Viagem aos Impérios do Sol e da Lua

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Edição Clube do Livro, 1955, trad. José Maria Machado.

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CYRANO DE BERGERAC Viagem aos Imprios do Sol e da Lua

Traduo especial para o Clube do Livro de JOS MARIA MACHADO

CLUBE DO LIVRO SO PAULO 1955

Nota Explicativa H pouco, em segunda ou terceira "reprise", foi exibido pelos cinemas brasileiros o filme "Cyrano de Bergerac". As aventuras do poeta narigudo e brigo levaram alguns espectadores a pensar que essa figura incrvel no passasse de uma fico como h tantas na literatura, principalmente no cinema. Muito admirados ficariam esses mal informados espectadores se eu lhes dissesse que Saviniano Cyrano, baro de Bergerac, existiu de fato e o seu nome figura com brilho na Histria das letras da Frana. Nascido na Gasconha, levou uma vida de gentilhomem provinciano num tempo em que a aristocracia comeava a ceder, economicamente, o seu posto burguesia enriquecida nos negcios. E, como sempre acontece nos perodos de transio, os poderosos em declnio viviam numa acirrada luta entre si. A espada tinha sido levantada altura de um princpio, o duelo e o assalto a mo armada dirimiam as questes gerais e particulares... verdade que os senhores resolviam com dinheiro tais embaraos, admitindo no seu servio todos os valdevinos que empunhavam a "rapire" e tinham jeito para capangas. Sabe-se, historicamente, que Cyrano de Bergerac foi um fidalgo pobre, dado literatura, dotado de admirvel senso de altivez e de independncia, pois, exmio no duelo, recusou-se a servir a um patro, como aconteceu com D'Artagnan e outros personagens de romance. Fazia a guerra por conta prpria. verdade que, s vezes, no tinha na escarcela quatro soldos para a ceia, o que nunca foi uma novidade nos meios literrios, a comear pelo velho Homero.(p.5)

Cheio de sonhos, montou a cavalo e tocou para Paris, onde a poesia era prezada e havia uma aventura sua espera em cada esquina, atrs de cada frade-de-pedra. No finzinho do sculo passado, Edmond Rostand, ento prncipe dos poetas de Frana, encontrou nesse gasco valente e cheio de delicadezas, de suscetibilidade e de brio, o protagonista ideal para uma pea em verso destinada a exaltar o carter do povo francs, abatido pouco antes por uma guerra infeliz e revolues que pretendiam arrebatar o cetro burguesia que, um sculo antes, havia conseguido o domnio do pas. Cyrano foi um verdadeiro achado para o autor de "L'Aiglon", "Les Romanesques", "La Samaritaine" e "La Princesse Lointaine". No entanto, para realizar essa obra como desejava, ele precisou criar a figura de Roxane. E para que o espadachim no casasse com a eleita e proporcionasse preciosos momentos literrios, plantou-lhe na cara aquele monstruoso nariz que o inibia de dizer: "Eu te amo!". Nas minhas antigas leituras, no encontrei nenhuma referncia histrica ao nariz de Cyrano. Fui mais feliz com o narizinho de Clepatra... Mas, por causa de algumas gramas a mais na penca de um poeta espadachim, ningum deixa de admirar a pea, ou melhor, o poema de Edmond Rostand. Dando hoje publicidade as viagens fantsticas de Cyrano de Bergerac, na conscienciosa traduo de Jos Maria Machado, O Clube do Livro presta notvel servio cultural aos seus assinantes. Na mais modesta das hipteses, vem proporcionarlhes a oportunidade de ler um poeta que viveu cerca de trezentos anos antes dessa outra "Viagem Lua" de Jlio Verne, que o mundo inteiro costuma ler duas vezes na mocidade e na velhice. AFONSO SCHMIDT Cyrano de Bergerac, quinto filho de Abel I de Cyrano, Senhor de Mauvires, nasceu em Paris em 1619, tendo falecido com 46 anos de idade em Borgonha. (p.6) Aos sete anos, comeou os seus estudos com um cura de aldeia, continuando-os no Colgio de Beauvais at 1637. No ano seguinte, esteve no cerco de Mouzon, onde foi ferido, entrando na gendarmera do prncipe de Conti. Regressando a Paris, recebeu lies de Gassendi, que fizeram dele um libertino. Filsofo, galanteador de ruas, comilo de tabernas, briguento, deixou uma obra literria bizarra e interessante. As suas "Cartas", por vezes sem grande valor, chegam a ser brilhantes, especialmente quando se revestem de carter polmico e cheias de eloquncia no ataque aos mdicos, pr e

contra os feiticeiros etc. De sua obra variadssima, destacam-se "Le Pdant jou", "La Mort de Agrippinc", "Fragmentos de Fsica". "Poesias", e esta interessantssima "Viagem aos Imprios do Sol e da Lua", em que pe em relevo assuntos sociais e cientficos da sua poca. Edmond Rostand (1897), inspirando-se nessa to curiosa personalidade, escreveu a sua famosa comedia herica "Cyrano dc Bergerac", que representa, no teatro francs, um regresso tradio, depois de um perodo de realismo e de assimilao do estrangeiro". S. Paulo, 1. de agosto de 1955.(p.7)

Viagem a Lua CAPTULO I

Era Lua cheia. O firmamento estava escampo e lmpido. J tinham soado nove horas, quando, regressando de Clamart, nas vizinhanas de Paris, os diversos pensamentos que em ns provocou essa esfera de aafro nos assaltaram no caminho: de sorte que, olhos fixos no grande astro, ora, um o tomava por uma clarabia no Cu, ora, outro opinava que devia ser a platina em que Diana engoma os colarinhos de Apolo; um outro dizia que bem podia ser o prprio Sol, que, tendo-se despido de seus raios, contemplava, por esse buraco, o que se estava fazendo no mundo, quando no estava presente. E eu disse desejo unir meus entusiasmos aos vossos, acredito, sem distrairme nas imaginaes agudas com que fazem ccegas ao Tempo, para le caminhar mais depressa, digo que a Lua um mundo como este, ao qual o nosso serve de Lua. Alguns, que vinham em nossa companhia, lisonjearam-me com uma grande gargalhada: Assim, talvez disse-lhe eu zombam neste momento na Lua de algum que sustenta que este globo um mundo. Esta ideia, todavia, cuja singularidade contrariava o meu humor, acirrado pela contradio, tanto se arraigou dentro de mim, que, durante todo o resto do caminho, fiquei saturado de mil definies da Lua que me era impossvel formular com nitidez; de sorte que, a fora de apoiar essa crena burlesca, mediante raciocnios quase srios,

pouco faltou que eu nisso no Concordasse, quando o milagre ou o acidente, a providncia, a fortuna, ou talvez o que poder chamar-se viso, fico, quimera ou loucura, se quiserem, me forneceu ocasio que me levou a essa maneira de falar.(p.11) Tendo chegado a minha casa, subi ao meu gabinete, onde encontrei sobre a mesa um livro aberto que eu ali no havia deixado. Era o de Cardan1 e embora no tivesse vontade nenhuma de ler, os olhos caram-me, como que fora, justamente numa histria desse filsofo que diz, que, estando a estudar, uma noite, luz de uma candeia, viu entrar, apesar das portas estarem fechadas, dois grandes ancios, os quais, aps muitas perguntas que lhes fz, responderam que eram habitantes da Lua, desaparecendo imediatamente. Fiquei muito surpreendido, tanto por verificar que um livro tinha sido trazido para ali, por si mesmo, como pelo tempo e pela folha que estava aberta. Tomei toda esta cadeia de incidentes por uma inspirao, destinada a fazer conhecer aos homens que a Lua verdadeiramente um mundo. "Como! dizia eu comigo mesmo, depois de ter falado hoje, todo o tempo, a respeito de uma coisa, um livro, talvez nico no mundo, que trata particularmente deste assunto voa da minha biblioteca para cima da minha mesa, para abrir-se precisamente no ponto de aventura to maravilhosa, atraindo os meus olhos como que fora para esse ponto, para fornecer fantasias s minhas reflexes e minha vontade os desgnios que tenho em mente!" "Sem dvida continuei, os dois velhos que apareceram a esse grande homem so os mesmos que tiraram o meu livro do seu lugar e o deixaram aberto nessa pgina, a fim de poupar-me a maada do discurso que fizeram a Cardan". "E acrescentei nunca me ser possvel esclarecer esta dvida, se no subir at l. E por que no? respondi imediatamente a mim mesmo. Prometeu chegou outrora at ao Cu, a fim de l roubar o fogo2. Serei eu menos ardoroso que ele? (p.12) E por ventura no tereis razes para esperar xito da mesma maneira favorvel? A estes repentes que chamaro talvez acessos de febre sucedeu a esperana de conseguir levar a bom termo to bela viagem. De sorte que, para consegui-lo, me1

Era o famoso tratado de Subtilitate, cujo XVIII Captulo inteiramente consagrado s coisas maravilhosas, aos demnios ou aos gnios (nota do tradutor). 2 Na mitologia grega, Prometeu um Deus, ou Gnio do Fogo, criador da raa humana, personificao do gnio do homem. Prometeu era um Tit, foi inventor por excelncia e o primeiro autor de toda a civilizao. Fez o homem de barro, graas ao concurso de Atena; para lhe dar alma, roubou um bocado de fogo celeste; ensinou a Deucalio o modo de fazer navios, por ocasio do Dilvio e inventou as primeiras artes. Por tudo isso foi punido por Zeus cruelmente, que o mandou prender ao rochedo de Cucaso e o condenou ao suplcio eterno de lhe ser rodo por um abutre o fgado que renascia continuamente. (Transcrita pelo Clube do Livro)

encerrei numa casa de campo, bastante afastada, e onde, aps ter-me distrado de minhas divagaes com alguns meios proporcionais ao meu propsito, eis a maneira como subi ao Cu. Eu tinha amarrado ao redor de mim uma quantidade de frascos cheios de orvalho, sobre os quais o Sol dardejava seus raios to violentamente, que o calor, que os atraa, como faz com as grandes nuvens, me fz subir to alto que, finalmente, me encontrei acima da regio mdia. Mas, como essa atrao me fazia subir rapidamente demais e, em lugar de aproximar-me da Lua, como era minha inteno, ela se me afigurava mais distante do que por ocasio da minha partida, quebrei diversos dsses frascos, at sentir que o meu peso vencia a atrao, fazendo-me descer sobre a terra. Esta minha impresso no era falsa, pois nela voltei a cair pouco depois; e, a contar da hora em que tinha partido, devia ser meia-noite. Reconheci, entretanto, que o Sol estava, nesse momento, no ponto mais alto do horizonte, e que a era meio dia. Podem imaginar quanto isso me causou admirao. Certamente assim foi e sem saber a que atribuir tal milagre, tive a insolncia de imaginar que, em favor da minha audcia, Deus havia mais uma vez fixado o sol nos cus, a fim de iluminar to nobre empreendimento. O que fz crescer ainda mais o meu espanto foi o fato de no reconhecer o pas onde me encontrava, pois me parecia que, tendo subido direito, devia ter descido no mesmo ponto de onde havia partido. (p.13) Equipado, todavia, como estava, dirigi-me para uma espcie de cabana, da qual via sair fumaa. Quando me encontrava a uma distncia de um tiro de pistola, vi-me rodeado por grande nmero de homens, completamente despidos de roupa. Ficaram muito surpresos com o meu encontro, pois era eu, segundo me parecia, que eles teriam visto revestido de garrafas. E ainda para deitar por terra todas as interpretaes que eles fossem tentados a atribuir a tal indumentria, eles verificavam que, ao caminhar, quase no tocava o cho. No sabiam que, ao menor abalo que eu imprimia a meu corpo, o ardor dos raios do sol, ao meio-dia me erguiam com o meu orvalho e que se os meus frascos fossem bastante numerosos eu teria sido arrebatado pelos ares. Vi quando eles se abeiravam de mim; mas como se o terror os tivesse convertido em pssaros, reparei num instante que todos se haviam perdido na floresta vizinha. Consegui, entretanto, apanhar um, cujas pernas decerto haviam trado o corao. Perguntei-lhe, com muito custo, pois eu estava todo sufocado, que distncia havia dali a

