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Viagens Literatura Portuguesa • 10.º ano Materiais de apoio ao estudo de outras obras do Programa 1 VIAG10CDR © Porto Editora fotocopiável GUERRAS DE ALECRIM E MANGERONA Quando lemos uma peça de teatro uma diferença muito clara ressalta em relação a outros textos literários (por ex. um romance, uma novela, um poema): para além do diálogo estabelecido entre as personagens (em António José referidas como interlocutores) que constitui o chamado “texto principal”, há um texto “secundário” constituído pelas notas do autor quanto ao modo (ou modos) de representação. Esse texto secundário é muito importante, não só porque mostra bem que o que lemos é para ser visto (e mesmo na leitura nos ajuda a visualizar a cena) como porque, ainda que se reduza a simples indicações de entradas e saídas (como acontece a maior parte das vezes nas Guerras) isso é o suficiente para mostrar como desenvolver-se o equilíbrio de forças na tensão gerada ao longo da intriga. Além do mais, através desse texto secundário, perpassam muitas das atitudes do autor em relação ao texto enunciado o principal. Um exemplo notório é o facto de uma das poucas indicações acerca dos interlocutores, em Guerras, dizer respeito a D. Tibúrcio “vestido ridiculamente” quando aparece a primeira vez. É portanto intenção do Autor que não apenas os signos verbais mas também os signos visuais que compõem D. Tibúrcio o façam perceber de imediato como “ridículo”. O texto secundário de Guerras é diminuto. Com efeito isto revela bem a primazia dada à peça enquanto representação cénica, resultante do facto de o texto impresso ter sido posterior. Há, além disso, uma economia especial dos signos da cena (tradicionalmente o texto secundário é responsável por estes signos da cena) de modo que a ação desenvolvida através do diálogo dos interlocutores seja capaz de comunicar a multiplicidade significativa que o texto principal pode revelar. Este facto não é de somenos importância no equilíbrio geral da peça e particularmente no desenvolvimento progressivo da ação. Desde o início percebemos que a “indústria” de Semicúpio fará impossíveis. Com efeito será essa indústria que orientará (e dominará) a sequência dramática. Não há portanto uma ação coerente que nos vai mostrando os traços de um “tipo” que é Semicúpio (como acontece por ex. nas peças de Molière); antes tudo se desenrola em torno de um motivo a indústria que vai desfazendo os laços da intriga, de modo que a ação caminhe para um “happy end” convencional na comédia e, aqui, não difícil de prever depois dos dados fornecidos desde o início. O próprio título sugere o carácter jocoso (no sentido de puro jogo divertimento) da representação: Guerras do Alecrim e Manjerona. Porém paradoxal, como já se disse: jocó-séria; paradoxal como o teatro e o carnaval. Guerras de flores é o oxímoro como figura do teatro: onde tudo é jogo, onde tudo é gratuito, é aí, e só aí, que o oxímoro tem a sua concretização plena; como diz Semicúpio: “E no cabo de tantas enchentes tudo nada.” (sublinhado meu). Mas talvez o título não anuncie apenas a gratuidade do teatro do jogo do parecer talvez o oxímoro esteja a outro nível, também, e o título seria então não só uma figura do teatro mas uma crítica da vida: o que são afinal essas guerras inventadas pelos pares amorosos e seus desentendimentos senão guerras de flores? Guerras de “zelos”? O texto teatral funcionará assim como representação de uma ação e crítica dessa ação representada. Os fidalgos são superficiais e ridículos na sua linguagem, calculistas nos seus propósitos como o são as donzelas e o tio e o primo, GUERRAS DE ALECRIM E MANGERONA António José da Silva

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Viagens • Literatura Portuguesa • 10.º ano Materiais de apoio ao estudo de outras obras do Programa

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GUERRAS DE ALECRIM E MANGERONA

Quando lemos uma peça de teatro uma diferença muito clara ressalta em relação a outros

textos literários (por ex. um romance, uma novela, um poema): para além do diálogo estabelecido

entre as personagens (em António José referidas como interlocutores) que constitui o chamado “texto

principal”, há um texto “secundário” constituído pelas notas do autor quanto ao modo (ou modos) de

representação. Esse texto secundário é muito importante, não só porque mostra bem que o que

lemos é para ser visto (e mesmo na leitura nos ajuda a visualizar a cena) como porque, ainda que se

reduza a simples indicações de entradas e saídas (como acontece a maior parte das vezes nas

