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Viagens • Literatura Portuguesa • 10.º ano Materiais de apoio ao estudo de outras obras do Programa
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MENINA E MOÇA
Novela escrita em português por Bernardim Ribeiro, impressa pela primeira vez em Ferrara
(1554) e logo a seguir em Évora (1557), contendo a segunda versão consideráveis aditamentos
apócrifos em relação à primeira.
O facto de se conhecerem hoje várias lições textuais impressas (Ferrara, Évora e Colónia –
que segue a de Ferrara) e não impressas (o manuscrito da Real Academia de Historia de Madrid, de
finais do século XVI, e o manuscrito descoberto por Eugénio Asensio, datável de c. 1546) torna
imprescindível a concretização de uma edição crítica do texto bernardiniano, considerado por muitos,
a justo título, como um dos exemplos mais conseguidos da chamada melancolia portuguesa, assente
no fatalismo e no culto da saudade.
Em termos de estrutura, o texto vulgarmente designado por Menina e Moça apresenta quatro
grandes sequências narrativas que integram, por encaixe, outras unidades de menor dimensão. Pode
assim falar-se de uma primeira sequência protagonizada por uma narradora feminina desterrada que,
depois de presenciar a morte de um rouxinol que dialogava com outro (episódio que constitui, por sua
vez, uma microssequência de importante alcance simbólico), encontra uma Dona de tempo antigo
que se responsabiliza pela enunciação, contando de seguida, para consolo da sua interlocutora, três
histórias infelizes: a primeira tem por personagens principais o cavaleiro Lamentor e a sua amada
Belisa e termina com a morte desta; a segunda fala de Binmarder e Aónia e conclui-se com o
casamento forçado da segunda e o desaparecimento do primeiro, obrigado a renunciar ao seu nome
e à sua condição de cavaleiro. Por último, a novela contém uma terceira história, em que Arima (filha
de Lamentor e de Belisa) recusa o amor que lhe é proposto pelo cavaleiro Avalor, renunciando à vida
do paço e obrigando assim mais um cavaleiro à infelicidade e à dispersão.
A situação enunciativa de base faz lembrar os diálogos bucólicos, com o espaço ermo, a
confissão das desditas por parte do interlocutor mais novo […] e as consequentes estratégias
empreendidas pelo enunciador mais experiente […] para consolo do primeiro que se traduzem, neste
caso, na narração de histórias de amor inconseguido por ação do destino e da sociedade. E também,
como tantas vezes sucede nas éclogas, assistimos a um diálogo de absoluta concordância. Apenas
as circunstâncias temporais afastam as interlocutoras: uma, embora mais nova, passou já a
juventude e a outra, a Dona de tempo antigo, é a mãe lutuosa, avançada no tempo e nos desgostos.
A condição feminina e a tristeza constituem assim a via de afinização entre as duas interlocutoras,
vindo depois a projetar-se em todos os enredos manifestados, justamente assinalados pelo facto de
as mulheres serem as principais vítimas do destino.
Com efeito, o ciclo Belisa/Aónia/Arima parece apresentar-se com uma tonalidade
marcadamente evolutiva e se se pode dizer que as duas primeiras mulheres são vítimas passivas das
circunstâncias, já Arima se define pela determinação com que evita os erros amorosos, furtando-se
desse modo à ação nefasta do destino. Quanto às personagens masculinas, é evidente a sua
inferioridade em termos de autodomínio e de capacidade de aperfeiçoamento. Afinal, Avalor repete
Lamentor e Binmarder nas atitudes e nos propósitos. No final do texto de Ferrara, quando o cavaleiro
MENINA E MOÇA Bernardim Ribeiro
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tenta desesperadamente seguir a sua dama, que se afasta do palácio, revela-se incapaz de seguir o
mesmo caminho (ela segue por terra enquanto ele tenta segui-la por água), circunstância que
sublinha bem a diferença de sedimentação mental e afetiva que na novela separa as personagens
femininas dos cavaleiros.
BERNARDES, José Augusto Cardoso, 1999. “Menina e Moça” in Biblos – Enciclopédia Verbo das Literaturas de Língua Portuguesa, vol. 3. Lisboa: Verbo
A Menina e Moça: novela de psicologia do amor
Não sabemos que forma tinha essa novela tal como saiu das mãos do autor. Há duas versões
diferentes, uma de 1554, editada em Ferrara por Abraão Usque, outra de 1557, editada em Évora por
André de Burgos. Diferem não só textualmente, mas também porque a segunda é muito mais extensa
que a outra, pretendendo oferecer ao leitor completa e acabada a obra que na edição de Ferrara se
apresenta sem conclusão. A diferença manifesta-se logo no primeiro período:
“Menina e moça me levaram de casa de minha mãe para muito longe” (1554);
“Menina e moça me levaram de casa de meu pai para longes terras” (1557).