Paris e desde quando era que, na Frana, a gente andava nua e porque fugiam aterrorizados de mim. Esse homem, com quem eu falava, era um ancio cr de azeitona, que comeou por prostrar-se a meus ps e, juntando as mos acima da cabea, abriu a boca e fechou os olhos. Rosnou durante muito tempo entre os dentes, mas no vi que articulasse palavra alguma, de sorte que tomei sua linguagem pelo gorjeio rouco de um mudo. Aps algum tempo, vi chegar uma companhia de soldados, batendo tambor e notei que dois se separaram do grupo, com o fim de reconhecer-me. Logo que chegaram bastante perto para poderem ouvir, indaguei deles onde era que eu estava. - Estais en Frana disseram-me; mas que diabo vos colocou em semelhante estado? E como explica que no vos reconheamos? Chegaram navios de ultra-mar? Ides avisar disso o governador? E por que repartistes vossa aguardente em tantas garrafas? (p.14) A todas essas perguntas respondi que no fora o diabo que me colocara nesse estado; que eles no me conheciam, pela razo muito simples de que no podiam conhecer todos os homens; que eu ignorava que o rio Sena podia transportar navios at Paris; que eu no tinha aviso nenhum a transmitir ao senhor Marechal do Hospital3 e que eu no estava carregado com gua ardente. Oh! oh! disseram eles, agarrando-me pelo brao est parecendo o tal E conduziram-me para o grosso da sua tropa. Soube ento que realmente me encontrava na Frana, mas na Nova Frana4, de sorte que, dali a algum tempo, fui apresentado ao Vice-Rei, que me perguntou de que pas eu era, o meu nome e a minha condio. Depois que lhe dei as informaes pedidas, le ficou contente com o feliz xito da minha viagem, embora fingisse acreditar, e teve a gentileza de ordenar que me dessem um quarto no seu apartamento. Senti-me muito feliz por haver encontrado um homem capaz de elevadas opinies, que no se mostrou admirado quando lhe disse que era preciso que a terra houvesse girado, durante a minha elevao, pois que, havendo comeado a elevar-me num lugar situado a duas lguas de Paris, tinha cado, numa linha quase perpendicular, no Canad.3

divertido? O senhor Governador deve conhec-lo bem.

Chamava-se assim, nos portos de mar, o diretor do isolamento, cuja misso consistia em verificar o estado de sade a bordo. (Nota do trad.).4

A Nova Frana ou Canad, cuja colonizao se iniciou em 1610 (Nota do trad.).

noite, quando eu ia deitar-me, entrou no meu quarto e disse-me: Eu no teria vindo interromper vosso descanso, se no julgasse que uma pessoa que descobriu o segredo de efetuar tanto caminho, na metade de um dia, no seja tambm capaz de evitar o cansao. Mas vs ignorais acrescentou a divertida disputa que tive a vosso respeito com nossos Pais, os antigos. Eles pretendem absolutamente que sois um mgico (p.15) e o maior beneficio que deles vos ser possvel alcanar consiste em passar por um simples impostor. Com efeito, esse movimento Quanto no nas Terra meio aqui, le ra? no E sou ontem, tenha de pois, depois, a que mim, da de vossas caminha atribus vossa Paris, girado, segundo de qual vis, terra que, chegado tendo-vos no no a deve e um que embora a o os que este ter-vos fazeis paradoxo o tenhais pas, Sol feito Filsofos caminhar que assaz delicado. pelo partido, sem que arrebatado, chegar a qual apea por at Tertendes dir-vos-ei opinio tenhais porque, francamente motivo

garrafas,

Ptolomeu5 sentido

modernos,

grande

verossimilhana

para figurar que o Sol esteja imvel quando toda gente o v caminhar? Qual a aparncia de que a Terra gira com tanta rapidez, quando a sentimos firme, a nossos ps? que Senhor nos uma obrigam questo de repliquei a bom senso eis desse mais modo. que ou o menos Em Sol as tomou razes lugar, lugar julgar primeiro

acreditar

no centro do Universo, pois todos os corpos existentes na natureza necessitam desse fogo radical; que le habita no corao deste Reino, a fim de satisfazer prontamente s necessidades de cada uma das partes e que a causa das geraes esteja colocada no meio de todos os corpos, a fim de neles operar com igualdade e mais facilmente; da mesma forma que a natureza colocou as pevides no centro das mas, as sementes no meio dos respectivos frutos. E da mesma forma que a cebola conserva, ao abrigo de cem cascas que a revestem (p.16) o precioso germe em que dez milhes de outros vo procurar sua essncia, porque essa ma por si mesma um pequeno universo, cuja pevide, mais5

Cludio Ptolomeu, astrnomo e gegrafo grego, do stc. II, de nossa era. Embora muito pouco se saiba sobre a sua existncia, a obra por le dsixada grande, pois abraou a astronomia, a matemtica, a cronologia, a tica, a gnomnica (poemas morais, muito em voga entre os gregos naquele tempo), a geografia, a msica, etc. A mais importante de suas obras a "Composio Matemtica mais conhecida pelo nome de Almagesto, que contm uma exposio do sistema do mundo (Ptolomeu julgava a Terra imvel), da disposio dos corpos celestes e das suas revolues em torno da terra, um tratado completo de trigonometria retilnea e esfrica, e a expresso do clculo de todos os fenmenos do movimento diurno". (Transcrita pelo "Clube do Livro").

quente que as outras partes, o sol que espalha em redor o calor, conservador de seu globo; e, segundo esta opinio, o germe o pequeno Sol desse pequeno mundo que aquece e nutre o sal vegetativo dessa pequena massa. Isto suposto, digo eu que a Terra, carecendo de luz, calor e da influncia desse grande fogo, gira em redor dele, a fim de receber por igual, em todas as suas partes, essa virtude que a conserva. Porque seria to ridculo pensar que esse grande corpo luminoso girasse volta de um ponto apenas imaginrio, quando vemos que uma calhandra fica assada simplesmente, fazendo-a rodar na chamin. De outra forma, se fosse o Sol que efetuasse essa tarefa, dir-se-ia que era a medicina que carecia do doente, que o forte seria obrigado a dobrar-se sob o fraco, o grande a servir o pequeno e que, em vez de um barco a dar volta ao longo das costas de uma provncia, seria a provncia a rodar em volta do barco. Se tendes dificuldade em compreender como to pesada massa pode mover-se, dizei-me, por favor, os astros e os cus que imaginais to slidos, sero mais leves? Ainda mais fcil para ns, que estamos certos de que a terra redonda, concluir qual seja o seu movimento, devido sua figura. No censuro vossos excntricos e vossos epciclos6, que no saberieis explicar seno muito confusamente e dos quais livro o meu sistema. Falemos das causas naturais desse movimento. Sois obrigados a recorrer s inteligncias que movem e governam vossos globos? Eu, todavia, sem interromper o repouso do Soberano Ser, que, sem dvida, criou a natureza inteiramente perfeita, e com a sabedoria a dotou, de sorte que, havendo (p.17) executado uma coisa, no a tornou defeituosa, por via de outra, digo que os raios do Sol, com suas influncias vindo a nela incidir, em virtude da sua circulao, a fazem andar roda, como ns fazemos andar roda um globo, batendo-lhe com a mo. Da mesma maneira que os fumos que continuamente se evaporam de seu seio, do lado que olha para o Sol, repercutidos pelo frio da regio mdia, so impelidos e no podem incidir seno de vis, a fazem dar piruetas. A explicao dos outros dois movimentos ainda menos complicada... Considerai um pouco, por favor... Dizendo estas palavras, o Vice-Rei interrompeu-me: Prefiro dispensar-vos desse trabalho. A esse respeito, li alguns livros de Gassendi, mas eis o que me respondeu um dia um de nossos Pais que sustentava vossa opinio:Ptolomeu coloca a terra no centro de todos os movimentos celestes, pois que o movimento circular e uniforme, considerado como o mais perfeito, impotente para dar conta das observaes, imaginou uma combinao de movimentos circulares e criou a teoria dos epicilos. Esse sistema subsistiu durante 14 sculos. (Transcrita pelo Clube do Livro).6

Efetivamente dizia le, imagino que a Terra anda roda, no pelos motivos alegados por Coprnico7, mas porque, estando o fogo do inferno, preso no centro da terra, (p.18) os condenados que querem fugir aos ardores das chamas, sobem, a fim dele se afastar em direo abbada e assim girar a Terra, semelhantemente a um co que faz mover uma bola, quando corre, na mesma encerrado. Durante algum tempo louvamos este pensamento, como puro zelo desse bom Pai, e por fim o Vice-Rei disse-me que muito se admirava, visto o sistema de Ptolomeu ser pouco provvel para que to geralmente fosse aceito. Senhor repliquei, a maior parte dos homens, que julgam as coisas simplesmente pelos sentidos, deixou-se persuadir, e da mesma forma que aquele, cujo navio voga terra a terra, se julga permanecer imvel e acredita que so as margens que caminham, assim os homens, girando com a Terra ao redor do Cu, julgaram que era o prprio Cu que girava ao redor deles. Acrescente a isso o orgulho insuportvel dos humanos, que se persuadem de que a Natureza foi feita apenas para eles, como se fosse verossmil que o Sol, corpo enorme, quatrocentas e trinta e quatro vezes mais vasto que a Terra, tivesse sido aceso para amadurecer simplesmente as suas ameixas e fazer crescer suas couves. Por mim, bem longe de consentir em tal insolncia, acredito que os Planetas so mundos ao redor do Sol e as estrelas lixas so igualmente Sis com Planetas em redor, quer dizer, mundos que daqui no vemos em razo de sua pequenez e porque sua luz, que emprestada, no consegue chegar at ns. Por que, em boa f, como imaginar que esses globos to espaosos no sejam seno grandes campinas desertas, e que o nosso, porque nele nos encontramos, tenha sido construido para uma dzia de pequenos entes cheios de soberba? Como! Como o sol que regula nossos7

Nicolau Coprnico, astrnomo polons, nasceu cm Thorn, em 14/3 e faleceu aos 70 anos de idade. Era filho de um padeiro. Aos 18 anos entrou na Universidade de Cracvia, onde se entregou ao estudo de Astronomia com Brudzewo. Mais tarde, abandonando a ideia que tinha de tomar ordem religiosa, inscreveu-se na Universidade de Bolonha, ajudando Domnico de Ferrara nas suas observaes astronmicas e em 1500 vai para Roma ensinar matemticas. Estudou medicina em Pdua. Em 1505, deixou a Itlia e foi para Heilseberg. Em Frauenburg, onde viveu o resto da sua vida, levantou um observatrio chamado "Cria Coprnica". Contava le 70 anos de idade, quandou se decidiu mandar imprimir o seu imortal tratado "De revolutionibus orbium celestium libri", que apareceu poucos dias antes de sua morte, e que era a concepo nova do Universo, entrevista por le em 1512. Alguns antigos haviam tido o pressentimento do movimento anual dos astros. Em Aristteles como em Plutarco pode ver-se que os pitagricos admitiam o movimento de rotao da terra sobre si mesma, a fixidez do sol no centro do mundo e o movimento dos planetas em volta do sol. Mas, a astronomia antiga era representada pelo sistema de Ptolomeu, que fazia da terra o centro imvel do Universo. Este sistema de Ptolomeu durou 14 sculos, do sculo II de nossa era at 1512, data em que foi substitudo pelo sistema Coprnico (o sol que fixo, embora tenha movimento de rotao, e os planetas giram em torno dele). Este sistema foi confirmado em 1610, quando Galileu descobriu a Luneta. As descobertas de Galileu confirmam o sistema de Coprnico e os maiores geometras, desde Newton, no cessaram de desenvolver as consequencias das suas hipteses primordiais e de uma grandiosa fecundidade. (Transcrita pelo Clube do Livro).

