Vestígios no tempo: escravidão e liberdade em Conceição do Coité-BA (1869-1888) - Edimária...
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UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA
DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO- CAMPUS XIV
VESTÍGIOS NO TEMPO: ESCRAVIDÃO E LIBERDADE EM CONCEIÇÃO
DO COITÉ (1869-1888)
Conceição do Coité
2012
EDIMÁRIA LIMA OLIVEIRA SOUZA
VESTÍGIOS NO TEMPO: ESCRAVIDÃO E LIBERDADE EM CONCEIÇÃO
DO COITÉ (1869-1888)
Trabalho de Conclusão de Curso apresentado a
Universidade do Estado da Bahia, como requisito para
obtenção do título de graduada em Licenciatura em
História sob a orientação da professora Íris Verena
Santos Oliveira.
Conceição do Coité
2012
TERMO DE APROVAÇÃO
EDIMÁRIA LIMA OLIVEIRA SOUZA
VESTÍGIOS NO TEMPO: ESCRAVIDÃO E LIBERDADE EM CONCEIÇÃO
DO COITÉ (1869-1888)
Trabalho de Conclusão de Curso apresentado a Universidade do Estado da Bahia- UNEB para
obtenção do título de graduada em História.
Professora Iris Verena Santos Oliveira_______________________________________
Universidade do Estado da Bahia – UNEB
Orientadora
Conceição do Coité, dezembro de 2012
AGRADECIMENTOS
Este trabalho não é resultado apenas de um esforço individual, para a sua realização
contribuíram muitas pessoas que direta ou indiretamente estiveram ao meu lado nesta
caminhada. Dessa forma, agradeço a Deus por ter me concedido através de sua bondade
infinita, o potencial de concretizar esta conquista em minha vida.
Agradeço especialmente a minha família, meus pais, irmãos, filho e esposo pela
paciência e força que me deram nos momentos em que eu não mais queria voltar à vida
acadêmica. Infelizmente nem todas as pessoas que estiveram ao nosso lado durante o curso,
permaneceram entre nós, por isso com muito amor agradeço ao meu amado irmão Romário,
que esteve comigo em muitos dias, me trazendo até a UNEB, mas que me deixou de forma
repentina, o que ficou foram as boas recordações e a grande saudade. O meu amor será
eternamente dedicado a você, meu irmão amado.
Também quero de maneira especial agradecer a minha orientadora, Íris Verena Santos
Oliveira pelos momentos de orientação, pelas leituras indicadas e por toda paciência e carinho
que teve para comigo. A você, meu muito obrigado. Outra professora que preciso agradecer é
Elizângela Ferreira que me orientou por um período curto, mas muito significativo. Algumas
referências que aparecem neste trabalho foram indicações dela.
Não posso deixar de mencionar as minhas grandes amigas do curso, Mahyse Dolores,
Patrícia Carneiro, Jaciane Guimarães e Maritânia que de forma especial sempre estiveram ao
meu lado, me dando forças e grandes alegrias. Agradeço em especial a minha amiga Vera
Ribeiro, Verinha Verão, pelas muitas conversas e leituras deste texto e ainda pela força que
me deste durante todo o curso. Estas pessoas foram muito importantes para o meu retorno a
vida, depois de um período triste em que decidir deixar de lutar e sonhar. Há algumas pessoas
que ficarão pra sempre guardadas em nosso coração, e além dos já citados acima agradeço em
especial ao professor Antônio Villas Bôas que compartilhou do meu mais triste momento de
vida e com muito carinho conversava comigo com o intuito de me confortar.
Tantas outras pessoas fizeram parte destes anos de universidade, que não tenho como
citar os nomes de todos aqui. Assim, fica a minha gratidão a todos aqueles que
compartilharam de minhas angústias e alegrias acadêmicas.
RESUMO
Este estudo procura analisar as experiências de escravos presentes em documentos cartoriais
do século XIX, mais precisamente nas últimas décadas do sistema escravista (1869-1888). O
palco de escravos como Joana, Anacleto, Martinha, Miguel e outros citados ao longo deste
trabalho é localizado no Sertão Baiano, numa cidade caracterizada no período estudado, pela
pequena propriedade e uma economia voltada para a subsistência, ou seja, Conceição do
Coité. É nesse contexto, que os cativos conviviam com a escravidão diária e consequente
expectativa de separação dos seus próximos, principalmente dos membros da família através
das negociações de seus senhores. Todavia, esses mesmos cativos também sonhavam com a
liberdade e, para alcançá-la utilizavam estratégias de submissão, conquistando a alforria, seja
gratuita, quando a obediência era uma das formas utilizadas, ou ainda sob condição. Outra
forma de chegar à liberdade era também negociando e comprando-a com suas economias
diárias, chamadas de pecúlio. Para realizar esta investida foram pesquisados documentos
cartoriais, como as escrituras de compras e vendas, as cartas de liberdade e as procurações. A
partir do diálogo com estas fontes, foi possível perceber que os cativos de Conceição do Coité
utilizaram-se de estratégias para sobreviver num sistema marcado pela dominação senhorial e
a possibilidade de conquistar a liberdade tanto particular como de sua família formada dentro
do cativeiro.
Palavras-chave: Alforrias. Compras e vendas. Escravidão. Família escrava. Liberdade.
ABSTRACT
This study analyzes the experiences of slaves present in notarial documents of the nineteenth
century, more precisely in the last decades of the slave system (1869-1888). The stage of
slaves as Joan, Anacleto, Martinha, Miguel and others cited throughout this work is located in
the backlands of Bahia, a city characterized the period studied, the small property and
asubsistence-oriented economy, ie the Coité Conceição. It is in this context that the captives
coexisted with slavery and the consequent expectation of daily separation from their
neighbors, especially family members through negotiation of their masters. However, these
same captives also dreamed of freedom and to achieve it used strategies submission, winning
manumission, is free, when obedience was one of the ways used or provided. Another way to
get freedom was also negotiating and buying them with their daily economies, called annuity.
To carry out this attack were screened notary documents, such as deeds of purchases and
sales, letters of freedom and powers of attorney. From the dialogue with these sources, it was
revealed that the captives were used Coité Conceição of strategies to survive in a system
marked by the domination of master and the possibility of winning freedom both privately
and his family formed within the captiver.
Keywords: Manumission. Purchases and sales. Slavery. Slave family. Freedom.
LISTA DE TABELAS
Tabela 01- Quantidade de escravos por sexo – Censo 1872.....................................................18
Tabela 02- Quantidade de escravos por sexo (1869-1888).......................................................19
Tabela 03 - Escravos comercializados por faixa etária e sexo, Coité (1869-1888)..................20
Tabela 04 - População escrava por cor - Censo de 1872..........................................................21
Tabela 05- População livre por cor - Censo de 1872................................................................22
Tabela 06 - Classificação da cor a partir das escrituras de compra e venda (1869-1888)........22
Tabela 07 - Preço médio dos escravos comercializados por faixa etária e sexo (1869-1888)..25
Tabela 08 - Condição das alforrias (1869-1888)......................................................................35
Tabela 09- Estado civil da população livre- Censo de 1872....................................................53
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO......................................................................................................................08
CAPÍTULO I: CONCEIÇÃO DO COITÉ: CENÁRIO DE ESCRAVIDÃO..................13
1.1 Negócios da escravidão.....................................................................................................16
1.2 Sexo, idade e cor dos escravos..........................................................................................17
1.3 Quanto custava um escravo em Conceição do Coité?.......................................................24
1.4 Ocupações dos escravos....................................................................................................26
1.5 Doações de escravos..........................................................................................................28
1.6 Quem vendia e comprava escravos?..................................................................................28
CAPÍTULO II: A CONQUISTA DA LIBERDADE...........................................................31
2.1 A carta de alforria: Documento com fundamento legal......................................................31
2.2 Tipos de alforrias................................................................................................................34
2.3 Alforrias gratuitas: “Passo esta de minha livre vontade”....................................................40
2.4 Além das cartas de alforrias................................................................................................41
2.5 Manifestações de resistências.............................................................................................43
CAPÍTULO III: ALIANÇAS DE AMOR............................................................................46
3.1 A força de um amor............................................................................................................49
3.2 Os laços oficializados.........................................................................................................52
3.3 Unidos sob condições desiguais.........................................................................................58
3.4 Ligados pelo amor materno................................................................................................61
CONSIDERAÇÕES FINAIS.................................................................................................65
REFERÊNCIAS......................................................................................................................67
INTRODUÇÃO
O trabalho ora proposto foi pensado como um meio de conhecer e problematizar as
nuances da história de Conceição do Coité, sobretudo relacionado a escravidão. Assim, o
objetivo deste trabalho é conhecer o perfil dos escravos de Conceição do Coité no século
XIX, as situações a que eram envolvidos, e as consequências para os mesmos das relações
escravistas a que eram submetidos.
Em 13 de maio de 1888, com a assinatura da Lei Áurea, o Brasil encerrou um período
de trezentos anos de regime escravista. Como última nação ocidental a abolir o sistema
escravocrata, cem anos depois, em 1988 comemorou-se o centenário da abolição com festas e
com uma chuva de propostas para que a questão racial fosse repensada e também fossem
adotadas novas posturas para a valorização da cultura afro e dos descendentes de escravos.
Naquele momento, surgiu uma quantidade considerável de obras sobre a temática da
escravidão. Segundo Schwartz, durante cerca de um ano, escravidão e raça chamaram a
atenção dos autores brasileiros de maneira como jamais havia acontecido no Brasil
(SCHWARTZ, 2001).
Durante um período bastante extenso, a historiografia brasileira se embasou em
análises e estudos que tratavam o negro como um ser passivo, submisso, incapaz de lutar e
alcançar conquistas, ou seja, vítima de um sistema. Em outros momentos eram vistos como
rebeldes que ameaçavam a ordem de uma sociedade patriarcal e branca. Assim, segundo
Rodrigues durante boa parte do século XIX o negro foi deixado à margem da história do
Brasil e, quando incluído, seus valores e cultura eram considerados negativos (RODRIGUES,
2008).
A partir da década de 30 os estudos historiográficos brasileiro tomaram um novo rumo
com a elaboração de trabalhos inovadores tanto na utilização de novas fontes, como a
imprensa e a oralidade, quanto na tentativa de desenvolver uma visão positiva no tocante a
miscigenação da população brasileira. Essa nova geração, denominada “Geração de 30” 1,
teve uma contribuição importante neste processo. Como marco disso, pode-se citar Casa-
Grande e Senzala de Gilberto Freyre, onde ele defendeu que “a relação entre escravos e seus
senhores poderiam ser harmônicas e mais suaves do que poderia se pensar.” (LACERDA,
2008, p. 13).
1Geração de 30: Sergio Buarque de Holanda, Gilberto Freyre e Caio Prado Júnior.
9
Muitos autores contestaram esta visão paternalista de Freyre, entre estes merece
destaque Caio Prado Júnior que discorda no que diz respeito à visão positiva proposta em
Casa-Grande e Senzala sobre a questão de uma “civilização” benéfica entre escravos e
portugueses. Prado ainda acrescenta teor negativo nesta discussão, indo mais longe, quando
afirma: “se o negro traz algo de positivo, isto se anulou na maior parte dos casos, deturpou-se
em quase tudo mais”, dizia ele, “o escravo enche o cenário”, pois o trabalho cativo “não lhe
acrescentará [ao negro] elementos morais; e pelo contrário, degradá-lo-á, eliminando mesmo
nele o conteúdo cultural que porventura tivesse trazido do seu estado primitivo” (SLENES,
1999, p. 29-30).
Nas décadas de 1960-1970, surgiu um novo grupo de escritores interessados no tema
escravidão. Desta vez, foram os sociólogos, integrantes da “Escola Paulista”. Dentre estes,
pode-se citar Florestan Fernandes, Fernando Henrique Cardoso e Paula Beiguelman. Estes
não se preocuparam com o sistema em si e detiveram a atenção nas consequências do
escravismo na economia e na sociedade. Suas visões acabaram sendo mais negativas do que
as de Freyre. Florestan Fernandes, ao centrar seu estudo na família escrava, reduziu o cativo a
um ser incapaz de estabelecer laços de parentesco estáveis, dependendo assim, da vontade e
decisão do seu senhor (SCHWARTZ, 2001).
Nesta mesma linha de pensamento, Fernando Henrique Cardoso, empenhou-se em
passar a imagem do negro como um ser desprovido de forças, passivo, e por isso mesmo,
incapaz de atuar e modificar sua própria história. Ele coisificou o negro de tal forma que a
vida deste seria regida pelas decisões dos seus senhores, e mesmo que houvesse algum tipo de
reação, isso de maneira nenhuma causaria mudanças na ordem estabelecida.
No entanto, foi na década de 1980 que a historiografia brasileira passou por mudanças
marcantes, tanto no que diz respeito a utilização de fontes, quanto, principalmente, a um novo
olhar sobre os objetos de estudo. A geração de historiadores de 80 foi fortemente influenciada
pela Terceira Geração da Escola dos Annales, o que possibilitou novos olhares, inovações,
abordagens e métodos sob o olhar da Nova História Cultural e das Mentalidades.
A partir de tais inovações, o cotidiano de grupos até então excluídos da história, bem
como suas formas de luta e resistência, passou a ter destaque na produção historiográfica,
principalmente no que se refere ao escravismo brasileiro. Dessa forma, sujeitos que antes
eram analisados como passivos ganharam voz e passaram a ser vistos como ativos que
usavam as ações do cotidiano como meio de luta, resistência às imposições senhoriais e ao
próprio sistema. Entre as pesquisas que tratam da escravidão, merecem considerável destaque
10
as obras de Kátia Mattoso, dando atenção especial às famílias formadas por escravos e ex-
escravos, o que a consagrou como referência para outros estudos sobre o tema no Brasil
(MATTOSO, 1988, 1992, 2003).
Acerca da resistência escrava, um trabalho que merece todo mérito é o de João José
Reis, autor baiano da historiografia da escravidão que, de forma brilhante, trata o escravo
como ser atuante que negociava e reelaborava suas formas de resistência utilizando para tanto
os meios oferecidos pela própria escravidão. Reis foge da velha dicotomia senhor vilão versus
escravo vítima (REIS, 1989). Sobre as estratégias dos escravos, ele diz o seguinte:
[...] a luta dos escravos nos engenhos ou fazendas, não se esgotavam na defesa de
padrões materiais de vida, mas incluíam, no mesmo passo, a defesa de uma vida
espiritual e lúdica autônoma. (...) Quando a negociação falhava, ou nem chegava a se
realizar por intransigência senhorial ou impaciência escrava abriam-se os caminhos da
ruptura. A fuga era um deles. Os escravos fugiam pelos mais variados motivos: abusos
físicos, separação de entes queridos por vendas ou transferências inaceitáveis ou o
simples prazer de namoro com a liberdade. Conhecedores das malhas finas do sistema
escapavam muitas vezes já com intenção de voltar depois de pregar um “susto” no
senhor e, assim, marcar espaço de negociação no conflito. (REIS; SILVA, 1989, p. 8-
9)
Além dos trabalhos de Kátia Mattoso e José Reis, vários outros têm ampliado a
historiografia baiana sobre a escravidão. Neste cenário merece ênfase a obra de Walter Fraga
Filho que acompanha a trajetória de escravos e ex-escravos nas últimas décadas da
escravidão. Seu cenário é o Recôncavo Baiano e, para tanto, ele trabalha com um número
considerável de fontes e faz o que chama de ligação “nominativa”, ou seja, o cruzamento das
fontes utilizadas. Com isso, ele conseguiu reconstruir histórias de escravos e libertos contando
suas experiências na escravidão, luta pela libertação e as trajetórias de muitos ex-escravos
após o fim do cativeiro (FRAGA FILHO, 2006).
Diante do exposto acima é perceptível o grande interesse de pesquisas na área de
escravidão e a variedade de objetos de estudo dentro desta temática. Outra obra relevante é a
de Robert W. Slenes, Na senzala, uma flor, o qual fez um importante estudo sobre a formação
da família escrava e, para tanto, considerou as recordações dos libertos de Campinas, São
Paulo (SLENES, 1999).
Todavia, mesmo considerando a “chuva” de obras sobre a escravidão no Brasil, é
preciso atentar para onde se concentra a maioria destes estudos. A maior parte deles se baseia
em vidas de escravos do sudeste do país, onde estavam localizadas as grandes áreas agrícolas
cujo processo da escravidão se intensificou ainda mais.
No tocante a Bahia, muito do que se tem escrito é sobre Salvador e o Recôncavo
Baiano. Com relação ao Sertão, mesmo considerando os avanços, é preciso salientar que
11
ainda requer outras tantas investidas. Sobre o sertão baiano, muito contribuíram os autores
Erivaldo Fagundes Neves, Iara Nancy Rios, Ana Paula Trabuco, Kátia Lorena Novais
Almeida e Maria de Fátima Novais Pires2. Além destes, há outras pesquisas em forma de
monografias que, direta ou indiretamente, trazem discussões sobre esta temática em seus
trabalhos.
Iara Nancy Rios em seu trabalho sobre Conceição do Coité, discute várias questões
sobre o poder e a política. Nele, ela trata de alguns aspectos da escravidão, como compra e
venda de escravos e cartas de alforrias. Logo na introdução, ela traz afirmações alarmantes
sobre Coité: “Neste cenário, os senhores orgulhosos e satisfeitos alegavam, aqui nunca houve
escravidão. Coité é a cidade do bem servir!”, “Cidade promissora e da modernização” (RIOS,
2003, p. 13). Estas afirmações soam estranhas quando se observa a existência de comunidades
antigas afastadas do centro, constituídas em sua maioria por negros, e, em algumas, ainda
conservam elementos da cultura afro. Outro dado que desmorona tais afirmações é a
existência de documentos cartoriais do século XIX que constam o registro da presença de
escravos e situações relacionadas a eles.
Para percorrer os passos desses cativos, fez-se necessário a utilização de fontes
documentais primárias encontradas no acervo do Centro de Documentação da UNEB –
Campus XIV. Ao realizar um levantamento de tais documentos foi possível encontrar
Escrituras de compras, vendas e doações de escravos3, o que possibilitou reconstruir o perfil
dos cativos em relação a nome, idade, cor, proprietário, comprador, e a forma como o
proprietário conseguiu obter o escravo. Em alguns casos, foi possível também detectar o nome
da mãe, a ocupação e algumas características específicas.
