Viagens de Uma Psicologa Em Crise

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belo livro

Transcript of Viagens de Uma Psicologa Em Crise

  • Sobre a autoraGraziela Ramos de Souza Bergamini

    Psicloga pela Pontifcia Universidade Catlica(PUC), se formou em Dinmica dos Grupospela Sociedade Brasileira de D.G, temformao de Facilitadora de Grupos dePathwork; fez em Harvard a disciplinade mestrado Human Emotions e tambm adisciplina Family Counselling em LesleyCollege, Boston, EUA.

    Atende pacientes desde 2006 emconsultrio particular, e ministra treinamentos epalestras sobre desenvolvimento pessoal.

    Acumula desde muito jovem, vivncia noexterior, como: Canad (aos 14 anos), Dakotado Norte, EUA (aos 15), ndia (aos 21),Boston, EUA (aos 24), Portugal (aos 32).

    Graziela tem 36 anos e vive ao lado de seumarido, Fbio, e de seus dois filhos, Luiza, 10anos, e Leonardo, 7 anos.

    Contato:

    [email protected]

    Site:www.viagensdeumapsicologaemcrise.blogspot.com.br

    Twitter: @psicoemcrise

    (...) no foi s o choque cultural enem a fuga do entediante cotidiano

    que me levou para a ndia: foitambm uma espcie de busca

    espiritual.

    Apresentao

    Uma estudante de Psicologia, entediada e cheia de dvidasquanto escolha da profisso, decide passar trs meses na ndia,sozinha, para receber um choque cultural e chacoalhar suacompreenso cinza sobre a vida. A ndia apenas um pano de fundo erepresenta uma viagem maior: a viagem interna. O livro no possui umaordem cronolgica, mas passeia pelo tempo livremente em divertidas eprofundas histrias sobre a natureza humana.

    *****

    Para mim crise uma coisa boa. Pode doer, pode incomodar,voc pode at rezar pra todos os seus santos pra fazer ela passar, masuma coisa fato: nunca samos dela pior do que entramos. A "crise"serve pra empurrar a gente pra frente, pra explodir pensamentossucateados, mesmo que seja meio na base da dor.

    Mas, honestamente, nesse livro no foram as crises que mechamaram a ateno, mas sim o humor, o jeito sincero, engraado etotalmente fludo de ler, sem dramas ou dilemas existenciaisnitzcherianos.

    O(A) leitor(a) de "Viagens de uma Psicloga em Crise" vai seidentificar logo nas primeiras letras e certamente vai se deleitar aoembarcar em cada captulo dessa crise. Boa viagem!

    Kiko Mattoso, redator publicitrio e roteirista

    www.komedi.com.br0

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  • Diretor: Srgio ValeAssistente editorial: Marisa LeoGerente de vendas: Sandro Celestino de ArajoDiagramao e capa: Messias Freire ManoelReviso: Martha Jalkauskas

    Bergamini, Graziela Ramos de Souza

    Viagens de uma psicloga em crise / GrazielaBergamini. -- Campinas, SP : Incentivar, 2013.

    ISBN 978-85-63907-12-7

    1. Crnicas brasileiras 2. Psiclogas3. Viagens - Narrativas pessoais I. Ttulo.

    2013

    Impresso no Brasil

    Rua lvares Machado, 460, 3o andar13013-070 Centro Campinas SPTel./Fax: (19) [email protected]*Incentivar um selo da Editora Komedi

    Copyright by Graziela Ramos de Souza Bergamini, 2013.

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)(Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

    13-01214 CDD-869.93

    ndices para catlogo sistemtico:1. Crnicas de viagens : Literatura brasileira

    869.93

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    AgrAdecimentos

    Agradeo profundamente:Ao meu marido, por sempre acreditar em mim, por me

    incentivar a realizar meus sonhos, por possuir uma pacincia grandiosa me aguentando em minhas TPMs dirias. Por seu enorme companheirismo, por me ensinar tantas coisas que eu no sabia sobre convivncia, harmonia, prazer e amor. E mais ainda: por enriquecer o livro com seu olhar potico.

    Aos meus pais, por apostarem em meus sonhos, mesmo aqueles to infantis e no planejados. Por serem companheiros de vida inabalveis em todos os momentos. Por me ensinarem valores verdadeiros pelos quais vale a pena viver.

    minha tia Monica, por ter tido muitas vezes, uma dedi-cao de me com seus sobrinhos.

    Ao meu irmo Kiko, pela disposio e dedicao em fazer a primeira leitura e reviso do livro, ajudando-me a melhor--lo. Por me inspirar com sua coragem e disciplina para realizar objetivos. Por poder rir de sua percepo engraada e inteligente sobre a vida.

    Ao Duda, meu irmo, que amo tanto e nunca digo. Sua objetividade e generosidade encantam e inspiram qualquer pes-soa.

    Ao Vitinho, por me ensinar sobre persistncia e fora para enfrentar tudo aquilo a que se disps e que vem conseguindo.

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    Luiza e ao Lo, por me darem a oportunidade de me descobrir como me e por serem seres indescritveis. So minhas inspiraes dirias.

    famlia que ganhei quando casei com o Fbio. Cada um sua maneira me ensina que famlia pode ser a melhor coisa do mundo.

    Aos muitos amigos e amigas, recentes e antigos, leitores de trechos do livro postados em rede social na internet. Sinto ur-gncia em agradecer suas palavras de puro incentivo. Sem elas este livro provavelmente no seria escrito.

    A cada um de meus pacientes, que me d a oportunidade de continuar crescendo e amadurecendo enquanto pessoa e profis-sional.

    A todas as pessoas queridas do Pathwork e tudo o que me ensinaram.

    Editora Komedi e seu pessoal, que rpida e competente-mente, tornou este livro realidade.

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  • SUMRIO

    Prefcio .............................................................. 11

    Cap. 1 | EM ARYAMANIS HOUSE ....................................19

    Cap. 2 | ADAPTAO ............................................................29

    Cap. 3 | POR QUE NDIA? ....................................................35

    Cap. 4 | RVEILLON ..............................................................41

    Cap. 5 | SABEDORIA E ENTREGA .....................................45

    Cap. 6 | SAI BABA ...................................................................51

    Cap. 7 | ONDAS .......................................................................57

    Cap. 8 | UM MUNDO ESPIRITUAL? ..................................61

    Cap. 9 | ESCOLHAS ................................................................67

    Cap. 10 | MAPA ASTRAL.......................................................71

    Cap. 11 | ESTGIO ..................................................................77

    Cap. 12 | ALGUMAS VERSES DE MIM ...........................81

    Cap. 13 | PRIMEIRO DESASTRE AMOROSO ...................85

    Cap. 14 | RELACIONAMENTO SRIO ...............................91

    Cap. 15 | TOSSE .......................................................................95

    Cap. 16 | PSICOLOGIA OU MEDICINA? ..........................99

    Cap. 17 | O PATHWORK ........................................................105

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  • Cap. 18 | EU IDEALIZADO ..................................................113

    Cap. 19 | NUFRAGA ............................................................119

    Cap. 20 | JANTAR COM O TAXISTA ..................................125

    Cap. 21 | ABORDAGENS DESAGRADVEIS ...................133

    Cap. 22 | MAIS CH ...............................................................139

    Cap. 23 | DESPEDIDA ATRIBULADA ................................143

    Cap. 24 | O SIGNIFICADO ESPIRITUAL DA CRISE .......155

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  • Dedico os textos que se seguem a todas as pessoas pelas quais sinto gratido e a todas as outras que, assim como

    eu, possuem conflitos e confuses parecidas, mas que acreditam na autorresponsabilidade, na mudana e na

    felicidade.

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    Prefcio

    Meu marido, nossos dois filhos e eu tnhamos voltado h alguns meses para o Brasil depois de morarmos por quase dois anos em Portugal. Fbio tinha sido convidado por um ami-go para fazer um teste para integrar o grupo musical portugus Madredeus. Passamos um perodo delicioso em Lisboa, mas depois de 2 anos acabou o contrato com a banda. Estvamos de volta em fase de readaptao em nosso pas, recomeando do zero financeiramente e acomodados, por um perodo, na casa de meus pais. Ele, msico; eu, psicloga.

    As coisas fluam a uma velocidade quase nula. Ele voltando a fazer contatos com msicos e profissionais da rea; eu, perdida, pensando novamente se deveria trabalhar em um restaurante, con-tinuar a saga como psicloga autnoma ou iniciar outra faculdade nunca certa daquilo que eu gostaria realmente de fazer na vida.

    Retornar ao Brasil foi quase uma imposio das circuns-tncias, j que Portugal estava em dificuldades aps a crise eco-nmica de 2008.

    Voltvamos para casa depois de levar as crianas es-cola, num dia chato e comum de semana. Ele dirigindo o carro emprestado por meus pais, eu no banco da frente do passageiro, olhando fixamente para o vazio, focada na minha solido e nas minhas confuses internas.

    Gr, por que voc no escreve um livro? Pergunta con-fiante meu marido.

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    Saindo lentamente do meu fabuloso mundo e voltando a ateno para esta voz que representava ali o mundo real, res-pondo abobada:

    Um livro? , olha que ideia boa! Voc pode escrever sobre tantas

    coisas que voc j viveu: suas viagens, suas percepes sobre a vida, suas crises...

    Ficou pensativo e continuou num tom animado: isso, Gr! isso o que voc vai fazer. Eu j decidi

    (acho que estava mesmo desesperado para me ajudar). Pode at ser, mas... quem sou eu para escrever um livro?

    Sou uma pessoa to comum! Quem vai se interessar por meus devaneios?

    E da que voc to comum? Alis, justamente por isso. Quantas pessoas podem se identificar com suas percepes e sentimentos? Alm disso, voc adora escrever e tem muita his-tria para contar sobre suas viagens. Por que no escreve um livro sobre suas aventuras na ndia?

    J adorando a ideia e me distanciando um pouco da la-macenta confuso interna, respondo:

    Hum, no sei. Um livro de aventuras? No...Ele estava com a mente afiada: Quem sabe um livro sobre as suas aventuras, suas crises

    com Deus e com a profisso? Nossa, quanta crise! Ser que eu sou to problemtica

    assim? No isso, Gr. Voc entendeu sim o que eu quis dizer.

