Victor Folquening - Apostila Completa

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PRIMEIRA PRESTAÇÃO TEORIA DA COMUNICAÇÃO VICTOR FOLKENING AS PRIMEIRAS TEORIAS: PROPAGANDA DE GUERRA, SOCIEDADE DE MASSAS, PESQUISA ADMINISTRATIVA AS PRIMEIRAS TEORIAS: PROPAGANDA DE GUERRA, SOCIEDADE DE MASSAS, PESQUISA ADMINISTRATIVA Estudar Teoria da Comunicação é um caso de ne- cessidade e compromisso. Falemos primeiro do com- promisso. Nós vamos perceber que a teia de Comu- nicação que envolve as relações sociais no mundo contemporâneo é muito mais importante do que parece. No passado, as pessoas entendiam o espaço pú- blico como algo concreto: sua aldeia estava literal- mente ao redor e com uma caminhada você poderia ir até o vizinho tomar satisfações, fofocar ou pedir a mão da Fulana em casamento. Por conta disso, os costumes e as idéias eram razo- avelmente ligados a experiências vividas no empoei- rado mundo real. Você acreditava no que acreditava porque seu pai havia lhe “provado”, porque o padre tinha dito, porque todo mundo, na sua vizinhança, tinha idéias mais ou menos parecidas. Mas esse espaço de sociabilidade mudou com o desenvolvimento de certas tecnologias. Primeiro, porque as distâncias ficaram bem mais curtas com novos veículos, melhoria das estradas e mapas de navegação, para não falar do avião e das naves es- paciais. Os historiadores contam que uma viagem entre Glouchester e Londres, em meados do sécu- lo 18, durava quase uma semana – isso se o tempo ajudasse. Hoje, o mesmo percurso é feito, por terra mesmo, em menos de duas horas. Mais importante que o desenvolvimento dos trans- portes, um boom de novos meios de comunicação – e a rapidez com que se espalharam e melhoraram suas performances – tornou ainda mais complexo o movimento de vida que forma nossas idéias, nossos costumes, nossa concepção de mundo. Veja só: se uma estrada bem pavimentada faz o “diferente” chegar com mais freqüência até você, imagine um transporte em que as coisas nem precisam sair do lugar. Em menos de 5 anos, nos Estados Unidos do final do século 19, a quantidade de aparelhos telefô- nicos passou de 5 para 15 mil! (O jornalista Ambrose Bierce, na virada para o século 20, implicava com o telefone porque, segundo ele, aproximava demais aqueles que gostaríamos de evitar). Do século 20 em diante, a Comunicação (de “mas- sa”, conceito que vamos discutir mais detidamente) foi ficando tão imensa no mundo todo que acabou substituindo (ou modificando) outras instituições ou espaços sociais. A política, por exemplo. Pode conce- ber um candidato a presidente, num país gigantesco como o Brasil, que consiga apresentar suas propos- tas de governo sem usar os meios de comunicação? Vamos além: o presidente da República governaria o país sem meios de comunicação? Sem televisão? Se você fizer um pequeno esforço criativo vai per- ceber que os meios de comunicação “amarram” não só os nossos costumes e idéias, como nos fornecem ou solapam cidadania e nos empurram para escolhas importantíssimas, como o voto em nossos candida- tos a governantes, quem vai ser expulso do Big Bro- ther na terça-feira ou se queremos ver Morte Fatal ou Assassinato Letal no Intercine. A publicidade é uma questão central nesse mun- do e ouviremos milhares de vezes sobre os prejuízos que uma “cultura publicitária” impôs à sociedade. Ao mesmo temos, talvez possamos nos dar conta de que mesmo a publicidade, destinada basicamente a “vender” coisas ou idéias, pode até ser compreendi- da como lastro de civilização. Como nesse anúncio que a agência MacCann/Erickson de Madrid produ- ziu para a Organização Médicos Sem Fronteiras: PRIMEIRA PRESTAÇÃO

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AS PRIMEIRAS TEORIAS: PROPAGANDA DE GUERRA, SOCIEDADE DE MASSAS, PESQUISA ADMINISTRATIVA

Estudar Teoria da Comunicação é um caso de ne-cessidade e compromisso. Falemos primeiro do com-promisso. Nós vamos perceber que a teia de Comu-nicação que envolve as relações sociais no mundo contemporâneo é muito mais importante do que parece.

No passado, as pessoas entendiam o espaço pú-blico como algo concreto: sua aldeia estava literal-mente ao redor e com uma caminhada você poderia ir até o vizinho tomar satisfações, fofocar ou pedir a mão da Fulana em casamento.

Por conta disso, os costumes e as idéias eram razo-avelmente ligados a experiências vividas no empoei-rado mundo real. Você acreditava no que acreditava porque seu pai havia lhe “provado”, porque o padre tinha dito, porque todo mundo, na sua vizinhança, tinha idéias mais ou menos parecidas.

Mas esse espaço de sociabilidade mudou com o desenvolvimento de certas tecnologias. Primeiro, porque as distâncias ficaram bem mais curtas com novos veículos, melhoria das estradas e mapas de navegação, para não falar do avião e das naves es-paciais. Os historiadores contam que uma viagem entre Glouchester e Londres, em meados do sécu-lo 18, durava quase uma semana – isso se o tempo ajudasse. Hoje, o mesmo percurso é feito, por terra mesmo, em menos de duas horas.

Mais importante que o desenvolvimento dos trans-portes, um boom de novos meios de comunicação – e a rapidez com que se espalharam e melhoraram suas performances – tornou ainda mais complexo o movimento de vida que forma nossas idéias, nossos costumes, nossa concepção de mundo. Veja só: se uma estrada bem pavimentada faz o “diferente” chegar com mais freqüência até você, imagine um transporte em que as coisas nem precisam sair do lugar. Em menos de 5 anos, nos Estados Unidos do

final do século 19, a quantidade de aparelhos telefô-nicos passou de 5 para 15 mil! (O jornalista Ambrose Bierce, na virada para o século 20, implicava com o telefone porque, segundo ele, aproximava demais aqueles que gostaríamos de evitar).

Do século 20 em diante, a Comunicação (de “mas-sa”, conceito que vamos discutir mais detidamente) foi ficando tão imensa no mundo todo que acabou substituindo (ou modificando) outras instituições ou espaços sociais. A política, por exemplo. Pode conce-ber um candidato a presidente, num país gigantesco como o Brasil, que consiga apresentar suas propos-tas de governo sem usar os meios de comunicação? Vamos além: o presidente da República governaria o país sem meios de comunicação? Sem televisão?

Se você fizer um pequeno esforço criativo vai per-ceber que os meios de comunicação “amarram” não só os nossos costumes e idéias, como nos fornecem ou solapam cidadania e nos empurram para escolhas importantíssimas, como o voto em nossos candida-tos a governantes, quem vai ser expulso do Big Bro-ther na terça-feira ou se queremos ver Morte Fatal ou Assassinato Letal no Intercine.

A publicidade é uma questão central nesse mun-do e ouviremos milhares de vezes sobre os prejuízos que uma “cultura publicitária” impôs à sociedade. Ao mesmo temos, talvez possamos nos dar conta de que mesmo a publicidade, destinada basicamente a “vender” coisas ou idéias, pode até ser compreendi-da como lastro de civilização. Como nesse anúncio que a agência MacCann/Erickson de Madrid produ-ziu para a Organização Médicos Sem Fronteiras:

primeira prestação

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Macacos aterrorizam moradores de povoado na Índia

da Efe, em Cheryai [ Folha Online, 16/12/2005 ]

Centenas de macacos invadiram nesta sexta-feira o povoado de Cheryai, no Estado indiano de Jammu e Caxemira, norte do país, aterrorizando os morado-res que ainda tentam resistir à invasão dos animais no local.

Ao menos 65 famílias fugiram de Cheryai nos úl-timos dois meses, mas ao menos 400 pessoas ainda estão no vilarejo, resistindo à invasão dos macacos.

Nesta sexta-feira, os macacos chegaram a invadir uma escola de Cheryai, e a machucar uma criança. Quem fica na cidade, tenta se proteger dos animais espantando-os com varas e pedaços de pau.

De acordo com reportagem publicada no site da rede de TV indiana NDTV, no último dia 7, quando a mídia local começou a publicar notícias sobre a invasão dos macacos, autoridades locais dizem que os moradores não podem sair nas ruas sem estarem “armados” com varas.

Segundo a rede de TV, “geralmente os moradores do Estado de Jammu e Caxemira fogem por medo dos terroristas. Talvez agora eles tenham uma nova razão para fugir”, em referência à invasão dos macacos.

Na aula falaremos sobre a conclusão óbvia de tudo isso: o profissional da Comunicação tem atuação pri-vilegiada no manuseio, edição e veiculação de boa parte dessas idéias e panoramas circulantes no novo espaço público que é a mídia. Para nós, estudantes, pensar sobre tudo isso é, como eu disse lá no come-ço, um compromisso muito sério. Tão sério quanto escapar de uma gangue de macacos ensandecidos.

Ainda tem a necessidade. Se você chega à univer-sidade e acha que estudar Comunicação se resume a criar slogans, distribuir pastas de dente no supermer-cado, aprender a redigir um lead, segurar um micro-fone para aparecer no canal que vende tapetes ou escolher gravata para seu assessorado, não precisa do terceiro grau. E nem deve estar interessado em trabalhar no ramo.

O campo da Comunicação é muito vasto e se mo-difica com uma velocidade que faz inveja aos mu-tantes do professor Xavier. Todo dia surgem novos formatos, concepções, alternativas de produzir infor-mação. O profissional ideal é o que consegue anteci-par tendências, ser eficiente e ético. É o que reinven-ta a Comunicação. Sem Teoria, não vamos chegar lá – no máximo poderemos pleitear, sem custos para o contratante, um emprego de assessor de imprensa do condomínio onde moramos.

Além disso, a fantástica quantidade de informa-ções que recebemos nos dias atuais tem efeitos de-cisivos na sociedade. Um deles é a dificuldade cada vez maior que sentimos para “hierarquizar” nossos interesses. Uma espécie de uniformização da lingua-gem em quase todas as áreas de conhecimento leva a falarmos de religião ou do Estado, por exemplo, com o mesmo tipo de vocabulário, abordagem e prioridade que discutimos uma marca de margarina ou um programa de entretenimento. De tanto con-sumirmos propaganda, parece que acostumamos a aceitar apenas o que é rápido, divertido e descartável.

Quando você lê o jornal ou assiste ao telejornal, não deixa de perceber as misérias e “atrasos” retra-tados por todos os veículos de comunicação. Mas a impressão geral é de que o mundo é cada vez mais uma aldeia futurista. O “futuro” imediato se expan-de pela publicidade, cheia de apelos à tecnologia.

Mas aí, no mesmo dia em que você se admirou com os novos estádios para a Copa do Mundo, as novidades sobre Marte, conquistas da genética, sa-télites de localização, telefones celulares que tocam MP3, poucos minutos depois de se espantar com o GPS do carro do Robinho, que o guia pelas ruas de Madrid, com os incríveis efeitos especiais do último filme caro de Hollywood... nesse mesmo dia você pode encontrar a seguinte notícia na internet:

Aqui vemos uma publicidade da companhia construtora de aviões Focke-Wulf, no pós-guerra alemão. Ali pela metade do texto, os publicitários expli-cam que “depois do vitorioso fim dessa Guerra (...) voltamos à produção de época de paz”. Foi produzida para a Revista Ilustrada de Leipizig.

Propagandas não estão necessariamente interessadas na verdade:

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FOLQUENING, Victor. O Jornalismo é um humanismo. Curitiba: Pós-Escrito, 2001.

MATTELART, Armand e Michele. História das Teorias da Comunicação. SP: Loyola, 2001.

WELLS, H.G. A Guerra dos Mundos. SP: Nova Alexandria, 2000.

FERREIRA, Giovandro Marcus. As origens recentes: os meios de comunicação pelo viés do paradigma da socie-dade de massa. In: NOHLFELDT, Antonio; MARTINO, Luis e FRANÇA, Vera Veiga. Teorias da Comunicação: conceitos, escolas e tendências. Petrópolis: Editora Vozes: 2001.(p. 99 a 116).

ORTRIWANO, Gisela Swetlana. Ok, marcianos: vocês ven-ceram! IN: MEDITSCH, Eduardo. Rádio e pânico. Florianó-polis: Insular, 1998.

CUNHA, Magda. No pólo da recepção: a encenação au-torizada de uma guerra. IN: MEDITSCH, Eduardo. Rádio e pânico. Florianópolis: Insular ,1998.

seGUNDa prestação Teoria da Comunicação é uma disciplina difícil, talvez a mais complexa de todo o curso que irão enfrentar. Ela exige conhecimento teórico e estudo cuidadoso.

Para muitas pessoas, saber nomes, datas e concei-tos é um empenho ultrapassado, fora de moda, que aparentemente representa mais o ato de “decorar” do que a condição de “saber”.

Mas essa é uma idéia preconceituosa e que, na maior parte das vezes, serve de desculpa para aque-les que talvez não tenham lá muito fôlego, disciplina ou vontade para compreender de verdade aquilo que estão estudando. Não se enganem: apenas decorar é realmente inútil, mas grandes profissionais sabem exatamente do que estão falando, sobre quem estão debatendo e quando certas idéias foram divulgadas. Não é porque decoraram, é porque se familiarizaram com os fundamentos daquilo que escolheram para fazer na vida.

Preste atenção, portanto, nas leituras. Muitas ve-zes um texto só será compreendido na terceira ou quarta abordagem. Outras vezes, só vai fazer sentido muito tempo depois que você leu. Boa parte dos ar-tigos e livros que vai consumir nesse semestre é her-mética, com expressões até então desconhecidas,

muitas vezes em outras línguas, e idéias complicadas – mas essa é a beleza de estudar. É parecido com praticar esportes profissionalmente: você sempre es-tabelece uma meta que, de antemão, sabe que não consegue cumprir. Então se concentra, insiste, cai e levanta e, no fim, realiza o milagre (coma vantagem que a palavra “hermética” está no dicionário e nada ajuda se a gente o fôlego no meio da travessia do Atlântico).

Nossa primeira missão é caracterizar o ambiente social e cultural que fez florescer a preocupação com a chamada “comunicação de massa”. Essa época é comumente chamada de Modernidade.

São três textos sobre o ambiente em que se formula-ram as primeiras teorias sobre o papel da Comunicação na sociedade. Nos dois últimos, uma descrição crítica de um evento fundamental na história da comunicação de massa: a transmissão de uma radionovela, nos Estados Unidos do final dos anos 30, que fez milhões de pessoas acreditarem que estavam sendo atacados por marcianos.

Ainda proponho que trabalhemos com um livro especí-fico durante o bimestre; a idéia é compreende-lo em suas várias dimensões: a trama que descreve, a forma como foi escrito, as circunstâncias em que foi publicado e o impacto que causou, sua reimpressão em outro formato, seu papel no desenvolvimento da imprensa, parte importante da mí-dia, no imaginário do século 20. O livro é:

HERSEY, John. Hiroshima. SP: Companhia das Letras, 2002.

Modernidade

Renascimento e Reforma Protestante incentivaram o individualismo e o secularismo. Isso abre caminho para o que chamamos de Modernidade.

Três grupos de características da Modernidade:

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Nacionalismo, Iluminismo, certeza no progresso, grandes narrativas, evolucionismo.

Industrialização e urbanização.

Estados nacionais, valorização da democracia, movimentos de massa amparados pelos chamados meios de comunicação de massa.

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Em nossa sociedade, Os MCM organizam e obser-vam para garantir o funcionamento do “mercado”. Observam, entre outras coisas, a aplicação de idéias que fundamentam a divisão das classes sociais, es-tendendo princípios fabris, por exemplo, à condição humana. O taylorismo, por sinal, um dos recursos mais característicos do capitalismo; aliás, é veia pul-sante da Modernidade e se preserva no discurso dos meios de comunicação (em 1903 nasce a Indústria Ford, que coloca em prática a organização cientí-fica do trabalho, inspirada no engenheiro Frederic Taylor). Por isso, apesar do esplendor “revolucioná-rio”, pode-se dizer que os conservadores também se apropriam da Modernidade.

Enfim, a Modernidade é um conjunto de trans-formações na cultura e vida social nos últimos três séculos. “Na modernidade, a mídia – tendo a TV em primeiro plano – desempenha importante papel no âmbito da existência psicossocial coletiva, em sua condição de necessária referência à orientação para a vida do cotidiano, à concretização dos processos políticos e à de expressivas transformações culturais” (Polistchuk, p. 80).

A primeira idéia contundente a vigorar foi a de que o controle da mídia poderia resultar em controle absoluto. Confundem-se, de certa forma, os concei-tos de onipresença e onipotência.

O teórico russo Serge Tchakhotine, por exemplo, se interessou e se encantou com H.G. Wells, autor de ficção científica, e Pavlov, pesquisador famoso por dar choques no cachorro e dar sustos no pró-prio filho para avaliar as reações emocionais. Para Tchakhotine, o nazismo, por exemplo, “dominava as mentes”.

Nos anos 30, Orson Welles transformou o roman-ce inglês “A Guerra dos Mundos” em uma novela radiofônica que transtornou os EUA (dois dos textos indicados na aula anterior falam sobre o assunto).

Entre as décadas de 40 e 60 a mídia separa público e privado claramente. Finalmente começamos a reconhecer uma “cultura midial”.

O paradigma funcionalista-pragmático

Nas primeiras três décadas do século 20 vigorou

a convicção de que os seres humanos obedeciam a

automatismos comportamentais.

As grandes cidades representavam o fim de uma

espécie de interdependência comunitária e das re-

lações de intimidade em troca de um mundo onde

a solidariedade existia por conveniência, forjada por

relações impessoais, anônimas e mecânicas.

A sociedade massiva (mass society) era vista com

pessimismo, decorada pela poluição e acinzenta-

mentos da vida urbana. A mídia era entendida como

a forma de comunicar idéias a sujeitos presos à uma

massa amorfa, sem individualidade.

Um dos primeiros mecanismos intelectuais que

davam conta do problema da comunicação de mas-

sa, o “modelo da agulha hipodérmica”, já apon-

tava para a tendência dominante nos estudos da

mídia. A “agulha hipodérmica”, além de pragmáti-

ca, compreendia que o emissor tinha ascensão total

em relação ao receptor, que participava do processo

comunicacional em total passividade. A mídia seria

uma seringa, simplesmente.

O paradigma deste tópico vem dos EUA, entre os

anos 40 e 60, e se segura no positivismo: o corpo

humano se projeta do corpo social.

A questão - problema de Laswell

Com isso, as pesquisas de opinião ficam em alta.

E chegamos à primeira grande estrela entre os teóri-

cos, Harold Laswell.

“Quem diz o quê a quem?” era o modelo de

Aristóteles (384-322 AC) para compreender o pro-

cesso. Harold Laswell (1902-78) transformou em

“Quem diz o quê, por que meio, a quem e com

que efeitos?”.

Num ímpeto de comunicação publicitária, os cien-

tistas sociais americanos entendiam que cada item

da fórmula mereceria um tipo de análise: de me-

canismos de controle (quem), de conteúdo (o quê),

da mídia (por que meio), das reações do público (a

quem), dos efeitos prolongados.

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POLISTCHUK, Ilana e TRINTA, Aluízio Ramos. Introdução. IN: Polistchuk, I. & Trinta, A. R. Teorias da Comunicação – o pensamento e a prática da Comunicação Social. RJ: Campus, 2003.ARAÚJO, Carlos Alberto. A pesquisa norte-americana. IN: Hohfeldt, Antonio; Martino, Luiz & França, Vera (org).Teorias da Comunicação: Conceitos, escolas e tendências. Petrópolis: Vozes, 2001.TCHAKHOTINE, Serge. A mistificação das massas pela propaganda política. RJ: Civilização Brasileira, 1967.WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalis-mo. SP: Martin Claret, 2000.WOLF, Mauro; FIGUEIREDO, Maria J.; Teorias da Comuni-cação. Lisboa: Presença, 1987.

lEITURA PARA PRóxIMA AUlA

A clássica propaganda norte-americana que todo mundo parodia. É fruto da mentalidade típica dos pesquisadores da Comunicação na primeira metade do século 20.

terCeiraprestação

A mídia afeta o público pelos conteúdos que dissemina.

Os efeitos produzidos equivalem a reações manifes-tas do público.

As reações compreendem atenção, compreensão, fruição, avaliação, ação.

As reações do público dependem de identificações projetivas, anseios e expectativas.

Há clara influência do contexto e de predisposições especiais na reação do público.

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Harold Laswell reconhece, implicitamente, a exis-tência de feedback, mas não aprofunda o problema. Despreza as contradições propostas pelo contexto e as variações no procedimento de mediação.

ESCOlA DE ChICAGO

Financiada principalmente pelo milionário Rockefeller, um Tio Patinhas de verdade, a Universidade de Chicago foi a primeira dos Estados Unidos a empreender um projeto de Sociologia. A abordagem escolhida para a comunicação de massa é muito representativa do espírito da época, sobre o deslumbre que os mecanismos da mídia despertavam nos estudiosos.

Para aqueles sociólogos americanos, a cidade é o laboratório social, é onde podemos testar, observar, experimentar. Por isso, eles se dedicaram a temas como as relações raciais, os dancings, a vida dos mo-radores de rua, o preço dos terrenos, etc.

Com pesquisas baseadas em situações concretas, pode-se dizer que a Escola de Chicago praticava Microsociologia. Como estamos na área urbana, é possível se deduzir que a idéia do hiperestímulo in-fluenciou bastante esses pesquisadores.

Robert Ezra Park (1864-1944) - era repórter, militante da causa negra. Tornou-se o nome mais importante da corrente. Park falava em ecologia hu-mana e economia biológica: segundo ele, luta por espaço determina relações interindividuais nesta web of life.

O site* biografiasyvidas diz:

(1864-1944) Sociólogo estadounidense, n. en Luzer-ne County y m. en Nashville. Estudió con W. Dewey en la Universidad de Michigan y con G. Simmel en Alemania. En 1921 escribió en colaboración con E. W. Burgess Introduction to the Science of Sociology, que tuvo enorme influencia entre los estudiantes de la época, por tratarse de la primera sistematización de los conocimientos que se tenían sobre la sociología.

Conclusões de Laswell:

*[http://www.biografiasyvidas.com/biografia/p/park_robert.htm]

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Charles Horton Cooley (1864-1929) - outro membro célebre da Escola de Chicago, tratou dos “grupos primários”. Ele identificou os grupos que se caracterizam por uma associação e cooperação íntimas entre si. Por exemplo, convivem a partir de determinado vocabulário, gestual, formas de apro-priação dos meios de comunicação. Estamos falan-do, enfim, de uma opção etnográfica.

Por essa perspectiva, a da luta pela sobrevivência na sociedade urbana, comunicação seria “causa e remédio” para a desintegração da comunidade so-cial e da democracia.

Como exercício imaginativo, proponho que iden-tifiquemos elementos que seriam subsídios para um típico estudo da Escola de Chicago. Em seguida, re-produzo três matérias publicadas pelo jornal Gazeta do Povo, a primeira delas no dia das Bruxas de 1999 (o que foi coincidência!). Trata-se de uma aborda-gem ligeiramente diferente das que normalmente preenchem os jornais, já que procurei, como autor de duas delas, dar importância para a forma como a comunidade retratada entendeu, absorveu e deu sentido para uma tragédia ocorrida em outubro de 1998. A segunda reportagem foi publicada um mês depois da primeira e assinada pelo excelente jornalis-ta José Rocher. O exemplo também serve para mos-trar que a simples discussão etnográfica da Escola de Chicago pode ser inspiração para práticas mundanas da Comunicação, além da pesquisa científica.

Gazeta do Povo, 31.10.1999

FANTASMAS DO AGROTóxICOASSOMbRAM FUMICUlTORES

Quase dois anos depois, pacotes de veneno ainda estão sob os escombros da casa onde lavrador se matou.

Por Victor Folquening

Ipiranga - Ninguém queria morar na proprieda-de que pertenceu à família do agricultor Antenor

Scheifer, nem mesmo se aproximar do que restou da casa de madeira, do galpão e da estufa de secar fumo. A rua de acesso desapareceu e, um ano e dez meses depois da tragédia, ainda há vestígios do coti-diano daqueles fumicultores.

No caminho para o fundo da Colônia Adelaide, em Ipiranga (a 40 quilômetros de Ponta Grossa, nos Campos Gerais), todos os lavradores contam so-bre visagens e acontecimentos misteriosos ligados à história da família morta a golpes de marreta na

madrugada chuvosa de 8 de janeiro de 1998. “Nin-guém consegue dormir lá porque fica ouvindo choro de criança”. O colono conta e indica o caminho.

Antônio Carlos Chaves é dono de mercearia na Colônia Adelaide e foi um dos primeiros a ver a car-nificina. Não conseguiu “dormir direito” durante me-ses. “Toda noite, um vulto branco caminhava daque-la direção até a minha casa e ficava colado à janela, me observando”. Outros tantos cansaram de ouvir o ranger da carroça de Antenor cortando o silêncio da madrugada, um bicho escuro ladeando a cerca e guardando os féretros, o gemido contínuo de uma criança em agonia.

Suicídio

Na última semana visitamos o local onde ficava a casa de Antenor Sheifer, fumicultor que aos 38 anos matou com uma marreta a esposa Antoninha e os quatro filhos (de 14, 13, 12 e 4 anos). Depois da cha-cina, Antenor foi à casa do vizinho para contar sobre as mortes e retornou à cena dos crimes para se en-forcar.

Hoje persistem apenas as fundações da residência, que foi doada pela família e desmanchada depois da tentativa inútil de vender o imóvel. Sob os escombros ainda há sandálias de crianças, sacos de alimentos e a provável verdadeira identidade dos fantasmas que assustam a Colônia Adelaide: embalagens de agro-tóxicos usados na lavoura de fumo.

Organofosforatos

Dois dos três recipientes encontrados pela repor-tagem nos exatos locais onde os corpos das crianças foram recolhidos, em janeiro de 1998, eram dos de-fensivos agrícolas Orthene e Manzate BR, classifica-dos como organofosforatos.

“Os organofosforatos são herdeiros do gás Sarim, elemento químico utilizado em campos de concen-tração na 2.ª Guerra Mundial”, conta o engenheiro agrônomo José Francisco Krawulski, da Fundacentro, órgão de pesquisa de segurança e medicina ligado ao Ministério do Trabalho.

No mês passado, o princípio ativo Metilparadion, um organofosforato, foi proibido nos Estados Uni-dos. Há fortes suspeitas de que o contato contínuo com o agrotóxico provoque desequilíbrios que po-dem levar ao suicídio. Os fosforados estão banidos da Europa desde 1991. Mas continuam sendo co-mercializados no Brasil, especialmente no Paraná e em São Paulo, estados que respondem por mais da metade do consumo de agrotóxicos no país.

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SEM USO de agrotóxicos, a agricultura nos Estados Unidos, cresce 25% ao ano.

LÁ O NEGÓCIO representa, anualmente, US$ 7,5 bilhões.

NA EUROPA, o plantio de alimentos orgânicos aumenta por ano 20%.

SEGUNDO A ASPTA, a contaminação com agrotóxico na Costa Rica provocou câncer nos testículos e conseqüente castração de 35 mil homens.

NO PARANÁ, a cada ano seriam contaminadas 10 mil pessoas.

Fumageiras “lavam as mãos”

Todas as pessoas que contaram suas versões sobre as mortes no verão de 1998, na Colônia Adelaide, são fumicultores que estão expostos diariamente aos defensivos agrícolas. O cunhado de Antenor Schei-fer, Manoel Mendes, diz que o suicida tinha tempe-ramento violento, batia na mulher e filhos, e, espe-cialmente, “trabalhava feito um cavalo”. Enquanto Manoel falava, uma das crianças da família brinca-va sobre sacos de adubo químico. Antônio Carlos Chaves, uma “testemunha” das assombrações na Colônia, também é fumicultor há vários anos e não acredita que o agrotóxico tenha ajudado a “enlou-quecer” Antenor. “Se fosse assim, eu também veria coisas”.

Soldados expostos em guerras a produtos quími-cos semelhantes costumam ter pesadelos durante os dez anos seguintes à contaminação. “O organofos-forato inibe a enzima responsável por reflexos e mo-vimentos e pode causar danos ao cérebro”, explica o engenheiro José Francisco Krawulski.

Dívida

Seja qual for o motivo real da tragédia, o certo é que ela está ligada ao fumo. O vizinho Antônio Miguel ouviu a justificativa da boca do suicida: “Não adianta viver. A gente trabalha tanto e ainda fica de-vendo para a companhia”. Antenor não estaria con-seguindo suportar as dívidas com a Souza Cruz.

Hoje, Antônio trabalha para o fumicultor Van-derlei Freire e garante estar “enterrado” em dívidas. “Tenho R$ 5 mil de dívida para saldar em três anos. Só trabalho para pagar o que devo”, lamenta Van-derlei.

Embora a dívida e a contaminação por agrotóxi-cos seja comum para os fumicultores, a situação não é reconhecida pela Associação dos Fumicultores do Brasil. O inspetor da entidade em Imbituva, Silvino

Mueller, afirma que a dívida é resultado de má admi-nistração. “O fumo é bom negócio por causa do re-gime familiar”. Para ele, a culpa da intoxicação não é da multinacional, mas dos lavradores que “não usam os equipamentos de segurança”. (VF)

Dados oficiais aquém da realidade

Ainda não existem provas científicas de que o contato constante com agrotóxicos leva ao suicídio, mas índices de organizações governamentais e não-governamentais dão pistas da influência dos produ-tos químicos na vida dos lavradores. Nos últimos dois anos, o Centro de Informações Toxicológicas (CIT) da Secretaria Estadual de Saúde registrou 145 suicídios entre lavradores paranaenses, 89% do total de óbi-tos por intoxicação na área agrícola.

Entre os suicídios, 40 foram cometidos por traba-lhadores com idade entre 15 e 29 anos, três com menos de 14 anos, e 21 com mais de 60 anos. Vinte pessoas com idade entre 30 e 44 anos e 28, entre 45 e 59 anos, também se mataram com agrotóxicos.

Nos dois anos houve 1417 casos comprovados de intoxicação no estado. Dados oficiais dão conta de 300 mil intoxicados ao ano no Brasil. Cerca de 100 somente no Paraná, segundo o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Ponta Grossa. O próprio presidente, Antônio Strufka, perdeu um dos rins por exposição ao veneno.

Por mais alarmantes que sejam os dados, eles representam menos que um terço do número real de casos, diz a coordenadora do CIT, Gisélia Rúbia. “Muitos profissionais de saúde não identificam os sintomas ou não preenchem fichas. Por outro lado, os agricultores não procuram o médico quando no-tam a intoxicação”.

Risco ignorado

Pesquisadores da Fundacentro alertam que a gran-de maioria dos agricultores não sabem dos perigos no uso de agrotóxicos. “Avalio que 99% desconhece os efeitos e100% não sabe qual é a dose letal”, diz o agrônomo e engenheiro de segurança no trabalho José Francisco Krawulski.

Equipamentos de segurança não garantem prote-ção total. “Uma máscara tem que ser muito boa para ter eficiência de 70%”. Em muitos casos, o agricul-tor nem adquire o equipamento. Sebastião Pinheiro, professor da UFRGS e especialista em contaminação por agrotóxicos demonstra indignação distribuindo perguntas: “Qual agricultor sabe que se beber álcool 14 dias após usar o Manzate pode ter ataque cardíaco? Não está escrito nas embalagens”.

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Gazeta do Povo, 19.11.1999

AGRICUlTURA ORGâNICA CRESCE NO SUl DO ESTADO

Agricultores abandonam os agrotóxicos e partem para os produtos “ecológicos”

Por Victor Folquening

União da Vitória - Ao exibir, do alto da encosta, a diversidade de culturas de sua pequena proprieda-

de, Laurindo Wisniewiski, 44 anos, aponta primeiro os espantalhos. “Agora tem muitos passarinhos. Antiga-mente, quando eu praticava agricultura convencional, não havia tantos”. Laurindo tira o chapéu, limpa o suor, e formula a explicação: “Os pássaros sabem que o pro-duto sem agrotóxico é melhor”.

O discurso do agricultor, que abandonou os adu-bos químicos há três anos, nem passa pelas vantagens econômicas. “Estamos preocupados com a saúde de quem consome o que a gente planta”. O próprio Lau-rindo passou meses doente graças à contaminação com um fungicida, mas insiste em repetir apenas o tom repassado por ONGs, sindicatos de trabalhadores ru-rais e prefeitura de União da Vitória: “Sou um produtor ecológico”.

Dinheiro Mas também há fortes razões econômicas para que cada vez mais agricultores familiares da Região Sul optem pela produção do “alimento sem veneno”. Em 1998, a família de Valmor Gibinski, 32 anos, gastou R$ 11.500,00 com a produção de milho e feijão em 13 alqueires. Problemas climáticos e preço baixo de mer-cado não foram as principais causas do prejuízo no final do ano. “Gastamos muito com óleo diesel para revirar a terra e mais ainda para passar agrotóxicos”, conta Valmor, que calcula investir R$ 162,00 por alqueire em defensivos agrícolas.