[…] Independentemente de qualquer determinação erudita do cânone da História da Menina e
Moça (ou Saudade de Bernardim Ribeiro, na edição eborense), é legítimo encarar a obra,
globalmente, como espécime português da novelística sentimental do século XVI, examinando-a e
julgando-a tal como se apresenta nas diferentes versões conhecidas. A novela sentimental […]
encontrou cultores peninsulares, como foram Rodriguez de la Cámera, ou del Padrón (El Siervo Libre
de Amor), e Diego de San Pedro, com cujo Tractado de Arnalte y Lucenda tem importantes pontos de
contacto o enredo inicial da Menina e Moça.
Principia o romance de Bernardim pelo monólogo de uma "Menina e Moça" (dir-se-ia o
desenvolvimento, em prosa rítmica, de uma cantiga de amigo), de que se entrevê um amor infeliz,
uma dolorosa separação e duas mudanças de terra, tudo isto em vagas alusões que se inserem num
extenso rebusque de razões de ser triste – pois cada motivo de sofrimento é logo a seguir
ultrapassado por outro motivo mais forte, numa dialética sentimental contínua que se exprime através
de frases antitéticas, de jogos de palavras, de apartes entre parênteses. Nas canções camonianas
iremos encontrar uma dialética sentimental muito semelhante, mas mais cheia de referências
concretas. A sugestão lírica deste solilóquio inicial é intensa, embora se espraie numa languidez
contemplativa que não deixa prever o desenvolvimento concatenado de uma ação romanesca. A
Menina e Moça declara que “o livro há-de ser do que vai escrito nele” e que o escreveu para si
própria, sem propósito de o acabar, porque as mágoas também não acabam. Parece responder
assim, antecipadamente, às perplexidades dos críticos – como o positivista Teófilo Braga – que
explicaram o inacabamento e as inconsequências da obra por uma alienação mental do autor. Toda a
fala da “Menina e Moça” exprime um querer sofrer porque sim, uma interpretação fatalista sentimental
de quanto existe, o gosto da solidão, da noite, da distância indefinida (“... olhar a terra como ia acabar
ao mar, e depois o mar como se estendia logo após ela, para se ir acabar onde ninguém o visse”).
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A partir do fim do capítulo II até à conclusão do capítulo IV, o monólogo cede lugar a um
diálogo entre a donzela e uma “dona do tempo antigo”, que também sofre de coita de amores. As
falas da dona têm cada vez mais extensão, o que altera sensivelmente o estilo e até a sintaxe da
obra; o lirismo é substituído por uma certa reflexão amadurecida, que formula uma filosofia
sentimental-feminista: os homens (nomeadamente os cavaleiros das novelas...) não sabem o que são
profundos cuidados amorosos, porque só o isolamento doméstico permite, às mulheres, o culto dos
sentimentos delicados. Excetuam-se dois homens, de que ela, dona, vai contar a história triste.
Segue-se (capítulos V-IX) a parte introdutória da narrativa, em que há um lance cavaleiresco (a
morte do Cavaleiro da Ponte), e onde ganham relevo diversos agouros dos desastres que vão seguir-
se, entre eles a morte, durante um parto, de Bilesa, a companheira do Cavaleiro da Ponte.
Do capítulo X até ao fim da primeira parte desdobra-se o caso sentimental de Binmarder-Aónia. O
cavaleiro Narbindel enamora-se de Aónia, irmã de Bilesa; para viver perto dela faz-se pastor e, com
pequenas outras modificações, troca a ordem às letras do nome, passando a chamar-se Binmarder.
Ao episódio cavaleiresco sucede o episódio bucólico, de fundo burlesco, em contraste com a
delicadeza sentimental do falso pastor. Aónia enamora-se por sua vez “sobre ũa sombra de piedade”
causada pelo sofrimento do pretendente, processo psicológico perspicazmente observado. Bernardim
constrói aqui uma novela que, à parte certos excessos e convenções de escola, se desenvolve em
circunstâncias bem notadas de enquadramento natural, doméstico e humano, e sobretudo através de
uma análise da intimidade feminina que só virá a desentranhar-se no romance psicológico moderno
ou em De l’ Amour de Stendhal. Esta parte conclui pelo casamento da protagonista, levada para
longe, e pelo desaparecimento do apaixonado desgostoso. O futuro fica em suspenso, mas o autor
adverte que “mudança possui tudo”.