    Voc conhece as crises e conhece tambm os caminhos que aju-

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    dam a sair delas. Seja voc mesma. Escreva naturalmente sobre seus conflitos, seus questionamentos, suas impresses. Escreva sobre tudo o que voc tem aprendido com seus estudos; pe sua viso de psicloga.

    . Acho que seria legal mesmo... Poderia ser um livro leve, divertido e til para alguma coisa.

    Mesmo j tendo comprado a ideia, meu sabotador insiste em reagir:

    Mas, sei l... Para escrever preciso ter disciplina, coi-sa que nunca tive naturalmente. Sempre me foi imposta pelos meus pais e pelas escolas que estudei e nunca adiantou nada; alis, adiantou para que eu ficasse avessa a esse tipo de coisa.

    No fale isso! Quando voc fala que tem que ter disci-plina, parece que j torna impossvel; j te desanima.

    Mas verdade. Eu quero tanto ter disciplina em al-guma coisa! Sem ela, vou esquecer. Amanh vou acordar e vou pensar em um milho de coisas para fazer e vou me esquecer do livro.

    Voc tem que ter inspirao, tem que estar motivada. Tem que acordar de manh e falar: Eba, vou escrever meu livro!

    Fica na minha cabea o dilogo que tinha acabado de assistir no filme sobre a vida de Chico Xavier entre ele e o seu guia espiritual, que diz:

    Chico, para trabalhar para o bem, no ser desampa-rado, mas ter que respeitar trs regras bsicas: a primeira a disciplina.

    E a segunda? Pergunta Chico. A segunda disciplina tambm. E a terceira?

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    Sorrindo, Emmanuel responde: A terceira tambm disciplina.Nossa, ser que eu consigo?Acho que sim se eu buscar prazer nessa tarefa e no com-

    promisso com ela...Acho que sim se eu escrever um pouco de cada vez...Acho que sim se eu esfregar as mos todos os dias de

    manh e disser: Eba, vou escrever meu livro!

    1998. Varanasi, ndia.

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  • Eu adoraria ter escrito este livro em uma bonita mesa de madeira em frente ao mar. Em uma casa espaosa, cheia

    de janelas, beira da praia, sossegada, concentrada, sentindo--me importante. Teria tempo e foco suficientes para desaguar

    este contedo que comearia a amarelar no subconsciente...Diferente dessa cena, escrevi o livro em casa, em meio a todo tipo de demandas de crianas, tarefas domsticas e distraes

    em redes sociais e emails.

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  • Viagens de uma psicloga em crise 19

    em ArYAmAnis HoUse

    No era uma crise aguda. Era uma crise branda, cinza, dif-cil de enxergar. Um sentimento montono, constante. Uma sensa-o de poder ser mais do que sou, fazer e sentir mais, e ainda assim, no me mover.

    Sei do potencial que tenho para ser feliz. Alis, eu sei que todos ns podemos ser muito felizes, mesmo sendo imperfeitos em um mundo imperfeito. Mesmo lidando com dificuldades. por isso que no quero o mdio, quero o melhor, o mximo da vida. Quero realizar tudo o que estiver ao meu alcance e que no pouco.

    Para superar esse estado cinza de viver, o sentimento de crise me avisava l do inconsciente: Mude, no est bom mes-mo. Mude. Voc pode. Voc deve!.

    Minha parte mais lcida sabia os caminhos que eu de-veria seguir, mas meu medo de ser inteira e assumir completa responsabilidade por quem sou e por tudo o que eu j escolhi ser me impedia de experienciar a tal felicidade.

    * * * * *

    Vou explicar melhor depois, porque resolvi ir para a ndia. Mas antes, vou falar do susto e do impacto que senti logo ao sair do avio.

    A chegada ndia, foi como cair de paraquedas em meio a um forno gigante, barulhento e desconhecido de algum pas em alguma galxia distante. Era 1h da manh. Eu estava total-

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    mente sozinha; tinha s 21 anos e vinha de um inverno de Lon-dres. Tinha estado l por trs dias em uma conexo prolongada entre Brasil e ndia.

    Era incio de dezembro de 1997. Nunca fui amiga do frio; sempre me senti dolorida e triste no meio deste clima. Na verdade, em minhas viagens e moradias em terrenos glaciais, acho que nunca soube me defender das baixas temperaturas com as devidas peas de roupa para amenizar a fora deste gigan-te poderoso e mal-humorado. Eu j tinha me aventurado com quinze anos a morar em Dakota do Norte, nos Estados Unidos, por nove meses e l sim, conheci muito bem este clima bravo e impiedoso.

    Meu problema maior acho que era nos ps, que estavam sempre frios. Menos 10 graus e eu usava tnis. Menos 30 graus e eu ainda de tnis. Nada de botas quentinhas com pelos dentro. claro que eu s poderia me sentir um frango congelado.

    Mas, na ndia, nesta mesma poca, quando em Londres fazia 4 graus, assolava um calor de 40, e ao ser apresentada que-le bafo quente, eu me percebi com um casaco pesado para even-tos no Everest, em pleno forno asitico!

    Pude tirar o casaco maior, mas infelizmente tive que manter um mais fino de l porque vestia embaixo, uma blusa regata. Preferi ficar suando do que correr o risco de ser assediada ao mostrar meus ombros, num lugar onde eles so considerados partes bem sensuais do corpo. As indianas no andam por a, deixando seus ombrinhos de fora.

    Ansiosa, cansada e com medo, fiz os procedimentos de entrada no pas; passei pela polcia, peguei minha mala e fui procurar o taxista que iria me levar para Auroville uma co-munidade alternativa no estado de Tamil Nadu, no sul da ndia, onde passaria dois meses e meio.

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  • Viagens de uma psicloga em crise 21

    Doce iluso achar que seria fcil achar o taxista que me esperaria com uma plaquinha e meu nome. Ao sair da rea de desembarque, uma multido de pessoas segurava plaquinhas com nomes pequenos, grandes, mal escritos, borrados, nomes estra-nhos, letras nunca dantes vistas por estes meus olhos ingnuos.

    Conforme ia andando devagar e tentando ler as placas, ia aumentando meu medo de no encontrar o taxista. No fazia ideia de onde era Auroville, nem que o local ficava a quatro ho-ras de viagem do aeroporto.

    Enfim, l estava algum no fim da fila segurando uma pla-ca com meu nome. Homem baixinho de camisa de boto e cala social imunda. No calava sapatos nem chinelos; estava descalo completamente. Fui em direo a ele, que mal olhou para mim, pegou a mala, deu-me as costas e ps-se a andar rapidamente.

    Eu passei a segui-lo. Ele andava rpido demais. Pisava em poas de gua com os ps descalos no se desviava delas. As rodinhas da minha bela malinha, limpa e bem cuidada, tam-bm iam sendo arrastadas por aquelas poas imundas. Eu seguia com o casaco de neve em uma das mos e segurava na outra uma sacola enorme e pesada, s com cremes e utenslios de higiene que havia comprado em Londres. Entramos no txi. Eu atrs com as malas, ele na frente com os piolhos.

    Partimos para Auroville, que fica localizada exatamen-te em Pondicherry, uma cidade de antiga colonizao francesa. Essa comunidade foi fundada nos anos de 1960 com o intuito de ser um local onde todos vivessem em harmonia, sem diferen-as de raa e religio. A ideia de seus fundadores era fazer desse lugar um centro para que o ser humano pudesse desenvolver--se e chegar a ser o melhor de si mesmo. Todos os conceitos e valores ali esto relacionados ao amor, respeito e desenvolvi-

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    mento sustentvel. A escolha por essa comunidade foi devido urgncia que eu tinha de experimentar uma maneira nova de me relacionar com a vida.

    Meus sentimentos eram de medo, coragem, contempla-o e julgamento. Enquanto esse homem coava sua cabea in-cessantemente com uma fora que se fazia ouvir a gritaria dos piolhos l dentro, palmeiras, pessoas, cheiros, luzes, animais de outro planeta iam se desdobrando do lado de fora da janela.

    Foram muitas as paisagens de campo, de vila, de mis-ria, de choque. Senti tanto choque cultural que j poderia voltar para minha casa em Campinas. A misria da ndia era hors con-cours. Em alguns lugares, as ruas eram banheiros pblicos.

    s tantas, o motorista desviou-se da rota principal em uma quebrada bruta esquerda e adentrou uma rua estreita e escura. No falou nada, no perguntou nada.

    Que triste fim eu terei aqui e que triste ser minha fa-mlia nunca encontrar meu corpo morto neste fim de mundo..., pensei.

    Subitamente esse sisudo ser do alm, parou em frente a um casebre simples com uma lmpada fraquinha pendurada em frente varanda, olhou para trs por cima dos ombros e me perguntou amigavelmente:

    Tea, madam?Tudo certo, ele s resolveu dar uma paradinha casual na

    casa de um amigo para tomar o ch da madrugada. Herana recebida dos ingleses de tomar o ch com leite, o chai, comum na ndia, feito geralmente com ch preto, leite e massala, uma mistura de ervas. Agradeci meio apavorada e fiquei esperando. Quando ele voltou com ar de agora sim podemos continuar, retomamos nossa viagem.

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  • Viagens de uma psicloga em crise 23

    s 5h da manh percebi que estvamos em paisagens mais tranquilas. Nenhuma pessoa vista, diferente das vilas onde vacas, porcos, galinhas, homens, carros e bicicletas se cho-cavam criando barulho e baderna, mesmo de madrugada, em alguns dos locais onde tnhamos passado. Muita terra, mato, es-pao aberto, estradinha de terra, algumas casas. Eu iria para a casa da Aryamani, uma brasileira conhecida de uma conhecida de uma conhecida de minha me, que morava l h anos e que topou me hospedar na chegada.

    Chegando a esta regio, o possivelmente viciado em chs olha para trs e pergunta:

    Where you stay?Eu respondo: Aryamanis house.Ele insiste: Arya?Eu respondo novamente: Aryamanis house.Ele ento entrou na prxima direita e em cinco minutos

    estvamos em um local de muita lama. O carro, mesmo mui-to devagar, comeou a derrapar. Devia ter chovido bastante h pouco.

    Ele pareceu um pouco nervoso ou impaciente. Parou o carro, desceu apressado e, sem me falar nada, continuou a p, deixando-me no escuro em meio ao nada. Aps dar alguns pas-sos, virou e me pediu para ir atrs dele. Sem saber o que de melhor eu poderia fazer, desci do carro e enfiei os dois ps em um lamaal.