O irmão, Norberto, 39 anos, insiste na agricultura convencional porque não vê formas de corrigir o solo sem usar os métodos tradicionais (revirar a terra, ação que impede o plantio direto, por exemplo). “A agricul-tura orgânica é viável, mas o governo precisava liberar linhas de crédito para que se produza em maior esca-la”. Valmor contesta: “Você perde na produção, mas ganha no preço”. Laurindo concordaria: “Boa parte de quem compra produto orgânico nem pergunta o pre-ço. Está preocupado com a saúde”.

Sem veneno Mesmo insistindo na agricultura convencional, Nor-berto desistiu dos agrotóxicos. Em 1997, enquanto pulverizava a plantação (usando equipamento de se-gurança), o agricultor foi contaminado e passou vários dias no hospital. “Em dez dias, eu perdi onze quilos”, lembra, “Agora prefiro 100 litros de diesel a lidar com veneno”.

Com paciência, no entanto, diversos agricultores de União da Vitória, a vizinha Porto União (SC), Cruz Machado e outras cidades do extremo sul paranaense começam a melhorar sua renda, investindo exclusiva-mente na chamada “agricultura ecológica”. Uma rede de consumidores está crescendo nas cidades e produ-tores como Aires Nietzielski, 38 anos, pioneiro no setor em Santa Catarina, podem viver com conforto graças ao novo nicho de mercado.

Entrega de cestas garante sucesso do programa O programa municipal de agricultura ecológica co-meçou há apenas três anos em União da Vitória. Em 1994 havia menos de dez agricultores que já se inspi-ravam nas experiências de uma década do município vizinho de Porto União, em Santa Catarina.

O esforço dos sindicatos, ONGs como a Aspta e da prefeitura alargou o universo de produtores de plantas orgânicas. Segundo a sindicalista Joana Prysiezny, 28 anos, a “rede ecológica” é formada hoje por mais de 1.300 agricultores familiares em 22 municípios da re-gião.

Cestas A forma de comercialização dos produtos é, por enquanto, o grande “achado” do sistema. Além das feiras regulares de alimentos e sementes, a produção ecológica é distribuída em cestas para consumidores cadastrados. As cestas levam “nove ou dez” produtos da estação: frutas, hortaliças e ervas medicinais.

O número de inscritos ainda é considerado pequeno: cerca de 250. Mas há uma fila pelo menos duas vezes maior, esperando que a produção orgânica desabroche e se desenvolva para atender toda a demanda. Cada comprador paga R$ 6,50 por cesta, que é distribuída semanalmente.

Preço Enquanto comprava frutas em um supermercado, a dona de casa Carmem Loige, 38 anos, respondeu à re-portagem que preferiria comer “tomates sem agrotóxi-co”. “Olhe este aqui, nem parece de verdade”. Carmem desconhecia a rede de produtos ecológicos. “Acho que o problema seria o preço”, prevê a consumidora.

A primeira feira ecológica, no ano passado, movi-mentou 800 quilos de produtos orgânicos. Hoje já são comercializadas 17 toneladas de alimento ecológico por mês somente na região de União da Vitória. A renda das famílias que trabalham com os produtos orgânicos varia entre R$ 200 e R$ 1000,00 em Porto União. Na cidade paranaense, entre R$ 50,00 e R$ 450,00.

‘A Escola de Chicago e a Ecologia Humana’ em A Mass Comunication Research. IN: MATTELART, Armand e Michele. História das Teorias da Comunicação. SP: Edições Loyola, 2001 (p. 30 a 43).

BOULIN, Alain. A Escola de Chicago. SP: Papirus, 1995.

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Essa capa do The Standart, de 1895, mostra bem a imagem que os novos meios de transporte estavam passando para os assustados habitantes das metrópoles. O texto abaixo da ilustração diz: “O carro de bonde implacável acrescentou outra vítima à sua lista de inocentes massacrados e continua sem controle. Milhares de cidadãos protestaram e uma imprensa unida atacou, sem resultado, o monopólio impiedoso do bonde. Até o prefeito está fraco e sem apoio. A mortandade continua. O que o Brooklin fará?” (Charney, p. 125).

hIPERESTÍMUlOS

A seguir temos recortes de jornais norte-americanos que representam bem o clima de hiperestímulo do final do século 19 e começo do século 20. Hiperestí-mulo é uma palavra criada pelo novaiorquino Michael Davis para “descrever o novo ambiente metropolitano (assim como os divertimentos sensacionais que ele cultivava)”. (Charney, p. 119). Em poucas palavras: re-cém saídos de um mundo provinciano e relativamente “lento”, os cidadãos das metrópoles viam-se inunda-dos de propaganda, motores, crescimento vertical da vizinhança, barulho... stress. Acabam acostumando a combater essa adrenalina com mais adrenalina.

Surgem os jornais sensacionalistas (que tinham o carro e o bonde elétrico como primeiros inimigos) e os brinquedos perigosos nos parques de diversão, como as montanhas-russas (e uma montanha-russa do início do século passado devia ser para lá de emocionante!).

Cavalos atravessando bondes era um acidente comum na fervilhante Nova York de 1897, como podemos ver nessa ilustração de um pioneiro entre os jornais “sensacionalistas”, o New York World.

qUarta prestaçãoGuerra Mundial – nem a novidade dos aviões, nem a sempre suspeita bravura dos generais. Foi o que hoje nós chamamos de mídia.

Daí surgiu o empenho por uma gestão governa-mental de opiniões. Ora, se a Comunicação vence a Guerra, é o instrumento mais potente de gover-no que alguém pode dispor. Ou seja, no tempo de Laswell, pelo menos nos Estados Unidos, pouca gen-te consideraria imoral a prerrogativa de que o gover-no deve usar os meios de comunicação de massa para convencer as pessoas do que quer que seja. De certa maneira, as instituições acreditavam no Estado como representante da vontade de todos.

MASS COMMUNICATION RESEARCh

O Payne Fund já se preocupava com os efeitos do cinema entre as crianças americanas, lá nos anos 20. Ficam mais violentas por causa dos filmes? Boa parte dos curiosos achava que sim.

Mas foi um texto de Harold Laswell (1902-78) que desencadeou a tendência: Propaganda Techni-ques in the World War (1927). Laswell, assim como boa parte de colegas russos e americanos, acredi-tava que foi a propaganda que venceu a Primeira

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Laswell propõe um tipo de estudo para cada pergunta: QUEM: análise de controle. DIZ O QUÊ: análise de conteúdo. EM QUE CANAL: análise dos meios. A QUEM: análise de audiência. COM QUE EFEITOS: análise de efeitos. De fato, as principais vertentes de estudos de comunicação surgem do “esquartejamento” da pergunta-problema de Ha-rold Laswell. Até hoje, os pesquisadores costumam se especializar em um dos itens ou, mais atualmente, na combinação entre alguns deles.

Mas Harold Laswell, funcionalista de carteirinha, foi além do oferecimento de uma equação para es-tudar nosso ganha-pão. Ele identifica funções para a comunicação social. Todas “fundamentais” para que a sociedade funcione “bem”. Perceba que certas uti-lidades podem ser polêmicas, ou pelo menos des-pertar nossa desconfiança. Como a primeira delas:

a) Vigilância: os costumes, a prática da sociabilida-de se manifesta através dos meios de comunicação. Então sabemos que algo é errado ou imoral ou in-desejável porque uma espécie de “opinião pública” é representada nas ondas do rádio, nas páginas dos jornais, nas telas do cinema, etc. Você poderá per-guntar: “mas a quem interessa esses padrões de moralidade expressos nos meios de comunicação?” Bom, isso não era exatamente uma preocupação da turma do MCR. Mas em algumas semanas, tratare-mos do assunto mais cuidadosamente.

b) Articulação dos meios: podemos dizer até que um país consegue manter suas fronteiras graças ao meios de comunicação. Veja o nosso caso: Brasília é longe (de qualquer lugar!), mas as decisões mais importantes de nossa autonomia como nação saem de lá. Como amazonenses, capixabas, paranaenses e gaúchos conseguimos nos sentir brasileiros com costumes e distâncias tão grandes. Segundo o autor francês Dominque Wolton, porque todos vemos a novela das oito!

c) Transmissão da herança social: será que houve incidentes com algum doente mental em instituição

de saúde de cidade do interior do Paraná no dia três de janeiro de 1806? Pode ser, você diria. E para ter certeza, teria que se aventurar numa pesquisa histó-rica difícil, senão impossível, para, finalmente, chegar a uma resposta que talvez não valha tanto esforço. Mas no dia três de janeiro de 2206, se não houver o apocalipse, uma rápida pesquisa em algum tipo de banco de dados lhe dará a resposta sobre o que houve 200 anos antes. Se o seu tataraneto quiser, vai descobrir que em cinco de janeiro de 2006, o jornal regional Diário dos Campos, em Ponta Grossa, no Paraná, contou a seguinte história:

Doente mental tumultua o Pronto Socorro

A agressão a uma adolescente, no Pronto Socorro Municipal, expõe o problema da falta de espaços apropriados para o atendimento aos doentes men-tais. Na noite de anteontem, A.A.M., de 15 anos, foi agredida por uma paciente que transitava nua e aos gritos pelos corredores do hospital. Ela aguar-da a abertura de uma vaga no Hospital Psiquiátrico Adauto Botelho, em Curitiba.

Baseados em Carlos Alberto Araújo, dividiremos a Mass Communication Research em três grupos principais: a) Corrente Funcionalista; b) Teoria da Agulha Hipodérmica; c) Teoria Matemática da Comunicação.

Tratemos hoje das duas primeiras. A Corrente Funcionalista se apropria de algumas idéias de Laswell, como a do esquema de comunicação:

QUEM? DIz O O QUÊ? COMO? A QUEM?

Ou seja, nunca, na história da humanidade, tive-mos tantas formas de registro do tempo presente. Web, TV, rádio, imprensa, publicidade, entreteni-mento, além dos registros formais, nos oferecem mi-lhares de registros de todo tipo de acontecimento e costume. A não ser que um cometa, o efeito estufa, uma guerra nuclear, um bug inusitado, extra-terres-tres, os gases soltados pelas vacas ou o campeonato mundial de futebol do Operário Ferroviário de Ponta Grossa destruam a sociedade como a conhecemos, esses dados se preservarão, garantindo nossa heran-ça cultural.

Wright acrescenta a função do:

d) Enterteinemment: O nome está em inglês por-que aparentemente, a tradução mais simples, entre-tenimento, não explica exatamente a indústria de di-versão midiática que, na opinião de Wright, ajuda os cidadãos a aliviarem o stress das grandes cidades.

Lazarsfeld e Merton falam de:

e) Atribuição de status.

f) Normatização.

g) Efeito narcotizante (considerada uma “disfunção”).

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ARAÚJO, Carlos Alberto. A pesquisa norte-americana.

IN: HOHFELDT, Antônio e outros. Teorias da Comunicação: conceitos, escolas e tendências. Petrópolis: Vozes, 2001.

BRIGGS, Asa & BURKE, Peter. Um história social da mídia. RJ: Jorge Zahar, 2004.

LOWERY, Shearon; DEFLEUR, Melvin. Milestones in Mass Communication Research. EUA: Addison-Wesley, 1994.

WOLF, Mauro (introd. e org.). Teorias da Comunicação de Massa. SP: Martins Fontes, 2003. (texto de Merton e La-zarsfeld).

WOLTON, Dominique. Elogio do Grande Público. SP: Ática, 1996.

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qUiNta prestação

O DUPlO FlUxO DA COMUNICAçãO

Paul Lazarsfeld (1901-1976) coloca em dúvida o pressuposto de Laswell de que a recepção ao pro-cesso comunicativo é indiferenciada.

Duas obras são referências no assunto: The People’s Choice (1944) – influência da mídia sobre seiscentos eleitores de Erie County, Ohio – e Personal Influence: The part played by people in the flow of mass communication (1955, mas resultado de pes-quisas realizadas dez anos antes) – processos de de-cisão individual de 800 mulheres numa cidade de 60 mil habitantes, Decatur (Ilinois).

Influenciado por Talcot Parsons (1902-1979) e Thomas Merton (1910-1986) e membro da Univer-sidade de Columbia, Lazarsfeld divide as teorias so-bre comunicação, opondo a Pesquisa Administrativa, que promove, à Teoria Crítica de Adorno, a quem critica. Adorno é nome fundamental, mas é alguém sobre quem falaremos em aulas futuras.

Lazarsfeld acredita que cada indivíduo é capaz de procurar um meio de comunicação cujo conteúdo mostre compatibilidade às suas convicções e modos de ver (Polistchuk).

Mesmo assim fala do efeito narcotizante: o bom-bardeio de informações pode levar ao alheamento. Superinformação leva à desinformação global. Líde-res de opinião cumprem papel importante no pro-cesso, o que nos leva à tese do two steps flow of communication (fluxo comunicacional em duplo es-tágio).

Pessoas bem informadas, “enfronhadas” no mun-do da mídia, e socialmente influentes reconduzem os estímulos mediáticos aos indivíduos com acesso precário às teias de comunicação.

Ele concluiu que as conversas face-to-face influen-ciam mais o voto do que declarações e plataformas políticas dos candidatos. As intenções de voto ten-dem a se tornar homogêneas. Como comparam Trinta e Polistchuk, ninguém quer ser Maria-vai-com-

A Agulha Hipodérmica é uma teoria dos efei-tos. Lida com audiência, efeitos de campanhas políti-cas e de propaganda. Tem relação com outras, como a da “Bala Mágica” e da “Correia de Transmissão”. Tem esse nome porque a mídia era tratada, nas jo-vens teorias da comunicação, como um elemento frio, um mero mecanismo, cujo efeito dependia do que continha. A comunicação de massa seria uma seringa aplicada nas veias da sociedade, cujo sistema de circulação se encarregaria de espalhar o conteúdo desejado.

O MCR é altamente influenciado pelas teorias so-bre sociedade de massa de Le Bon (relações interpes-soais não são consideradas importantes no processo) e pelo behaviorismo de Watson.

Fatos que incentivaram os pesquisadores a elaborar tais teorias: a eleição de Franklin Delano Roosevelt à presidência dos Estados Unidos em 1932 e a implan-tação e sustentação do New Deal (o Welfare State). Aliás, os institutos Gallup e Roger Crossley já haviam previsto a vitória de Roosevelt em 1936. Foi a pri-meira vez que uma instituição conseguiu adiantar o resultado de uma eleição.

Para o MCR, portanto, os MCM são onipotentes; no tratamento ao público, o máximo de diferencia-ção passa por sexo, idade e classe social. Para Laswell, propaganda rima com democracia, o que caracteriza claramente uma visão instrumental da mídia.

A idéia, hoje muito criticada, de que a mídia é o Quarto Poder parece ter saído do historiador Macau-lay, que tratou a Galeria de Imprensa do Parlamento Inglês dessa maneira. Mas foi o jornal britânico The Times que assumiu, ainda no século 19, o “elogio”. Um livro de 1850, escrito pelo jornalista F. Knight Hunt, tinha o título Quarto Poder e falava, claro, da imprensa (Briggs & Burke, 2004, p. 197).

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Aqui estão alguns produtos do marketing nacionalista norte-americano. Foram produzidos no começo dos anos 40. “Americanize sua casa!” Basta olhar qualquer filme comercial, produzido nos EUA desde então, que você vai ver milhares de bandeiras e outros símbolos patrióticos. Daniel Lerner foi um pesquisador especialista nas reações públicas ao marketing de guerra.

O “duplo fluxo da comunicação”. IN: MATTELART, Michele e Armand. História das Teorias da Comunicação. SP: Loyola, 2001. (páginas 47 a 56).

HOHFELDT, Antonio e outros (org). Teorias da Comunicação. RJ: Vozes, 2002. (páginas 107 a 116, 119 a 130).

POLISTCHUK, Ilana e TRINTA, Aluízio Ramos. Teorias da Comunicação.RJ: Campus, 2003. (p. 83 a 108). Na livraria Sodiler

(www.sodiler.com.br), R$ 35,10. Preço médio, R$ 37,00.

LIMA, Luiz Costa (org.) Teorias da Cultura de Massa. SP: Paz & Terra, 2002 (neste livro há textos originais de Laswell, Lazarsfeld e outros autores que estamos estudando. Quem quiser comprar, vale a pena. Em média, R$ 40,00 na net).

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seXta prestação

VARIAçõES NAS TEORIASFUNCIONAlISTAS SObRE A MÍDIA

Quando você leu a aula passada, deve ter sentido que nem toda pesquisa de origem norte-americana trata a massa como um agrupamento impessoal de indivíduos. Por mais que ainda adote uma perspec-tiva funcionalista – ou administrativa, como contra-dição ao pensamento crítico – Paul Lazersfeld ela-borou teses defendendo que o público tem alguma capacidade de escolher, de decidir na formação do imaginário composto pelos meios de comunicação.

Lazarsfeld diz isso através de pesquisas. Mostrou, por exemplo, que a escolha dos cidadãos na hora do voto tem menos a ver com as plataformas e dis-cursos políticos, amplamente divulgados pela mídia que sejam, do que com um comportamento alicer-çado na convivência com os outros. À medida que a eleição vai se aproximando, o número de indecisos vai diminuindo, pois há uma tendência de homoge-neização da opinião. Segundo Lazarsfeld, as pessoas preferem “tocar no vagão da banda” (bandwagon effect). Isso explica a angústia dos candidatos em crescer na “reta final” da campanha. Conforme as pesquisas clássicas do gênero, um crescimento na intenção de voto a poucos dias do pleito é situação quase irreversível.

O sociólogo também fala da importância dos for-madores de opinião. Com isso, se afasta ainda mais

as-outras, mas embarcar no “vagão em que a banda toca” (band-wagon effect).

Com esses estudos, Lazarsfeld consegue fornecer subsídios para um método seletivo de uso da mídia. O mais famoso conceito, nesse sentido, é o que leva a pensar na absorção das comunicações como su-cessões de steps (degraus). Surgem modelos que co-dificam os degraus que servem de grade para deter-minar os modos comunicacionais (p. ex., consciência, interesse, avaliação, tentativa, adoção ou rejeição).

Quem mais?

O marketing bebeu dessa fonte. Ernest Dichter e Herta Herzog viraram “filhotes” famosos de Lazars-feld por terem se aventurado em pioneiras pesquisas motivacionais do consumidor.

Daniel Lerner, financiado pelo programa Voice of América em 1950, estuda como a população de seis países do Oriente Médio reagem às transmissões de rádio de alcance internacional, como a BBC, Rádio Moscou e Voz da América. Lerner acreditava que o cidadão da sociedade moderna seria mais capaz de reagir à passividade e fatalismo.

A pesquisa foi realizada cinco anos depois do gol-pe que derrubou Mossadegh, primeiro-ministro do Irã que pretendia nacionalizar o petróleo. Aliás, esse é um episódio muito importante para entendermos o conturbado Oriente Médio dos dias de hoje.

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Mills afirmava que, na sociedade norte-americana nos anos 50, a crescente especialização das funções e o colapso do pluralismo levaram a uma sociedade de massa em que o poder se encontrava cada vez mais concentrado e a cultura era uma questão de manipulação pela elite. A educação de massa, longe de elevar o nível da cultura em geral, produz apenas um ‘analfabetismo educado’, na medida em que a educação perde sua função crítica e se torna integra-da com as exigências da economia, deixando ape-nas a cultura amena, pouco exigente e conformista dos subúrbios dos colarinhos-brancos” (Outhwaite & Bottomore, 1996, p. 169)

De qualquer maneira, o já diversificado Mass Communication Research acaba inspirando outras correntes que terão ressonância ao longo das últi-mas décadas. Os pesquisadores tentam escapar da tentação de transformar o processo de comunicação em um sistema fechado.

O fato é que a evolução dos estudos de Comu-nicação foi mostrando para os cientistas que uma leitura linear e fechada é incapaz de descrever efi-cientemente fenômenos relacionados à cultura de massa. Por isso, mesmo a conservadora vocação americana foi incorporando outros elementos.

Um seguidor de Lazarseld, por exemplo, se tor-nou famoso por prestar serviços à publicidade. Carl Hovland colocou a pesquisa de comunicação numa perspectiva puramente pragmática. Entender o com-portamento do público para ajudar a vender mais. O método de Hovland ficou conhecido como “a abor-dagem da persuasão”. Seus estudos mais famosos tratam dos filmes de propaganda utilizados pelo exército para animar os soldados no front de bata-lha.

É puramente o caminho contrário de Kurt Lewin (1890-1947). Lewin foi pioneiro em conceitos que seriam aperfeiçoados por Lazarsfeld. Interessou-se mais pela decisão de grupo, fundamentada na vi-vência e reações de cada membro da comunidade. O “formador de opinião” de Lazarsfeld vem do ga-tekeeper delimitado por Lewin.

Um outro caso é a Agenda Setting (ou Teoria dos Efeitos ao Longo Prazo), desenvolvida principalmente por Gladys e Kurt Lang a partir de 1952. Os es-tudiosos defendem que os meios de comunicação de massa são “alteradores da estrutura cognitiva das pessoas”. Uma interpretação com algum parentesco nas revolucionárias teses que apareceriam mais tar-de e que atribuiriam às tecnologias de comunicação uma transformação na própria percepção humana.

Ainda mais atual é a preocupação de outra cor-rente, chamada de Usos e Gratificações, e que leva o nome de Elihu Katz no elenco. Katz, Blumer e Elliott preferiram deixar de lado a idéia – até então basilar – de que os meios de comunicação são produ-tores unilaterais de comportamento. Falam de uma “leitura negociada” que os indivíduos teriam com os mcm. A pesquisa dá um grande salto em 1990 com a publicação de “The Export of Meaning”, publicada por Katz em conjunto com Tamar Liebes, da Univer-sidade de Jerusalém.

A idéia é explicar os graus de “consumo psicosso-cial” da mídia. É um passo bem importante e ainda pouco explorado pelos cientistas sociais. Tive a opor-tunidade de orientar projetos de conclusão de curso que flertaram com essas preocupações. Em 2003, uma das minhas orientandas procurou entender os usos que leitores comuns faziam das notícias econô-micas para além da “necessidade de informação”. Na monografia de conclusão de curso, a Paula Zarth Padilha tentou provar que, a despeito do entendi-mento pleno das notícias econômicas, os leitores uti-lizavam os assuntos e linguagens circulantes como forma de sociabilidade.

da idéia laswelliana de que a massa age conjunta-mente, atendendo a estímulos “hipodérmicos” da mídia. Lazarsfeld acredita que a informação midiáti-ca atinge em primeiro lugar as pessoas mais embre-nhadas nos meios de comunicação: o leitor diário de jornais, o expectador regular, aquele que chamaría-mos de “formador de opinião”. Num segundo está-gio, o cidadão bem informado faz um “repasse infor-mativo” num processo chamado de “experiência de grupo”. A esse caminho, como já vimos, Lazarsfeld dá o nome de two steps flow of communication.

Além da seringa e da matemática!

Muitos autores vão encontrar defeitos graves na teoria de Lazarsfeld. Por exemplo, Charles Wright Mills considera que as amostras de seu colega di-zem respeito somente ao público norte-americano, tendência que naturalmente não pode ser amplifi-cada para outras culturas sem prejuízo de interpre-tação. Além do mais, como conversamos em sala de aula, pertencer a comunidades, passados mais de cinqüenta anos, não significa necessariamente estar próximo dos pares. A influência do líder de opinião, nesse caso, precisa ser estudada sob outros parâme-tros. Mills tem outras críticas à relação dos indivíduos com processo da comunicação e com a própria es-trutura de poder. Críticas que pareciam não interes-sar a Lazarsfeld e Laswell:

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O trabalho da Paula não se amparou diretamente na teoria de Katz porque, naturalmente, há defei-tos que são compensados em outras abordagens mais contemporâneas. Os sociólogos americanos parecem enquadrar “necessidades” humanas no rol de vocações originais da mídia, o que leva Ilana Polistchuk e Aluízio Trinta a acusar o modelo “Usos e Gratificações” de uma espécie de “funcionalismo psicológico” (p. 98). O problema se amplia quando as pesquisas chegam a até mesmo cercar as “neces-sidades” a serem providas pela mídia: entretenimen-to, relacionamento pessoal, identificação projetiva, vigilância e fiscalização.

Contra o Triângulo do Poder!

O principal dissidente da postura “burocrática” dos estudos de ar funcionalista, oriundo da própria tradição americana, é Charles Wright Mills (1916-1962). Mills não deixa de ser fiel ao pragmatismo, como vocês leram no texto dos Mattelart, mas se revolta contra a “subserviência ao triângulo do poder” característico de uma sociologia voltada para a “engenharia social” (a saber, o triângulo é formado pelas forças armadas, governo e monopólios privados).

Por ter aberto alguma possibilidade para a perspectiva marxista, Mills pode ser considerado um dos pioneiros dos Estudos Culturais, que veremos mais tarde na disciplina. O autor está preocupado, sobretudo, com alienação e com o papel dispersivo do divertimento na sociedade de consumo.

CRÍTICA COMUM À ABORDAGEM TRADICIONAL

Toda a discussão sobre as ramificações das abor-dagens funcionalistas nos leva a concluir, enfim, que, como jornalistas, publicitários e demais profissionais da comunicação não sabemos quem é “público médio”. Recentemente, o jornalista William Bon-ner deixou escapar uma opinião: o público médio é representado por Hommer Simpson. Mais tarde, criticado, o âncora do Jornal Nacional explicou que não considera Hommer um mau exemplo ou figura depreciativa...

O fato é que a “academia” engatinha nesse ramo, décadas depois das iniciativas pioneiras: estudo de recepção. E entender como o público usa a mídia é muito mais complicado do que o senso comum descreve. Infelizmente é comum e largamente difun-dida a idéia de que a mídia “manipula” as pessoas. Essa concepção ultrapassada só ganha respeito por-que, justamente, achamos que estatísticas são efi-cientes para explicar os usos que os cidadãos fazem dos meios de comunicação. Por isso acabamos dan-do mais poder à mídia do que ela realmente tem

– embora, claro, seja um dos mecanismos culturais mais intensos de nossas vidas.

“Estudar a mídia sem levar em consideração o olhar da audiência é como ir a uma festa e levar um presente do próprio gosto para o aniversariante”. A frase não é minha. É de um brilhante aluno, Felipe Harmata Marinho, que em 2005 desenvolveu uma monografia, sob minha dispensável orientação, que me deixou muito orgulhoso.

Felipe ouviu pessoas de diferentes classes sociais, mas relacionadas entre si, para entender o uso que cada uma delas fazia do Jornal Nacional, da Rede Globo. Deixou, inclusive, que os entrevistados expli-cassem a própria classe. Descobriu que uma empre-gada doméstica, por exemplo, se considerava “de classe baixa” porque mora em um lugar “longe e sem asfalto”. Seu patrão se sente na “classe média alta” porque, entre outras coisas, consegue se des-locar para muitos lugares. Um instrutor de academia assumiu duas classes: “financeiramente” média e “intelectualmente” alta.

Mas a descoberta mais interessante do sr. Mari-nho é que as organizações dirigidas pela família com a qual compartilha o sobrenome NÃO são digeridas acriticamente pelas pessoas. Muito menos pelas de classe social “inferior”. As pessoas são influenciadas, mas não fazem escolhas baseadas nas passagens do Marcos Uchôa ou nos comentários sutis da Fátima Bernardes. Outras contribuições culturais concorrem e até prevalecem na representação de mundo desses indivíduos.

E a relação com a Justiça

Outra aluna, Bianca Botter Zanardi, realizou um trabalho hercúleo de investigação, paciência, entre-vista, reunião documental e realizou, se não bastasse tudo isso, outro ótimo estudo de recepção. Assim como o agora jornalista Felipe Marinho, a srta. Za-nardi foi mais rápida que um outro veterano despor-tista com quem compartilha o sobrenome, e devo-rou a bibliografia que tínhamos à disposição sobre representações sociais.

Mas fez um claro estudo de caso. Escolheu um julgamento de ressonância na mídia, acompanhou as sessões, teve acesso a todos os documentos e entrevistou cada um dos componentes do corpo de sentença. O objetivo era perceber a influência do no-ticiário sobre o processo na decisão dos jurados.

Os jornais não economizaram nos fogos: tratava-se da acusação de homicídio doloso (portanto, pro-posital) para um motorista que atropelou, arrastou e matou a filha da então prefeita de Agudos do Sul, cidade próxima a Curitiba.

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FONTE DE INFORMAçãO TRANSMISSSOR

CANAl (SINAl) RECEPTOR (RUÍDO)

DESTINO (SINAl)

MODElO CIbERNéTICO

A palavra cibernético vem do grego e significa “timoneiro”. Plenamente pragmática, a intenção de Norbert Wiener (1894-1964) é fornecer um ins-trumento para controle e administração de um am-biente visto como uma fusão entre as necessidades humanas e as tecnologias de comunicação. A idéia é, nas palavras de Bernard Miège, melhorar o rendi-mento da cadeia informacional ligada, sobretudo, às telecomunicações.

“A medida de informação está baseada em uma idéia básica muito simples: somos informados a par-tir do momento em que nos é dirigida uma mensa-gem que é desconhecida para nós ou contém muitos elementos novos ou imprevisíveis”.

WIENNER, Norbert. Cibernética e sociedade: o uso huma-no de seres humanos. SP: Cultrix, 1968.

BRETON, Phillippe. A utopia da Comunicação. Lisboa; Ins-tituto Piaget, 1992.

lEITURA PARA PRóxIMA AUlA

sÉtimaprestação

LASWELL, Harold. A estrutura e a função da comunica-ção na sociedade e LAZARSFELD, Paul e MERTON, Robert. Comunicação de massa, gosto popular e ação social or-ganizada.

Ambos estão no livro

COHN, Gabriel (org.). Comunicação e Indústria Cultural. SP: Editora Nacional, 1978.

Demais textos de autores mencionados na aula, presen-tes em:

COHN, Gabriel (org.). Comunicação e Indústria Cultural. SP: Editora Nacional, 1978.

DE FLEUR, Melvin e BALL-ROCHEACK, Simon. Teorias da Comunicação de Massa

OUTHWAITE, William e BOTTOMORE, Tom. Dicionário do Pensamento Social do Século XX. RJ: Jorge Zahar Editor, 1996.

lEITURA PARA PRóxIMA AUlA

O réu foi inocentado dessa acusação, apesar dos próprios jornais, cheios de tons acusatórios, terem sido anexados ao processo. Nas falas posteriores, os jurados explicaram para a Bianca que, se só houvesse a mídia, provavelmente o destino do motorista teria sido outro.

Mas não há só a mídia.

Wiener estabelece o projeto utópico hommo co-municans: “um ser sem interioridade nem corpo, que vive em uma sociedade sem segredos, um ser intei-ramente voltado para o social, que só existe através da informação e da troca, em uma sociedade que se tornou transparente, graças às novas ‘máquinas destinadas a comunicar’”. Isso foi dito por Phillippe Bretton e traduzido por Miège.

Baseia-se num método: a constituição de mode-los que permitem simular o funcionamento dos siste-mas semi-aleatórios, privilegiando duas ferramentas: retroação e complexidade. São esquemas formais desligados do conteúdo.

Briggs e Burke (2004, p. 195), usam a palavra “controle” sem rodeios para explicar a Cibernética: “a ciência do controle automático e dos processos de comunicação dos animais e equipamentos”.

Modelos matemáticos

A dupla Claude Shannon e Warren Weaver se interessou por resultados quantitativos. Tanto que também elaborou um “percurso” para o sistema co-municacional:

Nas palavras de Carlos Alberto Araújo, “a comu-nicação é apresentada como um sistema no qual uma fonte de informação seleciona uma mensagem desejada a partir de um conjunto de mensagens possíveis, codifica essa mensagem transformando-a num sinal passível de ser enviada por um canal ao receptor, que fará o trabalho do emissor ao inverso. (...) A problemática gira em torno de duas questões que se colocam à comunicação: a da complexidade em oposição à simplificação; e a da acumulação de conhecimento à racionalização dessa acumulação” (IN: HOHLFELDT, 2002, p. 121).

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oitaVa prestação

AVAlIAçãO

Qual foi o aprendizado mais importante nesse pe-ríodo que conversamos sobre as primeiras teorias da comunicação?

Talvez tenha sido compreender como certas idéias, mesmo que frágeis, se incorporaram à nossa sociedade e à nossa maneira de ver os meios de co-municação.

A idéia, por exemplo, de que há uma “massa” que age de forma homogênea, acrítica e previsível. De que as pessoas “comuns” são manipuláveis facil-mente e que se submetem a qualquer doutrina, cre-do, regra, costume, desde que a mídia seja utilizada habilmente pelos poderosos.

