mais favorável. Não se trataria de um crime cometido por

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um guerrilheiro rebelde, mas por um soldado a serviço do regimeconstituído (...). Objeta-se, no entanto, que em se tratando de assassinato,infração penal capitulada na lei comum, esta caracterização absorveria oconteúdo político do delito. O sistema da prevalência admite a extradiçãoquando o delito comum prevalece sobre o político. O da causalidade excluia extradição ‘quando os crimes políticos relativos ocorram por ocasião ouno curso de uma insurreição ou guerra civil’ (Nelson Hungria, ob. e loc.cit. p. 182). À primeira vista poderia parecer que a nossa lei sobreextradição adota o sistema de prevalência, sem restrições. Diz, comefeito, o art. 2º, § 1º, do Decreto-Lei n. 394:

‘A alegação do fim ou motivo político não impedirá aextradição, quando o fato constituir, principalmente, uma infraçãocomum da lei penal, ou quando o crime comum, conexo dosreferidos no inciso VII, constituir o fato principal.’

(...) Parece-nos que o preceito se dirige às infrações de caráterindividual em que o elemento psíquico é predominante, no sentido de que afinalidade política é deliberada, pensada, pelo agente. A disposição legal sedirigiria aos atentados cometidos por um indivíduo, em tempo de paz, contrapersonalidades políticas em evidência. Os exemplos são abundantes nahistória. (...) Não pode ser aplicado o artigo acima reproduzido ao caso dosautos. Não se pode falar aqui de um fim ou motivo para o ato de que seacusa o extraditando. Admitindo-se como verdadeira a acusação, a ação dapatrulha a que pertencia o extraditando, na condição de comandado, não foimais que uma medida de represália imediata a um ataque de um grupo derevolucionários a um posto militar, no auge de uma guerra civil. (...) Ao seinterpretar o dispositivo de outra forma, teríamos que negar a naturezapolítica de todo e qualquer crime em que se empregasse a violênciafísica, em qualquer circunstância, pois prevaleceria sempre a fisionomiade infração comum. (...) Ao caso, é de direito e de justiça aplicar-se o art.355 do Código Bustamante, verbis:

‘Estão excluídos da extradição os delitos políticos e os comeles relacionados, segundo a definição do Estado requerido.’

É o sistema da causalidade reconhecido pelo próprio Estado reque-rente, que fundamentou o pedido nas disposições desse diploma de direitointernacional. (...) O extraditando foi, portanto, reconhecido oficialmentepelo Governo brasileiro como criminoso político, recebendo das autorida-des competentes o tratamento dispensado aos refugiados por crime dessanatureza e, não só, obteve o asilo diplomático, como o territorial, o queimporta no reconhecimento implícito, por parte do Estado requerente, danatureza política das infrações que porventura houvesse praticado. Dessa

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circunstância decorrem conseqüências importantíssimas. O eminente Mi-nistro Nelson Hungria assinala com precisão (...) que, uma vez concedido oasilo àquele que o pede, cria-se para o asilado uma condição ou entregaa outro país. Essa conclusão decorre inequivocamente da análise do textoda Convenção de Havana de 1928, ratificada por Cuba e pelo Brasil. (...) OGoverno brasileiro está, portanto, oficialmente vinculado, por seu represen-tante (e trata-se de um dos nossos mais ilustres diplomatas), à tese de que oextraditando era perseguido por razões de ordem política, não podendomais, a essa altura, recuar dessa atitude. (...) A defesa (...) confia na sere-nidade, na isenção, na sabedoria e no espírito de humanidade dos eminentesjulgadores e está certa de que a Suprema Corte do Brasil não concederá amedida que importaria em condenar o extraditando à morte”.

A douta Procuradoria-Geral da República assim se manifestou (fl. 106):

“Pela não concessão do pedido. O extraditando recebeu asilo emnossa própria Embaixada, em Havana, reconhecendo:

‘que o mesmo se encontrava em perigo de ser privado de sualiberdade por motivos políticos (doc. fl. 104)’

e foi a nossa embaixada que promoveu a sua vinda para o Brasil(doc. fl. 105).

Como, pois, conceder a extradição do mesmo preso político, que anossa Embaixada reconheceu estar perseguido tão só por crime político?Acresce mais que o atendimento da extradição poderia importar na execuçãodo extraditando, e a nossa lei não permite atender pedido de extradição quefosse resultar no julgamento do criminoso, político ou comum”.

É o relatório.

VOTO

O Sr. Ministro Victor Nunes (Relator): Nego a extradição. Cumpro, inicial-mente, o dever de louvar o ilustre Dr. Claudio Lacombe pela notável defesa queproduziu; este reconhecimento público é a única retribuição que recebe, em taiscasos, o advogado ad hoc.

Não posso, todavia, perfilhar integralmente a sua argumentação, o que meobriga a motivar mais explicitamente este voto.

— I —

O crime imputado ao extraditando é punido, segundo a lei cubana, comvinte anos de prisão, no mínimo, e, no máximo, com a morte (fl. 56v), constandodos autos que o chefe da patrulha responsabilizada pelo assassinato das trêsvítimas já foi fuzilado (fls. 41 e 42v).

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Embora a lei brasileira admita, em tais casos, a extradição, mediantecompromisso do Estado requerente de comutar na de prisão a pena de morte(Decreto-Lei 394, de 28-4-38, art. 12, d), a situação revolucionária existente emCuba não oferece plena garantia a essa ressalva, tanto mais que não há, entre osdois países, tratado de extradição. Esta mesma situação revolucionária, a julgarpor fatos de conhecimento notório, exclui a convicção de que seja regular e cer-cado de plenas garantias o julgamento a que seria submetido o extraditando.Reporto-me, a esse respeito, às considerações desenvolvidas pela defesa.

É certo que nossa lei não prevê, especificamente, esse motivo excludenteda extradição, porque o art. 2º, VI, se refere ao julgamento do extraditando por“tribunal ou juízo de exceção”, que não é a mesma coisa.

Mas pelo ratio legis, as duas situações se aproximam. A falta de garantias,que se presume no tribunal de exceção, é que fundamenta aquela ressalva aoprincípio geral da extradição. E a falta de garantias reais é que compromete ospróprios tribunais comuns durante uma situação revolucionária, em que o Gover-no se reserva poderes discricionários. No primeiro caso, a configuração do pró-prio órgão judicante é que obsta a extradição; no segundo, é a ambiência política,agitada pelo espírito da revolução e marcada pela ilimitação dos poderes do go-verno, que pode comprometer o funcionamento dos próprios tribunais ordinários.Numa ou noutra situação, está em risco a liberdade, a segurança ou a vida doextraditando, e são esses bens superiores que a lei quer proteger, quando veda aentrega de quem vai ser julgado por juízo de exceção.

A assimilação das duas situações já se acha mais bem elaborada na doutri-na do asilo político, de onde podemos extrair subsídios para o instituto da extradi-ção. Quando se reclama a extradição de um asilado, o que se pede, afinal, é acessação do asilo, sendo, pois, de toda pertinência recorrer, em tal caso, à doutri-na do asilo.

A esse respeito, como é sabido, as nações latinas da América possuemuma tradição jurídica bastante liberal, seja nas suas convenções e atas internacio-nais, seja, principalmente, nos usos da sua diplomacia.

O jurisconsulto colombiano José Joaquim Caicedo Castilla, representantede seu país na Comissão Jurídica Interamericana, autoridade internacionalmentereconhecida no assunto, criticou, com justeza, em nome da tradição americana, aorientação restritiva de um famoso julgado da Corte de Justiça Internacional deHaia, de 20 de novembro de 1950. Conceituando o requisito da urgência, susten-tou a Corte que o asilo não protege “contra a aplicação regular das leis e ajurisdição dos tribunais legalmente constituídos”. O juiz colombiano votou vencido,nessa oportunidade, sustentando que, “com semelhante interpretação, nenhumdos centenares de casos de asilo ocorridos na América nos últimos anos poderiajustificar-se”.

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Caicedo Castilla, que relembra o episódio, comenta: “O que sucede é quea instituição do asilo oferece modalidades especiais na América Latina em razãode condições históricas, políticas, geográficas e jurídicas peculiares a essa regiãodo mundo. Portanto, essas questões do asilo na América devem estudar-se tendoem conta o meio social respectivo e as normas do direito internacional america-no” (El Derecho de Asilo, Madrid, 1957, p. 454).

Cita o ilustre internacionalista uma notável página do saudoso FiladelfoAzevedo sobre as características do asilo na América, da qual retiro essa passa-gem, apropriada ao caso presente: “Os períodos de anormalidade constitucionalsão um dos elementos essenciais para apreciar o perigo que ameaça o asilado;quando as regras jurídicas estão suspensas ou praticamente não existem, as preo-cupações que causa a salvaguarda da Justiça são necessariamente muito graves,pelo fato da ação direta ou indireta que um poder ilimitado pode exercer sobre ostribunais ordinários ou de exceção”.

Nessa mesma linha se inscreve um dos documentos mais recentes sobre oasilo diplomático nas Américas. Refiro-me ao projeto do Protocolo Adicional àsConvenções de Havana (1928), Montevidéu (1933) e Caracas (1954), aprovadopela IV Reunião do Conselho Interamericano de Jurisconsultos, da Organizaçãodos Estados Americanos, realizada em Santiago do Chile, em 1949, e da qual tivea honra de participar como representante do Governo brasileiro. Esse projeto, aotratar do requisito da urgência, dispõe no art. 3º: “São casos de urgência, entreoutros, aqueles em que existir instabilidade política ou social; ou quando o indiví-duo for perseguido por pessoas ou multidões que tenham escapado ao controledas autoridades; ou quando se encontrar em perigo de ser privado da vida ou daliberdade por motivos de perseguição política e não possa fazer uso de todos osmeios legais que lhe garantam um processo normal; ou quando se encontremsuspensas, total ou parcialmente, as garantias constitucionais”.

Estão previstos, nesse dispositivo, não somente os casos de suspensãoformal das garantias individuais (como o Estado de sítio) mas também aquelesem que a ausência ou deficiência de garantias resultam de fatores circunstanci-ais, como a instabilidade política ou social, as ameaças multitudinárias, a perse-guição política que impeça o pleno uso dos meios legais de defesa ou afete anormalidade do processo judicial.

Esse é, aliás, o quadro habitual das situações revolucionárias, como a queexiste atualmente em Cuba. Tais circunstâncias, que justificariam, como justifica-ram, no caso presente, o asilo do acusado, também nos devem conduzir a negar asua extradição.

Devemos interpretar, portanto, em conjunto, os dois dispositivos da leibrasileira que impedem a extradição para aplicação da pena de morte ou para

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julgamento por tribunal de exceção. Tendo em vista a razão de ser de tais motivosexcludentes, parece que nossa lei veda a extradição por crime relacionado comatividades políticas e punido com a morte, quando a situação revolucionária dopaís interessado faz temer pelas garantias de correto julgamento perante os pró-prios tribunais ordinários e abalam a confiança no compromisso que o Governorequerente assumisse de comutar a pena de morte a ser eventualmente aplicada.

No caso em exame, o Governo brasileiro concedeu ao extraditando asilodiplomático, a seguir transformado em asilo territorial, porque o mesmo, na pala-vra do Sr. Ministro das Relações Exteriores (fl. 104), “se encontrava em perigode ser privado de sua liberdade por motivos de perseguição política”. Esse depo-imento do Governo brasileiro, que resulta das informações de seu representantediplomático em Havana, é da maior importância na fundamentação do meu voto.Não compartilho, porém, da opinião da defesa no sentido de que a concessão doasilo acarreta um compromisso irrevogável para o nosso País. Em primeiro lugar,podendo o asilo ser dado não apenas a quem comete crime político mas tambémaos perseguidos políticos, não envolve necessariamente um pronunciamento doagente diplomático sobre a natureza política do delito porventura atribuído aoasilado. Em segundo lugar, a lei reserva ao Supremo Tribunal dizer a última pala-vra sobre a qualificação política do delito (Decreto-Lei 394, art. 2º, § 3º, e art. 10)para efeito de caracterizar a excludente de extradição, prevista no art. 141, § 33,da Constituição. Aliás, se a lei dissesse o contrário, subordinando o julgamento doSupremo Tribunal ao prévio pronunciamento do Executivo, seria manifestamenteofensiva dos arts. 101, I, g, e 141, § 4º, da própria Constituição.

As considerações precedentes são bastantes, a meu juízo, para se negar aextradição, na conformidade, aliás, do parecer da douta Procuradoria-Geral daRepública (fl. 106).

— II —

Baseou-se a defesa, igualmente, em que se trata de crime político, o quetambém exclui a extradição, nos termos do art. 141, § 33, da Constituição Federal,e do art. 2º, VII, c, do Decreto-Lei 394. Esse argumento foi acolhido pela doutaProcuradoria-Geral da República, quando pondera (fl. 106): “Como (...) conce-der a extradição do mesmo preso político que a nossa Embaixada reconheceuestar perseguido tão só por crime político?”

Embora não seja indispensável discutir esse aspecto do problema parafundamentar a conclusão do meu voto, sinto-me no dever de analisá-lo não sópela relevância do assunto como também porque a excludente do crime políticopoderá ser, eventualmente, aceita pela maioria do Tribunal ou por alguns doseminentes colegas.

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Parece-me, entretanto, que, no caso, não se acha configurado, com nitidez,o crime político.

Em primeiro lugar, não houve, da parte do Itamaraty ou do nosso represen-tante diplomático em Havana, classificação, como político, do delito atribuídoao extraditando. Nem isso era necessário, bastando que se considerasse o asi-lando como perseguido político. Como dizia Philadelpho Azevedo, no estudocitado por Caicedo Castilla (p. 454), na América Latina, o asilo “se estende nãosó aos delinqüentes políticos, como também aos perseguidos políticos”. Poresse motivo é que a Convenção de Montevidéu (1939) não menciona comoprotegíveis pelo asilo somente os criminosos políticos, mas, numa fórmula am-pla, os “perseguidos por motivos ou delitos políticos” (art. 2º). Do mesmo modo,o Projeto de Protocolo Adicional, aprovado em Santiago, em 1959, dispõe que“cabe ao Estado asilante qualificar a natureza do delito ou dos motivos da per-seguição”.

No caso sob julgamento, o Ministério das Relações Exteriores mencionouapenas a “perseguição política”, na justificação do asilo, sem se referir à naturezado delito de que se acusava o asilado.

Por essas mesmas razões, não procede o argumento da defesa no sentidode que o próprio Estado requerente concordou com qualificação política do delito,por haver outorgado salvo-conduto ao asilado. A concessão do salvo-conduto nãotem essa conseqüência jurídica, ante o princípio da qualificação unilateral dosmotivos da perseguição, que compete ao Estado asilante, e não ao territorial,como resulta do art. 2º da Convenção de Montevidéu (1933). Esse dispositivo, dizCaicedo Castilla (p. 457), “consagra (...) expressamente o sistema da qualifica-ção unilateral, pelo asilante (...), que é o único que garante a plena eficácia dainstituição do asilo”. É também o princípio adotado, como há pouco tivemos oca-sião de mencionar, pelo Projeto de Protocolo Adicional do Conselho Interame-ricano de Jurisconsultos. Eis aí, aliás, outro aspecto em que o direito internacionalamericano discrepa da doutrina sustentada pela Corte de Haia na decisão de 20-11-1950.

Vejamos, entretanto, se o crime a que se refere o processo, examinado emsi mesmo, deve ser considerado político. O extraditando, em sua qualidade desoldado, era membro de uma patrulha comandada pelo Capitão Mirabal, que luta-va pelo Governo do Sr. Fulgêncio Batista. Durante a revolução do Sr. Fidel Cas-tro, segundo consta do despacho de prisão preventiva e da denúncia, essa patru-lha, alertada por um aviso telefônico, aprisionou três pessoas que fugiam: o moto-rista do veículo, um estudante, ferido no ataque a certa posição governista, e omédico chamado a socorrê-lo. O médico teria sido morto, depois de preso, pelopróprio Capitão Mirabal, a coronhadas de fuzil, que lhe arrebentaram o crânio.

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Seu cadáver, o estudante ferido e o motorista foram, então, conduzidos a certolugar, nas proximidades de um cemitério, onde a patrulha os metralhou, incluindoo cadáver. Lavrou-se, depois, um registro da ocorrência, onde se dizia que trêsladrões de cavalos haviam sido abatidos em luta (fl. 44v).

Resta saber se o crime assim descrito é de natureza política, em face dadoutrina e do art. 2º, § 1º, do Decreto-Lei 394, verbis: “A alegação do fim oumotivo político não impedirá a extradição, quando o fato constituir, principalmente,uma infração comum da lei penal, ou quando o crime comum, conexo aos re-feridos no inciso VII (infração puramente militar, contra a religião, crime políticoou de opinião), constituir o fato principal”.

A caracterização dos delitos políticos é ainda, como se sabe, um temacontrovertido, especialmente nos casos de conexidade. Veja-se a respeito o ex-celente estudo de Nelson Hungria. Nossa lei, adotando o critério da prevalência,está longe de haver solvido o problema, ante as deficiências geralmente atribuí-das ao mesmo.

A IV Reunião do Conselho Interamericano de Jurisconsultos (Santiago,1959) incumbiu a Comissão Jurídica Interamericana, que é o seu órgão técnicopermanente, com sede no Rio de Janeiro, de preparar um estudo ou um projeto deconvenção sobre delitos políticos, para ser submetido, oportunamente, à XI Con-ferência Interamericana, com o objetivo de complementar as convenções sobreasilo.

Quanto à conveniência, a Comissão considerou desaconselhável, por mo-tivos de ordem prática, um projeto de convenção com a discordância, nesteparticular, do ilustre jurista e diplomata Hugo Gobbi, representante da Argentina.De qualquer maneira, estudou o problema em profundidade, porque a decisão deconveniência caberia afinal a outro órgão (veja-se Comissão Jurídica Interameri-cana, Estudo sobre Delitos Políticos, 1960). Esse trabalho é firmado pelos Srs.Raul Fernandes, Luiz D. Cruz Ocampo, José Joaquim Caicedo Castilla, AntonioGómez Robledo, Hugo Gobbi e C. Echecopar H.

Entre outras considerações, referiu-se a Comissão Jurídica Interameri-cana à definição de crime político, do Instituto de Direito Internacional, queexclui as infrações mistas ou conexas, quando “se trate dos crimes mais graves,sob o ponto de vista da moral e do direito comum, como o assassinato, o homi-cídio doloso, o envenenamento, as mutilações, os ferimentos graves voluntáriose premeditados, as tentativas de crimes desse gênero e os ataques à proprieda-de por meio de incêndio, explosão, inundação, assim como os roubos graves, eespecialmente os que se cometem a mão armada e com violência”. Acrescentao Instituto, “no que diz respeito aos atos executados durante uma guerra civil,

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por uma ou outra das partes”, que também são excluídas do conceito de crimepolítico, quando “constituam atos de barbaria e vandalismo proibidos pelas leisde guerra”.

Sobre essa conceituação, a Comissão Jurídica Interamericana emitiu oseguinte comentário (p. 22):

“Esta definição tem duas grandes desvantagens: exageradocasuísmo e critério excessivamente restritivo.

Se fosse aceita totalmente, conduziria ao fim do asilo. No entanto,proporciona alguns elementos que foram recolhidos pela jurisprudênciaamericana.

Parece comumente aceito o princípio de que a teoria da predo-minância do delito não é tecnicamente perfeita nem praticamenteaceitável.

É muito difícil verificar se o elemento político está em situaçãoinferior em relação ao comum, ou vice-versa.

Entretanto, é necessário reconhecer que quando o delito, emboratenha fim político, é crudelíssimo ou bestial, constitui um caso dúbio emque o interesse afetado não é o de determinada ordem política, mas o daprópria humanidade.

Os atos de barbaria ou vandalismo, a que faz referência o últimoparágrafo da mencionada definição, afetam o espírito humanitário dospovos americanos, espírito que constitui a essência ética do asilo nospaíses latino-americanos.

É evidente que não se pode premiar com a impunidade, querepresenta o benefício de uma instituição criada para salvar o homem nosmomentos de inclemência, os que menosprezam desapiedadamente adignidade humana.

Em outras palavras, o delinqüente que o asilo busca proteger é oindivíduo cuja atitude implica numa violação da ordem legal, destinada aproduzir sua alteração.

Muito distante desta orientação está o que comete barbaria, pois amesma indica uma das formas mais abjetas da criminalidade comum.”

Conclui a Comissão o seu magnífico trabalho, sugerindo à XI ConferênciaInteramericana “os seguintes elementos de apreciação”:

“1) São delitos políticos as infrações contra a organização efuncionamento do Estado.

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2) São delitos políticos as infrações conexas com os mesmos.Existe conexidade quando a infração se verifica: 1) para executar oufavorecer o atentado configurado no número (1); (2) para obter aimpunidade pelos delitos políticos.

3) Não são delitos políticos os crimes de barbaria e vandalismo e,em geral, todas as infrações que excedam os limites lícitos do ataque e dadefesa.

4) Não é delito político o genocídio, de acordo com a Convençãodas Nações Unidas”.

Recorrendo ao item 3 dessa conceituação e tendo em vista a lei brasileira(art. 2º, § 1º, do Decreto-Lei 394, de 1938), não me parece que o crime de homicídio,ainda que durante uma guerra civil, praticado contra três prisioneiros — um estu-dante ferido, o médico chamado a socorrê-lo e o motorista que os conduzia —, devaser tido por crime político, para excluir pedido de extradição.

As razões de defesa, que porventura alegue o extraditando — não terparticipado do crime ou para ele haver concorrido no cumprimento de ordemmilitar superior — são considerações de mérito, que não influem na conceituaçãodo delito.

Entretanto, pelos motivos indicados na primeira parte deste voto, indefiro opedido de extradição.

VOTO

O Sr. Ministro Afrânio Costa: Sr. Presidente, estou de acordo com o emi-nente Ministro Relator e também indefiro a extradição, principalmente porque oregime caótico atualmente existente em Cuba, conforme é ciência comum, ameu ver, não permite um julgamento imparcial e sereno, dentro dos princípios deJustiça a que o Brasil está acostumado; não oferecendo, outrossim, o Governocubano garantias para o cumprimento de nossa decisão, caso fosse deferida aextradição.

VOTO

O Sr. Ministro Pedro Chaves: Sr. Presidente, sem me vincular a todas asconsiderações, de grande profundidade, do voto do eminente Relator, adiro àconclusão de S. Exa. e também nego a extradição, pedindo licença, Sr. Presidente,para acrescentar uma consideração de ordem pessoal.

Repugnaria à minha consciência de juiz conceder uma extradição paraum país debaixo de um regime antidemocrático, onde não existe um corpo

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judicante livre. Os juízes de Cuba, Sr. Presidente, eu os conheci em São Paulo,representados por um eminente membro da sua Suprema Corte e por um juizda mais alta Corte de Justiça de Havana. Eles andavam em tournée pelaAmérica do Sul, suplicando solidariedade e deitando um pouco de luz sobre oque aconteceu naquele país. Da Suprema Corte, só resta um de todos os seusmembros; não declino o nome dele em homenagem à memória de seu pai, quefoi um dos maiores internacionalistas e um dos maiores jurisconsultos sul-ame-ricanos.

Nessas condições, Sr. Presidente, a mim repugna, como juiz e como ho-mem, entregar um cidadão à sanha dessa justiça de sangue, que está predomi-nando em Cuba.

VOTO

O Sr. Ministro Gonçalves de Oliveira: Senhor Presidente, pelo que verificodo relatório do eminente Ministro Victor Nunes, houve um asilo dado pelo Gover-no brasileiro ao extraditando. O Brasil não tem tratado de extradição com Cuba,de sorte que o encaminhamento do pedido de extradição ficou entregue ao crité-rio do Itamarati, e é lamentável que o Itamarati, que tinha propugnado pelo asilodo extraditando, haja encaminhado esse pedido do Governo cubano.

Eu me inspiro nos votos dos eminentes Ministros Relator, Afrânio Costa ePedro Chaves. Também estou em que o Governo cubano não oferece garantiasde ordem democrática bastantes para lhe entregar um homem a quem o Governobrasileiro entendeu de dar asilo diplomático.

O Sr. Ministro Ary Franco: Há um equívoco por parte do Ministro Gonçalvesde Oliveira: o Itamarati não merece essa censura. A extradição foi fundada noCódigo Bustamante, de sorte que tinha de encaminhá-la. Procedeu com toda adignidade, não pode fugir à convenção que assinou, faltaria à sua palavra.

O Sr. Ministro Gonçalves de Oliveira: Se reconheceu que o extraditando éum perseguido político e se, pela Constituição brasileira, não se dá extradição emcaso de crime político, não devia encaminhar o pedido.

O Sr. Ministro Ary Franco: Quem dá a última palavra no crime em extra-dição é o Supremo Tribunal Federal.

O Sr. Ministro Gonçalves de Oliveira: Reafirmo o meu ponto de vista: oItamaraty não fica obrigado a encaminhar todos os pedidos de extradição, porqueo princípio internacional é o da reciprocidade. Não havendo tratado, não havendoreciprocidade de ordem contratual, o Itamarati não é obrigado a encaminhar opedido. No caso concreto, o processo devia ter ficado mornando nos arquivos doItamarati. Pela lei de 1911, o Governo brasileiro somente encaminhava os pedidos

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dos governos estrangeiros, quando havia tratado de extradição entre os doispaíses. Pela lei atual, não se exige tratado, mas o Itamarati tem que se ater aoaspecto político e pode não encaminhar os pedidos, como esclarece AnorMaciel, especialista na matéria. É como deveria proceder, no caso concreto, emque se concedeu asilo político ao extraditando. Assim, nem poderia mandarprendê-lo, nem encaminhar o pedido do Governo cubano ao Supremo Tribunal,que não considera aspectos políticos do pedido.

O Sr. Ministro Victor Nunes: Senhor Presidente, o Decreto-Lei n. 394, de28-4-38, no art. 6º, § 3º, ao tratar dos critérios de preferência, quando a extradi-ção é requerida por mais de um país, assim dispõe:

“Havendo tratado com algum dos Estados solicitantes, as suasestipulações prevalecerão no que diz respeito à preferência de que trataeste artigo.”

Portanto, está previsto que o pedido pode ser feito na ausência de tratadode extradição. No caso concreto, existe o Código de Bustamante, e o Governo deCuba, ao solicitar a extradição, ofereceu reciprocidade.

O Sr. Ministro Gonçalves de Oliveira: O Itamarati, repito, não é obrigado aencaminhar. Nos países estrangeiros, não se encaminharia. Estou em que a leiúltima, o Decreto-Lei n. 394, não exige o tratado que exigia a lei de 1911, mas ficaao critério do Itamarati encaminhar ou não. No caso concreto, a meu ver, nãodeveria ter encaminhado, pois que considerou o asilo, no caso, um perseguidopolítico. O Itamarati errou ao encaminhar o pedido. Como podia solicitar ao Mi-nistério da Justiça a prisão de um perseguido político a quem concedera asilo?Como podia promover, perante o Supremo Tribunal, a extradição solicitada peloGoverno cubano, quando considerava digno de asilo o extraditando? Imagine se aArgentina não concedesse, por motivo qualquer, as extradições pedidas pelo Go-verno brasileiro, nem sequer as encaminhassem ao Judiciário, como é ali reco-nhecido, em princípio, ao Executivo, como testemunha Sebastian Soler. O Gover-no brasileiro ficaria, acaso, obrigado a encaminhar ao Supremo Tribunal todos ospedidos do Governo argentino?

O Sr. Ministro Ary Franco: A doutrina de V. Exa. é perigosa.

DECISÃO

Como consta da ata, a decisão foi a seguinte: negaram a extradição,unanimemente.

Presidência do Exmo. Sr. Ministro Ribeiro da Costa, na ausência justificadado Exmo. Sr. Presidente Barros Barreto.

Relator, o Exmo. Sr. Ministro Victor Nunes.

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Memória Jurisprudencial

Tomaram parte no julgamento os Exmos. Srs. Ministros Afrânio Costa(substituindo o Exmo. Sr. Ministro Luiz Gallotti, que se acha licenciado), PedroChaves, Victor Nunes, Gonçalves de Oliveira, Vilas Boas, Candido Motta,Ary Franco, Hahnemann Guimarães e Lafayette de Andrada.

EXTRADIÇÃO 272 — ÁUSTRIAEXTRADIÇÃO 273 — POLÔNIA

EXTRADIÇÃO 274 — ALEMANHAHABEAS CORPUS 44.074 — DF

Relator: O Sr. Ministro Victor Nunes

Requerentes: República Fed15.20eral da Áustria, República Popular daPolônia e República Federal da Alemanha — Extraditando: Franz Paul Stangl

1) Extradição. a) O deferimento ou recusa da extradição édireito inerente à soberania. b) A efetivação, pelo governo, daentrega do extraditando, autorizada pelo Supremo Tribunal,depende do direito internacional convencional.

2) Reciprocidade. a) É fonte reconhecida do direito extradicional.Ext 232 (1961), Ext 288 (1962), Ext 251 (1963). b) A Consti-tuição de 1967, art. 83, VIII, não exige referendum do Con-gresso para aceitação da oferta do Estado requerente. c) A leibrasileira autoriza o Governo a oferecer reciprocidade.

3) Comutação de pena. a) A extradição está condicionada àvedação constitucional de certas penas, como a prisão perpétua,embora haja controvérsia a respeito, especialmente quanto àsvedações da lei penal ordinária. Ext 165 (1953), Ext 230 (1961),Ext 241 (1962), Ext 234 (1965). b) O compromisso de comutaçãoda pena deve constar do pedido, mas pode ser prestado peloEstado requerente antes da entrega do extraditando. Ext 241(1962). Voto do Min. Luiz Gallotti na Ext 218 (1950).

4) Instrução. A documentação suplementar foi oferecidaem tempo oportuno pelos Estados requerentes, sem prejuízoda defesa exercitada, com eficiência e brilhantismo.

5) Territorialidade. a) Jurisdição da Áustria (crimes deHartheim) e da Polônia (crimes de Sobibór e Treblinka). b)Falta de jurisdição da Alemanha (Sobibór e Treblinka), porquea ocupação militar não transformou essas localidades em terri-

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Ministro Victor Nunes

tório alemão, nem ali permanecem suas tropas, nem o extradi-tando continua no seu serviço.

6) Nacionalidade ativa. a) Jurisdição da Áustria (Sobibóre Treblinka) por ser Stangl austríaco. b) Jurisdição da Alema-nha (Sobibór e Treblinka), não porque Stangl tivesse, ao tem-po, a nacionalidade alemã, mas porque estava a serviço doGoverno germânico.

7) Narrativa. Foi minuciosa, e até excessiva, a descriçãodos fatos delituosos, dependendo a apuração da culpabilidade,ou o grau desta, do juízo da ação penal.

8) Genocídio. A ulterior tipificação do genocídio, em con-venção internacional e na lei brasileira, ou de outro Estado,não exclui a criminalidade dos atos descritos, pois a extradi-ção é pedida com fundamento em homicídio qualificado.

9) Crime político. A exceção do crime político não cabe nocaso, mesmo sem a aplicação imediata da Convenção sobre oGenocídio ou da Lei 2.889/56, porque essa excusativa nãoampara os crimes cometidos com especial perversidade oucrueldade (Ext 232, 1961). O presumido altruísmo dos delin-qüentes políticos não se ajusta à fria premeditação do exter-mínio em massa.

10) Ordem superior. a) Não se demonstrou que o exter-mínio em massa da vida humana fosse autorizado por lei doEstado nazista. b) Instruções secretas (caso Bohno) oudeliberações disfarçadas, como a “solução final” da confe-rência de Wannsee, não tinham eficácia de lei. c) Graduadofuncionário da polícia judiciária não podia ignorar a crimina-lidade do morticínio, cujos vestígios as autoridades procura-ram metodicamente apagar. d) A regra respondeat superiorestá vinculada à coação moral, não presumida para quem fezcarreira bem sucedida na administração de estabelecimentosde extermínio. e) De resto, o exame dessa prova depende dojuízo da ação penal.

11) Julgamento regular. A parcialidade da Justiça dosEstados requerentes não se presume, nem poderia o extradi-tando ser julgado pela Justiça brasileira, ou responder perantejurisdição internacional, que não é obrigatória.

12) Prescrição. a) Ficou afastado o problema da retroatividade;examinou-se a matéria pelo direito comum anterior e porque oBrasil, que observa o princípio da lei mais favorável, não subs-

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Memória Jurisprudencial

creveu convenção, nem editou lei especial sobre prescrição emcaso de genocídio. b) No que respeita à Polônia, a prescriçãonão foi interrompida, segundo os critérios da nossa lei; tambémnão o foi quanto à Áustria, em relação aos crimes de Sobibór eTreblinka, porque nenhum dos atos praticados pelo Tribunal deViena equivale ao recebimento da denúncia do direito brasilei-ro. c) A abertura da instrução criminal nos Tribunais de Linz eDüsseldorf, tendo efeito equivalente ao recebimento da denún-cia, do direito brasileiro, interrompeu a prescrição relativamen-te aos pedidos da Áustria, pelos crimes de Hartheim, e daAlemanha, pelos crimes de Sobibór e Treblinka.

13) Preferência. a) A determinação da preferência entreos Estados requerentes cabe ao Supremo Tribunal, e não aoGoverno, porque o caso se enquadra em um dos critérios dalei, cuja interpretação final compete ao Judiciário. b) Afastou-se a preferência pela territorialidade, pleiteada pela Alemanha,pelas razões já indicadas quanto à jurisdição. c) Pelo critério dagravidade da infração, o exame do Tribunal não se limita aotipo do crime, mas pode recair sobre o crime in concreto(combinação do art. 42 do Código Penal com o art. 78, II, b, doCódigo de Processo Penal). d) Em conseqüência, foi reconhe-cida a preferência da Alemanha (Sobibór e Treblinka), e não daÁustria (Hartheim), consideradas não somente as conseqüên-cias do crime como também as finalidades daqueles estabele-cimentos e a função que o extraditando neles exercia.

14) Entrega. Entrega do extraditando à Alemanha, sob ascondições da lei, especialmente as do art. 12, e com o compro-misso de comutação de pena e da entrega ulterior à Áustria.

15) Habeas corpus. Ficou prejudicado o habeas corpus,requerido, aliás, à revelia do extraditando.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do SupremoTribunal Federal, em Sessão Plenária, na conformidade da ata do julgamento e dasnotas taquigráficas, por unanimidade de votos, indeferir o pedido da Polônia; autori-zar a entrega do extraditando, em primeiro lugar, à Alemanha, com o compromissode conversão da pena de prisão perpétua em prisão temporária, e, bem assim, o daulterior entrega do extraditando à Justiça da Áustria, observadas as demais condi-ções da lei, especialmente as do art. 12, julgar prejudicado o habeas corpus.

Brasília, 7 de junho de 1967 — Luiz Gallotti, Presidente — Victor Nunes,Relator.

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Ministro Victor Nunes

RELATÓRIO

O Sr. Ministro Victor Nunes Leal: São submetidos ao exame do SupremoTribunal Federal três pedidos de extradição: da República Federal da Áustria(Ext 272), da República Federal da Alemanha (Ext 274) e da República Popularda Polônia (Ext 273), e bem assim o HC 44.074, que fora requerido sem o conhe-cimento do extraditando (Ext 272, v. 3, fl. 793).

Embora processados separadamente, o Relator sugere seu julgamentoconjunto, porque se referem à mesma pessoa, Franz Paul Stangl, de nacionalida-de austríaca; tratam em grande parte dos mesmos fatos e poderão suscitar oproblema da preferência, se o Tribunal julgar que os pedidos de mais de um paíssão atendíveis, como sustenta o Dr. Procurador-Geral.

I - Os Fatos

Pesa sobre o extraditando a acusação de co-autoria em crimes de homicí-dio, praticados em massa, no instituto de extermínio de Hartheim, instalado naÁustria, em 1940; no campo de extermínio de Sobibór, construído em 1942, nomês de abril (Ext 272, v. 1, fl. 18), ou a partir de março (Ext 273, fl. 80v), naComarca de Chalm, Distrito de Lublin, na Polônia, e destruído em novembro de1943, após o levante de prisioneiros de meados de outubro (Ext 274, fl. 80v);finalmente, no campo de extermínio de Treblinka, construído a partir de 1-6-42(Ext 273, fl. 73), nas proximidades da aldeia desse nome, cerca de 80 km anordeste de Varsóvia, o qual foi parcialmente incendiado na revolta de prisionei-ros de 2-8-43 e totalmente destruído em novembro daquele ano (Ext 272, v. 1, fl.21; Ext 273, fl. 73v, 79). Passamos a sumariar a atividade criminosa atribuída aoextraditando, consoante os diversos pedidos.

Hartheim aparentava ser um instituto médico. Na verdade, esse estabele-cimento integrava a rede da chamada Ação Brak, iniciada na Alemanha em1939 e estendida à Áustria em 1940. Destinava-se à eliminação coletiva e metó-dica de insanos mentais e de pessoas idosas, fracas ou incapacitadas para otrabalho, bem como das consideradas politicamente perigosas (Ext 272, v. 1, pp.46 ss).

Variava o método de extermínio: veneno, injeções mortíferas, inalação degás. Em Harthein, foi instalada um câmara de gás, e se incineravam os corposem forno apropriado, depois de despojados dos dentes de ouro.

Não foi possível determinar exatamente o grande número de vítimas deHartheim. Às vezes, se amontoavam os cadáveres, a ponto de “apodrecerem” osde baixo antes da incineração. Um índice comparativo é tomado do sanatóriocongênere de Niedernhart, onde, segundo o depoimento do Dr. Bohm, o número

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Memória Jurisprudencial

de internados baixara de 1.128, em 1938, para 303, em 1943, no final da AçãoBrak. O próprio extraditando, em depoimento prestado na Áustria, em 1947,calculava terem sido mortas de 12 a 13.000 pessoas, desde o início do ano de1943 (Ext 272, v. 1, fl. 99).

Precauções especiais foram tomadas para ocultar essas atividades, inclu-sive o juramento de sigilo e a falsificação do lugar e da causa mortis na comuni-cação do óbito aos parentes.

O extraditando é acusado de haver participado da direção do estabeleci-mento, juntamente com o Dr. Rudolf Lonauer, já falecido, e o Dr. Georg Reno.Os dois últimos dirigiam a parte médica; pelos demais serviços responderam, emperíodos diversos, Christian Wirth, Franz Reichleitner e Franz Paul Stangl, que foide começo diretor substituto do escritório e depois diretor efetivo. Segundo cons-ta da ordem de prisão contra ele expedida pela Justiça de Linz, era uma das“cabeças dirigentes” de Hartheim, embora não participasse, pessoalmente, daexecução final dos assassinatos.

Sobibór era, caracteristicamente, um campo de extermínio. Em suas cincocâmaras de gás, disfarçadas em casas de banho, calcula-se que foram mortos,desde abril de 1942 (ou maio (Ext 273, fl. 80v)) até outubro de 1943, cerca de250.000 judeus, provenientes de vários países da Europa. Em média, eram elimi-nados 200 por semana.

A inalação mortal do gás de escape de um motor de explosão, canalizadopara as câmaras, durava de 20 a 30 minutos. Os cadáveres eram cremados emcovas de 15 metros de comprimento por outros tantos de largura e 3 de profundi-dade (Ext 272, v. 1, fl. 20). De ordinário, os adultos que fossem doentes ou fracos,bem como as crianças, eram mortos no próprio fosso, a tiros. Os prisioneirosmais fortes, escolhidos para o trabalho, eram maltratados brutalmente; quando seincapacitavam pela idade, pela fraqueza ou por doença, eram igualmente assassi-nados. As vítimas, antes da morte, a pretexto de terem de banhar-se, eram tos-quiadas e despojadas de suas roupas e haveres. Serviam em Sobibór por volta de100 alemães das tropas SS, e cerca de 200 voluntários da Ucrânia (Ext 272, v. 1,fl. 20).

O extraditando comandou, em certo período, o campo de Sobibór. Respon-dia, nessa qualidade, perante o já falecido Coronel SS Odil Grobocnic, incumbido —com sede em Lublin — da instalação e supervisão dos campos de extermínio doLeste europeu. O pedido da Áustria situa o comando de Stangl entre a primaverae o fim do verão ou do outono de 1942 (Ext 272, v. 1, fl. 24); o da Polônia é maispreciso: de março a agosto daquele ano (Ext 273, fl. 19v).

Dentre suas atribuições no comando de Sobibór, incluía-se a de determinaras funções dos grupos encarregados das diversas tarefas do campo. Todo o

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pessoal servia sob sua dependência, cabendo-lhe, inclusive, a chefia das equipesde vigilância, tanto da alemã como da ucraniana (Ext 272 v. 1, fl. 24). Acrescentaa acusação que ele, certa vez, em Sobibór, ordenou pessoalmente o fuzilamentode uma judia, que fora visitar o marido no campo de serviço; de outra feita, deixouenforcar um prisioneiro, para servir de exemplo (Ext 273, fl. 24).

Treblinka também era, especificamente, um campo de extermínio. O assas-sinato em massa teve início, ali, segundo a Áustria e a Polônia, em 23-7-42, comum transporte de 5.000 pessoas chegadas de Varsóvia (Ext 272, v. 1, fl. 21; Ext 273,fl. 73); pelo pedido da Alemanha, teria começado na véspera (Ext 274, fl. 36).

O mais alto índice de mortes corresponde ao período de agosto a novem-bro de 1942 (dentro da administração de Stangl). Decresceu de dezembro desseano até fevereiro de 1943, e subiu de novo nos meses subseqüentes, até 2 deagosto de 1943, data em que se verificou o levante de prisioneiros. Como essarevolta houvesse destruído parcialmente o campo, os transportes posteriores, atéoutubro, tinham menores proporções, e as novas vítimas também foram assassi-nadas, pois as câmaras de gás haviam ficado incólumes.

Através de testemunhos e de documentos da estrada de ferro, que levavaao campo, as autoridades polonesas estimaram em cerca de 700.000 o númerode pessoas assassinadas em Treblinka (Ext 272, v. 1, fl. 22). Para sermos maisexatos, a estimativa da Comissão Central de Investigação dos Crimes Alemãesna Polônia foi de “pelo menos 731.600 pessoas”, tomando por base a quantidadede vagões utilizados e a média de 100 pessoas por vagão (Ext 273, fl. 78). AAlemanha calcula o número de mortos, só no período do comando de Stangl, “empelo menos 300.000”(Ext 274, fl. 35). A Áustria, referindo-se em sua correspon-dência diplomática com o Brasil à responsabilidade de Stangl, nos três estabeleci-mentos de extermínio, ora fala em “mais de cem mil pessoas”, ora em “váriascentenas de milhares” (Ext 272, v. 1, fl. 3; v. 3, fl. 840).

O transporte em comboios ferroviários fechados, bem como o saque siste-mático e o extermínio pelo gás de escape, com o disfarce do banho, reproduziamo método utilizado em Sobibór. As próprias cavidades do corpo eram investigadasà procura de objetos valiosos. Em Treblinka, entretanto, foram construídas câma-ras de gás em maior número, ao todo 13 (Ext 273, fl. 374), sendo as da segundaetapa planejadas de modo a terem maior produtividade.

Os cadáveres, até à primavera de 1942, eram sepultados coletivamente,em covas amplas (Ext 274, fl. 38), mas foram depois exumados e cremados —como as vítimas posteriores — em uma grande grelha de 25 a 30 metros de com-primento, construída com trilhos de ferrovia e bases de concreto (Ext. 274, fl. 36).A queima dos cadáveres em massa começou, segundo a Comissão polonesa deinvestigação, após a visita de Himler a Treblinka, em fevereiro ou março de 1943(Ext 273, fl. 373v).

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Cerca de 40 alemães das tropas SS e aproximadamente 120 voluntários daUcrânia integravam o pessoal responsável pelo campo (Ext 272, v. 1, fl. 23); masa maior parte do serviço, inclusive no crematório e nas câmaras de gás, era reali-zada pelos próprios prisioneiros, quase todos judeus, posteriormente assassinados.

Nos três pedidos há coincidência quanto à duração do comando de Stanglem Treblinka: Áustria — do outono de 1942 até agosto de 1943 (Ext 272, v. 1, fl.24); Alemanha — de agosto de 1942 até agosto de 1943 (Ext 274, fl. 35, 38);Polônia — de agosto de 1942 até o outono de 1943 (Ext 273, fl. 18). Suas atribui-ções de chefia eram da mesma natureza das exercidas em Sobibór. Diz a acusa-ção da Alemanha que ele substituiu no comando o Dr. Eberl, porque este “mos-trou não ser capaz”. Assumindo o cargo, “mandou construir a nova e maiorinstalação de homicídio” (diversas câmaras de gás, mais amplas, e a grelha decremação), e organizou de modo mais eficiente o processo de exterminação emmassa.

Além da responsabilidade pela matança coletiva, que lhe é atribuída porsua qualidade de comandante, Stangl é acusado pessoalmente, perante a Justiçaalemã, pela morte, em Treblinka, de 15 pessoas, em data não determinada, duran-te sua gestão, e de 8, no dia 8-8-43 (Ext 274, fl. 35).

Observam os três pedidos de extradição que as vítimas eram enganadaspor vários modos, para não suspeitarem do seu destino. Também sublinham asprovidências eficazes, tomadas pelos dirigentes, para fazerem desaparecer osvestígios: queima de cadáveres, falsificação de registros e comunicações, des-truição de documentos e, finalmente, a liquidação material das instalações, emcujo lugar foram plantadas lavouras ou florestas. Não obstante, além do testemu-nho abundante, inclusive de sobreviventes, e dos documentos encontrados, uns eoutros trazidos em grande parte para os autos, escavações e exames periciaisforam realizados in loco, relevando numerosas provas materiais do morticínio deSobibór e Treblinka. As conclusões dessas perícias foram resumidas no Boletimda Comissão investigadora polonesa (Sobibór: Ext 273, fls. 79 ss; Treblinka: fls.72 ss).

A Alemanha juntou ao processo uma fotografia de Stangl, fardado, emcompanhia de Kurt Franz, à frente de um barracão, que seria de Treblinka (Ext274, fl. 34), e a Polônia apresentou fotografia de uma reconstituição emmaquete daquele campo (Ext 273, fl. 100). Também juntou a Polônia correspon-dência oficial referente à promoção de Stangl ao posto de Capitão. A esse respei-to, o Coronel Grobocnic, insistindo pelas promoções já assentadas com a chefia,mas ainda não expedidas, escrevia ao Coronel von Herff, Diretor do Pessoal daSS, em 13-4-43: “(...) o melhor Chefe do Campo de Concentração, o que tevea maior participação na operação inteira, o 1º Tenente da Polícia FranzStangl (...) seria promovido a Capitão da SS” (Ext 274, fl. 134v).

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Mais tarde, Grobocnic dava conta de sua tarefa, em carta a Himler: “Ter-minei em 19-10-43 a Ação Reinhard, que executei no Governo Geral, tendodissolvido todos os campos” (Ext 273, fl. 31).

Nos interrogatórios a que procedi (Ext 272, v. 3, fl. 792; 273, fl. 167; 274, fl.130), declarou o extraditando: que nasceu na Áustria, em 26-3-1908, residindo porúltimo em São Paulo, onde trabalhava como técnico-mecânico da Volkswagen; quetinha conhecimento do processo instaurado em Linz (Áustria) pelos fatos deHartheim e no qual se lhe atribuíam “responsabilidades que não tinha”; que nãoeram verdadeiras as acusações, explicando-as pelo possível desejo dos acusado-res de lançar responsabilidades alheias sobre um foragido que supunham nãoseria encontrado; que ignorava qualquer outro processo instaurado contra ele,seja na Áustria, na Alemanha ou na Polônia, bem como qualquer ordem de prisãooriunda da Justiça alemã; que serviu no campo de Sobibór em 1942, sem poderprecisar os meses, e no de Treblinka, pelo período aproximado de um ano, queterminou em agosto de 1943; que em Sobibór fora responsável pela construçãodo campo, tendo Wirth assumido o comando em seguida, a título provisório; queali ainda permaneceu algum tempo, depois de sua substituição, para prestar con-tas; que ignorava ter sido seu nome incluído na lista de criminosos de guerra dasNações Unidas; que, desde 1930 até agosto de 1943, incluindo todo o período deseu serviço em Sobibór e Treblinka, exerceu exclusivamente funções policiais,nunca tendo dado ordens para assassinar qualquer pessoa; que preferia ser de-fendido por advogado designado pelo Tribunal.

Constam dos autos as folhas de anotações da Polícia Federal de Linz, de7-5-47, e de Wels, de 10-5-47, sem antecedentes criminais (Ext 272, v. 1, fls. 80,86). A última faz referência a antigas declarações por ele prestadas, em 3-10-38,e ao relato autobiográfico firmado na mesma data. Ambas essas peças estãotranscritas (fls. 74, 87). Foram igualmente trasladados os interrogatórios a que osubmeteu o Juiz de instrução de Linz, sobre os fatos de Hartheim, em 21-7-47 enos dias 12 e 15-9-47 (fls. 74-79).

Constam ainda dos autos (Ext 272, v. 3, fls. 771, 779, 783) os depoimentosprestados por Stangl na Polícia de São Paulo, em 1-3-67, e na Polícia Federal, emBrasília, nos dias 2 e 4-3-67. Lê-se nesses depoimentos que ele entrou no Paísem 8-8-51 e obteve a carteira de identidade de estrangeiros de n. 348.587 — RG1.536.069, expedida com o nome de Paul Stangl. Este documento também estáanexado ao processo (fl. 778).

II - Atividade persecutória dos três Estados

a) Áustria

Franz Paul Stangl declarou ter sido preso na Áustria, pelas autoridadesamericanas de ocupação, em 2-6-45 (Ext 272, v. 1, fl. 100). Em 21-5-47, o

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Ministério do Interior solicitou que ele continuasse detido à disposição da Justiçaaustríaca (fl. 111). Em 21-7-47, foi transferido do campo de Glasembach para aprisão do Tribunal de Linz (fl. 91).

Nesse mesmo dia e nos dias 12 e 15-9-47, foi interrrogado pelo JuizMittermayr, do Tribunal de Linz, sobre os fatos de Hartheim. Declarou ele ter alitrabalhado de novembro de 1940 até agosto de 1941; descreveu a natureza doseu serviço, que não envolvia participação nos assassinatos, e também as ativida-des do estabelecimento (fl. 99).

No mesmo dia 21-7-47, foi intimado para ciência da instrução do processoe da sua prisão preventiva (fl. 45). Em 25-3-48, o Ministério Público formulouacusação contra Stangl e outros pelos fatos de Hartheim (fl. 46). Dela o extradi-tando teve ciência pessoal em 19-5-48 (Ext 272, v. 1, fl. 53).

Stangl fugiu em 30-5-48 (fls. 53, 115), e foi expedida a ordem de capturapelo Tribunal de Linz, em 2-6-48 (fl. 53).

Em 3-7-48, foi pedida a suspensão do processo, por motivo da fuga (fl. 151).A decisão, quanto aos co-réus, foi proferida no dia 3-7-48, com a condenação deKarl Harrer e Leopold Lang, respectivamente, a 5 anos e meio e 3 anos de “cár-cere pesado” (fl. 164), e a absolvição de Franz Myrhuber (fl. 164). Em 27-7-48 (fl.137), o Ministério Público apresentou acusação contra Stangl nesse processo.

Nova ordem de prisão foi expedida contra Stangl, em 21-10-61, pelo Tribunalde Linz, com relação aos crimes de Harthein (fl. 191).

Quanto aos fatos de Sobibór e Treblinka (Ext 272, v. 1, fl. 25), o TribunalEstadual Criminal de Viena expediu, em 21-3-62, contra Stangl, um mandado,cuja natureza e alcance jurídico são controvertidos nestes autos, como se veráoportunamente. Esse mandado fundou-se nos §§ 134 e 135, n. 3, da lei penal,destinando-se — de acordo com a defeituosa tradução oficial — à “averiguação(determinação) da residência (corrida trás alguém)”.

O Tribunal de Viena, nos anos subseqüentes (1963 e 1965), dirigiu-se a di-versos tribunais estrangeiros (Polônia, Israel e Rep. Fed. da Alemanha) para (diz atradução) “aclarar enquanto o Franz Stangl é responsável para os homicídios feitosem massa em totalidade nos campos de exterminação de Sobibór e de Treblinka”.

Pelo mesmo Tribunal foi expedida ordem de prisão em 16-3-66. No dia 19-1-67, foi ordenada a apreensão de sua correspondência com uma antiga vizinha.Em 15-2-67, foi iniciada a instrução prévia por homicídio, com fundamento nos§§ 134, 135, n. 3, e 136 da lei penal. No dia seguinte (16-2-67), o Tribunal deViena expediu nova ordem de prisão (fls. 17, 29).

Veio, afinal, o pedido de extradição, cujo andamento será resumido maisadiante.

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b) Alemanha

Com referência aos crimes de Treblinka, o Promotor-Geral junto ao Tribu-nal Regional de Düsseldorf requereu, em 3-5-60, que a instrução criminal emcurso fosse estendida, entre outros, a Franz Stangl, cujo paradeiro era desconhe-cido. Também solicitou, no mesmo ato, se expedisse ordem de prisão contra ele econtra Kuettner, “considerando o vulto de sua participação nos atos puníveis”(Ext 274, fl. 277).

O Juiz Schwedersky, no dia seguinte (4-5-60), estendeu a instrução, comofora requerido. Afirmou, em seu despacho (Ext 274, fl. 279), que “os acusadossupraditos estão suficientemente sob suspeitas de em vários atos independentesum do outro terem matado seres humanos com intenção de matar (animusnecandi) ou por outros motivos torpes, nos anos de 1941 até 1944, nos camposde Treblinka I, respectivamente, de Treblinka II e na região de Treblinka, comemprego de meios insidiosos e cruéis, agindo singularmente ou em concurso dedelinqüentes” (§§ 211, 47 e 74 do Código Penal alemão).

No dia imediato (5-5-60), o mesmo Juiz expediu a ordem de prisão (fl. 21).Nova ordem de prisão, para fins de extradição, foi assinada por aquele Juiz no dia17-3-67 (fls. 35-43). Veio, afinal, o pedido de extradição.

c) Polônia

Informa a Embaixada da Polônia que, já em 1945, seu Governo havia soli-citado a entrega de Franz Stangl às autoridades daquele país pela prática degenocídio (Sobibór e Treblinka), tendo sido ele, em conseqüência, colocado nalista internacional dos criminosos de guerra (Ext 273, fls. 5-6). Em 30-3-46(reproduzimos a tradução oficial), “o delegado dos assuntos criminais deguerra junto à Missão Militar Polonesa, funcionando junto ao Conselhoda Aliança de Controle na Alemanha, enviou (...) uma internacional cartarogatória atrás de Stangl” (fl. 20).

Em 17-3-67, o Procurador-Geral determinou, fundamentadamente, a pri-são provisória de Stangl. A medida seria revogada — diz a tradução — “se noprazo de 3 meses, a contar do dia da entrega de Franz Stangl à disposiçãodas autoridades polonesas, não entrar a apresentação de uma acusaçãoou de prolongamento da prisão” (fl. 21).

Foi encaminhado, finalmente, pedido de extradição ao Governo brasileiro.

III - Processamento da extradição

O primeiro processo de extradição, o da Áustria, refere-se a Hartheim,Sobibór e Treblinka. O pedido de prisão provisória, datada de 27-2-67, deu entradano Itamarati em 1º-3-67 (Ext 272, v. 1, fl. 3) e foi encaminhado pelo Ministério da

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Justiça ao Supremo Tribunal com ofício de 7 de abril, protocolado no dia 11 (fl. 1).O pedido formal de extradição, datado de 3 de abril, deu entrada no Itamarati nodia 5 (v. 3, fl. 840) e foi encaminhado pelo Ministério da Justiça ao SupremoTribunal com ofício de 4 de maio, protocolado no dia 5 (v. 3, fl. 839). Com estesegundo expediente, veio nova tradução oficial dos textos pertinentes do direitoaustríaco (v. 3, fl. 842).

O extraditando foi interrrogado em 13-4-67 (v. 3, fl. 792). No dia 18 (fl.802), apresentou sua defesa o Prof. F. M. Xavier de Albuquerque, defensordativo, que falou sobre os novos documentos, no dia 9 de maio (fl. 850v).

O advogado do Governo da Áustria, Dr. George F. Tavares, admitido em28-4-67 (fl. 833), ofereceu memorial em 9 de maio (fls. 879, 880).

O segundo processo, da Alemanha, refere-se aos fatos de Treblinka. Aopedido de prisão, datado de 7-3-67 e reiterado em 22 e 29 do mesmo mês (Ext274, fls. 4, 5), seguiu-se o pedido formal de extradição, de 12 de abril, que deuentrada no Itamarati no dia 14 (fls. 11, 17), tendo sido tais documentos enviadosao Supremo Tribunal pelo Ministro da Justiça, com ofício de 18 de abril,protocolado no dia 20 (fl. 1). Novos documentos, pelos quais houvera protesto,foram remetidos ao Tribunal, mediante ofício do Ministro da Justiça, de 4 de maio,protocolado no dia 5 (fl. 161). A Embaixada alemã anunciou, então (fl. 23), queenviaria, “dentro em breve, outro requerimento de extradição”, pelos fatos deSobibór. Este outro pedido veio mais tarde (Ext 275), mas ainda não está emcondições de ser julgado.

O extraditando foi interrogado no dia 27 de abril (fl. 130) e o defensordativo apresentou a defesa em 8 de maio (fl. 138), tendo falado sobre os novosdocumentos no dia 12 (fl. 302).

O advogado do Governo da Alemanha, Dr. Antônio Evaristo de MoraisFilho, admitido em 28 de abril (fl. 135), distribuiu memorial (5-6-67), instruído comparecer do Ministro Nelson Hungria e com um extrato do julgamento dos co-réusde Stangl em Düsseldorf.

O terceiro processo, da Polônia, diz respeito a Sobibór e Treblinka. A co-municação prévia, de 27-3-67 (Ext 273, fl. 5), deu entrada no Itamarati no dia 3de abril (fl. 3 ), juntamente com o pedido formal de extradição, firmado em 17 domesmo mês pelo Procurador-Geral daquele país (fls. 3, 7, 18). Essa documenta-ção foi enviada ao Supremo Tribunal com o já citado ofício de 18 de abril, doMinistro da Justiça, protocolado no dia 20 (fl. 1). Novos documentos, pelos quaisa Polônia tinha protestado, foram remetidos ao Tribunal com o ofício de 4 demaio, também já citado, do Ministro da Justiça (fl. 216).

O extraditando foi interrogado no dia 27 de abril (fl. 167), e o defensor dativoofereceu defesa em 8 de maio (fl. 180), tendo falado sobre os novos documentosno dia seguinte (fl. 223v).

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As três defesas do Prof. Xavier de Albuquerque foram sistematizadas eaditadas em memorial distribuído aos Srs. Ministros. O advogado Dr. Sobral Pintoenviou cartas ao Relator, em defesa de Stangl, as quais são do conhecimento dodefensor dativo.

O advogado da Polônia, Dr. Alfredo Tranjan, foi admitido em 2-5-67 (Ext273, fl. 172).

O advogado Dr. Izaac Nuzman, com representação de três sobreviventesde Sobibór e Treblinka, pediu sua intervenção no processo. Mandei juntar seumemorial, por linha, para exame do Tribunal.

Os três processos foram devolvidos pelo Procurador-Geral da República,Prof. Haroldo Teixeira Valadão, com os seus pareceres, no dia 24 de maio (Ext272, v. 3, fls. 852, 878; Ext 274, fls. 318, 334; Ext 273, fls. 225, 317).

O pedido de habeas corpus, referido no começo deste relatório, não foitrazido antes a julgamento, porque foi requerido sem conhecimento do extraditan-do e o defensor dativo não o ratificou.

IV - Questões jurídicas suscitadas

a) Matéria constitucional

1. Reciprocidade. Os três Estados requerentes fizeram declaração dereciprocidade (Ext 272, v. 1, fl. 3; Ext 274, fl. 17; Ext 273, fl. 219). Sustenta,porém, a defesa que seria, agora, insuficiente esse compromisso, porque ele en-volve um ato internacional não referendado pelo Congresso. As Constituiçõesanteriores só impunham essa aprovação para tratados e convenções, mas a de1967 (art. 83, VIII) a exige para “tratados, convenções e atos internacionais”.A oferta de reciprocidade, envolvendo a tácita aceitação do Brasil, dependeria doreferendo legislativo.

2. Comutação de pena. Embora a nossa lei de extradição (DL 394, de28-4-38) não exija expressamente o compromisso de comutação da pena deprisão perpétua (art. 12, d), sustenta a defesa que ele é indispensável, em face davedação da “prisão perpétua” pelo art. 150, § 11, da Constituição vigente. Entre-tanto, nem a Áustria, nem a Alemanha, onde essa pena seria aplicável, nem aPolônia, onde se aplicaria a pena de morte, assumiram qualquer compromissoquanto à prisão perpétua (Ext 272, v. 3, fl. 840; Ext 274, fl. 23; Ext 273, fl. 217).

O memorial da Alemanha bem como os pareceres do Procurador-Geral edo Ministro Nelson Hungria sustentam que a comutação de pena, como exigên-cia do direito extradicional, não está vinculada às vedações constitucionais. Énorma autônoma, inspirada em outras razões, tanto que a Constituição de 1937admitia a pena de morte em certos casos, e a nossa lei de extradição, decretadana sua vigência, determinou a comutação.

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Para Nelson Hungria, poder-se-ia, em última análise, condicionar a ex-tradição a esse compromisso suplementar. O Procurador-Geral, replicando àdefesa, entende que tal exigência surpreenderia os Estados com os quais man-temos relações.

3. Retroatividade. Sustenta a defesa que, mesmo quanto ao genocídio,somente poderíamos discutir a retroatividade da ampliação do prazoprescricional, se tivéssemos lei ou tratado que determinasse essa ampliação.

b) Formalidades

4. Especificação dos fatos. Argúi a defesa que os pedidos sãoinatendíveis, porque não especificam os fatos com o rigor que impõe a lei brasilei-ra (art. 7º), pois nenhum deles “identifica, pelo nome, uma só das vítimas, nemdetermina, ao menos pela data exata, um só desses mesmos fatos” (Mem., p.47). Em se tratando de co-autoria, essa especificação era mais necessária.

O memorial da Alemanha e bem assim os pareceres do Ministro NelsonHungria e do Procurador-Geral (Ext 272, v. 3, p. 858; 274, p. 319; 273, 302-303)sustentam que a descrição apresentada é perfeitamente satisfatória. As circuns-tâncias de lugar e de tempo, os meios utilizados e a participação do extraditando,tudo está minuciosamente descrito. E os autos fornecem numerosos testemunhos eelementos materiais constitutivos do corpo de delito indireto. Quanto à identidade,nota Nelson Hungria que a lei pune “a ocisão de um homem, e não a de Pedro,Sancho ou Martinho”; e o Prof. Haroldo Valadão observa que é irrelevante cuidarda identidade das vítimas, quando se trata de morticínio em massa.

5. Legalidade da prisão. A defesa argumenta que, pelo nosso direito, aprisão hábil para ensejar a extradição é somente a que emana de autoridadejudiciária competente (art. 5º). O pedido da Polônia e inadmissível, porque aprisão preventiva de Stangl foi ali determinada pelo Procurador-Geral.

O Prof. Haroldo Valadão não aceita o argumento, pois a competência paradecretar a prisão é regulada pelo direito do Estado requerente.

6. Documentação. O pedido formal de extradição da Áustria só veio aosatos posteriormente. Do mesmo modo, a tradução da peça acusatória, cuja acei-tação pelo juiz interromperia a prescrição, consoante o pedido da Alemanha.Igualmente, o compromisso de reciprocidade da Polônia. O mesmo ocorreu comoutras traduções, que não foram oferecidas de início.

A defesa sustenta que tais documentos eram imprescindíveis à articulaçãode suas razões, cujo âmbito a lei restringe, quase exclusivamente, aos defeitos deforma (art. 10). Não se trata, pois, daqueles documentos cuja apresentação ulte-rior a lei faculta ao Tribunal determinar (art. 10, § 2º ). Importando tal deficiênciaem sacrifício da defesa, os pedidos não poderiam ser acolhidos.

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O Procurador-Geral, tendo em vista o art. 10, § 2º, do DL 394/38, respondeque os documentos, de começo omitidos e pelos quais protestaram os Estadosrequerentes, foram trazidos em tempo oportuno. Quanto ao pedido formal deextradição da Áustria, poderia haver dúvida, se tivesse vindo além dos sessentadias da prisão provisória. Mas ele deu entrada no Itamarati em prazo útil; pelademora da sua remessa ao Supremo Tribunal não poderia responder o Estadorequerente.

c) Competência

7. Princípio territorial. Esse princípio, no que toca a jurisdição do Esta-do requerente (DL 394/38, art. 3º), é sustentado pela Áustria, quanto a Hartheim;pela Polônia, quanto a Sobibór e Treblinka; pela Alemanha, quanto a Treblinka,porque, ao tempo dos crimes, aquela parte do território polonês estava sob ocupa-ção alemã. Cita a respeito a Convenção de Haia, de 1907 (Ext 274, fl. 19).

O Procurador-Geral concorda com a Áustria e com a Polônia, mas con-testa a Alemanha, porque o art. 43 da citada Convenção não a favorece, nem foiela ratificada pela Polônia.

8. Princípio da nacionalidade ativa. É invocado pela Áustria, quanto aoscrimes do Sobibór e Treblinka, porque o acusado tem a nacionalidade austríaca(Código Penal da Áustria, § 36). O Prof. Haroldo Valadão manifesta-se de acor-do, esclarecendo que esse princípio data do Código austríaco de 1803, § 30, e foimantido no de 1852, §§ 36 e 235, sendo igualmente admitido no Código Penalbrasileiro, art. 5º, II.

No mesmo princípio funda-se o pedido da Alemanha, quanto a Treblinka.Nos autos, citou o § 4, inciso 3, item 1, do Código Penal alemão, que se refere às“infrações cometidas no estrangeiro por um estrangeiro (...) na qualidadede titular de uma função pública alemã (...)”. Está de acordo o Procurador-Geral. Mas, no memorial da Alemanha e no parecer do Ministro Nelson Hungria,o mesmo princípio da personalidade ativa é lembrado também sob outro aspecto:ao tempo dos crimes, Stangl era alemão, em virtude do Anchluss (Decreto de 3-7-1938), e a reaquisição da nacionalidade austríaca, só efetuada por lei de 10-7-45, não tem efeito retroativo.

d) Prescrição

9. Hartheim. Em face da exigência da nossa lei de extradição, de nãoestar prescrita a ação penal, seja pelo direito do Estado requerente, seja pelodireito brasileiro (art. 2º, V), sustenta a Áustria que a instrução criminal instaura-da em Linz interrompeu a prescrição quanto aos crimes de Hartheim. Stanglserviu em Hartheim até agosto de 1941 e foi interrogado, pela primeira vez, na-quele processo, em 21-7-47, ficando logo ciente da ordem de sua prisão preventiva;

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em 19-5-48, também tomou ciência pessoal da acusação do Ministério Público.Tendo fugido no dia 30, por mais este motivo ficou interrompida a prescrição,segundo a lei austríaca.

A defesa argumenta, em contrário, pela forma seguinte:

a) A falta de especificação dos fatos não permite precisar o termo inicialda prescrição, mas pode-se admitir que seja o último dia de agosto de 1941.

b) A prescrição, no caso, pelo direito austríaco (§ 228, b, in fine), seria de 5anos, e não de 20, porque Stangl fora inicialmente acusado pelo § 5º do CódigoPenal austríaco, ou seja, por simples cumplicidade em homicídio (pena máxima dedez anos, § 137 StG); estava, pois, consumada, em 30-8-46, antes do mencionadointerrogatório de 21-7-47.

c) Também há prescrição intercorrente, pois o último ato daquele processofoi a requisitória de 7-7-48; a contar desse ato, mesmo o prazo de 16 anos da leibrasileira (pena abstrata de 10 anos, do direito austríaco) escoou-se em 6-7-64.

d) A acusação do MP alterou a classificação inicial do Juiz de instrução,para atribuir co-autoria — e não cumplicidade — a Stangl, o que eleva o prazoprescricional para 20 anos; mas essa alteração foi feita em 25-3-48, quando jáprescrita a ação penal pela classificação anterior de cumplicidade.

e) Essa alteração in pejus era, de resto, inadmissível, porque o próprio MP,ao descrever os fatos, excluiu a participação pessoal de Stangl “na última execuçãodos homicídios”; sua posição, portanto, só podia ser de cúmplice, e não de co-autor.

f) Outros co-réus naquele processo, com atuação mais comprometedoraque a de Stangl, foram classificados como cúmplices na sentença proferida peloTribunal de Linz, e sofreram penas, respectivamente, de 3 anos e de 5 anos emeio.

Também argumentou a defesa, com o caráter meramente ordinatório do atojudicial de abertura da instrução, inábil, portanto, para interromper a prescrição.Este assunto será mencionado mais adiante, em relação ao pedido da Alemanha.

O Procurador-Geral, Prof. Haroldo Valadão, impugna a interpretação dadefesa, porque o § 5º do Código Penal da Áustria, referido na primeira ordem deprisão preventiva e do qual resultaria a pretendida classificação de mera cumpli-cidade, não exclui a participação a título de co-autoria, caso em que é aplicável amesma pena cominada para a autoria. Além disso, a peça que se leva em conta,para a prescrição in abstracto, é a denúncia; e a classificação na denúncia foi deco-autoria.

De outro lado, a defesa teria confundido homicídio simples com homicídioqualificado. O caso dos autos é realmente de homicídio qualificado, tanto pelo

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Código austríaco, § 135, inciso 3, como pelo Código brasileiro, art. 121, § 2º. Aprescrição, portanto, nos dois países, é de 20 anos (pena in abstracto), e foiregularmente interrompida em 1948, consoante os critérios legais da Áustria e doBrasil.

Argumentação semelhante desenvolve o memorial do advogado da Áustria.Sustenta ele, ademais, que somente o direito do Estado requerente deve regularos casos de interrupção de prescrição.

Quanto aos efeitos da abertura da instrução criminal, na Áustria, estende-se o Procurador-Geral, em seu parecer, na demonstração de que ela equivale aonosso recebimento da denúncia, que interrompe a prescrição. Mais abaixo volta-remos a esse tema.

10. Sobibór e Treblinka (Pedido da Polônia). Sustenta a Polônia que,pelo seu direito (inclusive pelo Decreto de 22-4-64, sobre os crimes hitleristas daSegunda Grande Guerra), não ocorreu a prescrição.

Argumenta, porém, a defesa que o Brasil não editou lei especial sobre aprescrição nos crimes de guerra ou de genocídio, nem dispôs a respeito em trata-do, sendo, pois, aplicável o direito comum. Assim é, em face da própria Conven-ção sobre Genocídio, que ratificamos. Uma vez que não se praticou, na Polônia,qualquer ato ao qual, pela lei brasileira, se possa atribuir efeito interruptivo daprescrição, esta se consumou, inequivocamente.

O Procurador-Geral manifestou-se de acordo com a defesa, quanto a essaprescrição, em face da lei brasileira (20 anos). Ainda — diz ele — que se atribu-ísse efeito interruptivo a depoimentos prestados contra Stangl, perante o Juiz deinstrução do Tribunal polonês de Sielce, em 9-10-45 e em 3-12-45, o prazoprescricional ter-se-ia completado em 3-12-65.

11. Treblinka (Pedido da Alemanha). O memorial da Alemanha e o pare-cer do Ministro Nelson Hungria argumentam longamente no sentido de que aacusação do Ministério Público, apresentada em 3-5-60, e a sua aceitação, no diaseguinte, pelo Juiz de instrução de Düsseldorf, equivale, no nosso direito, ao ofe-recimento e recebimento da denúncia, com efeito interruptivo da prescrição. PeloCódigo alemão, por outro lado, é indiscutível esse efeito, pois ele se contenta (§ 68)com “qualquer ato do juiz dirigido contra o acusado em razão do crime cometido”.

O Ministério Público assim se expressara: “Acuso os acima citados deterem eliminado seres humanos (...)”, etc. A esse ato — diz o Ministro NelsonHungria — o art.170 do Código processual alemão chama Antrag. Elecorresponde à denúncia (ou aditamento à denúncia), por ser um pedido de aber-tura da instrução criminal, que é indeclinável nos processos do júri, em cuja com-petência se inclui o homicídio. Ao ato de acusação posterior (a Anklageschrift),

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previsto ali para tais processos, o que se assemelha em nosso direito não é adenúncia, mas o libelo acusatório.

Na mesma linha, acentua o memorial da Alemanha que o ato de iniciativada ação penal, equiparável à denúncia do direito brasileiro, assume, na Alemanha,ou a forma de “requerimento de instrução” do processo, ou a forma de “acusa-ção” apresentada ao Tribunal. A primeira forma — o requerimento da instruçãoprévia — é obrigatória em se tratando de homicídio, que é da competência do júri(Lei de Organização Judiciária, § 80; Código Processual, §§ 170 e 178). Foi oque se verificou no caso de Stangl.

Em sentido coincidente desenvolve-se o parecer do Professor HaroldoValadão, estabelecendo paralelo entre o nosso processo do júri, que tem denún-cia e libelo, e o processo por homicídio perante o júri alemão, que tem,correspondentemente, o Antrag (ou a Anzeige) e a Anklageschrift (Ext 274, fls.224 ss). Essa mesma argumentação foi por ele deduzida, no pedido da Áustria,em relação aos crimes de Hartheim (Ext 272, v. 3, fls. 874 ss).

A defesa também discute esse problema extensamente. Observa que, no di-reito brasileiro, o despacho de recebimento da denúncia — que interrompe a prescri-ção — é “ato rigorosamente decisório, ou de verdadeira jurisdição”. Entretan-to, o ato praticado pelo Juiz de Düsseldorf, estendendo a instrução criminal aStangl, a pedido do MP, tem caráter simplesmente ordinatório. Se fossedecisório, teria sido intitulado Urteil, mas foi oficialmente denominado Beschluss(decreto). Esse vocábulo, do mesmo modo que Verfügung (ordem), não traduz oexercício de verdadeira jurisdição.

Socorre-se a defesa, neste passo, do comentário de Fernand Daguin (Codede Proc. Pén. Allem., 1884, p. 25, nota 1). Segundo seu ensinamento, o vocábuloalemão designativo das decisões em sentido genérico é Entscheidung. Para adecisão que encerra os debates em primeira instância, ou que é proferida emgrau de recurso ou revisão, usa-se Urteil. As decisões que determinam medidasde instrução, ou regulam a marcha do processo, ou deixam de receber um recur-so, têm o nome de decreto (Beschluss), ou ordem (Verfügung), sendo tomadasgeralmente por juiz singular (Mem., pp. 40-41).

O Professor Haroldo Valadão observa, entretanto, que a palavra decisão,na citada passagem de Daguin, compreende aquelas três formas de atos judiciais,identificando-os a todos como atos de jurisdição. E contrapõe à defesa outroexcerto do mesmo autor (ob. cit., p. 103), segundo o qual, através de uma ordem,ou ordennance (portanto, Beschluss ou Verfügung), é que o juiz, considerandoadmissíveis as conclusões apresentadas pelo Ministério Público, determina aabertura da instrução. Equivale, pois, esse ato, indiscutivelmente, ao nosso rece-bimento da denúncia, com efeito interruptivo da prescrição.

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Discute, finalmente, a Alemanha, em seu memorial, o problema do obstáculoà ação da Justiça, ao qual atribui efeito interruptivo da prescrição. Pelas circunstân-cias do domínio nazista e da guerra, finda a qual se instalaram tribunais internacio-nais na Europa, os tribunais alemães, somente quando os aliados reconheceram aLei Fundamental da República Federal da Alemanha, em 8-5-1949, é que adquiri-ram, além de sua liberdade, jurisdição plena para julgar crimes cometidos contravítimas estrangeiras, como é o caso de Stangl. Por mais esse motivo, não estariaprescrita a ação penal contra ele instaurada na Alemanha em maio de 1960.

12. Sobibór e Treblinka (Pedido da Áustria). O que se discute, nos au-tos, quanto ao pedido da Áustria, é se a ordem emanada do Tribunal de Viena, em21-3-62, interrompeu a prescrição, consoante o critério do direito brasileiro; emoutras palavras, se aquele ato é comparável, para tal efeito, ao início da instruçãocriminal, isto é, ao nosso despacho de recebimento da denúncia.

O Procurador-Geral responde afirmativamente, pois é indispensável adap-tar, por via de interpretação, as peculiaridades processuais do Estado requerentee do Estado requerido. A questionada decisão judicial fora expedida com funda-mento nos §§ 134 e 135, inciso 3, do Código austríaco. Era, pois, uma “ordem deperseguição” (Nacheile), com a qual se averiguaria o paradeiro do acusado, paraa devida persecutio criminis. Era um ato básico da instrução criminal, e o direitobrasileiro, para ter a prescrição como interrompida, se satisfaz com o início dainstrução criminal (Ext 272, v. 3, fl. 876).

O memorial da Áustria chega à mesma conclusão, mas por outro caminho.Sustenta que as causas de interrupção da prescrição devem regular-se, tão-somente,pelo direito do país em que elas se verifiquem. Sob esse aspecto, a lei austríacatem eficácia no Brasil.

Pela referida ordem do Tribunal de Viena, Stangl foi citado por edital, eisso bastava para interromper a prescrição, consoante o § 227 do Código Penalda Áustria: ele menciona, expressamente, “a perseguição do indiciado ou a suaprocura através de editais”. Em 16-3-66, verificou-se nova interrupção do prazoprescricional, com a ordem judicial de prisão.

A defesa, entretanto, sustenta a nenhuma eficácia, quanto à interrupção daprescrição, daquela ordem de 1962, do Tribunal de Viena, baixada com funda-mento no § 413 do Código processual da Áustria, que se refere ao procedimentocontra desconhecidos, ausentes ou fugitivos.

Visava aquela ordem exclusivamente à determinação preliminar da mora-da do indiciado. Não pode, pois, ser equiparada ao nosso recebimento da denún-cia, nem é ato de abertura da instrução. Não é por outra razão — diz a defesa —que se lhe seguiram, de 1963 a 1965, simples requisitórios informativos aos tribu-

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nais de outros países. Somente em 16-3-66 é que o Tribunal de Viena emitiuordem de prisão contra Stangl, e a abertura propriamente da instrução preparató-ria só foi determinada mais tarde, em 15-2-67. Consumou-se, pois, a prescrição,pelos critérios do direito brasileiro, no que toca ao procedimento penal da Áustriapelos crimes de Sobibór e Treblinka.

O memorial da Alemanha, ao discutir o problema da preferência, tambémchega a essa conclusão, pois a ordem do Tribunal de Viena — simples “mandadode convocação de Franz Stangl, para determinação preliminar de sua morada” —não tem, pelo direito brasileiro, o efeito interruptivo da prescrição que lhe atribuia lei austríaca.

e) Concurso de preferência

O Procurador-Geral, como consta do sumário anterior, opinou pela impro-cedência do pedido da Polônia, com fundamento em prescrição, e pela legalidadee procedência dos pedidos da Alemanha (Treblinka) e da Áutria (Hartheim,Sobibór e Treblinka). Deixou de se manifestar sobre a preferência (o que fariaem sessão, oralmente), pois a matéria poderia ficar prejudicada pela decisão doTribunal (Ext 272, v. 3, fl. 852).

O memorial da Alemanha, entretanto, cuida do problema, confrontando oseu pedido com o da Áustria, sem examinar o da Polônia. Tendo em vista oscritérios da lei (art. 6º), a saber, territorialidade, gravidade da infração, precedên-cia do pedido, nacionalidade, domicílio, argumenta que a preferência cabe à Ale-manha, pelo critério da gravidade da infração e pelo da territorialidade.

1. Pela gravidade da infração (art. 6º, § 1º, a). A posição de Stangl,quanto a Hartheim, seria de mera cumplicidade; em Treblinka, era co-autor, emposição dirigente e atuante. A pretendida motivação em Hartheim (eutanásia)poderia conduzir ao homicídio privilegiado, o que não ocorre em Treblinka (“ex-termínio de um povo, por razões torpes”). O número de vítimas, que o nossoCódigo de Processo Penal leva em conta (art. 78, II, b), foi incomparavelmentemais alto em Treblinka. A maior gravidade dos crimes de Treblinka já resulta doconfronto entre os julgamentos proferidos em Linz (Hartheim), com penas leves,e em Düsseldorf (Treblinka e Sobibór), com penas pesadas (extrato anexo aomemorial).

Nesse confronto, como se vê, a Alemanha exclui o pedido da Áustria quantoa Sobibór e Treblinka: a) porque a Áustria não transcreveu o texto legal em quefunda sua competência; b) porque o princípio da nacionalidade ativa operaria emfavor da Alemanha, e não da Áustria, já que Stangl era alemão ao tempo doscrimes; c) porque não se interrompeu a prescrição na Áustria, já que, em face dodireito brasileiro, é ineficaz o ato que ali teria esse efeito, ao passo que a interrup-ção perante a Justiça alemã é indiscutível.

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2. Pelo princípio da territorialidade (art. 6º, caput). O território em quese cometeram os crimes, na Polônia, estava, ao tempo, sujeito à soberania alemã.Além disso, a infração foi planejada e parcialmente executada em território ale-mão, de onde partiam as diretivas, o pessoal, etc., e onde atuavam pessoas emconcurso com os executores dos crimes.

f) Prisão provisória

O Ministro da Justiça, em ofício de 6-3-67, comunicou ao Tribunal haverordenado a prisão provisória do extraditando, a pedido da Áustria (HC 44.074, fl.13). Ao encaminhar, mais tarde, os pedidos da Alemanha e da Polônia (Of. de 18-3-67), observou que deixara de providenciar a prisão, em tais casos, porque oextraditando já se encontrava detido, à disposição do Tribunal (Ext 273, fl. 2).Entretanto, S. Exa., em ofício de 28 de abril, considerando que naquela dataterminaria o prazo de 60 dias, além do qual a prisão não poderia subsistir conso-ante nossa jurisprudência, comunicou que determinara continuasse o extraditan-do detido, à disposição do Tribunal (Ext 272, v. 3, fl. 836).

É o relatório, que deixou de ser lido em sessão por ter sido distribuído,antecipadamente, aos Srs. Ministros, Procurador-Geral e advogados.

SUSTENTAÇÃO DE PARECER

O Sr. Procurador-Geral da República (Professor Haroldo Valladão):Exmo. Sr. Presidente e Srs. Ministros do Egrégio Supremo Tribunal Federal, sãotrês os pedidos de extradição: um, da Áustria, onde a pena não é de prisão perpé-tua (era de morte, passou para prisão perpétua e atualmente, conforme constados autos, por uma lei recente é no máximo de 20 anos; está nos autos o textolegal); o segundo é o da Polônia, onde a pena é de morte; e o terceiro é o daAlemanha, onde a pena é de prisão perpétua com trabalhos forçados.

Antes de examinar, rapidamente, um por um, qual fiz no meu parecer escrito,desejo responder a algumas objeções que acabam de ser aqui apresentadas.

Primeiramente, quanto ao pedido de extradição da Polônia, porque quantoao da Áustria houve plena concordância do seu ilustre advogado com a opiniãoda Procuradoria-Geral.

Na argumentação do ilustre advogado da Polônia, S. Exa. disse, após citara Declaração de Chaputelpeck, que a Convenção de Genocídio das Nações Uni-das, ratificada pelo Brasil e pela Polônia, não se referira à extradição. No meuparecer, citei-a, cláusula VII. A Declaração de Chaputelpeck não é Tratado nemConvenção. A Convenção que está em vigor entre o Brasil e a Polônia é a antesreferida Convenção de Genocídio e diz o seguinte, no caput da cláusula 7ª: “Ogenocídio e os outros atos enumerados no art. 3º não serão considerados crimes

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políticos para efeito de extradição”, aditando na alínea: “As partes contratantesse comprometem a conceder a extradição de acordo com sua legislação e comos tratados em vigor”. Assim remete, expressamente, à legislação brasileirasobre extradição. E, segundo nossa lei, está prescrito o pedido da Polônia, qualdemonstramos em nosso parecer. Foi, data venia, equívoco do ilustre colega.

Mostrei, no meu parecer escrito, que na Polônia não se abriu a instruçãocriminal contra Stangl. Mesmo que se quisesse considerar dois depoimentosprestados em 1945, na Polônia, em que não há mesmo referência a Stangl, massim a outros, como atos de instrução criminal, a prescrição do ponto de vista da leibrasileira ter-se-ia dado em 1965, pois, nos termos do art. 117, § 2º, do CódigoPenal, a prescrição, interrompida, recomeça a correr pelo mesmo prazo. Deixeiisso bem claro em meu parecer, e, como não foi contestado, vou passar aosargumentos da defesa.

O eminente advogado da defesa começou por uma questão constitucional.É a primeira vez que tal questão se levanta nesta Corte, embora ela já tivesseconcedido numerosas extradições à Alemanha e a outros países que têm prisãoperpétua. Disse S. Exa. que o problema da prisão perpétua se levanta quanto àÁustria e quanto à Alemanha. Quanto à Áustria, não! Está aqui a lei austríacaque suprimiu a prisão perpétua e deu a pena de 20 anos. Portanto, o problema daprisão perpétua seria apenas quanto ao pedido da Alemanha.

O eminente advogado de defesa procurou condicionar a exigência da Leide Extradição, art. 12, letra c, quanto à comutação da pena, aos textos constitu-cionais, que proíbem certas penas. Eu procurei mostrar, usando a palavra damoda, a desvinculação entre o texto da Lei de Extradição, que impõe a comuta-ção de determinadas penas, e o texto da Constituição, que veda certas penas.Mostrei que, no tempo do Império, não se proibia a pena de morte. No entanto, oBrasil pactuou a comutação da pena de morte em todos os Tratados então con-cluídos. Veio a Constituição de 1891 e aboliu as penas de morte, galés ebanimento judicial. E a lei de extradição, então promulgada, 2.416 de 1911, sóimpôs a comutação da pena de morte e, indo adiante, também a impôs para apena corporal, chibatada, etc. Se houve um ou outro acórdão em que se conside-rava que, na pena de degredo, haveria pena corporal, a jurisprudência afinal aexcluiu.

Aquela desvinculação caracterizou-se, para o caso, desde a Constituiçãode 1934. O eminente advogado não atentou para isso. A Constituição de 1934declarou o seguinte, art. 113, n. 29: “Não haverá pena de morte, banimento, con-fisco ou de caráter perpétuo.” Portanto, desde 1934 não há pena de caráterperpétuo.

E jamais se alegou — como S. Exa. fez por escrito e, agora, na tribuna —que era preciso pôr o artigo 12, c, da Lei de Extradição de acordo com a

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Constituição. Ora, a proibição da pena perpétua desde 1934 nunca determinou nadoutrina e na jurisprudência deste Tribunal, quer na vigência da Lei 2.416, quer navigência do atual Decreto-Lei 394, dúvidas na matéria. O Decreto-Lei n. 394, oque fez? Obrigou à comutação apenas da pena de morte. Não se refere à prisãoperpétua. Portanto, vamos dizer, de 1934 até hoje, há 33 anos, o Supremo Tribunalaplica quer a Lei 2.416, quer o Decreto-Lei 394, sem incluir aí, como pretende,agora, o eminente colega, nesse novo texto, a prisão perpétua. E deveria, então,incluir também essas outras penas que salientei.

A afirmação ad majorem que fiz em meu parecer está ligada a outrafrase. Eu disse o seguinte: os Estados juntaram declarações, pelas quais se obri-gavam, a Polônia a comutar a pena de morte na pena inferior e a Alemanha:“estamos prontos a comutar, mas informamos que não temos nem pena de mortenem penas corporais” e a Áustria a mesma coisa. Ora, se esses Estados apre-sentaram essas declarações, baseados na nossa lei, e nós, na hora do julgamento,vamos mudar a lei e a jurisprudência, incluindo outro caso de comutação, seriasurpresa para os Estados que tinham apresentado os seus compromissos.

Alega-se também — e, como a defesa não insistiu, por este ponto passo deleve — que esses compromissos deveriam ser contemporâneos ao pedido. Não éexato. No art. 12 do Decreto-Lei 394, regulando o processo, após o julgamentoda extradição, está dito que “a entrega não será efetuada sem que o Estadorequerente assuma os compromissos seguintes: (...) d) comutar-se na prisão apena de morte ou corporal com que seja punida a infração”.

Nesse sentido há um voto magnífico do eminente Ministro Luiz Gallotti,mostrando que isso não seria dever do Tribunal ao julgar, mas, sim, do Governo,ao entregar o extraditando.

Entremos, agora, nos fatos. Aí o eminente advogado de defesa escreveu 4ou 5, ou 6 ou 8, ou 10 folhas para dizer que não havia indicação precisa, como diza lei, dos fatos, da data e do local, e cita até aquela célebre frase que o grande JoãoMendes Júnior vulgarizou: Quis? Quid? Ubi? Cur? Quemodo? Quando?, in-terrogações que me dei ao trabalho de responder, uma por uma, após citar asfolhas dos autos. Não há a menor dúvida. É completa a discriminação do crime:natureza, autoria, local, data, minuciosamente. Crimes de Treblinka, por exemplo,de agosto de 1942 a agosto de 1943. Onde? Em Treblinka. Como? Chegada doscondenados à morte, a preparação para o banho, a entrada na câmara de gás, aretirada dos cadáveres. Tudo descrito.

Diz S. Exa. que está em estilo jornalístico. Não posso admitir. São deci-sões fundamentadas de três Tribunais, e os eminentes Senhores Ministros podemler — e eu não vou ler agora — que está tudo precisado: a data, o local, a autoria,a co-autoria, com todo o rigor técnico-jurídico.

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Evidentemente, se diz que o crime é em massa, e nós vivemos a época damassa. Nessa técnica do crime em massa, não é possível perguntar, como o fezo eminente advogado de defesa: a que horas, dia da semana e do mês, exatamen-te, e qual o nome da vítima, Pedro ou João? E isso porque a morte foi às cente-nas, aos milhares, nas câmaras de gás.

Aquela referência ad majorem, que fiz, de que esses fatos de Treblinka jásão hoje objeto de livros, de revistas, de artigos de publicação no mundo inteiro, sóveio, assim para corroborar, o exame detido que fiz em cada um dos pedidos queexaminei, citando as folhas em que estavam descritos a data, e local e a naturezados fatos.

Compreendo o calor, muitas vezes mesmo excessivo, do eminente advogadode defesa.

A Procuradoria-Geral, entrando por dever de ofício num campo que é doeminente advogado, no processo criminal, apresentou uma construção jurídicaque, a seguir, o Ministro Nelson Hungria apoiou precisamente no seu parecer eque encontra toda a base no Direito brasileiro.

É a propósito da prescrição em face da lei brasileira.

O nosso Código Penal, art. 117, I, declara que interrompe a prescrição orecebimento da denúncia ou da queixa e, pois, o ato pelo qual o juiz recebe adenúncia ou a queixa.

Ora, os processos criminais austríaco, alemão e polonês são processossemelhantes ao nosso antigo processo criminal ordinário do tempo do Império eque vigorou na Justiça Federal até 1937 e em diversos Estados durante a Repú-blica até os seus Códigos. Eu fui Procurador Criminal da República em 1933. Oeminente Ministro Luiz Gallotti lembra-se desse regime processual. E vigorou noDistrito Federal até 1923 para os Crimes de Varas, em que havia sempre a pro-núncia e a impronúncia. Só nos crimes secundários, no tempo do Império, noscrimes policiais, se declarava que não havia sumário de culpa, que não haviapronúncia ou impronúncia, chegando, depois, ao julgamento.

Ainda há dias, o Ministro Nelson Hungria dizia-me: “Eu, como promotorem Minas, 1913/1914, fiz muitos libelos contra ladrões de cavalos, porque tal crime,de processo ordinário, tinha pronúncia e impronúncia”. Depois é que os novos Có-digos tiraram do processo comum certos crimes e deixaram no processo clássicoapenas o de júri.

De forma que, na Alemanha e na Áustria (e estão aqui os seus códigos deinstrução criminal) separam-se, categoricamente, a instrução criminal prévia e ojulgamento.

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Mas no Brasil é a mesma coisa. Desculpe-me entrar em sua área, mas éum dever do ofício. Veja V. Exa. o Código de Processo Penal: “Livro II — DosProcessos em Espécie — Título I: Do Processo Comum”. É o processo comumque nós estamos estudando, não é o processo de falência ou o de contravençõesou outro especial que V. Exa. veio, agora, referir. Os processos que estão correndona Áustria são típicos do processo comum. Mas, continuando a leitura do nossoCódigo de Processo Penal:

“Do processo comum: Capítulo I — Da instrução criminal”. Como seabre a instrução criminal? Eis o primeiro artigo desse Capítulo, o de n. 394: “Ojuiz, ao receber a queixa, ou denúncia, designará dia e hora para o interrogatório,ordenando a citação do réu e a notificação do Ministério Público, e, se for caso,do querelante ou do assistente”. Eis aí: o recebimento da denúncia é, em nossodireito, a abertura da instrução criminal? Se não é abertura da instrução crimi-nal, não sei o que é!

Agora, nos outros capítulos do mesmo título, Do Processo Comum, nosCapítulos II e III, é que vem o julgamento. Aí é outra coisa. “II. Do processodos crimes da competência do júri”, e, depois, “III. Do processo e do julgamentodos crimes da competência do juiz singular”.

Portanto, nós, no Brasil, temos também a instrução criminal, que se abrecom a denúncia.

E veja o eminente colega qual a diferença?

É que, no processo do tempo do Império (é a dimensão histórica), na maioriados crimes, a denúncia era mais simples, mas era uma denúncia; o promotor davaa denúncia e se referia ao fato, à autoria, etc. Eu fiz isso muitas vezes comoProcurador Criminal, no Rio, 1933/34. Pedia com a denúncia a abertura do sumá-rio da culpa.

Fazia-se o sumário e, no fim do sumário, o Juiz procedia o interrogatório doréu, que podia juntar documentos em três dias. E a jurisprudência entendeu que,com essa juntada de documentos, era possível a apresentação de defesa prévia e,a seguir, o Juiz pronunciava ou não. Depois, então, é que vinha o julgamento, quecomeçava pelo libelo-acusatório. Aí surgia o contraditório, com a contestação doréu.

Ora, este processo é o seguido na Alemanha e na Áustria.

Posso, rapidamente, mostrar, aqui, por exemplo, o Código de InstruçãoCriminal da Áustria.

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“Capítulo X. Da Instrução dos crimes e delitos, em geral.