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  • 24 graziela r. Bergamini

    Um dos meus tnis estava desamarrado. Eu estava com calor, usando aquela blusa fina de l que servia para esconder meus ombros.

    Pensei ter visto um homem prximo a uma moita, aga-chado. Estaria ele defecando? O cheiro no estava l muito agra-dvel...

    No consigo enxergar direito. Estou pisando em lama ou em merda? No sei.

    No perguntei o nome do taxista ou se perguntei, no entendi a resposta. Comecei a cham-lo de sir.

    Sir, where are you going?Ele nem sequer se incomodou em responder e eu preferi

    ficar quieta para no irrit-lo ainda mais. Continuou andando depressa e eu atrs, seguindo seus passos. Andamos talvez uns sessenta metros, quando vi uma casa pequena com a luz de fora acessa.

    O sir chegou at bem perto da porta de entrada e ba-teu palmas. No esperou mais do que trs segundos e bateu palmas com mais fora. Eu estava envergonhada, me sentindo a mais inadequada das pessoas. Imagine chegar a esta hora na casa de algum que no est muito querendo que voc ve-nha... Depois de algum tempo, saiu da casa um senhor de uns sessenta anos, descabelado, remelento e puto da vida. Nada de Aryamani.

    O taxista perguntou alguma coisa que eu no entendi, mas imaginei que fosse algo do tipo: Voc conhece esta me-nina? Pode hosped-la em sua casa? Ela no sabe aonde ir e eu preciso dormir ou tomar mais um ch.

    A resposta foi olhar para mim, dar de ombros e virar as costas.

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  • Viagens de uma psicloga em crise 25

    Esta foi a primeira casa de mais duas em que ningum sabia onde me despachar. Finalmente, na quarta casa, um senhor simptico disse conhecer a Aryamani. Estvamos bem perto e ele nos ensinou como chegar l. Assim, finalmente cheguei ao meu destino.

    Aryamani era uma baiana que morava h alguns anos em Auroville. Tinha por volta de 40 anos, era casada com um italiano e tinha uma filha adolescente, que no conheci, mas que falava quatro idiomas. Todas as crianas crescidas em Auroville falavam pelo menos esta quantidade de lnguas. Cheguei a as-sistir mais tarde, uma conversa entre um indiano de Tamil Nadu e um menino francs de no mais do que seis anos no dialeto tamil. Impressionante!

    Tomamos um caf com ovos mexidos e tomates enquan-to Aryamani me contava um pouco de si e por que tinha ido parar nessa comunidade. Estava cansada da vida que levava na Bahia; no via sentido na loucura materialista e resolveu dar uma guinada em seu estilo de vida.

    Depois do caf da manh, ela mostrou uma cama na qual eu poderia descansar um pouco. Quando acordei, depois de trs horas, que depresso! O que eu estava fazendo ali? Como tinha ido parar naquele lugar to longe? Que fora to grande estava me dominando para que eu fizesse tanto esforo para, no fim, estar em um lugar daqueles?

    Eu s queria a minha casa...

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    ADAPTAo?

    Depois de um dia, Aryamani me indicou um lugar me-lhor para eu ficar. Era uma espcie de pousada, onde me sentiria mais vontade. Sa de l agradecendo muito e fazendo promes-sas de visit-la novamente.

    Cheguei j no fim da tarde, esperando encontrar uma hospedagem normal com banheiro, toalha, vaso sanitrio, luz e outros itens bsicos.

    Quem administrava esse novo lugar era uma americana. Alm dela, havia duas pessoas que praticamente moravam l. Um alemo carrancudo de dar medo e uma senhora, tambm americana, de uns noventa anos.

    A americana, que era a gerente, recebeu-me com simpa-tia e levou-me at o novo quarto: simples, mas jeitosinho.

    Na hora do banho, um calor desgraado! No clima mido, eu suando como nunca e os mosquitos me jantando. Fui pedir educadamente uma toalha para a americana e recebi um olhar to fulminante que me fez pensar se eu no tinha distraidamente pedido emprestado a calcinha dela. Acho que era algo que eu de-veria ter trazido. Mesmo assim ela me emprestou um pano duro e spero, e apontou para o lugar do banho um chuveiro a uns cin-quenta metros do meu quarto; depois apontou para o banheiro na outra direo e me deu uma lanterna.

    Agradeci muitssimo e l fui eu sem perceber que a luz do dia estava acabando e dando lugar escurido. Eu, ainda nes-

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    te ponto, estava forte, corajosa, peitando tudo, sentindo-me uma antroploga destemida.

    Ao abrir o chuveiro, a escurido j tinha cado e me vi de repente pensando como faria para tomar banho segurando uma lanterna. Que bizarro! Realmente foi a chuveirada mais rpida que eu j tomei, inclusive porque a gua estava gelada. Sequei--me, pus uma roupa e fui ao banheiro (tudo bem que a ordem das coisas deveria ser o contrrio).

    Queria usar a lanterna, mas ela devia estar com as pilhas fracas. Chegando desengonada e apressada, uma surpresa: Vaso sanitrio? Papel higinico? Meros artigos de luxo...

    Mas em compensao temos uma torneirinha onde voc pode molhar sua mo esquerda e fazer uma limpeza ainda mais higinica eu ouviria depois diversas vezes dos europeus indianizados que moravam em Auroville.

    Sendo tudo to complicado, voltei para o quarto e desa-bei a chorar. Estava totalmente despreparada, solta, jogada no meio de uma fantasia de adolescente tardia. O que eu queria era apenas um choque cultural... Melhor teria sido ficar em casa e ter alugado um documentrio.

    Chorei, chorei de transbordar o quarto e quando vi que eu tinha apenas duas sobras de lenos para assoar o nariz, chorei ainda mais sem poder limp-lo, sem saber como ir ao banheiro nestas condies, sem ter um ombro amigo. Comecei a rezar e devo ter adormecido porque s me lembro do dia seguinte quando me arrumaram uma bicicleta do sculo passado com uma corrente que se soltava a cada cem metros para andar qua-tro quilmetros e comprar papel higinico importado.

    Depois de duas noites, um holands que se hospedou nesse mesmo lugar, me aconselhou a ir para outra pousada, onde

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    havia mais passantes, gente vinda de muitos cantos do mundo. Gente querendo ver gente e trocar ideias e experincias.

    Assim, fui novamente de txi para o segundo guest house.

    Quem administrava era uma canadense. Era um lugar mais agradvel, com espaos mais bem cuidados, um grande jar-dim com alguns alojamentos por ele espalhados. Mesmo estan-do muito melhor acomodada, nada era assim to fcil.

    Para comear, meu quarto, no tinha porta. Tinha sim, um pedao de cortina fingindo ser porta. Qualquer um podia entrar quando quisesse. Tambm no tinha paredes, ou melhor, tinha, mas no chegavam at o teto. Havia um vo em todas elas. Com o tempo fui ficando mais vontade com as aranhas, per-nilongos e outros insetos superindianos que se sentiam atrados pelo meu simples aposento.

    Meu maior amigo portanto, era a mosqueteira que ha-via em volta da cama e me protegia de mordidas inesperadas. Alm dos vos, havia uma janela grande, que no tinha vidros. Por isso, privacidade era algo inexistente. Eu trocava de roupa agachada.

    O banheiro era como o outro: ficava a uns 80 metros do quarto. No seria to ruim se eu no tivesse que levantar todas as noites para fazer xixi no breu total. Pegava minha querida e nova lanterna, sempre com muito medo e ia ao banheiro o mais rpido possvel.

    No tinha tambm vaso sanitrio, nem papel higinico, como j sabemos. Havia apenas aquela loua tpica para apoiar os ps e canalizar as fezes para um buraco fundo. Como eu fazia? Levava o meu papel higinico e depois de completar a tarefa, colocava os papis dentro de uma sacola de plstico que regu-

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    larmente eu depositava em um lixo, maior, localizado em um banheiro coletivo de Auroville... Ai credo... Acho que eu poderia ter omitido esta parte...

    Ah! E tambm no havia gua quente e as noites eram sempre frias o suficiente para no me convidarem para nenhum tipo de banho. Por isso eu me lavava geralmente de manh. Du-rante o dia o calor era forte e eu suava. Outra coisa que acabei me acostumando um pouco era em ir deitar suja e grudenta. Eu preferia isso, apesar de ser nojento e muito desagradvel, a tomar banho de gua gelada de noite.

    A comida de l tambm no era de dar gua na boca. Com tantos temperos diferentes e fortes, eu acabava sempre passando fome. No morri por inanio graas aos queijos que eu comprava no nico mercadinho da rea, situado a uns trs quilmetros de minha pousada.

    Fora esses 307 detalhes, minha estada foi maravilhosa! Conheci franceses, americanos, suos, canadenses, israelitas, in-gleses, um brasileiro e alguns indianos. Desde o primeiro jantar, sabia que tinha encontrado o lugar certo para passar o restante da viagem.

    A partir das 8h da noite no havia mais luz eltrica. Quem quisesse ainda alguma claridade acendia sua lanterna ou uma vela. Nesses jantares, para mim geralmente os melhores momentos do dia, conversvamos luz de velas, compartilhando desejos, anseios e medos. Eram momentos sagrados. Pessoas de diferentes culturas e nacionalidades sentindo-se irms em terras orientais e compartilhando impresses, indignao e encanta-mento com a cultura indiana.

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    Por QuE NDiA?

    Gr, querida, por que voc no vai para Paris? Vai fazer o que na ndia sozinha? perguntou doce, mas indignadamente minha tia, enquanto mexia em uns papis em sua agncia de viagens onde fui comprar a passagem.

    A escolha pela ndia no foi por ter lido algum livro so-bre esse pedao milenar do globo, no. Eu no tinha lido nada a respeito. No conhecia sobre a cultura ou o lugar. Tinha apenas imagens na mente que poderiam ter sido impressas ao assistir alguma reportagem bonita na televiso. No entanto, eu sabia que era para l que eu queria ir.

    L eu conseguiria sentir um choque cultural. Queria in-corporar um tipo de novo, de diferente, de diverso. Queria vi-venciar experincias que me confirmassem que a vida que eu levava em Campinas, que meus hbitos e padres at ali segui-dos sem questionamento, eram s escolhas entre muitas outras. No me conformava em estar meio infeliz, dentro de um esta-do anestesiado, morno, morto. Queria intensidade, cores fortes, movimento e quebra de paradigmas.