dias e nossos anos, havia de ser por isso que foi simplesmente contrudo para que no andssemos a bater com a cabea de encontro s paredes? No, no, se esse Deus (p.19) visvel alumia o homem somente por um acidente, como que os archotes do rei alumiam por acaso o ladro arrombador que passa pela rua? Mas tornou le como afirmais que as estrelas fixas so outros tantos sis, poder-se-ia concluir que o mundo infinito, pois verossmil que os povos deste mundo que esto ao redor de uma estrela fixa, que tomais por um Sol, descobrem ainda por cima deles outras estrelas fixas que daqui nos seria impossvel enxergar e assim sucessivamente, numa espcie de infinito. No tenhais dvida repliquei. Assim como Deus pde fazer a alma imortal, tambm pde fazer o mundo infinito, se verdade que a eternidade outra coisa no seno uma durao sem limites, e o infinito, uma extenso igualmente sem limites. E depois, o prprio Deus seria finito, admitindo que o mundo no fosse infinito, pois le no poderia estar onde nada existisse e nada poderia acrescentar grandeza do mundo se no acrescentasse alguma coisa sua prpria extenso, comeando por estar onde anteriormente no estivesse. Foroso , pois, crer que assim como daqui vemos Saturno e Jpiter, se estivssemos num ou noutro, descobramos muito mundos que no enxergamos, e que o universo est assim construdo infinitamente dessa maneira. Por minha f! Por mais que vos esforceis por dizer. . . no sou capaz de compreender esse infinito. -Ora! dizei-me tornei-lhe eu sois capaz de compreender O nada que est para alm? Absolutamente, no. Porque, quando pensais nesse nada, o imaginais pelo menos como o vento ou como o ar e isso alguma coisa; mas o infinito, se em geral o no compreendeis, o podeis ao menos conceber por partes, quando no difcil figur-lo para alm do que vemos de terra e de ar, de fogo e de outra terra. Ora, o infinito nada mais sem limites de tudo isso, que Se me um perguntardes de que tecimento manei-

ra so feitos esses mundos, visto que a Sagrada Escritura fala apenas de um que Deus criou, respondo que no fao questo, (p.20) pois, se me obrigardes a dar-vos a razo do que a minha imaginao me fornece, tirar-me-eis o uso da palavra, obrigando-me a confessar que o meu raciocnio ceder sempre F nessas questes. Disse-me efetivamente que a sua pergunta era digna de censura, mas que eu retomasse o fio de minha ideia.

"De sorte que acrescentei todos esses outros mundos que no se vem ou imperfeitamente se vem so apenas a escuma dos sis que se purgam. Pois como poderiam esses grandes fogos subsistir, se no estivessem ligados a alguma espcie de matria que os alimenta? Ora, da mesma maneira que o fogo expele para longe de si a cinza, que o abafaria, da mesma sorte que o ouro, no cadinho, se destaca, afinando-se da marcassite que enfraquece seu brilho e sua pureza, e da mesma forma ainda que nosso corao se livra, pelo vmito, dos humores indigestos que o atacam; assim esses sis se desobstruem todos os dias e se purgam dos restos da matria que lhes prenderia o fogo. Mas, quando houverem consumido inteiramente essa matria que os conserva, no tenhais dvida que se espalharo por todos os lados, a fim de procurar outro alimento, unindo-se a outros mundos que outrora tero ajudado a construir, particularmente queles que encontrarem mais prximos. Ento, esses grandes fogos fazendo ferver todos os corpos, os expeliro juntamente de todos os lados, como anteriormente, e tendo-se, a pouco e pouco purificado, comearo a servir de sis a outros pequenos mundos a que daro origem, expelindo-os para fora de suas esferas. isso o que levou os pitagricos a predizer o incndio universal. Isso no imaginao ridcula: a Nova Frana, onde nos encontramos, fornece um exemplo bem convincente. Este vasto continente da Amrica uma das metades da Terra, a qual, apesar de nossos predecessores haverem mil vezes perlustrado o Oceano, no tinha ainda sido descoberta. Por isso no existia ela ainda, assim como muitas outras ilhas, peninsulas e montanhas que se elevaram em nosso globo, quando os enferrujamentos do sol que se purificava foram (p.21) levados bastante longe e condensados em pelotes bastante pesados para serem atrados pelo centro do nosso mundo, possivelmente a pouco e pouco, em partculas diminutas, ou talvez repentinamente numa s massa? Isso efetivamente to racional, que Santo Agostinho no deixaria de aplaud-lo, se o descobrimento deste pas tivesse sido feito no seu tempo: pois este grande personagem, cujo gnio era dos mais ldimos e argutos, nos assegura que, no seu tempo, a Terra era plana como um forno e nadava na gua, semelhante metade de uma laranja, cortada em duas. Mas se um dia eu tiver a honra de ver-vos na Frana, eu vos farei observar, mediante uma excelente luneta, que certas obscuridades, que daqui nos parecem manchas, so mundos em construo." Os meus olhos, que se fechavam, ao terminar este discurso, obrigaram o Vice-Rei a retirar-se. No dia seguinte e nos outros mais, entretivemo-nos em conversa de natureza semelhante. Mas como algum tempo depois os embaraos dos negcios da Provncia

nos obrigaram a suspender as nossas divagaes filosficas, reca com mais empenho na minha inteno de subir at Lua. Logo que ela surgia no horizonte, eu ia passear pelos bosque, pensando na realizao e no xito da minha empresa. Finalmente, na vspera de So Joo, em que havia conselho na fortaleza, a fim de decidir se se proporcionaria socorro aos selvagens do pas contra os Iroqueses, dirigi-me sozinho, por trs de nossa casa, ao alto de uma pequena montanha, onde fiz o seguinte: eu tinha construdo uma mquina que julgava capaz de elevar-me minha vontade, de sorte que nada lhe faltava que eu pensava fosse necessrio. Sentei-me dentro desta mquina e precipitei-me no ar, do alto de um rochedo. Mas, como no havia tomado bem certas precaues, ca, de pernas para o ar, no vale. Embora bastante alquebrado, voltei ao meu quarto, sem perder a coragem e com sebo de boi untei todo o corpo, porque estava machucado, da cabea aos ps. Depois de ter fortificado o corao com uma garrafa de essncia cordial, fui procura de minha mquina. (p.22) No a encontrei, todavia, porque alguns soldados, que tinham recebido ordem de ir ao bosque cortar lenha para fazer a fogueira de So Joo, tendo-a por acaso encontrado, a tinham trazido para a fortaleza. A, aps vrias explicaes daquilo que podia ser ou deixar de ser, tendo descoberto a inveno da mola, alguns formaram opinio que era preciso amarrar-lhe uma quantidade de foguetes voadores, porque, devido sua rapidez e agitao de suas grandes asas, ningum deixaria de tomar essa mquina por um drago de fogo. Andei bastante sua procura e finalmente fui encontr-la no meio da praa de Kebec, quando iam pegar-lhe fogo. A dor de encontrar a obra de minhas mos em semelhante perigo exaltou-me de tal forma, que corri a segurar a mo do soldado que ia atear a mecha, arranquei-lha da mo e atirei-me furioso minha mquina, a fim de quebrar o artifcio que a rodeava. Cheguei, porm, tarde demais, porque mal pus os ps dentro, vi-me logo arrebatado nas nuvens. tudo quanto aconteceu nesse momento. O horror no conseguiu todavia perturbar Efetivamente, logo que a chama devorou a tanto as faculdades da minha alma que no fosse possvel mais tarde recordar-me de fileira dos foguetes, que tinham sido colocados seis a seis, por meio de um estopim que se ligava a cada meia dzia, outra srie se acendia e depois outra, de maneira que, pegando fogo o salitre, afastava o perigo, aumentando-o. Esgotada, porm, a matria, o artificio falhou e ento pensei apenas que iria deixar a cabea no cimo de alguma montanha. Sem mover-me, senti que a minha elevao continuava, e a minha mquina, despedindo-se de mim, via-a cair no solo.

Esta aventura extraordinria encheu-me o corao de uma alegria to pouco vulgar que, satisfeitssimo por ter escapado de um grande perigo certo, tive o desplante de filosofar a esse respeito. Como, efetivamente, com o pensamento e com a vista procurasse saber qual seria a causa, vi a minha pele cheia de (p.23) borbulhas e ainda untada com o sebo de boi usado para tratar das machucaduras da queda anterior.Verifiquei ento que, estando nesse momento, a Lua em declinao e durante esse quarto acostumada a sugar a medula dos animais, estava ela bebendo a substncia com que eu me havia untado, com tanto mais fora quanto o seu globo ficava mais prximo de mim, sem que a interposio das nuvens lhe atenuasse o vigor. Quando eu ultrapassei, segundo os clculos que posteriormente fiz, bastante mais de trs quartas partes do caminho que separa a Terra da Lua, vi subitamente que caa com os ps para cima, sem ter feito de maneira alguma qualquer cambalhota. Mas no o teria percebido, se no sentisse todo o peso do meu corpo sobre a cabea. verdade que compreendia perfeitamente que no estava recaindo para o nosso mundo, pois, embora me encontrasse entre as duas Luas e percebesse claramente que me afastava de uma, medida que me aproximava da outra, tinha a certeza de que a maior era o nosso globo, porque, ao cabo de dois dias de viagem, as refraes distantes do Sol, vindo confundir a diversidade dos corpos e dos climas, le j no se me afigurava semelhante a uma grande chapa de ouro. Isso fz-me imaginar que estava mas descendo na direo da Lua. E essa ideia mais se firmou em mim, quando me recordei que somente tinha comeado a cair, aps ter feito trs quart a s partes do caminho. "Com efeito dizia eu a mim mesmo, sendo essa massa menor que a nossa, foroso que a esfera da sua atividade tenha menos amplitude e que, consequentemente, eu sentisse mais tarde a fora do meu centro". F INALMENTE , depois de ter levado muito tempo a cair (pelo que eu imaginava, pois a violncia do precipcio me impediu not-lo) o que de mais distante me recordo foi que me encontrei debaixo de uma rvore, embaraado em trs ou quatro galhos que na minha queda havia rebentado, o rosto molhado pelo suco de uma maa que tinha esmagado e estava estava escondida por baixo. (p.24) Por sorte, esse lugar estava, como dentro em pouco se saber... 8. Assim fcil ser imaginar que sem esse acaso teria morrido mil vezes. Frequentemente, mais tarde, refleti naquilo que o vulgo afirma, a saber, que, atirando-se de um ponto muito alto, a8

Uma das muitas reticncias e lacunas do texto original, neste e em outros perodos.