Art. 91. La mise en accusation (ch. XVI) doit être précédée d’uneinstruction lorsqu’il s’agit d’un crime dont la cour d’assises doit connaítre,ou lorsque la poursuite est dirigée contre un absent. Dans tous les autrescas, le ministère public ou, lorsqu’il y a lieu, l’accusateur privé, apprécie s’ily a lieu ou non de requérir une instruction. L’instruction a pour but desoumettre à un examen préslable l’inculpation dont une personne estl’objet et de recueillir les éclaireissements nécessaires pour permettremotiver soit la suspension de la procédure, soit la mise en accusation et lerenvoi devant le juge du fond.

Art. 92. Le juge d’instruction ne doit commencer une instructionqu’à raison d’un acte punissable, et seulement contre les personnes à l’égard desquelles il a été requis d’instruire par un accusateur autorisé.Lorsque le ministère public requiert qu’une instruction soit commencée, iltransmet au juge d’instruction la dénonciation, les moyens de preuve qu’il arecueillis et les constatations auxquelles il a été procédé. Si le juged’instruction éprouve des doutes sur le point de savoir a’sil y a lieu de fairedroit à la réquisition d’ instruire, il provoque sur ce point une décision de lachambre du conseil. Il prend part à la délibération, mais non à la décision.Le ministère public doit être averti à l’avance du délibéré afin qu’il puisseexposer son opinion oralement ou par écrit.”

Essa denúncia simples é a Anseig na Áustria e a Antrag na Alemanha.

Com essa denúncia do Promotor, o Juiz defere a abertura da instrução e adirige, segundo se vê dos artigos seguintes.

No fim dessa instrução criminal prévia é que aparece a diferença de nossoprocesso clássico: se o Promotor acha que não tem base para continuar, ele pedeao Juiz a suspensão do processo, o que, em verdade, equivale, se o magistradoaceita, a uma impronúncia. Se o Promotor acha que tem base, então apresenta adenúncia articulada, a Anklageschrift, o ato de acusação, o libelo acusatóriocom que se passa à fase do julgamento com os debates (Hauptverhandlung).

Está aí o processo, na Áustria e na Alemanha.

Já demonstramos, com base em nosso Código de Processo Penal, que, seo que interrompe a prescrição é o recebimento da denúncia, a conclusão inegávelserá de que a abertura da instrução criminal interrompe a prescrição.

O que o Direito brasileiro exige é que se tenha aberto a instrução criminal,como está nos arts. 91 e 92 do citado Código da Áustria, e nos correspondentesarts. 176, 177 e seguintes.

Aberta assim, como foi, com a denúncia do Promotor, a instrução criminal,ficou interrompida a prescrição na Áustria e na Alemanha.

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Dir-se-á, e também disse o ilustre advogado: mas quanto ao ausente?

Quanto ao ausente é outro caso, pode estar sujeito à instrução criminalmas não pode ser julgado qual se vê dos arts. 412 e 421 do Código da Áustria e319 e 327 do Código da Alemanha.

E o que se diz no Brasil? Diz o nosso Código de Processo Penal que oprocesso não prosseguirá até que o réu seja intimado da sentença, art. 413. Nãoé possível colocar no Júri um boneco na cadeira do réu.

Na Áustria e na Alemanha, como no Código Criminal do Império, do Bra-sil, como hoje, no nosso Código de Processo Penal, para os crimes de Júri, háuma denúncia e um libelo.

O que interrompe a prescrição?

Diz S. Exa., pelo que entendi, que seria o libelo e não a denúncia.

Para mim, sempre a denúncia interrompeu a prescrição. No Brasil, mesmono regime do Código Criminal do Império, nunca uma denúncia, porque seria umasimples denúncia e não um libelo articulado, deixou de interromper a prescrição.

E se interrompe aqui, como não irá interromper na Alemanha e na Áustria?

Portanto, essa construção que fizemos, com base sólida dos textos, datavenia do eminente advogado e processualista, esclarece, definitivamente, a inter-rupção da prescrição.

Tomei, no assunto, as dimensões histórica e comparativa. Com tais dimensõesmuitas coisas se iluminam e dúvidas se espairecem.

Há, ainda, um ponto: S. Exa. diz que teria citado o art. 135, item III, doCódigo Penal austríaco, que não consta do processo.

A menção a esse texto consta do relatório feito pelo eminente MinistroVictor Nunes Leal e, ainda, das folhas 12 do processo em alemão, Nacheile, §§134, 135, III, do Código Penal, e, a seguir, na tradução portuguesa à fl. 25, nosmesmos termos: Resolução do Tribunal de Viena, de 21 de março de 1962, porcausa de crime de homicídio conforme os arts. 134, 135, III, da Lei Penal.

O eminente colega equivocou-se, talvez, apaixonado, porque critiquei, como maior respeito e com toda a consideração que merece, a desclassificação dodireito que S. Exa. quis fazer para efeito da prescrição.

Repito que está também no relatório do eminente Ministro Relator a cita-ção desse art. 135, III, na decisão de 21 de março de 1962, do Tribunal deViena.

E, no meu parecer escrito, citei tais folhas onde há referência àquele textolegal, ao art. 135, n. 3.

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O Sr. Xavier de Albuquerque (Advogado de Defesa): São fatos deTreblinka, eminente Sr. Procurador. Eu me referi a Hartheim.

O Sr. Procurador-Geral da República (Professor Haroldo Valladão): Essarestrição, agora, não altera o fato de constar dos autos a referência ao art. 135, 3,do Código Penal.

No julgamento de Hartheim, quando foi na hora do julgamento, o Tribunaldeixou de julgar Franz Stangl, porque tinha fugido. Mandou, então, que se expe-disse uma Nacheile, semelhante, de acordo com o art. 416, do Código Penal.

O ilustre colega negou referência ao art. 135, n. 3, porque S. Exa. quisdesclassificar o crime, para descobrir uma prescrição especial para Hartheim.

Mas S. Exa. não podia impedir argumentasse eu aí, também, com aqueletexto, referido e transcrito na íntegra nos autos, fls. 18/16 e 26/28 e 40/44 e 55/58,§§ 134, 135, n. 3, e 136.

O Código Penal alemão tem o art. 134, sobre o homicídio em geral.Depois, no art. 135, n. 1 a 3, tem o homicídio qualificado, no n. 4, o homicídioordinário, no art. 136, as penas do homicídio consumado, e, no art. 137,certas penas do homicídio ordinário, quando a ação do co-autor, § 5, não foiativa, foi afastada.

S. Exa. achou que a denúncia, tendo sido feita pelo art. 136, que comporta oart. 135, III, e não comporta o art. 137, por aí, ela estava errada; que se deviaaplicar o art. 137, porque se falava, antes, em §§ 5º e 134.

Mostramos que o § 134 é gênero que comporta o § 135, o 136 e o 137,articulando o Promotor pelo § 136, que comportava o 135, § 3º. E, mais, que o §5º do Código Penal alemão é co-autoria, no sentido clássico, de pena igual. Ospróprios comentadores, que S. Exa. conhece, dizem que a pena é igual.

O pleiteado art. 137 diz que, se essa co-autoria não foi ativa, se correspondeua atos afastados, nesse caso, tratando-se de homicídio ordinário, gemeinmurder, apena é menor. Daí partiu a defesa para a prescrição menor, de dez anos. Mas,evidentemente, tal desclassificação era incabível, e, segundo disse, para a prescriçãoda ação penal, a pena é em abstrato.

Aliás, do ponto de vista da Áustria, o assunto está resolvido, porque aÁustria disse que não cabe prescrição contra réu fugitivo. Quanto à Áustria, doponto de vista da lei austríaca, ela é radical neste sentido, em texto, aliás, citadono trabalho do Professor Herzog, art. 229, c.

Eis o texto:

“Toutefois, le bénéfice de la prescription ne sera acquis qu’à celui:

a) qui ne tire plus profit du crime;

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b) qui, dans la mesure où la mature du crime le permet, a fourniréparation dans la limite de de ses possibilités;

c) qui, ne s’est pas enfui hors du territoire;

d) qui n’a plus commis de crime dans le délai fixé pour laprescription.”

Portanto, não havia mais questão, do ponto de vista da lei austríaca. Agora,do ponto de vista da lei brasileira, procurei mostrar, e vou demonstrar daqui apouco, que houve a abertura de instrução criminal.

Já respondi às afirmativas do meu ilustre colega e, agora, reexaminarei,rapidamente, os pedidos da Áustria e da Alemanha.

A prescrição, do ponto de vista da lei austríaca, já mostrei que não há. Aprescrição, na Áustria, é de vinte anos. E quanto a Hartheim, o processo iniciou-se em 1946 e 1947; houve interrogatório, houve vários atos da instrução criminale chegou a haver o libelo. Só não houve o julgamento, porque ele fugiu. O libelo éde 1948. Ele fugiu na véspera do julgamento.

Quanto a Treblinka, o que há é uma decisão do Tribunal de Viena.

Essa decisão o que faz?

É uma nacheile. Isso é em alemão. É uma tradução difícil em processobrasileiro, mas, a boa tradução deve ser “persecução judicial”. O Tribunal, saben-do que um réu cometeu um crime e fugiu, expede um ato de persecução criminal,baseado no qual qualquer autoridade judicial ou policial pode capturar o réu etrazê-lo ao Tribunal para o interrogatório e o sumário.

Sustentei que esse ato interrompeu a prescrição, quanto a Treblinka.

Por quê?

Porque esse ato, a nacheile, é um ato de instrução criminal.

E querem ver como é?

O ato está previsto no art. 416 do Código de Processo Criminal da Áustria.

Em primeiro lugar, o ato é de quem?

É do Tribunal de Viena, assinado pelo respectivo Juiz de Instrução. Não éum ato de uma autoridade policial. É um ato do Tribunal. Esse ato se baseia noart. 146 e o cita.

Para Hartheim, quando se interrompeu o julgamento, mandou-se expedircarta semelhante, com base no art. 416.

O que diz o art. 416 do Código de Processo Criminal austríaco?

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“Art. 416. Des lettres patentes d’arrestation ne seront délivréesque contre les individus absents ou en fuite dont la résidence serainconnue et qui serent soupçonnés gravement d’un crime. En règlegénérale, la délivrance de ces lettres sera faite par la chambre du conseil;dans les cas urgents, par le juge d’instruction.

Il y aura lieu aussi à la délivrance de lettres patentes d’arrestation(Steck – briefe), quand un individu emprisonné à raison d’un crimes’échappera de sa prison, étant en état de prévention ou condamné (...)”

Em regra geral, a expedição dessa carta é feita pela Câmara do Conselho.Nos casos urgentes, qual se viu, pelo Juiz de instrução.

Como o advogado sabe, melhor do que eu, o Tribunal criminal é coletivo, ehá as diversas competências, inclusive da Câmara do Conselho do Tribunal. Quan-do o caso é mais grave e urgente, o próprio Juiz de instrução expede a carta.

Portanto, esse documento, a meu ver, interrompeu a prescrição. Dir-se-á:mas não se juntou a denúncia do Promotor, pedindo a abertura da instrução. Mastambém não foi feito isso ao processo de Hartheim.

A instrução estava aberta. Se não estivesse, como o Juiz de instruçãopoderia expedir a carta? É um ato do Juiz de instrução.

Como o réu fugiu em 1948, e o ato é de 1962, qual a conclusão a quecheguei? É que a instrução foi aberta antes de 1962, porque é contra o fugitivo.Se foi antes de 1962, está interrompida a prescrição, pois é de vinte anos.

É ou não ato de instrução criminal? Não se pode dizer que seria prisãopreventiva decretada em inquérito policial, pois, na Áustria inexiste inquérito po-licial, e a prisão é sempre durante a instrução.

O que temos em vista é um ato do Juiz de instrução: é a abertura dainstrução criminal e foi o que houve, e a interrupção se deu em 1962.

Antes de sair do pedido da Áustria, devo dizer que a nossa lei de extradiçãodeclara que, para ser concedida a extradição, é preciso que o crime se tenha passa-do no território do Estado que a pede ou seja punível de acordo com suas leis.

O crime de Hartheim passou-se na Áustria. Portanto, quanto a Hartheim,não há dúvida alguma.

Quanto ao de Treblinka, não se passou na Áustria, passou-se na Polônia.Mas o Código Penal da Áustria diz, no § 36, o que está no art. 5º, II, a, do nossoCódigo Penal. Ele diz que a Áustria não dá a extradição de austríaco, mas pro-cessa, julga e pune qualquer austríaco que pratique um crime no estrangeiro. Foibaseada neste artigo que a Áustria pediu a extradição. Portanto, é o princípio dapersonalidade ativa, pois o extraditando é austríaco, ao lado do outro, daterritorialidade.

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Quanto ao pedido da Alemanha, o processo está muito bem organizado, e oGoverno alemão diz o seguinte (vou argumentar com a nota verbal do Governoalemão, não vou argumentar com o memorial do ilustre advogado): “Presumida-mente austríaco”. Não diz que ele é alemão. Está aqui, na nota verbal do Governoalemão.

Outra coisa: o Juiz alemão pediu a extradição, baseado na personalidadeativa do art. 4º, § 3º, n. 1, do Código alemão.

O que diz o art. 4º, § 3º, n. 1, do Código Penal alemão?

“§ 3º Indépendamment du droit en vigueur au lieu de l’infraction, ledroit pénal allemand s’applique également aux infractions commises àl’étranger par un étranger, ènumérées ci-aprés:

1. celles commises par l’étranger en sa qualité de titulaired’une fonction publique allemande, ou celles dirigées contre untitulaire d’une telle fonction dans l’exercice de cette fonction”. LesCodes Pénaux Européens, vol. I, p. 6 (Centre Français de DroitComparé, Paris).

Aí é que se baseou o Tribunal alemão.

O Tribunal alemão pede a extradição, alegando que Franz Paul Stangl éestrangeiro — não é alemão — que cometeu um crime no estrangeiro, emTreblinka, mas é um funcionário ou um soldado alemão.

A Embaixada Alemã, na nota verbal, alega, não com muita ênfase, que ocrime, sendo cometido em Treblinka, e sendo Treblinka território ocupado pelosalemães durante a guerra, de acordo com a Convenção da Haia sobre a guerraterrestre, o crime teria sido cometido na Alemanha.

Data venia, na verdade, não tem o menor fundamento jurídico essa afir-mação. Constestei-a em meu parecer, e vou repetir, porque foi realegada peloilustre advogado.

Distingue-se, no Direito Internacional, a invasão, a ocupação e a anexação.

Mesmo no caso da anexação, se ela não perdura quando acaba a força, eo país ou território anexado volta ao seu antigo proprietário, nunca mais este outrovai aplicar aos fatos cometidos anteriormente uma lei estrangeira. Jamais.

Veja-se o absurdo da alegação: então, tudo o que se passou em Treblinkadurante a ocupação alemã, os nascimentos, os óbitos, os casamentos, os crimes,tudo é da competência da Alemanha?

Isso nem o Juiz alemão pediu, nem é possível sustentar, em Direito Inter-nacional. Nem vou citar autores, tão corrente a matéria.

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O próprio artigo da Convenção da Haia, que a Polônia não ratificou, dizque o exército de ocupação manterá as leis, salvo impedimento absoluto, sendoexpressa quanto à lei penal.

Tenho, a respeito, uma referência de alta relevância.

Encontrei caso interessantíssimo, fazendo um estudo em profundidade,através do clássico Ortolan, no seu Elements de Droit Penal, 2ª ed., Paris, 1859,n. 942. Ele cita este caso: um francês cometeu, em Barcelona, em 1811, umcrime, quando Barcelona era território ocupado pelas forças francesas. Fugiupara a França e lá foi processado em 1817. No Tribunal francês (o Procurador-Geral não era eu), o Procurador-Geral alegou que o crime fora cometido emterritório francês, porque Barcelona ocupada era território francês. Mas a Cortede Cassação da França desprezou, dizendo que território ocupado pela Françanão era território francês.

Nessa parte, temos vários autores: Paul Bernard, no livro fundamental,Traté Théorique et Pratique de l’Extradition, e os internacionalistas em geral,Sereni, Quadri, Accioly, Fiore. Cessada a ocupação, retornado o governo do Es-tado ocupado, nenhuma dúvida se admitirá quanto à competência para os crimesali cometidos durante a ocupação.

Então, a Alemanha só tem um título, o que acabei de dar, de punir, noestrangeiro, um estrangeiro: porque esse estrangeiro era funcionário público, erasoldado alemão.

Quanto à interrupção da prescrição na Alemanha, não há dúvida alguma: adenúncia está transcrita, creio, até no relatório do eminente Ministro Relator eestá junta aos autos, denúncia completa, e também o despacho do Juiz, receben-do e mandando expedir o mandado, para se iniciar a instrução, tudo em maio de1960, estando citados os artigos de lei, os fatos criminosos e da co-autoria, comprecisão.

Mas esta denúncia alemã foi para a abertura da instrução; futuramente,quando acabar a instrução, quando for para o julgamento, virá o libelo, aAnklageschrift.

Aqui, no Brasil, seria a mesma coisa para o crime de morte. Haveria adenúncia e depois o libelo.

As dúvidas que o ilustre advogado apresenta, vou refutá-las uma a uma.

A primeira: diz S. Exa. que o recebimento da denúncia, na Alemanha, é umabeschluss, decisão ordinatória, e não uma urteil, que é a sentença definitiva, final,no processo alemão, e cita o autor que comenta esse Código de Processo Penalalemão: Daguin.

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Mostramos, no parecer escrito com o mesmo Daguin, o contrário. Possoler, mas não quero tomar o tempo do Tribunal, pois ele esclarece que a beschlussé uma decisão, é um despacho igual aos nossos despachos judiciais. É uma deci-são do Tribunal. E a verfugung é do Juiz: são despachos de recebimento dadenúncia do nosso Direito, e cabe recurso de tais despachos. Isto é muito impor-tante: cabe ali até recurso do recebimento da denúncia.

O Código de Processo Penal da Alemanha prevê expressamente recursocontra a verfugung, o despacho que manda abrir a instrução, art. 179, decididopelo próprio Tribunal, superior ao Juiz de instrução. Portanto, é até um despachorecorrível.

Não sou mestre de Direito Processual, e creio que, no Brasil, do recebi-mento da denúncia não cabe recurso. Só o habeas corpus, que é o remédiosagrado, extraordinário. Mas, lá, cabe o recurso ordinário.

Diz S. Exa., ainda, que não há na Alemanha processo contra réu ausente.

Aqui, há uma grave confusão, data venia.

No Direito Penal Internacional há um prévio trabalho de indagação e deadaptação. Não podemos aplicar uma lei estrangeira sem adaptá-la, porque nãopodemos conjugar um verbo estrangeiro com o paradigma de um verbo brasileiro.Quando chegamos lá, temos que estar dentro daquela mesma técnica. É o proble-ma da adaptação do Direito Internacional Privado. É o direito de adaptação.

Diz S. Exa. que não há processo contra réu ausente na Alemanha. Masconsta, claramente, do Código de Processo Penal alemão o contrário.

Houve, data venia, uma confusão entre instrução e julgamento. Não hájulgamento, mas há instrução. Está claríssimo.

Vamos aos textos.

Eis o primeiro:

“Art. 319. Les débats ne pourront être ouverts contre un absentqu’autant que le fait qui formera l’objet de l’instruction ne devra entrainerque la peine de l’amende ou de la confiscation, queces peines puissentêtre prononcées séparément ou conjointement”. Code de ProcédurePénale Allemand, trad. Fernand Daguin, ed. MDCCCLXXXIV, p. 169(Imprimerie Nationale, Paris).

A palavra débats, em alemão hauptverhandlung, previstos nos §§ 225 eseguintes, corresponde ao nosso julgamento.

Ali no processo comum, qual no Brasil nos de júri, não há julgamento seo réu está ausente, salvo em pequenos delitos, com pena de multa ou confisco.

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Memória Jurisprudencial

Não há, pois, debates, julgamento. Mas há a instrução. É o que diz outrotexto:

Art. 327. Dans les cas autres que ceux prévus par l’article 319,les débats ne seront point ouverts contre un absent(2). La procédureintroduite contre l’absent aura uniquement pour but de conserverintactes les preuves, pour le cas où il comparaîtrait ultérieurement.” Op.cit., p. 172.

Portanto, quanto ao ausente, nos casos graves, de prisão, pode haver e háinstrução, não, porém, debates, julgamento.

De modo que houve uma confusão manifesta entre instrução e julgamento.

Nesse sentido foi claro Daguin em nota àquele texto:

“(2)Cette disposition n’est que la consácration du principe généralposé par le législateur allemand, principe en vertu duquel il ne peut êtreprocédé au jugement de l’accusé, lorsque celui-ci ne comparaîft pas.”

Igualmente no Brasil para o julgamento, no direito imperial, e hoje, para ojulgamento do Júri, é indispensável a presença do réu, Código de Processo Penal,art. 413.

Não sei se há mais algum assunto que ficou em branco, mas, antes depassar à prioridade, diremos, em síntese, que, na Áustria, não está prescrito, nempara Hartheim, onde o processo foi até o libelo e ele fugiu em 1948, nem paraTreblinka e Sobibor, porque, tendo havido ato do Juiz de instrução, em 21 demarço de 1962, determinando a prisão do réu, evidentemente, esse ato decorreude abertura de instrução criminal feita com denúncia antes, e após a fuga, em1948.

Na Alemanha, não está prescrita. A denúncia é de maio de 1960, imediata-mente recebida.

A Áustria é competente porque é o lugar da infração, e competente porqueestá punindo seu nacional que cometeu crime no estrangeiro.

A Alemanha só é competente porque está punindo, pelas suas leis, umestrangeiro que cometeu, no estrangeiro, um crime na qualidade de funcionárioda Alemanha.

Quanto à questão da falta de reciprocidade, o advogado de defesa fez,data venia, confusão no seu memorial e sobretudo na introdução ao memorial.

O assunto é simplíssimo.

No Direito brasileiro, no tempo do Império, a Extradição era ato adminis-trativo, quer dizer, o Judiciário não intervinha. O Governo prendia e entregava.

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Regia-se por quê?

Regia-se pela Circular do Barão de Cairu, de 1847, falando em promessade reciprocidade, e pelos Tratados.

Veio a República, e que fez o eminente Pires e Albuquerque, Juiz da 2ªVara do Rio de Janeiro?

Vieram pedidos de extradição sem Tratado, e ele disse: “Sem tratado, nãose dá, porque não há lei.”

Já estávamos num regime em que o Judiciário controla tudo. Logo, o Judi-ciário também controla a extradição.

Disse mais Pires e Albuquerque: “A promessa de reciprocidade não vale,pois é, de fato, um tratado, que depende de aprovação pelo Congresso”.

Acompanhando o Supremo Tribunal a Pires e Albuquerque, denegandoefeito às promessas de reciprocidade, só reconhecendo a extradição mediantetratados, foi preciso fazer uma lei de extradição.

Essa lei, 2.416, de 1911, não falou em reciprocidade, e passamos, assim, adar extradição independente das referidas promessas de reciprocidade. Só se aexigiu num caso, art. 1º, para a extradição de brasileiro.

O projeto daquela lei, segundo esclareceu Mendes Pimentel, visou: “dotaro país de uma lei reguladora da extradição, consoante a qual celebre o governobrasileiro tratados de remissio deliquentium e atenda a solicitações de países nãoligados ao nosso por convenças internacionais”. (Rev. Forense, IV/77).

Assim a extradição passaria a decorrer do tratado e da lei, superadas aspromessas de reciprocidade.

E assim o entenderam todos os autores brasileiros que apreciaram, emobras especializadas, a Lei 2.416 de 1911. E os leio, Arthur Briggs, 1919, p. 12;Coelho Rodrigues, I, 1927, 132; Bento de Faria, 1930, p. 28. E, ainda o SupremoTribunal Federal no acórdão leader do saudoso e eminente Juiz e especialista,Rodrigo Octavio: “A falta de tratado não é, entretanto, obstáculo ao presentepedido de extradição, em face dos princípios liberais da nossa lei, que autoriza aextradição independentemente de reciprocidade só exigida quanto à extradiçãode nacionais (art. 1º – Rev. de Direito 92/75, e H. Valladão, Estudos de DIP, p.669, Bolet. Socied. Bras. Dir. Internac. 7/107 e Pareceres de Cons. GeralRepública, I/331)”.

Na mesma trilha, a lei atual, o Decreto-Lei n. 394 de 1938, não condicionoua extradição à existência obrigatória de tratado ou de promessa de reciprocidade.Só previu e exigiu esta para caso especial, da prisão preventiva antes do pedidoformal, art. 9º.

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Nesse sentido, também José Frederico Marques, Curso de Direito Penal,1º vol., p. 294 fine e 295 fine.

Agora o ilustre advogado chega a uma conclusão, data venia, tardia. DizS. Exa.: Hoje, com a nova Constituição, as ofertas de reciprocidade não valemnada, porque a Constituição diz que dependem de aprovação do Congresso trata-dos, convenções e outros atos internacionais. Já Pires e Albuquerque mostraraque todos os atos internacionais dependiam de aprovação do Congresso, pois apalavra tratado compreendia também oferta de reciprocidade.

E a exigência da reciprocidade está superada.

Se a lei não fala em oferta de reciprocidade, como vai o Supremo exigi-la?

Acho que tratei todos os problemas dos três casos.

Agora resta o da prioridade. A quem cabe?

Quem é que deve ter a extradição? A Áustria ou a Alemanha? O art. 6º doDecreto-Lei 394 diz o seguinte:

“Art. 6º Quando vários Estados requererem a extradição da mesmapessoa pelo mesmo fato, terá preferência o pedido daquele em cujoTerritório a infração foi cometida.

§ 1º Tratando-se de fatos diversos:

a) o que versar sobre a infração mais grave, segundo a lei brasileira;

b) o do Estado que em primeiro lugar tiver solicitado a entrega, nocaso de igual gravidade; se os pedidos forem simultâneos, o Estado deorigem ou, na sua falta, o do domicílio.

Nos demais casos, a preferência fica ao arbítrio do Governo brasileiro.

§ 2º Na hipótese do §1º, poderá ser estipulada a condição de entregaulterior aos outros requerentes.

§ 3º Havendo tratado com algum dos Estados solicitantes, as suasestipulações prevalecerão no que diz respeito à preferência de que trataeste artigo.”

Há assim, desde logo, uma preferência pelo território, uma preferênciainicial que se vai alterar e completar nos outros parágrafos. Os crimes deHartheim foram cometidos no território da Áustria, os crimes de Treblinka nãoforam cometidos nem no território da Alemanha nem no território da Áustria, e aextradição pelos crimes de Sobibor até agora só foi pedida pela Áustria. A Ale-manha tem um pedido a respeito, que está em andamento.

No caso, os crimes de Hartheim, de Treblinka e de Sobibor são crimes dehomicídio qualificado, pelo nosso Direito Penal. Evidentemente, a prescrição é de

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vinte anos, pouco importa que sejam dez, vinte ou trinta homicídios. Nosso CódigoPenal não manda prescrever pela soma de tempo da prisão. Portanto, o número defatos criminosos não altera a gravidade da pena.

Nem há aplicar disposições outras, do nosso Código de Processo Penal,por exemplo, art. 78, que dá preferência, sempre ao lugar da infração, e, nocaso, não se trata de preferência entre lugares dos crimes.

Assim, em face da lei brasileira, há igualdade de pena. Ora, diz a letra b doparágrafo 2º:

“b) e do Estado em que primeiro lugar tiver solicitado a entrega, nocaso de igual gravidade; se os pedidos forem simultâneos, o Estado deorigem ou, na sua falta, o do domicílio.”

A Áustria solicitou a prisão preventiva em 27 de fevereiro, mas deu entradaao pedido formal de extradição no dia 5 de abril, e a Alemanha no dia 14 de abril.Não há a menor dúvida, está no processo a nota da Áustria.

De forma que, nestas condições, entendendo como entendo que há igual-dade de pena, eu daria preferência à Áustria, porque o pedido da Áustria entrouno dia 5 de abril, e estou argumentando com o protocolo do Itamarati, com odocumento constante dos autos. O pedido da Alemanha entrou no dia 14 de abril,não há a menor dúvida, está aqui a nota da Alemanha. Há também uma pequenanota prévia em que ela diz que entraria oportunamente com o pedido formal.

A Alemanha fez questão de dizer que desvinculava o seu pedido de extra-dição do pedido de extradição da Áustria; declarou-o positivamente na sua nota.

A afirmativa do ilustre advogado da Alemanha de que o extraditando é alemãonão tem a cobertura da própria Alemanha, que o declara presumidamenteaustríaco e pediu extradição por ser ele estrangeiro a serviço da Alemanha.

Se, entretanto, o Tribunal denegar o pedido da Áustria para Treblinka eSobibor, a preferência caberá à Alemanha, pois a Áustria não reextradita osseus nacionais.

Nesta conformidade, Sr. Presidente, termino pedindo desculpas ao EgrégioTribunal por ter falado longamente, pois tive de debater com vários e ilustresadvogados. Estou pronto a dar qualquer informação aos Srs. Ministros, porqueestudei com muito carinho os autos.

Minha conclusão, portanto, é que são legais os pedidos da Áustria e daAlemanha. Aliás, em tese, acho que quem deve resolver sobre a preferência é oGoverno. Mas, como o Governo mandou os vários pedidos a este Tribunal, quemdeve resolvê-los é o Tribunal.

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Estudei os processos com aquela imparcialidade que não vê gregos nemtroianos. É meu dever, a Procuradoria-Geral não é parte neste processo.

O Procurador-Geral da República oficia e diz do direito nos processos deextradição.

Tive por divisa, em vez de Nietsche, que o eminente advogado citou, a cons-tante do brasão de um dos maiores governantes da Europa, que foi a DuquesaIsabel D’Este.

O seu lema era: “Nec spe, nec metu”, nem por esperança nem por medo,nem com o intuito de recompensa, nem por terror de violência.

VOTO

O Sr. Ministro Victor Nunes (Relator): Sr. Presidente, começarei pelasquestões que interessam a mais de um dos pedidos de extradição submetidos aonosso julgamento. A seguir, examinarei as que se referem especificamente a umou outro.

I - Reciprocidade

A declaração de reciprocidade, na falta ou deficiência de tratado, é fontereconhecida do direito de extradição (André Mercier, “L’Extradiction”, Récueildes Cours, 1930, III, p. 185). Esse princípio já fora adotado em nosso país, noImpério, pela circular de 4-2-1847, do Ministério dos Negócios Estrangeiros;também foi mencionado, quanto à extradição de nacionais, na Lei 2.416, de 28-6-1911 (art. 1º, § 1º), e a lei atual o consagra (DL 394, 28-4-38, art. 6º, § 3º, c/c art.9º), segundo o entendimento do Supremo Tribunal (Ext 232, 9-10-61, DJ de 4-4-63, p. 70; Ext 288, 7-12-62, RF 205/288, voto do Sr. Ministro Gonçalves deOliveira; Ext 251, 30-9-63, DJ de 5-12-63, p. 1238, voto do Sr. Ministro EvandroLins). Não ficou derrogada a nossa lei nessa matéria, pois não tem esse alcancea circunstância de ser hoje necessário o referendum parlamentar para “atos in-ternacionais” (Constituição de 1967, art. 83, VIII), diferentemente da Constitui-ção anterior, que só o exigia para tratados e convenções.

O melhor entendimento da Constituição é que ela se refere aos atos inter-nacionais de que resultem obrigações para o nosso País. Quando muito, portanto,caberia discutir a exigência da aprovação parlamentar para o compromisso dereciprocidade que fosse apresentado pelo Governo brasileiro em seus pedidos deextradição. Mas a simples aceitação da promessa de Estado estrangeiro nãoenvolve obrigação para nós.

Nenhum outro Estado, à falta de norma convencional, ou de promessafeita pelo Brasil (que não é o caso), poderia pretender um direito à extradição,

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exigível do nosso País, pois não há normas de direito internacional sobre extradi-ção obrigatórias para todos os Estados (Mercier, ob. cit., p. 182). Dar ou recusara extradição é direito inerente à soberania do Estado requerido (CoelhoRodrigues, A Extradição, v. 1, 1930, p. 42). Ele não tem obrigação internacionalde a conceder senão no limite dos seus compromissos (Mercier, ob. cit., p. 180).Nem a Convenção sobre o genocídio teria criado tal obrigação em face dos Esta-dos não signatários (L. C. Green. “Political Offences, War Crimes andExtradiction”. The International and Comparative Law Quarterly, abril,1962, p. 329).

O Sr. Ministro Gonçalves de Oliveira: Aí é para que o Executivo proponhao pedido ao Poder Judiciário, ao Supremo Tribunal Federal.

O Sr. Ministro Victor Nunes (Relator): Dizia eu que, não havendo tratado,não há obrigação, para o Estado requerido, de conceder extradição. Aceitar pro-posta de reciprocidade não pode criar para ele essa obrigação.

O Sr. Ministro Gonçalves de Oliveira: Digo o seguinte: o Governo brasileironão se pode comprometer a dar extradição, porque a competência é do SupremoTribunal. O que ele pode é submeter ou não ao Supremo Tribunal Federal o pedidodo Estado estrangeiro.

O Sr. Ministro Victor Nunes (Relator): Não me referia ao Governo nosentido estrito de Poder Executivo, mas ao Estado brasileiro, envolvendo todos osórgãos que interferem no procedimento da extradição. A decisão favorável doSupremo Tribunal é, sem dúvida, condição prévia, sem a qual não se pode dar aextradição. Mas o Supremo Tribunal também aprecia cada caso em face doscompromissos internacionais porventura assumidos pelo Brasil.

Mesmo que o Tribunal consinta na extradição — por ser regular e legal opedido —, surge outro problema, que interessa particularmente ao Executivo:saber se ele estará obrigado a efetivá-la. Parece-me que essa obrigação só existenos limites do direto convencional, porque não há, como diz Mercier, “um direitointernacional geral de extradição”.

Em conseqüência, a simples aceitação da oferta de reciprocidade não criaobrigação para o Brasil, não dependendo essa aceitação de referendum do Con-gresso. Da promessa de reciprocidade resulta obrigação para o Estado requeren-te, não para o Estado requerido.

Vou mais longe ainda: mesmo nos casos em que o Brasil seja o ofertante,uma vez que a reciprocidade já está prevista em lei e no costume internacional,que a nossa lei manda observar (DL 394/38, art. 9º, c/c o art. 20, in fine; CódigoPenal, art. 4º), não se compreenderia fosse necessária nova chancela do Con-gresso para tal fim.

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II - Comutação de Pena

Parece-nos procedente a argumentação da defesa quando sustenta que ocompromisso assumido pelos Estados requerentes, de comutar a pena de morte(já abolida na Áustria e na Alemanha), teria de incluir o compromisso de reduzirpara prisão temporária a pena de prisão perpétua, em razão de ser esta últimaigualmente vedada pela Constituição do Brasil (art. 159, § 11).

Há valiosas opiniões em contrário, baseadas em que o compromisso decomutação — freqüente no direito extradicional — seria de todo independente dodireito substantivo, mesmo o de assento constitucional (Haroldo Valadão, parecer,Ext 273, fl. 313; Nelson Hungria, parecer anexo ao memorial da Alemanha).

Não podemos, data venia, aceitar esse ponto de vista sem reserva. É certoque o direito extradicional, ao dispor de tal modo, inspira-se no sentimento dehumanidade, mas também não é por outro motivo que o direito constitucional rene-ga tais ou quais penalidades: “As penas perpétuas (...) vão-se limitando aos chama-dos incorrigíveis, como supostos refratários a todo tratamento”, observa RobertoLyra, citando a seguir esta conclusão do Congresso Penitenciário de Washington:“Nenhum indivíduo, quaisquer que sejam sua idade e antecedentes, deve ser consi-derado incapaz de emenda” (Comentários ao Código Penal, v. 2, p. 59).

Acresce que o condicionamento da extradição a normas de direito penalinterno já foi admitido por uma decisão do Supremo Tribunal (Ext 241,18-5-62,RTJ 24/247). A extradição só foi concedida com a condição de ser comutada apena de trabalhos forçados, repudiada pelo direito brasileiro.

Em outro caso, onde a pena era de degredo, a extradição foi concedida,mas fiquei vencido, em companhia dos Srs. Ministros Ary Franco e HahnemannGuimarães (Ext 230, 8-9-61, RF 201/253). Mestre Hahnemann já havia votadode igual modo, com Orosimbo Nonato, Nelson Hungria e Rocha Lagoa, na Ext165 (26-1-53), RF 153/382. A minoria, em que formávamos, concedia a extradição,mas subordinada à não-aplicação da pena de degredo.

Essa decisão, entretanto, não prejudica a tese mais geral, que estamossustentando, de se condicionar a extradição, pelo menos, à vedação constitucio-nal de certas penas, pois a maioria se baseara no fundamento de não ser a penade degredo vedada pela Constituição. A contrario sensu, tal premissa admitia avinculação do direito extradicional nos termos acima indicados.

Em outro caso (Ext 234, 15-3-65), que se referia especificamente à prisãoperpétua, o Supremo Tribunal nada determinou, porque a extradição já tinha sidoconcedida em julgamento anterior, proferido mais de quatro anos antes (2-10-61).

Apesar dessas ponderações, reconheço que o compromisso apresentadonestes autos, sem cláusula de se converter em temporária a prisão perpétua, não

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invalida o pedido, porque os Estados requerentes observaram literalmente o quedispõe o art. 12, d, da nossa lei de extradição, que não menciona a prisão perpé-tua. A falta, portanto, é perfeitamente suprível, como sustenta o Ministro NelsonHungria em seu parecer. Se o Tribunal conceder a extradição, subordinada aesse compromisso, o governo brasileiro o exigirá antes de efetuar a entrega doacusado. Essa exigência, após o nosso pronunciamento, é legítima, pois o que oart. 12 da lei condiciona, ao impor a comutação, é a “entrega” do extraditando, enão o julgamento da admissibilidade do pedido, como bem observou o Sr. MinistroLuiz Gallotti, na Ext 218 (30-9-50). Esse seu ponto de vista não prevaleceu, então,tendo sido a extradição negada, mas em caso posterior o Tribunal prestigiou o seuentendimento (Ext 241, cit. acima).

Nada impede essa divisão de tarefas entre Executivo e Judiciário, porquea extradição não é, por natureza, ato jurisdicional, nem administrativo, prevale-cendo o que dispuser a esse respeito o direito interno, ou as convenções interna-cionais (Mercier, ob. cit., p. 173; Coelho Rodrigues, ob. cit., p. 27).

III - Competência

Não foi contestada pela defesa, nem pela Procuradoria-Geral da República,a competência dos Estados requerentes. Um deles — a Alemanha — é queimpugnou a da Áustria, mas reconhece que, embora omisso o pedido quanto ànorma legal de competência, o § 36 do Código Penal da Áustria consagra oprincípio da nacionalidade ativa, o qual já vinha — notou o prof. HaroldoValadão — do Código de 1803. A objeção da Alemanha consiste em que oextraditando era alemão, e não austríaco, na época dos crimes, pois a Áustria seachava sob o regime do Anchluss.

Esse argumento é, em parte, contraditório, porque um dos fundamentosalegados, pela Alemanha, para firmar a própria jurisdição, tinha sido o § 4º, art. 3º,n. 1, do seu Código Penal, que se refere a crime praticado no estrangeiro, porestrangeiro, no exercício de função do governo germânico. A ordem de prisãoexpedida pela Justiça alemã (Ext 274, fl. 21) funda-se, quanto à competência,naquele mesmo dispositivo legal, como observou o Procurador-Geral da República,e o pedido de extradição diz que Stangl era “presumidamente austríaco” (Ext274, doc. de fl. 23).

Essa contradição não prejudica o pedido da Alemanha, porque ela tem,igualmente, jurisdição sobre crime praticado por súdito alemão no estrangeiro(Código Penal, § 3º). Portanto, seja Stangl considerado alemão ou austríaco, ajurisdição da Justiça alemã será, de qualquer modo, inatacável.

É, pois, desnecessário discutir, agora, se estava sob a soberania alemãaquela parte do território polonês, que a Alemanha ocupava na época dos crimes.

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Esse problema será focalizado mais adiante, ao discutirmos a preferência para aextradição.

De qualquer modo não procede, em contraposição à Áustria, esse novoargumento da nacionalidade de Stangl, suscitado pela Alemanha. Em primeirolugar, não é aplicável ao caso o princípio da irretroatividade da naturalização, quefoi enunciado no art. 1º, § 1º, da nossa lei, em correspondência com a regra danão-extradição dos nacionais (art. 1º, caput). Nossa lei é de 1938. As naturaliza-ções tácitas, da Constituição de 1891, dependiam, pelo menos, do silêncioaquiescente do estrangeiro, e, a partir da Constituição de 1934, passamos a admi-tir somente naturalizações expressas, respeitados os direitos adquiridos na vigên-cia da anterior.

O dispositivo da lei brasileira, a que se apega a Alemanha, visa, sobretudo,impedir que seja beneficiado pela regra da não-extradição dos nacionais quem senaturaliza (ou se deixa naturalizar) de má-fé. Não há, pois, qualquer semelhançacom o caso dos autos, em que não houve naturalização, mas perda compulsóriada nacionalidade austríaca, em favor da alemã, por efeito da invasão da Áustria,ratificada por um plebiscito de constitucionalidade duvidosa (Hans Klinghoffer,Ofensiva Branca, São Paulo, 1942). Logo após a guerra, a Áustria expediu a Leide 10-7-45, dispondo que eram de nacionalidade austríaca as pessoas que já ativessem no dia 13-3-38 (antes do Anchluss) (Ilmar Penna Marinho, Tratadosobre a Nacionalidade, v. 2, 1957, p. 73). Essa reaquisição da nacionalidadeaustríaca também não se pode equiparar à naturalização.

A soberania da Áustria, recuperada após a 2ª Guerra Mundial e consolida-da pelo Tratado de 15-5-55, que a impede de se anexar novamente à Alemanha,restaurou a nacionalidade dos austríacos, que já o eram antes do Anchluss, comas conseqüências que daí defluem. Seria inadmissível que os tribunais austríacos,em todos os problemas jurídicos ligados à nacionalidade, tivessem que discriminaros três períodos da nacionalidade dos litigantes: o contemporâneo da ocupação,de um lado, e os períodos anterior e posterior, de outro. Pelo menos para efeitospenais, isso levaria a conseqüências extravagantes.

Em segundo lugar, um dos fundamentos do julgamento do acusado no paísde que é nacional é a maior garantia que provavelmente encontrará em sua pró-pria Justiça. Envolve, portanto, o dever, que tem cada Estado, de proteger seusnacionais, ainda que essa proteção consista somente em lhes garantir um proces-so regular. Também é essa a principal razão da regra, adotada pela maioria dospaíses, da não-extradição dos nacionais (S. Cybichowski, “La Competence desTribunnaux à Raison d’Infractions Commises Hors du Territoire”, Récueil desCours, 1926, II, 295-6). E os que combatem essa regra apresentam, entre outros,o argumento de que não deveria ser recusada a extradição de nacionais entreEstados “cuja legislação e cujas instituições judiciárias oferecem garantias análo-

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gas” (Mercier, ob. cit., p. 229). Vê-se, pois, que a idéia da proteção do nacionalestá presente no problema que estamos discutindo. E essa proteção pressupõeque seja atual a nacionalidade do réu, pois não seria razoável que estivesse vin-culada a uma nacionalidade pretérita.

A própria Alemanha não estaria muito segura do seu argumento, pois nãoo apresentou no pedido de extradição, mas tão-somente no memorial de seu ilus-tre advogado, distribuído há três dias. E essa nova colocação do problema danacionalidade não objetiva um reforço da jurisdição da Alemanha, já bastantesólida, mas a conquista de mais um ponto no concurso de preferência com aÁustria.

É incontestável, portanto, a jurisdição da Áustria, por ser o extraditando denacionalidade austríaca. Também é incontestável a jurisdição da Alemanha, pelooutro motivo mencionado: o extraditando, ao tempo dos crimes de Treblinka, es-tava a serviço do governo alemão e os teria praticado nessa qualidade.

Não só a exterritorialidade das leis da Alemanha e da Áustria, fundada noprincípio da nacionalidade ativa, não destoa do direito brasileiro (Código Penal,art. 5º, II, b), como também nenhum desses países está disputando sua jurisdiçãocom o Brasil. Pelos fatos de que se trata, nossa justiça só seria competente parajulgar Stangl em razão do princípio da universalidade, que foi sustentado, semêxito, nas discussões promovidas pela ONU sobre a repressão do genocídio(Jean Graven, “Les Crimes contre 1’Humanité”, Récueil des Cours, 1950, I, p.516 ss). Mas nem a lei brasileira adota esse princípio em termos irrestritos, poisremete a matéria para as convenções internacionais (Código Penal, art. 5º, II, a),nem constitui ele norma obrigatória de direito internacional (Cybichowski, ob. cit.,p. 283; B.V.A. Roling., “The Law of War and the National Jurisdiction Since1945”, Récueil des Cours, 1960, II, p. 360).

IV - Genocídio

Os crimes imputados ao extraditando estão hoje qualificados comogenocídio, em Convenção que foi ratificada, entre outros, pelo Brasil e pelaPolônia, e ambos esses países promulgaram leis a respeito (Dec. polonês de13-8-44; Lei brasileira n. 2.889, de 1-10-56). Esta circunstância, entretanto, nãopermite contrapor-se o princípio da irretroatividade ao exame dos presentes pedi-dos de extradição, pois na tipificação do crime de genocídio estão compreendidasoutras figuras delituosas — especialmente o homicídio — que já se encontravamnos códigos de todos os povos civilizados.

A conceituação nova, na categoria de violação do direito penal internacio-nal, resulta da gravidade sem par desses crimes, que ofendem a própria humani-

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dade, e são cometidos em massa, freqüentemente por inspiração e com o auxílio damáquina governamental, já tendo sido por isso denominados “crimes de Estado”(Pieter N. Drost, The Crime of State, 2 vols. Leyden, 1959). Além de suas alar-mantes conseqüências, a gravidade do genocídio é acentuada pela especial inten-ção com que é cometido: a intenção de eliminar, “no todo ou em parte, um gruponacional, étnico, racial ou religioso como tal” (Convenção sobre o Genocídio, art.II; Stefan Glazer, “Culpabilité en Droit International Pénal”, Récueil des Cours,1960, I, p. 504).

Mas, se essa maior gravidade do novo tipo delituoso pode ser lembradapara se não aplicarem retroativamente a Convenção de 1948 e as leis que dis-põem no mesmo sentido, de modo nenhum esse argumento serviria para excluir acriminalidade dos atos que, integrantes do genocídio, já estavam capitulados na leido tempo em que foram praticados.

A extradição de Stangl é pedida com fundamento em homicídio qualifi-cado, que sempre esteve definido na nossa como na legislação dos Estadosrequerentes. A Polônia socorre-se do conceito de genocídio, adotado em leiposterior daquele país (Dec. de 13-8-44), mas assim procede para cobrar doBrasil o compromisso de dar a extradição, que resultaria da Convenção de 1948,assinada pelas dois Estados, bem como para se beneficiar da nova legislação polo-nesa sobre a prescrição de tais crimes.

Essa alegação, entretanto, não prejudica o exame do pedido da Polônia,sob os demais aspectos, muito menos o exame dos pedidos da Áustria e da Ale-manha, pois não temos de cogitar da aplicação retroativa de norma sobre prescri-ção, já que o Brasil não promulgou lei, nem firmou convenção, que estabelecesseessa retroatividade. Ratificamos a Convenção de 1948 (Decreto 30.822, de 6-5-52), mas ela nada dispõe sobre matéria prescricional. Os signatários assumiram ocompromisso de “conceder a extradição de acordo com sua legislação e com ostratados em vigor” (art. VII).

Seria ousado sustentar-se que, em razão desse compromisso de extradição,que remete ao direito vigente, teríamos abolido a prescrição para o crime degenocídio (Jacques-Bernard Herzog, “L’ Extradiction des Criminels de Guerre”,Le Monde, 27-3-67, artigo escrito sobre o caso Stangl). No Brasil, portanto, oproblema da prescrição continua regulado no direito comum.

O ilustre advogado da Polônia procurou demonstrar, em sua sustentaçãooral, que aquele País não pediu propriamente a extradição, mas somente a “en-trega” de Stangl. Com isso, estaria reclamando o cumprimento da Convençãosobre o Genocídio, firmada pelo Brasil e pela Polônia. O compromisso ali assumi-do operaria automaticamente, sem dependência de maiores formalidades, dis-pensando mesmo o pronunciamento do Supremo Tribunal sobre a legalidade do

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pedido e a ocorrência, ou não, da prescrição. Mas não procede essa colocaçãodo problema, por parte da Polônia, tanto em vista das considerações anteriores,como também porque esse país, ao enviar o seu compromisso de reciprocidade,mencionou, expressamente, que o fazia em processo de extradição. Seu pedi-do, portanto, tinha que ser apreciado consoante o nosso direito extradicional,como está ressalvado na Convenção sobre o Genocídio.

Em conseqüência, à luz do direito comum é que, mais adiante, examinare-mos o problema da prescrição, sem que sobre ele se reflita a conceituação con-vencional e legal do genocídio, adotada posteriormente aos crimes de que setrata. Não teremos, assim, motivo para discutir se as normas sobre prescriçãopenal são de fundo, ou somente de forma, para efeito de sua aplicação imediata(Jacques Bernard Herzog, “Étude des Lois Concernant la Prescription des Cri-mes contre 1’Humanité”, Revue de Science Criminelle et de Droit PénalComparé, 1965, n. 2, p. 36). Quer sejam os crimes de Sobibór, Treblinka eHartheim conceituados como genocídio, ou simplesmente como homicídio quali-ficado, os pedidos de extradição de Stangl poderão ser julgados pelo Tribunalsem qualquer desvio do princípio nullum crimen sine lege.

V - Julgamento Regular

Também não prejudica os pedidos em exame a possível falta de isenção dostribunais dos Estados requerentes, que sofreram mais intensamente os efeitos doscrimes de que é acusado o extraditando. A isenção do Estado requerente, paragarantia de um julgamento regular, é, sem dúvida, importante no direitoextradicional. Recusamos, em 1963, uma extradição pedida pelo Governo deCuba, onde faltava essa garantia (Ext 232 cit.), e nossa lei não permite que oextraditando seja submetido a “tribunal ou juízo de exceção” (art. 2º, VI). Mas,no que toca aos Estados ora requerentes, que têm tribunais regulares, funcionan-do normalmente, havemos de admitir a presunção de julgamento regular.

A possibilidade de julgamento parcial ou irregular só é impedimento à extradi-ção quando resulte evidente. Em caso contrário, o princípio da territorialidade nãoteria primazia, como tem, no direito extradicional da maioria dos países, pois o abalosocial é maior nos próprios lugares em que se cometeu o crime. De igual modo, oprincípio da competência do Estado que sofreu os efeitos do crime praticado em outrotambém não poderia ser aceito, por ser, presumivelmente, o menos imparcial dos dois.Entretanto, essa regra é adotada em muitas legislações (Cybichowski, ob. cit., p.284), inclusive na do Brasil, nos casos por ela previstos (Código Penal, art. 5º, I).

Ao revés, o princípio da nacionalidade ativa faz presumir que o julgamentoseja mais favorável ao réu em seu próprio país, o que também seria um afasta-mento do critério da completa isenção.

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Nessa linha de raciocínio, a preferência da doutrina e do direito positivoteria de ser pela competência dos Estados totalmente estranhos ao fato delituoso.Mas não há tal regra no direito brasileiro, e nossa jurisprudência opõe reservas aopróprio desaforamento de processos penais, por motivo de parcialidade, na ordemjudiciária interna (HC 41.119, 1964, RTJ 33/371; HC 42.026, 1965, RTJ 36/178; HC42.325, 1965, RTJ 34/588; HC 43.161, 1966, RTJ 37/267; HC 43.196, 1966, RTJ40/202).

A solução mais adequada, em crimes como o destes autos, seria a jurisdiçãode tribunais internacionais, não obstante as impugnações conhecidas (cf.J.Graven, ob cit,. p. 516, 585, etc.; P.N. Drost, ob. cit., esp. v. 1, p. 36, 352, v. 2, p.201, 205). A Convenção sobre o Genocídio prevê essa competência para osEstados que a reconhecerem, dando prevalência, na situação presente, ao princí-pio da territorialidade (art. VI). Mas não foi instituído tribunal internacional paratais crimes após a dissolução dos que funcionaram em circunstâncias excepcio-nais no imediato após-guerra. Portanto, o acolhimento, neste caso, dos princípiosda territorialidade ou da nacionalidade ativa representa, da parte deste Tribunal,estrita obediência às normas jurídicas em vigor.

Se viéssemos a negar a extradição, pela possível falta de isenção dos Esta-dos requerentes, teríamos a obrigação moral de julgar o acusado, por não havertribunal internacional competente. Mas não o poderíamos fazer, por falta de com-petência. E nossa recusa, longe de exprimir um gesto de solidariedade internacio-nal no combate ao crime, que é fundamento da extradição, teria o alcance de umasilo político, mas concedido a quem não está na condição de perseguido político,nem é acusado, como adiante veremos, da prática de crime político.

A cautela da isenção, levada ao extremo, também teria impedido o PapaPio XII de proferir estas palavras, dirigidas em 1953 aos membros do CongressoInternacional de Direito Penal: “(...) é preciso que os culpados (...), sem conside-ração de pessoas, sejam obrigados a prestar contas, que sofram a pena, e quenada os possa subtrair ao castigo de seus atos, nem o êxito, nem mesmo a ‘ordemde cima’, que eles receberam (...). A certeza, confirmada pelos tratados, de queé preciso prestar contas — mesmo quando o ato delituoso foi bem sucedido,mesmo quando foi cometido no estrangeiro, mesmo quando alguém escapou parao estrangeiro depois de o ter cometido —, esta certeza é uma garantia que não sepode subestimar” (Excertos de Antoine Sottile, Révue de Droit InternationalPénal, outubro de 1953, p. 376).

VI - Crime Político

Também não cabe, no caso, a exceção do crime político, prevista em nossalei (art. 2º, VII, c) e no Código Bustamante, que é o documento internacional maisabrangente a que nessa matéria está vinculado o Brasil (art. 356). A Convenção

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sobre o Genocídio (art. VII) e a lei brasileira baixada em conseqüência dela (Lei2.889, de 1-10-56, art. 6º) são explícitas no dizer que o genocídio não se consideracrime político para efeito de extradição.

A aplicação imediata de tais normas a pedidos de extradição fundados emcrimes anteriores não viola o princípio nullum crimen sine lege. É bem verdadeque o Código Penal Internacional, adotado em Convenção de 1940, firmada peloBrasil em Montevidéu, estabelece regra de vigência somente para o futuro, mes-mo quanto às suas normas de direito extradicional (art. 52), mas não chegamos aratificar esse tratado (Hildebrando Accioly, Tratado de Direito InternacionalPúblico, v. 1, 2ª ed., p. 423). Além disso, nas palavras de Mercier, “a extradiçãonão é uma pena”, traduzindo, no mais das vezes, o reconhecimento, pelo Estadoconcedente, da sua falta de competência para julgar a infração. Também “não éa aplicação de uma pena”, encargo e responsabilidade que “incumbem ao Estadorequerente” (ob. cit., p. 177).

Ainda que a Convenção sobre o Genocídio, ou a Lei 2.889, de 1956, nãofossem aplicáveis, no ponto que estamos discutindo, a solução seria a mesma. Adoutrina mais autorizada, embora o tema seja controvertido, repele a conceituaçãode crime político fundada exclusivamente na motivação política do agente. Deigual modo, a alegação de ter sido o crime cometido contra particulares por instru-ções de um governo não tem bastado para beneficiar o autor com a excusa docrime político (Green, ob. cit., p. 330). O genocídio — afirma Drost — “é tantocrime do Estado como crime comum” (ob. cit., v. 2, p. 201).

Além de outros elementos de configuração, com os quais a doutrina maismoderna procura combinar as teorias subjetiva e objetiva, leis e convenções in-ternacionais, especialmente no campo do direito extradicional, têm recusado aconceituação de político ao crime cometido com especial perversidade ou cruel-dade, ou àquele em que predominam os elementos do crime comum. Nossa lei,que assim dispõe (art. 2º, § 1º), menciona, entre outros, o terrorismo (art. cit., §2º). E o Comitê Jurídico Interamericano, em seu estudo de 1959, não considerapolíticos “os crimes de barbaria e vandalismo” e, em geral, as infrações “queexcedam os limites lícitos do ataque e da defesa” (Isidoro Zanotti, LaExtradición, p. 238).

Do mesmo modo, a Corte Suprema da Argentina, em decisão de 1966,concedeu à Alemanha a extradição de Gerhard J. B. Bohne, acusado do extermí-nio em massa de doentes mentais, negando caráter político, segundo seus prece-dentes, a “fatos particularmente graves e odiosos por sua natureza bárbara” (LaLey, 1-11-66, p. 1).

Também pelo caráter cruel do crime — assassinato de prisioneiros indefe-sos, inclusive o médico chamado a socorrer um deles, que estava ferido — nega-

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mos-lhe caráter político, e recusamos a extradição por outro motivo: falta degarantias para um julgamento regular em Cuba (Ext 232, cit.).

Realmente, o presumido altruísmo dos delinqüentes políticos nada tem aver com a fria premeditação do extermínio em massa. O Juiz Jackson, da CorteSuprema dos Estados Unidos, acusador em Nuremberg, fez ali esta advertência,com receio da incredulidade futura: “We must stablish incredible events bycredible evidence” (apud Roling, ob. cit., p. 390).

VII - Ordem Superior

A justificativa do cumprimento de ordem superior igualmente não levaria,só por si, à recusa dos pedidos sob julgamento. Sua aplicação, em termosirrestritos, aos chamados crimes de Estado, resultaria em completa impunidadepara criminosos cruéis.

Nosso Código Penal, como de regra os outros códigos, restringe o alcancedessa excusativa, porque não elimina a culpabilidade nos casos de cumprimentode ordem “manifestamente” ilegal (art. 18). E não se comprovou ainda que aordem de matar prisioneiros, inocentes ou não, e enfermos hospitalizados, ou deexterminar judeus em massa, mediante processos de horrenda eficiência, tivessesido autorizada por lei do Estado nazista.

Na extradição de Bohne, julgada pela Suprema Corte argentina, forammencionadas instruções secretas de Hitler, de 1-9-39, quanto aos enfermos men-tais (La Ley, cit.). Quanto ao extermínio em massa de judeus, o ato mais qualifi-cado, que se indicou no caso Eichmann, julgado em Israel, foi uma reunião delíderes nazista, realizada em Gross Wannsee, subúrbio de Berlim, em 20-1-42(Comer Clarke, Eihmann, Rio, 1961, p. 132; Lord Russell of Liverpool, The Trialof Adolf Eichmann, Londres, 1963, pp. 52-54, 201-203). Dela, entretanto, nãoresultou um texto jurídico normativo, tendo-se usado o eufemismo “solução final”do problema judeu, para ocultar a premeditação criminosa. O próprio Eichmannprocurou explicar essa fórmula como sendo a procura de um lar para os judeusem Madagascar, como se lê no resumo do D. Lasak (“The Eichmann Trial”, TheInternational and Comporative Law Quarterly, 1926, v. II, p. 362). Observouesse comentarista: “(...) a despeito da legislação nazista (...), que efetivamentenegava personalidade jurídica aos judeus e a outros, parece não ter havido nor-mas de direito positivo (positive enactment) autorizando as exterminações (...)Qualquer que fosse a posição da lei nos dias de Hitler, as atividades nazistasneste campo nada mais eram do que atos arbitrários e ilegais (nothing butarbitrary, illegal acts), tolerados pela Justiça alemã (...)” (ob. cit., p. 362).

Admitindo-se, com a melhor doutrina, que o conhecimento da ilegalidadedo ato, ou a possibilidade desse conhecimento, é essencial para a integração do

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elemento subjetivo do crime, ele deve ser presumido em certos casos (Glaser, ob.cit., p. 492, 519 ss). E Stangl era um graduado servidor da polícia judiciária, que,em razão do cargo, não deveria desconhecer a legislação da Alemanha sobrehomicídio. Por outro lado, as providências tomadas pelos alemães, para manteras vítimas inscientes do seu destino e para eliminar os vestígios materiais dacarnificina, é presunção mais forte ainda de que os dirigentes e executores dessapolítica não ignoravam a criminalidade do seu procedimento.

O problema, portanto, desliza da justificativa respondeat superior para acoação moral, cujo teste jurídico é a possibilidade de escolha, aplicado tambémpelos tribunais internacionais do após-guerra. Discute-se, na doutrina e na juris-prudência, quanto ao ônus da prova em tais casos. De qualquer modo, caiba aprova do erro de direito ou da coação moral à defesa, ou caiba à acusação aprova contrária, o que se tem é um problema de prova, cujo exame compete aojuízo da ação penal e não ao da extradição (DL 394/38, art. 10, caput, in fine).

Se tivéssemos, porém, de levantar um pouco o véu da prova, a conclusãoseria desfavorável ao extraditando. Ele ingressou no Partido Nazista antes daguerra, antes mesmo de ser admitido no quadro policial, como consta do seudepoimento de 1938 (Ext 272, v. 1, fl. 74, 87). E fez uma rápida carreira. Dediretor-substituto passou a diretor da Secretaria do Hartheim (1941), e daí aocomando de Sobibór e Treblinka (1942). Que faz o comandante de um campo deextermínio de vidas humanas? Pelo menos, mantém o funcionamento dessamáquina de matar. E o Coronel Globocnik, ao insistir pela promoção de Stangl,recomendava-o como seu melhor chefe de campo de concentração (Ext 273, fl.134v).

Tais circunstâncias nos impedem de acolher, muito menos de ofício, a justi-ficativa do cumprimento de ordem superior, em termos de coação moral, que só ojuízo da ação penal poderá apreciar devidamente, pelo conjunto das provas quelhe forem apresentadas.

VIII - Suficiência da Acusação

Não nos parece procedente a defesa, quando alega ser imprestável, emface do art. 7º do DL 396/38, a descrição dos crimes em que se fundam ospedidos de extradição. Demonstrou o Procurador-Geral que as circunstâncias delugar e tempo, bem como os meios utilizados, foram expostos de modo suficiente,e poderíamos aduzir: com excesso de pormenores.

Ficou cabalmente configurada a materialidade dos crimes, e os indícios daparticipação do extraditando foram apontados com abundância, inclusive pelanatureza de suas atribuições em Hartheim (depoimento de 1947, Ext 272, v. 1, fls.74, 79), e por sua posição de chefia, por alguns meses, em Sobibór, e durante

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cerca de um ano, em Treblinka, o que foi confirmado nos interrogatórios a queprocedemos.

Se essa participação foi de mera cumplicidade ou de co-autoria, distinçãoque em nosso Código Penal já não afeta o quantitativo legal da pena (art. 25),mas tão-somente a sua individualização (art. 42), isso é problema que cabe aojuízo da ação penal elucidar, por meio das provas.

IX - Documentação

Também não acolho a alegação do defensor dativo contra a juntada ulteriorde documentos, por parte dos Estados requerentes. Esses elementos — incluindo opedido formal de extradição da Áustria e algumas peças essenciais dos pedidos daAlemanha e da Polônia — deram entrada em tempo oportuno, pois o Tribunalpoderia, a requerimento do Procurador-Geral, suspender este julgamento e conce-der prazo de até 45 dias aos Estados requerentes para suplementação dos seusdocumentos (DL 394/38, art. 10, § 2º; Ext 270, 19-4-67; vd. art. 6º do Projeto doComitê Jurídico Interamericano e comentário de Renato Ozores, La Extradiciónen el Derecho Interamericano, 1958, p. 25).

Sobre a nova documentação foi aberta vista ao ilustre defensor, que sobreela se manifestou. Pode, portanto, ter havido sacrifício pessoal para S. Exa.,que se desincumbiu do seu munus, com grande brilho, cumprindo exemplar-mente o encargo que lhe confiou o Relator, sem pedir uma única prorrogaçãode prazo. Somente um profissional de sua categoria, festejado professor deProcesso Penal, teria dado ao extraditando a eficiente assistência que ele teve.Se houve sacrifício do defensor, repito, não houve sacrifício da defesa, do pontode vista legal. Não há, pois, nulidade ou inépcia dos pedidos de extradição a serdeclarada.

X - Prescrição

O relatório esclarece bem, conquanto resumidamente, os termos da con-trovérsia posta nestes autos, na matéria que agora passamos a examinar, commais desenvolvimento.

a) Polônia

O Procurador-Geral e o defensor dativo demonstraram a inadmissibilidadedo pedido da Polônia, por se ter verificado a prescrição da ação penal daquelepaís, de acordo com a lei brasileira. Assim se manifestou, em seu parecer, o Prof.Haroldo Valadão (DJ de 26-5-67, p. 1541):

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“(...) Para a interrupção da prescrição exige a lei brasileira, CódigoPenal, art. 117, I, a existência de despacho de recebimento da denúncia ouda queixa, isto é, do requerimento do Ministério Público e de decisãojudicial iniciando processo, ou segundo admitimos, pelo menos a instruçãocriminal contra o acusado.

Interrompida a prescrição por tal ato, recomeçará a correr,novamente, do dia da interrupção, art. 117, § 2º.

Na espécie não demonstra o Estado requerente a existência dequalquer ato de abertura judicial do processo de extradição que tivessepodido interromper a prescrição.

O doc. de fl. 60, assinado de Wiesbaden, na Alemanha, pelo majorauditor da Comissão Central de Pesquisas dos Crimes Alemães naPolônia, dá ciência de que foi enviada, em 30 de março de 1946, CartaPrecatória contra Stangl, fls. 60 e 88, não conferindo com o nome inicialda relação de docs. que fala em Franz Stangl, fls. 59 e 86. Aliás, a fl. 64,há referência a Stengel, como outra pessoa.

E os de fls. 60-63v,. e 64-65, contém depoimentos prestadosperante o Juiz de Investigações (Instrução) da Região do Tribunal Distritalde Sielce, a 9 de outubro e 3 de dezembro de 1945 contra o acusado.

Não constituem, por certo, o ato de recebimento da denúncia, odespacho de abertura da instrução, da lei brasileira.

Mas ainda que, por ampla interpretação, significassem os últimos oreconhecimento de uma abertura de instrução, anterior, a interrupção nãose teria verificado, pois, seriam de dezembro de 1945, tendo, assim,começado nova prescrição a partir de 3 de dezembro de 1945,completando-se a 3 de dezembro de 1965, sem qualquer nova interrupção.

Pela ocorrência, assim, da prescrição segundo a lei brasileira,opinamos pela ilegalidade e improcedência do presente pedido”.

Não é, pois, necessário discutir a questão — posta pela defesa — de quea ordem de prisão, expedida na Polônia pelo Procurador-Geral, não satisfaz àcondição da lei brasileira, que menciona prisão ordenada por juiz ou tribunalcompetente (arts. 5º e 7º).

b) Alemanha

Quanto aos crimes de Treblinka, demonstrou igualmente o Procurador-Geral, Prof. Haroldo Valadão, que a prescrição foi interrompida na Alemanha,por ato do Juiz de instrução do Tribunal de Düsseldorf, de 4-5-60 (Ext 274, fl. 279).

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Esse ato foi praticado, antes de decorridos 20 anos — que é prazo prescricionaldo Código alemão (§ 67, art. 1, n. 1) e do brasileiro (art. 109, I), a contar da épocaem que o extraditando deixou o comando de Treblinka (agosto de 1943 — Ext274, fls. 35, 38), pois os crimes ali praticados têm indiscutível caráter de continui-dade (Código Penal brasileiro, art. 111, c).

O ato do magistrado alemão, de 4-5-60, que acolheu promoção acusatóriado Ministério Público, ajuizada na véspera (Ext 274, fl. 227), e ao qual se seguiu,no dia imediato, a ordem de prisão expedida pelo mesmo Juiz (Ext 274, fl. 2), temno processo penal alemão a finalidade e o efeito de abrir a instrução criminal, queé de natureza judiciária.

A ação penal por homicídio doloso é, na Alemanha, da competência do júri(Código de Organização Judiciária, § 80), como no Brasil, e começa, obrigatoria-mente, pela promoção em que o Ministério Público, formulando a acusação comas indicações necessárias, solicita a abertura da instrução criminal (Código deProcesso Penal, §§ 170 e 178). Esse ato equivale, em nosso País, à denúncia(Código Penal brasileiro, art. 102, § 1º; Código de Processo Penal, arts. 24 e 41),que o Promotor apresenta ao Juiz-Presidente do Tribunal do Júri.

Há, na Alemanha, outra acusação, mais formalizada, que o MinistérioPúblico apresenta posteriormente, depois de colhida a prova perante o Juiz deinstrução. Esse novo ato acusatório corresponde, mais propriamente, ao libeloacusatório (Código de Processo Penal, arts. 416 e 417) do nosso processo do júri,com a diferença de preceder ao nosso libelo a sentença de pronúncia (Código deProcesso Penal, art. 408).

Essa diferença, para o fim que temos em vista, não se reveste de maiorsignificação, pois o que importa acentuar é que aquele segundo ato de acusaçãodo Ministério Público germânico não corresponde ao primeiro ato de acusação doprocesso criminal brasileiro — a denúncia —, mas ao segundo, que é o libelo. Ocorrespondente da nossa denúncia é, na Alemanha, o primeiro ato de acusação,onde o Ministério Público solicita a abertura da instrução criminal nos processosda competência do júri.

Em conseqüência, o ato judicial que, na Alemanha, acolhe o pedido deabertura — ou de extensão — da instrução criminal tem exata correspondênciacom o nosso despacho de recebimento da denúncia (Código de Processo Penal,art. 394), que também abre a instrução judicial e produz, pelo nosso Código, oefeito de interromper a prescrição (Código Penal, art. 117, I ).

A demonstração que a esse respeito fez o Prof. Haroldo Valadão foi cor-roborada pelo parecer do Ministro Nelson Hungria, prestigiando as alegações doadvogado da Alemanha.

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Transcrevo, do primeiro, esta passagem (Ext 274, fl. 327):

“Leia-se tal denúncia (...) e ver-se-á que contém até os requisitosda denúncia do processo criminal brasileiro, do art. 41 do novo Código deProcesso Penal, com a identificação do acusado, a exposição dos fatos ea capitulação dos crimes (...), segundo os §§ 211, 47 e 74 do Código Penalalemão”.

Do parecer do Ministro Nelson Hungria seleciono este tópico:

“A denúncia do processo brasileiro (...) assemelha-se ao Antrag doprocesso alemão, do mesmo modo que o libelo acusatório (...) se identificacom a Anklageschrift (...), que é também indeclinável nos processosrelativos a crimes que incidem na competência do Tribunal de Jurados. Issoposto, é incontestável que o despacho do Juiz de Instrução, deferindo apetição (Antrag) do Procurador-Geral (órgão do Ministério Público),coincide plenamente com o que entre nós se diz ‘recebimento da denúncia’,isto é, o ato judicial que (...) interrompe o curso da prescrição (...)”.

Não importa discutir, a fundo, se aquele ato judicial do processo alemão éde natureza ordinatória ou jurisdicional, como não importa fazer tal indagação arespeito do despacho de recebimento da denúncia em nosso processo. E nãoimporta, porque há controvérsia a esse respeito, mesmo neste Tribunal (HC38.833, 1961, DJ de 22-8-63, p. 745; HC 43.369, 1966, RTJ 39/639), e essa con-trovérsia não neutraliza o efeito interruptivo da prescrição, que nossa lei expres-samente atribui àquele ato.

Portanto, mais que o nomen iuris, o que cumpre analisar e comparar, nodireito do Estado requerente e no do Estado requerido, sempre que o direitoextradicional exija uma condição a ser cumprida nos dois países, são os efeitosprocessuais do fato, ou ato, pois é em razão desses efeitos que a lei o faz influir nocurso da prescrição. Se o efeito principal do recebimento da denúncia, em nossoPaís, é formalizar a ação persecutória do Estado, com a abertura da instruçãojudicial, interrompendo em conseqüência a prescrição, não podemos recusar aocorrespondente ato judicial do processo alemão, qualquer que seja o seu nome ouforma, o efeito de interromper a prescrição, se dele também resulta que a instruçãocriminal foi aberta perante o Juiz competente.

Deixamos de discutir a questão nova, suscitada pela Alemanha em seumemorial, quanto a estar interrompida a prescrição pelo impedimento da Justiçaalemã durante o regime nazista e nos primeiros anos do após-guerra, porque jáficou demonstrado que, por outra causa, a prescrição foi validamente interrompi-da naquele país.

Concluímos, pois, de acordo com a Procuradoria-Geral, que não prescre-veu a ação penal em que se funda o pedido da extradição da Alemanha.

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c) Áustria

1. Hartheim. Pelas mesmas razões anteriormente aduzidas, também nãoprescreveu a ação penal em que se funda o pedido de extradição da Áustria,com relação aos crimes de Harheim. A instrução criminal já estava instauradaem Linz (Ext 272, v. 1, fls. 45, 46), e dela tivera ciência pessoal o acusado, em19-5-48 (Ext 272, v. 1, fl. 53), como antes já tinha sido cientificado da instruçãodo processo e da sua prisão preventiva (21-7-47 — Ext 272, v. 1, fl. 45). Diasdepois de intimado da acusação, conseguiu evadir-se para lugar incerto e nãosabido (30-5-48 — Ext 272 v. 1, fls. 53, 115). Por motivo da fuga, e de acordocom a lei, foi suspenso o processo (vol. cit., fl. 151). Só se poderia suspender oque já estivesse iniciado. Não me parece, pois, que essa questão suscite maiorcontrovérsia.

Alega, porém, a defesa que o prazo da prescrição seria de quinze anos, enão de vinte. Argumenta que a prisão comunicada ao extraditando, em 21-7-47,fundava-se no § 5 do Código Penal austríaco, que se refere exclusivamente àcumplicidade. À pena prevista para a cumplicidade, sendo somente de 5 a 10anos de prisão (§137), correspondia o prazo prescricional de 5 anos (§ 228, b, infine). Esse prazo já estaria consumado ao iniciar-se a instrução, em 21-7-47, poiso extraditando deixara o serviço de Hartheim em agosto de 1941.

Seria ilegítima, prossegue a defesa, a alteração que, em 19-5-48, fez oMinistério Público naquela classificação inicial, procurando inculpar o réu, nãocomo cúmplice, mas como co-autor de homicídio, sujeito então à prescrição de 20anos. Essa modificação seria legalmente inadmissível, em primeiro lugar, por sertardia, pois, àquela data, já estava prescrita a ação penal, pela classificação ante-rior; em segundo lugar, porque a própria narrativa dos fatos, que então fez oMinistério Público, só poderia conduzir à acusação de cumplicidade e não de co-autoria.

O Procurador-Geral respondeu satisfatoriamente a essa argumentação. Aacusação ou denúncia do Ministério Público — e não a ordem de prisão anterior —é que classifica o crime, de onde se deduz a pena correspondente, para efeito docálculo da prescrição. A ordem de prisão anterior à denúncia continha umaclassificação provisória, que o Ministério Público poderia manter, ou não, nadenúncia.

Entre nós, pela Constituição (art. 150, § 12), a detenção ou prisão de qual-quer pessoa deve ser imediatamente comunicada ao juiz competente, que a rela-xará, se não for legal. Mas não é a classificação provisória contida nesse ato, ouna decisão que o juiz sobre ele vier a proferir, que servirá de base ao cálculo daprescrição. Esta se regula pela classificação posterior da denúncia (salvo oscasos de abuso), ou então, nas condições previstas em lei, pela pena imposta nasentença.

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Além disso, como demonstrou o Prof. Haroldo Valadão, e este argumentopor si só seria decisivo, o § 5º do Código Penal austríaco, citado na primeiraordem de prisão do extraditando, não se refere exclusivamente à participaçãocriminosa de menor relevo (cumplicidade propriamente dita): compreende tanto amera cumplicidade como a co-autoria, conforme o grau real da participação doindiciado. Basta ver, por exemplo, que aquele dispositivo se refere também aomandante do crime, que é indiscutivelmente co-autor.

Quanto à descrição da atividade criminosa do extraditando, observa o Pro-curador-Geral que o homicídio (no caso, homicídio qualificado, tanto pelo códi-go brasileiro como pelo austríaco) era a atividade específica de camuflado “sana-tório” de Hartheim. Stangl, embora não participando da execução material dosassassinatos, exercia função diretora na parte administrativa. Não há, pois, con-tradição da denúncia, quando lhe atribui a posição de co-autor.

Essa argumentação parece de inteira procedência. Em primeiro lugar, nãoé evidente o abuso da classificação do Ministério Público. Em segundo, nossadoutrina sobre a prescrição pela pena concretizada (Súmula do SupremoTribunal, n. 146) pressupõe sentença condenatória, que fixe a pena abaixo domáximo legal. Isso não se verificou no caso de Hartheim, onde mais tarde veio aser proferida sentença condenatória, mas somente para os co-réus, e não para oextraditando. A prescrição teria de ser apreciada, portanto, em função da penamáxima (in abstrato), e não pela pena que em relação a dois dos co-réus veio aver concretizada na sentença. O prazo prescricional é, portanto, de 20 anos e foiinterrompido, validamente, segundo o direito da Áustria e do Brasil. Pelo mesmoraciocínio, também não se consumou a prescrição intercorrente.

2) Sobibór e Treblinka. Quanto ao outro processo, perante o Tribunal deViena, referente aos crimes de Sobibór e Treblinka, parece-nos de todo proce-dente a defesa, data venia do parecer do Procurador-Geral. O ato praticado emrelação àqueles crimes e ao qual se pretende atribuir efeito interruptivo da pres-crição, não nos parece que seja equiparável ao nosso recebimento da denúncia.Embora interrompesse a prescrição, consoante o direito austríaco, não a inter-rompeu pelo direito brasileiro.

O indiciado, àquele tempo, estava foragido. Foi expedido um ato do Juiz deinstrução, em 21-3-62 (Ext 272, v. 1, fl. 25), para descobrir o seu paradeiro, paradeterminar a sua residência ou morada, como consta da tradução oficial. A notí-cia resumida do ato menciona os §§ 134 e 135 do art. 3º do Código Penal, quetratam do homicídio qualificado, sem indicação de qualquer texto sobre prescrição.Também não consta do processo se precedeu a esse ato do juiz uma acusação doMinistério Público; ainda que tenha havido, como o seu texto não veio aos autos,não se pode verificar se ela continha os elementos que a pudessem assemelhar àdenúncia do Processo Penal brasileiro.

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O memorial da Áustria, entretanto, qualifica o referido ato de citação poredital (p. 22) e menciona o § 227 do Código Penal austríaco, que inclui entre osatos interruptivos da prescrição “o mandado de citação do indicado” e “a perse-guição do indicado ou a sua procura através de editais” (tradução do memorial).Diz a tradução italiana, de Bertolini (2º ed., 1857): “se contro il reo cumeimputato fu emezsa una citazione (...) ovvero se come imputato fu già (...)inseguito con messi o con circolari di arresto”.

No processo penal brasileiro, a citação não precede, mas sucede, ao rece-bimento da denúncia (Código de Processo Penal, art. 394). Pressupõe, portanto,a ação penal já promovida pelo Ministério Público (não está em causa a açãopenal privada) e a instrução judicial aberta pelo despacho de recebimento dadenúncia, pois a citação, ordenada na mesma oportunidade desse recebimento(art. 394), é para o réu comparecer e ser interrogado pelo juiz. Na Áustria, entre-tanto, a julgar pelo memorial de seu advogado, a citação do indiciado, que seencontre em lugar incerto ou desconhecido, pode anteceder à denúncia, isto é, àpromoção em que o Ministério Público, indicando os elementos indispensáveis àacusação, pede a abertura da instrução criminal.

O Dr. Procurador-Geral, sustentando que aquele ato tinha caráterpersecutório, creio que mencionou o § 416 do Código de Processo Penal daÁustria. Entretanto, o dispositivo que se refere à captura parece ser o § 414.Essas ordens expedidas pelo Juiz, quando alguém é suspeito de ter cometido ocrime, se referem, provavelmente, a uma fase preliminare, quando ainda não háformal acusação do Ministério Público. Por isso, ainda que tenha caráterpersecutório o ato ora questionado, parece indiscutível que precedeu à denúncia.Do contrário, essa denúncia teria sido enviada com a documentação da Áustria,e não foi.

Nessas condições, o ato que no processo penal brasileiro maiscorresponderia àquele mandado judicial não seria o recebimento da denúncia(ainda não oferecida), mas a prisão preventiva, quando ordenada pelo Juiz nafase do inquérito policial, a requerimento do delegado de polícia, ou do MinistérioPúblico, ou com a audiência deste. Entretanto, a essa prisão, que também é atopersecutório, visando garantir a regular aplicação da lei penal, mas não é ato deabertura da instância judicial, o nosso direito não atribui efeito interruptivo daprescrição.

O Sr. Procurador-Geral da República (Prof. Haroldo Valadão): EminenteMinistro, eu me baseei no art. 416, porque na Áustria não há inquérito policial; naÁustria, há instrução criminal.

O Sr. Ministro Victor Nunes (Relator): Exato!

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O Sr. Procurador-Geral da República (Prof. Haroldo Valadão): Ora, se oato é do juiz de instrução, é porque houve abertura de instrução prévia. O meuraciocínio foi apenas a título de esclarecimento a V. Exa.

O Sr. Ministro Victor Nunes (Relator): O eminente Mestre está presumin-do que houve ato formal de acusação por parte do Ministério Público. Mas elenão está nos autos.

O Sr. Procurador-Geral da República (Prof. Haroldo Valadão): Eu disseque não estava, e se há só instrução criminal (aliás, vê-se, no Código, que essesatos de persecução judicial são atos de instrução, vêm depois da instrução), e seexpediu o ato, é porque houve abertura da instrução.

O Sr. Ministro Victor Nunes (Relator): Eu presumo, ao contrário, que nãohouve acusação formal do Ministério Público, pois o ônus da prova de tais atosincumbe ao Estado requerente. Se houvesse tal acusação, ela estaria no proces-so, pois outros atos de menor importância recheiam estes volumes . Por que nãoveio essa presumida denúncia, que teria tanta significação no problema da pres-crição? Concluo, pois, que a questionada ordem do Juiz de instrução precedeu àdenúncia, equivalendo grosso modo à nossa prisão preventiva, decretada antesda denúncia, isto é, na fase do inquérito policial. Ato, ao qual, repita-se, o nossodireito não atribui efeito interruptivo da prescrição.

Figuremos uma situação inversa à destes autos. O juiz brasileiro teriaordenado a prisão preventiva, na fase do inquérito policial, a requerimento doMinistério Público, ou com o seu parecer favorável. Com base nesse mandadode prisão, o Governo brasileiro teria pedido a extradição do indiciado, foragido emoutro país. Se, a contar do fato criminoso, houvesse transcorrido o prazo legal daprescrição e, no Estado requerido, também houvesse a regra da lei mais favorá-vel nessa matéria, a extradição teria de ser negada, por não ter sido a prescriçãointerrompida por aquele mandado de prisão, de acordo com o direito brasileiro.Como, pois, haveremos de ter por interrompida, na Áustria, uma prescrição que,em situação comparável, não estaria interrompida no Brasil?

Por essas razões, o meu voto é pelo indeferimento do pedido da Áustria,em relação aos crimes de Treblinka e Sobibór, como sustentou, em sua defesa, oProf. Xavier de Albuquerque.

XI - Preferência

a) Competência

Tendo concluído pela legalidade e procedência do pedido da Alemanha, ebem assim de um dos pedidos da Áustria, passamos agora ao exame da prefe-rência, pois a decisão dessa matéria parece-me caber ao Supremo Tribunal, enão ao Poder Executivo.

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Na falta de tratado (art. 6º, § 3º), nossa lei estabelece diversos critérios depreferência (art. cit., caput e § 1º), estipulando afinal que, “nos demais casos, apreferência fica ao arbítrio do Governo” (art. cit., § 1º, b, in fine). Parece que, naopinião do ilustre Procurador-Geral, o exame da preferência caberia ao Governoem qualquer caso.

O Sr. Ministro Gonçalves de Oliveira: O Procurador-Geral, aqui no Plená-rio, disse que cabe ao Supremo Tribunal Federal.

O Sr. Ministro Victor Nunes (Relator): Para S. Exa. parece que, em qual-quer caso, o exame da preferência caberia ao Governo. Entretanto, como o Go-verno não exerceu essa prerrogativa, mandando os três pedidos ao SupremoTribunal, o exame da preferência teria sido, então, transferido para nós.

O Sr. Procurador-Geral da República (Prof. Haroldo Valadão): Achei quecabia ao Governo, mas que, se o Governo mandou os três pedidos para cá, já nãocabe mais. Acho, aliás, que a atitude do Governo foi muito nobre, porque poderiao Supremo denegar um e não os três.

O Sr. Ministro Victor Nunes (Relator): V. Exa. corrobora a minha impressão.Prossigo na leitura do meu voto.

À primeira vista, não seria desarrazoado interpretar-se que, em qualquercaso, a deliberação caberia ao governo, e não ao Tribunal; bastaria, para isso, pôrênfase no vocábulo “arbítrio”, que se lê no citado dispositivo. Desse modo, noscasos previstos na lei, o Governo resolveria o assunto, mas sem arbítrio, isto é,consoante os critérios legais; “nos demais casos”, a deliberação do Governo ficariaao seu arbítrio, isto é, sem vinculação a qualquer critério legal.

Entretanto, não nos parece que essa seja a melhor interpretação. Em pri-meiro lugar, porque a Constituição (art. 114, I, g) incumbe ao Supremo Tribunal“processar e julgar originariamente (...) a extradição requisitada por Estado es-trangeiro”. Nessa atribuição de julgar, que pressupõe a apreciação de quaisqueraspectos de legalidade, está incluída a competência para decidir, havendo mais deum Estado requerente, qual deles, pelos critérios que a lei define, tem prioridadepara receber o extraditando.

Em segundo lugar, em face da própria lei, cuja interpretação em termosconclusivos cabe ao Supremo Tribunal, chegar-se-ia à mesma conclusão. Umdos critérios de preferência, que a lei estabelece, é a gravidade da infração (art.6º, § 1º); o caráter da infração influi na sua gravidade, e pelo art. 2º, § 3º, da Lei,compete “exclusivamente” ao Tribunal “a apreciação do caráter da infração”.

Esse dispositivo está incluído na parte da lei que se refere aos crimes cujo“caráter” pode constituir obstáculo à extradição. Mas o mesmo preceito vem repeti-do no art. 10, quando veda ao Governo atender a qualquer pedido de extradição

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“sem prévio pronunciamento” do Tribunal sobre sua “legalidade e procedência (...),bem como sobre o caráter da infração, na forma do art. 2º, § 3º ”.

Se o legislador quisesse referir-se apenas aos crimes pelas quais a lei vedaa extradição, bastaria mencionar, no art. 10, o pronunciamento do Tribunal sobrea legalidade e procedência do pedido. A insistência no seu pronunciamento“sobre o caráter da infração” evidencia que o caráter da infração também deveser apreciado sob o aspecto da sua gravidade, para se determinar a preferência,quando houver mais de um pedido de extradição.

b) Territorialidade

Pela nossa lei, na ausência de tratado, cabe a prioridade ao Estado “emcujo território a infração foi cometida” (art. 6º, caput). Esse critério favorece aÁustria, quanto aos fatos de Hartheim, mas está afastado, quanto aos crimes deTreblinka (território polonês), já que, em relação a eles, apenas consideramosprocedente o pedido da Alemanha.

Entretanto, a Alemanha, como já foi assinalado, procurou socorrer-se doprincípio da territorialidade. Alegou, citando a Convenção de Haia sobre leis ecostumes da guerra terrestre (18-10-1907), que, ao tempo em que foram come-tidos os crimes de Treblinka, estava aquele território sob a “soberania de Reichalemão, na qualidade de potência de ocupação” (Ext 274, fl. 19).

Observou o Procurador-Geral que o único dispositivo citado na Convenção,em que se poderia fundar a pretensão da Alemanha, é o seu art. 43, que permiteà potência ocupante, a cujas mãos se transferiu de fato a autoridade do poderlegal, tomar todas as providências que visem a garantir, tanto quanto possível, aordem e a vida pública no território ocupado. Mas, diz ele, não se pode inferirdesse dispositivo, nem de qualquer outra norma de direito internacional, que oterritório da Polônia, ocupado durante a guerra, tivesse sido anexado à Alema-nha, e muito menos que se devesse considerar território alemão para todos osfeitos.

Parece-nos de inteira procedência a objeção do Procurador-Geral. Em primei-ro lugar, não se trata de ocupação consentida (Leo Strisower, “L’Exterritorialité etses Principales Applications”, Récueil des Cours, 1925, p. 272). Em segundo, aexterritorialidade das forças invasoras só se pode fundar, juridicamente, na au-sência das autoridades locais. Nessa contingência, alguma outra autoridade teriade fazer suas vezes. Afora esse fundamento jurídico, a potência ocupante atuacomo poder de fato (Strisower, ob. e loc. cit.; Despagnet, cit. por FrancescoCapotorti, L’ Occupazione nel Diritto di Guerra, 1949, p. 45), entendendo al-guns autores que coexistem dois ordenamentos estatais válidos durante a ocupa-ção (Capotorti, ob. cit., p. 57).

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É de se concluir, portanto, que essa exterritorialidade corresponde somenteao período da ocupação, e bem assim que não alcança as pessoas que já tenhamdeixado o serviço das forças armadas ocupantes (Strisower, ob. cit., p. 271).

Aplicando essas noções ao caso dos autos, é de se recordar, que nemStangl pertencia às forças armadas alemãs, quando serviu em Treblinka, nempertence mais ao serviço policial alemão, nem subsiste a ocupação do territóriode Treblinka pelos alemães.

O amplo conceito de exterritorialidade sustentado aqui pela Alemanhalevá-la-ia, com mais forte razão, a exercer o seu direito — que seria também umdever — de disputar à Áustria, com base no princípio territorial, o julgamento detodos os crimes ali cometidos durante os diversos anos do Anchluss, reclamandoo desaforamento, para a Justiça alemã, de todos os processos pendentes nostribunais austríacos.

Esse argumento ad absurdum — de que já se valera o Procurador-Geralem relação a numerosos fatos jurídicos que tiveram lugar no território polonêsdurante a guerra — contribui para afastar o princípio da territorialidade paraefeito da preferência pleiteada pela Alemanha.

c) Gravidade da Infração

Segue-se o critério do art. 6º, § 1º, letra a, ou seja, a preferência do Estado,cujo pedido “versar sobre a infração mais grave, segundo a lei brasileira”.

Na legislação brasileira, como de regra nas outras legislações, há corres-pondência entre a gravidade da infração e a gravidade da pena, e a pena, emnosso direito, não é rigidamente tabelada. Para dosá-la, o Juiz levará em conta(Código Penal, art. 42) os antecedentes e a personalidade do agente, a intensida-de do dolo, o grau da culpa, os motivos, as circunstâncias e conseqüências docrime. O Código de Processo Penal, por sua vez (art. 78, II, letra b), adota, entreoutros critérios, o “do lugar em que houver ocorrido maior número de infrações”,para determinar a competência, no caso de mais de um juízo serem competentes.

A conjugação desses dois dispositivos mostra que o conceito de gravidadeda infração, a que se refere o nosso direito extradicional, para se determinar apreferência entre os Estados requerentes, não se refere apenas ao tipo do delitocometido mas também, se o confronto for entre delitos do mesmo tipo, à gravida-de in concreto. No caso dos autos, verifica-se essa última hipótese.

Tendo-se em vista os elementos previstos em nossa lei para a dosagem dapena, que em grande parte está em correspondência com a gravidade do delitocometido, é indiscutível que as infrações penais cometidas em Treblinka forammuito mais graves que as de Hartheim, inclusive, como foi observado no

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memorial da Alemanha, porque não se poderia, em relação a Treblinka, invocara eutanásia para uma possível, embora remota, qualificação de homicídio privile-giado. Cabe, pois, à Alemanha a preferência para a extradição, já que recusamoso julgamento pela Áustria quanto aos fatos de Treblinka.

Prevê também a nossa lei (art. 6º, § 2º) que, reconhecida a preferência deum dos Estados requerentes, pode ser estipulada a condição da entrega ulteriordo extraditando aos outros requerentes. Ficaria, pois, a Alemanha com a obriga-ção de reextraditar o acusado, a fim de ser julgado, na Áustria, pelos fatos deHartheim.

XIII - Conclusão

Concluo o meu voto, Sr. Presidente, autorizando a entrega do extraditando àAlemanha, mediante o compromisso de ser convertida a pena de prisão perpétua —se essa lhe for aplicada — em pena de prisão temporária, e de ser o extraditandoentregue, ulteriormente, à Justiça da Áustria, observandas as demais condiçõesdo Decreto-Lei 394/38, especialmente as do art. 12. Em conseqüência, julgo pre-judicado o HC 44.074.

VOTO

O Sr. Ministro Adaucto Cardoso: Sr Presidente, são realmente admirá-veis os trabalhos do eminente Sr. Ministro Relator e do Dr. Procurador-Geralda República, e a minha difícil situação de primeiro vogal tem que ser justificada,porque, acompanhando, como acompanhei, o voto do eminente Sr. MinistroVictor Nunes, e dando a ele quase que integral solidariedade, tenho que justificar-me de discrepar de S. Exa., rogando-lhe que para isso me dê a vênia necessáriaquanto à prescrição e à preferência.

Eu entendo, Sr. Presidente, que, depois que o homicídio passa a se chamar“morticínio”, não se poderá distinguir entre o mais grave e o menos grave. Omorticínio tem sempre...

O Sr. Ministro Hahnemann Guimarães: Genocídio.

O Sr. Ministro Adaucto Cardoso: Eu fujo ao neologismo: genocídio, parame referir, apenas, àquilo que já era da nossa lei penal, antes da Lei 1.088.Morticínio, houve em Hartheim ou em Treblinka; dificilmente se poderá dizer qualdeles terá sido o mais grave.

Por outro lado, em tenho dificuldade em deixar de concordar com o Dr.Procurador-Geral da República, no seu admirável trabalho, no sentido de que oextraditando estava sob prisão preventiva, como reconhece o próprio eminenteSr. Ministro Relator. Fugiu durante a instrução criminal.

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O Sr. Ministro Victor Nunes (Relator): Quanto a Hartheim. Não quanto aSobibór e Treblinka. Esse é outro processo.

O Sr. Ministro Adaucto Cardoso: V. Exa. talvez não me tenha ouvido. Nãoposso distinguir entre dois morticínios o mais grave.

O Sr. Ministro Victor Nunes (Relator): Na Áustria, fizeram-se dois pro-cessos: um, em Linz, quanto a Hartheim; outro, em Viena, quanto a Sobibór. Naacusação de Linz, não se dizia uma palavra sobre Treblinka.

O Sr. Ministro Adaucto Cardoso: Exatamente. Mas, o que acontece é quehá prioridade, que se deve conceder à República Federal da Áustria, em razão doprocesso de Hartheim, que envolve e supera a prioridade que se pudesse conce-der à República Federal da Alemanha.