    Por que eu no poderia ser mais feliz? Estar mais em paz, mais segura de mim mesma, com mais autoestima, mais liberda-de? Por que eu no poderia ter mais intimidade com as pessoas, ter relacionamentos mais profundos e verdadeiros? Sentia-me aprisionada, cega, oca por dentro, viciada nos mesmos pensa-mentos e hbitos.

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    Eu estudava Psicologia na poca, mas achava que o co-nhecimento que me passavam ali todos os dias por seis ou sete horas era tendencioso e pobre. Havia muita revolta dentro de mim. Eu achava que o tempo passava e eu mantinha protoco-larmente minha bunda colada uma velha e pichada cadeira, em uma sala mal cuidada, ouvindo professores sem paixo, sem vigor, falarem automaticamente, seguindo um currculo vazio.

    Esta era a minha viso radical.A esta altura eu dava excessivo valor ao meu prprio

    pensamento hostil e orgulhoso. Acreditava que a verdade tinha apenas um aspecto e este era sempre absoluto. Se alguma abor-dagem psicolgica fizesse algum sentido para mim, mas depois trouxesse uma ponta sequer de incompatibilidade com meus pensamentos, eu j a descartava; no conseguia seguir adiante.

    O mesmo acontecia em vrias outras situaes. Quando lia algum livro que gostasse, se houvesse alguma parte que me desagradasse, j o dava por perdido. Algo morria dentro de mim. A curiosidade j estava manchada pela frustrao. A imagem idealizada de mim e do mundo nunca era sustentada.

    Comecei s depois a aprender que posso gostar e desgos-tar ao mesmo tempo. Posso selecionar o que aproveitar e o que descartar em um mesmo livro, em uma mesma pessoa e em tudo o mais. Fui aprendendo e ainda estou a aguentar frustraes a lidar com o que real aqui e agora, com todas as limitaes do momento. No preciso riscar nada da minha lista s porque no atendeu minha expectativa.

    O que eu mais queria, contudo, era largar a faculdade, sair daquela rotina entediante. Ir para ndia foi uma opo mais branda. Ficaria trs meses e voltaria com a cabea diferente, mais aberta e quem sabe, mais livre?

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    Hoje percebo que a cada perodo de tempo, talvez a cada dois, trs anos, sinto vontade de sair da velha toca, mudar de ambiente, de casa, de cidade; vontade de experimentar novas estradas e abrigos. Talvez seja algum resqucio que sobrou da mulher nmade.

    Porm, no foi s o choque cultural e nem a fuga do en-tediante cotidiano que me levou para a ndia: foi tambm uma espcie de busca espiritual.

    Cresci em numa famlia sem religio, sem qualquer prtica ou ritual de ligao com Deus. Meus pais no batiza-ram nenhum de seus quatro filhos e sempre fizeram questo de nos deixar livres para escolhermos eventuais caminhos re-ligiosos.

    Quando eu era muito criana, uma bab que eu tive dizia que Deus marcava ponto negativo ou positivo para cada ao feita e quando a gente morria, ele dava uma olhada nas suas anotaes para ver se durante a vida tnhamos acumulado mais pontos positivos ou negativos. No primeiro caso, iramos para o cu, no segundo, para o inferno. Simples assim. Eu en-to, sempre tive raiva de Deus, desde pequena. Sempre achei tudo muito injusto.

    Algo na ndia me atraa, como se l eu fosse encontrar algum tipo de explicao para as minhas perguntas, algum tipo de paz no corao. Quem sabe fazer as pazes com Deus...

    Tinha juntado dinheiro fazendo trabalhos temporrios como baby sitter, professora de ingls e motorista particular de um arquiteto. Com a bufunfa em mos, comprei a passagem.

    Os gastos com comida e hospedagem foram presentes de meus pais e minha tia. Mesmo incrdulos com a escolha de fazer esta viagem, senti-me bastante apoiada por eles.

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    Sem companhia, sem guia, sem roteiro de viagem, sem lanterna ou toalha, apenas com um destino e com uma certeza: a de que algo mais eu encontraria.

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    rVEiLLoN

    A festa da passagem do ano de 1997 para 1998 foi na lage de uma cozinha comunitria. Uma grande festa com boas caixas de som e boa msica estilo rock/pop anos 80, 90.

    Obviamente no era uma festa comum com bebidas e comidas.

    Bebia-se gua e comia-se alegria talvez. Para mim, acos-tumada a copinhos de cerveja ou vinho em reunies e festas no Brasil, era engraado e um tanto irnico caminhar pela festa segurando um copinho de gua na mo. Assim muitos faziam, creio que para no deixar as mos vazias e desempregadas.

    Ao andar com meu copinho, algo me chamou a ateno: havia dois grupos de seres humanos nesta festa. Um deles era de brancos: em sua maioria ocidentais europeus e americanos com seus corpos ultraenrijecidos. Todos se balanavam um tanto ar-tificialmente em resposta s msicas que tocavam. Cada um em seu prprio universo mexia-se de uma forma que demonstrava que suas carcaas estavam h muito congeladas, endurecidas e padronizadas.

    Outro grupo era o de indianos que danavam alegre-mente e em conjunto, em filas, em rodas, batiam palmas. To-dos em sincronia riam e gargalhavam entre eles. A dana deles era to divertida que muitos de ns resolvemos parar e apenas contempl-los.

    Acredito que danar molinho da maneira que o corpo pede ou em conjunto, como eles faziam, ajuda a remover as

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    inmeras tenses e doenas de ordem emocional. As teorias da Bioenergtica que o digam emoes reprimidas se alojam e passam a hibernar em alguma parte do corpo por anos e anos, tornando a matria dura, tensa e depois, doente.

    Eu sempre gostei de danar, mas no qualquer msica. Para meu corpo se mexer, preciso mais do que gostar; preciso amar a msica que toca. Se no amo a msica, meu corpo no pede movimento. Ou talvez eu que no tenha muita intimidade com ele. Tem gente que basta ouvir umas notinhas que os om-bros j comeam a levantar, a cabea a virar, cintura, a sacolejar o tipo mais sinestsico.

    Eu, com 35 anos, nunca aprendi a sambar; acho compli-cado e me falta gingado.

    (...) A dana porm, exige o ser humano inteiroAncorado no seu centro,E que no conhece a vontadeDe dominar gente e coisas,E que no sente a obsessoDe estar perdido no seu ego.

    A dana exige o homem livre e abertoVibrando na harmonia de todas as foras. homem, mulher aprenda a danarSeno os anjos no cuNo sabero o que fazer contigo.

    Santo Agostinho

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    SABEDoriA E ENTrEGA

    Paul era baixo, cabelos castanhos enrolados at o ombro, olhos azuis. Na faixa dos 50 anos, para mim realmente velho na poca. Tinha um estilo hippie, colares no pescoo, sempre com a mesma roupa, camisa de linho larga, cala larga, sandlias de corda. Era suo, por isso falava ingls com bastante sotaque.

    Ele se hospedou no mesmo lugar que eu por um ms inteiro, razo pela qual criamos certa amizade, uma rotina de conversas nos jantares e almoos que aconteciam no local.

    Acho que ele era sbio. Tudo o que falava fazia enorme sentido para mim. Mesmo fazendo um enorme esforo para en-tender seu sotaque, ainda assim, eu pescava no mais do que 55 por cento de seus contedos. Ele passava horas contando suas experincias de vida, que eram como prolas que eu estava sem-pre pronta a coletar. Se eu o visse de longe, em algum lugar con-tando suas histrias, logo corria para junto dele abrindo meus ouvidos e largando minhas defesas.

    Lembro-me dele dizendo que no morava em lugar ne-nhum e ao mesmo tempo em todos os lugares. Era um nmade convicto. Passava meses em um lugar para depois mudar para outro e criar uma nova experincia. Era tambm um nmade em sua personalidade. Estava sempre experimentando e explorando, em detalhes, novos aspectos de si mesmo, identificando-se ora com um, ora com outro, como em um exerccio de teatro onde o teatro era a prpria vida. Ele tinha uma conscincia divertida e leve. Tornou-se, durante um ms, um grande e velho amigo, at

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    ir com sua namorada para o Sri Lanka e desaparecer da vida de amigos passados.

    Eu tambm gostaria de poder me desvincular de mim mesma brincando de ser outras pessoas e na verdade, brincando de ser outros aspectos de mim. Como posso realmente inventar ser outra pessoa se o que estou usando como recurso sou eu mesma? No seria eu ento todas essas partes? O fora ento no representa o dentro? O outro... seria eu mesma? Esta ideia para mim fascinante. A mais fascinante de todas as ideias: somos todos um s.

    Ser que realmente fazemos parte de algo maior? Somos um s e tambm somos cada um? Qualquer um de ns faz parte de um todo ao qual eu tambm perteno? Poucas vezes real-mente senti isso na pele.

    Uma vez estava brincando no mar em uma praia em Ilha Bela. Era fim de tarde. A gua estava to linda que parecia um lenol azulado. Entrei devagar e fui tomada por um impulso. Comecei a dar cambalhotas para frente e para trs, dar saltos para cima e para baixo, rodopiar, me misturar at no ter mais pensamentos e nem qualquer senso limitador de eu.

    Acho que nesse momento fui me esvaziando de mim mesma e de repente, fui arrebatada por uma alegria gigante. Quando sa da gua eu era pura felicidade, sentia uma fora di-ferente, uma leveza e a falta de um ego limitante. Eu era tudo e tudo era eu.

    Mantive-me nesse estado por algumas horas e quando sa noite para dar uma volta pela cidade, lembro-me de ter chegado perto de um homem que vendia pulseiras e brincos. Um homem sujo, barbudo, amendigado, grotesco em sua apa-rncia. Cheguei mais perto para olhar um dos brincos e, quando

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  • Viagens de uma psicloga em crise 47

    subi a cabea para olhar mais para ele, senti uma proximidade to grande por esse desconhecido, que eu poderia dizer que era amor.

    O que aconteceu em resposta foi surpreendente. O ho-mem me disse rudemente: Saia daqui que sua energia est me fazendo mal! Levei um susto. Acho que foi a que voltei para meu estado de miopia crnica, onde predominava um estado sonmbulo e automtico de viver.