gente sente perder a respirao antes de tocar o cho - Conclui da minha aventura que era uma crena mentirosa essa lenda. No entanto, verifiquei que o suco de um fruto qualquer poderia reter a alma, que no estava longe do meu cadver, ainda tpido e disposto para as funes da vida. Efetivamente, logo que pus p em terra, a dor desapareceu, antes mesmo de ter-se dissipado da minha memria; a fome que, durante toda a minha viagem me havia torturado, me fez encontrar em seu lugar apenas uma leve recordao de t-la perdido. Mal me ergui, observei o mais largo de quatro grandes rios que, juntando-se na foz, formavam um lago, que o esprito ou a alma insivvel dos simples, que neste pas se exalam, logo me veio alegrar o olfato. E verifiquei que as pedras no eram to duras nem to speras e tinham o cuidado de amolecer, quando se caminhava por cima delas. Encontrei primeiro uma estrela de cinco avenidas, cujas rvores, devido sua altura excessiva, pareciam erguer at ao cu um taboleiro de mata muito alta. Divagando com os olhos, da raiz at ao cimo, depois descendo-os do alto at ao p, estava em dvida se era a terra que os segurava ou se eles no suspendiam a terra em suas razes. O seu cimo, soberbamente elevado, parecia tambm dobrar, como que fora, sob a carga dos globos celestes, cujo peso, dir-se-a, eles s suportam gemendo; seus braos, tensos para o cu, pareciam, abraando-o, rogar aos astros a benignidade purssima de suas influncias e receb-las antes que alguma coisa perdessem dessa inocncia, no leito dos elementos. A, de todos os lados, flores sem outro jardineiro a no ser a Natureza, respiram um hlito to doce, se bem que silvestre, que desperta e satisfaz o olfato; a o encarnado de uma rosa na roseira (p.25) selvagem e o azul brilhante de uma violeta debaixo dos espinheiros, no deixando liberdade para escolha, fazem pensar que so ambas mais belas uma que a outra; ai a primavera forma todas as estaes; a no germina planta venenosa sem que no seu nascimento no manifeste a sua converso; a os regatos, num murmrio agradvel, contam as suas viagens por sobre os seixos; a mil gargantas emplumadas fazem ecoar pela floresta suas melodiosas cantigas e a trepidante assembleia desses divinos msicos to geral que se diria que cada folha, nesse bosque, tenha tomado a figura e a lngua de um rouxinol. Mesmo o eco acha tanto encanto nas suas msicas que a ouvi-las repetir, se tem vontade de aprend-las. Ao lado desse bosque, vem-se duas campinas, cujo verde-gaio contnuo parece uma esmeralda, a perder de vista. A mistura confusa das tintas que a primavera esmalta em cada cem florinhas, gradua as tonalidades de uma outra, com to agradvel

confuso, que no se sabe se essas flores, agitadas por um doce zfiro, correm umas atrs das outras ou fogem s carcias desse vento brincalho. Tomar-se-ia esta campina por um Oceano, pois semelhante a um mar sem margens, de sorte que os meus olhos, admirados de terem olhado to longe, sem descobrirem qualquer margem, para ali enviara rapidamente o meu pensamento e este meu pensamento, duvidando que tal fosse a extremidade do mundo, queria persuadir-se a si mesmo que to encantadores lugares teriam acaso obrigado o Cu a unir-se Terra. No meio de um tapete to vasto e to agradvel, corre, em borbotes de prata, uma fonte rstica que coroa seus bordos com uma relva esmaltada de botes de ouro, de violetas e de cem outras florinhas que parecem disputar entre si qual nela se h-de mirar primeiro: ainda um bero, pois acaba de nascer e sua face jovem e polida no apresenta a menor ruga. Os grandes crculos que ela passeia, voltando mil vezes sobre si mesma, mostram que realmente muito a contra-gosto que sai do seu pas natal: e como se tivesse vergonha de ver-se acariciada junto da sua me, repele, num murmrio, minha mo que queria toc-la. (p.26) Os animais que a vinham desalterar-se, mais racionais que os do nosso mundo, parecem surpresos de ver que, no horizonte, surge uma grande luz, enquanto contemplavam o Sol nos antpodas, no se atrevendo a inclinar-se na margem, com receio de cair no firmamento . Devo confessar-vos que diante do espetculo de coisas to belas me senti agradavelmente impressionado com essas dores que dizem sentir o embrio, no momento da infuso da alma. O velho plo caiu-me, para ceder lugar a outros cabelos mais espessos e mais leves. Senti renascer a juventude, tornar-se mais vermelho o meu rosto, o meu calor natural juntar-se mais suavemente ao meu mido radical; senti, finalmente, que a minha idade recuava cerca de catorze anos. Tinha eu andado meia lgua atravs de uma floresta de jasmins e mirtos quando avistei, deitado sombra, qualquer coisa que se movia. Era um jovem adolescente, cuja majestosa beleza quase me obrigou adorao. le, porm, levantou-se para impedirme que o fizesse: "No a mim disse mas sim a Deus que deveis essas humildades!" "Estais vendo repliquei uma pessoa consternada por tantos milagres, que no sei pelo qual iniciar as minhas admiraes, pois vindo de um mundo que vs aqui, sem dvida, tomais por uma Lua, pensava ter abordado outro, que os do meu pas

chamam tambm Lua, e eis que me encontro no Paraso, nos ps de um deus que no quer ser adorado." Excetuando a qualidade de Deus tornou le, de que sou apenas a criatura, o que estais dizendo verdade; esta terra a Lua que podeis ver do vosso globo e este lugar onde vos encontrais ... Ora, naquele tempo a imaginao do homem era to forte, por no estar ainda corrompida, nem pela devassido, nem pela crueza dos alimentos, nem pela alterao das enfermidades, que sendo excitado ento pelo violento desejo de alcanar este asilo e tendo-se sua massa tornado leve ao fogo desse entusiasmo, a foi arrebatado da mesma maneira que se viu filsofo, pela imaginao fortemente tensa para qualquer coisa, serem elevados (p.27) no ar pelos arrebatamentos que chamais xtases9 que a enfermidade de seu sexo tornava mais fraca e menos quente, no tendo seguramente a imaginativa assaz vigorosa para vencer, pela conteno o peso da sua vontade, o peso da matria, mas justamente porque era pouca essa matria. A simpatia de que metade continua ainda ligada a seu todo, elevou-o a si, medida que subia, como a sombra se faz acompanhar pela palha, como o im se volta para o setentrio, do qual foi destacado e atrai essa parte de si mesmo, como o mar atrai os rios que saram todos dele mesmo. Chegados que foram vossa terra, habituaram-se a viver entre a Mesopotmia e a Arbia; certos povos conheceram-no sob o nome de... e outros pelo de Promoteu, que os poetas imaginaram ter roubado o fogo do cu, porque os descendentes que le engendrou, eram donos de uma alma to perfeita como aquela que le prprio possua. Assim, para habitar vosso mundo, esse homem deixou este deserto; mas o Onisciente no quis que morada to feliz permanecesse sem habitantes e permitiu que, sculos depois... aborrecido da companhia dos homens, cuja inocncia se corrompeu, tivesse desejo de abandon-los. Esse personagem, todavia, no julgou que houvesse lugar bastante abrigado contra a ambio de seus pais, que se matavam para a partilha do vosso mundo, seno a terra bem-aventurada de onde seu antepassado lhe havia falado e da qual ningum ainda havia observado o caminho... Mas a sua Imaginao supriu essa lacuna, pois como houvesse observado... encheu dois grandes vasos que fechou hermeticamente e ajustou-os debaixo de suas asas. Imediatamente o fumo que tendia elevar-se e no podia penetrar no metal, arrastou os vasos para cima e assim levaram9

Existe aqui uma lacuna, como em outro ponto, que prova que o autor ou tinha simplesmente esboado sua obra, ou que se perderam algumas folhas do original. No procuramos completar os perodos desta e de outras pginas, de sentido imperfeito, e incerto, para respeitarmos o texto original. Julgamos reconhecer que Cyrano tinha colocado Ado e o Paraso terreste na lua. (Nota do trad.)

consigo esse grande homem.

Logo que chegou lua e lanou os olhos por este belo

jardim, uma alegria quase sobrenatural fz-lhe conhecer que era este o lugar (p.28) onde seu antepassado outrora tinha habitado. Desatou rapidamente os dois vasos que havia amarrado, como duas asas ao redor dos ombros, e fz com tamanha felicidade que, mal se encontrou no ar, quatro toesas acima da Lua, desfez-se das suas barbatanas. A elevao, contudo, era bastante grande para feri-lo muito, sem o seu amplo vestido onde o vento penetrou sustentando-o suavemente at conseguir pr os ps em terra. Quanto aos dois vasos, subiram eles at certo ponto no espao, onde permanecem e o que atualmente se chama a Balana.

CAPITULO II "Tenho que contar-vos agora a maneira como at aqui vim. Creio que no tereis esquecido meu nome, pois j v-lo disse noutros tempos. Ficai sabendo pois, que eu habitava as margens agradveis de um dos mais famosos rios de vosso mundo, onde entre os livros, levava uma vida bastante suave para no a esquecer, embora ela fosse deslizando. Todavia, quanto mais cresciam as luzes de meu esprito, mais crescia tambm o conhecimento daquelas outras que eu no possuia. Nunca os nossos sbios se referiam ao ilustre Mada10, sem que a lembrana de sua filosofia perfeita me no fizesse suspirar. Eu desesperava de poder adquiri-la, quando, um dia, aps haver durante muito tempo sonhado, peguei num m de aproximadamente dois ps em quadro, que coloquei num forno; depois dele ficar bem limpo, precipitado e dissolvido, tirei-lhe o atrativo calcinado, reduzindo-o mais ou menos ao tamanho de uma pequena bola. Depois destes preparativos, mandei construir uma mquina muito leve na qual entrei... e quando fiquei bem firme e apoiado no assento, atirei muito alto, para o ar, essa bola de im. Ora, a mquina de ferro, por mim forjada expressamente mais macia no meio do que nas extremidades, foi imediatamente arrebatada, num equilbrio perfeito, porque era constantemente impelida com mais fora por esse ponto. Assim, pois, medida que atingia o lugar aonde o m me havia atrado, atirava imediatamente para o ar a minha bola. Mas como interrompi atirveis a vossa bola to direito acima de vossa carreta, de sorte que ela nunca se encontrasse de lado?10

Anagrama de Adam (Ado). (Nota do trad.).

