VI FÓRUM DE PESQUISA CIENTÍFICA EM ARTE - EMBAP · processos de produção artística, de ensino...

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73 ISSN 1809-2616 ANAIS VI FÓRUM DE PESQUISA CIENTÍFICA EM ARTE Escola de Música e Belas Artes do Paraná. Curitiba, 2008-2009 __________________________________________________________________ DESENHO E INCLUSÃO SOCIOEDUCATIVA: DIÁLOGOS COM A ARTE 1 Neli Klix Freitas * [email protected] Helene Paraskevi Anastasiou * [email protected] Resumo: A proposta do artigo é a de apresentar dados da pesquisa sobre o desenho no ensino de Artes Visuais, em uma postura de educação inclusiva, hoje vigente no Brasil por força de lei. O artigo apresenta o tema da inclusão estabelecendo relações com a arte contemporânea. Insere uma série de dez desenhos de uma criança com necessidades educativas especiais. Foram participantes dez crianças, sendo coletados com os mesmos dez desenhos, feitos individualmente, ao longo de cinco encontros. Na análise dos desenhos foram considerados: a presença de elementos do contexto, do imaginário, cores, formas e a presença de verbalizações associadas com os desenhos. Estas verbalizações possibilitaram o acesso aos significados, sendo evidenciada a importância da interação social. Palavras-Chave: Desenho; Inclusão Sócio-educativa; Arte Contemporânea. O fazer em arte não responde a fórmulas ou aprendizagens pré- estabelecidas. Trata-se de um saber aberto que, mais do que configurar um pacote de conhecimentos acumulados, gera uma relação significativa em cada momento, com particularidades e especificidades da realidade. Implica em uma relação com os acontecimentos do mundo, nos quais o sujeito que cria adota uma posição ativa. Esta postura coincide com a noção de projeto artístico que tem implícito uma aproximação e relação com os processos de produção cultural. Uma posição isolada, academicamente ortodoxa é ineficaz e não coincide com as práticas sociais e culturais vigentes. Em um processo de diálogo e de experiência complexa uma transformação se produz na pessoa que cria, bem como no sistema ou no contexto 1 Artigo elaborado com base na pesquisa: Imagens, Desenhos, Significados e Inclusão. Docente Efetiva do Centro de Artes da UDESC-SC. Docente Permanente do Programa de Pós- Graduação em Artes Visuais. Curso de Artes – Nível Médio – Escola de Belas Artes S. Cecília (RS). Psicóloga, Habilitação Psicólogo; Licenciada em Psicologia, Doutora em Psicologia – PUCSP. Bacharel em Artes Plásticas – EMBAP – Curitiba (PR). Aluna do Curso de Licenciatura em Artes Visuais – UDESC. Bolsista de Iniciação Científica da Pesquisa.

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ISSN 1809-2616

ANAISVI FÓRUM DE PESQUISA CIENTÍFICA EM ARTEEscola de Música e Belas Artes do Paraná. Curitiba, 2008-2009__________________________________________________________________

DESENHO E INCLUSÃO SOCIOEDUCATIVA: DIÁLOGOS COM A ARTE1

Neli Klix Freitas∗ [email protected]

Helene Paraskevi Anastasiou∗ [email protected]

Resumo: A proposta do artigo é a de apresentar dados da pesquisa sobre o desenho no ensino de Artes Visuais, em uma postura de educação inclusiva, hoje vigente no Brasil por força de lei. O artigo apresenta o tema da inclusão estabelecendo relações com a arte contemporânea. Insere uma série de dez desenhos de uma criança com necessidades educativas especiais. Foram participantes dez crianças, sendo coletados com os mesmos dez desenhos, feitos individualmente, ao longo de cinco encontros. Na análise dos desenhos foram considerados: a presença de elementos do contexto, do imaginário, cores, formas e a presença de verbalizações associadas com os desenhos. Estas verbalizações possibilitaram o acesso aos significados, sendo evidenciada a importância da interação social.Palavras-Chave: Desenho; Inclusão Sócio-educativa; Arte Contemporânea.