    Na ndia, senti esta sensao boa por duas vezes. Na pri-meira, estava andando de bicicleta, indo sei l para onde. Vi um lago prateado do meu lado direito, respirei fundo, continuei pe-dalando. Em seguida, uma rvore imponente, superantiga. Esta-ria eu dentro de um quadro? De repente, parece que comecei a me fundir com a paisagem. Um sentimento de paz me inundou. Eu estava integrada, eu era a natureza e ela era eu; no havia diferena.

    A outra vez que senti isso eu tinha acabado de acordar. Ia levantar da cama, pr os ps no cho, quando comecei a ser o prprio cho e depois o jardim, e fui tomando conta do restante como uma onda que vem de repente e vai molhando tudo que est no caminho. Era um estado de expanso. No sei explicar mais do que isso.

    Sei que senti de novo ser parte de tudo, senti paz. A paz no chata e sem graa como eu pensava. No mrbida. Paz um sentimento revigorante, de confiana, falta de preocu-pao, falta de conflito, sentimento de ser parte, de pertencer a um todo. Diferente do sentimento horrvel de excluso, de no pertencer, de ser uma unidade isolada do resto.

    * * * * *

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    Em Auroville participei de algumas atividades interes-santes durante o tempo que l permaneci. Dei aulas de ingls para um grupo de jovens indianos, fiz aulas de yoga, aulas de uma dana muito louca cujo nome no me lembro, mas que con-sistia exatamente em deixar o corpo se mexer sem restries.

    Assisti a peas de teatro no auditrio, ajudei na colheita de arroz, fui algumas vezes assistente de cozinha e, principal-mente, o que mais fiz foi jogar conversa fora com as pessoas. Por um lado me sentia um pouco culpada por no estar fazen-do nada, mas a falta de pressa e a importncia que as pessoas davam para uma simples conversa em qualquer horrio do dia faziam com que eu me rendesse ao convers do dia a dia.

    H um tempo em que preciso abandonar as roupas usadas, que j tm a forma do nosso corpo, e esquecer os nossos caminhos, que nos levam sempre aos mesmos lu-gares. o tempo da travessia: e, se no ousarmos faz-la, teremos ficado, para sempre, margem de ns mesmos.

    Fernando Pessoa

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    SAi BABA

    Ouvi dizer sobre um tal de Sai Baba, um homem es-pecial, cheio de poderes. Aparecia em vrios lugares ao mesmo tempo, transformava objetos, falava muitas lnguas. Como eu queria conhecer pessoas extraordinrias, resolvi visit-lo.

    Peguei um nibus, viajei por doze horas noite, sendo a nica mulher entre muitos homens. O nibus parava a cada hora (sim, a cada hora) para que os homens esvaziassem suas bexigas na estrada. Cheguei a Bangalore com a minha bexi-ga estourando, j que o veculo no parou em nenhum lugar que no fosse parada para desgue de urina masculina. Como nica mulher do nibus, se parasse para fazer xixi, poderia ter sido atacada.

    De l sabia que teria que pegar um txi para Puttaparti, vilarejo onde vivia o importante homem. Ao descer do nibus s 4h da manh em uma cidade grande na ndia, vrios homens se aproximaram de mim oferecendo txi, rickshaws, bicicletas, motos. Meio atordoada, olhei para o mais insistente deles, que aproximava sua cabea da minha com seus olhos negro-arroxea-dos e acabei aceitando o seu txi. Ele ento me tirou do meio da multido e me levou para uma rua estreita e escura.

    Novamente pensei estar numa enrascada, mas minha conexo com algo protetor e benigno me mantinha com uma tranquilidade surpreendente.

    O homem parou em frente a uma porta de barraco da-quelas que se puxa para cima, e ao abri-la, acendeu uma forte luz

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    branca que ofuscou os olhos semidormentes de outro homem que estava sentado de braos cruzados com os dois ps em cima de algum balco comercial.

    O homem, ao me ver, piscou vrias vezes, coou os olhos, bocejou, tirou os ps do balco, ajeitou sua roupa e grunhiu algo que entendi como positivo.

    Antes de iniciar a viagem, perguntei onde era o toilette e fui desaguar minha urina que estava estocada h muito mais tempo do que era suportvel.

    J no carro, disse a ele aonde iria. Como era de se esperar, seu preo era absurdo. Apresentei minha contraproposta, que foi aceita imediatamente. Afinal de contas, era muito cedo para entrar naquelas batalhas, onde parece infinito o tempo em que o cliente fica oferecendo menos e o vendedor pedindo mais.

    A viagem durou por volta de quatro longas horas entre paisagens rurais e onricas. A ndia mexe com o inconsciente. Quando sonhamos, parece que tudo possvel, nada tem muita lgica; na ndia a mesma coisa. Everything is possible.

    Durante os sete dias em que explorei o territrio do Sai Baba, a rotina era a mesma. Eu acordava s 4h da manh, me arrumava e ia como um zumbi para o darshan, uma espcie de bno dada pelo Sai Baba. Pessoas vindas do mundo todo chega-vam a um enorme salo coberto, sentavam e esperavam o grande mestre chegar. Eu meditava e lia livros sobre sua vida. Quando chegava, ele andava entre as pessoas abenoando-as e, s vezes, materializava vibhutis um tipo de p sagrado acinzentado com aroma forte de flores.

    Esse ritual era feito duas vezes por dia: uma de manh e outra tarde, e tambm nesses perodos, ele chamava algum grupo para um encontro pessoal.

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  • Viagens de uma psicloga em crise 53

    Conheci algumas pessoas que foram chamadas e as his-trias eram de arrepiar. Uma pessoa que esteve frente a frente com ele me disse ter seu anel transformado em outro diferen-te. Outra ouviu o mestre falar portugus de repente com tima fluncia.

    Implorei para que o grande homem me lanasse um olhar que fosse; algo que me dissesse: Eu sei que voc existe e que est aqui; eu me importo com voc. Mas isso no aconte-ceu. Apenas em sonho: estava em uma roda de mos dadas com outras pessoas e ele estava entre ns falando alguma coisa; olhou para mim, piscou e continuou o que estava fazendo.

    Se eu tive algum aprendizado, acho que foi sobre a hu-mildade. Eu queria tanto ser especial aos olhos de Deus; queria tanto ser aquela um pouco mais importante do que os outros. Queria ser tipo o Harry Potter, com uma misso de salvar o mundo. Hoje entendo que este lado uma parte de mim insegu-ra que faz bastante para estar em relevo at mesmo pelo aspecto negativo: Sou a pessoa mais n cega no mundo; no tenho noo de direo ou Sou a pessoa no mundo que menos sabe contar piadas e por a vai.

    No sei ainda quem foi Sai Baba. Dizia-se Deus, mas dizia tambm que a nica diferena entre ele e a maior parte de ns que ele sabia que era Deus e ns no sabemos.

    Deus no est em religies, mas em sua mente e em seu corao.

    Sathia Sai Baba

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  • Viagens de uma psicloga em crise 57

    oNDAS

    Desde que decidi que ir para a ndia, sabia que esta via-gem seria uma representao da viagem da vida. Assim como es-tou neste corpo encarnada enquanto Graziela, essa viagem para o continente asitico seria uma amostra curta, intensa e consciente da viagem desta encarnao.

    Escrevi em um papel o meu objetivo para deixar bem claro: ter experincias novas, me abrir para elas, saber sempre que eu estaria sendo guiada; tudo o que ocorreria seria para o meu bem e aprendizado. Uma noite tive um sonho:

    Estava sentada em uma rocha beira-mar, tranquila, contemplando o horizonte. Trazia ao meu lado um conjunto de bijouterias, alguns brincos e anis de nenhum valor material. Elas estavam ali ao meu lado e senti que era algo que eu tinha que proteger. Havia um apego emocional muito forte.

    De repente veio uma onda do mar em minha direo que me fez pensar se eu deveria sair dali. Sem tempo de concluir o pensamento, veio outra mais forte e invasiva, que chegou a me molhar e ameaar de levar minhas coisas embora. De repente, fui atacada por um tipo de tsunami que cobriu no s meu corpo e minhas bijouterias, mas tambm o meu mundo todo: o cu, o espao, todo o cenrio em que eu estava inserida.

    Em meio a este episdio muito rpido, meu pensamento forte, talvez mais forte do que as ondas era: Que insulto! Como

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    se atrevem estas ondas a invadirem o meu espao, acabarem com minha vida?.

    Prxima cena estava em um espao vazio onde havia ape-nas escadas soltas, separadas umas das outras, espalhadas pelo ar. Escadas em que eu no podia usar os ps para subir, mas somen-te os braos. Eu sabia que tinha que subir as escadas uma a uma com a fora de meus braos e alguma f que me contava que este era o caminho: para cima.

    Sentia a fora de meus msculos, to real era o sonho. A dor e a felicidade de completar cada escada. Pensamentos sin-ceros de autoconfiana me acompanhavam: Sou forte, eu con-sigo!.

    Cheguei l em cima e me deparei com uma grande sala vazia. Ao fim dela, um criado mudo com alguns objetos brilhan-tes. Uma voz sussurrou aos meus ouvidos e disse: Olhe, ali esto suas verdadeiras joias.

    Existem muitos tipos de imagens e percepes que par-tem de diferentes ncleos de conscincia. Assim como dizia Jung, existe um tipo de sonho que parte de uma fonte mais dig-na, de um lugar mais sagrado de ns mesmos e acho que este foi um deles.

    Minha prpria interpretao foi a de que o mundo em que vivemos ilusrio na medida em que nossa conscincia curta. Vivemos apegados ao que vemos e sentimos, aprisiona-dos a pensamentos viciados e a histrias repetitivas porque te-mos medo. Medo das ondas, medo da mudana, medo do novo, medo de ns mesmos. Quanto menos conscincia, mais medo.

    Com este sonho tive a certeza de que o que eu tinha a fazer era bater forte no peito e dizer alto e corajosamente: Que cheguem as ondas!

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  • Viagens de uma psicloga em crise 61

    um muNDo ESPiriTuAL?

    Vou fugir um pouco da viagem ndia agora e nos pr-ximos captulos. Vou falar sobre uma poca, quando eu no sabia mesmo que o que estava faltando para mim era espiri-tualidade: aquilo que alimenta a alma, assim como a comida alimenta o corpo; aquilo que no podemos ver, mas apenas sentir. Vou voltar adolescncia e tambm ao perodo de 5 anos durante a faculdade, quando os questionamentos eram muito intensos.