É por isso que, concordando inteiramente com o voto de V. Exa., eu apenasdiscrepo na matéria da prioridade, entendendo que se deve atender, prioritariamente,ao pedido da Áustria, pois que a instrução estava aberta enquanto fugiu o extraditan-do e não se pode compreender ocorrência de prescrição com a instrução criminaliniciada.

O Sr. Ministro Victor Nunes (Relator): Mas isso quanto a Hartheim. Tam-bém não dei pela prescrição, quanto a Hartheim.

O Sr. Ministro Adaucto Cardoso: Mas concluiu que Hartheim não tinhaprioridade.

O Sr. Ministro Victor Nunes (Relator): Se V. Exa. mandar, primeiro, oextraditando para a Áustria, para que depois o entregue à Alemanha, esse com-promisso não se cumprirá, porque a lei austríaca proíbe a extradição dos seusnacionais.

O Sr. Ministro Adaucto Cardoso: V. Exa. acha que, nos casos de priorida-de processual, não deve competir ao Supremo Tribunal do Brasil decidir? Deve-mos reconhecer a prioridade que nos parece, em primeiro plano, como a maisnatural e aquela que observe os fatos.

O Sr. Ministro Victor Nunes (Relator): Mas atente V. Exa. para o art. 42do Código Penal. As conseqüências do delito são levadas em conta para se deter-minar sua gravidade, pois esta influi na fixação da pena. Não podemos dizer quematar 12 ou 13.000 pessoas em Hartheim seja a mesma coisa que matar 300.000em Treblinka.

O Sr. Ministro Adaucto Cardoso: V. Exa., que tem sido meu mestre emtantas oportunidades, poderia me esclarecer se a primeira afirmativa que fazia,ao dar meu voto, sofre de sua parte qualquer contestação, isto é, se a palavra“morticínio”, a prática de homicídio em massa, depois de ultrapassar certa cifra,

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não é mais passível de confronto ou de comparação em termos de maior oumenor gravidade? Entre matar 20.000 ou matar 200.000, V. Exa. acha que nãohá possibilidade, do ponto de vista de conseqüências penais, estabelecer-se algu-ma gradação?

O Sr. Ministro Victor Nunes (Relator): Sim, uma gradação vinculada àextensão das conseqüências, pois o art. 42 do Código Penal também manda levarem conta a intensidade do dolo, para determinar a gravidade do delito e, portanto,a fixação da pena. É claro que uma vida humana é tão valiosa como centenas oumilhares. Mas o crime de genocídio foi instituído como crime de direito internacio-nal em razão, entre outros elementos, da quantidade das vítimas. Se tivessemassassinado dois ou três judeus, não haveria a vasta literatura que temos sobre ogenocídio.

O Sr. Ministro Adaucto Cardoso: Em Hartheim também foi genocídio.

O Sr. Ministro Victor Nunes (Relator): Não sei se foi, porque não está com-pletamente esclarecido se a intenção, ali, era de exterminar uma raça. Fala-se emdoentes mentais, em pessoas fracas ou envelhecidas, em adversários políticos...

O art. 42 manda, expressamente, considerar a “intensidade do dolo ougrau de culpa”. Pode-se dizer que a situação de Stangl, comandando um campode extermínio, Treblinka, é a mesma de quando dirigia o escritório administrativode outro estabelecimento de extermínio, Hartheim, onde dois médicos eram osprincipais responsáveis pela parte, propriamente, das execuções?

O Sr. Ministro Adaucto Cardoso: Não desejo, Sr.Ministro Relator, contra-por o meu conhecimento, quase que perfunctório dos fatos, àquele conhecimentoadmirável que V. Exa. demonstrou em seu relatório. Mas, além das alegações oudos fundamentos que já apresentei, no sentido de não atender a essa prioridadepara a República Federal da Alemanha, ainda ocorre o caso da existência daprisão perpétua, no caso da República Federal da Alemanha.

O Sr. Ministro Hahnemann Guimarães: Mas o eminente Sr. MinistroRelator exige que seja estipulada a comutação da pena de prisão perpétua emprisão temporária.

O Sr. Ministro Adaucto Cardoso: No caso, meu caro mestre HahnemannGuimarães, eu adoto aquela desconsolada e cética afirmativa do eminente Sr.Ministro Gonçalves de Oliveira sobre a validade dos compromissos impostos peloJudiciário ou pelo Executivo ao Judiciário de um outro País: não sabemos até queponto esse compromisso de comutação poderá ser atendido.

O Sr. Ministro Hahnemann Guimarães: Mas o eminente Sr. MinistroRelator citou jurisprudência deste Tribunal em que se estabeleceu a comutação enão houve notícia de que não houvesse sido atendido o compromisso.

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O Sr. Ministro Victor Nunes (Relator): Os doutrinadores ressalvam oscasos de extradição pedida de má-fé. Mas, neste Tribunal, ninguém supõe que aAlemanha, a Áustria ou a Polônia estejam pedindo de má-fé a extradição.

O Sr. Ministro Adaucto Cardoso: Entre o compromisso de comutação e asolução do problema por meio de uma modificação da escala de prioridades,entendo, Sr. Presidente, que a concessão dessa prioridade ao pedido da Áustrianos traz mais garantias e nos convém mais, do ponto de vista político-judiciário deassistência internacional à repressão ao crime.

É por isso que, divergindo do eminente Sr. Ministro Relator, apenas quantoà prioridade, que eu concedo ao pedido da Áustria, acolho e dou inteiro apoio aovoto de S. Exa.

VOTO

O Sr. Ministro Djaci Falcão: Sr. Presidente, Srs. Ministros. Da leitura dominucioso relatório distribuído pelo eminente Sr. Ministro Victor Nunes, doexaustivo e erudito parecer do eminente Professor Haroldo Valadão, do confron-to dos brilhantes trabalhos oferecidos pelos ilustres advogados e, já agora, após aanálise percuciente feita pelo eminente Sr. Ministro Relator, guardo a tranqüilaconvicção da presença dos pressupostos materiais e formais que legitimam odeferimento da extradição solicitada pela Alemanha e pela Áustria.

Dúvida não padece de que ao extraditando é imputada a prática de homi-cídio qualificado, nos campos de extermínio de seres humanos, da Áustria, daPolônia e da Alemanha.

Nos pedidos, são descritos crimes, com indicação de lugar, de mês e deano, nos quais a marcante participação do extraditando Stangl, como diretor ecolaborador, surge a cada passo dos processos.

Em relação aos crimes praticados em Hartheim, na Áustria, desde quehouve abertura da instrução criminal, como se infere dos atos processuais deter-minados pelo Tribunal de Linz, ou sejam, prisão preventiva, ato de acusação oulibelo, verificados em julho de 1948 — tem-se interrompido, assim, o curso doprazo prescricional, que é de 20 anos, inclusive em face da legislação penal bra-sileira — art. 109, inc. I, do nosso Código Penal. Isso, sem a necessidade de sealudir à convocação, por decisão do Tribunal de Viena, ocorrida a 21 de março de1962, na persecutio criminis da ação penal. Ademais, ali, nos dias que correm, apena é tão-só privativa da liberdade.

No que tange ao pedido formulado pela Polônia, em razão de crimes co-metidos em Sobibór e Treblinka, não está positivada, na verdade, a existência dequalquer ato de abertura judicial de processo, de modo a caracterizar a interrup-

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ção do prazo prescricional, que começou a fluir nos idos de 1943 e de que járesultou a extinção da ação penal, pelo decurso de prazo superior a vinte anos.

Ademais, a figura da entrega, argüida pelo ilustre Advogado da Polônia,foge, evidentemente, ao alcance do instituto da extradição.

E, no que diz respeito à Alemanha, inatacável é a jurisdição da Justiçaalemã, por se tratar de estrangeiro a serviço da própria Nação, da Alemanha.

Por outro lado, a provocação do Ministério Público, através de requeri-mento de instrução do processo, firmado a 3 de maio de 1960, a toda evidência,interrompeu o prazo de prescrição dos crimes de Treblinka, tanto em face da leialemã (§ 68 do Código Penal) como à vista do Código Penal brasileiro (art. 117,inc. I), eis que os delitos ocorreram nos anos de 1942 e 1943.

Finalmente, não há cogitar de crime de natureza política, consoante ressal-vou, com invejável acerto conceitual, o eminente Sr. Ministro Relator.

Acolho, também, o voto de S. Exa., quanto ao entendimento de prioridadeda Justiça alemã.

Com essas singelas considerações, concluo, pois, com o eminente Sr. MinistroRelator, pela entrega do extraditando à Alemanha e à Áustria, sucessivamente, des-de que não há Tribunal internacional para julgar os crimes que lhe são imputados.

VOTO

O Sr. Ministro Eloy da Rocha: Sr. Presidente, estou de acordo, na quasetotalidade, com a fundamentação do brilhante voto do eminente Ministro Relator enão vou senão fazer, ainda, uma ou outra ponderação, sobre alguns dos pontos princi-pais, e, por último, manifestar minha divergência, no tocante à preferência do pedido.

A primeira questão, posta no voto, como nos debates, é constitucional, asaber, a falta de declaração ou promessa de reciprocidade, que, para a defesa,deveria existir, na forma do art. 83, inc. VIII, da Constituição de 1967. Não aco-lho a alegação, já pelos fundamentos expostos pelo eminente Relator. Tenhocomo certo que essa declaração de reciprocidade, no caso, não se compreendeno preceito constitucional que confere ao Presidente da República, privativamen-te, competência para celebrar tratados, convenções e atos internacionais, adreferendum do Congresso Nacional. Não se cuida, aqui, de celebrar ato internacio-nal. Cuida-se, somente, de receber declaração — manifestada de conformidadecom a lei do Estado requerente —, no processo de extradição, cujo julgamento,pela Constituição, cabe ao Supremo Tribunal Federal. A Constituição, no art. 114,inciso I, letra g, ao dispor que ao Supremo Tribunal Federal compete processar ejulgar a extradição dá-lhe o poder de apreciar o pedido na totalidade.

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A segunda questão, por igual, foi bem decidida: a da compatibilidade dapena aplicável ao extraditando, com o sistema constitucional brasileiro — art.150, § 11, da Constituição. A solução está no compromisso previsto no art. 12 doDecreto-Lei 394, de 28-4-1938.

O ponto maior de controvérsia, afora o da preferência, reside na prescri-ção. A regra, com referência à prescrição, é a da lei brasileira, se esta for favo-rável ao extraditando. Nessa hipótese, incidirá a lei brasileira, inclusive quanto àregulação dos atos que possam interromper ou suspender o curso do prazoprescricional. Não observará o Tribunal, no julgamento de extradição, outra regrasobre prescrição, que não a da lei brasileira, se esta for favorável.

O Sr. Ministro Gonçalves de Oliveira: Não seria melhor ambas: a da leiestrangeira e a da lei brasileira, se esta for favorável.

O Sr. Ministro Eloy da Rocha: Se houver coincidência, não haverá proble-ma. Se houver conflito, prevalecerá a lei brasileira, sendo propícia ao extraditando.Por isso, dispõe o Decreto-Lei 394 que não será concedida a extradição, quando setiver verificado a prescrição, segundo a lei do Estado requerente, ou a brasileira. Noconflito, no tocante ao prazo de prescrição, ou à causa interruptiva, qualquer queseja a diversidade, deve ser aplicada a lei brasileira. Assim, não se admitiria aimprescritibilidade, para certo crime, contrariamente ao que acontece entre nós.Respeitada aquela condição, as normas do Estado requerente serão aplicá-veis, também, relativamente à questão, de direito material, de suspensão ou inter-rupção do curso da prescrição. Mas daí não se segue que, no exame dessa ques-tão, se pudesse cogitar da aplicação, por inteiro, do processo de Estado estrangei-ro. Mencionou-se, no debate, com acerto, que não é possível que se busque iden-tidade total nos processos dos diferentes Estados. O eminente Procurador-Geralda República, no parecer escrito e no oral, que são lições magistrais, mostrou,com propriedade, que é necessário examinar, com adaptação, a respeito da causainterruptiva, o processo do Estado requerente, para ver se há, no fundo, coinci-dência; se se realiza o mesmo fim que o legislador brasileiro teve em vista, aoinstituir a causa interruptiva da prescrição. Quando a nossa lei penal especificacomo causa de interrupção o recebimento da denúncia ou da queixa — art. 117,inciso I, do Código Penal —, assim declara porque este ato, no nosso sistemapenal, significa o início da ação penal. É o ato de acusação formal, estabelecidona lei, que constitui o começo da ação penal. É evidente, entretanto, que se apeça acusatória não é recebida, mas rejeitada, não se pode falar em ação penaliniciada. A partir do momento em que a denúncia é recebida pelo Juiz, interrom-pe-se o prazo da prescrição. Dentro deste sistema legal, que se impõe, é precisoapurar se, na espécie, ocorreu, ou não, a prescrição.

O caso da Polônia é fora de dúvida. Está sendo julgado, pacificamente,que não houve nenhum ato que servisse de interrupção da prescrição, entre os

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fatos atribuídos ao extraditando e o início da ação penal. O da Alemanha tambémnão enseja discussão. Dá-se como recebida a acusação em 4 de maio de 1960.Interrompeu-se, então, para o processo na Alemanha, o prazo de prescrição dalei brasileira, de vinte anos.

Mas, como se viu, do voto do eminente Relator e dos que se lhe seguiram,quanto à Áustria, há lugar para controvérsia. As imputações referem-se a trêsgrupos de fatos e a três lugares. Em relação aos fatos de Hartheim, não hádúvida, porque, em março de 1948, foi oferecida a acusação. A defesa alega queessa acusação importou mudança na qualificação do delito, que não se poderiaconsiderar para efeito da prescrição. O termo inicial não seria março de 1948,porém agosto de 1941. Não me parece, data venia, que tenha valia o argumento,porque, retificada ou aditada a denúncia, para o efeito de nova qualificação docrime, da última se há de contar o prazo. Assim, com referência a Hartheim, nãoocorreu a prescrição. A discussão, a meu ver, poderá existir quanto aos fatospraticados em Sobibór e em Treblinka. Mas, no que concerne a estes, igualmente,estou de acordo com o eminente Relator.

Resta a questão, que se me afigura mais difícil, de saber qual o Estado quedeve ter preferência na entrega. O eminente Relator analisou minuciosamente otexto legal sobre a preferência, que é o art. 6 do Decreto-Lei 394. A primeiraregra sobre a preferência é a do § 3º: a estipulada em tratado. Não havendotratado, incide a lei, que faz distinção: se se trata do mesmo fato ou de diversos.Não se trata, aqui, do mesmo fato, senão de diversos. Portanto, é aplicável aregra do § 1º. Quando não for o caso de observância dessas regras, a preferênciaficará ao arbítrio do Governo brasileiro. Dispõe o § 1º, letra a:

“Tratando-se de fatos diversos:

a) o que versar sobre a infração mais grave, segundo a leibrasileira”;

Peço vênia ao eminente Relator para dissentir de seu entendimento so-bre a expressão legal: “infração mais grave, segundo a lei brasileira”. A classi-ficação do crime é que definirá a infração mais grave, segundo a lei brasileira.Conforme inferi da exposição feita, como pude ler nos memoriais e no relató-rio, a qualificação legal dos crimes, em todos os pedidos, é a mesma. Dessemodo, a meu ver, não se resolve a preferência, na espécie, com a regra do § 1ºletra a do art. 6º.

Com o voto do eminente Relator, em face dos três pedidos, avulta essaquestão da preferência. Consideração relevante é a de que é deferido o pedidoda Áustria para julgamento, somente, dos fatos de Hartheim. A requisição daAlemanha não se estende a esses fatos; reduz-se aos de outro grupo, os deTreblinka. A Alemanha, com fundamento na lei que lhe permite punir agente,

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mesmo estrangeiro, que, no exercício de função pública alemã, em qualquer parte,tenha cometido crime, pede extradição, unicamente, em relação a Treblinka, enão a Sobibór e a Hartheim, onde o extraditando também procedeu na qualidadede agente alemão. Vê-se que o fundamento de seu pedido é, ainda, o daterritorialidade — inadimissível, no caso —, porque Treblinka, na Polônia, foraocupada pela Alemanha.

Parece-me que a preferência se determinará nos termos do art. 6º, § 1º,letra b, isto é, terá prioridade o Estado que, em primeiro lugar, houver solicitado aentrega. Portanto, a Áustria. Há uma objeção, que ouvi dos eminentes colegas,para a declaração de prioridade da Áustria, com a condição, que o eminenteRelator já mencionou, de assumir o Estado a que for assegurada a preferência, ocompromisso de fazer, depois, a entrega ao outro requerente: a lei austríaca nãopermite a extradição de nacional por crime cometido no estrangeiro; ele serájulgado conforme a lei austríaca. Cabe, pela lei brasileira, a prioridade à Áustria.A mesma lei, que dá essa prioridade, preceitua que poderá ser imposta a condiçãode entrega ulterior a outros requerentes. Essa condição será declarada na decisãodo Supremo Tribunal Federal, ao julgar a legalidade do pedido.

O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: Permita, V. Exa.: aí haveria um embaraçode ordem legal na Áustria. É que ela, como o Brasil, não concede a extradição donacional. Então se vedaria completamente a possibilidade de esse extraditandoser entregue mais tarde a julgamento na Alemanha. A solução que propôs o emi-nente Relator asseguraria os dois objetivos.

O Sr. Ministro Eloy da Rocha: É exatamente o que me faz ponderar. Pelalei brasileira, a meu ver, cabe a preferência à Áustria, com a condição do art. 6º,§ 2º. Ao cumprimento da decisão do Tribunal, poder-se-á opor, na Áustria, aregra local de ordem pública: o austríaco não será extraditado por crime cometidono estrangeiro; ele será julgado segundo a lei austríaca. Ora, este Tribunal poderáimpor aquela condição? Explica-se a minha afirmação, feita há um instante, deque, para mim, a maior dificuldade é resolver sobre a preferência do pedido. Asolução deverá resultar de adaptação, de conciliação dos princípios. Por isso,concordo, agora, diante do debate, em acompanhar o voto do eminente Relator,também nessa parte, embora, em princípio, me parecesse acertado reconhecer apreferência da Áustria.

VOTO

O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: Sr. Presidente, acredito que o eminenteMinistro Edgar Costa, quando tiver de completar sua preciosa obra sobre os casoscélebres do Supremo Tribunal Federal, por certo incluirá o julgamento desta tarde.

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Pelas horas que consumi esta noite, até madrugada, e toda a manhã, só emler os memoriais — e não consegui devorá-los todos —, posso avaliar a corvéiaterrível, que desempenhou com todo o brilho e êxito o eminente Relator. Aliás,todos os que participaram do julgamento, os ilustres advogados, o Dr. Procurador-Geral da República, todos cumpriram admiravelmente seu dever. Quero fazerreferência especial ao advogado dativo que o eminente Relator nomeou ao extra-ditando. Raras vezes, na história do foro brasileiro, terá um advogado cumprido oseu dever com tanto zelo, tanta abnegação, numa causa tão dura e tão ingrata.Isso deve honrar o foro de Brasília, e servirá de exemplo a todos os jovens queaqui tão dignamente exercem sua missão.

Acredito que este desempenho do Professor Xavier de Albuquerque sepoderá comparar àqueles casos famosos, a que se referiu Rui Barbosa nos dis-cursos que proferiu na Ordem dos Advogados, em 1911 e em 1914.

Mas, Sr. Presidente, já o assunto foi completamente analisado, dissecado,retalhado, e acredito que este acórdão servirá de uma espécie de consolidaçãode várias teses, que em outros processos de extradição já foram aflorados.

No final das minhas leituras desta manhã, calculei como iria votar, e mefelicito de ver que meu voto coincidiu com o do eminente Relator. Tive dúvidas arespeito de Hartheim. Pareceu-me que os crimes ali cometidos estavam prescri-tos. Mas creio que houve algo como um libelo, algo como uma etapa para ojulgamento imediato, quando o extraditando fugiu, em 1948. Nesse caso não secompletaram os vinte anos.

Quanto à questão da reciprocidade, também fiquei profundamente vaci-lante, não que fosse insensível aos argumentos do eminente Procurador-Geralda República, que analisa os problemas da preferência, da reciprocidade e atémesmo sobre certos aspectos de ordem prática. Parece-me que o mais líquidodos casos, sobre interrupção de prescrição, é aquele da Justiça de Düsseldorf,em 4-5-62.

Acompanho em toda linha o voto do eminente Relator, com as mesmascautelas, condições e limites, inclusive, no que se refere à reciprocidade. Parece-meque isso está no pensamento de S. Exa, embora na conclusão não houvessereferência ao compromisso da reciprocidade.

VOTO

O Sr. Ministro Adalicio Nogueira: Sr. Presidente, eu não ousaria, nestaaltura da discussão que se travou, em torno deste processo, aditar quaisquerconsiderações de ordem jurídica ao brilhante voto do eminente Relator, comquem declaro estar, em todos os aspectos da questão ventilada.

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É oportuno, neste momento, manifestar a repulsa da minha consciênciajurídica a esse genocídio monstruoso, a esse crime inominável que, relembrandoos versos do imortal poeta português:

“é um crime que profana todas as grandes leis da consciênciahumana, todas as grandes leis da vida universal.”

É esse um crime que, ao menos no plano moral, é irresgatável eimprescritível, porque transcende, de muito, a órbita do direito comum, para ferir,fundamente, não só o direito humano, mas, por assim dizê-lo, o próprio direitodivino e o direito natural. Isso significa que ele refoge às prescrições da legisla-ção ordinária, para alcançar uma repressão, que a estreiteza dos Códigos nãocomporta, em face dos traços hediondos que o entenebrecem e horrorizam.

É esse um delito estranho, que atenta, brutalmente, contra todos os senti-mentos de fraternidade e de solidariedade humana; que vulnera o que há de maisnobre, de mais alto e de mais sagrado na alma do homem, degradando-o à bes-tialidade, à grosseria e à estupidez da mais baixa animalidade. Nem a inconsciênciada era da caverna o aviltou tanto.

Faço essas declarações que soam como um desabafo, para significar queum crime de tal porte não pode ser julgado à luz do rigor da técnica, tão exaltadapela brilhante inteligência do douto Advogado do extraditando, mas à vista decritérios morais impostergáveis, que, em fato de tamanha relevância, devemproeminar e primar sobre a frieza das apreciações jurídicas.

VOTO

O Sr. Ministro Evandro Lins e Silva: Quero pôr em destaque, como antigoadvogado que fui, na especialidade criminal, durante muitos anos, a atuação dosadvogados nesta causa, mas quero dar um relevo especial ao trabalho do Prof.Xavier de Albuquerque, impecável na forma e magistral na técnica. Ressaltoa dignidade, a altitude, a elevação com que enfrentou uma causa ingrata eimpopular...

O Sr. Ministro Adalicio Nogueira: Peço licença a V. Exa. para declararque sou solidário às suas palavras, nesse ponto.

O Sr. Ministro Evandro Lins e Silva: ... elevando-se à altura dos grandesexemplos de advogados que, em todos os tempos, têm sabido pôr além do seutalento, também, a sua bravura e a sua capacidade de sacrifício na defesa dativa,desinteressada, de um acusado de crimes repugnantes.

Acho que a ata dos nossos trabalhos deve registrar esse esforço, essetrabalho prestado, de ofício, à Justiça, com o estudo e a preocupação de

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desincumbir-se da sua tarefa, para que, amanhã, não se diga, num julgamentodesta importância, num caso de repercussão universal, que a Justiça brasileiranão deu ao extraditando um advogado à altura da sua defesa, sabidamente difícile arriscada.

O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: Muito bem!

O Sr. Ministro Evandro Lins e Silva: É claro que não preciso elogiar o Dr.Procurador-Geral da República pela sua atuação no processo.

Mas ao que quero dar ênfase, nesta hora, é ao trabalho do advogado dedefesa, embora divergindo da sua argumentação num ponto: é quando S. Exa.diz que, na lei brasileira, a interrupção da prescrição só se dá através de atosdecisórios. O art. 117 do Código Penal também faz interromper a prescrição“pelo início ou continuação do cumprimento da pena” e “pela reincidência”.Nenhuma dessas hipóteses é ato decisório. Parece-me que, neste ponto, oentusiasmo do Advogado levou-o a fazer uma afirmação contrária ao que secontém em nossa legislação positiva. A reincidência, que não é ato decisório, e,sim, um novo crime praticado pelo próprio réu, interrompe a prescrição. Assimtambém acontece com o início do cumprimento da pena. Vê-se, pois, que aprescrição pode interromper-se com a existência de um fato que não importaem decisão do juiz.

O Sr. Ministro Gonçalves de Oliveira: O ilustre advogado queria referir-seà ação penal antes do julgamento.

O Sr. Ministro Evandro Lins e Silva: Os atos de interrupção, previstos no art.117 do Código Penal, são esses. E quanto ao ato de recebimento da denúncia — opróprio advogado sabe, tão bem quanto nós, e o eminente Relator pôs isso em desta-que —, há controvérsia sobre se é um ato decisório, ou se meramente ordenatório.

Com relação à preferência, acho que há um argumento decisivo em apoioà conclusão do eminente Relator. O crime não foi cometido apenas no territóriopolonês, ou apenas no território alemão. A preferência decorre de que, entrevários atos, talvez o principal — a deliberação para a execução do crime —ocorreu na Alemanha, na cidade de Berlim. Foi lá que um grupo se reuniu paradeliberar a “solução final”, eufemismo para o extermínio e liquidação da raçajudaica. O crime foi cometido, principalmente, na Alemanha, quer dizer, o seuplanejamento partiu todo de Berlim. A sua execução material é que se deu emTreblinka, Sobibór e Hartheim, e em outros lugares. Os co-réus no processoestavam na Alemanha e já foram, vários deles, julgados pela Justiça desse País.A preferência, de acordo com a nossa lei, está em que o crime foi cometidotambém em território alemão. Além disso, o extraditando era funcionário do Go-verno alemão, na época do crime, e agia nessa qualidade. A maior gravidade,com a devida vênia do eminente Ministro Adaucto Cardoso, me parece que é,

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indiscutivelmente, a dos crimes cometidos em Treblinka. Se nós nos enchemos dehorror com o morticínio de treze mil pessoas no laboratório de Hartheim, essehorror é elevado ao cubo quando sabemos que foram setecentos mil os mortosdos campos de Treblinka.

O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: Em Hartheim, pode-se dizer que houve,talvez, eutanásia, ou coisa assim. Há países que aplicam a castração em certoscriminosos, embora exijam a concordância.

O Sr. Ministro Evandro Lins e Silva: Além da maior gravidade, os crimesde Treblinka se deram durante maior espaço de tempo, ou seja, durante um ano,enquanto em Hartheim a sua atuação foi de alguns meses. Portanto, maior inten-sidade da ação criminosa em Treblinka.

Maior gravidade, também, porque o extraditando tem, no processo deTreblinka, uma posição muito mais destacada do que no processo de Hartheim.

A brilhantíssima defesa do Prof. Xavier de Albuquerque ainda levantou aquestão da não-interrupção da prescrição nas contravenções. Realmente, não háinterrupção, porque o processo se inicia por meio de portaria, ou por meio deprisão em flagrante. Não se dá a prescrição, porque a menor importância, amenor gravidade da infração fez com que o legislador não necessitasse cogitarde causa interruptiva. No crime houve uma precaução do legislador pela neces-sidade de impedir que as delongas do inquérito policial, ou o congestionamento daJustiça, retardando o julgamento do processo, pudessem facilitar a prescrição deinfrações graves, com desastrosas conseqüências para a defesa social. É certo —como disse o ilustre advogado — que o extraordinário Carrara coraria, se vivesse,ao ler uma disposição penal que interrompesse a prescrição com o recebimentoda denúncia. Mas, legem habemus.

Sr. Presidente, estou de inteiro acordo com o eminente Relator.

VOTO

O Sr. Ministro Gonçalves de Oliveira: Sr Presidente, também estou deacordo com o douto, brilhante e substancioso voto do eminente Ministro Relator.Estou, também, de acordo com S. Exa. quando exige do Estado requerente quenão imponha ao extraditando uma pena perpétua. Esta cautela, de resto, a meuver, resulta da interpretação do art. 12, letra a, na nossa Lei de Extradição, De-creto-Lei 394, quando diz:

“A entrega não será efetuada sem que o Estado requerente assumaos compromissos seguintes:

a) não ser detido o extraditado em prisão, nem julgado, por infraçãodiferente da que haja motivado a extradição e cometida antes desta, salvo

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se livre expressamente consentir em ser julgado ou se permanecer emliberdade, no território desse Estado, um mês depois de julgado e absolvidopor aquela infração, ou de cumprida a pena de privação de liberdadeque lhe tenha sido imposta”.

Quer dizer: essa restrição é no pressuposto de que será dada ao extradi-tando, no máximo, a pena privativa de liberdade, que é prevista pela lei, em vinteanos, atualmente.

Então, Sr. Presidente, como assinalou o douto advogado do extraditando,tenho posto restrições a que a Administração do país requerente possa assumir ocompromisso pelo Poder Judiciário, mas é verdade que a nossa lei prevê essecompromisso, no art. 12. E como a extradição já está consentida, já está conce-dida por este Tribunal, fico de acordo com o eminente Relator, em impor aoEstado requerente esse compromisso expresso.

Com essas considerações, acompanho e voto do eminente Relator.

VOTO

O Sr. Ministro Candido Motta Filho: Estou de acordo como o voto do emi-nente Relator em todos os seus termos, acrescentando, ainda, as palavras doeminente Ministro Evandro Lins, a propósito do ilustre advogado dativo, a quemrendo minha homenagens.

VOTO (Retificação)

O Sr. Ministro Adaucto Cardoso: Sr. Presidente, mais importante do que asminhas convicções é a unanimidade do Tribunal. Prestei ao admirável trabalho doeminente Procurador-Geral da República a homenagem do meu voto, com o re-conhecimento de prioridade para o pedido da República Federal da Áustria. Ago-ra, presto homenagem a este Tribunal, rogando que V. Exa. proclame a decisãocomo unânime, já que, para isso, acompanho a conclusão do eminente Relator.

EXTRATO DA ATA

Ext 272/Áustria — Relator: Ministro Victor Nunes. Requerente: Governoda Áustria (Advogado: George Tavares). Extraditando: Franz Paul Stangl (Advo-gado: Francisco Manuel Xavier de Albuquerque).

Ext 273/Polônia — Relator: Ministro Victor Nunes. Requerente: Repúbli-ca Popular da Polônia (Advogado: Alfredo Tranjan). Extraditando: Franz PaulStangl (Advogado: Francisco Manuel Xavier de Albuquerque).

Ext 274/Alemanha — Relator: Ministro Victor Nunes. Requerente: Repú-blica Federal da Alemanha (Advogado: Antonio Evaristo de Moraes Filho). Extra-ditando: Franz Paul Stangl (Advogado: Francisco Manuel Xavier de Albuquerque).

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HC 44.074/DF — Relator: Ministro Victor Nunes. Impetrantes: JoséOctávio Teixeira Pinto e Sklinner Lopes. Paciente: Franz Paul Stangl .

Decisão: Indeferido o pedido da Polônia; autorizada a entrega do extraditan-do, em primeiro lugar, à Alemanha, com o compromisso de conversão da pena deprisão perpétua em prisão temporária, e bem assim, o da ulterior entrega do extra-ditando à Justiça da Áustria, observadas as demais condições da lei, especialmenteas do art. 12; julgado prejudicado o habeas corpus. Decisões unânimes.

Presentes os Ministros Adaucto Cardoso, Djaci Falcão, Eloy da Rocha,Aliomar Baleeiro, Oswaldo Trigueiro, Adalicio Nogueira, Evandro Lins, HermesLima, Victor Nunes, Gonçalves de Oliveira, Candido Motta, Hahnemann Guimarãese Lafayette de Andrada. Licenciados, os Ministros Pedro Chaves e Prado Kelly.

Plenário, 7 de junho de 1967 — Dr. Álvaro Ferreira dos Santos, Vice-Diretor-Geral.

RECURSO ORDINÁRIO ELEITORAL 366 — PR

Recurso eleitoral. Matéria constitucional. O Supremoaprecia os recursos quando a decisão do Tribunal SuperiorEleitoral houver denegado habeas corpus e mandado desegurança, quando se alegar invalidade de lei ou ato contrá-rio à Constituição e, por força de compreensão, quando sealegar a violação da própria Constituição. No caso, decidiu-se ser inelegível o genro do Governador, não tendo, assim,havido violação da Lei Fundamental, razão pela qual não seconheceu do recurso.

VOTO (Preliminar)

O Sr. Ministro Victor Nunes: Senhor Presidente, V. Exa. e nossos eminentescolegas sabem do alto apreço em que tenho a continuidade das decisões do Su-premo Tribunal. Entretanto, esse respeito pela nossa coerência, de que resultaprestígio para o Supremo Tribunal, não exclui o debate esclarecedor de questõesjá tranqüilizadas pelo Tribunal. Esse debate pode, eventualmente, levar a maioriaa outras conclusões. O que me parece inconveniente são as alterações não prece-didas de ampla discussão, de pleno esclarecimento, porque lançam confusão noespírito das partes e conduzem à insegurança jurídica.

Os brilhantes votos já proferidos acentuaram que, no nosso sistema, há umórgão incumbido de dizer a última palavra na interpretação da Constituição. Esseórgão é o Supremo Tribunal Federal. Teria a Constituição, no art. 120, quebrado

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Ministro Victor Nunes

essa unidade, criando uma dualidade que poderia retirar ao Supremo Tribunal asua própria razão de ser? O Supremo Tribunal nasceu à imagem da Corte Supremados Estados Unidos, cuja tarefa fundamental, nunca mais posta em dúvida depoisdo caso Marbury v. Madison, é a de dar a última palavra sobre a Constituição. OMinistro Felix Frankfuster, quando professor de Direito Constitucional, usandouma vigorosa imagem, costumava dizer aos seus alunos que a Corte Suprema é aConstituição.

O Sr. Ministro Luiz Gallotti: A Constituição é o que a Corte Suprema dizque é.

O Sr. Ministro Hahnemann Guimarães: A Constituição é o que a lei ordiná-ria diz que ela é. A lei ordinária é que regula o funcionamento da Corte Suprema.

O Sr. Ministro Victor Nunes: Mas, quando se trata de interpretar a Cons-tituição, a competência da Corte Suprema resulta da própria Constituição, com osentido que ela mesma lhe deu, e não da lei ordinária.

Retomando o meu raciocínio, teria a Constituição brasileira quebrado osistema, permitindo que dois órgãos judiciários pudessem dizer a última palavraem torno de um texto da Constituição? Parece-me que não. E suponho, falandocom todo o respeito, que o entendimento até aqui preponderante pode conduzir aesse resultado.

Veja V. Exa., Senhor Presidente. A mesma questão de direito pode serenquadrada em recurso eleitoral, stricto sensu, e em mandado de segurança.Suponhamos que, no recurso eleitoral, o Tribunal Superior Eleitoral tenha proferi-do decisão no sentido da validade de uma lei, considerando-a compatível com aConstituição. Suponhamos que essa mesma questão jurídica, posta em mandadode segurança, negado pelo Tribunal Superior Eleitoral, venha ao Supremo Tribu-nal, e aqui afirmemos que aquela mesmíssima lei, declarada constitucional peloTribunal Superior Eleitoral, é inconstitucional. Que benefício haverá para o regi-me o fato de dois Tribunais dizerem a última palavra sobre a constitucionalidadeda mesma lei no exame da mesma questão jurídica? Se há essa aparenteduplicidade na Constituição, em face do seu art. 120, temos de recorrer a outrosdispositivos constitucionais para sabermos a quem cabe a prioridade, porque nãodeve, nem poder haver, em nosso sistema, dois Tribunais que interpretem o DireitoConstitucional de modo final ou conclusivo.

O Sr. Ministro Luiz Gallotti: Mas, enquanto no mandado de segurança aConstituição dá recurso ordinário da decisão denegatória, nos outros casos elacondiciona a que se trate de invalidade de lei ou ato contrário à Constituição,estabelecendo como regra a irrecorribilidade (art. 120).

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O Sr. Ministro Victor Nunes: V. Exa., Senhor Presidente, tem sustentado,com o brilhantismo de sempre, que a interpretação literal é a mais pobre dasinterpretações. V. Exa. demonstrou, com o apoio do Tribunal, que lhe cabe co-nhecer do mandado de segurança contra atos do Plenário da Câmara dos Depu-tados, ou do Senado Federal, interpretando construtivamente o art. 101, inciso I,letra i, da Constituição. V. Exa. decidiu da mesma maneira em relação aos atosdo Tribunal de Contas da União. Em nenhum desses casos, o Tribunal deuprevalência à expressão literal do texto, mas à sua interpretação sistemática.

O Sr. Ministro Luiz Gallotti: Para suprir uma lacuna.

O Sr. Ministro Victor Nunes: Naqueles casos, era para suprir lacunas; aquiestaremos corrigindo o que me parece uma contradição do texto constitucional.Tomado o art. 120 ao pé da letra, haverá dois Tribunais com competência paradar a última palavra sobre a constitucionalidade da mesma lei. Isso me parecetotalmente incompatível com o nosso sistema. Então, devemos resolver esse con-flito, que é aparente, com o amparo de outros dispositivos da Constituição.

Lembro dois. Um — o art. 8º — trata da intervenção federal nos Estados,assunto da máxima importância para o regime. A última palavra cabe ao Supre-mo Tribunal, nos casos que a Constituição prevê. Quis a Constituição marcar,assim, a preeminência do Supremo Tribunal. Outro, Senhor Presidente, o art. 64,mais relevante ainda, na linha do meu raciocínio, só permite ao Senado Federalsuspender a vigência da lei ou decreto, por inconstitucionalidade, diante de umadecisão do Supremo Tribunal.

Voltemos, agora, ao exemplo há pouco figurado. O Tribunal Superior Elei-toral, por hipótese, terá declarado que a lei é constitucional; o Supremo Tribunal,que ela é inconstitucional; e o Senado, com base na nossa decisão, suspende avigência da lei. Daí se conclui que a decisão do Tribunal Superior Eleitoral nãoera conclusiva, não era a última palavra. Se fosse, o Senado não poderia suspen-der a vigência de lei declarada inconstitucional por nós, mas que o Tribunal Supe-rior Eleitoral entendesse que seria constitucional.

O Sr. Ministro Luiz Gallotti: Nesse caso, caberia recurso. O que não admi-timos é o cabimento do recurso quando se questiona sobre a validade da própriadecisão judicial em face da Constituição.

O Sr. Ministro Victor Nunes: No exemplo figurado, o Tribunal SuperiorEleitoral teria declarado a validade da lei; logo, não caberia recurso, interpretan-do-se literalmente o art. 120. Meu argumento pode ser errado, mas não é ilógico,não é contraditório. Figurei um exemplo em que se pode dar um conflito entredecisões do Supremo Tribunal e do Tribunal Eleitoral quanto à interpretação daConstituição.

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Ministro Victor Nunes

O Sr. Ministro Hahnemann Guimarães: Este conflito seria entre uma deci-são do Supremo Tribunal e outra do Tribunal Superior Eleitoral, nos termos daConstituição, em matéria eleitoral.

O Sr. Ministro Luiz Gallotti: Note-se que a Constituição, no art. 120,estabelece como regra a irrecorribilidade das decisões do Tribunal SuperiorEleitoral.

O Sr. Ministro Victor Nunes: Não estou discutindo o problema no plano dainterpretação das leis ordinárias, porque não me parece necessário acrescentarcoisa alguma às considerações do eminente Ministro Gonçalves de Oliveira. Estoudiscutindo no plano da interpretação da Constituição. Figurei o exemplo de haveruma decisão do Tribunal Superior Eleitoral que seja contrária à Constituição,embora tenha declarado a validade de uma lei. Ao validar a lei, teria violado, elepróprio, a Constituição, como já a teria violado o Poder Legislativo, ao votar a lei.

O Sr. Ministro Luiz Gallotti: Realmente, neste caso, não seria possível orecurso, porque a Constituição, no art. 120, fala em declaração de invalidade dalei ou ato.

O Sr. Ministro Victor Nunes: Senhor Presidente, os apartes com que fuihonrado quebraram um pouco o fio do meu raciocínio. Para concluir meu voto,lembro que figurei um exemplo. Nesse exemplo, haveria um conflito entre deci-sões do Tribunal Superior Eleitoral e do Supremo Tribunal. Aquele teria declaradoa lei válida, em face da Constituição; o Supremo teria declarado a lei inválida.Interviria, depois, o Senado Federal, dando prevalência à nossa interpretação,jungido aos termos do art. 64.

O Sr. Ministro Luiz Gallotti: É um pouco difícil que uma lei eleitoral viesseao Supremo, num pleito comum. O art. 120, entretanto, permitiria a solução emrecurso de mandado de segurança.

O Sr. Ministro Victor Nunes: O art. 120 o permite: recurso de decisãodenegatória de mandado de segurança. Estou figurando esse exemplo.

O Sr. Ministro Luiz Gallotti: Aí estou de acordo e solucionaria o caso pelomandado de segurança. Para não violar o art. 120, e como a Constituição diz quecaberá o mandado de segurança, seja qual for a autoridade responsável pela ilega-lidade ou abuso de poder (art. 141, § 24), eu resolveria o caso com esse remédio.

O Sr. Ministro Victor Nunes: Mas pode haver conflito de decisões.

O Sr. Ministro Gonçalves de Oliveira: É muito mais fácil, então, o SupremoTribunal tomar conhecimento em recurso ordinário. Se admitirmos mandado desegurança nas decisões terminativas do Tribunal Superior Eleitoral, vamos

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Memória Jurisprudencial

admitir aqui mandado de segurança quando julgarmos embargos infringentes.E, no entanto, já decidimos no sentido contrário. O Supremo Tribunal entendeque não cabe mandado de segurança de decisão definitiva proferida em embargospelo Supremo Tribunal. Não pode caber, se não seria um nunca mais acabar.E seria fraude à lei: esta não admite nenhum recurso e a parte vem com asegurança.

O Sr. Ministro Luiz Gallotti: O que entendo é que o mandado de segurançanão pode substituir a rescisória, para corrigir a decisão que transitou em julgado.

O Sr. Ministro Victor Nunes: Senhor Presidente, no exemplo que figurei,pode dar-se o caso de conflito entre duas decisões sobre matéria constitucional,uma do Tribunal Superior Eleitoral, outra do Supremo Tribunal, intervindo o Senado,na forma da Constituição, para suspender a lei que o Supremo tiver declaradoinconstitucional. Isso significa, para mim, que a Constituição não quis quebrar aunidade da interpretação da Constituição, não quis criar dois órgãos capazes dedecidir conclusivamente da constitucionalidade das leis. Manteve essa prerrogativano Supremo Tribunal, porque somente quando o Supremo declara a lei inconstitu-cional é que o Senado pode suspender a sua vigência. E, quando o Supremo Tribu-nal houver decidido assim, pouco importa que o Tribunal Superior Eleitoral tenhajulgado diferentemente, porque o Senado pode suspender a vigência da lei, deixandode lado a decisão do Tribunal Superior Eleitoral e acatando a do Supremo Tribunal.

O Sr. Ministro Luiz Gallotti: Depois do procedimento do Senado Federal,nenhum tribunal mais pode aplicar a lei. Aí a decisão de Supremo Tribunal produzefeito erga omnes.

O Sr. Ministro Victor Nunes: Estou figurando a hipótese de serem proferi-das decisões antes da deliberação do Senado Federal. Depois de suspensa avigência da lei pelo Senado, nem o Supremo Tribunal, nem o Superior TribunalEleitoral poderiam cogitar de sua aplicação. Na hipótese figurada, embora o Tri-bunal Eleitoral tenha decidido, antes, que a lei era constitucional, terá prevalecidoafinal o nosso entendimento, porque nele é que se baseia o Senado para suspen-der a vigência da lei.

A prerrogativa de dizer a última palavra é do Supremo Tribunal. Devemos,por isso, interpretar o art. 120 tendo em vista essa prerrogativa, que é nossa, e daqual não devemos abrir mão, porque é inerente ao sistema, como observou oeminente Ministro Pedro Chaves.

Estou de acordo, pois, com o eminente Ministro Relator, também nãoconheço do recurso, porque não houve ofensa à Constituição.

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REPRESENTAÇÃO 477 — GB

Deputados estaduais da Guanabara.Constitucionalidade da fixação dos seus mandatos em qua-

tro anos, a contar da instalação da Assembléia.O Poder Constituinte estadual não pode sofrer limitações

impostas por lei ordinária federal e sim apenas as contidas naConstituição Federal, conforme preceitua o seu art. 18.

No choque entre uma lei federal e uma Constituição esta-dual, há que apurar, para dar solução ao conflito, qual delas seafastou das órbitas de competência traçadas na ConstituiçãoFederal. E se foi a lei federal que nessa falta incidiu, como nocaso ocorre, claro que contra ela prevalecerá a Carta estadual.Não será a esta que se estará então obedecendo, mas àprópria Constituição Federal, ou seja, à distribuição de poderesque ela consagra.

Representação julgada procedente, em parte.

VOTO

O Sr. Ministro Victor Nunes: Sr. Presidente, começo meu voto esmagadopela autoridade dos eminentes colegas que se pronunciaram antes de mim; porisso, impõe-me a consciência o dever de dizer, mais longamente, as razões porque concluo de maneira contrária, julgando inadmissível a questionada extensãode mandato (pois é disso, realmente, que se trata). Não se cuida de sobrepor leifederal à Constituição estadual. O problema é saber se alguém pode dar mandato asi mesmo. Deputados eleitos com mandato de duração certa ampliaram essainvestidura, mas não há preceito da Constituição Federal nem princípio constitu-cional algum que institua essa competência em seu favor.

A Lei Santiago Dantas veio cobrir uma lacuna em nosso ordenamentoconstitucional, que determinou a transformação do antigo Distrito Federal emEstado, sem regular a etapa transitória dessa transformação. Punha-se, então, oproblema: quem pode dispor sobre esse período transitório? O Estado? Não, por-que o Estado só pode atuar por intermédio dos órgãos que falam em seu nome. Enão havia ainda órgãos estaduais constituídos. O Estado não possuía órgãosconstitucionais de expressão.

O Sr. Ministro Luiz Gallotti: Se é um Estado que surge, e não tem ainda,nem podia ter, Constituição, se a eleição tem de proceder à elaboração da Cons-tituição, onde esse mandato poderia estar fixado? Tinha que ser fixado na Cons-tituição, com efeito imediato. E assim tem sido sempre.

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O Sr. Ministro Gonçalves de Oliveira: O eleitorado do Estado da Guanabara foiconvocado para uma eleição cujo mandato terminava peremptoriamente em 1963.

O Sr. Ministro Luiz Gallotti: Desejava que o eminente Sr. Ministro VictorNunes me dissesse como é possível, no Estado que surge, fixar o mandato semser pela Constituição.

O Sr. Ministro Victor Nunes: V. Exa. deseja concluir meu voto antes demim... Pretendo desenvolvê-lo, se me permitem, dentro de uma linha de argu-mentação preestabelecida.

Dizia eu que a Constituição não regulou o período transitório de transfor-mação do Distrito Federal em Estado. A situação assemelhava-se (era até maisgrave) àquela prevista na Constituição, isto é, que, no Estado, haja algum Poderimpedido ou obstado no seu exercício. Tratava-se, mais do que isso, de Estadoque não tinha ainda seus Poderes estruturados. Normalmente, portanto, seguir-se-ia a intervenção (art. 7º, IV); e o interventor, investido de poderes por ato doExecutivo, submetida a intervenção ao Congresso, teria, então, autoridade cons-titucional para convocar a Assembléia Constituinte e promover a organização doEstado nascente.

O Sr. Ministro Luiz Gallotti: E de fixar, também, o período dos mandatos?

O Sr. Ministro Victor Nunes: Chegarei a esse ponto.

A Constituição, prevendo a hipótese de perturbação no funcionamento dosPoderes estaduais, restituiu à União — pelo mecanismo da intervenção federal —competência para normalizar a situação do Estado em crise. Tratando-se de Es-tado nascente, como era o da Guanabara, ainda não organizado, e no silêncio daConstituição, é evidente que nenhum outro Poder se sobrelevaria ao PoderLegislativo federal para organizar esse período de transição. Acresce que, peloartigo 26 da Constituição, à União cabia legislar sobre a organização do DistritoFederal, e não é senão desdobramento ou conseqüência desse poder o de regulara passagem do status distrital para o status estadual.

O Sr. Ministro Luiz Gallotti: A 21 de abril de 1960, o Distrito Federal passoua ser aqui, em Brasília.

O Sr. Ministro Victor Nunes: Mas quem legislava sobre a organização doDistrito Federal, quando sediado no Rio de Janeiro, era o legislador federal, e, nãohavendo a Constituição regulado o período de passagem ou de transformação, oúnico Poder que, pela Constituição, tinha competência ligada a esse problema erao Legislativo federal (sem falar na intervenção, que caberia ao Executivo federal,com aprovação do Congresso Nacional).

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Por isso, a Lei Santiago Dantas foi promulgada no exercício de legítimacompetência do Congresso Nacional. E aquele ilustre jurista, em manifestaçõesna Comissão de Justiça da Câmara, na época, defendeu esse ponto de vista commuito brilhantismo. Onde a Constituição não instituiu competência para quemquer que seja, estando excluída a estadual por não haver ainda Estado organiza-do, é evidente que os Poderes federais tinham competência imanente para dispora respeito da transformação do antigo Distrito Federal em Estado.

O Sr. Ministro Luiz Gallotti: Do ponto que se questiona aqui, ele cuidou nodiscurso que citei.

O Sr. Ministro Victor Nunes: Esse discurso foi proferido muito depois depromulgada a lei, mas esta, durante sua elaboração, foi amplamente justificadapelo então Deputado Santiago Dantas, que foi o Relator. Ele discutiu o assunto,longamente, na Comissão de Justiça, terçando armas com o ilustre DeputadoPedro Aleixo. O ilustre Deputado Aliomar Baleeiro, que acaba de abrilhantar aTribuna, poderia depor a respeito.

A Lei Santiago Dantas — prossigo — dispôs sobre a matéria no legítimouso da competência federal imanente para regular a transformação do antigoDistrito Federal em Estado.

No discurso que o Deputado Santiago Dantas proferiu ulteriormente, as-sim se referiu ele ao debate anterior:

“Ao mesmo tempo, Sr. Presidente, tínhamos diante de nós o proble-ma de instalação do Poder Público, uma nova unidade da Federação. Aautonomia de uma parcela do povo e do território não se estabelece semque medidas sejam tomadas para a criação de órgãos do Governo, atravésde pronunciamentos da vontade popular. Era necessário traçar normaspara que uma Assembléia Constituinte fosse eleita dentro dos elementosde competência consentâneos com o regime federativo. Era necessáriofixar época para a realização dessas eleições e para a escolha do Gover-nador do Estado. E tudo isto não encontrava na Constituição norma quepudesse servir de guia ao legislador ordinário.”

A Lei Santiago Dantas convocou a Assembléia Constituinte, como lhecumpria. Ao convocar a Assembléia Constituinte, poderia ter declarado de prazoindeterminado o mandato dos deputados, que também vieram com podereslegislativos, e não apenas constituintes? Parece-me que não.

O Sr. Ministro Luiz Gallotti: De prazo indeterminado não, porque a Consti-tuição Federal limita ao máximo de quatro anos.

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O Sr. Ministro Victor Nunes: A Constituição Federal não admite mandatoilimitado, e é neste sentido que retiro argumento do art. 7º, VII, c, da ConstituiçãoFederal.

Penso que o Congresso Nacional, na Lei Santiago Dantas, estava constitu-cionalmente obrigado a determinar a duração do mandato dos deputados que elaconvocava, com poderes constituintes e legislativos, para organizar o Estado daGuanabara; e assim o fez, determinando que esse mandato terminaria em 31 dejaneiro de 1963.

O Sr. Ministro Luiz Gallotti: A Lei Santiago Dantas é inconstitucional, emparte, naquilo em que contraria a Constituição Federal, criando ao Poder Consti-tuinte Estadual limites que dela não constam. Em outros pontos, não.

O Sr. Ministro Gonçalves de Oliveira: A fixação por tempo indeterminadoé certa, por tempo certo. Pela argumentação do eminente Ministro Luiz Gallotti,ele estaria implicitamente pela inconstitucionalidade da Lei Santiago Dantas.

O Sr. Ministro Luiz Gallotti: Em parte, sim, como disse. No meu voto nãohá a palavra “indeterminado”.

O Sr. Ministro Gonçalves de Oliveira: Quer dizer, S. Exa. entendeu que omandato dos deputados constituintes era por tempo indeterminado, no máximoquatro anos. Mas a limitação da Lei Santiago Dantas não prevaleceu.

V. Exa., Sr. Ministro Gallotti, não pode deixar de ouvir o argumento doeminente Sr. Ministro Victor Nunes. O argumento de S. Exa. é este: é que omandato foi por prazo certo, ou, então, houve prorrogação do mandato — umadas duas coisas, evidentemente. É um dilema.

O Sr. Ministro Luiz Gallotti: Não houve prorrogação e sim primeira fixaçãopela Assembléia Constituinte, que era o Poder competente.

O Sr. Ministro Victor Nunes: Agradeço os esclarecimentos prestados pe-los eminentes colegas.

Evidentemente, a Lei Santiago Dantas fixou, como era dever constitucionaldo Congresso, a duração dos mandatos dos deputados então eleitos. Podia fazê-lo,de maneira compulsória, para a Assembléia Constituinte estadual? Agora, enfrenteo problema central do debate.

Sr. Presidente, esta questão de ser, ou não, possível estabelecer limitaçõesao poder constituinte só é admissível em face do poder constituinte federal, por-que somente ele é soberano, e somente a propósito dele se pode indagar dalegitimidade das limitações estabelecidas pelo poder convocante. Toda a contro-vérsia que há na doutrina, quanto a este ponto, a respeito do poder constituinte,refere-se ao poder constituinte nacional. A propósito dele é que se discute se o

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poder que convoca a Assembléia Constituinte pode, ou não, limitar o seu campode ação. Essa discussão não tem o mesmo alcance quanto ao chamado poderconstituinte estadual. Não há — diga-se de passagem — impropriedade na ex-pressão, porque a Assembléia Constituinte estadual, se vai organizar ou constituiro Estado, pode receber o qualificativo de Constituinte.

O Sr. Ministro Luiz Gallotti: Apenas, não é soberana.

O Sr. Ministro Victor Nunes: Não sendo soberano, sendo apenas autônomo,esse poder constituinte estadual, como ponderou o eminente Ministro CandidoMotta, citando os doutores, é um poder constituinte de segundo grau, um poderderivado, um poder constituído e condicionado pela Constituição Federal.

O Sr. Ministro Luiz Gallotti: É só limitado por ela.

O Sr. Ministro Victor Nunes: Espero poder mostrar que a AssembléiaConstituinte estadual violou a Constituição Federal, não apenas a Lei SantiagoDantas. Como essa Assembléia é constituinte apenas de segundo grau, nãopodia instituir o poder de representação ab ovo. Não nasce do constituinteestadual o poder de representação do eleitorado; preexiste, porque já se achainscrito na Constituição Federal. E pela Constituição Federal, não há mandatopolítico sem limite de prazo. A Assembléia Constituinte instalou-se em mandatode prazo certo porque não podia receber mandato de prazo indeterminado.Essa determinação do termo final do seu mandato era uma imposição da pró-pria Constituição Federal.

O Sr. Ministro Ribeiro da Costa: Mas onde a Constituição Federal diz quenão podia ser alterado o prazo? Não há limitação para isso.

O Sr. Ministro Victor Nunes: A Constituição diz, da maneira mais clara eperemptória, o que estou afirmando.

O Sr. Ministro Ribeiro da Costa: V. Exa. diz que houve ofensa à Consti-tuição. Não há, na Constituição, dispositivo que proíba aquilo que foi feito.

O Sr. Ministro Victor Nunes: Permita-me V. Exa. afirmar o contrário. AConstituição o diz da maneira mais enfática, porque o faz logo no art. 1º, naqueleem que define o regime político vigente: “Os Estados Unidos do Brasil mantêm,sob o regime representativo, a Federação e a República. Todo poder emana dopovo e em seu nome será exercido”.

O Sr. Ministro Luiz Gallotti (Relator): Emanou do povo, no caso. Os depu-tados constituintes foram eleitos pelo povo.

O Sr. Ministro Victor Nunes: Não emanou.

O Sr. Ministro Gonçalves de Oliveira: Se o mandato fosse por tempoindeterminado, não teria emanado certamente.

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O Sr. Ministro Ribeiro da Costa: A Constituinte é expressão da vontadedo povo.

O Sr. Ministro Victor Nunes: Emanou do povo, isto sim, um mandato deprazo fixo, a terminar a 31 de janeiro de 1963. Além desse prazo, o mandato nãoterá emanado do povo, mas da própria Assembléia.

O Sr. Ministro Luiz Gallotti (Relator): Então, quem fez a Lei SantiagoDantas não foi o povo.

O Sr. Ministro Gonçalves de Oliveira: Mas não houve eleição no caso daelaboração da Lei Santiago Dantas.

O Sr. Ministro Victor Nunes: O Congresso, ao votar a Lei SantiagoDantas, não elegeu deputados; fez uma lei, o que era de sua competência.

O Sr. Ministro Luiz Gallotti (Relator): Se a Constituinte estadual não podefazer uma Constituição apenas observados os limites que a Constituição Federalestabelece, então, menos ainda uma lei ordinária federal poderia exceder a trans-por aqueles limites.

O Sr. Ministro Victor Nunes: Ela podia fazer tudo em matéria de organi-zação do Estado, observados os princípios constitucionais da União. Por isso,uma coisa que não podia fazer era dar mandato político a quem não o terá após31-1-1963. Sobretudo, quando os beneficiários eram os próprios componentes daAssembléia.

O Sr. Ministro Gonçalves de Oliveira: Nem o legislador federal podia indi-car os deputados à Assembléia, nem os deputados podiam prorrogar os seusmandatos.

O Sr. Ministro Victor Nunes: Meu argumento é o seguinte: a Lei SantiagoDantas não podia convocar uma assembléia constituinte e legislativa com man-dato de prazo indeterminado porque a Constituição o vedava.

O Sr. Ministro Gonçalves de Oliveira: A Assembléia estatuiu uma coisaque lhe era vedada.

O Sr. Ministro Victor Nunes: Portanto, eleita somente até 31-1-1963, nãorecebeu a Assembléia, nas urnas, poderes de representação do povo além desseprazo, não tendo, pois, autoridade, para ampliar, ela mesma, o referido prazo.

O Sr. Ministro Gonçalves de Oliveira: Havia lei anterior que dava à Câmarados Vereadores poderes constituintes.

O Sr. Ministro Victor Nunes: Desculpe-me a repetição. A Lei SantiagoDantas não podia convocar uma Assembléia de prazo indeterminado. Tendo con-vocado deputados com prazo certo, a sua investidura terminará na data marcada,

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qualquer que seja a amplitude dos seus poderes em relação à matéria da organi-zação do Estado. Mas, em relação aos seus próprios poderes, o mandato daAssembléia terminará em 31 de janeiro de 1963. Desse dia em diante, a Assem-bléia torna-se-á incompetente ratione temporis, porque, daí por diante, os depu-tados são incompetentes, não na razão da matéria, mas do tempo, porque ter-se-á esgotado o período dentro do qual o eleitorado lhe permitiu exercer o mandato.

Os exemplos do Direito norte-americano, citados da Tribuna, sobre a orga-nização dos estados, corroboram, a meu ver, data venia, a tese do meu voto. AConstituinte estadual organiza, autonomamente, o Estado, significando isso quetem de respeitar os princípios constitucionais da organização nacional, e o maisfundamental desses princípios, o que define o próprio regime representativo, éque não há mandato sem manifestação expressa do eleitor. Se esta manifestaçãofoi para determinado prazo, além dele não há mandato.

O exemplo do Vice-Governador do Ceará não destrói a tese, porque aConstituinte do Ceará — e o exemplo não recomenda — teria desrespeitadoapenas a forma da eleição, permitindo que se fizesse uma eleição indireta: aAssembléia cearense, que tinha recebido poderes constituintes do eleitorado, ele-geu o Vice-Governador.

O Sr. Ministro Luiz Gallotti (Relator): A Assembléia recebeu poderes parafazer uma Constituição com os limites estabelecidos pela Constituição Federal.

O Sr. Ministro Victor Nunes: Não estou aplaudindo o exemplo do Ceará,embora houvesse, na época, o precedente do constituinte federal, que assim pro-cedera, elegendo, indiretamente, o Vice-Presidente da República. A Assembléiacearense elegeu outro titular; não foi o Vice-Governador que se elegeu a simesmo. Se esse fosse o caso, o Supremo Tribunal Federal talvez lhe tivessecassado o mandato...

O Sr. Ministro Luiz Gallotti (Relator): Aqui, a Constituinte fixou, como lhecumpria e sempre se fez, o mandato, que antes não fora validamente fixado,porquanto era um novo Estado que surgia, com o poder de organizar-se, sóestando sujeito aos limites estatuídos na Constituição Federal, conforme o manda-mento expresso desta.

O Sr. Ministro Victor Nunes: Eu disse, de começo, que o problema de sepoder limitar o poder constituinte...

O Sr. Ministro Ary Franco: O eminente Sr. Ministro Relator acha que aConstituinte federal fez bem?

O Sr. Ministro Luiz Gallotti (Relator): Sim, porque era constituinte.

O Sr. Ministro Victor Nunes: ...se tem colocado, legitimamente, na doutrina,no tocante ao poder constituinte federal.

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O Sr. Ministro Luiz Gallotti (Relator): Que é soberano.

O Sr. Ministro Victor Nunes: Exatamente. O constituinte federal é soberano,mas não estamos discutindo o caso da Constituinte Federal de 1934, e sim de umaConstituinte estadual, que é somente autônoma, e não soberana.

O Sr. Ministro Luiz Gallotti (Relator): V. Exa. falou em problema de ordemmoral. Do ponto de vista moral, a situação seria a mesma, quer se tratando deConstituinte federal, quer de estadual.

O Sr. Ministro Victor Nunes: Não toquei no aspecto moral. Afirmei que sóhá eleição quando alguém escolhe outrem, não quando alguém elege a si próprio.O argumento é jurídico e político; não o enunciei como argumento de ordemmoral.

O Sr. Ministro Luiz Gallotti (Relator): Mas V. Exa. sublinhou esse ponto.

O Sr. Ministro Victor Nunes: Sublinhei, para dar um argumento jurídico.Não quis trazer argumentos de ordem moral.

O Sr. Ministro Luiz Gallotti (Relator): Sempre se procedeu assim e sóagora se está estranhando.

O Sr. Ministro Victor Nunes: Ainda que o problema comporte considera-ções de ordem moral, não enunciei um argumento de ordem moral, mas de ordemestritamente jurídica. A representação pressupõe duas pessoas ou duas entida-des. Não é possível a ninguém eleger-se a si mesmo. Este é um argumento deordem jurídica. O povo carioca não elegeu deputados para além de 31 de janeirode 1963, e esses deputados não poderiam eleger-se a si mesmos para depoisdaquela data.

O Sr. Ministro Luiz Gallotti (Relator): O povo elegeu para o prazo que aConstituição estadual fixasse, como está expresso na Constituição Federal, que,no caso, apenas obrigava a Constituinte estadual a respeitar o prazo máximo dequatro anos. O povo não pode ignorar a Constituição. Embora seja isso umaficção de direito, é o que este dispõe.

O Sr. Ministro Victor Nunes: Tanto a letra da Constituição não dá respostatão clara, como quer V. Exa., que nós a estamos discutindo, e de maneira acalo-rada. O eleitorado teria maior capacidade interpretativa?

O Sr. Ministro Hahnemann Guimarães: Não se elabora uma Constituição aprazo certo.

O Sr. Ministro Ribeiro da Costa: O povo elegeu a Constituinte sem tomarconhecimento de questões menores, de prazo, etc. Se essa Constituinte podeprorrogar o seu mandato, se isso é moral ou imoral, o povo disso não tomou

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conhecimento. O que o constituinte fez foi por motivos de ordem política.Estamos fazendo muito cabedal do voto do povo. O povo elegeu porque foi con-vocado, mas, na sua maioria, nem sabia da Lei Santiago Dantas.

O Sr. Ministro Victor Nunes: A norma da limitação do prazo do mandatonão é de ordem psicológica, soubessem, ou não, que estavam votando para umaConstituinte que deveria funcionar até tal dia. Mas eles votaram por força deuma convocação que marcava prazo para o mandato. O eleitor votou para umaConstituinte de segundo grau, estadual, não federal.

O Sr. Ministro Ribeiro da Costa: A Constituinte estadual é tão autônomaquanto a federal. De outro modo, não seria constituinte.

O Sr. Ministro Victor Nunes: Diante da Constituinte federal, o debate sedesenvolveria sob outro ângulo; mas, em face da Constituinte estadual, não, por-que, sendo esta de segundo grau, exercendo poderes derivados, e não originários,ela já encontra limites previamente marcados na Constituição Federal. Um des-tes é que não pode haver deputados com poderes constituintes e legislativos deprazo indeterminado; a Constituição Federal o proíbe ao exigir a temporariedadedos mandatos.

O Sr. Ministro Luiz Gallotti (Relator): Por isso, a Constituição estadualmarcou prazo.

O Sr. Ministro Victor Nunes: A Constituinte estadual marcou esse prazo aposteriori. O representante é convocado com certo prazo antes da eleição; nãoé depois da eleição que se lhe fixa o mandato. Depois da eleição, isso importa emaumentar ou reduzir o mandato, conforme o caso, não em fixá-lo. O princípio deque não há poder sem representação, sem investidura expressa do povo, é tãofundamental em nosso regime que, dentre as próprias emendas que a Constitui-ção Federal admite sejam feitas ao seu texto, foram excluídas as que importemsupressão do regime republicano (no sentido de regime representativo). Se, ama-nhã, o Congresso Federal, pelo processo de reforma da Constituição, prorrogasseo próprio mandato, evidentemente, estaria negando o regime republicano; do con-trário, não seria regime republicano, no sentido em que a Constituição usa essequalificativo, mas uma autocracia. Quando alguém se investe a si mesmo depoderes políticos, o regime não é republicano, mas autocrático. O que a Assem-bléia da Guanabara teve foi um procedimento autocrático: dilatou, no tempo, osseus próprios poderes.

O Sr. Ministro Ary Franco: E se não viesse a representação?

O Sr. Ministro Luiz Gallotti (Relator): Não podemos julgar de ofício...

O Sr. Ministro Victor Nunes: Discutiu-se sobre a natureza das leis comple-mentares e se declarou que a Lei Santiago Dantas não poderia ser invocada

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Memória Jurisprudencial

contra a Constituição do Estado. Procurei explicar que o problema não é este. ALei Santiago Dantas dispôs dentro do campo de competência do legislador federal,fixando o mandato da Assembléia, conforme a Constituição impõe. Assim, não setrata de opor a Lei Santiago Dantas à Constituição do Estado; o nosso problemaé confrontar a Constituição do Estado, na parte em que a própria Assembléiaconfere mandato a si mesma, além de 23-1-1963, com a Constituição Federal,nos artigos em que estatui que todo o poder emana exclusivamente do povo e queos mandatos são temporários. Invocou-se também a autoridade do Deputado eProfessor Santiago Dantas, no sentido de que eram apenas programáticas asdisposições questionadas da lei que traz o seu nome. Contudo, no trecho do seucitado discurso, de onde se extrai esse argumento, o eminente Professor, cujaautoridade é por todos nós reconhecida, não se referiu ao ponto ora em debate,mas, exclusivamente, ao problema da incorporação dos antigos vereadores àCâmara dos Deputados.

O Sr. Ministro Luiz Gallotti (Relator): Nos dois casos, o problema jurídico éo mesmo: é saber se uma lei federal ordinária pode limitar o poder constituinteestadual.

O Sr. Ministro Victor Nunes: Tentarei mostrar que V. Exa., data venia,incide em equívoco. O argumento que focalizo foi trazido ao debate com base naautoridade do Professor Santiago Dantas. Temos, portanto, de o discutir nessemesmo plano; e trago, aqui, a palavra dele próprio, no sentido de que só fezaquela observação no tocante à incorporação das duas Câmaras. Assim é que,no mesmo discurso, mais adiante acrescentou:

“Todo ato que esta Assembléia praticar para ampliar o seu mandato,quer quanto ao prazo, quer quanto ao conteúdo, constitui violação da leifederal, que condiciona limites à sua competência, e se resolve numausucapião de poderes”.

No plano da argumentação de autoridade, essa observação específica —da mesma autoridade — vale mais do que a outra.

O Sr. Ministro Luiz Gallotti (Relator): Na primeira parte, a lei ordináriafederal não pode limitar o poder constituinte estadual; na segunda parte, pode.Há, data venia, contradição no que diz o Professor Santiago Dantas.

O Sr. Ministro Victor Nunes: A lei federal não fez mais do que cumprir oque lhe era prescrito; não podia estabelecer mandato de prazo indeterminado.Marcou prazo ao mandato da Assembléia porque estava a isso obrigada. Nãopodia o legislador agir de outro modo.

O Sr. Ministro Hahnemann Guimarães: A fixação do mandato cabe nopoder constituinte.

O Sr. Ministro Luiz Gallotti (Relator): Sempre coube.

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Ministro Victor Nunes

O Sr. Ministro Victor Nunes: Foi lembrado aqui também o exemplo daInglaterra. O ilustre Professor Aliomar Baleeiro, da Tribuna, lembrou que, naúltima guerra (não só na última, como na anterior), o Parlamento britânico prorro-gou o mandato dos deputados. Mas o exemplo inglês, como se verá, serve paracomprovar, exatamente, o contrário do que se afirmou. Até 1911, o Parlamentobritânico desempenhava suas funções legislativas (com restrições quanto às leisfinanceiras) pelo voto concordante das duas Câmaras, a dos Comuns e a dosLordes. Toda lei, portanto, que importasse prorrogação do mandato da Câmarados Comuns dependia da aprovação da Câmara dos Lordes. Isso tirava ao ato,de certo modo, o seu caráter autocrático, porque o mandato dos commoners nãoseria prorrogado por deliberação exclusivamente sua, dependendo da aprovação daoutra Casa do Parlamento, cuja investidura é de natureza completamente dife-rente. Veio, depois, o Parliament Act, de 1911, que reduziu os poderes dosLordes: encurtou a votação das leis financeiras pela Câmara dos Lordes e deu-lhe,quanto às demais leis de ordem pública, somente a possibilidade de sugerir emen-das e discutir o projeto durante dois autos, findos os quais, depois das necessáriasdiscussões na Câmara dos Comuns, o projeto iria à sanção, independente daaprovação da Câmara dos Lordes. Pois bem, essa lei de 1911 fez duas exceçõesa essa tramitação: uma para as leis de interesse privado (private bills); outra,para as leis que prorrogassem o mandato da Câmara dos Comuns. Durantea guerra, embora a Câmara dos Comuns tivesse amplos poderes de legislação,sem distinção hierárquica entre lei e Constituição, não os tinha, como não os tem,para prorrogar o próprio mandato; para isso, depende do voto concordante daCâmara dos Lordes. Se assim não fosse, a Câmara dos Comuns poderiaeternizar-se no poder, repetindo a proeza do Longo Parlamento, com a prorroga-ção indefinida do próprio mandato. Mas é da essência do regime representativoque o representante não possa prolongar sua investidura no tempo, porque isso éa negação do próprio princípio da representação política. E foi isso que o SupremoTribunal proclamou, no caso de Goiás, embora os dois brilhantes votos já profe-ridos tenham procurado reduzir muito o alcance doutrinário desse notabilíssimoprecedente. Na Inglaterra, como vimos, quando a contingência de uma conflagra-ção mundial impõe um desvio, há, pelo menos, o controle da Câmara dos Lordes,que não é beneficiária da prorrogação.

O Sr. Ministro Luiz Gallotti (Relator): Aqui se acentuou a diferença entreum Estado que surge e um Estado que já existe há muito tempo. No segundo, jáhavia mandatos fixados na respectiva Constituição; no primeiro, não havia nempodia haver.

O Sr. Ministro Villas Boas: Não entendo essa diferença.

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Memória Jurisprudencial

O Sr. Ministro Victor Nunes: Não havia, na Constituição de Goiás, disposi-ção específica a respeito do problema que estamos discutindo, porque isso ématéria da Constituição Federal. Quando a Assembléia Legislativa de Goiás en-trou a deliberar segundo o processo de reforma constitucional, passou a exercer,normalmente, poderes constituintes; não há, pois, que se distinguir, neste ponto,aquela situação da ora em exame, na qual uma assembléia também se reúne compoderes constituintes.

O Sr. Ministro Gonçalves de Oliveira: No caso de Goiás, o que houve foiuma emenda à Constituição do Estado para estabelecer um mandato de dois anos.

O Sr. Ministro Victor Nunes: Ao exercer o poder constitucional deemenda, a Assembléia Legislativa ordinária, legitimamente, se transformou emconstituinte. Não havia abuso nisso. O abuso estava em prorrogar os própriosmandatos, a pretexto de emendar a Constituição estadual.

Sr. Presidente, com essas considerações, julgo procedente a representação,para declarar que o mandato da Assembléia Legislativa do Estado da Guanabaranão pode exceder o termo fixado na lei convocatória, isto é, 3 de janeiro de 1963,com a devida vênia dos eminentes Ministros Luiz Gallotti e Candido Motta Filho.

REPRESENTAÇÃO 753 — SP

I - O art. 188 da Carta Política de 1967 determina aadaptação das Constituições estaduais ao ordenamento cons-titucional maior. Trata-se de processo que não se confundecom o do poder ordinário de emenda. As regras objeto dareforma, votada pelas Assembléias Legislativas, devem seraquelas que, explícita ou implicitamente, sofreram altera-ções ou já não são compatíveis com o sistema federal (art.1º do Decreto-Lei n. 216, de 27-2-1967).

II - O inc. V do art. 55 da Constituição de São Paulo, aosubtrair a iniciativa exclusiva do Tribunal de Alçada para acriação de cargos da sua secretaria, transferindo-a ao Tribu-nal de Justiça, afeta a prerrogativa assegurada pelo art. 110,II, da Carta Federal, extensiva aos tribunais dos Estados,por força do disposto no seu art. 136, caput.

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Ministro Victor Nunes

III - O inc. V do art. 58 da Carta Paulista, que vincula osvencimentos do Ministério Público aos vencimentos da ma-gistratura, não se contrapõe às cláusulas inscritas nos arts.96 e 106 da Constituição Federal, eis que se compadece como preceituado no parágrafo único do art. 139 da Lei Mater.

IV - O § 1º do art. 89 da Constituição de São Paulo,ao estabelecer a equiparação dos vencimentos dos Ministrosdo Tribunal de Contas do Estado aos vencimentos dosdesembargadores, inspirou-se na equiparação prevista no art.73, § 3º, da Carta Federal; não importando, conseqüentemen-te, em afronta à diretriz dos arts. 96 e 106, do citado diploma.

V - O art. 92, II, a e b, da Constituição de São Paulo,que estabeleceu a obrigatoriedade da nomeação dos candi-datos aprovados em concurso, entendida como meio deevitar a procrastinação do preenchimento de cargo vago,sem retirar do Governador a faculdade de examinar a con-veniência do provimento, não infringe a competência priva-tiva estatuída no art. 83, VI, da Magna Carta.

VI - O parágrafo único do art. 106 da Carta estadual,quando atribui ao Prefeito a nomeação dos membros doTribunal de Contas, após aprovação da Câmara Municipal,não afronta o § 1º do art. 95 da Constituição Federal, ondese contém a exigência do concurso público, porquanto se-guiu o critério especial de provimento do cargo de Ministrodo Tribunal de Contas da União (§ 3º do art. 73), seguidotambém pelos Tribunais de Contas estaduais, ante a posiçãodo órgão no sistema jurídico-constitucional.

VII - O art. 147 da Carta Política paulista, ao estabele-cer que se consideram vigentes, com o caráter de lei ordi-nária, as regras da Constituição estadual de 1947 e que nãocontrariem o novo diploma, além de fugir às lindes da adap-tação, mostra-se incompatível com o sistema da Lei Magna.

VIII - O inc. II do art. 4º do Ato das DisposiçõesTransitórias da Constituição paulista, ao fixar o prazo de umano para a oficialização de Cartórios e Serventias da Justi-ça, contrariou não só os limites da adaptação (art. 188), mastambém o § 5º do art. 136 e, por último, o poder de iniciativado Chefe do Poder Executivo (art. 60, II, da Carta Federal).

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Memória Jurisprudencial

IX - O art. 10 do Ato das Disposições Transitórias,assecuratório da readmissão de extranumerários, fere fron-talmente os arts. 95, § 1º, e 99, § 1º, da Carta Federal.

X - O art. 11 do Ato das Disposições Transitórias,assecuratório da reintegração de servidores públicos, bemassim de empregados de sociedades sob o controle acionáriodo Estado, além de fugir ao exato alcance da adaptação (art.188 da Constituição Federal), infringe a competência legislativada União (art. 8º, XVII, b).

XI - O art. 12 do Ato das Disposições Transitórias, aoestabelecer revisão dos atos punitivos contra servidorespúblicos, com base em sindicância sumária, assegurando-lhes reintegração, foge, por um lado, à adaptação ordenadano art. 188 da Lei Magna e, por outro, contrapõe-se àaprovação das sanções revolucionárias, pelo seu art. 173.

XII - O art. 17 do Ato das Disposições Transitórias, aoconceder o cancelamento de débitos tributários, destoa doalcance da adaptação da Carta Política local ao modelo básico,além de versar matéria da iniciativa do Poder Executivo(art. 60, I, da Constituição Federal).

VOTO

O Sr. Ministro Victor Nunes: Sr. Presidente, acompanho o eminenteRelator, mas desejo fazer uma breve observação sobre o art. 188 da ConstituiçãoFederal de 1967. Estou de acordo, neste ponto, com as considerações do eminenteRelator e dos eminentes colegas que já votaram, mas vou um pouco além nainterpretação desse texto.

O art. 188, a meu ver, não obrigou os Estados a uma reforma limitada emsuas Constituições. O que fez, tendo em vista a conveniência de seremintroduzidas nas Constituições estaduais as inovações da Constituição Federal,foi abreviar o período em que essa reforma deveria ser feita. Ainda que, pelaConstituição estadual, de acordo com o modelo federal anterior, fosse necessáriaa aprovação em duas sessões legislativas ordinárias e consecutivas, a novareforma poderia ser feita sem essa exigência, no prazo de sessenta dias. Esta, ameu ver, é a novidade do texto.

Para a simples observância dos novos preceitos da Constituição Federal,não haveria, a rigor, necessidade de serem adaptadas as Constituições estaduais.Bastaria dispor que as novas normas da Constituição Federal se aplicariam igual-mente aos Estados. E tanto assim era que o próprio art. 188 dispôs: nos Estadosem que se exceder o prazo de sessenta dias, aquelas inovações serão incorpora-das automaticamente à Constituição estadual.

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Ministro Victor Nunes

Por que a Constituição Federal quis repetir o óbvio?

O Sr. Ministro Hermes Lima: Para respeitar a autonomia dos Estados. Foio princípio da autonomia dos Estados que se quis respeitar.

O Sr. Ministro Victor Nunes: Mas não simplesmente para fazer aquelaadaptação, porque os Estados não ficaram com a liberdade de conservar o statusquo. Se não aceitassem as inovações da esfera federal, elas se aplicariam auto-mática e necessariamente.

O Sr. Ministro Hermes Lima: O Decreto-Lei 216 deixou muito claro.

O Sr. Ministro Victor Nunes: Mas esse decreto-lei não é Constituição. Eleinterpretou o art. 188 da Constituição e, a meu ver, interpretou bem, já que nãopoderia atribuir aos Estados poderes que eles não tivessem pela anterior ou pelaatual Constituição.

Parece-me, pois, que os Estados, com o art. 188, longe de terem sido limi-tados em sua capacidade de reformar suas Constituições, tiveram a franquia defazê-lo com menos formalidades e condições do que as que resultavam do regi-me constitucional anterior.

Independentemente do art. 188, poderiam os Estados proceder dessemodo, tendo em vista o disposto no art. 51 da parte permanente da ConstituiçãoFederal, que é modelo para as Constituições estaduais:

“Art. 51. Em qualquer dos casos do art. 50, itens I, II e III, aproposta será discutida e votada em reunião do Congresso Nacional,dentro de sessenta dias a contar do seu recebimento ou apresentação, emduas sessões e considerada aprovada quando obtiver em ambas asvotações a maioria absoluta dos votos dos membros das duas Casas doCongresso.”

O Sr. Ministro Djaci Falcão (Relator): Estabeleceu um critério distinto. V.Exa. deve atentar para isso.

O Sr. Ministro Victor Nunes: Estabeleceu o prazo de sessenta dias, emduas sessões, mas não em duas sessões ordinárias e consecutivas, como exigia aConstituição anterior, no art. 217, § 2º:

“Dar-se-á por aceita a emenda que for aprovada em duasdiscussões pela maioria absoluta da Câmara dos Deputados e do SenadoFederal, em duas sessões legislativas ordinárias e consecutivas.”

O Sr. Ministro Adaucto Cardoso: Ordinárias e consecutivas. Era esse ogrande embaraço.

O Sr. Ministro Victor Nunes: Sim. Foi reduzido o prazo. Para duas sessõesordinárias e consecutivas, poderiam ser necessários vários meses.

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Memória Jurisprudencial

Em última análise, o art. 188 apenas reproduziu o que já estava na partepermanente, no art. 51. Como a simples adaptação das Constituições estaduais sepoderia considerar automaticamente feita, em conseqüência da nova ConstituiçãoFederal, o que resulta, a mais, do art. 188 é ter ficado explícito que os Estados,naquele prazo, poderiam fazer uma reforma mais ampla de suas constituições.

O Sr. Ministro Hermes Lima: Adaptar.

O Sr. Ministro Victor Nunes: A simples adaptação resultaria da própriaConstituição Federal.

O Sr. Ministro Djaci Falcão (Relator): Mas é processo especial adaptativo.O art. 51 se refere ao processo de emenda à Constituição.

O Sr. Ministro Victor Nunes: Vamos figurar que a Assembléia Constituinteestadual fizesse a reforma em dois tempos. Como dispunha de sessenta dias,poderia, na primeira etapa, mudar apenas a norma que regulava a reforma daConstituição do Estado. Adotaria, então, a que está expressa no art. 51 da Cons-tituição Federal. Estaria impedida de fazê-lo? Não, porque estaria adaptando aConstituição estadual à federal. Aceita que fosse a norma do art. 51 no primeirotempo, poderia fazer, no segundo tempo, de modo simplificado, as emendas quebem entendesse, pois dispunha de sessenta dias para isso. Como entender, por-tanto, que o art. 188 limitou, em vez de ampliar, a faculdade de reforma dasConstituições estaduais?

O Sr. Ministro Hermes Lima: O que acho do voto de V. Exa. é interpre-tação demasiadamente larga do poder constituinte delegado pela Constituição àsAssembléias estaduais.

O Sr. Ministro Djaci Falcão (Relator): Não se trata do poder constituinteordinário, mas de um poder constituinte especial previsto na Constituição de 67,para adaptação à estrutura da nova Carta Federal.

O Sr. Ministro Victor Nunes: As Assembléias Legislativas continuaram ater, como sempre tiveram, o poder de emendar as Constituições estaduais. Mas,por uma exigência, que se traduzia em prazo, para maior reflexão, não poderiamfazê-lo numa só sessão legislativa.

O Sr. Ministro Eloy da Rocha: Na Constituição Federal de 1946, como emvárias Constituições estaduais, somente era possível a aprovação de emenda emuma sessão legislativa, se obtido o voto de dois terços.

O Sr. Ministro Victor Nunes: A maioria de dois terços seria para fazer areforma numa única sessão legislativa. Para fazê-la em duas, bastaria a maioriaabsoluta. É exatamente este problema que estou examinando.

A Constituição Federal de 1967 mudou esse sistema no plano federal,como já o tinha feito o Ato Institucional n. 1, e deu aos Estados, no art. 188, oprazo de sessenta dias para adaptar suas Constituições.

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Ministro Victor Nunes

Estou figurando a hipótese em que a Assembléia Legislativa, no primeirotempo, dispusesse: fica emendado o artigo tal da Constituição do Estado, que serefere ao processo de reforma da Constituição, para que a Constituição possa seremendada numa só sessão legislativa, por maioria absoluta de votos. No segundotempo, com base nessa primeira emenda, poderia reformar toda a Constituiçãodo Estado.

O Sr. Ministro Hermes Lima: Não era possível.

O Sr. Ministro Victor Nunes: Como não, se poderia começar pela refor-ma do processo de emenda da Constituição do Estado? Onde estaria o impedi-mento?

O Sr. Ministro Hermes Lima: Digo: o impedimento em que o poder consti-tuinte delegado estava limitado à adaptação da Constituição.

O Sr. Ministro Victor Nunes: Limitado quanto ao prazo. A Constituiçãomarcou esse prazo (veja-se que a tônica está no final do dispositivo) para dizer:se, findo o prazo, os Estados não adaptarem suas Constituições, essa adaptaçãose considera feita automaticamente. O prazo teve esse sentido: o de obrigar afazer, pelo menos, as emendas de adaptação; mas não impedia que se fizessemoutras.

O Sr. Ministro Adaucto Cardoso: Não tirou o poder constituinte do Estado,senão no limite do padrão federal.

O Sr. Ministro Victor Nunes: Veja V. Exa. que o Decreto-Lei n. 216, de27-2-67, interpretou o cit. art. 188 em sentido ampliativo.

O Sr. Ministro Adaucto Cardoso: Mas, com Decreto-Lei ou sem ele, arealidade é que o constituinte estadual não ficou privado dos poderes de quedispunha antes.

O Sr. Ministro Victor Nunes: Termina assim o art. 188, depois de aludir àadaptação, em sessenta dias, das Constituições estaduais às novas normas daConstituição Federal:

“(...) as quais, findo esse prazo, considerar-se-ão incorporadasautomaticamente às Cartas estaduais.”

O que é isto senão um ultimatum? A Constituição Federal fez umultimatum: ou os Estados adaptam suas Constituições em sessenta dias ou esta-rão elas, ao fim de sessenta dias, automaticamente adaptadas.

O Sr. Ministro Djaci Falcão (Relator): Quero ler para V. Exa. e o Tribunalexatamente o que havia lido: o art. 1º do Decreto-Lei n. 216:

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Memória Jurisprudencial

“A reforma das Constituições dos Estados, (...) para atender aodisposto no artigo 188 da Constituição do Brasil, promulgada a 24 dejaneiro de 1967, consiste primordialmente na modificação do respectivotexto, no que, implícita ou explicitamente, tiver sido alterado ou forincompatível com as disposições constitucionais federais.

Parágrafo único. As normas da Constituição Federal que, sendoaplicáveis, não forem observadas na reforma da Constituição do Estado,consideram-se a ela automaticamente incorporadas, nos termos do art.188 da Constituição Federal.”

Em razão, exatamente, da modificação dos preceitos da própria sistemáticada Constituição.

O Sr. Ministro Victor Nunes: V. Exa. aceita a interpretação contida noDecreto-Lei 216. Aí está o advérbio “primordialmente”, para dizer que a reformaestadual não seria mera adaptação. Minha interpretação vai um pouco mais longe,porque se qualquer Estado poderia proceder à sua reforma em dois tempos,como já figurei, resulta do art. 188 que foram ampliados e não reduzidos os seuspoderes de emenda.

O Sr. Ministro Hermes Lima: Mas não poderia em dois tempos. Estavadeclarado que era em sessenta dias. Ou fazia em sessenta dias ou, então, seriaincorporada automaticamente.

O Sr. Ministro Victor Nunes: Em dois tempos, dentro do prazo. Mas aconseqüência seria a mesma se não fosse observado, para ambos, aquele prazo.Imagine V. Exa. que o Estado fizesse apenas a emenda do processo da reformaconstitucional. Escoados os sessenta dias, as outras adaptações à ConstituiçãoFederal se incorporariam, automaticamente, à Constituição do Estado. E o Estadoficaria em condições de emendar o mais que entendesse, com o novo processo dereforma, seguindo o modelo federal, que é o art. 51 da Constituição.

O Sr. Ministro Luiz Gallotti (Presidente): Perguntaria o seguinte: o art. 188diz que “os Estados reformarão suas Constituições dentro em sessenta dias paraadaptá-las, no que couber, às normas desta Constituição, as quais, findo esseprazo, considerar-se-ão incorporadas automaticamente às Cartas estaduais”, V.Exa. entende que, entre as adaptações que têm de ser feitas (porque aí se diz “noque couber”), sob pena de serem as normas incorporadas automaticamente, estáo artigo que regula a reforma da Constituição?

O Sr. Ministro Victor Nunes: Parece-me evidente.

O Sr. Ministro Luiz Gallotti (Presidente): Mas como poderia essa normaser incorporada, se fala em Senado e Câmara?

O Sr. Ministro Victor Nunes: Mutatis mutandis.

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Ministro Victor Nunes

O Sr. Ministro Luiz Gallotti (Presidente): É no que couber. Então, ficaramos Estados obrigados a adotar o mesmo sistema de reforma da Constituição?

O Sr. Ministro Victor Nunes: Não ficaram obrigados. Poderiam criar con-dições mais onerosas, mas os Estados também poderiam seguir estritamente omodelo federal. Também poderiam fazer sua reforma em dois tempos. No pri-meiro, reformariam o processo de emenda à Constituição; depois, fariam as ou-tras emendas que entendessem, além da adaptação à Constituição Federal a queestavam obrigados.

O Sr. Ministro Eloy da Rocha: Mas isso não ocorreu.

O Sr. Ministro Victor Nunes: Sim, não houve. Houve um ato só. Mas meuraciocínio sobre a possibilidade de terem procedido de outro modo ajuda a inter-pretar o art. 188. A meu ver, ele não significa uma limitação ao poder de emendaconstitucional dos Estados, mas uma imposição para que adaptassem suas Cons-tituições ao modelo federal: ou reformariam suas Constituições no prazo marca-do ou elas se considerariam automaticamente reformadas. O dispositivo não quisimpedir, mas forçar os Estados a reformarem suas Constituições. Não pode serinterpretado, portanto, de modo a reduzir os poderes de reforma constitucionaldos Estados. Se algum deles fez outras emendas, além de simplesmente adaptara Constituição estadual à Federal, isso me parece perfeitamente legítimo.

O Sr. Ministro Thompson Flores: Não entende V. Exa. que deve haver doisprocessos de alteração da Constituição dos Estados: um para adaptação e outropara sua reforma?

O Sr. Ministro Victor Nunes: O processo de emenda constitucional foialterado no plano federal. Também o poderia ser no plano estadual.

O Sr. Ministro Thompson Flores: Tenho como certo que os processos sãodiferentes. As emendas às Cartas locais obedeciam a normas expressas quedispunham sobre o quorum e a forma de votação. As Assembléias, para executaro trabalho de adaptação, aprovaram regimento próprio diverso daquele. E seassim não o fizessem, nem alcançariam seu objetivo no prazo do art. 188 daConstituição Federal.

O Sr. Ministro Victor Nunes: O raciocínio que estou desenvolvendo não épara a apreciação de um caso estadual específico. Estou procurando interpretaro art. 188 da Constituição Federal, no sentido de que ele não teve o objetivo delimitar o poder de emenda constitucional de qualquer Estado. Por isso, não pode-mos condenar as reformas mais amplas que um ou outro tenha feito.

O Sr. Ministro Eloy da Rocha: Não podia fazer, porque a Constituição doEstado de São Paulo exigia, no processo comum de reforma, a aprovação emdois anos consecutivos.

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Memória Jurisprudencial

O Sr. Ministro Victor Nunes: Se fizesse a reforma em dois tempos, poderia.É o que procurei demonstrar, como elemento interpretativo.

O Sr. Ministro Eloy da Rocha: Mas não procedeu à reforma em doistempos.

O Sr. Ministro Victor Nunes: O que estou interpretando é o art. 188, nãoesta ou aquela reforma estadual específica. Se esse artigo permitiria, por outrocaminho, que houvesse uma reforma total, desde que não contrariasse a Consti-tuição Federal, não devemos interpretar restritivamente o art. 188.

O Sr. Ministro Thompson Flores: Sem o art. 188, a Constituição poderia sertotalmente refundida na forma comum. Adotada que fosse, a reforma tornava-selimitada e guardava rito próprio, mais simples e mais breve.

O Sr. Ministro Victor Nunes: Mas, como um dos dispositivos passíveis dealteração poderia ser o do processo de reforma constitucional dos Estados, estavaimplícito que os Estados poderiam fazer reforma mais ampla que a simples adap-tação às normas federais, esta sim imposta aos Estados em prazo certo.

MANDADO DE SEGURANÇA 8.651 — DF

Diretor da Caixa Econômica Federal — Mandato —Tempestividade

VOTO

O Sr. Ministro Victor Nunes: Sr. Presidente, no caso do Dr. Murilo GondimCoutinho, anteriormente julgado (MS 8.693, de 17 do corrente), tive ocasião deexternar-me, longamente, sobre a constitucionalidade das leis que estabeleçaminvestidura com prazo certo e sobre a ilegalidade do ato do Sr. Presidente daRepública que, sem justa causa, faça terminar a investidura antes do termo.

Naquele caso, a defesa do ato governamental, feita pelo ilustre Dr. Procura-dor-Geral da República, assim como a fundamentação dos votos vencedores sebasearam em duas ordens de argumentos. Argumentos de ordem legal, em pri-meiro lugar, entendendo-se que a Lei Orgânica da Previdência Social dava aostitulares nomeados pelo Presidente da República a condição de representantesdo Governo. Essa representação seria, por sua própria natureza, revogável. Tam-bém se argumentou, não na defesa do Governo, que expressamente excluía aalegação de constitucionalidade, mas na fundamentação dos votos vencedores,que, se o prazo dessa investidura tivesse de ser entendido como insusceptível deser encurtado ao livre critério do Governo, estaria infringida a Constituição.

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Ministro Victor Nunes

Procurei, naquele meu voto, examinar as duas ordens de argumentos,mas, no caso presente, vejo que subsistem somente as razões de ordem consti-tucional, porque o Decreto n. 24.427, de 9 de junho de 1934, não dá aos diretoresdas Caixas Econômicas, nem mesmo impropriamente, a condição de represen-tante do Governo.

O Sr. Ministro Hahnemann Guimarães: Mas fala em mandato, no art. 8º.

O Sr. Ministro Victor Nunes: Mandato para exprimir duração.

O Sr. Ministro Hahnemann Guimarães: Para exprimir que não é cargo, quenão é de cargo que se trata.