O fazer em arte não responde a fórmulas ou aprendizagens pré-

estabelecidas. Trata-se de um saber aberto que, mais do que configurar um pacote

de conhecimentos acumulados, gera uma relação significativa em cada momento,

com particularidades e especificidades da realidade. Implica em uma relação com os

acontecimentos do mundo, nos quais o sujeito que cria adota uma posição ativa.

Esta postura coincide com a noção de projeto artístico que tem implícito uma

aproximação e relação com os processos de produção cultural. Uma posição

isolada, academicamente ortodoxa é ineficaz e não coincide com as práticas sociais

e culturais vigentes. Em um processo de diálogo e de experiência complexa uma

transformação se produz na pessoa que cria, bem como no sistema ou no contexto 1 Artigo elaborado com base na pesquisa: Imagens, Desenhos, Significados e Inclusão. Docente Efetiva do Centro de Artes da UDESC-SC. Docente Permanente do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais. Curso de Artes – Nível Médio – Escola de Belas Artes S. Cecília (RS). Psicóloga, Habilitação Psicólogo; Licenciada em Psicologia, Doutora em Psicologia – PUCSP. Bacharel em Artes Plásticas – EMBAP – Curitiba (PR). Aluna do Curso de Licenciatura em Artes Visuais – UDESC. Bolsista de Iniciação Científica da Pesquisa.

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em que está inserida. O fazer em arte não responde a fórmulas ou aprendizagens

pré-estabelecidas.2

Este fazer em arte em relação com os acontecimentos do mundo, implica em

um sujeito criativo, em diálogo com experiências complexas, que produzem tanto

uma transformação na pessoa que cria, como no contexto em que está inserida.

Este fazer pode ser compreendido como processo aberto, sem uma meta fixa, na

qual podem ser inseridos momentos de crise. Fazer implica em fazer-se, estar

presente, ser consciente. Entretanto, a literatura sobre processos de criação artística

refere que há momentos de crise em quem cria. Esta questão remete-nos a pensar

sobre o saber que não se vincula somente à memória, que não é apenas um olhar

sobre o passado tido como acumulação de experiências e de conhecimentos, mas

sim uma visão dirigida para o futuro, em consonância com a concepção de

construção e ampliação de uma capacidade criativa. A arte relaciona-se com um

processo de permanente construção, no qual o artista pode problematizar tanto

questões pessoais, como suas relações com a comunidade a que pertence. Nesta

direção se insere o artista como sujeito, em interação com outros sujeitos, com o

contexto, com as comunidades de diferente natureza, com a sociedade.3

A idéia de comunidade implícita nestas afirmativas relaciona-se tanto com as

especificidades, quanto com a heterogeneidade de cada grupo. A comunidade é

aquele espaço social, que possibilita apreender como trabalhar com as diferenças,

compreendendo que estas se transformam e se desenvolvem. Trata-se de ampliar a

noção de diversidade, anexando a ela a empatia, a troca pela interação e pelo

intercâmbio de saberes, percepções e sensibilidades. É uma noção de comunidade

que tem a ver com uma teia de relações, com um lugar desterritorializado. Implica

em uma rede de relações, que dá lugar a uma comunidade complexa e

heterogênea.4

A heterogeneidade caracteriza as ações de caráter inclusivo vigentes em

educação, nas diferentes áreas do conhecimento, em todos os níveis e instâncias,

por força de lei, e na vida em sociedade. Entretanto, mesmo diante dos imperativos

legais muitos questionamentos estão presentes neste processo, dentre os quais

pode-se referir a oposição binária ainda existente na vida social entre inclusão e

2 BLANCO, Paloma. Modos de Hacer: Arte crítico, Esfera Pública y Acción directa. Espanha: Ed. Universidade de Salamanca, 2001.3 PARDO, José L. La Sociedad Inconfesable. Ensayos sobre la falta de Comunidad. México: Archipélago, 2001.4 PERÍNOLA, Mario. El Arte y su Sombra. Madrid: Cátedra, 2002.