Outros documentos encontrados e pesquisados foram as Cartas de Liberdade4. Foram
encontradas 21 cartas de alforrias registradas em Cartório em meio à documentação. Esta
quantidade apontada não significa que apenas 21 escravos alcançaram a liberdade, pois outras
fontes utilizadas mostram um número muito maior de investidas em prol da liberdade por
parte dos cativos. Nas cartas de liberdade foram encontradas informações como nome, cor,
2 NEVES, Erivaldo Fagundes. Uma comunidade sertaneja: da sesmaria ao minifúndio (um estudo de história
regional e local). Feira de Santana: UEFS, 2008; RIOS, Iara Nancy Araujo. Nossa Senhora da Conceição do
Coité: poder e política no século XIX. Dissertação ( Mestrado em História) Salvador: UFBA, 2003; LACERDA,
Ana Paula Carvalho Trabuco. Caminhos da liberdade: a escravidão em Serrinha – Bahia (1868-1888).
Salvador: UFBA, 2008; ALMEIDA, Kátia Lorena Novais. Alforrias em Rio de Contas, século XIX. Salvador:
UFBA, 2006; PIRES, Maria de Fátima Novaes. Fios da Vida: tráfico internacional e alforrias nos Sertoins de
Sima- BA (1860-1920). São Paulo: Annablume, 2009. 3 Centro de documentação Histórico da UNEB. Anos 1869-1888.
4 Centro de Documentação da UNEB– (1869-1888)
12
condição da alforria, preço, nomes do casal proprietário, matrícula, e em alguns casos, o
estado civil e quando gratuita e/ ou sob condição o motivo pelo qual foi alforriado.
Neste percurso também foram encontradas algumas procurações com o objetivo de
receber valores em dinheiro da Tesouraria Provincial pela libertação de escravos pelo Fundo
da Emancipação. Tais documentos muitas vezes respondem lacunas existentes nas demais
fontes, como o estado civil, cor, idade e, principalmente, nomes dos cônjuges. Entre estas
procurações também foi encontrada uma que fazia menção a uma ação de liberdade que
propôs um escravo contra seu senhor e a investida de captura de duas escravas que haviam
fugido.
Conhecer as situações vividas pelos escravos de Conceição do Coité não é uma tarefa
fácil, devido à falta de informações mais detalhadas e expressivas sobre estes. Mas, em alguns
casos, foi possível encontrar relatos do mesmo escravo em momentos diferentes. Ao cruzar as
informações trazidas nas fontes foi possível também reconstituir “famílias” formadas por
mães e filhos, esposa e esposo e num caso específico formada pelos cônjuges e por seus
filhos.
A partir das análises das fontes e diálogo com autores que discutem o mesmo tema,
este trabalho é dividido em três capítulos. No primeiro, intitulado Conceição do Coité:
Cenário de escravidão, apresento as principais características da cidade, na época Freguesia
de Feira de Sant‟Anna, região localizada no sertão baiano com uma economia voltada para a
subsistência. Ainda neste capítulo serão apresentados dados da população livre e cativa da
época; bem como características dos proprietários dos escravos. Também problematizo dados
sobre a quantidade e perfil dos cativos, para conhecer quem foram e por quais senhores estes
passaram até 1888. No segundo capítulo, analiso as cartas de liberdade e as procurações que
tratam sobre a libertação de alguns cativos, com suas possibilidades e lacunas existentes, mas
que dizem muita coisa. O terceiro e último capítulo: “Alianças de amor” faço uma discussão
sobre os dados encontrados a partir do cruzamento das fontes, apresentando nomes e
informações sobre os escravos e seus familiares que aparecem nos documentos.
13
CAPÍTULO I- CONCEIÇÃO DO COITÉ: CENÁRIO DE ESCRAVIDÃO
O município de Conceição do Coité está localizado numa área de 1.798 km2, sendo
situado no Nordeste Baiano e incluído no polígono das secas. Tem como municípios vizinhos
Santa Luz, Queimadas, Barrocas, Serrinha, Araci, Riachão do Jacuípe, Retirolândis e Ichu.
Está a uma distância de 240 km da capital Salvador e é composto por cerca de 63 mil
habitantes5 .
A ocupação de Conceição do Coité se deu a partir da concessão das sesmarias, numa
região denominada como Sertão dos Tocós. As sesmarias eram concedidas pelos
governadores gerais a latifundiários, com o objetivo de que áreas inabitadas fossem povoadas
e cultivadas. Estas sesmarias favoreceram a ocupação de áreas inexploradas e consequente
povoamento das mesma s.
A partir destas concessões, o governo português concedeu grandes sesmarias no Sertão
da Bahia no século XVII. Dentre as sesmarias concedidas nesta região, estava a sesmaria dos
Tocós, pertencendo aos filhos de Antonio Guedes e D. Felipa de Brito-declarado pelos
mesmos em14 de dezembro de 1612. Em 1676, um dos netos do casal citado, Antonio Guedes
de Brito, tornou-se através de herança de seu pai e doação de parentes, dono de algumas
sesmarias, incluindo as fazendas dos Tocós. Antonio Guedes de Brito recebeu o título de
Conde do Estado Português, sendo chamado a partir desta graça de Conde da Ponte. Um dos
maiores problemas da sesmaria dos Tocós era as condições climáticas. Por se localizar no
sertão, as secas eram constantes e em 1676, Antonio Guedes de Brito fez uma declaração que
enfoca muito bem as condições de estiagem no Sertão dos Tocós: “[...] e sendo de mais de
quarenta não achar sítio algum que pudesse cultivar-se, nem em todo tempo se pode passar
por falta da dita água [...] e também [...] por serem os ditos tocós muito faltos de água,
haverem muitos matos, caatingas infrutíferas[...].” (RIOS, 2003, p. 20-21)
O sexto Conde da Ponte, João de Saldanha da Gama Melo Torres Guedes de Brito,
organizou um exército particular para descobrir e tomar posse de terras do sertão baiano e foi
com o uso de tal força que conseguiu expulsar os índios e tomar posse das terras (BARRETO,
2004). Com a expulsão destes índios denominados “Tocós” (daí o nome da sesmaria), este
Conde da Ponte organizou fazendas para criação de gado e abriu estradas para facilitar as
5 Dados obtidos do Censo de 2010.
14
viagens com boiadas. Apesar da expulsão dos índios, na Sesmaria dos Tocós não foi
estabelecida nenhuma fazenda devido às condições climáticas desfavoráveis da região.
No século XVIII o Sertão dos Tocós era conhecido como Pindá e deste fazia parte as
fazendas Tambuatá, Serrinha, Sacco do Moura, Massaranduba, Pindá e Cuyaté. No final deste
mesmo século, o último Conde da Ponte faleceu e, seus filhos, aos poucos, foram dissolvendo
a sesmaria entre os seus descendentes. Neste processo de desenvolvimento, várias fazendas de
gado foram estabelecidas nesta região. (RIOS, 2003)
Um desses sítios foi adquirido por Teófilo da Mota, o denominado Pindá. Mais tarde,
com a morte de Teófilo, as terras do Sítio Pindá foram divididas entre seus herdeiros e assim
surgiram novas denominações para estas terras. Da primeira divisão surgiram Pindá, Bocca de
Caatinga, Berimbau e Fazenda Nova. Mais tarde, surgiram subdivisões: Bocca de Caatinga
dividiu-se em Bocca de Caatinga, Campinas e Gangorra; a Fazenda Berimbau transformou-se
em Berimbau, Angico e Algodões. Havia também a Fazenda Santa Rosa e esta foi subdividida
em Santa Rosa, Paulista e Floresta; A Fazenda Nova, por sua vez, foi dividida em Fazenda
Nova, Pedra Branca, Cavalo Morto, Santa Cruz, Itapororocas e finalmente as terras
denominadas de Arraial do Coité.
Neste cenário, onde surgiram as fazendas citadas acima, estava a Fazenda Coité, que
foi negociada pelos herdeiros dos Guedes chegando até o domínio do proprietário Joaquim de
Souza Benevides que após comprar as partes de D. Maria Carvalho da Cunha e Manoel
Antonio dos Santos, conseguiu unificar as terras.
Conceição do Coité também aparece em alguns trabalhos regionais como pasto
excelente para o gado e ponto de descanso para viajantes que seguiam em direção às minas de
Jacobina. Com a descoberta das minas do Rio de Contas e Jacobina no século XVII, houve a
necessidade de abrir novas estradas; e nesse percurso, a Freguesia de Nossa Senhora da
Conceição do Coité tornou-se ponto de repouso. Sobre isto, Vanilson Oliveira diz o seguinte:
Uma dessas estradas, abertas por Garcia d‟Avilla e outros, grandes criadores
de gado no Alto Sertão, entre os anos de 1654 e 1698, para condução de suas
boiadas, é retificada e melhorada pelo Coronel Pedro Barbosa Leal, em 1720,
quando fundou a vila de Santo Antonio de Jacobina, cortava o Sertão dos
Tocós, também chamado do Pindá, onde ficava o arraial de Água Fria, e as
fazendas do Sacco do Moura, Serrinha, Tambuatá, Massaranduba, Pindá,
Coité. Etc. Em Serrinha tomava as direitas pela Fazenda Raso, hoje vila
Aracy, para Geremoabo e Pontal no Rio São Francisco, e no Tanque do
papagaio, adiante de Cuyaté[...] (OLIVEIRA, 2002, p.11).
Ainda no século XVIII, por volta de 1756 tiveram início as obras da capela de Nossa
Senhora da Conceição do Coité, construída nas terras doadas por João Benevides à santa de
sua devoção. Mais tarde, esta capela foi doada à Igreja Católica juntamente com uma área de
15
terra. A construção desta capela foi um fato marcante para o surgimento do arraial no século
XIX, no mesmo momento em que foi criado o Município de Jacobina em 25 de maio de 1847,
por Dom Antonio Inácio de Azevedo, Vice- presidente da Província da Bahia. Junto com a
criação de Jacobina, surgiu também a Freguesia de Nossa Senhora do Riachão do Jacuípe
integrando as capelas de Nossa Senhora do Gavião e de Nossa Senhora da Conceição do
Coité.
Com o passar do tempo, a Fazenda Coité ganhou desenvolvimento devido a sua
localização, e assim houve a organização de uma feira livre realizada nos dias de sexta-feira.
Nesta feira eram comercializados escravos, animais e cereais, e os produtos que sobravam
eram enviados a Feira de Santana para serem vendidos na feira de lá no dia de segunda. Fica
claro que a escolha do dia da feira de Coité foi estratégica (GORDIANO, 2011).
Em 1808, após a morte de Joaquim Benevides, seu filho João Benevides, vendeu a
Fazenda Coité ao Sr. Manoel Mancio da Cunha e este, juntamente com sua família veio morar
nestas terras. Até cerca de 1855, a Fazenda Coité pertencia ao domínio de Água Fria,
deixando essa realidade quando alcançou a categoria de freguesia pela Resolução Provincial
de 09 de maio de 1888 sob o nº 539. A partir deste momento, Coité passou a pertencer a Villa
de Feira de Sant‟Anna. Com a fundação da Freguesia de Nossa Senhora da Conceição do
Coité, foi regida sua primeira delimitação territorial no 2º artigo da Resolução,
A nova Freguesia se limitará da maneira seguinte: Pelo sul, começará a
limitar com a Freguesia de Riachão do Jacuípe pelo rio Tocós, seguindo por
este abaixo a Fazenda Poços e desta ao Rio Jacuípe, passando pelas Fazendas
Poço de Cima, Getiranas, Almas e Lage de Dentro. Pelo norte e noroeste, se
extremará com a Freguesia de Queimadas pelo Rio Jacuípe, seguindo por este
acima até Cachoeirinha, a margem do mesmo rio, d‟ahi em linha recta, até a
Fazenda Baixa da Madeira na estrada do Piauhi, desta a Fazenda Morro do
Lopes e Serra Branca; e desta a Fazenda Trindade e desta pela estrada direita
a Fazenda Pedra Alta. Pelo leste, se limitará com Tucano pela Fazenda
Capim, até o Rio Poço Grande e por este acima até a Fazenda do mesmo
nome. Pelo sueste, extremará com a Freguesia da Serrinha pela Fazenda Serra
Vermelha e Salgada na estrada da Serrinhae d‟ahi se encontrar com o Riacho
Pau-a-Pique e por este até o ponto divisório do rio Tocós (RIOS, 2003, p. 24-
25).
Em 1890, a Freguesia de Nossa Senhora da Conceição do Coité é desmembrada da
Vila de Feira de Sant‟Anna pelo Ato Estadual de 18 de dezembro, ficando, assim, ligada a
Vila de Nossa Senhora de Riachão do Jacuípe, porém, apenas em termos eclesiásticos.
Todavia, em 1931, Coité volta a integrar o Município de Riachão por conta da Lei de
organização municipal que suprimiu municípios com menos de 20 mil habitantes e
arrecadação insuficiente.
16
Coité conseguiu se restabelecer em 1933, quando o governador da Bahia, Juracy
Magalhães concedeu através do Decreto de nº 8.528 de 07 de julho do ano citado. Em 30 de
maio de 1938 a antiga freguesia é elevada à categoria de cidade pelo decreto de nº 10.724.
Ao analisar a história da formação de Coité, foi possível identificá-la como uma
sociedade em constante construção com modelos e relações singulares, onde evidenciam suas
particularidades, estando articulada com o processo de formação da nação brasileira. Assim,
faz-se necessário afirmar que quando se escreve a história da região dos Tocós, mais
especificamente a de Coité, não se faz apenas uma história a nível regional, mas,
principalmente, é acrescentado um capítulo na história do Brasil.
1.1 – Negócios da escravidão
O Brasil conviveu com a escravidão por cerca de 300 anos de sua história. Em cada
província do país, seja caracterizada por grande produção agrícola, seja por pequenas
freguesias, houve a presença da escravidão nas relações diárias de seus habitantes. No censo
realizado no ano de 1872, a província da Bahia ocupava a quarta posição em número de
escravos. Mas, a maior concentração destes estava no Recôncavo Baiano e na própria capital.
Porém, como já apontaram alguns escritores, o Sertão Baiano também foi palco de ações de
resistência e luta de cativos, e assim como bem colocam João José Reis e Flávio Gomes, a
escravidão penetrou cada um dos aspectos da vida brasileira e onde houve escravidão, houve
resistência. E de vários tipos (REIS; GOMES, 1996).
A Freguesia de Nossa Senhora da Conceição do Coité também foi espaço vivenciado
por escravos, e suas presenças ficaram registrados em documentos legais do século XIX.
Assim, as escrituras de compras e vendas são documentos que, registrados em cartório,
transformam-se em ações de compra e venda sem possibilidade de revogação cm tempo
algum. No período de 1869 -1888 foram encontradas 70 escrituras de compra e venda de
escravos, contemplando crianças, jovens e adultos.
Estas escrituras chamadas de pública, já que podem ser consultadas por pessoas não
presentes nas negociações, apresentam um modelo formal, onde se encontra os nomes dos
envolvidos: o vendedor, comprador, data, informações particulares dos escravos, como: nome,
idade, cor, valor da compra, em alguns casos a ocupação e a forma como o proprietário
adquiriu o cativo. Contudo, com o passar dos anos, houve a exigência de matricular todos os
17
escravos, e assim, tais escrituras também apresentam alguns dados adicionais, como nome da
mãe, naturalidade, número e data de matrícula.
Ao analisar estas escrituras foi possível perceber o perfil dos escravos que viveram em
Coité nos últimos anos do sistema escravista. Também foi possível detectar algumas lacunas
deixadas pelo responsável pela sua escrita; em alguns casos, o escrivão deixou de registrar a
idade, a cor, e a forma como o escravo foi adquirido, se por meio de compra, de doação ou
por herança. Ao que parece, não havia regras específicas norteando as informações que
deveriam constar nestes documentos, pelo menos até 1872, ano da primeira matrícula de
escravos no Brasil.
É importante observar que a quantidade de negociações encontradas nos documentos
não encerra o número de escravos comercializados em Conceição do Coité, pois é preciso
considerar que muitas compras e vendas podem não ter sido oficializados em cartório,
ocorrendo apenas de forma verbal entre os moradores da mesma freguesia, principalmente
para fugir da cobrança de impostos e até pela localização da mesma, distante das grandes
áreas escravistas. Nesse sentido, a documentação apresenta somente algumas facetas dos
negócios da escravidão. Assim, se faz necessário afirmar que tais documentos têm grande
relevância para a construção de histórias locais e de povos que permaneceram sem voz
durante séculos, e que foram agentes de transformações nos rumos que a história do Brasil
tem tomado nos últimos anos.
1.2 – Sexo, idade e cor dos escravos
Em 31 de dezembro de 1869, compareceram ao cartório da Freguesia de Nossa
Senhora da Conceição do Coité, Termo da Villa de Feira de Sant‟Anna, as partes outorgantes:
como vendedor, Florêncio José da Cunha e, como comprador, José Braz Lopes. O objetivo
dos outorgantes era registrar uma escritura de compra e venda da escrava de nome Joana, com
idade de sete anos, pelo preço e quantia de quatrocentos mil réis [...].6 Joana é uma dos 74
escravos encontrados na leitura dos registros de compra e venda. Percebe-se que o escrivão se
preocupou em apresentar uma descrição da cativa com nome, idade e o valor atribuído a
mesma.
Assim como Joana, muitos outros escravos viveram neste pedaço do sertão baiano na
segunda metade do século XIX, região esta caracterizada por uma economia de policultura
6 Centro de Documentação da UNEB, Escritura de compra e venda - LIVRO DE NOTAS nº 01 (1869- 1875) p. 15
18
conectada a um mercado regional. Dessa forma, foi possível perceber que a escravidão
convivia paralela a pequena propriedade e a meação, evidenciando que as características da
relação escravista em Coité se diferenciavam daquelas do Recôncavo, onde predominava
grandes propriedades agrícolas com extensos plantéis de cativos. Walter Fraga Filho, em
estudo sobre o Recôncavo aponta esta diferenciação, afirmando que 90% dos engenhos
concentravam-se em áreas rurais e a maior parte das terras cultiváveis era usada para o
funcionamento de engenhos, e principalmente, era também a mais densamente povoada e a
que concentrava maior número de escravos: 35,7% em relação a população cativa da
província (FRAGA FILHO, 2006).