O Sr. Ministro Victor Nunes: Para exprimir duração, porque a própria leidistingue entre a investidura do presidente da Caixa Econômica e a dos diretores.Não podia a lei querer estabelecer o mesmo regime, para uma e outra, quando,expressamente, as distinguiu, marcando termo para os diretores e declarando opresidente demissível ad nutum. Ou então o legislador do Decreto 24.427 seria omais inepto redator da língua portuguesa.

O argumento da constitucionalidade, compreendo que possa ser formuladoem face desta lei, porque se argüi de ofensivo da Constituição o dispositivo refe-rente aos diretores.

Não me parece, porém, Sr. Presidente, conforme sustentei longamente nocaso anterior, que haja qualquer inconstitucionalidade nessa disposição legal, por-que seria forçar a não incluir todas as técnicas de garantia do servidor públicocontra demissão arbitrária ou imotivada na chave única da estabilidade. A estabi-lidade é uma das técnicas utilizadas pela Constituição e pelas leis para proteger oservidor público garantido contra as demissões arbitrárias ou sem motivo, masesta não exclui outras, como o estágio probatório, como a teoria dos motivosdeterminantes, como, enfim, as investiduras de prazo certo.

Estas últimas, aliás, não são exclusivas do Direito Administrativo, mastambém se encontram no próprio Direito do Trabalho, onde os empregados inves-tidos de representação sindical não podem ser demitidos sem falta grave, en-quanto durar o seu mandato. E por quê? Porque a natureza da função exige quea exerça com independência. Também esta é a razão pela qual os dirigentes dosórgãos que a lei quis dotar de autonomia recebessem, por lei, uma investidura deprazo certo, para que exerçam a sua função com independência; independênciadiante do próprio poder nomeante, do mesmo Presidente que lhes tiver dado ainvestidura, e não apenas dos Presidentes que lhe sucederam.

O Sr. Ministro Hahnemann Guimarães: Mandato não se exerce contra avontade do mandante.

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Memória Jurisprudencial

O Sr. Ministro Victor Nunes: Mandato, na minha interpretação, eminentemestre Ministro Hahnemann Guimarães, é uma denominação imprópria para de-signar a investidura de prazo certo.

O Sr. Ministro Hahnemann Guimarães: Absolutamente própria.

O Sr. Ministro Victor Nunes: Procurarei demonstrar que é imprópria.

O Sr. Ministro Hahnemann Guimarães: Não se pode separar a noção demandato que aqui vigora da noção geral que o mandato tem no Direito.

O Sr. Ministro Victor Nunes: A noção de mandato, aqui, é aproximada danoção de mandato de direito público e não de direito privado; tem-se, pois, deconcluir pela sua irrevogabilidade, porque o Direito Constitucional brasileiro nãoconhece o mandato político revogável. Em outros países tem sido admitido, maspor lei expressa.

O Sr. Ministro Hahnemann Guimarães: Aqui se trata de mandato pelo quala administração dá uma parcela do seu poder a uma pessoa determinada; outracoisa é o mandato de natureza política.

O Sr. Ministro Victor Nunes: O mandato pressupõe a transferência deatribuições que pertencem ao mandante; sem essa transferência não há mandato.O mandato político é assim chamado porque, segundo a teoria da soberania nacio-nal, quem tem o poder de governar o povo é o próprio povo, ou, para efeitospráticos, o corpo eleitoral, que o sistema político confunde com o próprio povo. Osoberano é, assim, o corpo eleitoral, segundo a tradição democrática, impostapela realidade do governo; e, através do mandato político, o corpo de eleitoresconfere atribuições, que são suas, aos seus mandatários, isto é, aos titulares dasfunções eletivas.

Considerando o caso sob exame, para haver mandato do Presidente daRepública a qualquer servidor, seria preciso que a lei, que define as atribuiçõesrespectivas, as tivesse atribuído ao Presidente da República e este, então, emvirtude de mandato, as houvesse transferido. Mas, no caso, tais atribuições sãoconfiadas, pela lei, ao próprio nomeado; elas pertencem, por lei, não ao Presidenteda República, mas ao titular do cargo. Não há, pois, transferência de atribuições;não havendo transferência de atribuições, não se trata de mandato. O titular —no caso, o diretor da Caixa Econômica — exerce suas atribuições ex lege, e nãoem virtude de as ter recebido do Presidente da República, porque este não aspossuía antes, e, não as tendo, não as podia transferir.

O Sr. Ministro Hahnemann Guimarães: Esse mandatário pode vir a fazeruma política totalmente oposta à da administração que o nomeou, que lhe deu omandato.

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Ministro Victor Nunes

O Sr. Ministro Victor Nunes: Não sou juiz do legislador. O Presidente daRepública não tem o monopólio da política do País.

O Sr. Ministro Candido Motta: Da política administrativa não tem?

O Sr. Ministro Victor Nunes: Não é só política administrativa. A Constitui-ção Federal incumbe a definição da política do País aos três ramos do poderpúblico, aos três Poderes, ao Legislativo, ao Executivo e ao Judiciário. Incluo oJudiciário, porque o Supremo Tribunal Federal exerce função política relevantequando interpreta a Constituição e as leis e quando, por exemplo, apreciando asconseqüências que resultam da sua execução, altera a sua própria jurisprudência.Quanto à função política do Congresso, nem há necessidade de acrescentar umasó palavra. Como, pois, argumentar como se o Executivo tivesse o monopólio dapolítica nacional?

Se a lei, ao instituir um órgão autônomo, quer proteger seus dirigentes doarbítrio ou capricho de quem os nomeou, o que ela faz é definir uma política, quenão podemos neutralizar em nome da política do Executivo.

Negar validade às normas legais de nomeação a termo, Sr. Presidente, égolpear, nos alicerces, o princípio da autonomia administrativa. Realmente, esseproblema só surge em função dos órgãos autônomos; se negamos validade àsnomeações a termo, por mais que a lei queira dotá-los de autonomia, eles não oserão, porque seus dirigentes estarão dependendo sempre ou do prudente critérioou do arbítrio desarrazoado do Presidente da República.

Pleiteio que se observe, sobre o assunto, a jurisprudência deste Tribunal, eme advertem que jurisprudência não pode ser imutável. Não sou contrário, emtese, Sr. Presidente, a que o Tribunal mude de jurisprudência. É certo que sou, emprincípio, partidário de que tenhamos uma jurisprudência estável. É muito maisconveniente que a jurisprudência do Tribunal se defina em tal ou qual sentido,embora não seja sempre no mais acertado, do que seja uma hoje, outra amanhã,implantando a incerteza e o ceticismo nos espíritos. Todavia, embora favorável àestabilidade da jurisprudência, não poderia deixar de ser partidário da sua renova-ção, sempre que necessária. Eu próprio me tenho batido, com ardor, para queeste Tribunal adote, em relação às taxas, um conceito mais flexível do que aqueleque aqui tem predominado, pois, em nome de um conceito doutrinário, e não deprincípios constituionais, temos anulado taxas criadas pelos Estados dentro deuma conceituação de taxa definida em decreto-lei federal. Se são prementes asnecessidades financeiras dos Estados, se a Constituição não define taxa, se háuma lei federal que lhe dá uma conceituação flexível e compreensiva, por quehavemos de fazer prevalecer, no silêncio da Constituição, contra uma lei federal,

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indiferentes à notória escassez do erário estadual, uma restritiva conceituaçãodoutrinária de taxa, de resto controvertida? Entretanto, meu apelo caloroso, infe-lizmente, não tem sido atendido pela maioria do Tribunal.

O Sr. Ministro Ary Franco: Clama ne ceses...

O Sr. Ministro Victor Nunes: Continuarei a clamar. Peço vênia, Sr. Presi-dente, para acompanhar o voto do eminente Ministro Luiz Gallotti, concedendo asegurança, de acordo com notáveis e reiterados precedentes deste Tribunal, quenenhuma necessidade coletiva aconselha a modificar.

MANDADO DE SEGURANÇA 8.693 — DF

Institutos autárquicos. Nomeação e exoneração de membrosde suas diretorias, presidentes e conselheiros — Constitui-ção Federal vigente, art. 87, n. V; dispositivos equivalentesda Carta de 1937 e da Constituição de 1934. Inteligência.Poder de exonerar implícito no de nomear. Mandato portempo certo. Inocorrência. Cargos em comissão ou de con-fiança. Demissibilidade ad nutum. Programa político, sociale econômico do governo. Execução e controle do PoderExecutivo. Denegação de mandado de segurança.

VOTO

O Sr. Ministro Victor Nunes: No mandado de segurança n. 8.693, de cujosautos pedi vista, discute-se a importante questão da investidura administrativa deprazo certo, impropriamente denominada mandato.

O tratamento do tema foi aprofundado e ilustrado pelo voto do eminenteMinistro Ribeiro da Costa, pelo parecer o douto Professor Caio Mário da SilvaPereira, ao tempo Consultor-Geral da República, pelo debate travado entre oilustre advogado José Joaquim Moreira Rabelo e o eminente Procurador-Geralde então, professor Joaquim Canuto Mendes de Almeida, pelos memoriais deilustres advogados que pleiteiam casos análogos, entre os quais se distinguem osdos Drs. Sobral Pinto e Gabriel Costa Carvalho, Claudio Pena Lacombe,Leopoldo Braga e por pareceres de consagrados jurisconsultos, incluindo o emi-nente Orosimbo Nonato.

Com toda a reverência, ouso dissentir do eminente Relator para concedera segurança impetrada, a fim de que o Dr. Murilo Gondin Coutinho reassuma o

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cargo de que foi ilegalmente afastado, no Conselho Administrativo do Instituto deAposentadoria e Pensões dos Industriários. Espero contar, como de outras vezes,com a paciente indulgência dos eminentes colegas para expor as razões do meuconvencimento. Creio que a relevância do tema justifica um estudo mais apro-fundado.

Em sentido contrário à impetração, foram aduzidos motivos de ordemconstitucional, de ordem legal e de ordem administrativa e política. Procurareiexaminá-los nesta seqüência.

II

Argüi-se, em primeiro plano, que, implícito no poder de nomear, a Consti-tuição de 1946 confere ao Presidente da República o poder de demitir, com am-plitude muito maior do que o haviam feito as Constituições republicanas anterio-res, inclusive a outorgada, de 1937.

O art. 87, V, da atual atribui, privativamente, ao Presidente da República“prover, na forma da lei e com as ressalvas estatuídas por esta Constituição, oscargos públicos federais”. Esta norma, segundo a argumentação de que, datavenia, divirjo, só admitiria, quanto ao poder de nomear do Presidente da República,as condições e restrições que constam, expressamente, da própria Constituição. Aolegislador ordinário, porém, não seria facultado condicionar ou regular o exercíciodesse poder, mas apenas estabelecer a forma pela qual há de ser exercitado.

A prerrogativa do Presidente da República não seria tão ampla nas Cons-tituições de 34 e 37, porque estas definiam a competência para prover os cargosfederais, ressalvando “as exceções previstas na Constituição e nas leis” (respec-tivamente, art. 56, n. 14, e art. 74, letra l). Em outras palavras, as Constituiçõesde 34 e 37 teriam facultado à lei, isto é, ao legislador ordinário, restringir o poderde nomear do Presidente da República; a de 1946 só lhe permitiria estabelecer aforma do exercício desse poder.

Funda-se o argumento em que a vigente Constituição emprega o vocá-bulo restrições em correspondência com ela própria, fazendo supor que so-mente as restrições constantes do texto Constitucional seriam legítimas. O ar-gumento, venia concessa, não atenta para uma circunstância: o art. 87, n. V,da Constituição, o que define é a competência do Presidente para prover car-gos públicos. Em conseqüência, as limitações ali contidas são endereçadas aoPoder Executivo, e não ao Legislativo; em outros termos, a alusão, ali feita, àsrestrições estabelecidas na Constituição compreende os casos em que a com-petência para prover cargos públicos federais não pertence ao Presidente, masa outros poderes, isto é, ao Congresso e aos Tribunais, no que se refere àsrespectivas secretarias.

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Esta observação desloca o debate para a locução na forma da lei, que selê na mesma norma constitucional: prover os cargos federais, na forma da lei.Pretende-se que esta expressão apenas significa: de acordo com as formalida-des estabelecidas na lei. O argumento, data venia, não procede, porque aexpressão na forma da lei, segundo o entendimento correto e correntio, querdizer: na conformidade da lei, consoante a lei, segundo a lei, segundo o quedispuser a lei (...)

É claro que a lei não pode dispor tudo, porque está, por sua vez, sujeita àslimitações constitucionais, mas não é o art. 87, n. V, o dispositivo que regula taislimitações, e sim, todo o conjunto das normas constitucionais que estruturam nos-so regime político-jurídico. O que transluz, portanto, do art. 87, n. V, é que o poderque tem o Presidente da República de prover os cargos públicos federais seexercerá de conformidade com a lei. Pode, assim, o Legislativo condicionar oexercício desse poder, em termos compatíveis com os demais dispositivos daConstituição. A sua competência não é apenas para estabelecer as formalidadesaplicáveis mas também os pressupostos do provimento dos cargos públicos.

A fórmula da Constituição atual é mais explícita, a esse respeito, que a de1891, a qual, no art. 48, atribuía, privativamente, ao Presidente da República,“prover os cargos civis e militares de caráter federal, salvo as restrições expres-sas na Constituição”. O texto de 91 não continha a cláusula na forma da lei;entretanto, os seus mais autorizados comentadores sempre entenderam legítimaa competência do legislador para disciplinar, condicionar, regular o exercício dopoder de nomeação do Presidente da República. Leiam-se as lições de Barbalho(2ª ed., p. 253: “o provimento deles (empregos), na conformidade das leis, é fun-ção executiva”); Carlos Maximiliano (3ª ed., p. 550: O Congresso “estabelece ascondições de investidura e a duração do exercício. O presidente escolhe, deconformidade com a lei...”) Rui Barbosa (vol. III, p. 225: “Não é verdade (...)que (...) a demissibilidade seja ilimitada (...); não são poucas as leis pátrias,que restringem o arbítrio do Governo...”).

É, aliás, idêntico o ensinamento, em relação à Constituição atual, de Pontesde Miranda (2ª ed., vol. II, p. 396) e Themistocles Cavalcanti (Tratado, vol. IV,pp. 187 e 182).

Por outro lado, o texto constitucional não diz nomear, mas prover oscargos, o que compreende outras modalidades de provimento além da nomeação,como sejam a transferência, a promoção, o aproveitamento, etc. (Estatuto, art.11). Assim, a tese de que o legislador ordinário não pode condicionar o exercíciodo poder previsto no art. 87, V, da Constituição, se aceita pelo Supremo Tribunal,poria por terra grande parte do Estatuto dos Funcionários e de todas as leis queregulam as diversas modalidades de provimento de cargos federais. Toda a disci-plina legal das promoções, das transferências, das readmissões, etc., não poderia

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mais prevalecer diante do arbítrio do Presidente da República, que se exerceriaincontrolavelmente, promovendo, transferindo, readaptando quem quer que fossedo seu agrado ou incidisse na sua antipatia. Estaria, pois, restabelecido, em favordo Presidente da República, um poderio incomensurável, de que há muito já está-vamos desacostumados, com a evolução doutrinária, em todo mundo, em favordo sistema do mérito e das garantias funcionais no serviço público civil. A taisconseqüências catastróficas levaria a premissa constitucional que, data venia,estão combatendo.

A melhor doutrina sempre entendeu, porém, de modo contrário, isto é, queo Congresso não invade as atribuições do Executivo quando disciplina as nomea-ções, as demissões, as promoções, as transferências de servidores públicos. Estasua competência resulta, em primeiro lugar, do regime adotado pela Constituição,que é o da divisão de poderes, cujo pressuposto é a harmonia e não a guerra dospoderes (art. 36). Em segundo lugar, deriva essa competência de outra maisampla, que a Constituição confere ao Poder Legislativo para organizar os servi-ços públicos. “Os cargos públicos — diz o art. 184 — são acessíveis a todos osbrasileiros, observados os requisitos que a lei estabelecer”. O acesso aocargo público se dá pelo provimento, se este depende dos requisitos que a leiestabelecer, parece intuitivo que o poder de prover os cargos públicos, atribuídoao Presidente da República, não pode deixar de estar condicionado ao que dispu-ser a lei.

Idêntico argumento se pode extrair do art. 188, parágrafo único, da Consti-tuição, que declara não aplicável a estabilidade aos cargos “que a lei declare delivre nomeação e demissão”. Se a lei, ao definir cargos de livre nomeação e demis-são, não pode contrariar a Constituição, porque seria inválida, nem simplesmentereproduzí-la, porque seria inócua, claro está que pode inovar na matéria, autoriza-da pela própria Constituição, o que significa regular o poder de nomear e de demitirdo Presidente da República. Aliás, que irrisória competência para organização doserviço público teria o Legislativo, se não pudesse disciplinar a investidura dos ser-vidores, o seu acesso na carreira, a transferência de um cargo para outro, areadmissão, enfim, se todas essas matérias tivessem de ser deixadas à discrição doChefe do Poder Executivo: o poder de organizar o serviço público pertenceria, emtal hipótese, ao executivo e não ao legislador.

Cuidando-se, em especial, da investidura de servidor público por prazocerto, eis uma providência que se integra, com toda a naturalidade, no regime deautonomia administrativa atribuído, por lei, a certos órgãos. Visa a investidura deprazo certo a garantir a continuidade de orientação e a independência deação de tais entidades autônomas, de modo que os titulares, assim protegidoscontra as injunções do momento, possam dar plena execução à política adotadapelo Poder Legislativo, ao instituir o órgão autônomo, e definir-lhe as atribuições.

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No sistema político vigente em nosso país é, realmente, ao Legislativo que cabetraçar a orientação geral da política econômica e administrativa do país, pois deledepende a votação do orçamento, a concessão de créditos especiais, a aprovaçãode tratados com nações estrangeiras e o poder de votar leis em toda a extensa áreada competência legislativa da União.

Não é, aliás, a investidura de prazo certo uma invenção brasileira. Ela temuso freqüente em outras nações, e freqüentíssimo nos Estados Unidos, cujo regi-me copiamos. Numerosos são os cargos, especialmente nas independentregulatory comissions, cuja investidura se faz a prazo certo. Citarei algumas:Junta de Aeronáutica Civil (Civil Aeronautics Board), cinco membros nomea-dos com prazo de seis anos, sendo que não mais de três do mesmo partido;Serviço de Reaproveitamento da Terra do Distrito de Columbia (District ofColumbia Redevelopment Land Agency), cinco membros, nomeados por cincoanos; Organização Federal de Depósito e Seguro (Federal Deposit InsuranceCorporation), um membro nato e dois nomeados por seis anos; Junta Federal deBancos de Financiamento de Casas (Federal Home Loan Bank Board), trêsmembros nomeados por quatro anos, sendo dois, no máximo, do mesmo partido;Comissão Federal do Comércio (Federal Trade Commission), cinco membrosnomeados por sete anos, não mais de três do mesmo partido; Comissão de Títulose Câmbio (Securities and Exchange Commission), cinco membros nomeadospor cinco anos, sendo três, no máximo, do mesmo partido; Junta de Controle deAtividade Subversivas (Subversive Activities Control Board), cinco membrosnomeados por cinco anos, não podendo mais de três pertencerem ao mesmopartido; Comissão de Serviço Civil dos Estados Unidos (United States CivilService Commission), três membros nomeados por seis anos, não podendo maisde dois pertencer ao mesmo partido; Comissão de Tarifas dos Estados Unidos(United States Tariff Commision), seis membros nomeados por seis anos, nãomais de três do mesmo partido (Apud United States Government OrganizationManual, 1960-1961).

Na sessão em que se iniciou o julgamento deste caso, foi ironizada a invo-cação da experiência legislativa, administrativa e judiciária dos Estados Unidos.A estranheza, entretanto, não procede. Não só essa consulta era aconselhadapela identidade dos regimes políticos, em seus traços essenciais, como tambémpela circunstância de que os norte-americanos estão praticando o presidencialis-mo, que inventaram, desde mais de cem anos antes de nós. Grandes juristasbrasileiros, entre eles Rui Barbosa, o maior do que já pleitearam perante o Supre-mo Tribunal, nunca se pejaram de recorrer às fontes norte-americanas.

Pois bem; ali, depois de muito estudado e debatido o assunto, pelos trêsPoderes, chegou a Corte Suprema a uma fórmula bastante apropriada e de fér-teis conseqüências. O significado e o alcance jurídico da investidura de prazo

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certo ficou a depender da natureza do cargo ou função. No tocante aos quese situam, estritamente, na linha hierárquica do Poder Executivo, isto é, dentro daestrutura a que chamamos, no Brasil, a administração direta, entende-se que ainvestidura de prazo certo apenas marca o seu termo final, mas não impede oChefe do Governo de exonerar o funcionário antes desse termo. Esta foi a dou-trina de um julgamento famoso, o Myers Case (272 U.S. 52), de 1926. Foi relatoro Chief Justice Willian Taft, que por coincidência tinha sido Presidente dos EstadosUnidos. Ficaram vencidos McReynolds e os dois luminares Holmes e Brandeis.

Entretanto, em duas outras decisões, igualmente famosas, posterioresàquela, uma de 27-5-1935, outra, de 30-6-1958, ficou decidido que a doutrina doMyers Case não se aplicava às nomeações de prazo certo para órgãos dotadosde autonomia administrativa, dos quais, nos Estados Unidos, se diz que exer-cem funções quase-legislativas ou quase-judiciárias, entidades criadas por lei eque correspondem, lato sensu, às nossas autarquias, dotadas, nos limites da lei,de funções normativas e jurisdicionais, não obstante o seu caráter de órgãosadministrativos, integrantes da administração descentralizada. Refiro-me aoCaso Humphrey (295 U.S. 602, 1935) e ao Caso Wiener (357 U.S. 349, 1958).

A doutrina que nos mesmos foi afirmada pela Corte Suprema, a propósito,respectivamente, da Comissão Federal de Comércio e da Comissão de Reclama-ções de Guerra, destinou-se, consciente e deliberadamente, a restringir, precisare circunscrever a doutrina do Myers Case, a qual, entendida ao pé da letra,ampliaria desarrazoadamente os poderes do Presidente da República, no tocantea demissão dos servidores públicos. O objetivo da nova doutrina, que a CorteSuprema enunciou de maneira explícita, foi justamente garantir o exercício dasfunções e atribuições dos mencionados órgãos autônomos com a necessária in-dependência, em face do Poder Executivo, para que pudessem cumprir, a salvode injunções, a política ou orientação traçada pelo Poder Legislativo, ao instituirtais entidades autônomas.

Note-se, aliás, que a Chefia do Poder Executivo, configurada no Presidenteda República e considerada de maneira impessoal, isto é, independentemente dapessoa que a exerça, também participa do processo legislativo, através da inicia-tiva, da sanção ou do veto das leis que organizam esses órgãos independentes.

Peço vênia aos eminentes colegas para ler alguns trechos das duas citadasdecisões da Corte Suprema, a fim de documentar o que acabo de indicar resumida-mente.

Consta da ementa do caso Humphrey’s Executor versus United States,segundo a publicação da Lawver’s Edition (55 S. Ct. 869):

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“O Congresso tem competência para determinar que agênciasquase-legislativas ou quase-judiciárias desempenhem suas funçõesindependentemente de controle do Executivo, bem como estabelecerprazo para o exercício dos cargos respectivos e proibir a demissão dosrespectivos membros, pelo Presidente da República, durante o prazo dainvestidura (during their therm of office), salvo ocorrendo motivo legal.(...) A questão de saber se o Presidente pode demitir servidor público, adespeito da limitação estabelecida pelo Congresso ao seu poder dedemissão, depende da natureza do cargo, e da circunstância de exercer oservidor funções quase-legislativa ou quase-judiciárias. (...) A lei quepermite ao Presidente demitir membros da Comissão Federal do Comérciopor ineficiência, negligência no cumprimento do dever ou má conduta noexercício da função, interpretada no sentido de limitar o poder de demitirdo Presidente à ocorrência dos motivos mencionados, estabeleceu legítimarestrição à competência do Executivo. (...) O poder do Presidente dedemitir os membros da Comissão Federal do Comércio é limitado àdemissão pelos motivos específicos enumerados na lei (...)”.

Lê-se, ainda, no corpo da decisão:

“(...) A letra da lei, os anais legislativos e as finalidades gerais dessalegislação, tais como refletidas nos debates, tudo concorre parademonstrar a intenção do Congresso de criar entidade de pessoasespecializadas, que adquirissem experiência através do prolongamento doexercício; um órgão coletivo, que fosse independente da autoridadeexecutiva, exceto na sua seleção, e livre para emitir o seu julgamentoindependentemente de permissão ou embaraço por parte de qualqueroutro funcionário ou qualquer departamento do governo. É evidente que oCongresso foi de opinião que a extensa da investidura e a certeza de nelapermanecer contribuiriam de maneira vital para a consecução dessesobjetivos. A afirmativa de que, não obstante isso, os membros da Comissãocontinuam na função pela simples vontade do Presidente poderia frustrar,em larga medida, os próprios fins que o Congresso procurou alcançar pelafixação do prazo de duração do exercício. Concluímos que o intuito da lei élimitar o poder de demitir do Executivo às causas enumeradas, nenhumadas quais é invocada neste caso (...).”

Note-se que na lei não havia expressa proibição de demitir, pois que selimitava a permitir a demissão pelos motivos enumerados; e a Corte Supremainterpretou a lei, a contrario sensu, como proibitiva de demissão por outrosmotivos, ou não motivada.

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O Sr. Ministro Ribeiro da Costa (Relator): Embora não me agrade pertur-bar a elaboração de V. Exa., eu me permito fazer uma observação: é que V. Exa.está argumentando com um caso ocorrido nos Estados Unidos que não tempertinência com a espécie que vamos apreciar. V. Exa. se refere ao exercício defunções quase-legislativas e quase-judiciárias. Ora, é evidente que o ato do Pre-sidente que demitisse um desses investidos atentaria contra dispositivo de ordemconstitucional. No caso que vamos julgar, trata-se de servidor administrativo, re-presentante do governo, mandatário do governo. É coisa diferente.

O Sr. Ministro Victor Nunes: Não do Governo, embora a lei o diga, impro-priamente. A Constituição refere-se à União, quando se refere à previdência.Chegarei lá. O que pretende demonstrar, por ora, é que, nos Estados Unidos, oque se chamam funções quase-judiciárias e quase-legislativas é, precisamente, oque nós chamamos, aqui, funções normativas e jurisdicionais de órgãos adminis-trativos. O sistema previdenciário brasileiro baseia-se em uma série de conse-lhos, com recursos diversos, conselhos que decidem sobre direitos das partesinteressadas e expedem normas reguladoras da aplicação das leis de previdên-cia. É precisamente, é exatíssimamente o que fazem, cada qual no seu campo deação, as regulatory commissions, no Direito Administrativo norte-americano.No caso Myron Wiener v. United States, de 30-6-1958, relatado pelo eminetís-simo Felix Frankfurter, fez-se um elucidativo confronto entre os casos Myers eHumphrey, que muito contribui para dar maior precisão à doutrina da SupremaCorte. Lê-se na ementa da Lawyer´s Edition (78 S. Ct. 1275):

“O Presidente pode demitir funcionários que fazem parte da admi-nistração direta (executive establishment), mas o poder presidencial dedemitir os membros de um corpo deliberativo criado para exercer seujulgamento sem obstáculo por parte de qualquer outro funcionário sóexiste, se o Congresso lho conferir. (...) Tendo a Lei de Reclamações deGuerra de 1948 instituído uma Comissão com competência para julgar asreclamações de guerra de acordo com a lei, e sem recurso, e não con-tendo essa lei qualquer disposição relativa à demissão dos conselheiros,não tem o Presidente autoridade para demitir um conselheiro somentepara ter, na Comissão, pessoal de sua própria escolha”.

E no contexto da decisão lemos o seguinte:

Afirmou-se “que o caso Myers reconheceu o inerente poder consti-tucional do Presidente de demitir servidores públicos, qualquer que seja asua relação com o Executivo para o desempenho de suas atribuições, enão obstante as restrições que o Congresso possa ter estabelecido comrespeito a duração da investidura. A versatilidade das circunstâncias mui-tas vezes desilude a natural aspiração do definitivo. Menos de dez anos

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depois, uma Corte unânime, em Humphrey’s Executor v. United States(...) delimitou restritamente o alcance da decisão Myers para incluirsomente “os servidores simplesmente executivos” (all purely executiveofficers) (...)”.

O que os americanos chamam executive department ou executiveestablishment é o que nós denominamos administração direta, conceito queexclui a administração descentralizada, através das autarquias. São diferentes aspalavras, mas os conceitos se correspondem, aqui e nos Estados Unidos. E o quese discute, no momento, é se o Presidente tem ilimitado poder de demitir os mem-bros de um corpo deliberativo autônomo, integrante da administração descentra-lizada.

Continuo a ler a Wiener opinion: “A Corte, explicitamente, desaprovouas expressões, contidas no julgado Myers, que sustentavam o inerente poderconstitucional do Presidente de demitir membros dos corpos quase-judiciários.(...) O caso Humphrey foi cause célèbre, e não menos nos recintos do Congres-so. Qual a essência da decisão do caso Humphrey? Ele estabeleceu uma nítidalinha divisória entre funcionários que fazem parte da administração direta(executive establishment) e que eram, portanto, demissíveis por força dos po-deres constitucionais do Presidente, e aqueles que são membros de uma entida-de criada ‘para exercer seu julgamento sem dependência de permissão ou em-baraço de qualquer outro funcionário ou de qualquer departamento do Gover-no’ (...), e em relação aos quais o poder de exonerar só existe na medida emque o Congresso haja por bem conferí-lo. Essa nítida distinção deriva da dife-rença funcional entre os que fazem parte da administração direta e os quepertencem a órgãos cujas atribuições exigem absoluta independência em facedo Executivo. “Pois é inequivocamente evidente — para de novo citar o casoHumphrey — que quem exerce o cargo somente enquanto agrada a outro, nãopode, por isso mesmo, manter uma atitude de independência ante a vontadedesse outro”.

Essas duas memoráveis decisões lançam muita luz sobre o tema ora emdebate.

O Sr. Ministro Candido Motta: É que, nesses casos, não é uniforme ajurisprudência americana. Há acórdãos a favor e acórdãos contra.

O Sr. Ministro Victor Nunes: Posso afirmar que não, depois de 1935; depoisdo caso Humphrey, não.

O Sr. Ministro Candido Motta: Eu posso citar um livro a respeito da Presi-dência nos Estados Unidos, onde se aponta um caso de 1937.

O Sr. Ministro Victor Nunes: Suponho que há equívoco.

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O Sr. Ministro Hahnemann Guimarães: Nos casos em que o funcionáriopodia ser demitido, não se falava em representante do Governo. Na espécie, háum representante do Governo num órgão colegiado.

O Sr. Ministro Victor Nunes: Procurarei tratar deste argumento mais adi-ante. E peço permissão para lembrar que, no caso Wiener, membro da Comissãode Reclamações de Guerra, nem sequer havia disposição que definisse os casosde demissibilidade; nem havia mesmo prazo explícito para a investidura. A leicriou uma comissão para funcionar por prazo determinado. Entretanto, com leitão omissa, a unanimidade da Corte Suprema, se afirmou no mesmo sentido dadecisão Humphrey.

O Sr. Ministro Hahnemann Guimarães: No caso Humphrey, nenhum fun-cionário representava um órgão colegiado.

O Sr. Ministro Victor Nunes: A razão pela qual dois Presidentes, Roosevelte Eisenhower, demitiram os referidos funcionários foi que o Governo precisavaestar representado naqueles órgãos por pessoa de sua confiança. Entretanto,afirmou, na outra sessão, o eminente Procurador-Geral que elas se referiam afuncionários dos poderes legislativos e judiciários. É possível mesmo que eu tenhaouvido mal as palavras de S. Exa., porque os dois precedentes da Corte Supremacuidam, explicitamente, de membros de órgãos de funções quase-judiciárias ouquase-legislativas, o que, de modo nenhum, os situa nos quadros do Congresso oudos Tribunais. Pertencem eles ao que chamamos administração descentralizada.Como observa Claudius O. Johnson, “o tipo de órgão administrativo situado forada administração direta (executive department) que tem recebido maior somade atenção é a chamada comissão independente” (Government in the UnitedStates, 1956, p. 534).

Tais entidades são os equivalentes das nossas autarquias econômicas eadministrativas, cuja criação depende de lei. E a lei que lhes dá autonomia, noslimites que o legislador considere convenientes, tem por objetivo, não só facilitara administração dos serviços respectivos, pela adoção de normas diferentes dasque vigoram para a administração direta, mas também tornar os seus dirigentes,nos termos da lei, independentes da miúda e cotidiana interferência do Chefe daadministração federal. A doutrina dos casos Humphrey e Wiener tem, como sevê, inteira aplicação ao processo em exame, quer pela semelhança do regime (aotempo da impetração), quer por se tratar de entidades administrativas de atribui-ções congêneres, do ponto de vista do direito, e cuja continuidade e independên-cia de ação o legislador quis proteger com a investidura de prazo certo de algunsou de quase todos os seus dirigentes.

Encerrada esta longa referência à jurisprudência norte-americana, voltemosàs razões contrárias à impetração. Também se argüiu que o poder de demitirderiva do de nomear, e concluiu-se que são ambos co-extensivos; devendo pre-valecer, para o poder de nomeação, apenas as restrições expressas na Constitui-ção Federal, o mesmo se deveria entender com relação ao poder de demitir.

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É realmente aceito, pelos especialistas, que o poder de demitir resulta dode nomear. Não há, porém, concordância na tese de que o poder de demitir é co-extensivo do de nomear, isto é, que os dois poderes tenham as mesmas dimen-sões ou se desenvolvam dentro da mesma superfície.

O poder de demitir, em alguns casos, tem extensão maior que o de nomear,quando se dispensa, por exemplo, a concordância do Senado para o afastamentode titulares cuja investidura depende da sua aprovação. A recíproca também éverdadeira, segundo a nossa reiterada prática legislativa, judiciária e administrati-va, coincidente com a de outros países, no sentido da legitimidade das restriçõeslegais ao poder de demitir. Umas das questões, cujo exame se tem repetido ulti-mamente neste Tribunal, envolvendo o problema em debate, é a do estágioprobatório. Já decidimos, com o apoio do eminente Relator do presente processo,que não há identidade entre o instituto do estágio probatório e o da estabilidade.Ambos têm de comum serem garantias contra a demissão arbitrária ou imotivadade servidores públicos. Entretanto, uma diferença fundamental, que separa os doisinstitutos, consiste em estar o servidor estável protegido contra a própria supres-são do cargo, ficando, em tal caso, em disponibilidade, até ser aproveitado emoutro equivalente. Dessa garantia não dispõe o estagiário, mas ele está resguar-dado de demissão arbitrária ou imotivada, porque, para seu afastamento, o Esta-tuto dos Funcionários exige processo administrativo.

A prevalecer a doutrina, que a administração sustenta no caso presente,desaparecerá da nossa legislação, por inconstitucional, o instituto do estágioprobatório. Na verdade, porém, assim como o legislador pode condicionar o exer-cício da competência do Chefe do Governo para prover cargos, também podecondicionar, sob a inspiração do interesse público, o exercício do poder de demitir.Outros exemplos, além do estágio probatório, poderiam ser lembrados. Ocorre-me a doutrina dos motivos determinantes, desenvolvida, na França, por GastonJèze, e aceita, entre nós, em parecer de Francisco Campos. Essa doutrina foi,recentemente, prestigiada pela 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal (e digoprestigiada, porque não participei do julgamento), no caso Vasco Pezzi, pela pala-vra magisterial do eminente Ministro Hahnemann Guimarães (Ag 24.715, de10-10-61).

Estou, pois, firmemente convencido de que o Governo extraiu da regra,segundo a qual o poder de demitir deriva do de nomear, conseqüências que a lei,a doutrina e a jurisprudência têm repelido, com fundadas razões. A Constituiçãonão ampara a interpretação napoleônica do Executivo no caso presente.

Ponderou-se, por outro lado, que a pretensão do impetrante, de não verreduzido, sem justa causa, o prazo de sua investidura, equivale a criar um caso deestabilidade temporária, que a Constituição não admite. O argumento, data

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venia, não focaliza adequadamente o problema em debate. A garantia do exercí-cio do cargo, por certo prazo, de modo algum pode ser equiparada à estabilidade.Cabem, aqui, as mesmas razões já desenvolvidas quanto à distinção entre o está-gio probatório e a estabilidade.

A investidura de prazo certo é apenas uma, dentre várias técnicasadmissíveis, para proteger o servidor público das demissões arbitrárias, ouimotivadas, e visa a um objetivo que transcende dessa conseqüência imediata, ode garantir a continuidade de orientação e a independência dos órgãos adminis-trativos que o legislador dotou com autonomia. Esta é que é, repita-se, a finalida-de de ordem geral, a razão de serviço público que inspira a investidura de prazocerto. Por isso mesmo, a doutrina firmada pela Corte Suprema dos Estados Uni-dos só lhe atribui a conseqüência de vedar a demissão antes do termo, sem motivolegal, quando se trate de funcionário de entidades autônomas, cuja independênciade critério tenha de ser preservada, e não de servidores integrados na hierarquiaordinária da administração direta.

Não há, pois, que invocar a disciplina constitucional da estabilidade para senegar validade à investidura de prazo certo, porque são noções diferentes.

Existe, aliás, uma situação bem parecida com à investidura de prazo certonas relações de trabalho de natureza privada. Refiro-me à impropriamente cha-mada estabilidade temporária ou provisória dos dirigentes sindicais. Eles não po-dem ser afastados do emprego, sem falta grave, enquanto durar o exercício darepresentação sindical. Essa garantia foi estabelecida, pelo legislador, não embenefício do trabalhador, individualmente considerado, mas no superior interesseda função que, por sua natureza, há de ser desempenhada com independência.

Também se disse, no caso dos autos, que as funções dirigentes, como estade que cuidamos, são de confiança; estariam, pois, pela própria Constituição,excluídas da proteção da estabilidade.

Respondo a esse argumento, data venia, em primeiro lugar, com as mes-mas considerações já aduzidas a respeito da estabilidade. A estabilidade é umacoisa, e a investidura de prazo certo, outra, bem diferente, cada qual com os seuspressupostos e objetivos. A estabilidade visa, sobretudo, à proteção da pessoa doservidor; a investidura de prazo certo, o que protege, através da permanência doservidor no cargo, é o interesse mais alto, da continuidade e independência dafunção por ele exercida num órgão dotado de autonomia.

Em segundo lugar, menciona a Constituição (art. 188, parágrafo único) oscargos de confiança, mas não os define. Essa atribuição ficou, portanto, delegadaao legislador ordinário (art. 184). Quando a lei cria um cargo com investidura deprazo certo, evidentemente o exclui da categoria dos de confiança, que pressu-põem, por definição, a demissibilidade ad nutum.

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Além disso, são numerosos os exemplos de normas legais que protegem,indiretamente, os titulares de cargos de confiança. Assim, a Lei 1.741, de 22-11-52, garante os vencimentos da comissão ao funcionário dela afastado depois dedez anos de exercício. Do mesmo modo, o Estatuto dos Funcionários (art. 180)garante os vencimentos da comissão, ou da função gratificada, ao servidor que seaposentar depois de certo tempo de serviço público e de exercício daquelas posi-ções de confiança.

O cargo que a lei dotou com a investidura de prazo certo não pode ser tidocomo função de confiança, porque é justamente o oposto dela, sendo antinômicosos propósitos do legislador num e noutro caso. Permitam-me repetir um trecho dadecisão da Corte Suprema, no Caso Humphrey, repetida no Caso Wiener:“quem exerce o cargo somente enquanto agrada a outro, não pode, por isso mesmo,manter uma atitude de independência ante a vontade desse outro”.

O objetivo do legislador, com a investidura de prazo certo, é justamentetornar o titular do cargo independente das injunções do Chefe do Poder Executivo.Pode errar o legislador, ao adotar esse critério, em relação a tal ou qual serviço aque concede autonomia, mas não cabe ao Judiciário corrigir a política do PoderLegislativo. Se o que visa o Legislativo é, justamente, tornar determinado funcio-nário independente, no exercício de suas atribuições, como podemos nós dizer, aocontrário da lei, que esse funcionário exerce função de confiança, que o tornariainteiramente submetido ao Chefe do Governo?

III

Concluída a discussão no plano constitucional, passemos aos argumentosde natureza legal. Já aludimos à impropriedade da denominação mandato, que setem dado à investidura administrativa de prazo certo. Entretanto, essa errôneaextensão do vocábulo resultou da aproximação de tais situações, não com o man-dato de direito comum, porém com o mandato de direito político, isto é, com omandato político-representativo. E o ponto de afinidade consiste, justamente, emque um e outro são de prazo irredutível.

Afirmou, na primeira assentada deste julgamento, o eminente Procurador-Geral que o mandato político é revogável, ao arbítrio do mandante, pois a tantoequivale o processo de impeachment. Com a devida vênia, não é o impeachment oinstituto de direito político em que se traduz a noção de revogabilidade do mandatorepresentativo; é o recall, através do qual os próprios eleitores retiram o mandatoconferido ao seu representante. Mas nunca se afirmou, ao que eu saiba, pudesseo recall ser admitido como implícito na própria noção de mandato político, isto é,que se pudesse adotar, sem norma constitucional ou legal, o princípio darevogabilidade do mandato político.

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Nem quis o eminente Procurador-Geral, no que parece, extrair essaconseqüência das suas próprias palavras, porque apelou para o impeachment. Masesse procedimento, de gravidade excepcional, não acarreta a revogação, e sim, aperda do mandato. É uma sanção de natureza-político criminal, que pressupõe aprática de crime de responsabilidade. A invocação do impeachment, portanto, longede favorecer a tese do governo, no sentido da livre demissibilidade dos servidoresnomeados com prazo certo, levaria antes à conclusão contrária. Assim como, noplano político, se exige crime de responsabilidade para o impeachment, no planoadministrativo, para a demissão de servidor nomeado com prazo certo, se teria deexigir falta grave, a ser apurada em processo administrativo.

Encerrada essa digressão, vemos que a errônea denominação de mandato,aplicada a esses casos, deu lugar ao argumento de lhe serem aplicáveis as regrasdo direito privado relativas ao mandato. Nestas condições — prossegue o argu-mento —, se pode o mandante, salvo casos especiais, previstos em lei, revogar omandato, poderia também o Presidente da República demitir o servidor nomeadocom prazo certo.

Data venia, o uso impróprio do vocábulo mandato não pode mudar opreto em branco, para fazer surgir, em tais casos, a figura jurídica do mandato.Pelo art. 1.208 do Código Civil, tem-se o mandato “quando alguém recebe deoutrem poderes, para, em seu nome, praticar atos, ou administrar interesses”.Daí resulta, portanto, que a atividade exercida pertence, originariamente, aomandante e é por ele delegada ao mandatário, ou por comodidade, ou por falta dehabilitação legal.

Nada disso acontece nas nomeações de prazo certo. No caso dos autos,por exemplo, quem pode pretender que as atribuições exercidas pelo nomeadofossem, originariamente, do Presidente da República, de modo a constituir-seaquele em mandatário deste?

O Sr. Ministro Ribeiro da Costa (Relator): V. Exa. pode transferir esteraciocínio para o plano político e verá, então, que, realmente, esse servidor inves-tido pela vontade do Presidente da República não é senão um mandatário doPresidente da República, que personifica o governo. Se quiser V. Exa. transpor osentido jurídico do instituto do mandato para o caso em apreço, verá que o Presi-dente da República personifica o Governo e tem nesses órgãos, sem dúvida, umseu mandatário, o qual vai executar, no órgão para onde é nomeado, a sua vonta-de, o seu programa assistencial, o seu programa político, o seu programa de am-paro ao trabalhador. Não podemos perder esta noção, que é real para o caso queestamos apreciando.

O Sr. Ministro Victor Nunes: Se me permite V. Exa. quando as leis institu-em essas investiduras de prazo certo, o objetivo é precisamente o de retirar do

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Presidente da República o poder que V. Exa. lhe reconhece. E, quando o legisla-dor quer manter esse poder, assim dispõe expressamente. Por exemplo, no Bancode Desenvolvimento Econômico, o presidente é de livre nomeação e demissão,enquanto que os demais diretores têm prazo certo de investidura. É o própriolegislador quem destingue as duas situações; se marca prazo para a investidurade alguns, é porque não quer permitir a livre demissão.

O Sr. Ministro Ribeiro da Costa (Relator): Cabe à Corte Suprema dar essadefinição para ajudar a obra governamental, para ajudar o programa que o Presi-dente da República tem de executar.

O Sr. Ministro Victor Nunes: Estou procurando dar a minha modesta con-tribuição para que o Tribunal chegue a interpretação que julgue mais acertada.Tais funções são criadas em lei, e esta as institui, desde logo, como atribuições dopróprio servidor nomeado para exercê-las. Não se pode receber, por transferên-cia de outrem, aquilo que a lei já conferiu diretamente. Não existe, pois, aqui, afigura do mandato de direito comum, nem se pode ter o ato de nomeação comoequivalente à procuração, que, pelo citado art. 1.288 do Código Civil, “é o instru-mento do mandato”.

Também não se pode ver na nomeação um ato de delegação de poderes,usual na esfera administrativa, porém na linha da hierarquia. As nomeações deprazo certo, de que estamos cogitando, são para cargos integrantes de órgãosdotados de autonomia, isto é, com atribuições derivadas diretamente da lei.

Basta recordar que a delegação de poderes se confere a um funcionário,que continua no exercício do cargo próprio, mesmo depois de cessar a delegação,pois esta cessação só se refere, obviamente, ao poderes delegados. Entretanto,na investidura de prazo certo, as atribuições são, por força de lei, do própriocargo; por isso não podem ser retiradas do funcionário a não ser com a suademissão. Mas nunca se sustentou, no Direito Administrativo, que demissão defuncionário seja ato equivalente ou equiparável a retirada de delegação de poderes.Nunca vi isso em livro nenhum: que seja a mesma coisa retirar a delegação depoderes, ou demitir o funcionário, para que não exerça as atribuições que lheconfere a lei. Retira-se a delegação quando a autoridade superior, que a conferiu,não quer mais que o delegado a exerça.

Não há que cogitar, portanto, da aplicação, ao caso presente, das regrasde Direito Civil sobre revogação de mandato, porque aqui não se cuida de nadaparecido com mandato de direito comum. Se houvesse afinidade, seria com omandato político, e este, em nosso direito, é irrevogável.

Abro agora um parêntese para considerar, mais detidamente, um argu-mento dos eminentes Ministros Hahnemann Guimarães e Ribeiro da Costa, queme honraram com seus apartes.

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O fato de dispor a Lei de Previdência Social que o Conselho se compõe derepresentantes da classe dos empregados, da classe patronal e de represen-tantes do Governo, não quer dizer, de modo nenhum, que se trata de mandato.

O Sr. Ministro Hahnemann Guimarães: Trata-se do poder de “representa-ção”; há representação sem mandato; a representação é uma situação inerente avárias situações jurídicas.

O Sr. Ministro Victor Nunes: Quero concluir o meu raciocínio, eminenteMestre. Não há representação do Governo em sentido próprio. A PrevidênciaSocial está estruturada essencialmente, na própria Constituição; baseia-se emcontribuição tríplice: dos empregadores, dos empregados e da União. Diz a Cons-tituição Federal (art. 157, n. XVI): “previdência, mediante contribuição daUnião, do empregador e do empregado”. Porque a União, isto é, o EstadoFederal contribui com um terço da receita que mantém a previdência social,estes órgãos se estruturam com pessoas, não só indicadas pela classe dos tra-balhadores e pela classe patronal, mas também por pessoas nomeadas peloGoverno Federal.

Se os eminentes Ministros Hahnemann Guimarães e Ribeiro da Costa estãodando tanta a atenção à palavra “representantes”, empregada noutro sentido, enão no sentido de “mandatários”, na Lei Orgânica da Previdência, lembrarei quetambém na lei de organização das Juntas de Conciliação e Julgamento e dosTribunais do Trabalho de instância superior há juízes representantes dasclasses — empregadores e empregados —, nomeados pelo Presidente. Have-rá quem sustente que esses juízes possam ser destituídos?

O Sr. Ministro Hahnemann Guimarães: As causas da desitituição da fun-ção judiciária são determinadas e não há, na lei, causas de demissão fixadasquanto aos representantes do Governo.

O Sr. Ministro Victor Nunes: Também não há, na lei, causas específicas dedemissão para os juízes temporários da Justiça do Trabalho.

O Sr. Ministro Hahnemann Guimarães: Sem dúvida há perda da funçãojudiciária, em casos determinados.

O Sr. Ministro Victor Nunes: Mas está isto expresso na lei? Ninguém, noBrasil, já sustentou que esses juízes, chamados representantes das classes,pudessem ter o seu mandato interrompido antes do plano legal. São represen-tantes, em sentido impróprio; neste mesmo sentido impróprio é que aparece ovocábulo na lei de previdência.

Igualmente, não há que se cogitar de reparação pecuniária pela revogaçãodo mandato antes do termo. Tudo isto é matéria estranha ao tema em debate. Areparação de ordem econômica, pela cessação do mandato de direito privado, é

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instituída no benefício pessoal do mandatário, tem caráter compensatório. Mas oprazo da investidura, em casos como o dos autos, não é instituído em razão dapessoa do servidor, mas ratione rei publicae. Assim, a reparação do afasta-mento do funcionário antes do termo — afastamento ilegal — não pode ser deordem privada, traduzível em dinheiro, mas há de ser também de ordem pública,com a volta do servidor ao cargo de que foi dispensado contra lei.

IV

Findo o exame do assunto sob o aspecto legal, vejamos os argumentos denatureza administrativa e política. Ponderou-se que não seria justo ficar o novoPresidente vinculado às nomeações do antecessor; seria mesmo estranhável queo Presidente, prestes a sair, pudesse fazer nomeações, cuja duração se prolon-gasse pelo seguinte período presidencial, numa espécie de manobra política deação retardada.

O argumento, data venia, é de natureza puramente circunstancial. Coin-cidiu que as nomeações impugnadas foram feitas nos últimos tempos do Governoanterior. Sendo, porém, o prazo em causa de quatro anos, bem poderia ocorrerque a investidura começasse e terminasse na gestão do mesmo Presidente. Estapossibilidade tira, portanto, ao argumento, qualquer validez de ordem teórica.

O que há, porém, a observar, a esse respeito (sem falar no reverso damedalha, que seriam as nomeações do novo Presidente, no fim do seu mandato,alcançando, assim, o período do sucessor), é que a cautela tomada pelo legislador,ao instituir a investidura de prazo certo, não se dirige, especificamente, contraeste ou aquele governante, particularmente considerado. É uma garantia de inde-pendência do exercício das funções dirigentes do órgão autônomo contra qual-quer ocupante da chefia do Poder Executivo, mesmo contra o Presidente quetiver feito as nomeações.

Também se objeta que permanência desses titulares nomeados pelo Gover-no anterior pode acarretar falta de entrosamento com o novo governo, prejudi-cando a sua ação administrativa. Este foi, aliás, o argumento usado pelo Presi-dente Roosevelt para demitir Humphrey, da Comissão Federal do Comércio, epelo Presidente Eisenhower, para afastar Wiener, da Comissão de Reclamaçõesde Guerra. Eis como o Justice Sutherland relata o primeiro episódio:

“Em 25 de julho de 1933, o Presidente Roosevelt endereçou umacarta ao conselheiro (comissioner), pedindo sua resignação, com funda-mento em que “os objetivos e propósitos da administração relativamenteaos trabalhos da Comissão podem ser levados a efeito mais eficazmente

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com pessoal de minha própria escolha”, solução que, todavia, “não signifi-cava qualquer restrição à pessoa do conselheiro, nem aos seus serviços”.O conselheiro respondeu, solicitando tempo para consultar os amigos.Depois de alguma correspondência ulterior sobre o assunto, o Presidente,em 31 de agosto de 1933, escreveu ao conselheiro, expressando o desejode que a resignação fosse apresentada a seguir, e disse: “Sei que o Senhorestá consciente de que o seu pensamento e o meu não se ajustam, nemsobre a política, nem sobre a administração da Comissão Federal do Co-mércio, e, falando com franqueza, acho que será melhor para o povo destepaís que haja plena confiança em mim”. O conselheiro não resignou, e, em7 de outubro de 1933, o Presidente lhe escreveu: “A partir desta data, oSenhor está demitido do cargo de Conselheiro da Comissão Federal doComércio”.

Do mesmo modo, o Presidente Eisenhower, para afastar Wiener, assim seexpressou: “Considero de interesse nacional completar a administração da Lei deReclamação de Guerra de 1948 (...) com pessoal de minha própria escolha”.

Entretanto, a Corte Suprema teve por mais valioso do que essa alegadaconveniência administrativa o princípio da independência do órgão dotado, por lei,de autonomia.

Sem dúvida, o bom entendimento entre o Chefe do Governo e os dirigentese executores da política do Estado é, em tese, um bem para a administraçãopública. Mas isso é falar não a linguagem da lei, mas a da conveniência adminis-trativa. O legislador há de ter ponderado a desvantagem do eventual desencontrode pontos de vista, com o benefício, por ele considerado mais relevante, de garantircontinuidade e independência na execução das tarefas confiadas ao órgão autô-nomo. Quem há de pesar as vantagens e inconvenientes de cada uma das duassoluções não é o Judiciário, que não faz lei, mas o Legislativo. E este manifestoua sua opção nitidamente, quando insistiu a investidura de prazo certo.

O argumento, que ora examinamos, por mais valioso que seja no plano daciência da administração, constitui, do ponto de vista jurídico, uma razão exata-mente contrária a que terá inspirado o legislador. Para bem interpretar a lei, sãoas razões do legislador, e não as que a elas se opuserem, que o aplicador develevar em conta. São muito adequadas as palavras de Brandeis, votando vencidono Caso Myers: “A doutrina da separação de poderes — disse ele — foi adotadapela Convenção de 1787, não para promover a eficiência, mas para prevenir oexercício do poder arbitrário”.

Objeta-se, com razão, que poderão tais titulares, garantidos contra suademissão antes do termo, abusar das funções. Essa possibilidades também há deter sido pesada pelo legislador; por isso, a lei institui, ao lado da investidura de

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prazo certo, os mecanismos que a doutrina denomina, genericamente, de tutela(Marcelo Caetano, Manual, 4ª ed., § 93).

E o legislador, certamente, teve por menos pernicioso esse eventual desviodo que o poder incontrastável do Chefe do Governo sobre toda a administraçãodescentralizada, pois isso desvirtuaria a própria razão de ser da descentralização.

A tese do Governo, no caso presente, data venia, consagraria, em termosde decisão judiciária e com a categoria de princípio constitucional, os extremos dosistema dos despojos. Mas a atual legislação, que, em todos os países civilizados,procura resguardar o serviço público civil da influência ilimitada da política, foiprecisamente uma conquista, lenta e penosa, contra o spoil system. A prevalecera opinião do Governo, todos os órgãos autônomos, ora existentes em nosso país,criados em épocas diversas, perderiam, de imediato, a sua autonomia. Reitoresde universidades, diretores de escolas superiores, representantes das congrega-ções nos conselhos universitários, juízes trabalhistas representativos das classesoperárias e patronal, membros dos Conselhos de Contribuintes e do Conselho deTarifas, enfim, toda uma série de altos titulares, cujo desempenho carece de serprotegido, em face do Poder Executivo, toda essa gente, que forma na cúpula daadministração descentralizada, poderia ser mudada de um momento para outro,ao simples critério, arbítrio ou capricho do soberano eletivo, que seria, entre nós,o Presidente da República.

Estou, portanto, convencido de que, mesmo do ponto de vista da conveni-ência administrativa e política, seria um mal, não um bem, o retorno ao sistemados despojos, que ainda prevalece, largamente, em nosso país, e que, nesteprocesso, se pretende reimplantar nas áreas reduzidas em que a lei procuroucerceá-lo.

Estas considerações são feitas a propósito do regime presidencialista.Teriam elas, porém, maior adequação no parlamentarista, em que ora ingressa-mos, porque, neste, à posição preeminente que assume o Congresso, diante doExecutivo, há de corresponder maior prestígio da lei.

Nestas condições, data venia do eminente Relator e das suas nobilíssimasintenções, creio que me sinto na linha dos notáveis precedentes do Supremo Tri-bunal, sobre o assunto em debate, concedendo a segurança, para anular o atodemissório e fazer voltar o impetrante ao cargo que ocupava no Conselho Admi-nistrativo do Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Industriários.

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MANDADO DE SEGURANÇA 8.802 — GB

A pedido do impetrante homologaram a desistência.

VOTO

O Sr. Ministro Victor Nunes: Sr. Presidente, espero contar com a paciên-cia do Tribunal para ouvir algumas considerações, uma vez que, data venia, mecoloco nesta matéria em ponto de vista oposto ao do eminente Ministro PedroChaves.

Este caso apresenta aspectos comuns aos outros já decididos, e também,como acentuou o ilustre advogado do impetrante, particularidades que não podemser obscurecidas.

No tocante aos aspectos comuns, peço vênia para voltar a dois pontosdiscutidos anteriormente e que não tiveram suficiente explanação de minha parte,porque me faltavam no momento os elementos necessários.

Eu me havia referido à jurisprudência da Corte Suprema dos Estados Uni-dos, que se firmou de maneira clara e nítida sobre o assunto em debate em doisnotáveis julgados: o Humphrey Case, de 1935, e o Wiener Case, de 1958.

O eminente Ministro Candido Motta Filho afirmou, entretanto, que tinhahavido, depois do Humphrey Case, por volta de 1938, um julgamento em senti-do contrário. Como o eminente colega havia feito referência a um conhecidolivro sobre a presidência dos Estados Unidos, que só podia ser o de Corwin, relio capítulo dessa notável obra sobre o assunto e lá encontrei o caso da demissãode Morgan, presidente da Tennessee Valley Authority, pelo PresidenteRoosevelt.

O Sr. Ministro Candido Motta: Eu me referi, especialmente, aos dois pri-meiros casos.

O Sr. Ministro Victor Nunes: A demissão teve lugar em 1938, e o caso foijulgado por um juiz federal em 1939. Morgan recusara-se a fornecer as provasque o Governo reclamava, em relação à má conduta de seus colegas de diretoria.E a sua demissão foi julgada regular. Não se tratava, portanto, de demissãoimotivada, mas fundada em justo motivo, porque aquele ilustre administrador serebelara contra o Poder Executivo que tinha o direito de produzir provas, cons-tantes dos arquivos da instituição, contra os outros diretores.

O segundo aspecto que peço permissão para focalizar é o das tendênciasrecentes, nos Estados Unidos, a respeito das regulatory agencies. O eminenteMinistro Candido Motta aludiu à severa crítica feita, naquele país, à atuaçãodesses órgãos autônomos.

O Sr. Ministro Candido Motta: Documentei-me em minhas afirmativas.

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O Sr. Ministro Victor Nunes: Por ocasião de minha visita aos EstadosUnidos, em março de 1961, tive conhecimento da intenção do PresidenteKennedy de propor ao Congresso alterações na legislação a respeito das comis-sões independentes; como as notícias faziam referência ao Plano de Prática eProcesso Administrativo, da Comissão Judiciária do Senado, para verificar emque consistiam as modificações sugeridas e se essas modificações chegavam aeliminar o critério de investidura por prazo certo dos dirigentes dessas comissões.

O Sr. Ministro Candido Motta: V. Exa. há de se recordar que na própriaRevista Administrativa há um longo artigo de autor americano que se refere aessa matéria da competência das comissões do Poder Executivo e, em que eleafirma justamente o que eu disse: que isso estava tirando, de tal forma, do PoderExecutivo sua competência, que os Estados Unidos estavam se transformandonum país sem cabeça, completamente sem diretivas, o que é — acentuo — umacrise do Executivo americano.

O Sr. Ministro Victor Nunes: V. Exa. citou bem, citou corretamente. Maso documento que aqui trago — e que passarei às mãos de V. Exa., se o nobrecolega estiver interessado — é o último documento oficial sobre o assunto, queexprime o pensamento da Presidência dos Estados Unidos, porque Landis prepa-rou esse relatório para o então Senador Kennedy, que veio a ser eleito Presidente.A Comissão Judiciária do Senado mandou publicá-lo como documento oficial,como subsídio aos trabalhos do Senado. Esse plano encerra, a bem dizer, asúltimas aspirações ou reivindicações do chefe do Poder Executivo dos EstadosUnidos em matéria de reforma dessas comissões independentes.

O que se vê, porém, neste Plano, em matéria de nomeações, é que elepropõe a livre nomeação e demissão do Presidente da Insterstate CommerceCommission e da Federal Power Commission (do presidente, nota-se, e nãodos demais diretores), e aumenta os poderes do presidente, justificando a pro-posta com a necessidade de imprimir maior vigor à sua atuação, à frente de taisórgãos.

Mas o autor do relatório, referindo-se ao pessoal do nível superior e ànecessidade de atrair homens de valor para o serviço de tais instituições, observaque a permanência no cargo (tenure) é uma consideração de maior importânciaque o próprio salário, porque dessa permanência dependem a independência e aoportunidade para planejamento a longo termo. Estes são precisamente os doisobjetivos básicos que justificam a nomeação a termo, a qual garante continuidadeadministrativa e independência no exercício da função.

Mas há mais no Plano Landis. Justificando a livre demissibilidade do presi-dente da Interstate Commerce Commission, diz o relatório, a certa altura: “Podeser objetado que tal proposta destruiria a independência do órgão” (observe-se

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que, além da livre demissibilidade dos presidentes, propõe-se o aumento de seuspoderes). E prossegue o relatório de Landis, que é homem da mais alta categoria,nada menos que supervisor das comissões independentes na AdministraçãoKennedy, além de antigo new dealer e ex-diretor da Harvard Law School: “Isso,entretanto, não ocorrerá, porque o insucesso do presidente em manter a confian-ça e o respeito de seus colegas criaria uma situação que levaria o Presidente dosEstados Unidos a substituí-lo por outro membro em condições de assumir aquelasresponsabilidades”. O que Landis propõe, como se vê na sua reforma, não é queo Presidente da República tenha o poder de demitir os outros diretores, mas quedemita o presidente da instituição, se não tiver condições pessoais de liderançapara manter o respeito e a estima de seus colegas, dos outros membros docolegiado nomeados com prazo certo.

O Sr. Ministro Candido Motta: Acentuei que a crise do Poder Executivonos Estados Unidos tem provocado várias obras, que V. Exa., que é um erudito,conhece. Apenas afirmei que a preocupação existia não só na própria administra-ção, com os que propõem a reforma da organização dos Estados Unidos, comotambém em meio dos juristas e dos advogados. Foi esta a minha afirmativa, paracorroborar o que afirmara antes. Minha tese era apenas esta.

O Sr. Ministro Victor Nunes: Não estou contestando, de modo algum, aafirmativa de V. Exa; apenas estou procurando situá-la nos seus devidos termos.Pretendi esclarecer que, nos Estados Unidos, cuja prática administrativa e judiciáriainvoquei, as aspirações à reforma desses órgãos autônomos não vão tão longecomo aqui se decidiu.

O Sr. Ministro Candido Motta: O que acentuei em meu voto, de referênciaa todas às decisões e ao pensamento dos juristas e sociólogos americanos, foi oseguinte: a organização brasileira é uma, e a americana é outra; a tradição brasi-leira é uma, enquanto a americana é outra; o presidencialismo brasileiro é um, eoutro o americano. Rui Barbosa, desde o começo, já afirmava isto: começamosatravés da Argentina; depois, nos desviamos para a Constituição de Weimar, etemos nos agarrado mais ao Direito europeu que ao americano.

O Sr. Ministro Victor Nunes: Sr. Presidente, prosseguindo em minhas con-siderações, volto a um argumento anteriormente desenvolvido, a saber, que adoutrina firmada pelo Supremo Tribunal Federal, nos precedentes aqui invocados,que são os casos Murilo Gondim e Armando Simone, é totalmente contrária àprópria idéia da criação de órgãos administrativos autônomos. A criação dessesórgãos visa, precisamente, a objetivos diversos daqueles que presidiram às deci-sões deste Tribunal. Mas a quem cabe traçar a alta política administrativa doPaís? Não é ao Supremo Tribunal; é ao Poder Legislativo, dentro dos limitesconstitucionais. E nada há na Constituição que corrobore, de maneira tão categó-rica, as afirmativas que aqui se fizeram no sentido de que, havendo a lei instituído

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um órgão administrativo com autonomia ampla e garantido essa autonomia com ainvestidura de prazo certo dos seus diretores, seja isso incompatível com a Cons-tituição! Essa interpretação o Tribunal a está construindo contra os objetivos dalei, isto é, atribuindo-se o papel de formulador da alta política administrativa dopaís, que compete ao Poder Legislativo.

No caso em exame, Sr. Presidente, esta minha observação tem mais razãode ser do que nos anteriores — e aqui encontramos a primeira particularidadeque distingue este processo dos outros —, porque a Mensagem com que o Go-verno encaminhou o projeto à Câmara, não só definia o Conselho de Administra-ção do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico como órgão de direçãosuperior e de controle, como declarava que a investidura de prazo certo visa darao Conselho a necessária estabilidade, que lhe permita resistir às injunções a quecostumam estar sujeitos os organismos estatais. São palavras textuais da Mensa-gem do governo. A lei quis isso, mas nós decidimos que a lei não pode dispor queo administrador fique imune às injunções a que, normalmente, estão sujeitos osdirigentes dos organismos estatais!

Além desta particularidade, Sr. Presidente, existe outra que me parece damáxima importância e à qual, data venia, é possível que o eminente MinistroPedro Chaves não tenha atribuído sua verdadeira significação: é que o Conselho,além de ter atribuições de definição da política econômica do Banco, que é umórgão importantíssimo na administração do país, tem ainda a função essencial defiscalizar a diretoria. Aqui está o ponto capital. O banco tem sua direção confiadaa uma diretoria composta de presidente, demissível ad nutum, e de diretores,com investidura de prazo certo, mas, além destes diretores e do presidente, há oConselho, que é fiscal da diretoria.

A lei que instituiu o Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico atri-buiu a esse Conselho, entre outras funções, a de organizar e modificar o regimentodo Banco, a ser aprovado pelo Ministro da Fazenda; a de examinar e julgar osseus balancetes financeiros e patrimoniais; a de examinar e dar parecer sobre aprestação anual de contas dos diretores; a de apreciar e julgar os vetos do Presi-dente às deliberações da Diretoria, etc.

O presidente, como se sabe, é de livre nomeação, o que marca sua posiçãode representante do governo. E para firmar sua preeminência, a lei lhe conferiu opoder de vetar as decisões da diretoria; mas quando isso ocorre, é o Conselhoque julga os vetos do presidente.

Vê-se, portanto, que no Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico,o órgão que tem a função de fiscalizar o próprio agente de confiança do Presi-dente da República é o Conselho. Pois esse Conselho há de ser, também,demissível ad nutum? Que espécie de controle pode ele exercer sobre o agentedo Presidente da República se também for livremente demissível pelo Presidenteda República?

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Esta particularidade parece-me da maior importância. Se retirarmos desseórgão, que é fiscal do Governo no Banco, a garantia de sua independência, des-truímos a própria finalidade da instituição. E em nome de quê? De algum princípioexplícito da Constituição? Não. Em nome de um poder de demitir, derivado dopoder de nomear, que a própria Constituição condiciona às disposições da lei,quando diz que o Presidente da República pode prover os cargos públicos naforma da lei. Então, extraímos do poder de prover cargos públicos, na forma dalei, que é poder condicionado, uma conseqüência sem limite: para demitir não háqualquer restrição!

São estas as considerações pelas quais, reportando-me aos votos que pro-feri nos Mandados de Segurança 8.693, de 25 de outubro, e 8.651, de 26 denovembro de 1961, e tendo em vista, sobretudo, as particularidades do caso pre-sente, concedo a segurança, data venia do eminente Relator.

RECURSO EM MANDADO DE SEGURANÇA 9.558 — GB

Poder constituinte dos Estados. Sujeição apenas aosprincípios da Constituição Federal. Transformação do anti-go Distrito Federal no Estado da Guanabara. Segurançadenegada. Recurso não provido.

VOTO

O Sr. Ministro Victor Nunes: Senhor Presidente, começo meu voto muitoacabrunhado, porque tenho que divergir, e o faço com todo o apreço e estima, doeminente Ministro Pedro Chaves, que acabou de produzir um voto notável porsua estrutura lógica. Seu voto é uma peça inteiriça, que temos de aceitar ourejeitar por inteiro. Daí vem o meu constrangimento, porque, fiel à opinião queemiti desde fins de 1959, eu me coloco em posição que me obriga a rejeitar,embora com todo o apreço, a própria estrutura do voto de S. Exa.

O Sr. Ministro Pedro Chaves (Relator): As opiniões de V. Exa., além dasua estrutura moral, são sempre abalizadíssimas.

O Sr. Ministro Victor Nunes: Muito obrigado a V. Exa.

Senhor Presidente, o debate travado nesta assentada quase dispensariafundamentação mais longa. Entretanto, cada juiz tem o dever de motivar, o maiscompletamente possível, sua convicção, inclusive para demonstrar a seus paresque não se trata de conclusão apressada, porém meditada, refletida.

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Memória Jurisprudencial

Em 1959, desempenhava eu a função de advogado do então DistritoFederal, quando surgiu um problema de conseqüências práticas muito sérias. ACâmara de Vereadores teria de votar uma lei orçamentária para vigorar, durantecerto período, sob o regímen estadual da Guanabara, e não mais sob o anteriorestatuto distrital, que terminaria em 21 de abril de 1960. O assunto foi levado àProcuradoria-Geral, em consulta, e distribuído a mim. Procedi então a um estudomais extenso do que seria necessário, porque se destinava o parecer a serapresentado aos vereadores, muitos deles não versados na especialidade.Concluí o parecer (deixando de lado pormenores que aqui não interessam), doseguinte modo:

“(...) parece perfeitamente admissível que o legislador federal,mediante emenda aditiva à Lei Orgânica do Distrito Federal (Constituição,art. 25), estabeleça normas transitórias pertinentes à transformação doDistrito Federal em Estado, inclusive no que respeita à execuçãoorçamentária. A Lei Orgânica está para o Distrito Federal como aConstituição para os Estados. Nada mais natural, portanto, que, naausência de normas constitucionais específicas, nela se incluam asdisposições transitórias necessárias à mais perfeita execução do preceitoimperativo que determina a transformação do Distrito Federal emEstado.”

O parecer é de 11 de novembro de 1959 e foi algum tempo depois publicadona Revista Forense. Naquele tempo, ainda não havia o agudo problema políticoque se desdobra perante nós, não se definira ainda a luta política que se desenca-deou no Distrito Federal no ano seguinte. A questão tinha, porém, de ser exami-nada, porque já naquela altura se desenhava no Congresso o impasse que tornouimpossível a emenda constitucional destinada a regular a transformação do Dis-trito Federal em Estado. Peço, Senhores Ministros, que me relevem a reminis-cência, porque ela é que me incita a cumprir meu dever de coerência.

Ouvi com a mais cordial atenção os argumentos do eminente Ministro PedroChaves. Se S. Exa. me tivesse abalado a convicção, com a maior lealdade eurepudiaria as conclusões daquele parecer e me renderia ao raciocínio de S. Exa.

A meu ver, data venia, o eminente Procurador-Geral da República,desenvolvendo oralmente seus argumentos, colocou a questão nos seus devidostermos. Não se trata aqui, penso eu, de um problema de prevalência da lei federalsobre a Constituição estadual. O problema que temos de enfrentar é o da preva-lência de princípios da Constituição Federal sobre a Constituição do Estado. Queprincípios serão esses? Aqui está o ponto essencial da argumentação.

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Ministro Victor Nunes

Invoca-se, em sentido contrário, o art. 18 da Constituição Federal: “CadaEstado se regerá pela Constituição e pelas leis que adotar, observados os princí-pios estabelecidos nesta Constituição”. E o eminente professor Alcino Salazarindagou da tribuna: “Quais os textos da Constituição que foram violados?”.

Pondero, em primeiro lugar, que a Constituição, no art. 18, não alude a texto,alude a princípios, conceito mais amplo. E no § 1º esclarece: “Aos Estados sereservam todos os poderes que, implícita ou explicitamente, não lhes sejam vedadospor esta Constituição”. De tudo se conclui que não são textos que estão em jogo,mas princípios, e também princípios implícitos, não somente os expressos.

Vejamos qual o princípio básico do direito constitucional federal que foiviolado pela Assembléia Legislativa, funcionando como Poder Constituinte doEstado da Guanabara, ao interromper, em pleno curso, mandatos políticos quehaviam sido conferidos regularmente. Esse princípio pode ser enunciado como oda intangibilidade do mandato político e resulta não apenas de um, mas de váriospreceitos da Constituição Federal. Resulta, em primeiro lugar, do art. 1º, segundaparte, mencionado na impetração e acentuado pelo eminente Procurador-Geral.Segundo esse princípio, “todo poder emana do povo”, e dele resulta que o poderemanado do povo é intangível, há de ser respeitado, não pode ser violado.

Essa conclusão não poderia ser acoimada de arbitrária. Ela está no art. 7º,VII, a, da Constituição, que constrange os Estados a se organizarem na forma deGoverno republicano representativo. Se a Constituição tivesse dito apenas Go-verno republicano, já teria dito tudo. Mas, tendo em vista debates travados aquie alhures, não quis o constituinte deixar a respeito a mínima dúvida e escreveu:“Governo republicano representativo”.

Vê-se, pois, que o princípio cardeal a ser observado pelos Estados é o darepresentação política, isto é, não se podem organizar sem representação políticae não se podem organizar desrespeitando a representação política.

Nosso regímen, a respeito deste ponto, é mais completo do que a matriz.Perdoem-me se vou fazer referência ao direito norte-americano. Faço-o por teraprendido na escola que copiamos, no fundamental, a Constituição norte-ameri-cana, que tem mais de 170 anos de experiência vivida, e é natural que nos possafornecer alguma inspiração.

Na Constituição americana, onde existe também o dever dos Estados dese conformarem com a forma republicana de governo, a Corte Suprema nãoentra na apreciação da conformidade das Constituições estaduais com esse prin-cípio. Considera essa matéria exclusivamente política, da alçada dos poderespolíticos, isto é, do Presidente e do Congresso dos Estados Unidos.

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Memória Jurisprudencial

Nossa Constituição, que já resultou de elaboração doutrinária mais desen-volvida, confiou ao Supremo Tribunal a tarefa de verificar, em cada caso, a obe-diência das Constituições estaduais aos princípios cardeais de regime. Mas se elafosse tão omissa como a norte-americana, qual seria a conseqüência? É que oárbitro desta conformidade seria a lei federal.

O Sr. Ministro Luiz Gallotti: É que os sistemas são diferentes, como V.Exa. mesmo declara.

O Sr. Ministro Victor Nunes: Minha argumentação vai mais além. Se V.Exa. me fizer a honra de acompanhar meu raciocínio, verá que não fico por aqui.Estou apenas ponderando que, se nossa Constituição fosse mais omissa e tivés-semos de remontar às origens do regímen, veríamos que o árbitro da conformidadedas Constituições estaduais com a forma republicana de Governo seria oCongresso Nacional.

Já temos, portanto, Senhores Ministros, dois dispositivos da Constituição,dos quais resulta a intangibilidade dos mandatos: aquele segundo o qual todo opoder emana do povo e esse outro que compele os Estados a se organizarem comobservância do regímen representativo, em cuja base está o mandato político.

Além disso, em duas oportunidades concretas, a Constituição previu o pro-blema da transformação política de unidades da Federação e, em ambas, mandourespeitar integralmente os mandatos existentes à época da transformação.

A primeira está nos arts. 3º, § 2º, e 11 das Disposições Transitórias, quemandaram eleger governadores estaduais antes de elaboradas as Constituiçõesestaduais, acrescentando que o mandato desses governadores terminaria na dataem que findasse o do Presidente da República. Portanto, subtraiu às Constituin-tes estaduais o poder de limitar o mandato do governador eleito antes da Consti-tuinte. Primeira aplicação concreta do princípio a que inicialmente aludimos.

A segunda aplicação, esta recentíssima, vem na emenda constitucionalque implantou no país o parlamentarismo, fundamental mudança para um regimeem cuja base está a possibilidade da dissolução da Câmara, para um regime queadmite esta exceção importantíssima ao princípio da intangibilidade dos mandatos.E o que fez essa emenda constitucional? Foi expressa no art. 24:

“As Constituições dos Estados adaptar-se-ão ao sistema parlamentarde Governo, no prazo que a lei fixar, e que não poderá ser anterior ao términodo mandato dos atuais governadores. Ficam respeitados, igualmente, até oseu término, os demais mandatos federais, estaduais e municipais”.

Portanto, no próprio momento em que instituía um regime, que não tempela inviolabilidade do mandato político a mesma veneração do regimepresidencialista, essa emenda constitucional mandou respeito ao princípio da so-berania popular, princípio básico do regime representativo.

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Ministro Victor Nunes

O Sr. Ministro Ary Franco: Que o mandato é intocável, isso foi defendidoem artigo, que guardo, daquele que mais se pode apavorar com a incorporação daCâmara dos Vereadores à Assembléia Legislativa, o Senhor Carlos Lacerda.

O Sr. Ministro Victor Nunes: Meu caro mestre, se não mencionei aqueleartigo foi por estar tratando apenas do aspecto jurídico do problema e o autor nãoé constitucionalista. O subsídio é realmente muito valioso, desde que se desloqueo debate do plano jurídico para o político.

O Sr. Ministro Ary Franco: É um condutor da opinião pública. Perdoe-mepelo aparte.

O Sr. Ministro Victor Nunes: V. Exa. trouxe esclarecimento da maior sig-nificação, suprindo omissão do meu voto.

O art. 26 da Constituição Federal — veja-se que ainda não toquei na LeiSan Thiago Dantas, permanecendo exclusivamente no plano da ConstituiçãoFederal — dispôs que o Distrito Federal teria Câmara eleita pelo povo com fun-ções legislativas.

Portanto, a Câmara que existia no antigo Distrito Federal, no momento emque a Constituição estadual foi promulgada, não era uma Câmara subalterna,uma Câmara cujo poder se tivesse originado de lei ordinária. Era uma Câmaraque a própria Constituição Federal definia como Assembléia Legislativa, Câmaraa que a Constituição diretamente atribuiu poderes legislativos.

A Lei de Organização do Distrito Federal, prevista no art. 25 da Constitui-ção, marcou para essa Câmara a investidura de quatro anos, e nesta conformidadeé que foi eleita. A investidura de quatro anos coincidia com a marcada na EmendaConstitucional n. 2, que dava autonomia política ao antigo Distrito Federal.

Resulta, portanto, dos dispositivos analisados que o mandato de quatroanos da Câmara do Distrito Federal filiava-se direta e necessariamente à própriaConstituição Federal, seja porque o art. 26 lhe deu atribuições legislativas, com oprazo de quatro anos, na forma da lei prevista no art. 25, seja porque a EmendaConstitucional n. 2 reproduziu o mesmo prazo de quatro anos.

Era esta a situação quando sobreveio a Lei San Thiago Dantas. Essa leiregulou a transformação do Distrito Federal em Estado, tendo em vista a compe-tência que ao legislador federal atribuiu o citado art. 25. Se ao legislador federalcompetia organizar o Distrito Federal, na ausência de qualquer disposição consti-tucional em contrário, era ele o único competente para regular a transição doDistrito Federal para outra forma política.

Mas o legislador encontrou um fato real intransponível, que era a existênciade mandatos legítimos em curso. Então, o que fez a lei? Determinou, por autori-dade própria, que esses mandatos subsistissem? Não. Limitou-se a reconhecer eproclamar que eles subsistiam (aqui está minha pequena divergência, quanto aoenunciado, com o eminente Procurador-Geral).

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Memória Jurisprudencial

A Lei San Thiago Dantas nada inovou a respeito, é uma lei puramentedeclaratória de uma situação preexistente. Ela explicitou o que resultaria da purainterpretação da Constituição: havia mandatos em curso, e a lei dispôs que essesmandatos seriam respeitados. Não podem ser cassados.

A lei disse aquilo que um jurista podia dizer em um parecer, e o parecer seriatão válido quanto a lei, porque um e outra interpretam a Constituição Federal.

O Sr. Ministro Luiz Gallotti: V. Exa. entende que haveria coincidência deatribuições entre o mandato de vereador e o de deputado estadual?

O Sr. Ministro Victor Nunes: Senhor Ministro Luiz Gallotti, vou consideraresse ponto ao tratar de parte da Lei San Thiago Dantas, que deixava à Constituiçãoestadual regular as funções da Câmara dos Vereadores.

O Sr. Ministro Luiz Gallotti: Também entendo que o mandato é intocável evou sustentar isso no meu voto. Mas não é possível que, a pretexto daintocabilidade do mandato, se transforme, por lei ordinária, o titular de um manda-to em titular de outro, diverso. Não é possível que uma lei possa eleger quem nãofoi eleito.

O Sr. Ministro Victor Nunes: Senhor Ministro Luiz Gallotti, se do desenvol-vimento de meu voto resulta que a Lei San Thiago Dantas nada determinou, noponto em debate, sendo apenas declaratória de uma situação preexistente, já estáem parte respondida a objeção de V. Exa. Refiro-me à intocabilidade do mandato,com funções legislativas, que tinham esses representantes. O que dispôs a LeiSan Thiago Dantas? Passo a ler:

“Os membros da Assembléia Constituinte e os atuais vereadoresintegrarão, a partir da promulgação da Constituição e na forma que estaestabelecer, a Assembléia Legislativa do Estado da Guanabara, respeita-da a situação dos respectivos mandatos.”

O respeito a esse mandato só não seria uma conseqüência necessária daConstituição Federal na hipótese a que aludiu o eminente Procurador-Geral, seeles tivessem terminado antes, como havia sustentado tempos atrás o TribunalRegional Eleitoral.

Argumentou-se, porém, e com muita razão, que a decisão do Tribunal Re-gional Eleitoral, proferida em consulta, não era definitiva, nem vinculativa. Todosconhecemos o célebre precedente do Dr. Ademar de Barros, que depois de secandidatar a senador pelo então Distrito Federal, baseado em consulta ao TribunalRegional, teve sua inscrição cancelada por deliberação posterior.

O Sr. Ministro Ary Franco: Do Tribunal Regional Eleitoral, mantida peloTribunal Superior Eleitoral.

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Ministro Victor Nunes

O Sr. Ministro Victor Nunes: Nas últimas quarenta e oito horas, foi inscritopelo partido outro candidato para concorrer às eleições.

Voltando ao meu raciocínio, momentaneamente abandonado: desde que omandato anterior era de quatro anos, tinha de ser respeitado, a menos, comodisse eu, que houvesse terminado.

Alegou-se da tribuna, e foi agora lembrado pelo eminente Ministro LuizGallotti, que o mandato teria terminado pela transformação do Distrito Federalem Estado. Não teria terminado ratione temporis, mas ratione materiae, porqueteria deixado de existir o órgão legislativo distrital.

A esse respeito, quero relembrar pareceres de alguns eminentes juristas,que por volta de 1959 apreciaram esse mesmo problema e sustentaram que atransformação do Distrito Federal em Estado não criava uma entidade políticatotalmente nova.

O Sr. Ministro Ary Franco: Entre eles, Temistocles Cavalcanti.

O Sr. Ministro Victor Nunes: Entre eles, Temistocles Cavalcanti, ilustredeputado à Assembléia Constituinte.

O Sr. Ministro Ary Franco: Tenho em mãos a coleção desses pareceres.

O Sr. Ministro Victor Nunes: E quem mais aprofundou esses estudos, sob oaspecto que ora considero, foi o professor Francisco Campos. O que ocorreu —disse ele — foi simples transformação de uma mesma entidade política, sediadaem determinado território e governada por um acervo de leis e de atos adminis-trativos de toda a natureza. Essa entidade se transformou, perdeu o estatutodistrital e adquiriu o estatuto estadual, mas não se extinguiu uma unidade políticapara dar lugar a outra. Por isso subsiste, em perfeita continuidade, o único poderrepresentativo que lá existia e que era a então Câmara de Vereadores, na realidadeAssembléia Legislativa, pelos poderes de que se achava investida.

Num regime como o nosso, que erigiu o mandato político em seu dogmafundamental, quando uma unidade política se transforma, passando do estatutodistrital para o estadual, não é possível deixar de respeitar o único órgão repre-sentativo que nela funcione.

O Sr. Ministro Ary Franco: Câmara que legislava em caráter estadual.

O Sr. Ministro Luiz Gallotti: Em matéria de organização administrativa ejudiciária, quem legislava era o Congresso Nacional. As atribuições da Câmarade Vereadores eram mais as da órbita municipal. A situação do Distrito Federalera sui generis. Em alguns pontos, ele se equiparava aos Estados. Por exemplo,tinha um Tribunal de Justiça, rigorosamente estadual, e uma Câmara de Verea-dores, mais municipal do que estadual. Essa a situação. Se essa Câmara fosseestadual, legislaria sobre a organização administrativa e judiciária. Temos de vera realidade.

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Memória Jurisprudencial

O Sr. Ministro Victor Nunes: Senhores Ministros, o argumento que acabade ser desenvolvido, em aparte, pelo eminente Ministro Luiz Gallotti, é um argu-mento bifronte (não vai nisto qualquer sentido pejorativo, porque uso a palavra noexato sentido de argumento de dois gumes). Quando estava reunida a Assem-bléia Constituinte estadual, era muito discutível que se pudesse abolir os municípiosno novo Estado, tanto assim que a própria Constituição estadual previu a suapossível criação, admitindo duas possibilidades: haver ou não haver municípios.

Pois bem, os mandatos em curso, que correspondiam ao estatuto jurídicodo Distrito Federal, eram mandatos de natureza ao mesmo tempo estadual emunicipal, haja vista que os tributos estaduais e municipais eram todos da compe-tência do então Distrito Federal.

Se, no momento em que a Constituição foi elaborada, era muito discutívelque se pudesse suprimir os municípios (e a meu ver não podia), sob esse aspectoera pelo menos muito discutível que se pudesse extinguir o mandato de umaassembléia que também tinha funções edilícias.

O Sr. Ministro Luiz Gallotti: V. Exa. conclui que poderia ser mantida essaCâmara, como Câmara Municipal, na hipótese de serem criados municípios. Atéaí talvez pudéssemos concordar.

O Sr. Ministro Victor Nunes: É uma das possibilidades que admito, apoiadona autoridade do professor San Thiago Dantas, que vou citar dentro em pouco.

Veio, depois, a Emenda Constitucional n. 3, que regulou diversos assuntosrelacionados com a mudança da capital. Essa emenda constitucional é que pôstermo à polêmica, permitindo a existência do Estado da Guanabara sem municí-pio. Mas essa emenda constitucional é posterior à Constituição do Estado daGuanabara.

Portanto, no momento em que a Constituição foi promulgada, a Assem-bléia não poderia, legitimamente, cassar mandatos dos componentes de uma Câ-mara que tinha poderes edilícios, porque naquele momento não seria possívelsuprimir os municípios do Estado da Guanabara, o que só foi permitido por leiconstitucional federal posterior.

O Sr. Ministro Luiz Gallotti: Contra preceito constitucional federal, não hácomo invocar direito adquirido.

O Sr. Ministro Victor Nunes: Não resta dúvida. Estou inteiramente deacordo nesse ponto, mas estamos examinando se a Lei San Thiago Dantasexorbitou da Constituição Federal. Entendo que não podia ter exorbitado, emconfronto com emenda constitucional que, ao tempo, nem sequer tinha sido pro-posta, a Emenda Constitucional n. 3. E a Lei San Thiago Dantas remeteu à Cons-tituição estadual a forma pela qual seria regulada a continuidade dos mandatos

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dos vereadores. Eis aí a grande sabedoria da Lei San Thiago Dantas, porque selimitou, volto a insistir, a explicitar, a declarar uma situação preexistente. Essa leinada criou, no ponto que nos interessa, apenas respeitou mandatos em curso edisse: a Assembléia Constituinte, no uso de seus legítimos poderes, determinaráde que forma esses mandatos vão subsistir.

O Sr. Ministro Luiz Gallotti: Mandava incorporar os vereadores à AssembléiaLegislativa? V. Exa. considera razoável serem incorporados à Assembléia estadualvereadores que tinham sobretudo atribuições próprias da órbita municipal?

O Sr. Ministro Victor Nunes: Existe aí uma questão de forma. A Lei SanThiago Dantas não poderia antecipar-se ao Constituinte estadual nesse ponto.

O Sr. Ministro Luiz Gallotti: Não é isso o que os impetrantes pedem. Elesnão pretendem ser tidos como integrantes de uma Câmara Municipal.

O Sr. Ministro Victor Nunes: Estou desenvolvendo o assunto dentro dalógica do meu voto, examinando a Lei San Thiago Dantas no conjunto das institui-ções existentes. A Lei San Thiago Dantas, no ponto que nos interessa, repito,nada criou, limitou-se a declarar uma situação preexistente. Apenas disse isso:aqui estão mandatos conferidos legitimamente, mandatos em curso, que não po-dem ser cassados, que têm de ser respeitados, para exercer que espécie de fun-ções? Responde a segunda parte do mesmo dispositivo legal: aquelas funçõesque forem definidas pela Constituição estadual. E a lei procedeu, a meu ver,muito corretamente.

O Sr. Ministro Luiz Gallotti: Mas não disse assim, admitiu que os mandatosdos Vereadores continuassem na forma que a Assembléia entendesse, constituindoum todo; não disse nas funções que ela entendesse.

O Sr. Ministro Victor Nunes: Mas V. Exa. não deve ser tão rigoroso naapreciação de uma só palavra da Lei San Thiago Dantas. V. Exa está dandovalor decisivo à palavra “incorporar”, deixando de lado a parte fundamental, queé a própria Constituição; parte substancial, porque essa é que continha asvirtualidades correspondentes às diversas interpretações que viessem a predominarna Assembléia Constituinte, ao regular o assunto.

Mas o que fez a Assembléia Constituinte? Por motivos de ordem política, enão jurídica, nada dispôs a respeito. Pensando a maioria da Assembléia que coma sua omissão cassava os mandatos, nada dispôs a respeito. Mas os mandatosnão podiam ser cassados, como não podem. Por isso, a incorporação, agora, temde se fazer pura e simplesmente. E por quê? Por culpa da própria AssembléiaConstituinte que não definiu quais seriam as novas atribuições daqueles mandatá-rios, e essas atribuições eram indiscutivelmente legislativas, dizendo respeito atoda área política e territorial, que é hoje o Estado da Guanabara. Não há a menor

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incongruência em que aquelas funções legislativas correspondam precisamenteàs funções legislativas do Estado da Guanabara, tanto mais que a AssembléiaConstituinte, podendo regular o assunto, nada dispôs em contrário.

Se a Constituinte houvesse dito que os mandatos ficariam limitados a taisou quais funções (é uma das hipóteses previstas pelo professor San ThiagoDantas, em discurso publicado no Diário do Congresso, do dia 9 de março de1961, e transcrito no memorial que nos foi distribuído pelo ilustre advogado Dr.Mozart Lago), se a Constituinte houvesse procedido desse modo, eu o considera-ria perfeitamente legítimo, porque teria respeitado os mandatos, regulando o seuexercício no uso de legítimas atribuições de Assembléia Constituinte. Aquelesmandatos teriam o conteúdo que a Constituição lhes quisesse atribuir na organi-zação do nosso Estado. Mas a Assembléia, o que não podia era suprimir, comodisse o eminente Ministro Vilas Boas, o essencial dos mandatos, que era ainvestidura política, emanada do povo, investidura garantida pela ConstituiçãoFederal.

Pedindo desculpa aos eminentes colegas pela extensão do meu voto, queroapenas figurar uma hipótese. Sei que não é de bom tom, nas discussões sobreinterpretação de lei, figurar hipóteses que não se verificaram. Os autores formu-lam freqüentemente essa advertência, e um dos eminentes colegas já me chamoua atenção para isso. Mas às vezes, a figuração de hipótese que não ocorreu ajudaa clarear o pensamento de quem a exprime. É nesse sentido que desejo formularuma hipótese.

Suponhamos que a Emenda Constitucional n. 2 tivesse realmente funcio-nado e se tivesse eleito, à época, o prefeito do Distrito Federal por 4 anos, emregime de autonomia, teria que ser respeitado, da mesma maneira que a Consti-tuição Federal mandou respeitar, o mandato dos governadores eleitos antes de18-9-1945. O símile parece-me perfeito para justificar a interpretação analógica;não prevista expressamente a sobrevivência do mandato do prefeito, aplicar-se-ia oart. 3º, § 2º, das Disposições Transitórias, que mandou respeitar o mandato dosgovernadores.

O Sr. Ministro Luiz Gallotti: Esse Prefeito teria sido eleito Prefeito ouGovernador?

O Sr. Ministro Victor Nunes: Se a questão tivesse sido prevista especifica-mente, não a estaríamos discutindo. Porque não foi prevista é que a estou figu-rando: se o Prefeito fosse eleito, em regime de autonomia, e o Distrito Federal setransformasse em Estado, essa transformação, no momento em que fosse feita,já encontraria um Governador.

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O Sr. Ministro Luiz Gallotti: Ele teria de esperar que se criasse um Muni-cípio para poder continuar Prefeito.

O Sr. Ministro Victor Nunes: O Distrito Federal é mais do que Município,é Estado e Município ao mesmo tempo. O antigo Distrito Federal, sob algunsaspectos, era menos que os Estados, porque sua autonomia não era tão extensacomo a estadual. Sob outros aspectos, o Distrito Federal era mais que os Estados,porque tinha competência tributária e legislativa em toda a esfera dos Municípios.Essa competência de decretar impostos privativos dos Municípios e de expedirleis de caráter edilício não a possuem os Estados.

O Sr. Ministro Candido Motta Filho: Essa competência é exatamente por-que é menos do que o Estado.

O Sr. Ministro Luiz Gallotti: Dois pontos existem em que, indubitavelmente,o Distrito Federal era menos que um Estado: ter prefeito e não governador, terCâmara de Vereadores e não de Deputados.

O Sr. Ministro Victor Nunes: O Distrito Federal tinha menos autonomia.Em outras palavras, o Distrito Federal tinha autonomia limitada, e o Estado temautonomia extensa. Mas se entrasse em vigor a Emenda n. 2, o Distrito Federalteria autonomia quase tão extensa quanto a dos Estados.

O Sr. Ministro Luiz Gallotti: Mas não passaria a Estado.

O Sr. Ministro Victor Nunes: E duvido que alguém sustentasse, de almatranqüila, que o prefeito que houvesse sido eleito para um período de 4 anos paragovernar o Distrito Federal autônomo, não tivesse direito de continuar comogovernador do Estado da Guanabara, também autônomo.