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exclusão. As diferenças, em se tratando de Artes Visuais, tanto no que se relaciona

com os processos de criação, quanto com os processos de ensino, não podem ser

descritas em termos de melhor e ou pior, bem ou mal, superior ou inferior, maioria

ou minoria, dentre outras considerações. São simplesmente diferenças. O fato de

assinalar algumas diferenças volta a posicionar essas marcas, essas identidades

como sendo opostas à idéia de norma e, então, daquilo que é pensado e fabricado

como o correto, o positivo, o melhor. É como estar diante de quadros superpostos,

ou partes de um mesmo quadro. Na realidade, é um mesmo quadro, que possui

tonalidades distintas.5

Nessa perspectiva, cabe aos pesquisadores e estudiosos envolvidos com

processos de produção artística, de ensino e pesquisa em Artes questionar se o

sistema tem tentado discutir a questão da diversidade, ou se o que o preocupa é a

obsessão pelo outro. Esse raciocínio implica na necessidade de repensar com rigor

a questão dos processos inclusivos, em uma postura ética. Não parece um exagero

afirmar que a sociedade atual ainda não se preocupa genuinamente com o outro,

mas tem se tornado muitas vezes, obsessiva diante de cada fragmento da diferença

em relação à mesmice. Parece ser impossível pensar no ensino e na aprendizagem

em Artes Visuais sem a presença da pressuposição da existência da alteridade.

Pode-se pensar na arte e no ensino da arte como um dos caminhos possíveis

em uma proposta inclusiva. Mais especificamente a arte dos dias atuais, a arte

contemporânea6. Quem observar a arte dos tempos atuais será confrontado com

uma infinita profusão de estilos, formas, práticas, programas, materialidades,

linguagens, tecnologias, enfim uma verdadeira diversidade de práticas artísticas. Os

artistas contemporâneos mostram mediante a sua arte o pensamento de

determinada época, a sociedade híbrida em que estão vivendo, bem como questões

políticas, religiosas, econômicas e sociais. O caráter plural impediu que a arte se

tornasse homogênea. É vista por muitos com reserva, entre a curiosidade e a

irritação causada pela dificuldade de compreendê-la. Atualmente, vários artistas

5 LARROSA, Jorge; SKLIAR, Carlos. Habitantes de Babel: Política e Poética da Diferença. Belo Horizonte: Atlântica, 2002.6.GARDNER,James. Cultura ou Lixo.Uma Visão Provocativa da Arte Contemporânea. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998, p. 76. “A Arte Contemporânea recebe inúmeras denominações, dentre elas Pós-Modernismo. Todavia, esse termo é evitado por muitos autores contemporâneos”. Muitos artistas e críticos dirão que este é um rótulo impreciso para formas diversas de expressão artística, uma crua aproximação daquilo que realmente está acontecendo. Mas, uma vez que precisamos usar palavras e ainda não apareceu ninguém com uma palavra melhor, Pós-Modernismo [é usado] para denotar a arte que sucede o Modernismo e que geralmente ataca.

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utilizam a experiência artística incluindo o expectador, transformando-o em sujeito e

não como mero observador passivo, problematizando o olhar do outro. Requisitando

uma outra forma de representação, pode-se pensar na apresentação de alguns

problemas atuais. A arte contemporânea é norteada, principalmente, por questões

que afetam a todos diretamente, levando em conta suas especificidades. Assim,

têm-se propostas artísticas para serem tocadas, cheiradas, somente ouvidas,

abarcando um sistema para além das instituições tidas como oficiais na arte. Ela

está presente na rua, nas relações pessoais, na pluralidade humana, na mídia e na

própria arte.

Nesse sentido, a arte contemporânea envolve o intelecto e as emoções,

direciona com liberdade as escolhas. Ela é uma ação contínua que trabalha com a

informação, a descoberta, juntando a essência da aparência, desordenando a ordem

convencional, criando um novo conhecimento. A informação é o fio e a arte, o tecido.

A coletividade tece. A elaboração dessa tessitura é enfim, a construção do homem

que pensa e sabe o que importa para si e para o meio onde vive. A arte mostra

ferramentas para que se veja mais, pense mais e, por isso torna-se possível uma

maior capacidade para escolher e decidir.