    Uma vez li que o universo benigno. Parei. Fechei o livro. Abri e li de novo: o universo benigno. Uau! Eu no sa-bia disso. Como ningum me fala nada? Mas, em algum lugar dentro de mim, eu sabia e confirmava: Se o universo benig-no, no h nada a temer; existe uma lgica, um sentido maior para tudo!.

    H muito mais entre o cu e a terra, certo? Mundos parale-los? Conscincias diversas, energia... Espritos? Do bem? Do mal?

    Meu av morreu com 67 anos, quando eu tinha 17. Ele era um homem que aos 28 anos j tinha quatro filhas e era se-parado. Diziam que era lindo, esportista, saudvel. Meu av era muito presente. Morava em So Paulo e vinha para Campinas nos visitar de vez em quando.

    Chegava com uma cesta grande de coisas que trazia do seu stio em Paraibuna: geleias, frutas, pes. Sempre com um sorriso no rosto queimado de sol, dentes brancos, mos e bra-

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    os fortes e peludos que nos abraavam com fora. Meu av era carinhoso, brincalho e ao mesmo tempo, um pouco irnico e crtico.

    Ele adorava ler e gostava muito de um escritor ingls chamado Jack London. Ele queria que eu lesse o livro White Fangs, mas nunca li.

    Meu av Jaime. Hoje, quando penso nele, sinto amor e saudades. Tive tantos sonhos com ele depois que morreu. Em um deles, senti que estava o abraando apertado, matando um pouquinho as saudades. Sonhei tambm que ele no tinha mor-rido, que tinha sido um engano.

    Um dia, alguns meses depois da sua morte, eu estava na minha cama em um dia comum, enrolando para levantar de ma-nh, quando ouvi um zumbido se aproximando, muito grosso e alto e cada vez mais grosso e mais alto. Fiquei com medo, mas no conseguia parar aquilo; tentei gritar e me mexer, mas estava paralisada. Foi quando ouvi um grito desesperado dizendo: MAS COMO? EU NO VOU PARA FREEEEEEEENTE! Esta ltima palavra ficou ecoando e diminuindo. O zumbido passou e eu levantei. O que tinha sido aquilo? Pensei ter ouvido a voz do meu av, o seu tipo de entonao.

    A partir deste dia comecei a ouvir com frequncia estes zumbidos que antecipavam vozes em palavras ou frases curtas. Imediatamente eu entrava em pnico. Muitas vezes consegui impedir o zumbido de aumentar e me levar para o que parecia ser outra dimenso. Eu rezava muito, com muita fora e f.

    O zumbido era como um trem ao longe, apitando a sua chegada para que eu entrasse nele e partisse para algum outro canto. Eu tinha uma certeza atrs das minhas dvidas: a de que aquilo que me acontecia era um tipo de transporte que me leva-va temporariamente para outra dimenso.

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    Mas para me certificar de que no estava ficando doida, fui a um neurologista. Fiz alguns exames, mas no havia nada diferente em meu crebro. Mas, o que era aquilo, afinal? Eu precisava de uma explicao. Sabia que existia uma razo para aquele fenmeno, fosse loucura, fantasma, doena ou qualquer outra coisa.

    Fui ento, a um centro esprita. Este dia foi um dos mais marcantes da minha vida. Abril de 1994. Eu tinha 18 anos.

    Meus pais marcaram para mim um encontro com a che-fa do centro, que era conhecida por possuir alto grau de me-diunidade. Entramos ns trs na pequena sala. Era uma tarde tranquila, silenciosa. Slvia estava atrs de uma pequena mesa quando entramos e sentamos. Depois de nos cumprimentar, ela disse: Vocs devem saber que no esto s os trs aqui. Esto vocs e mais as equipes espirituais de cada um.

    Naquele momento fiquei arrepiada, com medo, paralisada. Contei o que estava acontecendo e ela me disse o que na verdade eu queria ouvir: que era mdium e deveria desenvolver a mediu-nidade. Eu no era especial por isso; todos poderiam desenvolve--l inclusive eu. Me contou tambm que segundo um dos meus guias espirituais, eu tinha facilidade para curar com as mos.

    Fui para casa cheia de alegria, de esperanas. O mundo tinha mudado nesse dia; as coisas tinham passado a ter um sig-nificado maior. O mundo estava colorido.

    Comecei a ler um livro indicado pelo centro esprita: Violetas na janela, sobre uma menina que morre e conta como o outro lado. Como eu tinha a cabea bem fechada, muita coisa no cabia nela de jeito nenhum.

    A protagonista do livro dava detalhes de como era seu mundo espiritual. Eu ia lendo, achando algumas coisas interes-

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    santes, duvidando de outras. As coisas l funcionavam de forma muito semelhante ao mundo aqui na Terra. Ento chegou uma parte do livro onde ela diz que iria pegar o transporte coletivo.

    Antes de continuar, minha mente j foi mais longe e ima-ginei-a no ponto de nibus, esperando um buso lotado de gente cansada e suada depois de um dia de trabalho. Ela passaria pelo cobrador que estaria palitando os dentes e conversando gritado com o motorista etc. Fechei o livro e desencanei de termin-lo. Uma vida igual da Terra? Faa-me o favor, h coisas melhores para eu ler! Pensei, irritada.

    Para desenvolver a mediunidade, alm de ler livros como este, eu tinha que fazer um curso de dois anos sobre a doutrina esprita. Era necessrio que eu fosse uma vez por semana assistir a uma aula que durava duas horas. Fui o primeiro ano e no fui o segundo porque no gostei do professor e nem da moralizao. Sempre havia uma imposio forte de moral: Faa o bem etc. etc.

    Fazer o bem o que era isso? Ser bom... no bvio?Senti falta de compreender meu lado sombra. De onde

    ele vm?No quero fazer o bem porque dizem que isso certo.

    Quero fazer o bem por sentir amor verdadeiro dentro de mim.No sei. No me adaptei nesse centro.Enfim, por anos e anos, sempre que ouvia aquele trem do

    zumbido apitar, eu rezava forte para que aquilo parasse, para que eu no fosse levada para o alm, no fosse abduzida para um mun-do estranho onde eu ainda teria que pegar transporte coletivo de terceiro mundo. Eu queria, quando morresse, encontrar um lugar onde pudesse no mnimo voar. No seria justo?

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    ESCoLHAS

    O ser humano cria sua prpria vida eu lia em alguns li-vros esotricos dando um risinho de lado, debochando dos ba-bacas que escreviam estas frases.

    No acredito. O mundo que vejo cruel, catico, frag-mentado. Eu no mando em nada; sou apenas um fantoche nas mos de alguma fora poderosa e senil.

    Em momentos de revolta, esses pensamentos assaltavam minha mente trazendo dio. Sentimentos de estar amordaada, sem poder nenhum para me desacorrentar e escolher qualquer coisa que fosse.

    Em outros momentos, estes mesmos pensamentos eram absurdo.

    Uma outra parte de mim mesma sabia que este racioc-nio era como um farol baixo de automvel, que enxergava at dois metros frente. Meu farol, alm de baixo, estava sujo. Mi-nha mente mope no podia compreender a imensido, ordem e beleza de tudo o que eu no conheo ou no vejo.

    Sinto-me to bem quando penso que sou criadora de mi-nha vida, que tenho o poder de escolher a cada segundo para que direo virar as rdeas dos meus pensamentos!

    O universo, visto a olho nu, sem sentimentalismo e colo-raes emocionais infantis, maior que minha pequena dualida-de. Quem sabe mesmo a sombra que sempre insiste em aparecer tem seu propsito de contrastar a luz para torn-la ainda mais brilhante?

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    Meu esprito ficava em paz e feliz na adolescncia com livros como Um, de Richard Bach, A erva do Diabo, de Carlos Castaeda, e A histria sem fim, de Michael Ende.

    Nada faz sentido se eu no tenho escolhas. Nada faz sentido se eu vivo uma s vida. Nada tem lgica e eu, apesar de sentimentalista e sonhadora, gosto de enxergar a lgica, de buscar as causas e relacion-las com efeitos. Tudo causa e efeito, mas nem sempre seguem uma linha direta, cabendo em pensamentos estreitos. A lgica que vejo em muitos racioc-nios arrogantes pobre de informaes e rica em concluses precipitadas.

    Toda experincia humana carrega o resultado das esco-lhas individuais j feitas. No existe sorte nem milagre. Existe escolha, construo e mrito. nisso que gosto de acreditar. Mas quem acredita ainda no vive. Acreditar no o suficiente, pois ainda considera a dvida. Ns no fazemos a pergunta: Voc acredita no sol? e recebemos a resposta: Sim, acredito.... Eu, do acreditar, quero viver.

    Perguntaram para Jung: Do you believe in God? (Voc acredita em Deus?)

    Ele respondeu: I dont need to believe in Him, I know Him. (No preciso acreditar em Deus. Eu o conheo.)

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  • Viagens de uma psicloga em crise 71

    mAPA ASTrAL

    J fiz algumas sesses de mapa astral.Na ltima que fiz, eu estava fora do meu eixo, querendo

    ser algum que eu no era.Em uma mar avassaladora de autoconfiana zero, fui

    buscar a confirmao de que eu era capaz; tinha inteligncia su-ficiente para fazer qualquer tipo de coisa que eu quisesse.

    Nasci em uma famlia de cientistas. Esta palavra eu que estou atribuindo; talvez eles nem se reconheam assim. Meu pai, mdico, So Tom convicto, ou talvez l bem no fundo, um devoto de Deus disfarado de So Tom, no sei bem. Meu ir-mo mais velho, fsico, sempre foi muito questionador.

    Os dois tinham uma posio forte dentro da famlia e na minha cabecinha limitada de criana era simples assim: meu pai era o homem distante e poderoso da casa; minha me, a minha salvadora (tinha que ter uma); meu irmo mais velho, o inteli-gente; meu irmo do meio, o engraado e criativo; meu irmo caula era o maduro e eu, a menina que queria ter um pinto para poder fazer xixi na estrada, como eles faziam.

    No consultrio da pessoa que fazia mapa astral, vestindo os culos da derrotada, transformei tudo o que eu ouvi em der-rota: Uma pessoa devota dos prazeres e ritmos do corpo, pala-dar apurado, feminina, acolhedora, carismtica, emotiva; algum que na altura julguei como fora de contexto, deslumbrada, zen.