O Sr. Ministro Luiz Gallotti: Alma tranqüila para sustentar que um prefeitose transmuda em governador sem ter sido eleito governador?

O Sr. Ministro Victor Nunes: Seria um prefeito do Distrito Federal emregime de autonomia, não um prefeito qualquer; seria um prefeito que acumulariaas funções próprias dos governadores e também as dos prefeitos. Só se chamariaprefeito por amor à tradição brasileira, mas poderia ter outro nome qualquer,poderia ser chamado governador.

Peço muitas desculpas aos prezados colegas e, particularmente, peçovênia ao eminente Ministro Pedro Chaves para divergir de seu magnífico voto,dando provimento ao recurso.

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RECURSO EM MANDADO DE SEGURANÇA 11.687 — MG

Pelo art. 18, § 1º, da Constituição, os Estados têm o poderde censura dos espetáculos e diversões públicas.

VOTO

O Sr. Ministro Victor Nunes: Sr. Presidente, o filme Os Cafajestes tevesua exibição vedada em Minas Gerais, por ordem do Sr. Governador, apesar dehaver sido “liberado para todo o território nacional” pelo Departamento Federalde Segurança Pública, que o declarou “impróprio para menores até dezoito anose para a televisão”.

As Câmaras Civis Reunidas do Tribunal de Justiça do Estado (fl. 65), comquatro votos vencidos, negaram a segurança impetrada por Produções Cinema-tográficas Herbert Richers S.A. e pela Empresa Nacional de Cinemas e Diver-sões Ltda., e o eminente Ministro Hahnemann Guimarães, na primeira assentadadeste julgamento, votou pelo não-provimento do recurso (lê o voto).

O que se discute é a competência para o exercício da censura cinemato-gráfica, que se inclui na censura dos “espetáculos e diversões públicas”, faculta-da pelo art. 141, § 5º, da Constituição Federal. O tema desdobra-se em doisaspectos, o constitucional e o legal. Quanto ao primeiro, cuida-se de saber se aUnião tem competência exclusiva ou concorrente para legislar sobre a censuracinematográfica; quanto ao segundo, se a legislação vigente outorgou ao Depar-tamento Federal de Segurança Pública, e em que extensão, o exercício da cen-sura federal e, ainda, se existe legislação do Estado de Minas conferindo taispoderes à Administração.

A interdição do filme é defendida, neste processo, em um parecer do Pro-fessor Caio Mário da Silva Pereira (Estado de Minas, 23-8-62) (fl.10) e nasinformações do Sr. Governador (fl. 30). Essa argumentação, data venia, não éde todo coerente: ora sustenta que o poder de polícia, incluindo a censura cinema-tográfica, é privativo do Estado; ora admite que possa ser exercido pela Uniãoquanto a certos problemas nacionais envolvidos; ora submete a censura federal àrevisão das autoridades estaduais, tendo em vista as “suscetibilidades morais” decada região.

O eminente Ministro Relator, apoiando o acórdão do Tribunal de Justiça,tomou a posição mais radical, negando a competência da União. Disse S. Exa.,em seu douto voto, que, “pelo art. 18, § 1º, da Constituição, ficou reservado aosEstados o poder de censura dos espetáculos e diversões públicas”. Em respostaa um aparte, esclareceu que a censura da polícia federal fica circunscrita aoDistrito Federal e aos Territórios Federais.

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Em pólo oposto, afirmando a competência federal exclusiva, colocaram-seo Ministério Público estadual, pela palavra do Dr. Geraldo Spyer Prates (fl. 44), ea Procuradoria-Geral da República, pela voz do Dr. Cândido de Oliveira Neto (fl.110). De igual modo decidiu, recentemente, o Tribunal Federal de Recursos, porquem falou o Sr. Ministro Oscar Saraiva, mantendo sentença do Dr. Hely LopesMeirelles (AgMS 31.719, 2-9-64).

Sem me filiar a essas conclusões radicais, procurarei demonstrar que amatéria recai na competência concorrente da União, dos Estados e dos Muni-cípios: desde que haja legislação sobre a matéria, deverá prevalecer a censurafederal sobre a estadual, e esta sobre a municipal.

O cinema não é apenas diversão, mas cada vez mais um meio de expressãoartística e do pensamento, e também instrumento de propaganda comercial epolítica. Por envolver a liberdade de pensamento, discute-se, nos Estados Unidos,a constitucionalidade da censura prévia dos filmes (Zechariah Chafee Jr., FreeSpeech in the United States, 1954, p. 540). Afirma Douglas, com a autoridadeda sua cátedra na Corte Suprema: “Não há lugar para a censura de qualquermeio de expressão em nossa sociedade. A censura é hostil à Primeira Emenda”(The Right of the People, 2ª ed., Pyramid, 1958, p. 46). Entretanto, a CorteSuprema admitiu a legitimidade da censura prévia do cinema, embora com ex-pressivos votos vencidos (Times Film Corp. v. City of Chicago, 365 U.S. 43).

Entre nós, esse aspecto do problema, pelo consenso até agora geral, estáfora de controvérsia, em face do que dispõe a Constituição no art. 141, § 5º, sobrea censura a espetáculos e diversões públicas.

Reconheço, como alegou o Estado de Minas Gerais, que esse dispositivoda Constituição não tem por finalidade específica estabelecer uma regra decompetência, de onde emanasse a exclusividade da competência federal. Odispositivo, incluído no capítulo dos direitos e garantias, opõe uma restrição aesses direitos, remetendo o problema da competência para as regras pertinentesda Constituição. Mas não deixa de pôr em relevo, pela sua repercussão sobre osdireitos individuais, o interesse nacional — e até universal — da matéria, o que háde influir na interpretação das cláusulas sobre competência.

Procuraremos demonstrar, por isso, em primeiro lugar, que não está excluídaa competência federal. Somos advertidos, desde logo, nesse sentido, por uma longaprática constitucional, o que é muito valioso na interpretação da Carta Política,segundo o ensinamento de Carlos Maximiliano (Comentários, 1948, 1/129). Elemesmo pondera, entretanto, que a prática constitucional não é decisiva, e quantoao cinema, além de ser criação moderna, a sua poderosa influência social e polí-tica é um aperfeiçoamento dos nossos dias.

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Por tais circunstâncias, a censura cinematográfica federal poderia ser, noBrasil, como se afirmou nos autos, um episódio de centralismo autoritário doregime de 1937, contra o qual reagiu a Constituição de 1946, restaurando a tradi-ção de 1934. Veremos, porém, no desenvolvimento deste voto, que assim não é.O Governo judiciarista do Ministro José Linhares, que, com a deposição de GetúlioVargas, desmontou os mais sólidos pilares do Estado Novo, não hesitou em man-ter a censura cinematográfica federal. E nos Estados Unidos, cuja tradição de-mocrática e estadualista não pode ser posta em dúvida, um valoroso adversárioda censura do cinema, como é Chafee, prefere a sua federalização, se essarestrição aos direitos individuais tiver de ser mantida: “Se alguma forma decensura legal for necessária, uma repartição centralizada federal (a centralizedfederal board) evitaria a multiplicidade atual de autoridades estaduais e mu-nicipais” (ob. cit., p. 541).

Sustenta-se, nestes autos, a incompetência da União, com base na cláusulada reserva de poderes (art. 18, § 1º): a censura cinematográfica emana do poderde polícia, e este, não tendo sido confiado privativamente à União, ficou reservadoaos Estados (art. 18, § 1º). Mas o próprio Estado de Minas, que insiste no argu-mento, receia levá-lo às últimas conseqüências e admite, um tanto contraditoria-mente, a legitimidade da censura federal, sob certos aspectos.

Disse o Professor Caio Mário: “Se a União nada tivesse disposto, casoseria de se considerar o Estado com o poder de ditar normas e baixar provimen-tos, sem competição. Mas, havendo o Governo Federal voltado suas vistas para oassunto, sem esgotar a competência de censurar, porque, não sendo de suaatribuição privativa, prevalece a reserva para o Estado, essa atribuição lhe temforçosamente de ser reconhecida. Este sistema é bom. O Governo Federal temas suas vistas voltadas para problemas ligados com a segurança nacional, para aharmonia entre os poderes, para a tranqüilidade entre as unidades federadas. E,então, levando em consideração esses fatores e esses reclamos, exerce a cen-sura num plano nacional”.

Prossegue ele, sustentando que, quanto às “suscetibilidades morais”, devemter primazia as “sensibilidades locais”, de que é intérprete o Estado. Seu parecer,aliás, não deixou de ter uma nota política, porque, admitindo que, “por desvio deperspectiva”, viesse a ser impetrado e obtido mandado de segurança, o Governa-dor ficaria “prestigiado (...) pela sua atitude de intransigente defensor damoralidade pública”. Mas não estamos discutindo aqui a moralidade ou imorali-dade do filme, e sim um problema de competência constitucional, de que resultamconseqüências de muita relevância para toda a vida da federação.

As informações do Sr. Governador, por sua vez, não deixam de admitiruma competência federal limitada (fl. 38): “Nunca é demais repetir, como

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dedução lógica da regra doutrinária, que, se a película e a peça afetam o interes-se nacional (segurança pública, paz política, etc.), a censura é federal; se dizrespeito à moralidade, aos bons costumes, etc., a censura é feita pelos órgãosestaduais”. O redator das informações foi levado a essa concessão ao GovernoFederal porque, recorrendo a autores estrangeiros, neles não encontrou a afirma-ção de que o poder de polícia pertença, exclusivamente, aos Estados. Assim,Gosnell and Holland (State and Local Government, p. 71) atestam que “o governofederal compartilha do poder de polícia, embora o poder de polícia federal nãoseja tão amplo como o dos Estados”; não sendo exclusivamente nacional, “podeser classificado como (poder) concorrente, a ser exercido pelos Estados em graulimitado (to a limited degree). Para Bielsa (Derecho Administrativo 4/820), “seo espetáculo puder afetar as relações internacionais, o Governo nacional tematribuição (dever) para impedi-lo”. Essas citações, repito, eu as recolho, taisquais, das próprias informações do Sr. Governador.

Se recorremos ao velho, mas autorizado Ernst Freund (Police Power,1904), ali encontraremos a communis opinio de que, nem nos Estados Unidos (afederação que, dentre todas, mais extensa competência reconhece aos Estados)o poder de polícia se considera poder exclusivamente estadual: “Na distribuiçãodos poderes governamentais pela Constituição Federal, a maior parte (bulk) dopoder de polícia permanece com os Estados” (p. 62). E a União, continua Freund,exerce a sua competência, no campo da polícia (entendida, amplamente, comorestrição da liberdade e da propriedade no interesse do bem-estar público), atravésde “legislação positiva”, que “se apóia nos poderes enumerados do Congresso”, oucom medidas “preventivas”, “desde que as leis federais afastem as leis estaduaiscom elas conflitantes” (loc. cit.).

Haja vista, acrescentamos nós, que uma drástica espécie de censura nosEstados Unidos, não só quanto à segurança do país e das instituições e ao incita-mento ao crime, como também para impedir a circulação de publicações obscenas,é exercida pelo Governo Federal através do Departamento dos Correios, faculdaderenovada, em termos amplos, por uma lei de 1950 (Douglas, ob.cit., p. 47; Chafee,ob. cit., pp. 299-301, 304-305).

Note-se, além disso, que o poder de polícia, no sentido mais antigo e euro-peu da expressão, está intimamente vinculado ao direito penal. Nos Estados Uni-dos, com exceções limitadas, o direito penal se inclui na competência legislativados Estados, ao passo que no Brasil, desde a Constituição de 91, para só falar doperíodo federativo, tem pertencido, invariavelmente, à União. Castro Nunes ob-serva que, entre nós, o poder de polícia, incluído entre os poderes remanescentesdos Estados, tem “extensão mais reduzida (...) do que em outros países de orga-nização federativa, onde a atribuição de legislar sobre direito substantivo nãotenha sido reservada à União” (As Constituições Estaduais, 1922, p. 17).

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Pela razão indicada, a outras fontes de competência, como, por exemplo, ade legislar sobre os correios, é que o direito constitucional norte-americano vaifiliar o poder federal de impedir a circulação de publicações obscenas em todo opaís. Recorre, assim, à doutrina dos poderes inerentes e implícitos da União.Como observa Cáio Tácito, já em outro plano de considerações, “os conflitossociais, dia a dia mais agudos, (...) e os primeiros sintomas da crise econômica,afinal desencadeada em 1929, vão fortalecendo o sentido intervencionista doEstado, já então no plano federal. Firma-se um novo federal police power queserve de vanguarda à futura reforma do New Deal (...)” (O Poder de Polícia eseus Limites, na RDA 27/1, 7).

A doutrina dos poderes implícitos da União, embora menos útil na nossaprática constitucional, porque quase sempre desnecessária, tem assento constitu-cional expresso, já que o artigo 18, § 1º, nega aos Estados os poderes implicita-mente confiados à União.

Alega-se (e o Sr. Ministro Hahnemann Guimarães prestigiou o argumentocom sua imensa autoridade) que a Constituição de 1937 dava à União, privativa-mente, o poder de legislar sobre “o regime dos teatros e cinematógrafos” (art. 16,XVIII), o que trazia para a esfera federal a censura do teatro e do cinema,autorizada no artigo 122, 15, a. Como a primeira cláusula não foi reproduzida naConstituição de 1946, concluem que a censura ficou reservada, com exclusividade,aos Estados.

Data venia, da circunstância de não fazer a Constituição vigente referên-cia específica a legislação sobre teatros e cinemas, só se pode inferir que a ma-téria deixou de pertencer à competência exclusiva da União; não se pode con-cluir que tenha sido passada, com exclusividade, aos Estados. O que fez a Cons-tituição vigente foi situá-la na competência concorrente, uma vez que essa não seesgota na enumeração do art. 6º da Constituição. O art. 6º deu competênciasuplementar aos Estados em determinadas matérias que foram incluídas na com-petência expressa da União, mas não excluiu, em termos absolutos, a competên-cia concorrente no terreno dos poderes federais implícitos e dos poderes rema-nescentes dos Estados. Já que uns e outros, pela própria natureza, não estãodefinidos enumerativamente, há, entre eles, uma faixa de incerteza e controvérsia,cabendo ao Supremo Tribunal, em última análise, a delimitação desses poderes,sem excluir, portanto, a hipótese de concorrência.

Mas competência concorrente não pode significar, como quer o Estado deMinas, que aos Estados seja permitido sobrepor a sua autoridade à da União.Significa, ao contrário, que o poder da União prevalece, em caso de conflito,sobre o dos Estados. Como diz a Constituição norte-americana, em cláusula queMarshall desenvolveu com visão de estadista, as leis federais, promulgadas emconformidade com a Constituição, formam the supreme law of the land. E

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Madison já observava, em O Federalista (n. 44), que, se essa cláusula fosseescrita às avessas, fazendo preponderar as leis estaduais sobre as federais, “omundo teria visto, pela primeira vez, um sistema de governo fundado na inversãodos princípios fundamentais de qualquer governo (...), teria visto um monstro coma cabeça sob a direção dos seus membros.”

Em caso recente (1963), a Corte Suprema dos Estados Unidos, citandoprecedente, decidiu, por votação unânime, que a lei estadual e o poder de polícia,a que recorrera o Governador do Estado de Missouri para impedir a greve dosempregados de uma empresa concessionária de serviço público, não podiam pre-valecer sobre o que dispunha a lei federal, o National Laber Relations Act (BusEmployees v. Missouri, 374 US 74; Bus Employees v. Wiconsin Board, 340 US383). Note-se que, nos Estados Unidos, o Poder, que tem a União, de legislarsobre direito do trabalho não resulta de cláusula específica, mas de sua compe-tência em outras matérias, especialmente o comércio interestadual. É um dosmuitos casos, portanto, em que a Corte se defronta com o problema de discernirentre os poderes implícitos da União e os remanescentes dos Estados.

Entre nós, para citar um escritor de uso correntio, recordemos estas pala-vras de Araujo Castro: “no exercício dos poderes concorrentes (...), os Estadospodem legislar livremente, devendo prevalecer, todavia, em caso de conflito, alegislação federal” (A Nova Constituição Brasileira, 1935, p. 95).

Convencido, de há muito, desse axioma do federalismo, não hesitei, ante-riormente, em escrever que, “na competência concorrente (...), a supremaciada lei federal é indiscutível” (Problemas de Direito Público, pp. 127, 326). Eisso foi reafirmado, em casos recentes, pelo Supremo Tribunal, quando decidiuque a fiscalização sanitária federal dos derivados da carne se impunha às auto-ridades locais, obstando nova fiscalização: entre outros, RMS 9.573, 17-10-62,DJ de 13-12-62, p. 828; RMS 8.825, 29-10-62, DJ de 20-12-62, p. 853; RE48.198, 26-3-63, DJ de 14-6-63, p. 394; RE 51.485, 23-4-63; RE 51.575, 16-8-63, DJ de 31-10-63, p. 1092; RE 52.103, 30-8-63, DJ de 28-11-63, p. 1224. Emtais casos, também se cuidava do poder de polícia, não de segurança ou dosbons costumes, mas da polícia sanitária, que também se inclui no poder depolícia.

Quanto ao poder expresso de legislar sobre o cinema e ao poder implícitode legislar sobre a censura cinematográfica, não se pode negar que eles seacham incluídos em vários itens da competência federal.

O cinema é, modernamente, um dos principais veículos de comunicaçãodo pensamento, além de ser um instrumento de poderosa eficácia na propagandacomercial e política, sobretudo com o recente desenvolvimento da chamada pro-paganda subliminal. Sob esse aspecto, não pode escapar da competência federalpara legislar sobre o direito substantivo (direito político, civil, comercial, penal —art. 5º, XV, a).

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É, além disso, incontestável a sua influência, benéfica ou perniciosa, noplano das relações internacionais, na preparação de um ambiente de paz ou deguerra, e tudo isso é matéria que recai na competência da União (art. 5º, I e II).

Por outro lado, sendo o cinema de inestimável valia no terreno da educa-ção, pode também produzir efeitos deseducativos, e à União cabe legislar sobreas bases e diretrizes da educação nacional (art. 5º, XV, d).

Tornou-se, ademais, em toda parte, uma grande indústria, que os governosnacionais protegem de alguma forma, recaindo o cinema, nesse aspecto, sob acompetência federal para legislar sobre a produção e o consumo (art. 5º, XV, c).Como grande indústria, o cinema não se destina ao consumo local, mas ao co-mércio interestadual e exterior, matérias que também pertencem à competêncialegislativa federal (art. 5º, XV, k).

No que toca mais de perto aos efeitos perniciosos, que é o campo próprioda censura, lembramos, especialmente, além da competência federal para edi-tar o direito penal, a de legislar sobre normas gerais de defesa e proteção dasaúde (art. 5º, XV, b). Saúde, aqui, não é apenas a física, mas igualmente asaúde mental, em correspondência com a competência para legislar sobre edu-cação.

No que respeita a filmes estrangeiros, além das implicações de políticainternacional, não podemos esquecer a competência federal para “superintender,em todo o território nacional, os serviços de polícia marítima, aérea e de fronteiras”(art. 5º, VII).

Nessa extensa lista de atribuições legislativas federais, que vão desde a paze a guerra até à educação e à proteção da saúde mental, não é possível deixar deincluir, implicitamente, a censura cinematográfica, que com tais problemas se achaintimamente relacionada. Se considerarmos que o princípio geral da competênciada União é a natureza nacional, e não apenas regional, da matéria, estará completaa nossa demonstração, porque, nos dias de hoje, ninguém poderá negar que ocinema é assunto, essencialmente, de interesse nacional.

É, sem dúvida, relevante o argumento das peculiaridades locais no querespeita à moralidade pública e aos bons costumes. Mas, para preservar essasparticularidades, não é necessário negar a competência legislativa federal, oque traria mais dano que benefício. Havemos de confiar em que o legisladorfederal tenha o necessário discernimento para deixar uma certa margem daapreciação das condições locais à discricionariedade dos Estados, ou mesmodos Municípios. Mas este não é um problema de direito constitucional, e sim depolícia legislativa, cuja deliberação não cabe ao Judiciário, mas ao Congresso eao Presidente da República. Parece-me de graves conseqüências para o futuro

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negarmos competência legislativa à União em matéria de interesse tão contun-dentemente nacional, como é a censura cinematográfica. Na palavra de CastroNunes, “onde quer que se levante um interesse comum a mais de um Estado, aíaparece a União, sobrepondo a sua autoridade aos interesses em conflito” (ob.cit., p. 12).

O artigo 209, parágrafo único, I, da Constituição permite ao Presidente daRepública, em caso de Estado de sítio, “determinar (...) a censura de correspon-dência ou de publicidade, inclusive a de radiodifusão, cinema e teatro.” Argumen-ta um especialista (J. Pereira, Censura, 1960) com esse artigo, para concluir quesomente no Estado de sítio a União Federal tem competência para a censura defilmes cinematográficos. De um lado, a observação não me parece apropriada,porque esse dispositivo não regula a competência da União em face dos Estados,mas a competência do Presidente da República em face do Congresso. De outro,o argumento prova demais, porque dele se teria de concluir que a Constituiçãonão permite, salvo em Estado de sítio, a censura prévia dos filmes cinematográfi-cos. Colocada em pé de igualdade com a censura à imprensa, a do cinema estariavedada não apenas à União, mas também aos Estados e Municípios. Essa con-clusão mais radical não seria totalmente destituída de lógica, mas não está emcausa, neste processo, a vedação constitucional da censura do cinema, nem essatese tem sido sustentada pelos comentadores da nossa Constituição.

Também observa, alhures, o autor citado que o Executivo e o Congresso járeconheceram a inconstitucionalidade da censura federal ao cinema, porque foiaprovado o veto presidencial ao Projeto 1.497/1956, que transferia aquela atribui-ção da Polícia para o Ministério da Educação. O argumento não é de valor deci-sivo por várias razões, entre as quais a de ter sido o veto fundado, igualmente, emmotivos de conveniência, e não apenas de inconstitucionalidade (Diário do Con-gresso de 6-11-58). O projeto, aliás, passava a censura de um órgão federal paraoutro, e o veto, que lhe foi oposto, não poderia ter o efeito de revogar a legislaçãoanterior, que confia a censura à Polícia. Posteriormente ao veto, numerosos de-cretos federais, a que se refere o já mencionado voto do Sr. Ministro OscarSaraiva, dispuseram sobre a censura cinematográfica, como se verá mais adiante.Esta circunstância revela, pelo menos, variação do entendimento, por parte doExecutivo, quanto ao problema constitucional.

Existe, ainda, Sr. Presidente, um aspecto da maior relevância. Estamosvendo, neste processo, apenas um lado da questão, que é o filme liberado pelacensura federal e interditado pela estadual. Mas o mesmo problema constitucio-nal surgiria na situação inversa, de uma película vedada pela censura federal.Suponhamos um filme banido pela censura federal por comprometer gravementea ordem pública, a segurança das instituições ou as nossas relações internacio-nais, a ser exibido, por deliberação dos Estados, em todo o território nacional, com

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exceção apenas do Distrito Federal e dos Territórios. É tão merecedora de consi-deração essa hipótese que o Estado de Minas, neste processo, não se animou anegar, em tal caso, a competência federal. Mas a ressalva que fez só pode serconstitucionalmente admitida, se entendermos que a censura cinematográfica ématéria da competência da União, pelo menos concorrentemente, e não da com-petência exclusiva dos Estados. E no terreno da competência concorrente, nãopodemos deixar, em caso de conflito, de dar supremacia à lei federal sobre aestadual.

Araujo Castro, além da citada opinião sobre exercício, em geral, dos poderesconcorrentes, tratou, especificamente, do poder de polícia (ob. cit., p. 96):

“Entre os poderes que competem à União e aos Estados deve serincluído o poder de polícia (police power), em virtude do qual se estabe-lecem restrições aos direitos individuais em benefício da manutenção daordem, da moralidade, da saúde pública, da segurança, da propriedade ebem-estar dos indivíduos.”

E mais adiante:

“Nem sempre é fácil determinar precisamente as raias da compe-tência da União e dos Estados no tocante ao poder de polícia.

Joaquin Gonzalez limita-se a dizer que esse direito é inerente aosgovernos que a Constituição Argentina estabelece (da Nação e dasProvíncias) como uma conseqüência da missão de proteger a vida, apropriedade, a segurança, a moralidade e a saúde dos habitantes.

Nos Estados Unidos, o poder de polícia é exercitado ordinariamentepelos Estados, mas a União não está inibida de tomar medidas de carátergeral em prol da integridade nacional.

O que é indispensável, porém, é que essas limitações tenham, tantoquando possível, um caráter de generalidade, pois o poder de polícia só sejustifica quando as restrições aos direitos privados são praticamentenecessárias ao bem-estar de todos.

Entre nós, os Estados sofrem, quanto ao poder de polícia, a naturalrestrição que dimana de sua incapacidade de legislar sobre direito civil,comercial e criminal e da amplitude dos poderes conferidos privativamente àUnião”.

Lembrou-se, nos autos, um precedente do Supremo Tribunal, da lavra doeminente Ministro Candido Motta Filho (RMS 10.210, de 29-8-62, DJ de 18-11-62,p. 653). Mas, nesse acórdão, não há uma única palavra que indique ter sidofocalizado o problema da prevalência da censura estadual sobre a federal. O que

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se discutiu, pelo relatório e voto que mereceram a nossa aprovação unânime, foique a autoridade competente podia revogar a licença de exibição do filme ante-riormente concedida. Peço vênia para transcrever essa passagem do voto do emi-nente Relator: “Trata-se de uma autorização revista, porque, conforme se verificadas informações, ela não estava conforme a lei e às exigências do poder depolícia. Incensurável o acórdão impugnado, pelo que nego provimento ao recurso”.

Se estava em causa um problema de competência estadual, que nem sequerfoi referido na decisão, parece satisfatória a explicação dada no caso presente peloparecer da Procuradoria-Geral da República. Com a mudança da Capital paraBrasília, o Governo Federal delegou aos Estados, enquanto aqui não se organizas-sem devidamente os seus serviços, o exercício da censura cinematográfica. Masessa delegação foi, mais tarde, revogada, conforme comunicação do Ministro daJustiça aos governos estaduais, em dezembro de 1961 (publicação de fl. 18).

O citado precedente, portanto, não aproveita ao Estado de Minas, e emsentido contrário pode ser rememorada a decisão do RMS 5.630, de 20-8-58,Relator o eminente Ministro Lafayette de Andrada, onde se negou às autoridadeslocais o poder de impedir anúncios comerciais nas telas de cinema, embora pu-dessem exercer outras atribuições quanto à manutenção da ordem nas salas deprojeção. O que resulta desse acórdão é precisamente a tese da competênciaconcorrente para a censura dos espetáculos e diversões públicas.

Quero lembrar que o regulamento atualmente em vigor (Decreto 37.008/55,art. 267) isenta de prévia censura “os filmes produzidos pelos órgãos oficiais”.Algumas das repartições federais produzem filmes por força de lei. Tal é o casodo Instituto Nacional de Cinema Educativo e da Agência Nacional.

O Sr. Ministro Hahnemann Guimarães (Relator): V. Exa. deve lembrar-seque toda essa legislação se baseou na Constituição de 1937, onde se reservavamà União poderes de censura. Estaria de acordo com V. Exa. se essa legislaçãoestivesse escoimada de vícios.

O Sr. Ministro Victor Nunes: O poder de censura deixou de ser atribuído,com exclusividade, à União. Aqui está a nossa divergência, falando com todo orespeito. É só isso — a supressão da exclusividade — que resulta da Constituiçãode 1946.

Como vinha dizendo, os filmes oficiais, produzidos pelo Governo da União,por nenhuma lógica federativa poderiam ficar sujeitos à censura dos Estados. Esó poderão ficar isentos de censura estadual, se pertencer à União, pelo menosconcorrentemente, o poder de censurar os filmes cinematográficos.

Vejamos, agora, no pressuposto da competência concorrente, se há leifederal instituindo a censura cinematográfica federal e em que extensão foi essepoder conferido às autoridades federais. Em primeiro lugar, havemos de examinaras leis, em seguida, os regulamentos.

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Ao tempo do Estado Novo, não havia dúvida alguma, porque o Decreto-Lei 1.949, de 30-12-39, atribuía ao Departamento de Imprensa e Propaganda acensura federal, obrigatória para todo o território nacional. Transformando oantigo DIP em Departamento Nacional de Informações (Decreto-Lei 7.582,25-5-45), o Governo José Linhares passou, mais tarde, a censura cinematográficapara o Departamento Federal de Segurança Pública, pelo Decreto-Lei 8.462, de26-12-45, que alterou a organização desse departamento, estruturada no Decreto-Lei 7.887, de 21-8-45. A Lei Linhares criou, na Polícia, o Serviço de Censura deDiversões Públicas, “subordinado ao Chefe de Polícia” (art. 1º), que era o nossoeminente colega, então Desembargador Ribeiro da Costa. Para esse serviço,transferiu “as atribuições da Divisão de Cinema e Teatro do Departamento Nacio-nal de Informações” (art. 2º), excetuando somente as alíneas a e b do art. 3º doDecreto-Lei 5.077, de 29-12-39. Houve, nessa remissão, um evidente erro mate-rial do redator da lei, porque a referência era, inequivocamente, ao art. 8º (não 3º)do Decreto (não decreto-lei) 5.077, que tem a data mencionada. O decreto-leido mesmo número é de outra data e cuida de matéria diferente.

As atribuições, que não passaram para a Polícia, diziam respeito à produ-ção de um jornal cinematográfico e ao incentivo da indústria cinematográficanacional. Entre as que passaram para o Serviço de Censura da Polícia, incluíam-se as das letras c e d: “censurar os filmes, fornecendo certificado de aprovação”e “proibir a exibição em público de filmes sem certificado de aprovação”. Amesma Lei Linhares autorizou, no art. 7º, a expedição do Regulamento do Serviçode Censura, mandando observar, até então, as instruções que fossem baixadaspelo Chefe de Polícia.

O Sr. Ministro Hahnemann Guimarães (Relator): Nossa legislação foi todaelaborada sob o regime da Constituição de 1937.

O Sr. Ministro Victor Nunes: Mas, a meu ver, com a vênia de V. Exa., essalegislação não foi revogada pela Constituição atual, porque ela não suprimiu acompetência concorrente da União.

O Sr. Ministro Hahnemann Guimarães (Relator): A Constituição não dámais competência exclusiva para legislar sobre diversões públicas.

O Sr. Ministro Victor Nunes: Mas dá competência concorrente.

O Sr. Ministro Hahnemann Guimarães (Relator): Não dá nem a concorrente.

O Sr. Ministro Gonçalves de Oliveira: No art. 5º não está essa competência,que não era desconhecida do legislador constituinte.

O Sr. Ministro Victor Nunes: Mas a competência concorrente não é só aque resulta de poderes expressos, também resulta dos poderes implícitos.

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Ministro Victor Nunes

O Sr. Ministro Gonçalves de Oliveira: Temos que examinar em cada hipó-tese. No caso concreto, essa matéria era expressamente prevista. Não era umamatéria omissa. Era expressamente prevista na Constituição de 1937. O legisladorconstituinte, rastreando a Constituição de 1937, não quis outorgar à União com-petência nem exclusiva nem concorrente, porque, no art. 5º, enumera a competênciaexclusiva e também enumera, no art. 6º, a competência concorrente. E aí foi omissacompletamente, deixando transparecer que era o intuito da Constituição deixaressa matéria precipuamente aos Estados.

O Sr. Ministro Victor Nunes: Essa interpretação, data venia, é prejudicialaos interesses da União e contrária à índole do regime federativo. Não se podeconceber que um filme inequivocamente atentatório à segurança nacional e quefosse proibido para o país inteiro, pudesse ser exibido em vinte Estados, valendoa interdição somente para a Capital Federal e os Territórios. O problema consti-tucional é um só. Se o Estado pode proibir o que foi permitido, também podepermitir o que foi proibido.

O Sr. Ministro Gonçalves de Oliveira: V. Exa. nega aos Estados o poder depolícia?

Quando o Estado de Minas Gerais não permitiu a exibição destes filmes,foi usando do poder de polícia.

O Sr. Ministro Victor Nunes: Se V. Exa. me permite, o poder de polícia éconcorrente, e poder concorrente do Estado nunca foi, em federação nenhuma domundo, poder estadual oposto ao da União, ou poder estadual superior ao da União.

O Sr. Ministro Gonçalves de Oliveira: É evidente a supremacia da União.

O Sr. Ministro Victor Nunes: É conseqüência lógica da competência con-corrente. Em nenhuma federação do mundo, em caso de competência concor-rente, o conflito se resolve em favor dos Estados contra a União. Acontece justa-mente o contrário: o conflito se resolve em favor da União contra os Estados.

O Sr. Ministro Gonçalves de Oliveira: Vamos discutir em cada hipótese.Aqui se tratava de matéria em que a Constituição anterior dava competênciaexpressa à União.

O Sr. Ministro Victor Nunes: Então, V. Exa. negará, totalmente, a compe-tência da União.

O Sr. Ministro Gonçalves de Oliveira: V. Exa. mesmo disse que o poder depolícia é atribuição dos Estados, mas também a União pode usar de poderes depolícia.

O Sr. Ministro Victor Nunes: Se a União pode concorrentemente, issosignifica que pode com superioridade sobre os Estados. O que não é possível éque haja competência concorrente e os poderes da União não sejam superioresaos dos Estados em caso de conflito.

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Memória Jurisprudencial

O Sr. Ministro Gonçalves de Oliveira: Vamos discutir a hipótese concreta. V.Exa. veja bem meu argumento. A Constituição de 1937, expressamente, consigna-va a competência exclusiva da União para legislar a respeito. O legislador constitu-inte conheceu esse modelo da Constituição de 1937. O constituinte, na Constituiçãode 1946, enumerou as matérias de competência exclusiva da União. Enumerou,também, as matérias da competência concorrente da União e dos Estados e fezomissão dessa matéria. Não podemos, assim, negar o poder de polícia estadual.

O Sr. Ministro Victor Nunes: Respeito a autoridade de V. Exa. Mas, se mepermite, há uma divergência entre nós, e há talvez um equívoco. A divergência éque, a meu ver, a Constituição de 1946, ao suprimir a cláusula que se continha nade 1937, dando exclusividade de competência à União, apenas aboliu a exclusivi-dade. Não desapareceu a competência federal, desapareceu a exclusividadedessa competência.

Agora, quanto ao possível equívoco, quero ponderar que não é o art. 6º daConstituição que dá competência concorrente à União. O art. 6º, o que faz é darcompetência concorrente aos Estados em matérias incluídas na competênciaexpressa da União. Não podemos inverter os termos do problema.

Fora do art. 6º, a União tem a competência concorrente que puder resultar,implicitamente, de todos os seus poderes expressos.

O Sr. Ministro Gonçalves de Oliveira: Eu admito que a União tenha poder,também, nessas matérias, mas sem anular o dos Estados. A União tem compe-tência para cortar o trânsito dos filmes.

No exemplo citado por V. Exa., a União pode proibir a exibição de filmes.Mas o que não pode é tirar dos Estados, também, esse poder de censura.

O Sr. Ministro Victor Nunes: Na lógica do respeitável voto de V. Exa., aUnião não terá poder algum, porque, se tiver competência concorrente, os seuspoderes, em caso de conflito, hão de preponderar sobre os dos Estados. O quenão se pode fazer é subordinar a União aos Estados, seria contrário à teoria dafederação.

Agradecendo, Sr. Presidente, esse vivo debate, que muito me honra, pros-seguirei na leitura do meu voto.

O Regulamento, baixado ainda no Governo Linhares, com o referendo doMinistro Sampaio Dória (Decreto 20.493, de 24-1-46), dispunha no art. 5º: “Ocertificado de aprovação autoriza a exibição do filme em todo o território nacional,isentando-o de qualquer outra censura ou pagamento de novas taxas duranteo período de sua validade”.

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Veio, depois, novo Regulamento (Decreto 37.008, de 8-3-55), que dispôsno art. 271, § 1º: “O certificado de aprovação (...) deverá corresponder a cadacópia de filme (...), autorizando a sua exibição em todo ou em parte do territórionacional”.

Alega-se que o novo regulamento, deixando de repetir a cláusula que isen-tava os filmes autorizados “de qualquer outra censura”, teria permitido que, contrae acima da censura federal, se pudesse exercer a censura estadual. Essa interpre-tação é incompatível com o contexto geral do novo Regulamento que, em nenhumde seus dispositivos, faz presumir que o Governo Federal reconheceu supremacia àcompetência conflitante dos Estados. Basta notar que o art. 272, ao prever asuperveniência de “motivo grave”, que tornasse a projeção “atentatória àmoralidade”, foi ao próprio Chefe de Polícia do DFSP que deu competência para“cassar ou restringir a aprovação anteriormente concedida”. E o art. 276 permiteao Fiscal de Censura, que é a autoridade propriamente executora, apenas a facul-dade de suspender a exibição “nos casos de infração grave, submetendo o seu atoao Chefe do Serviço de Censura” (federal). Finalmente, a apreensão do filme, a serordenada pelo Chefe da Censura federal, só é autorizada, pelo art. 279, nos casosde exibição sem prévia censura ou em desacordo com os termos da aprovação.

Em nenhuma parte do Regulamento está sequer insinuada a idéia de que aautoridade estadual possa sobrepor-se à censura federal. Essa possibilidade ficou,evidentemente, excluída pela validade da censura federal para todo o territórionacional (ou em parte dele, se assim o determinar a própria censura federal).

É, pois, de todo irrelevante, para o fim pretendido, a divergência de reda-ção entre o regulamento de 1945, do Governo Linhares, e o de 1955, do GovernoCafé Filho. Novas manifestações do poder regulamentar federal, em matéria decinema, incluindo a censura cinematográfica, encontramos nos seguintes decretos:Decreto 24.911, de 6-5-46; Decreto 22.014, de 4-11-46; Decreto 26.966, de27-7-49; Decreto 30.179, de 19-11-51; Decreto 47.466, de 22-12-59; Decreto50.450, de 12-4-61; Decreto 51.106, de 1º-8-61; Decreto 544, de 31-1-62; De-creto 697, de 15-3-62; Decreto 1.023, de 17-5-62; Decreto 1.134, de 4-6-62;Decreto 1.243, de 25-6-62; Decreto 2.131, de 22-1-63.

Essa é, pois, a legislação federal em vigor, cuja legitimidade não pode sercontestada, em vista da competência concorrente da União, que prepondera, emcaso de conflito, sobre a competência estadual. Será, talvez, inconveniente, pornão ter ressalvado as peculiaridades locais. Suponho que o seja, mas essa críticadeve ser dirigida ao Poder Legislativo ou do Poder Executivo, aos quais cumpredar o remédio, e não a nós que, por amor do pormenor, correríamos o risco detrincar o edifício da competência constitucional da União.

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O Sr. Ministro Gonçalves de Oliveira: Com a devida venia, parece injustaesta crítica ao Poder Legislativo, porque, quando se fez a Constituição atual nãooutorgou o poder exclusivo do legislador ordinário federal. Não há legislaçãoapós a Constituição de 1946.

O Sr. Ministro Victor Nunes: Se V. Exa. situa o seu aparte no plano danossa divergência de há pouco, logicamente não poderemos estar de acor-do. Não poderei chegar à conclusão de V. Exa., desde que parto de outrapremissa.

Há, ainda, outro argumento, Sr. Presidente: o acórdão do Tribunal de MinasGerais reconhece que não há lei estadual de Minas Gerais atribuindo a censuracinematográfica ao Governo do Estado. E argumenta que o exercício do poder depolícia prescinde de lei.

O Sr. Ministro Vilas Boas: Essa declaração é muito grave.

O Sr. Ministro Victor Nunes: Disse o acórdão:

“E nem se diga possa inexistir, no caso, ordenamento jurídico queviesse condicionar o uso desse poder, pois que, segundo ThemistoclesCavalcanti:

‘Revestidas do caráter discricionário (...)’

O Sr. Ministro Hahnemann Guimarães (Relator): Isso é inerente ao Estado.

O Sr. Ministro Victor Nunes:

“(...) as medidas de polícia não precisam estar predeterminadaspela lei.”

— Tratado de Direito Administrativo, v. III, p. 10.”

Caio Tácito, que é hoje um dos nossos melhores especialistas em DireitoAdministrativo, observa, no estudo já citado, que nenhum poder do Estado estáimune ao princípio da legalidade: “Essa faculdade administrativa não violenta oprincípio da legalidade, porque é da própria essência constitucional das garantiasdo indivíduo a supremacia dos interesses da coletividade. (...) É, sobretudo, emrelação aos atos de polícia, por sua natureza discricionária, que o controle dalegalidade do fim objetivado na ação administrativa adquire relevo especial (...).O exercício do poder de polícia pressupõe, inicialmente, uma autorização legalexplícita ou implícita, atribuindo a um determinado órgão ou agente administrativoa faculdade de agir” (ob. cit., pp. 8, 9).

E Aureliano Leal, cujo trabalho, embora antigo, ainda é das melhores coi-sas que já se escreveram sobre o poder de polícia no Brasil (Polícia e Poder de

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Polícia, 1918), também sustenta, em mais de uma passagem, a vinculação dopoder de polícia ao que prescreve a lei, que deixa, entretanto, larga margem deação discricionária às autoridades administrativas.

O que tem acontecido, Sr. Presidente, é que, imemorialmente, têm havidoleis e regulamentos dando amplos poderes a autoridades policiais para intervir emtais ou quais circunstâncias. Como a nossa memória até se perde na busca dessasautorizações legislativas, pode-se ter a ilusão de que o poder de polícia éimanente, nasce de si mesmo, independentemente da lei; mas, na verdade, semprehouve leis e regulamentos que deram esses poderes às autoridades policiais, emmaior ou menor extensão.

O Sr. Ministro Gonçalves de Oliveira: Aqui, no caso concreto, decorria atédo art. 18 da Constituição.

O Sr. Ministro Victor Nunes: O argumento, que estou agora desenvolvendo,é que não há lei específica dando ao Governo estadual de Minas Gerais o poderde censura cinematográfica.

O Sr. Ministro Gonçalves de Oliveira: Não precisava, porque decorreria dopoder constituinte, ao fazer a partilha de poderes. E está no art. 18 da CartaPolítica Federal.

O Sr. Ministro Victor Nunes: Ainda pela razão aduzida, seria excessivopermitir que o Governador, mesmo sem lei, pudesse contrariar a censuraexercida por órgão federal com base em lei.

O Sr. Ministro Hahnemann Guimarães (Relator): Baseado em lei elabora-da no regime da Constituição de 1937.

O Sr. Ministro Victor Nunes: O último regulamento, do Presidente CaféFilho, já foi expedido na vigência da Constituição atual.

O Sr. Ministro Hahnemann Guimarães (Relator): É o Decreto n. 37.008,de 1955. Está preso, ainda, à Constituição de 1937.

O Sr. Ministro Victor Nunes: V. Exa. me permitirá uma repetição. A meuver, a Constituição atual não exclui a competência federal para a censura cine-matográfica. Na lógica do meu voto, tenho de considerar que a lei, em que sebaseou o Regulamento Café Filho, mesmo do regime anterior, continuou válidasob a nova Constituição...

O Sr. Ministro Gonçalves de Oliveira: Não contesto que V. Exa. estejasendo lógico.

O Sr. Ministro Victor Nunes: ... porque só as leis incompatíveis com o novoregime é que ficaram revogadas.

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Assim, data venia do eminente Ministro Relator, a cuja preocupaçãopelas variações do sentimento de moralidade pública também me associo, com aconvicção de quem viveu muitos anos em cidade do interior, dou provimento aorecurso, para fazer prevalecer a censura federal sobre a estadual. De futuro, ospoderes competentes encontrarão, para esse problema, a solução que lhes pare-cer mais adequada, sob a inspiração do interesse público, sem prejuízo da compe-tência constitucional da União.

MANDADO DE SEGURANÇA 15.186 — DF

Tesoureiro auxiliar. Cargo legalmente criado por de-creto do Presidente da República. A Lei 4.345, de 26-6-64,alterou a Lei n. 3.780, de 12-7-60, que excluía os tesourei-ros auxiliares do plano de classificação de cargos. A revisãodos quadros das autarquias não autorizou a extinção decargos (art. 19, da Lei 4.345). Mandado de segurança con-cedido.

VOTO

O Sr. Ministro Victor Nunes: Estão em julgamento dois casos idênticos.Tendo pedido vista do MS 15.186, redigi voto muito breve, limitando-me quase aapoiar o do Sr. Ministro Evandro Lins, que deferia a segurança.

“S. Exa. — dizia eu — demonstrou que a supressão de cargos, queveio a alcançar o ocupado pelo impetrante, dependia de regulamentação,bem como da aprovação de um programa, nos expressos termos do art.22, § 1º, da Lei 4.345, de 26-6-64. E não houve essa regulamentação. Oart. 19, em que se fundou o decreto impugnado, não cuidara de supressãode cargos”.

Entretanto, o eminente Ministro Prado Kelly, que pedira vista do outroprocesso (MS 14.631), trouxe ao nosso exame, com o brilho de sempre, duasponderações novas.

A primeira é que teria sido ilegal a criação desses cargos através de decretodo Governo anterior. Sua supressão posterior, pelo atual governo, estaria apenasreparando a ilegalidade.

Parece-me, porém, que a criação de tais cargos por ato do Executivo foiperfeitamente legal, como se procedia na época, sem contestação, por se tratarde autarquia. O próprio tribunal tem aplicado numerosos decretos de criação de

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cargos em autarquias, e nunca se impugnou, aqui, essa competência do Executivo.Politicamente, em especial no Congresso, é que o assunto suscitava controvérsia,porque se reconhecia ao Presidente da República o poder de ampliar sua influênciana área do empreguismo.

O Sr. Ministro Prado Kelly: Consinta V. Exa. uma retificação em pontode fato.

Referi-me ao argumento, porque o eminente Ministro Relator entendia queo Presidente da República podia criar cargos em virtude de autorização contidano art. 16, da Lei 2.745, de 1956. Então, dizia eu:

“(...) esse artigo estabelecia apenas uma faculdade temporária,qual a de, no prazo de 30 dias, a contar da publicação da mesma lei, serorganizado o quadro do pessoal das autarquias, com observância dospadrões adotados para os servidores civis da União e dos Territórios e,então, aprovado por decreto executivo”.

O Sr. Ministro Victor Nunes: É possível, Sr. Ministro Prado Kelly. Nãotenho anotada, nem poderia conservar na memória, toda a legislação sobreautarquias subseqüente à lei citada por V. Exa. Mas se essa competência foradada, originariamente, ao Presidente da República por tempo determinado, comodiz V. Exa., a verdade é que a praxe administrativa, sancionada pelos demaisPoderes...

O Sr. Ministro Prado Kelly: Era o exercício do poder regulamentar, talvezabusivo, mas que não vale só para criar cargos, senão também para suprimi-los.

O Sr. Ministro Victor Nunes: A supressão dos cargos é outro aspecto doproblema. Pretendo examiná-lo dentro em pouco.

Ainda — dizia eu — que, originariamente, aquela competência tivesse sidoinstituída em caráter temporário, o certo é que, durante anos e anos, essa praxeda criação de cargos em autarquias por ato do Executivo, tolerada e aprovadapelo Legislativo e não contrariada pelos tribunais, tornou-se costume jurídico-administrativo.

Se tivéssemos, agora, de declarar ilegal a criação de tais cargos, faríamosdesmoronar quase toda a estrutura das nossas autarquias.

O Sr. Ministro Gonçalves de Oliveira: Peço licença a V. Exa. para inter-romper seu brilhante voto a fim de dar um esclarecimento, do ponto de vistaburocrático, a este respeito.

Essa competência do Presidente da República surgiu para frear asautarquias, na criação de cargos. Se não houvesse, por parte do governo, esta

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medida, até exigindo publicação no Diário Oficial para que os atos ficassemsolenes e conhecidos, as autarquias criariam inúmeros cargos, até mesmo desne-cessários.

O Sr. Ministro Victor Nunes: Como, de começo, fizeram.

O Sr. Ministro Gonçalves de Oliveira: Aí é que surgiu um controle do Pre-sidente da República no sentido de que esses cargos só fossem criados por de-creto ou com a aprovação presidencial.

O Sr. Ministro Victor Nunes: O esclarecimento do eminente Ministro Gon-çalves de Oliveira é oportuno, porque relembra a evolução da nossa administra-ção descentralizada. As autarquias foram criadas com grande autonomia, aten-dendo-se às peculiaridades de cada uma, pela necessidade ou conveniência deser flexibilizado o serviço público. Por isso, as autarquias foram autorizadas acriar seus próprios cargos. Mas foram muitos os abusos dessa descentralização.Surgiu, então, o primeiro controle, que consistiu na criação desses cargos pordecreto do Poder Executivo.

O Sr. Ministro Prado Kelly: Com fundamento no exercício de poder tem-porário.

O Sr. Ministro Victor Nunes: Mas em virtude de lei.

O Sr. Ministro Prado Kelly: Por lei de efeitos transitórios e com limitecerto.

O Sr. Ministro Victor Nunes: Não podemos garantir que a única lei a tratardo assunto tenha sido essa a que V. Exa. se refere.

O Sr. Ministro Prado Kelly: Esta foi a alegada pelo eminente Relator e, porisso, detive-me no assunto.

O Sr. Ministro Victor Nunes: V. Exa. mencionou uma Lei de 1956.

O Sr. Ministro Prado Kelly: Quem mencionou foi o eminente MinistroRelator.

O Sr. Ministro Hahnemann Guimarães: Foi a Lei 2.745, de 1956.

O Sr. Ministro Victor Nunes: Mas bem antes dessa época, já o Sr. Presi-dente da República criava cargos nas autarquias, como continuou a fazer. Oassunto foi várias vezes discutido no Congresso por suas implicações políticas.Não ponho minha mão no fogo, como V. Exa.

O Sr. Ministro Prado Kelly: Não fui eu que o declarei, foi o eminenteRelator. Meu fundamento é outro. Considero que o suporte do ato é o poderregulamentar atribuído ao Sr. Presidente da República pelo Congresso. Esta atese de meu voto.

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O Sr. Ministro Victor Nunes: Se V. Exa. sustenta que o suporte único doato é o poder regulamentar, estou autorizado a concluir que o primeiro fundamen-to do seu brilhante voto foi desenvolvido apenas por amor ao debate, pois V. Exa.não considera que fosse ilegal a criação dos cargos por ato do Executivo.

O Sr. Ministro Prado Kelly: V. Exa. me perdoe, mas farei uso de uma frasejá usada por V. Exa.: só o prolator do voto pode e deve interpretá-lo.

É ocasião de seguir esse bom aviso.

Limitei-me a considerar um argumento do Ministro Relator, que davacomo base legal do ato da criação daqueles cargos o art. 16, da Lei 2.745, eponderei: não é possível seja tal a base, porque, se o fosse, já estaria esgotado oprazo dentro do qual essa competência poderia ser exercida.

O Sr. Ministro Victor Nunes: Agradeço o esclarecimento de V. Exa. Tinha-meparecido, ao ouvir seu lúcido voto, que V. Exa. adotava dois fundamentos: o primeiroé que, sendo ilegal a criação dos cargos, o Sr. Presidente da República poderiaextingui-los no uso da prerrogativa que tem a administração de corrigir seus pró-prios atos ilegais.

O Sr. Ministro Prado Kelly: Este argumento foi, na verdade, invocado peloSr. Consultor-Geral da República; aludi a ele de passagem, não fiz dele razãoessencial de meu voto.

O Sr. Ministro Victor Nunes: Passemos, então, ao segundo ponto. O atoem discussão é o Decreto 54.045, de 23-7-64. Invocou-se, no preâmbulo dessedecreto, como de praxe, o art. 87, I, da Constituição, que dá competência aoExecutivo para expedir decretos e regulamentos. Mas também se invocou, eespecificamente, o art. 19 da Lei 4.345/64.

Disse, por isso, o Sr. Ministro Evandro Lins que o fundamento do Decreto54.045 é, a rigor, o art. 19 citado, pois o art. 87, I, da Constituição ali aparecerotineiramente, como fonte geral do poder regulamentar. Já o Sr. Ministro PradoKelly sustenta que somente se fundam no art. 19 da Lei 4.345 as normas doDecreto 54.045 que dispõem sobre revisão de quadros. O mais fundar-se-ia nopoder regulamentar.

Este argumento poderia desdobrar-se em dois aspectos. De um lado, combase no poder regulamentar, o Presidente poderia extinguir os cargos, já queteriam sido criados ilegalmente. Mas este aspecto, parece, ficou afastado com osesclarecimentos há pouco ministrados pelo Sr. Ministro Prado Kelly.

Restaria o segundo aspecto: o Presidente poderia suprimir os cargos nouso do seu poder geral de organizar o serviço das autarquias.

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O Sr. Ministro Prado Kelly: Mas o fundamento do Executivo, como vemno parecer, é que ele considerava irregular a criação dos cargos que não atendi-am a finalidades do bem público, e, mesmo, não havia arrimo legal para eles.Exercitava-se o poder regulamentar e, como por meio de regulamento foi criadoo cargo, por meio do regulamento seria extinto.

O Sr. Ministro Victor Nunes: Este último aspecto do problema não envolve oda ilegalidade da criação dos cargos. O Presidente, no uso do poder regulamentar,que lhe faculta organizar as autarquias, poderia extinguir ou deixar de extinguir oscargos. Teria, então, optado pela extinção.

Vejamos, entretanto, se foi isso o que ocorreu com o questionado Decreto54.045, de 1964. Dispõe esse decreto:

“Fica aprovada a revisão da classificação dos Quadros de Pessoal doInstituto de Previdência e Assistência dos Servidores do Estado, na formadeterminada pelo artigo 19 da Lei n. 4.345, de 26 de junho de 1964, elabo-rada com observância das normas contidas no Decreto n. 54.004, de 3 dejulho de 1964, continuando em vigor os Decretos n. 51.340, de 28 de outubrode 1961, 51.628 e 51.631, de 19 de dezembro de 1962, 51.669, de 17 dejaneiro de 1963, 53.717, de 17 de março de 1964, bem como as ResoluçõesEspeciais n. 217, de 24 de fevereiro de 1964, 221, de 20 de março de 1964 e230 de 19 de junho de 1964, da Comissão de Classificação de Cargos.”

Dispõe, em seguida, o parágrafo único do mesmo artigo: “Ficam declaradossem efeito os Decretos” tais e quais, entre eles, o decreto criador dos cargos, quesão objeto do processo.

Constam, porém, do artigo acima transcrito — o qual, como o parágrafo,contém uma longa lista de decretos — essas cláusulas expressas: “(...) continuan-do em vigor os Decretos” tais e tais, e, afinal, “Ficam declarados sem efeito osDecretos” tais e tais.

Que resulta, então, do Decreto 54.045? Ele, ao mesmo tempo, confirma ouratifica alguns decretos e revoga outros. Mas essas duas medidas — a confirma-ção de alguns decretos e a revogação de outros — estão vinculadas à revisão dosquadros. O que, portanto, fez o governo, seja ratificando, seja revogando decretos,foi a revisão dos quadros.

O Sr. Ministro Prado Kelly: Estão entrelaçados. Mas só fiz essa pondera-ção para demonstrar que a interpretação dada pelo eminente Sr. Ministro Relatorao art. 19, no sentido de que o poder de revisão não continha o poder de extinguircargos inúteis (o que, a meu ver, não seria boa interpretação do art. 19), não teriapréstimo, data venia, para a solução do caso, porque aí estaria o governo,como declarou no preâmbulo, usando do poder regulamentar, que é inerente aoExecutivo.

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O Sr. Ministro Victor Nunes: Vou concluir meu raciocínio, Sr. Presidente.Parece-me demonstrado que as duas medidas — a manutenção de alguns decretose a revogação de outros — estão vinculadas à mesma razão de ser do Decreto54.045, que foi proceder à revisão dos quadros da autarquia, nos termos do art.19 da Lei 4.345. Portanto, essas duas matérias estão completamente vinculadasà invocação específica do art. 19 da Lei. 4.345, que consta do preâmbulo doDecreto 54.045.

Mas a Lei 4.345 mudou a sistemática da organização desses serviçosautárquicos: de um lado, vedou ao Presidente da República criar cargos por de-creto; de outro, manteve a situação pré-existente e autorizou o Presidente, massob certas condições, a rever os quadros e suprimir cargos. As condições a quetais medidas ficaram sujeitas foram estabelecidas na própria lei.

Pela sistemática da Lei 4.345, a extinção de cargos foi regulada não no art.19, mas no art. 22, § 1º, que a fez depender de uma regulamentação, bem comoda prévia aprovação de um programa. De acordo com esse programa é que oPresidente da República poderia extinguir até 50.000 cargos, com o que se alcan-çaria uma revisão geral dos serviços das autarquias referidas na lei.

O Sr. Ministro Prado Kelly: Pelo sistema da lei, essa extinção se enquadra-va na finalidade ampla do mesmo diploma, qual era a revisão dos cargos.

O Sr. Ministro Victor Nunes: Então, o art. 22 seria inútil.

O Sr. Ministro Prado Kelly: Não é inútil, porque é limitativo quanto aonúmero: 50.000.

O Sr. Ministro Victor Nunes: Veja V. Exa.: se o Presidente da Repúblicapudesse extinguir quaisquer cargos, seria inútil dizer a lei que ele poderia extinguiraté 50.000.

O Sr. Ministro Prado Kelly: O número limita a faculdade que assistia aoGoverno.

O Sr. Ministro Victor Nunes: Mas, se a mesma lei não pudesse estabeleceroutras condições, também não poderia fixar limite quanto ao número dos cargosa serem extintos. Se esta condição do número é válida, também o são as outras.

O Sr. Ministro Prado Kelly: Aliás, argumentar com redundâncias da lei, emface da legislação brasileira, não me parece que seja razão decisiva...

O Sr. Ministro Victor Nunes: Mas a mesma lei que pode limitar a ação doExecutivo quanto ao número dos cargos a extinguir, como V. Exa. reconhece,também a poderia limitar quanto à forma. E foi o que fez.

O Sr. Ministro Prado Kelly: Essa segunda conclusão é V. Exa. que a ado-ta; eu não poderia aceitá-la.

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O Sr. Ministro Victor Nunes: Estou chegando a ela a partir da premissa deV. Exa. Se o art. 22 é válido no limitar a faculdade de extinguir cargos, quanto aonúmero destes, também é válido no limitar essa faculdade quanto à forma e aospré-requisitos.

O Sr. Ministro Prado Kelly: Mas o art. 22 tem um fim pressuposto, o delimitar o número de cargos passíveis de extinção.

O Sr. Ministro Victor Nunes: Sr. Presidente, o debate foi muito amplo etodos os pormenores ficaram esclarecidos.

Peço vênia para acompanhar o voto do eminente Ministro Relator, nos doisprocessos.

MANDADO DE SEGURANÇA 15.886 — DF

Reestruturação de quadros de autarquias do Ministérioda Viação. Matéria Constitucional.

1. Inconstitucionalidade de lei. Presunção de constitucio-nalidade. Recusa de aplicação de lei considerada inconstitu-cional pelo Executivo. Conseqüências, a esse respeito, daEC 16/65. Ato, no caso, anterior a essa emenda.

2. Efeito, no tempo, da declaração judicial de inconstitu-cionalidade.

3. Iniciativa do Procurador-Geral quanto à representa-ção de inconstitucionalidade.

4. Procurador de autarquia. Efetivação mediante con-curso de títulos (Lei 2.123/53). Sua admissibilidade pelajurisprudência do STF. Subsistência da citada lei, apesar demantido o veto a dispositivo de projeto que dispunha nomesmo sentido.

5. Nenhum aumento de despesa resultante da eventualefetivação de procurador de autarquia, que já se encontravano exercício interino do cargo, cuja supressão nem chegoua ser proposta. Procedência da segurança.

6. Improcedência do pedido relativamente aos cargosde consultor jurídico, que foram suprimidos, porque, a juízoda maioria, havia matéria de fato controvertida quanto aoalegado aumento de despesa.

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Ministro Victor Nunes

7. Considerações da minoria sobre o direito dos seusantigos ocupantes de serem considerados em disponibilida-de, com vencimentos integrais, o que impediria a sua classi-ficação em cargos de menores vencimentos.

8. Questão de ordem (no voto do Relator) sobre aproclamação do resultado, em face da presunção de consti-tucionalidade, favorecendo o Governo em uma das ques-tões, mas não na outra.

VOTO

O Sr. Ministro Victor Nunes (Relator): São apenas três os impetrantesdeste mandado de segurança, mas a sua fundamentação foi deduzida em termosamplos, envolvendo toda a reorganização das quatro autarquias do Ministério daViação mencionadas no relatório.

Como a segurança é garantia de direito individual (CF art. 141, § 24),devemos examinar, de preferência, a situação pessoal dos impetrantes, em facedas leis e da Constituição. Mas, neste caso, há um fundamento geral que trans-cende desses limites e tem perfeita adequação: o de saber se o Executivo podenegar aplicação a uma lei por motivo de inconstitucionalidade, transferindo aosprejudicados o ônus de provocar o veredicto judiciário, ou se deve o Executivocumprir a lei, digamos, sob protesto, promovendo ele próprio a manifestação doJudiciário sobre a sua constitucionalidade.

Os outros dois fundamentos genéricos do pedido (aumento de despesa eefetivação de funcionários interinos) podem ser examinados em função das situa-ções individuais dos impetrantes. Mas o primeiro, por seu caráter prejudicial, temde ser considerado nos termos amplos em que foi proposto.

Sua relevância teórica e prática é indiscutível, e foi ele suscitado, no casoque ora nos ocupa, pelo próprio Consultor-Geral da República, o eminente Dr.Adroaldo Mesquita da Costa. E S. Exa., para concluir em prol da prerrogativapresidencial de negar aplicação às leis que tem por inconstitucionais, retificou oponto de vista contrário que havia desenvolvido em dois outros pareceres (021-H,DO de 22-6-64; 166-H, DO (...) 26-4-65).

Sempre sustentei a opinião agora abonada por S. Exa., mas o tema vem,neste caso, ao Tribunal, sob um novo e importante aspecto, à vista da EC n. 16, de1965, promulgada posteriormente ao seu parecer. Pelo seu art. 2º, o art. 101, I, k,da Constituição passou a ter a redação seguinte: “Ao Supremo Tribunal Federalcompete: I – processar e julgar originariamente:.. k) a representação contrainconstitucionalidade de lei ou ato de natureza normativa, federal ou estadual,encaminhada pelo Procurador-Geral da República”.

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Memória Jurisprudencial

Esse texto, que ampliou o que constava do anteprojeto do Supremo Tribunal(Reforma Judiciária, I.N., 1965), introduziu em nosso direito positivo a inovaçãovaliosíssima da representação de inconstitucionalidade de lei federal em tese, deiniciativa do Procurador-Geral. A medida constante do art. 8º, parágrafo único,que era restrita ao direito estadual e aos princípios fundamentais do art. 7º, VII,da Constituição, foi alargada para abranger quaisquer casos de inconstitucionali-dade de lei ou ato normativo, federal ou estadual.

Argumentam os impetrantes que, tendo sido aberta essa via direta parauma pronta decisão do Supremo Tribunal sobre uma lei que o Executivo tenha porinconstitucional, já não se lhe pode reconhecer a prerrogativa de negar cumpri-mento a essa lei, por autoridade própria, carregando ao prejudicado o incômodo eo dispêndio de suscitar a manifestação do Poder Judiciário.

Os Presidentes norte-americanos muito têm contribuído, com suas iniciativas,para firmar certas interpretações da Constituição, como se ensina nos compêndiosuniversitários. Veja-se, por exemplo, o que dizem Ferguson e McHenry, TheAmerican System of Government, 7ª ed., 1963, p. 65: “Os tribunais e o Congres-so não têm o monopólio do direito de interpretar a Constituição. Há muito tempo,os Presidentes têm insistido em que a Carta Magna deve ser interpretada pelo querealmente traduz o seu texto, e suas opiniões frequentemente têm prevalecido.”

A prática norte-americana, portanto, não é favorável a subordinar o Chefedo Executivo a um prévio pronunciamento do Judiciário em matéria de inconsti-tucionalidade de lei, embora, após a polêmica entre Jefferson e Marshall, tenhaficado consolidada a doutrina de que ao Judiciário cabe a palavra conclusiva ouderradeira.

Nossa jurisprudência também tem sido hostil à tese dos impetrantes, reco-nhecendo ao Executivo a opção entre provocar a manifestação do Judiciário, ounão cumprir a lei que repute inconstitucional, e ao Legislativo, a de anular leisofensivas à Constituição. Vejam-se estes pronunciamentos do Supremo Tribunal,ou de alguns de seus Ministros, quase todos mencionados no parecer do Consultor-Geral e nas informações do governo: Rp 322 (1957), RTJ 3/760; RMS 4.211(1957), RTJ 2/386; RMS 5.860 (1958); MS 7.234 (1960), RDA 59/338; Rp 512(1962), DJ de 26-9-63, p. 910; RE 55.718 (1964), RTJ 32/134; RMS 14.557(1965), RTJ 33/336.

Em contrário se pode argumentar, de um lado, que estes precedentes sãoanteriores à modificação que a EC 16 introduziu no art. 101, I, k, da Constituição, e,de outro lado, que nos Estados Unidos não existe dispositivo equivalente.

Realmente, a ampla representação de inconstitucionalidade, que o nossodireito constitucional agora abriga, põe a questão sob uma nova luz, que me levaa não insistir nos votos proferidos anteriormente. A interpretação advogada pelos

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impetrantes tem uma sólida contextura lógica e contribui, notavelmente, para oaperfeiçoamento jurídico do nosso regime de poderes limitados e divididos, sob avigilância do Judiciário, que é o fiel da Constituição.

Teremos, assim, um mecanismo coordenado e harmônico no que respeita àinconstitucionalidade das leis. O Presidente da República manifestará o seu enten-dimento através do veto e, se este for rejeitado, poderá reiterá-lo através da repre-sentação de inconstitucionalidade, a ser formulada pelo Procurador-Geral, titular desua imediata confiança. O Congresso, por sua vez, dará o seu pronunciamento,primeiro, quando votar o projeto e, depois, quando tiver de apreciar o veto. Final-mente, o Judiciário, guarda do equilíbrio dos poderes, solucionará a controvérsia,pela voz do Supremo Tribunal, ao julgar a representação.

Se é conclusiva, nessa matéria, a decisão do Supremo Tribunal, o lógico éque essa decisão seja provocada antes de se descumprir a lei. Anteriormente àEC 16/65, não podíamos chegar a essa conclusão por via interpretativa, porquenão havia um meio processual singelo e rápido que ensejasse o julgamento préviodo Supremo Tribunal. Mas esse obstáculo está arredado, porque o meio proces-sual foi agora instituído no próprio texto da Constituição.

Essa interpretação, aliás, dá novo vigor à presunção de constitucionalidadedas leis, que já fora reforçada pelo art. 200 da Constituição, que remonta à Cons-tituição de 1934, e pelo qual os Tribunais só podem declarar a inconstitucionalidadepelo voto da maioria absoluta dos seus juízes. Recorde-se ainda que já tínhamosherdado da jurisprudência norte-americana um outro suporte para essa presunção:a regra do other clear ground, que manda evitar a declaração de inconstituciona-lidade, quando a causa puder ser decidida por outros fundamentos.

Com a nova interpretação, baseada na EC 16, a que estou aderindo apósmadura reflexão, resulta que a lei, até ser declarada inconstitucional pelo Judiciário,será obrigatória não só para os particulares, como também para os poderes doEstado, o que confere ao regime de legalidade uma eficácia prática proporciona-da à sua projeção teórica.

Assim já tem votado o eminente Sr. Ministro Vilas Boas (RE 55.718, 26-11-64) e parece que o eminente Ministro Carlos Medeiros Silva votou de igualmodo, recentemente, na 3ª Turma.

O Sr. Ministro Carlos Medeiros: Se V. Exa. permite, darei esclarecimentoa respeito desse voto.

Realmente, como Relator do RMS 13.844, de São Paulo, a questão foisuscitada, e o Tribunal de São Paulo havia reconhecido ao Sr. Governador afaculdade de repudiar cumprimento de certa lei por julgá-la inconstitucional.

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Proferi desde logo o meu voto, na Turma, não aceitando essa tese, mas,dada a relevância da matéria, os eminentes colegas, então presentes, propuseramque a matéria fosse submetida ao Pleno, e não houve, até este momento, oportu-nidade desse pronunciamento. Mas o meu voto já foi exarado e eu peço para lera sua parte principal:

Diz o acórdão de São Paulo, em sua fundamentação:

“Não se discute a inconstitucionalidade da Lei 7.851, de 11-3-1963,mas sim, do ato do Exmo. Sr. Governador do Estado, que negou cumpri-mento ao art. 5º, III, da referida lei.

Ou, como salientou o impetrante, expressamente: ‘O themadecidendum não é a inconstitucionalidade da lei que o Executivo se negaa aplicar, e sim, a inconstitucionalidade dessa atitude negativa. Se oJudiciário entender inconstitucional o ato do Governador, a segurançadeve ser concedida, pois houve violação a direito subjetivo, assegurado emlei, através de ato inconstitucional. Objeto da atuação jurisdicional não é,no caso, a lei que o Executivo entendeu inconstitucional, e sim, o atoconstitucionalmente ilícito que o Governador praticou, deixando de aplicara lei e avocando, para si, função que é da exclusiva competência daAssembléia, após pronunciamento do Judiciário’ (fls. 11/12).

E, sob o prisma acima, pode o Executivo deixar de cumprir a lei, sobalegação de ser a mesma inconstitucional?

A questão não é nova.

Luiz Eulálio de Bueno Vidigal teve oportunidade de escrever: ‘Se oato legislativo não contraria a Constituição, ele não pode ser consideradoilegal, porque revoga qualquer lei anterior que se lhe contraponha. Se, aocontrário, ele é inconstitucional, é nulo e não pode, por si só, ferir direitosparticulares.

Neste último caso, nada impede que a autoridade administrativa,reconhecendo-lhe a inconstitucionalidade, deixe de aplicá-lo’ (Do Mandadode Segurança, p. 124, § 69, ed. 1953).

Francisco Campos (Direito Constitucional, 1/442-443, ed. 1956)mostra que os tribunais só opinam sobre a inconstitucionalidade das leispor ocasião de aplicá-las aos casos concretos; cada Poder, assim, tem acontar consigo mesmo para dirimir as questões relativas à sua competência;recusar, por conseguinte, ao Poder Executivo ou Legislativo a faculdade deinterpretar a Constituição e, em virtude de sua interpretação, tomardecisões, seria instalar nos dois grandes motores da vida política do país

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ou do Estado o princípio da inércia e da irresponsabilidade, paralisando oseu funcionamento por um sistema de frenação e obstrução permanentes(apud, ac. E. Supremo Tribunal Federal, RDA 59/351).

Se o Poder Judiciário não é super-poder, mas se encontra no mesmonível dos demais Poderes, nada impede que o Executivo e o Legislativo, nocampo de sua competência, apreciem a norma legal, deixando de aplicá-laquando a julguem inconstitucional.

Isto porque a lei inconstitucional ‘é absolutamente nula; não sim-plesmente anulável. A eiva de inconstitucionalidade a atinge no berço,fere-a ab initio. Ela não chegou a viver. Nasceu morta. Não teve,pois, nenhum único momento de validade’ (Buzaid, Da Ação Direta deDeclaração de Inconstitucionalidade no Direito Brasileiro, p. 128, §58, ed. 1958).

Perante os Tribunais, a questão tem sido focalizada com certafreqüência, reconhecendo-se o direito do Executivo de deixar de aplicar alei, sob alegação de sua inconstitucionalidade.

Recentemente, a Egrégia Sexta Câmara Civil julgou: ‘Não competeexclusivamente ao Judiciário, embora sujeito ao seu controle final, oexame da constitucionalidade das leis, mas sim a todos os Poderes daRepública’ (RT 323/341).

E o Supremo Tribunal Federal tem confirmado esse entendimento(RDA 42/230; 59/339; RTJ 2/386).

A Folha de São Paulo, de 6-10-1963, noticiou o julgamento daRep. 512, do Estado do Rio Grande do Norte, na qual o E. SupremoTribunal Federal, em V. julgado relatado pelo Ministro Pedro Chaves,decidiu: ‘é legítimo ao Executivo recusar-se a cumprir lei que considereinconstitucional’.”

E, então, o Tribunal de São Paulo aceitou a tese de que o Sr. Governadorpodia deixar de cumprir a lei, por entendê-la inconstitucional.

Eu sempre pensei em contrário. Em 1951, quando tive a honra de exercero cargo de Consultor-Geral da República, portanto Consultor do Exmo. Sr. Presi-dente da República e dos Ministros de Estado, fui consultado sobre o assunto,porque o Presidente da República de então, em fevereiro daquele ano, manifestaraao Sr. Ministro da Justiça o propósito de não cumprir determinadas leis do Governoanterior. S. Exa. não se julgava comprometido com a sanção oposta a estes textospelo seu antecessor.

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Tive, então, oportunidade de emitir parecer, sustentando a tese de que oPresidente da República devia cumprir as leis, ainda que sancionadas pelo Governoanterior, ainda que S. Exa. entendesse que essas leis estavam maculadas da eivade inconstitucionalidade.

Esta tese, tive oportunidade, agora, de repetir, em ligeiro voto proferido naassentada de julgamento da Terceira Turma, que peço licença para reler, pois nãoé longo:

“A doutrina de que o Poder Executivo pode negar cumprimento alei, por julgá-la inconstitucional, não me parece bem fundada, data veniados eminentes jurisconsultos que sustentam aquela faculdade, ou direito,como opinam outros.

Toda lei, posta em vigor mediante sanção ou promulgação, goza dapresunção de constitucionalidade, porque tanto o Legislativo como oExecutivo, quando de sua elaboração, têm oportunidade de se opor ourepudiar os projetos eivados do vício de inconstitucionalidade — se nãoo fizerem, devem observá-la, e o Presidente da República presta ocompromisso, no ato de sua posse, ‘de manter, defender e cumprir aConstituição da República e observar as suas leis’ (art. 83, parágrafoúnico da Constituição).

O Supremo Tribunal Federal tem admitido o repúdio de leisinconstitucionais pelo Legislativo, especialmente na esfera estadual,porque o ato emana do próprio poder que elaborou o texto e tem aprerrogativa de lhe dar vigência pela promulgação, rejeitando o veto doExecutivo.

Ao Judiciário, no nosso sistema constitucional, do tipo norte-americano, é essa a sua mais alta prerrogativa.

Mas ao Executivo, que não pode revogar a lei elaborada peloLegislativo, o que deve fazer, segundo o compromisso constitucional, éobservá-la e expedir decretos e regulamentos para a sua fiel execução.Não pode desvincular-se, por ato unilateral, desse compromissoconstitucional, mesmo que tenha argüido, por ocasião do veto, ainconstitucionalidade do projeto, desde que ele se transformou em lei, asreservas ficam no plano subjetivo, das opiniões pessoais, que não podemarredar o compromisso constitucional de observar as leis.

Negando cumprimento ao texto legal, o que o Executivo faz énegar-lhe vigência, quando ele está em vigor por determinação do órgãoconstitucional competente, mediante sanção ou promulgação — é opor-lhenovo veto fora do tempo e, agora, ao texto legal.

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A doutrina do repúdio à observância da lei pode se tornar subversivada ordem jurídica quando houver sucessão de chefe do Executivo,inconformado com atos de sanção de seu antecessor, por motivos mera-mente políticos e de caráter subjetivo.

O remédio para situações anômalas ou prejudiciais ao interesseestá na promoção do Legislativo, mediante mensagem do Executivo,solicitando a revogação do texto malsinado e demonstrando as razões dorepúdio.

E isto não oferece mais perplexidade ou o risco de delongas ante oprocesso legislativo vigente, de prazos fixos e fatais, tanto para a votaçãode Emendas Constitucionais como de textos de leis ordinárias.

E tanto era insegura a posição do Executivo, que a EmendaConstitucional foi promulgada para remediar situações críticas e tomou on. 16, de 26-11-65. De fato, no art. 2º desse novo diploma constitucional, aodar nova redação ao art. 101, I, h, se incluiu na competência desse EgrégioTribunal o julgamento de representação do Procurador-Geral da Repúblicacontra inconstitucionalidade de lei ou ato de natureza normativafederal ou estadual.

A solução, agora, se afina com o sistema constitucional — aoExecutivo inconformado caberá tomar a iniciativa diretamente junto aoJudiciário, para repudiar as leis inconstitucionais, por intermédio de seurepresentante qualificado.

O que o chefe do Executivo do Estado recorrente deveria ter feito,no meu entender, era provocar representação perante o Supremo TribunalFederal (art. 7, VII, b, da Constituição; Lei n. 4.337, de 1-7-64), comotantas vezes tem ocorrido em casos semelhantes.

Ante o exposto e a relevância da matéria, voto no sentido desubmeter o exame do caso ao Tribunal Pleno”.

Queria fazer um aditamento às judiciosas e brilhantes conside-rações do eminente Relator. S. Exa. invocou autores americanos no sentidode se legitimar a interpretação da Constituição por parte do Executivo.Mas uma coisa é interpretar a Constituição e outra, é declarar a leiinconstitucional. Parece-me que aí há uma gradação. Repudiar a lei, eu,pelo menos, nas minhas leituras de direito constitucional americano, nuncaencontrei uma afirmação positiva em que o Governo pudesse repudiaruma lei por inconstitucional.

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Parece-me, data venia, que a invocação é um tanto genérica e im-precisa. No poder de interpretar a Constituição, não se deve entender, ne-cessariamente ou implicitamente, o de repudiar lei por inconstitucionalidade.

É o esclarecimento que desejava dar.”

O Sr. Ministro Victor Nunes (Relator): Agradeço muito o esclarecimentodo eminente Ministro Carlos Medeiros. S. Exa. já sustentou esse ponto de vistacom brilho e proficiência na 3ª Turma. Apenas, tendo em vista uma observaçãolateral de S. Exa., quero explicar que a citação que fiz do direito americano foipara mostrar que não se encontra nos autores americanos, como doutrina assen-te, senão como opiniões isoladas, que o Presidente deva previamente exigir opronunciamento do Judiciário, antes de negar aplicação à lei que considereinconstitucional.

O Sr. Ministro Carlos Medeiros: Então, não compreendi bem a observaçãode V. Exa.

O Sr. Ministro Victor Nunes (Relator): O sentido era esse, e o entendimentogeral é que aos três Poderes cabe interpretar a Constituição. É claro que a pala-vra final compete ao Judiciário, mas o Presidente, para agir, não depende doprévio pronunciamento do Judiciário.

O Sr. Ministro Carlos Medeiros: Há alguns trechos constitucionais que sãoauto-executáveis.

O Sr. Ministro Victor Nunes (Relator): Por outro lado, no direito americanonão existe texto equivalente ao da redação que a Emenda Constitucional 16 deu ànossa Constituição. É, pois, o caso de dizermos, dentro da lógica do meu raciocínio:legem habemus.

Prossigo na leitura do meu voto, Sr. Presidente.

Sob outro aspecto, a interpretação a que estou aderindo não é obstada peloprincípio da retroatividade da declaração de inconstitucionalidade. Em primeirolugar, esse princípio já tem suscitado dúvidas e abrandamentos na própria doutri-na norte-americana que, nesta matéria, nos serve de inspiração. Em segundo, háconstituições que só dão eficácia ex nunc, e não retroativa, à declaração deinconstitucionalidade. Haja vista a da Itália (art. 136) e a da Áustria (art. 140, n. 3).Esta última chega a permitir que a Alta Corte Constitucional prolongue, por prazode até seis meses, a eficácia da lei declarada inconstitucional (texto em Mirkine-Guétzévitch, Les Constitutions Européennes, 2/526, 1/310; v. também ClevelandMaciel, A Obrigatoriedade da Lei e a Ordem Jurídica, 1961, fls. 19-20).

O Supremo Tribunal já tem afirmado a regra da retroatividade (cf. RMS14.691, 20-5-65), mas isso não é obstáculo, como dizíamos, à interpretação ora

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preconizada, porque a execução da lei, até o momento da declaração judicial desua inconstitucionalidade, seria condicional, restabelecendo-se depois o statusquo ante.

Uma objeção poderia ser levantada, sob outro ângulo, no que respeita àposição dos Governadores dos Estados, porque a representação de inconstitucio-nalidade é privativa do Procurador-Geral da República, que não é titular da suaconfiança. Mas essa questão não oferece dificuldade maior, porque a praxe inva-riável dos Procuradores-Gerais, a propósito do art. 8º, parágrafo único, da Cons-tituição, tem sido trazer ao julgamento do Tribunal, ainda que com parecer contrá-rio, todas as representações de inconstitucionalidade apresentadas pelos Gover-nadores. Nenhuma razão haveria para que mudassem de critério no que respeitaà EC 16. Teríamos, assim, um rápido pronunciamento do Supremo Tribunal, tantonas questões suscitadas pelo Presidente da República, como nas de iniciativa dosGovernadores.

Pelas razões expostas, acolho o primeiro fundamento da inicial, para deferira segurança. Se a maioria entender de outro modo, prosseguirei no exame dosdemais fundamentos.

MANDADO DE SEGURANÇA 16.512 — DF

Resolução do Senado Federal suspensiva de execuçãode norma legal, cuja inconstitucionalidade foi declarada peloSupremo Tribunal Federal. Inconstitucionalidade de segundaresolução daquele órgão legislatório para interpretar a deci-são judicial, modificando-lhe o sentido ou lhe restringindo osefeitos. Pedido de segurança conhecido como representação,que se julga procedente.

VOTO

O Sr. Ministro Victor Nunes: A questão que ora se discute é muito impor-tante. O debate se alongou, abrangendo vários aspectos constitucionais e, comodizia há pouco o Sr. Ministro Oswaldo Trigueiro, é muito difícil responder com“sim” ou “não”.

Em primeiro lugar, Sr. Presidente, apóio, em parte, as considerações do Sr.Ministro Aliomar Baleeiro, porque o Senado não é um autômato na aplicação doart. 64 da Constituição.

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O Sr. Ministro Pedro Chaves: Sr. Ministro, no meu voto cheguei a dizerque o Senado não era um mero registrador de decisões do Supremo TribunalFederal. Ninguém atribuiu ao Senado Federal a função secundária e deprimentede dizer amém para aquilo que o Supremo Tribunal diz.

V. Exa. sustentou a opinião do eminente Sr. Ministro Aliomar Baleeiro,ponto de vista contra o qual nada tenho a impugnar, mas quero salientar que nãofiz essa injúria de dizer que o Senado não é nada, que o Senado é um batedor decarimbos de borracha das decisões deste Tribunal.

O Sr. Ministro Victor Nunes: Eu apenas dizia que entendo como o Sr.Ministro Baleeiro, que o Senado não é um autômato na aplicação do art. 64. OSenado pode, a meu ver, julgar da oportunidade de suspender ou não a execuçãode lei que tenhamos declarado inconstitucional. E há de levar em conta, em taiscircunstâncias, a possível oscilação da jurisprudência do Tribunal, como foiobservado.

Não me refiro, nesse passo, à cláusula constitucional que permite ao Senadosuspender no todo ou em parte a lei declarada inconstitucional, porque meparece evidente, como disse o Sr. Ministro Adalicio Nogueira, que essa referênciada Constituição está vinculada à extensão do julgado do Supremo Tribunal.

O Senado não pode, por iniciativa própria, suspender a vigência de uma leiqualquer. Ele só pode suspender uma lei no pressuposto de haver o SupremoTribunal decidido contra a sua validade. Está, pois, na contingência de observaros limites do que o Tribunal decidiu, porque o Senado não pode alterar a nossadecisão. Se o Senado, ao suspender a vigência de uma lei, pudesse acolherapenas parte do que decidimos e desprezar o restante, o resultado, em tese,poderia ser contraproducente, especialmente quando as diversas partes do julgadofossem indissociáveis.

O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: Por exceção, a Constituição brasileiraconcede esse direito.

O Sr. Ministro Victor Nunes: A Constituição não deu ao Senado, no art 64,o poder de vetar parcialmente as decisões do Supremo Tribunal. Por isso, elesuspenderá no todo ou em parte a lei, consoante o Tribunal houver declarado a leiinconstitucional no todo ou em parte.

Mas o Senado terá o seu próprio critério de conveniência e oportunidadepara praticar o ato de suspensão. Se uma questão foi aqui decidida por maioriaescassa e novos Ministros são nomeados, como há pouco aconteceu, é de todorazoável que o Senado aguarde novo pronunciamento antes de suspender a lei.Mesmo porque não há sanção específica nem prazo certo para o Senado semanifestar.

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Vem, agora, o problema da natureza do ato que o Senado pratica quandosuspende a execução de uma lei, em obediência à decisão do Supremo Tribunal.Esse ato, por um lado, é evidentemente executório ou secundário ou complemen-tar, como disse o Sr. Ministro Pedro Chaves, porque ele não poderia ser praticadose não preexistisse a decisão do Supremo Tribunal. Sendo um ato vinculado àdecisão, é secundário, complementar ou executório em relação a ela.

Por outro lado, esse ato não deixa de ser normativo. Se a lei é normativa eo Senado, ao suspendê-la, retira a eficácia da lei, ele acrescenta alguma coisa àdecisão, e esse acréscimo tem força tão normativa quanto a da lei que é postafora de circulação. Se essa eficácia normativa, que suspende a lei, não derivasseda resolução do Senado Federal, mas do julgado do Supremo Tribunal, a interven-ção do Senado seria desnecessária: a decisão seria executada, desde logo, comefeito normativo. Mas não é esse o nosso sistema. Daí a necessidade de seacrescentar um plus à decisão judiciária, tornando-a obrigatória erga omnes, porser ela, por natureza, obrigatória somente para as partes.

O Sr. Ministro Pedro Chaves: Funciona como extensão, como esclareceuo eminente Ministro Prado Kelly, porque a decisão judicial é proferida no caso e,pela complementação do Senado Federal, fica extensível a todos, fica suspensa aexecução.

O Sr. Ministro Victor Nunes: Perfeitamente, mas eu diria que é um poucomais que extensão, porque depois que o Senado aprova resolução suspendendo alei, os tribunais não mais a podem aplicar. Para todos os efeitos, a lei, em tal caso,se considera revogada.

Não importa que a lei tenha emanado de outro Poder (decreto-lei) ou dasduas Câmaras, com a colaboração do Presidente. A Constituição é que regulacomo se fazem as leis e como se revogam. Se a Constituição previu, na hipóteseque estamos discutindo, um modo especial de revogação de lei, não podemosnegar-lhe obediência, a Constituição há de prevalecer.

Por tudo isso, parece-me que o ato suspensivo do Senado é de naturezanormativa, porque tem o efeito de revogar a lei. Por ser normativo, com esse efeitorevocatório da lei, parece-me de todo evidente que o Senado não pode voltar atrás,pois a lei revogada só se restaura por outra lei. O Senado só poderia restaurar a leique ele, ao suspender, revogou, se tivesse poder legislativo autônomo, se tivesse opoder de fazer a lei originária. Mas esse poder ele não tem, sequer quanto às leisfederais, muito menos quanto às estaduais, como é o caso dos autos.

Acolho, portanto, a representação.

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RECURSO EM MANDADO DE SEGURANÇA 16.912 — SP

Relator: O Sr. Ministro Djaci Falcão

Recorrente: Nardy Ferreira — Recorrido: Estado de São Paulo

O parágrafo único do art. 126 da Lei estadual n. 8.101, de16-4-1964, estabelecendo critério de provimento de serventiavitalícia em benefício exclusivo de certo serventuário da Jus-tiça, afeta o direito de outros serventuários que guardamidentidade de situação.

Regra legal que personaliza afronta ao princípio editadono § 1º do art. 141 da Constituição Federal de 1946.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do SupremoTribunal Federal, em Sessão Plenária, na conformidade da ata do julgamento edas notas taquigráficas, por maioria de votos, dar provimento em parte, parajulgar inconstitucional o parágrafo único do art. 126 da Lei paulista 8.101, de 16de abril de 1964.

Brasília, 31 de agosto de 1967 — Luiz Gallotti, Presidente — Djaci Falcão,Relator.

RELATÓRIO

O Sr. Ministro Djaci Falcão: Em mandado de segurança impetrado porNardy Ferreira contra ato administrativo do Exmo. Sr. Governador do Estado deSão Paulo, assim decidiu o egrégio Tribunal de Justiça:

“Acordam, em Quinta Câmara Civil do Tribunal de Justiça, pelovoto de desempate do Sr. Desembargador Presidente da Sessão, rejeitar aargüição de inconstitucionalidade do art. 126 e seu parágrafo único da Lein. 8.101, de 16 de abril de 1964, e denegar a segurança, no mérito, contraos votos dos Desembargadores Relator e Pereira Lima; e, por votaçãounânime, declarar irrelevante preliminar suscitada pelo impetrado.

l. Havendo a Lei n. 8.101, em seu art. 126, criado, como serventiaautônoma, o Cartório do Registro de Imóveis e Anexos na comarca deSuzano, e determinado, em seu parágrafo único, a prioridade absoluta deopção ao atual Oficial do Registro Civil das Pessoas Naturais do distrito dasede, para compensá-lo da perda do anexo de tabelionato, impetrou NardyFerreira esta segurança, contra ato do Sr. Governador do Estado, que,

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apesar de ter vetado o dispositivo em exame “por conter providências decaráter estritamente privado”, não vacilou em prover na aludida serventiao beneficiário, José Maria de Souza Coutinho.

A impetração deste writ se baseia na inconstitucionalidade do art.126 e de seu parágrafo único, cujo reconhecimento resultará na ineficáciado ato de provimento.

Para o impetrante, a opção está viciada por uma falsa causa, pois acompensação representa um bis in idem, visto que o beneficiado já haviarecebido compensação, consistente, nos termos do art. 23, parágrafoúnico, da própria Lei n. 5.285, de 1959, que criou a comarca de Suzano,com a atribuição dos anexos de distribuidor, contador e partidor, e nãooptara, naquela emergência, para ofícios de notas da mesma classe deoutras comarcas. A opção conferida pelo art. 126 e seu parágrafo violou,frontalmente, o princípio da igualdade de todos perante a lei, criando a leiuma serventia com dono certo.

2. Não obstante o veto, não titubeou o ilustre Chefe do Executivoestadual em prover o Oficial do Registro das Pessoas Naturais na novaserventia, pois não considerou a opção inconstitucional, mas somenteimoral. Argumenta-se, primeiramente, que a lei é concebida como umaregra geral, não devendo um indivíduo apenas, ou um grupo de pessoas.Mas, como assinala Giorgio Del Vecchio, essa característica não éabsoluta ou essencial, pois casos há em que a lei possa cogitar de umacerta relação individual.

Daí, e com toda razão, haver declarado o ilustre impetrado quenenhuma inconstitucionalidade se poderia vislumbrar na espécie dos autos,devendo-se enxergar, quando muito, um caso de imoralidade.

3. Por outro lado, não parece reger o princípio da isonomia oprovimento das serventias, a não ser quando se impeça, por motivospessoais e inaceitáveis, concorra a ele determinada pessoa. Tem-seobservado como regra, nos primeiros provimentos de serventias, a livreescolha feita pelo Executivo e, no caso, essa prerrogativa foi exercida peloLegislativo, com a disfarçada anuência do Executivo.

4. Acresce que sequer, a pretexto de se dar ao beneficiado umacompensação, pode constituir injustiça, por ter havido anterior compensa-ção, em parte não aproveitada pelo beneficiado. Isto mesmo reconheceu odouto Advogado Chefe da Consultoria Jurídica da Secretaria da Justiça,em parecer que consta dos autos.

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Como observa o interveniente, por seu douto patrono, o impetrado,não obstante o veto, sem base em inconstitucionalidade, nomeou o indicado,apesar de seu então ilustre Secretário da Justiça, Prof. Miguel Reale, líderindiscutível da corrente que sustenta caber ao Poder Executivo negarcumprimento à lei sempre que considerá-la inconstitucional. É que odispositivo impugnado procurou corrigir injustiça feita por lei anterior,hipótese em que não pode assumir caráter de generalidade, “porque nela secontém, como substância, corrigir o erro “em relação a determinado oudeterminados serventuários” (fl. 71).

5. A prova de que não se vem observando o regime cartorárioestabelecido pela Lei n. 5.285, de 1958, se encontra na mensagemencaminhada pelo Presidente do Poder Judiciário à AssembléiaLegislativa, propondo a alteração da Lei n. 8.101, a fim de se restabeleceresse regime, sem que, entretanto, houvesse sugerido mesmo amodificação ou revogação do art. 126 e de seu parágrafo único. Comoficou anotado, essa mensagem indicou razões de conveniência, e não delegalidade.

6. A divisão e a organização judiciárias sofreram alterações porproposta do Tribunal de Justiça, e o Legislativo lhe apresentou algumasemendas, que vingaram. Entre elas, a da criação da serventia a que aludeo art. 126 da Lei n. 8.101. Não houve, conseqüentemente, qualquerviolação da regra do art. 124, inciso I, da Constituição Federal.

7. Há que notar ainda que o impetrante, por meio de mandado desegurança, já se beneficiou com o seu provimento no Primeiro Ofício deNotas e Anexos daquela comarca.

8. O dispositivo em foco poderá ser havido como imoral, mas nãoapresenta o vício de inconstitucionalidade, que lhe querem atribuir. Não seinvalidando por esse defeito, subsiste a nomeação feita pelo Executivo,pelo que também fica denegada a segurança.

São Paulo, 9 de outubro de 1964.” (Fls. 118-120).

O Exmo. Sr. Desembargador Batalha de Camargo, acolhendo em parte aargumentação do impetrante, reconheceu a inconstitucionalidade do parágrafoúnico do art. 126 da Lei n. 8.101, de 16-4-1964, por afrontar o art. 141, § 1º, daConstituição Federal de 1946, e o art. 93, letra g, da Constituição estadual. Tam-bém ficou vencido o Exmo. Sr. Desembargador Pereira Lima, que entendeupositivado o vício da inconstitucionalidade do art. 126 e do seu parágrafo único(fls. 121-132, e 135 usque 141).

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Pelo requerente do writ, foi manifestado, em tempo útil, recurso ordináriocom base no art. 101, inciso II, letra a, da Constituição Federal de 1946 (fls. 142-157). Após o oferecimento das contra-razões do interveniente (fls. 174-179), subi-ram os autos a esta instância, onde oficiou a douta Procuradoria-Geral da Repú-blica pelo provimento do recurso (fls. 187-188).

VOTO

O Sr. Ministro Djaci Falcão (Relator): O impetrante do mandado de segu-rança é titular do Cartório do Primeiro Ofício de Notas e Anexos (inclusive oRegistro de Imóveis) da comarca de Suzano. Desmembrando a serventia, assimdispôs a Lei estadual n. 8.101, de 16-4-1964, no seu art. 126:

“Fica criado, como serventia autônoma, o Cartório do Registro deImóveis e Anexos na Comarca de Suzano.”