A arte instiga, altera e cria opiniões, questiona o aparentemente

inquestionável e move. A informação recebida passivamente ou discutida forma o

entrelaçamento da opinião pública. A arte é uma das possibilidades para oferecer

informações e criar condições para refletir sobre elas, desvelando as aparências,

revendo o passado e inventando o futuro. Nenhum outro período da história da arte

incluiu tanto o debate da diversidade, tratando de temas antes pouco explorados,

como questões de gênero, classe, etnia, corpo, relação público e obra, questões

políticas e sociais. A arte acompanha o homem e sua história em manifestações que

refletem o contexto social do momento em que ele está inserido. E, partindo da

premissa de que arte é também cultura, o estudo da produção artística é uma

referência em potencial aos acontecimentos sociais, políticos e econômicos de cada

período.7

Como estímulo à reflexão o trabalho em arte está em permanente diálogo

com a política, de forma harmônica ou carregada de conflitos. Essa relação é

permanente e necessária e, de tal forma que a ação artística é também, uma ação

política. Buscando um diálogo entre a arte contemporânea, o ensino da arte e a

7 ARCHER, Michael. Arte Contemporânea: Uma História Concisa. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

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educação inclusiva, a estética contemporânea serve como exemplo para que estes

assuntos e este sujeito denominado como “outro” possam ser apreendidos como

uma manifestação artística. Atualmente, um número cada vez maior de pessoas

com necessidades especiais está envolvida em atividades artísticas, em todas as

áreas: artes visuais, teatro, música, dança. Entre outras questões, mais do que dar

conta de aspectos da inclusão social, esta é uma maneira de inserir no cotidiano

questões de cidadania. A educação inclusiva só tem sentido se tiver projeção na

estrutura social, integrando discursos que vão muito além do âmbito educacional e

que constituem um conjunto articulado, o que deve ser contemplado no currículo dos

cursos de Artes, seja no Bacharelado, seja na Licenciatura.

Autores8sugerem propostas baseadas na interação, no diálogo, na harmonia,

na empatia, não para terminar com as diferenças, mas para manter a tensão entre

elas, compreendendo que é da tensão que emerge a criação de algo novo e a

possibilidade de uma nova ordem, que subverte o caos. No ensino de Artes Visuais

não se trata de caracterizar o que é a diversidade e quem a compõe, mas sim de

compreender melhor como as diferenças nos constituem como humanos.

Uma revolução no olhar. Questões inclusivas, sociais e educacionais

presentes na complexa dinâmica que caracteriza o ensino e a aprendizagem em

Artes Visuais pedem por novos olhares: olhares múltiplos para romper com a

hegemonia epistêmica dos grandes saberes que, com seu olhar iluminista

pretendem iluminar tudo. Buscam-se olhares iluminados por novos focos e

instrumentos que possam descer fundo na ordem implícita, penetrando no

subjacente e no subjetivo. Trata-se de uma visão de escuta das vozes de uma

ciência que, em sua busca transdisciplinar é capaz de gestar o novo, que é a

proposta central da atividade de pesquisa nesse movimento de olhar para a criação

e para o ensino sob novos ângulos. Não há um modelo para a criação, nem para o

ensino em Artes Visuais, assim como cada ser humano é diferente do outro. Uma

visão hegemônica de ensino, na qual todos os sujeitos aprendem do mesmo modo e

no mesmo ritmo é uma utopia, um contido expansivo, que não pode ser aprisionado

por nenhuma ideologia, nenhuma legislação. A multiplicidade representa o convite

para a coragem de espiar por frestas inusitadas e conseguir ver outras dimensões

da realidade. Trata-se de uma subversão do olhar.9

8 LARROSA, Jorge; SKLIAR, Carlos. Habitantes de Babel: Política e Poética da Diferença. Belo Horizonte: Atlântica, 2002.9 MUNIZ REZENDE, Antonio. Bion y las Bases del Entendimiento Humano. Buenos Aires: Paidós, 1993.

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As interações entre indivíduos produzem a sociedade que, por sua vez,

testemunha o surgimento da cultura, e que retroage sobre os indivíduos pela cultura.