O grande problema das primeiras Teorias da Co-municação não é nem esse, mas a indiferença quan-to às conseqüências políticas mais amplas. Ou me-lhor, os teóricos não se importavam se era lícito ou não usar recursos da comunicação de massa para influenciar as pessoas. Preocupavam-se em produzir, de forma prática e eficiente, mecanismos para que governo, exército ou grandes corporações tivessem êxito na difusão de suas idéias.

Tratamos de uma época em que as disputas ide-ológicas, motivadas pelas guerras quentes e frias, servem de desculpa para que muitos pesquisadores, jornalistas, publicitários e “intelectuais” se rendam à necessidade de seduzir corações e mentes em nome da “causa” de seu país. Hoje compreendemos que a “causa” de um país, na maioria das vezes, se con-funde com a ambição de suas elites – o que não tem necessariamente a ver com democracia ou outro sis-tema dado como justo.

Além do mais, os próprios teóricos que vieram ou transformaram a Mass Communication Resear-ch foram descobrindo que, no mínimo, não existe “massa” no sentido que originalmente se acreditava. E que há outros elementos culturais que contribuem para que um enorme grupo humano empurre a so-ciedade para este ou aquele lado.

Mas há aspectos muito positivos nessas pesquisas, também. Quais seriam?

O QUE NÃO FAZER NA PROVA

Recolhi algumas pérolas da última prova de Teoria da Comunicação que apliquei a um bimestre inicial de primeiro período. Você poderá participar dessa galeria no semestre que vem! Esperamos que não, não é mesmo?

“Espaço público é onde existe coisas de transmi-ção de informações”.

“Comunicação vária os tipos, mas sua principal característica é informar ao publico informações. Espaço Publico – transmite informações mais priva-das”.

“Os meios de comunicação se auto-introduzem nas pessoas”.

“Era uma forma de escola que Laswell elaborou para começar com a comunicação em massa, en-volvendo a teoria e prática através da ciência (com questionamentos) onde nem tudo o que ela elabora-va era verdade”.

“Lazarsfeld e Merton viram coisas que Laswell di-zia ser de outra forma”.

“A evolução do surgimento da imprensa fizeram com que pessoas perdessem os empregos, houve uma retribalização no sentido que novas profissões foram formadas e algumas caíram em desuso”.

“Agulha pragmática”, “Agulha térmica”, “Agúlia”.

“Muita comunicação deixa as pessoas sem comu-nicação”.

“O professor é vitima da comunicação de masa porque acha tudo muito feio”.

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Times Square, Nova York , 1909 (Charney & Schwartz, p. 118). Capas de alguns discos que Theodor Adorno dificilmente aprovaria.

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Os efeitos dos meios são novos ambientes criados; e cada novo ambiente reprograma a vida sensorial.

Uma inovação técnica é informação nova, inquietante, perturbadora. O impacto físico e social das novas tecnologias e o ambiente criado afetarão todas as conseqüências psí-quicas e sociais características das antigas tecnologias.

As sociedades humanas sempre foram mais moldadas pelo caráter dos meios pelos quais se comunicam do que pelos teores da comunicação.O prolongamento de qualquer um de nossos sentidos elementares modi-fica nossa maneira de pensar e de agir; alte-ra, sobretudo, nossa maneira de perceber o mundo.

O meio é a mensagem.

Os meios de comunicação instituem novas correlações e proporções não somente em nossos sentidos elementares, mas também entre eles próprios quando estabelecem ações recíprocas de um meio a outro. Influenciam-se e um supera o outro, sem destruí-lo.

Eletronicamente interligado, o mundo se torna uma “aldeia global”. (2003, p.136)

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NoNaprestação

TEORIA CRÍTICA, INDÚSTRIA CUlTURAl, MIDIOlOGIA

As tecnologias da comunicação

Até agora estudamos uma forma de ver a comu-nicação em que não se considera amplamente o papel da ideologia dos próprios meios na formação cultural da sociedade. Para a sociologia americana da mídia - pelo menos na corrente predominante da Mass Communication Research - o meio de comuni-cação não é bom nem ruim, não é produtor em si de comportamentos e idéias; é apenas um transporte, uma “bala mágica”, uma “agulha hipodérmica” que injeta idéias na sociedade. O uso dos MCM certa-mente influencia, mas depende de quem os usa.

Veremos no segundo bimestre que outros pen-sadores percebem os meios de comunicação como instrumentos ideológicos importantes. Seus próprios formatos e conformações são a legitimação do capi-talismo monopolista.

Agora quero mostrar um tipo de teoria que não foge muito do funcionalismo. Harold Innis e Marshall Mcluhan também não se preocupam com a ideolo-gia. Mas são originais na percepção de outro proble-ma: o impacto tecnológico.

Leitor do compatriota Harold Innis, o canadense Marshall Mcluhan (1911-1980) se tornou uma das referências mais importantes de teoria da comunica-ção. Escrevia de forma metafórica, otimista e franca-mente divertida. Porém, mais do que isso, apontou aspectos até então inexplorados sobre a influência dos meios de comunicação na conduta humana. Sua influência é grande e sua fama é tão rara que até o cineasta americano Woody Allen o usou em uma cena de Annie Hall (Noivo Neurótico, Noiva Nervosa, 1977).

Também é criticado por desprezar a ideologia como dado relevante e por constantemente insistir em um panorama determinista, em que as tecnolo-gias de comunicação são implacáveis na conduta hu-mana. Ou seja, algo relacionado com o velho funcio-nalismo adotado pelos estudos de mídia tipicamente americanos.

Mcluhan acredita que as grandes revoluções da sociedade estão ligadas com o aparecimento de no-vas tecnologias de comunicação. Antes da imprensa, o mundo vivia “tribalizado” – organizado em comu-nidades de existência geográfica, dependente das relações interpessoais. A comunidade ia até onde a voz do líder alcançava.

A invenção da imprensa e popularização do livro “destribalizou” as sociedades. Surgiu o leitor solitá-rio – que lê em silêncio e não depende do mestre. A televisão, no entanto, “retribaliza” o universo no século 20. A partir dela, as distâncias mudam de sig-nificado e as culturas se aproximam, criando uma “aldeia global”.

As tecnologias afetam os sentidos do sujeito, afi-nal, cada meio tem uma “temperatura” relacionada ao contato com o público. Assim, livro, jornal e rádio são meios “quentes”: mensagens são bem definidas e apelam diretamente aos sentidos elementares (au-dição e visão). Telefone e televisão são “frios”, pois sua “precariedade” exige participação mais ativa dos consumidores da informação.

Ilana Polistchuk e Aluizio Trinta “resumem” as linhas principais do pensamento de Mcluhan. Vou copiar:

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Tira produzida nos anos 60 pelo brilhante cartunista argentino Joaquim Lavado, o Quino. Está em Toda Mafalda (SP: Martins Fontes, 1997)

lEITURA PARA PRóxIMA AUlA

MCLUHAN, Marshall. Os meios de comunicação como ex-tensão do homem. SP: Cultrix, 2002.

CASTELS, Manuel. A galáxia da internet. RJ: Jorge Zahar, 2003.

POLISTCHUK, Ilana; TRINTA, Aluizio. “Paradigma midio-lógico”. IN: TEORIAS DA COMUNICAÇÃO. RJ: Campus, 2003.

O estudo pioneiro de Innis mostrava como cer-tas civilizações ampliavam seus domínios através de recursos comunicacionais. No olhar do canadense, Roma manteve-se grande (50 milhões de pessoas espalhadas por três contingentes durante a Pax!) porque o sistema de mensageiros, suportados por um complexo sistema de estradas e postos de troca, levava a voz do líder aos rincões mais distantes.

DÉCima prestaçãoESCOlA DE FRANkFURT

A Escola de Frankfurt deu um passo gigantesco para se estabelecer um pensamento crítico sobre a sociedade. Traduz também um certo sentimento trá-gico da sua época de fundação (1921) e firmamento, abalada pela ascensão do fascismo e do nazismo e pelos resultados já evidentes da exploração capitalis-ta.

Mas não podemos, de forma alguma, reduzir o pensamento crítico ao mero pessimismo. Sua com-preensão da sociedade é um caminho insubstituível no entendimento do mundo contemporâneo.

A comunicação não é objeto específico de estu-do dos frankfurtianos, mas é privilegiado – pois se configura como panorama das ideologias e área de circulação da indústria cultural. A pretensão desse pessoal – não atingida, diga-se de passagem – era formular uma Teoria Crítica da Sociedade, juntando diversas áreas do conhecimento.

Os homens de Frankfurt se notabilizaram por associar entre si os pensamentos de Marx, Freud e Nietzche. A base intelectual da escola está na dialé-tica da economia política fundada no materialismo histórico.

Bom, tudo isso eu digo na sala de aula. O que eu não falo vem agora.

Theodor Adorno (1903-69), que faria cem anos no já mítico 11 de setembro de 2003, é um dos no-mes mais controversos e famosos do instituto. Com Max Horkheimer (1895-1973), escreveu em 1944 “A Dialética do Esclarecimento”, onde propõe o concei-to de Indústria Cultural. O texto que trata do assunto é, na verdade, uma análise da desmitificação do Ilu-minismo.

Podemos tirar algumas boas conclusões do ca-pítulo. Seguindo Luiz Costa Lima, resumamos em três:

a) O Iluminismo é um projeto baseado na vontade humana por domínio e pela sua recusa ao temor;

b) O pensamento iluminista se ampara no “pensamento liberal”;

c) O Iluminismo liberal entra em decadência com o estabelecimento do capitalismo mono-polista. É a Indústria Cultural que permite a vi-sibilidade dessas indicações.

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“Divertir-se significa ficar de acordo, significa sempre não dever pensar, esquecer a dor mesmo no lugar onde ela é exibida. Na base dessa diversão está a im-potência. É efetivamente fuga, mas não uma fuga da realidade feia, mas da última idéia de resistência que a realidade ainda pode ter deixado”.

Adorno e Horkheimer apontam a reificação e alienação do indivíduo na sociedade moderna – lendo nosso camarada Marx. Prestem atenção nesse trecho. Ele fala da função do “divertimento”, outro assunto que já respingamos:

Uma curiosidade: Foi Lazarsfeld, ligado ao Mass Communication Research, quem levou Adorno para os Estados Unidos, numa tentativa de associá-lo a uma pesquisa sobre os efeitos provocados pelas emissoras comerciais de rádio. Mas o casamento entre a pesquisa administrativa de Lazarsfeld com a pesquisa crítica de Adorno não vingou e sufocou-se inteiramente em 1939. Ouça o que disse Adorno a respeito: “Quando fui confrontado à exigência de ‘medir a cultura’ vi que a cultura deveria precisamen-te ser essa condição que exclui uma mentalidade capaz de medi-la” (citado por Armand e Michéle Mattelart).

Ainda pela voz de Costa Lima, podemos entender que a Dialética do Esclarecimento permite concluir que “o destino da obra de arte na sociedade con-temporânea é ser de igual absorvida, desossada e deixada sobreviver como objeto que se fez funcional mesmo porque deixou de ser incômodo” (p.167).

LASWELL, H ADORNO, T. e HORKHEIMER, M. A indústria cultural: o iluminismo como mitificação das massas. IN: LIMA, Luís Costa (org). Teorias da cultura de massa. SP: Paz e Terra, 2002.

ADORNO, T. e HORKHEIMER, M. Dialética do Esclareci-mento. RJ: Jorge Zahar Ediotr, 1985.

ASSOUM, Paul-Laurent. A Escola de Frankfurt. SP: Ática, 1991. (141[430] A 849e).

BENJAMIN, W.; HORKHEIMER, M.; ADORNO, T.; HABER-MAS. Textos Escolhidos. SP: Abril Cultural, 1983.

BENJAMIN, Walter. A obra de arte na época de sua repro-dutibilidade técnica. IN: LIMA, Luís Costa (org). Teorias da cultura de massa. SP: Paz e Terra, 2002.

COSTA, Cristina. Comunicação, ficção e mídias. SP: Senac, 2002.

EAGLETON, Terry. A ideologia da Estética. RJ: Jorge Zahar Editor, 1993.

HABERMAS, Jurgen. Mudança estrutural da esfera públi-ca. RJ: Tempo Brasileiro, 1984.

LOUREIRO, Isabel Maria. Herbert Marcuse – a grande re-cusa hoje. Petrópolis: Vozes, 1999.

MARCUSE, Herbert. A ideologia na sociedade industrial. RJ: Jorge Zahar Editor, ?

MATOS, Olgária. A Escola de Frankfurt: luzes e sombras do Iluminismo. SP: Moderna, 1993.

MATTELART, Armand & Michelle. História das Teorias da Comunicação. SP; Loyola, 1999.

PUTERMAN, Paulo. Indústria Cultural: a agonia de um conceito. SP: Perspectiva, 1994.

RUDIGER, Francisco. Comunicação e teoria crítica da socie-dade. Porto Alegre: Editora da PUCRS, 2002.

WIGGERSHAUS, Rolf. A Escola de Frankfurt. RJ: Difel, 2002.

WOLF, Mauro; FIGUEIREDO, Maria J.; Teorias da Comuni-cação. Lisboa: Presença, 1987.

lEITURA PARA PRóxIMA AUlA

OUTROS PENSADORES lIGADOS À FRANkFURT

Herbert Marcuse (1898-1979) é o mais famoso enfant-terrible entre os frankfurtianos. Era referência obrigatória nos movimentos contestatórios dos anos 60. Tem uma postura que Umberto Eco francamen-te chamaria de apocalíptica, dada a severidade de

DÉCima primeira prestação

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sua crítica. Para ele, vive-se em uma sociedade unidi-mensional, provocada pelo modelo de organização social crescentemente conduzido pela técnica e pela ciência. Critica, enfim, a irracionalidade da sociedade moderna.

Jürgen Habermas (1929- ) fala do declínio da esfera pública por causa da adoção de um modelo comercial de fabricação de opiniões. Para Habermas, principal expoente da chamada Segunda Geração de Frankfurt, o indivíduo tende a adotar compor-tamento emocional e aclamatório. “A comunicação dissolve-se em atitudes estereotipadas, de recepção isolada” (para roubar novamente dos Mattelart). A proposta mais famosa de Habermas é ousada e po-lêmica: uma Teoria da Ação Comunicativa.

Walter Benjamin (1892-1940) e Sigfried Kra-cauer (1889-1966) são frankfurtianos atípicos por se filiarem a métodos menos comuns entre os outros membros e até mesmo por perceber, como no caso do primeiro, possibilidades revolucionárias na indús-tria cultural. Benjamin tem sido revisto e atualizado e parece-nos, momentaneamente, mais mastigado e reciclado que o próprio Adorno. Walt pôs fim na própria existência quando foi pego na fronteira espa-nhola pela polícia franquista. Seria entregue para a Gestapo e encaminhado, inevitavelmente, para uma estadia nos campos de concentração. Enquanto os outros filhos de Frankfurt se exilaram nas terras do Tio Sam, Benjamin se recusou a sair da Europa.

O trabalho benjaminiano mais famoso é “A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica”, lá dos longíqüos anos 30, mas perfeitamente atual. Nela, nosso amigo diz que a obra de arte possui três aspectos essenciais na sociedade pré-industrial: aura, valor cultural e autenticidade. A chegada dos meios de reprodução dissolve esse triângulo. A obra de arte perde sua “aura”. Leiamos o velho Lima, novamente, sobre o assunto: “A possibilidade multiplicativa fere os valores que convertiam até agora a obra (de arte) em uma espécie de sucedâneo de uma experiência religiosa” (p. 217).

A INDÚSTRIA CUlTURAl

por Cristina Costa.

Vejam esse trecho do livro mencionado abaixo. Ele se relaciona com uma discussão que a autora promo-ve a respeito da ficção no panorama das mídias. Tra-ta-se de algo bastante simples, portanto limito-me a reproduzir. Uso esse texto em Estética, normalmente, mas talvez lhes sirva de alguma forma.

“A indústria cultural nasce da formação dessa população subalterna e excluída que constitui um

público disponível ao entretenimento de baixo custo – artesão e operários, prestadores de serviços, co-merciantes e biscateiros que formam a ‘massa’ que cresce a olhos vistos nos centros urbanos. É para eles que se organiza a produção industrial e mecanizada de bens simbólicos, e é nessa cultura proletária que os empresários encontrarão as receitas de sucesso para uma produção cultural seriada, abrangente, co-municativa e capaz de ser consumida de forma pra-zerosa e divertida”.

‘Embora possamos dizer que a indústria cultural começa com rodas as suas características – organiza-ção empresarial, serialidade, lucratividade e tecnicis-mo – a partir do século XIX, com a grande imprensa diária, não podemos negar que nos circos, na ópera, na comédia de arte, na publicação de folhetos, dos almanaques e da Biblioteca Azul, anteriores a esse período, encontram-se os primórdios do que viria a ser a cultura de massa. Trata-se de uma produção simbólica voltada ao grande público que, submetido aos rigores do trabalho industrial e das ocupações subalternas, passa a usufruir, como um bem, as ho-ras de ócio e lazer – aquelas que se concentram entre as longas e difíceis jornadas de trabalho. Para se di-vertir nas tabernas, para participar dos espetáculos, para disputar jogos nas praças, para ouvir histórias e assistir espetáculos, estão dispostos a gastar parte de seu soldo ou salário. Cria-se, assim, para esse pú-blico, a indústria cultural como se criara para a elite o mercado da arte – era a produção simbólica que se mercantilizava em todos os níveis da sociedade”.

“O processo de constituição dessa cultura de mas-sa foi lento e dependeu de inúmeros fatores, como o desenvolvimento das nações e a necessidade de criar entre os cidadãos um sentimento de pertencimento conhecido por nacionalismo. Fator igualmente forte foi o desenvolvimento tecnológico – não só da pren-sa como das fábricas de papel e da energia elétrica, que tornou as cidades mais seguras e as noites pro-pícias ao entretenimento”.

“Com o processo de formação das Repúblicas e o desenvolvimento da educação pública, a diferen-ça entre a cultura erudita e a cultura das ruas será mais de acessibilidade que de conteúdo. Em seus primórdios, entretanto, a cultura erudita se tornava importante elemento de distinção social, e, como tal, deveria diferenciar-se das formas de viver e sentir do povo, opondo-se a elas”.

“Não é, portanto, na cultura erudita que a indús-tria cultural encontrará os elementos de seu pleno desenvolvimento, mas na cultura proletária das pe-riferias das grandes cidades, que já se transformava em atividades lucrativas. O aumento constante do público das operetas e récitas de poesia levava os

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donos das estalagens a fechar as estalagens a fechar as entradas e cobrar ingresso para os espetáculos. A tiragem dos almanaques aumentava, levando para um número cada vez maior de leitores horóscopos, receitas caseiras e conselhos úteis. Soldados dos exércitos nacionais, em tempo de paz, exibiam-se nas feiras, por trocados, como domadores de ani-mais – eram os picadeiros, os antecessores do cir-co de diversões. Foi nessa fonte – entre o popular e o popularesco – que a indústria cultural se inspirou para se erguer como um poder e atingir o grande público”.

“Mas o pleno desenvolvimento da cultura de massa ainda devia superar um último obstáculo – a hegemonia da palavra descrita, que, embora tivesse permitido o registro, a reprodução e a disseminação das narrativas, ainda deparava com as barreiras de classe e de idiomas. A imagem romperia essas fron-teiras”.

COSTA, Cristina. Ficção, comunicação e mídias. SP: Senac, 2002 (p. 40 a 42).

Aqui vemos Gordon’s Gim, obra de 1968 assinada pelo norte-americano Richard Estes. Trata-se de uma pintura a óleo, filiada a uma corrente apeli-dada de neo-realismo americano. Não deixa de ser pop art, porque valoriza (ou ironiza?) elementos vulgares da sociedade moderna.

Esse é a famosa Louça do francês Marcel Duchamp, apresentada ao mundo em 1917. Convidado a expor sua arte, passou por uma loja de materiais de construção, comprou esse urinol de banheiro e aproveitou a polêmica. Um observador revoltado disse que a obra nem poderia ser creditada a ele, já que o artista não havia construído o objeto. Duchamp respondeu: “arte é escolha”.

DÉCima seGUNDa prestação

POR hAbERMAS

Falamos da recuperação do fator “humano” no universo das inter-relações em face a uma “brutaliza-ção” provocada pela explosão da técnica no século 20, tema empunhado por Heidegger. Atualmente temos um quadro e perspectivas: a velocidade com que se substituem os aparatos tecnológicos e a de-pendência progressiva, adquirida pela humanidade, dos meios de comunicação. Um exemplo fugaz e até mesmo simplório: A maioria absoluta dos brasileiros jamais viu pessoalmente os presidentes Luís Inácio Lula da Silva e George Walker Bush, o papa Bento XIV ou até mesmo o polêmico bispo Edir Macedo. Tampouco a gigantesca maioria da população nacio-nal terá chances de se aproximar fisicamente dessas pessoas que, em diversas medidas, são responsáveis por grande parcela de nosso destino. Conhecemos esses ícones pelo que os meios de comunicação nos mostram. São simulacros de realidade que assumi-mos – por acomodação, indiferença ou aceitação inconsciente – sem maiores conflitos.

Qualquer proposta de estudo nascida sob esse panorama implica o uso de um método científico capaz de enxergar o “humano” em um contexto de desumanização - o que também sugere uma seqü-ência de inter-relações metodológicas sujeita a um desenho de conceitos que são imprescindíveis para dar respaldo à pesquisa: trata-se de uma ação cal-cada no enfoque subjetivista-compreensivista (feno-menológico), mas com um forte “quê” crítico-parti-cipativo, de visão histórico-estrutural.

Baseado em apreciações culturais, nós aceitamos um aparente problema (desumanização frente à opressão tecnológica) ao ponto de se apropriar da palavra “Humanismo” até mesmo como justificativa teórica, tendo em vista que a expressão nasce de um universo literário que remete à Antigüidade Clássica (especialmente a Heráclito de Éfeso, a quem Hegel atribuiu a inspiração da dialética), aos ideais do Re-nascimento e, mais recentemente, a arestas do pen-samento marxista e existencialista.

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Quino. Toda Mafalda (SP: Martins Fontes, 1997, p. 119)

A base científica material não contradiz nem os apologistas do “pós-modernismo”, visto que o pen-samento contemporâneo deve pelo menos um ló-bulo completo à Escola de Frankfurt. Podemos nos deter em Habermas e seu “agir comunicativo” para justificar a forma de atuação.

O ponto básico e inicial do pensamento haberma-siano, nessa análise, é sua sustentação no pressupos-to de que interação entre objeto e sujeito conduzem no mundo contemporâneo a perspectiva científica. Para compreender o “projeto da modernidade”, Ha-bermas quer uma interação entre as teias do sistema com o mundo vivido a partir da pergunta “o que é o homem?”. Lúcia do Valle interpreta assim as circuns-tâncias que permitem ao filósofo contrapor o “agir estratégico” ao “agir comunicativo”:

De um modo geral pode-se dizer que o sujeito é enfatizado na modernidade através da valorização da história, da Cultura, enfim, da razão humana. Todavia, essa exacerbação do sujeito colocada, por exemplo, por Kant, ao sobrepor a razão humana frente aos objetos, por Hegel, ao revalorizar a his-tória, levou o homem à condição de si mesmo, des-valorizado pela sua própria maneira de encarar sua racionalidade. Quer dizer, a razão, de certa forma, foi fragmentada e a sua dimensão pertinente ao pla-no do domínio do homem sobre a natureza, acabou por dominar o próprio homem (p.50).

lEITURA PARA PRóxIMA AUlA

FOLQUENING, Victor. O Jornalismo é um humanismo. Curitiba: Pós-Escrito, 2002.

HABERMAS, Jürgen. Conhecimento e interesse. IN: Os pensadores: textos escolhidos de Walter Benjamin, Marx Horkheimer, Theodor W. Adorno, Jürgen Habermas. São Paulo: Abril Cultural, 1983.

Jürgen. Consciência moral e agir comunicativo. Rio de Ja-neiro: Tempo Brasileiro, 1989.

Jürgen. Mudança estrutural da esfera pública – investiga-ções quanto a uma categoria da sociedade burguesa. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984.

Jürgen. O pensamento pós-metafísico. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1990.

HEIDEGGER, Martin. Carta sobre o humanismo. São Pau-lo: Editora Moraes, 1991.

VALE, Lúcia Helena Barros. Avaliação institucional emanci-patória: contribuição de Jürgen Habermas. Tese de douto-rado. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 1999.

CONTRA ADORNO

Esse texto, a seguir, foi retirado da revista Bravo!, publicada em fevereiro do ano passado. Aqui temos uma sugestão de crítica ao pensamento de Ador-no sem, no entanto, desmerecer sua contribuição. O parágrafo final, apesar de constituir uma suspeita “chave de ouro”, parece um bom convite a refletir.

DÉCima terCeira prestação

O TEóRICO CRÍTICO

A festa de 100 anos de Theodor Adorno, o desespe-rançado trágico da Escola de Frankfurt, destaca seu perfil musical.

Por João Marcos Coelho

É famosa a história do hirsuto criador do concei-to de “indústria cultural” acuado pela moçoila de seios baloiçantes à mostra, mas não custa relembrar. Aconteceu no olho do furacão dos movimentos es-tudantis de 1968. A sala de aula do respeitabilíssimo Theodor Adorno, no Instituto de Pesquisas Sociais de Frankfurt, foi profanada pela estudante atrevida.

O mestre não teve dúvidas: chamou a polícia – e ainda posou para uma infeliz foto com o coman-dante da operação de repressão aos estudantes que

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haviam tomado as dependências da escola. A foto do abraço policialesco foi reproduzida por jornais em todo o mundo e maculou os contornos finais da ima-gem de um dos mais originais, argutos e consistentes pensadores do século 20. Naquele momento, um de seus colegas da chamada Escola de Frankfurt, Her-bert Marcuse, vivia as delícias da vida de “guru” dos estudantes de esquerda.

Essa humilhante saída de cena pela direita ainda hoje é muito associada a ele, mas seria injusto passar 2003 – ano de seu centenário de nascimento, ocor-rido num 11 de setembro, vejam só – relembrando só isso. Na realidade, a efeméride está servindo para trazer Adorno de volta ao centro das atenções em todo o mundo. No Brasil, as comemorações iniciam-se com a publicação de A Escola de Frankfurt – His-tória, Desenvolvimento Teórico, Significação Política (Difel), em que Rolf Wiggershaus conta tintim por tintim, em vastas 742 páginas, a trajetória de Ador-no, fazendo dele o mais importante representante do movimento por meio século. E, nos Estados Uni-dos, acaba de ser publicado outro catatau de igual tamanho, desta vez centrado só na música: Essays on Music (University of California Press) reúne sobre-tudo os ensaios esparsos que Adorno escreveu sobre o tema, além de cerca de 250 páginas de comentá-rios argutos e esclarecedores do musicólogo Richard Leppert.

Começa-se, assim, a mostrar mais amplamente a face e o significado da obra do co-autor com Max Horkheimer da Dialética do Esclarecimento, texto fundamental da chamada Escola de Frankfurt – mo-vimento que reuniu, nos anos 20, naquela cidade alemã, um grupo de pesquisadores heterogêneo que instaurou o que hoje se chama de “teoria críti-ca”. E isso inclui um justificado destaque à posição central da música em sua vida e obra. Além do soció-logo e do filósofo, ele era ótimo pianista praticante e dedicou boa parte de seus livros e ensaios à música. Melhor dizendo, a sociologia, a filosofia e outros in-teresses é que foram marginais.

Em 1924, por exemplo, apresentou-se só como “músico” ao seu futuro professor de composição Al-ban Berg, embora já houvesse publicado tese de filo-sofia; e em 1969, meses antes de sua morte em 6 de agosto, às vésperas do 66oº aniversário, planejava dedicar o resto de seus dias exclusivamente à prática da música. Entre uma e outra declaração, Adorno re-volucionou o modo de se pensar a música no século 20. Decretou a morte da música clássica e saudou a chegada da recém-nascida música nova vienense trazida por Arnold Schoenberg e seus dois geniais discípulos Alban Berg e Anton Webern; condenou e esmiuçou os lances da colonização de toda música por meio do processo de sua mercantilização como “produto cultural”; instaurou um fosso intransponí-vel entre a música séria e as músicas ditas populares,

entre a alta e a baixa cultura. Entronizou a primeira, descartou como lixo irremediável a segunda.

A importância de Adorno pode ser medida por aí. Seus parâmetros dominaram todas as discussões e debates – na academia e na mídia em geral – no último meio século. Quando a musicologia não dava a menor bola para as músicas populares, Adorno enxergou nelas seu principal inimigo, concentrou-se em seu estudo e desossou todos os mecanismos pe-los quais o jazz, a música ligeira, a música de filme e as canções de “Tin Pan Alley” provocariam um en-torpecimento e uma mercantilização perversos. Ora, ao fazer isso ele de certo modo anteviu o enorme impacto cultural da chamada música de massa e an-tecipou em várias décadas a atual enxurrada de teses universitárias sobre o tema.

Jamais abandonou uma ferocidade peculiar quan-do o tema era a arte de massa. Quando escreveu o artigo Sobre o Jazz, em 1936, adotou (procedimento raríssimo nele) um pseudônimo sintomático: Hektor Rottweiler. Demoliu distorcidamente o gênero com frases do tipo: “os ritmos sincopados lembram a es-cansão regular de uma marcha militar, o que faz do jazz a expressão perfeita do totalitarismo inerente à sociedade de massas”; em outro ensaio dos anos 30 sobre a fetichização da música, comparou bandlea-ders do swing como Benny Goodman, Count Basie e Duke Ellington a pequenos “Führer fascistas”. E, numa discussão com Walter Benjamin em 1936, por exemplo, insistiu em chamar de idiotas os trabalha-dores que riam assistindo às peripécias de Carlitos do então recém-lançado Tempos Modernos, e de inócu-as as denúncias de Chaplin no filme; para Benjamin, ao contrário, Tempos Modernos tinha, sim, como in-citar a classe trabalhadora a iniciar um processo de conscientização de seu lugar de explorados e vítimas no capitalismo industrial.

A mesma parcialidade está presente no famoso Filosofia da Música Nova, de 1949, em que Ador-no contrapõe a Música Nova de Schoenberg ao que considera a produção estéril e regressiva de Stra-vinsky. Praticando um etnocentrismo europeu atroz, nem sequer se preocupa em analisar a obra do rus-so; limita-se quase que só aos xingamentos para pro-var sua tese. O livro foi leitura de cabeceira de todo adepto da Música Nova durante décadas.

Seu padrão de referência para análise do passa-do e do futuro da música é o ano de 1910, quando eclodiu a atonalidade livre por obra de Schoenberg, em Viena. Até a música serial e o dodecafonismo (a composição pelos doze sons) de Schoenberg são negativamente avaliados por Adorno. A briga entre eles, iniciada nos anos 30, prosseguiu na década se-guinte, e agravou-se quando Thomas Mann chamou Adorno para funcionar como “consultor musical” durante a gestação do livro Doutor Fausto. Schoen-

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berg não gostou nada de se ver retratado e a sua música serial no romance sem ser citado, nem se-quer consultado. O clima era tão hostil entre Adorno e Schoenberg que Mann confessa: “Ele tanto me se-duzia que às escondidas de Adorno cheguei a buscar conselhos com Schoenberg”.

Em todo caso, a parceria Adorno-Mann em Dou-tor Fausto é uma daquelas maravilhas que só aconte-cem de mil em mil anos entre conhecimento técnico e talento literário. A sedução de que fala Mann acon-teceu quando Adorno tocou a sonata Opus 111 de Beethoven e comentou-a detalhadamente ao escri-tor em sua casa na Califórnia. Tudo isso está no livro, na palestra de Kretzschmar, assim como a crítica da música dodecafônica que desagradou a Schoenberg, inteiramente baseada em Adorno (capítulo 22).

Adorno teve duas ótimas oportunidades, no de-correr de seu itinerário intelectual, de abrir mão de sua “desesperança trágica”, e botar a mão na mas-sa, isto é, render-se ao engajamento e ao mergulho na ação política, ou ao menos manter a esperança. Em ambas, ocorreu justamente o contrário: Adorno é que injetou niilismo e desesperança no outro (reco-nheça-se: ele viveu com toda intensidade o espectro do nazismo, e esta angústia foi determinante em seu modo de pensar). Uma delas aconteceu com Mann. Diz este: “Ele nada opôs ao aspecto musical, mas de-monstrou preocupação com as 40 linhas finais, que falam de esperança e misericórdia após as trevas. Eu tinha sido otimista em excesso, bondoso e direto, ti-nha acendido muita luz, exagerado na consolação, e tive de reconhecer como justas as restrições do críti-co”.