. No vejo nada de admirvel nessa aventura respondeu-me le, pois o m que estava no ar atraa o ferro na minha direo e, consequentemente, era impossvel que eu jamais subisse at onde le se encontrava- Dir-vos-ei mesmo que, conservando a bola nas mos, no cessava de subir, porque a carreta corria sempre para o m que eu mantinha acima dele o mpeto desse ferro, a fim de unir-se minha bola, era to violento, que me fazia dobrar o corpo, de sorte que no me atrevi, seno uma vez, a tentar essa nova experincia. Era, na verdade, um espetculo to espantoso, porque o ao dessa casa voadora, que eu tinha polido com tanto cuidado, refletia por todos os lados a luz do sol to viva e to brilhante que eu mesmo julgava encontrar-me ardendo em fogo. Finalmente, depois de haver atirado muitas vezes a bola para o ar, cheguei, como vs mesmo fizeste, a um termo, e ca neste mundo. Mas como nesse instante eu conservava a minha bola apertada na mo, a minha mquina, cujo assento me impelia a aproximar-se de seu atrativo, no me largou: tudo quanto havia a recear era torcer o pescoo. Mas para impedi-lo, atirava a minha bola, de tempos a tempos, para que, com a violncia da mquina, retida por seu atrativo, afrouxasse, e assim a queda fosse menos violenta, como, com efeito aconteceu, pois quando vi que estava a duzentas ou trezentas toesas do solo, atirei a minha bola para todos os lados, ao rs da carreta, ora para aqui, ora para acol, at atingir certa distncia e atirei-a logo para cima de mim. A minha mquina seguiu-a e eu deixei-me cair pelo outro lado o mais suavemente que foi possvel, sobre a areia, de sorte que a queda foi menos violenta do que se casse do alto. No vos exporei o espanto que se apoderou de mim vista das maravilhas que aqui encontrei, pois foi (p.30) mais ou menos semelhante ao que reparei que vos tinha consternado... 11 Mal o tinha provado, caiu-me sobre a alma uma nuvem espessa: no vi mais ningum em redor de mim e os meus olhos no reconheceram, em todo o hemisfrio, um nico vestgio do caminho que eu tinha percorrido; apesar de tudo isso, no deixava de recordar-me de quanto me havia acontecido. Quando depois, refleti sobre este milagre, afigurou-se-me que a casca do fruto que eu tinha mordido me embrutecera de todo, porque os meus dentes, ao atravess-la, sentiram um pouco do suco que essa casca cobria, cuja energia havia dissipado a sua malignidade. Fiquei muito surpreendido ao ver-me sozinho no meio de uma terra que no conhecia. Por mais que passeasse a vista,11

H neste ponto uma lacuna no texto. Pode supor-se que Cyrano contasse a maneira como havia colhido o fruto da rvore da cincia.

lanando os olhos pelo campo, criatura alguma se oferecia para consol-los. Finalmente, resolvi caminhar at que a sorte me fizesse encontrar a companhia de alguns animais, ou da morte. Ela atendeu-me, pois que, ao cabo de meio quarto de lgua, depararam-se-me dois animais grandes e fortes, um dos quais parou na minha frente; o outro fugiu lesto para o seu pouso. Pelo menos eu assim pensava, porque, passado algum tempo, o vi regressar, acompanhado por sete ou oitocentos da mesma espcie, os quais me rodearam. Quando consegui v-los de perto, verifiquei que tinham o aspecto e o tamanho de ns mesmos. Esta aventura fz-me lembrar daquilo que antigamente eu tinha ouvido contar a minha ama de leite acerca de sereias, f a u n o s e stiros. De tempos a tempos, esses animais levantavam uma assuada to furiosa, provocada, sem dvida, pela admirao de ver-me, que me pareceu quase ter-me convertido tambm em monstro. Finalmente, um desses animais-homens, agarrando-me pelo pescoo, como fazem os lobos, quando surpreendem uma ovelha, atirou-me aos ombros e conduziu-me at minha cidade, onde fiquei ainda mais maravilhado, ao reconhecer que efetivamente eram homens; mas no encontrei um nico que no andasse em quatro patas. (p.31) Quando esse povo me viu to pequeno (a maior parte deles mede doze cvados de comprimento12 e o meu corpo sustentado simplesmente por duas pernas, no podiam capacitar-se que eu fosse homem, porque acreditavam que tendo a natureza dado aos homens, como aos outros bichos, duas pernas e dois braos, deles deviam servir-se da mesma maneira. Efetivamente, meditando mais tarde a este respeito, pensei que esta posio do corpo no era extravagante demais, quando me recordei que as crianas, s quais a natureza no instruiu ainda, caminham a quatro, erguendo-se em dois ps unicamente pelo cuidado de suas amas que as conduzem em carrinhos e as ligam com faixas, para impedi-las de cair em quatro patas, como base nica em que a figura de nossa massa se inclina ao repouso. Diziam eles, pois, (como mais tarde me interpretaram) que infalivelmente eu devia ser a fmea de algum pequeno animal da Rainha. Fui assim, na qualidade de tal ou outra coisa, conduzido Casa da Cmara, onde notei, pelo zumbido e posturas que faziam o povo e os magistrados, que mutuamente se consultavam a propsito do que eu poderia ser. Depois de discutirem durante muito tempo, um certo burgus, que guardava os animais raros, suplicou aos vereadores que me confiassem sua guarda, at que a Rainha me mandasse chamar. No opuseram a menor dificuldade e esse charlato12

Medida de comprimento, fora de uso, igual a 66 centmetros. (Nota do Clube do Livro)

conduziu-me a sua habitao, onde me ensinou as manhas de bobo, a dar cambalhotas e a fazer caretas. s tardes, le suspendia, porta, um certo cartaz, que indicava o preo daqueles que quisessem ver-me. Mas o Cu, compadecido de minhas dores e furioso por ver profanado o Templo de seu dono, quis que, um dia, estando eu preso extremidade de uma corda, com a qual o charlato me fazia saltar, para divertir o pblico, ouvi a voz de um homem que me perguntava, em grego, quem eu era. Fiquei muito espantado de ouvir falar naquela terra (p.32) a mesma linguagem do nosso mundo. Fz-me diversas perguntas. Respondi-lhe e contei-lhe, em seguida, de modo geral, toda a iniciativa e xito da minha viagem. le consolou-me e recordo-me que me disse: "Bem, meu filho, suportais o sofrimento das fraquezas do vosso mundo. Aqui existe como l, gente vulgar, incapaz de tolerar a ideia das coisas a que no est acostumado. Mas ficai sabendo que vos tratam da mesma maneira; se algum desta terra subisse at vossa, atrevendo-se a chamar-se homem, vossos sbios o fariam asfixiar como se fosse um monstro". Em seguida, prometeu-me que avisaria a Corte, acerca do meu desastre, e acrescentou que mal soube da notcia que corria a meu respeito, tinha vindo ver-me e, reconheceu-me como homem do mundo de onde eu afirmava ser, porque outrora tinha viajado e permanecido na Grcia, onde era chamado o Demnio de Scrates- Que, depois da morte desse filsofo, havia governado e instrudo, em Tebas, a Epaminondas, em seguida, havia passado para os romanos e a justia o tinha ligado ao partido do jovem Cato. Aps a morte deste, tinha-se entregado a Brutus. Todos esses grandes persogens tinham deixado neste mundo, em seus lugares, simulacros apenas de suas virtudes. Ento, le havia-se retirado, com seus companheiros, para os templos e para a solido. "Finalmente, acrescentou, o povo de vossa Terra tornara-se to estpido e to grosseiro que meus companheiros e eu perdemos todo o prazer que tnhamos outrora em instru-lo. No podeis deixar de ter ouvido falar a nosso respeito, porque nos chamavam Orculos, Ninfas, Gnios, Fadas, Deuses Lares, Vampiros, Duendes, Naiades, Incubos, Sombras, Manes, Espectros e Fantasmas. E abandonamos o vosso mundo, no reinado de Augusto, pouco depois de eu ter aparecido a Druso, filho de Lvia, que fazia a guerra na Alemanha, proibindo-lhe ento de ir mais longe. No h muito que de l regresso, pela segunda vez. H uns cem anos tive ordem de fazer viagem at l. Andei vagueando muito pela Europa e conversei com pessoas que possivelmente terei conhecido. Um dia,

entre (p.33) outros, apareci a Cardan13, enquanto le estava estudando; instrui-o a respeito de muitas coisas e em recompensa le prometeu-me que testemunharia posteridade a pessoa de quem tinham vindo os milagres que esperava descrever. Vi Agrippa, o abade Triteme, o doutor Fausto, La Brosse e uma certa cabala de jovens que o vulgo conheceu sob o nome de Cavaleiros da Rosa Cruz, aos quais ensinei quantidade de segredos naturais que, sem dvida, faro que eles passem por mgicos. Conheci tambm Campanella e fui eu quem o aconselhou, enquanto se encontrava sob o domnio da Inquisio, em Roma, a modelar a sua fisionomia e o seu corpo, segundo as posies ordinrias daqueles que le precisava conhecer' no ntimo, a fim de excitar em si mesmo os pensamentos que essa mesma situao havia provocado em seus inimigos, pois assim saberia manejar melhor suas armas, quando as conhecesse. Comeou le, a meu pedido, um livro ao qual demos o nome de Sensu Rerum. Frequentei, igualmente, na Frana, Gassendi14 e seus discpulos- Reconheci grande quantidade de outras pessoas que vosso sculo taxou de adivinhos, mas neles no encontrei seno baboseiras e muito orgulho. Finalmente, ao atravessar vosso pas, ao ir para a Inglaterra, a fim de estudar os costumes de seus habitantes, encontrei um homem, a vergonha do seu pas, porque, na verdade uma vergonha para os homens de vosso (p.34) Estado reconhecer nele, sem ador-lo, a virtude de que le o trono. Para resumir o seu panegrico, le todo espirito, todo corao, possui todas essas qualidades, das quais uma bastava antigamente para formar um heri: era Tristo, o Eremita. Na verdade, devo confessarvos que logo que vi to alta virtude, verifiquei que ela no era reconhecida. Por isso. tracei de fazer-lhe aceitar trs frascos: o primeiro estava cheio de leo de talk, o outro, de p de projeo, e o ltimo, ouro potvel. le, porm, recusou-os, com desdm, mais generoso que Digenes ao receber os cumprimentos de Alexandre. Finalmente, nada posso acrescentar ao elogio desse grande homem, seno que o nico poeta, o nico filsofo e o nico homem livre que vs tendes. Foram essas as pessoas de distino que

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Jernimo Cardan pretendia ter escrito a maior parte de seus livros sob o ditado de um demnio familiar, que vinha do planeta Venus e tinha sua origem nos planetas Saturno e Mercrio. (Nota do trad.).14

Pedro Gassendi, filsofo e sbio francs, nascido em Champtercier em 1592 e falecido aos 63 anos em Paris. Aos 16 anos de idade, foi nomeado professor de retrica em Digne. Doutor em teologia (1616) tomou ordens em 1617 e professor na Universidade de Aix, de que teve de desistir em 1622, com a chegada dos jesutas, consagrando-se aos estudos filosficos e cientficos. Professor no Colgio de Frana (1645). Empreendeu a vulgarizao do epicurismo, desenvolvendo um sensualismo que o ponto de partida do empirismo moderno. Nega a eternidade dos tomos, afirma a imortalidade da alma, e pensa que as suas opinies so conciliveis com o cristianismo". Veja, nesta obra pgina 158, a nota sobre Epicuro. (Nota do "Clube do Livro").

frequentei; iodas as demais, pelo menos aquelas que conheci, esto tanto a b a i x o do homem, que vi animais, um pouco mais acima. De resto, no sou originrio nem de vossa terra, nem desta aqui: nasci no Sol. Mas, porque, s vezes, o nosso mundo se acha povoado demais, em virtude da vida longa de seus habitante, e ainda porque est isento de guerras e epidemias, os nossos magistrados enviam colnias aos mundos circunvizinhos. Quanto a mim, recebi ordem de dirigir-me ao vosso e declararam-me chefe da gente que comigo enviaram. A seguir, passei para este, pelas razes que j disse: e o que faz que nele permanea atualmente, que os homens aqui so amantes da verdade; que nele no existe pedantismo; que os filsofos somente se deixam persuadir pela razo e que nem a autoridade de um sbio nem o maior nmero vencem a opinio de um batedor de aveia numa granja, quando este raciocina fortemente. Em suma. neste pas SOMENTE sofistas e os oradores. Perguntei-lhe quanto tempo viviam e respondeu-me que trs ou quatro mil anos. Depois continuou nos seguintes termos: Aquilo que vos estou dizendo no deve parecer-vos coisa a d m i r v e l , p o r q u e embora nosso globo seja vastssimo e o vosso mundo pequeno, embora os nossos habitantes morram somente aps quatro mil anos, e os vossos depois de meio sculo, ficai sabendo que no existem tantos pedregulhos como terra, nem (p.35) tantas plantas como pedregulhos, nem tantos animais como plantas, nem tantos homens como animais- Assim, no devem existir tantos demnios como homens, em razo das dificuldades que se topam, na gerao de um composto perfeito". Perguntei-lhe se eram de corpos semelhantes aos nossos. Respondeu-me que sim ; que eram corpos, mas no como ns, nem como uma coisa que julgamos tal, porque vulgarmente no chamamos corpo seno quilo que nos possivel tocar; que, de resto, nada existia na Natureza que no fosse material, e que, eles mesmos o fossem, eram obrigados, quando deseiavam fazer-se ver por ns, a tomar corpos proporcionais quilo que nossos sentidos so capazes de conhecer e que era sem dvida o que tinha feito pensar a muitos que as histrias que a respeito deles se contavam, no passavam de divagaes e fbulas, porque aparecem unicamente noite. E acrescentou que, sendo obrigados a construir eles prprios, pressa, o corpo de que se serviam, no tinham muitas vezes tempo de torn-los prprios seno de escolher um sentido: ora, o ouvido como a voz dos Orculos : ora, a vista, como os ardentes e os espectros: ora, o tacto,SO