E, no parágrafo único, estatuiu:

“Ao atual Oficial do Registro Civil das Pessoas Naturais do distritoda sede da referida Comarca, fica assegurada prioridade absoluta deopção para esse cartório, como compensação pela perda do anexo detabelionato decorrente da criação da Comarca, devendo requerer no prazode 30 (trinta) dias, a contar da vigência desta lei, ao Secretário da Justiça eNegócios do Interior”.

Na serventia criada foi provido José Maria de Souza Coutinho, oficial doRegistro Civil das Pessoas Naturais da sede da Comarca de Suzano, nos termosdo citado parágrafo único. Daí resultou o presente mandado de segurança,impetrado por Nardy Ferreira, titular do cartório do 1º Ofício de Notas e Anexos(inclusive o Registro de Imóveis, então desmembrado), que objetiva o reconheci-mento da inconstitucionalidade do art. 126, e seu parágrafo único, da Lei n. 8.101,por ofensivos ao art. 141, § 1º, da Constituição Federal de 1946, e do art. 93, letrag, da Constituição estadual; e seja tornado sem efeito o ato do provimento deJosé Maria de Souza Coutinho.

Não padece dúvida de que a vitaliciedade dos titulares de ofício de justiça(art. 187 da Constituição de 1946) não constitui óbice à divisão dos ofícios. Porisso, não vejo como acoimar de inconstitucional o art. 126, caput, da Lei n. 8.101.Porém, no que tange à disposição inserida no seu parágrafo único, a mim seafigura ilegítima ante o princípio consubstanciado no § 1º do art. 141 da CartaPolítica de 1946. Ao conferir a chamada “prioridade absoluta” de opção ao “atualOficial do Registro Civil das Pessoas Naturais”, para efeito do provimento danova serventia, desanexada do Cartório do Primeiro Ofício de Notas e Anexos,de que é titular o impetrante da segurança, e não o beneficiário, titular que é doRegistro Civil das Pessoas Naturais, o legislador editou norma de caráter pessoal,

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ao arrepio, pois, do princípio da igualdade de todos perante a lei. Vê-se que aregra não guarda o caráter da generalidade, eis que personaliza. Estabelecendoum critério de provimento em benefício exclusivo de um serventuário da Justiça,afetou o direito dos demais serventuários do Estado que se encontrem nas mes-mas condições de disputar o preenchimento do cargo criado.

Segundo está expresso no dispositivo questionado, tem por finalidade com-pensar o oficial do Registro Civil das Pessoas Naturais, da sede da Comarca deSuzano, pela perda do anexo de tabelionato decorrente da criação da Comarca.Ocorre, no entanto, que essa perda se operou em face da Lei n. 5.285, de 18-2-1959, criadora de várias comarcas, dentre elas a de Suzano. Ademais, o parágrafoúnico do art. 23 desta lei atribuiu ao titular do Cartório do Registro Civil dasPessoas Naturais, desfalcado do anexo de tabelionato, os anexos de distribuidor,contador, partidor e depositário, consoante reconhece o próprio interveniente,apesar de sustentar incorrer aí uma compensação (fl. 44).

É inadmissível a compensação ditada pela Lei n. 8.101, de 16-4-1964, cincoanos após a perda do anexo de tabelionato através da Lei n. 5.285, de 18-2-1959,que já havia estabelecido a verdadeira compensação. Há, desse modo, uma falsacausa na nova compensação.

A restrição do parágrafo único do art. 126 da Lei n. 8.101, ao critérionormal de provimento das serventias de justiça, previsto na Lei estadual n. 819,de 1950, teve em mira beneficiar determinada pessoa em detrimento de outras,afetando, assim, o princípio da isonomia, cogente também para quem legisla.

Destarte, o ato de nomeação do interveniente assentou em regra inconsti-tucional, afetando direito subjetivo do impetrante, bem como de outros ser-ventuários que podem disputar a nomeação para o cargo. Assim, dou provimentoao recurso para, concedendo, em parte, o mandado de segurança, reconhecer anulidade do ato de nomeação de José Maria de Souza Coutinho para a serventiado Registro de Imóveis e Anexos da Comarca de Suzano.

VOTO

O Sr. Ministro Adaucto Cardoso: De acordo com o eminente Relator, dandoênfase ao fato de que a inconstitucionalidade, para mim, decorre da violação doprincípio constitucional que atribui ao Chefe do Executivo a competência exclusivapara prover os cargos públicos.

VOTO

O Sr. Ministro Eloy da Rocha: Sr. Presidente, dou provimento ao recurso,na totalidade.

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Ministro Victor Nunes

Estou com o eminente Relator em que a lei pode determinar o desmembra-mento de serventias, no interesse do serviço. Mas não poderia fazê-lo sem queficasse assegurado, concomitantemente, ao serventuário, que é vitalício, o seudireito pela opção por uma das serventias resultantes da nova organização.

Ora, o que estabeleceu a lei? Retirou do serventuário uma parcela doofício de justiça e a atribuiu a outro. Não vale a lei, tanto na parte em que deuopção a outrem, como na em que não resguardou o direito do titular do Cartório.

Para restaurar o direito do impetrante, a solução única, no caso, será decla-rar a inconstitucionalidade total do dispositivo. É claro que nova lei ainda poderádividir o Cartório, dispondo, por forma adequada, sobre o direito do serventuário.Mas o art. 126 e seu parágrafo da Lei 8.101, com o vício apontado, não podemprevalecer.

O Sr. Ministro Candido Motta Filho: V. Exa. pode me prestar um esclare-cimento? É sobre a legitimidade do mandado de segurança. O que não vejo é odireito líquido e certo de quem pede a segurança.

O Sr. Ministro Eloy da Rocha: Afirmou-se que o impetrante não teria legí-timo interesse. O seu direito, líquido e certo, violado, decorre...

O Sr. Ministro Candido Motta Filho: Qual é?

O Sr. Ministro Eloy da Rocha: ... da condição de titular, vitalício, do Cartórioque sofreu o desmembramento.

O Sr. Ministro Candido Motta Filho: Poderia haver uma expectativa dedireito, mas não um direito líquido e certo.

O Sr. Ministro Eloy da Rocha: Não me parece que haja pura expectativade direito. Se era possível ou necessário desmembrar o ofício de justiça, não sepodia situar o serventuário, compulsoriamente, numa determinada parcela,resultante da divisão. Não se poderia tirar ao serventuário vitalício uma partedo Cartório, sem lhe assegurar, por qualquer forma, o direito. O dispositivo legalferiu o direito do impetrante, porque, longe de lhe conferir a opção, a instituiu emfavor de outro.

O Sr. Ministro Victor Nunes: Já existe, no direito estadual, uma normalegal, genérica, facultando a opção em caso de desmembramento?

O Sr. Ministro Eloy da Rocha: O impetrante era vitalício, o que significaque não podia perder, a não ser em virtude de sentença judiciária, a posição detitular do ofício de justiça. Lícito, em benefício do serviço, o desdobramento, erapreciso que ele tivesse o direito de optar por uma das serventias. A nada se há dereduzir a garantia, se se puder desmembrar a serventia sem atenção a direito deseu titular. A opção é, no caso, modalidade de realização desse direito. A lei é de 16-4-1965, ao tempo em que se achava restabelecida a garantia constitucional, quefora suspensa por seis meses, pelo Ato Institucional de 9-4-1964.

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Memória Jurisprudencial

O Sr. Ministro Victor Nunes: Minha pergunta não era bem nesse sentido.Eu procurava compreender o alcance do voto do eminente Relator, porque se jáexiste norma no direito estadual garantindo a opção em casos como este, abolidoo parágrafo, funcionaria a regra da opção.

O Sr. Ministro Eloy da Rocha: O eminente Relator, ao dar provimento, emparte, ao recurso, declarou inconstitucional somente o parágrafo, e não o caput,que, pelo desmembramento, criou o Cartório.

O Sr. Ministro Victor Nunes: Mas supondo que haja, no direito estadual,uma regra genérica de opção para tais casos, uma vez abolido o parágrafo, ob-servar-se-ia essa regra da opção em favor do impetrante.

O Sr. Ministro Eloy da Rocha: Entendi, do voto do eminente Relator, que S.Exa. admite que se há de prover o novo cargo pela forma comum, seja concurso,seja outra forma, mas não pela investidura do antigo titular.

O Sr. Ministro Victor Nunes: Mas suponhamos que haja uma norma geralde opção (problema a ser esclarecido). Se já existe essa regra, por que o desmembra-mento da serventia seria inconstitucional?

O Sr. Ministro Eloy da Rocha: Não julgo inconstitucional o desmembra-mento da serventia, só por si.

O Sr. Ministro Victor Nunes: Sim, V. Exa. julga inconstitucional o caput eo parágrafo, portanto, anula o desmembramento da serventia. Mas já existe — éminha pergunta — uma regra geral de opção no direito estadual?

O Sr. Ministro Eloy da Rocha: Esse ponto, da existência no direito estadualde regra geral sobre opção, em tal hipótese, não foi esclarecido.

O Sr. Ministro Victor Nunes: Talvez o ilustre advogado pudesse esclarecer.

O Sr. Theotonio Negrão (Advogado do recorrente): Realmente, não existeum texto geral sobre opção: existe uma sistemática, uma tradição apoiada porquatro leis diferentes, mas essas leis são qüinqüenais. Não existe texto geral.

O Sr. Ministro Djaci Falcão (Relator): Não há menção deste princípio.

O Sr. Rubens Catelli (Advogado do recorrido): Pediria licença para lem-brar que já a Lei 5.285 dava opção preferencial ao recorrente para valer-se dodireito de ficar serventuário.

O Sr. Ministro Eloy da Rocha: O ilustre advogado do recorrente informasobre regra especial, contida em outras leis. No Rio Grande do Sul, procede-se,de ordinário, por esta forma: normas especiais, cada vez que se desmembramserventias, asseguram aos titulares a opção. Mas asseguram por quê?

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O Sr. Ministro Victor Nunes: Entendi. Não há um princípio genérico, masregra específica em cada desmembramento.

O Sr. Ministro Eloy da Rocha: Mas o fazem por quê? Na ausência deregra geral, impõe-se regra especial sobre a opção, para respeitar o direito doantigo titular.

Influenciado, naturalmente, por essa observação, julgo que não se podemanter o caput do art. 126, que é contrário ao sistema constitucional, por nãoassegurado, por forma adequada, o direito do titular do primitivo ofício de justiça.

VOTO

O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: Sr. Presidente, quero declarar apenas ainconstitucionalidade do parágrafo único do art. 126 da Lei 8.101 pelos funda-mentos do eminente Relator.

PEDIDO DE VISTA

O Sr. Ministro Prado Kelly: Sr. Presidente, peço vista dos autos.

DECISÃO

RMS 16.912 — SP. Matéria Constitucional. Relator, o Sr. Ministro DjaciFalcão. Recorrente: Nardy Ferreira (Advogado: Theotonio Negrão). Recorrido:Estado de São Paulo (Advogado: Rubens Catelli). Pediu vista o Ministro PradoKelly após os votos dos Ministros Relator, Adaucto Cardoso e Aliomar Baleeiro,dando provimento em parte ao recurso, e do Ministro Eloy da Rocha, dandoprovimento in totum. Impedido, o Ministro Raphael de Barros Monteiro.

Presidência do Ministro Luiz Gallotti. Licenciados, os Ministros HahnemannGuimarães e Oswaldo Trigueiro.

Tribunal Pleno, 23 de agosto de 1967 — Dr. Álvaro Ferreira dos Santos,Vice-Diretor Geral.

VOTO

O Sr. Ministro Prado Kelly: Documentam os autos que, ao tramitar o Pro-jeto de Lei n. 2/62, sobre organização judiciária, se encartou no substitutivo daComissão permanente o art. 143, com o teor seguinte:

“Fica criado, como serventia autônoma, o Cartório do Registro deImóveis e Anexos, na comarca de Suzano.

Parágrafo único. Ao atual Oficial do Registro Civil das PessoasNaturais do distrito da sede da referida comarca fica assegurada prioridade

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absoluta de opção para esse cartório, como compensação pela perda doanexo de tabelionato decorrente da criação da comarca, devendo requererno prazo de 30 (trinta) dias, a contar da vigência desta Lei, ao Secretário daJustiça e Negócios do Interior”. (Fl. 2)

Formalmente, a Assembléia podia, à época, exercitar a faculdade deemenda, em razão de pertinência do respectivo texto ao objeto da proposiçãooriginária. Assim decidimos em outros processos e não vem a pêlo insistir notema.

Também sob o aspecto formal, é incontestável que lei especial ou decretolegislativo podem reger situações individuais ou particulares, dependentes de pro-nunciamento da legislatura. Em tal caso se equiparam, materialmente, a atosadministrativos ou jurisdicionais.

Mas, para que subsista nexo entre o projeto e a emenda, é de rigor que aúltima corresponda, como o primeiro, aos fins de interesse público pressupostosna iniciativa, ou seja, na hipótese, o exclusivo interesse do servidor judiciário.

Desse ângulo, o recorrente invocou violação à “igualdade jurídica”, porse lhe retirar o direito de opção que as leis estaduais têm reconhecido aoserventuário prejudicado com o desmembramento de sua serventia (cf. fl. 9).E, a propósito, confirma a argüição o voto vencido do ilustre DesembargadorArlindo Pereira Lima:

“(...) uma vez instituída a carreira do Serventuário da Justiça,através da Lei n. 819, de 31 de outubro de 1950, jamais poderia o legisladorordinário estabelecer ‘um regime diverso e de exceção’, como bemadverte a inicial, tanto mais que ‘retirou do impetrante o direito de opçãoque todas as leis reconhecem ao serventuário que sofre desmembramentode sua serventia’ (cf. item 4 a fls. 7 e também a fls. 9).” (Fls. 136-137)

Devo acrescentar que, no princípio da igualdade “perante a lei”, está ínsitooutro princípio — o da “legalidade”, tanto vale dizer, o da “supremacia da lei”,freio e contenção da potestade governativa, qual o exprimiram o § 2º do art. 141da Constituição de 1946 e o § 2º do art. 150 do atual Estatuto. DemonstrouDuguit que “a generalidade é a razão mesma da lei”, tanto por seu fundamentoracional quanto por seu fundamento histórico. Do prisma do primeiro, porquetal caráter é “a conseqüência lógica da idéia que se forma universalmente da lei”,por via da qual se exprime a “regra de direito”, disciplina social fundada nainterdependência dos homens. Do prisma do segundo, porquanto só com aquelecaráter se constituiu historicamente a função legislativa, a última das funçõesjurídicas do Estado, e só por aquele meio significou a lei escrita a proteção maiseficaz do indivíduo contra o arbítrio do poder político.

A argumentação do decano bordelense tem em seu prol um velho escólio deRousseau: “O que ordena o próprio soberano em matéria particular não é lei, e sim

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decreto, não é ato de soberania, e sim ato de magistratura”. Tem ainda em seuabono a definição, em sentido material, inserta na Constituição francesa de 1793:“A lei só pode ordenar o que é justo e útil à sociedade; só pode vedar o que lhe énocivo”. Conta, por último, com a chancela de Esmein (Droit Constitutionnel, 7.ed., vol. I, p. 22 e vol. II, p. 399), de Planiol (Droit Civil, vol. I, § 136), de Hauriou(Droit Administratif, 10. ed., pp. 56 e ss.). E sobreexcele os pontos de vista, menosconvincentes, de Jellinek, Laban e Carré de Malberg.

Tenho por demonstrado que a emenda não obedeceu ao presumido escopodo interesse público, e sim a uma inspiração que nem por ser equânime oureparadora (como pareceu ao interveniente) deixa de ser particularista ou defavorecimento pessoal.

Tanto o admite o eminente Relator, que fulminou de inconstitucional o pa-rágrafo único da Lei n. 8.101, de 1964. Mas este parágrafo jamais existiria sem ocaput do artigo. Nem o artigo teria razão de ser se lhe faltasse o parágrafo. Ume outro são siameses, indissoluvelmente ligados entre si tanto pelo que afirmam —o benefício especial concedido —, quanto pelo que negam — a conveniênciageral do serviço, inconfundível com privilégio ou vantagem individuais.

Concessa venia, acompanho o voto do eminente Ministro Eloy José daRocha.

VOTO

O Sr. Ministro Adalicio Nogueira: Sr. Presidente, também eu, data veniados eminentes Ministros que já votaram anteriormente, estou de acordo com opronunciamento do eminente Ministro Eloy da Rocha, agora prestigiado pelo votodo eminente Ministro Prado Kelly.

Entendo que, realmente, não é possível destacar o parágrafo do caput doartigo. O artigo, na sua expressão inicial, foi, justamente, elaborado com o objetivode servir, também, ao parágrafo. Não se pode, em verdade, dissociar um dooutro. Ambos se interpenetram. O artigo foi feito para que o parágrafo servissede objetivo à sua finalidade.

De maneira que estou com os que pensam que o dispositivo é inconstitu-cional. Mas o é no seu todo. Em realidade, a lei tem caráter privatístico, temdestinação particular, visa ao interesse exclusivo do seu beneficiário. Além domais, a nomeação em apreço, que devia decorrer de um ato do Poder Público,isto é, do Poder Executivo, foi feita pelo próprio Poder Legislativo, marcando,assim, a intenção inequívoca de servir ao interesse do funcionário que foi por elabeneficiado.

Assim sendo, dou provimento, in totum, ao recurso, nos termos dos votosdos eminentes Ministros Eloy da Rocha e Prado Kelly.

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Memória Jurisprudencial

VOTO

O Sr. Ministro Victor Nunes: Sr. Presidente, não fixei bem a hipótese. Ocaput do artigo desmembrou o cartório, e o parágrafo mandou aproveitar deter-minado servidor?

O Sr. Ministro Prado Kelly: Tratava-se da reforma judiciária, e a emendarepresentou um desvio de poder da própria legislatura, vindo afinal a ter a seguinteredação — no art. 126 da Lei 8.101:

“Fica criado, como serventia autônoma, o Cartório do Registro deImóveis e Anexos, na comarca de Suzano.

Parágrafo único. Ao atual Oficial do Registro Civil das PessoasNaturais do distrito da sede da referida comarca fica asseguradaprioridade absoluta de opção para esse cartório, como compensação pelaperda do anexo de tabelionato decorrente da criação da comarca, devendorequerer no prazo de 30 (trinta) dias, a contar da vigência desta Lei, aoSecretário da Justiça e Negócios do Interior”. (Fl. 2)

Sr. Ministro Relator, permiti-me prestar o esclarecimento, porque os autosestavam em meu poder.

O Sr. Ministro Victor Nunes: Agradeço os esclarecimentos. Peço vênia a V.Exa. para acompanhar o voto do eminente Relator, que anulou apenas o parágrafo.

Ouvi, com a maior atenção e agrado, a doutrina sustentada, seja pelo emi-nente Relator, seja pelo ilustre Ministro Prado Kelly, que lhe deu mais desenvolvi-mento, no sentido de que podemos exercer controle sobre os desvios de poder daprópria legislatura. Não é uma doutrina aceita — digamos assim — com geralaprovação.

O Sr. Ministro Prado Kelly: Mas note V. Exa. que se tratava de examinaro “poder de emenda” no Legislativo. Só se legitima tal poder, nos casos de que secuida de acordo com os precedentes, quando haja conexão com o projeto principal;e deixa de haver conexão se, a pretexto de prover em assunto de interesse público,se toma deliberação tendente a proteger direto pessoal.

O Sr. Ministro Victor Nunes: Não estou inteiramente em desacordo comV. Exa., mas acho que a noção de abuso é que permite ao Judiciário exercer umafunção moderadora no controle da ação de outros Poderes. Tanto a noção deuso como a de abuso não têm definição muito precisa, mas a jurisprudência asvai construindo, lentamente, com os seus precedentes. Aliás, é importante notar,é à base de noções não muito precisas, não completamente definidas no textolegal, que a jurisprudência realiza suas mais valiosas construções.

Não sou de todo infenso à doutrina, que folgo ver sustentada por V. Exa.,com sua alta autoridade. Mas não me parece que o caput do dispositivo

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questionado esteja contaminado, de maneira tão visível, tão ostensiva, de umdesvio de poder que devamos corrigir, porque o caput desmembrou umaserventia. Isso é coisa usual e corriqueira na organização judiciária. Onde o fa-voritismo realmente aparece com evidência é no parágrafo. Eliminado o parágra-fo, alguma disposição nova será baixada pelo legislador de São Paulo ou seaplicarão as leis vigentes para que o provimento da serventia criada se façacom critério de justiça.

O Sr. Ministro Prado Kelly: Consinta V. Exa.? A única emenda apresentada(criando serventia) era apenas um meio para assegurar proteção ao interveniente.

Em matéria de formação de lei, valem como subsídios úteis os documentosparlamentares. Há que atentar na tramitação, nos motivos do veto, na intençãorealmente identificada, na benemerência da legislatura em relação a determinadoservidor.

O Sr. Ministro Adalicio Nogueira: Por paradoxal que pareça, o caput existeem razão do parágrafo, e não o contrário.

O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: Estamos entrando no subconsciente doespírito legislativo. As intenções pertencem a Deus. O legislador legisla por milmotivos. Um pode legislar pelo bem da Pátria, outro pelo bem da região, outro nointeresse social. Podemos adivinhar quais as intenções do legislador se elas nãoestão expressas nesses motivos? Ela quis dar uma compensação pela falta docartório.

Outra coisa que eu queria que o eminente Ministro Victor Nunes esclare-cesse — e nessa parte S. Exa. deu apoio ao ilustre Ministro Prado Kelly — é seadmite um desvio de poder do Poder Legislativo fora do caso de inconstituciona-lidade.

O Sr. Ministro Victor Nunes: Admito.

O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: Então, por via de conseqüência, V. Exa.admite a responsabilidade do Poder Legislativo pela elaboração das leis, como jáhouve quem defendesse.

O Sr. Ministro Prado Kelly: Não o admito além dos casos de inconstitucio-nalidade.

O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: Sempre admito que uma interpretaçãotraz outras conseqüências.

O Sr. Ministro Prado Kelly: Por isso, procurei ser exato nos termos que usei.

O que estava em causa era o velado desrespeito ao princípio da legalidade.Esse princípio, associado ao da igualdade jurídica, pressupõe que a lei tem efeitosgerais. É um resguardo da própria autoridade do Legislativo e é uma garantia

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para os cidadãos. Admito o exercício da faculdade de emenda atribuída ao legis-lador, mas verifico que, no caso concreto, ele usou daquela faculdade com desviodo fim pressuposto na Constituição e nas normas que regem a disciplina do órgão.Por quê? Porque, em vez de prover em relação ao bem público, atendeu a uminteresse pessoal menos legítimo. É esse o ponto, e só com essa limitação euadmitiria a pesquisa da intenção do legislador, a fim de dar por comprovado odetournement de pouvoir.

O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: Meu eminente mestre e amigo, me per-doe a interrupção, mas me parece que a nós não é dado penetrar nas intençõesdo legislador, se ele não as expressa, para ver quais foram os fins da políticalegislativa por ele adotada.

Suponhamos que esse homem foi despojado de uma parte do cartório e,com a criação da comarca, perdeu o tabelionato. O Poder Legislativo quis quelhe ficasse assegurada a pensão de cem mil cruzeiros como compensação. Pode-ria fazer por um outro caminho, mas deu preferência para um determinado cartó-rio a um servidor que já era titular do ofício.

O Sr. Ministro Prado Kelly: O primeiro ponto de V. Exa. diz respeito aoexame dos fins que teve em vista o legislador ao elaborar a lei. Tal exame estápresentemente acantonado no campo da administração pública. Mas em queconsiste a apuração ou a análise dos fatos? Consiste em verificar secomprovadamente a intenção da autoridade executiva está em harmonia com osfins pressupostos na lei ou se, ao contrário, atende a outros interesses.

No caso, os documentos parlamentares demonstram que se teve em vistanão medida de interesse geral, porém medida particularista em benefício de certoserventuário.

O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: Porque ele foi despojado.

O Sr. Ministro Prado Kelly: Este é outro ponto. Queriam compensá-lo porperda sofrida com uma outra reforma. O benefício, portanto, seria estritamentepessoal. O eminente Ministro Aliomar Baleeiro o equipara a pensão, mas, desseprisma, o projeto...

O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: Para compensar determinado cidadãopela perda material que havia sofrido.

O Sr. Ministro Prado Kelly: ... concederia indenização arbitrária, sem quelhe precedesse ação judicial.

A admitir a argumentação de S. Exa., chegaríamos a esta conclusão: a lei,na qual se converte projeto que confira pensão, só o é formalmente.

O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: Pergunto ao meu eminente mestre e amigo:é destituída de constitucionalidade uma lei que não tem substância de lei, não tem

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carne, nem sangue, nem ossos de lei? Ela o é apenas em sentido formal, comotodos os Congressos e Parlamentos do mundo elaboram, contanto que não ofendaa Constituição.

O Sr. Ministro Prado Kelly: Ora, é atribuição do Congresso conceder pensãopor meio de leis especiais.

O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: O Congresso vota freqüentes leis queconcedem pensão à viúva de um grande nome nacional, como Rui Barbosa, àviúva de um ex-presidente da República, à viúva de um guarda que foi assassina-do por ladrão, etc.

O Sr. Ministro Prado Kelly: Nesses casos se exercita atribuição legítimado Poder Legislativo, a qual procede da Carta de 1824. Mas não é disso que secuida. O que se cuida aqui é de uma lei que a Constituição sujeita ao crivo doTribunal de Justiça, Lei de Reforma Judiciária, em que todo pressuposto dasmedidas propostas há de ser o do interesse público, e nela se encontra, anomala-mente, uma disposição bipartida (caput do artigo e parágrafo), com um só escopo,o de beneficiar determinado servidor.

Se essa norma, apesar de decomposta, não ofende a disciplina que rege aformação das leis, e indiretamente o princípio da legalidade, no qual assenta todoo nosso sistema político, não sei por que nos cingirmos exclusivamente a um víciode origem no ato de nomeação, sustentando que o provimento do cargo incumbi-ria ao Governador do Estado. Este é, em ultima ratio, o motivo que invalida oparágrafo. Quaisquer outros afetariam, ao mesmo tempo, ao parágrafo e aocaput do artigo.

O Sr. Ministro Hermes Lima: Mas, eminente Ministro, não se trataria aí deuma norma de direito singular?

O Sr. Ministro Prado Kelly: Não o é. Deparava-se um projeto de ordemgeral: tratava-se de organização da Justiça do Estado. Passou por todas asexigências que duas Constituições estabelecem, escoimaram-se disposições defavor pessoal. O legislador não mirou a um simples desmembramento daserventia. Mirou ao interesse pessoal do beneficiado. Nesse ponto, o Tribunalexpurga o vício da lei. Mas em nome de que interesse público se sacrifica odireito individual do recorrente, o qual dele se viu despojado por um processo que,aos nossos olhos, nem jurídica, nem eticamente, se legitima?

O Sr. Ministro Victor Nunes: Sr. Presidente, sinto-me recompensado deter, talvez inadvertidamente, de qualquer modo não intencionalmente, provocadoessa polêmica tão esclarecedora sobre um tema que é da máxima relevância.

Para concluir meu voto, ante a extensão que tomou o debate, deverei daralguns esclarecimentos sobre as palavras proferidas anteriormente. Antes, porém,queria perguntar ao eminente Relator como se comportou o Tribunal de Justiçaem relação ao desmembramento do cartório.

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O Sr. Ministro Djaci Falcão (Relator): Com relação ao artigo, o Tribunalconsiderou-o constitucional.

O Sr. Ministro Victor Nunes: E antes da elaboração? O projeto resultou deiniciativa do Judiciário?

O Sr. Ministro Djaci Falcão (Relator): Sim, na sua inteireza resultou doJudiciário. Quero acrescentar, data venia do voto do eminente Ministro PradoKelly, que eu não cheguei a concluir pela inconstitucionalidade in totum, porquenão existem nos autos elementos bastantes, a meu ver, para positivar que tanto acriação quanto o modo de provimento objetivassem amparar, de modo ilegítimo, ofuncionário que foi provido no cargo. Tendo em vista, por outro lado, que a vitali-ciedade do titular do ofício desmembrado, por si, não constitui óbice aodesmembramento da serventia. Poderá ter ocorrido no caso motivo de interessepúblico para a criação do Cartório do Registro Imobiliário, por isso é que consideroapenas ilegítimo o modo de provimento.

Também acolho, consoante ouvi da excelente exposição do Ministro PradoKelly, a figura do avviamento di potere dos italianos, détournement de pouvoirdos franceses, que entre nós também já não constitui figura estranha, tanto assimque temos em nossa literatura monografia sobre o assunto (Do Desvio de Poder,de José Cretella Júnior). Mas, data venia do entendimento esposado por S. Exa.,eu, diante dessas considerações, não me senti animado a concluir pelainconstitucionalidade, na sua inteireza, do artigo e do parágrafo.

O Sr. Ministro Victor Nunes: Retomando meu voto, Sr. Presidente, passoao esclarecimento que desejava dar. Quando o Sr. Ministro Aliomar Baleeiroperguntou se eu admitia um controle da ação do Legislativo fora da típica argüi-ção de inconstitucionalidade, respondi que admitia. Mas antes que pudesse dizerem que termos o admitia, o debate se espraiou.

Em primeiro lugar, prefiro usar, a esse respeito, a noção de abuso, e não ade desvio de poder. Pela doutrina francesa, que mais longamente elaborou oconceito, o desvio de poder se configura não apenas quando o ato deixa de aten-der a um fim de interesse público, mas também quando, pressuposto pela normajurídica determinado fim de interesse público, o ato é praticado com outra finali-dade, ainda que de interesse público. O desvio de poder, nessa segunda modalidade,conduziria, por via indireta, à incompetência da autoridade, porque ela só seriacompetente para praticar o ato em razão do fim de interesse público que forapressuposto pelo legislador para o uso daquela competência.

Eu não aceitaria, com tal extensão, esse conceito de desvio de poder, nocontrole sequer da ação administrativa. Tenho reservas, e a respeito já escrevi

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Ministro Victor Nunes

um comentário, que, malgrado meu, abriu um começo de polêmica com o emi-nente jurista Seabra Fagundes, a propósito de decisão proferida pelo Tribunal doRio Grande do Norte. Se ponho esse temperamento no controle judiciário daação administrativa, quanto à ação do Legislativo...

O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: Perdoe-me: V. Exa. admite essa doutrinaque expôs fora do direito administrativo e no campo do direito constitucional, emrelação ao Legislativo?

O Sr. Ministro Victor Nunes: É o que estou procurando explicar. Admito-aem caso de ostensivo afastamento dos princípios que regem a conduta do Con-gresso, isto é, em caso de abuso, desde que seja abuso manifesto.

Quando digo isso, é claro que não me coloco inteiramente fora do campoda argüição de inconstitucionalidade, porque essa não se traduz somente naviolação de norma expressa. Também se traduz em violação de princípio cons-titucional. Havendo abuso evidente do Congresso, sempre é possível enquadraresse abuso na infração de algum princípio constitucional, como agora está fa-zendo o eminente Relator, que viu no parágrafo questionado uma restrição aopoder que tem o Executivo, e não o Congresso, de fazer nomeações para oscargos públicos criados em lei.

Mas a noção do abuso, a meu ver, é que concorre para configurar a violaçãode certos princípios constitucionais, pois por meio da noção de abuso é que o PoderJudiciário, que julga em caso concreto, pode ter o pleno discernimento de certasquestões.

A noção de abuso é controvertida, tanto no direito civil como no processual,como no administrativo, como também no direito constitucional. Mas, controvertidaou não, ela vai fazendo o seu caminho vitorioso na doutrina e na legislação. Antes,nossa lei quase a desconhecia. Agora a proclama em diversos textos. Como Juiz,estou nessa linha.

O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: Acredito, com todo o respeito a V. Exa.,que acaba V. Exa. colocando o problema, dentro do Supremo Tribunal Federal,nos termos em que foi posto na Corte Suprema dos Estados Unidos no períodoanterior a 37, da oligarquia judiciária, do despotismo, Governo e o poder dos juízes.Aí nós já estaríamos muito além do que a Constituição nos dá, e ela já deu ao STFo que nenhuma Constituição do mundo deu ao Poder Judiciário. Nem a dos EstadosUnidos. O poder de o Supremo Tribunal Federal declarar inconstitucional, em tese,uma lei de Estado, e agora também uma lei da União, é coisa inédita na Terra. Senós agora tomássemos nas mãos essa atribuição, como os juízes americanos toma-ram desde o período inicial do século XIX até 37, achando que podemos tambémanular aquilo que nós reputamos abuso de poder do Congresso, não há limite. Nãoadmito que tenhamos mais sabedoria do que os demais brasileiros, investidos de

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paralelas responsabilidades, apesar do que diz a Constituição: “notável saber jurí-dico”. O Congresso também tem homens cultos, que são escolhidos pelo povo.Repito o que disse outro dia ao eminente Ministro Adaucto Cardoso: vão às urnas,nas eleições, corrijam, castiguem esses deputados. A nossa palmatória, porém, nãopode ser tão grande e alcançar tão longe.

O Sr. Ministro Prado Kelly: A nossa intervenção só se legitima em defesada Constituição, quando ela estiver em causa. No apreciar o modo pelo qual seconfigura a constitucionalidade, reconhece-se o “excesso de poder” doLegislativo no exercício de suas atribuições. Ninguém pode supor excesso maisgritante do que a ofensa feita à Constituição.

O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: O que me parece é que toda vez que oPoder Judiciário exorbitar de um dos seus poderes, haverá uma reação, que poderáser nefasta ao próprio prestígio da Justiça.

O Sr. Ministro Victor Nunes: Sr. Presidente, espero ter explicado por quenão aceito uma noção exagerada do controle judiciário. Infelizmente, não pode-mos fazer agora um estudo monográfico do tema. Temos que nos limitar ao enun-ciado de algumas idéias gerais.

Mas eu ponderaria ao eminente Ministro Aliomar Baleeiro que a diferençaentre o Supremo Tribunal do Brasil e a Corte Suprema dos Estados Unidos nãome parece tão grande como a S. Exa.

O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: Mas não afirmei, com licença de V. Exa.

O Sr. Ministro Victor Nunes: É certo que a Corte Suprema não tem opoder que agora temos, por norma expressa, de examinar a inconstitucionalidadede uma lei, em tese. Mas, de outro lado, é comum nos Estados Unidos o uso dotest case, praxe que o Sr. Ministro Aliomar Baleeiro, em voto aqui proferido,considerou salutar.

O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: Não é muito má.

O Sr. Ministro Victor Nunes: O test case pode ser até uma demanda simu-lada, ou construída, dando pretexto, ou motivo, ao Tribunal para emitir julgamentode constitucionalidade.

Em segundo lugar, pelo princípio de stare decisis, a decisão da Corte Su-prema que fulmine uma lei é respeitada de imediato por todos os Poderes. Nenhumdeles, nos Estados Unidos, deixou de acatar, em termos genéricos, tais decisões.

O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: Durante algum tempo.

O Sr. Ministro Victor Nunes: O que faz o Congresso, e o tem feito váriasvezes, é expedir outra lei ou aprovar uma emenda constitucional que, contrastandocom a decisão, mantenha o seu ponto de vista. Isso é legítimo. Cada Poder, no

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uso de suas atribuições. Mas em relação à lei específica fulminada pela CorteSuprema, a decisão é acatada. Portanto, independentemente de qualquer podernormativo da Corte, uma decisão sua em matéria constitucional tem, por tradição,efeito normativo. Está de acordo com os costumes, com os precedentes, com adoutrina americana que ela produza, na prática, esse efeito.

Somos, talvez, mais racionalistas que os anglo-saxões. Por isso, traduzi-mos esse efeito numa norma de competência do Supremo Tribunal, pois nossatradição era em sentido oposto. Mesmo os juízes inferiores não devem obediên-cia aos nossos julgados, senão nos limites estritos do caso concreto. Era, pois,necessário que houvesse uma norma para romper essa tradição. Assim mesmo aConstituição a rompeu com cautela, porque subordinou a eficácia genérica dasnossas decisões de inconstitucionalidade, ainda que proferidas em tese, a umpronunciamento ulterior do Senado.

Por isso, não me parece maior essa nossa competência que a da CorteSuprema. Mas nós exercemos a nossa de modo diferente.

O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: Perdoe V. Exa. Devo lembrar que oSupremo Tribunal construiu a doutrina. Primeiro, que o Senado era obrigado,embora não tivesse sanção, a suspender. Segundo, que o Senado teria de sus-pender in totum. Terceiro, que o Senado não podia voltar atrás no seu ato desuspensão. Sobre esses três pontos de vista, votei anteriormente. Acho que oSenado não suspende. Se quiser, suspende uma parte e não toda. Se quiser,volta atrás e revoga a suspensão. Para mim, no caso, o Senado tem funçãopuramente política. Não há sanção nenhuma.

O Sr. Ministro Prado Kelly: Na Itália, é o próprio Presidente da Cortequem faz a declaração de inconstitucionalidade, para efeito erga omnes.

O Sr. Ministro Victor Nunes: Como propôs a Comissão da Reforma Judi-ciária, de que V. Exa. foi membro ilustre.

Portanto, Sr. Presidente, há temperamentos na nossa atuação em matériaconstitucional. Talvez até tenhamos menos poderes que a Corte Suprema, salvoagora, sob outro aspecto, para regular o processo nos casos da nossa competência.

Mas também à Corte Suprema, freqüentemente, se faz a acusação deestar invadindo a esfera legislativa. Presentemente, a “Corte Warren” tem sidocensurada, precisamente, por estar usurpando função do Legislativo, na opiniãodos críticos. Mas isso resulta, em grande parte, talvez em maior parte, de ser aConstituição americana muito sintética, com algumas disposições muito genéricas,de ser uma Constituição antiga, escrita em condições históricas específicas e quedeve ser aplicada em situações completamente diversas. Por isso, a Corte vai

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interpretando o mesmo texto, que é genérico, de modo diferente à medida quemudam as condições sociais.

Por que não fazemos o mesmo? Porque não podemos? Não. É porquetemos tido Constituições minuciosas, praticamente regulamentares. Nos pontosem que nossas Constituições têm sido omissas, ou têm usado fórmulas amplas, oSupremo Tribunal Federal procedeu como a Corte Suprema. Veja-se, por exem-plo, o conceito de taxa. A Constituição de 1964 não o definia. Por exclusão, tendoem vista a discriminação tributária e alguns princípios constitucionais, é que sepodia deduzir um conceito de taxa da Constituição. Embora não houvesse naConstituição um conceito definido, o Supremo Tribunal nunca deixou de anular, eo fez numerosas vezes, taxas federais, estaduais e municipais.

Com base em noções doutrinárias, respeitáveis sem dúvida, e em certosprincípios genéricos, o Tribunal, em substância, fazia obra legislativa. Mas nãoprocedia abusivamente. Fazia legítimo uso do seu poder de interpretar a Consti-tuição. Quando a Constituição se utiliza de uma fórmula ampla, vaga, imprecisa,o Supremo Tribunal é que deve determinar o seu sentido, dar-lhe conteúdo, esta-belecer os seus limites.

No tocante à ação do Congresso, que é passível de se traduzir em abuso,evidentemente, esse abuso só pode ser reconhecido e proclamado pelo SupremoTribunal Federal em razão de princípios constitucionais...

O Sr. Ministro Prado Kelly: Exatamente.

O Sr. Ministro Victor Nunes: ... e não pelo arbítrio dos juízes. Mas há princí-pios constitucionais tão genéricos que ao próprio Tribunal incumbe defini-los.

Este é o temperamento que estabeleço na questão que estamos aflorando.A intervenção da Corte dependerá, então, dos elementos que vierem nos autos,da evidência com que deles possa emergir o abuso, que é de si mesmo noçãopouco precisa.

No caso, não me parece que exista essa evidência quanto ao caput doartigo questionado, porque ele se limitou a desmembrar um cartório, que é fatohabitual. Quanto ao parágrafo, sim, porque o legislador, nas próprias palavrascom que enunciou seu pensamento, revestidas de vigor inusitado em leis dessanatureza, deixou escapar o seu propósito de puro favoritismo.

Por tais razões é que acompanho o Sr. Ministro Relator, data venia doseminentes Juízes que discordam. Declaro inconstitucional apenas o parágrafo,porque ele, eivado de abuso de poder, envolve, em última análise, restrição aopoder de nomear, que pertence ao Governador.

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VOTO

O Sr. Ministro Gonçalves de Oliveira: Sr. Presidente, é um recurso de man-dado de segurança que foi requerido pelo titular do Cartório, Nardy Ferreira. O quepretendeu, como está expresso não só no item I como no final, foi o seguinte:

“O presente mandado de segurança é impetrado para que, reconhe-cida a inconstitucionalidade do art. 126 e seu parágrafo único da Lei 8.101,de 16-4-1964, seja tornado sem efeito o ato de provimento do Sr. JoséMaria de Souza Coutinho”.

Porque titular do Cartório, o impetrante não tem interesse apenas em des-fazer a nomeação de José Maria de Souza Coutinho; seu interesse primordial éimpedir a divisão do seu Cartório.

Se, na hipótese, estivéssemos apreciando uma representação do Procura-dor-Geral da República a propósito da inconstitucionalidade do parágrafo único, euestaria de acordo com o eminente Relator, julgando inconstitucional, porque, real-mente, o Legislativo atribuiu-se o poder de nomear, que lhe é defeso, é umaprerrogativa, uma atribuição do Executivo. No caso concreto, teria havido inva-são dos poderes do Executivo pelo Legislativo. O ato seria inconstitucional.

Mas ocorre que o Poder Executivo não se incomodou e nomeou José Mariade Souza Coutinho para o cargo. De maneira que desfazer essa nomeação, nessemandado de segurança, Sr. Presidente, não me parece possível, porque isso nemaproveita ao impetrante. Falta-lhe interesse, pelo que o meu voto só pode ser peladenegação da segurança.

O Sr. Ministro Eloy da Rocha: V. Exa. permite? O meu voto foi proferidona sessão passada e, por isso, peço licença para insistir em alguns aspectos daquestão.

Declarei que o parágrafo único do art. 126 era inconstitucional, como ojulgou também o eminente Relator. Não tive nenhuma dúvida de que a lei pudessedesmembrar o Cartório. A lei dividiu o Cartório em dois, dele separando umaparcela para constituir unidade autônoma. Podia fazê-lo, mas não sem restrição,não sem condições. Simultaneamente, a lei, no art. 126, parágrafo único, concedeupreferência, para o provimento no novo Cartório, a outro serventuário de justiça.

Certamente, o parágrafo é inconstitucional. Já se pronunciaram nesse sen-tido, em maioria, os votos do Tribunal, a começar pelo eminente Relator, porque,por esse parágrafo, a lei, na realidade, efetuou o provimento do novo Cartório.Mas o vício que se encontra no parágrafo contamina o caput do artigo —demonstrou o eminente Ministro Prado Kelly que o parágrafo e o caput doartigo são siameses, indissoluvelmente ligados entre si —, porque, na verdade, anorma é uma só. A lei desmembrou o Cartório enquanto atribuiu o novo a oficialde outra serventia.

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O Sr. Ministro Prado Kelly: Não há momentos distintos.

O Sr. Ministro Eloy da Rocha: Não importa que a norma se tenha expres-sado no caput do artigo e, ainda, no parágrafo. Descobre-se o desvio de poderquando se afirma o propósito do legislador de investir terceiro na nova serventia.Revela-se, no parágrafo único, a ilegalidade, que contamina o caput do artigo.

Indiquei outra razão de inconstitucionalidade. Não é lícito o desmembra-mento do Cartório sem limitações e sem condições que atendam ao direito dotitular do ofício de justiça. É por isso que, em leis estaduais, como na legislaçãodo Estado do Rio Grande do Sul, que apliquei durante muito tempo, na divisãode serventias, se tem assegurado, mediante regra especial, ao titular vitalício aopção.

O Sr. Ministro Adalicio Nogueira: Parece que as leis paulistas também.

O Sr. Ministro Prado Kelly: As leis paulistas também o estabelecem, econsta dos autos longa enumeração.

O Sr. Ministro Eloy da Rocha: Se o interesse do serviço público recomendaa divisão, o direito do serventuário vitalício há de ser considerado. A norma, regrageral ou especial, sobre a opção apenas observa a garantia constitucional.

O Sr. Ministro Victor Nunes: V. Exa. considera o direito de opção implícitona vitaliciedade.

O Sr. Ministro Eloy da Rocha: Apesar da vitaliciedade do serventuário, épermitido, no interesse do serviço, desmembrar o ofício de justiça, mas não deixaro titular vitalício numa área arbitrária, que pode ser a menor. Efetuada a divisão,em benefício do serviço, o serventuário terá opção para se situar na parcela quese tornou autônoma. O impugnado art. 126 é inconstitucional por dois motivos:primeiro, porque importou em nomeação do serventuário do novo ofício; segundo,porque, desmembrando o Cartório, não assegurou ao primitivo titular a opção quelhe cabia.

O Sr. Ministro Adaucto Cardoso: Inconstitucionalidade por omissão?

O Sr. Ministro Eloy da Rocha: A inconstitucionalidade é da norma inscritano art. 126, caput, que somente poderia ser estabelecida com o acréscimo deregra sobre opção do antigo titular. Somente se poderia desmembrar o Cartório,se assegurado ao titular o seu direito, o que era factível por via de opção. Semessa opção, é inconstitucional.

O Sr. Ministro Adaucto Cardoso: E se a opção vier assegurada em outralei, na lei estadual?

O Sr. Ministro Eloy da Rocha: Fiz essa ponderação em meu voto. Oadvogado do recorrente informou a propósito.

O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: Disse que não há norma geral.

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O Sr. Ministro Prado Kelly: Não há norma geral, mas há norma específicaem grande quantidade de leis anteriores.

O Sr. Ministro Eloy da Rocha: V. Exa. me perdoe, eminente MinistroGonçalves de Oliveira, ...

O Sr. Ministro Gonçalves de Oliveira: Honrado, recebo o aparte de V. Exa.

O Sr. Ministro Eloy da Rocha: ... haver interrompido seu brilhante voto.Mas quis acentuar que o parágrafo único contamina o caput do art. 126. Aindaque isso não acontecesse, o dispositivo é inconstitucional, porque determina odesmembramento, sem assegurar, ao mesmo passo, ao antigo titular do Cartóriodireito inerente à vitaliciedade.

O Sr. Ministro Gonçalves de Oliveira: Sr. Presidente, o art. 126 da Leiestadual 8.101, Lei de Organização Judiciária, dispõe assim:

“Fica criado, como serventia autônoma, o Cartório do Registro deImóveis e Anexos na Comarca de Suzano”.

O parágrafo único diz assim:

“Ao atual oficial do Registro Civil das Pessoas Naturais do Distritoda sede da referida Comarca fica assegurada prioridade absoluta deopção para esse Cartório, como compensação pela perda do anexo detabelionato decorrente da criação da Comarca, devendo requerer no prazode 30 (trinta) dias, a contar da vigência desta lei, ao Secretário da Justiça eNegócios do Interior”.

Como tive ensejo de dizer, estou julgando um mandado de segurança dotitular desses serviços de Registros de Imóveis. Se estivesse julgando uma repre-sentação do Governador do Estado contra esse parágrafo, não teria dúvida emacolher a sua inconstitucionalidade, porque haveria o abuso do Poder Legislativoem atribuir-se uma competência que, pela Constituição, é do Governador doEstado, qual seja, a de prover os cargos públicos, prover desembaraçadamente, enão ficar limitado a nomear aquela pessoa indicada na lei pelo Poder Legislativo.Por esse motivo, o dispositivo foi até vetado pelo Governador do Estado.

Então, o remédio seria o recurso pelo Governador ao Supremo Tribunal,baseado no princípio da harmonia dos Poderes, hoje com mais amplitude naConstituição de 24 de janeiro de 1967, para que o Supremo Tribunal nulificasse oparágrafo.

Mas estamos apreciando um mandado de segurança do titular dessesserviços de Registros de Imóveis, não interessando ao impetrante apenas odesfazimento do parágrafo, porque, se prevalecer, como está prevalecendo, ovoto do eminente Relator no sentido de ficar o caput do artigo como intocável,haveria prejuízo total para o impetrante.

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O Sr. Ministro Adauto Cardoso: O impetrante pede que lhe seja asseguradoo direito de opção?

O Sr. Ministro Gonçalves de Oliveira: Não, seria apenas uma expectativade direito.

O Sr. Ministro Eloy da Rocha: O impetrante alega que o seu direito foiviolado pela impugnada norma.

O Sr. Ministro Gonçalves de Oliveira: Alega violação do direito de exercer...

O Sr. Ministro Eloy da Rocha: Pede que, reconhecida a inconstitucionalidadedo art. 126 e parágrafo único da Lei 8.101, lhe seja assegurado o seu direito.

O Sr. Ministro Gonçalves de Oliveira: Ele pede apenas que se desfaça o ato.

Entendo, como o eminente Relator, que o caput do artigo não é inconstitu-cional, porque poderia ser desmembrado esse Cartório. E como o parágrafo nãointeressa ao impetrante, que não tem direito de se prover no cargo, o meu voto épela denegação da segurança, que esse remédio não protege mera expectativade direito que tem todo cidadão de ver um cargo vago e poder ser o candidato aoseu provimento.

É o meu voto, Sr. Presidente.

VOTO

O Sr. Presidente Luiz Gallotti: Como vê o Tribunal, a corrente que votoupela inconstitucionalidade, em termos mais amplos, não poderia prevalecer,porque não alcançou nove votos. Mas a outra corrente prevalece, a ela sesomando os votos daquela, porque o mais compreende o menos. Assim,logicamente, os que dão pela inconstitucionalidade total também dão pela incons-titucionalidade em parte.

Voto com o eminente Relator.

DECISÃO

RMS 16.912/SP — Relator: Ministro Djaci Falcão. Matéria Constitucional.Recorrente: Nardy Ferreira (Advogado: Theotonio Negrão). Recorrido: Estadode São Paulo (Advogado: Rubens Catelli). Deu-se provimento, em parte, parajulgar inconstitucional o parágrafo único do art. 126 da Lei paulista 8.101, de 16de abril de 1964. Assim votaram os Ministros Relator, Adaucto Cardoso, AliomarBaleeiro, Victor Nunes, Lafayette de Andrada e o Presidente, Luiz Gallotti, sendoque os Ministros Eloy da Rocha, Prado Kelly, Adalicio Nogueira, Hermes Lima eCandido Motta davam provimento in totum, porque julgavam inconstitucional,além do parágrafo único, o art. 126 (caput), não sendo alcançada, quanto a esta

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parte, a maioria necessária à declaração da inconstitucionalidade. O MinistroGonçalves de Oliveira negava provimento ao recurso. Impedido, o MinistroRaphael de Barros Monteiro.

Presidência do Ministro Luiz Gallotti. Presentes os Ministros AdauctoCardoso, Djaci Falcão, Eloy da Rocha, Aliomar Baleeiro, Prado Kelly, AdalicioNogueira, Hermes Lima, Victor Nunes, Gonçalves de Oliveira, Candido MottaFilho, Lafayette de Andrada e Luiz Gallotti (Presidente). Licenciados, os MinistrosOswaldo Trigueiro e Hahnemann Guimarães. Ausente, justificadamente, o Mi-nistro Evandro Lins.

Plenário, em 31 de agosto de 1967 — Dr. Álvaro Ferreira dos Santos,Vice-Diretor Geral.

MANDADO DE SEGURANÇA 17.957 — DF

Terrenos de marinha e acrescidos.1. Não é admissível mandado de segurança contra o De-

creto-Lei 128, de 31-1-67, como lei em tese (Súmula 266).2. São válidos, constitucionais e estão salvaguardados

pelas Disposições Transitórias da Constituição de 1967 os 115decretos-leis expedidos entre 24-1-67 e 15-3-67, data dapromulgação e do início da vigência dessa Carta Política.

3. Os terrenos desapropriados e acrescidos de mari-nha, oriundos do aterro para construção do porto de Salva-dor, pertencem ao domínio da União, segundo legislaçãovetusta, sempre reafirmada por novos e sucessivos diplo-mas sobre o assunto.

4. Na concessão de serviço público, como ato complexo,meio-regulamentar, meio-contratual, o concedente pode modificar,por lei, o funcionamento do serviço, alterando o regime dosbens públicos envolvidos e até impondo novos ônus aocessionário, desde que a este assegure o equilíbrio finan-ceiro para remuneração e amortização do capital efetivamenteinvestido (Constituição de 1946, art. 151 e parágrafo; Cons-tituição de 1967, art. 160).

5. Efeitos da cláusula 38 do contrato para exploraçãodo porto da Bahia, aprovado pelo Decreto 14.417/20.

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VOTO

O Sr. Ministro Victor Nunes: Sr. Presidente, peço licença ao Tribunal parafazer algumas distinções quanto às preliminares suscitadas.

A primeira é sobre o problema do cabimento de mandado de segurançacontra lei em tese. Não tenho dúvidas de que está em causa, neste processo, umalei em tese, como sustentou, brilhantemente, o Dr. Procurador-Geral. O que te-mos entendido como lei em tese para cabimento de mandado de segurança é anorma genérica. Desde que o ato atacado seja genérico, seja uma norma nãoindividualizada, não temos admitido mandado de segurança, como lembrou o Sr.Ministro Presidente a respeito de decretos normativos e de atos normativos decategoria inferior à dos decretos.

De acordo com essa orientação, o que caracteriza a lei em tese é ageneralidade do comando; não basta a pluralidade do comando, no sentido dealcançar várias pessoas ou situações, consideradas na sua individuação específica.

No caso presente, a lei atacada não se refere, especificamente, a um con-cessionário, mas a todos e quaisquer concessionários que se encontrem nas con-dições previstas na lei.

Esse debate, entretanto, suscita um problema da maior importância prática:o decreto-lei impugnado contém um comando proibitivo, e essa proibição legaldetermina, por si mesma, o efeito danoso que, em outras circunstâncias, dependeriado ato administrativo conseqüente.

Ouvimos, há pouco, que a lei proibitiva, embora lei em tese, autoriza omandado de segurança. Desejo fazer, a esse respeito, uma distinção. Há atos departiculares que dependem de autorização ou aprovação, que dependem, emsuma, de manifestação da autoridade pública. Em tal hipótese, sobrevindo leiproibitiva, seus efeitos não se produzem automaticamente. O particular, de qual-quer modo, não tinha a possibilidade de agir por si, pois dependia de um pronun-ciamento da autoridade. Ante a lei proibitiva, terá, então, de solicitar o pronunci-amento favorável, podendo ajuizar a segurança após a recusa da Administraçãoque configure a coação específica. De outro modo, sempre que uma lei proibitivafosse passível da argüição de inconstitucionalidade, estaríamos instituindo umaação geral de inconstitucionalidade, facultada a qualquer pessoa que se conside-rasse atingida pela proibição, quando, pela Constituição, a argüição de inconstitu-cionalidade em tese é privativa do Procurador-Geral.

Haverá casos, porém, como o presente, em que a proibição legal atingediretamente o particular, porque ele, antes da proibição, não dependia de qualquerato da autoridade para proceder de uma ou de outra maneira. Quando a atividadedo particular, antes da vedação, não dependia de autorização, licença, concessãoou ato público equivalente, a vedação operava automaticamente, produzindo oefeito danoso por si mesma. Nessa hipótese, parece-me cabível o mandado de

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segurança, não apenas porque seja proibitiva a norma, mas porque ela é imediatae automaticamente proibitiva, incidindo sobre atos que, até então, dependiam ex-clusivamente do critério do particular.

Resta o outro aspecto da preliminar de não-conhecimento, que é a veda-ção ao Judiciário de apreciar os atos emanados do Governo Revolucionário.

Não me parece fundamental, data venia, a consideração surgida no debate,de ser o decreto-lei impugnado posterior à votação da Constituição. A Consti-tuição de 1967 é uma ordem normativa que só se tornou eficaz em 15 de março.Quando ela se refere a atos pretéritos, sem outra especificação, essa anteriori-dade não pode ser aferida em razão da assinatura ou da promulgação do textoconstitucional, mas em razão do momento em que a norma constitucional se tor-nou eficaz.

Mas resta saber o que é que, tendo sido aprovado pela Constituição, foisubtraído ao exame do Judiciário. Em primeiro lugar, é óbvio, só foram subtraídosa esse exame atos pretéritos. Em segundo lugar, é preciso atender à natureza doato para se verificar o alcance da vedação. Quando se tratar de lei, norma gené-rica, capaz de incidir no futuro, o que a Constituição tornou imune à revisão doJudiciário foi a legitimidade do ato de expedição da lei. Por isso, não se podecontroverter sobre a competência do Presidente da República para expedir odecreto-lei impugnado neste mandado de segurança.

O Sr. Ministro Gonçalves de Oliveira: V. Exa. me permita: temos exemplosno Código de Minas e no Código de Águas, votados por ocasião da Constituiçãode 34. Foram publicados após essa Constituição. Os Tribunais deram validade aesse códigos, e o Supremo Tribunal assim decidiu.

O Sr. Ministro Victor Nunes: Exato. Mas estou conduzindo o meu raciocí-nio em rumo um pouco diferente.

A primeira conclusão que estou tirando é que, tendo sido aprovada a práticado ato, não poderemos discutir a competência do Presidente da República parabaixar o decreto-lei, nem o douto Advogado, ora impetrante, impugnou essa com-petência. Ele não impugna a constitucionalidade do decreto-lei em razão da in-competência legislativa do Presidente. Mas argúi a sua inconstitucionalidade (eaqui divirjo do eminente Ministro Evandro Lins) sob outro aspecto, porque o de-creto-lei terá violado um direto individual. Sob esse aspecto, ele argúi (e o disseclaramente) a inconstitucionalidade do decreto-lei.

O Sr. Ministro Evandro Lins: V. Exa. ouviu o aparte dado pelo eminenteAdvogado, que declarou publicamente não argüir a inconstitucionalidade doDecreto 128.

O Sr. Ministro Victor Nunes: Fui eu quem provocou esse aparte.

O Sr. Ministro Evandro Lins: Por entender ferido um direito subjetivo daempresa que representa, mas não a inconstitucionalidade, em si, da norma.

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Memória Jurisprudencial

O Sr. Ministro Victor Nunes: Em tese.

O Sr. Ministro Evandro Lins: Mas o prejuízo decorrente para a empresa daexpedição do decreto...

O Sr. Ministro Victor Nunes: O impetrante alega que o decreto é inconsti-tucional porque modifica um contrato intocável. Ele sustenta a subsistência docontrato, o qual estaria a cavaleiro de uma norma inconstitucional que o atingiu.Portanto, o pedido se funda na inconstitucionalidade do decreto-lei.

O Sr. Ministro Evandro Lins: Invoca a proteção de uma disposição consti-tucional para não se alterar uma cláusula da concessão. Assim, julga-se protegidoe amparado por essa disposição constitucional, sem que isso importe na declara-ção de inconstitucionalidade do próprio decreto-lei, da própria norma invocadapelo Poder Público em seu favor, o que me parece diferente.

O Sr. Ministro Victor Nunes: Sim, não resta dúvida quanto ao aspecto dacompetência ou quanto ao sentido genérico do decreto-lei. Mas o fundamento dopedido é a inconstitucionalidade da incidência da norma nova sobre o contrato,que seria inatingível.

O Sr. Ministro Evandro Lins: Na realidade, é o prejuízo decorrente daincidência da norma.

O Sr. Gonçalves de Oliveira: O que o douto Advogado sustenta é que olegislador constituinte não poderia aprovar um decreto-lei que não conhecia.

O Sr. Ministro Victor Nunes: Esse é outro aspecto.

O Sr. Ministro Hermes Lima: O que ele alega sobre a inconstitucionalidadeé que o decreto ofendeu um direito adquirido, feriu a Constituição, mas não alegaa inconstitucionalidade como motivo de pedir.

O Sr. Ministro Victor Nunes: V. Exa. me desculpe. Ele não alega a incons-titucionalidade, em tese, da lei; não diz que a lei seja inaplicável em qualquer caso.

O Sr. Ministro Evandro Lins: Ela pode ter ferido um direito individual dorequerente. Não está em causa o problema da inconstitucionalidade. Foi essa arazão pela qual neguei o mandado de segurança.

O Sr. Ministro Victor Nunes: V. Exa. argumentou que o direito pretendidoé apenas patrimonial, que independe de ser ou não atacado o decreto-lei. Mas oimpetrante sustentou a não-incidência do decreto-lei sobre o contrato, o qual, aseu ver, não podia ser modificado por iniciativa unilateral do Poder Público. Essamodificação unilateral violou a Constituição. Portanto, o pedido se funda na in-constitucionalidade do decreto-lei no que respeita ao contrato da CompanhiaDocas da Bahia.

O Sr. Ministro Evandro Lins: V. Exa. me perdoe, mas não é isso que estáalegado, nem tampouco o que consta dos memoriais.

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Ministro Victor Nunes

O Sr. Ministro Victor Nunes: Eu li todos.

O Sr. Ministro Evandro Lins: O que foi expressamente declarado peloAdvogado, o que ele diz, é que há eiva de inconstitucionalidade, estaria eivado deinconstitucionalidade.

O Sr. Ministro Victor Nunes: Estar eivado de inconstitucionalidade é serinconstitucional.

O Sr. Ministro Evandro Lins: A proteção que ele invoca é uma proteçãoconstitucional, a proteção para o seu direito individual.

O Sr. Ministro Victor Nunes: Não desejo prolongar mais esse aspecto dodebate.

O que pretendia acentuar, e me desviei do rumo, pode ser resumido empoucas palavras. A Constituição, ao aprovar determinados atos do Governo Re-volucionário, o que evidentemente teve em vista foram atos específicos por elepraticados. No caso de uma lei, por exemplo, o ato de baixar uma lei, sob oaspecto da competência e no mais que ele implica, tudo isso é válido, não podeser revisto pelo Judiciário. Mas não podemos extrair do texto constitucional aconclusão de que o Poder Revolucionário imunizou todo o conteúdo da legislaçãopré-constitucional, mesmo nas partes em que contrarie a própria Constituição.Isso seria um contra-senso.

O Sr. Ministro Evandro Lins: Nisso, estou de acordo com V. Exa.

O Sr. Ministro Victor Nunes: Não é possível haver, simultaneamente, doisregimes constitucionais. Antes da Constituição, havia, por exemplo, umatramitação legislativa estabelecida em ato institucional. A Constituição estabele-ceu outra. Pelo fato de ter a Constituição aprovado os atos institucionais, podemsubsistir os dois processos legislativos? Evidentemente não. Vigora somente o daConstituição. E a razão disso é que os atos praticados pelo Governo Revolucioná-rio e que se projetavam para o futuro não foram aprovados em todo o seu conteúdo.Essas suas conseqüências ulteriores estão sujeitas ao que a respeito dispõe aConstituição. O País não foi constitucionalizado pela metade. A Constituiçãosubstituiu inteiramente a ordem pré-constitucional. Ao ressalvar atos anteriores,referiu-se aos efeitos já produzidos, mas não criou dois sistemas constitucionais,porque isso seria uma aberração. Não pode haver, no regime constitucional, umoutro sistema de normas que o Supremo Tribunal tenha de aplicar contra a letra eo espírito da Constituição.

Com essas considerações, também rejeito a preliminar de não-conheci-mento, data venia da maioria.

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Memória Jurisprudencial

MANDADO DE SEGURANÇA 18.973 — DF

Juízes federais. Primeira nomeação sem concurso porforça do Ato Institucional n. 2 e da Lei n. 5.010, de 1966, aprova-dos pelo artigo 173, III, da Constituição de 1967. Juízessubstitutos não integram carreira da Justiça Federal, sendo aforma do seu provimento determinada pelo art. 118 da Cons-tituição. Esgotou-se o processo de livre nomeação com opreenchimento dos cargos em São Paulo. Denegação do man-dado de segurança.

VOTO

O Sr. Ministro Victor Nunes: Sr. Presidente, também peço vênia à doutamaioria para acompanhar o voto do Sr. Ministro Evandro Lins, embora, a essaaltura, meu pronunciamento tenha sentido puramente teórico.

É conhecido meu acatamento à jurisprudência do Tribunal, mas há questõesque me parecem tão fundamentais que não posso evitar aos eminentes colegas oincômodo da reiteração de certos argumentos.

Um deles foi mencionado pelo Ministro Evandro Lins: uma lei do períodorevolucionário, mas legitimamente emanada do Congresso, não pode estarabrigada na exceção do art. 173 da Constituição de 1967, porque a validadedaquele ato legislativo de modo nenhum dependeria de ratificação constitucionalposterior.

Mas vou além, como sustentei em caso anterior. Parece-me totalmenteinadmissível que se considerem aprovados, pela nova Constituição, em sua pleni-tude, inclusive em suas projeções para o futuro, os atos normativos do períodorevolucionário.

Essa ponderação parece-me especialmente apropriada às disposições queconferem competências. O regime constitucional é um só e não pode admitirduas competências simultâneas e conflitantes. A nova Constituição, ao aprovaratos de um período anterior, tanto mais que se tratava de período excepcional, oque aprovou, na verdade, foram os atos praticados pelo Governo revolucionário eos efeitos que resultaram desses atos.

Não me parece que se possam considerar aprovadas normas, para queproduzam efeitos no futuro, contrariamente ao que dispõe a própria Constituição,já em pleno vigor, principalmente, repito, em matéria de competência.

Vou figurar um exemplo para mostrar que, do julgamento que o Tribunalestá hoje proferindo, poderão ser deduzidas conseqüências, a meu ver, ruinosaspara o regime. O art. 31 do Ato Institucional n. 2, no seu parágrafo único, dispõe:

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Ministro Victor Nunes

“Decretado o recesso parlamentar, o Poder Executivo correspondente fica auto-rizado a legislar, mediante decretos-leis, em todas as matérias previstas na Cons-tituição e na lei orgânica”. Dava esse dispositivo ao Presidente da República, norecesso do Congresso, poder legislativo amplo. Seria possível subsistir essa normana vigência da Constituição atual? Poderia o Presidente, na vigência da atualConstituição, cujo art. 173 teria aprovado o Ato Institucional n. 2, baixar decre-tos-leis, no recesso do Congresso, sobre toda e qualquer matéria da competên-cia da União? Ouso concluir que nenhum dos eminentes Ministros responderiaafirmativamente.

Dir-se-á que o exemplo é inverificável, porque o art. 31, parágrafo único,do Ato Institucional n. 2 só se referia ao recesso parlamentar decretado peloPresidente, e não ao recesso normal, não tendo a Constituição atual previsto oencerramento do Congresso pelo Presidente.

Eu aceitaria esse argumento. Mas, na verdade, o Presidente CasteloBranco baixou inúmeros decretos-leis no período de janeiro e fevereiro de 1967,quando o recesso do Congresso já resultava de suas férias regulares e não do atode fechamento praticado pelo Executivo. Não obstante, foi com base no art. 31do Ato Institucional n. 2 que S. Exa. baixou três centenas de decretos-leis, queestão sendo aplicados, inclusive, por este Tribunal. Essa prática do citado art. 31autoriza a figurar aquele exemplo. E pergunto de novo: seria admissível, na vigên-cia da atual Constituição, essa competência do Presidente da República para,durante as férias parlamentares, expedir decretos-leis sobre qualquer matéria dacompetência da União? É evidente que não, porque não é possível que uma normadesse tipo, explicável no período revolucionário, embora conferindo competêncialegislativa conflitante com a que resultava da Constituição anterior, possa vigorarna vigência da atual Constituição, que prevê expressamente a expedição de de-cretos-leis, mas em termos muito mais limitados. E como estes últimos dependemda aprovação posterior do Congresso, a Constituição não conhece podereslegislativos conflitantes.

Em relação aos Juízes Federais, o que determinou o Ato Institucional n. 2?Dispôs o seu art. 20: “O provimento inicial dos cargos da Justiça Federal far-se-ápelo Presidente da República, dentre brasileiros de saber jurídico e reputaçãoilibada.” Esse dispositivo foi reproduzido, mais ou menos nos mesmos termos,pela Lei 5.010. Quais foram, então, os atos aprovados pelo art. 173 da Constitui-ção atual? O que ela aprovou foram as nomeações anteriores e os efeitos decor-rentes daquelas nomeações. Mas a competência para nomear livremente osjuízes federais, que não chegou a ser exercida durante o tempo em que vigorou,essa competência se extinguiu, porque a nova Constituição já não a admite nosmesmos termos.

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Memória Jurisprudencial

Nem se diga que tais nomeações constituíam atos complexos, de que umadas etapas, a indicação dos nomes pelo Presidente da República, se cumpriuantes da Constituição atual, faltando apenas a aprovação do Senado e a expedi-ção final do ato de nomeação. As coisas, na verdade, se passaram de outro modo,porque as mensagens enviadas pelo Presidente Castelo Branco, ao tempo emque tinha competência para tanto, foram retiradas pelo novo Presidente e substi-tuídas por outras, quando S. Exa. já havia perdido essa competência.

Com essas considerações, Sr. Presidente, peço vênia aos eminentes Mi-nistros para divergir da maioria e conceder em parte a segurança, nos termos emque o fez o Sr. Ministro Evandro Lins.

PETIÇÃO DE HABEAS CORPUS 40.382 — DF

Relator: O Sr. Ministro Victor Nunes

Impetrante: Inezil Penna Marinho — Paciente: Silvestre Péricles de GóesMonteiro

1. O Supremo Tribunal Federal não é competente paraprocessar e julgar, originariamente, deputado ou senadoracusado de crime. 2. Acusação de crime que teria sido come-tido após a cessação do exercício funcional não acarreta acompetência especial por prerrogativa de função.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do SupremoTribunal Federal, em Sessão Plenária, na conformidade da ata do julgamento edas notas taquigráficas, por maioria de votos, não conhecer do pedido.

Brasília, 11 de dezembro de 1963 — Luiz Gallotti, Presidente — VictorNunes Leal, Relator.

RELATÓRIO

O Sr. Ministro Victor Nunes: O Dr. Inezil Penna Marinho impetra ordemde habeas corpus, ao Supremo Tribunal, contra a prisão em flagrante do Sena-dor Silvestre Péricles de Góes Monteiro, determinada pelo Presidente do Senado,Senador Auro Moura Andrade.

Junta, entre outros documentos, o auto do flagrante, lavrado pela Presidên-cia do Senado, em conseqüência dos acontecimentos ocorridos na sessão do dia4 do corrente, dos quais resultou a morte do Senador José Kairala.

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Ministro Victor Nunes

As testemunhas cujos depoimentos constam dessa peça, os SenadoresJoão Agripino e Eurico Rezende, descrevem a cena que então se desenrolou.Deixando de lado pormenores que depois serão referidos, narram esses depoen-tes, cada qual descrevendo o que presenciou mais de perto, que o Senador Arnonde Melo, ao iniciar o seu discurso, em resposta a outro que há meses fizera oSenador Silvestre Péricles, pediu licença ao Presidente para falar voltado para oseu adversário, e não para a Mesa, porque ele ameaçara matá-lo naquela oportu-nidade. O Senador Silvestre Péricles levantou-se, encaminhou-se para o oradorde dedo em riste e proferiu um insulto: “Crápula!” O Senador Arnon de Melo,imediatamente, sacou da arma e a disparou por mais de uma vez. O SenadorSilvestre Péricles protegeu-se entre as cadeiras, deslizou para um local mais fa-vorável e apontou seu revólver na direção do Senador Arnon de Melo. Foi entãodesarmado pelo Senador João Agripino, que teve o dedo ferido pelo percursor dorevólver, quando procurava arrebatá-lo.

Seguiu-se a prisão dos dois senadores. Cada um deles foi recolhido a umaunidade militar, e lavrou-se o auto do flagrante.

Os depoimentos dos indiciados confirmam, no fundamental, essa narrativa,mas cada qual apresenta a sua versão. O Senador Arnon de Melo declara quenão teve a intenção de matar o seu desafeto, mas apenas amedrontá-lo, e exprimea sua convicção de que não partiu de seu revólver o tiro que abateu o SenadorJosé Kairala. O Senador Silvestre Péricles declara que não alvejou o SenadorArnon de Melo porque não quis, receando ferir algum dos circunstantes, e queentregou sua arma, sem resistência, ao Senador João Agripino, quando se con-venceu de que já não corria risco.

No auto de flagrante, ambos foram indiciados, apontando-se o SenadorSilvestre Péricles como incurso nos arts. 121, II, e 129 do Código Penal (tentativade homicício contra o Senador Arnon de Melo e ferimento leve na pessoa doSenador João Agripino).

O presente habeas corpus é impetrado por nulidade do auto de flagrante(e, portanto, da prisão do Senador Silvestre Péricles), e por falta de justa causa.

A nulidade resultaria de não estar configurada a situação prevista no art.302 do Código de Processo Penal, que define a flagrância, e por faltar competên-cia à Mesa do Senado para lavrar o respectivo auto. Argumenta, quanto à competên-cia, com os arts. 301 e 304 do Código de Processo Penal e com os arts. 44 e 45da Constituição.

A falta de justa causa estaria demonstrada pela circunstância de ser opaciente vítima e não agressor, pois não fez uso de sua arma, e ainda por serafiançável o outro crime, de que é acusado (lesão corporal leve). Também estariaviolada a imunidade parlamentar do paciente, nos termos do art. 44 da Constituição.

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Memória Jurisprudencial

O impetrante, com a inicial e em petição posterior, juntou instantâneostomados por um fotógrafo profissional momentos antes e depois dos disparos,para provar que o paciente não tomou a iniciativa de puxar o revólver e paracorroborar a sua versão dos acontecimentos.

Lerei o inteiro teor dos depoimentos acima referidos, se vier a ser neces-sário no decorrer deste julgamento.

Solicitei informações no mesmo dia em que foi apresentado e distribuído opedido (6-12-63), e as recebi ontem à tarde (10-12-63). Nessas informações, oSenador Auro Moura Andrade, Presidente do Senado Federal, começa porhistoriar os antecedentes do lutuoso acontecimento. Menciona os ataques do Se-nador Silvestre Péricles, eleito em 3-10-58, contra o Senador Arnon de Melo,eleito em 7-10-62, e a ameaça que lhe fizera de não permitir a sua posse,marcada para o dia 31-1-63. Esses ataques e ameaças foram feitos, ou da tribunado Senado, ou pela imprensa, conforme documentação oferecida (Diário doCongresso de 12-12-62; O Globo de 25-1-63; Jornal do Comércio de 30-1-63;Diário Carioca de 30-1-63).

O Senador Arnon de Melo, que replicara ao primeiro ataque, em carta aoPresidente do Senado (Diário do Congresso de 25-1-63), respondeu às acusa-ções ulteriores com veemência, afirmando que tomaria posse “até com risco devida” (Jornal do Brasil de 30-1-63; Gazeta de Notícias de 30-1-63).

Realizou-se a posse no dia marcado, em virtude das medidas preventivasentão tomadas. Permanente e especial vigilância foi adotada pela direção daCasa, daí por diante, para evitar um encontro violento entre os dois. O SenadorArnon de Melo permaneceu fora do País alguns meses, em viagem relacionadacom suas atividades parlamentares, tendo reassumido sua cadeira no dia 4 docorrente, quando se deu o desenlace da antiga rivalidade.

Durante sua ausência do Senado, o Senador Silvestre Péricles proferiucontra ele três discursos, cuja publicação a Mesa impediu, por conter expressõesanti-regimentais. Essa resolução motivou protesto do Senador Silvestre Péricles,o que levou a Presidência a consultar a Comissão de Justiça sobre a constitucio-nalidade da censura permitida pelo art. 20 do Regimento do Senado. A Comissãonão chegou a se pronunciar sobre o parecer favorável do relator devido à atitudeagressiva do Senador Silvestre Péricles.

Feito esse resumo dos antecedentes, passo a ler as informações na parteem que descrevem os acontecimentos do dia 4:

9. “Foi nomeado Relator, naquela Comissão, o Senador EdmundoLevi, que elaborou parecer sustentando a validade da disposição regimentalconstante do art. 20 e seu § 2º. (Doc. 15)

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Reunida a Comissão de Constituição e Justiça e lido o Parecer, oSenador Silvestre Péricles, que a ela pertence, investiu com pesados insultose ameaças ao Relator, em sua atitude envolvendo a própria Comissão, a talponto que esta precisou encerrar os trabalhos sem deliberar a respeito,solicitando informações complementares ao Presidente do Senado, queforam prestadas pelo ofício de 7 de novembro. (Doc. 15A, e Doc. 15 cit.).

Deixou a Comissão de Constituição e Justiça, daí por diante, decolocar o Parecer em pauta de suas reuniões, com isto pretendendo obterum espaço de tempo razoável a que a serenidade voltasse ao SenadorSilvestre Péricles. Não voltou, como se viu, e a Comissão de Constituiçãoe Justiça não teve oportunidade de julgar a matéria.

Medidas de segurança

10. O Senador Arnon de Melo, regressando da Europa, e sabendodos discursos do Senador Silvestre Péricles, inscreveu-se para a sessãoordinária do dia 4 de dezembro.

O Presidente do Senado convocou, por isso, uma reunião da Comis-são Diretora para a manhã do dia 4, que se realizou às 10 horas, a fim deserem tomadas providências de segurança interna no Senado.

Diante da impossibilidade legal de revistar e desarmar os senadores,designou o Presidente os Senadores Rui Palmeira, 1º Secretário e GilbertoMarinho, 2º Secretário, além do Diretor-Geral, Doutor Evandro MendesVianna, para procederem a todas as medidas de segurança que se fizes-sem necessárias.

11. A designação dos referidos senadores teve também razões deordem específica: o Senador Gilberto Marinho pela sua condição de OficialGeneral do Exército e portanto conhecedor dos assuntos ligados a dispo-sitivos de segurança; e o Senador Rui Palmeira, pela sua condição de repre-sentante do Estado de Alagoas e profundo conhecedor do temperamentode ambos os desafetos.

Por força da referida reunião da Comissão Diretora e da jámencionada designação dos Senadores Gilberto Marinho e Rui Palmeira,os dispositivos montados foram, realmente, os mais adequados àscircunstâncias, tendo sido designados para vigiar os Senadores SilvestrePéricles e Arnon de Melo, dez guardas de segurança, sendo cinco paracada um, além da mobilização de toda a Guarda de Segurança do Senadoe elementos auxiliares, com instruções preventivas.

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Memória Jurisprudencial

Além disso, foi determinada rigorosa revista e desarmamento dequantos entrassem no Senado Federal, inclusive membros das famíliasdos senadores. Assim é que o genro do Senador Silvestre Péricles, capitãodo Exército, ingressou no Senado desarmado e o filho do Senador Arnonde Melo foi desarmado à entrada do Senado.

Estando já o Senador Silvestre Péricles no Plenário, a Presidênciamanteve o Senador Arnon de Melo numa das ante-salas, pedindo-lhe quesomente ingressasse depois que a sessão estivesse aberta.

A sessão do dia quatro do corrente

12. A hora regimental de abertura da sessão do Senado Federal é14:30, mas o Presidente apenas abriu a sessão às 15 horas, depois decertificar-se de que todas as medidas tinham sido adotadas.

No momento em que o Presidente ia dar a palavra ao primeiroorador inscrito, que era o Senador Arnon de Melo, o Senador Lino deMattos aproximou-se da Presidência e segredou-lhe que o SenadorSilvestre Péricles dissera que encheria a boca do Senador Arnon deMelo de balas quando este começasse a falar. Embora não pudesseacreditar que um tal fato acontecesse, pelo absurdo que ele encerrava, oPresidente achou por bem, ao dar a palavra ao Senador Arnon de Melo,fazer uma severa advertência pública. (Docs. 16: Gravação em discoda entrevista do Senador Lino de Mattos à TV 4 de São Paulo; Doc.17: Entrevista do mesmo Senador ao jornal O Estado de São Paulo;Doc. 18: Entrevista do mesmo Senador ao Jornal do Brasil).

O Senador Arnon de Melo iniciou o seu discurso da seguintemaneira: “Senhor Presidente, permita Vossa Excelência que eu faça omeu discurso olhando na direção do senhor Senador Silvestre Péricles deGóes Monteiro, que me ameaçou de matar, hoje, ao começar o meudiscurso”. (Doc. 19)

13. Ao proferir estas palavras, o Senador Silvestre Péricles levan-tou-se com extrema agitação, gritando para o Senador Arnon de Melo aexpressão “crápula” e avançando com um passo na direção daquele Sena-dor. Ato contínuo, e num só impulso, o Senador Arnon de Melo sacou orevólver e disparou dois tiros, tão rápidos, que a gravação faz parecer umsó com vibração de eco. A cronometragem desse episódio, na gravaçãoinclusa, a partir da palavra “crápula”, até a deflagração dos dois tiros,revela o vertiginoso decurso de apenas três segundos exatos. (Doc. 20:Gravação em disco dos arquivos do Serviço de Rádio-Difusão doSenado da sessão de 4 do corrente).

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Imediatamente foi o Senador Arnon de Melo dominado, com osguardas lutando pela posse da arma, que, nove segundos depois, deflagroupela terceira vez, agora para o teto do Plenário. (Doc. 20 cit.)

14. Enquanto isso ocorria em relação ao Senador Arnon de Melo, oSenador Silvestre Péricles atirou-se ao chão, deslisou entre as bancadasda direita e da esquerda, protegeu-se na penúltima bancada do centro eapontou em tiro ao alvo o seu revólver em direção ao Senador Arnon deMelo (Doc. 21).

O Senador João Agripino, que atentamente acompanhou essesmovimentos, atirou-se sobre o Senador Silvestre Péricles e segurou orevólver do mesmo, cujo gatilho, porém, foi acionado, enterrando opercursor, que detona a cápsula, no dedo do Senador João Agripino, queficou preso ao revólver. (Doc. 21 cit.)

No auto de prisão em flagrante o Senador João Agripino depõe que,assim protegido na penúltima bancada, o Senador Silvestre Péricles“punha-se em posição de tiro ao alvo de joelhos, erguia a sua arma eprocurava fazer pontaria na direção do Senador Arnon de Melo, o qual,nesse exato momento estava sendo contido por elementos policiais daCasa; que, diante do gesto do Senador Silvestre Péricles o depoentesaltou de sua cadeira e, com rapidez, avançou sobre o Senador SilvestrePéricles.” (Doc. 21 cit.)

Desarmado o senhor Silvestre Péricles, como já o havia sido osenhor Arnon de Melo, ambas as armas foram entregues ao Presidente doSenado e feita a devida apreensão.”

A seguir, o Senador Auro Moura Andrade sustenta a regularidade da pri-são em flagrante e do respectivo auto. Argumenta com o art. 307 do Código deProcesso Penal, que prevê a hipótese de crime cometido em presença de autori-dade, ou contra esta, no exercício de suas funções. O art. 307 não alude apenasà autoridade policial, a que se refere o art. 301, mas também às autoridadesadministrativas e judiciárias. Cita o informante, em tal sentido, a opinião de JoséFrederico Marques (Elementos de Direito Processual Penal, II/138) e BasileuGarcia (Comentários ao Código de Processo Penal, III/122), e o art. 26, III, doRegimento Interno do Supremo Tribunal. Da distinção apontada, resulta a compe-tência da Mesa do Senado, quando o delito é cometido no seu edifício, para efe-tuar a prisão, lavrar o auto de flagrante e realizar o inquérito. Assim determina,expressamente, o art. 400 do seu Regimento.

Por outro lado, pelo art. 45 da Constituição, que prevê a hipótese de delitocometido fora das dependências do Congresso, o auto do flagrante é apresentado

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à Câmara a que pertencer o parlamentar preso, para decidir sobre a prisão e aformação da culpa. Portanto, “quem tem o poder de resolver sobre a prisão de-cretada por autoridade policial e conceder licença para processar o parlamentartem, com mais razão, poder para mandar prendê-lo, no momento em que cometeo crime”, nas dependências do Congresso.

Sobre a alegada falta de justa causa, dizem as informações que é matériapara ser apreciada pelo juiz competente para o processo penal. Acrescentam,porém, que, pela prova colhida, “a Presidência (do Senado) se convenceu que oSenador Arnon de Melo feriu mortalmente o Senador José Kairala; e o SenadorSilvestre Péricles tentou contra a vida do Senador Arnon de Melo, só não levandoa cabo o seu intento, porque foi impedido pelo Senador João Agripino” (fl. 60).Sustenta ele “que agiu em legítima defesa; não negou, porém, que empunhava orevólver. A instrução criminal no processo, já autorizado pelo Senado, dirá se eleteve ou não a intenção de matar o Senador Arnon de Melo” (fl. 64).

Consta, aliás, das informações que 48 horas após a prisão (prazo do art.45, § 2º, da Constituição), a Comissão Diretora apresentou ao Senado o Projetode Resolução n. 47, aprovando a prisão em flagrante, autorizando a formação daculpa e determinando a remessa do inquérito à autoridade judiciária competente.Essa resolução foi aprovada em sessão extraordinária do dia 7, por 44 votoscontra 4 e uma abstenção. Nela se diz que o auto de flagrante delito foi “oportu-namente lavrado” e o inquérito “regularmente feito” (fl. 59).

Esclarecem mais as informações, que o auto do flagrante foi enviado aoJuiz competente da Vara Criminal e ao Chefe de Polícia (fl. 58). Por essa razão,pondera o Presidente do Senado que a questão de ser ou não afiançável o delito“não pode constituir já agora objeto de apreciação pelo Supremo Tribunal Federalem sua competência originária”; está “prejudicada” pela remessa dos autos aojuiz competente, a quem cabe verificar “se é caso de conceder ou não fiança”(CPP, art. 323). Com as informações, além de documentos, vieram duas grava-ções em disco: uma, da sessão do Senado em que se verificou o lutuoso aconte-cimento; outra, de uma entrevista do Senador Lino de Mattos, que a tudo assistiue que havia comunicado à Presidência a ameaça ouvida do Senador SilvestrePéricles. Poderemos ouvir essas gravações, se o Tribunal julgar conveniente.

Para concluir, informo que o impetrante solicitou a presença do paciente aesta sessão, o que deixei de determinar à vista do disposto no art. 125 do nossoRegimento. Se o Tribunal julgar a diligência necessária, poderemos suspender ojulgamento para esse efeito.

É o relatório.

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Ministro Victor Nunes

VOTO

O Sr. Ministro Victor Nunes (Relator): Pelo art. 125, § 1º, do nosso Regi-mento, a apresentação do preso, em caso de habeas corpus, só é examinadapelo Tribunal depois de verificada a sua competência para julgar o pedido. Trata-rei, portanto, preliminarmente do problema da competência.

Dispõe a Constituição, no art. 141, § 22, que “a prisão ou detenção dequalquer pessoa será imediatamente comunicada ao juiz competente que a rela-xará, se não for legal, e nos casos previstos em lei, promoverá a responsabilidadeda autoridade coatora”.

Tratando-se de parlamentar, a essa decisão do juiz deve preceder delibera-ção da Câmara respectiva, que tem competência para resolver sobre a prisão eautorizar a formação da culpa, nos termos do art. 45, § 1º, da Constituição.

Essa disposição é corolário da imunidade processual dos congressistas,que “não poderão ser (...) processados criminalmente, sem prévia licença de suacâmara” (art. 45, caput).

Confere, pois, a Constituição, no art. 45, § 1º, uma dupla atribuição àsCâmaras do Congresso Nacional. E são diferentes os efeitos jurídicos de uma ede outra.

Quando autoriza, ou não, a formação da culpa, a Câmara pratica um atodefinitivo, que não é revisível pelo Poder Judiciário, e muito menos pelo Executivo,por ser a mais alta emanação da independência do Congresso, como poder polí-tico do Estado. Tão relevante é esta prerrogativa, no sistema que adotamos, que,em princípio, “as imunidades dos membros do Congresso Nacional subsistirãodurante o Estado de sítio”; somente “poderão ser suspensas, mediante o voto dedois terços dos membros da Câmara ou do Senado, as de determinados deputa-dos ou senadores cuja liberdade se torne manifestamente incompatível com adefesa da Nação ou com a segurança das instituições políticas ou sociais”, comodispõe o art. 213.

Quer isso dizer que nem a lei que decretar o Estado de sítio pode incluir,antecipadamente, as imunidades dos congressistas federais entre as garantiasconstitucionais que, nessa emergência, ficarão suspensas (art. 207). É necessá-ria deliberação específica sobre tais ou quais parlamentares, a ser tomada pormaioria qualificada de votos, não pelo Congresso, mas pela Câmara respectiva, eessa deliberação é ainda condicionada à manifesta periculosidade do parlamentarquanto à defesa nacional ou à segurança das instituições.

Esse dispositivo, obviamente, não interfere com o poder de autorizar, ounão, a formação da culpa em caso de crime ocorrido, o qual continua, mesmodurante o sítio, a ser regulado pelo art. 45, mas corrobora a conclusão de que a

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negativa ou a concessão da licença para o processo é ato definitivo da Câmara,irrevisível por qualquer dos outros Poderes.

O mesmo não acontece com a deliberação da Câmara respectiva sobre aprisão de congressista em flagrante delito. Embora seja esta uma etapa da pró-pria autorização para o processo, uma vez concedida esta, a legalidade da prisãoem flagrante é problema que continua em aberto para o juiz criminal competente.Não é por outra razão que o Regimento do Senado manda remeter o inquérito “àautoridade judiciária competente” (art. 400, § 3º). Disposição semelhante contémo Regimento da Câmara (art. 203, § 3º).

Nem se compreende que o juiz credenciado para julgar o processo ficasseimpedido de julgar um dos seus incidentes, como é a prisão provisória do acusado.Essa conclusão resultaria da natureza da função jurisdicional, mesmo que fosseomissa a Constituição; mas esta não é omissa, porque prevê a hipótese na regrageral do art. 141, § 22, pela qual o juiz competente, a quem for comunicada aprisão de “qualquer pessoa”, deverá relaxar a prisão, “se não for legal”. A Cons-tituição diz “relaxará”, o que exprime não apenas uma faculdade, mas um deverdo juiz. Se faltar a ele, deixando de relaxar a prisão ilegal, o remédio está previstona própria Constituição: é o habeas corpus (art. 141, § 23).

Segue-se, portanto, que, tendo sido comunicada a prisão ao juiz competente,a ele pertence, em primeira mão, a competência para apreciar a sua legalidade.Passa, pois, para segundo plano a autoridade que efetuou a prisão, ou que lavrouo auto de flagrante, se este for o caso. Uma vez comunicada a prisão ao juiz, sóele fica responsável pela coação, quer convalide a prisão ilegal, quer retardeinjustificadamente o seu pronunciamento.

Essa é, portanto, a situação dos autos, porque a prisão do paciente, emcumprimento da deliberação do Senado de 7 do corrente, já foi comunicada aoJuiz da 1ª Vara Criminal desta Capital, cujo cartório forneceu ao impetrante acertidão do auto de flagrante, que se encontra à fl. 10.

Admitindo, apenas para argumentar, que o juiz esteja retardando o seupronunciamento, competente será o Tribunal de Justiça do Distrito Federal, e nãoo Supremo Tribunal, para conhecer do habeas corpus originariamente. A nossaincompetência está mencionada nas informações do Presidente do Senado, paraa apreciação da falta de justa causa quanto à natureza culposa ou dolosa de umdos delitos atribuídos ao paciente; mas, como procurei demonstrar, a nossa in-competência se estende a toda a matéria do habeas corpus, porque a legalidadedo auto de prisão em flagrante não pode ser por nós apreciada em primeira mão,uma vez que já foi remetido ao juiz de primeira instância, em cumprimento aodisposto no art. 141, § 22, da Constituição.

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É explicável que o ilustre impetrante haja batido às portas do SupremoTribunal, embora no dia da impetração o auto de flagrante já se encontrasse empoder do juiz. Naquele dia, 6 do corrente mês, o Senado ainda não havia autorizadoa formação da culpa, o que somente se verificou no dia 7. Era, pois, admissível adúvida sobre quem fosse a autoridade coatora. Se fosse a Mesa do Senado,como sustentou o impetrante, poder-se-ia defender, com mais fundamento, acompetência originária do Supremo Tribunal (CF, art. 101, I, letra h, combinadacom a letra i), embora, como disse o Dr. Procurador-Geral, seja mais corretoentender-se que o art. 101, I, letra h, da Constituição se refere à coação proveni-ente de autoridade sujeita à nossa jurisdição criminal, que não é o caso da Mesado Senado.

De qualquer modo, a dúvida inicial, justificável, desapareceu com a autori-zação para a formação da culpa, que nos foi oficialmente comunicada nas infor-mações.

A despeito disso, deveríamos conhecer do habeas corpus, se fôssemos ojuízo competente para processar e julgar, originariamente, a ação penal, por ser opaciente, notoriamente, Ministro aposentado do Tribunal de Contas da União (CF,art. 101, I, c). Em tal hipótese, a prisão deveria ser comunicada a nós, e não aojuiz de primeira instância, para que apreciássemos a legalidade da prisão, origina-riamente, sem dependência de pedido de habeas corpus, no uso da atribuiçãoprevista no art. 141, § 22, da Constituição.

Essa questão, entretanto, não foi suscitada no pedido que estamos julgando.Isso, de resto, não seria obstáculo, porque poderíamos conceder o habeascorpus por outro fundamento. Reporto-me, porém, ao voto que proferi no casodo Ministro Mário Pinotti (Rcl 473, 31-1-62). Naquela oportunidade, citando pre-cedentes do Supremo Tribunal (HC 33.440, 26-1-55; HC 38.409, 31-5-61; RE39.682, 15-7-58; RTJ 6/408; HC 35.501, 21-10-57, RTJ 4/63) e do Tribunal deSão Paulo (ac. de 16-4-47, RDA 12/65), onde tivera ocasião de se manifestar oeminente Ministro Pedro Chaves, então desembargador, o pressuposto da nossadecisão foi tratar-se de atos praticados pelo ex-Ministro da Saúde ainda no exer-cício do cargo. Em um dos precedentes então citados, ficou esclarecido que ocrime comum praticado pelo juiz já aposentado não abre a competência privile-giada por prerrogativa de função (caso do Juiz Aníbal Morais Quintão, RDA 4/63,6/408).

Por tais motivos, não conheço do pedido por falta de competência originá-ria do Supremo Tribunal. Se os eminentes colegas entenderem de modo contrá-rio, examinarei a matéria restante, isto é, a conveniência, ou não, de ser requisitadoo paciente e as alegações de nulidade do auto de prisão em flagrante e de falta dejusta causa.