Os resultados do censo de 1872 realizado no Brasil dão uma ideia da quantidade de
cativos existentes na Freguesia de Nossa Senhora da Conceição do Coité, como mostra a
tabela abaixo,
Tabela 01- Quantidade de escravos por sexo- censo 1872
Homens Mulheres
140 147
TOTAL: 287
Observando os dados da tabela, alguns pontos chamam a atenção. O total de escravos
declarado é bem pequeno quando se compara a outras freguesias no mesmo período. A
veracidade do resultado deste censo é cercado de desconfianças. Em estudo sobre Campinas,
Slenes examinou a confiabilidade dos dados apresentados sobre os cativos no censo e o
número de matriculados entre 1872-1873. Ele percebeu que o número de escravos
matriculados era superior ao número informado pelo censo, mas com uma diferença de apenas
3% (SLENES, 1983). Se partilharmos desse dado, provavelmente a quantidade real de
escravos era maior do que a lançada no censo.
Outro autor que também sinalizou certa desconfiança em relação aos dados do censo
de 1872 foi Erivaldo Fagundes Neves em seu estudo sobre o Município de Caetité. Ao
analisar os dados do Censo Paroquial de 1862, ele percebeu que havia um total de 8.762
habitantes dos quais 1.575 eram escravos. Fazendo uma comparação com o Censo de 1872
que registrou na mesma freguesia, um total de 17.836 habitantes e apenas 1058 escravos, ou
seja, 5,996 da população, verificou um declínio de 32,8% dos cativos enquanto a população
total crescera 115,6%. Portanto, uma taxa excessivamente elevada. Para o autor, esse
confronto entre os dois resultados evidencia a imprecisão dos dados (NEVES, 2000).
19
A quantidade de 287 escravos em Conceição do Coité declarados pelo Censo de 1872
pode ser considerada muito pequena se levados em conta a população total de 4.186
habitantes, mas ao analisar a população total, surgirão alguns questionamentos apresentados
na categoria cor. No que diz respeito ao sexo, foi possível observar que havia uma
equivalência entre homens e mulheres, havendo uma diferença de apenas 07 mulheres a mais
que homens.
Um caso semelhante ao de Coité é o descrito por Ana Paula Lacerda, em seu estudo
sobre a escravidão em Serrinha. Ela encontrou nos resultados do censo de 1872 a quantidade
de 739 escravos dentre uma população total de 3.726 habitantes. Assim, a porcentagem de
cativos era de 20% (LACERDA, 2008). Dessa forma, mesmo Coité contando com uma
população maior que a de Serrinha, o número de cativos declarado foi bem menor.
Nas escrituras pesquisadas entre os anos de 1869-1888 foram encontrados:
Tabela 02 – Quantidade de escravos por sexo
Sexo Quantidade
Homens 35
Mulheres 34
Não identificados 57
Total 74
A quantidade declarada acima não pode servir como dados de comparação com os
resultados do censo, pois são recortes diferenciados, relacionados às informações encontradas
em documentos específicos. Mas, mesmo trabalhando com dados reduzidos percebe-se que o
interesse em comprar homens e mulheres também era equilibrado, pois foram negociados 35
homens para 34 mulheres num mesmo período, com uma mínima diferença de 01 homem a
mais.
Alguns estudos apontam um número maior de mulheres comercializadas que homens.
Esta situação foi encontrada por Fraga Filho que, ao pesquisar a quantidade de cativos por
sexo nos engenhos do Conde, constatou que havia 45 homens e 60 mulheres; No engenho
Pitinga foram encontrados 60 homens e 67 mulheres. Ainda segundo Fraga, “esse aumento no
número de mulheres foi uma mudança percebida no decorrer do século XIX, pois anterior a
7 Essa quantidade está relacionada a vendas de crianças junto com as mães, que eram descritas nos documentos
como “crias”.
20
este período havia excesso de escravos homens trabalhando na lavoura açucareira” (FRAGA
FILHO, 2006, p. 34).
Uma maioria de homens ainda foi percebida em algumas áreas do Brasil neste
período; este foi o caso de Capivary, região rural do Rio de Janeiro, atual município de Silva
Jardim, pesquisado por Hebe Maria Mattos de Castro, onde ela percebeu nos inventários o
registro de544 homens e 505 mulheres. “O censo de 1872 registrou no geral um variante
muito maior, 2.056 homens para 1.847 mulheres, isto num período de crise do trabalho servil,
quando a população escrava daquela região passava por um expressivo decréscimo”
(CASTRO, 2009, p. 37). A situação desta região era semelhante a de Coité no que diz respeito
a presença de pequenos proprietários rurais, donos de poucos escravos.
No tocante a equivalência encontrada em Coité, alguns fatores locais podem explicar
estes números, como por exemplo, tanto homens quanto mulheres desempenhavam as
mesmas funções, ou seja, realizavam as mesmas atividades nas áreas rurais e mesmo assim, as
mulheres eram avaliadas com preços menores que os dos homens, e estas ainda
possibilitavam o aumento do contingente de escravos com as suas “crias”.
A tabela abaixo mostra outros pontos que auxiliam na caracterização dos escravos de
Coité de acordo com o sexo e a idade.
Tabela 03- Escravos comercializados por faixa etária e sexo- Coité (1869-1888)
Faixa etária Homens Mulheres Total
Menores de 10 10 12 22
10 a 14 4 3 7
15 a 39 15 14 29
40 a 59 1 2 3
60 ou mais __ __ __
Sem registro 5 3 8
TOTAL 35 34 698
A tabela acima mostra que dos 74 escravos que aparecem nas escrituras de compra e
venda a maior quantidade destes está na faixa etária economicamente ativa; 29 escravos
tinham entre 15 a 39 anos. Ainda dentro desta faixa etária houve um relativo equilíbrio entre o
número de homens – 15, e o de mulheres - 14. Dado semelhante a este, também foi 8 O número reduzido a 69 está relacionado a vendas de menores, denominados nas escrituras como “crias” e,
portanto, não teve como identificar o sexo e a idade.
21
encontrado em Capivary, onde foi constatado “que 50% dos escravos estavam em idade
produtiva, entre 15 e 40 anos de idade” (CASTRO, 2009, p. 37).
Outro dado que a tabela aponta é o número de menores de 10 anos, totalizando 22
crianças escravas. As fontes mostraram que dentre esta quantidade, 08 foram obtidas por cria
das escravas dos proprietários. Este é o caso de Esculástica, parda, com menos de 04 anos,
“vendida aos quatro dias do mês de março de 1870 pelo seu proprietário José Antonio Lopes a
Theodozio por 300$00 mil-réis”. O vendedor José declara na escritura sobre a origem da
cativa que “a houve por cria de sua escrava Vicência.” 9
Dentre as 22 crianças que aparecem,
06 foram adquiridas por compra, 01 foi obtida por meio de herança, 07 por meio de doações e
em 05 notas não é especificado.
É preciso ressaltar que foram encontrados cinco casos de escravas crianças sendo
comercializadas junto com as mães. Este foi o caso de Bernarda, crioula, 25 anos, vendida em
16 de março de 1872 junto com suas duas crias: Custódia, crioula de 04 anos e Josefa, crioula
com 03 anos de idade.10
Esse número relativo de crianças encontradas também foi percebido no Recôncavo
Baiano. Lá a quantidade de menores de 10 anos ultrapassava as outras faixas etárias
representando uma porcentagem de 20,4% (FRAGA FILHO, 2006). Diferente do resultado de
Coité, onde o número de escravos em idade de 15 a 39 anos foi maior que os demais.
No que tange a faixa etária de 40 a 59 anos, a quantidade encontrada foi de apenas 05
escravos, evidenciando a perspectiva de que nesta idade o rendimento físico diminuía, devido
as duras jornadas de trabalho na roça, numa região castigada pela estiagem. Dessa forma
percebe-se que a escravidão, seja no recôncavo ou no sertão, era um sistema degradante com
condições subumanas de trabalho. Se a faixa etária de 40 a 59 já oferecia dificuldades para a
comercialização, a de 60 apresentava restrições ainda maiores, o que deixa isso claro é a
ausência de escravos com essa faixa etária sendo comercializados.
Além do sexo e idade, outro ponto observado nesse estudo foi a classificação da cor
dos cativos. E para animar a discussão trago os dados do censo de 1872 relativos a cor da
população cativa e também da livre. Observe as tabelas a seguir:
Tabela 04 - População escrava por cor- Censo de 1872
Cor Homens Mulheres Total
9 LIVRO DE NOTAS, nº 01 (1869-1785), p.23.
10 LIVRO DE NOTAS nº 01(1869-1875), p. 63-64
22
Pardos 62 59 121
Pretos 78 88 166
Ao analisar os resultados apresentados na tabela 04, foi possível identificar uma
maioria de escravos classificados como pretos. Ao que parece, o censo baseou-se em apenas
duas categorias de cor, pardos e pretos e o número de mulheres “pretas” era superior ao dos
homens, o que evidencia um pequeno desequilíbrio entre os sexos na questão da cor. Como
não foi apontada a origem étnica desses escravos classificados como pretos, possivelmente
eram brasileiros, pois constatei que neste período havia apenas 02 africanos arrolados nos
documentos. Sobre esta classificação os autores Manolo Florentino e José Roberto Góes
também encontraram em seu estudo sobre as famílias escravas e o tráfico atlântico no Rio de
Janeiro uma quantidade de 127 escravos identificados como pretos, presumivelmente
brasileiros, pois segundo estes autores, “o Censo Demográfico de 1872 denominou os
nascidos no Brasil como preto, substituindo o termo crioulo” (FLORENTINO; GÓES, 1997,
p. 114).
Tabela 05 - População livre por cor – Censo de 1872
Livres Homens Mulheres Total
Brancos 400 475 875
Pardos 470 801 1271
Pretos 681 788 1469
Caboclos 222 88 310
Os números apresentados acima revelam uma grande surpresa, pois o número de
“pretos” é muito superior ao de brancos, dado que revela um possível número de ex-escravos
morando nesta região. O que se percebe também a partir dos dados, é que a maioria da
população livre era constituída por pessoas de “cor”, pois somando os “pretos”, “pardos” e
“caboclos”, teremos um número muito superior ao dos brancos, formados apenas por 875
pessoas. No que diz respeito ao sexo, as mulheres são maioria entre os pretos, os pardos e
ainda os brancos. Apenas entre os caboclos é que os homens são maioria: 222, e as mulheres
totalizavam 88.
Tabela nº 06- Classificação de cor a partir das escrituras de compras e vendas (1869-
1888)
Classificação Nº de escravos
23
Preto 22
Pardo 13
Crioulo 11
Cabra 7
Fula 9
Africano 1
Indefinido 11
TOTAL 74
A tabela 06 mostra que os maiores grupos com relação a cor da pele foram os pretos,
com 22 casos encontrados; e os pardos com 13 escravos. Mas percebe-se que a população
cativa de Conceição do Coité no período abordado era formada por uma maioria de escravos
nascidos no Brasil, constando apenas um africano. As categorias pardo, crioula, fula e cabra
somaram um total de 40 escravos. Hebe Castro dá uma contribuição significativa na discussão
sobre a diferenciação racial. Segundo ela,
A designação de „pardo‟ era usada, antes, como forma de registrar uma
diferenciação social, variável conforme o caso, na condição mais geral de
não-branco. Assim, todo escravo descendente de homem livre (branco)
tornava-se pardo, bem como todo homem nascido livre, que trouxesse a
marca de sua ascendência africana- fosse mestiço ou não (CASTRO, 1995, p.
34).
Ao fazer esta discussão, Hebe Castro afirma que há uma necessidade de aprofundar
análises sobre a utilização dos qualitativos raciais e também sobre a quase inexistência do
termo “mulato”. Esta pesquisa também não encontrou nenhum caso de escravo declarado
como mulato. Na maior parte dos documentos, referentes a categoria cor, foi mais utilizado os
termos “pardo”11
, “crioulo”12
, “cabra”13
e “fula”. A designação “preta” deixa dúvidas, pois
para alguns autores até o século XVIII, ela era utilizada apenas para caracterizar africanos.
Sobre isto Hebe Castro diz que,
[...] como a historiografia já tem assinalado, os significantes „crioulo‟ e
„preto‟ mostraram-se claramente reservados aos escravos e aos forros
recentes. A designação „crioulo‟ era exclusiva de escravos e forros nascidos
no Brasil e o significante preto, até a primeira metade do século XVIII era
referido preferencialmente aos africanos. Assim, “crioulo” é um termo que,
no Brasil, significa preto nascido na terra, ou seja, designava os escravos e
forros que nasciam no território nacional. (CASTRO, 1995, p. 35)
11
Filho de mulato e branco. 12
Negros nascidos no Brasil. 13
Fruto da relação de um mulato com uma preta.
24
Sobre a utilização do termo “preto”, no sertão, Erivaldo Fagundes afirma que pode
significar tanto brasileiro quanto africano. Para ele, o aumento de escravos brasileiros no
sertão pode significar um crescimento vegetativo decorrente do declínio da importação de
escravos após 1850, com o fim do tráfico (NEVES, 2008). Já o termo “cabra” tem origem no
mundo animal e é relacionado ao animal cabra cuja utilização deste termo é envolvida numa
carga de negatividade muito grande. Este foi um termo utilizado pelos portugueses para
denominar alguns índios e depois para referir-se ao “cruzamento” entre negros e mulatos.
Sobre isto Kátia Vinhático, diz o seguinte:
O termo cabra traz uma conotação pejorativa carregada de significados
sociais que indica aspectos ligados a discriminação racial. No rol dos termos
utilizados para distinção racial, este termo é o que, como nenhum dos outros,
encerra o significado da cor. Enquanto „pardo‟ pode ser um termo mais
genérico de uma condição social como livre, „negro‟ substituía escravo, cabra
é o que guarda a delimitação de „cor‟, pois, filho de negra com mulato ou
vice-versa, o cabra é o „mulato escuro‟ (VINHÁTICO apud LACERDA,
2008, p. 52).
Ainda sobre a categoria cor, Walter Fraga encontrou no Recôncavo Baiano resultados
semelhantes aos de Coité. Lá, a maioria dos escravos encontrados nos três engenhos
analisados por ele – São Francisco, Santo Amaro e Cachoeira- eram crioulos, pardos e cabras,
ou seja, a partir de 1870 a composição da população cativa do Recôncavo era
predominantemente nascida no Brasil, apontado por Fraga como uma consequência do fim do
tráfico negreiro. (FRAGA FILHO, 2006)
No que diz respeito aos africanos, só foi encontrado nas escrituras de compra e venda
um único caso. Sobre este, o documento dizia que se chamava Manoel, africano, vendido por
seu proprietário José Silva Lopes a João Estevão da Cunha em 13 de julho de 1878. Outra
informação encontrada foi a maneira como seu senhor o adquiriu “em partilha dos bens
deixados por falecimento de sua Mãy.14
1.3 – Quanto custava um escravo em Conceição do Coité?
Aos três dias de janeiro de 1870 compareceram ao cartório a senhora D. Maria da
Purificação e o Sr. José da Cunha Araujo. Eles objetivavam registrar a escritura de compra e
venda do escravo Eduardo, cabra, com 26 anos de idade, vendido pelo preço e quantia de
1:000$00 conto de réis. Cerca de cinco meses depois, foi efetivada a compra de uma escrava
14
LIVRO DE NOTAS nº 02 (1876-1883) p. 67-69.
25
também em idade considerada produtiva, seu nome era Martinha15
, 25 anos, crioula, vendida
em 11 de maio do ano citado, pela quantia de 800$00 mil-réis.
A partir destas informações percebe-se que “no processo de formação dos preços dos
escravos eram levados em consideração alguns fatores como, sexo, idade, o estado físico, a
concorrência, a conjuntura econômica e sua qualificação profissional” (MATTOSO, 2003, p.
77-78).
A tabela abaixo traz dados sobre o sexo, a idade e o preço.
Tabela 07- Preço médio dos escravos comercializados por fixa etária e sexo-
Conceição do Coité (1869-1888)
Faixas etárias Homens Variações de preços Mulheres Variações de preços
Menores de 10 09 100$00- 640$00 07 200$00-500$00
10 a 14 03 150$00-1000$00
conto
03 400$00-700$00
15 a 39 15 300$00-1000$200 14 255$00-800$00
40 a 59 01 350$00 02 190$00-300$00
60 ou mais ____ ___ ____ ____
Os valores apontados na tabela evidenciam uma considerável dinâmica nos preços dos
escravos. As mulheres, geralmente, eram vendidas por menores preços que os homens. Outro
dado encontrado é que quanto maior era a idade do escravo, seu valor diminuía. Um exemplo
é a venda da escrava Maria, cor preta, 40 anos, vendida em 1886 pela quantia de 190$00 mil-
réis. Outra escrava vendida no mesmo período, mas com 19 anos, foi vendida por um valor
superior ao de Maria. Esse foi o caso de Joana16
, vendida por 450$00 mil-réis.
De acordo com Neves, não há indícios de que no sertão tenha havido centros de
distribuição de escravos, e assim, o preço variava de acordo com a oferta e a procura. Ainda
segundo ele, o preço dos escravos do sertão foi inferior aos do litoral. Este fato pode ser
explicado pela falta de especialização dos cativos sertanejos. (NEVES, 2008)
Nesta pesquisa foram encontrados preços curiosos. Este foi o caso do escravinho José,
com 09 anos de idade, vendido por 640$00 mil-réis, quando outros da mesma faixa etária e
período foram negociados por valores bem menores do que ele. Outro caso foi o da escrava
Marcolina, parda com idade de 09 para 10 anos, cuja venda foi efetuada no mesmo ano da de
15
LIVRO DE NOTAS nº 01 (1869-1874), p. 21; 27-28. 16
LIVRO DE NOTAS nº 03 (1885-1889), p. 70, 71, 72
26
José, mas com um valor inferior, 550$00 mil-réis, evidenciando que o sexo era um diferencial
significante para a realização de uma venda de escravo. O menor valor encontrado foi o de
Anacleto17
, com 01 ano de idade, custando apenas 150$00 mil-réis. Provavelmente este valor
se deve a pequena idade do menino, o que não possibilitaria renda para seu senhor em curto
prazo.
O maior valor encontrado foi o do escravo João18
, vendido em 1874 pela quantia
1:200$00 réis, ultrapassando todos os outros valores. Maiara Gordiano em estudo sobre Coité
a partir de inventários (1872-1888), encontrou um valor semelhante: o do escravo Clemente,
crioulo, avaliado no inventário de seu senhor pelo preço de 1:100$00 réis (GORDIANO,
2011).