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    Para uma pessoa que estava buscando ser de inteligncia mental mxima: uma engenheira, matemtica, fsica, astronauta, esse mais doce personagem descrito pela astrloga, desceu com uma pedra triangular pelo esfago. Algum para trabalhar com o corpo, alimentao, acolhimento. Que fraca! pensei... Aonde vou com isso? Queria ouvir algo diferente: Minha filha, est es-crito que voc poder ir lua se quiser e poder desenvolver sozinha o equipamento para isso. Mas o que ouvi l do fundo do meu mundo foi assim: Minha filha, voc poder cozinhar, limpar e ser uma tima anfitri. Ah, e voc tambm tima para cuidar de crianas.

    Que frustrao!Meu destino esse, afinal. No estou para as grandes

    realizaes que iro mudar o mundo. O mximo que poderei fazer ser deixar maridos e filhos se sentindo ilusoriamente se-guros e contentes com o jantar. no que isso no tenha valor, mas dentro da minha enevoada e prepotente viso, aquilo no contemplava a minha vaidade.

    Sa de l sem querer sequer pagar a consulta.Quando entrei no carro, mesmo com um profundo inc-

    modo, uma luz se acendeu dentro de mim. Como se ali houvesse uma potente poro de verdade. Aquela seria eu? Coloquei uma msica bem bonita e aos poucos, aquela Graziela da comida, do corpo e do acolhimento foi aparecendo, tomando cor, expresso e movimento.

    Aceitei ali experimentar sentir o que sou de verdade e de quem quero fugir: dona de um pequeno restaurante me vi pas-sando os dias fazendo comidas deliciosas e alimentando amigos e passantes. Gordinha de vestido florido, batendo papo enquanto cozinhava, oferecia sempre uma prova do prato que acabava de

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  • Viagens de uma psicloga em crise 73

    terminar. Com meus amores em volta, termino o dia com uma bela taa de vinho na varanda e um agradecimento s estrelas.

    Mas eu tambm poderia ser jornalista, escritora, xam, antroploga, cantora, atriz, nutricionista e mais um bando de profisses que, vez por outra, tomam conta da minha sanidade e me roubam o foco e a lucidez. Sempre quis ser todas elas ao mesmo tempo e no seria possvel ser feito em uma s tacada. Quem sabe se eu as colocasse em uma linha horizontal, dando para cada uma seu tempo e sua dedicao honesta? Muitas vidas eu precisaria?

    A viso do restaurante foi um dos caminhos que me dei-xou integralmente contente. Uma vida simples, sem complica-es, tendo a tarefa clara de alimentar e acolher estmagos e coraes.

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  • Viagens de uma psicloga em crise 77

    ESTGio

    No quarto ano de Psicologia, participei de uma seleo para um estgio em Recursos Humanos na Unicamp. No dia da dinmica de grupo, cada candidato tinha que explicar por que estava querendo participar do programa.

    Na hora de falar, o nervoso que s vezes me leva para verdades inadequadas levou a dizer que minha motivao era justamente porque eu detestava Recursos Humanos.

    Minhas amigas arregalaram os olhos e fizeram cara de ferrou! Mas, para minha surpresa, fui chamada para fazer parte do programa, onde fiquei por dois anos.

    Comecei a atender um gerente do departamento de trans-portes. Sentava na cadeira e ficava o ouvindo falar. Eu no tinha a menor ideia do que dizer a ele, como confort-lo, ajud-lo. Ficava l ouvindo e pensando: Pois , a vida dura mesmo....

    Ento percebi outra maneira de ser produtiva: perguntei minha supervisora se ns, estagirias, poderamos desenvolver algum projeto de autoconhecimento para os motoristas. Achei que ela no incentivaria porque, afinal, quem so as estagirias? Mas ela realmente acreditava neste trabalho e nos pediu para escrevermos um projeto.

    Nasceu ento um projetinho interessante no qual traba-lhvamos em duplas e atendamos pequenos grupos de moto-ristas para desenvolver criatividade, comunicao, trabalho em equipe e outros temas. No incio no houve aceitao por parte deles. Diziam-nos que estavam perdendo tempo, que tudo aqui-

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    lo era intil, que todos os problemas que vivenciavam no traba-lho eram da responsabilidade dos reitores, da administrao, dos colegas, do mau tempo etc. Passei por uma fase bem difcil, de-sacreditando na capacidade de mudar e amadurecer do homem.

    Mais uma vez, um sonho me trouxe segurana e motivao para continuar este trabalho por mais um ano e meio: um navio enorme em alto-mar. Uma exploso e o navio afunda lentamente. Um tumulto de pessoas, algumas se afogando, outras tentando so-correr.

    Eu fazia parte do segundo grupo e corajosamente afun-dei no mar para puxar a mo de algum que estava descendo nas profundezas. Tentei puxar aquela mo, mas o corpo j estava sem vida e apenas descia. Outras mos pediam ajuda e eu ape-nas oferecia a minha e a pessoa puxava com sua prpria fora. Ajudei alguns a subirem para a superfcie e senti outras mos j mortas, rumando sem resistncia, para baixo.

    Quando acordei, interpretei da seguinte forma: Filha, algumas pessoas j esto mortas por dentro, no querem mudar, no precisam, no podem, mas muitas outras podero aproveitar sim, ajudas externas.

    Minha confiana aumentou muito. Comecei a dar muito mais de mim e a pensar que se eu ajudasse pelo menos uma pes-soa a se sentir melhor, j teria valido a pena.

    O resultado final do trabalho, segundo avaliao da su-pervisora e dos prprios motoristas, ao final de um ano e meio, foi uma mudana significativa na postura de quem participara. Os motoristas passaram a se colocar mais em grupo, expor suas ideias, ser mais assertivos, se relacionar melhor com a equipe e a se responsabilizar por suas atitudes.

    Entretanto, nem assim mantive a segurana que eu pre-cisava para me tornar psicloga.

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  • Viagens de uma psicloga em crise 81

    ALGumAS VErSES DE mim

    Eu queria ser algum que inspirasse mudanas positivas nas pessoas, por isso fiz Psicologia. Mas tinha outro lado que me travava e que queria muito produzir tampinhas de refri-gerante ou qualquer merda dessas dizia meu lado desconfia-do e ctico.

    mais p no cho, mais real, mais planeta Terra. Quero ganhar dinheiro. A sim terei tempo para pensar em espiritualida-de. As contas estaro pagas e minha cabea, em paz. Querer mu-dar o pensamento dos outros complicado e no d dinheiro.

    Cada um que trilhe o seu caminho. No fui eu que inven-tei nada disso. Essa brincadeirinha no minha. Dane-se!

    Alm do mais, quem quer fazer terapia? Ningum est muito interessado. As pessoas pensam que terapia para doi-dos ou para quem tem um problema emocional muito grave.

    Acho triste a maioria das pessoas se achar muito bem resolvida e na verdade, estarem imersas em problemas.

    Se criamos nossa prpria vida, criamos tambm nossos problemas e, se os criamos, podemos descri-los, no?

    Ser que essas pessoas tm autoestima muito baixa e acham normal viver na merda?

    Eu acho que temos que buscar felicidade e nada, nadi-nha, menos do que isso. No a felicidade do umbigo que comea e termina em mim, mas a felicidade grande, da alma.

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    Ao mesmo tempo, acho que quando aceitamos as situa-es como so hoje, ficamos imediatamente mais felizes e capa-zes de dar o prximo passo.

    Bom, deixa-me resolver primeiro os meus problemas e, quem sabe depois, poderei dar uma fora para outros? Afinal, eu tambm no sou flor que se cheire. Tenho milhes de proble-mas; sou nervosinha, impaciente, preguiosa. Prefiro mil vezes caf preto a ch, pastel frito de carne do que salada e aceito sempre qualquer convite para tomar umas. Gritavam meus re-voltados pensamentos antipsicloga, entendendo erradamente que assumir esta profisso implicaria em me tornar em alguma espcie de Buda.

    Calma! diz um lado mais maduro. Posso ser humana com milhares de problemas comuns e ainda assim, ser psicloga.

    Fui para a ndia com esses conflitos. Na verdade queria ser como Paul, que vivia livremente seus vrios personagens, sem essa luta interna, tendo sempre que escolher entre um ou outro.

    Ns poderamos ser muito melhores, seno quisssemos ser to bons

    Sigmund Freud

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  • Viagens de uma psicloga em crise 85

    PrimEiro DESASTrE AmoroSo

    Houve outro motivo para eu ter viajado para a ndia.Eu estava infeliz com meus relacionamentos amorosos.

    Tinha tido vrios rolos bobos e nenhum relacionamento srio, nenhum namorado. Sentia-me como uma senhora de sessenta anos solteira, sem esperanas. Como se o tempo j tivesse aca-bado. Eu j tinha me dado por incompetente nessa rea. Com 21 anos...

    Ir para ndia ento tambm era um teste para ver se eu seria boa em alguma coisa. Se eu aguentaria me colocar em uma situao difcil e sair dela ilesa. Eu precisava me valorizar e me sentia valente no que se refere a viagens. J tinha passado nove meses enclausurada em Dakota do Norte, nos Estados Unidos quando tinha quinze anos, em um intercmbio. Terminei a bra-vssima tarefa de me manter l sem ter crises de choro e voltar para o colo da mame. Ou melhor: tendo muitas crises de choro, mas aguentando firme.

    Voltando ao tema relacionamentos. Oh! que difcil...Sempre fui tmida com meninos, ou melhor, nos primr-

    dios da minha vidinha eu era mais confiante. Acho que s de-pois fui aprendendo a ser tmida ou ento, desaprendendo a ter confiana. Aos trs anos de idade, eu me apaixonei por um garoto de doze. Era um feriado e fomos para uma fazenda de uns amigos dos meus pais. Lembro de uma cena dele balanan-do em uma rede branca rendada e eu apenas de longe, contem-plando a paisagem.

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    Minha me conta, que depois que voltamos para casa, eu implorei para que ela telefonasse para o jovem gal por mim, mas ela resistiu. Afinal, o que uma menina de trs anos iria falar para um moleque de doze? Enfim, ela acabou ceden-do e ligou para ele. Quando me passou o telefone, recebi do outro lado uma voz desdenhosa: O que voc quer, hein, Gr? Devo ter ficado to desapontada que desliguei. Eu tinha trs anos! Meu Deus, o que aconteceu com essa menina ousada?