Guerras) isso é o suficiente para mostrar como desenvolver-se o equilíbrio de forças na tensão

gerada ao longo da intriga. Além do mais, através desse texto secundário, perpassam muitas das

atitudes do autor em relação ao texto enunciado – o principal. Um exemplo notório é o facto de uma

das poucas indicações acerca dos interlocutores, em Guerras, dizer respeito a D. Tibúrcio “vestido

ridiculamente” quando aparece a primeira vez. É portanto intenção do Autor que não apenas os

signos verbais mas também os signos visuais que compõem D. Tibúrcio o façam perceber de

imediato como “ridículo”.

O texto secundário de Guerras é diminuto. Com efeito isto revela bem a primazia dada à peça

enquanto representação cénica, resultante do facto de o texto impresso ter sido posterior. Há, além

disso, uma economia especial dos signos da cena (tradicionalmente o texto secundário é responsável

por estes signos da cena) de modo que a ação desenvolvida através do diálogo dos interlocutores

seja capaz de comunicar a multiplicidade significativa que o texto principal pode revelar. Este facto

não é de somenos importância no equilíbrio geral da peça e particularmente no desenvolvimento

progressivo da ação. Desde o início percebemos que a “indústria” de Semicúpio fará impossíveis.

Com efeito será essa indústria que orientará (e dominará) a sequência dramática. Não há portanto

uma ação coerente que nos vai mostrando os traços de um “tipo” que é Semicúpio (como acontece

por ex. nas peças de Molière); antes tudo se desenrola em torno de um motivo – a indústria – que vai

desfazendo os laços da intriga, de modo que a ação caminhe para um “happy end” convencional na

comédia e, aqui, não difícil de prever depois dos dados fornecidos desde o início.

O próprio título sugere o carácter jocoso (no sentido de puro jogo – divertimento) da

representação: Guerras do Alecrim e Manjerona. Porém paradoxal, como já se disse: jocó-séria;

paradoxal como o teatro e o carnaval. Guerras de flores é o oxímoro como figura do teatro: onde tudo

é jogo, onde tudo é gratuito, é aí, e só aí, que o oxímoro tem a sua concretização plena; como diz

Semicúpio: “E no cabo de tantas enchentes tudo nada.” (sublinhado meu).

Mas talvez o título não anuncie apenas a gratuidade do teatro – do jogo do parecer – talvez o

oxímoro esteja a outro nível, também, e o título seria então não só uma figura do teatro mas uma

crítica da vida: o que são afinal essas guerras inventadas pelos pares amorosos e seus

desentendimentos senão guerras de flores? Guerras de “zelos”? O texto teatral funcionará assim

como representação de uma ação e crítica dessa ação representada. Os fidalgos são superficiais e

ridículos na sua linguagem, calculistas nos seus propósitos como o são as donzelas e o tio e o primo,

GUERRAS DE ALECRIM E MANGERONA António José da Silva

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porque ridícula e movida pelo cálculo é também a sociedade que os sustenta. A superficialidade das

Guerras é a vacuidade dos figurantes. A cena pode ser, então, pelos signos que referem o

parecer/ser da representação, o lugar de conflito permanente e não resolvido da própria vida – que é

também representação-ação-parecer, sem que por vezes se possa delimitar onde acaba a cena e

começa o viver…

O Teatro é o reino do parecer. Daí que Semicúpio seja realmente aquilo que parece e a sua

ação seja teatralmente eficaz: ele é mãe de duas donzelas ofendidas por Tibúrcio (que só existem a

nível do parecer mas que têm efeito a nível do ser, ou seja, na ação teatral); é médico que a todos dá

remédio: é juiz que decide da sorte e casa os pares envolvidos no conflito, deslindando assim uma

teia que só ele tinha manejado. E quem a tinha enredado? A guerra, a guerra dos zelos e das flores

[“Não vedes que é moda e, como não custa dinheiro, bem se pode permitir?”]

A estrutura da peça é simples e em função de pares de interesses, numa delineação muito

semelhante à de outras peças atribuídas ao Judeu e bastante comum no teatro peninsular desde o

século XVI: duas meninas, dois pretendentes; os criados e os senhores.