1.4 – Ocupações dos escravos
A historiografia brasileira sobre a escravidão aponta a grande importância do trabalho
escravo para a economia da nação brasileira. No que tange ao sertão baiano este trabalho foi
de vital importância para as atividades desenvolvidas nas áreas agrícolas e de criação de
animais. Assim, o escravo integrava-se à vida rural e ao universo do sertanejo, que avaliemos,
não deve ter sido nada fácil, devido as condições de secas prolongadas e até a pouca condição
financeira de seus senhores.
Dos 74 escravos comercializados em Conceição do Coité no final do século XIX, a
maioria aparece como do “serviço da lavoura”, num total de 25. Destes, os homens
representavam 14 e as mulheres 11. A maioria dos homens estava em idade produtiva entre 14
e 34 anos de idade. Foram encontradas também duas crianças, com idades de 05 e 07 anos
compradas para o serviço da lavoura. As mulheres declaradas como “da lavoura” estavam
entre a idade de 12 a 41 anos. Contudo, o que se observa na maioria dos casos é que houve a
predominância do termo “apto para todo serviço”.
Assim, é perceptível que os cativos desempenhavam diversas funções, principalmente
as mulheres que podiam trabalhar tanto na roça quanto nos serviços domésticos na casa de
seus senhores. Este foi o caso da escrava Herculana, cor preta, solteira, natural da própria
freguesia e declarada foi por seus senhores que esta era do “trabalho da lavoura” e “outros
serviços domésticos” 19
.
17
LIVRO DE NOTAS nº 01 (1869-1875) p. 18-19; 25; 42-44. 18
LIVRO DE NOTAS nº 01 (1869-1875) p. 115-117. 19
LIVRO DE NOTAS nº 03 (1884-1889) p. 50-51.
27
Os escravos que trabalhavam na lavoura desenvolviam funções relacionadas ao plantio
de gêneros de subsistência e também no preparo dos pastos para a criação de gado. Nas
escrituras aparecem as funções “da lavoura”, do serviço doméstico e também o serviço de
vaqueiro. O caso encontrado como serviço doméstico foi da escrava Patrícia, cor fula, com 19
anos de idade. O vaqueiro foi o escravo Torquato20
, de cor preta, que trabalhava na Fazenda
Olho D‟Água pertencente ao Major José Martins d‟Almeida. Ainda sobre Coité, foram
encontrados outros ofícios em estudos de inventários, como cozinheira (01), costureira (01) e
serviço doméstico (01) (GORDIANO, 2011).
Sobre os ofícios dos escravos na Bahia, tem-se a contribuição de alguns trabalhos para
o tema. Walter Fraga Filho também encontrou nos engenhos do Recôncavo uma
predominância de escravos trabalhando na lavoura. Seus dados mostram que a lavoura
concentrava cerca de 82,3% dos cativos. Geralmente este trabalho era rejeitado por libertos e
pessoas livres. Ele ainda apontou uma realidade que difere da de Coité, ou seja, a existência
de um número considerável de escravos especializados trabalhando como artesãos,
domésticos, carreiros, vaqueiros e trabalhadores do mar (FRAGA FILHO, 2006). Tal
constatação evidencia as características próprias de desenvolvimento dos locais pesquisados.
Ana Paula Lacerda encontrou em Serrinha dados semelhantes aos da Freguesia de
Coité, mas também descobriu algumas diferenças, 11 escravos especializados, sendo 9
ferreiros, 1 carpinteiro, e 1 doméstico. Assim como em Coité, também em Serrinha havia uma
predominância do serviço da lavoura (LACERDA, 2008).
Ainda nestes registros, alguns proprietários declararam que “habitualmente”
trabalhavam na lavoura. Este foi o caso do Sr. José Calixto da Cunha, que ao efetivar a
compra do pequeno Camilo, escravo com apenas cinco anos de idade, declarou que “fazia
habitual profissão” 21
em sua Fazenda Lameiro. A partir da análise deste e de outros casos
semelhantes, é provável que escravos e senhores trabalhassem na lavoura lado a lado, o que
pode sugerir a existência de uma relação mais estreita entre escravo e seu dono. Sobre este
tipo de relação, Mattoso destaca que “as crianças pretas passeiam em total liberdade,
participando das brincadeiras das crianças brancas e das carícias de todas as mulheres da
casa” (MATTOSO, 2003, p. 128).
Todavia, não se pode tomar esta realidade onde cativo e senhor dividiam o mesmo
espaço, como condições igualitárias; o escravo, não importa o quanto próximo do seu dono
fosse, estaria sempre colocado numa condição de inferioridade diante do seu senhor. Um
20
LIVRO DE NOTAS nº 02 (1876-1883). P.12-13; 128. 21
LIVRO DE NOTAS nº 02 (1876-1883) p. 83-84.
28
exemplo claro desta diferenciação foi apontada por Chalhoub retirado do conto Mariana de
Machado de Assis, cuja personagem principal era uma “mulatinha” gentil, nascida e criada
dentro da casa de sua dona, recebendo praticamente o mesmo afago e carinho que sua senhora
depositava as suas filhas naturais, mas havia um abismo entre as livres e a cativa. Mariana não
sentava à mesa nas refeições e nem podia aparecer na sala em ocasião de visitas. Assim, dá
para perceber que havia limites entre os livres e os cativos e a própria sociedade escravista
fazia questão de impor tais limitações (CHALHOUB, 1989).
1.5 – Doações de escravos
Além da documentação já discutida, podemos encontrar vestígios de escravos nas
escrituras de doações. Foi encontrado um total de 10 documentos deste tipo, totalizando em
15 escravos doados. Este é o caso de Clemente, 29 anos, cor fula, avaliado em 1:000$00 conto
de réis, doado pelos seus senhores Manoel José da Cunha e D. Ana Maria de Jesus a seu filho
Manoel José da Cunha Júnior22
.
Assim, como esta doação foi feita, em quase todos os outros casos os doadores faziam
esta benevolência a parentes próximos como filhos e sobrinhos. Algumas situações
evidenciam a doação de mais de um escravo ao mesmo tempo e ao mesmo beneficiado.
Dentre os exemplos encontrados, podem ser citados os escravos Salvador, 13 anos e Patrícia,
cor fula, 19 anos, doados juntos pelo casal Capitão Manoel Lopes da Silva e D. Phillipa Maria
de Jesus à donatária D. Francelina Lopes da Silva23
. Pelo sobrenome é possível perceber que
havia uma relação de parentesco próxima, entre a donatária e um dos doadores, o que pode
sugerir uma divisão de herança ou outra forma de doação dentro do mesmo núcleo familiar.
Dentre os casos encontrados, houve alguns em que as mães foram doadas com suas
crias ao mesmo tempo; este foi o exemplo da escrava Joana, doada por seus senhores com
“duas crias livres”. Esta doação foi feita pelo casal já citado no parágrafo anterior,
possibilitando a identificação da ligação dos doadores com o donatário Victoriano Antonio de
Oliveira, este era o esposo da filha do casal. Joana foi doada junto com o escravo Francisco,
avaliados por 900$00 mil-réis24
.
Dessa forma, foi possível perceber que as doações ocorriam, em maior quantidade
dentro de núcleos familiares, seja como forma de antecipar a divisão dos bens ou também
22
LIVRO DE NOTAS nº 02 (1876-1883) p.18. 23
LIVRO DE NOTAS nº 03 (1884-1889) p. 12-13. 24
LIVRO DE NOTAS nº 02 (1876-1883) p. 59.
29
para fazer benevolências. Outro dado apresentado é que a maioria dos escravos doados
estavam inseridos na faixa etária de 13 a 31 anos de idade, considerada como idade produtiva.
1.6 – Quem vendia e comprava escravos?
Em 1850 o tráfico negreiro foi proibido, modificando assim a dinâmica de compras de
escravos africanos, o que ocasionou a intensificação do tráfico entre as províncias,
principalmente do nordeste para o sudeste onde a demanda de mão-de-obra escrava era maior.
Segundo Neves “quem desejasse adquirir novas peças chegadas da África, teria de mandar
comprá-las na Bahia, denominação comum a cidade de Salvador.” (NEVES, 2008, p. 271)
A partir da análise das fontes, foi perceptível que a maioria das comercializações dos
escravos em Conceição do Coité se dava entre os próprios moradores da freguesia. Não foram
encontrados vestígios de envolvimento direto com o tráfico de africanos, visto que o número
encontrado foi relativamente pequeno, quando comparado ao número de escravos nascidos no
país. Outro dado que podemos considerar, é que a quantidade de comercializações não indica
a existência de um mercado de escravos. Orlando Barreto memorialista da cidade de Coité,
aponta a existência de uma feira livre que comercializava escravos e animais (BARRETO,
2004), mas nos documentos consultados a quantidade de escravos vendidos é relativamente
pequena e o comércio se dava, na maioria dos casos, entre os próprios moradores de Coité.
Os moradores da freguesia que mais aparecem nas escrituras são o Capitão João
Manoel Amancio (6), Aprígio Leoncio da Cunha (4), João Tibúrcio da Cunha (4),Victoriano
Lopes da Silva (5 ) e Manoel Sedraes Júnior ( 5 ), todos moradores e fazendeiros da referida
freguesia. Quanto aos escravos do Capitão João Manoel Amâncio, podemos citar alguns que
foram comercializados. Em 1870 ele compra a escrava Marcolina por 500$00 mil-réis. Nove
meses depois a vende ao Sr. João Nunes Lopes Sobrinho por 550$00 mil-réis. Em 1874 ele
aparece efetivando a compra de João por 1:000$200 réis. Em 1875, ele compra a Sabino e a
Benedito em 188125
; no ano seguinte, ele comprou o escravo Clemente.
Também compraram escravos em Coité neste período, moradores de outras vilas e
freguesias. Entre estes estava o Sr. Antônio Veríssimo Carneiro, de Riachão do Jacuípe; José
Bernardino de Lima, de Queimadas e Basílio José Vieira, de Tucano. Todas estas regiões são
vizinhas da Freguesia de Coité, o que evidencia a existência de um pequeno comércio de
escravos entre áreas vizinhas.
25
LIVRO DE NOTAS n º 01 (1869- 1875) P.41-44; 115-117.
30
Na maior parte das vendas de escravos, não houve a especificação do motivo para a
realização da negociação. Mas, dois casos merecem atenção por apresentar as motivações que
levaram o proprietário a se desfazer dos cativos. O primeiro exemplo é do escravo José, cabra,
menor de um ano de idade, vendido por sua proprietária D. Ritta Maria de Jesus ao professor
José Conrado d' Araujo Marques. Ao realizar a venda, a dona do pequeno José declara que
assim a faz “só para satisfazer as dívidas de seu finado marido” 26
. Assim, percebe-se que D.
Ritta precisava realizar a venda para obter o recurso necessário ao pagamento de dívidas, o
que nos remete a ideia de uma realidade onde para algumas famílias a venda de um escravo
significava a obtenção de um recurso financeiro para suprimento de necessidades,
especialmente na viuvez.
Deste modo, foi possível identificar o perfil dos escravos de Conceição do Coité
encontrados nas fontes das últimas décadas da escravidão. Também foi possível perceber que
a maioria dos escravos comercializados estavam em idade produtiva, que o comércio destes
ocorria dentro da própria freguesia e era feito, na maioria dos casos, entre os próprios
moradores e, quando haviam pessoas de fora envolvidos neste mesmo comércio, eram
residentes em vilas e freguesias vizinhas.
No entanto, os escravos não estavam envolvidos apenas nas negociações de compra e
venda. Eles eram sujeitos ativos que sonhavam e buscavam realizar seus desejos. Um dos
grandes objetivos da maioria dos escravos era alcançar a liberdade, e para tanto, eles
negociavam com o senhor dentro do seu cativeiro e das condições impostas pelo sistema
escravista. No próximo capítulo a discussão será centrada na conquista da alforria pelos
próprios cativos, ora comprando, ora conquistando com “bons serviços” ou até aceitando
condições impostas pelos seus proprietários.
26
LIVRO DE NOTAS nº 01 (1869-1875) p. 44-45.
31
CAPÍTULO II: A CONQUISTA DA LIBERDADE
Em 26 de julho de 1869, na Fazenda Olho d‟Água, Maria, africana, comprou sua
alforria por 500$00 mil-réis, tornando-se forra como se de ventre livre nascesse27
. Em 09 de
janeiro de 1874 na Fazenda Campinas, Vidal, cabra, foi libertado pelos seus senhores “por
amor a Deos”, sem pagamento em dinheiro28
. Em 09 de maio de 1881 na Fazenda Varginha
da Capivara, Izidia, crioula, foi alforriada com a condição de servir a sua senhora até a morte
dela29
. As cartas de alforria de Maria, Vidal e Izídia, registradas em datas distintas no século
XIX, indicam as possibilidades de se conquistar a liberdade na Freguesia de Nossa Senhora da
Conceição do Coité.
Neste capítulo serão analisadas as cartas de alforria encontradas, o contexto
socioeconômico que se inseria a alforria em Conceição do Coité em finais do século XIX,
considerando o seu fundamento legal, a classificação de seus tipos encontrados e as suas
formas de pagamento. Para realizar a análise proposta, foram levados em consideração os
marcos cronológicos que muito significaram para os rumos político e econômico da
escravidão no Brasil, bem como suas consequências na prática de alforriar: a Lei Euzébio de
Queiróz (04 de agosto de 1850) que extinguiu o tráfico de escravos africanos; a Lei de 28 de
setembro de 1871, conhecida como Lei do Ventre Livre, que entre outras medidas
importantes, legalizou o pecúlio; e a Lei Áurea (13 de maio de 1888) que pôs fim ao sistema
escravista no país.
2.1 – A carta de alforria: Documento com fundamento legal
A carta de alforria era o ato jurídico pelo qual o senhor passava para seu escravo a
posse e o título que requeria sobre ele. Por este motivo, esta carta, também chamada de carta
de liberdade era um documento exigido para comprovar o ato de tal condição. Quando o ex-
escravo era encontrado sem esta carta, as autoridades duvidavam da veracidade da libertação.
Há vários relatos de libertos que por não apresentar a carta de alforria foram presos pelas
autoridades brasileiras (CHALHOUB, 2012). Geralmente o senhor escrevia a carta de
próprio punho ou pedia a alguém que o fizesse, mas, para que fosse reconhecida era
necessário a oficialização da mesma: o senhor ou seus procuradores dirigiam-se ao cartório e
27
LIVRO DE NOTAS nº 02 (1876-1883) p. 19. 28
LIVRO DE NOTAS nº 01 (1869-1875) P. 95-96. 29
LIVRO DE NOTAS nº 02 (1876-1883) p. 111-112.
32
entregavam a carta ao escrivão, o qual geralmente fazia uma cópia. O documento então era
datado e assinado por testemunhas e pelo escrivão e os selos, pagos, legitimando o ato.
Entre os anos de 1869 a 1888, foram registradas no cartório da Freguesia de Nossa
Senhora da Conceição do Coité 21 cartas de alforria que resultaram na libertação da
quantidade já mencionada, visto que não foram encontradas cartas favorecendo mais de um
cativo ao mesmo tempo. A partir da leitura destes documentos e de alguns trabalhos sobre a
temática, foi possível perceber que o ato de alforriar era uma prática costumeira, efetuada em
condições semelhantes em diferentes cantos do país, tanto em áreas urbanas, como em áreas
rurais. É necessário mencionar que até a Lei de 1871 era o direito costumeiro dos senhores
que regia as relações entre estes e seus escravos. O ato de alforriar não sofria maiores
interferências do Estado, por não haver normas específicas que norteassem tal ato.
O direito costumeiro estava ligado a idéia de que o escravo era uma propriedade
particular e por isso a decisão de libertá-lo dependia exclusivamente de seu senhor e, mesmo
que o cativo tivesse meios de comprar sua liberdade, isso só se efetivaria mediante a
aprovação de seu proprietário. Chalhoub traz em seu livro Machado, historiador as discussões
que ocorreram no período da elaboração e aprovação dos artigos da Lei de 1871- Lei do
Ventre Livre, que concedeu o direito aos cativos a constituir um pecúlio e utilizá-lo para obter
a alforria por indenização de preço ao senhor, ou seja, se o escravo obtivesse meios de pagar
por sua liberdade, seu senhor teria o dever de concedê-la (CHALHOUB, 2003).
Neste período de embates, os ânimos da Comissão do Conselho do Estado
permaneceram alterados, principalmente porque para alguns a decisão que instituía a “alforria
forçada” feria diretamente o direito de propriedade dos senhores sobre seus escravos, e assim,
“destruía a força moral do senhor”. Um destes deputados foi Perdigão Malheiro que, segundo
Chalhoub afirmou “A detenção do poder exclusivo de alforriar nas mãos dos senhores parece
essencial para garantir a subordinação dos escravos e a gratidão dos libertos, pois os negros
deveriam transitar da escravidão para a liberdade em situação de dependência”
(CHALHOUB, 2003, p. 192).
Como sabemos, nem sempre a alforria era concedida com a boa vontade do senhor e,
de acordo com Kátia Lorena Almeida, no período anterior a 1871 havia algumas situações em
que o escravo, através de brechas na lei, obtinha a alforria. Eram estas: “a morte natural; os
laços de consanguinidade entre o escravo e o senhor ou seus parentes; pelo casamento da
escrava com o senhor e abandono do escravo por ser velho ou doente” (ALMEIDA, 2006, p.
48).
33
Percebe-se através de discussões de autores como Kátia Lorena Almeida que não
havia dispositivos específicos que regulamentassem a concessão de alforrias, mas nas
Ordenações Filipinas esta era equiparada a uma doação semelhante às demais, sujeita as
disposições e restrições gerais. As tais disposições previam a revogação da alforria em casos
de ingratidão para com o senhor por parte do escravo. Assim, “até a aprovação da Lei do
Ventre Livre, os escravos eram desprovidos de normas específicas que norteassem a proteção
legal dos mesmos” (ALMEIDA, 2006, p. 48).
Dessa forma, a carta de alforria era um documento produzido no âmbito de relações
privadas, no qual se levava em consideração os interesses do senhor. Todavia, não se pode em
hipótese alguma desconsiderar a ação dos escravos para a conquista da liberdade, pois os
cativos utilizavam situações do cotidiano para conduzir e até convencer o seu senhor em prol
de resultados que viessem a lhe favorecer.