Assinala que a complexidade não poderia ser compreendida dissociada dos

“elementos que constituem: todo o desenvolvimento verdadeiramente humano

significa o desenvolvimento conjunto das autonomias individuais, das participações

comunitárias e do sentimento de pertencer à espécie humana”.10

Nos últimos anos, o ensino nas diferentes áreas passou por transformações,

com vistas ao atendimento à diversidade humana. A legislação vigente exige novas

adaptações. No que se refere às pessoas portadoras de necessidades educativas

especiais, e dentre elas pode-se referir o autismo, a síndrome de Down, o transtorno

por déficit de atenção com hiperatividade, a paralisia cerebral, dentre outras tantas é

desafiador encontrar um caminho eficaz que atenda às suas necessidades. Ainda

existe uma cultura que considera estas pessoas no âmbito do assistencialismo, o

que contraria princípios de cidadania. Pode-se pensar na arte e no ensino da arte

como caminhos possíveis para fortalecer a integração da escola com o que se passa

além dos seus muros: uma realidade social, que ainda exclui, muito mais do que

inclui.

O desenho tem sido amplamente empregado no ensino da arte, e tem no

âmbito artístico um importante papel. O desenho é uma atividade fortemente

conectada com a imaginação. Há na literatura11 um entendimento do ato de

desenhar como atividade inteligente e sensível. No ato de desenhar está implícita

uma conversa entre o pensar e o fazer, entre o que está dentro e o que está fora. A

percepção e a sensibilidade são as janelas para o mundo que possibilitam a troca

permeável entre os processos internos e externos. No ato de desenhar há

referências ao cotidiano, alusões à fantasia, lembranças, recriação, significações,

interpretações, que possibilitam a elaboração de correspondências entre o real, o

percebido e o imaginário.

Há inúmeras alusões à imaginação na literatura, bem como ao desenho.

Alguns autores analisam os esquemas através do desenho, particularizando o

desenho infantil. Outro autor12 escreve que a criança não desenha o que vê, mas

sim, o que conhece. Em nossa pesquisa usando o desenho com crianças com

necessidades educativas especiais, essas contribuições são importantes. Quando o

10 MORIN, Edgar. Os Sete Saberes necessários à Educação do Futuro. São Paulo: Cortez, 2000.11 DERDIK, Edith. Formas de pensar o Desenho. São Paulo: Scipione, 2003.12 VYGOTSKY, Lev. La Imaginaciona y el Art in Infancia. Marid: Akal, 2003.

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processo de produção do desenho traz à tona figurações, fantasias e imaginação,

representa o real possível, elaborado pelas vivências da criança, que é socialmente

constituída. A linguagem possibilita a atribuição de significados aos desenhos, e este

processo é sociocultural: ninguém pinta, desenha ou molda aquilo que vê, mas o

que aprendeu a ver e que, assim, passa a conhecer. A livre expressão da criança

depende de oportunidades proporcionadas pelo meio e, ao mesmo tempo, amplia as

possibilidades da criança para interagir com o meio.13

Entretanto, o desenho da criança não pode ser compreendido como mera

atividade escolar, ou aptidão pessoal para a arte. Trata-se de um diálogo

permanente entre a criança e o mundo, uma constante busca de comunicabilidade e

inteligibilidade.

Nessa perspectiva não há espaço para modelos prontos, para cópias de

modelos propostos pelo professor, para enquadramento de desenhos em temas

dados a priori. Não compete ao professor selecionar desenhos para o mural, nem

criticar o desenho como bonito ou feio. Nesta perspectiva, o desenho insere-se nas

demandas vigentes no Brasil14 referentes à educação inclusiva. Particularmente no

ensino da arte, com crianças portadoras de necessidades educativas especiais,

trata-se de uma proposta alicerçada na interação social.

Na pesquisa por nós desenvolvida sobre o desenho de crianças com

necessidades educativas especiais, em educação inclusiva, solicitou-se a cada

criança uma série de dez desenhos, ao longo de cinco encontros, acrescidos de

verbalizações sobre o mesmo. A análise deste material, que totalizou 150 desenhos

de 15 crianças focalizou a identificação de elementos do meio nos desenhos,

gradativamente, nesta série de dez. Analisaram-se também, as cores empregadas, a

manifestação de vivências e experiências da criança no desenho, enfim, o cotidiano

da criança.