tidos como insensatos os

como os Incubos, e que, no sendo esta massa seno ar puro, tornado espesso, de tal ou tal maneira, a luz, pelo seu calor, os destrua, como se v que ela dissipa um nevoeiro, dilatando-o... Todas as belas coisas que le me explicava provocaram em mim a curiosidade de interrog-lo, a respeito do seu nascimento e morte; se no pais do Sol o indivduo vinha ao mundo pelas vias da gerao e se morria pela desordem de seu temperamento ou a ruptura de seus rgos. "No existe seno pequena relao respondeu-me le entre vossos sentidos e a explicao desses mistrios. Vs imaginais que aquilo que no sabeis compreender espiritual, ou ento que no existe; mas esta consequncia muito falsa, um testemunho de que existe no universo um milho talvez de coisas que para serem conhecidas, exigiriam de vs um milho de rgos, todos diferentes. Eu. por exemplo, conheo, graas a meus sentidos, a meus sentidos, a causa da simpatia do m para o seu polo, a do refluxo do mar e aquilo em que o animal se converte, aps sua morte. Vs no podereis chegar a (p.36) estes elevados conceitos seno pela f, porque vos faltam as propores para estes mistrios, assim como um cego incapaz de imaginar o que seria a beleza de uma paisagem, o colorido de um quadro e as tonalidades do arco-iris; ou ento as figurar ora como qualquer coisa palpvel, como o comer, o som, ou como uma dor. Assim mesmo, se eu desejasse explicar-vos aquilo que percebo por meio dos sentidos que vos faltam, vs os representareis como qualquer coisa que pode ser vista, tocada, cheirada ou saboreada e afinal no nada disso". Ia nesta altura de seu discurso, quando meu pelotiqueiro percebeu que os circunstantes comeavam a aborrecer-se com aquela conversa que no compreendiam e tomavam por um grunhido sem articulao. E recomeou a puxar cada vez mais p e l a minha corda, a fim de fazer-me saltar, at que os espectadores, loucos de rir e certos de que eu possuia quase tanto espirito como os animais de seu pas, se retiraram, cada um para sua casa. Dessa maneira, suavizei a dureza dos tratos do meu amo e senhor, graas s visitas que me fazia aquele oficioso Dem n i o . Entreter-me com aqueles que vinham ver-me no era f c i l . P ois, alm de me tomarem por um animal dos mais arraigados na categoria dos Brutos, nem eu conhecia a lngua d e l e s , nem eles entendiam a minha. S se usavam duas linguagens naquela terra, uma que servia para os grandes e outra que era peculiar ao povo.

A linguagem dos grandes outra coisa no era seno uma diferena de tons noarticulados, mais ou menos semelhantes nossa msica, quando no se acrescentam palavras melodia, o que certamente uma inveno, ao mesmo tempo til e bem agradvel, pois quando esto cansados de falar ou quando recusam prostituir a sua garganta para tal fim, pegam numa ctara ou noutro instrumento, do qual se servem to bem como da prpria voz para comunicar pensamentos; de sorte que algumas vezes, se juntam quinze ou vinte, que agitam um ponto de teologia, ou estudam as dificuldades de um processo, (p.37) por meio de um concerto, o mais harmonioso que possvel suavizar o ouvido. A segunda linguagem, aquela que usada pelo povo, executa-se pelo movimento dos membros, no talvez como pode imaginar-se, porque certas partes do corpo significam todo um discurso, por inteiro- A agitao, por exemplo, de um dedo, de uma das mos, de uma orelha, de um lbio, de um brao, de um olho, de uma das faces, faro, cada uma de per si, uma orao ou um perodo, com todos os seus membros. Outros servem apenas para designar palavras, como uma ruga na testa, as diversas tremuras dos msculos, o reverso das mos, as batidas do p, as contorses do brao; de sorte que, quando falam, com o costume que lhes habitual de andar nus, seus membros habituados a gesticular seus conceitos, se mexem to vivamente que no no se diria um homem a falar, mas um corpo a tremer. Quase todos os dias, o Demnio que vinha visitar-me e suas maravilhosas conversas faziam cessar todo o aborrecimento resultante das violncias do meu cativeiro. Finalmente, certa manh, vi entrar no pequeno reduto onde passava os meus dias, um homem, para mim desconhecido, e que, tendo-me lambido, durante muito tempo, agarrou-me por debaixo do brao e, com uma das patas com que me segurava, com receio que eu me ferisse, atirou-me s costas, onde fiquei to molemente e to vontade, que, com a aflio que me fazia sentir tal tratamento do animal, no tive a menor vontade de fugir; e, depois, esses homens que caminham a quatro patas andam bem mais depressa do que ns, pois at os mais pesados conseguem apanhar animais na corrida. Afligia-me, todavia, no mais alto ponto, o no ter notcias dnde meu Demnio, e, noite da primeira caminhada, chegados que fomos minha nova morada, passeava eu no ptio da hospedaria, espera que aprontassem a refeio, quando um h o m e m , novo ainda e e de bela aparncia, veio rir-me na cara e lanar-me ao pescoo os seus ps dianteiros. Depois de hav-lo contemplado algum tempo: (p.38)

Como? disse-me le, em francs, j no conheceis o vosso amigo? Pensem o que senti ento. Certamente, a minha surpresa foi tamanha que desde logo fiquei a imaginar que todo o globo da Lua, tudo quanto a me havia acontecido e tudo quanto ai estava vendo, no passava de encantamento. E aquele homem-animal, que me tinha servido de cavalgadura, continuou a falar assim: Tnheis-me prometido que os bons servios que vos prest e i jamais sairiam de vossa memria e, todavia, dir-se-ia que n u n c a me vistes! E observando que o meu espanto continuav a , acrescentou: Enfim, eu sou aquele Demnio de Scrates. 15 Estas palavras aumentaram o meu espanto, mas querendo tranquilizar-me, le disse: Sou o Demnio de Scrates que vos divertiu na vossa priso, e que, para continuar a prestar-vos (p.39) seus servios, se revestiu do corpo, com o qual ontem vos carreguei s costas. Mas interrompi como pode ser tudo isso, pois ontem tnheis um corpo extremamente comprido e, hoje, to curto; ontem, tnheis uma voz fraca e alquebrada e hoje outra vigorosa e clara; ontem, finalmente, reis um ancio encanecido, e hoje vos apresentais como um jovem? Como! Em vez de, a semelhana do que sucede em meu pas, se caminhar do nascimento para a morte, os animais deste mundo vo da morte para o nascimento e rejuvenescem, em vez de envelhecer? Logo que falei ao Prncipe respondeu-me le depois de receber a ordem, senti o corpo, cuja forma havia tomado, to extenuado pelo cansao que todos os rgos me recusavam as suas funes costumeiras, de sorte que tratei de saber o caminho do15

"Scrates, filsofo grego, um dos maiores de todos os tempos, nascido em 468 e morto em Atenas, em 400 A. C. Na opinio de Xenophonte, foi mestre de si mesmo. No tinha escola, no professava osi nenhuma cincia, n o escreveu livro algum; o seu nico ensino era a conversa. Tu00do lhe servia de pretexto para espalhar moral. Conversava e a propsito de qualquer coisa, simplesmente, familiarmente, tirava dessas discusses joviais uma penetrante lio. Essa sinceridade accaretava-lhea hostilidade dos retricos e dos sofistas e a dos representantes do partido popular.Quando caiu o governo dos trinta tiranos, Anyto, homem rico e dedicado ao povo, levou o poetastro chamado Melyto a denunciar Scrates como contrrio religio do Estado e corruptor da mocidade. A culpabilidade de Scrates foi aceita por 281 contra 260 votos. A divisa de Scrates era: conhece-te a ti mesmo. Ele foi um mstico e um racionalista. A Apologia mostra-o crente numa misso particular: e, se aceitou alegremente a morte, foi porque ela lhe pareceu a coroa de glria de uma vida consagrada divindade. Todas as virtudes so cincias. -se justo quando se conhece o justo, assim como no se pode ser astrnomo sem saber astronomia. Este o mtodo socrtico indispensvel moral. Ningum mau voluntariamente. S praticam o mal os que erram, os que se enganam. A virtude a cincia do Bem. Ensinar os ignorantes pois fazer os bons. O Deus de Scrates eterno e imenso: ele v ao mesmo tempo todas as coisas, ouve tudo, est presente em toda parte. Scrates cria de tal maneira na providncia divina que chegava a admitir uma comunicao mais ou menos direta de certos homens com a divindade: admitia a possibilidade de uma inspirao, de uma voz ntima capaz de nos dar o pressentimento do futuro: era a isto que chamava o seu sinal divino, a sua voz divina, que se designa vulgarmente sob o nome de demnio de Scrates. (Transcrito pelo Clube do Livro)

Hospital, onde, ao entrar, encontrei o corpo de um moo que acabava de expirar, em consequncia de um acidente bizarro e, todavia, muito comum neste pas. . . Dele me aproximei, dando a entender que nesse corpo havia ainda movimento e protestando contra aqueles que o rodeavam, dizendo que le no estava morto e que aquilo que julgavam ter-lhe feito perder a vida no passava de uma simples letargia; de sorte que, sem que me percebessem, aproximei a boca dele da minha e entrei no seu corpo mediante um sopro. Ento, o meu velho cadver caiu e, conto se eu fosse aquele moo, levantei-me e vim vossa procura, deixando ali as pessoas circunstantes a gritar que era um milagre. Nisto, vieram chamar-nos para irmos para a mesa e eu segui o meu condutor at a uma sala, magnificamente mobilada, mas onde no vi coisa alguma preparada para comer-se. Uma to grande abstinncia de carne, quando eu estava morrendo de fome, levou-me a perguntar onde tinham colocado o meu talher. No ouvi o que le me respondeu, porque trs ou quatro (p.40) garons, filhos do dono da casa, no mesmo instante, se abeiraram de mim e com muita cortesia tiraram-me a roupa toda, inclusive a camisa. Esta inesperada cerimnia causou-me tanta admirao que no me atrevi a perguntar a causa a meus belos criados de quarto, nem sei como meu guia, que me perguntou por onde eu desejava comear, conseguiu arrancar-me estas palavras: Uma sopa de legumes. Mas apenas eu as tinha proferido, senti o aroma do mais aromtico caldo que jamais provocou a sensao de um nariz de mau rico. Tentei levantar-me do meu lugar para ir procurar a pista da fonte de aroma to inalo, mas o meu Demnio no o consentiu: Onde quereis ir? - disse-me le. Daqui a pouco, iremos fazer o nosso passeio; agora, porm, a hora de comer; acabe a sua sopa e mandaremos vir outra coisa. Mas onde diabo est essa sopa? repliquei, quase furioso. zombar de mim? - Eu pensava tornou le que tivsseis visto na aldeia, por onde passamos, vosso dono ou qualquer o u t r a pessoa fazer suas refeies; por isso, no vos disse a maneira como aqui a gente se alimenta. Mas visto que o ignorais ainda, ficas sabendo que se vive aqui somente de fumaa. A arte culinria consiste em encerrar em grandes vasos, expressamente moldados, a exalao que sai das viandas em cozimento. Quando assim se reuniram diversas espcies e diferentes paladares, de acordo com o apetite das pessoas, com as quais se trata, desarrolha-se o vaso em que esse aroma est encerrado, Apostastes hoje