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VOTO

O Sr. Ministro Evandro Lins e Silva: Estou de acordo com o eminenteRelator. Toda a sua argumentação em torno da Constituição é corroborada peloCódigo de Processo Penal. Se dúvida pudesse pairar sobre a competência doSenado para lavrar o auto de prisão em flagrante, encontraríamos o subsídio doCódigo de Processo Penal, que não permitiria que se declarasse a nulidade doflagrante desde logo. Por que não permitiria? Porque há um fato delituoso, incon-testável, a ser apurado, sem que isso importe no prévio reconhecimento da culpa-bilidade do paciente ou do co-réu. E as nulidades ocorrerão, segundo o artigo 564do Código de Processo Penal:

I - por incompetência, suspeição ou suborno do juiz;

II - por ilegitimidade de parte;

III - por falta das fórmulas ou dos termos seguintes:

a) a denúncia ou a queixa e a representação e, nos processos decontravenções penais, a portaria ou auto de prisão em flagrante;

(...)

Não se tratando de contravenção, mas de crime, desde que seja lavrado oflagrante, só o juiz competente para o seu julgamento é que poderá verificarfalhas que porventura tenham ocorrido nesse flagrante e determinar a liberdadedo acusado. No caso de legítima defesa, não se permite que o réu permaneça naprisão, de acordo com o artigo 314 do Código de Processo Penal. Evidentemente,no caso, não há, ainda, sequer uma ação penal aforada. Como decretar, pois,desde já uma nulidade?

O Sr. Ministro Vilas Boas: O fato é que há, desde já, uma prisão.

O Sr. Ministro Evandro Lins e Silva: Mas uma prisão submetida ao juiz, parao exame e a verificação de sua legalidade, ou não. Se ela for ilegal, o juiz a relaxará.A própria Constituição assim o determina. De maneira que seria prematuro decre-tar essa nulidade agora, por meio de um habeas corpus contra o ato da Mesa doSenado, que, se mal tivesse interpretado a Constituição, teria constatado um fatoem flagrante delito, teria lavrado o auto de prisão na ardência do crime, logo após oseu cometimento. Então, a atitude do Supremo Tribunal seria a de decretar a ile-galidade de um ato que qualquer pessoa do povo pode praticar, que é a prisão emflagrante de quem comete um crime, de quem acaba de cometê-lo.

A verificação do problema da responsabilidade, da culpabilidade, é posterior.A Mesa do Senado autuou em flagrante, de acordo com o seu Regimento Interno.Poderia fazê-lo? Indiscutivelmente! O artigo 307 do Código de Processo Penalprevê a hipótese da autuação em flagrante por quem não seja autoridade policial.

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Nós todos, que conhecemos o foro e nele vivemos há tantos anos, sabemos qualé a praxe que se segue nos tribunais, quando algum crime é cometido no seurecinto. Dada voz de prisão a quem infringiu uma norma penal, o juiz pode autuarem flagrante. É o que diz o artigo 307: “Quando o fato for praticado em presençada autoridade ou contra esta, no exercício de suas funções, constarão do auto anarração desse fato, a voz de prisão, as declarações que fizer o preso e os depo-imentos das testemunhas, sendo tudo assinado pela autoridade, pelo preso e pelastestemunhas e remetido imediatamente ao juiz a quem couber tomar conheci-mento do fato delituoso, se não for a autoridaade que houver presidido o auto”.Admite-se que o juiz exerça essa função de polícia judiciária. Por quê? Porque ofato é cometido no recinto de um tribunal.

O Sr. Ministro Pedro Chaves: Até quando o juiz seja vítima de um desacato.

O Sr. Ministro Evandro Lins e Silva: Nesse caso, ele pode presidir ao auto.Se o Poder Judiciário pode lavrar o flagrante, se a autoridade judicial pode pren-der o criminoso, é evidente que também a autoridade do Poder Legislativo podepresidir. O julgamento do crime imputado ao paciente não é da competência doSupremo Tribunal e sim da do juiz de primeira instância.

Com esse adminículo de ordem processual, uma vez que a matéria deordem constitucional foi plenamente examinada pelo eminente Relator, tambémconcluo não conhecendo do pedido.

VOTO

O Sr. Ministro Vilas Boas: Eu estaria de pleno acordo com o eminenteRelator, se não fosse o tempo. Este Tribunal entrará em recesso no próximo dia13, assim como todos os tribunais da Capital. É, pois, um caso de urgência. Noscasos de urgência, o Supremo Tribunal tem sempre conhecido do habeascorpus. Essa regra da competência não é rígida. Estou aqui há pouco tempo,mas tenho assistido a muitos julgamentos em que...

O Sr. Ministro Hahnemann Guimarães: V. Exa. está no Tribunal há seisanos.

O Sr. Ministro Vilas Boas: Estamos confiando demais no juiz, que poderáapreciar, ou não, o auto de prisão em flagrante, o qual pode ser nulo em nossocritério. De sorte que eu estaria de acordo com o eminente Relator — respeitaria oprincípio constitucional, que a meu ver não é rígido — se não fosse o tempo, se otempo não conspirasse contra nós. Mas as portas dos tribunais vão ser fechadas nopróximo dia 13. O paciente, um Senador da República e Ministro aposentado doTribunal de Contas, está preso. Essa prisão pode ser ilegal. Quem vai dizê-lo é o

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juiz, em primeira mão. O Supremo, porém, num caso de urgência, também pode semanifestar a respeito. De sorte que peço vênia ao eminente Relator para declararminha disposição de julgar este caso, dada a sua urgência. No mais, estou de plenoacordo com S. Exa. Devemos seguir a ordem. O auto de prisão vai para o juiz, quehomologará, ou não, esse auto, podendo relaxar a prisão. Trata-se, porém, de casode urgência. Li os autos e tenho minhas dúvidas. Trata-se de um homem que estápreso, cuja sorte estará nas mãos do juiz singular, quando o Supremo Tribunal pode-ria, seguindo a sua praxe, dar a palavra de liberdade.

VOTO

O Sr. Ministro Candido Motta Filho: Entendo, como fez ver o eminenteProcurador-Geral da República, que o problema fundamental, data venia, é o dacompetência, no seu alto significado político. Apreciando essa competência, vejoque a Mesa do Senado agiu de acordo com as determinações constitucionais,remetendo os autos à autoridade competente. De modo que não há mais razãopara o Supremo apreciar a matéria. Estou, assim, de acordo com o voto do emi-nente Relator.

DECISÃO

HC 40.382/DF — Relator: Ministro Victos Nunes. Impetrante: InezilPenna Marinho. Paciente: Silvestre Péricles de Góes Monteiro.

Como consta da ata, a decisão foi a seguinte: Não se conheceu do pedido,por não ser caso de competência originária do Tribunal, contra o voto doMinistro Vilas Boas.

Presidência do Exmo. Ministro Luiz Gallotti, na ausência do Exmo. MinistroRibeiro da Costa.

Relator: o Exmo. Ministro Victor Nunes.

Tomaram parte no julgamento os Exmos. Ministros Evandro Lins, HermesLima, Pedro Chaves, Victor Nunes Leal, Gonçalves de Oliveira, Vilas Boas,Candido Motta Filho e Hahnemann Guimarães.

Impedido: o Exmo. Ministro Lafayette de Andrada.

Brasília, 11 de dezembro de 1963 — Hugo Mósca, Vice-Diretor-Geral.

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PETIÇÃO DE HABEAS CORPUS 40.398 — DF

Foro de prerrogativa de função. Prisão em flagrante.Argüição de nulidade. Falta de justa causa. Artigos 45, 101,I, letra c, e 141, § 26, da Constituição Federal, 41, 301, 304e 307 do Código de Processo Penal.

Habeas corpus indeferido.

VOTO

O Sr. Ministro Victor Nunes: Acompanho o eminente Ministro Pedro Cha-ves. Peço vênia para seguir as notas que tomei para outro habeas corpus queestá sendo julgado conjuntamente com este.

Começando pelo problema da competência, recordo que, no HabeasCorpus n. 40.382 (11-12-63), requerido pelo Dr. Inezil Penna Marinho, em favordo mesmo paciente, assim me pronunciei:

“Essa questão, entretanto, não foi suscitada no pedido que estamosjulgando. Isso, de resto, não seria obstáculo, porque poderíamos concedero habeas corpus por outro fundamento. Reporto-me, porém, ao voto queproferi no caso do Ministro Mário Pinotti (Rcl 473, 31-1-62). Naquelaoportunidade, citando precedentes do Supremo Tribunal (HC 33.440, 26-1-55; RE 39.682, 15-7-58; RTJ 6/408; HC 35.501, 21-10-57, RTJ 4/63) e doTribunal de São Paulo (ac. de 16-4-47, RDA 12/65), onde tivera ocasiãode se manifestar o eminente Ministro Pedro Chaves, então desembarga-dor, o pressuposto da nossa decisão foi tratar-se de atos praticados peloex-Ministro da Saúde ainda no exercício do cargo. Em um dos preceden-tes então citados, ficou esclarecido que o crime comum, praticado pelo juizjá aposentado, não abre a competência privilegiada, por prerrogativa defunção (caso do Juiz Aníbal Morais Quintão, RDA 4/63, 6/408). Por taismotivos, não conheço do pedido”.

Se fôssemos competentes, para julgar a ação penal, originariamente, asalegadas irregularidades da prisão e do inquérito teriam de ser examinadas, pornós, naquela oportunidade. Segue-se que a questão da competência, a rigor, foiresolvida, no caso anterior, à base dos precedentes indicados, como premissanecessária do não-conhecimento do pedido de habeas corpus. O tema da com-petência por prerrogativa de função é bem conhecido do Tribunal, e o eminenteMinistro Pedro Chaves acaba de trazer uma notável contribuição em reforço danossa jurisprudência.

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O ilustre impetrante do primeiro dos dois pedidos que estamos julgando,citou em seu favor o Habeas Corpus n. 32.097, de Mato Grosso, julgado em 20-8-52, como se verifica nas notas taquigráficas que acabo de solicitar à Secreta-ria. O caso, entretanto, não é idêntico. Tratava-se, ali, de desembargador emexercício no Tribunal Eleitoral e o ponto em debate era saber se a competênciapara julgá-lo por crime eleitoral continuava a ser do Supremo Tribunal Federal,por sua condição de desembargador, ou se havia passado para a Justiça Eleitoral,pela natureza do delito (CF, art. 119, VII). Esta Corte decidiu que o exercício dafunção eleitoral não retirava ao paciente a sua condição de desembargador.

O Sr. Ministro Pedro Chaves: Era até uma conseqüência dessa condição.

O Sr. Ministro Victor Nunes (Relator): Portanto subsistia a Competênciado Supremo Tribunal Federal. Também se decidiu que não importava a sua con-dição de aposentado, porque a aposentadoria fora posterior à prática do crime.Por isso, constou expressamente da ementa: “Não se modificam as regras dacompetência (...) pela aposentadoria, que sobrevenha, do magistrado”.

A hipótese não é igual à que ora julgamos. O crime fora cometido aindadurante o exercício da judicatura e a ele estava vinculado. No caso dos autos, ocrime imputado ao paciente ocorreu depois da sua aposentadoria no Tribunal deContas, como está comprovado, nos autos, por certidão, circunstância que o ilus-tre advogado mencionou da tribuna. S. Exa. sustenta que essa distinção não temcabimento, mas o Sr. Ministro Pedro Chaves demonstrou, cabalmente, que elaprocede inteiramente e que a nossa jurisprudência em tal sentido deve ser, agora,reiterada.

No tocante à regularidade do flagrante e do inquérito realizado pela Mesa doSenado, não foi este assunto discutido com amplitude no caso anterior, embora o Sr.Ministro Evandro Lins houvesse desenvolvido consideração a respeito. Entretanto,para a hipótese de que fosse necessário o exame da matéria, tomei, na ocasião,algumas notas a que recorrerei, agora, na fundamentação do meu voto.

O que então alegou o impetrante, como hoje repetiu, foi que, ordinariamente,só a autoridade policial pode fazer o inquérito, segundo o art. 304, combinado como art. 4º do Código de Processo Penal. A autoridade administrativa só terá essafaculdade quando deferida por lei, como dispõe o citado art. 4º, paragráfo único.

Entretanto, o regimento interno das câmaras legislativas, no que toca à suaprópria polícia, tem força de lei, pois essa prerrogativa lhes foi atribuída comcaráter de exclusividade pelo art. 40 da Constituição. Do mesmo modo, as reso-luções das câmaras sobre o regime do seu funcionalismo tem força de lei, econtra elas não se pode opor uma lei geral, por ser inatingível, pelo legislador

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ordinário, a prerrogativa que a Constituição concedeu a cada uma das Câmarasisoladamente. Por igual razão, no tocante ao policiamento interno das Casas doCongresso, o regimento tem força de lei formal, porque assim o quis o própriolegislador constituinte, zeloso da independência dos Poderes.

O ilustre impetrante sustentou, no processo anterior, que o poder de políciadas Casas do Congresso somente alcança os parlamentares no que respeita aodesempenho de suas funções legislativas.

Esse é um problema, Sr. Presidente, que foi posto, há muitos anos, perantea Corte Suprema dos Estados Unidos, que teve ocasião de construir um famosoprecedente no remoto ano de 1821 — Anderson v. Dunn (6 Wheaton 204). Pes-soa estranha ao Congresso tentou subornar um de seus membros e foi preso eprocessado pela direção da Câmara atingida. A Corte decidiu que as Casas doCongresso tinham esse poder.

É importante esse precedente, Sr. Presidente, porque somente mais tardefoi promulgada uma lei autorizando as Câmaras a prender e processar porcontempt of Congress. A decisão do caso Anderson v. Dunn é, portanto, anteriora essa lei e se baseou, exclusivamente, no princípio da independência dos Pode-res. Em virtude dele, o Congresso e qualquer de suas Casas não podia deixar deter aquela faculdade que se lhes impugnava.

O poder de polícia e o poder de inventigação do Congresso norte-americanotêm sido objeto de numerosas decisões da Corte Suprema. Além do caso citado,recolhi em alguns autores estes outros, nos quais vários aspectos do problemasão examinados, por vezes, condenando-se as exorbitâncias do Congresso:Kilbourn v. Thompson, 103 US 168.

(1881), McGrain v. Daugherty, 273 US 135 (1927), InterstateCommerce Commission v. Brimson, 154 US 447 (1894), Harriman v.Interstate Commerce Commission, 211 US 407 (1908), Smith v. InterstateCommerce Commission, 245 US 135 (1927), in re Chapman, 166 US 661(1897), Sinclair v. United States, 279 US 263 (1929), Barry v. UnitedStates ex rel. Cunningham, 279 US 597 (1929), Marshall v. Gordon, 243US 521 (1917), Jurney v. Mac-Cracken, 294 US 125 (1935), United Statesv. Bryan, 339 US 323 (1950), United States v. Fleischman, 339 US 349(1950), Christoffel v. United States 338 US 84 (1949), Uphaus v. Wyman,360 US 72, 364 US 388, Barenblat v. United States, 360 US 109, Wilkinsonv. United States, 365 US 399, Braden v. United States, 365 US 431, UnitedStates v. Rumely, 345 US 41, Quinn v. United States, 349 US 155 (1955),Bart v. United States, 349 US 219 (1955), Ullman v. United States, 350 US

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422 (1956), Watkins v. United States, 354 US 178 (1957), Sweezy v. NewHampshire, 354 US 234 (1957), Tenney v. Brandhove, 341 US 367 (1951),Eisler v. United States 338 US 189 (1949). Vejam-se a respeito, Edward S.Corwin, The Constitution of the United States of America (1953),Alpheus T. Mason and William M. Beaney, The Supreme Court in a FreeSociety (1959), Bernard Sewartz, The Supreme Court (1957), JusticeWilliam O. Douglas, The Right of the People, 2ª ed. (1962).

Corwin, referindo-se à autoridade do Congresso sobre as testemunhasconvocadas por ele, assim nos informa (p. 85): “O explícito reconhecimento judi-cial do direito de cada Casa do Congresso mandar prender, por contempt, umatestemunha que ignora a sua intimação, ou se recusa a responder às perguntas,data do caso McGrain v. Daugherty,” que é de 1927, “mas o princípio ali aplicadotinha suas raízes numa decisão antiga, Anderson v. Dunn, que afirmou, em ter-mos amplos, o direito, que tem cada ramo do legislativo, de prender e punir pes-soa estranha por desrespeito à sua autoridade” (a person other than a memberfor contempt of its authority).

Não podia, realmente, o poder de polícia das Casas do Congresso ficaradstrito ao exercício, propriamente, da função parlamentar. Esta é uma prerroga-tiva que resguarda o Poder Legislativo de qualquer atentado, em nome de suaindependência, garantida pela Constituição Federal. Segundo essa tradição, oRegimento Interno do Senado e o da Câmara dos Deputados, em nosso País,disciplina o modo de proceder da Mesa em tais circunstâncias.

Além disso, há que distinguir, na argumentação, os problemas da prisão emflagrante e do inquérito. No caso dos autos, sustenta-se a nulidade de ambos, maso arrazoado do ilustre impetrante se refere particulamente ao inquérito.

Admitamos, por amor do debate, que a Câmara não tivesse competênciapara fazer o inquérito (competência que admito, pelas razões já enunciadas).Mas uma coisa é a nulidade da prisão em flagrante, outra coisa, a nulidade doinquérito. Qualquer autoridade, mesmo não autorizada a fazer o inquérito, podeprender em flagrante, como qualquer pessoa do povo. A autoridade, não apenaspode, mas deve. É o que dispõe, expressamente, o art. 304 do Código de ProcessoPenal. E tanto está admitida a prisão por outra autoridade que não a competentepara fazer o inquérito, que esse mesmo dispositivo manda remeter o preso à quefor competente para as investigações.

Vejamos, agora, o problema do inquérito não mais à luz do princípio cons-titucional da independência dos Poderes, mas em face da própria lei processualcomum. O art. 307 do Código de Processo Penal, citado pelo Sr. Ministro Pedro

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Chaves, prevê a hipótese de crime cometido em presença da autoridade. O Códigodiz apenas “em presença da autoridade, ou contra esta, no exercício de suasfunções”, daí haver concluído o impetrante que o vocábulo autoridade só com-preende, nesse dispositivo, a autoridade policial, que é, de ordinário, a competentepara o inquérito. Mas a parte final desse dispositivo prevê, expressamente, ahipótese de ser o crime cometido perante autoridade judiciária, determinando queo próprio juiz presidirá ao inquérito. De igual modo dispõe o nosso Regimentoquanto à polícia da Casa, no seu art. 26, § 3º, citando, embora, a antiga lei daJustiça Federal (D. 848, de 1890, art. 367).

Diante do art. 307, in fine, do Código de Processo Penal, ocorre pergun-tar: na hipótese que estamos examinando, o Senado estaria no desempenho defunção judiciária, devendo, portanto, ser equiparado às autoridades judiciáriaspara o efeito de poder a sua Mesa realizar o inquérito?

Parece que sim, Sr. Presidente. É lugar comum, no direito público, que asCâmaras exercem função judiciária, quando, por exemplo, se trata deimpeachment, porque este processo especial envolve um julgamento. Discute-sequanto à sua natureza — se penal ou política —, mas é inquestionável que essejulgamento envolve o exercício de função judiciária, porque, absolvido o acusado,não o pode punir a Justiça comum pelo mesmo crime de responsabilidade. Aquinão se cogita de impeachment, mas, nos termos do art. 45, § 1º, da Constituição,cabia ao Senado “resolver sobre a prisão”. De que natureza é esse ato de “resol-ver sobre a prisão”? O art. 141, § 22, da Constituição, atribui, como regra, essadeliberação ao juiz competente para o processo, porque manda lhe sejacomunicada imediatamente a prisão ou a detenção de qualquer pessoa, para queaprecie a sua legalidade. Tratando-se, porém, de parlamentar, a Constituiçãoconfere, em primeira mão, à Câmara respectiva, a atribuição de resolver sobre aprisão em flagrante por crime inafiançável. Trata-se, pois, de um ato substancial-mente da mesma natureza do que incumbe ao juiz criminal, pelo art. 142, § 22,embora a Câmara possa usar de critério mais amplo, não restrito às questões delegalidade. Também o júri julga de consciência, mas de qualquer modo profereum julgamento. Conclui-se, portanto, que a deliberação das Câmaras, prevista noart. 145, § 1º, da Constituição, é também de natureza jurisdicional, conquanto deefeito provisório, já que, sendo negativo, não vai além do tempo de exercício doparlamentar envolvido e, sendo positivo, transfere-se ao juiz competente o julga-mento do processo. Trata-se, pois, de ato jurisdicional, e as Câmaras, em talhipótese, devem ser equiparadas à autoridade judiciária, para proceder ao inqué-rito, nos termos do art. 307, in fine, do Código de Processo Penal. Essa equipa-ração deriva da própria Constituição.

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No caso dos autos, foi o que ocorreu. Efetuada a prisão, realizado o inquérito,o Senado deliberou, aprovando o flagrante e determinando a remessa dos autos àjustiça comum. O Senado agiu autorizado pela própria Constituição, não havendonecessidade de invocar argumento de ordem legal para que pudesse usar de umaprerrogativa envolvida no princípio da independência dos Poderes.

Resta, Sr. Presidente, o problema da falta de justa causa. Quero lembraraos eminentes colegas que, no Habeas Corpus anterior, transcrevi informaçõesdo Presidente do Senado, em que constava esta passagem:

“O Senador João Agripino, que atentamente acompanhou essesmovimentos, atirou-se sobre o Senador Silvestre Péricles e segurou orevólver do mesmo, cujo gatilho, porém, foi acionado, enterrando opercursor, que detona a cápsula, no dedo do Senador João Agripino, queficou preso ao revólver”.

Daí o indiciamento do paciente por tentativa de homicídio.

Agora, no depoimento prestado em juízo pelo ilustre Senador JoãoAgripino (que consta dos autos por certidão), aquela cena foi descrita da seguinteforma:

“(...) que nessa altura o revólver do Senador Silvestre Péricles jáestava seguro pelo depoente e pelos guardas que vieram em sua ajuda;que o depoente não sabe se o percursor do revólver do Senador SilvestrePéricles se armou ou quando o depoente colocou seu dedo polegar sobreo local onde deveria ser a testa do percursor ou se quando procuravaarrancar dito revólver da mão do Senador Silvestre Péricles; que com osmovimentos daí resultantes o percursor se armou, vindo atingir o dedopolegar direito do depoente (...)”.

Desse depoimento, prestado em juízo, não resulta firme convicção de queo Senador Silvestre Péricles tivesse acionado o gatilho.

O ilustre impetrante do segundo habeas corpus, que ora estamos julgando,exibiu da tribuna dois desenhos, para demonstrar a casualidade do ferimento namão do Senador João Agripino. Contudo, não dou muito valor a esses desenhos,porque ostentam um erro palmar. O Senador Silvestre Péricles neles aparece, empu-nhando a coronha do revólver com os quatro dedos da mão direita contrapostosao polegar. Nenhum atirador faz isso. A coronha é sempre empunhada com trêsdedos mais o polegar, porque o dedo indicador há de ficar livre para acionar ogatilho. O paciente, atirador experimentado, não poderia estar segurando o revólverpelo modo como aparece nesses desenhos.

De qualquer modo, do depoimento do Senador João Agripino não resulta afirme convicção de que o paciente houvesse engatilhado a arma e acionado o gatilho.

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Ministro Victor Nunes

Mas, como acentuou o eminente Ministro Pedro Chaves, a esta altura, o sumáriojá deve estar encerrado. Consta dos autos uma certidão de que o ilustre PromotorDr. José Paulo Pertence já pediu a pronúncia, o que pressupõe a conclusão dosumário. O ilustre impetrante declarou, porém, da tribuna, que tal ainda nãoaconteceu. Se houve alguma diligência posterior, a formação da culpa deve estarpraticamente concluída, para ser apreciada pelo juiz da pronúncia. Não meparece adequado que nos antecipemos a ele.

Além disso, não posso garantir ao Tribunal, porque não há elementos nes-tes autos, que a única prova em que se baseou a denúncia, formalmente perfeita,para atribuir ao paciente o início de execução do crime, seja o depoimento doSenador João Agripino. É possível que sim, mas não posso transmitir ao Tribunalqualquer certeza a esse respeito. Se constasse dos autos que somente o depoi-mento do Senador João Agripino serviu de apoio à denúncia, eu concederia ohabeas corpus, porque aquele depoimento não é, de modo algum, conclusivosobre esse pormenor de magna importância, isto é, se o Senador SilvestrePéricles acionou, ou não, o gatilho do revólver.

Por essas razões, Sr. Presidente, acompanho o eminente Ministro PedroChaves, negando a ordem.

PETIÇÃO DE HABEAS CORPUS 40.400 — DF

1) O poder de polícia da Câmara dos Deputados e doSenado Federal, em caso de crime cometido nas suas depen-dências, compreende, consoante o regimento, a prisão emflagrante do acusado e a realização do inquérito. 2) Acusa-ção de crime que teria sido cometido após a cessação doexercício funcional não acarreta a competência especial porprerrogativa da função. 3) Habeas corpus negado para nãose antecipar o Supremo Tribunal, no exame dos fatos, àapreciação do juízo da ação penal. 4) Votos vencidos: con-cessão da ordem por falta de justa causa.

VOTO

O Sr. Ministro Victor Nunes (Relator): Sr. Presidente, também indefiro opedido, nos termos do julgamento há pouco proferido no Habeas Corpus 40.398,devendo a Secretaria anexar a estes autos uma cópia autenticada das notastaquigráficas.

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Memória Jurisprudencial

PETIÇÃO DE HABEAS CORPUS 41.296 — DF

Impeachment — Caso do Governador Mauro Borges, deGoiás. Deferimento de liminar em habeas corpus preventivopor despacho do Ministro Relator, dada a urgência damedida. Os Governadores dos Estados, nos crimes de res-ponsabilidade, ficam sujeitos ao processo de impeachment,nos termos da Constituição do Estado, respeitado o modeloda Constituição Federal. Os Governadores respondem cri-minalmente perante o Tribunal de Justiça, depois de julgadaprocedente a acusação pela Assembléia Legislativa. Noscrimes comuns, a que se refere a Constituição, incluem-setodos e quaisquer delitos da jurisdição penal ordinária ou dajurisdição militar. Os crimes militares, pelos quais os civisrespondem na Justiça Militar, são os previstos no art. 108da Constituição Federal. Os crimes de responsabilidade sãoos previstos no art. 89 da Constituição Federal e definidospela Lei n. 1.079, de 1950. Concessão da ordem para que oGovernador somente seja processado após julgada proce-dente a acusação pela Assembléia Legislativa.

VOTO

O Sr. Ministro Victor Nunes: Depois dos doutíssimos votos que acabamosde ouvir, não seria necessário trazer novas considerações. Mas, pela relevânciado processo, pareceu-me conveniente comprovar que vários aspectos que eleoferece ao nosso exame já têm sido apreciados por este Tribunal. Não estamosdesbravando floresta virgem, mas palmilhando caminho pavimentado pela juris-prudência.

I - Discute-se a competência originária do Supremo Tribunal, porque S.Exa., o Sr. Presidente da República, negou, categoricamente, qualquer participaçãopessoal nos acontecimentos de Goiás. Mas nossa competência originária para co-nhecer do habeas corpus em casos urgentes, ainda que a autoridade coatora nãoesteja diretamente sob a jurisdição do Tribunal, data, como já foi lembrado, da Lei221, de 20-11-1894, art. 23, e foi utilizada diversas vezes, como atesta Mendonçade Azevedo, citando acórdãos de 1897,1899, 1903, 1916 e 1919 (A ConstituiçãoFederal Interpretada pelo STF, n. 1.301; Pedro Lessa, do Poder Judiciário, p.267; Castro Nunes, Teoria e Prática do Poder Judiciário, p. 248).

Em um dos julgados (20-5-1903), ponderou-se que essa prerrogativa deviaser usada com extrema prudência, porque fora conferida por lei ordinária, e nãopela Constituição (ob. cit., n. 1.322). Mas essa mesma ressalva perdeu muito de

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Ministro Victor Nunes

sua significação, porque as Constituições de 1934 (art. 76, h), de 1937 (art. 101,I, g) e de 1946 (art. 101, I, h) previram, expressamente, aquela competênciaexcepcional desta Corte. Tão longa continuidade é que permite ao nosso Regi-mento dispor sobre o assunto, nos mesmos termos (art. 22, i), como já o fazia oRegimento de 1909 (art. 16, § 2º, inciso 1º).

Que o caso presente era de urgência, nos termos da Constituição, não sepode contestar, não só pela notoriedade como pela suspensão cautelar concedidapelo eminente Relator e, ainda, pelos votos aqui proferidos.

Um dos casos julgados outrora pelo Supremo Tribunal foi o habeascorpus impetrado por Rui Barbosa e correligionários, contra autoridades esta-duais da Bahia, para que pudessem livremente fazer, ali, a propaganda de suacandidatura presidencial (HC 4.781, 5-4-1919, DO de 17-7-20, p. 12070).

O Supremo Tribunal Federal concedeu a ordem, e o Relator, EdmundoLins, assim se expressou: “Ora, segundo tal dispositivo (art. 23 da Lei 221), esteTribunal é competente para conceder, originariamente, a ordem de habeascorpus no caso de iminente perigo de consumar-se a violência, antes de outrotribunal ou juiz poder tomar conhecimento da espécie em primeira instância.

É o que, na hipótese vertente, fatalmente se daria se, ao Juízo Federal dasecção da Bahia, fosse impetrado este habeas corpus e ele o denegasse, pois orecurso de sua decisão só poderia ser decidido por este Tribunal no prazo mínimode quinze a vinte dias, ao passo que faltam apenas oito para a eleição de Presi-dente da República: claríssimo, pois, que se consumaria, plenamente, a violênciade que se arreceia o impetrante”.

Muito expressivo também foi o habeas corpus concedido, em 15-10-1910, ao Coronel Antonio Bittencourt, Governador do Amazonas, coagido a sairdo Palácio e a deixar Manaus por forças federais que agiram à revelia da Pre-sidência da República. Disse Pedro Lessa, falando pelo Tribunal: “Na espéciedos autos, a coação ilegal que sofreu (e ainda não cessou) o paciente tem sido detal modo noticiada pela imprensa diária, tem sido tão discutida nas duas Casas doCongresso Nacional, suscitando providências do Poder Executivo federal, que,tratando-se de habeas corpus, bem se pode considerar a prova do fato perfeita-mente suficiente, sendo assim desnecessário o pedido de informações”. Dizia,em seguida, “que a asserção de ter sido o Governador do Estado do Amazonasdestituído do seu cargo pelo Poder Legislativo do Estado não justifica de modoalgum a coação que sofreu, e ainda não cessou, o dito Governador, porquanto,sem apreciar a legalidade da destituição, matéria estranha ao habeas corpus,em caso nenhum podem forças federais, destacadas em um Estado, sem ordemdo Presidente da República e com violação dos preceitos constitucionais quegarantem a autonomia dos Estados, coagir um governador, ou presidente, a reti-rar-se da sede do Governo.”

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Memória Jurisprudencial

II - Pelas razões já expostas, não se pode pôr em dúvida o pressupostoda iminência ou da ameaça de coação, a que aludem a Constituição Federal, noart. 141, § 23, e o Código de Processo Penal, no art. 647. Desde os tempos daPrimeira República, vem decidindo o Supremo Tribunal que, para o habeascorpus preventivo, não é necessário comprovar a realidade da violência imi-nente, bastam fundados motivos (19-6-1918), ou razões fundadas para re-cear a violência (13-8-1913, 17-5-1916, 14-9-1918, 4-12-1912, 6-5-1914, 5-1-1910, 2-8-1913, 23-5-1914, 19-12-1914, 9-1-1915, 15-7-1916), ou fundado re-ceio (12-6-1922), ou indícios da iminência do constrangimento ilegal (23-1-1915, 9-6-1906), pois o essencial não é provar a iminência da coação, masjustificar o receio, como se decidiu em acórdão de 2-8-1916 (Cf. Mend. Aze-vedo, ob. cit., n. 1.377, 1.448 B, 1.499). Em alguns julgados daquela fase,acrescentou o Tribunal que, se for infundado o receio, “nenhum mal podeadvir” da concessão do habeas corpus preventivo; “ao contrário, servirá paraprevenir”, ao passo que “sua denegação permitirá que se consume a violênciaplanejada” (ob. cit., n. 1.333; Octavio Kelly, Jurisprudência Federal, n. 1.025,1º Supl., n. 718). E quem pode duvidar, pela evidência pública, do justificadoreceio do Governador de Goiás de ser afastado do cargo e preso preventiva-mente por um despacho judicial de primeira instância?

III - Por outro lado, baseia-se a impetração, em grande parte, na Lei n.1.079, de 10-4-1950, que regula os crimes de responsabilidade dos titulares dasmais elevadas funções públicas, inclusive Governadores de Estado, e nas disposi-ções constitucionais que essa lei desenvolveu.

O primeiro problema suscitado a esse respeito, senão nas informaçõesoficiais, pelo menos no debate extrajudicial, é a alegada inconstitucionalidadedessa lei, por falta de competência do legislador federal. Mas essa questão já foiresolvida no sentido da constitucionalidade, pelo Supremo Tribunal, no Caso deAlagoas (RMS 4.928, de 20-11-57, Cfr. Edgard Costa, Grandes Julgamentos,4/53). O pensamento vitorioso nesta Corte pode ser sintetizado nas palavras queentão proferiu o eminente Ministro Hahnemann Guimarães (p. 122): “(...) naRepresentação n. 97, do Piauí, julgada em 12 de novembro de 1947, e na Repre-sentação n. 111, de Alagoas, julgada em 23 de setembro de 1948, sustentei a tese,que mantenho, de que compete exclusivamente à União Federal, nos termos doart. 5º, XV, a, da Constituição, legislar sobre Direito Penal e o processo. Nãopode, pois, o legislador estadual definir sujeitos de responsabilidade, crimes, ór-gãos jurisdicionais e processo que não estejam previstos na lei federal. Oimpeachment é, por sua tradição anglo-americana, essencialmente, um pro-cesso judiciário-parlamentar. É um processo penal-político, e não exclusiva-mente político, como sustenta, com tanto brilho, o eminente Sr. Ministro NelsonHungria.

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Ministro Victor Nunes

Atendendo ao disposto na Constituição Federal, em seu art. 5º, n. XV, letraa, a Lei n. 1.079, de 10 de abril de 1950, sujeitou a processo de crime de respon-sabilidade os Governadores e Secretários de Estado. Fê-lo como lei principal, nãocomo lei supletiva do direito estadual. A lei citada é o elemento principal no sistemadesse processo penal e parlamentar, desse processo judiciário e parlamentar. ALei n. 1.079 adotou normas essencias, deixando que os Estados tenham o órgãojurisdicional que queiram, mas se reservou, como lei principal que é, a faculdadede suprir as omissões da legislação estadual”.

No Caso do Piauí, a que se refere o eminente Mestre, disse S. Exa.: “(...)a respeito dos artigos 67, 68 e 69 da Constituição estadual, que regulam a respon-sabilidade do Governador, eu me manifesto pela inteira inconstitucionalidade detodas as disposições, pois, segundo os pareceres dos Professores Noé de Azevedoe Joaquim Canuto Mendes de Almeida, entendo que a Constituição estadual nãopode restringir a garantia devida aos Governadores, que somente podem serresponsabilizados por fatos e segundo processo definidos em lei federal. Estaminha convicção, que se baseou nas razões aduzidas por aqueles eminentes juris-tas, impõe o reconhecimento da inconstitucionalidade dos artigos 67, 68 e 69”.(Rp 97, 12-11-47, E. Costa, ob. cit. 2/341, 378).

O mesmo entendimento já expressava Epitácio Pessoa no regime de 91,ao discutir, como Relator, o Caso Aurelino Leal (HC 2.385, 18-8-1906): “Podeo Estado votar uma lei de responsabilidade para os seus funcionários? Não. Umalei que define crimes e lhes comina penas é uma lei substantiva e, como tal,excede à esfera de ação dos Estados — Constituição, art. 34, n. 23. Dir-se-á queesta pena é uma simples medida política e, como tal, pode ser criada pelo Estado.Mas não deixa de ser uma pena, e, como não há pena sem crime, o Estado teráde definir os crimes a que é ela aplicável (...), o que escapa à sua competência.Demais é uma medida cuja aplicação retarda e pode até burlar (...) a execuçãoda Constituição e do Código Penal. Nem se invoque o direito que o Estado tem deprescrever as condições de demissibilidade dos seus funcionários, pois este direitosó pode ir ao ponto em que não ofenda a ação das leis federais”. (Epitácio Pessoa,Acórdãos e Votos, 1955, p. 190.)

É certo que o Tribunal, na ocasião, não apreciou aquele aspecto da causa,porque deixou de conhecer do HC que fora requerido contra o paciente por umadversário político, tal como viria a acontecer cinqüenta anos depois, em casoque me coube relatar (HC 39.811, 3-4-63, DJ de 14-6-63, p. 391). Mas, em outroprocesso, de 8-11-1917, o Supremo Tribunal afirmou a competência do legisladorfederal para definir os crimes de responsabilidade, excluída a competência dosEstados (Mend. de Azevedo, ob. cit., n. 330; Rev. For. 31/364, HC 4.116).

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Portanto, estudar e decidir o caso presente em face do que dispõe uma leifederal (Lei 1.079, de 1950) é orientação que remonta à mais antiga tradição doSupremo Tribunal.

IV - Por essa lei e pelos dispositivos constitucionais a que se filia, nãopodemos deixar de concluir pela necessária antecedência do processo deimpeachment quanto ao processo perante a Justiça comum (em qualquer dosseus ramos, ordinários ou especiais), nos crimes de responsabilidade dos titularesdos poderes políticos.

Esse princípio está na doutrina dos melhores escritores, bastando que mereporte aos subsídios vulgarizados pelos que mais desenvolvidamente estudaramo assunto entre nós: Cfr. RF 16/72, 25/124, 26/367, 26/453, 27/103, 125/93, 125/108, 125/604.

Já no Império, não era diverso o nosso Direito Constitucional, consoante alição de Pimenta Bueno (Direito Público Brasileiro, ed. de 1958, p. 113): “(...) aConstituição brasileira, com toda a sabedoria, não só firmou a responsabilidadeministerial em seus arts. 132 e 133 (...), mas declarou privativa da Câmara dosDeputados a atribuição de decretar a acusação, assim desses agentes do PoderExecutivo, como dos Conselheiros de Estado (...) Ainda quando o Senado nãohouvesse de ser o tribunal de julgamento (...), é manifesto que a atribuição deque nos ocupamos não deveria ser encarregada senão aos deputados daNação, guardas avançados de suas instituições e liberdades”.

A precedência do julgamento pelo crime de responsabilidade, que é ex-pressa nas nossas Constituições em relação ao Presidente da República (1891,art. 53; 1934, art. 58; 1937, art. 86; 1946, art. 88), foi adotada, em fórmula ampla,pelo art. 12, § 8º, da Lei 221, de 1894: “O crime comum ou de responsabilidadeconexo com o crime político será processado e julgado pelas autoridades judiciá-rias competentes para conhecer do crime político, sem prejuízo das atribuiçõesde outro Poder constituído para previamente julgar da capacidade política doresponsável para exercer o mesmo ou qualquer outro cargo público”.

A cláusula, que nesse texto se contém, sobre o julgamento prévio da “ca-pacidade política” para o exercício do cargo corresponde, precisamente, à etapado impeachment, quando o acusado é titular de um poder político. Basta ver que,julgando um caso em que se reclamava revisão criminal para um julgamento deimpeachment, o Supremo Tribunal, ao negar a pretensão, usou de expressõesmuito semelhantes às do art. 12, § 8º, da Lei 221: “O julgamento político não temoutro objetivo senão averiguar se o empregado possui ou não as condiçõesrequeridas para continuar no desempenho de suas funções (...)” (ac. de 22-7-1890, Mend. de Azevedo, ob. cit., n. 1.835).

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Vê-se, pois, que a Lei 1.079, de 1950, ao estabelecer a precedência dojulgamento político nos crimes de responsabilidade, também remonta à nossamais antiga tradição republicana. E essa tradição continua viva, como se vê naSúmula 301 do Supremo Tribunal, sobre o julgamento dos crimes de responsabi-lidade dos prefeitos municipais. No primeiro dos precedentes citados na Súmula,o eminente Ministro Luiz Gallotti demonstrou, com apoio na Lei 1.079, que oimpeachment deve preceder ao indictment (RHC 38.619, 22-11-61).

V - Os atos criminosos atribuídos ao Governador Mauro Borges referem-se,como evidenciou o eminente Relator, ao exercício do cargo de Governador doEstado.

Pelo art. 74 da Lei 1.079, são crimes de responsabilidade dos Governadorestodos os definidos na mesma lei, inclusive, portanto, de acordo com o art. 89 daConstituição, os mesmos atos que seriam crime de responsabilidade, se fossempraticados pelo Presidente da República. Entre outros:

a) os que atentarem contra a existência da União (art. 4º, I), definidos noart. 5º, abrangendo vinculações com potência estrangeira, em detrimento do nossoPaís;

b) os que atentarem contra o exercício dos direitos políticos, individuais esociais (art. 4º, III), capitulados no art. 7º, que compreendem diversas formas deatividade subversiva, bem como a tolerância para com crimes ou abusos de auto-ridades diretamente subordinadas;

c) os que atentarem contra a segurança interna do País (art. 4º, IV), ca-racterizados no art. 8º, englobando também atos de subversão e de tolerânciapara com transgressões às leis;

d) os que atentarem contra a probidade na administração (art. 4º, V), enu-merados no art. 9º, incluindo o procedimento incompatível com a dignidade, ahonra e o decoro do cargo;

e) os que atentarem contra o cumprimento das decisões judiciárias (art. 4º,VIII), especificados no art. 12.

Nesse amplo elenco de crimes de responsabilidade, não é possível deixarde incluir a atividade subversiva que, pela Lei de Segurança, pudesse recair nacompetência da Justiça Militar. E o encarregado-geral dos inquéritos, ao encami-nhar os autos à Auditoria Militar da IV Região, assim despachou: “(...) os fatosapurados constituem crime contra o Estado e a ordem política e social previstosna Lei n. 1.802, de 5-1-53 (...)”.

O art. 78 da Lei 1.079 estabelece alguns princípios a serem observados noprocesso de impeachment pelo Direito Constitucional estadual, limita os efeitos

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Memória Jurisprudencial

do julgamento político e dispõe sobre omissões da Constituição do Estado a res-peito. Nesse e em outros artigos da lei ficou expresso, em correspondência como disposto na Constituição Federal para o Presidente da República, que o julga-mento político dos crimes de responsabilidade dos Governadores se desdobra emdois juízos: o de acusação, ou pronúncia, pela Assembléia Legislativa; o de julga-mento, pelo órgão indicado na Constituição estadual, ou, na sua falta, por umtribunal misto regulado na própria Lei 1.079.

VI - Ao restringir os efeitos da condenação política à perda do cargo e àinabilitação para o exercício de função pública (art. 78), ressalva a Lei 1.079:“sem prejuízo da ação da justiça comum”.

Dir-se-á que a expressão Justiça comum não abrangeria a Justiça Militar,do mesmo modo que a Constituição de Goiás, ao dar competência ao Tribunal deJustiça para julgar o Governador do Estado “nos crimes comuns” (art. 57, VII,a), também não incluiria os crimes militares.

Mas, em leis que definem crimes de responsabilidade e dispõem sobre o tribu-nal que há de julgar esses crimes, as expressões Justiça comum e crime comumestão empregadas em oposição a juízo político e a crime de responsabilidade. A ex-pressão Justiça comum abrange, portanto, todos os ramos da justiça, que não sejamde caráter político, inclusive a Justiça Militar, e a expressão crimes comuns, todos oscrimes que não sejam de responsabilidade, sem excluir os militares.

Se assim não fosse, o argumento que estamos considerando provariademais. Provaria que também o Presidente da República, os Ministros de Estado etodos os outros titulares que têm foro privilegiado, como os próprios juízes dostribunais federais superiores, poderiam ser julgados, nos crimes militares, pelaJustiça Militar, já que a Constituição, quando lhes dá foro especial para os crimescomuns, também não alude aos crimes militares (art. 101, I, a, b e c). Note-se,a esse respeito, essa grave subversão hierárquica: enquanto os Ministros doSupremo Tribunal Federal seriam por ele julgados, todos os demais juízes dostribunais federais superiores seriam julgados pela Justiça Militar de 1ª instância(Cfr. Decreto-Lei 925, de 2-12-38, art. 91, a, e 94, a).

Bastam essas considerações ad absurdum para mostrar que os pregoeirosda hegemonia da Justiça Militar deixaram de lado a lógica jurídica. Contrariam,além disso, recente decisão do Supremo Tribunal, no Caso Plínio Coelho (HC41.049, 4-11-64).

Haveremos, pois, de concluir que também a Justiça Militar, quando o crimede responsabilidade for igualmente crime militar, não pode atuar antes do processode impeachment, ou antes da cessação do exercício do acusado, se por algumarazão tiver competência.

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VII - A Constituição Federal, inspirando-se no regime norte-americano,instituiu todo esse mecanismo para, de um lado, reprimir a falta de exação noexercício das altas funções do Estado e, de outro, garantir eficazmente o livreexercício dos poderes políticos, porque “todo poder emana do povo” (art. 1º).Para destituir os governantes, dada a relevância da função política, o prévio julga-mento dos seus atos é realizado, pelo menos em uma das fases, por um órgãopolítico, que também deriva a sua legitimidade da mesma fonte, isto é, do povo,por meio de eleições.

A contra-prova dessa garantia está em que a Constituição define comocrime de responsabilidade, mesmo para o Presidente da República, atentar con-tra o livre exercício dos poderes constitucionais, seja da União, seja dos Esta-dos (art. 89, II).

Outra evidência de que é o exercício do poder político que se protegeencontramos na circunstância de não ser necessário o prévio julgamento políticoquando o titular já estiver afastado do cargo, como decidiu o Supremo Tribunal noCaso Epitácio Pessoa. Em tal hipótese, o que subsiste é o foro especial paraproteção da pessoa do ex-governante, se a acusação se funda em ato praticadono exercício do cargo. Assim tem decidido o Supremo Tribunal, não só no CasoEpitácio como em diversos outros, referidos nas Súmulas n. 394 e 396.

Todo esse mecanismo de salvaguarda do exercício dos poderes políticosruiria se o Presidente da República ou os Governadores de Estados pudessemser presos e, portanto, suspensos ou destituídos, por um simples despacho daJustiça comum (incluindo nessa expressão a Militar), sobretudo de juízes deprimeira instância. Se isso fosse possível, os juízes, mesmo os inferiores, é quegovernariam o País, em lugar dos titulares legitimados pelo voto popular, de ondeemana o poder.

Que esse sistema protetivo também ampara os poderes constitucionais dosEstados não pode haver a menor dúvida. Em primeiro lugar, como já sublinhado,porque atentar contra o exercício desses poderes também constitui crime de res-ponsabilidade, por expressa disposição constitucional (art. 89, II). Em segundo, por-que essa conclusão se impõe sob o ângulo da autonomia estadual.

A permanência dos Governadores em seus cargos é apenas um aspectoda autonomia dos Estados, garantida pelo regime federativo que adotamos há 75anos. Quando, para afastá-los, é posto em movimento o processo político doimpeachment, tudo se passa no âmbito do Estado. São observadas as leis daUnião, mas fica resguardada a autonomia estadual.

Para que o afastamento possa resultar de ato de autoridade federal, aConstituição estabeleceu a válvula da intervenção, definindo os casos em queserá decretada. Mas não prevê outra forma de amputação da autonomia estadual,

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e o processo da intervenção está a cargo do Presidente da República, do CongressoNacional, do Supremo Tribunal Federal e do Tribunal Superior Eleitoral, com suasatribuições minuciosamente definidas na própria Constituição (arts. 7º a 14).

Nesse sistema fechado, não há base na Constituição para essa forma indi-reta de intervenção federal, que consistiria na prisão preventiva do Governadorpor despacho de juízes de primeira instância. Se pudesse haver uma deposiçãotão sumária, que federação seria esta?

Sr. Presidente, concedo a ordem, nos termos do voto do eminente Relator.

RECURSO EXTRAORDINÁRIO 54.190 — CE

Imposto do selo — É devido em contrato com autarquiafirmado após a Emenda Constitucional n. 5, de 21-11-61.

Recurso extraordinário da União conhecido e provido.

VOTO

O Sr. Ministro Victor Nunes: Sr. Presidente, quero pedir a tolerância doseminentes colegas para uma exposição mais longa, a fim de bem situar meupensamento na matéria em debate, que tem várias implicações.

Em primeiro lugar, direi que o assunto não está ainda regulado naSúmula 303.

O Sr. Ministro Gonçalves de Oliveira: Está, a contrario sensu.

O Sr. Ministro Victor Nunes: Exatamente por isso, eminente MinistroGonçalves de Oliveira, é que me parece não estar previsto.

O Sr. Ministro Gonçalves de Oliveira: Interpreto a Súmula, posto tenhasido redigida por V. Exa., que está. O que diz a Súmula é o seguinte:

“Não é devido o imposto federal de selo em contrato firmado comautarquia anteriormente à vigência da Emenda Constitucional n. 5, de21-11-61”.

Por mais que V. Exa. queira interpretar esse dispositivo, evidentementeque estabeleceu que, depois da emenda, é devido. Do contrário, que sentido teriaa referência à Emenda n. 5? Podemos fazer uma revisão, evidentemente, emface dos argumentos que V. Exa. apresentar, mas que está prevista a não-isen-ção, a meu ver, está prevista no sentido de que é devido o selo nos contratosposteriores à Emenda Constitucional n. 5.

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O Sr. Ministro Pedro Chaves: Seria inócua a emenda se não se chegasse aessa conclusão.

O Sr. Ministro Victor Nunes: Retomando o fio do meu raciocínio, contradi-tado antecipadamente pelos eminentes Ministros Gonçalves de Oliveira e PedroChaves, peço vênia para uma consideração preliminar. Se tivermos de interpretara Súmula com todos os recursos da hermenêutica, como interpretamos as leis,parece-me que a Súmula perderá sua principal vantagem. Muitas vezes seráapenas uma nova complicação sobre as complicações já existentes. A Súmuladeve ser entendida pelo que ela exprime claramente e não, a contrário sensu,com entrelinhas, ampliações ou restrições. Ela pretende pôr termo a dúvidas deinterpretação e não gerar outras dúvidas.

No ponto em debate, a Súmula declara que é devido o selo nos contratoscelebrados anteriormente à Emenda Constitucional n. 5. Mas não afirma que,celebrado o contrato posteriormente, o selo seja devido.

O Sr. Ministro Gonçalves de Oliveira: Mas não era preciso dizer. Quesentido terá o termo assinalado, “anteriormente à Emenda n. 5”? Não era precisodizer que depois da emenda o selo é devido.

O Sr. Ministro Victor Nunes: Parece-me que era. Assim procedemos emoutros casos. Exemplificarei com as Súmulas 66 e 67.

O Sr. Ministro Gonçalves de Oliveira: Não podemos interpretar a Súmulacom outra Súmula, porque, então, teríamos de dizer: “posteriormente à Emenda, oimposto não é devido também”.

O Sr. Ministro Victor Nunes: A Súmula foi criada para pôr termo a dúvi-das. Se ela própria puder ser objeto de interpretação laboriosa, de modo quetenhamos de interpretar com novas dúvidas o sentido da Súmula, então ela per-derá a sua razão de ser.

O Sr. Ministro Pedro Chaves: Há referência, nessa Súmula, a casos julgados.

O Sr. Ministro Victor Nunes: Nenhum caso de contrato posterior à EmendaConstitucional foi julgado ainda em Plenário.

Pediria a V. Exa. a fineza de acompanhar o meu raciocínio. Vejamos ocaso do aumento de imposto antes ou depois da vigência do orçamento. Paraisso, a Súmula adotou duas regras. No n. 66, dispõe que “é legítima a cobrançado tributo que houver sido aumentado após o orçamento, mas antes do início dorespectivo exercício financeiro”. No n. 67, diz que “é inconstitucional a cobrançado tributo que houver sido criado ou aumentado no mesmo exercício financeiro”.

Há vários outros exemplos de igual teor na Súmula, que me dispenso decitar para não ser mais cansativo.

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Memória Jurisprudencial

Haverá redundância, talvez, mas a Súmula se destina a pôr termo a dúvi-das e não a gerar novas dúvidas.

O Sr. Ministro Gonçalves de Oliveira: Não precisava a segunda, porqueela decorria da primeira.

O Sr. Ministro Victor Nunes: Não precisaria, se a Súmula devesse serinterpretada como um texto de lei, mas não me parece que assim deva ser.

O Sr. Ministro Pedro Chaves: O que é lamentável é que V. Exa. estejadestruindo a sua grande obra, que é a confecção da Súmula.

O Sr. Ministro Victor Nunes: Faço um apelo aos eminentes colegas paranão interpretarmos a Súmula de forma diferente do que nela se exprime inten-cional e claramente. Do contrário, a Súmula falhará, em grande parte, à suafinalidade. Quando a Súmula afirma que não é devido o selo se o contrato forcelebrado anteriormente à vigência da Emenda Constitucional n. 5, sobre essaafirmação, e somente sobre ela, é que já está tranqüila a orientação do Tribunal.Quanto a ser devido o selo nos contratos posteriores, o Tribunal Pleno aindanão definiu a sua jurisprudência.

O Sr. Ministro Gonçalves de Oliveira: Era melhor não ter posto nada, por-que, na Primeira Turma, julgamos pacificamente neste sentido.

O Sr. Ministro Victor Nunes: Sim. A primeira Turma sempre tem julgado,pacificamente, em tal sentido. Mas em Plenário é a primeira vez que se discute oproblema. Em todos os casos indicados na Súmula 303, o contrato era anterior àEmenda.

O Sr. Ministro Gonçalves de Oliveira: Eu mesmo fui Relator de mandadode segurança no Pleno.

O Sr. Ministro Victor Nunes: É a primeira vez que tenho a honra de discutiro assunto no Plenário. De outras vezes em que os eminentes colegas avançaramseu ponto de vista quanto à incidência do selo nos contratos posteriores à Emenda,sempre observei que deixava de apreciar essa questão, porque o caso concretose referia a contrato anterior à Emenda.

Esta questão, Sr. Presidente, envolve, como dizia, vários problemas. Háum primeiro problema, que é o da imunidade tributária recíproca das entidadestributantes. Essa imunidade, como é sabido, foi considerada implícita na Consti-tuição dos Estados Unidos. O princípio foi firmado por Marshall, no famoso casoMcCulloch vs. Maryland (1819), ao negar a esse Estado o poder de lançar im-posto sobre o Banco dos Estados Unidos, criado pela União.

O Sr. Ministro Gonçalves de Oliveira: V. Exa. se refere ao problema detributações.

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Ministro Victor Nunes

O Sr. Ministro Victor Nunes: Estou, apenas, escalonando o meu raciocíniopara ser mais claro no seu desenvolvimento.

O Sr. Ministro Gonçalves de Oliveira: Com a devida vênia, a questão não ébem essa. É a questão da tributação da União pela própria União.

O Sr. Ministro Victor Nunes: Estou dando o primeiro passo para chegaraté lá. Nos Estados Unidos, não se entendeu que fosse necessário um textoexpresso para estabelecer a imunidade recíproca das entidades tributantes. Asnossas Constituições, já baseadas nessa tradição do direito norte-americano, epara evitar controvérsia, incluíram o princípio da imunidade recíproca no seu texto.É, atualmente, o que dispõe o art. 31, V, a.

O Sr. Ministro Gonçalves de Oliveira: E também os comentadores, comoAurelino Leal e Ruy Barbosa, diziam que era desnecessário.

O Sr. Ministro Victor Nunes: A Constituição, portanto, não se preocupouem dispor que a União tem imunidade em face de si mesma, porque essa conclu-são resultava com tal evidência, que, só pelo gosto de ser pleonástico, o legisladorconstituinte o diria de modo expresso. E os eminentes Ministros Pedro Chaves eGonçalves de Oliveira, ainda há pouco, afirmaram que a imunidade da Uniãoquanto aos seus próprios tributos é coisa que está a salvo de qualquer discussão.

O texto primitivo do art. 15, § 5º, da Constituição vedava a cobrança do selofederal sobre os atos jurídicos, ou os seus instrumentos, quando fossem partes aUnião, os Estados ou os Municípios. Não teria razão de ser a referência à União,aos Estados e aos Municípios quando se tratasse de interesse dessas entidades.O que a Constituição consagrou nesse dispositivo não foi, portanto, o princípio daimunidade recíproca, nem uma aplicação dele, porque já expresso com amplitudeno art. 31, V, a.

Por outro lado, proibia o dispositivo, como ainda se lê na redação atual, acobrança do selo federal quando o ato, ou o seu instrumento, estivesse incluído nacompetência tributária dos Estados e dos Municípios. Ainda aqui não se explica-ria ele em função da imunidade recíproca. Mas se explica como cautela expressapara evitar bitributação. Se tal ou qual ato recai na competência tributária dosEstados ou dos Municípios, sobre ele não deverá incidir o selo federal. Aliás, avedação da bitributação já tem formulação mais ampla quanto a impostos novos,no art. 21.

Conclui-se destas observações que, quando o art. 15, § 5º (redação ante-rior), se referiu expressamente aos atos e instrumentos em que fosse parte aUnião, o que realmente quis o constituinte, como disse o Sr. Ministro Gonçalves deOliveira, foi isentar o ato do selo federal, quaisquer que fossem os demais partici-pantes dele, inclusive particulares. Eis porque a nossa jurisprudência, em taiscasos, também estendia a isenção ao particular, porque, estando isento o ato,como o seu instrumento, nenhum dos participantes ficaria sujeito ao selo, únicainterpretação que poderia ter a mencionada cláusula constitucional.

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Veio a Emenda Constitucional n. 5 e, transformando o antigo § 5º do art. 15 em§ 7º, dele suprimiu justamente a cláusula “quando forem partes a União, os Estadosou os Municípios”, relativamente aos atos jurídicos ou aos seus instrumentos.

Dessa exclusão, resulta um primeiro problema que não oferece dificuldademaior: se do ato participa um Estado ou um Município, desapareceu, em relaçãoa eles, a imunidade.

O Sr. Ministro Gonçalves de Oliveira: Se o Estado ou o Município for oresponsável pelo pagamento do selo, não paga, porque, pelo art. 31, não se podecobrar.

O Sr. Ministro Victor Nunes: Exatamente. A imunidade dos Estados eMunicípios em face da União não resultava do art. 15, § 5º, mas do art. 31, V, a.Portanto, em nenhuma hipótese, pelo fato de se ter suprimido a citada cláusula doart. 15, § 5º, poderá o selo federal incidir sobre os Estados e os Municípios. Emoutras palavras, a supressão daquela cláusula não teve o efeito, nem o propósito,de abolir ou reduzir a imunidade dos Municípios, nem a dos Estados, nem a daUnião, nem a das autarquias.

Qual o sentido, então, de se terem eliminado aquelas palavras do art. 15, §5º? Que foi que essa exclusão permitiu à União tributar com o selo? Permitiu,justamente, que se tribute o particular que eventualmente seja parte em ato jurídi-co firmado com a União, os Estados, os Municípios, ou suas autarquias. Tendo-seem vista a jurisprudência dos tribunais, sobretudo a do Supremo Tribunal, permi-tiu a Emenda que a União, na Lei do Selo, estabeleça para o particular, emboracontratando com entidade de direito público, a obrigação de pagar o selo federal.

Por tais razões, Sr. Presidente, não posso aceitar o primeiro argumento, deordem legal, do ilustre advogado da recorrente, de que sobreviveu a questionadaisenção, pela própria Lei do Selo, que ainda não foi expressamente alterada notexto correspondente ao antigo § 5º do art. 15 da Constituição. Como a lei fezreferência expressa ao texto constitucional, proibitivo, uma vez eliminada aproibição constitucional, ficou plenamente válida a Lei do Selo na parte em quemanda o particular pagar o selo. Ficou plenamente válido o § 3º do seu art. 2º, queassim dispõe:

“Havendo mais de um signatário, se algum deles gozar de isenção, oônus do imposto recairá sobre os demais.”

Por força desse dispositivo, que não está mais em choque com a Constitui-ção, é que se cobra do particular o selo federal nos casos que estamos apreciando.É evidente, pelas considerações anteriormente deduzidas, que a intenção do Con-gresso, ao emendar a Constituição, foi permitir essa tributação ao legislador federalordinário.

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Ministro Victor Nunes

Resta, porém, o problema da repercussão do imposto, argumento de or-dem constitucional, também desenvolvido pelo ilustre advogado no escalonamentodo seu raciocínio. Se o selo, embora pago aparentemente pelo particular, se trans-fere, na realidade, para a União, o Estado ou o Município, pelo fenômeno darepercussão, será devido o imposto?

O problema da repercussão não é destituído de importância jurídica, poistemos negado a repetição do indébito fiscal quando se trata de impostos indiretos,pelo argumento de que o ônus recaiu em outrem que não o solvens. O solvensperde o direito de repetir, porque, na realidade, não sofreu o ônus fiscal. É o quedispõe a Súmula 71.

Figuremos, então, a situação inversa, em que uma entidade protegida pelaimunidade tributária suporta, realmente, pela repercussão, o ônus do imposto.Deve prevalecer o imposto?

Nesta parte, Sr. Presidente, data venia dos eminentes Ministros que en-tendem de modo contrário, acompanho o raciocínio do advogado, apoiado pelosSrs. Ministros Vilas Boas e Hermes Lima. Sempre que de um contrato resultar,de modo inequívoco, que o ônus tributário está sendo suportado pela União, pelosEstados, pelos Municípios, ou por suas autarquias, o selo não é devido, porquenão teria sentido que a União tributasse a si mesma, ainda que indiretamente. Ese quisesse, ainda que indiretamente, tributar os Estados ou os Municípios, não opoderia fazer, porque vedado pela Constituição. Não podemos reconhecer osefeitos jurídicos da repercussão tributária apenas para negar direito aos particula-res que pedem repetição de impostos indiretos, e negar esses efeitos quando osparticulares, defendendo-se, também defendem o patrimônio público das conse-qüências da repercussão tributária.

No caso dos autos, Sr. Presidente, tudo indica que o ônus do imposto re-percutiu sobre a União, ou melhor, sobre autarquia federal, o Departamento Na-cional de Estradas de Rodagem.

O Sr. Ministro Gonçalves de Oliveira: Então, V. Exa. interpreta, portanto,como impossível a cobrança do tributo, mesmo nos contratos agora realizados eaté mesmo naqueles em que há uma vedação ao legislador ordinário, pela Emen-da Constitucional n. 5. V. Exa., com isso, restabelece aquilo que o legislador consti-tuinte quis evitar.

O Sr. Ministro Victor Nunes: Se V. Exa. atentar melhor para o meu racio-cínio, verá que não, porque em muitos casos o imposto não repercute.

O Sr. Ministro Gonçalves de Oliveira: Vamos ficar no caso do Departa-mento Nacional de Estradas de Rodagem. V. Exa. vai verificar o seguinte: emtodos os contratos celebrados com o Departamento Nacional de Estradas deRodagem, em qualquer época, mesmo que haja lei expressa neste sentido, decorreda Constituição, pelo voto de V. Exa., que não se paga o selo. V. Exa., portanto,revoga a Emenda Constitucional n. 5.

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O Sr. Ministro Victor Nunes: Não. Se o Departamento Nacional de Estra-das de Rodagem fizer um contrato de locação em que seja locador, será devido oselo, porque não haverá repercussão. O que sustento é que não será devido oselo nos casos em que se verificar o fenômeno da repercussão contraentidade protegida pela imunidade.

Se um particular pede empréstimo à Caixa Econômica, o ato, que antes daEmenda Constitucional não era tributável, passou a ser, recaindo o imposto sobreo mutuário.

O Sr. Ministro Gonçalves de Oliveira: A conseqüência do voto de V. Exa.é que nem o legislador ordinário pode estabelecer imposto de selo nos contratosde empreitada celebrados com o DNER.

O Sr. Ministro Victor Nunes: Poderá, se quem executa o serviço é oDNER, porque, então, o imposto repercutirá sobre o patrimônio do particular que,por hipótese, é o outro contratante. Meu pensamento é bem claro, Sr. Presidente.Se houver repercussão do imposto sobre o patrimônio de pessoa jurídicade direito público, protegida pela imunidade, o imposto é indevido; senão houver repercussão, o imposto é devido. Como se vê, meu raciocínionão revoga a Emenda Constitucional n. 5, apenas a interpreta em função deprincípios jurídicos consagrados.

O Sr. Ministro Evandro Lins: Isso ocorreria sempre.

O Sr. Ministro Victor Nunes: Nem sempre. Acabei de mencionar casos, comoos dos financiamentos por autarquia, em que o imposto é devido. Estamos discutindoum problema constitucional e devemos atentar para todas as suas implicações.

O Sr. Ministro Evandro Lins: Já havia isenção, na vigência da EmendaConstitucional n. 5, para a prestação de serviços que V. Exa. traz como exemplo.

O Sr. Ministro Victor Nunes: Há pouco se pediu ao Sr. Ministro Vilas Boasque discutisse o problema no plano constitucional. Agora me arrastam do problemaconstitucional para o plano legal.

Lamento muito que os apartes dos eminentes colegas me obriguem a meafastar do ponto fundamental em debate. Peço vênia para repetir o meu pensa-mento. Antes da Emenda Constitucional n. 5, o ato em que interviesse a União,um Estado, um Município, ou qualquer de suas autarquias, estava isento de selo,qualquer que fosse a pessoa sobre cujo patrimônio recaísse, na realidade, o ônusdo imposto. Depois da Emenda, sempre que o ônus do imposto recair, na realidade,sobre o particular, sem que haja repercussão contra a entidade de direito público,o imposto passou a ser devido. Mas se houver a repercussão de modo que, emúltima análise, o ônus fiscal recaia sobre a União, um Estado, um Município ouuma autarquia, então o imposto não será devido.

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Portanto, está claro o meu pensamento. Faço essa distinção no planoconstitucional, interpretando a Emenda Constitucional n. 5 em face do princípioda imunidade.

No caso concreto, como se trata de empreitada em que o DepartamentoNacional de Estradas de Rodagem é o empreitador, e não o empreiteiro, as des-pesas da obra, inclusive as fiscais, terão de ser carregadas ao Departamento,porque o empreiteiro não trabalha de graça nem contrata para tomar prejuízo.Em última análise, a autarquia federal, pelo fenômeno da repercussão, é que teráde pagar o tributo. Mas ela está protegida pela imunidade, não pelo art. 15, maspelo art. 31, V, a, da Constituição.

Assim, conheço do recurso, mas para lhe negar provimento.

RECURSO EXTRAORDINÁRIO 56.880 — DFAGRAVO DE INSTRUMENTO 32.869 — DF

RECURSO EM MANDADO DE SEGURANÇA 14.230 — DF

Caso Hanna. Cancelamento de averbações de minas ejazidas. Ao Presidente da República, que, em nosso regimepolítico constitucional, é o responsável pela administraçãopública do País, tendo em vista os altos interesses públicos eda própria segurança nacional, deverá ser presente o pro-cesso administrativo instaurado no Ministério de Minas eEnergia, por determinação governamental, para uma soluçãoque consulte os reais interesses da Nação. Provido, em parte,o recurso ordinário, prejudicados os recursos da União.

VOTO

O Sr. Ministro Victor Nunes: Sr. Presidente, peço vênia aos eminentescolegas para uma ponderação preliminar, e a faço com o máximo respeito. A nãoser no voto do Sr. Ministro Gonçalves de Oliveira, parece-me que os demais, nume noutro sentido, prejulgaram um processo administrativo que, de acordo com alei, ainda não chegou ao seu termo.

Que houve neste caso? O Presidente Jânio Quadros mandou proceder auma investigação a respeito da regularidade de certas concessões ou autoriza-ções para exploração de minérios.

Para não ser infiel, quero fazer este relato com as palavras do memorial daprópria recorrente, cujo primeiro subscritor é o eminente Professor Vicente Ráo:

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Memória Jurisprudencial

“Duas ou três comissões foram criadas com esse objetivo. Asprimeiras parecem não ter conseguido construir bases técnicas ou legaispara uma ação contra essas explorações, e uma outra foi designada pelaPortaria MME-100, publicada no Diário Oficial de 26-6-1961. Tambémessa encontrou dificuldade em reunir a unanimidade dos seus membros, esomente depois da alteração das conclusões finais inicialmente propostasfoi possível chegar a um relatório conclusivo, assinado com data de 31 dejulho de 1961.

A Comissão selecionou algumas minas do quadrilátero ferríferopara ser objeto de sua análise, e as agrupou em 40 itens. Desses 40 itens,nove se referiam a minas da Novalimense. As minas analisadas eram dointeresse de 17 empresas diversas, inclusive três sociedades de economiamista.”

Mais adiante:

“Examinando a situação jurídica dessas minas, afirmou a comissão(sem qualquer fundamentação da sua tese) que várias delas (inclusiveas da Novalimense) estavam em situação irregular porque:

a) no caso de minas que haviam sido objeto de manifesto (em1935/6) por empresas estrangeiras, e cujos direitos de exploração haviamsido posteriormente transferidos para empresas organizadas no Brasil,essa transferência (feita 23 anos antes) tinha sido ilegal pois:

I - a empresa estrangeira não podia transferir os seus direitos; e

II - as empresas com acionistas ao portador ou estrangeirosnão podiam ser cessionárias desses direitos.

b) as retificações de manifesto de jazida para minas eram ilegais.”

Continua o memorial:

“Dezessete dias depois (a 17-8-61) o Ministro das Minas e Energiasubmetia o relatório da Comissão, acompanhado dos 21 pareceres jurídicos,à aprovação do Presidente da República, propondo:

‘a) aprovar as conclusões e recomendações constantes defolhas 69 a 73, com a instauração do processo administrativo para adeclaração de nulidade das autorizações feitas irregularmente ecaducidade das que vêm sendo feitas infringindo o Código de Minas,na sua exploração’.”

Tomamos, então, o processo no ponto em que o Presidente da Repúblicadeterminou que se fizesse o necessário expediente administrativo para (textual-mente) “declaração da nulidade das autorizações feitas irregularmente, e da ca-ducidade das que vêm infringindo o Código de Minas, na sua exploração”.

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Ministro Victor Nunes

O Sr. Ministro de Minas e Energia proferiu, a seguir, o despacho já lidopelo eminente Ministro Relator, que é objeto da impetração.

Os Srs. Ministros que concedem a segurança argumentam que foi violadoo disposto nos arts. 26 e 38 do Código de Minas quanto às formalidades e quantoà competência.

O Sr. Ministro Prado Kelly: Consente V. Exa.? Não foi esse o meu argu-mento. Foi tão-só o da falta de competência do Ministro para cancelar aaverbação antes feita. Falta de competência constitucional foi o meu único argu-mento, tanto que, em seguida, declarei que, se qualquer das hipóteses figuradasse verificasse, estariam abertos os caminhos ao Governo Federal para promovera anulação dos atos viciosos, apurar responsabilidades, pleitear a reparação dodano sofrido. E, ao deferir a segurança, o fiz sem prejuízo de ulterior procedimentoda União em defesa dos seus direitos ou, se for o caso, do exercício das faculdadesque lhe outorga o citado art. 21, in fine, do Ato das Disposições Transitórias.

V. Exa. está dando ao despacho do Presidente Jânio Quadros uma extensãoque não comporta. É uma recomendação feita às autoridades para procederem naforma das leis e regulamentos administrativos.

O Sr. Ministro Victor Nunes: Não concluí ainda o meu raciocínio, mas não setrata de recomendação. Trata-se de determinação após uma investigação concreta.

O Sr. Ministro Prado Kelly: Sim, mas em geral.

O Sr. Ministro Victor Nunes: Específica, para o caso.

O Sr. Ministro Prado Kelly: Para todos os casos; em todas as hipóteses emque houvesse fatos denunciáveis, haveria instauração de processo.

O Sr. Ministro Victor Nunes: Peço perdão pela insistência, mas não podemosdivergir quanto aos fatos. O despacho referia-se a todas as irregularidades, mas queforam apuradas na investigação prévia que tinha sido realizada e que era objeto dorelatório. S. Exa., o Sr. Presidente da República, aprovou um relatório; portanto,uma investigação específica.

O Sr. Ministro Prado Kelly: Mas era abrangente de todas as hipótesesanálogas; S. Exa. determinava às autoridades que procedessem em defesa dointeresse da União, iniciando os processos em cada caso.

O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: Permite o eminente Ministro Victor Nunesum minuto de interferência?

O Sr. Ministro Victor Nunes: Pois não.

O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: Fui quem recordou aqui, em primeirolugar, a aplicação analógica dos arts. 26 e 38 do Código de Minas atual. Se essa

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lei estabelece um processo contraditório com defesa da parte, prazos para defesa,etc., para os casos de caducidade e anulação, temos de admitir que isso é aplicáveltambém a essa hipótese.

O Decreto 24.642 autorizou a lavra, o funcionamento por parte dessa com-panhia impetrante. O efeito é interromper esse despacho do saudoso MinistroGabriel Passos.

Se, no caso de uma simples concessão, deve-se ouvir a parte, muito maisquando a firma estava de posse de uma situação de direito, em que se lhe atribuíamminas exploradas anteriormente à Constituição de 34.

O Sr. Ministro Victor Nunes: Agradeço os esclarecimentos, mas eles nãoperturbam o desenvolvimento do meu raciocínio. Se o eminente Ministro PradoKelly não indicou expressamente os arts. 26 e 38, mencionou o vício de incom-petência do Ministro, e é este aspecto que desejo examinar quando aludo aosartigos citados pelo eminente Ministro Aliomar Baleeiro, pois eles traduziram, emtermos de legislação minerária, o problema de competência focalizado nos votosque dão provimento ao recurso.

Vejamos o que dizem esses dispositivos e os que lhes estão vinculados. Oart. 24 refere-se particularmente ao processo de autorização de pesquisa; o art.38, ao de lavra.

O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: Se, pelo menos, se dá essa cautela, commaior razão se dará pelo máximo.

O Sr. Ministro Victor Nunes: V. Exa. verá que o meu raciocínio está sendoconduzido por outro caminho. O art. 24 diz em que condições caduca a autoriza-ção de pesquisa. O art. 25 prevê a anulação da autorização de pesquisa. E o art.26, compreendendo as duas hipóteses (caducidade e anulação), dispõe:

“Antes de decretada a caducidade ou a anulação, os seus motivosserão aduzidos e processados administrativamente, sendo intimada a partea, dentro de sessenta dias, apresentar contestação. Se a parte não fizeroposição, ou se os motivos por ela oferecidos e postos em prova nãoilidirem a imputação e as provas já produzidas, o Ministro da Agriculturapronunciará a caducidade, em despacho motivado”.

Mas tanto o art. 24, no parágrafo único, como art. 25 (o primeiro tratandoda caducidade e o segundo da anulação) dizem que esses atos se formalizam emdecreto do Presidente da República.

Há, pois, aparentemente, uma contradição na própria lei, entre os arts. 24 e25, de um lado, e o art. 26, de outro. Os dois primeiros falam em decreto do Presi-dente, o último em despacho do Ministro.

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Ministro Victor Nunes

Mas não existe tal contradição. É que a lei não deu a esse despacho doMinistro, embora pronunciando a caducidade, o efeito de despacho terminativodo processo. Prevê que o processo ainda tenha de subir ao Presidente da Repú-blica, para lhe dar a solução final em forma de decreto.

Isso, no que toca à pesquisa. Mas vem o art. 38, referente à lavra, e diz amesma coisa quando faz remissão ao art. 26:

“A nulidade das autorizações de lavra feita com infração do dispostoneste Código poderá ser declarada, mediante processo administrativo, pordecreto do Presidente da República, observados o prazo e formalidades doart. 26, ou por sentença judicial (...)”.

Portanto, tudo quanto está no art. 26, sobre a pesquisa, também está noart. 38, que se refere à lavra. Ambos prevêem um despacho ministerial, declarandoa caducidade, mandando, apesar disso, que o processo suba ao Presidente daRepública para decisão final. Conclui-se, pois, que, pela própria lei, aquele despa-cho ministerial não é terminativo do processo, como observou o eminente MinistroGonçalves de Oliveira em seu douto voto.

Assentada essa conclusão preliminar, que é que estamos discutindo nestepedido de segurança, nos termos em que foi posto o debate?

Os que a negam afirmam que era ilegal o ato anterior que admitira retifica-ção do manifesto dos depósitos minerais da impetrante (quero evitar, por ora, oemprego da palavra mina). Esses votos, portanto, data venia, prejulgam o pro-cesso administrativo num sentido. Do mesmo modo procedem, mas em sentidoinverso, os que dão provimento ao recurso, quando afirmam que foi ilegal eabusivo o ato ministerial, porque a exploração da mina já vinha de muito tempo,desde antes da Constituição de 34, sendo, pois, incontestável o direito à sua ex-ploração, na condição de lavra. É possível que o Sr. Ministro Prado Kelly nãotenha ido tão longe, afirmando o direito da recorrente à efetiva exploração.

O Sr. Ministro Prado Kelly: Já que V. Exa. me faz a honra de citar-me arespeito, há de consentir que, nesse caso, corrobore o meu pensamento. O des-pacho cancelador das averbações diz o seguinte:

“Aprovo o parecer de fls. 103/104, do Sr. Consultor Jurídico. Emconseqüência, cancelem-se as averbações irregularmente processadas.Determine o DNPM a cessação imediata das explorações concedidaspelos cancelamentos e acompanhe a execução das medidas de desapro-priação das terras necessárias à exploração das referidas jazidas que fi-cam com o seu aproveitamento destinado a Sociedade em que a Uniãofigure com maioria de capital. Em 14 de junho de 1962. Gabriel deRezende Passos”.

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Era despacho terminativo do feito e, logo, executório. Se se tratasse deuma exposição de motivos ao Presidente da República para que ele baixasse umdecreto reformatório do decreto no qual se ampara a impetrante, então, nãohaveria vício a nulificá-la, não haveria incompetência — esta à falta de qualidadedo Ministro de Estado.

O Sr. Ministro Victor Nunes: Neste ponto está a nossa divergência: sobrea natureza do despacho ministerial.

O Sr. Ministro Prado Kelly: Só o Presidente do tempo poderia alterar a suaprópria deliberação.

O Sr. Ministro Gonçalves de Oliveira (Relator): Daí a conclusão do meuvoto, no sentido de que o processo fosse à conclusão do Sr. Presidente da Repú-blica.

O Sr. Ministro Prado Kelly: O despacho é executório e terminativo, e nãotinha competência o saudoso Ministro de Minas e Energia para reformar, comelementos de convicção própria, um decreto baixado pelo Presidente da República.

O Sr. Ministro Adalicio Nogueira: O mandado de segurança é contra o atodo Presidente da República.

O Sr. Ministro Prado Kelly: Na hierarquia das leis...

O Sr. Ministro Gonçalves de Oliveira (Relator): Sr. Presidente, peço aoeminente Ministro Victor Nunes permissão para interromper seu douto voto, afim de dar um pronunciamento, como Relator.

Este é um processo de grande relevância nacional. Uma companhia es-trangeira, quiçá irregularmente, obteve alteração de autorizações para concessãode pesquisas de minérios. O eminente Ministro Hermes Lima mostrou, em seuvoto — aliás, repetindo a minha argumentação —, que a companhia sabia, perfei-tamente, a legislação quando requereu, em 1934, o manifesto de suas proprie-dades. E fez, distintamente: “minas de ouro e prata” (eram minas) e “jazidas deferro”. Depois, em vez de sair das dificuldades de pedir uma concessão, porqueo capital da Nova Limense era estrangeiro, em vez de apresentar-se perante asautoridades, veio com uma alteração de averbação de transferência: “em vez dejazidas, são minas”. Então, eu entendi que o Sr. Presidente da República mandouque o Ministro de Minas e Energia providenciasse a respeito, e o Ministro GabrielPassos deu decisão definitiva ao processo. Os eminentes Ministros que votarampelo deferimento da segurança, parece que dão força irrestrita à propriedade damina pela companhia recorrente. Este é um grave problema nacional.

O Sr. Ministro Prado Kelly: Isso não está em causa.

O Sr. Ministro Gonçalves de Oliveira (Relator): ...problema de segurançanacional. Esse processo não deve ser paralisado ele deve, a meu ver, ser levadoao Presidente da República, para pedir o pronunciamento do Ministério de Minase Energia.

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Ministro Victor Nunes

Vamos, então, conceder uma segurança e fica tudo como era antes, paraque as autoridades façam, ou não, o processo administrativo?

O Sr. Ministro Prado Kelly: Elas é que têm de velar pelo interesse nacional.

O Sr. Ministro Gonçalves de Oliveira (Relator): O Presidente da Repúblicaé que deve decidir. O Supremo Tribunal não pode trancar o andamento desseprocesso administrativo.

O Sr. Ministro Prado Kelly: O Supremo Tribunal não o está trancando. OTribunal está examinando tão-só o despacho.

O Sr. Ministro Gonçalves de Oliveira (Relator): Com a devida vênia, tranca.O Governo será árbitro da conveniência de averbar, ou não, de julgar, em defini-tivo, o processo administrativo. Entendo que o processo está aberto e entendoque ele deve ser decidido pelo Governo Federal.

O Sr. Ministro Prado Kelly: De inteiro acordo com V. Exa. neste ponto: oprocesso continua aberto e será decidido pelo Governo Federal. O que não seconvalida é o vício de competência, é o ato terminativo, como V. Exa. considera,do Sr. Ministro de Minas e Energia.

O Sr. Ministro Gonçalves de Oliveira (Relator): O que eu entendo é que,assim, o processo ficará trancado, o que não deve prevalecer.

O Sr. Ministro Prado Kelly: O mandado de segurança é só contra o ato doMinistro, contra o vício de competência.

O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: Nós não podemos ordenar o processo.

O Sr. Ministro Prado Kelly: Nem é de nossas atribuições.

O Sr. Ministro Victor Nunes: Sr. Presidente, apreciei muito o debate que setravou à margem do meu voto. Peço vênia para voltar ao esclarecimento dadopelo eminente Ministro Prado Kelly a respeito do despacho do Sr. MinistroGabriel Passos. S. Exa. disse que aquele despacho era executório e, portanto,terminativo do feito. Conforme essa argumentação, o Ministro não tinha compe-tência para terminar o processo.

O Sr. Ministro Prado Kelly: Muito bem!

O Sr. Ministro Victor Nunes: Concordo. Mas o que sustento é que tinhacompetência para pronunciar a caducidade, porque a lei lhe dava essa compe-tência, em texto expresso.

O Sr. Ministro Prado Kelly: Ante certas formalidades legais. Acho que nãohouve...

O Sr. Ministro Victor Nunes: Vou chegar a esse ponto. Apenas não desejoalterar a linha do meu raciocínio.

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Então, onde há excesso no despacho impugnado? O excesso está na pre-sunção de que ficou encerrado o processo administrativo com o despacho minis-terial, já que o Ministro não o podia fazer.

O Sr. Ministro Prado Kelly: O excesso está em cancelar uma averbaçãoobjeto de decreto do Presidente da República.

O Sr. Ministro Victor Nunes: O Sr. Presidente da República não praticouqualquer ato sobre essa averbação. Não há qualquer ato do Presidente da Repú-blica aprovando essa averbação. Nem o Código de Minas regula expressamenteesse tipo de averbação. O Código de Minas trata da autorização de pesquisa e daconcessão de lavra. Estamos todos argumentando, analogicamente, com a lavra.Por quê? Porque, feita aquela averbação, as partes interessadas, de um lado, e oMinistério da Agricultura, de outro, interpretaram aquele ato como reconheci-mento do direito de lavra, pois, quanto à averbação, especificamente, nada há noCódigo. Estamos aplicando àquela averbação, analogicamente, o que o Códigodispõe sobre a lavra.

Por isso é que eu, citando o art. 38, que remete ao art. 26, procurei mostrarque a lei manda que o Ministro pronuncie a caducidade em despacho motivado.Concluí, assim, que não tinha havido excesso nesse ponto. O excesso resultariade um equívoco, porque, agora, tanto as partes, de um lado, ao impetrarem omandado de segurança, como a administração, de outro, ao defender-se, inter-pretam aquele despacho ministerial como conclusivo.

O Sr. Ministro Prado Kelly: Declarou-o o eminente Relator, dando-lheessa inteligência.

O Sr. Ministro Victor Nunes: O Sr. Ministro Relator não o considerouterminativo do processo administrativo; por isso, vou acompanhar o voto de S.Exa. Realmente, aquele despacho não é terminativo. Ele foi proferido porque oart. 26 manda que seja proferido despacho pronunciando a caducidade. E o quese segue, pelo Código, é o encaminhamento do processo ao Sr. Presidente daRepública, para que o decida em definitivo na instância administrativa.

Dir-se-á que foi outro Presidente quem mandou fazer o processo, não oatual. Para mim, isso não tem maior importância, porque foi a Presidência daRepública que mandou fazer o processo. Pelo princípio da continuidade adminis-trativa, a Presidência da República deve julgar o processo, pouco importando queele tenha começado sob um Presidente e termine sob outro, ou que nesseinterregno vários Ministros se tenham sucedido na pasta de Minas e Energia.

O que há é um processo administrativo, mandado instaurar pelo Presidenteda República, impessoalmente considerado, e que ainda não chegou às suasmãos para receber a decisão definitiva. Se o despacho ministerial teve o intento(como parece resultar de sua letra) de interromper esse processamento, dou

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provimento, em parte, ao recurso, para que o processamento não se interrompa eos autos administrativos subam até o Sr. Presidente da República, para lhe dar adecisão que for de direito.

Não profiro voto mais amplo, num sentido ou noutro, porque não possoprejulgar o mérito do processo administrativo.

O Sr. Ministro Prado Kelly: Nenhum de nós está prejulgando. Pelo contrário,fizemos ressalvas expressas.

O Sr. Ministro Victor Nunes: Não julgo o mérito, em primeiro lugar, porque oassunto, a meu ver, está pendente de decisão presidencial, que devemos aguardar.Em segundo, porque há matéria de prova, sobre a qual se controverte, como, porexemplo, a questão da antigüidade, ou não, da exploração da mina. Outro problemade prova, com implicações jurídicas, é o da suspensão dessa exploração: saber seessa suspensão foi longa demais ou se foi de duração razoável, que não chegasse acomprometer o direito da parte.

Como o eminente Ministro Hermes Lima discutiu este último problema,lembro que o Decreto-Lei 5.201, de 18-1-43, dele tratou no art. 1º: “As minasmanifestadas como em lavra transitoriamente suspensa, de acordo com o art. 10do Decreto n. 24.642, de 10 de julho de 1934, terão sua lavra suspensa definitiva-mente, se não for reiniciada dentro do prazo de um ano, a partir da publicaçãodeste decreto-lei, salvo os casos de força maior reconhecidos pelo Governo”. Aementa desse decreto-lei era esta: “Define a transitoriedade da suspensão dalavra das minas, prevista no § 4º do art. 143 da Constituição”.

Portanto, há também esse problema de prova — nem sei se há elementossuficientes nos autos: saber se, no prazo de um ano, a partir de 18-1-43, foi ou nãoreiniciada a exploração dos depósitos minerais a que se refere o processo, ou se,não o tendo sido, a parte comprovou, perante a administração, impedimento deforça maior.

Por conseguinte, não só não devo prejulgar o processo administrativo,como não o posso fazer, seja por falta de elementos, seja porque há matéria defato controvertida.

O Sr. Ministro Prado Kelly: É exatamente a nossa posição.

O Sr. Ministro Victor Nunes: V. Exa. me perdoe, mas nosso raciocínio nãoé exatamente coincidente.

O Sr. Ministro Prado Kelly: É pelo menos a minha, com as ressalvas quefiz, e que coincidem com as que V. Exa. fez.

O Sr. Ministro Victor Nunes: Espero que me releve a insistência, lembrandoem que termos se define a divergência. Enquanto V. Exa. anula o ato do Ministrode Minas e Energia, eu não o anulo; só anularia as conseqüências executórias, masnesta parte o Tribunal Federal de Recursos já concedeu a segurança.

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O Sr. Ministro Prado Kelly: V. Exa. não anula o ato, mas o modifica emseus efeitos; V. Exa. revê o ato para dar-lhe uma interpretação que não é aresultante do seu contexto. Só por isso é que tive que impugnar a validade do atocomo razão de meu voto.

O Sr. Ministro Victor Nunes: Na ausência de qualquer texto do Código deMinas sobre a averbação de que ora se cogita, estou aplicando, analogicamente,como todos estamos fazendo, os arts. 26 e 38, que tratam da lavra. O art. 26manda que o Ministério da Agricultura (hoje, o de Minas e Energia) pronuncie acaducidade da lavra em despacho motivado. Qual é o equivalente da caducidadeda lavra, em se tratando da averbação ora questionada e que não está prevista nalei? É o cancelamento da averbação. O despacho ficou, portanto, nos limites dalei. A sua execução imediata é que iria além da lei.

O Sr. Ministro Luiz Gallotti: O art. 26 refere-se a processo administrativo,que, no caso, não houve, nem foi iniciado. O Presidente Jânio Quadros mandoupromover o processo. Que houve depois? Iniciou-se o processo? O Ministro dasMinas e Energia chamou o Consultor Jurídico e lhe disse que queria um parecer,que foi dado. Mas isso não é processo administrativo.

O Sr. Ministro Victor Nunes: É processo administrativo, com um únicodefeito: a parte não foi ouvida, como disse o eminente Ministro Gonçalves deOliveira. Foi proferido o despacho, antecipadamente, sem audiência da parte.Mas, como esse despacho, em face da lei, não é executório, e como o TribunalFederal de Recursos já deu, em parte, a segurança para que as providênciascomplementares não se executem sem a audiência da parte, também posso man-dar, regularizando o processamento, que, antes da subida do processo à Presidên-cia da República para decisão final, a parte seja ouvida na forma da lei. Ficará,então, suprida a falta, abrindo-se oportunidade à defesa.

O Sr. Ministro Luiz Gallotti: O eminente Ministro Gonçalves de Oliveira eV. Exa. mandam que a parte seja ouvida antes que o processo suba ao Presidenteda República. O próprio art. 26, entretanto, ordena que, feito o processo adminis-trativo, o Ministro se pronuncie.

O Sr. Ministro Gonçalves de Oliveira (Relator): E mande o processo aoPresidente da República.

O Sr. Ministro Luiz Gallotti: Então, essas duas coisas não se conciliam.Uma coisa é fazer processo administrativo, pronunciar-se o Ministro sobre ele esubir o processo ao Presidente da República para que decida; e outra coisa émandar a parte falar, subindo os autos, em seguida, ao Presidente da República,sem que tenha havido o processo administrativo, conforme prevê a lei e ordenouo Presidente Jânio Quadros.

O Sr. Ministro Gonçalves de Oliveira (Relator): Não há exaustão admi-nistrativa. O Ministro de Minas e Energia pode mudar seu ponto de vista.

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O Sr. Ministro Luiz Gallotti: Então já não é o que foi dito no voto de V. Exa.:ouvir-se a parte e remeterem-se, em seguida, os autos ao Presidente da República.

O Sr. Ministro Gonçalves de Oliveira (Relator): Não. Na esfera administra-tiva, não há esse rigor de exaustão da competência. O Ministro, ao encaminhar oprocesso, pode, sem dúvida, opinar e até modificar o pronunciamento anterior.

O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: Não podemos fazer uma espécie de des-pacho saneador neste processo.

O Sr. Ministro Gonçalves de Oliveira (Relator): Não quero que fique semsolução o processo administrativo, que não fique sem andamento esse caso. Énesse sentido o meu voto.

O Sr. Ministro Luiz Gallotti: Andamento deverá ter. O Ministério de Minase Energia deve dar andamento, ou melhor dizendo, deve dar início ao processoadministrativo.

O Sr. Ministro Prado Kelly: No momento, reservam-se ao Poder Executi-vo todos os caminhos para o exercício das suas funções constitucionais e admi-nistrativas. O Governo disporá de todos os elementos para a defesa do interessenacional, se acaso esse interesse estiver comprometido.

O Sr. Ministro Victor Nunes: Não é a mesma coisa.

O Sr. Ministro Prado Kelly: Não estou dizendo que seja.

O Sr. Ministro Gonçalves de Oliveira (Relator): Folgo muito em registrar oaparte de V. Exa., porque o meu cuidado neste processo é que ele não fiqueencerrado, que continue em andamento até ser decidido pelo Presidente da Re-pública, que determinou a sua instauração.

O Sr. Ministro Prado Kelly: Nós estávamos muito perto. As nossas inten-ções coincidiam, como coincide o nosso zelo, de uma e de outra parte, em relaçãoà defesa dos interesses econômicos do Brasil.

O Sr. Ministro Gonçalves de Oliveira (Relator): Agradeço e folgo muitoem registrar o aparte de V. Exa., porque esse processo administrativo não podeficar paralisado; deve ficar na esfera administrativa até a decisão do Presidenteda República.

O Sr. Ministro Luiz Gallotti: Foi o que o Presidente da República mandoufazer, e não se fez. Fez-se coisa diferente. Penso que o Ministério de Minas eEnergia tem o dever de cumprir o despacho do Presidente enquanto não forrevogado. Qual o despacho do Presidente Jânio Quadros? Mandou promover oprocesso administrativo.

Mas, isso não foi feito.

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O Sr. Ministro Victor Nunes: Vou concluir meu voto, Sr. Presidente. Não éa mesma coisa dar a segurança em parte, para que o processo suba à deliberaçãopresidencial, depois de ouvido o interessado, com amplos meios de defesa, oudizer que o Presidente da República tem, em tese, todos os poderes que a Cons-tituição lhe confere para tratar, ou não, desse assunto.

O Sr. Ministro Luiz Gallotti: Não digo só isso. Digo que o processo admi-nistrativo deve ser iniciado e ter andamento.

O Sr. Ministro Victor Nunes: Eu não me referia, particularmente, à obser-vação de V. Exa.

Prosseguindo em meu raciocínio, pondero que já há um processo adminis-trativo instaurado por ordem do Presidente da República. Esse processo, corrigidonas suas irregularidades — que são a falta de defesa e o caráter executório quese pretende dar ao despacho ministerial —, é que deve subir à deliberação presi-dencial. Há, pois, uma diferença prática importante.

A conclusão do meu voto, portanto, Sr. Presidente, é concedendo a segu-rança em parte, para o fim indicado. Faço ressalva pessoal quanto às considera-ções finais do voto do Sr. Ministro Gonçalves de Oliveira, que se referem a fatosfuturos, que eu só apreciaria em outra oportunidade, quando, porventura, ocor-ressem e fôssemos chamados a decidir.

RECURSO EXTRAORDINÁRIO 58.505 — RSRECURSO EM MANDADO DE SEGURANÇA 15.207 — RS

Prefeitura municipal. Vacância anômala e simultânea doscargos de Prefeito e Vice-Prefeito. Cassação de mandatospor força do Ato Institucional. Sucessão ou substituiçãopelo Presidente da Câmara Municipal. Eleição direta ouindireta. Interpretação da Constituição Federal, artigos 5º,XV, a, 7º, VII, 28, 79, § 2º, e 134, caput; do artigo 155 daConstituição do Estado do Rio Grande do Sul; e da LeiOrgânica do Município de Porto Alegre.