Parte-se da premissa de que o desenho possibilita a criação de espaços de

interação sócio-cultural, o que é fundamental no ensino de arte quando se pensa na

inclusão de crianças com necessidades especiais. Ao desenhar, a criança comunica

13 VYGOTSKY, Lev. La Imaginación y el Art in Infancia. Madrid: Akal, 2003. O autor refere que a criança desenha o que conhece. Atribui importância ao processo de construção do conhecimento, sendo importantes nesta dinâmica a imaginação, a interação social. O desenho reflete elementos do contexto. Por isso, quanto maiores e diversificadas as experiências da criança, maiores oportunidades terá para ampliar repertórios de conhecimento.14 Constituição da república Federativa do Brasil.1986. LDB 1996. A Constituição Brasileira trata da educação como um direito de todos. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional dedica atenção especial ao direito universal à educação.

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o que apreendeu da realidade, e este processo tanto permite conhecê-la, quanto

possibilita a ela o conhecimento do outro, do meio, da sociedade. Acolher os

desenhos de todas as crianças significa aceitá-las incondicionalmente, o que

coincide com a proposta do ensino inclusivo.

Em um diálogo com a arte contemporânea, não há desenho feio ou bonito.

Não há produção artística feia ou bonita. Existe arte. No caso da criança, existe o

desenho.

Pode-se evidenciar a importância do desenho com crianças incluídas no caso.

X.,15 um menino com 8 anos, com transtorno por déficit de atenção com

hiperatividade (Anexo 1). É aluno de uma escola da Rede Pública Estadual de

ensino em Florianópolis, SC. Foi participante da pesquisa, sendo que todos os

procedimentos recomendados pelo Comitê de Ética em Pesquisas com Seres

Humanos da Universidade do Estado de Santa Catarina foram observados neste

processo: entrevistas com a mãe, com a direção da escola, com a professora, bem

como solicitação de autorização para publicação. Sua produção através do desenho,

em uma série de dez, acrescidas de verbalizações expressa a importância do meio e

da interação social no desenvolvimento da criança, oportunizando a ela

possibilidades de comunicar o que vê, sente e experimenta. Insere seu cotidiano no

desenho. Associa as palavras com o desenho. Gradativamente, enquanto vivencia a

integração com outras crianças, seu desenho se transforma. Nos desenhos há

presença de cor. Insere elementos do cotidiano no desenho (escola, colegas, flores,

travesseiro, bolo): insere vivências (a morte do pai). Ao longo da série de dez

desenhos, esta inserção se amplia. Há manifestações do imaginário (crianças

sorvete, travesseiro triste). A interação social está presente, uma vez que as

verbalizações referem sua importância. “Quer ser criança sorvete um dia, como os

colegas da escola. Crianças sorvete são felizes”.

Pode-se chamar de atividade criadora toda a realização humana de algo

novo, e quando se observa a conduta do homem percebe-se facilmente, em toda a

sua atividade criadora, que ela distingue-se em dois tipos básicos de impulsos,

sendo um deles reprodutor e vinculado à memória. Já as atividades humanas que

não se vinculam à reprodução ou lembranças de impressões anteriormente vividas,

pertencem a uma segunda função: a criadora ou combinadora. Imaginação ou

fantasia, termos usados como sinônimo são os nomes dados às atividades que

15 X. (nome fictício). Criança com transtorno por déficit de atenção com hiperatividade. Pesquisa com divulgação autorizada pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos-UDESC.

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projetam o ser humano para o futuro. Existe uma realimentação contínua entre

imaginação, experiência, realidade que, como uma trama intrincada, encontram-se

na base do processo de aquisição e de construção do conhecimento. Dessas

questões teórico-conceituais, bem como dos desenhos de X. acrescidos de palavras

é possível avaliar a importância das interações sociais para uma criança. O ensino

de Artes Visuais nas escolas deve ser um espaço onde as interações ocorram de

modo espontâneo, sem cerceamentos. Não é fácil criar e, nesse sentido, o ensino e

a pesquisa deveriam contemplar essa questão, expressa em valores, sentimentos e

critérios que não sejam alheios à realidade das crianças, considerando a identidade

e a diferença. O ensino de qualidade consiste em despertar na criança aquilo que

ela já possui dentro de si, ajudando-a a evoluir e a orientar o seu desenvolvimento.