A segunda parte constitui, até final do capítulo XI, uma interessantíssima novela: o caso
sentimental de Avalor-Arima (a filha de Bilesa), que decorre todo em ambiente palaciano. Sobressai a
impressionante análise da timidez abúlica de Avalor em declarar-se […].
Esta parte, paralelamente à anterior, remata pela partida de Arima, por mar, atrás da qual
seguiu o amado, em barco à deriva para destino desconhecido – o que se sabe por uma maravilhosa
balada, ou rimance, “que ficou daquele tempo”. Este, já anteriormente à Menina e Moça, se publicara
num Cancioneiro de Romances castelhano de 1550, facto insólito por ser aí o único texto português.
Em ambas as novelas a imaginação cavaleiresca, ou mesmo aventurosa em geral,
desempenha um papel secundário. O fulcro da ação é inteiramente psicológico e exprime uma
filosofia trágica do amor. Daí a hipótese, aventada por António Salgado Júnior, de que Bernardim
tivesse em mente um “Decâmeron sentimental”, isto é, uma série de novelas ligadas entre si, como
as da coleção de Boccaccio, por um enredo central – aqui o encontro da “menina e moça” com a
“dona do tempo antigo”. De facto, a parte da autoria incontroversa deixa-nos na expectativa de
narrativas como as da morte traiçoeira dos “dois amigos” (um dos quais é Binmarder e o outro, talvez,
Avalor, embora isto já se não possa garantir), o suicídio das respetivas amadas, os próprios casos
sentimentais das interlocutoras e o da ama de Aónia.
No entanto, em contraste com o desenvolvimento lento e pormenorizado das histórias de
Binmarder e de Avalor, desenvolvimento que excede o âmbito da novela decamerónica aproximando-
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se do romance moderno, em contraste também com a perspicácia e com a extraordinária
originalidade das suas histórias, as aventuras cavaleirescas que se seguem nada trazem de novo e
sujeitam-se inteiramente às convenções do género.
As aventuras de Avalor, feito cavaleiro andante, preenchem os capítulos XII-XXIV (cuja
autenticidade, aliás, há quem conteste) e consistem, fundamentalmente, em repor nos seus direitos
amorosos Zicélia, que o cavaleiro Donanfer repudiara por Olânia. Mantém-se um certo interesse
sentimental, tanto mais que a simpatia do romancista passa a envolver Olânia, quando, por seu turno,
é repudiada. Salgado Júnior sustenta que este episódio se pode integrar numa superior conceção de
conjunto de um “Decâmeron sentimental”: tal como nas duas novelas mais importantes, as
desventuras da personagem simpática são fatalmente desencadeadas pela revolta do amor-paixão
contra um compromisso anterior. No entanto, o interesse psicológico é muito inferior ao do dos
anteriores casos, e, sobretudo, não se compreende a intercalação de uma aventura do pai de Avalor,
muito semelhante à do filho.
Os capítulos XXV-XXXI (certamente apócrifos) pretendem introduzir o “segundo amigo”, que
seria Tasbião e não Avalor, como até então parecia, e reconstituir os antecedentes do episódio
introdutório de Bilesa-Lamentor. São meras andanças cavaleirescas, muito emaranhadas, em que
chega a não compreender-se a arrumação cronológica. Começa a notar-se a predileção dos
combates sangrentos. Ressaltam numerosas contradições com a primeira parte.
Os capítulos XXXII-L (onde alguns julgam haver fragmentos autênticos) procuram rematar
tragicamente a história de Binmarder-Aónia. O ritmo da narração volve-se mais lento e sentimental, e
alguns capítulos atingem certa finura psicológica (nomeadamente XLIV-XLV); mas é bastante
sensível o decalque de um passo do Amadis de Gaula, e a imitação da maneira bernardiniana trai às
vezes outra mão mais rude; o enredo integra-se na ortodoxia católica daqui em diante, e o livro vai
rematar por uma morte e dois casamentos sacramentais: Tasbião, afinal, depois de um
comportamento apagadíssimo, tanto cavaleiresca como sentimentalmente, vai casar feliz. Estes
casamentos estão inteiramente fora do espírito que anima a obra até ao capítulo XXIV.