A outra ocorreu com seu genial primo Walter Benjamin, e a propósito do célebre artigo A Obra de Arte na Era da sua Reprodutibilidade Técnica, em 1936. Enquanto Benjamin, duro de carteirinha, vivia em Paris à custa do Instituto de Pesquisas Sociais de Frankfurt (80 dólares mensais) e tratava, na corres-pondência, o primo como se fosse seu mecenas, Adorno usufruía as delícias da excelente situação fi-nanceira da família e ainda não deixara a Alemanha (passara a usar somente o sobrenome Adorno, de origem corsa, fazendo sumir o Wiesengrund judeu do pai). Quando Benjamin lhe envia o artigo, Adorno demora meses para responder-lhe, com uma inter-pretação unilateral, privilegiando apenas o aspecto de “perda da aura” da obra de arte, de seu caráter único, descartando as novas possibilidades de difusão e democratização da arte antevistas por Benjamin. A resposta para o declínio da aura da obra de arte na era de sua reprodutibilidade, afirma Enzo Traverso na excelente apresentação de nova edição francesa da correspondência entre ambos, “não é, para Adorno, a estética brechtiana, mas a música atonal de Scho-enberg”. Assim, enquanto Adorno se refugia numa crítica puramente contemplativa, Benjamin prega a

politização da arte como resposta necessária à este-tização da política praticada pelo fascismo. Daí seu sonho com a utopia das novas realidades, cujo rastro pode ser encontrado “nas mil figuras da vida, nos edifícios permanentes e também nas modas passa-geiras” (Paris, Capital do Século 19).

Sempre impermeável a qualquer tentativa de se traduzir politicamente sua teoria crítica (“o espírito refugia-se onde não é obrigado a tornar-se despre-zível, isto é, na direção das obras de arte às quais caberia a tarefa de manter sem palavras o que é inacessível à política”), Adorno bem que poderia ter adotado Hektor Rottweiler como seu pseudônimo preferencial, já que no papel sempre foi muito corajo-so e sem meias medidas. Detestava Richard Wagner por motivos óbvios (“sua música fala a linguagem do fascismo”). Idem ibidem para Richard Strauss, que andou namorando com o Terceiro Reich (“sua músi-ca reduz-se a um estímulo para os nervos do exausto homem de negócios”, ou seja, proporciona remanso para o big boss).

Reclamava até do homem da rua que assobiasse um tema de uma sinfonia de Brahms. Dizia que isso era desfigurar o sentido da obra de arte (por aqui, alguém simplesmente conhecer um tema de uma sinfonia de Brahms já seria um bálsamo, que dirá assobiá-lo? As trilhas sonoras em nossas ruas estão mais para Baba Baby, Baby Baba).

“Quando conheci Adorno”, conta Jürgen Haber-mas, o mais destacado representante atual da Escola de Frankfurt, “e vi de que maneira surpreendente ele se expressava à queima-roupa sobre o fetichismo da mercadoria, e aplicava esse conceito a fenômenos culturais e cotidianos, aquilo foi, a princípio, um cho-que. Mas, depois, pensei: tente fazer como se Marx e Freud, de quem Adorno falava de uma forma tam-bém ortodoxa, fossem contemporâneos”.

E a questão para nós neste ano talvez seja: em que medida somos adornianos hoje, a cem anos de distância de seu nascimento e mais de trinta de sua morte? Mais do que supomos. E certamente menos do que deveríamos.

Retirado da revista Bravo! (fevereiro de 2003).

Talvez Adorno, ironizado à esquerda, mudasse de idéia se acompa-nhasse a música de Duke Ellington, por exemplo. Aqui o maestro, líder de uma big band que sobreviveu mais de 40 anos, está recebendo o título de Doutor pela Universidade Columbia, em plenos anos 70.

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Algo que faremos

Mostrarei imagens na sala. Elas servirão para a gente pensar no papel da arte como “reveladora”, pois ativa nossa capacidade crítica e não nos coloca em dormência sensível ou intelectual.

lEITURA PARA PRóxIMA AUlA

ADORNO, Theodor. Filosofia da nova música. SP: Perspec-tiva, 2002.

ADORNO, Theodor; HORKHEIMER, Max. A dialética do esclarecimento. RJ: Jorge Zahar, 2002.

DÉCima qUarta prestação

GIFFITHS, Paul. A música moderna. RJ: Jorge Zahar, 1987.

MANN, Thomas. Doutor Fausto. SP: Nova Fronteira, 2000.

NOBRE, Marcos. A dialética negativa de Adorno. SP: Iluminuras, 1998.

WIGGERHAUSS, Rolf. A Escola de Frankfurt. RJ: Difel, 2002.

GIOTTO (1267-1337). A lamentação (1305). Afresco de 200 x 185 cm, em uma parede de capela em Pádua, na Itália.

Wilhelm HAMMERSHOI (1864-1916). Interior com moça ao cravo (1901). Óleo sobre tela (56 x 44 cm), hoje em coleção particular, prova-velmente na Dinamarca, terra do autor.

A AGONIA DO CONCEITO INDÚSTRIA CUlTURAl

Nosso debate sobre a fragilidade do produto ar-tístico nessa época de serviço ao lucro tem origem simbólica nos textos assinados por Theodor Ador-no sobre música. O esforço que todos fazemos para que o jovem estudante se dê conta da pertinência do pensamento crítico acaba por desfavorecer uma outra crítica, a das próprias limitações das teorias de Frankfurt. O esforço, no entanto, tem sentido, pois os poucos meses que dispomos para ajudar a cons-truir a crítica competem com os anos de predomínio da indústria cultural em nosso imaginário. Quando chegamos à faculdade, a famigerada Indústria Cultu-ral já tratou de criar inúmeros mecanismos de defesa contra a detecção de seus problemas e aberrações.

Mas agora talvez tenha chegado a hora de ama-durecer nosso olhar quanto a esse problema tão vital na compreensão de mundo. Para balancear as pesa-das, mas necessárias, críticas resumidas na Dialética do Esclarecimento (Adorno & Horkheimer, 1944), escolhi resenhar um livro fácil de achar e ler, barato para comprar, que é “Indústria Cultural, a agonia de um conceito”, de Paulo Puterman.

Misturo a seguir algumas reflexões nossas com conclusões de Puterman, que se valeu de amplifica-ções da indústria fonográfica para contestar algumas das conclusões de Adorno.

O trabalho de Puterman envolve a relação en-tre produção cultural e tecnologia no lançamento de produtos da indústria fonográfica. Ele conversa com as proposições de Adorno (1903-1969) sobre a transformação da música pelo capitalismo monopo-lista. Adorno era filósofo e músico. Dois trabalhos do alemão são particularmente relevantes sobre nosso assunto: “Filosofia da nova música” (1944) e “Intro-

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dução à sociologia da música” (1962).

“Adorno e Horkheimer, seu colaborador, viveram em um período em que a produção em grande es-cala, baseada na racionalização e divisão técnica do trabalho, promovia a desarticulação das formas pre-gressas. Essa industrialização se introduzia também nas artes, tendo a invenção do fonógrafo e do cine-matógrafo abalado dois ramos específicos delas – o som e a imagem” (Puterman, 1994, p.10).

“Foi a utilização de meios mecânicos para multi-plicar as possibilidades de audição de um concerto que lhe sugeriu a utilização do termo ‘indústria cul-tural’ (idem).

Vejamos: a difusão da perspectiva industrial no interior do domínio das artes e da criatividade trou-xe muitas conseqüências, entre elas o afastamento entre criadores, artistas e público, por meio de uma divisão fisicamente intransponível. Essa é a raiz do problema enfrentado por Adorno, a fonte de suas preocupações.

Ora, para que tal drama seja possível, é preciso que entendamos uma percepção de mundo, por parte de Adorno, que Paulo Puterman considera “contraditória”.

Theodor Adorno misturaria, segundo Puterman, duas visões antagônicas sobre a natureza da arte. Por um lado, assumiria a concepção marxista (por-tanto dialética) e por outro, a hegeliana (da idéia). Essa “conciliação” aparece em “Dialética da razão” (1968).

Portanto, a concepção de indústria cultural de Adorno se pauta por duas perspectivas diferentes: uma marxista, em que a estrutura econômica predo-mina na análise social, e uma hegeliana, que se filia na hipótese de que a idéia é a base da sociedade.

Culto à tecnologia

Nazismo e fascismo se aproveitaram da expansão industrial para promover um culto da tecnologia, vis-ta como “expressão máxima” do ser humano.

Sucesso tecnológico, naquele momento da histó-ria em que os teóricos de Frankfurt formulavam a Teoria Crítica, se confundia com a rígida disciplina fabril – expandida para toda a sociedade. O “grande capitalismo” era apontado por Adorno como a es-trutura ideal que permitia o controle nazi-fascista da sociedade.

Theodor Adorno ficou de 1934 a 1946 nos

EUA fugindo da turma do Hitler. Lá participou de pesquisas comandadas pelo “chairman” do mass communication research, Paul Lazarsfeld. Criticou as pesquisas duramente, pois não admitia que os consumidores fossem “reduzidos a material estatístico”.

Mas é preciso reconhecer que mesmo Adorno se deixou influenciar por Lazarsfeld, Robert Merton, Abran Kardiner (1881-1981) e Ralph Linton (1893-1953) – estes dois últimos interessados em aproxi-mar antropologia e psicanálise (era notório o esforço frankfurtiano de se valer das mais diferentes especia-lidades na tentativa de “explicar” a sociedade).

Na interpretação de Putman, Adorno acreditava que “o empresário impunha ao público o produto que a estatística lhe indicava ter maior aceitação, isto é, toda a possibilidade de escolha livre se apagava, pois o consumidor não tinha ao seu alcance senão aquele produto designado como o mais desejado” (1994, p.15).

Ou seja, a padronização anula o espírito crítico e a fantasia.

Adorno fala que, diferentemente das velhas socie-dades agrárias, na sociedade moderna o consumidor tem a “obrigação” de se distrair e relaxar. Com isso, se recria a força de trabalho esgotada durante o alie-nante processo de trabalho.

Mas, ao contrário do que apregoam os apocalípti-cos, Adorno não achava que as massas perderiam a imaginação para sempre. Ele esperava que a situação fosse passageira. Alguns, por conta disso, o conside-ram “elitista”.

Três aspectos resumem a postura de Adorno:

A grande contradição aparece justamente na es-colha por “esperar”, sugerir a possibilidade de que o homem atinja um grau de consciência superior à próprias disputas de classe – esse algo superior é idealismo –, enquanto se analisa a sociedade de um ponto de vista puramente dialético, em que a ação

A defesa da criatividade das massas, esmagadas pe-las estruturas industriais.

Antigamente havia uma cultura popular legítima, agora condenada.

O horror pela centralização do poder segundo um modelo piramidal personificado pelo nazismo.

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lEITURA PARA PRóxIMA AUlA

BRIGGS, Asa; BURKE, Peter. Uma história social da mídia. RJ: Jorge Zahar, 2004.

HOBSBAWN, Eric. História social do jazz. RJ: Paz e Terra, 1990.

TINHORÃO, José Ramos. Música Popular: um tema em de-bate. SP: Ed. 34, 1994.

MORELLI, Rita. Indústria Fonográfica: um estudo antropo-lógico. Campinas: Unicanp, ?

DIAS, Márcia Tosta. Os donos da voz. SP: Boitempo, 2000.

WIGGERHAUS, Rolf. A escola de Frankfurt. RJ: Difel, 2002.

PUTERMAN, Paulo. Indústria cultural: a agonia de um con-ceito. SP: Perspectiva, 1994.

dos homens não pode ser qualificada, já que a pre-dominância de uma outra ideologia é resultado de uma concorrência. Então: infra-estrutura X idéia.

Uma crítica pouco explorada, aponta Puterman, vem do francês Edouard Globot (1858-1935) e talvez aponte para alguns aspectos da relação entre arte e sociedade que não interessaram a Adorno e outros críticos decorrentes do pensamento frankfurtiano.

Globot escreveu, em 1925, “La Barriére et le Nive-au”, obra em que expõe a seguinte tese: as elites são imitadas pelas camadas inferiores, mas aquelas estão sempre alertas para criar barreiras.

O desejo de lucro acaba por baratear instrumen-tos primevamente caros de diferenciação. Logo, para resolver o problema, a elite se vê obrigada a reciclar a barreira.

Um clássico da pop art: obra de Richard Hamilton concluída em 1956. Até o título é pouco convencional: O que exatamente torna os lares de hoje tão diferentes, tão atraentes?

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PROVA bIMESTRAl

É uma prova dissertativa, individual.

Veja que interessantes são os temas que deba-temos: o papel da tecnologia de comunicação no desenvolvimento dos nossos sentidos e a constru-ção do imaginário a partir dos mecanismos de de-senvolvimento, exposição e absorção dos produtos culturais. Basicamente falamos de quem somos, das coisas que escolhemos e acreditamos.

A grande questão é: a indústria cultural aliena e coisifica o indivíduo?

Para responder isso, precisamos entender o pa-pel da ideologia na formação da cultura. Devemos avaliar as circunstâncias históricas nas quais Adorno e Horkheimer viviam e a influência de Freud, Nietzs-che e, principalmente, Marx na visão de mundo que nos foi legada. A perda da “aura” da obra de arte tem vantagens e desvantagens. A música resultante da influência da indústria cultural é “decadente”? A crítica aos produtos culturais, feita pela perspectiva do Adorno, é elitista?

O disco do baterista de jazz Max Roach, aí acima, não é exatamente uma “diversão alienada”. Seu conteúdo político e inconformista é visível desde a capa; Adorno não falou dele. Uns dez anos mais jovem, entrevisto Tony Bennett, cantor que normalmente é tratado como “comercial”. Mas ouça as gravações em duo com o pianista Bill Evans: longe de entretenimento barato.

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SEMIOlOGIA

O tema dominante do segundo bimestre é a se-miologia e o pensamento comunicacional relaciona-do, mesmo que de maneira discreta, ao estruturalis-mo.

Por isso, comecemos com o próprio estruturalis-mo. Michele e Armand Mattelart (2001, p. 86) que o estruturalismo estuda hipóteses da lingüística para outras disciplinas das ciências humanas, como socio-logia, antropologia, psicanálise, etc.

A idéia geral surge a partir de três famosos cursos ministrados em Genebra por Ferdinand de Saussure (1857-1913), entre 1906 e 1911.

Saussure procura descobrir as regras que fazem o sistema de signos produzir sentido. Para ele, a língua é uma instituição social enquanto a palavra é um ato individual. “O signo lingüístico une não uma coisa e uma palavra, mas um conceito e uma imagem acús-tica”.

O plano de Saussure era criar uma ciência que es-tudasse “a vida dos signos no interior da vida social”. Até batizou o projeto de semiologia. Em grego, sê-mion significa signo.

Não viveu o suficiente para organizar os parâ-metros da semiologia. Quem vai dar conta disso é o francês Roland Barthes (1915-1980), autor do fa-moso A Câmara Clara. Em 1964, Barthes publicou um artigo chamado “Elementos da semiologia” na revista Communications.

No texto, o teórico estabelece a seguinte defini-ção: “A semiologia tem por objeto todo o sistema de signos, qualquer que seja sua substância, quais-quer que sejam seus limites: as imagens, os gestos, os sons melódicos, os objetos e os complexos dessas substâncias que encontramos em ritos, protocolos ou espetáculos constituem, se não ‘linguagem’, ao menos sistemas de significação”.

Prestem atenção nisso: neste bimestre, nós vamos procurar “ler” os signos para além de seu significado aparente. Portanto, o conceito de ideologia volta a ser ferramenta direta de análise.

Barthes estabelece quatro dicotomias principais como forma de análise semiológica:

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Língua e palavra

Significante e significado

Sistema e sintagma

Denotação e conotação

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Para o estudo da mídia, é importante prestar atenção nessas duas “pontes”:

Significante-significado e denotação-conotação.

Todo signo tem uma parte perceptível – carac-terizada pela sua superfície – a qual chamamos de “significante”. A outra parte, que vem embutida, chamamos de “significado”.

O lingüista Algirdas-Julien Greimas (1917-1992) adaptou a distinção “denotação-conotação” para “prático-mítico”. Ela nos serve quando procuramos enxergar os fatos que vão além da linguagem pri-meira. Por isso, se relaciona intimamente com o con-ceito de ideologia.

O livro mais importante de Barthes é Mitologias. Nele, o autor “explica como o mito parece apoiar-se na linguagem corrente, de modo a fazer passar por evidentes em si mesmos e naturais valores secundá-rios, parasitários, que caracterizam o que para ele é uma espécie de monstro: a pequena burguesia” (Matellart, p. 90).

Roland Barthes ligou-se ao importante Centro de Estudos das Comunicações de Massa (Cecmas), criado em 1960 pelo sociólogo Georges Friedman (1902-1978). O instituto francês que analisar as rela-ções entre a sociedade global e as comunicações de massa, que se integram funcionalmente a ela. Com o aval do Cecmas, Barthes vai se dedicar a estudar os problemas da sociedade tecnológica, produção, consumo e audiência de massa, usos do lazer.

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lEITURA PARA PRóxIMA AUlALivro do bimestre: PINTO, Milton José. Comunicação e Dis-curso. SP: Hacker Editores, 2002.

BARTHES, Roland. Mitologias. SP: Perspectiva, 1972.

RABAÇA, Carlos Alberto e Barbosa, Gustavo. Dicionário de Comunicação. Rj: Campus, 2001.

MATTELART, Armand e Michelle. História das Teorias da Co-municação. SP: Loyola, 2001.

OUTHWAITE, Willian e BOTTOMORE, Tom (org). Dicionário do Pensamento Social do Século XX. RJ: Jorge Zahar, 1996.

FIORIN, José Luiz. Linguagem e Ideologia. SP: Ática, 2001.

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A Mafalda envolvida em diversos signos bem significativos!

SIGNO

Charles Peirce diz que signo “é tudo aquilo que, sob certos aspectos em alguma medida, substitui al-guma coisa, representando-a para alguém”.

Qualquer estudo em Comunicação passa pela preocupação com o signo. Santo Agostinho falou dele; Swift fez comparativos interessantes: suponha-mos que alguém levasse consigo todas as coisas das quais planejasse falar. A pessoa não usaria palavras, carregaria um saco bem grande nas costas com os objetos de seu repertório. Eu e o professor José, que falamos bastante, por exemplo, morreríamos sufoca-dos pelo pacote.

Jacques Derrida fala o seguinte: “O signo repre-senta o presente em sua ausência, o substitui. Quan-do não podemos tomar ou mostrar a coisa, passa-mos pelo desvio do signo”.

Voltemos ao Saussure. “O elo que une o signifi-cante e o significado é arbitrário, ou antes, porque entendemos por signo o total resultante da associa-ção de um significante e de um significado, pode-mos dizer mais simplesmente: o signo lingüístico é arbitrário”.

Arbitrário, nesse caso, quer dizer que o significado resultante do significante não tem nenhum laço na-tural com a realidade. Não quer dizer que o indivíduo tem arbítrio em relação ao uso dos signos, uma vez que ele está estabelecido em um grupo lingüístico com lógica anterior a sua existência.

Charles Peirce criou algumas tricotomias para arti-cular o estudo do signo. A mais importante é a que divide ícone, índice e símbolo.

Ícone: semelhança ou analogia com seu referente (p. ex. fotografia, desenho, estátua, imagem men-tal).

Índice: refere-se ao objeto por estar realmente afetado por ele (p. ex. fumaça indica fogo, pegadas mostram que alguém passou, pó de giz no chão nos diz que houve aula).

Símbolo: relação com o referente é arbitrária, convencionada (p. ex. cruz, palavras em geral, sinais de trânsito, estrela de Davi).

Nesse esperto anúncio da Palmer Jarvis, de Toronto, para a Budweiser, sabemos que ela é “gelada” (por causa do índice representado pelas gotas), que ela é melhor que outras (o ícone da coroa) e temos certeza de que se trata daquela cerveja, já que está escrito (símbolos) ao lado da garrafa.

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O Dicionário de Comunicação (2001, p. 673) ca-racteriza o signo como uma entidade que:

• Pode tornar-se sensível (ou seja, sua existência in-depende de estar sendo percebido ou utilizado no momento, mas sua percepção é sempre possível).

• Marca, em si, uma ausência determinada para um grupo definido de usuários.

lEITURA PARA PRóxIMA AUlABARTHES, Roland. Mitologias. SP: Perspectiva, 1972.

RABAÇA, Carlos Alberto e Barbosa, Gustavo. Dicionário de Comunicação. Rj: Campus, 2001.

MATTELART, Armand e Michelle. História das Teorias da Comunicação. SP: Loyola, 2001.

OUTHWAITE, Willian e BOTTOMORE, Tom (org). Dicioná-rio do Pensamento Social do Século XX. RJ: Jorge Zahar, 1996.

FIORIN, José Luiz. Linguagem e Ideologia. SP: Ática, 2001.

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RUMOS DO ESTRUTURAlISMO

Karl Marx diz em A Ideologia Alemã que, “em um sistema capitalista, a classe social detentora dos meios de produção material igualmente mantém controle sobre a produção e a difusão das idéias que são as de seu tempo” (Polistchuk).

Aliás, leiamos esse trecho de O Paradigma Con-flitual-Dialético, da Ilana Polistchuk e Aluizio Ramos Trinta:

Por considerar que a cultura de uma sociedade ca-pitalista reflete as normas e os valores da classe social que possui a propriedade dos meios de produção, Karl Marx teria observado, no mundo da Comunicação, a manifestação necessária de formas da consciência social. Diria, certamente, haver aí fenômenos superes-truturais. No que tange à sua condição de existência e à sua função, tais epifenômenos remetiam a um solo histórico, no qual os homens produzem e reprodu-zem. Estamos no domínio da Economia. De um lado, dá-se um nome a uma materialidade que, em si mes-ma e livre de toda significação, faz parte da história dos homens; de outro, são rotuláveis as linguagens e sistemas de sinais em curso e uso nas sociedades humanas. Entramos no campo da Comunicação.

Os leitores de Marx que se seguiram à Esco-la de Frankfurt foram além da crítica à sobrevivência do capitalismo (sistema que resistiu mesmo com os resultados da 2ª Guerra Mundial). Opuseram clara-mente a lógica – que significa ordenação, estabiliza-ção – à dialética – que significa oposição, contraste, instabilidade, passagem de uma ordem lógica à ou-tra. Com o olhar guiado por esse espírito dialético, os intelectuais vão compreender a Comunicação como necessidade intrínseca do capitalismo para a legiti-mação de seus princípios.

A abordagem estruturalista bebe dessa origem teórica, mas se centra “no exame da expressão ideo-lógica embutida nas mensagens midiáticas, tomando

como referência o texto produzido e a fonte emisso-ra” (Polistchuk/Trinta).

Aparelhos Ideológicos do Estado

Louis Althusser (1918-1990) é um dos teóricos mais polêmicos ligados ao estruturalismo. Nos anos 60, virou uma referência na crítica radicalmente mar-xista dos fenômenos sociais e, até mesmo, dos inte-lectuais marxistas.

É dele o conceito de Aparelhos Ideológicos do Es-tado, que, em maior ou menor medida, se incorpo-rou ao vocabulário crítico do século 20.

Declarou guerra à vulgarização do marxismo (o que inclui Sartre e Roger Garaudy), pois enxergou o emprego freqüente da idéia de “alienação” entre os pensadores – coisa que lhe parecia “pré-marxis-ta”, pertencente a uma lógica humanista (uma “ar-madilha”) que não passava de uma desculpa para o mito burguês do indivíduo puro, soberano, isento de determinação. A liberdade não é um problema de consciência, diz Althusser, mas de relações sociais.

Tudo isso vem de uma interpretação que privile-gia os escritos mais maduros de Marx em oposição ao trabalho do “jovem Marx”. A verdadeira ciência das formações sociais se apoiaria em conceitos como estrutura, superestrutura, relações de produção, so-bredeterminação.

O sistema capitalista é uma “totalidade orgânica”: “o indivíduo não é mais sujeito da história do que senhor de suas alianças em matéria de parentesco” (Mattelart). Ele é o lugar de passagem da sociedade historicamente determinada. Por isso, a autonomia é um mito.

Um artigo publicado no começo dos anos 70, em uma revista francesa, apresenta a divisão que ficou célebre. Althusser contrapõe os Aparelhos Repressi-vos do Estado (como exército e polícia), que exercem coerção direta, aos Aparelhos Ideológicos do Estado (como escola, família, igreja, mídia), que garantem e perpetuam o monopólio da violência simbólica. Ou seja, há um mecanismo amplo e profundo pelo qual uma classe no poder exerce influência sobre outra.

Mattelart conta que o estruturalismo, especial-mente quando associado às teses de Althusser, sofre críticas por “conduzir a reduções mecanicistas do funcionamento da sociedade, esse teatro que apare-ce sem sujeitos”. Althusser tendeu a reduzir o apare-lho ideológico Informação a um “sistema monolítico sob o controle de uma totalidade estatal, da qual a sociedade civil estaria excluída. O aparelho é defini-do de uma vez por todas. Esteja ele sob o regime do serviço público ou derive da lógica comercial, por exemplo, pouco importa. A estrutura aparece como congelada, fora do tempo” (Mattelart).

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Dois filmes que contestam explicitamente os Aparelhos Ideológicos do Estado: Hair (1979, de Milos Forman) e Laranja Mecânica (1977, de Stanley Kubrick).

lEITURA PARA PRóxIMA AUlA

ALTHUSSER, Louis. Os aparelhos ideológicos do estado. Graal Editora, 2001.

AlGUMAS bIOGRAFIAS

Antes de abordarmos as relações de poder e a contribuição de Michel Foucault, queria aproveitar para passar alguns tópicos biográficos, retirados de Outwaithe & Bottomore (1996).

Louis Althusser (1918-1990) - Escritor e crítico francês. Estudou na Sourbonne e ocupou numero-sos cargos na Hungria antes de iniciar sua carreira na França, onde foi diretor de Estudos e professor de sociologia dos signos, símbolos e representações co-letivas (62-76) na École Pratique dês Hautes Études, de Paris, e professor de semiologia literária no Col-lége de France. Em 1953 ajudou a financiar a revista Théâtre Populaire e no mesmo ano publicou O Grau Zero da Literatura que, ao lado de Mitologias (1957), o estabeleceu como um teórico pós-sausseriano.

Roland Gérard Barthes (1915-1980) - Escritor e crítico francês. Estudou na Sourbonne e ocupou numerosos cargos na Hungria antes de iniciar sua carreira na França, onde foi diretor de Estudos e pro-fessor de sociologia dos signos, símbolos e represen-

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tações coletivas (62-76) na École Pratique dês Hautes Études, de Paris, e professor de semiologia literária no Collége de France. Em 1953 ajudou a financiar a revista Théâtre Populaire e no mesmo ano publicou O Grau Zero da Literatura que, ao lado de Mitologias (1957), o estabeleceu como um teórico pós-sausse-riano.

Michel Foucault (1926-1984) - Filósofo e histo-riador de idéias francês. Estudou na École Normale Supérieure a partir de 1946 e mais tarde desempe-nhou funções acadêmicas em várias instituições eu-ropéias, culminando com sua eleição para o Collège de France em 1969. Ofereceu novas perspectivas para a análise de uma série de disciplinas, como psi-cologia, psiquiatria, medicina e filosofia, e suas nu-merosas publicações refletem a ampla gama de suas investigações. Estava particularmente interessado no modo como os vários discursos do “pode-saber” – tais como medicina, psiquiatria, penalogia e sexua-lidade – operam sobre o indivíduo. Obras importan-tes: A arqueologia dos saber (1969), As palavras e as coisas (1966), A história da sexualidade (1991), Vigiar e punir (1975).

Então falemos de Foucault

Jogos de verdade

“Demolidor de idéias assentadas, cáustico em seus diagnósticos de nossa sociedade, Foucault pode ser considerado o filósofo dos jogos de verdade pro-dutores de nossa atual diferença. Isto é, de nossa particular maneira de darmos aquelas interpretações que nos constituíram enquanto indivíduos, enquan-to sujeitos. Toda época tem seus modos de produzir verdade. Esta não é algo a ser encontrado, pois que não se aloja em algum lugar, seja no interior das coi-sas mesmas, do homem ou da natureza, podendo então ser aos poucos desvendada à medida que se-guimos nossa trajetória histórica. Tampouco resulta do confronto entre pensamento e realidade repre-sentada” (Araújo, 2000, p. 17).

Não se pode dizer, como a própria Inês Lacerda Araújo aponta, que a obra de Michel Foucault (mor-to pela Aids em 1984) seja decididamente estrutu-ralista. Ele se define como um historiador de idéias, pouco preocupado em assumir uma ou outra iden-tidade acadêmica. Aliás, o camarada é bem popular nos meios intelectuais justamente por conta deste ecletismo. Uns acham Foucault um tanto picareta, outros babam pelo francês como se ele fosse a últi-ma bolacha do pacote.

Mas seu passeio pelo estruturalismo rende uma de suas idéias mais festejadas – a de “repensar” o

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procedimento intelectual e científico. Em As palavras e as coisas, por exemplo, Foucault propõe uma ar-queologia das ciências humanas, “uma história que não é do aperfeiçoamento constante dos conheci-mentos, de seu progresso em direção à objetivida-de, mas antes a de suas condições de possibilidade de configurações que permitiram seu surgimento. Desnuda as epistemes sucessivas e específicas, que definem os sistemas de pensamento na formação da cultura ocidental desde a idade clássica até nossa modernidade” (Mattelart, 1998, p. 96).

Por causa dessa tendência a enxergar a “estru-tura” antes dos resultados, Foucault vai privilegiar conceitos como “governabilidade” e “dispositivo”, ao invés de olhar diretamente para os mecanismos prontos, como faz Althusser com seus Aparelhos Ideológicos e Repressivos do Estado.

O controle social, para o pensador da terra do croissant, pode acontecer de duas formas: através das disciplinas-bloco (feitas de proibições, clausu-ras, hierarquias e rupturas de comunicação) e das disciplinas-mecanismo (“feitas de técnicas de vigi-lância múltiplas e entrecruzadas, de procedimentos flexíveis, funcionais de controle, de dispositivos que exercem a vigilância mediante a interiorização pelo indivíduo de sua exposição constante ao olho do controle”, explicam os Mattelart).

Ou seja, através do conceito de disciplinas-meca-nismo, Foucault acaba substituindo o foco de aten-ção nas relações de poder. Ao invés de pensar nos macro-sujeitos – como o Estado, as classes ou a ide-ologia dominantes –, o filósofo se fia em uma “con-cepção relacional de poder”. O poder não se detém e não se transfere feito uma coisa, diz. Daí vem uma máxima bastante interessante. Não se pode pensar o poder como algo necessariamente ligado a aspectos negativos. Na verdade, o poder produz o real.

A abordagem foucaultiana inspira uma melhor compreensão dos dispositivos de comunicação-poder. Para explicar como a sociedade constrói os mecanismos de vigilância, ele se apropria de uma expressão do filósofo utilitarista Jeremy Bentham (1748-1832). Bentham planejou uma prisão em que todas as celas seriam vigiadas através de um apare-lho, disposto no meio e um pouco acima da carcera-gem de uma construção cilíndrica. Essa geringonça, apelidada de panóptico, permitiria observar os pre-sos sem que eles pudessem ver o vigia.

Foucault diz que a televisão, a partir do século 20, se torna o panóptico invertido. Ela vigia sem ver. A TV é uma “máquina de organização”.

Esse é o panóptico imaginado por Bentham.

lEITURA PARA PRóxIMA AUlA

Sobre panóptico:http://www.monografias.com/trabajos11/jerem/jerem.shtml#car

http://www.intexto.ufrgs.br/n11/a-n11a9.html

ARAÚJO, Inês Lacerda. Foucault e a crítica do sujeito. Ctba: UFPR, 2000.

ERIBON, Didier. Michel Foucault, 1926-1984. SP: Compa-nhia das Letras, 1990.

FOUCAULT, Michel. História da loucura na idade média. SP: Perspectiva, 1978.

, Michel. Eu, Pierre Rivière, que degolei minha mãe, minha irmã e meu irmão... RJ: Graal, 1982.

, Michel. A história da sexualidade (3 volumes).

, Michel. A arqueologia do saber.

, Michel. As palavras e as coisas. SP: Martins Fon-tes, 1992.

, Michel. A ordem do discurso.

, Michel. A microfísica do poder. RJ: Graal, 1982.

, Michel. Nascimento da clínica. RJ: Forense uni-versitária. 1987.

, Michel. Vigiar e punir.

MERQUIOR, José Guilherme. Michel Foucault ou o niilismo de cátedra. RJ: Nova Fronteira, 1985.

OUTHWAITE, William & BOTTOMORE, Tom (editores). Dicionário do pensamento social do século XX. RJ: Jorge Zahar, 1996.

RIBEIRO, Renato Janine (org). Recordar Foucault. SP: Bra-siliense, 1984.

“Sujeito, verdade, poder, saber e ética: em torno destes temas articula-se o pensamento de Foucault. Discursos de verdade, formas de racionalidade, efei-tos de conhecimento e de ciência acabaram por nos ‘dizer’, por nos constituir como sujeitos de desejo e de prazer sexual”, desfecha a pesquisadora Lacerda Araújo, para completar esse nosso resumo semanal.