A historiografia brasileira, durante muito tempo esteve centrada na ideia de que os
cativos só resistiam à escravidão através de fugas e formação de quilombos. Sobre os sertões
da Bahia, por exemplo, região caracterizada em sua maioria por “crioulos”, esta resistência
não teria existido, pois haveria supostamente uma proximidade maior entre senhores e
escravos, o que proporcionava laços de amizade e, portanto, menores possibilidades de fugas.
A partir de meados da década de 1980, os novos rumos historiográficos modificaram as
visões sobre a resistência escrava através da publicação de trabalhos que conseguiram
demonstrar que, apesar das fugas serem consideradas a principal forma de resistência, as
negociações eram cotidianas. Portanto, não se pode considerar os escravos que não recorriam
as fugas, como passivos e submissos (REIS; SILVA, 1989).
Através do estudo das cartas de alforria foi possível conhecer o perfil dos escravos
alforriados, os preços cobrados, e ainda as condições impostas pelos senhores para a
concessão destas. Neste processo, foi verificado que na vida cotidiana escravos e senhores
negociavam entre si firmando acordos e dividindo espaços nos quais um e outro conseguia
exercer influências e pequenos poderes.
Porém, há autores que discordam desta ideia de que a alforria pode ser considerada
como resistência. Para Roberto Guedes Ferreira, a carta entregue ao escravo no ato da alforria
deveria ser vista basicamente como concessão senhorial (FERREIRA, 2007). Assim, para ele,
Difícil entender esta simbiose em que alforria é ao mesmo tempo engodo
senhorial e conquista escrava. Implicaria em afirmar que os escravos
conquistaram um engodo e caíram na armadilha senhorial, contribuindo para
a manutenção e a estabilidade do sistema. A meu ver, a estabilidade, que não
elimina tensões, se dá pela troca equitativa entre escravos e senhores,
34
expressa na alforria. Com certeza, foi estimulada pela pressão dos escravos,
mas não se trata de resistência dentro do sistema. No limite, é um acordo
desigual, em que uma parte dá e a outra aceita. É concessão,
predominantemente. (FERREIRA, 2007, p. 87)
Dessa forma, para ele, a alforria podia até ser fruto de pressões de escravos aos seus
senhores, mas esta mesma pressão não deve, segundo ele, ser vista como forma de resistência
ao sistema escravista. A carta de alforria, neste caso seria uma concessão e não uma
conquista. A discussão do autor corrobora com o tema, mas suscita discordâncias, pois até a
submissão do escravo ao seu senhor pode ser considerada uma forma de resistência ao sistema
escravista e uma das possibilidades de conquista da liberdade. O cativo negociava as
condições da alforria com o seu senhor; isto fica evidente ao observar que havia o acerto do
valor, da forma de pagamento e das negociações quanto as condições. Dessa forma, é
perceptível que alcançar a alforria não se dava por concessão apenas, mas também era uma
conquista estrategicamente articulada e alcançada pelas ações dos escravos.
2.2 – Tipos de alforrias
Ao introduzir este capítulo fora evocado a memória das cartas de alforria de três
escravos, dentre estas, em duas, os escravos Izidia e Vidal receberam a carta de liberdade sem
a exigência de pagamento. A respeito dos tipos de alforrias, Kátia Lorena Almeida, traz uma
distinção de dois tipos principais encontrados em estudos baianos: a título oneroso e a título
gratuito. Todavia, estas distinções variavam, pois eram condicionadas a restrições e
imposições feitas pelos senhores. Havia a alforria sem ônus, mas com condições impostas
pelo senhor; nestes casos, a alforria só seria realmente concretizada quando a condição
estipulada fosse cumprida. Assim, as manumissões representavam interesses distintos
(ALMEIDA, 2006).
A documentação analisada reflete as relações mantidas entre senhores e escravos no
momento da conquista da alforria. A tabela abaixo mostra como os escravos obtinham a
liberdade, se com ônus ou gratuita. Observando que, em Conceição do Coité foram
encontradas nas cartas as modalidades abaixo assinaladas.
35
Tabela 08- Condições das alforrias
Condição Quantidade
Paga sem condição 11
Paga com condição 1
Gratuita sem condição 4
Sem ônus, com condição 5
TOTAL 21
A partir dos dados da tabela, percebe-se que no final do século XIX as alforrias em
Coité foram em sua maioria, pagas com dinheiro. Como exemplo pode-se observar a
conquista da liberdade da escrava Joanna. Corria o ano de 1877, no dia dez de maio,
Bernardino José de Sudré concedeu à alforria a escrava Joanna, africana, com 70 anos mais ou
menos nos seguintes termos:
Diz Bernardino José de Lima Sudré, morador nesta freguesia de Nossa
Senhora da Conceição do Coité livre torna e passa carta de liberdade nesta
dacta a sua escrava de nome Joanna [...] e que lhe passa a presente carta de
liberdade pela quantia de dez mil-réis, que recebeu em moeda corrente ao
passar esta, e que poderá a dita escrava gosar de sua liberdade como se de
ventre livre nascesse.30
O texto da carta evidencia alguns fatores. A cativa foi libertada mediante o pagamento
de dez mil-réis entregues ao senhor em moeda corrente ao lhe passar a carta. A partir desta
evidência, pode-se partilhar da ideia de que houve um acordo entre as partes envolvidas,
evidenciando as negociações já discutidas. Outro ponto a analisar é a existência de tal valor
em mãos de uma cativa, que num primeiro momento trabalharia apenas para seu senhor.
O dinheiro utilizado por Joanna no pagamento de sua alforria era denominado
“pecúlio”, ou numa linguagem mais atual era equivalente a uma poupança. Este dinheiro,
provavelmente, era fruto de longos anos de trabalhos extra, seja no cativeiro ou fora dele.
Sobre a definição do pecúlio Almeida aponta a visão de Malheiros que afirmou o seguinte:
“era tudo aquilo que ao escravo era permitido, de consentimento expresso ou tácito do senhor,
administrar, usufruir e ganhar, ainda que sobre parte do patrimônio do próprio senhor”
(ALMEIDA, 2006, p.53). Assim, os escravos conseguiam reunir o pecúlio através de
atividades realizadas paralelas a aquelas que eram obrigados pelo senhor.
As atividades desempenhadas pelos cativos de Conceição do Coité que possibilitavam
a obtenção de um pecúlio eram as realizadas na roça, onde plantavam gêneros de subsistência
30
LIVRO DE NOTAS nº 02 (1876-1883) p. 52.
36
e praticavam a criação de animais. Ocorria também que muitas vezes os escravos podiam
realizar trabalhos fora da propriedade do senhor em dias santos e domingos. Walter Fraga cita
que alguns escravos no Recôncavo Baiano “podiam ser remunerados por trabalhos extras
realizados nos domingos e dias santos” (FRAGA FILHO, 2006, p. 40). Outra possibilidade
encontrada foram as atividades agrícolas independentes, nos quais o senhor conferia aos
escravos o direito de cultivar uma parte da roça para dali retirarem o sustento e aumentar a
chance de renda. Sobre isto, Fraga ainda afirma que,
Estudos recentes ressaltam que as atividades agrícolas independentes eram
vantajosas para os senhores, pois diminuíam gastos com a subsistência e
mantinham os cativos ligados as propriedades. Mostram ainda, que o cultivo
de roças conferiu aos escravos espaços de independência pessoal na produção
da própria subsistência e na comercialização do que era cultivado. (FRAGA
FILHO, 2006, p. 42)
Robert Slenes também salientou a importância da “economia interna dos escravos”,
isto tanto do ponto de vista econômico quanto do psicológico, pois esta oferecia uma
perspectiva concreta para a realização de seus projetos de vida, tanto relacionado à compra da
alforria como também à família (SLENES, 1999).
Assim, as roças e o cuidado com os animais criaram condições para que os escravos
sertanejos elaborassem projetos independentes ao de seus senhores. Provavelmente, não era
tarefa muito fácil acumular o valor do pecúlio necessário para a compra da alforria.
Infelizmente, as cartas analisadas não explicitam o percurso traçado pelo escravo, a origem do
pecúlio e o tempo de vida dedicado a acumular o valor para a compra da liberdade, mas é
importante ressaltar que a quantia acumulada ou mesmo a perspectiva de obtê-la significava
uma possibilidade real de se chegar a alforria.
Como já foi mencionado, o pecúlio foi uma das prerrogativas estabelecidas pela Lei do
Ventre Livre em 1871. Este assunto gerou muitos conflitos entre os legisladores da época,
pois, alguns acreditavam que dá este direito aos escravos significava subtrair o direito de
propriedade do senhor. Nos debates que se seguiram até a aprovação dos artigos da lei foram
instituídos dois tipos de pecúlio, o primeiro que seria resultado de doações, legados e
heranças, e neste caso era algo garantido pelo poder público. Já o outro tipo consistia naquilo
que o cativo obtivesse de seu trabalho e economias. A realização desta última possibilidade
dependia expressamente do consentimento do senhor. É importante salientar, que a comissão
do governo fez esta distinção com o intuito de acalmar receios de que o direito ao pecúlio por
meio do trabalho e economias causasse uma desorganização da produção nas fazendas e
principalmente comprometesse a disciplina dos cativos (CHALHOUB, 2003).
37
Como já foi dito, havia vários tipos de alforrias. Já foi mencionada a paga sem
condição, que o escravo pagava o valor exigido e após esta quitação estaria livre. Outro tipo
de alforria encontrada foi aquela que mesmo exigindo o valor em dinheiro, fora exigido
também o cumprimento de uma determinada condição. Esse foi o caso do escravo Torquato,
que recebeu a carta de liberdade mediante o pagamento de uma quantia em dinheiro, mas esta
só se efetivaria com o cumprimento de uma exigência. A carta diz o seguinte,
[...] tenho conferido a presente carta de liberdade a meu escravo Torquato, de
cor preta, no valor de setecentos mil-réis, recebendo eu como recebi a quantia
de cento e vinte mil-réis; por quanto, digo, por conta de sua liberdade,
sujeitando-se como de fato o sujeito a continuar de vaqueiro na Fazenda Olho
d‟Água, pertencente ao major José Martins d‟Almeida; e fazer-me os
pagamentos todas as vezes que for sortiando a mesma fazenda, isto durante a
minha vida, e caso não conclua tais pagamentos reverterá toda e qualquer
diferença em benefício de sua mesma liberdade em cuja dacta gosará de sua
mesma liberdade como se de ventre livre nascesse.31
As alforrias onerosas podem ser divididas em dois tipos distintos. Num primeiro
momento trataremos das pagas-condicionais, onde o senhor além de cobrar um valor em
dinheiro exigia o cumprimento de um acordo de fidelidade. Este foi o caráter da alforria de
Torquato, que poderia pagar a alforria em prestações, mas deveria continuar trabalhando de
vaqueiro no local estipulado pela sua senhora; caso os pagamentos não fossem efetivados, sua
alforria seria revogada.
Em estudo sobre a conquista da alforria, Kátia Lorena Almeida identificou outras
formas de pagamento diferentes do uso da moeda. Ela cita o uso de espécies, como o ouro, o
algodão, o gado vacum e também em alguns casos o pagamento foi feito mediante a
substituição por outro escravo (ALMEIDA, 2006). No caso específico de Coité não foi
encontrada nenhuma negociação de alforria por meio de espécies e mercadorias, apenas pelo
pagamento em dinheiro e prestação de serviços.
Foram encontrados também casos de alforrias não paga-condicionais, quando não
havia exigência de ônus financeiro cobrado ao escravo, mas este seria obrigado a cumprir uma
condição estipulada para que a alforria fosse concretizada. Em geral, os senhores exigiam a
prestação de serviços por tempo determinado ou enquanto eles vivessem. Os exemplos de
Francisca e Izídia elucidam muito bem esta afirmação. A carta de alforria de Francisca foi
registrada em cartório em 09 de abril de 1874 com o seguinte discurso do senhor,
Digo eu Manoel Alves de Oliveira, que entre os mais bens que sou senhor e
possuidor, livre e desembargado de contratos judiciais [...] e por muitos bons
31
LIVRO DE NOTAS nº 03 (1884-1889) p. 128.
38
serviços que me tem prestado pretendo se continuar a servir a mim como vai,
pretendo por minha morte, e de minha mulher deixá-la forra como se de
ventre livre nascesse para da-li em diante desfrutar da sua liberdade e
descanso de seo corpo.32
Bem, assim fica claro que a alforria só seria concretizada mediante a morte de seus
senhores que, dependendo da idade que tinham neste momento, Francisca não gozaria jamais
de sua liberdade. Os bons serviços foram evocados para justificar a benevolência e ainda
apontou uma possibilidade de revogação da alforria quando disse “pretendo se continuar a
servir a mim como vai.” A ameaça da revogação era uma estratégia dos senhores como forma
de obter a obediência dos cativos. Porém, segundo a historiografia, “a revogação de alforrias
foi um recurso muito pouco utilizado pelos senhores” (ALMEIDA, 2006, p. 59). Todavia,
sabe-se que era um dispositivo legal que os senhores poderiam utilizar diante de “ingratidões”
por parte do cativo. Segundo Challoub, as discussões sobre a escravidão girava sempre em
torno do problema da produção de dependentes e a revogação se insere muito bem neste
contexto da continuidade da dominação, mesmo após a libertação. Assim, o liberto continuava
atrelado ao seu ex-senhor envolvido por um sentimento de “gratidão” que o conduzia a
permanecer obediente e submisso às exigências e tratamento dispensados ao seu antigo
proprietário. Chalhoub ainda narra a história do personagem de Machado de Assis, Pancrácio,
que mesmo após a alforria continuava largamente submisso, pois, recebia alegremente os
“petelecos” de seu ex-senhor (CHALHOUB, 1989).
Fato semelhante ao ocorrido com Josefa se deu na alforria de Izidia (06 de maio de
1881),
Digo eu Josefa Maria de Jesus, que entre os mais bens que sou legítima
senhora e possuidora e bem assim uma escrava, crioula de nome Izidia que
obrigada será a mim servir enquanto eu viva for; e depois de minha morte
ficará forra como se de ventre livre nascesse e por mim ter merecido este
benefício e muito a meu gosto me haver servido passo de meu muito próprio
e sem constrangimento de pessoa alguma.33
Ao analisar as duas cartas de alforria, uma observação não pode ficar em branco. Com
a Lei de 1871, foi estabelecido o período máximo de sete anos para a alforria com prestação
de serviços, assemelhando-se dessa forma, a um contrato de trabalho. Todavia, as cartas
analisadas são com datas posteriores a esta Lei e ainda exigem a prestação de serviços por
tempo indeterminado, ou seja, a condição só se efetivaria após a morte de sua senhora. Assim
a lei ficava apenas no papel, não era cumprida e caso a sua senhora ainda vivesse muitos anos,
possivelmente Izídia só seria de fato liberta com a Lei Áurea em 1888. 32
LIVRO DE NOTAS nº 01 (1869-1875) p. 25. 33
LIVRO DE NOTAS nº 02 (1876-1883) p. 111-112
39
Das 21 cartas encontradas, cinco aparecem como condicional com condição. Em
quatro aparecem a condição de acompanhar o senhor até a morte e em um caso há uma
exigência diferente, este é o caso de Ephygenia, carta datada de 21 de agosto de 1884,
Pela presente e por mim somente assinada dou e concedo a minha escrava
Ephygenia a liberdade, podendo desde já gosá-la como se de ventre livre
nascesse, com a condição de não retirar de minha companhia os seus filhos
ingênuos21
que ficam sujeitos as condições da Lei de vinte oito de setembro
de 1871, isto é, de me acompanharem até a idade de vinte um anos .34
Ao impor tal condição, o senhor de Ephygenia, Bernardo José de Lima Sudré, mostrou
conhecer as prerrogativas da Lei do Ventre Livre, que contemplava o destino dos filhos de
escravas. Dizia a lei,
Os filhos da mulher escrava, que nascerem no Império desde a data desta lei,
serão considerados de condição livre. E acrescentava chegando o filho da
escrava a idade de oito anos, o senhor da mãe terá a opção, ou de receber do
estado a indenização de 600 mil-réis, ou utilizar-se dos serviços do menor até
a idade de 21 anos completos (MENDONÇA, 1998, p. 85).
Os senhores de Ephygenia optaram em não receber a indenização assegurada pela lei,
e exigiu a presença dos ingênuos. Joseli Mendonça chama a atenção para o fato de que a lei,
ao mesmo tempo em que “desapropriou” os escravos dos seus filhos, deu aos senhores a
exclusividade da escolha do destino das crianças que diziam ser livres e ainda determinou a
possibilidade da manutenção do atrelamento pessoal, tornando essas crianças obrigadas à
prestação de serviços aos senhores de suas mães (MENDONÇA, 2008). A eficácia desta
determinação da Lei de 1871 não beneficiou as mães e seus respectivos filhos, pois como
coloca Mattoso, “Como a escravidão será abolida no Brasil antes que qualquer das crianças
nascidas do ventre livre chegue aos 21 anos, seus problemas se equivalem inteiramente aos
dos alforriados sob condição” (MATTOSO, 2003, p.177).
A questão relacionada a obrigação dos senhores em sustentar os filhos de ventre livre
após 1871 também gerou debates acirrados na comissão do governo. Segundo alguns
membros desta comissão, considerar os filhos de mulheres escravas que nascessem após 1871
como “livres” seria visto pelos senhores como abuso por parte do Estado que queria dispor do
que lhe não pertence e, além disso, os proprietários iriam ter gastos com o sustento destes
“ingênuos” e não teriam grandes chances de serem indenizados um dia, pois muitas crianças
morriam até aos oito anos de idade. Os questionamentos eram muitos e principalmente
esbarravam numa questão crucial, no cumprimento dessas determinações pelos senhores, no
geral, seria determinado pela boa vontade deles. (CHALHOUB, 2003)
34
LIVRO DE NOTAS nº 01 (1869-1875) p. 24.
40
Os senhores também podiam solicitar a libertação dos seus escravos através de
indenização. Ana Paula Lacerda, em estudo sobre Serrinha encontrou um caso em que a
proprietária solicitou a indenização por seus 04 escravos (LACERDA, 2008).