Não em uma direção de mão única, mas que contemple possibilidades de

construção, desconstrução e reconstrução, tal como ocorre na arte.

Anexo 1

Segue abaixo uma série de 10 desenhos realizados por X, na ordem em que

foram feitos com suas respectivas verbalizações:

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Desenho 1 – Aí tem um homem. Acho que ele morreu,

tem muito sangue, os homens muito maus fizeram isso

com ele. Tem arame na volta dele, ele não se mexe

mais. Lá em cima tem umas nuvens chorando, e uma

está olhando e chorando. É muito triste isso daí. Esse

homem é um pai morto. Acho que o nome da história

pode ser um pai morto.

Desenho 2 – O fantasma. Esse é o fantasminha Puf,

ele é bonzinho. Os fantasmas assustam as pessoas,

só que o Puf não. Ele veio para dizer umas coisas para

a criança, mas ela tem medo, e aí ele não consegue

dizer nada. O Puf é um fantasma que é criança, um dia

vai ficar bem grande. Eu tenho medo de fantasmas. O

nome desse desenho é Puf o Fantasma.

Desenho 3 – O nome do desenho é Travesseiro triste.

Um menino tinha um travesseiro

bem colorido. Um dia, o travesseiro dele chorou. O

menino ficou só olhando ...

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Desenho 4 – O bolo triste. O menino está de

aniversário, e ganhou um bolo da mãe dele. Só que o

bolo que a mãe deu é triste. Têm umas velinhas

acesas, o menino não quer este bolo.

Desenho 5 – Este menino foi lutar. Ele queria que

nunca mais ninguém ficasse triste, nem que tivesse

gente pobre. Mas ele perdeu a luta, a espada caiu no

chão, quebrou, e ele saiu da luta chorando. Pobre

menino triste que queria lutar. Não tem nome. O

desenho não tem nome.

Desenho 6 – O monstro apareceu de noite, e menino

ficou apavorado. Ele tem muito medo de monstros.

Este monstro saiu debaixo da cama, puxou uns fios e

voou pela casa toda. Puxa! Que medo! Eu gosto dos

monstros da TV, mas se tiver um em casa, vou lutar.

Tenho medo, só um pouco. Monstros sempre

assustam as crianças. O nome é: Monstros na vida.

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Desenho 7 – Aqui são as coisas para lutar que o

menino viu na casa de um homem muito mau. Tem

facas, espadas, tem lança, tem luva de boxe e

munhequeira, tudo que ajuda quando a gente tem que

lutar. O nome é: Coisas para lutar.

Desenho 8 – Essas flores são bonitas. Sabe, eu vi

muitas flores, até aqui no colégio. Essas flores do

desenho, uma está triste e a outra está pensando um

pouco. Essa flor que pensa é a flor do colégio, e ela é

mais bonita.

Desenho 9 – As crianças sorvete. Essas crianças são

crianças sorvete: de limão, de tangerina. Elas são

felizes. Elas saltam, são bem coloridas, elas estão

rindo. Meus colegas são crianças sorvete, esses do

meu colégio, eles são bem felizes. Um dia vou ser

sorvete. Eu acho bonito. Sorvete é muito bom e é feliz.

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Desenho 10 – Um tênis desses com luzinhas, para a

gente colocar no pé e escorregar. Pode escorregar

para longe daqui. O tênis está com as luzes acesas, e

um dia eu quero um tênis para escorregar para muito,

muito longe, para achar outras crianças assim com o

mesmo tênis, e ser bem feliz. Essa história termina

assim. O menino do tênis foi feliz para sempre.

REFERÊNCIAS

ARCHER, Michael. Arte Contemporânea: Uma História Concisa. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

BLANCO, Paloma. Modos de Hacer: Arte, Crítica, Esfera Pública y Acción Directa. Espanha: Edit. Universidade de Salamanca, 2001.

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