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ANÁLISE DE DISCURSO

A Semiologia dos Discursos Sociais, que se ocupa da Análise de Discurso, é a evolução do estruturalis-mo. Em geral, o estruturalismo que estudamos até agora desprezava o contexto social e histórico dos discursos, empenhando-se nas estruturas formais da comunicação.

A A.D. procura o melhor de dois mundos: a análise de tradição anglo-americana e a análise à francesa. A primeira tem muitas qualidades pragmáticas, mas seu fundamento na psicosociologia faz acreditar que os sujeitos têm o controle das regras que formam o discurso. Ou seja, a análise anglo-americana pres-supõe que o processo de comunicação funciona a partir da cooperação entre os sujeitos – e estes con-duzem conscientemente a estratégia comunicativa.

Ora, sabemos que as marcas de discurso dizem mais do que pretendem seus articuladores. Tentare-mos propor uma pesquisa que considere as dimen-sões que escapam do controle dos sujeitos e ajudam a formar sua consciência sobre a realidade.

O objeto de trabalho da A.D. são os produtos culturais empíricos criados por eventos comunicacio-nais.

A A.D. procura descrever, explicar e avaliar critica-mente os processos de produção, circulação e con-sumo dos sentidos vinculados àqueles produtos na sociedade.

O estudioso de A.D. é um “detetive sociocultural” que procura pistas materiais que podem ser encon-tradas na superfície dos produtos ou eventos.

Temos três conceitos importantes envolvidos no processo:

Contexto: a mistura da linguagem verbal, imagens e padrões gráficos com a prática sociocultural.Sujeitos: os participantes dessas práticas sociocul-turais.Discurso: ao analisarmos os textos a partir da mistu-ra que chamamos de contexto estamos observando os discursos formados no processo.

Há várias formas, atualmente, de se aplicar a aná-lise de discurso. As variáveis foram reunidas por Mil-ton José PINTO (1999, p. 9):

A pesquisa que vocês vão ler a seguir (Missa Ne-gra para o Monstro do Guaragi) segue um modelo parecido com o proposto por Milton Pinto. Meu tra-balho é um pouco diferente do que estou descre-vendo agora, mas acho que, dessa forma, é um guia mais produtivo pedagogicamente. Pinto propõe uma pesquisa:

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Dependentes ou independentes do contexto;

Explicativas ou críticas;

Que desconfiam da letra do texto e procuram relacioná-la às forças sociais;

Que o moldaram, ou que mantém a análise na superfície, por nela confiarem;

Que interpretam conteúdos ou trabalham ape-nas com marcas formais;

Que usam ou não um conceito de ideologia (marxista ou não) junto ao conceito de discurso;

Que analisam textos isolados ou trabalham com-parativamente;

Que usam técnicas estatísticas ou não como ins-trumento de contextualização;

Que realizam um trabalho prévio de transcrição normativa dos textos em categorias semânticas ou sintáticas padronizadas ou trabalham com as marcas formais da superfície textual tal como ela se apresenta.

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Dependente do contexto;

Crítico no sentido da filosofia marxista, mas tam-bém de avaliação da eficácia no processo comu-nicativo no contexto situacional direto;

Não confia na letra do texto, por isso relaciona a observação às forças sociais que o moldaram;

Não procura interpretar conteúdos;

Usa o conceito de ideologia;

Trabalha comparativamente;

Não usa técnicas estatísticas (mas acho que não fará mal se vocês aproveitarem, se assim parecer proveitoso, um estudo de repetição de expres-sões ou algo parecido);

Trabalha com as marcas formais da superfície textual.

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ViGÉsimaprestação

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lEITURA PARA PRóxIMA AUlA

Como detetives socioculturais, deveremos buscar pistas ou marcas que permitam a contextualização nos seguintes níveis:

Contexto situacional direto (por exemplo: uma turma hipotética de um curso superior qualquer pro-move uma série de disparates contra um professor. Percebendo o erro, o grupo mantém a crítica, mes-mo sob o risco de sofrer conseqüências legais. A crí-tica, para quem a faz, tem caráter hierárquico: serve para enfraquecer a governabilidade do professor e manter, sedutoramente, uma coerção de sabor he-róico).

Contexto institucional (os alunos se colocam num contexto de mobilidade no lugar de fala – quem “paga” tem direito superior à hierarquia institucio-nal, por isso a manutenção da crítica serve como in-versão das regras sociais e pode apontar para uma transformação cultural que atinge, sobretudo, esta universidade).

Contexto sociocultural mais amplo (a evolução do capitalismo e o desenvolvimento das estratégias in-trínsecas à indústria cultural modificam os comporta-mentos-padrão ligados à faixa etária: esse desajuste entre o papel das universidades e o comportamento de sua clientela sugere uma tensão expressa pela quebra das regras tidas como de “bom comporta-mento” ou mesmo “ética”).

O exemplo que dei se apropria de um olhar ligado ao signo como “índice” (como quer Pierce) de socie-dade e o abandona como “ícone” ou “símbolo”.

Nosso amigo PINTO diz: “a análise de discursos não se interessa tanto pelo que o texto diz ou mos-tra, pois não é uma interpretação semântica de con-teúdos, mas sim em como e por que o diz e o mos-tra. Costumo dizer que a ela interessa os modos de dizer” exibidos pelos textos” (p.23).

Aqui está uma pequeníssima bibliografia introdu-tória. Acho que alguns de vocês vão se apaixonar decididamente pela A.D, largar tudo e fugir com a semiologia para Pinhão ou Doutor Ulisses. Para quem imagina que seu futuro projeto de conclusão de curso ou orientação científica têm a ver com se-miologia, é bom começar com livros como esses:

FAUSTO NETO, Antônio (ORG.). O indivíduo e as mí-dias. RJ: Diadorim/COMPÓS, 1996.

MANGUENEAU, D. Os termos-chave para a análise de discurso. Lisboa: Gradiva, 1997.

ORLANDI, E. A linguagem e seu funcionamento. SP: Brasiliense, 1983.

PECHEUX, M. O discurso: estrutura ou acontecimen-to. Campinas: Pon-tes, 1990.

PINTO, Milton José. Comunicação e discurso: intro dução à análise de discursos. SP: Hackers Editores, 1999.

VERÓN, E. A produção do sentido. SP: Cultrix/USP, 1981.

A idéia de beleza está sempre associada de maneira complexa à venda de produtos e idéias na publicidade. Como nessa propaganda da Bianco Shoes, criada pela agência dinamarquesa Grey. A legenda diz: “Nós re-comendamos um par de sapatos muito, muito bonito”. Óculos e feiúra estão associados gratuitamente? Alguém poderia dizer que os feios são defeituosos, nem mesmo enxergam direito, não é mesmo? Logo, pessoas que não se encaixam no padrão de beleza são anormais, deficientes... Mas você também pode explicar de outro jeito: os óculos são assessórios que permitem a representação de feio, ultrapassado. De qualquer modo, na prática da cultura, as duas coisas acabam associadas.

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AS MANChETES:

ViGÉsima-primeira

prestaçãoUM ExEMPlO DE ANÁlISE DO DISCURSO À FRANCESA

Missa Negra para o Monstro do Guaragi

A temática para este trabalho vem de dois cam-pos que tentarei entrelaçar. A proposta inicial é rela-cionar representações sociais e semiologia. Trata-se de uma pesquisa que originalmente foi organizada como requisito da disciplina de “Semiologia dos Dis-cursos Midiáticos”, ministrada pelo doutor Antonio Fausto Neto em 1999 para o Mestrado em Ciências Sociais da UEPG. Embora já antigo, o problema pa-rece ainda vibrante como descrição das práticas de mídia que ocorrem nas cidades brasileiras.

No dia 9 de outubro, dois dos jornais da cidade noticiaram o descobrimento de um corpo infantil na localidade de Roxo Rois, distrito de Guaragi. O crime foi imediatamente relacionado com rituais de magia negra. O suspeito do assassinato, dado como cul-

pado, desapareceu com toda a família. No mesmo dia em que o Jornal da Manhã e o Diário da Manhã estamparam as manchetes sobre o caso, um novo achado: os corpos de um casal estavam em uma vala próxima à estação de trens abandonada. Nos dois dias que se seguiram, outros dois cadáveres ainda seriam descobertos.

A maneira como a imprensa local tratou o assun-to, no período de três edições (9, 10 e 12 de outubro, de sábado a terça-feira¹1) é o objeto da análise. Vere-mos como o Jornal da Manhã, o Diário da Manhã e o Diário dos Campos assumiram papéis que extrapo-lam as competências jornalísticas: o de polícia, justiça e porta-voz da população. Todos os meios de co-municação da cidade, invariavelmente, se valeram de discursos autoritários, por vezes racistas e persecutó-rios, para retratar o caso. Não trato aqui da cober-tura radiofônica, mas não me contenho em relem-brar que o suposto assassino foi apontado por uma emissora como “preto feito o capeta”. Um radialista chegou a propor explicitamente que o acusado fosse morto por outros encarcerados na prisão. “Vamos ver se o Pai das Trevas te ajuda agora!”, desafiou um locutor. Houve até quem, em plena transmissão ao vivo, afirmasse seriamente que o suspeito chocava ovos embaixo do braço.

1 Os jornais diários de Ponta Grossa não circulam na segunda-feira (como foi dia 11). E na quarta não circulariam por causa do feriado do dia 12.

Criança é sacrificada em feitiçaria (Jornal da Manhã, 9/10/99)Criança pode ter sido sacrificada em ritual (Diário da Manhã, 9/10)Festival macabro deixa três mortos (Jornal da Manhã, 10/10)Polícia encontra corpos enterrados em chácara (Diário da Manhã, 10/10)Novas mortes reforçam tese de ritual (Diário dos Campos, 10/10)“Bruxo” pode ter matado outra criança (Jornal da Manhã, 12/10)Matador em série faz sua quarta vítima (Diário da Manhã, 12/10)PM descobre quarto cadáver em Roxo Rois (Diário dos Campos, 12/10).

Entrevistado duas semanas mais tarde por aca-dêmicos do terceiro ano de Comunicação Social da UEPG, o repórter Mário Martins (do Jornal da Manhã) disse que teria sido o responsável pelo apelido ‘Bruxo’ atribuído ao suposto assassino. Martins não acredita que “errou” ao relacionar magia negra ao caso. Ele diz que tem “certeza” que se trata de feitiçaria.

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A convicção do Jornal da Manhã é explícita na primeira manchete alusiva ao caso. “Criança é sacri-ficada em feitiçaria”. O repórter construiu manchete e título da matéria com base nas “evidências” apre-sentadas no texto da chamada: “Sobre a cova havia duas ou três galinhas pretas estranguladas e vestígio de sangue humano” e ainda “explica” ao leitor que “cenas assim são bastante comuns em rituais de ma-gia negra com o sacrifício de crianças”. Até hoje, a perícia criminal não apresentou laudo sobre o tipo de sangue encontrado nos copos. Como que dotado de um saber inquestionável, o JM descreve minúcias de um sacrifício satânico idealizado. Utiliza um re-curso enciclopédico, extrapola a função meramente informativa dos fatos recentes e apresenta ao leitor a solução antecipada dos motivos da morte.

Na chamada, Martins também conta que o sus-peito “é um feiticeiro conhecido pelo apelido de ‘Preto’”. Não se questiona, em nenhum momento, se o suspeito realmente é feiticeiro: a constatação é dada como infalível. O apelido, no entanto, seria obra do “invisível”. “...conhecido pelo apelido de ‘Preto’”. Conhecido por quem? O repórter policial do jornal concorrente, Diário da Manhã, é Luiz Carlos Pimentel, negro e praticante de umbanda. Nem a familiaridade com o preconceito racial e religioso demoveu Pimentel de adotar o mes-mo discurso, embora travestido de partículas con-dicionais. A manchete primeira do DM foi “Criança pode ter sido sacrificada em ritual”. Usou a institui-ção policial para, na chamada, relacionar o crime à religião: “(...) pelos vestígios deixados no local, os in-vestigadores acreditam que ele foi morto em sessão de magia negra”. Pimentel fala em apenas uma gali-nha preta, enquanto imprecisamente o JM descreve “duas ou três”. O suposto apelido (que, de fato, só foi citado pelo JM. Demais veículos de comunica-ção trataram o suspeito como ‘Negão’) foi rechaça-do pelo repórter, ao ser entrevistado por alunos de Jornalismo. “Chamaram ele de Preto só porque os vizinhos eram polacos e polacos chamam todos os

negros de Preto ou Negão. É racismo”. Numa segun-da entrevista, no entanto, Pimentel afirmou que não via maiores problemas. “É uma forma carinhosa, às vezes. Minhas amigas me chamam de Negão”.

A própria exploração midiática da descoberta do corpo infantil levou a polícia e bombeiros a intensifi-car as buscas na região de Guaragi. Foi na manhã se-guinte que a principal fonte de informação de todo o episódio começou a controlar o “sabor” das notícias publicadas. O delegado Noel Muchinski da Mota foi o personagem mais constante durante as edi-ções seguintes. As instituições estabelecidas, como o Instituto Médico Legal e as Polícias Militar e Civil, passam a mediar com mais intensidade a construção das reportagens. A partir da edição de domingo (10), jornais, rádio e televisão se baseiam exclusivamente nas especulações do delegado Muchinski. O JM procura reunir todos os elementos exóticos da trama com uma expressão própria de filmes de terror B, “Festival Macabro”, como se a “chacina” extrapolasse o campo da realidade e conduzisse o leitor a uma espécie de torpor onírico. A chamada de primeira página trata de contrabalancear a forte expressão com um lead que privilegia a voz das ins-tituições: “Soldados do 2o. Grupamento de Bombei-ros, policiais militares e investigadores da 13a. SDP encontraram ontem (9)...” O convite à realidade bu-rocrática e, por isso, supostamente verossímil, refor-ça a couraça de “verdade” oferecida pela manchete. “Festival macabro deixa três mortos” não demonstra nenhuma dúvida de que os crimes estavam relacio-nados. O uso da palavra ‘macabro’ também legitima outra “verdade” – todos teriam sido vítimas de ses-sões de magia negra. A utilização do recurso cinematográfico permite ao redator ainda descrever os cadáveres (“em adian-tado estado de putrefação”) e a movimentada ação dos policiais (“Essa possibilidade ficou mais forte com o arrombamento da porta de uma das repar-tições da estação em desuso, onde foram encontra-das, segundo definiram os policiais, ‘oferendas ao demônio’”).

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Na mesma chamada, a voz da instituição é invo-cada novamente, desta vez com o uso arbitrário de uma estatística: “O Instituto de Medicina Legal divul-gou informações de que existe 90% de chances de o corpo encontrado neste mesmo local, sexta-feira à tarde, ser do menino Daniel Vaz, 9”. A expressão es-tatística é retirada do campo da informalidade para reforçar, com status de posição oficial, uma informa-ção que se sugeria mais “desejada” do que “com-provada” pelos meios de comunicação.

A capa do JM do dia 10 mostra duas fotos: uma vertical, cobrindo três colunas do standart até o li-mite do meio da página, onde vemos um bombeiro cavando um buraco; a outra, também vertical, mas pouco mais larga que uma coluna, retrata uma es-pécie de estante improvisada com tijolos e tábuas, alguns copos e garrafas. A “relação por contigüida-de”, como quer Barthés, é óbvia: o cadáver prestes a ser desenterrado pelo soldado teria sido vítima de alguma prática relacionada ao “altar”.

O Diário da Manhã do sábado utilizou o mesmo recurso gráfico, embora as fotos publicadas sejam horizontais. Na fotografia maior, o soldado começa a calçar as luvas, com os pés sobre a cova onde

vemos um pacote preto. Lá, se sugere, estão Cláudio e Erothides Kovalkevicz. Na foto menor (ou “detalhe”, como se diz no jargão jornalístico), dois copos com o suposto sangue e pedaços de cigarro. A relação por contigüidade entre as imagens, mais uma vez, é o que determina a hipótese do jornal sobre a cau-sa das mortes, já que a manchete diz simplesmente “Polícia encontra corpos enterrados em chácara”. Li-teralmente, a “obvter dicta aparentemente inócua, as palavras ditas casualmente que entregam todo o jogo”1 está na “cabeça” sobre a manchete: TERROR EM GUARAGI. Expressão mais uma vez resgatada do campo dramático do cinema ou da literatura.

A chamada do DM, no entanto, é direta: “O ca-seiro Valdemar Rodrigues dos Santos, empregado do casal Cláudio e Erotildes, é o principal suspeito da morte dos dois. Ontem de manhã, a polícia encon-trou os corpos enterrados na chácara e ainda mais vestígios de magia negra na casa, como copos con-tendo sangue (detalhe), galinhas degoladas, charu-tos e até um altar improvisado. O principal suspeito está foragido”.

O DM também não tem dúvidas quanto à exis-tência de rituais, já que, definitivamente, descreve o aparato fotografado como “altar improvisado”. Cha-ma Valdemar de suspeito, mas também de foragido. Ou seja, não existe outra hipótese que não a da fuga para explicar o sumiço do acusado.

1 Wolfe descreve logo no início de seu livro A Palavra Pintada seu próprio sobressalto com a crítica de arte feita por Hilton Kramer, nas páginas do New York Times de 28/04/72. Eis a reprodução da crítica: “O realismo não carece de adeptos, mas carece, visivelmente, de uma teoria convincente. E dada a natureza do nosso intercâmbio intelectual com as obras de arte, carecer de uma teoria convincente é carecer de algo crucial - o meio pelo qual a nossa experiência de obras individuais se soma à nossa compreensão dos valores que elas simbolizam”. O livro tenta mostrar a ascendência da crítica sobre a arte do século XX. Citei aqui pela curiosidade e teor semiológico.

Ao entrar para a cobertura, o Diário dos Campos apresenta a manchete “Novas mortes reforçam tese de ritual”. Não há qualquer pista do autor da tal “tese” de que havia ritual, embora implicitamente o jornal tentasse mostrar um consenso entre polícia, população do Guaragi e, especialmente, imprensa. O dado geográfico, para o DC, relaciona as mortes

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do casal com a da criança, haja vista o subtítulo: Ou-tros dois corpos foram encontrados a poucos metros de onde foi achado o cadáver de uma criança na sexta-feira.

Na chamada de primeira página, DC valoriza a participação dos filhos do casal assassinado. Eles teriam encontrado os corpos dos pais. Apenas nas últimas frases da chamada há referências sobre o teor da manchete: “Ele está foragido. Junto com as coisas de Santos a polícia encontrou copos com san-gue e indícios de que ele praticava rituais satânicos”. Mais uma vez, o suspeito é tratado como culpado confesso, ele estaria “foragido”. O redator diz que a polícia encontrou “indícios” de satanismo junto com as “coisas” de “Valdemar dos Santos”. Não se cogita que tais “indícios” poderiam significar outra prática espiritualista. Sem dizer abertamente, a chamada in-duz à conclusão que qualquer ritual satânico é ligado a assassinatos.

Ao ser entrevistada por estudantes de Jornalismo, a jornalista Maria Gizele da Silva, autora das matérias sobre o caso no DC, criticou os concorrentes quanto ao tratamento à questão racial e religiosa.

Como não há publicações locais na segunda-feira, os veículos tiveram que recuperar o principal acontecimento de domingo – a descoberta do corpo de Júnior, com um bilhete endereçado ao delega-do Muchinski – na edição de terça, quando a polícia chegou finalmente à família do suposto assassino.

No dia 12, o JM usa pela primeira vez em suas manchetes uma expressão condicional. Uma asser-tiva, no entanto, esconde outra afirmação convicta. “‘Bruxo’ pode ter matado outra criança” vem segui-do da linha de apoio: Toda a Polícia da cidade caça Valdemar Soares dos Santos, o “bruxo” de Guaragi. No domingo mais um corpo foi encontrado.

Se o redator alimenta desconfianças sobre a auto-ria da morte de Júnior, nesse momento, não duvida da magia negra como promotora principal nem da li-gação de “Valdemar” com a bruxaria. O recurso das aspas tenta indicar apenas que a expressão “Bruxo” é um apelido, uma preocupação estilística. A cha-mada para a matéria repete as fórmulas de literatura ou cinema de terror, sem deixar de lado os clichês da linguagem jornalística policial. “(...) O menino foi morto com requintes de crueldade. No corpo foram encontrados enormes cortes na barriga, tórax, axila esquerdo e virilha. Os policiais militares disseram que a vítima estava com uma corda no pescoço. Júnior pode ser outra vítima de Valdemar”.

A foto principal da capa mostra um homem com capa de chuva apontando para peças que são identi-ficadas pela legenda como “indícios de acampamen-to”. A personagem não identificada, em pé ao meio de árvores e outras plantas, pode ser um policial. Na foto interposta, uma reprodução da imagem em ví-deo do suspeito. “Valdemar” já havia prestado de-poimento à polícia na época em que se investigava o desaparecimento do casal Kovalkevicz. A entrevista foi gravada. A legenda diz: “No encarte, o ‘bruxo’ Valdemar Soares dos Santos, que está sendo procu-rado pela Polícia”. Não há informações na legenda que associem “Valdemar” ao acampamento, mas novamente temos aí a contigüidade barthesiana.

O Diário da Manhã assumiu o julgamento na edi-ção de 12 de outubro. “Matador em série faz sua quarta vítima”. Depois da “cabeça” TERROR EM GUARAGI, seguia a linha de apoio: Rapaz de 17 anos aparece morto no Cará-Cará, e crime tem li-gação com as mortes em Roxo Roiz. Desta vez, o periódico apelou para uma personagem mítica con-temporânea, celebrizada especialmente pela mídia norte-americana, o serial killer. Mantém (porém de forma atenuada) o clima de horror sobrenatural com a “cabeça”, mas investe mais na quantidade de mor-tes do que na sua qualidade. A linha de apoio julga que o corpo encontrado tem relação com os demais cadáveres.

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A chamada diz convictamente que o adolescen-te “foi morto a facadas e ainda teve uma corda en-rolada no pescoço”. Em seguida, trata do bilhete “esquecido” na chamada do Jornal da Manhã. “Ao lado dele, o assassino deixou um bilhete ao delega-do Noel Muchinski, explicando que matou o menor para fazer justiça com as próprias mãos1” . Ou seja, os “indícios” utilizados anteriormente pela impren-sa da cidade para legitimar suas hipóteses estavam agora sendo desconsiderados, afinal a manchete contradizia as pistas. O final da chamada descreve que “(...) Ontem, equipes de policiais iniciaram uma caçada a ‘Negão’ naquela região”. O autor do texto de capa, conforme entrevista concedida aos alunos, é o repórter Pimentel, que criticou a repetição da al-cunha “racista” nos outros jornais.

O Diário dos Campos não estampou em manche-te a descoberta do cadáver de Júnior. Em chamada simples na coluna da extrema esquerda da primeira página, o título indicava “PM descobre quarto cadá-ver em Roxo Róis”. Na verdade, a relação geográfica denuncia a fragilidade da tentativa de “isenção”. O cadáver fora encontrado no bairro Cará-Cará, mais próximo à área urbana de Ponta Grossa, mas o jor-nal prefere elaborar uma formulação que relacione o corpo com as demais mortes.

1 O conteúdo do bilhete: “Olá delegado da décima terceira (13a). O senhor não feiz justiça sobre o casal desaparecido mas eu fiz. Como eles não quiseram me falar aonde estava o casal de velhos eu resolvi fazer justiça com as minhas mão. Não pense que eu sou louco pois só gosta da justiça”.

Na matéria do Diário da Manhã do dia 9, na pri-meira vez que abordava o assunto, havia um “olho” com a expressão MAGIA NEGRA, em caixa-alta, respeitando o padrão gráfico do jornal. O título da matéria: Polícia desenterra corpo em Guaragi.

A seguir, trechos da reportagem publicada na pá-gina 18, segundo caderno, e assinada por Luiz Carlos Pimentel.

“(...) Àquela altura, tinha-se como certo de que seria encontrado no lugar do corpo de Claúdio e Erotildes. Com a descoberta dos pertences do casal na casa de Valdemar, não restavam mais dúvidas”.

ViGÉsima-seGUNDa

prestação

“O encontro de uma galinha preta morta per-to da cova levou à conclusão de que o menino foi morto em ritual de magia negra. A possibilidade foi confirmada por depoimento de moradores vizinhos a Valdemar Soares dos Santos, que declararam aos policiais que freqüentemente havia sessões de ma-cumba na casa do empregado dos Kovalkevski que, pelo que se descobriu, podem ter sido vitimados também da mesma forma”.

“Agora, retomarão a tarefa, pois os indícios levam a uma única conclusão: Cláudio e Erotildes Kovalke-vski foram assassinados”.

O Jornal da Manhã do dia 9 foi explícito no título principal da página policial: A linha de apoio: Sobre a cova rasa havia galinhas pretas estranguladas. Des-coberta choca Guaragi.

Vejamos trechos da matéria assinada por Mário Martins.

“(...) Algumas pessoas que acompanhavam o traba-lho de resgate e que viram o corpo, o reconheceram como sendo dele”.

“Ela, inclusive, não descarta a possibilidade de Cláu-dio e Erotildes terem sido assassinados por um anda-rilho identificado por Valdemar Soares dos Santos, conhecido por ‘Preto’”.

“As suspeitas de Liziane ficaram mais reforçadas com os últimos acontecimentos”.

“Sobre a cova havia duas ou três galinhas pretas estranguladas e vestígio de sangue humano. Cenas macabras são comuns em rituais de magia negra com sacrifício de crianças”.

No dia 10, a descoberta dos corpos do casal de chacreiros, reforçou as teses satanistas da impren-sa local, especialmente do Jornal da Manhã. Mário Martins escreveu, na matéria “Encontrados outros dois corpos em Guaragi” (linha de apoio: Bombei-ros e policiais localizaram na manhã de sábado os corpos do casal Cláudio e Erotildes), frases como as seguintes:

“Os dois, a exemplo do menino encontrado morto no mesmo local na tarde de sexta-feira (8), teriam sido sacrificados em um ritual de magia negra. Essa possibilidade ficou mais forte com arrombamento da porta de uma das repartições desta estação em de-suso, onde foram encontrados, segundo definiram os policiais, “oferendas ao demônio”. Havia copo com sangue humano, charutos, cigarros e alimentos espalhados em pequeno altar”.

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“‘É horrendo tudo isso’, definiu o delegado César Beresa. Da mesma forma manifestou-se o delegado-adjunto Noel Muchinski da Mota, que vinha inves-tigando o desaparecimento do casal. ‘É tudo muito macabro’, abismava-se”.

“O ‘Monstro do Guaragi’, como está sendo cha-mado o feiticeiro Valdemar Soares dos Santos, está com a prisão preventiva decretada. Oriundo do Mato Grosso do Sul...”

“A todo momento tentava causar algum tipo de dificuldades, alegando que naquele local tinha muito animal peçonhento”.

Com o título Polícia encontra casal desaparecido Luís Carlos Pimentel, do Diário da Manhã, abordou os temas do dia 10 da forma que segue:

“As evidências de ritos de magia negra confir-maram-se ontem com a descoberta de dois copos com sangue, penas de galinha preta e sangue em uma panela comum, nos cômodos da moradia de Valdemar Dias dos Santos, prédio este em estado de abandono, que pertence à Rede Ferroviária, mas é ocupado por Valdemar e sua família, desaparecidos desde a última quarta-feira”.

“(...) tanto o casal pode ter descoberto os ritos macabros de Valdemar e com ele brigado, receben-do então a vingança. O menino, não reconhecido como Daniel Vaz, de 9 anos, pelos seus pais, teria sido testemunha e morto por isso. O contrário tam-bém pode ter ocorrido. O menino assassinado por Valdemar, para a execução de suas bruxarias; o casal teria desconfiado e contado que comunicaria à polí-cia, o que motivou suas mortes”.

“Não há dúvidas de que o corpo encontrado na sexta-feira seja de uma dessas crianças”.

“O sangue em dois copos numa espécie de altar, im-provisado e sem as tradicionais imagens satânicas, comprovam as práticas de ‘missa negra’. O garoto, ou pelo menos o seu sangue, serviu de oferta à en-tidade cultuada por Valdemar. O casal teria também sido apresentado como sacrifício?”

“A resposta poderá ser dada no final das inves-tigações, com a prisão de Valdemar. O sangue nos copos, se humano ou de ave, exames de laboratório dirão. Há outros cadáveres ocultados nas cercanias da Chácara Maravilha, em Roxo Rois?”

Na edição do JM de 12/10, o repórter Mário Mar-tins continua defendendo a hipótese de bruxaria na matéria Sobrinho de feiticeiro é assassinado, com o subtítulo: Júnior Aparecido de Souza, 14, foi morto com requintes de crueldade. Ao lado do corpo a Po-lícia encontrou um bilhete.

“O sobrinho do ‘bruxo’ Valdemar Soares dos San-tos, 23, suspeito de ter sacrificado durante um ritual de magia negra o casal (...), além de um garoto que pode ser Daniel Rodrigues Vaz, 9, está morto”.

“Um bilhete, endereçado ao delegado Noel Mu-chinski da Mota, encontrado ao lado do corpo causa intriga à Polícia e insinua que o assassinato de Júnior foi praticado por alguém ligado à família do casal”.

“Noel, referindo-se ao teor do bilhete, disse que ‘as investigações foram feitas dentro dos padrões exigi-dos pela Justiça’”.

“Subentende-se por esse bilhete que Júnior foi assassinado antes de a Polícia e bombeiros terem encontrado os corpos do menino e do casal. O justi-ceiro, nesse caso, já sabia sobre os crimes e da loca-lização dos corpos e por razões óbvias preferiu não comunicar os organismos policiais”.

“(...) O bilhete pode perfeitamente ter sido escrito por Júnior a mando de Valdemar, que depois o as-sassinou”.

“A morte de Júnior pode também se tratar de uma queima de arquivo. Ele teria participado de to-dos os rituais satânicos quando foram mortos o casal e o garoto. ‘O próprio Valdemar pode tê-lo apaga-do’, comentou um policial”.

“Na estação abandonada ontem foram encontra-das uma faca feita artesanalmente e um papel com invocações ao demônio”.

“Também está desaparecido Paulo Mereht, 9, ou-tro interno dessa mesma instituição. Valdemar pode também ter matado essa criança”.

O Diário dos Campos abriu a página policial do Dia das Crianças com o título Mais uma morte levanta suspeitas. O subtítulo: Quarto corpo foi encontrado na manhã de domingo e sugeria ser o do autor dos

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crimes. A repórter Maria Gizele da Silva ainda redi-giu um texto, cercado em forma de “box”, a partir de entrevista com o criminalista Edson Stadler, tido como “especialista” em rituais satânicos. A matéria principal traz uma foto que mostra um corpo enro-lado em panos entre eucaliptos. O “box” inclui uma foto que retrata uma panela com penas e cascas de ovos envolta. Na legenda: Penas pretas de galinha guardadas na casa do suspeito que confessou à polí-cia manter rituais de feitiçaria.

“As investigações continuam, segundo Muchinski, até que se constate que o grupo não está na região. ‘Nós trabalhamos com a hipótese de que ele esteja perto porque a mulher está grávida e não pode sair para qualquer lugar’”.

“Segundo Muchinski, as mortes podem não ter sido provocadas em um ritual satânico. A polícia trabalha com a hipótese do casal ter sido liquidado depois do assalto praticado contra a residência. O fato da caminhonete não ter funcionado na possível fuga do suspeito teria forçado o chacareiro a matar o casal”. (obs. trata-se do último parágrafo da matéria principal).

“A morte de quatro pessoas causadas em supos-to ritual satânico é vista com cautela pelo advogado Edson Stadler, que pesquisa o satanismo há cerca de um ano”.

“Stadler acredita a princípio que o principal sus-peito das mortes, Valdemar dos Santos, seja um psi-copata”.

“Em depoimento à delegacia, Santos admitiu ser adepto da feitiçaria”.

“Os métodos são praticados pela ala esquerda do espiritismo”.

“O advogado, que atuou no caso Evandro, de Guaratuba, no qual uma criança de sete anos foi executada, teme pela segurança no município. ‘A situação é de risco’, resume.”

A verdade dos indícios

As principais marcas do discurso antecipatório da culpa de “Valdemar” são os indícios e conclusões oferecidos pelos personagens envolvidos na inves-tigação. O DM utiliza com freqüência expressões como “tinha como certo” e “não restavam mais dú-vidas”. Relaciona o “encontro de uma galinha preta” com ritual (“levou à conclusão”). “A possibilidade foi confirmada pelos moradores” e “pelo que se desco-briu”, além do clichê “os indícios levam a uma única conclusão” fornecem estratégias de convencimento. As expressões também ajudam a dar crédito a uma investigação abstrata, não retratada, mas auto pro-clamada original.