Dessa forma, as alforrias concedidas por senhores em meio a exigência de
cumprimento de condições, não eram especificamente uma concessão gratuita, pois, a
condição imposta à liberdade do escravo pode ser considerada como uma espécie de
pagamento, ou seja, a obrigação exigida sendo cumprida era sim uma forma de liquidar uma
dívida. Para Kátia Mattoso, essa “gratuidade” sob condição servia para os senhores se
vangloriar; “porém mal esconde o preço muito elevado que em realidade o escravo paga por
sua libertação” (MATTOSO, 2003, p. 207).
2.3 – Alforrias gratuitas: “Passo esta de minha livre vontade”
São consideradas alforrias gratuitas aquelas que não fazem menção a pagamento ou
cumprimento de condições. Mas é preciso atentar que esta gratuidade era sempre relativa,
visto que, mesmo não cobrando valor financeiro ou por meio de trabalho, é evidente que os
escravos já haviam pago por sua liberdade com anos de trabalho árduo. Das cartas de alforrias
encontradas em Coité, 04 podem ser consideradas gratuitas, pois foram passadas sem a
efetivação de pagamento. Um exemplo deste tipo foi a do escravo José, maior de 40 anos,
crioulo, alforriado em 24 de setembro de 1872, por Joaquim Bispo Ferreira, que declarou “por
isso lhe passo esta de minha livre vontade sem constrangimento algum [...].35
O argumento
que motivou a concessão da liberdade não foi declarado na carta.
Outra carta de alforria que se insere nesta categoria é a da escrava Joana, que sua
senhora, Bernarda Carolina D‟ Oliveira, a registrou por meio de procurador em 26 de junho
de 1872, com o mesmo discurso da carta supracitada, mas com a seguinte prerrogativa: “sem
que a presente carta possa ser revogada em tempo algum, pois a fasso de minha livre vontade
[...]”36
As cartas não mencionam o motivo de tais concessões, porém, alguns fatores podem
ter sidos levados em consideração como um bom trabalho prestado ou até a conjuntura
econômica do sertão que enfrentou uma grave seca a partir de 1870. E, assim, devido as
necessidades, esta decisão pode ter sido uma saída para cortar gastos com alimentação.
As duas cartas gratuitas restantes são as dos escravos Vidal e Joaquim. Ambas foram
registradas no mesmo dia, 30 de janeiro de 1874 pela senhora D. Ana Maria Athanaria da
35
LIVRO DE NOTAS nº 01 (1869-1875) p. 76. 36
LIVRO DE NOTAS nº 01 (1869-1875) p. 68-69.
41
Conceição e nestas o discurso é o mesmo: “[...] que sendo legítima senhora e possuidora dos
escravos de nome (Vidal e Joaquim) [...] e por ser de meo gosto e de minha livre vontade, sem
constrangimento de pessoa alguma, passo esta (s) pelo amor de Deos [...]”37
. Nestes dois
casos, é possível perceber que as alforrias foram concedidas apenas por devoção a “Deos”, o
que pode ocultar os verdadeiros motivos, ou mostrar a ligação desta população de Coité com a
religiosidade.
Vale ressaltar que em todas as cartas encontradas aparecem a alegação: “como se de
ventre livre nascesse”; ao que parece, mesmo que os escravos tivessem grande dificuldade
para libertar-se do estigma de ter sido escravo, chegar a condição de liberto parecia estar
simbolicamente associado a um renascimento. Para Kátia Lorena Almeida, nestes casos, havia
uma relação mais próxima entre escravos e senhores e a alforria se dava por causa da gratidão
(ALMEIDA, 2006).Contudo, é preciso compreender que a concessão da alforria não era um
ato puramente carregado de benevolência por parte do senhor, mas, o resultado de
negociações entre este e seus cativos, o que nem sempre fica evidente na carta, já que esta
seria o “último ato” do processo de negociação, além de poder significar uma resposta a esta
conjuntura rural de pequenos proprietários que enfrentavam dificuldades pela realidade vivida
no Sertão baiano.
2.4- Além das cartas de alforrias
A alforria em Conceição do Coité no século XIX não se restringiu aos 21 escravos
citados anteriormente, pois muitas cartas podem não ter sido registradas em cartório, vistas
como documento privado e até sem necessidade pela realidade local, que pela quantidade de
habitantes ficava fácil diferenciar os livres dos cativos. Outras liberdades podem ter sido
dadas apenas de forma verbal, sem a existência de documento. Ao pesquisar a documentação
existente nos livros de notas que compreende o período estudado foram encontradas 12
procurações referentes a libertação de escravos. Em 08 destas o senhor delegava poderes a
alguém para que o representasse na Tesouraria Provincial e recebesse as quantias em dinheiro
referentes à libertação de seus cativos por intermédio do Fundo de Emancipação. A partir
destas análises, foi verificado mais 11 libertações de escravos em Conceição do Coité até
1887, levando em consideração que uma destas contemplava mais de um escravo.
37
LIVRO DE NOTAS nº01 (1869-1875) p.95-96
42
Não foi possível descobrir como o Fundo de Emancipação de Conceição do Coité foi
criado. Contudo, foi perceptível que os escravos se apropriaram desta prerrogativa para
alcançar a tão sonhada alforria. O Fundo de Emancipação foi regulamentado pela Lei do
Ventre Livre e suas prioridades estavam centradas nas famílias escravas, mas também
beneficiava mães ou pais solteiros com filhos e os escravos de 12 a 50 anos de idade,
“começando pelos mais moços do sexo feminino, e pelos mais velhos do sexo masculino”
(REIS, 2007, p. 195).
O caminho até a alforria por meio deste Fundo passaria por uma Junta de
Classificação que avaliava o cativo e cabia aos seus membros julgá-los de acordo com os
critérios estabelecidos. Segundo Isabel Cristina Reis, “esta Junta de Classificação deveria ser
composta pelo presidente da Câmara, pelo promotor público e pelo coletor de rendas, que
eram substituídos por outras autoridades, caso se tornasse necessário” (REIS, 2007, p.196).
Muitas procurações encontradas eram justamente para apresentar o escravo à Junta de
Classificação para que o mesmo fosse avaliado.
Entre os escravos “beneficiados” pelo Fundo de Emancipação estava o casal Hylário e
Victorina; casados, de domínios de senhores diferentes. Os senhores Moraes e José Estévão
Pastor solicitaram a quantia de 750$00 mil-réis, restante dos 800$00 da “Tesouraria Geral da
Fazenda, por quanto foram libertados pelo Fundo de Emancipação Hylário, 36 anos e
Victorina, 33 anos [...]” 38
.
Há alguns casos em que não foi possível identificar em qual dos requisitos do Fundo
de Emancipação eles se enquadravam. Estes são os casos de Marinha, solteira, libertada em
1884; Ana, solteira, alforriada em 1885 e Mônica, viúva libertada em 1887. Nas procurações
não apareceu a idade destas cativas, mas a viúva provavelmente poderia ter filhos e até as
solteiras também. Outra informação encontrada foi que, na maioria destas libertações por
intermédio do Fundo de Emancipação, os escravos pagaram uma quantia em dinheiro, o que
aponta a iniciativa deles. Os recursos que eram utilizados pelo Fundo de Emancipação era o
resultado de um conjunto de taxas cobradas, instituídas pela lei de 1885, Lei dos
Sexagenários, que assim estabelecia em seu 2º artigo,
I. Das taxas e rendas para ele destinadas na legislação vigente. II. Da taxa de
5% adicionais a todos os impostos gerais exceto os de exportação; III. De
títulos de dívida pública emitidos a 5%, com amortização anual de 1/2 %,
38
LIVRO DE NOTAS nº 03 (1884-1889) p. 15
43
sendo os juros e amortização pagos pela referida taxa de 5%.
(MENDONÇA, 2008, 345)
Dessa forma, foi possível observar que havia por parte do Estado um interesse em
conduzir o fim da escravidão, todavia deveria ser de forma gradual. Tal iniciativa não surgiu
por acaso, mas principalmente porque a sociedade já vinha fazendo pressões de variadas
maneiras, seja por meio de amparar negros fugidos, impedir a prisão de alguns cativos
procurados por seus senhores, ou ainda pela ação de grupos conhecidos como abolicionistas.
Os escravos e ex- escravos também tiveram um papel fundamental no que diz respeito a
abolição, pois eles, como bem coloca Walter Fraga “estavam a todo momento acompanhando
as discussões e resistindo bravamente por meio de fugas individuais e coletivas,e também
comprando suas alforrias e negociando sua condição” (FRAGA FILHO, 2006, p.54).
2.5 - Manifestações de resistência
Muitos indícios encontrados em documentos indicam que na Bahia e em todo o Brasil
houve diferentes formas de resistências a escravidão. Dentre as várias evidenciadas estão as
negociações diárias, os suicídios, as fugas temporárias e definitivas e ainda as ações de
liberdade.
Sobre as negociações diárias encontramos alguns trabalhos que enfocam muito bem
esta temática, como Negociação e conflito, no qual os autores, de maneira clara, mostram
como os escravos agiam com seus senhores, seja por meio de palavras, seja pelo próprio
comportamento para efetivar seus desejos. Este texto também contempla as fugas
distinguindo-as em reivindicatórias e fugas-rompimento. As reivindicatórias, como bem
colocam Reis e Silva, “não pretendiam um rompimento radical com o sistema, mas era uma
cartada- cujos riscos eram mais ou menos previsíveis” (REIS; SILVA, 1989, p. 63).
Geralmente o escravo quando aprontava algum tipo de insubordinação com o senhor fugia
para que os ânimos se acalmassem e não fosse submetido a castigos. Outro motivo podia ser
as relações afetivas, em que os cativos fugiam para encontrar-se com seus companheiros.
Outro ponto que fazia com que o escravo fugisse era a quebra de acordos por parte do
senhor para com as concepções que os cativos tinham acerca de um cativeiro justo e, por isso
mesmo aceitável. Para os cativos, algumas questões deveriam ser levadas em conta pelo
senhor, como por exemplo, suas relações afetivas, os castigos físicos que só seriam mais ou
menos “toleráveis” se houvesse motivo justo e deveriam ser moderados. Para Chalhoub os
escravos tinham suas próprias compreensões do que era justo e quando estas eram de alguma
44
forma negligenciadas eles agiam (CHALHOUB, 1989). Ainda segundo Chalhoub os
escravos,
[...] pensavam e agiam segundo premissas próprias, elaboradas na experiência
de muitos anos de cativeiro, nos embates e negociações cotidianas com os
senhores e seus agentes. Eles aprenderam a fazer valer certos direitos que,
mesmo se compreendidos de maneira flexível, eram conquistas suas que
precisavam ser respeitadas para que seu cativeiro tivesse continuidade [...]
havia formas mais ou menos estabelecidas. (CHALHOUB, 1989, p.86)
Havia outro tipo de fuga, as denominadas fugas-rompimento. Esta significava o
rompimento total com o senhor, e geralmente, os cativos optavam por este tipo quando
decidiam buscar a liberdade. Muitos escravos eram capturados, pois a própria sociedade era
embasada em valores escravagistas e, portanto, a cor da pele denunciava o cativo, daí a
importância da apresentação da carta de alforria, que deveria estar sempre nas mãos do liberto
para comprovar o seu direito à liberdade, mesmo que fosse apenas pelo direito a mobilidade
espacial, discutido por Hebe Mattos Castro (1995).
Foram encontrados nesta pesquisa 02 documentos referentes a fugas. A falta de
maiores informações nos limita a conhecer o verdadeiro motivo destas, contudo, é necessário
trazer os exemplos para mostrar que em Conceição do Coité houve também esta forma de
resistência. O primeiro exemplo é uma procuração passada por José Joaquim de Santa Anna a
seu procurador Francisco José Ferreira Guimaraens, em 30 de setembro de 1876, para o
mesmo procurador buscar e tomar posse de sua escrava de nome Anna, de cor preta, solteira,
com 44 anos onde a encontrasse.39
O documento possibilita identificar que a cativa estava
desaparecida do domínio de seu senhor, o que pode evidenciar uma fuga.
O outro exemplo é uma escrava que fugiu de Santa Bárbara e o documento indica que
ela poderia estar nas terras de Conceição do Coité. A escrava que havia fugido chamava-se
Patrícia, do domínio de Manoel Joaquim d‟ Araujo. O documento dizia ser necessário
promover todos os meios de obter a cativa de volta e, para tanto, seria imprescindível
apresentar todos os documentos legais que comprovassem o domínio do dito senhor.40
Tais
documentos poderiam ser a escritura de compra e ainda a certidão de matrícula.
Sobre as ações de liberdade, entende-se que também foi uma das prerrogativas da Lei
de 1871, na qual decretou que os escravos poderiam requerer a alforria do seu senhor se
tivessem o pecúlio necessário ou até não fosse devidamente matriculado. Assim, o senhor
seria “obrigado" a conceder a alforria ao seu escravo; caso este se negasse, a Junta de
39
Centro de Documentação da UNEB - Procuração. Livro nº02 (1876-1883), p. 37 40
Centro de Documentação da UNEB - Procuração. Livro nº 02 (1876-1883), p. 67
45
Classificação teria de disponibilizar alguém para ser o curador do cativo numa ação de
liberdade (CHALHOUB, 2003).
Encontramos um documento que fazia menção a uma ação de liberdade, na qual a
senhora do escravo de nome José, Isabel Perpétua de Jesus passou uma procuração a João
Lopes da Silva para que assistisse a avaliação do seu escravo que, no dito juízo, lhe propôs
ação de liberdade.41
Quanto aos suicídios, não foi encontrado nenhum caso em Conceição do Coité, mas
sabe-se que também foi uma forma que muitos escravos utilizaram para libertar-se do
cativeiro e, de outras formas, de manifestações do poder senhorial. Quando eles percebiam
que não havia mais possibilidades de alcançar a alforria acabavam cometendo suicídio. Um
trabalho que merece mérito nesta linha de pesquisa é o de Wilson Roberto de Mattos sobre
Salvador no período de 1850-1888. Ele aponta o suicídio como uma das formas individuais de
resistência evidenciando que havia uma concepção diferencial de morte comum às populações
negras. Assim, o suicídio teve um significado de resistência cultural mais amplo. Mattos traz
algumas observações que podem ajudar no entendimento dos motivos que levavam ao
suicídio, que poderia ser, o medo de ser capturado, de ser vendido pra outras áreas, o medo de
receber castigos e de ser separado dos seus (MATTOS, 2008).
A liberdade foi sonhada por muitos escravos que viveram em Conceição do Coité no
final do século XIX, bem como no Brasil inteiro. Mas, este não era o único objetivo deles,
pois esta liberdade só seria vivida de forma plena se após o cativeiro eles tivessem redes de
solidariedade que os amparasse na velhice ou em momentos de grande necessidade. Essa rede
de solidariedade tinha início com a formação de uma família. Muitos escravos no Brasil, e
mais especificamente em Conceição do Coité, formaram famílias. Em alguns casos
oficializaram tais uniões; e em outros, viveram em “concumbinato”, ou seja, sem a “benção”
da Igreja Católica. Seus motivos para se lançar nestas uniões foram os mais diversos, tanto no
que diz respeito ao desejo de procriar, como ter amparo e também para viver um amor, tão
importante na vida humana. Desta maneira, a formação da família escrava é o tema discutido
no próximo capítulo.
41
Centro de Documentação da UNEB - Procuração. Livro nº 02 (1876 -1883), p. 94
46
CAPÍTULO III: ALIANÇAS DE AMOR
Ao introduzir o livro Na senzala, uma flor, Robert Slenes evocou uma frase do viajante
europeu Charlles Riberyrolles, que falava o seguinte sobre a família escrava: “Nos cubículos
dos negros, jamais vi uma flor, é que lá não existem nem esperanças nem recordações”; e
ainda acrescentou sobre as habitações dos cativos: “Nela não há famílias, apenas ninhadas”
(SLENES, 1999, p. 13). Esta visão carregada de preconceitos não foi particular deste viajante,
pois muitos outros homens que viajavam pelo mundo e ainda estudiosos da escravidão
compartilharam deste pensamento até a década de 1970.
Entre estes estudiosos podem citar mais uma vez os sociólogos Fernando Henrique
Cardoso e Florestan Fernandes. Eles acreditavam que os africanos sofriam de certa “patologia
social”, evidenciada a partir de suas práticas sexuais promíscuas e, como resultado, seria
impossível a união destes indivíduos na vida cotidiana. Além desta patologia, Florestan
Fernandes ainda afirmava que os escravos viviam “perdidos uns para os outros” e, por isso
mesmo, eram desprovidos de laços de solidariedade, já que como estratégia dominante, os
senhores ofereciam empecilhos para que laços de parentesco e de solidariedade pudessem se
solidificar entre os cativos (SLENES, 1999).
Outro ponto discutido por estes escritores foi o que diz respeito à paternidade dos
escravos. Para alguns autores, o filho do escravo não conhecia seu pai biológico e por isso
acabava adotando a cultura, a concepção de vida e de mundo a partir da interiorização do pai
branco. Para Kátia Mattoso, os filhos provenientes de relações escravas geralmente não
tinham pai, e para estes a figura paterna seria sempre associada ao seu senhor (MATTOSO,
2003). Para outros autores, o impacto na vida dos africanos se deu de forma negativa,
principalmente nos aspectos familiar e religioso, no qual o negro passava por um processo de
aculturação, o que o fazia esquecer, ou no mínimo deixar de lado os valores de sua cultura
nativa (LACERDA, 2008)
A partir de 1970, entraram neste cenário de discussões novas visões embasadas em
estudos com fontes documentais e também ideias de autores norte-americanos que muito
influenciaram os autores brasileiros. E, portanto, as produções historiográficas tomaram novos
rumos. Tais estudos possibilitaram entender que os escravos constituíam famílias estáveis
para manter redes de solidariedade em tempos de velhice ou doenças, para ter filhos e criá-los,
para satisfazer suas necessidades sexuais e também por um sentimento forte: o amor, que deve
ser levado em consideração quando partilhamos da ideia de que muitos escravos
47
ultrapassaram barreiras para conseguir ficar perto de seus familiares. Dentre estes estudos
pode-se citar o trabalho de Mattoso sobre as famílias baianas do século XIX que deu atenção
considerável às famílias de escravos e ex-cativos e a seus descendentes (MATTOSO, 1988).