depois descobre-se outro, e assim sucessivamente, at que as pessoas fiquem fartas. A no ser que j tenhais vivido dessa maneira, n o a c r e d i t a r e i s que o nariz, sem dentes e sem goelas, desempenhe para alimentar o homem o papel da boca; mas vou fazer-vos ver, por experincia. Mal tinha terminado, senti surgir sucessivamente, na sala, vapores to agradveis e to nutritivos que, em menos de um quarto de hora, me senti completamente satisfeito. Quando nos levantamos da mesa: - isto no coisa que deva causar-vos tanta admirao, visto que no deveis ter vivido durante tanto tempo, que no tenhais observado que o (p.41) vosso mundo os cozinheiros, pasteleiros e assadores comem menos que as pessoas de outros oficios, e so em geral muito gordos. De onde procede a gordura deles, segundo pensais, seno da fumaa de que se acham constantemente rodeados e que lhes penetra e alimenta os corpos? Por isso, as pessoas deste mundo gozam de uma sade bem menos interrompida e mais vigorosa, porque o alimento no provoca nelas excrementos que so a origem de quase todas as enfermidades. Ficastes, talvez, surpreendido, quando, antes da refeio, vos despiram, pois tal costume no se usa em vossa terra: mas aqui moda e assim se procede, a fim de que o animal seja mais transpirvel fumaa. Senhor repliquei h grande aparncia de verdade no que dizeis e eu mesmo acabo de experiment-lo, at certo ponto, mas devo confessar-vos que no podendo desbrutalizar-me to prontamente, gostaria bem de sentir algo de slido e comestvel debaixo dos dentes. le assim mo prometeu e foi para o dia seguinte, porque, disse, comer logo aps a refeio que acabava de tomar, isso me daria indigesto. Discorremos ainda durante algum tempo, depois, subimos para o quarto, para deitar-nos. No alto da escada, apresentou-se-nos um homem e, tendo-nos contemplado demoradamente, conduziu-me para um gabinete, cujo soalho estava coberto de flores de laranjeira, at altura de trs ps. O meu Demnio foi para outro, cheio de cravos e jasmins. Vendo que eu parecia muito admirado com tal magnificncia, disse-me que eram essas as camas do pas. Finalmente, deitamo-nos, cada um em seu cubculo. Logo que me estendi em cima das flores, percebi luz de uns trinta grandes pirilampos, encerrados num vaso de cristal (pois aqui no se usam candeias) aqueles trs ou quatro moos que me haviam despido, antes do jantar, um dos quais comeou a fazer-me

ccegas nos ps, outro, nos braos, mas todos com tanta delicadeza e mimo que, em menos de um minuto ca profundamente no sono. No dia dia seguinte, vi entrar o meu Demnio, justamente com o sol. "Quero cumprir a minha palavra", disse ele (p.42) hoje ides almoar, de maneira mais slida do que ontem jantastes". Dizendo estas palavras, levantei-me e le conduziu-me pela mo atrs do jardim da casa, onde um dos filhos do hspede nos esperavam, com uma arma na mo, arma mais ou menos semelhante s nossas espingardas. Perguntou a meu guia se eu queria uma dzia de codornas porque os macacos (acreditava le que eu fosse um deles) se alimentam dessa carne. Mal respondi que sim, o caador disparou um tiro e vinte ou trinta codornas nos caram aos ps, j perfeitamente assadas. Logo me veio imaginao o que se diz como provrbio, em nosso mundo, de um pas em que as codornas so abatidas j assadas! Sem dvida quem inventou esse provrbio, tinha vindo aqui. caadores Toca a comer disse-me o meu e Demnio. ao Esses certa costumam misturar plvora chumbo

composio que mata as aves, as depena e assa agradavelmente. Apanhei algumas que comi, fiado na sua palavra, e, na verdade, nunca em minha vida, comi coisa mais deliciosa.

CAPTULO III Depois desse almoo, preparamo-nos para partir e, fazendo mil caretas, de que se servem para testemunhar seus afetos, o hspede recebeu um papel de meu Demnio. Perguntei-lhe se era alguma obrigao, maneira de conta da despesa. Respondeume que no; que nada lhe devia e que eram versos. - Como? Versos? observei. Ento, os taberneiro nesta Terra gostam tanto de rimas? - esta a moeda da terra replicou le e a despesa que aqui fizemos subiu a trinta dinheiros, justamente o que lhe entreguei, sob a forma de um sexteto. Mesmo que fizssemos uma despesa de oito dias, no chegariamos a gastar (p.43) um soneto e tenho em meu poder quatro, juntamente com dois epigramas, duas odes e uma cloga.

Prouvera a Deus que vigorasse o mesmo costume, em nosso mundo! Conheo l bom nmero de poetas que morrem de fome e passariam muito bem se pagassem suas despesas dessa maneira. Perguntei-lhe se esses versos servem continuamente, contanto que fossem transcritos; respondeu-me que no e continuou asim: Quando algum compe uns versos, leva-os Corte das Moedas, onde os Poetas jurados do Reino fazem suas sesses. A os versificadores oficiais pem prova os trabalhos e, se forem julgados de bom quilate, taxam-nos, no segundo o seu preo, quer dizer que um soneto valha sempre um soneto, mas segundo o merecimento da pea; e assim, quando algum est morrendo de fome, se fr pessoa de espirito, conseguir boas comidas. Admirei, muito extasiado, a polcia judiciosa daquele pas e le prosseguiu dizendo: "Existem ainda outras pessoas que tm cabars, mas de maneira diferente: quando se sai desses etabelecimentos, eles pedem, segundo a proporo das despesas, um recibo para o outro mundo e logo que lhes dado. escrevem, num grande registro, que chamam as contas do dia, mais ou menos estas palavras: "item, valor de tantos versos, entregues no dia tal, a fulano, que me dever ser reembolsado logo, com o recibo dos fundos que nele se encontrar" e quando se encontram em perigo de morte, fazem cortar esses registros em pedaos e os engolem, porque acreditam que se no forem assim digeridos, de nada lhes serviro". Estas conversas no impediam que continussemos a caminhar, quer dizer, o meu carregador de quatro patas que eu cavalgava. No explanarei mais por mide as aventuras que nos detiveram pela caminho, at chegarmos cidade onde o rei tem sua residncia. Logo que l chegamos, conduziram-me ao palcio, onde os grandes me receberam com admirao mais moderada do que me havia recebido o povo, quando (p.44) passava pelas ruas. Mas a considerao de que eu era sem dvida animal da rainha foi to grande como a do povo. O meu guia assim mo interpretava: e, todavia, nem le to pouco entendia esse enigma e ignorava quem fosse esse pequeno animal da rainha: mas bem depressa tivemos a explicao. O rei, aps haver-me examinado, durante algum tempo, ordenou que o trouxesse, e meia hora mais tarde vi chegar, no meio de uma tropa de macacos, usando calas, um homenzinho, construdo quase como eu, pois caminhava nos dois ps. Logo que le me viu, dirigiu-se a mim com um Criado de vuestra merced. Retribui-lhe o cumprimento,

mais ou menos nos mesmos termos. Mas, apenas nos viram falar juntos, logo julgaram ser verdadeiro o seu preconceito e tal conjetura no teve outro xito seno que os circunstantes opinassem a nosso respeito, com mais fervor, protestando que os nossos grunhidos eram simplesmente a alegria de vermo-nos juntos, por um instinto natural. Esse homenzinho contou-me que era europeu, natural de Castelha, a Velha; que tinha arranjado com os pssaros, um meio de fazer-se transportar at ao mundo da lua, onde nos encontravamos ento; que tendo cado nas mos da rainha, ela o havia tomado por um macaco, porque nesse pas vestem ritualmente os macacos espanhola. Tendo-o encontrado vestido dessa maneira, sua chegada, no pusera em dvida que pertencesse a essa espcie. Foroso dizer repliquei que, depois de nele terem experimentado toda a espcie de vestidos, no encontraram nada mais ridculo. esta a razo pela qual os vestem de tak maneira, mantendo unicamente esses animais para divertimento e prazer. -- No conhecer prosseguiu le a dignidade de nossa Nao, em favor da qual o universo produz apenas homens para dar-nos como escravos e para quem a natureza engendraria unicamente motivos de risota. Em seguida, suplicou-me que lhe contasse a maneira como eu me tinha aventurado a subir at a lua, com a mquina de que lhe tinha falado. (p.45) Respondi-lhe que era por ter le trazido os pssaros sobre os quais eu pensava ir at l. Sorriu ante esta zombaria e, aproximadamente um quarto de hora mais tarde, o rei ordenou aos guardas de macacos que nos conduzissem de volta, com ordem expressa de fazer que morssemos juntos, o espanhol e eu. Executaram pontualmente a vontade do prncipe e eu fiquei bastante satisfeito pelo prazer de ter algum que me distrasse durante a solitude da minha brutificao. Um dia, o meu companheiro contou-me o que verdadeiramente lhe tinha feito correr toda a terra, abandonando-a por fim para vir para a lua: foi porque no havia encontrado um nico pais onde a prpria imaginao estivesse em liberdade. - Veja voc disse-me le a no ser que uma pessoa use um bon, por mais coisas bonitas, que possa dizer, se fr contra os princpios dos doutores de borla e capelo, no passa de idiota, louco e qualquer coisa ainda pior. No meu pas quiseram entregar-me Inquisio, sob pretexto de que, s barbas daqueles pedantes, eu tinha

afirmado que existia o vcuo e que eu no conhecia matria alguma no mundo mais pesada uma que outra. Perguntei-lhe quais as probabilidades em que apoiava uma opinio to pouco aceita. preciso respondeu-me para chegar a este extremo, supor que existe apenas um elemento; porque embora ns vejamos terra e gua, ar e fogo, separados, nunca so eles encontrados em tal estado de pureza que no estejam misturados uns com os outros. Quando, por exemplo, voc olha para o fogo, no fogo, que voc v mas sim apenas gua muito dilatada; o ar no seno gua mais dilatada ainda; a gua no seno terra fundida e a prpria terra outra coisa no seno gua muito comprimida. E assim, ao penetrar seriamente a matria, acabar por convencer-se que existe apenas uma, a qual, como excelente comediante, representa neste mundo toda a espcie de personagens, sob toda a sorte de vestimentas. De outro modo, seria necessrio admitir tantos (p.46) elementos quantas espcies de corpos existem. E se me perguntarem a razo pela qual o fogo queima e a gua esfria, visto ser apenas uma e mesma matria, respondo que essa matria opera por simpatia. Durante muito tempo, falamos destas coisas graves. Alturas tantas, le disse, com toda a razo: Se voc considerar atentamente esse limo que faz o casamento de terra com a gua, verificar que j no se trata de terra e que deixou de haver gua, mas que le apenas o intermedirio do contrato entre estes dois inimigos. Ainda assim, a gua, com o ar, expelem reciprocamente uma neblina que penetra os humores de um e outro, para ser medianeiro da paz, e o ar reconcilia-se com o fogo, mediante uma exalao mediadora que os une. Penso que a vontade dele seria continuar a falar; mas trouxeram-nos a nossa comida e, porque tnhamos fome, no dei ouvidos a seus discursos, a fim de abrir o estmago s viandas que nos apresentaram. Recordo-me, de que, outra vez, estando ns filosofando, porque nem um nem outro gostvamos de entreter-nos de coisas baixas; "Lamento deveras disse le ver um esprito da tmpera do seu infectado pelos erros do vulgo. preciso, pois, que voc saiba, que apesar do pedantismo de Aristteles, cuja fama retumba hoje por todas as classes da sua Frana, que tudo se une quer dizer, que na gua, por exemplo, existe fogo; dentro do fogo, gua; no ar, terra e