Os indícios materiais são estrategicamente valo-rizados. Além das penas de galinhas, armação que sugere altar e a “confissão” de práticas religiosas de-finidas como “feitiçaria”, os jornais (notadamente o JM) incluíram no repertório do caso a descoberta de uma faca de madeira e um papel com “invocações ao demônio” sem, contudo, divulgar tal prece ou explicá-la1. Subliminarmente, os jornais relacionam a raça do suspeito com a prática de rituais espiritua-listas de raízes africanas. Até a entrevista com o ad-vogado Stadler, os jornalistas não se preocupavam em delimitar o tipo de atividade religiosa que estaria vinculada ao demônio. Sem rodeios, os jornais iden-tificaram a seita de Valdemar como “macumba” e, sucessivamente, com sacrifício humano. A própria matéria relativa à entrevista mais reforçou do que es-clareceu os símbolos desenhados pela imprensa. Diz que “teme pelo município”. Considera a hipótese de que “Valdemar” seja um “psicopata”. A entrevista aconteceu como reflexo, enfim, do declínio da tese de satanismo. A elaboração do texto e sua diagra-mação evitam afastar totalmente a mitologia. O decréscimo na intensidade do tom, digamos assim, foi compensado com a insistência na idéia de “as-sassinato em série”. Como se trocássemos do canal onde passava “Coração Satânico” para o que exibia “Psicose” ou “Assassinos por Natureza”.

1 Na verdade, se tratava de um papel de caderno, dobrado, onde estavam escritos sinônimos populares para “demônio”: cão, capeta, satanás, etc.

FONTES, hIPóTESES, IMAGEM E CONTRA-DIçõES NO “CASO GUARAGI”

Fontes

As informações publicadas muitas vezes são atri-buídas a fontes sem identidade. “Algumas pessoas que acompanham...”, “...como está sendo chama-do...”, “segundo os investigadores” e outras. Mas não se disfarça a eleição do “detetive” do romance policial engendrado pelas matérias: o delegado Mu-chinski, que ganhou até a foto principal da página interna do JM de 12/10. É dele que saem as infor-mações que norteiam as reportagens. “É tudo muito macabro”, diz (ou melhor, “abisma-se”) o policial, como que justificando oficialmente o clima de terror

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proposto pelos jornais. Muchinski recebe o bilhete, explica o procedimento da polícia, desmente as hi-póteses que ele mesmo difundiu. A rotina descrita do delegado acaba fazendo dele o super-herói da história: “Acontece muito, comentou o delegado, que procura familiares de crianças desaparecidas com sua equipe de investigação e Capturas, ao mes-mo tempo que corre para pegar Valdemar”.

As hipóteses

A antecipação do discurso oficial foi assumida a partir da edição de domingo. O JM procura definir a situação a partir da hipótese do sacrifício humano. O DM tenta explorar “todas as alternativas”. O segun-do parágrafo reproduzido da edição do dia 10, no início desse capítulo, ilustra a confusão de sentidos construída pelo jornal. No mesmo trecho, o veículo desmente os próprios pais da criança desaparecida: “O menino, não reconhecido como Daniel Vaz, 9 anos, pelos seus pais...”

O “clima” de suspense é expresso por pergun-tas-chave nas conclusões das matérias. Elas servem para reforçar a proposta dos jornais sobre os crimes, como se o leitor estivesse diante de uma farsa estilís-tica cujo final era obviamente a resposta positiva às questões. “O casal também teria sido apresentado como sacrifício?” ou “Há outros cadáveres oculta-dos nas cercanias da Chácara Maravilha, em Roxo Rois?”. Antecipa-se até o momento exato em que a novela terminará: “A resposta poderá ser dada no final das investigações, com a prisão de Valdemar”.

A imagem

O suspeito de cometer cinco crimes em Ponta Grossa teve seu perfil exposto pelas seguintes ca-racterísticas: Negro (“Negão”, “Preto”), forasteiro (“Oriundo do Mato Grosso do Sul...”), pobre (“an-darilho”, “chacareiro”, “empregado”), ritualista (“feiticeiro”, “bruxo”, “macumba”), maquiavélico (“queima de arquivo”, “escrito por Júnior a mando de Valdemar”, “pode tê-lo apagado”), anti-natural (“monstro”) e culpado (“foragido”).

Trocando em miúdos, é possível se afirmar que Valdemar ou Osmir foi condenado pela imprensa a partir de “provas” que incluíam sua raça, procedên-cia, classe social, religião, personalidade, aparência e ausência.

As contradições

Podemos ainda coletar algumas das principais contradições publicadas pelos jornais de Ponta Gros-sa e sucursais durante o período em que a imprensa explorou os “assassinatos em série” no distrito do Guaragi.

Nome: O principal suspeito do caso Roxo Rois foi “batizado” pela imprensa ponta-grossense de Val-demar Soares dos Santos (JM, 9/10 e DM, 9/10); Val-demar Rodrigues dos Santos (DM, 10/10); Valdemar Dias dos Santos (DM, 10/10)

Valdemar dos Santos (O Estado do Paraná, 12/10); Osmir Aparecido da Cruz (JM, DM, DC, Gazeta do Povo,14/10).

Idade: A idade do principal personagem do caso variou entre 19 anos (OEP, 12/10),

22 anos (JM, DM, Gazeta do Povo, Folha do Paraná), 23 anos (JM, DM),

36 anos e 46 anos (DC, 14/10)

Apelidos: Osmir ou Valdemar foi chamado, nos dias em que o caso transcorreu na mídia, de

Preto (JM, 9/10), Bruxo, Monstro do Guaragi e Fei-ticeiro (JM), Negão (DC, 10/10) e Serial killer (DM, 14/10).

Casal: O casal Cláudio e Erothides Kovalkevicz (GP, 14/10) também foi citado, durante os três dias, como Claúdio e Erotildes Kovalkevski (DM, 9/10), Cláudio Miguel e Erotilde Kowalkewiski (JM, 9/10) e família Kavalkievicz (DC, 12/10).

Parentes: Pablo e Júnior foram tratados como “sobrinhos” de Valdemar (ou Osmir) pelo JM, 9/10. Eram “primos”, segundo o DC (10/10). Para o DM (10/10), a família do suspeito era composta pela “mulher, filhos menores e um primo adulto”. Segun-do a polícia, citada por DC, GP e Folha do Paraná, Pablo tem 14 e Júnior tinha 17 anos. JM diz que Jú-nior tinha 14 quando foi morto.

Enfim

A escolha do assunto para a pesquisa que apre-sento a vossas senhorias é quase aleatória. Quase, porque o tema é exótico o suficiente para ser ines-quecível, mas as estratégias de linguagens, os des-cuidos com informações e a extrapolação das com-petências jornalísticas são elementos comuns todos os dias na imprensa, não só de Ponta Grossa.

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Não se trata, quero reafirmar, de condenar as pes-soas que produziram essas matérias, mas tentar mostrar ao leitor que, mesmo quando se esforça, o jornalista está sujeito a muito mais que suas próprias limitações.

Os formatos de jornalismo repetidos à exaustão são precários para cumprir sua função de informar. Talvez nunca chegaremos a um modelo perfeito, mas certamente podemos evitar ou, pelo menos, repen-sar o proceder comunicacional. Além de aprender a “ler” os jornais com mais criticidade. Por isso que a formação universitária não pode ser desprezada – se ela tem falhas, e as tem certamente, devemos promover sua sofisticação, lutar para que se torne a referência de bons profissionais. Ou estaremos a mercê de pretensiosos idiotas referenciais. Tanto no jornalismo quanto na publicidade.

BERGER, Peter e LUCKMANN, Thomas. A construção so-cial da realidade. RJ: Vozes, 1976.

BOUFLEUER, José Pedro. Pedagogia da Ação Comunicati-va: uma leitura de Habermas. Ijuí: UNIJUÍ, 1997.

FAUSTO NETO, Antônio. Mortes em derrapagens: os casos Corona e Cazuza no discurso da comunicação de massas. RJ: Rio Fundo, 1989.

, Antônio. O corpo falado: a doença e morte de Tancredo Neves nas revistas semanais brasileiras. BH: Fu-marce/PucMG, 1989.

, Antônio. A deflagração do sentido: estratégias de produção e de captura da recepção. In: Revista Textos de Comunicação, n. 11. FACOM/UFBA. Salvador, 1992.

, Antônio. A sentença dos mídias: o discurso an-tecipatório do impeachment de Collor. In: Comunicação, Política e Cultura. RJ: Fumarce/PucMG, 1994.

FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas: uma arque-ologia das ciências humanas. São Paulo: Martins Fontes, 1981.

GOLDMAN, Lucien. A criação cultural na sociedade mo-derna. Lisboa: Presença, 1972.

GRAMSCI, Antônio. Os intelectuais e a organização da cultura. SP: Civilização Brasileira (?).

HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural da esfera pú-blica: investigação quanto a uma categoria da sociedade burguesa. RJ: Tempo Brasileiro, 1984.

, Jürgen. Teoría de la acción comunicativa. Vol. 1 e 2. Barcelona: Península, 1987.

HEIDEGGER, Martin. Sobre o humanismo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, s.d.

SNOW, C. P.. The two cultures. Londres: Cambridge Univ. Press, 1993.

WOLFE, Tom. A palavra pintada. Poa: L&PM, 1987.

lEITURA PARA PRóxIMA AUlA

Aqui temos obra do artista Bernard BUFFET: Mulher com banheira (1947). Pintura a óleo (209 x 109 cm), de coleção particular. Arrisca uma análise de discurso?

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prestação Estamos na ÚLTIMA parte do semestre.

E então falaremos sobre o que parece acontecer exatamente agora. Exatamente agora algum teórico diz que vivemos na pós-modernidade. Para outro, isso é bobagem, pois estaríamos apenas em outra fase da modernidade. Alguns dizem que é uma so-ciedade pós-moderna. Tem os que chamam de pós-industrialismo. Os que acreditam que o fim do mun-do está perto. E os vizinhos do Osmir.

Nós já aprendemos que confiar em jornal é acre-ditar no mundo não-vivido como se fosse mundo de fato. Mas tudo bem. Aceitemos os exemplos da im-prensa.

A verdade é que a sociedade contemporânea é marcada pela influência da tecnologia nas relações pessoais, sociais, políticas, sociais.

É caracterizada pelos contrastes entre supersti-ção e fé na ciência. Veja, depois da roupa térmica, carros inteligentes e outros quiprocós, encontramos mais pérolas do mundo assombrado - uma bem ca-racterística da tradição secular de certos ambientes, mesmo quando afetados pela linguagem contempo-rânea:

20.01.2006

PARENTES PROÍbEM INDIANO ‘FANTASMA’ DE ENTRAR EM CASA

BBC, Londres

Os parentes de Raju Raghuvanshi, do vilarejo de Katra, em Madya Pradesh, proibiram o indiano

de entrar em casa, acusando-o de ser um fantasma que voltou para assombrá-los.

Os primos dizem que, para eles, Raghuvanshi ha-via morrido depois de adoecer na cadeia e ser levado para um hospital.

A família chegou a realizar cerimônias religiosas fúnebres, para que ao espírito de Raghuvanshi – que não tem irmãos e cujos pais já morreram – pudesse descansar em paz.

Quando se recuperou, foi solto e voltou para casa, Raghuvanshi foi recebido aos gritos de “fantasma” e as pessoas na vizinhança até trancaram suas casas.

Pés virados

Raghuvanshi tentou argumentar que não era po-dia ser um fantasma, pois seus pés estavam virados para a frente.

Na crença local, pés virados para trás, como os do curupira no folclore brasileiro, são o sinal das assom-brações.

Os primos pediram a Raghuvanshi que fosse em-bora, dizendo que, como tinham feito todas as rezas necessárias, não era justo que fossem “assombra-dos”.

Raghuvanshi está morando em um vilarejo vizinho e está processando seus primos por difamação.

“Tenho de provar que estou vivo, mas eles vão ter de ser punidos”, disse à BBC.

O advogado de Raghuvanshi, Maonhar Soni, disse que os parantes podem estar se recusando a aceitá-lo de volta para ficar com as suas terras.

E outra em total sintonia com o ritmo consumista da indústria cultural, fundindo sagrado com comes-tível:

13/02/2006 - 17h00

NORTE-AMERICANA ENCONTRA “IMAGEM DA VIRGEM” EM bATATA FRITA

Da Redação

Biscoitos, pães, pastéis de feira, azeitonas em con-serva, bombons. Elas estão em qualquer lugar: cui-dado com o que você come... Você pode ingerir, por engano, uma imagem religiosa, quase sagrada.

Não entendeu?

Você vai achar que já leu isto antes, mas esta no-tícia é de hoje mesmo. A norte-americana Elizabeth Gould afirmou ter encontrado uma imagem da Vir-gem Maria em uma batata frita encontrada no lan-che que lhe serviram durante uma viagem de avião.

Elizabeth disse que se sentiu surpresa ao comer as batatinhas fritas que lhe deram em um vôo da companhia aérea Jet Blue de Nova York. A batati-nha, da marca Terra Blues, teria uma silhueta similar à imagem popular da Virgem Maria.

A norte-americana guardou a batata em papel alumínio dentro de uma caixinha de metal e disse “não saber” se planeja vendê-la. Relembrar é viver:

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uma outra norte-americana da Flórida leiloou, em 2004, um sanduíche de queijo com a “imagem da Virgem” no pão, por módicos US$ 28 mil.

Fonte: AFP

Aliás, o sagrado e o profano, o infinito de amor espartano e o capitalismo costumam se abraçar no mundo de agora-agora. No cotidiano, muitas religi-ões e religiosos parecem ter se livrado da culpa e as-sumido o consumo e a linguagem do marketing para vender a fé ou se apropriar dela para vender ainda outras coisas. Se vocês acham que colocar gravatas em alunas de Turismo é difícil, olha o email que o professor Marcelo Peruzzo (http://www.professorperu-zzo.com.br / [email protected]) mandou para sua lista de contatos – ele comenta seu último livro (até escolhi uma letra mais apostólica para reprodu-zir a mensagem!).

Caro(a) Amigo(a),

Após o lançamento do livro “Jesus de Gravata” na semana passada, estou disponibilizando o mesmo para compra através deste e-mail, em uma ação di-ferenciada aos meus amigos.

O livro com 106 páginas, demonstra as 10 prin-cipais características pessoais de Jesus Cristo (Amor, Carisma, Liderança, Serenidade, Revolucionário, Ver-dade, Fé, Sabedoria, Humildade e Comunicação), que aplicadas atualmente, podem levar o profissio-nal ao sucesso tão esperado.

Histórias e orientações práticas das respectivas ca-racterísticas fazem do livro “Jesus de Gravata” um manual de marketing pessoal, baseado no amor in-finito por você, pela mão invizivel que rege o bem maior, e a sua interação com a sociedade.

Para comprar, basta responder este e-mail, res-pondendo os campos abaixo. Não é necessário pa-gar antes. Você receberá com o livro, um boleto ban-cário, ou seja, receba primeiro e pague depois.

Aproveite a oportunidade, para presentear seus familiares e amigos com uma obra destinada ao amor incondicional do ser humano.

Não é muito difícil constatar que nosso mundo se torna cada vez mais burocrático. Alguns autores salientam que toda a realidade moderna e contem-porânea é expressa através da burocracia. Tudo se

torna um objeto para ser carimbado, assinado, revi-sado, avaliado, orçado, etc. Já que estamos no cam-po da religião, veja essa notícia bem apropriada para aqueles que defendem a Burocracia como o bem maior da sociedade.

04.01.2006 19h48

TRIbUNAl ITAlIANO VAI DECIDIR SE JESUS ExISTIU

Reuters

ROMA (Reuters) - Esqueça o debate nos Estados Unidos sobre criacionismo versus evolução. Um tri-bunal italiano está questionando Jesus - e se a Igreja Católica Romana está infringindo a lei ao ensinar que ele existiu há 2 mil anos.

O caso colocou frente a frente dois homens na casa dos 70 anos, da mesma cidade italiana e que freqüentaram o mesmo seminário durante a adoles-cência.

O réu, Enrico Righi, tornou-se padre e escreve para o jornal de sua paróquia. O acusador, Luigi Cascioli, virou um ateu declarado que, após anos de buro-cracia legal, vai ter seu dia no tribunal no final deste mês.

“Entrei com esse processo porque quero dar o último pontapé contra a Igreja, defensora do obscu-rantismo e da regressão”, disse Cascioli à Reuters.

Ele sustenta que Righi, e, por extensão, toda a Igreja, violaram duas leis italianas. A primeira é o “Abuso di Credulità Popolare” (Abuso da Credulida-de Popular), criada para proteger o povo contra gol-pes e esquemas. O segundo crime, diz ele, é “Sosti-tuzione di Persona”, ou falsa identidade.

“A Igreja construiu Cristo a partir da personalida-de de João de Gamala”, diz Cascioli, se referindo ao judeu do século 1 que lutou contra o exército roma-no.

Um tribunal em Viterbo vai ouvir Righi, que ainda não foi indiciado, numa audiência preliminar em 27 de janeiro. Na ocasião, será determinado se o caso tem mérito suficiente para continuar.

“No meu livro, Fábula de Cristo, apresento provas de que Jesus não existiu enquanto figura histórica. Agora ele deve refutar isso mostrando provas da existência de Cristo”, disse Cascioli.

Em entrevista à Reuters, Righi, 76, parecia frustra-do com a situação e sem entender por que Cascioli - que, como ele, nasceu na cidade de Bagnoregio - o escolheu em sua cruzada contra a Igreja.

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“Somos os dois de Bagnoregio. Freqüentamos o seminário juntos. Aí ele escolheu outro caminho e nunca mais nos vimos”, disse Righi.

“Como sou um padre e escrevo no jornal da pa-róquia, ele está me processando porque eu ‘engano’ as pessoas”.

Righi afirma que há muitas provas da existência de Jesus, incluindo textos históricos. Ele diz ainda que a Justiça está ao seu lado. O juiz que vai presidir a audiência tentou, várias vezes, arquivar o caso.

“Cascioli diz que ele não existe. Eu digo que ele existe”, afirmou. “O juiz é quem vai decidir se Cristo existe ou não”.

Mesmo Cascioli admite que suas chances são mí-nimas, especialmente na Itália Católica Romana.

“Vai ser um milagre se eu ganhar”, brincou.

Os espertos publicitários perceberam que a bu-rocracia tem credibilidade entre as pessoas. Muitas vezes criam propagandas claramente inspiradas em construções burocráticas e usam outra ferramenta fundamental no nosso mundo: o sarcasmo. A ironia está presente em toda a parte, tratando do que é mesmo engraçado, mas não poupando os assuntos graves e perigosos. No cinema, na TV, nos quadri-nhos, na mídia, o humor “negro” (olhe a semiologia nos deixando culpados!) está presente. Às vezes de forma bem amarga.

Veja o exemplo do seriado da HBO Six Feet Under (A Sete Palmos - 1999-2006): família se une para sal-var o negócio deixado pelo pai, morto no primeiro episódio enquanto passeava com o novo carro fune-rário da firma – uma casa funerária. É um drama com elementos de comédia.

No episódio-piloto, o filho mais velho, Nate (Peter Krause, aos pés do falecido na foto), retorna para a casa e reencontra o funcionário Frederico (Freddy Rodriguez, o camaradinha de avental), um jovial latino especialista em maquiagem e restauração

de cadáveres. Eles estão no porão e conversam enquanto Freddy trabalha num corpo. O rapaz aponta para a parede, onde podemos ver fotos que representam mortos “antes” e “depois” da apurada técnica. Uma imagem mostra duas ca-beças estouradas, miolos, sangue. Na outra, o casal parece “dois noivinhos encima do bolo”, nas palavras de um orgulhoso Frederico. “É mi-nha obra-prima”, ele completa. Agora estamos vendo os dois personagens do ponto de vista da parede. Nate está um pouco assustado e Freddy sorri, contente. Então, depois de um silêncio, ele leva a mão até o painel e traz outra foto. “Não, não. Essa é minha obra-prima”. A imagem é de uma criança num balanço. Nate estala os olhos e, antes de dizer qualquer coisa, ouve o comple-mento: “Esse é meu filho, agora tem três anos. É a obra-prima da minha vida”.

A ironia em campos considerados “tabus” para a sociedade é uma marca indiscutível da produ-ção de informação, entretenimento e publicidade nos últimos anos. Olhe essa esperta propagan-da da agência novaiorquina DeVito/Verdi para a entidade American Civil Libertaties Union. Mis-turando linguagem burocrática, sarcasmo e uma linguagem visual que lembra o desbravamento do Oeste americano, “quando não havia lei”, o cartaz sugere: “Eles finalmente encontraram uma solução para prisões superlotadas: prisioneiros menores”.

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E essa aqui, ainda mais freaky. E igualmente criativa. Propaganda sobre prevenção ao câncer que merece um ótimo exercício de Análise de Discurso: impor-tações de discurso, ausência da cor, mensagens das nuvens às pedras...

Aqui estão, portanto, alguns dos tópicos dos quais iremos nos alimentar nos próximos dias. Qual é o complemento-clichê, para parecer um texto bem es-crito? É: “Bom apetite!” Ai.

ViGÉsima-terCeira

prestação

Este é um quadro de Claude Lorraine (1600-1682):Paisagem com um sacrifício à Apolo (1662). Óleo sobre tela (176x223cm). O artista era pro-tegido na corte luxuosa de Luis XIV e representava bem o luxo estético desejado pelo rei-consumidor. As paisagens são grandiosas, cheias do que na época era considerado “bom gosto”: temas mitológicos, estudo minucioso de traço e cor.

O historiador Braudel é dono original de uma con-clusão hoje partilhada por muitos estudiosos: a gran-de transformação do Ocidente incluiu mais do que uma “revolução industrial” – houve uma “revolução do consumo”.

A partir do século XVI, a sociedade “tornou-se cada vez mais dependente dos e integrada aos novos bens e práticas de consumo” (McCracken, p. 21).

Temos até outro título para o colecionador Luís XIV: o “rei consumidor” da França. O apetite por consumo do monarca não era isolado nem mesmo menosprezado pela sociedade francesa da época. Mais tarde, os distintamente intelectuais Rousseau e Voltaire já discutiam sobre o consumo.

No último quarto do século XVI, houve um boom de consumo na Inglaterra, fato que merece atenção bastante especial. Os homens descobriram o “pra-zer” de gastar: resolveram ter mais de uma proprie-dade e tudo que representava gasto para mantê-las, inclusive as exigentes regras de hospitalidade e ativi-dade cerimoniais.

Fortunas passaram a ser gastas com guarda-rou-pa e futilidades. Um hábito chama especialmente a atenção: o empenho para a realização de jantares. Os nobres gastavam fortunas com um banquete suntuoso, salpicado de especiarias estrangeiras, para dezenas de convidados ávidos de luxo e gula. Depois de acomodados nas caras e majestosas mesas, tudo era observado com atenção e... retirado! Antes mes-mo da primeira garfada. Em seguida, outra refeição ainda mais cara e exótica era servida e, aí sim, as lombrigas eram abastecidas generosamente.

O clã dos Tudor era especialmente gastador, so-bretudo o insaciável Henrique VIII, mas foi sua filha, curiosamente conhecida pela parcimônia vitoriana, que transformou a gastança em estratégia política e indício de status. Elizabeth I (1503-1603) torrava mais dinheiro que a tesouraria do time Real Madrid.

Mas, como eu disse, havia razões estratégicas. A rainha recebeu o cetro em uma época muito difícil para a Inglaterra – e ficou conhecida pela habilidade com que projetou os britânicos. Inspirada pela Itália Renascentista, viu, entre outras coisas, que o consu-mo e a transformação da corte em um “desfile tea-tral” conferia legitimidade ao poder da monarquia. O forte caráter cerimonial, observado até hoje nos costumes ingleses, era um jeito de dizer que a família real estava acima do mundano.

Nem toda a bufunfa saía dos cofres reais. Eliza-beth era esperta o suficiente para fazer a nobreza

UMA PEQUENA hISTóRIA DA REVOlUçãO DO CONSUMO

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pagar parte do esbanjamento. Tudo, como acontece até hoje no costume da adulação, em troca de um sorrisinho saído da boca real de Vossa Majestade.

Cada nobre era jogado numa concorrência atroz de bajuladores. Nos seus domínios, era a autoridade máxima. Mas, ao se aproximar do aparelho burocrá-tico da Rainha, perdia toda a exclusividade. Era um entre tantos. E para tentar compensar sua insigni-ficância, como diz McCracken, “gastava como um marinheiro de licença”.

Esse panorama, que introduzi aqui superficial-mente, é o ponto de partida para nossa conversa sobre o papel do consumo na sociedade moderna e contemporânea. A projeção destes causos elizabeta-nos para nossa sociedade é óbvia, não é mesmo?

Um óleo sobre tela de François Bouchet (1703-1770), apropriadamente conhecido como Odalisca (1745) - o quadro, não o pintor! Essa leveza, lu-xúria, luz festiva, rococós que caracterizam a obra são bem característicos do período posteior a Luiz XIV, quando o monarca era um afetado Luiz XV. Os burgueses estavam felizes, apesar de preferirem agora morar longe de Versalles. Paris era uma festa, embora os lares tenham diminuido de tamanho - e, por isso, passaram a ser decorados por pinturas menores e menos, digamos “épicas”. Odalisca tem 54 x 63 cm - o quadro, não as nádegas.

Televisão, Publicidade e a construção da identidade pós-moderna.In: KELLNER, D. A Cultura da mídia. São Paulo: Edusc, 2001.

MCCRAKEN, Grant. Cultura & consumo. Rio de Janeiro: Mauad, 2003.

lEITURA PARA PRóxIMA AUlA

ViGÉsima-qUarta

prestaçãoMODERNIDADE E CONSUMO

Vimos na última aula que a vocação consumista despertada por Elizabeth I fez a Inglaterra modificar uma tradição bastante perseverante: o gosto pela pátina.

Pensemos na pátina aqui como símbolo de uma sociedade em que a tradição familiar e o senso de preservação da identidade sanguínea eram padrões indiscutíveis de comportamento da elite.

Hoje a pátina é percebida como uma técnica de falsificar o envelhecimento de superfícies, mas há três séculos era simplesmente o resultado real da ca-duquice dos objetos. Quando os móveis adquiriam uma crosta, cheio de mofo, a tonalidade fosca, esta-vam chegando ao estado da pátina. Ou seja, aque-las coisas antiquadas eram símbolo de uma família que não ganhou suas posses de um dia para outro. As bugigangas eram a herança de um sobrenome importante há séculos. Bonito era parecer que você não fez lá grande esforço para ter aqueles talheres de prata meio acinzentados pelo esfrega-esfrega de línguas, lábios e dentes mortos há anos.

Este gosto pela pátina representa culto ao status da família e, por extensão, a ligação direta da nobre-za com os membros de sua comunidade. Afinal, você deve imaginar que uma comunidade do século XVII é basicamente a reunião de algumas famílias. Todos são aparentados, de certa forma. Os mais afortuna-dos moram em locais com colunas como essa:

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Quando a moda da pátina foi substituída pelo consumo individual, a verdade era que o mundo estava mudando em proporções maiores do que o simples gosto por uma cadeira de veludo perfumada por nádegas de 300 anos.

Elizabeth I exigiu tanto esforço de adulação no frenesi consumista que os nobres foram se afastan-do de suas comunidades. “As demandas do novo consumo da nobreza tornaram suas responsabilida-des econômicas e simbólicas em relação à família e à comunidade muito mais difíceis de serem cumpri-das”, nos conta McCracken (p. 35). Para ser franco, como diz nosso autor, o aumento progressivo da despesa com os rituais da realeza “significou que, muito cedo, estes nobres tornaram-se escravos do consumo competitivo”.

Lembram o que Karl Marx nos diz sobre a lingua-gem? Ele ensinou que não é, simplesmente, através dos meios de produção que a classe dominante mantém seu jugo sobre o proletariado. Os ricos têm o poder porque, através dos meios de produção, es-tabelecem os significados simbólicos circulantes na sociedade. E o consumo tem sido linguagem deter-minante na formação do imaginário. Daí, talvez, o velho McCracken nos agraciar com a oportuna fra-se: “Apesar de algumas vezes mostrarem-se desde-nhosos em relação ao consumo dos superiores, os subordinados seguiram este comportamento com esmero e, assim, se prepararam para o consumo em excesso em um âmbito que começaria apenas um século mais tarde” (p. 36).

Tudo isso ajudou a montar um cenário ideal para a explosão do consumo. No século XVIII, as pessoas começaram a gastar em bens que não satisfaziam, necessariamente, o culto à realeza ou ao explícito de-sejo de impressionar os mandachuvas da sociedade britânica. De certa forma, cumpriam este objetivo, mas de maneira mais sutil. Então, além do gosto por jantares suntuosos, apareceu o desejo por móveis novos, cerâmicas, pratas, espelhos, cutelaria, jardins, animais de estimação e tecidos, como nos mostra o historiador McKendrick (apud McCracken, 2003).

O ritmo do consumo começou a enterrar o culto pelo antigo. Como consumir foi se tornando mais importante do que os objetos adquiridos, a necessi-dade de substituição – para manter a roda capitalista girando – destronou a antiguidade e elegeu o des-cartável. “A moda tem o efeito de exigir que os ob-jetos sejam substituídos seguidamente” (McCracken, p. 40).

(Antes de continuarmos: a crítica de Frankfurt sobre a arte na era da reprodutibilidade técnica aqui).

A partir do século XVIII, o país que nos deu o mais evidente da Revolução Industrial também começou a ditar um novo tipo de indivíduo consumidor: o cida-dão dono de uma intuitiva capacidade semiótica de interpretar (e usar) as mensagens encarnadas nos ob-jetos que comprava.

MCCRAKEN, Grant. Cultura & consumo. Rio de Janeiro: Mauad, 2003.

lEITURA PARA PRóxIMA AUlA

Aqui está o primeiro quadrinho em que aparece o Tio Patinhas, um apre-ciador da pátina – mas por razões estritamente muquiranas (A historinha é “Natal nas Montanhas”. A estréia, nos EUA, foi em dezembro de 1947. No Brasil, no gibi Mickey número 15, em 1953).

ViGÉsima-qUarta

prestaçãoCONSUMO NO SéCUlO xIx: A lOJA DE DEPARTAMENTOS

A loja de departamentos surge no século XIX e, embora o período não represente um “boom” de consumo, consolida-se uma nova etapa na formação da identidade ocidental.

Novas técnicas de marketing estimulam o desejo e a imaginação dos consumidores, convidando-os a mergulhar em fantasias relacionadas ao ato de com-prar.

A França imprime novo ritmo de consumo nes-se século. Há uma espécie de privatização de servi-ços ligados intimamente com os novos padrões de consumo. Por exemplo, os “chefs” da nobreza irão se instalar em restaurantes de visitação pública e as costureiras, antes confinadas a mansões particulares, começam a abrir lojas.

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Bigode suntuoso, roupa ajustada às formas, gola mandarim e outros detalhes de certa moda masculina no século 19. Olhe a pose do modelo! E flashes da moda feminina do século 19: extravagância e aqueles chapéus odiados por Coco Chanel.

Pierre Bourdieu (1930-2002): conversa com sindicalistas. Do “Le Monde Diplomatique”

Rosalind Williams (Dream World: mass consump-tion in late nineteenth century France. Berkeley: Uni-versity of California Press, 1982) diz que a o gosto de massa no século XIX se caracteriza por um “delírio monumental”, representado pelos lugares públicos: a experimentação estética, toda recheada de exotis-mos e maneirismos, seria voltada para a criação de um mundo de sonho.

Nesse contexto, os dândis aparecem como cínicos, dotado de “bom gosto”, mas agressivos em relação à performance social da burguesia.

A elite tenta reinventar a organização da vida so-cial através do consumo. E usa os meios de comu-nicação para isso. Principalmente os catálogos de venda de produtos.

Acrescentem a isso o surgimento do cinema: “ex-posições, lojas de departamentos e filmes: todos eles deram contribuições igualmente importantes para o mundo de sonho do consumo de massa” (McCra-cken, p. 47).

Os consumidores são encorajados a passear livre-mente pelas lojas de departamentos, sem a obrigação de comprar. A idéia é “despertar o desejo livremen-te oscilante”. Mas, uma vez convencidos, agem sem contestação. Os preços agora são fixos, não estão mais sujeitos a barganhas. Ao comprar, avisado pre-viamente do preço, o cidadão aceita as condições es-tabelecidas.

Por isso, a loja de departamentos e os novos pa-drões de consumo do século XIX foram fundamentais na formação de uma notável passividade.

Os catálogos das lojas de departamentos viraram uma espécie de cartilha do gosto: ensinavam como as pessoas deveriam se vestir, mobiliar suas casas, usar o tempo de lazer, se comportar.