VOTO

O Sr. Ministro Victor Nunes: Sr. Presidente, peço vênia ao eminenteMinistro Pedro Chaves, cujas lições tanto aprecio neste Tribunal, para observar omeu dever de coerência diante de trabalhos escritos em 1948, 1949 e 1952, e devotos aqui proferidos, na Representação n. 515, em 1962, e na Representação n.600, no corrente ano.

O que se discute, neste processo, é se ofende a Constituição Federal o art.155, parágrafo único, da Constituição do Rio Grande do Sul, na parte em que

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permite ao Presidente da Câmara Municipal, em caso de vaga dos lugares dePrefeito e Vice-Prefeito, suceder-lhes no cargo até o término do mandato.

No caso de Porto Alegre, como já foi observado, a vacância simultânea daPrefeitura e da Vice-Prefeitura ocorreu na primeira metade do período da admi-nistração municipal, que começou em 1º de janeiro de 1964 para uma duração dequatro anos.

Ao julgar a Representação n. 600, da Guanabara, sobre a eleição indiretado Vice-Governador, reportei-me ao voto proferido na Representação n. 515, de1962. Disse eu, então:

“Se a eleição indireta lá (isto é, no caso do Estado do Rio) tivessesido no primeiro período, eu entenderia que era inconstitucional, porque,havendo o princípio federal da obrigatoriedade da eleição direta no art. 134e não tendo a Constituição, no art. 79, § 2º, admitido que pudesse havereleição indireta no primeiro período, então, vigorava a regra geral daeleição direta. Se tivesse de haver eleição no primeiro período, a eleiçãodeveria ser direta, porque não havia, na Constituição, nenhuma exceção aesse respeito.

Mas, tratando-se de eleição no segundo período, acrescendo o fatode que a Constituição não prevê a figura do Vice-Governador, deixandoque o Estado a crie ou deixe de criar, pareceu-me que o Estado tinhaliberdade de fazer, no segundo período, a eleição direta ou a indireta, ou nãofazer eleição nenhuma: deixar, simplesmente, que o Presidente da Assem-bléia assumisse o lugar (...)”.

Portanto, Sr. Presidente, o meu voto, hoje, neste caso de Porto Alegre, estárigorosamente predeterminado pelos que emiti nas citadas representações, ondefocalizei, expressamente, a alternativa de que votaria pela inconstitucionalidade,se a eleição indireta houvesse ocorrido na primeira metade do período de governo.

Argumenta-se, agora, com a autoridade dos eminentes colegas que pen-sam de modo contrário, que a organização dos poderes pertence ao Direito Cons-titucional, e não ao Direito Eleitoral, e, portanto, não estaria implicado, neste pro-cesso, problema da forma de eleição, mas apenas a competência do Estado parase organizar e aos seus Municípios.

Permito-me ponderar que, na organização dos poderes, há um problemaque é de pura organização: dizer, por exemplo, quais são os poderes e lhes definira competência. Mas, no que respeita à investidura dos órgãos instituídos, o quetemos, em verdade, é um problema misto, desde que se tenha adotado o princípioda representação popular, como fez a nossa Constituição, ao tornar obrigatória,tanto para os Estados como para a União, no art. 7º, VII, a forma republicana

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representativa. E assim é porque a representação popular só se realiza por meiode eleição. A República representativa não conhece outra forma de representa-ção que não seja a eleição, e a eleição pode ser direta ou indireta.

Segue-se que a investidura do órgão não é um puro problema de organiza-ção do poder. É um problema misto, envolvendo matéria eleitoral, cuja legislaçãopertence, no regime brasileiro, à União. À Constituição Federal, em primeirolugar, e à lei federal, a seguir, é que cabe dispor a respeito, e as Constituiçõesestaduais somente nos limites traçados pela Constituição Federal e pela lei federalé que podem regular a forma de investidura dos órgãos políticos do Estado e dosMunicípios. E aqui está em discussão precisamente isso: a forma de investidurade quem deva suceder no cargo de Prefeito.

Como a Constituição Federal, no art. 134, combinado com o art. 7º, VII,enuncia o princípio geral e obrigatório da eleição direta para investidura dos ór-gãos de representação popular, este princípio só comporta as exceções que aprópria Constituição estabelece, não sendo admissíveis outras exceções, no âm-bito dos Estados e dos Municípios, além daquelas que forem estabelecidas àsemelhança das que se contêm na Constituição Federal.

Alega-se — e o eminente Ministro Pedro Chaves prestigiou o argumentocom sua autoridade — que o Município não tem o poder de auto-organização, pornão ser entidade de natureza política, mas administrativa. Desse argumento seextrai a conclusão de que o Estado pode dispor, a seu critério, da forma deinvestidura dos órgãos da administração municipal.

O Sr. Ministro Pedro Chaves (Relator): Aliás, na espécie adotada pelopróprio Município.

O Sr. Ministro Victor Nunes: Pretendo chegar a esse ponto. Por ora, estouabordando o problema de ter, ou não, o Estado inteira liberdade para estabelecera forma de investidura dos órgãos municipais.

Minha conclusão, data venia, é em outro sentido, porque a Constituiçãovigente garantiu, com maior amplitude do que as anteriores, a autonomia municipale a definiu por alguns princípios, entre os quais o da eletividade do Prefeito e dosVereadores, como dispõe o art. 28, I.

É, portanto, a própria Constituição Federal que estabelece o modo deinvestidura do Prefeito. Como optou pela eletividade, à União é que cabe regular,de acordo com a Constituição Federal, a respectiva forma eleitoral, e a formaadotada foi a eleição direta, como resulta do art. 134 da Constituição, que oCódigo Eleitoral respeitou, inclusive para os Municípios.

Peço vênia para ler, para ficar documentado em meu voto, embora possaparecer impertinente aos eminentes colegas...

O Sr. Ministro Gonçalves de Oliveira: O Tribunal ouve, com a maior sa-tisfação e prazer, o voto de V. Exa.

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O Sr. Ministro Victor Nunes: Agradeço a generosidade de V. Exa.

Em trabalho escrito em 1949, dizia eu, sobre este problema da competênciamunicipal:

“A partir de 1934, entretanto, nosso ordenamento político-jurídicomudou de rumo e passou a delimitar, no próprio texto da ConstituiçãoFederal, uma esfera de competência privativa dos Municípios. Nos limitesque lhe foram traçados pela Constituição Federal, a competênciamunicipal não é, pois, suscetível de mutilação, nem por obra da lei federal,nem da estadual.

Adotamos, assim, em nossa federação, a partir de 16 de julho de1934, uma peculiaridade digna de nota, porque desconhecida dos demaisregimes federais. Em vez de uma divisão dual de competências, como eraa regra, passamos a ter uma discriminação tríplice: o próprio estatutopolítico da Nação definiu a competência federal, a estadual e, pelo menosparcialmente, a municipal.

Essa particularidade não pode ser deixada em silêncio, porque deladerivam conseqüências jurídicas importantes.”

Uma dessas conseqüências, Sr. Presidente, é não se poder considerar oEstado-Membro, em nossa Federação, como Estado unitário, o que sustentavaCastro Nunes no regime de 91, lição que foi agora reproduzida no brilhantememorial do recorrente. Se essa tese já era discutível no regime de 91, sob aConstituição atual de modo nenhum se pode sustentar que o Estado-Membro éunitário, porque ele não tem a liberdade de organizar os seus municípios ao livrecritério do legislador ordinário, sequer da Constituição estadual, mas está compe-lido à observância dos princípios que a própria Constituição Federal tem por ine-rente à organização municipal, como expressivos de sua autonomia, por ela defi-nida. Um desses princípios é, precisamente, a eleição do Prefeito.

Recordo, nesta oportunidade, Sr. Presidente, a diferença de redação quese verifica entre a Constituição de 1934 e a de 1946.

A de 1934 era expressa ao permitir, na definição da autonomia municipal,que o Prefeito fosse eleito por forma indireta, pela Câmara Municipal, ficando aopção ao critério do constituinte estadual (art. 13, I). A Constituição de 1946eliminou essa alternativa (art. 28, I).

Dir-se-á que não a previu, mas não a proibiu. Mas não poderemos aceitar esseraciocínio. Se o texto constitucional anterior era tão claro e o texto atual o modificou,essa alteração não é destituída de conseqüências. Assim argumentamos, neste Tribu-nal, quando declaramos a inconstitucionalidade do art. 6º do Código de Minas(RMS 11.189, 1963). A inconstitucionalidade resultava, precipuamente, da dife-rença de redação entre a Constituição de 1937 e a de 1946. Como a Constituiçãode 1937 vedava a estrangeiros fazerem parte de sociedades mineradoras nacio-nais (art. 143, §1º) e a Constituição de 1946 não reproduziu essa proibição (art.

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153, § 1º), daí concluímos que o Código de Minas não podia subsistir, no art. 6º,na parte que continha proibição igual à da Constituição de 1937.

Do mesmo modo, se a Constituição de 1946, podendo manter a cláusula dade 1934, que permitia a eleição indireta dos Prefeitos, optou pela sua supressão,assim procedeu para vedar a eleição indireta dos Prefeitos, em consonância como disposto no seu art. 134.

Também se argumenta, neste caso, Sr. Presidente, que tais precauções,quanto à forma de investidura, são de secundária importância, porque o Municí-pio não é uma célula política da Nação, mas apenas um órgão administrativo.

O eminente Ministro Hermes Lima já aduziu, em seu brilhante voto, razõesmuito ponderáveis para sustentar o contrário. Mais uma vez peço vênia, Sr. Pre-sidente, para ler trecho de minha tese de concurso, escrita em 1948, que tratavados problemas da organização municipal. Quando se discutiu, sob o regime de 91,e mais tarde, na Constituinte de 34, e ainda, com menos ardor na Constituinte de46, se os Prefeitos deveriam ser eleitos ou não, os adversários da eletividade sem-pre argumentaram com o caráter puramente administrativo dos Municípios. Esseargumento, considerado de relevo, foi amplamente desenvolvido por FranciscoCampos, em conhecido trabalho a respeito de organização municipal.

Procurando mostrar a irrealidade dessa objeção, assim escrevi em minhatese de concurso (Coronelismo, p. 93):

“Dar relevo ao caráter administrativo e técnico do executivo muni-cipal no Brasil, por mais nobres que sejam as intenções de quem assimproceda, contrasta violentamente com a cotidiana evidência dos fatos.Muito menos que administrador, o Prefeito tem sido, entre nós, acima detudo, chefe político. A prefeitura é, tradicionalmente, ao lado da vereança eda promotoria pública, um dos primeiros degraus da carreira política emnossa terra.

Por sua qualidade de chefe político, tudo ou quase tudo no Municípiogira em torno do Prefeito. Nos períodos de Governo representativo é elequem orienta a maioria da Câmara Municipal e nas fases do Governodiscricionário exerce uma ditadura limitada no espaço, mas efetiva emultiforme. Este fenômeno não é do passado, mas de nossos dias. Nesteatormentado período de reconstitucionalização do país, quando o GovernoJosé Linhares procurou resguardar a pureza das eleições federais, umaimportante medida a que recorreu foi a substituição de Prefeitos. E depoisdo pleito estadual, de 19 de janeiro de 1947, conforme foi amplamentenoticiado nos jornais, o problema do provimento das prefeituras ocasionouacerbas disputas políticas, não só no cenário estadual, senão também nofederal.”

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Ainda agora, Sr. Presidente, como alegar que não tem importância políticaa forma de investidura dos Prefeitos municipais quando, precisamente sobre ainvestidura do Prefeito de Porto Alegre, se forma, no País, um clima de tantaagitação política, desmentido contundente à asserção de que o Município sejaexclusivamente uma célula administrativa?

Recorde-se, aliás, que o argumento do caráter administrativo dos Municí-pios vem, a rigor, do Império, da Lei Municipal de 1828, mas essa lei afirmava ocaráter administrativo das Câmaras, não para lhes negar importância política,mas para lhes recusar atribuições judiciárias. Eram entidades administrativas, nosentido de que não seriam judiciárias, para contrastar com as Câmaras Munici-pais do período colonial, que, ao lado das atribuições administrativas, tambémexerciam funções de caráter jurisdicional.

Atendendo ao movimento municipalista, que se avolumou no País, no cor-rer dos tempos, as Constituições de 1934 e de 1946 instituíram, como essencial àautonomia municipal, a eletividade dos Prefeitos.

O memorial do recorrente, que — repita-se — é notável na argumentação,sustenta que a sucessão do Prefeito pelo Presidente da Câmara, que é um verea-dor, não faz nosso aquele princípio, porque o eleitorado, ao eleger os vereadores,está escolhendo, ao mesmo tempo, um titular potencial ao cargo de Prefeito(Memorial, p. 23).

Se assim fosse, Sr. Presidente, poder-se-ia violar (por indisfarçável atoindireto, que a doutrina define como ato fraudulento) uma outra proibição termi-nante da Constituição Federal. A Constituição, no art. 139, que regula as inelegi-bilidades, não as estende ao cargo de Vereador, mas cuidou especialmente doPrefeito, nestes termos:

“Art.139. São também inelegíveis: (...)

III - para prefeito, o que houver exercido o cargo por qualquertempo, no período imediatamente anterior, e bem assim o que lhe tenhasucedido, ou, dentro dos seis meses anteriores ao pleito, o haja substituído;e, igualmente, pelo mesmo prazo, as autoridades policiais com jurisdição noMunicípio”.

Como essas autoridades não são inelegíveis para Vereador, dentro da lógicado memorial do recorrente, qualquer delas, numa combinação política, poderiaeleger-se Vereador e, a seguir, Presidente da Câmara, e, nessa qualidade, com arenúncia do Prefeito, poderia suceder-lhe no cargo, com violação do art. 139 daConstituição. Argumentando com essa possibilidade, para bem interpretarmos ostextos, havemos de concluir que não é exato que o eleitor, ao eleger os Vereadores,está elegendo também um Prefeito em potencial, porque a Constituição nãopermite que se elejam Prefeitos senão as pessoas não atingidas pelas inelegibili-dades específicas, e estas não prevalecem para os Vereadores. Por outro lado, sóé legitima a eleição pela forma prescrita na Constituição Federal. Se ela veda a

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eleição indireta do Prefeito, é claro que eleger Vereadores não é a mesma coisaque eleger Prefeitos em potencial, porque isso importaria institucionalizar a eleiçãoindireta, que a Constituição fulmina.

Também se argumenta que é muitas vezes perturbadora e inconvenienteuma eleição no curso do mandato da administração. Sim, a eleição é algumasvezes perturbadora, Sr. Presidente, mas, para remover esse obstáculo, a Consti-tuição Federal abriu uma válvula quando permitiu que o Presidente e o Vice-Presidente da República sejam eleitos indiretamente, se as vagas se derem nasegunda metade do mandato. Com essa providência, a Constituição também per-mitiu que os Estados e os Municípios se livrem de eleições perturbadoras, pelainvestidura indireta, mas com a condição de se fazer a escolha indireta na segundametade do mandato. Para a Constituição, que todos devemos acatar, só é poten-cialmente perturbadora a eleição direta na segunda metade do mandato.

Concluindo minhas considerações, Sr. Presidente, tenho como inconstitu-cional o art. 155, parágrafo único, da Constituição do Estado do Rio Grande doSul, na parte em que permite a sucessão do Prefeito pelo Presidente da CâmaraMunicipal na primeira metade do mandato.

Indaga-se, por outro lado, se a Câmara Municipal teria poderes para regularessa matéria. A Constituição do Rio Grande do Sul lhe dá, expressamente, essepoder, fazendo exceção ao regime comum dos outros Estados. Mas a Câmara dePorto Alegre usou esse poder na Emenda n. 7, de 1964, à sua Lei Orgânica, como mesmo vício de inconstitucionalidade que já se continha parcialmente no art.155, parágrafo único, da Constituição do Estado, porque apenas eliminou a suces-são do Prefeito pelo Presidente da Câmara, para fazê-lo suceder, mesmo naprimeira metade do mandato, por quem viesse a ser eleito, indiretamente, por ela.O uso que a Câmara fez do seu poder de auto-organização ficou maculado pelamesma pecha de inconstitucionalidade.

Resulta, então, por força da inconstitucionalidade, que não há um texto dedireito estadual regulando a hipótese. Qual a conseqüência de não haver esse texto,já que são inconstitucionais os existentes? Não há solução mais simples. Bastaaplicar-se o Código Eleitoral, que é o texto legal competente para dizer como sefazem as eleições neste País. E o seu art. 46, especialmente o § 2º, mandam,expressamente, eleger pelo voto direto os Prefeitos e os Vice-Prefeitos.

E foi assim que decidiu a 3ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do RioGrande do Sul, cujo acórdão, portanto, eu confirmo, negando provimento aosrecursos, data venia do eminente Ministro Relator, que proferiu, como sempre,um brilhante voto.

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Ministro Victor Nunes

RECURSO EXTRAORDINÁRIO 62.731 — GB

Relator: O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro

Recorrente: José do Couto Moreira — Recorrido: Manoel Gonçalves deCarvalho

Decreto-Lei no regime da Constituição de 1967.1. A apreciação dos casos de “urgência” ou de “interesse

público relevante”, a que se refere o artigo 58 da Constituiçãode 1967, assume caráter político e está entregue à discricionariedadedos juízos de oportunidade ou de valor do Presidente daRepública, ressalvada apreciação contrária e também discricionáriado Congresso.

2. Mas o conceito de “segurança nacional” não é indefinidoe vago, nem aberto àquela discricionariedade do Presidente oudo Congresso. “Segurança Nacional” envolve toda a matériapertinente à defesa da integridade do território, independência,sobrevivência e paz do País, suas instituições e seus valo-res materiais ou morais contra ameaças externas e internas,sejam elas atuais e imediatas ou ainda em Estado potencialpróximo ou remoto.

3. Repugna à Constituição que, nesse conceito de “segu-rança nacional”, seja incluído assunto miúdo de Direito Privado,que apenas joga com interesses também miúdos e privados departiculares, como a purgação da mora nas locações contratadascom negociantes como locatários.

4. O Decreto-Lei n. 322, de 7-4-1967, afasta-se da Consti-tuição quando, sob color de “segurança nacional”, regula maté-ria estranha ao conceito desta.

5. As situações jurídicas definitivamente constituídas eacabadas não podem ser destruídas pela lei posterior, que,todavia, goza de eficácia imediata quanto aos efeitos futurosque se vierem a produzir.

ACÓRDÃO

Vistos e relatados estes autos de Recurso Extraordinário n. 62.731, do Estadoda Guanabara, em que é recorrente José do Couto Moreira e recorrido ManoelGonçalves de Carvalho, decide o Supremo Tribunal Federal, em Sessão Plena,conhecer e prover, por maioria de votos, de acordo com as notas juntas.

Distrito Federal, 23 de agosto de 1967 — Luiz Gallotti, Presidente —Aliomar Baleeiro, Relator.

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Memória Jurisprudencial

RELATÓRIO

O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: 1. O Recorrente moveu contra o recorrido“ação ordinária de rescisão de contrato” de locação comercial de aluguéis, porfalta de pagamento. A r. sentença de fls. 27-28 deferiu a emenda da mora ejulgou extinta a ação. Esse decisório foi confirmado em grau de apelação, pelo v.acórdão de fl. 44v. O Recorrido foi citado a 11-7-64 e só depositou os aluguéis emdébito a 22-9-64, como diz o acórdão.

2. O contrato de fl. 3 estabelece pagamento até o 5º dia do mês subse-qüente ao vencido, portable na residência do locador (cláusula 2ª), com a san-ção de rescisão plena e imediata na falta de cumprimento de qualquer dascláusulas (8ª).

3. Às fls. 46-48, vem o locador com recurso extraordinário, invocando aSúmula 123 e diversos julgados do STF, que juntou por fotocópia: ERE 56.696,Rel. Em. Ministro Candido Motta Filho, in RTJ 33/885, RE 58.115, Rel. Em.Ministro Pedro Chaves, in RTJ 36/152, e RE 51.405, Rel. Em. Ministro CandidoMotta Filho, publicado na Revista de Jurisprudência.

4. O recurso foi admitido pelo r. despacho de fl. 56 e devidamente pro-cessado.

É o relatório.

VOTO

O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro (Relator): O caso é igual ao do RE n.62.739, que esta 2ª Turma já resolveu submeter ao Pleno, em face das dúvidassobre a constitucionalidade do Decreto-Lei 322, de abril p.p.

Proponho que também este recurso seja levado ao Pleno, para ser julgadoconjuntamente com aquele.

DECISÃO

Como consta da ata, a decisão foi a seguinte: a Turma, unânime, remeteuos autos ao Tribunal Pleno.

Presidência do Exmo. Sr. Ministro Hahnemann Guimarães.

Relator, o Exmo. Sr. Ministro Aliomar Baleeiro.

Tomaram parte no julgamento os Exmos. Srs. Ministros Aliomar Baleeiro,Adalicio Nogueira, Evandro Lins e Hahnemann Guimarães.

Licenciado, o Exmo. Sr. Ministro Pedro Chaves.

Em 30 de maio de 1967 — Guy Milton Lang, Secretário.

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Ministro Victor Nunes

RELATÓRIO

O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: 1. Em locação da Lei de Luvas, a firmalocatária, confessadamente em mora, em abril de 1965, pediu emenda desta noprazo de 30 dias, fixando o juiz prazo excedente do da contestação da lide. Im-pugnado esse despacho, reformou-o o magistrado (fl. 42, em 19-6-65). Mas odepósito foi extemporâneo.

2. Os v. acórdãos da apelação (fl. 106) e embargos (fl. 134), por maioriade votos, entenderam que a emenda deveria ser cumprida até a contestação, masque o engano do juiz, dando dilação maior, constituía obstáculo judicial (3-11-1966).

3. Recorre a locadora, à fl. 139, pela letra d, alegando divergência e ofensaà Súmula 123.

É o relatório.

SUSTENTAÇÃO DE PARECER

O Sr. Dr. Procurador-Geral da República: Sr. Presidente, a Procurado-ria-Geral da República não teve ocasião de se pronunciar sobre a questãoconstitucional levantada por S. Exa., o eminente Relator.

O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro (Relator): V. Exa. recebeu uma cópia.

O Sr. Procurar-Geral da República: Sim, recebi uma cópia, mas não sabiaque o julgamento seria hoje.

A questão levantada seria, ao que me recordo, a seguinte: o Sr. Presidenteda República baixou um decreto-lei sobre locações, baseado na faculdade cons-titucional de expedir decretos-leis em matéria de segurança nacional.

O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: Trata-se do art. 58, I, da Constituição de1967.

O Sr. Dr. Procurador-Geral da República: Diz este artigo:

“O Presidente da República, em casos de urgência ou de interessepúblico relevante, e desde que não resulte aumento de despesa, poderáexpedir decretos com força de lei sobre as seguintes matérias:

I - segurança nacional;

II - finanças públicas.”

O Presidente da República expediu esse decreto em causa sobre locaçõesde imóveis — matéria de inquilinato — e, no decreto, estabeleceu certas medidas.Agora, o eminente Ministro Relator, no julgamento de processos pertinentes, le-vanta, ex officio, a questão constitucional. Sim, porque essa questão não foilevantada pela parte.

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Memória Jurisprudencial

O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: No Agravo n. 40.960, a questão foi levan-tada pela parte. Nos dois Recursos Extraordinários, n. 62.731 e 62.739, não,porque foram anteriores.

O Sr. Procurador-Geral da República: Nos recursos extraordinários have-ria uma questão preliminar, que é a seguinte: de regra, na instância do recursoextraordinário, não se conhece de lei nova. Pediria ao eminente Relator que lesseo texto do decreto-lei.

O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: Com prazer. Está nestes termos:

“Art. 5º Nas locações para fins não residenciais, será assegurado aolocatário o direito à purgação da mora, nos mesmos casos e condiçõesprevistas na Lei para as locações residenciais, aplicando-se o dispostoneste artigo aos casos sub judice.”

O Sr. Procurador-Geral da República: Então o problema constitucional levan-tado por S. Exa., o eminente Relator, data venia, é sobre a vigência do decretopara situações anteriores.

O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: Dois problemas eu pretendo discutir nomeu voto: primeiro, a possibilidade de o Presidente da República regular a purga-ção da mora nas locações comerciais, por via de um decreto-lei expedido nestascondições; segundo, a força retroativa desse decreto-lei, abrangendo situaçõesdefinidas, constituídas, tranqüilas, anteriores à expedição desse diploma.

O Sr. Procurador-Geral da República: A questão preliminar é da possibili-dade de, na instância do recurso extraordinário ou do agravo de instrumento emmatéria de recurso extraordinário, aplicar-se uma lei nova.

Mas, passando ao mérito, quanto à constitucionalidade, a primeira dúvidado eminente Ministro Relator seria se o Presidente da República poderia, combase nesse art. 58 da Constituição vigente, expedir um decreto-lei em matéria delocação comercial. Diz o parágrafo único do texto:

“Publicado o texto, que terá vigência imediata, o Congresso Nacionalo aprovará ou rejeitará, dentro de sessenta dias, não podendo emendá-lo; se,nesse prazo, não houver deliberação, o texto será tido como aprovado.”

Nem o Senado, nem a Câmara deliberaram a respeito, de forma que essedecreto-lei, como outro em igualdade de condições, está deste ponto de vistaaprovado pelo Poder Legislativo. O Senado e a Câmara deixaram esse prazoterminar antes das férias de julho.

Tornou-se, assim, por força de expresso texto constitucional, um atolegislativo. Confira-se com o que dispõe o art. 49, V, da Constituição. A questão,se o decreto preenche ou não preenche os demais requisitos referidos, parece-meque é atribuição privativa da Câmara e do Senado. Podem dizer: não aprovamoso decreto porque não há a urgência, não é matéria de segurança nacional, não ématéria de finanças públicas.

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Ministro Victor Nunes

O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: Ou podem dizer: não convém porque nãoadotamos a mesma política legislativa do Presidente da República.

O Sr. Procurador-Geral da República: Perfeito. É matéria do âmbito doCongresso e está superada.

Entretanto, do ponto de vista da urgência, peço vênia ao Supremo TribunalFederal para ponderar o seguinte: esta matéria de locação assumiu, na vida públicabrasileira, uma natureza social de maior urgência. Esses problemas de locaçãoprendem a atenção desta Suprema Corte, posso dizer, há quarenta e cinco anos,desde a primeira lei do inquilinato, em 1922, e tive ocasião de requerer, baseadonessa lei, e o Supremo Tribunal sempre entendeu que a matéria da lei do inquilinatoé matéria de urgência, é matéria excepcional, é matéria do mais alto interessepúblico, que justifica mesmo a aplicação imediata da lei, até a processos emcurso. Quando se promulgou a primeira lei do inquilinato, em 1922, discutiu-se,neste Tribunal — e naquele tempo a nossa Constituição era uma Constituiçãoultra-individualista, a de 1891 —, da constitucionalidade — naquela época a pala-vra era outra, era o tabelamento dos aluguéis pelo Comissariado de AlimentaçãoPública —, se era possível, se era constitucional o tabelamento de aluguéis. OSupremo Tribunal, para seu gáudio, já naquele tempo, deu ao assunto uma interpre-tação lata, no sentido de que a propriedade tinha suas funções sociais, e que, por-tanto, em casos de alta necessidade pública, de urgência, de interesse público, oGoverno poderia tabelar os aluguéis. Em 1921 e 1922, houve uma grande crise dehabitação no Rio de Janeiro, daí a primeira lei de inquilinato, depois a segunda,todas as duas julgadas constitucionais. E até hoje, ao que me consta, nunca oSupremo Tribunal julgou inconstitucional uma lei de tabelamento, de fixação dealuguéis, embora a Constituição se refira àqueles conceitos individualistas,clássicos, ao ato jurídico perfeito, ao direito adquirido. Não conheço acórdãonenhum do Supremo Tribunal impugnando a legislação do inquilinato, quer a deapós a primeira guerra, quer a legislação do inquilinato que vem desde 1942 atéhoje, com sucessivas prorrogações. O Supremo Tribunal Federal tem entendidoque esta matéria está dentro da nova concepção da propriedade como funçãosocial.

Portanto, Srs. Ministros, este decreto-lei foi expedido nesse sentido socialque vivemos hoje. Daí a sua urgência, daí o seu interesse público, daí aquele textoque o eminente Ministro Relator leu, que se aplica aos processos em curso. Todaa legislação do inquilinato que se tem feito se aplica aos processos em curso e àslocações em curso. É um texto que encontramos em 1942 e nas legislações quese vêm sucedendo.

São essas, Srs. Ministros, as observações que a Procuradoria-Geral daRepública pede desculpas de tão prolixamente ter desenvolvido. Mas é assunto —os Srs. Ministros compreendem — da mais alta relevância social e econômicapara o País.

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Memória Jurisprudencial

Esse decreto não foi impugnado no Congresso. Não houve um deputadoou senador que se levantasse para impugnar esse decreto, nem da oposição, nemdo Governo, tão justo e razoável pareceu aos membros do Poder Legislativo.

Portanto, em síntese, é um decreto-lei baseado no art. 58 da Constituiçãode 1967, de alto interesse social na tradição de toda nossa legislação sobreinquilinato, e que está aprovado, expressamente, nos termos do parágrafo único,pelo Senado e pela Câmara. Se a Câmara e o Senado aprovaram-no, nos preci-sos termos do parágrafo único do art. 58, tornando-o ato legislativo, não é possí-vel a qualquer outro Poder, mesmo o Judiciário, dizer que tal lei é inválida pela suaorigem.

Se o Senado e a Câmara podem legislar sobre inquilinato — ninguém ocontesta —, podem também fazê-lo indiretamente, aprovando um decreto-lei queo fez sob o título de urgência, segurança nacional, etc.

São essas considerações que a Procuradoria-Geral da República, por meuintermédio, faz em defesa da constitucionalidade deste decreto-lei.

VOTO

O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro (Relator): Sr. Presidente, não perdi umasequer das palavras do eminente Procurador-Geral da República, porém,estamos falando, por infelicidade minha, línguas diferentes.

Não contesto qualquer das teses ou dos fatos que S. Exa. trouxe comoinformação ao Supremo Tribunal. Sei que a Câmara e o Senado silenciaramsobre esse decreto-lei. A interpretação desse silêncio tem sido diversa e oposta.Uns, como S. Exa., acham que isso foi uma concordância com a justiça dessediploma, outros acham que isso, pelo contrário, foi uma desaprovação à maneirapela qual esse diploma foi criado.

Não me cabe, Sr. Presidente, psicanalisar os eminente representantes daNação. Por outro lado, não contesto que esta lei ou quaisquer outras, válidasconstitucionalmente, têm eficácia imediata. O normal é que toda lei tem eficáciaimediata, naquele minuto e para o futuro. O que contesto é que, num sistemacomo o nosso direito brasileiro, em que se nega a força retroativa da lei, salvo oscasos que ela própria ressalva, como nas leis criminais mais favoráveis ao réu —o que contesto é que possa prejudicar o ato jurídico perfeito, a coisa julgada e assituações definitivamente constituídas. É essa a minha tese. Sobre ela o nobre eeminente Procurador-Geral da República não falou.

Não entro, Sr. Presidente, na apreciação da justiça da lei. Desde que aceiteium posto neste Supremo Tribunal Federal, com muita honra para mim, lembrei-mede que, na minha mocidade, me tinham ensinado aquela regra sovadíssima, deD’Argentré: não julgo a lei, julgo segundo a lei.

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Ministro Victor Nunes

Quando estes autos me vieram conclusos, já estava publicado o Decreto-Lei n. 322, de 7-4-1967, que, invocando o art. 58, I, da Constituição, estatui no

“Art. 5º Nas locações para fins não residenciais, será assegurado aolocatário o direito à purgação da mora, nos mesmos casos e condiçõesprevistas na Lei para as locações residenciais, aplicando-se o dispostoneste artigo aos casos sub judice”.

Realmente, como ponderou o nobre Procurador-Geral da República nosrecursos extraordinários, as partes que haviam interposto tal remédio antes dapublicação desse decreto-lei, evidentemente, não o podiam invocar. Mas, dadoque o legislador disse que se aplica nos casos sub judice, a ele estou obrigado,como juiz, se constitucional.

Esse dispositivo poria, desde logo, ponto final ao recurso, se graves pro-blemas em torno das inovações da Constituição de 1967 não nos obrigassem ameditar sobre a compatibilidade do Decreto-Lei n. 322 com a mesma CartaMagna, cujo art. 58, citado, reza o seguinte:

“Art. 58. O Presidente da República, em casos de urgência ou deinteresse público relevante, e desde que não resulte aumento de despesa,poderá expedir decretos com força de lei sobre as seguintes matérias:

I - segurança nacional;

II - finanças públicas.

Parágrafo único. Publicado o texto, que terá vigência imediata, oCongresso Nacional o aprovará ou rejeitará, dentro de 60 dias, nãopodendo emendá-lo; se, nesse prazo, não houver deliberação, o texto serátido como aprovado”.

Não me parece duvidoso que a apreciação da “urgência” ou do “interessepúblico relevante” assume caráter político: é urgente ou relevante o que oPresidente entender como tal, ressalvado que o Congresso pode chegar a julga-mento de valor contrário, para rejeitar o decreto-lei. Destarte, não pode haverrevisão judicial desses dois aspectos entregues à discricionariedade do Executivo,que sofrerá apenas correção pela discricionariedade do Congresso.

Por aí não há inconstitucionalidade.

Mas o conceito de “segurança nacional”, a meu ver, não constitui algoindefinido, vago e plástico, algo que pode ser ou não ser entregue à discricionarie-dade do Presidente e do Congresso. Os direitos e garantias individuais, o federa-lismo e outros alvos fundamentais da Constituição ficarão abalados nos alicercese ruirão se admitirmos que representa “segurança nacional” toda matéria que oPresidente da República declarar que o é, sem oposição do Congresso.

Quero crer que “segurança nacional” envolve toda matéria pertinente à de-fesa da integridade do território, independência, paz e sobrevivência do País, suas

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Memória Jurisprudencial

instituições e seus valores materiais ou morais, contra ameaças externas e internas.Em duas palavras, contra a guerra externa ou intestina, esteja ela travada e efetivaou fermente ainda em Estado potencial próximo ou remoto. Daí admitir eu que oconceito de “segurança nacional” abranja medidas preventivas contra os lêvedosda ação armada ou da desordem, nesta época em que tanto se falou e se fala em“5ª coluna”, “guerra fria”, “guerra revolucionária”, “guerra psicológica”, etc.

Não emito uma opinião pessoal: infiro do que está nos arts. 89 a 91 daConstituição, encimado pela “Seção V do Cap. I do Tít. — Da SegurançaNacional”. Nesses três dispositivos, está dito que as medidas permanentes deestudo e organização se referem à mobilização nacional e às operações militares,concessões de terras de fronteiras e lugares estratégicos, transportes e comuni-cações, pontes e indústrias direta ou indiretamente vinculados à defesa.

Instrumento principal de execução da política de segurança são as ForçasArmadas, destinadas à defesa da Pátria e à garantia dos Poderes, da lei e da ordem(art. 92, § 1º).

Se nisso se contém a matéria de segurança nacional, toda ela de ordempública e de Direito Público, repugna que ali se intrometa assunto miúdo de DireitoCivil, que apenas joga com os interesses também miúdos e privados de particulares,como a purgação da mora nas locações em que seja locatário o comerciante.

Nem mesmo pelo guarda-chuva amplo da inflação seria imaginável, por-que o comerciante, que se deve declarar falido quando não paga no dia, não évítima, mas beneficiário da espiral de preços. Cada dia, ele reajusta seus preçose não há possibilidade prática de impedi-lo nessa natural defesa de seus interes-ses, pela simples razão de que poderá abster-se de suprir o mercado.

Parece-me, pois, que, em matéria objetivamente definida na Constituição(arts. 89 a 91), não é constitucional interpretar a cláusula “segurança nacional”do art. 58, I, como algo que o Presidente da República faz e o Congresso desfaz,ou que ambos podem fazer discricionariamente.

Já se disse que o Parlamento britânico pode tudo, menos transformar umhomem em mulher ou uma mulher em homem. Mas, num país de Constituiçãoescrita e rígida, não há o mesmo arbítrio. A lei, no Brasil, não pode transformar oquadrado no redondo sempre que o redondo e o quadrado tenham sido designa-dos como tais na Constituição, expressa ou implicitamente.

Segurança Nacional, a meus olhos, não é o que o Presidente e o Congressodizem que é, mas apenas o que se concilia com o que está expresso e implícitonos arts. 89 e 91 da Constituição, sob a epígrafe “Da Segurança Nacional”. E,por certo, purgação da mora em locações não residenciais não se harmoniza como conceito da segurança nacional.

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Ministro Victor Nunes

Outra dificuldade brota do caso dos autos. As decisões atacadas foramproferidas depois da Lei n. 4.864, de 29-11-65, e do Decreto-Lei n. 4, de 7-2-66,que cortaram a controvérsia sobre a emenda da mora na locação da Lei deLuvas.

No caso dos autos, pelo contrato de f., o locatário obrigou-se a pagar até o5º dia do mês seguinte ao vencido, na residência do locador ou onde for determi-nado. Dívida portable. Mora confessada.

Parece-me que o Recorrente, por isso, estava numa situação jurídica defi-nitivamente constituída e acabada, como titular de direito adquirido garantido peloart. 150, § 3º, da Constituição de 1967.

Se constitucional, por amor ao debate, à luz do art. 58, I, o Decreto-Lei n.322 terá aplicação imediata aos efeitos futuros das situações anteriores, mas nãopoderá projetar sombra sobre o passado, a fim de atingir os efeitos já produzidospor essas situações anteriores e definitivas. Como, então, aplicá-lo aos processossub judice?

Por princípio, o Tribunal aprecia a inconstitucionalidade nos termos em quelhe é proposta. Mas, no caso concreto, o legislador do Decreto-Lei n. 322 ende-reçou a regra também ao juiz, que, nesta altura do processo, já não pode ouvirmais as partes.

Forçosamente, há que se discutir o problema constitucional.

Por essas razões, dou provimento ao recurso, porque, em resumo:

a) não se pode aplicar ao caso o art. 5º do Decreto-Lei n. 322/67,porque viola a Constituição, já por dispor sobre matéria estranha àsegurança nacional (art. 58, I, de referência aos arts. 89 a 91), já porqueretroage para atingir direito adquirido oriundo de situação jurídica anteriore definitivamente constituída (art. 150, § 3º);

b) a inconstitucionalidade não pode ser convalidada pelo Congresso(art. 58, parágrafo único), porque a matéria de segurança nacional nãoenvolve conceito que o legislador possa discricionária e politicamentedefinir — ela está definida nos arts. 89 a 91 da Constituição. Nem oCongresso pode sanar a eiva contra o art. 150, § 3º;

c) o recurso merece provimento nos termos do art. 28 da Lei n.4.864, de 29-11-65, e do Decreto-Lei n. 4, de 7-2-1966, como, aliás, já foijulgado, noutros casos análogos, pela 2ª Turma.

O Sr. Ministro Gonçalves de Oliveira: Há uma questão relevante, tambémsuscitada pelo eminente Procurador-Geral da República: se, no recurso extraor-dinário, pode-se considerar uma lei nova. Porque, a rigor, o Supremo TribunalFederal, preliminarmente, no julgamento do recurso extraordinário, aprecia se adecisão recorrida negou vigência à lei federal, ou se a decisão recorrida interpre-tou diversamente uma lei federal. Transposta esta preliminar, a questão surge no

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Memória Jurisprudencial

mérito do julgamento do recurso extraordinário. Com esta preliminar, nós julga-mos do acerto da decisão recorrida.

O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro (Relator): Considerando o argumento doeminente Procurador-Geral da República que V. Exa. agora restaura, queria pon-derar o seguinte: prevalecendo o ponto de vista que V. Exa. com toda propriedadeinvoca, é de se dar provimento, porque as decisões da justiça local foram contra asdecisões que o Supremo Tribunal Federal deu. Mas o problema, que citei no meuvoto escrito, é que estou diante de um texto que me obriga a considerar o Decreto-Lei 322 para os casos sub judice.

Se esse decreto-lei for constitucional, somos obrigados, nesta instânciasuperior, a considerar o caso.

O Sr. Ministro Adaucto Cardoso: São dois temas diversos, que devem serabordados cada um de per si.

O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro (Relator): Partindo da velha regra, que éda Corte Suprema — a de que não se pronuncia a inconstitucionalidade se nãofor estritamente necessário —, e só na parte necessária à solução do caso con-creto, nós podemos inverter o julgamento: em vez de considerar a validade detodo o Decreto-Lei 322, nós partimos do ponto mais vulnerável e mais restrito —o art. 5º e sua aplicação retrooperante.

Se dissermos que ele não se aplica retroativamente, resolve-se o casoconcreto e fica para outra etapa o problema do Decreto-Lei 322 em seu todo epor sua origem.

O Sr. Ministro Evandro Lins: V. Exa. podia informar se, em todos os casosjulgados, esse decreto-lei ainda não estava em vigor?

O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro (Relator): Ainda não estava em vigor.

O Sr. Ministro Evandro Lins: Temos de enfrentar o problema do agravo.

O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro (Relator): De pronto não posso me lem-brar se invocou, porque a publicação se deu no momento em que estavam tirandoas peças na instância inferior. Mas houve invocação posterior ao traslado.

Depois de formado o instrumento, os agravados, por sua advogada, dizem:“Acresce ainda que o recente Decreto 322, de 7-4-1967, estabelece, em seu art.5º, que: ‘Nas locações para fins não residenciais será assegurado ao locatário odireito à purgação da mora, nos mesmo casos e condições previstos na lei para aslocações residenciais, aplicando-se o disposto neste artigo aos casos subjudice’”. Isso foi no dia 2 de maio.

Proponho, Sr. Presidente, que V. Exa., metodizando os trabalhos, ponhaem votação, primeiro, se pode ter aplicação retroativa aos casos sub judiceanteriores a 7 de abril, data da publicação do Decreto-Lei 322, o art. 5º dessediploma.

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Ministro Victor Nunes

O Sr. Ministro Prado Kelly: Se pode ter aplicação nesta instância, por meiode recurso extraordinário ou em agravo de instrumento, que pressupõe a denegaçãodo recurso.

O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro (Relator): Aí vamos ter outra tarde perdidacom esse decreto-lei.

O Sr. Ministro Prado Kelly: Aí a incompatibilidade do art. 5º será com oartigo que define o recurso extraordinário, com o artigo que era, antes, o 101.Esse é o ponto. Seria a incompatibilidade do art. 5º em relação ao art. 114 da atualConstituição, que delineia o campo do recurso extraordinário. Se a preliminar forvitoriosa, não há razão de entrar nos outros assuntos, a não ser na parte do mérito.

O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro (Relator): Creio que a sugestão do emi-nente Ministro Prado Kelly teria a virtude de restringir ao estritamente indispen-sável a votação. Sou dos que acham que as leis, aliás na velha regra, só quandoabsolutamente inconstitucionais devem ser declaradas como tais. Acho que osmembros do Congresso, responsáveis pela política legislativa do País, podem exi-gir que apliquemos cegamente todas as leis que forem constitucionais, boas ouruins. Quem se queixar da justiça da lei, que vá às eleições e substitua os deputa-dos e senadores. Nosso papel não é fazer leis, mas justiça segundo as leis cons-titucionais.

O Sr. Ministro Adaucto Cardoso: V. Exa. emitiu seu voto a respeito daconstitucionalidade do decreto-lei.

O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro (Relator): Eu emiti meu voto sobre aconstitucionalidade...

O Sr. Ministro Victor Nunes: Brilhante voto.

O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro (Relator): ...quer pelo ponto de vista deque ele não se contém no conceito de segurança nacional, quer porque o art. 5º...

O Sr. Ministro Adaucto Cardoso: Neste caso, a questão está posta por V. Exa.

O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro (Relator): Eu proponho, data venia doeminente Ministro Prado Kelly, que se entre na constitucionalidade do art. 5º, semdiscutir o problema da segurança nacional. Estou satisfeito com a solução para ocaso concreto. Quem tiver interesse, suscite a outra questão.

O Sr. Ministro Prado Kelly: Pode-se discutir o art. 5º de ângulos diversos:a aplicação dele na instância inferior e no Supremo Tribunal e a sua aplicaçãoaos feitos pendentes. Não está em causa a segunda parte.

O Sr. Presidente Luiz Gallotti: V. Exa. propõe que se ponha a votos a incons-titucionalidade do art. 5º?

O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro (Relator): Sim, o que manda seja aplicadoretroativamente o Decreto- Lei 322 aos casos sub judice.

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Memória Jurisprudencial

VOTO (Preliminar)

O Sr. Ministro Barros Monteiro: Sr. Presidente, tenho a impressão que asduas questões estão entrelaçadas.

Mas se V. Exa. as separou para votação, estou de acordo com o eminenteRelator. A meu ver, é inconstitucional o preceito e não pode ser aplicado retroati-vamente.

O Sr. Presidente Luiz Gallotti: O eminente Procurador-Geral da Repúblicapreferiria que se votasse primeiro a preliminar do cabimento do recurso, mas oeminente Relator julga que a aplicação do Decreto-Lei é inconstitucional.

O Sr. Ministro Hermes Lima: Pelo voto do eminente Relator e do eminenteMinistro Barros Monteiro, julga-se ao mesmo tempo a constitucionalidade, decla-rando-se inconstitucional o art. 5º, na parte em que manda aplicar aos casospendentes.

O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro (Relator): Creio, data venia, que a solu-ção alvitrada pelo eminente Procurador-Geral criaria um impasse. Continuaria aluta entre as partes, uma dizendo que teve ganho de causa no Supremo Tribunal,e a outra que, aplicando-se o Decreto-Lei 322, poderia voltar para resolver omesmo problema. Temos de enfrentar a dificuldade, e Deus que nos ilumine.

O Sr. Ministro Victor Nunes: Eu pediria licença aos eminentes colegas parauma ponderação. A meu ver, o eminente Relator colocou bem o problema, porquetodas essas questões estão entrelaçadas. Veja-se a minha dificuldade pessoal. Sese tratasse de lei emanada do Congresso, que ampliasse a faculdade de purgar amora, inclusive para os processos pendentes, eu a aplicaria. De modo geral, temosaplicado a legislação sobre o inquilinato aos processos pendentes. Quando...

O Sr. Ministro Evandro Lins: A todos eles.

O Sr. Ministro Victor Nunes: ...o Tribunal fala em vigência imediata de taisleis, não o diz no sentido em que o eminente Relator empregou a expressão, isso é,de observância da lei a partir do momento de sua vigência. Temos empregado essaexpressão, numerosas vezes, no sentido de fazer a lei nova alcançar os processosem curso.

No caso em exame, ao votar essa preliminar, tenho primeiro de analisar avalidade do decreto-lei, porque o tenho por inconstitucional. Como poderia eu,sem contradição, dizer que esse decreto-lei se aplica aos casos pendentes, se oconsidero inconstitucional.

O Sr. Ministro Evandro Lins: Ele não se aplica aos processo pendentes. Aquestão da inconstitucionalidade é prejudicial de todas as outras questões.

O Sr. Ministro Prado Kelly: A preliminar é de ser formulada nestes ter-mos: “Aplica-se aos casos em julgamento o art. 5º do Decreto-Lei 322?” A mo-tivação é que pode variar. Uns não aplicarão o preceito, por considerar o decreto-lei inconstitucional...

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Ministro Victor Nunes

O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro (Relator): Eu não aplico pelos dois motivos.

O Sr. Ministro Prado Kelly: ...outros, por uma razão de técnica processual,em face do art. 114 da Constituição. Serão razões de decidir. Mas a preliminarsubmetida ao julgamento...

O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro (Relator): Todas convergem.

O Sr. Ministro Prado Kelly: ...seria nos termos que acabei de enunciar.

O Sr. Ministro Victor Nunes: V. Exa. põe bem a questão.

O Sr. Ministro Evandro Lins: Cada um proferiria seu voto.

O Sr. Ministro Barros Monteiro: Sr. Presidente, já adiantei o meu voto.Estou de acordo com o eminente Relator na primeira parte e também na segunda,por entender que a matéria do art. 5º do Decreto-Lei 322 escapa ao conceito desegurança nacional.

VOTO (Preliminar)

O Sr. Ministro Adaucto Cardoso: Estou de acordo com o voto total enun-ciado pelo eminente Relator, porque, na realidade, o conceito de segurança nacio-nal não é de interpretação exclusiva dos Poderes Executivo e Legislativo. É de-ver desta Corte Suprema dizê-lo e tirar daí a conseqüência necessária, que é adeclaração da inconstitucionalidade do Decreto-Lei 322, que, a todas as luzes,não trata de assunto pertinente à segurança nacional. De forma que adoto o votodo eminente Relator, tal como foi proferido no primeiro impulso, sem o lançamen-to de preliminares, mas globalmente considerado.

VOTO (Preliminar)

O Sr. Ministro Djaci Falcão: Acolho também ambos os fundamentos ado-tados pelo eminente Relator, à vista do conceito de segurança nacional emitido combrilhantismo por S. Exa. e no qual não se pode situar matéria relativa a locação deimóvel para fim comercial, disciplinada pelo direito privado — muito embora nãodesconheça eu, como todos nós, a tendência de publicização de certos princípiosde direito privado.

Por outro lado, no que tange à aplicação da regra do art. 5º do Decreto322, de modo retrooperante, ela destoa inclusive do art. 6º da Lei de Introduçãoao Código Civil.

VOTO (Preliminar)

O Sr. Ministro Eloy da Rocha: Sr. Presidente, sigo, no meu voto, a ordemindicada pelo debate: em primeiro lugar, a aplicação do art. 5º do Decreto-Lei322, de 7-4-1967, aos casos sub judice. O eminente Procurador-Geral da Repú-blica trouxe, em abono de seu ponto de vista, o exemplo da legislação do

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Memória Jurisprudencial

inquilinato, desde a primeira, que sempre teve aplicação a todos os casos penden-tes, em face da natureza dessas leis. O eminente Relator ponderou que elasatingem os processos pendentes, mas com a ressalva do art. 150, § 3º, da Cons-tituição: “A lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisajulgada”. Poderá existir, na ocorrência da mora, o ato jurídico perfeito. Se o deve-dor não podia ser admitido a requerer o pagamento da dívida, com os encargoslegais, no prazo da contestação, a mora produziu o seu efeito, na conformidade dalei. Houve o ato jurídico perfeito, que não se pode atingir por lei posterior. O art.5º do Decreto-Lei 322, ao dispor que a nova regra se aplica aos processos subjudice, fere o art. 150, § 3º, da Constituição.

O segundo ponto é o da competência do Presidente da República para expe-dir decreto, com força de lei, sobre a segurança nacional. O voto do eminenteRelator é exaustivo, convincente, brilhante. Estou de acordo com S. Exa. Segu-rança nacional, certamente, não compreende relação de direito privado.Conceitua-se a segurança nacional, na Constituição, não só na Seção que, dentrodo Capítulo “Do Poder Executivo”, trata “Da Segurança Nacional” — arts. 89 a91 —, mas, ainda, no começo da Constituição, quando, no Capítulo sobre a“Competência da União”, a ela se refere o art. 8º, inc. IV. Com esse conceitogenérico, contrasta o art. 5º do Decreto-Lei 322. Poder-se-á discutir sobre aextensão do conceito, mas, no caso, é evidente o excesso. Não me parece devalia a invocação do parágrafo único do art. 58: a omissão do Congresso Nacio-nal importará em aprovação. É certo que a Constituição dispõe que será tidocomo aprovado o decreto-lei que, no prazo de sessenta dias, não for votado peloCongresso Nacional. Se o Congresso tivesse aprovado expressamente, aindaseria contestável, pela matéria do decreto-lei, a sua constitucionalidade. Mas, seo Congresso Nacional não se pronunciou, não praticou ato de aprovação ou derejeição, não foi sanado, com a omissão, o vício do decreto-lei, que transcendeuda competência do Poder Executivo.

Resta decidir o último ponto. Declarada a inconstitucionalidade do art. 5ºdo Decreto-Lei 322, cumpre julgar o recurso, à vista da legislação anterior a estedecreto-lei. A parte sustentou que a purgação da mora era permitida, em face deleis posteriores às referidas na Súmula 123. Inconstitucional o art. 5º do Decre-to-Lei 322, ainda será preciso examinar se a lei anterior a esse dispositivo autori-zava a purgação da mora, que o juiz admitiu. Sem esse exame, não ficará com-pleto o julgamento do recurso.

O Sr. Ministro Victor Nunes: Afirmada a inconstitucionalidade do art. 5º doDecreto-Lei 322, teremos de apreciar o caso em face da lei anterior.

O Sr. Ministro Prado Kelly: O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro já considerouisso no voto.

O Sr. Ministro Eloy da Rocha: Continuo a aplicar a Súmula 123. Entendoque as leis posteriores às referidas na Súmula não modificaram o princípio nelaenunciado.

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Ministro Victor Nunes

O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro (Relator): O Decreto-Lei n. 4 e a Lei4.864, se não me falha a memória, abonam a tese de V. Exa. Também aplico.

O Sr. Ministro Eloy da Rocha: Ainda depois desses diplomas legais, segui ajurisprudência consagrada na Súmula 123. Não assiste à parte recorrida direitoà purgação da mora, que o juiz concedeu.

VOTO (Preliminar)

O Sr. Ministro Prado Kelly: Sr. Presidente, o eminente Relator, no seubrilhante voto, que eu admiraria de diferentes ângulos, lembrou ao Tribunal atradição por ele adotada, em atenção a precedentes da Corte americana, de sódiscutir a inconstitucionalidade de lei quando essa declaração for indispensávelao julgamento do feito. Colocada a preliminar nestes termos, com o assentimentodos eminentes Colegas, e indagando-se da Corte se se aplica ao feito o art. 5º doDecreto-Lei 322, a questão me parece muito simplificada.

O Sr. Ministro Candido Motta Filho: Queria, apenas, que V. Exa., com asua sabedoria, pudesse esclarecer: é que o art. 5º do Decreto-Lei 322 tem asmesmas razões de ser do decreto! Ele se fundamenta na segurança nacional!

O Sr. Ministro Prado Kelly: Perfeito! Mas note, V. Exa.: se entendo, pormotivos outros, que esse artigo não tem aplicação à espécie ora examinada, nãopreciso deter-me nos defeitos que viciam o diploma legal. De outra forma, nãoseria fiel ao critério que preconizo.

Como dizia, a matéria ficou altamente simplificada. O art. 5º diz:

“Nas locações para fins não residenciais, será assegurado aolocatário o direito à purgação da mora, nos mesmos casos e condiçõesprevistas na Lei para as locações residenciais, aplicando-se o dispostoneste artigo aos casos sub judice”.

Alterou-se, nesse caso, a legislação anterior não só para locações adfuturum como para locações já contratadas. E, no dizer “aplicando-se o dispostoneste artigo aos casos sub judice”, se dá efeito retrooperante da norma aosprocessos pendentes. É esse o seu alcance. Mas pode aquela norma aplicar-seem terceira instância, ou seja, no Supremo Tribunal Federal, por via do recursoextraordinário? Creio que não, Sr. Presidente, porque a observância de tal preceitoferiria conceituação constitucional do apelo extremo, qual seja a condição de“prequestionamento”.

Por esses motivos, Sr. Presidente, e reservando-me para outras considera-ções em melhor ensejo, considero inaplicável ao feito o art. 5º do Decreto-Lei 322 .

O Sr. Ministro Hermes Lima: Quer dizer, eminente Ministro, que V. Exa.não toma conhecimento.

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O Sr. Ministro Prado Kelly: Não. Considero inaplicável o novo preceito àespécie e, em conseqüência, acompanho o eminente Relator.

O Sr. Ministro Hermes Lima: Porque não houve prequestionamento? Poressa razão?

O Sr. Ministro Prado Kelly: Porque não houve prequestionamento.

O Sr. Ministro Luiz Gallotti (Presidente): Quem invoca o dispositivo não éo recorrente; é o recorrido.

O Sr. Ministro Prado Kelly: Quem invoca, de oficio, é o eminente Relator,e isso lhe faz honra; S. Exa. não quis ser omisso em ato de ofício, quando a leiassim ordena. Submeteu a questão ao Tribunal. Mas os efeitos do artigo emcausa não incidem no recurso extraordinário, quando o Tribunal tem restrita a suatarefa: a de só decidir em face das questões consideradas na justiça de origem.

Conheço do recurso e lhe dou provimento.

O Sr. Ministro Luiz Gallotti (Presidente): Assim, V. Exa. conhece e dáprovimento ao recurso extraordinário porque a decisão recorrida contraria a ju-risprudência do Tribunal no tocante às leis que foram apreciadas nas instânciasordinárias.

O Sr. Ministro Prado Kelly: No tocante às leis que deviam ser aplicadas aotempo do litígio.

O Sr. Ministro Eloy da Rocha: Não é preliminar essa questão?

O Sr. Ministro Prado Kelly: Quanto à preliminar levantada, consideroinaplicável o art. 5º.

O Sr. Ministro Eloy da Rocha: A questão contida no voto de V. Exa. precedeà de inconstitucionalidade do art. 5º do Decreto-Lei 322.

O Sr. Ministro Prado Kelly: Foi o que pensei quando, mediante aquiescên-cia dos eminentes Ministros Victor Nunes e Evandro Lins e tácita concordânciado Tribunal, sugeri, com a aprovação do eminente Relator, que a questão se colo-casse singelamente em torno da aplicação ao feito do art. 5º do Decreto-Lei 322.

O Sr. Ministro Hermes Lima: Isso significa que V. Exa. não entra no mérito.

O Sr. Ministro Prado Kelly: Não preciso cogitar de mais nada, porque maisnada se nos depara. Considero inaplicável à espécie, na presente fase processual, oart. 5º do Decreto-Lei 322.

O Sr. Ministro Luiz Gallotti (Presidente): E como a lei aplicada o foi emdesacordo com o entendimento do Supremo Tribunal Federal, por isso V. Exa.acompanha o Relator e também dá provimento.

O Sr. Ministro Prado Kelly: Estou de acordo com a conclusão do eminenteRelator.

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VOTO

O Sr. Ministro Adalicio Nogueira: Sr. Presidente, entendo, como o eminenteMinistro Relator, que o conceito de segurança nacional, realmente, está definidona Constituição, expressa ou implicitamente, não nos sendo possível ampliar ourestringir esse conceito, ao sabor de uma interpretação plástica. Em tese, estouperfeitamente de acordo com o voto de S. Exa.

Quanto, porém, ao caso vertente, adoto o ponto de vista sustentado peloeminente Ministro Prado Kelly. Acho inaplicável, no momento, o dispositivo citadodo art. 5º, em face, mesmo, do sistema de julgamento adotado pelo egrégio Su-premo Tribunal Federal, reservando-me, então, para, na oportunidade própria,apreciar, em cada caso concreto, a solução.

É o meu ponto de vista.

VOTO (Preliminar)

O Sr. Ministro Evandro Lins e Silva: Sr. Presidente, já tive oportunidade depronunciar-me, em caso anterior, de pleno acordo com o voto do eminenteRelator. Naquela oportunidade, discutiu-se a inconstitucionalidade do Decreto-Lei n. 2, de 14-1-1966, que deslocava para a competência da Justiça Militar oscrimes contra a economia popular.

Sustentei, então, que, de acordo com o Ato Institucional n. 2, não podia oPresidente da República, baseado na regra que lhe permitia expedir decretos-leisem matéria que envolvesse a segurança nacional, ampliar conceitos, de modo aabsorver a competência do Poder Legislativo.

A meu ver, o eminente Relator situou perfeitamente o problema. O conceitode segurança nacional é o gênero, que envolve duas espécies: a segurança externae a segurança interna.

De segurança externa evidentemente não se cuida, porque ela compreendeproblemas de guerra externa, de defesa do território nacional, o que não está emcausa. A segurança interna compreende a defesa das instituições políticas doPaís, de um modo geral, isso é, o sistema de governo, os Poderes da República, aFederação e tudo o mais que forma a estrutura do regime sob o qual vivemos.

A Constituição só autoriza o Presidente da República a expedir decretos-leis quando se trata de segurança nacional ou de finanças públicas.

Por ocasião daquele voto, mostrei que a ampliação do conceito poderiacredenciar o Executivo a legislar sobre problemas de locação, a pretexto de quea segurança nacional estava em jogo. Poder-se-ia dizer que tal matéria afeta asegurança nacional, porque pode, eventualmente, perturbar a paz pública. Toda a

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matéria de legislação seria deslocada, por força de uma interpretação ampliativa,para a competência do Poder Executivo.

Continuo a entender que o art. 58 da Constituição, como toda a matéria deordem constitucional, deve ser interpretado, em última análise, pelo Supremo Tri-bunal Federal, a quem compete, por isso, definir o conceito de segurança nacio-nal, nos termos da própria Constituição.

Também ao encargo do Supremo Tribunal Federal fica a interpretação finalsobre o que é finança pública, matéria sobre a qual o Presidente da República tem,hoje, o poder de editar decretos-leis.

O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro (Relator): E sobre a qual existe um código.

O Sr. Ministro Evandro Lins e Silva: De forma que, Sr. Presidente, estoude inteiro acordo com o eminente Relator.

Como já disse, confirmou-se a previsão de que, em dado momento, pode-ríamos ter a surpresa de ver a Presidência da República editando decreto-leisobre matéria de inquilinato.

O Sr. Ministro Luiz Gallotti (Presidente): V. Exa. refere-se ao voto no casodos crimes contra a economia popular, os quais foram declarados, por um decreto-lei, crimes contra a segurança nacional.

O Sr. Ministro Evandro Lins e Silva: Infelizmente, minha previsão se realizou.

De acordo com o voto do eminente Relator, também declaro a inconstitu-cionalidade do art. 5º do Decreto-Lei 322.

VOTO

O Sr. Ministro Hermes Lima: Sr. Presidente, no meu entender, o art. 5º doDecreto-Lei n. 322, de 7 de abril de 1967, que assegura aos locatários purgaçãoda mora em locações comerciais e editado em nome da segurança nacional, nãoé inconstitucional, e as minhas razões são as seguintes: o art. 58 dá ao Presidenteda República, em casos de urgência ou de interesse público relevante e desdeque não resulte em aumento de despesa, o poder de expedir decretos com forçade lei, sobre as seguintes matérias: segurança nacional e finanças.

Evidentemente, o conceito de segurança nacional é extremamente flexívele aberto. Tanto é flexível e aberto, que o parágrafo único desse art. 58 entendeuque, publicado o texto, que teria vigência imediata, de algum decreto fundado nasegurança nacional, o Congresso Nacional, que é órgão político por excelência e,portanto, o mais apto para apreciar os problemas da segurança nacional, o apro-vará ou rejeitará. Não é ao Tribunal que caberá dizer o que é segurança nacionalou o que não é segurança nacional. Isso está deferido na Constituição, art. 58,parágrafo único, ao Congresso Nacional.

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Essa tarefa cabe ao Congresso Nacional. Não cabe a este Tribunal, a meuver, dizer o que é segurança nacional ou o que não é segurança nacional.

O eminente Relator, no seu brilhantíssimo voto — e que, mais uma vez,revela a sua capacidade intelectual e jurídica...

O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro (Relator): Muito obrigado a V. Exa.

O Sr. Ministro Hermes Lima: ...disse que os problemas de segurançanacional estão compendiados nos arts. 89 a 91.

O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro (Relator): O conceito emana de todas asações que possam pôr em perigo a perenidade, a independência, a segurança, apaz, a ordem interna do País, suas instituições, seus valores morais e intelectuais,quer por agressores externos, quer por agressores internos, em maior ou menorescala, em suas formas aparentes, extrínsecas, ou mesmo com as formasinsidiosas, veladas, dissimuladas, que todos conhecemos.

O Sr. Ministro Hermes Lima: Ora, o art. 90 dá competência ao Conselhode Segurança Nacional...

O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro (Relator): V. Exa. olhe a rubrica da seção“Da Segurança Nacional”.

O Sr. Ministro Hermes Lima: Ao Conselho de Segurança Nacional, paratodas as medidas que estão expressas no art. 91.

Essa é a função de Conselho de Segurança Nacional. Mas isso não querdizer que o Conselho esgote essa matéria, nem que só o que aí está signifiquesegurança nacional.

É preciso, a meu ver, conciliar o art. 91, em que existe discriminação decompetência de um órgão político, como é o Conselho de Segurança Nacional,com o art. 58, que alarga o conceito de segurança nacional, porque, no art. 91, oConselho informará o Presidente da República, assessorará o Presidente da Re-pública, nessas matérias que estão aí discriminadas.

Esse é o papel do Conselho.

Mas o art. 58 alarga mais o conceito de segurança nacional, porque diz que“o Presidente da República, em casos de urgência ou de interesse público rele-vante (...)”. Quer dizer, a segurança nacional abrange, como casos de urgênciaou de interesse público relevante, mais alguma coisa do que aquilo que estácompendiado no art. 91 da Constituição.

O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro (Relator): Permite o eminente colega umesclarecimento?

Nós ambos já fomos partícipes em elaboração de Constituições, e naquelashouve um cuidado imenso da Comissão Redatora do Projeto de, seguindo a velha

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regra da arte de elaborar leis, não empregar palavras ou cláusulas ou locuçõesdiferentes para uma idéia só.

Quando se fala, na Constituição, no “Senado”, só pode ser no “SenadoFederal”. Não podem ser usadas as expressões “órgão” ou “Câmara”, é semprea mesma palavra, usada do princípio ao fim, ainda com o perigo de se quebrar aelegância literária do texto pela repetição.

Essa matéria, antes mesmo da Constituição de 1934 e das anteriores, foidiscutida por um constitucionalista nosso conterrâneo, Aurelino Leal, embora eleestivesse mais preocupado com a técnica legislativa em matéria de Direito Civil enão de Direito Constitucional.

Hoje, todas as livrarias vendem as traduções de obras americanas sobre amaneira de redigir-se projeto de lei, a drafting.

A Constituição emprega a locução “segurança nacional”, mas abre subtí-tulo “Da Segurança Nacional”, e em outro capítulo a ela se refere. Tem-se quebuscar o conceito aí. É a velha arte de interpretar-se a lei analogicamente, siste-maticamente. Uma disposição completa a outra, uma lei completa a outra. Nãose pode tomar uma disposição isolada se há uma autorização ao Presidente daRepública.

No art. 58, há um conceito do que é “segurança nacional” e de todasaquelas matérias que constituem a “segurança nacional”. E o próprio bom sensoestá dizendo que só podem ser a paz, a segurança, o bem estar, enfim, a preser-vação da incolumidade da Nação, quer quanto às ameaças externas, quer quantoàs internas.

Mas purgar mora de comerciante, tenha paciência!

Por exclusão, podemos dizer o que é “segurança nacional”. Vejamos o quenão é segurança nacional: bola de futebol não é segurança nacional; batom demoça não é segurança nacional; cigarro de maconha não é segurança nacional.

Não se pode fazer um decreto-lei regulando a produção da maconha, porexemplo, porque é da alta segurança para o soldado, que poderá tirar seus com-plexos de medo do soldado inimigo, de angústia, etc.

O Sr. Ministro Hermes Lima: Compreendo, perfeitamente, o ponto de vistade V. Exa., mas não aceito, exatamente, que tudo quanto está no conceito desegurança nacional sejam as funções deferidas ao Conselho de Segurança Nacio-nal. O Conselho de Segurança Nacional tem funções específicas, que estãodiscriminadas, e no conceito que V. Exa. fez de segurança nacional não caberiam,certamente, outras medidas.

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Se interpretássemos, literalmente, que a segurança nacional só está ex-pressa no art. 91, em seus incisos e letras, não caberia o conceito que V. Exa.ainda agora acaba de repetir sobre segurança nacional. Esse conceito autorizamedidas que não estão ali previstas.

Por isso é necessário não limitar o conceito de segurança nacional ao queestá expresso no art. 91, mas juntar a esse art. 91 o art. 58, que vem antes dele eque diz: “O Presidente da República, em caso de urgência ou de interesse públicorelevante...”

Ora, se lermos o que está escrito no art. 91, veremos que muitos casos deurgência ou de interesse público relevante não se acham nele incluídos.

Evidentemente, se um país tivesse governantes que, em nome do conceitode segurança nacional, proibissem que moças usassem batom ou que indivíduosfumassem maconha ou que se embriagassem, então, esse país seria um país deopereta, não teria respeito internacional, não seria sério, seria um circo.

De modo que o argumento de V. Exa. peca pelo absurdo.

Além disso, não há também, a meu ver, perigo de que o conceito de segu-rança nacional possa ser usado pelo Presidente da República para limitar as ga-rantias e os direitos do art. 150, porque esses direitos estão expressos na Consti-tuição. O Presidente da República não poderá, em nome da segurança nacional,negar a liberdade de pensamento, negar a liberdade de palavra, ou, então, restrin-gir ou eliminar quaisquer dos direitos e quaisquer das garantias que estão assegu-radas no art. 150.

O conceito de segurança nacional tem, portanto, a meu ver, a primeira desuas limitações no art. 150 da Constituição. A primeira, a mais fundamental daslimitações do conceito de segurança nacional está no art. 150 da Constituição.

O Sr. Ministro Evandro Lins: Está no próprio art. 58, porque a urgência ouo interesse público relevante, ao invés de ampliarem o poder do Presidente daRepública, aí funcionam como condição restritiva: só nos casos de urgência ou deinteresse público relevante é que ele poderá expedir decretos-leis sobre matériade segurança nacional e finanças públicas.

V. Exa. está interpretando esse dispositivo como sendo ampliativo dospoderes do Presidente da República, quando essas condições são restritivas.

O Sr. Ministro Hermes Lima: Não, perdão. Estou interpretando como sendoampliativo ou como contendo outros requisitos além dos que estão enumerados noart. 91. Essa é minha posição.

O Sr. Ministro Evandro Lins: A enumeração do art. 91 não subordina oPresidente da República a essas condições de interesse público ou de urgênciapara que possa expedir os decretos-leis, porque o normal é que ele se dirija aoLegislativo em todas as matérias que não envolvam problemas de segurançanacional ou de finanças públicas.

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O Sr. Ministro Hermes Lima: Ora, Sr. Presidente, os casos de urgência oude interesse público relevante do art. 58 são casos políticos, de relevância política,em que uma razão de ordem política ou, o que vale dizer, uma razão de ordempública está incluída. Porque é um caso de ordem pública e de ordem política éque o parágrafo único do art. 58 deferiu ao Congresso Nacional a apreciação dodecreto. Então, é essa a função política por excelência do Congresso Nacional.Não podemos criar duas instâncias para tomar conhecimento dos decretos doPresidente da República, expedidos em nome da segurança nacional.

O Sr. Ministro Victor Nunes Leal: Mas apreciamos as próprias leis doCongresso!

O Sr. Ministro Hermes Lima: Esses decretos só têm uma instância. Qual éa instância? O Congresso Nacional.

O Sr. Ministro Victor Nunes Leal: Então esse decreto-lei valeria mais quea lei. Se o Supremo Tribunal examina qualquer lei em face da Constituição, nãopode examinar tais decretos-leis?

O Sr. Ministro Hermes Lima: Não é isso: é que não podemos substituir oCongresso na apreciação dessa matéria que está a ele deferida.

O Sr. Ministro Victor Nunes Leal: E se o Congresso tivesse aprovado expres-samente o decreto-lei?

O Sr. Ministro Hermes Lima: Estava aprovado.

O Sr. Ministro Victor Nunes Leal: Seria uma lei. E não poderíamos apreciaressa lei?

O Sr. Ministro Hermes Lima: No caso, trata-se de lei, apesar de não apro-vada expressamente pelo Congresso, mas trata-se de lei. Se o Congresso tivesseaprovado, seria lei; o Congresso não aprovando, é também lei. Só não seria se oCongresso tivesse recusado. É o que está no parágrafo único do art. 58.

O Sr. Ministro Victor Nunes Leal: E por que o Supremo Tribunal não teriao poder de examinar somente esse tipo de lei, quando pode julgar todas as outrasem face da Constituição?

Sr. Ministro Hermes Lima: O Poder Judiciário tem o poder de examinartodas as leis, mas não tem o poder de se substituir ao corpo político no exame deleis cuja matéria é peculiarmente política. Os nossos pontos de vista são diferen-tes porque V. Exa. parte da premissa de que a lei é inconstitucional. Eu não: partoda premissa de que a lei é constitucional.

O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro (Relator): Eminente Ministro, parece quea nossa divergência se circunscreve a um problema que procurei deixar claro nomeu voto. O conceito de segurança está nos artigos 89 a 91, e neste caso o

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Presidente da República não pode hipertrofiá-lo, com a aprovação do Congressoou sem ela. O Congresso não pode convalidar ato do Presidente da Repúblicanesse sentido, nem por lei. V. Exa. parte de outro princípio, porque acha que esseconceito não está definido na Constituição, não é evidente por si mesmo e seráaquilo que a discricionariedade do Congresso determinar, aprovando ou rejeitadoum ato do Executivo.

O Sr. Ministro Victor Nunes Leal: Esse é o problema: será matéria discri-cionária do Executivo e do Congresso?

O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro (Relator): Se for discricionária, meu nobreColega, só o céu é o limite. Amanhã o Código Penal poderá criar pena de 100anos; poderá até dizer que a segurança nacional exclui a proibição constitucionalda pena de morte, ou considera a paz, ou inexistência de guerra estrangeira,como guerra estrangeira, e então poderá ser aplicada essa pena de morte. Coisasincríveis poderão ocorrer neste País. É bom imaginar todas as conseqüênciaspróximas e remotas de uma interpretação como essa numa Casa como a em queestamos servindo. E olhe que eu sou partidário do governo forte, o governo quemanda, e por isso mesmo defendo o parlamentarismo, porque, a meu ver, é ogoverno mais forte do mundo. O detentor de poderes mais discricionários domundo é o Primeiro Ministro da Inglaterra, enquanto apoiado pelo Parlamento.

O Sr. Ministro Hermes Lima: Mas eu não digo que seja arbitrário, digo queseja discricionário, porque os limites, como eu já disse, do conceito de segurançanacional, não estão no art. 91 — estão no art. 150 da Constituição.

O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro (Relator): Lá está, no art. 150, o conceitode propriedade.

O Sr. Ministro Hermes Lima: Essa é questão que o Supremo Tribunalpoderia discutir. Poderia partir do princípio de que não há nada no conceito depropriedade que possa ser anti-social. Seria um belo ponto de partida.

O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro (Relator): V. Exa. se esqueceu de queestivemos ombro a ombro discutindo o conceito de propriedade como funçãosocial, e até algumas emendas que puseram de cabelo em pé alguns respeitáveiscompanheiros da Constituinte de 46. Estou ainda vendo na eternidade o DeputadoEduardo Duvivier alarmado com V. Exa.; o Professor Mário Mazagão queria atérenunciar com medo de nossas idéias ali.

O Sr. Ministro Hermes Lima: Sr. Presidente, já tomei muito tempo, mas amatéria é importante e estou dando um voto que, penso, vai discrepar dos demais.Precisava, portanto, justificar-me.

Então, o freio para os decretos do Presidente em matéria de segurançanacional está no Congresso. O Congresso que exerça as suas funções, o Con-

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gresso que tome realmente a posição de um fiscal desses decretos do Presidenteda República. Portanto, buscando agora a conclusão do caso, julgo o decretoconstitucional.

Em segundo lugar, penso que o art. 5º também não é inconstitucional, que podese aplicar, segundo a tradição de todas as leis do inquilinato, aos casos pendentes.

O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro (Relator): Eu não contesto. Eu contesto éque se possa negar efeitos já produzidos, decorrentes de situação definitivamenteconstituída. Suponhamos que neste momento a lei marque o teto de 6% à usura.Far-se-á uma lei ou um decreto-lei baseados na segurança nacional, e dirão: oempréstimo no Brasil não poderá mais cobrar juros, porque os Concílios da Igrejajá consideram que o juro é pecado. Tendo exemplos como o de D. Felipe II, Reida Espanha e de Portugal, que suspendeu juros da dívida pública para pôr aperder a alma dos credores dele. Assim, com tais fundamentos morais, ficavamproibidos os juros. Tendo validade essa lei, daqui para o futuro ninguém maispagaria juros, mas quem recebeu juros até hoje não é obrigado a devolvê-los.Ninguém pode pedir de volta o juro que pagou; ninguém deixa de ser credor dojuro que estava vencido até ontem. É uma situação definitiva. O credor não podeser prejudicado.

O Sr. Ministro Hermes Lima: Também julgo, Sr. Presidente, que a matériado Decreto-Lei 322 é da mais alta importância social, pois assim sempre foramconsideradas as leis sobre o problema de locação, do inquilinato. Se o CongressoNacional, ao apreciar essa lei, ficou um pouco alarmado pelo fato de o Presidenteda República tê-la editado em nome da segurança nacional, ninguém contra elase pronunciou. Não houve um deputado, um senador, que articulasse uma palavracontra o mérito da lei.

O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro (Relator): Não foi por medo do Presidenteda República, porque tem havido críticas severas e irreverentes a S. Exa. emoutros assuntos. Mas os deputados tiveram medo de perder a eleição, a maiorparte da população é de inquilinos.

O Sr. Ministro Hermes Lima: Concluindo meu voto, quero deixar bemclaro meu pensamento: o conceito de segurança nacional não está adstrito aositens do art. 91. Esse conceito se aplicou pelo art. 58, que dá ao Presidente daRepública, em casos de urgência ou de interesse público relevante, o poder deeditar decretos. O juiz desses decretos é o Congresso Nacional. Os limites doconceito de segurança nacional estão no art. 150 da Constituição. Esse conceitonão está na Constituição como um cheque em branco. Os limites do conceito, ameu ver, se acham no art. 150. Se essa não é a melhor maneira de estruturar aorganização política do País, a culpa não cabe ao Supremo Tribunal Federal. O

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Ministro Victor Nunes

Supremo Tribunal Federal não tem o poder de organizar politicamente o País oude corrigir a Constituição, segundo ditames de justiça que ele ditaria ou segundovalores éticos que ele considera mais altos e adequados. A Constituição é o queos constituintes fizeram. Sr. Presidente, a Constituição não é obra da razão, éobra dos corpos políticos. Portanto, a política da Constituição não pode sercorrigida pelo Supremo Tribunal Federal. A política da Constituição tem que sercorrigida pelos poderes políticos da Constituição.

É o meu voto.

VOTO

O Sr. Ministro Victor Nunes: Sr. Presidente, os apartes esclareceram devi-damente a questão que estamos examinando. Evidentemente, não se pode negarque o Congresso Nacional seja um freio constitucional para o Presidente da Re-pública, no uso das atribuições do art. 58. Também não se pode negar que outracontenção encontramos no art. 150, que define as garantias individuais, e talvezmais importante, muito mais importante. O que me impede de concordar com obrilhantíssimo voto do eminente Ministro Hermes Lima é que não são esses osúnicos elementos de contraste no sistema de freios e contrapesos que a Consti-tuição adotou.

O art. 58 não suprimiu qualquer das prerrogativas do Supremo Tribunal,definidas nos arts. 114 e 115. O fato de poder o Congresso apreciar os decretos-leis do art. 58 não lhes confere categoria superior à das leis votadas pelo Con-gresso, quer este aprove esses decretos-leis pelo silêncio ou em forma expressa.Se o Supremo Tribunal pode julgar as leis em face da Constituição, também podeapreciar, em face da Constituição, aqueles decretos-leis.

O problema fundamental, no exame a que estamos procedendo, é saber seo conceito de segurança nacional, a que se refere o art. 58, é matéria da compe-tência discricionária do Executivo e do Congresso Nacional. Ainda há pouco, oSr. Ministro Aliomar Baleeiro pôs bem esse problema. E essa é a questão nuclearque temos a decidir. O Executivo e o Congresso podem dar ao conceito de segu-rança nacional, do art. 58, a amplitude que entenderem?

O Sr. Ministro Hermes Lima: A meu ver, sim. Não é arbitrário.

O Sr. Ministro Victor Nunes: Estou empregando o vocábulo “discricionário”,que tem rigor técnico. Competência arbitrária, na Constituição, nenhum de nósadmitiria.

A meu ver, Sr. Presidente, como já foi sustentado por eminentes colegasque me precederam, a conceituação de segurança nacional não foi deixada àdiscricionariedade dos outros dois Poderes.

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Memória Jurisprudencial

Em primeiro lugar, o texto constitucional, particularmente o art. 58, nãoconfundiu, nem assemelhou, os conceitos de segurança nacional e de interessepúblico relevante. O Sr. Ministro Evandro Lins, há pouco, observou isso.

Diz o texto que o Presidente da República pode, em caso de urgência oude interesse público relevante, expedir certos decretos-leis. Quais? O própriotexto responde: os que se refiram a matéria de segurança nacional e a matéria definanças públicas.

Portanto, a dois tipos de condicionamento está subordinada a ação do Pre-sidente da República. O primeiro é que se trate de certa matéria: segurançanacional, que ora nos interessa, ou finanças públicas. O segundo é que o casoseja de urgência e de interesse público relevante.

O que é discricionário, nesse dispositivo, é a condição da urgência e dointeresse público relevante. Sobre isso falam soberanamente, em primeiro lugar,o Executivo, em segundo, o Congresso. Mas a matéria do decreto-lei, essa éoutra condição sem a qual o Presidente da República não pode expedir decretos-leis, pois não basta que a matéria seja urgente e de interesse público relevante,mas é preciso também que se refira à segurança nacional ou às finanças públi-cas. A definição dessa matéria não é discricionária, pois o nosso sistema constitu-cional seria ilusório, se um conceito tão básico, tão importante, tão fundamental,seja para a segurança do Estado, seja para a segurança dos indivíduos, dependessetão-só do critério ilimitado e exclusivo dos órgãos políticos.

A Constituição contém outros dispositivos que tratam da segurança nacio-nal. Se o art. 58, que também se refere à “segurança nacional”, não define essamatéria, será naqueles outros textos que o Supremo Tribunal encontrará subsídiopara a conceituação jurídica da segurança nacional, exercendo sua competênciade apreciar quaisquer leis em face da Constituição, inclusive os decretos-leis doart. 58.

Com esses fundamentos, Sr. Presidente, e com os apartes que tive ocasiãode externar, poderia limitar meu voto à não-aplicação do art. 5º do Decreto-Lei322 ao caso dos autos, na linha das brilhantes considerações do Sr. MinistroPrado Kelly. Mas, como os tribunais podem decidir — e freqüentemente ofazem — por mais de um fundamento, acrescento este outro, de ser inconstitu-cional o Decreto-Lei 322, em sua integridade, por não cuidar de matéria desegurança nacional.

VOTO

O Sr. Ministro Gonçalves de Oliveira: Sr. Presidente, pelo adiantado dahora, vou resumir o meu voto. A questão, em verdade, deve ser posta nestestermos: a validade do decreto-lei expedido pelo Presidente da República, com

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Ministro Victor Nunes

fundamento no art. 58 da Constituição, tem sua apreciação sujeita apenas àsatribuições conferidas ao Congresso Nacional, ou o Supremo Tribunal também apode julgar?

O eminente Ministro Hermes Lima diz que a questão é puramente de na-tureza política e fica, conseqüentemente, ao critério exclusivo do Congresso Na-cional. Neste particular, peço licença ao egrégio mestre para divergir da suadouta conclusão e acompanhar o brilhante e substancioso voto do eminenteRelator.

A questão é de grande relevância. Para chegar à conclusão de que a ques-tão seria apenas do arbítrio, do critério do Congresso Nacional, nós não poderíamosler que o Presidente da República baixará decretos-leis com força de lei sobresegurança nacional ou finanças públicas. Seria sobre qualquer matéria. Diz oparágrafo único do art. 58: (lê)

Se o Presidente não ficar adstrito a baixar decreto com força de lei apenassobre segurança nacional e finanças públicas, poderá fazê-lo sobre qualquermatéria.

O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro (Relator): Não há palavras inúteis na lei.Então, por que o subtítulo “Segurança Nacional” numas das Seções da Constitui-ção?

O Sr. Ministro Gonçalves de Oliveira: Se a matéria, evidentemente, peloseu conteúdo, não diz respeito a segurança nacional nem a finanças públicas, mashá aprovação implícita do Congresso Nacional, que não se manifestou no prazode 60 dias sobre esse ato legislativo, fica o projeto convalidado? Então, não éapenas sobre segurança nacional e finanças públicas que pode legislar o Presi-dente da República. É sobre qualquer matéria. E isso é que o legislador constituintenão quis, deixando ao crivo do Judiciário, do Supremo Tribunal, apreciar o conteúdodessa lei.

Bastam essas considerações para me pôr de acordo como o eminenteRelator. O Presidente da República legislou sobre Direito Civil, matéria que aConstituição reserva à lei, conforme o art. 8º, XVII, da Constituição.

Essa matéria de locação de imóveis é de Direito Civil e não de segurançanacional. Por essas razões é que adoto o lúcido e brilhante voto do eminenteRelator como razão de decidir.

VOTO

O Sr. Ministro Candido Motta Filho: Sr. Presidente, também poderia decla-rar inaplicável o art. 5º do Decreto-Lei 322, mas acho que é dever de minhaconsciência de jurista e de Ministro desta Casa dizer, de acordo com o eminente

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Memória Jurisprudencial

Relator, que o Decreto-Lei é inconstitucional porque se baseia no conceito desegurança nacional, que tem um sentido estrito dentro da nossa Constituição, leide garantia, de distribuição de direitos e competências, que, portanto, firma umsistema de freios e contrapesos.

Se considerarmos a segurança nacional no seu sentido mais amplo, dentrodessa discricionariedade de que aqui se falou, não haverá mais garantia nem paraos direitos individuais, nem para os direitos sociais, nem para os direitos políticos.Acho mesmo que a Constituição distingue, nos seus termos, o que é ordem pública,o que é questão política, o que é ordem social, o que é ordem econômica, o que édireito individual. E, quando ela se refere à segurança nacional, está se referindoà manutenção da integridade política do povo, como Estado, e é por isso que elaouve o Conselho de Segurança Nacional, como base às suas decisões a respeito,bem como as Forças Armadas.

Ora, o problema que se está discutindo não é um problema dessa ordem. Éum problema de ordem constitucional que se refere às garantias de ordem civil,que não são, portanto, abrangidas pelo conceito de segurança nacional.

Tive oportunidade, há mais de dez anos, de fazer uma conferência naAssociação Comercial de São Paulo sobre o conceito de segurança nacional, emque mostrava justamente o perigo do conceito que se alastrava nos EstadosUnidos, onde se dizia que o conceito de segurança nacional se dilatava até aoVietnam. Eu chamava a atenção dos ouvintes e propugnava para que a Constitui-ção, num sistema da limitação de poderes, definisse o que fosse segurança nacio-nal, e que os tribunais, como órgãos da Justiça e intérpretes da Constituição,assegurassem as liberdades públicas em frente a todos os princípios, impedindoque se transformasse a discricionariedade dos poderes públicos em ditadura, por-que a ditadura é o poder de ditar leis!

Concluindo, Sr. Presidente, declaro inaplicável o art. 5º do Decreto-Lei 322.

VOTO

O Sr. Ministro Lafaytte de Andrada: Sr. Presidente, acompanho o douto ebrilhante voto do eminente Ministro Relator, conhecendo do recurso e lhe dandoprovimento.

Dou pela inconstitucionalidade do art. 5º do Decreto-Lei 322, de 7-4-67.Como muito bem expôs o eminente Ministro Aliomar Baleeiro e bem explanou oeminente Ministro Victor Nunes no correr do debate, ao Supremo Tribunal cabe,dentro da sua competência de apreciar as leis em face da Constituição, declarara inconstitucionalidade de tais leis ou de decretos-leis. E, se o art. 58 citado nãodefine o que seja matéria de segurança nacional, não poderemos concluir que oconceito tão grave e relevante dessa matéria possa ficar ao arbítrio exclusivo dosórgãos políticos.

É esse o meu voto, de acordo com o eminente Ministro Relator.

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Ministro Victor Nunes

VOTO

O Sr. Ministro Luiz Gallotti (Presidente): Vou recordar o julgamento quehouve aqui, em que os eminentes Ministros Evandro Lins, Gonçalves de Oliveira,Ribeiro da Costa e eu fomos votos vencidos. O eminente Ministro Victor Nunesachava-se na Inglaterra.

Entendemos que não podia um decreto-lei dispor sobre crimes contra aeconomia popular, porque não nos parecia que fossem delitos contra a segurançanacional. Tratava-se de infração a tabelamento de preços, e eu não via como sepudesse considerar tais crimes como cometidos contra a segurança nacional.

Ouvi com a maior atenção e com o respeito de sempre o voto do eminenteMinistro Hermes Lima, mas, data venia de S. Exa., desta vez não me convenci.Entendo que, quando a Constituição usa a expressão “segurança nacional”, refe-re-se a um conceito fixado, estabelecido na doutrina. É o que acontece tambémcom “imposto”, “taxa”, “crime político”, “anistia”, etc., como já tenho argumen-tado em outros casos. Se ao legislador ordinário fosse livre subverter esses con-ceitos que a Constituição teve em mira, ruiria todo o sistema constitucional. OCongresso, em lei ordinária, não pode alterar o conceito de segurança nacional.Se pudesse, estaria modificando a própria Constituição, que dispôs levando emconta tal conceito, e, obviamente, para ser respeitado.

Entendido amplamente, isto é, que o Congresso, sem limites, pode alargaro conceito de segurança nacional, então, poderia haver decretos-leis sobre tudo,porque, remotamente, toda a ordem jurídica interessa à segurança nacional, e alimitação constitucional da competência do Executivo para baixar decretos-leispraticamente desapareceria.

A Constituição permite que se legisle por decretos-leis com aprovação aposteriori pelo Congresso, tácita ou expressa, apenas em se tratando das duasmatérias que ela, taxativamente, indica no art. 58: segurança nacional e finançaspúblicas. Se a matéria não for uma dessas duas, a Constituição não quer que selegisle por essa forma, e o Congresso não pode dizer o contrário, nem por lei e,menos ainda, pelo silêncio.

Esse é, em síntese, o meu pensamento. Também considero inconstitucional oart. 5º do Decreto-Lei 322.

DECISÃO

RE 62.731/GB. Matéria Constitucional. Art. 24, inc. III, do RegimentoInterno. Relator: O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro. Recorrente: José do CoutoMoreira (Advogado: Celso Augusto Fontenelle). Recorrido: Manoel Gonçalvesde Carvalho (Advogado: Nelson França da Silva). Foi julgado inconstitucional o

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Memória Jurisprudencial

art. 5º do Decreto-Lei 322, de 7 de abril de 1967, pelos votos dos Ministros:Relator, Raphael de Barros Monteiro, Adaucto Cardoso, Djaci Falcão, Eloy daRocha, Evandro Lins, Victor Nunes, Gonçalves de Oliveira, Candido Motta,Lafayette de Andrada e o Presidente, Luiz Gallotti. Votou pela constitucionali-dade o Ministro Hermes Lima. Contra o voto deste Ministro, foi o recurso conhe-cido e provido, votando também pelo conhecimento e pelo provimento os MinistrosPrado Kelly e Adalicio Nogueira, que não se pronunciaram sobre a matéria consti-tucional por entenderem desnecessário. Falou o Procurador-Geral da República,Professor Haroldo Valadão.

Presidência do Ministro Luiz Gallotti. Presentes os Ministros Lafayette deAndrada, Candido Motta, Gonçalves de Oliveira, Victor Nunes, Hermes Lima,Evandro Lins, Adalicio Nogueira, Prado Kelly, Aliomar Baleeiro, Eloy da Rocha,Djaci Falcão, Adaucto Cardoso e Raphael de Barros Monteiro. Procurador-Geralda República, Professor Haroldo Valadão. Licenciados, os Ministros HahnemannGuimarães e Oswaldo Trigueiro.

Tribunal Pleno, 23 de agosto de 1967 — Álvaro Ferreira do Santos, Vice-Diretor-Geral.

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Ministro Victor Nunes

ÍNDICE NUMÉRICO

IP 2 (voto) Rel. p/ o ac.: Min. Djaci Falcão ................................ 237

Ext 232 Rel.: Min. Victor Nunes ............................................ 239

Ext 272 Rel.: Min. Victor Nunes ............................................ 258

Ext 273 Rel.: Min. Victor Nunes ............................................ 258

Ext 274 Rel.: Min. Victor Nunes ............................................ 258

ROE 366 (voto) Rel.: Min. Gonçalves de Oliveira .............................. 330

Rp 477 (voto) Rel.: Min. Luiz Gallotti .............................................. 335

Rp 753 (voto) Rel.: Min. Djaci Falcão ............................................. 346

MS 8.651 (voto) Rel. p/ o ac.: Min. Ary Franco .................................. 354

MS 8.693 (voto) Rel.: Min. Ribeiro da Costa ...................................... 358

MS 8.802 (voto) Rel.: Min. Pedro Chaves .......................................... 377

RMS 9.558 (voto) Rel.: Min. Pedro Chaves .......................................... 381

RMS 11.687 (voto) Rel.: Min. Hahnemann Guimarães .......................... 392

RMS 14.230 Rel.: Min. Gonçalves de Oliveira .............................. 491

MS 15.186 (voto) Rel.: Min. Evandro Lins ............................................ 408

RMS 15.207 (voto) Rel.: Min. Pedro Chaves .......................................... 502

MS 15.886 (voto) Rel.: Min. Victor Nunes ............................................ 414

MS 16.512 (voto) Rel.: Min. Oswaldo Trigueiro .................................... 423

RMS 16.912 (voto) Rel.: Min. Djaci Falcão ............................................. 426

MS 17.957 (voto) Rel.: Min. Aliomar Baleeiro ...................................... 449

MS 18.973 (voto) Rel.: Min. Themistocles Cavalcanti .......................... 454

AI 32.869 Rel.: Min. Gonçalves de Oliveira .............................. 491

HC 40.382 (voto) Rel.: Min. Victor Nunes ............................................ 456

HC 40.398 (voto) Rel.: Min. Pedro Chaves .......................................... 469

HC 40.400 (voto) Rel.: Min. Victor Nunes ............................................ 475

HC 41.296 (voto) Rel.: Min. Gonçalves de Oliveira .............................. 476

HC 44.074 (voto) Rel.: Min. Victor Nunes ............................................ 258

RE 54.190 (voto) Rel. p/ o ac.: Min. Evandro Lins ............................... 484

RE 56.880 (voto) Rel.: Min. Gonçalves de Oliveira .............................. 491

RE 58.505 (voto) Rel.: Min. Pedro Chaves .......................................... 502

RE 62.731 (voto) Rel.: Min. Aliomar Baleeiro.....................................509