dentro da terra, ar. Embora essa opinio faa arregalar os olhos dos escolares, ela mais fcil de provar do que de persuadir. Efetivamente pergunto, em primeiro lugar, se no a gua que engendra o peixe. Quando me negarem isto, mando cavar um buraco, enchoo com xarope de um jarro dgua, que passaro, se assim quiserem, atravs de uma peneira, para fugir s objees dos cegos e se a no encontrarem algum peixe, passado algum tempo quero beber a gua que a derramaram. Se, ao contrrio encontrarem peixe, como no tenho a menor dvida, isso prova flagrantemente que existe a gua e sal. Por (p.47) conseguinte, descobrir depois gua no fogo, no tarefa difcil. Porque, mesmo que descubram o fogo, mesmo o mais depurado de matria, como os cometas, resta sempre muito, visto que, se este elemento que os engendra, reduzido a enxofre pelo calor, no encontrasse obstculo sua violncia na fria umidade que o tempera e combate, le se consumiria bruscamente como um relmpago. Que haja agora ar na terra, no o negaro eles, ou ento nunca ouviram falar dos terremotos formidveis que to frequentemente agitam as montanhas da Sicilia. Alm disso, vemos que a terra toda porosa, at os gros de saibro que a formam. Entretanto, at agora, ningum disse que essas cavidades estivessem cheias de vcuo. No h, pois, motivo algum para impugnar que o ar faa a seu domiclio. Resta-me provar que, no ar, existe terra, mas quase nem vale a pena, pois voc est disso convencido, todas as vezes que v cair sobre a sua cabea essas legies de tomos, to numerosas que abafam a Aritmtica. "Mas, passemos dos corpos simples aos compostos: eles nos fornecero assuntos muito mais frequentes. E para mostrar que tdas as coisas esto em todas as coisas, no que se transmudem umas nas outras, como chilream vossos peripatticos, eu quero sustentar-lhes na cara que os princpios se misturam, se separam e voltam a misturar-se novamente, de sorte que aquilo que foi feito gua pelo sbio Criador do mundo, sempre o ser. E no fao, como eles, suposio alguma que no seja capaz de provar. Por isso, tome-se, por exemplo, uma acha ou qualquer outra matria combustvel e pegue-se-lhe fogo. Diro eles, quando toda ela estiver abrasada que aquilo que era lenha virou fogo. Mas eu afirmo que no e que no existe mais fogo, quando ela estiver toda inflamada, do que antes de lhe haverem chegado o fsforo; mas aquilo que estava escondido na acha de lenha, que o frio e a umidade impediam de estender-se e agir, socorrido por um estranho, juntou suas foras contra a fleugma que a sufocava e apoderou-se do campo que seu inimigo ocupava. Assim, mostra-se le sem obstculos, (p.48) triunfando do seu carcereiro. No v como a gua se escapa pelas duas extremidades da acha, quente e fumegando ainda, em virtude do combate que teve de

sustentar? Essa chama, que se v no alto, o fogo mais sutil, o mais depurado de matria e aquele que est mais pronto a retornar ao seu abrigo anterior. Todavia le unese, sob a forma de pirmide, at certa altura, para expulsar a espessa umidade que lhe resiste; mas como le ao subir, vem desprendendo-se, a pouco e pouco, da violenta companhia de seus hspedes, ento atinge o largo, porque no encontra mais coisa alguma antiptica sua passagem e essa negligncia muitas vezes causa de uma sua segunda priso. "Mas vejamos a sorte dos outros elementos que compem a acha de lenha. O ar retira-se para o seu habitat misturado, ainda, a vapores, porque o fogo muito furioso, os expulsou confusamente uns com os outros. E ei-lo que serve de balo aos ventos, fornece respirao aos animais, enche-o vcuo feito pela natureza e tendo-se talvez envolvido numa gota de orvalho, ser sugado e digerido pelas folhas alteradas dessa rvore, para onde se retirou o nosso fogo. A gua que a chama havia expulsado desse tronco, elevada pelo calor at ao bero dos meteoros, cair em chuva sobre o carvalho ou sobre outro e a terra que se reduziu a cinzas, depois curada da sua esterilidade, ou pelo calor nutritivo de um esterco, onde ter sido lanada, ou pelo sal vegetativo de algumas plantas vizinhas, ou pela gua fecunda dos rios, encontrar-se- talvez perto desse carvalho, o qual, pelo calor do seu germe, o atrair e passar a formar uma parte do seu todo... "Desta maneira, eis os quatro elementos que receberam sorte idntica e voltam ao mesmo estado de onde tinham sado, alguns dias antes. Assim, pode dizer-se que num homem existe tudo quanto necessrio para compor uma rvore e numa rvore tudo quanto necessrio para compor um homem. Finalmente, desta maneira, todas as coisas se concentram em todas as coisas; mas, falta-nos um Prometeu que nos tire do seio da natureza e nos torne sensvel quilo que me apraz denominar Matria primeira. (p.49) CAPITULO IV Eis mais ou menos os assuntos com os quais esquecamos o tempo; porque a verdade que aquele espanholzinho era senhor de um belo esprito. Todavia, as nossas conversas tinham lugar somente noite, porque, desde as seis horas da manh at noite, a grande multido de pessoas que vinha contemplar-nos em nossa habitao, nos teria distrado. Alguns atiravam-nos pedras; outros, nozes; outros punhados de erva. No se falava noutra coisa a no ser de ns, animais reais.

Serviam-nos todos os dias de comer, s horas do costume, e o rei e a rainha davamse muitas vezes ao incmodo de vir ver-nos. No sei se foi por ter estado mais atento que o meu companheiro s suas momices e s suas palavras, mas aprendi mais depressa que le a compreender a lngua deles que arranhava um bocado. E isto fz que nos considerassem de maneira diferente. Correu logo a nova por todo o reino de que se haviam encontrado dois homens selvagens, de menor tamanho que os outros, em consequncia dos maus alimentos que lhes haviam sido fornecidos, e que, por defeito da semente de seus pais, no dispunham de pernas bastante fortes para nelas se firmarem. A fora de ser confirmada, esta crena tomaria razes, no fossem os doutores da terra que a isso se opuseram, dizendo que era impiedade terrvel acreditar que no somente animais, mas ainda monstros, fossem de sua espcie. Havia mais a aparncia acrescentavam os menos apaixonados, de que nossos animais domsticos participassem do privilgio da humanidade e da imortalidade, por conseguinte, visto terem nascido em nosso pas, como um animal monstruoso que se dizia ter nascido no se sabia em que lugar da lua. Ao demais, observem a diferena que se nota entre ns e eles. Ns outros caminhamos a quatro ps, porque a Natureza no quis fiar coisa Io preciosa a uma base menos segura e teve receio (p.50) de que, caminhando de outra maneira, acontecesse desgraa ao homem. Por isso deu-se ao trabalho de firm-lo sobre quatro pilares, para impedi-lo de cair. Mas, desdenhando associar-se construo desses dois brutos, abandonou-os ao capricho da natureza, a qual, no receando a perda de coisa de to pouca monta, os apoiou apenas sobre duas patas. "As prprias aves, diziam eles no foram to maltratadas quanto eles, pois ao menos receberam penas para suprir a deficincia de seus ps e atirar-se ao ar, quando ns as afugentssemos de nossas habitaes; ao passo que a natureza, tirando os dois ps a esses monstros, colocou-os na impossibilidade de escapar nossa justia." Eu ouvia todos os dias, no meu camarote, estas bobagens e outras semelhantes; a eles conseguiram frear to bem o esprito dos povos a este respeito, que ficou assente que eu passaria, quando muito, por um papagaio sem penas. E essa persuaso eles a baseavam nisto: que, no diferentemente de uma ave, eu tinha apenas dois ps. E foi porisso que me prenderam numa gaiola, por ordem expressa do Conselho superior. A vinha o encarregado da passarada da rainha fazer-me assobiar com a lngua, como se faz aos periquitos e, na verdade, eu me sentia feliz por no me faltarem com a

comida. Todavia, entre as bobagens com que me enchiam os ouvidos at rebentar, aprendi a falar como eles, de sorte que, quando fiquei sofrivelmente acostumado ao seu idioma, para exprimir a maior parte de meus conceitos, contava-lhes cada qual melhor. E chegaram ao extremo de fazer que o Conselho publicasse um decreto pelo qual se proibia acreditar que eu fsse senhor de razo, com ordem muito expressa a todos, fosse qual fosse a sua condio ou qualidade, de imaginar que tudo quanto eu fizesse de espirituoso fosse fruto do instinto que me levava a faz-lo. Entretanto, a definio daquilo, que eu era ou deixava de ser dividiu a cidade em duas faces. Aqueles que estavam a meu favor solicitaram uma assembleia dos Estados para resolver a (p.51) controvrsia. Levou muito tempo a entrar em acordo sobre aqueles que haveriam de opinar; mas os rbitros apaziguaram os nimos, pelo nmero dos interessados que igualaram, e ordenaram que eu fosse conduzido perante a assembleia, como se fz; mas fui a tratado to severamente que mal se pode imaginar. Os examinadores interrogaram-me, entre outras coisas, sobre filosofia. Expus-lhes, de boa f, o que outrora meus mestres me haviam ensinado, mas eles no se deram ao trabalho de refutar-me, por vrias razes convincentes, de sorte que, no podendo responder, eu alegava como ltimo refgio os princpios de Aristteles. No me adiantaram mais que os sofismas, pois com duas palavras descobriram-me imediatamente a falsidade. "Esse Aristteles, cuja cincia tanto gabais, acomodava sem dvida os princpios sua filosofia, em vez de acomodar a filosofia aos princpios, e ainda assim devia prov-los aos menos inteligentes das outras seitas de que nos falou. por isso que o bom senhor no achar mau que lhe beijemos as mos." Finalmente, como eles viram que eu no dizia outra coisa seno que eles no eram mais sbios do que Aristteles e, como tinham proibido que discutisse com aqueles que negavam os princpios, concluram todos, de comum acordo, que eu no era homem, mas possivelmente qualquer espcie de avestruz, visto que sua semelhana trazia a cabea erguida e caminhava sobre dois ps e que, finalmente, apesar de um pouco de penugem, lhe era em tudo semelhante. Por isso, deram ordem ao encarregado das aves de reconduzir-me gaiola. Eu passava a o tempo, com bastante prazer, porque, em virtude da lngua deles que eu sabia corretamente, toda a Corte se divertia a fazer-me tagarelar. As donzelas da rainha, entre outras, achavam meio de introduzir sempre alguma coisa na minha cesta e a mais gentil de todas concebeu alguma amizade por mim e sentia grandes transportes de alegria quando, em segredo, eu lhe falava dos costumes e

divertimentos das pessoas do nosso mundo, principalmente de nossos sinos e outros instrumentos de msica, e protestava-me com lgrimas nos olhos, que se, um dia, eu conseguisse (p.52) tornar a voar para o rosso mundo, ela me acompanharia de muito bom grado.

CAPITULO V Um dia, muito cedo, acordado em sobressalto, vi que algum tamborilava de encontro s grades da minha gaiola. Fiquei contente - dizia-me ela. Ontem, no Conselho concluiram por declarar guerra ao rei Laladomi. Espero que, entre os embaraos dos preparativos, enquanto o nosso monarca e seus sditos estiverem ausen