Temos aí, caracterizadas resumidamente, condições essenciais para entendermos aspectos importantes da estética da mídia nas décadas que se seguiriam. O ob-jetivo de nossa exposição foi, antes de tudo, atenuar a impressão recorrente de que a comunicação de mas-sa é formadora única da experiência cultural contem-porânea. A contribuição da mídia é fundamental, mas não se pode esquecer que seu papel, antes de tudo, é de amplificação de tendências construídas ao longo de toda a modernidade.

Falaremos mais (sugiro o texto a seguir. Ele trata do resultado dessas fases da implantação do consumo moderno. E faz isso através do “encanto feminino”).

MCCRAKEN, Grant. Cultura & consumo. Rio de Janeiro: Mauad, 2003.

lEITURA PARA PRóxIMA AUlA

Trataremos da relação entre a tal pós-modernida-de e a mídia a partir dessa aula. Mas antes de abor-dá-la explicitamente, gostaria de apresentar uma fala completamente anti-pós-moderna. O último discur-so do pensador Pierre Bourdieu, uma das principais referências intelectuais do século 20.Sem pestanejar em nossa atitude dialética, procu-remos compreender o ponto de vista desse filósofo ligado claramente à esquerda.

ViGÉsima-qUiNta

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Em Atenas, num encontro com sindicalistas e pes-quisadores, Pierre Bourdieu fez seu último discurso público. Um dos mais importantes intelectuais fran-ceses - e mundiais - Bourdieu foi sempre polêmico: “não há democracia sem contra-poder crítico”, di-zia.

Se hoje é importante, senão necessário, que pes-quisadores independentes se juntem ao movimento social, é porque estamos diante de uma política de globalização (eu disse exatamente isso: uma “polí-tica de globalização”; não falo de “globalização” como se isso significasse um processo natural). A produção e a difusão dessa política são, em grande parte, mantidas em segredo. E já constitui todo um trabalho de pesquisa, que é necessário, descobrir tal política antes que comece a ser aplicada.

Ela também tem efeitos que podem ser previstos graças aos recursos das ciências sociais, mas que, em curto prazo, ainda são invisíveis para a maioria das pessoas. Outra característica sua: é produzida, em parte, por pesquisadores. A questão é saber se aqueles que antecipam, a partir de seu saber científi-co, as conseqüências funestas dessa política, podem e devem guardar silêncio. Ou se não há nisso uma espécie de não-assistência a pessoas em perigo. Se for verdade que o planeta está ameaçado por cala-midades graves, os que crêem saber, de modo ante-cipado, dessas calamidades, não teriam o dever de sair da discrição que, tradicionalmente, os cientistas se impõem?

Na cabeça da maioria das pessoas cultas, sobre-tudo em ciências sociais, existe uma dicotomia que me parece absolutamente funesta: a dicotomia entre scholarship e commitment - entre os que se dedicam ao trabalho científico feito segundo métodos cien-tíficos, e destinado a outros cientistas, e os que se engajam e levam seu saber para fora. A oposição é artificial e é preciso ser, de fato, um cientista autôno-mo que trabalhe segundo as regras do scholarship para poder produzir um saber engajado, isto é, um scholarship with commitment.

É necessário, para ser um verdadeiro cientista en-gajado, legitimamente engajado, engajar um saber. E só se adquire tal saber no trabalho científico, sub-metido às regras da comunidade científica.

Duplamente sábios

Em outros termos, é necessário destruir um certo número de oposições que estão em nossas cabeças e que são formas de permitir omissões: a começar pela omissão do intelectual que se isola em sua torre de marfim. A dicotomia entre scholarship e commit-ment tranqüiliza o pesquisador em sua boa consci-ência porque ele tem a aprovação da comunidade científica. É como se os cientistas acreditassem ser duplamente sábios porque não fazem nada com sua

ciência.

Porém, quando se trata de biólogos, isso pode ser criminoso. Mas também é grave quando se trata de criminologistas. Essa discrição, essa fuga na pureza, tem sérias conseqüências sociais. Pessoas como eu, pagas pelo Estado para fazer pesquisa, deveriam guardar cuidadosamente os resultados de suas pes-quisas para os colegas? É absolutamente fundamen-tal dar prioridade à crítica dos colegas sobre o que se acredita ser uma descoberta, mas por que reservar para eles o saber coletivamente adquirido e contro-lado?

Parece-me que, hoje, o pesquisador não tem es-colha: se está convencido de que há uma correlação entre as políticas neoliberais e as taxas de delinqü-ência, uma correlação entre as políticas neoliberais e as taxas de criminalidade, uma correlação entre as políticas neoliberais e todos os índices daquilo que Dürkheim teria chamado de anomia, como poderia deixar de dizê-lo? Não só não há como criticá-lo, como deveria ser felicitado por essa atitude. (Talvez eu esteja fazendo uma apologia de minha própria posição...).

Nem profeta nem sábio

Mas, o que vai fazer o pesquisador no movimen-to social? Primeiro, não vai dar aulas - como faziam alguns intelectuais orgânicos que, não sendo capa-zes de impor suas mercadorias no mercado cientí-fico, onde a concorrência é dura, iam dar uma de intelectuais junto aos não-intelectuais dizendo que o intelectual não existia.

O pesquisador não é um profeta, nem um sábio. Deve inventar um papel novo que é muito difícil: deve ouvir, deve buscar e inventar; deve tentar aju-dar os organismos que têm por missão - cada vez menos convictos, infelizmente, inclusive os sindicatos - resistir à política neoliberal; deve atribuir-se a tarefa de ajudá-los fornecendo-lhes instrumentos. Em par-ticular, instrumentos contra o efeito simbólico que exercem os “especialistas” contratados pelas gran-des empresas multinacionais.

É necessário dar nome aos bois. Por exemplo, a atual política de educação é decidida pela Unice, pelo Transatlantic Institute, etc. Basta ler o relatório da Organização Mundial do Comércio (OMC) sobre os serviços para se conhecer a política da educação que teremos dentro de cinco anos. O Ministério da Educação limita-se a transmitir essas instruções ela-boradas por juristas, sociólogos, economistas, e que, uma vez revestidas da forma jurídica, começam a funcionar.

Os pesquisadores também podem fazer uma coi-sa mais nova, mais difícil: incentivar o surgimento das condições organizacionais da produção coletiva da

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intenção de criar um projeto político e, em segundo lugar, as condições organizacionais para o êxito da invenção desse projeto que, evidentemente, será um projeto coletivo. Afinal, a Assembléia Constituinte de 1789 e a Assembléia da Filadélfia eram formadas por pessoas como vocês e eu, que tinham uma bagagem jurídica, que haviam lido Montesquieu e que inventa-ram estruturas democráticas.

Do mesmo modo, hoje é necessário inventar coi-sas. É evidente que se poderá dizer: “há parlamen-tos, há uma confederação européia dos sindicatos, há todo tipo de instituições que supostamente o irão fazer.” Não vou, aqui, demonstrar isso, mas ocorre que eles não o fazem. É preciso, pois, criar as condi-ções favoráveis para essa invenção. É preciso ajudar a vencer os obstáculos a essa invenção; obstáculos que, em parte, estão no movimento social encarre-gado de suprimi-los - e, particularmente, nos sindica-tos.

Por que se pode ser otimista? Penso que se pode falar de boas chances de sucesso, que esse momento é o kairos, o momento oportuno. Quando fazíamos esse discurso, por volta de 1995, tínhamos em co-mum não ser ouvidos e passar por loucos. As pes-soas que, como Cassandra, anunciavam catástrofes eram ridicularizadas, atacadas pelos jornalistas e insultadas. Hoje o são um pouco menos. Por quê? Porque se trabalhou. Houve Seattle e várias manifes-tações.

E, também, as conseqüências da política neolibe-ral - que havíamos previsto abstratamente - come-çam a ser vistas. E as pessoas, agora, compreendem. Mesmo os jornalistas mais limitados e mais teimosos sabem que uma empresa que não tem um lucro de 15% parte para as demissões. As profecias mais ca-tastróficas dos profetas da desgraça (que, simples-mente, eram mais informados que os outros) come-çam a se realizar.

Não é cedo demais. Mas também não é muito tar-de. Porque é apenas um começo, pois as catástrofes só estão começando. Ainda é tempo de sacudir os governos social-democratas, para os quais os inte-lectuais olham encantados, principalmente quando deles recebem vantagens sociais de todo tipo.

“Sindicalismofobia”

Um movimento social europeu, a meu ver, só tem chance de ser eficaz se reunir três componen-tes: sindicatos, movimento social e pesquisadores - com a condição, evidentemente, de integrá-los, e não apenas justapô-los. Eu dizia aos sindicalistas que há, entre os movimentos sociais e os sindicatos em todos os países da Europa, uma profunda diferença quanto aos conteúdos e, ao mesmo tempo, quanto aos meios de ação.

Os movimentos sociais fizeram ressurgir objeti-vos políticos que os sindicatos e os partidos haviam abandonado, ou esquecido, ou rechaçado. Por ou-tro lado, os movimentos sociais trouxeram métodos de ação que os sindicatos pouco a pouco, mais uma vez, esqueceram, ignoraram ou rechaçaram. E, em particular, métodos de ação pessoal: as ações dos movimentos sociais recorrem à eficácia simbólica, uma eficácia simbólica que depende, em parte, do engajamento pessoal dos que protestam; um enga-jamento pessoal que é também um engajamento corporal.

É necessário correr riscos. Não se trata de desfilar de braços dados, como tradicionalmente fazem os sindicalistas no dia 1° de maio. É preciso agir, ocupar locais de trabalho etc. O que exige, ao mesmo tem-po, imaginação e coragem. Mas vou dizer também: “Cuidado, nada de ‘sindicalismofobia’. Há uma lógi-ca dos aparelhos sindicais que é preciso entender.”

Por que é que digo aos sindicalistas coisas que são próximas do ponto de vista dos movimentos sociais sobre eles, e por que vou dizer aos movimentos so-ciais coisas que são próximas da visão que os sindi-calistas têm deles? Porque é com a condição de que cada um dos grupos veja a si mesmo como vê os outros que será possível superar as divisões que con-tribuem para enfraquecer grupos já muito fracos.

O movimento de resistência à política neoliberal é globalmente muito fraco e enfraquecido por suas divisões: é um motor que gasta 80% de sua energia em calor, isto é, sob a forma de tensões, de diver-gências, de conflitos etc. E que poderia ir muito mais rápido e mais longe se...

Os obstáculos à criação de um movimento social europeu unificado são de vários tipos. Há obstáculos lingüísticos que são muito importantes, por exemplo, na comunicação entre os sindicatos e os movimentos sociais - os patrões e os executivos falam línguas es-trangeiras, os sindicalistas e os militantes não tanto. Por isso, a internacionalização dos movimentos so-ciais e dos sindicatos se tornou tão difícil.

Há ainda obstáculos ligados aos hábitos, aos mo-dos de pensar, à força das estruturas sociais, das estruturas sindicais. Qual poderia ser o papel dos pesquisadores? O de trabalhar para uma invenção coletiva das estruturas coletivas de invenção que fa-rão nascer um novo movimento social, quer dizer, novos conteúdos, novos objetivos e novos meios in-ternacionais de ação. Tradução: Iraci D. Poleti.

BOURDIEU, Pierre. Sociologia. Organizado por Renato Ortiz. SP: Ática, 1983

, Pierre. Sobre a televisão. RJ: Jorge Zahar, 1996.

, Pierre. O Poder Simbólico. SP: Bertrand Brasil, 2003.

lEITURA PARA PRóxIMA AUlA

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Esse é um dos quadros pioneiros do cubismo. Clarineta e garrafa de rum sobre console de madeira foi pintado pelo francês Georges Braque (1882-1963) em 1911. Todas as dimensões dessa “natureza morta” são levadas ao primeiro plano – pois é só nessa dimensão que a pintura existe. Típico projeto racional moderno.

ViGÉsima-seXta

prestaçãoO QUE é MODERNO? OU: COMO O

MODERNO FOI SE TORNANDO PóS-MODERNO

Como descreveu o hoje jornalista Thiago Mattos de Lara, em projeto que orientei durante 2004, “a estética realista propunha criar uma identidade entre a natureza ou os processos sociais externos e a obra de arte, pois o discurso realista era de simplesmente refletir a realidade (...) Para a filosofia realista, retratar o conteúdo da obra de arte (expresso através da his-tória, sociologia, psicologia) era o mais importante”.

Os artistas que passaram à história com o rótu-lo de “modernistas” recusavam essa atitude. Dessa forma, a obra de arte parecia ser resumida em mero espelho dos processos sociais sem se inserir efetiva-mente na realidade. “Se o que interessava era ape-nas o conteúdo (retratar a realidade), a obra de arte não tinha nenhum valor intrínseco à sua existência. A forma, principal palavra da filosofia modernista, fica-va em segundo plano e a obra de arte, como objeto real, deixava de existir”, escreveu Lara.

“Com a militância da classe proletária, o cresci-mento da cultura de massa e as novas tecnologias da 2ª Revolução Industrial, os artistas não queriam es-tar apenas à parte, retratando a realidade com suas obras. Por isso, no discurso dos modernistas, a obra de arte deveria adquirir autonomia, o que contribuiu para que a expressão artística do modernismo viesse a se tornar obrigatoriamente funcionalista. E dar for-ma à obra era dar autonomia a ela”.

Um exemplar do movimento futurista, O Vôo das Andorinhas (1913), do italiano Giacomo Balla (1871-1954), celebra a velocidade da vida moderna – tal celeridade está menos no tema e mais no efeito das pinceladas. É na realidade do próprio quadro que a arte se encerra.

“Alternativamente, o artista modernista pode buscar forças de dinamismo já em funcionamento dentro da sociedade e alinhar-se com elas na tentati-va de liquidar teias de aranha sufocantes do passado cultural e político. Tal é o projeto do futurismo italia-no e russo que celebra as vastas energias da ciência e da produção contemporâneas: transatlânticos, aero-planos, automóveis; fábricas e arranha-céus; metra-lhadoras e tanques” (BOTTOMORE & OUTHWAITE, 1996, p. 475).

O modernismo foi , sobretudo, uma tentativa de fazer com que o público voltasse a ter a mesma pers-pectiva de arte do passado, em que pudesse fazer da obra algo que fizesse parte da realidade.

Como ainda escreveu Thiago Mattos de Lara, “o artista modernista tinha o desejo pela descoberta científica, mas o que era descoberto ontem, hoje já seria motivo de um novo questionamento, pois a arte e a ciência pareciam contradizer a experiên-cia racional anterior – esse fenômeno era chamado de destruição criativa (o que veio a se tornar uma característica extremamente importante do próprio pós-modernismo, como conseqüência da rápida tecnologia de informação e produção da sociedade pós-moderna)”.

O termo pós-moderno foi utilizado pela primeira vez em 1930. Utilizado longe dos grandes centros

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culturais da época – Estados Unidos e Europa –, na América hispânica, o termo designava uma corrente ultraconservadora dentro do próprio modernismo. Mais tarde, esse termo se alterou para ultramoder-nismo.

Essa corrente ultramodernista veio como uma conseqüente quebra de duas poderosas forças que moldavam o imaginário da população desde o fim do século XIX. O industrialismo e o nacionalismo já se contradiziam e estavam em decadência quan-do a necessidade de um amplo mercado comercial rompeu as barreiras nacionais, embora o naciona-lismo ainda continuasse como parte integrante do subconsciente das pessoas e ainda exercesse grande influência em pequenas comunidades.

Após a 2a Guerra Mundial, houve hostilidade contra o nacionalismo e uma forte suspeita de que, talvez, a alegria e o industrialismo da modernidade não fossem tão excelentes quanto a humanidade pensara. “Mas sem dúvida a idade pós-moderna era marcada por duas evoluções: a ascensão de uma classe operária industrial no Ocidente e o convite de sucessivas intelligentsias fora do Ocidente a dominar os segredos da modernidade e volta-los contra o mundo ocidental” (ANDERSON, 1999, p. 11).

Neste último momento, todo o sentido de hierar-quia e unidade de valores estava sendo gradualmen-te dirimido pela sociedade.

Essa obra ultrapassa os limites da moldura. Chama-se Sacco (1954) e foi produzida pelo artista italiano Alfredo Burri (1915-1995). Trata-se de um pano, retirado do uniforme de um soldado morto na Segunda Guerra. Essa ambígua mancha vermelha é sangue de verdade. Arte que discute a forma, mas que não deixa de ser panfletária no seu conteúdo. Típica atitude moderna.

O CORAçãO SOlITÁRIO DA P.M.

Em geral, falar sobre o que é chamado de Pós-Modernidade ou Pós-Modernismo implica escolher um lado.

Não que tenhamos que fazer isso, mas a famo-sa divisão de Umberto Eco entre os apocalípticos – aqueles que lamentam o fim de todo pensamento crítico – e os Integrados – aqueles que comemoram o fim da arte sofisticada – vale bastante para a aca-lorada discussão.

O papo sobre pós-modernidade vai acertar em cheio nossas preocupações com a mídia, indústria cultural, com a forma como a Publicidade deixa de ser acessório para se constituir em forma de lingua-gem autônoma e ela, em si, produtora de significa-dos desvinculados de outros eventos comunicacio-nais.

Mas é na estética que a p.m. começa a ser des-trinchada. Mas especificamente na arquitetura.

Acho que podemos chamar a arquitetura do curitibano Bruno de Franco de pós-moderna, não podemos? Aqui está sua Torre de Bologna, edifício re-sidencial na rua Carlos de Carvalho. A bela foto foi produzida por Henrique Schaeffer, Manoela Ebert, Marcel Baião e Marcela “Oldschool” Zattoni. Como? Veremos em seguida.

ViGÉsima-sÉtima

prestação

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Na literatura, teremos exemplos fartos do resulta-do daquilo que Jean-Françoise Lyotard chamou de “condição pós-moderna”.

Leia esses trechos de um já clássico texto pós-moderno: Miss Lonelyhearts, do norte-americano Nathanael West. O pequeno livro foi publicado ori-ginalmente nos anos 30! Essa tradução, de Thelma Médici Nóbrega, saiu pela editora Imago em 1994.

Antes de ler, pense no seguinte: sarcasmo, cinis-mo, desprezo pelas metanarrativas... esses são traços indispensáveis da arte pós-moderna.

MISS lONElYhEARTS, AJUDAI-ME, AJUDAI-ME

A Missa Lonelyhearts do jornal Post-Dispatch, de Nova York (está com problemas? – Precisa de um conselho? Escreva para Miss Lonelyhearts e ela o aju-dará), sentou-se a sua mesa e fixou os olhos num pedaço de cartolina branca. Nele, lia-se uma oração escrita por Shrike, o editor de reportagem.

“Alma de Miss L, glorificai-me.Corpo de Miss L, alimentai-me.Sangue de Miss L, inebriai-me.Lágrimas de Miss L, lavai-me.

Bendita Miss L, aceitai minha súplicaE acolhei-me em vosso coração,

E defendei-me de meus inimigos.Ajudai-me Miss L, ajudai-me, ajudai-me.

In saecula saeculorum. Amen.”

Embora faltassem menos de quinze minutos para o prazo de entrega se esgotar, ele ainda estava no lead. Não escrevera mais do que: “A vida vale a pena, pois é cheia de sonhos e paz, de bondade e êxtase, e de fé que arde como luminosa e alva chama sobre um escuro e desolado altar”. Mas viu que era impos-sível ir em frente. As cartas já não eram engraçadas. Não podia continuar achando graça da mesma piada trinta vezes por dia, durante meses a fio. E, na maio-ria dos dias, ele recebia mais de trinta cartas, todas elas parecidas, seladas com a massa do sofrimento em forma de coraçõezinhos.

Sobre sua mesa estavam empilhadas as que rece-bera naquela manhã. Voltou a examiná-las, buscan-do alguma pista que levasse a uma resposta sincera.

Querida Miss Lonelyhearts,

Estou sofrendo tanto que não sei mais o que fazer às vezes acho que vou me matar meus rins doem de-mais. Meu marido acha que nenhuma mulher pode ser uma boa católica sem ter filhos apesar da dor.

Casei direitinho na igreja mas não sabia como era a vida de casada já que ninguém nunca me falou de marido e mulher. Minha vó nunca me disse e ela era a única mãe que eu tive mas foi um grande erro não me contar porque não compensa ser inocente e é só uma grande decepção. Tive 7 filhos em 12 anos e depois dos últimos 2 anos eu fiquei muito doente. Me operei duas vezes e meu marido prometeu que eu não ia ter mais filhos porque o médico disse que eu podia morrer mas quando voltei do hospital ele quebrou a promessa e agora eu vou ter um nenê e não sei se vou agüentar meus rins doem demais. Estou tão doente e apavorada porque não posso fa-zer um aborto por causa que eu sou católica e meu marido muito religioso. Choro o tempo todo e sói muito e não sei o que fazer.

Atenciosamente,

Cansada-desta-Vida.

Miss Lonelyhearts jogou a carta dentro de uma ga-veta aberta e acendeu um cigarro.

Querida Miss Lonelyhearts,

Tenho dezesseis anos e não sei o que fazer e gos-taria muito que me dissesse o que fazer. Quando era pequena não era tão ruim porque me acostumei com os meninos do quarteirão gozando de mim, mas agora eu queria ter namorados como as outras meninas e sair aos sábados à noite, mas nenhum menino quer sair comigo porque nasci sem nariz – apesar de dançar bem e ter um corpo bem feito e meu pai me comprar roupas bonitas.

Fico me olhando o dia inteiro e chorando. Tenho um grande furo no meio do rosto que dá medo nas pessoas e até em mim então não posso reclamar se os meninos não me levam para sair. Minha mãe me ama, mas ela chora sem parar quando olha para mim.

O que fiz para merecer um destino tão horrível? Mesmo que eu fiz algumas coisas ruins não fiz antes de um ano de idade e nasci desse jeito. Perguntei para o papai e ele disse que não sabe, mas que tal-vez eu fiz algo no outro mundo antes de nascer ou que talvez eu estou sendo castigada pelos pecados dele. Não acredito, porque ele é um homem muito bom. Devo cometer suicídio?

Cordialmente,

Desesperada.

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O cigarro estava com defeito, e Miss Lonelyhearts não conseguia tragar. Tirou-o da boca e olhou com fúria. Lutando para se acalmar, acentou outro.

(...)

Ele parou de ler. Cristo era a resposta, mas, se não quisesse ficar enjoado, precisava evitar esse assunto de Cristo. Além disso, Cristo era a piada favorita de Shrike. “Alma de Miss L, glorificai-me. Corpo de Miss L, salvai-me. Sangue de...” Ele se virou para a máqui-na de escrever.

ViGÉsima-oitaVa

prestaçãoESTRElAS MAIS bRIlhANTES DURAM A METADE DO TEMPO

Ou: se você ainda não viu Blade Runner, é melhor ler esse capítulo mais tarde, pois não terei pudores em revelar as surpresas das tramas

Em sala, vimos trechos de filmes que mostram, segundo alguns observadores, as características fundamentais das obras pós-modernas. Blade Run-ner – O Caçador de Andróides (1982, dirigido por Ridley Scott e com Harryson Ford, Sean Young, Ru-tger Hauer, Edward James Olmos, Daryll Hannah, entre outros) já é um clássico e boa parte de sua aura cult se deve à mistura de gêneros, pessimismo cínico, melancolia cinzenta mas hedonista, descren-ça no futuro, fascínio e medo da tecnologia que já vibravam no começo dos anos 80.

Blade Runner quase sempre fica rotulado, nas es-tantes de videolocadoras, como “ficção científica” – o que não deixa de ser verdade. O filme se passa em 2019 e possui vários elementos na trama, na direção de arte e na trilha sonora que caracterizam o futurismo e a fantasia desse gênero cinematográ-fico. Ford interpreta Deckard, um camarada que outrora ganhava a vida caçando os replicantes, mas agora está aposentado. É forçado (através de uma coerção mal explicada) a voltar à ativa, já que seis “monstrengos” se rebelaram e agora estão à solta na Terra. O que vão fazer? Ninguém entre os perso-nagens parece saber – ou quer comentar.

Replicantes são seres robóticos, criados pela cor-poração privada Tyrell, que se assemelham em tudo a seres humanos – mas são eventualmente mais fortes, mais dedicados, mais sexuados que suas inspirações. Os fugitivos, chamados de monstregos pelo chefe de polícia, são a obra-prima da Tyrell, já que desenvol-veram habilidades especiais e pelo menos um deles é notadamente inteligente, o Roy vivido por um sotur-no e andrógino Rutger Hauer. Ele mantém forte liga-ção com Leon (Brian James) e Pris (Hannah, delicioso “modelo para prazer”, boneca sexual arquetípica de tinta escura como máscara nos olhos).

Harryson Ford vai atrás de quatro dos fugitivos. Sua missão é “aposentá-los”, que é como a elimi-nação de replicantes é chamada, mas sabe que em breve todos sucumbirão automaticamente. Como os robôs, ao longo de suas sucessivas gerações, foram desenvolvendo emoções – tais como ódio – e, por isso, representariam um perigo , um dispositivo põe fim em suas vidas no prazo de quatro anos.

Nitidamente, Roy e seus companheiros estão atrás do criador dos replicantes – querem forçá-lo a au-mentar a vida. Para chegar ao chefão da Tyrell, pas-sam por um laboratório suspeito de criação genética de olhos e pelo engenheiro genético J. F. Sebastian, cientista de 25 anos que aparenta 60 graças à do-ença de decrepitude. Sebastian, velho precoce e so-litário, vive num edifício abandonado, chamado de Bradbury (homenagem ao escritor de sci-fi Ray B.), com robôs incompletos, infantis, sobras estranhas de experiências.

Deckard vai testar a máquina que identifica os re-plicantes num escritório da Tyrell. A engenhoca veri-fica, entre outras coisas, a dilatação da íris daqueles que respondem a uma mistura de perguntas banais e estranhas. “Você está num deserto e vê um cágado. Ele está morrendo porque está com a barriga para cima. Você não desvira. Por quê?” Ou essa: “Numa festa elegante lhe servem carne de cachorro...”

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A mulher que é cobaia para o teste, uma funcio-nária do chefão Tyrell, não sabe que é replicante. Ra-chel (Sean Young) tem o olhar duro e melancólico, responde secamente, fuma com elegância notável. Seus lábios são de vivo vermelho. O personagem de Ford sente-se desconfortável com ela. Em poucos minutos saberemos que ele está apaixonado. Ford, aliás, se amargura. É injusto que ela não saiba que tem pouco tempo de vida, que sequer é humana.

Ainda naquela noite, Rachel vai até o apartamen-to obscuro de Deckard para confrontá-lo. Ele não quer vê-la, mas a mulher insiste. “Você acha que sou um replicante?” Para provar que não, mostra uma foto em que está, criança, sentada com a mãe. O ca-çador de andróides explica que as memórias foram plantadas – são de outra pessoa! Rachel chora e vai embora. Ford bebe e manipula outras fotos.

Ao longo do filme, como vimos, a paixão entre os protagonistas se consuma. Tyrell é vítima de sua cria-ção, ao explicar que não pode fazer nada que altere a longevidade dos andróides: “A estrela que brilha mais dura a metade do tempo”. O beijo entre criador e criatura desmonta os signos tradicionais de afeição e sexualidade. Todos sucumbem, em meio a vitrines, neons, sujeira, poluição, alta tecnologia, móveis de-cadentes, animais artificiais, sexo andróide, origamis misteriosos.

No fim, Roy salva Deckard de uma queda mortal pouco antes de ser “desligado”. Diz que suas me-mórias esplêndidas serão lavadas como lágrimas na chuva. “I’ve seen things you people wouldn’t belie-ve. Attack ships on fire off the shoulder of Orion. I watched C-beams glitter in the dark near the Tan-nhauser gate. All those moments will be lost in time, like tears in rain. Time to die”.

A polícia chega e o oriental personagem de Ja-mes Olmos olha ironicamente para Harryson Ford: “Pena que ela não irá viver. Mas, afinal, quem vive?” Ele fala de Rachel. Deckard corre ao apartamento, toma a mulher-replicante nos braços e foge. No ca-minho para o elevador, encontra um último origami perto da porta. É de um unicórnio, semelhante ao do sonho que o próprio protagonista teve no meio da trama. Lembra da voz de Olmos: “Mas, afinal, quem vive?” A porta do elevador se fecha e, da escuridão, emerge a inesquecível trilha sonora de Vangelis.

Deckard era também um andróide?

O que faz de Blade Runner uma obra tão cele-brada como pós-moderna? Primeiro que esse plot, explicado da forma como vocês leram, pode passar por outro gênero. De uma maneira decididamente pop, o filme é um comentário filosófico – para che-gar aos seus questionamentos existenciais, passa por um discurso de conteúdo evidente (bilha mais e dura a metade do tempo; ninguém vive muito tempo; a memória é um engano ou se perde...), mas no aspec-to formal não é menos eloqüente. A fotografia cerca os personagens em sombras úmidas e empoeiradas, iluminadas pelo neon e lâmpadas oscilantes. A dire-ção de arte mistura referências do passado – inclu-sive do próprio cinema, já que a concepção de Los Angeles é claramente uma homenagem ao clássico expressionista Metrópolis (1927), de Fritz Lang – com proféticos modelos de automóveis, aparelhos e utili-dades do futuro (a máquina que edita as fotografias não era sequer sonho em 1982).

Sociedade superpovoada, superpoluída e dominada por todo tipo de anún-cio publicitário, sempre gigantescos e inconvenientes – da incorporadora espacial Shimago-Dominguez (a globalização!) à Coca-Cola: a Los Ange-les futura de Blade Runner!

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A música de Vangelis, um marco dos recursos ele-trônicos em trilhas sonoras, aponta para a evidente melancolia e sonho. É tudo lindo e triste, a começar pelos acordes que se desfazem na abertura do fil-me. A canção de amor ficou célebre e é usada, num momento crucial da trama, como se fosse um sam-pler com outra música. O fechamento é agressivo, adrenalínico e amplo. A mistura entre sintetizadores e percussão grave parece levar o espectador para re-giões emocionais curiosamente novas e conhecidas. Você sente conforto, mas se sente desafiado.

A fotografia e o perfil de interpretação adotado pelo elenco provém de outra metalinguagem. Evi-dentemente trata-se de um pastiche dos filmes noir dos anos 30 e 40: detetive durão e solitário que en-gana e é enganado, que comete o erro de se apai-xonar pela cliente. Isso acontece em preto e branco, numa atmosfera B na forma e conteúdo – B de “ba-rato”, já que geralmente esses filmes eram feitos em prazos curtos, com pouco dinheiro e roteiros adap-tados a toque de caixa dos romances pulp vendidos nas bancas de jornais. O próprio Blade Runner é ver-são de um conto de Philip K. Dick (Do the androids dream of electric sheep? “Os andróides sonham com ovelhas elétricas?”)

Blade Runner era ainda mais parecido com fil-me B na montagem original, exigida pelo estúdio e aparentemente repudiada pelo diretor Ridley Scott. Quem foi ao cinema em 1982 assistiu a uma versão sem o famoso sonho com o unicórnio e com uma narração em off típica dos melodramas de detetive dos anos 40. Aparentemente os produtores conside-raram a trama cerebral ou confusa demais e pediram que o personagem de Harryson Ford narrasse o que estava acontecendo. Na chamada “versão definiti-va”, lançada em 1992, o voice over foi retirado e o sonho, incluído. Nessa época, Scott teria admitido que, sim, Deckard era o sexto replicante.

Decorado com falas esplêndidas (“Esses seus olhos viram coisas que vocês humanos não acreditariam”) e outras quase vulgares, inspiradas na literatura bara-ta (“lágrimas na chuva”, “você sabe que está acaba-do”...), é um mistura de passado, presente e futuro. Mas que futuro? As coisas são efêmeras e mesmo o amor depende de uma vida em vias de esgota-mento. Como no lindo som de harpa sintética que introduz as paisagens que nos tiram o fôlego, tudo brilha intensamente – para voltar logo em seguida à escuridão. Então Deckard trata de aproveitar o tem-po que resta. Ele mesmo não sabe se suas memórias são verdadeiras. “Já fez o teste em você mesmo?”, pergunta Rachel.

Time to die.

ViGÉsima-NoNa

prestaçãoO QUE é PóS-MODERNO, AFINAl?

Em literatura, não há coisa mais pós-moderna que esses manuais “facilitadores” de assuntos comple-xos, sejam de auto-ajuda ou de filosofia. Por isso, nada mais apropriado que citar um livro da coleção Primeiros Passos. Jair Ferreira dos Santos escreveu:

Pós-modernismo é o nome aplicado às mudanças ocorridas nas ciências, nas artes e nas sociedades avançadas desde 1950, quando, por convenção, se encerra o modernismo. Ele nasce com a arquitetura e a computação nos anos 50. Toma corpo com a arte Pop nos anos 60. Cresce ao entrar pela filosofia, du-rante os anos 70, como crítica da cultura ocidental. E amadurece hoje, alastrando-se na moda, no cinema, na música e no cotidiano programado pela tecno-ciência (ciência + tecnologia invadindo o cotidiano com desde alimentos processados até microcompu-tadores), sem que ninguém saiba se é decadência ou renascimento cultural.