Pensamento da Menina e Moça
No seu conjunto, e considerando especialmente a parte incontroversamente bernardiniana, a
Menina e Moça tende a exprimir uma filosofia segundo a qual o que confere à vida humana o seu
mais alto valor é o empenhamento amoroso. O amor faz ali valer direitos contra o dever comum,
contra o sacramento conjugal, absorve os outros fins do indivíduo, cria um ambiente de
irresponsabilidade fatalista, que se confirma por sonhos premonitórios, aparições, vozes
sobrenaturais, agouros, palpites, símbolos ou contrastes na natureza. A natureza da Menina e Moça
tem um duplo aspeto: ora é um espelho, em que as criaturas humanas se veem ou veem o seu
contraste, um espelho que conta histórias de amor, felizes ou desastrosas; ora é uma força que
impele as personagens para fora de si mesmas, numa inquietação sem objetivo definido. No primeiro
caso há um paralelismo entre a personagem e o ambiente natural. No segundo, a fronteira entre uma
e outro dissolve-se: o apelo do longe, por exemplo, ecoa na personagem como que ampliando os
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limites aparentes do eu. É neste segundo aspeto que Bernardim pode considerar-se um precursor do
gosto da distância e da bruma que caracterizará alguns românticos e saudosistas.
As donas e donzelas nobres eram então, pelas suas condições de vida, os protagonistas ideais
para este tipo de romance, pois só o Romantismo e o romance psicológico moderno transferem tal
contemplativismo para personagens masculinas, de que Binmarder e sobretudo Avalor são curiosos
precursores. Em contraste com as impiedosas “mudanças”, sempre para pior, de todas as coisas, as
figuras femininas bernardinianas (sobretudo Arima) encarnam a mansidão compassiva ou uma ânsia
de “soidade”, de indefinido e de longínquo.
Visto pelo lado das personagens femininas, o amor é na Menina e Moça alguma coisa de muito
diferente do enamoramento adolescente das personagens masculinas. As conversas entre mulheres
têm por vezes uma feição muito vital e prática, sempre em busca dos meios mais viáveis, dentro de
uma tática psicológica feita de intuição ou de saber experimentado, para levar a cabo o irreprimível
imperativo de amar, e este constitui um dado em si, uma realidade que não se contesta. A conselho
de Inês, Aónia, recém-casada, põe termo às lágrimas causadas pela ausência de Binmarder, não só
para evitar as desconfianças do marido, mas também para não danificar a beleza do rosto, que ela
quer intacta, a fim de, no regresso do amante, lha oferecer. Talvez em relação com isto, há na
Menina e Moça alguma coisa de muito concreto, quotidiano, doméstico e casual, feito de lágrimas, de
contacto, de olhares que se prendem quase materialmente, e que inspira cenas admiravelmente
realistas como a do parto de Bilesa. Isto distingue de um modo cortante o amor da novela
bernardiniana do amor “ideal” da maioria dos romances cavaleirescos ou bucólicos: ligam-no à
instintividade raízes profundas e poderosas.
Um aspeto que não tem sido considerado devidamente na Menina e Moça (e que é comum às
éclogas e às composições líricas) é o dinamismo permanente e universal que as personagens
encontram nas coisas e dentro de si próprias. Tudo se transforma sem paragens, todo o estado se
converte noutro estado, tudo é instável, “mudança possui tudo”. O rio ou ribeira, imagem predileta do
autor, sublinha este sentimento do devir, que transparece, como veremos, na própria estrutura do
estilo de Bernardim.
Poderia dizer-se que em Bernardim tudo se transforma – incluindo os seres inanimados – num
anseio cuja realização é sempre adiada, mas nunca transferida para o sonho, nunca sublimada,
porque se identifica com a vida. […]
O que parece certo é estar implícita em Bernardim a negação do dualismo medieval, da
transcendência, a afirmação de uma natureza única movida por uma força imanente, não havendo
outros valores senão os que se relacionam com a sua realização. A obra harmoniza-se, portanto, com
as tendências mais profundas do Renascimento, de que constitui uma das mais significativas
expressões em Portugal.
SARAIVA, António José, e LOPES, Óscar, 2005. História da Literatura Portuguesa. Porto: Porto Editora (17. ª ed.)