Outros autores que merecem destaque são Manolo Florentino e José Roberto Góes, em
trabalho coletivo intitulado: A paz nas senzalas. Eles se propuseram a tratar o escravo além da
submissão e violência imposta pelo senhor, e assim, o escravo era capaz de construir
estratégias que alargavam seu espaço de sobrevivência e possibilitava uma vida cotidiana com
mínimas condições (FLORENTINO; GÓES, 1997). Segundo José Flávio Mota,
Afastou-se, pois, de um lado, o estereótipo do escravo submisso, dócil, a
integrar a grande família do patriarca branco, ilustração viva de uma nossa
pretensa democracia racial. De outro, distanciou-se igualmente do cativo
reificado, esmagado pela violência do cativeiro, equiparando seja a um artigo
de consumo, semovente tal como o gado, e que só se conseguiu se humanizar
mediante a negação do sistema escravista, pela fuga, pelo crime. (MOTA
apud LACERDA, 2008, p. 87)
Outra grande contribuição às discussões desta temática é a do historiador Robert
Slenes, centrado na região sudeste do Brasil. Ele encontrou mediante suas pesquisas um
número considerável de casamentos entre escravos, além da solidariedade entre parentes,
como esposo/esposa, mãe/ filhos e irmãos. Na senzala, uma flor, ele conseguiu desconstruir
várias visões estereotipadas sobre a família escrava. Slenes e outros pesquisadores do sudeste
apontaram a importância da família para o cativo que driblando os interesses senhoriais,
Conseguiam casar-se, manter unidas suas famílias conjugais e até construir
redes de parentesco extensas, com mais freqüência do que os historiadores
haviam pensado e com mais facilidade do que seus parceiros nas unidades
produtivas menores, voltadas normalmente para outras atividades que não a
grande lavoura. (SLENES, 1999, p. 44)
Assim, fica claro, que para Slenes a formação de famílias estáveis se dava com maior
facilidade nos médios e grandes plantéis, onde os escravos normalmente conseguiam casar-se
com mais frequência e formar famílias conjugais relativamente estáveis, pois, nas pequenas
propriedades, como no nordeste e no sul, havia a perda de escravos constantemente para o
tráfico interno após 1850. Nestes plantéis foram reveladas estruturas familiares mais fracas.
Ainda para ele, “a constituição de famílias (inclusive extensas, incorporando pessoas não
aparentadas) interessava aos escravos como parte de uma estratégia de sobrevivência dentro
do cativeiro” (SLENES, 1999, p.47).
Sobre a Bahia também há contribuições importantes nesta temática. Em Segredos
internos, Schwartz, dizia o seguinte, sobre o conflito existente entre a formação de família
escrava, e as ideologias da igreja e escravismo, bem como entre senhores e cativos: que tal
48
crise “resultou numa série de concessões que permitiram aos escravos ter sua própria vida e
criar famílias e redes de parentesco. Ainda que sofressem ameaças constantes pelo caráter da
instituição, tais criações possuíam um importante significado em suas vidas” (SCHWARTZ,
1988, p. 334).
Outro trabalho sobre a escravidão na Bahia é o de Isabel Cristina dos Reis que
evidenciou a presença da família negra no período de 1850-1888. Ela traz informações e
discussões importantes sobre a família escrava, suas estratégias para conservar os laços
familiares e ainda as limitações impostas à vida cotidiana dos cativos, principalmente no que
diz respeito as ameaças de separações através de vendas. Segundo ela, “as feridas dos açoites
provavelmente cicatrizavam com o tempo; as separações afetivas, ou a constante ameaça de
separação eram as chagas eternamente abertas no cativeiro” (REIS, 2007, p. 50).
Além dos trabalhos já citados, há outros em que mesmo não sendo o tema central, seus
autores apontam a existência da família escrava e a importância da mesma na vida dos
cativos. Este é o caso de Fios da vida da autora Maria de Fátima Novais Pires sobre Caetité e
Rio de Contas; Entre vazantes, caatingas e serras, de Elisângela Ferreira sobre Xique-Xique;
Caminhos da Liberdade: A escravidão em Serrinha, de Ana Paula Trabuco Lacerda e o de
Iara Nancy Rios sobre Conceição do Coité. Todos estes estudos são relativos ao século XIX.
Mesmo considerando o número razoável de estudos sobre a família escrava na Bahia,
muitos aspectos específicos de determinadas regiões ainda permanecem silenciados nos
documentos cartoriais e até em memórias de idosos descendentes de escravos, que ao longo
dos anos foram passando às novas gerações. Desta forma, este capítulo discutirá aspectos
relacionados à família escrava de Conceição do Coité (1869-1888), o que rompe com a ideia
de alguns historiadores quando afirmam que em pequenas propriedades tal existência era rara.
Ao cruzar as fontes documentais encontradas: registros de compra e venda de escravos, cartas
de alforrias e procurações, foi possível encontrar famílias de cativos, tanto as oficializadas
pela igreja, chamadas de nucleares, quanto as matrifocais, formadas por mães e filhos.
Para avançar nos exemplos encontrados nas fontes, é importante informar qual o
conceito de família que foi utilizado. Por uma necessidade óbvia, fugimos do conceito
ocidental de família por entender que este não era considerado como primordial pelos cativos.
Robert Slenes dá uma contribuição importante sobre esta diferenciação:
A família é importante para a transmissão e reinterpretação da cultura e da
experiência entre a geração. O grupo subalterno que tem instituições
familiares arraigadas no tempo e redes de parentesco real e fictício não está
desprovido de “formas de união e de solidariedade”, muito menos de uma
memória histórica própria; portanto, suas interpretações da experiência
49
imediata nunca serão idênticas as do grupo dominante, nem poderão ser
previstas a partir de um raciocínio funcionalista. Dito de outra maneira, a
constatação de que as “razões do coração” do escravo desaconselhavam à
rebelião e de que sua família tinha uma autonomia bastante cerceada,
simplesmente aproxima os cativos a todos os outros grupos subordinados da
história (SLENES, 1999, p. 115).
Deste modo, os escravos possuíam conceitos próprios de família, e principalmente
conservou a esta um lugar muito importante em suas vidas. Desta forma, o conceito de família
utilizado neste trabalho dialoga com o que a autora Heloisa Maria Teixeira utilizou. Para ela,
família seria o casal oficializado pela igreja ou não, com os cônjuges morando no mesmo
ambiente ou separados por cativeiro, com seus filhos, caso houvesse; homens e mulheres
solteiros com filhos e os viúvos ou viúvas com filhos (TEIXEIRA, 2002).
Outro dado considerado para as discussões a seguir são as Leis emancipacionistas,
quando o Estado começou a intervir nas relações escravistas, principalmente a Lei de 1871,
Lei do Ventre Livre que entre as suas prerrogativas estabeleceu algumas prioridades quando
se tratava de famílias.
3.1 – A força de um amor.
Na faixa dos vinte anos
Da idade de Martinha,
Ofereceu os quinhentos,
Chegou até os seiscentos
Mas nem resposta ele tinha.
Uma escrava tão bonita
Tinha por certo, seu valor,
Mas pagar tão caro assim,
Era um preço de horror.
Capricho não foi, com certeza,
Mas lhe digo com firmeza
Que foi a força do amor.
Manoel fez de Martinha
A sua esposa adorada,
Constituiu sua família
Que é a base mais sagrada
Adotou o filho dela,
Fez o que pode pra ela
Sentir-se realizada.
Era um tempo muito duro,
De preconceitos de cor,
Misturar-se a uma escrava
Nem pra lhe fazer favor,
Conviver com ela, então,
Era de tudo abrir mão
Em nome de um grande amor.
Martinha foi boa esposa.
Companheira de verdade,
Desempenhou seu papel
Com maior simplicidade.
Foi escrava e foi patroa,
Mas sempre foi gente boa,
Lutou pela igualdade. (BARRETO, p. 10-30)
Os versos citados acima contam partes da memória da escrava Martinha,
recontada a partir de documentos, como sua escritura de compra e venda; certidão de
casamento e ainda relatos de um descendente dela e morador de Conceição do Coité.
Segundo Orlando Barreto, Martinha nasceu em 1849 e viveu numa fazenda de Coité
próximo a Salgadália, até seus vinte anos de idade. Ainda no cativeiro, sob o domínio
50
de João da Cunha, ela engravidou e teve um menino que recebeu o nome de Saturnino.
Mas, com apenas dois meses de vida, seu filho foi arrancado de seus braços e vendido.
No que diz respeito aos seus familiares, como seus irmãos, o memorialista afirma que
foram separados ainda quando crianças através de negociações entre seu senhor e outros
da região de Conceição do Coité (BARRETO, 2004).
Quando ela estava com 20 anos, um fazendeiro, chamado Manoel Sedraes foi até
a casa do senhor dela e pediu um copo com água. A escrava foi buscar e, ao voltar,
tomou um tombo e quebrou a “caneca” que trazia. Naquele momento, Manoel Sedraes
“um rapaz muito educado”, amparou a moça nos braços e percebeu que ela tinha “traços
belos” e assim se interessou pela cativa e iniciou uma árdua batalha para comprá-la.
Como seu proprietário percebeu o grande interesse de Manoel Sedraes, aumentou o
preço de 400$00 mil-réis para 800$00 mil-réis. Mesmo com a alta do preço, Manoel
comprou Martinha e foram viver juntos. Em seguida, presenteou a amada com uma
fazenda, onde ela trabalhou cultivando cereais; e com o dinheiro proveniente das vendas
destes produtos, conseguiu comprar seus irmãos que eram escravos em fazendas da
redondeza (BARRETO, 2004).
Orlando conta, que para agradar Martinha, seu companheiro fez uma busca e
conseguiu comprar Saturnino, o filho de sua companheira, afastado dela ainda no
cativeiro. Esta informação é evidenciada pelas escrituras de compra e venda datada em
1870, a saber, duas escrituras, a dela que só foi registrada tempos depois da compra e a
do menino Saturnino. Todavia, a escritura do menino não faz referência ao nome da
mãe. Orlando, por sua vez, aponta em seu trabalho a existência de um documento de
partilha de bens do ano de 1912 no qual Saturnino aparece como “ Saturnino Cordeiro
da Conceição, filho de Martinha Maria de Jesus” (BARRETO, 2004, p.34 ). As
escrituras de compra e venda estão presentes no Centro de documentação da UNEB, e
foram utilizadas nesta pesquisa.
Segundo Barreto, o casal enfrentou muito preconceito por parte da população de
Conceição do Coité. Ele cita essa situação nos versos XLIII, que diz que seus melhores
amigos e vizinhos lhe viraram as costas. O pai de Manoel lhe negou a benção, bem
como seus irmãos que lhe desprezaram. Mas, mesmo com tantos transtornos, Martinha e
Manoel Sedraes oficializaram a união em 23 de fevereiro de 1889, cerca de um ano após
a Lei Áurea, na Igreja Matriz de Conceição do Coité, casando-se, recebendo os
sacramentos da Igreja e ainda tiveram cinco filhos.
51
Ao analisar o discurso de Orlando Barreto presente em seu livro Martinha:
escrava, esposa e rainha, algumas questões tão caras à historiografia da escravidão
ficam evidenciadas. Ele menciona os negros (escravos) como alguém sem
personalidade, perspectiva e sonhos quando afirma que “O negro só balbucia; na
terrível, escura e fria, maliciosa senzala”; E também, ao falar de Martinha, “ela, uma
negra comum, igual a qualquer escrava, não tinha perspectiva; Sonhar também não
ousava [...].” Ele ainda aponta em seus versos de cordel que os acontecimentos que
envolveram Martinha foram obra de Deus, uma providência tomada por um ser supremo
que, ao ver o sofrimento daquela mulatinha, fez com que um homem branco tivesse
tamanho amor por ela (BARRETO, 2004, pg.12, 13).
Barreto também faz menção ao fim da escravidão e as suas “transformações” na
vida do casal e da sociedade de Conceição do Coité. Ele afirma que “no ano de oitenta e
oito, quando a lei foi assinada, no dia treze de maio em Coité não tinha mais nada, que
ligasse a escravidão; Todo mundo tinha noção, que ela estava acabada.” Em outros
versos ele fala do alívio que Martinha sentiu com o fim da escravidão, pois mesmo já
sendo “senhora”, sentia-se mais livre e seus sonhos em família seriam realizados, ou
seja, “todas as coisas haviam mudado” (BARRETO, 2004, p. 28).
É importante levar em consideração que Orlando Barreto é um memorialista e
não teve a preocupação de problematizar as informações encontradas em suas fontes;
ele apenas relatou a memória e suas conclusões compartilham com a historiografia
tradicional que tratava o escravo como passivo, vítima de um sistema opressor e incapaz
de tomar os rumos de sua própria vida. Barreto ainda aponta uma ilusão sobre o fim da
escravidão que possibilitaria melhores condições de vida para os negros.
Estudos recentes mostram que a abolição da escravidão em 1888 não conseguiu
transformações significativas para a vida dos ex-escravos, pelo contrário, foram tempos
difíceis em que a sociedade branca fazia questão de demarcar seus espaços privilegiados
e afastar os negros, pois tal presença causava vergonha para os antigos senhores, e
quando os mantinha por perto era para, no mínimo, receber “gratidão”, obediência e
respeito por parte de suas antigas propriedades.
Segundo Nilzete Silva, muito desta história foi recontada por descendentes do
casal que moram em Conceição do Coité e até pode ser fruto da imaginação dos
parentes do casal e do próprio Orlando (SILVA, 2011). Mas, o que nos interessa neste
momento é o fato de que a memória da escrava Martinha mostra a presença da formação
de famílias a partir de escravos em Conceição do Coité. Também aponta
52
especificidades, como o casamento entre um livre com uma cativa e ainda a luta dela
para reunir sua família ao comprar seu filho e seus irmãos.
3.2- Os laços oficializados
Alguns historiadores brasileiros apontaram em seus trabalhos a grande
dificuldade dos escravos oficializarem suas uniões conjugais e ainda mantê-las estáveis
por muito tempo. Também evidenciaram vários entraves para que o casamento
acontecesse, desde o preço que a Igreja cobrava para sacramentar a união até a
importância que os cativos delegavam a esta legitimidade por parte desta instituição e
ainda apontam alguns empecilhos colocados pelos senhores. Em estudo sobre a Bahia,
em especial atenção ao Recôncavo Baiano, Schwartz encontrou vestígios de que os
senhores desencorajavam seus escravos a sacramentarem suas uniões afetivas. Tais
senhores argumentavam que quando exigia que os escravos se casassem perante a igreja
tais uniões tornavam-se permanentes e, como não havia possibilidade de divórcio,
muitos quando se cansavam dos cônjuges recorriam ao envenenamento. Outro
argumento era que os escravos mantinham relações ilícitas após o casamento, o que era
uma afronta à igreja. Porém, o que realmente contava para estes senhores permanecerem
relutantes em permitir o casamento era o direito de propriedade, pois como bem coloca
Schwartz,
Enquanto os cativos permanecessem sem batismo e sem casamento, os
religiosos podiam protestar contra o não-cumprimento das obrigações
morais por parte dos senhores; uma vez havendo o casamento na
Igreja, porém, passava a haver restrições imperiosas na lei canônica
em favor do livre usufruto do matrimônio. A separação dos cônjuges
por venda ou outra razão qualquer era condenada como uma ofensa a
caridade e a lei natural. Enquanto os cativos permanecessem com suas
uniões não sancionadas pela Igreja, tais restrições não podiam ser
aplicadas com eficácia (SCHWARTZ, 1988, p.316).
A partir da citação é possível afirmar que a maioria dos escravos não se casavam
segundo a exigência da Igreja. Todavia, Slenes encontrou dados em Campinas que
evidenciaram a presença de casais de escravos que se uniram e mantiveram relações
estáveis oficializadas pela igreja por um tempo considerável. Porém, estes cônjuges
moravam em grandes propriedades caracterizadas por um contingente maior de escravos
que atendessem a dinâmica de trabalho nos engenhos e nas lavouras. Assim, a
necessidade de vender tais cativos era pequena, o que favorecia a permanência dos
casais. Esta realidade seria diferente em propriedades menores, onde seus proprietários
53
vendiam constantemente seus escravos por necessidade financeira e nem sempre havia a
preocupação em manter os casais juntos (SLENES, 1999).
Ao levar em consideração que a realidade de Conceição do Coité era
diferenciada da apontada por Slenes, pois era caracterizada por pequenas propriedades,
percebe- se que os resultados do Censo Demográfico de 1872 e a análise dos
documentos que dão suporte a esta pesquisa apontam uma especificidade, pois há
evidências de casamentos oficializados pela Igreja Católica, como sinaliza os dados
quanto ao estado civil dos escravos,
Tabela 09- Censo de 1872
Estado civil Homens Mulheres Total
Solteiros 91 98 189
Casados 34 44 78
Viúvos 15 05 20
Fonte: Censo de 1872
De acordo com os dados da tabela 09, dos 287 escravos, 98 eram ou foram
casados. É importante atentar que o censo só registrou os casamentos oficializados pela
Igreja, portanto o número de cativos com uniões familiares deveria ser bem maior. O
número registrado de uniões oficiais também deveria ser maior, pois sabemos que os
dados do censo de 1872 não devem ser tomados como fiéis à realidade, visto que não
deve ter alcançado todos os cativos, e também pelos motivos já discutidos no capítulo I.
Outro dado possível de discussão é a categoria sexo, cujas mulheres “casadas”
(44) aparecem em quantidade maior que os homens (34) com uma diferença de 10
mulheres. Essa realidade também foi encontrada por Slenes em estudo sobre Campinas.
Segundo ele, “nas médias e grandes propriedades o número de mulheres casadas ou
viúvas superava o dos homens, mas tal diferença tornava-se menor nas pequenas
propriedades” (SLENES, 1999, p. 74). Dados semelhantes também foram encontrados
por Ana Paula Lacerda em Serrinha, onde o número de mulheres casadas ou viúvas
(162) foi superior ao dos homens (153) (LACERDA, 2008).
No que diz respeito aos viúvos, o número de homens (15) é o triplo do de
mulheres (05), o que tornou equivalente a quantidade de homens (49) e de mulheres
(49), que eram ou já haviam contraído laços familiares oficializados. Os dados, é claro,
são passíveis de desconfiança, pois é muita coincidência o número total ser o mesmo
54
entre homens e mulheres, ou pode ter sido praticidade de quem realizou a coleta dos
dados.
Slenes ainda discutiu os dados que encontrou em sua pesquisa sobre o número
de mulheres casadas exceder o de homens. Ele identificou que em Campinas o
casamento era mais facilitado entre as mulheres, principalmente devido a diferença
numérica entre os sexos, comum em regiões próximas ao tráfico negreiro, o que
favorecia maiores possibilidades de escolha (SLENES, 1999).O contexto de Conceição
do Coité era diferente do de Campinas, mas mesmo que por razões diferentes, a
conclusão é que as mulheres escravas casavam-se mais do que os homens cativos.