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È importante lembrar que Santos escreveu esse O que é Pós-Moderno (Editora Brasiliense, 17a reim-pressão em 1997) nos anos 80. Os exemplos, hoje, poderiam passar dessas arcaicas e geladeirosas má-quinas que são os “microcomputadores” para apa-relhos de MP3, celulares, notebooks, etc. A arte Pop já não tão celebrada quanto naquela época. Essa fa-mosa pintura (na página anterior) de Mel Ramos, Vel-veeta (1965), vez ou outra volta à moda, mas parece fixa nos anos 60. Também nos anos 80, a divisão dos intelectuais era mais equilibrada: haviam os amantes da pós-modernidade (a geração Fritjof Capra, Pierre Levy, Dominique Wolton) e a turma pessimista de verdade (como Baudrillard, Bourdieu e o hoje ainda combativo Noan Chomsky).

Os mau-humorados com a chamada pós mo-dernidade viram mais claramente os resultados da “política de globalização”, notaram o aumento da diferença entre ricos e pobres, perceberam um em-pobrecimento estético das mídias mais populares. Há muito mais combativos do que militantes da PM. Até o termo Pós-modernidade é tratado com sarcasmo pós-moderno.

Pós-modernidade é uma linha de pensamento que questiona as noções clássicas de verdade, razão, identidade e objetividade, a idéia de progresso ou emancipação universal, os sistemas únicos, as gran-des narrativas ou os fundamentos definitivos de ex-plicação. Contrariando as normas do Iluminismo, vê o mundo como contingente, gratuito, diverso, instá-vel, imprevisível, um conjunto de culturas ou inter-pretações desunificadas gerando um certo grau de ceticismo em relação à objetividade da verdade, da história e das normas, em relação às idiossincrasias e a coerência de identidades.

Quem escreveu isso aí atrás foi Terry Eagleton no prefácio de seu livro entitulado, de maneira bastante explícita, As Ilusões do Pós-Modernismo (RJ: Jorge Zahar, 1998). E continua:

Essa maneira de ver, como sustentam alguns, baseia-se em circunstâncias concretas: ela emerge da mu-dança histórica ocorrida no Ocidente para uma nova forma de capitalismo – para o mundo efêmero e descentralizado da tecnologia, do consumismo e da

indústria cultural, no qual as indústrias de serviços, finanças e informação triunfam sobre a produção tradicional, e a política clássica de classes cede ter-reno a uma série difusa de ‘políticas de identidade’. Pós-modernismo é um estilo de cultura que reflete um pouco essa mudança memorável por meio de uma arte superficial, descentrada, infundada, auto-reflexiva, divertida, caudatária, eclética e pluralista, que obscurece as fronteiras entre a cultura ‘elitista’ e a cultura ‘popular’, bem como entre a arte e a expe-riência cotidiana. O quão dominante ou dissiminada se mostra essa cultura – se tem acolhimento geral ou constitui apenas um campo restrito da vida contem-porânea – é o objeto de controvérsia

Como vemos, Eagleton procura descrever de forma fria o fenômeno, mas deixa de “cutuca-lo” já nas primeiras páginas de sua obra. Há muito o que pensar nisso aí, mas no momento vamos nos deter nas últimas linhas: esse domínio da tecnologia é amplo e atinge a todos? Essa alegada pós-moder-nidade é projeto político ou resultado incontrolável das relações sociais e econômicas? No caso de ser promovido, mesmo que mais ou menos, de quem é a responsabilidade? O interesse vem das grandes corporações privadas e é mediado pelo Estado? O interesse é do Estado? Como reagimos a esse fenô-meno? Pense um pouco nessas matérias aí abaixo (lembre-se que forma publicadas por mídia online!). O assunto é só um exemplo:

05/04/2006 - 10h40 Negroponte rebate crítica de Gates a laptop de US$ 100 da Folha de S.Paulo

Nicholas Negroponte, professor do MIT (Instituto de Tecnologia de Massachusetts) e fundador do projeto “Um Laptop por Criança”, rebateu ontem críticas fei-tas pela Microsoft e pela Intel ao laptop de US$ 100, que deve ser distribuído a estudantes de países em desenvolvimento.

No encontro LinuxWorld, sobre programas de códi-go aberto, Negroponte disse que, “quando a Intel e a Microsoft te criticam, você sabe que está fazendo algo certo”.

“O laptop de US$ 100 é um projeto educacional, e não um projeto para um laptop”, disse o professor. Ele disse também que a Microsoft está trabalhando para desenvolver uma versão do Windows CE que rode no laptop. “Então para que nos criticar em pú-blico?”

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Bill Gates, da Microsoft, havia criticado o laptop por ter uma tela muito pequena e por não ter um disco rígido.

28/03/2006 - 10h25 Brasil cai seis posições em ranking global de tecno-logia da BBC Brasil

O Brasil caiu seis posições e ficou em 52º lugar no ranking que mede a capacidade dos países em usar a tecnologia de informação para incentivar a compe-titividade.

O Relatório Global de Tecnologia de Informação é elaborado anualmente há cinco anos pelo Fórum Econômico Mundial, a organização que promove o encontro de Davos. A pesquisa deste ano cobriu 115 países, e o Brasil perdeu posições pelo terceiro ano consecutivo. Em 2003, o país estava em 39º lugar.

A queda se deu, segundo o relatório, a um pior desempenho no que os técnicos chamam de am-biente de mercado.

“Burocracia, tempo necessário para abrir um negócio, impostos muito altos, estrutura de regula-mentação e independência judicial foram os princi-pais problemas”, disse Irene Mia, economista sênior de Competitividade Global do Fórum.

24/01/2006 - 10h51 DECRETO DE lUlA VAI bARATEAR COMPRA DE PCS A PRAzOJOÃO SANDRINI da Folha Online

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva deve assinar em até 15 dias um decreto que amplia as possibilidades de concessão de crédito para as empresas de vare-jo e, dessa forma, vai baratear o custo dos financia-mentos para a compra de computadores populares pelos consumidores.

Segundo Cézar Alvarez, o assessor especial da Pre-sidência da República responsável pelo programa ‘Computador para Todos’, o BNDES (Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social) e o Minis-tério do Desenvolvimento já deram o aval necessário para que o decreto modifique uma lei de 1962 que restringe a concessão de crédito a empresas de va-rejo.

O BNDES é hoje a principal fonte de financiamento a custos baixos para as empresas brasileiras e tem reservado R$ 300 milhões para a compra de PCs. A

única rede de varejo que já conseguiu fechar acordo com o banco para financiar a compra de computa-dores de até R$ 1.400 foi o Magazine Luiza, que nos últimos dez dias de dezembro vendeu 15 mil máqui-nas e chegou a ficar sem estoques.

Alvarez afirmou que outras grandes redes de va-rejo, como o Ponto Frio, já tentaram ter acesso a li-nhas de crédito semelhante, mas, de acordo com a lei 4.131/62, as empresas cujo acionista majoritário tenha residência no exterior estão proibidas de to-mar empréstimos no BNDES com juros atrelados à TJLP (Taxa de Juros de Longo Prazo).

Restou às grandes redes de controle estrangeiro a opção de tomar empréstimos no BNDES com ju-ros atrelados à oscilação cambial de uma cesta de moedas estrangeiras. “Apesar de ter um custo hoje semelhante ao dos empréstimos atrelados à TJLP, as linhas de crédito que oscilam com o dólar são evita-das pelos empresários, que não têm como repassar esse risco ao consumidor’, afirmou Alvarez à Folha Online.

Ele lembrou que o decreto 2.133, assinado duran-te o governo FHC, limitou o alcance da lei 4.131/62 e permitiu que multinacionais de diversos setores pudessem ter acesso a linhas de crédito atreladas à TJLP. “O que estamos fazendo agora é apenas incluir nessa lista de exceções o setor de varejo, que tem boa parte de seu capital em mãos de estrangeiros”, disse.

Ele também afirmou que o grande diferencial do Magazine Luiza no último Natal foi conseguir ofere-cer prestações com juros menores que os concorren-tes. ‘Acho que temos então de dar condições iguais de competição às empresas’, disse.

Após a edição do decreto, o BNDES poderá em-prestar recursos aos varejistas com um custo máximo de TJLP (hoje em 9% ao ano) mais até 6,5% (já in-cluída a taxa cobrada pelos bancos pelo repasse do empréstimo do BNDES).

Dessa forma, os computadores podem chegar ao consumidor com um juro de 2% a 3% ao mês, taxa bastante abaixo das praticadas no mercado.

Bancos como a Caixa Econômica Federal e o Ban-co do Brasil já oferecem empréstimos para a compra de computadores populares com juros de 2%. No entanto, essas linhas exigem o pagamento de uma taxa de abertura de crédito. Além disso, o cliente deve possuir cartão de crédito ou débito com a ban-deira Visa para tomar crédito no BB. Já o empréstimo da Caixa é restrito a proprietários de conta corrente ou poupança no banco.

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16/06/2003PR TEM 1,03 MIlhãO AbAIxO DA lINhA DO FOME zERO

Estudo do Instituto Agronômico do Paraná revela que a pobreza no Estado está concentrada em 42 dos 399 municípios

O Paraná tem 1,03 milhão de pessoas abaixo da linha de pobreza estabelecida pelo programa Fome Zero, idealizado pelo governo federal. Isso significa que mais de 10% dos paranaenses teriam direito hoje a serem incluídos no programa.

O Estado tem cerca de 9,5 milhões de habitantes. Esses dados aparecem em levantamento elaborado pelo Instituto Agronômico do Paraná (Iapar), apre-sentado nesta segunda ao governador Roberto Re-quião (PMDB). A base do estudo são os microdados do Censo 2000 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

O Fome Zero considera pobres as pessoas que re-cebem menos de um quarto do salário mínimo por mês, descontados gastos com moradia e acrescenta-da renda por autoconsumo - produção de alimentos para consumo próprio, por exemplo. Um dos autores do estudo, o pesquisador Rafael Fuentes, da área só-cio-econômica do Iapar, estima que dois terços dos paranaenses que estão abaixo da linha da pobreza vivem em cidades.

‘ ’Os dados complementam os do Índice de Desen-volvimento Humano (IDH)’’, explicou Fuentes. ‘’Eles confirmam a situação precária dos municípios mais pobres, mas mostram distorções em cidades como Curitiba e Londrina, que têm IDH alto, mas também um grande número de pessoas abaixo da linha da miséria.’’

A Capital, por exemplo, é a cidade do Estado com mais pobres - são 83.682 pessoas, ou 5,33% da po-pulação total, de cerca de 1,56 milhão. Em Londrina, 28.823 pessoas estão abaixo da linha de pobreza do Fome Zero - o equivalente a 6,5 % da população de 443 mil pessoas. ‘’Proporcionalmente, o número é baixo, o que mascara a existência de muita gente abaixo da linha da miséria. Essas cidades também devem adotar ações contra o problema’’, disse Fuen-tes.

Os dados revelam ainda que a pobreza do Estado está concentrada em 42 dos 399 municípios. As desigualdades numa mesma região também foram destacadas. No Litoral, por exemplo, a média de po-breza de Morretes era de sete pessoas para cada 100 habitantes. Guaraqueçaba concentra 29 pobres para cada 100 habitantes.

Na Região Metropolitana de Curitiba, 8% da po-pulação vivem na faixa de pobreza, cerca de 216,1 mil pessoas. A Região dos Campos Gerais concentra 12,9% da pobreza do Estado. No Norte Pioneiro, a taxa de pobreza é de 11,9%. No Norte, são 12,1% na faixa de pobreza.

Sexta, 27 de janeiro de 2006, 09h17 MICROSOFT TEM lUCRO MAIOR NO SE-GUNDO TRIMESTRE

A Microsoft anunciou lucro trimestral 5,49% maior nesta quinta-feira, impulsionado em parte pelo lançamento do video-game Xbox 360 e pelo gerenciador de banco de dados corporativos SQL Server 2005. A maior fabricante mundial de softwa-res reportou um lucro líquido de US$ 3,65 bilhões, ou US$ 0,34 por ação, no seu segundo trimestre fis-cal, encerrado em 31 de dezembro.

Um ano antes, o ganho foi de US$ 3,46 bilhões, ou US$ 0,32 por ação. O resultado ficou em linha com as previsões de Wall Street, apesar de as receitas terem sido levemente maiores. As receitas trimestrais avançaram para US$ 11,84 bilhões, ante vendas de US$ 10,82 bilhões um ano antes, e previsão de US$ 11,97 bilhões, conforme analistas consultados pela Reuters Estimates.

Apesar dos lançamentos de novos produtos no trimestre, as preocupações com a baixa demanda por PCs contiveram as expectativas pelos resultados. Outros lançamentos, incluindo a próxima versão do sistema operacional Windows, estão no centro dos esforços da Microsoft para recuperar o desempenho das duas ações, que têm exibido performance abai-xo da média em todos os principais índices, desde o começo de 2003.

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triGÉsima

prestaçãoIsso é continuação clara de onde paramos, crianças radiosas e andróides melancólicos.

Ou não.

Ops, voltando ao nosso discurso fragmentário, vale mais um pedaço da colagem, essa arte tão sus-peita. Mais idéias do Jair Ferreira dos Santos sobre o que ele chama de “fantasma pós-moderno”, agora em tipologia antiquadamente mais pós-moderna.

Veja essa escultura de lona estampada, enchida com espuma, criada por Claus Oldemburg (nasceu em 1929) em 1962. “Hambúrguer Gigante” tem quase um metro e meio de altura e mais de dois metros de largura.

Continuemos com Santos. Agora é que ele vai falar de obras como essa aí encima.

O edifício Bristol Brasil 500, obra do característico arquiteto Bruno de Franco, crava suas mandíbulas na calçada da rua Desembargador Motta, em sensível foto de Camila Ferraro Marenda.

“Para começar, ele invadiu o cotidiano com a tecnologia eletrônica de massa e individual, visando à sua saturação com informações, diversões e serviços. Na Era da Informática, que é tratamento computadorizado do co-nhecimento e da informação, lidamos mais com signos do que com coisas. O motor a explosão detonou a revolução moderna; o chip, o microprocessador com o tamanho de um confete, está causando o rebu pós-mo-derno, com a tecnologia programando cada vez mais o dia-a-dia.

Na economia, ele passeia pela ávida socieda-de de consumo, agora na gase do consumo personalizado, que tenta a sedução do indi-víduo isolado até arrebanha-lo para sua mo-ral hedonista – os valores calcados no prazer de usar bens e serviços. A fábrica, suja, feia, foi o templo moderno; o shopping, feérico em luzes e cores, é o altar pós-moderno”.

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Mas foi na arte que o fantasma pós-mo-derno, ainda nos anos 50, começou a cor-rer mundo. Da arquitetura ele pulou para a pintura e a escultura, daí para o romance e o resto, sempre satírico, pasticheiro e sem esperança. Os modernistas (vejam Picasso) complicaram a arte por leva-la demasiado a sério. Os pós-modernistas querem rir levia-namente de tudo”.

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“Enfim, o pós-modernismo anmeaça en-carnar hoje estilos de vida e de filosofia nos quais viceja uma idéia tida como arqui-snis-tra: o niilismo, o nada, o vazio, a ausência de valores e de sentido para a vida. Mortos Deus e os grandes ideais do passado, o ho-mem moderno valorizou a Arte, a História, o Desenvolvimento, a Consciência Social para se salvar. Dando adeus a essas ilusões, o ho-mem pós-moderno já sabe que não existe Céu nem sentido para a História, e assim se entrega ao presente e ao prazer, ao consu-mo e ao individualismo. E aqui você pode escolher ser:

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a) a criança radiosa – o indivíduo desenvolto, sedutor, hedonista integrado à tecnologia, narcisista com identidade móvel, flutuante, liberado sexualmente, conforme o incensam Lipovetsky, Fiedler e Toffler, alegres gurus;

b) o andróide melancólico – o consumidor programado e sem história, indiferente, áto-mo estatístico na massa, boneco da tecno-ciência, segundo o abominam Nietzsche e Baudrillard, Lyotard, profetas do apocalipse”. (Santos, 1997).

triGÉsima primeira

prestaçãoÚltimas considerações do semestre. Vem aí uma nova temporada de Teoria da Comunicação. Reve-lações surpreendentes! Alguns personagens impor-tantes vão morrer. Uma parte vai reprovar, simples-mente. Quem fica com quem na nova, revigorada e emocionante soap opera que todos adoram? Pague a mensalidade, tire a nota mínima, garanta freqüên-cia, reze para um adiamento do apocalipse e para que o Osmir não vá se esconder no seu quarto, dis-farçado de camiseta branca no varal... e saberá!

Enquanto fechamos a conta com pós-modernida-de, lembrem que todo o conteúdo dessa apostila é meramente um complemento das aulas. Ela é pro-positadamente incompleta – em nomes, datas e até assuntos. Serve mais para estimular a criatividade e despertar o interesse do que treinar objetivamente.

Para a turma da manhã, me dediquei mais a falar de Hair como filme que mistura as tendências artísti-cas da modernidade e da pós-modernidade. Para os notívagos, vimos e comentamos Blade Runner.

Nenhuma divisão severa, na verdade, é muito consistente. Por isso é tão justo que muitos desconsi-derem o “problema” da pós-modernidade. Acham, posmodernamente, que não há mais rótulos fixos aplicáveis. No fundo, a crítica melancólica de Blade Runner também é moderna, no seu sentido ético. E assim a carruagem avança.

Temos datas e situações exemplares desse supos-to início da pós-modernidade? Sim, claro, mas sem-pre devemos ter em mente que a História não muda a partir de datas ou eventos. São processos inteiros, longos e irregulares, que às vezes valem para uma região e não para outra, que explicam o ânimo pelo qual as sociedades avançam. Datas comemorativas ou lamentáveis são apenas símbolos imprecisos.

Vamos dizer algumas:

Seis de agosto de 1945, 8h15 minutos. Hiroshima. Esse parece ser o fim da modernidade, da crença na Ciência e na civilização.

1953: Descobrem o DNA.

1955: arquitetos italianos lutam contra a internacio-nalização da arquitetura moderna. Querem prédios mais próximos das tradições locais e do passado de cada região. No mesmo ano, Jaspers Johns pinta Three Flags, ironizando a idolatrada (pelos norte-americanos) bandeira dos EUA.

1957: Engenheiros desenvolvem o microchip, o que vai permitir, lá em 2006, que nosso computador não ocupe dois andares de um prédio. Mas ainda temos o lançamento do soviético Sputnik naquele ano, o primeiro satélite em órbita da Terra.

1960 e depois: Marketing e publicidade dominam o campo simbólico, desenvolvem-se os self-service e fast-foods. Temos pílula, minissaia, motel e a vitória do rock sobre outras formas musicais. Andy Warhol é o cara nos anos 60 (olha esse quadro aí ao lado – chama-se “Faça você mesmo”, é de 1962 e tem 178 X 137 cm. Não é tão famoso como as latas de sopa Campbell ou a Marylin Monroe, mas mostra bem a ironia, o flerte com a “criança radiosa” tão característicos do artista que sustentava o grupo de rock Velvet Underground).

FIM DOS TEMPOS? A querida Luciana Helena, aluna da manhã, pa-receu terrivelmente aflita quando nos dedicamos e descrever o aparente egoísmo, narcisismo, fim das utopias e grandes valores que esse estado pós-mo-derno aponta. Sem dúvida, não podemos ter certeza dos resulta-dos desse estado de espírito dominante. Aliás, nem sabemos se é dominante, mesmo!

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O fato é que, se queremos tirar alguma coisa de bom nisso, talvez seja interessante perceber que a “falta de valores” pode representar o declínio de um dis-curso opressor que provavelmente nunca levou nin-guém à felicidade. Quando estudamos semiologia, percebemos que o campo da linguagem nos reser-va armadilhas sinistras. Será que o amor à Família, à Cristo, ao Estado, etc., não é mero artifício para dominação, exclusão, conservação de valores que são, enfim, convenientes apenas para uma pequena parte da sociedade?Claro que não é tão simples assim – mas a abertura “sem preconceitos” que a chamada filosofia pós-moderna permitiu fez com que avançássemos em muitos campos. O multiculturalismo e o respeito às representações sociais, dos quais vamos falar no pró-ximo semestre, é uma das vantagens do fim daque-las imutáveis Verdades Superiores.A mistura de linguagem popular e “divertida” com assuntos “sérios” e de amplitude social é outro exemplo. Lembram dos recursos “pop” na história de assombração? Enfim, para concluir essa pequena conversa, aplico uma narcisista experiência que fiz como repórter. Até onde me informaram, foi o pri-meiro texto em primeira pessoa na história da Gaze-ta do Povo. No passado, seria inconcebível tanta im-portação de discurso, na forma e no procedimento. Mais no passado, nem o multiculturalismo cigano da matéria posterior seria admitido. Felicidades!

MISERÁVEl PASSA POR “INVISÍVEl” NA RODOVIÁRIARepórter da Gazeta do Povo se disfarça de andarilho para observar reação de fiscais e assistentes sociais no terminal de Curitiba Por Victor Folquening

Barba por fazer, cabelo mal aparado, boné salpi-cado de tinta de parede, calça de agasalho puída com os joelhos manchados de terra, camiseta regata desbotada sobre um moleton velho, sapatos desgas-tados com cadarços diferentes e ausência de qual-quer adereço. Ao figurino se acrescenta o cheiro de álcool e o ar disperso, unhas e dentes sujos.

Mesmo nessas condições, um ser humano pode passar despercebido na Rodoferroviária de Curitiba. Como se fosse invisível. Ao desembarcar na capital disfarçado de andarilho, às 17h30 de uma segunda-feira (19 de julho), não fui abordado por nenhum fis-cal, policial ou assistente social, apesar do evidente esforço para chamar a atenção. Circulei pelos corre-dores da rodoviária por aproximadamente 40 minu-tos, em atitude suspeita, como se rondasse as lojas, e fui obrigado a me dirigir às pessoas para que fosse notado. Nem uma dupla de guardas que passou por mim várias vezes fez qualquer sinal de preocupação.

O prefeito e o mendigo

O prefeito de Londrina, Antônio Belinatti, andava ao longo de uma plataforma, conversando com um outro homem, mais velho que ele. Quando um ter-ceiro rapaz, falante, se aproximou do grupo, resolvi pedir uma “ajuda” ao prefeito. “Moço, eu estou vin-do de Ortigueira para tentar arrumar um emprego em Curitiba, mas está difícil... tem como me arrumar um trocadinho?”. Nenhum dos três sequer me olhou. O mais velho balançou a cabeça negativamente, o recém-chegado ignorou e Belinatti me deu R$ 1,00. “Deus que ajude, doutor”, agradeci.

Outras pessoas se negaram a dar esmolas, sem dar explicações. Meu único “concorrente”, naquele momento, era um rapaz que exibia a foto de uma pessoa paralítica e pedia ajuda para tratamento mé-dico. Outras famílias aguardavam ônibus em situa-ção tão ou mais precária que a minha. Uma mulher aparentando mais de 40 anos, de vestido marrom com grossos remendos cinzas, segurava um colchão e cuidava de meia dúzia de sacolas, cheias de pane-las e roupas. “Estou só de passagem, moço. Vamos morar em Telêmaco Borba”. O marido, negro, alto e magro, de olhar severo e expressão preocupada, arrumava o chapéu branco e ajeitava a camisa ama-rela, desabotoada até a metade do peito, por dentro da calça de tergal azul. Calçava chinelos nos pés em-brutecidos. “A capital não deu certo para nós”.

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Origem

Viajei de Ponta Grossa a Curitiba com uma pas-sagem fornecida pelo Centro de Orientação ao Mi-grante (Ceomi), órgão da Secretaria Municipal de Assistência Social. A história contada aos agentes da rodoviária de Ponta Grossa foi a mesma: eu estaria vindo de Ortigueira e seguiria a Curitiba. Um bilhe-te Ponta Grossa-Curitiba, incluindo seguro e taxa de embarque, custa R$ 7,39.

No momento do embarque, fiscais da companhia de transporte ofereciam alguns lugares em um ôni-bus que sairia ao mesmo tempo que o meu, com o mesmo destino. A vantagem é que chegaria mais rápido em Curitiba, sem escalas. Fui o segundo a re-querer a mudança. Depois que o primeiro passagei-ro entrou, o fiscal me disse: “Espere a sua vez. Vou atender quem estava na sua frente”. E deu lugar a quatro outras pessoas para só então me deixar en-trar.

Serviço social ignora pessoas que não apresen-tam documentos

O sistema de assistência social de Curitiba prefere ignorar pessoas que não possuam documentos. De-pois de chegar à Rodoferroviária, no final da tarde de segunda-feira, e não ser abordado por nenhum fiscal, procurei a Casa da Acolhida e do Regresso, mantida pela Fundação de Assistência Social (FAS) do município.

Na fantasia de miserável, fingi desconhecer a fun-ção da Casa e pedi ao atendente “um emprego”. O rapaz me explicou que o local não servia para isso. Então eu disse que estava vindo de Ortigueira para morar em Curitiba, mas não tinha onde ficar. Ele me ofereceu o albergue, mas pediu meus documentos. “Eu perdi quando passava por Ponta Grossa”, simu-lei. “Então eu não posso fazer nada. Eles nem vão deixar você entrar no albergue sem documentos”.

Perguntei como faria para conseguir a segunda via dos documentos. O atendente disse que só se-ria possível na cidade de origem. “Será que vocês não arrumam uma passagem para eu voltar para Ortigueira?”. O interlocutor foi enfático: “Não dá. Sem documento eu não posso fazer nada”. Esperei ao lado da cabine por alguns minutos, enquanto ele atendia outras pessoas, até que “desisti”. Não há ne-cessidade de se retornar à cidade natal para adquirir segunda via de documentos. O trâmite pode ser fei-to através dos cartórios.

Informação

A assessoria de imprensa da Fundação de Ação Social

afirma que, mesmo sem documento, todas as pesso-as que procuram a Casa da Acolhida e do Regresso são atendidas. Para a FAS, “dar informações é aten-dimento”. O procedimento da Casa seria “orientar”, através do Programa de Acompanhamento Familiar, e, em último caso, ligar para a cidade de origem e se informar sobre a pessoa que pediu ajuda.

Segundo a assessoria de imprensa, recém-chega-dos à Rodoferroviária não são abordados pelas as-sistentes sociais, independentemente das condições físicas e do vestuário. A permanência ociosa na esta-ção deveria ser averiguada pelos educadores de rua, agentes de um programa em funcionamento perma-nente.

Regresso

Nos primeiros três meses do ano, a Casa da Aco-lhida e do Regresso atendeu 3.482 pessoas. Parte desse contingente (cerca de 15%) é de Curitiba e região metropolitana e procura o serviço da Rodo-ferroviária “por engano”.

No período, 729 pessoas chegaram à capital para tratamento de saúde, e 534 eram os chamados “trecheiros” - homens e mulheres que circulam de cidade em cidade a procura de trabalho. Até mar-ço, 1.776 pessoas foram encaminhadas para os seis albergues conveniados com a FAS. Foram fornecidas 1.198 passagens de ônibus para outras cidades.

Ponta Grossa

A prefeitura de Ponta Grossa “devolve” migrantes que procuram a Assistência Social sem documentos. “Se a pessoa é de outra cidade e perdeu os docu-mentos, nós damos uma passagem para ele voltar”, explica o secretário João Barbiero. “Mas antes nós ligamos para a assistente social da cidade de origem e informamos o procedimento”.

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CIGANOS SOFREM COM “DITADURA” DO DO-CUMENTOBurocracia limita acesso à escola, representação pú-blica e direitos de cidadão; até participar de desfile é complicado

Por Victor Folquening

Ponta Grossa - O burocrata que organizava o evento se debatia para encontrar uma forma de in-cluir os ciganos no desfile. Pensou que, talvez, a data da fundação do “grupo” resolvesse. “Quantos anos tem seu grupo?”, perguntou ao líder. Tranqüilamen-te, o cigano respondeu: “Quatro mil anos”. O fun-cionário da Associação Étnica do Paraná, aturdido, resolveu pedir: “O senhor tem aí um documento que comprove?”

No início da semana, a Gazeta do Povo mostrou em reportagem o processo de exclusão das pessoas que perdem os documentos. Mas há aqueles que resolveram abdicar do “número de série” como filo-sofia de vida. E pagam caro pela escolha. Não con-seguem estudar no ensino regular, ter representação pública ou mesmo exercer os direitos naturais de to-dos os seres humanos.

Nômades

Sem pátria, os ciganos convivem com o preconcei-to todos os dias. Povo milenar e nômade, consideram os documentos uma forma de repressão e submis-são. A Associação da Preservação da Cultura Cigana diz que no Brasil são 600 mil representantes da etnia - todos oficialmente excluídos da sociedade.

Até os dez anos, a criança cigana não aprende português. A partir dessa idade, os pais descobrem a necessidade de enquadrar os filhos em algum sistema educacional. A primeira dificuldade: as leis brasileiras não permitem que ciganos cumpram o ca-lendário escolar em trânsito, embora a ressalva valha para circenses.

Os pais precisam de registro de nascimento para inscrever os filhos na escola. Se a família cigana con-segue vencer essa etapa, vai precisar comprovar o “atual” endereço. Qualquer que seja o procedimen-to do cartorário, duas testemunhas são necessárias.

Discriminação

O presidente da Associação de Preservação da Cultura Cigana (Aprecci), Cláudio Domingos Iovano-vitchi, pretende denunciar a secretária estadual de Cultura, Lúcia Camargo, à Secretaria Nacional dos Direitos Humanos. Para demonstrar que adota uma postura “democrática”, a secretária teria dito em um programa de rádio que “atende tanto a Fernanda Montenegro quanto o Cláudio Cigano”.

Iovanovitchi é artista plástico e militante pelos di-reitos dos ciganos. “A discriminação parte do poder”, acredita. “Imagine se eu começar a chamar alguém de João Preto como contraste a alguma celebrida-de?” O presidente da Aprecci observa que dificil-mente ciganos levantam acampamento em Curitiba. “A guarda municipal, cuja função é outra, expulsa as pessoas”, denuncia.

Em Ponta Grossa, anciãos sem documentos são encaminhados para a Fundação do Idoso, portado-res de deficiências para a Fundação Promover e ca-rentes ao Serviço de Obras Sociais (SOS). (VF)

A matéria a seguir foi publicada alguns dias depois, pautada pela repercussão da primeira.

O mesmo burocrata que se debruçava sobre a pape-lada para explicar ao cigano que a presença da etnia não era bem-vinda no organizado desfile de etnias curitibano, tentou uma última pergunta estratégica: “Qual é a forma de prática organizada de seu gru-po?”. Sem mais argumentos, o líder da comunidade respondeu: “O cigano nasce dançando e morre dan-çando”.

PROVA

Como me sairei nessa prova com tanta matéria?

Sabe Deus.

O fato é que precisa estudar loucamente o seguinte:

1) Origens do estruturalismo: Saussure, Peirce, etc.2) A contribuição de Roland Barthes para a Semiolo-gia.3) A Semiologia: signos e tudo mais.4) Os aparelhos Ideológicos e Repressivos do Estado, além das outras conversas interessantes de Louis Al-thusser: o debate sobre alienação, luta de classes, etc.

triGÉsima seGUNDa

prestação

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5) As relações de poder na sociedade, a partir, es-pecialmente, do pensamento de Foucault; panóptico invertido, governabilidade e dispositivos, disciplinas-bloco e disciplinas-mecanismo.6) Análise de Discurso na prática e na teoria. Diferen-ças entre o modelo anglo-saxão e o francês. O livro introdutório de Milton José Pinto. O exemplo do nos-so amigo, apelidado monstruosamente de Monstro do Guaragi.

Aliás, quer dar uma treinada em análise de discurso? Exercite-se com esses parágrafos, publicados na re-vista laboratório Entrelinha número 10, de um curso de Jornalismo em Curitiba.

A reciclagem de materiais está sendo cada vez mais valorizada pelos governos e pelas comunidades. Hoje, quando a produção de resíduos sólidos nos centros urbanos está cada vez maior, esse assunto é tratado com seriedade e muitos acabam descobrindo que é possível fazer arte com quase tudo que é lançado na cesta de lixo. Latas, papéis, garrafas plásticas e até tampinhas de garrafas podem ser transformados em algo diferente e inovador. De acordo com o de-partamento de limpeza pública de Curitiba, do total de lixo gerado nos centros urbanos, calcula-se que 35% e 45% do que vai parar nos aterros sanitários e lixões é composto por materiais não degradáveis, que podem ser reaproveitados.

7) As características da revolução do consumo. Eliza-beth e a moda, a pátina, as lojas de departamento, o consumidor semiótico, a “nova era de compras”. Lembrem do texto da Érika Rappaport.8) O papel do shopping na distribuição social con-temporânea. Lembrem do texto da Beatriz Sarlo.9) A pós modernidade. Blade Runner X Hair!10) Sejam felizes.