    Com onze anos, eu me apaixonei por um menino em umas frias na praia, mas era incapaz de dar um sorrisinho que fosse para ele. O que eu mais sabia era dar foras, trocar soqui-nhos e jogar pingue-pongue. Criada no meio de meninos, isso que era legal. Ser menininha era chato e sem graa. Apesar de ser assim, eu no era masculina. Eu devia ser feminina porque me chamavam muito de... argh... bonequinha.

    Para mim era como um xingamento. Era como chama-rem o Michael J. Fox no filme De volta para o futuro de covarde. Esta era a palavra inimiga: bonequinha. Para mim queria dizer fraquinha, bobinha e isso eu no podia ser.

    O primeiro caso amoroso que eu teria tido foi com esse menino aos onze anos de idade. Um dia, muito inesperadamen-te, j de volta em casa depois de longas frias, recebi um bilhete de uma pomba-correio, grande amiga minha, com a seguinte frase:

    Gr, voc quer namorar comigo? Marque x: Sim No.

    1000000000000000 beijos.Respondi prontamente que sim e entreguei a carta para

    minha amiga, que era da classe dele.

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  • Viagens de uma psicloga em crise 87

    Depois de uma semana, houve uma festa e eu sabia que iria encontrar meu namorado. Assim que cheguei, logo vi onde ele estava e fui direto para o canto mais longe dele pos-svel.

    Ele veio atrs de mim calmo e confiante. Eu queria mor-rer de tanta vergonha... Fugi mais uma vez. Meu namorado persistiu indo atrs de mim devagar at que no teve jeito: ele chegou muito mais perto do que eu gostaria e perguntou: En-to, Gr, voc quer namorar comigo?

    Eu afirmei que sim com a cabea e os olhos fixados no cho.

    Ento, ento...Ele foi chegando mais perto ainda e eu, em um ataque de

    pnico, virei as costas e disse indo embora: Ento, t...Mais tarde, na mesma festa, o momento mais triste da

    minha vida de adolescente. Minha amiga chegou perto de mim e falou:

    Gr, ele disse para voc no levar a mal, mas est tudo acabado.

    Eu quis morrer. Fui embora arrasada. Fim da histria. Nunca mais o vi.

    Tudo bem que eu ainda era bem jovem, mas o medo da proximidade j estava instalado. claro que se a ausncia de medo permitisse, eu no iria alm de beijinhos inocentes e segu-radas suadas de mos.

    Mas estava muito, muito longe, at disso.Fugi do monstro do prazer como o diabo foge da cruz.

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  • 88 graziela r. Bergamini

    Esta parte de mim ainda vive e aparece de vez em quan-do. Medo da sensualidade, sexualidade, libido, vida, movimento, paixo no s em relao a outro homem, mas tambm em relao vida.

    Ento, a partir dos onze anos de idade, repeti esse mesmo padro de fugir de meninos e depois, dos homens. Os que no me atraam eram camaradas; os que me atraam eram perigosos. Na presena deles, eu no era eu.

    Criana com a mente em formao tira muitas conclu-ses erradas sobre a vida e as carrega at o tmulo. As minhas foram as seguintes:

    Concluso nmero 1: Eu no podia ser natural, feminina, porque significava fraqueza, humilhao.

    Concluso nmero 2: Homens so perigosos, superiores, distantes, poderosos.

    Concluso nmero 3: Eu sou mulher, sou pequena, sou di-ferente da famlia toda, portanto no perteno ao grupo deve haver algo errado comigo.

    Todas estas concluses absurdas para um adulto mas l-gicas para uma criana foram se fortalecendo com o passar do tempo, ganhando mais fora e reafirmando sua falsa validade.

    Minha percepo, por mais que a realidade se apresen-tasse diferente, se adequava para se encaixar nessa viso pr--moldada. Foram anos de conflitos internos porque, afinal, um outro lado de mim queria um relacionamento. Eu me apaixo-nava com uma certa facilidade; sempre tinha algum especial ocupando meu corao.

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    rELACioNAmENTo Srio

    Depois que voltei da ndia, conheci meu namorado, que acabou at virando marido. Nesta poca, eu estava sendo cons-tantemente atacada por um pensamento involuntrio e diverti-do: Ns somos o sujeito da orao e no o predicado.

    Esse pensamento no saa da minha cabea. Acho que vinha de uma noo subconsciente de autorresponsabilidade. Se eu quero alguma coisa, tenho que ir atrs. Afinal, eu nunca tinha ido de verdade, mesmo. Os que vinham atrs de mim, eu no queria. Quanto desencontro!

    Conheci o Fbio atravs de uma grande amiga em co-mum. Ele no queria namorar e eu no queria me prender, era muito assustador. Mas nossa intimidade foi inevitvel. Ele tinha acabado de voltar da frica e eu da ndia. Tnhamos a mesma agenda com a foto de uma Savana! Tnhamos muito em comum. Brincvamos e ramos sem parar. Quando chegou a hora de eu mostrar que queria sair outras vezes com ele, (acho que no ter-ceiro encontro) tive que pegar o telefone e convid-lo para sair comigo. Como sempre, tinha enorme dificuldade de mostrar in-teresse. Orgulho puro. Na hora de falar, o tpico: voz engasgada, corao saltando pela boca, pernas trmulas. Tive que desligar e tomar coragem. Pus uma msica do Foo Fighters e lembrei de usar o pensamento que me atacava, dizendo que somos o sujeito, no o predicado. A consegui. Falei com ele, armei um programa. Fomos ento ao antigo Santa F em Baro Geraldo e depois em muitos, muitos outros lugares. E vamos at hoje.

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    Mas era a primeira vez que estava em um relacionamento e eu tinha j um discurso pronto: Ningum de ningum. O amor passa longe da posse. O amor livre. O resto depen-dncia. Se eu amo, eu deixo ser, simplesmente. Se as decepes comeam a aparecer porque eu ainda no me relacionei com quem e, sim, com quem eu queria que fosse. A decepo o en-contro com a verdade. Com tudo aquilo que e no esperado.

    No quero ser de ningum; quero ser da vida.Quero jogar fora tudo o que falso, mas no sei mais onde

    est este limite de tanto que me enganei para no sentir a dor da verdade. A dor e a alegria do agora, de como sou hoje. Prefiro a verdade lmpida. Prefiro a dor honesta ao conforto hipcrita.

    Quanto mais entrava no relacionamento, mais entrava em mim mesma, e quanto mais entrava em mim, mais medo eu tinha. Pois no bvio que o medo que sinto dos outros todos o medo de mim prpria? Porque o outro que me amedronta me pe frente a frente com um lado meu que desprezo. Tenho medo dos homens porque eles me mostram meu lado feminino justo aquele que sempre escondi, porque achava menor.

    As mulheres poderosas me amedrontam porque mos-tram meu lado falso, que esconde essa mesma mulher, porque em minha mente, mulher bem resolvida uma farsa.

    falso que uma farsa. Mulher bem resolvida, feminina e poderosa o que eu busco e juro que conheo algumas.

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    ToSSE

    Voltando para o sul da ndia. Auroville.Estava jantando em uma noite comum com alguns via-

    jantes que vinham de longe, contando seus causos, suas di-ficuldades e aventuras em terras indianas, quando de repente, comecei a tossir em uma espcie descontrolada de engasgo e tosse. Sa da mesa e fui tossir mais prximo ao meu quarto, onde eu tinha minha fingida privacidade.

    A tosse foi aumentando, ficando mais longa, mais alta, mais profunda. Achei que eu estava me transformando em al-gum lobisomem. No reconhecia mais o que saa dali. Meu olho comeou a lacrimejar sem parar, meu nariz a entupir.

    Ningum me acudiu, ningum chegou perto de mim, creio que de to assustadora que eu deveria estar naquela condi-o humilhante. Tambm eu no era a nica a ter estas esquisi-tices na ndia. Todo mundo tinha sempre algum problema fsico, como tosse, febre, diarreia e coisas at mais srias.

    A tosse foi acalmando bem devagar. Voltei para a mesa como se nada tivesse acontecido, mas por dentro, eu estava apa-vorada. O que teria sido aquilo? Algum vrus oriental mega-potente? Com o rosto vermelho e suado, terminei quieta meu jantar.

    Tive mais alguns acessos assustadores desta mesma tosse durante a noite e no dia seguinte percebi que eu poderia no sa-rar sozinha, como sempre acontecia. Fui ento ao posto de sade

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    de Auroville. Dei meu nome e falei sobre a tosse rapidamente na recepo.

    Esperei um pouco em uma sala aberta para um jardim bonito, cheio de rvores e passarinhos. Logo uma mulher jovem, provavelmente americana, me chamou para entrar em uma sala pequena onde havia apenas uma maca e uma mesa com duas cadeiras.

    Falei da tosse, da minha preocupao por nunca ter tido uma to forte. Ela ento ps as mos em cima da minha gargan-ta sem encostar no meu corpo, como uma espcie de reiki. Ficou assim por uns oito minutos de olhos fechados. Eu fiquei apenas observando, pagando para ver como isso iria funcionar. Passados os minutos, ela me pediu para sentar e me receitou inalaes trs vezes por dia com folhas de eucalipto.

    Sa de l j com as folhas da planta na mo e fui direto para casa fazer a inalao. Fervi a gua, coloquei as folhas de eucalipto na panela e levei tudo para o meu quarto. L em cima, chamei a panela para o meu colinho, cobri a cabea com cobertor e fiquei uns dez minutos inalando aquele vapor. Sem exagerar: remdio poderoso ou f, a tosse de lobisomem me abandonou completamente.

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    PSiCoLoGiA ou mEDiCiNA?

    Quando fui fazer Psicologia, tinha a iluso absurda de encontrar uma cincia exata. Foi um enorme desaponto perce-ber o quo obscuras e divergentes eram as teorias apresenta-das sobre a natureza humana. At ficava contente com algumas explicaes sobre o funcionamento dos neurotransmissores do crebro, mas no enxergava onde aquilo somava com um enten-dimento maior sobre o funcionamento do corpo e da complexi-dade psquica. Ento por que no fiz Medicina, j que meu pai mdico e poderia at me ajudar abrindo caminhos na hora de exercer a profisso?

    Na verdade, essa ideia de fazer Medicina passava pela minha cabea, mas quando pensava no tanto que teria