Semicúpio de todos fica isolado e a todos está ligado. Embora pertença à classe dos criados,

está fora dela […]: a nível do parecer como mulher, médico e juiz e ao nível do ser, pela astúcia, pela

capacidade de ser mais eficaz do que os senhores a quem é indispensável; só ele, realmente, conduz

uma peripécia que não existe para além dele. É, assim, Semicúpio o centro da ação – o seu sujeito –

mas também o único capaz de a descentrar; é um polo onde se encontram todas as forças, onde

convergem os outros interlocutores e de onde partem para novas sequências. Aliás não há, quase,

em Guerras uma sequência temporal. Está minimamente reduzida, sujeita tanto quanto possível a

uma representação espacial. Se fosse possível veríamos em quadros as diferentes “atuações” de

Semicúpio e, tirando as primeiras cenas e as finais, que são realmente expositivas enquanto

introduzem um tema e concluem a peripécia, as outras poderiam variar, de certo modo, dentro da

sequência da ação: a do capote, a da arca, a da mãe, a do médico, a da capoeira…

Parece bastante claro que Semicúpio funciona como adjuvante dos fidalgos e oponente de D.

Lancerote e Tibúrcio pois objeta aos seus projetos de destinador e destinatário respetivamente, do

“bem” por todos eleito como objeto a alcançar – as meninas. Como personagem, Semicúpio não tem

outra identidade que não seja a indústria; a sua identidade é definida pela função que desempenha e

ele desempenha funções várias (sujeito, adjuvante, oponente), é um mesmo ator (ainda que com

vários disfarces) com a função de actantes diferenciados. A unidade da peça, o seu equilíbrio, resulta

da coerência das funções de Semicúpio visto que, como vimos, não há outra causalidade para a

sequência da ação. Esta aparece, pois, orientada por um “deus ex machina”, mas o que torna esta

peça diferente das outras em que o mesmo esquema se repete, é que essa determinação exterior é

interiorizada em Semicúpio, nas suas metamorfoses, que apenas fazem ressaltar a sua unidade

dando uma harmonia ao todo que faz da peça a mais equilibrada (teatralmente) do conjunto. Esta

harmonia aparece também no jogo dinâmico entre o que podemos chamar o cómico de situação (a

arca, a capoeira...) e do cómico verbal, embora não nos possamos esquecer que o cómico é sempre

linguagem em situação. Só assim se pode compreender o cómico de situações como as do diálogo

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de Semicúpio e D. Clóris ou de D. Lancerote e Sevadilha (I Parte, Cena II) a propósito do capote

desaparecido.

Ver em qualquer texto literário uma “representação” da realidade em geral, da sociedade sua

contemporânea, em particular, pode ser simplista quando não falacioso. No entanto, quando é o

próprio texto que nos fornece os elementos para a construção de um “contexto situacional” sem o que

a leitura não é possível, podemos perceber uma realidade construída pela linguagem simbólica que a

ficção é; em Guerras, particularmente, o jocó-sério, como convenção literária, é parte desse contexto

situacional: ação inserida na atualidade. Será assim legítimo ler Guerras como uma crítica direta aos

ranchos de flores? Certamente que sim. No entanto, uma leitura atenta da peça faz-nos perceber,

também, que a crítica social explícita ou implícita no texto não recai tanto sobre os factos em si –

sobre os ranchos de flores, sobre as meninas casadoiras ou mesmo sobre os fidalgos – como recai

sobre uma estrutura social que permite a existência do ridículo: o tio destinador das meninas; um

destinatário que cobiça outros “objetos”; as convenções pretensiosas da corte amorosa; a

constatação do uso da linguagem como “registo” de classe (“Também sois poeta, meu sobrinho?

Também temos nosso entusiasmo, Senhor tio…”) posto bem a ridículo por Semicúpio e Sevadilha

que, usando o código gongórico, o desmistificam porque desvendam o contexto real que sustentava a

vacuidade do preciosismo. Não são fraquezas dos homens que são objeto de riso (aqui não há

personagens mas apenas interlocutores), risível é a sociedade que sustenta e alimenta fraquezas.

Esta “humanidade” nem sempre presente na comédia e ausente na comédia “intelectual” da

Arcádia é uma das constantes das peças atribuídas ao Judeu, numa época em que ainda se não

tinha transferido da comunidade para o indivíduo toda a carga do pragmatismo social.

FERRAZ, Maria de Lurdes, 1980. “Apresentação crítica” in SILVA, António José da, 1980. Guerras de alecrim e manjerona. Lisboa: Editorial Comunicação