A partir do contato com as fontes já citadas e o cruzamento das mesmas, foi
possível encontrar algumas famílias formadas a partir dos cônjuges, totalizando 14, e
ainda uma família reconstituída com o casal e três filhos. Como os documentos
eclesiásticos não foram utilizados nesta pesquisa, estes números provavelmente devem
exceder o do próprio censo de 1872 e os apresentados aqui têm grande importância para
mostrar o que também o fez Maria de Fátima Pires em seu estudo sobre Caetité e Rio de
Contas, quando afirma que “as famílias escravas estiveram presentes na longa história
do sertão escravocrata” (PIRES, 2009, p. 166). E seus vestígios por mais que
negligenciados ficaram registrados no tempo.
Contudo, havia uma diferenciação no que diz respeito a condição jurídica dos
cônjuges dentro do casamento. Entre os 14 casais encontrados, apenas 05 estavam em
condição jurídica igual, ou seja, tanto o homem quanto a mulher eram cativos. Este foi
o caso de Hylário e Victorina42
, que aparecem envolvidos numa procuração datada de
1884, quando o dono, José Estévão Pastor concedeu poderes a um procurador para que
o representasse na Junta de Classificação sobre o arbitramento de seus escravos citados.
Alguns casais aparecem juntos nas procurações quando tinham que passar pela
avaliação nesta Junta de Classificação para depois serem libertados. Na verdade, a
libertação, a partir do Fundo de Emancipação, tinha como prioridade a alforria de
cônjuges; assim, “os critérios determinavam que os primeiros beneficiados seriam
aqueles que faziam parte de famílias nucleares[...]” (REIS, 2007, p. 195). Abaixo tem-se
a ordem de prioridades na libertação por famílias:
1º- Os cônjuges escravos de diferentes senhores;
42
LIVRO DE NOTAS nº 03 (1884-1888) P. 12.
55
2º - Os cônjuges com filhos nascidos livres em virtude da lei de 28 de
setembro de 1871 (Lei do Ventre Livre) e menores de oito anos de
idade;
3º- Os cônjuges com filhos livres menores de 21 anos de idade;
4º- Os cônjuges com filhos menores escravos;
5º- As mães com filhos menores escravos;
6º- Os cônjuges sem filhos menores. ( REIS, 2007, p. 195)
Esta prioridade foi colocada em prática, pois pouco tempo depois encontramos
os nomes de Hylário, 36 anos e Victorina 33 anos, em outra procuração já destinada a
receber da Tesouraria Geral da Fazenda a quantia de 750$00 mil-réis, restante de
800$00 mil-réis pela libertação deles pelo Fundo de Emancipação. Os documentos não
informaram se estes tinham filhos, mas provavelmente sim, se olharmos que estavam
em idade apropriada à reprodução. Outro dado que não pode escapar a nossos olhos, foi
a quantidade solicitada pelo senhor e a evidência de já ter recebido 50$00 mil-réis, que
provavelmente pode ter sido pago pelos próprios escravos.
Outros casais também alcançaram a liberdade no mesmo momento. Entre estes
estão Simão e Antonia, casados, do domínio de Manoel Lopes da Silva; e José, de cor
preta, casado com Maria; estes últimos do domínio de José Caetano Ferreira.43
Nestes
exemplos, os cônjuges pertenciam ao mesmo senhor, o que segundo alguns
historiadores, facilitava a união, pois muitos senhores intervinham na escolha de seus
escravos e ainda proibiam o casamento com cativos de outro domínio, segundo Slenes,
Os senhores de escravos em Campinas praticamente proibiam o
casamento formal entre cativos de donos diferentes ou entre cativos e
pessoas livres. Na amostra da matrícula de 1872, não existem uniões
matrimoniais que cruzem a fronteira entre posses e há apenas alguns
casamentos entre escravos e libertos; além disso, nos assentos de
casamentos da Igreja ambos esses tipos de uniões são raros. Os
senhores campineiros não eram atípicos nesse respeito; em outras
localidades para as quais existem dados, a mesma “proibição” existia.
Em outras palavras, e invertendo a perspectiva, o escravo que queria
casar pela Igreja quase sempre tinha que encontrar seu cônjuge dentro
da mesma posse. (SLENES, 1999, p.75)
Ainda segundo Slenes, os senhores paulistas tinham interesse em que seus
escravos casassem formalmente na igreja, e isto não estava relacionado a apenas a
possibilidade de procriação, pois isto acontecia de qualquer forma, seja por meio de
uniões oficializadas, como também naquelas chamadas de “concubinato”. Em suma, o
casamento entre cativos também era uma “faca de dois gumes”, pois, por um lado
beneficiaria os cativos pelas relações de amor e solidariedade e, por outro, beneficiava
os senhores, que como bem coloca tal autor:
43
LIVRO DE NOTAS nº 02 ( 1876-1883), p. 37-38.
56
No mínimo a formação de uma família transforma o cativo e seus
parentes em “reféns”. Deixava-os mais vulneráveis as medidas
disciplinares do senhor (por exemplo, a venda como punição) e
elevava-lhes o custo da fuga, que afastava o fugitivo de seus entes
queridos e levantava para estes o espectro de possíveis represálias
senhoriais. (SLENES, 1999, p 115)
Assim, foi possível perceber que os senhores tinham bons motivos para
incentivar tais uniões, mas não se pode afirmar que os planos senhoriais tenham se
concretizado, pois a família escrava jamais se portaria da maneira sonhada pelos seus
donos. E também, os cativos, provavelmente, não tiveram a vida que queriam em
família por conta dos limites impostos pelo sistema escravista.
A realidade de Conceição do Coité em finais do século XIX revela algumas
particularidades, como por exemplo, o casamento entre escravos de domínios diferentes.
Foram encontrados nos documentos 04 casais que viviam nesta condição. O primeiro
formado por José, de cor preta, do domínio de Tito Ferreira da Silva e Maria do
domínio de José Caetano Ferreira. Os dois senhores registraram uma única procuração
para que o casal fosse apresentado à Junta de Classificação e, posteriormente, libertado.
Outro casal nesta condição foi Severino, escravo de José Gonçalves Pereira, casado com
Ana Agostinha, escrava de Manoel Gonçalves Guardiano.44
Assim, partilhamos da ideia de que em Conceição do Coité, na segunda metade
do século XIX, não havia o impedimento total de uniões matrimoniais entre escravos de
senhores diferentes, mas provavelmente havia consequências para estes casais, devido a
distância que teriam que conviver morando em propriedades distintas e até os conflitos
decorrentes das concepções justas de cativeiro que teriam que conciliar. Tal situação
poderia se complicar ainda mais se estes casais tivessem filhos, pois teriam que viver
em cativeiros separados e os ditos filhos receberiam tratamento diferenciado do dado
pelo senhor de seu pai, já que, geralmente, os filhos ficavam na companhia das mães.
Infelizmente, as fontes consultadas não trouxeram maiores informações sobre
estes escravos casados, mas mesmo com tais limitações, foi possível, através do
cruzamento das fontes, reconstituir uma família formada por cônjuges e filhos. O
primeiro indício desta família foi encontrado numa escritura de doação registrada em
1877, na qual os senhores Capitão Manoel Mâncio Lopes e sua mulher D. Phillipa
Maria de Jesus fizeram uma doação a seu genro Victoriano Antonio Oliveira de uma
escrava de nome Joanna, de cor fula, juntamente com duas crias livres, uma de nome
44
LIVRO DE NOTAS nº 02 (1876-1883), p. 38; 101
57
Raimundo e outra chamada de Gabriela que, pelas datas tinha apenas dois meses de
vida. Até aqui temos um tipo de família comum entre os cativos, formada apenas por
mães e filhos. Seguindo nossa trajetória, encontramos uma escritura de doação passada
em 1882, ou seja, cinco anos após a doação de Joanna, eles fazem uma nova
benevolência à sua filha. Desta vez, foi doado um escravo de nome Miguel, 34 anos, cor
fula e casado. Na dita escritura os senhores fizeram o seguinte discurso:
[...] que o haverão por herança e [...] pelo finado João da Cunha e
Araujo; cujo escravo foi por ele matriculado em dacta de treze de
janeiro de mil oitocentos e setenta e trez, sob os números sete mil
duzentos e setenta e cinco da matrícula geral do município e cinco da
relação apresentada [...] e como o dito escravo é casado com Joanna
escrava da sua filha Maria Lopes; doada pelos acima ditos, e o te o
presente eles doadores possuem livre e sem nenhum embaraço e por
conhecerem que desta forma, os tem separado, e vendo também a
necessidade que tem seu genro Victoriano Antonio de Oliveira de um
escravo que o ajude no trabalho da lavoura; passão eles doadores[...]45
Assim, reconstituímos uma família formada pelos cônjuges e por dois filhos, que
provavelmente eram de Miguel, já que a maior possibilidade de convivência foi o
período em que eles estiveram juntos na fazenda do capitão Manoel Lopes da Silva, que
declarou ter tomado posse do escravo em 1875, dois anos antes da doação de Joanna.
Portanto, há grandes chances dele ser o pai das crianças. Contudo, a história desta
família ainda teve um novo capítulo, pois o casal de doadores permaneceu com um
escravo de nome Salvador, 13 anos, cor preta e filho de sua ex-escrava Joanna. O nome
de Salvador surgiu numa escritura de doação feita pelos seus senhores ao Professor
Florentino Pinto da Silva em nome de sua esposa que possuía o sobrenome igual ao do
doador, o que evidencia uma relação de parentesco próxima.46
A escritura é datada de
1884, cerca de dois anos após a doação de Miguel e 07 anos após a doação de sua mãe.
A atitude desses senhores levanta alguns questionamentos. O primeiro é sobre a
lei de 1869, que segundo Slenes proibia a separação de escravos casados por venda.
Neste caso, trata-se de uma doação, mas o princípio da lei, ao que parece, é a separação
e assim, não tomemos a atitude dos senhores de Miguel e Joanna como um simples ato
de benevolência, já que havia leis em vigor no país que “protegiam” estes casais,
mesmo que sem muito êxito: “ao que parece a lei de 1869 não representou um divisor
de águas no que diz respeito a estabilidade dos matrimônios escravos” ( SLENES,1999,
p. 101).
45
LIVRO DE NOTAS nº 02 (1876-1883) p. 124-125. 46
LIVRO DE NOTAS nº 03 (1884-1889) p. 12-13.
58
Outro aspecto que merece atenção é a separação de Salvador de sua mãe Joanna,
com apenas 06 anos de idade. Ao considerar as datas presentes nas escrituras, Salvador
nasceu provavelmente entre 1870 e 1871; portanto, pode não ter sido beneficiado pela
Lei do Ventre Livre, mas é apenas uma hipótese, pois nem sempre a idade apontada
pelos senhores era a real, e sim muitas vezes, uma estimativa. Assim, parece ter havido
uma negligência quanto a aplicação da Lei de 1871 que também estabeleceu “a
proibição expressa de separar filhos menores de 12 anos do pai ou da mãe em qualquer
caso de alienação em transmissão de escravos.” ( MATTOS, 2008, p. 149).
Bem, como não foi possível identificar a paternidade de Miguel com relação a
Salvador, pode até ser que ele fosse filho de ambos os cônjuges e, portanto, quando a
mãe foi doada ele poderia ter permanecido na companhia apenas do pai. Todavia, é
possível que sua proprietária tenha esperado Salvador completar onze para doze anos
para fazer a doação de Miguel, o suposto pai e assim, fugir das restrições da lei. Não é
nossa intenção transformar D Phillipa em uma “pessoa ruim”, mas suas ações parecem
ter sido bem calculadas para não ter que doar Salvador junto com sua família e assim
teve a oportunidade de doá-lo depois, porém, os motivos desta doação ainda são
desconhecidos.
Resultados semelhantes aos encontrados nesta pesquisa sobre o casamento entre
cônjuges de senhores diferentes, também foram evidenciados por Iara Nancy Rios em
estudo sobre Coité num período anterior ao contemplado por este trabalho, nos anos de
1855- 1862. Ana Paula Lacerda também encontrou 11 registros de casamentos entre
cativos de senhores diferentes em Serrinha, o que mostra as peculiaridades presentes em
pequenas propriedades do sertão baiano (LACERDA, 2008).
3.3 – Unidos sob condições desiguais
Outro dado relevante encontrado nos documentos foi a união conjugal entre
escravos e libertos e escravos com pessoas livres. Entre as uniões nucleares encontradas
nesta pesquisa em 07 casos, os casais estavam em condição jurídica diferente, no qual
um era cativo e o outro livre. Em dois casos as mulheres eram cativas, casadas com
homens que já haviam conquistado a liberdade. A situação em que estavam envolvidos
no documento era justamente a conquista da alforria daquele que ainda era escravo. Este
59
foi o exemplo de Joana47
, cor fula, casada com José, livre, que passaria pela Junta de
Classificação para ser avaliada. Também foi encontrada outra procuração que fazia
menção ao recebimento do pagamento da liberdade de Joana pelo Fundo de
Emancipação.
O outro caso diz respeito a escrava Bárbara, de cor preta, casada com Antônio, já
liberto. Bárbara48
era escrava do domínio de D. Clemência Maria de Jesus e também
passou pela Junta de Classificação e alcançou a liberdade logo em seguida.
Com relação às ex-escravas casadas com homens cativos, foram encontrados 04
casos: Thomáz, de cor preta casado com Maria, livre; Ignácio, de cor preta casado com
Joana já livre; Liberto, casado com Quintiliana livre e Manoel49
, casado com Josefa, já
livre. Em todos estes casos, a alforria do cativo foi alcançada.
A historiografia da escravidão tem demonstrado que um dos grandes projetos da
família escrava era alcançar a liberdade de todos os seus membros, e os exemplos
citados mostram as aspirações dos cônjuges em viver em jugo igual, fato também
evidenciado por Isabel Cristina Reis em estudo sobre a família escrava na Bahia. Ela
encontrou exemplos de casamentos “mistos” no qual 08 mulheres libertas casaram com
escravizados e 04 homens libertos se casaram com mulheres cativas (REIS, 2007).
Outro ponto que chama a atenção é a aplicação das prioridades do Fundo de
Emancipação que, mesmo tendo uma atuação considerada por historiadores “como
pouco eficaz, sua existência teve relevância no sentido de alimentar a chama da
esperança negra em conquistar a própria liberdade ou de famílias.” (REIS, 2007, p. 26)
Os cativos de Conceição do Coité não se casavam apenas com escravos e
libertos, houve casamentos entre cativos e pessoas livres que não tiveram contato com a
escravidão. Em período anterior ao utilizado nesta pesquisa, Iara Nancy Rios encontrou
evidências de três casamentos entre escravos e pessoas livres (RIOS, 2003).
Especialmente no período de 1869-1888 foram encontrados registros de 04 casamentos
deste tipo. Em 03 destes, tratava-se de escravas casadas com homens livres, sendo
possível identificar apenas o nome de um dos maridos: o de Anna50
, com 39 anos,
casada com Joaquim da Cunha. Nos demais aparece apenas o termo “casada com
homem livre”.
47
LIVRO DE NOTAS nº 02 (1876-1883), p. 37. 48
LIVRO DE NOTAS nº 02 (1876-1883), p. 38-39. 49
LIVRO DE NOTAS nº 02 (1876-1883), p.39; 38; 104; 108 50
LIVRO DE NOTAS nº 02 (1876-1883) p.113-114.
60
Já o caso de um cativo casado com mulher livre há também a referência de
apenas o nome do escravo. Neste caso específico, Antônio51
, pardo com 48 anos. Nesta
situação parece que o preconceito da sociedade ainda era maior com relação à mulher
branca casada com um negro, o que evidencia Mott quando diz, “[...] pois aquela época,
uma mulher branca casar-se ou amigar-se com um negro representava conduta das mais
recriminadas, sintoma de descaração por parte da mulher alva, considerada como
traidora e indigna.” (MOTT apud REIS, 2007, p. 98)
Resultados semelhantes aos de Coité também foram encontrados em Serrinha.
Ana Paula Lacerda encontrou o registro de 28 uniões entre cativos e pessoas livres,
apontados por ela como um fator que “poderia facilitar a conquista da alforria,
principalmente se o homem fosse livre e possuísse algum tipo de posse” (LACERDA,
2007, p. 96). Todos os casais “mistos” encontrados em Coité estavam envolvidos na
conquista da alforria, o que dialoga mais uma vez com Ana Paula Lacerda, quando
afirma que “aqueles que possuíam laços afetivos com cativos também se envolviam em
seus projetos de liberdade, contribuindo de alguma forma com a alforria do cativo”
(LACERDA, 2007, p. 96).
Chalhoub em Visões da Liberdade narrou a história do pardo liberto Agostinho
Lima, e da parda cativa Deoclécia que mantiveram um relacionamento amoroso por um
curto período, mas compartilhavam dos mesmos objetivos. Sobre a diferenciação
jurídica, ele também afirmou que “uma história de amor como essa entre um liberto e
uma escrava podia levar a um esforço conjunto para conseguir a alforria do amante que
ainda sofria o cativeiro” (CHALHOUB, 1989, p.216).
Dessa forma, foi possível notar que o contexto vivenciado pelos escravos de
Conceição do Coité não impediu a formação de famílias entre escravos, e alguns
senhores não condenaram a união entre seus cativos com pessoas em condições
jurídicas diferentes ou com cativos de outros domínios. Portanto, a ideia de que em
pequenas propriedades foi rara a formação de famílias escravas nucleares não se aplica
a Conceição do Coité.
51
LIVRO DE NOTAS nº 03 (1876-1883) P. 25-26.
61
3.4- Ligados pelo amor materno
Kátia Mattoso constatou em seu estudo sobre a família escrava baiana do século
XIX, que entre os cativos havia a predominância de famílias matrifocais, ou seja,
parciais, formadas por mães e filhos. Estas mães que apareciam nos documentos como
“solteiras” até poderiam ter uniões estáveis não oficializadas pela Igreja, mas como não
eram legalizadas, o nome de seus companheiros não aparecia nos documentos. Além
disso, sabe-se que a condição do filho era diretamente associada a da mãe, e por isso
apenas seus nomes apareciam em documentos de compra, venda e alforria de seus filhos
cativos ou ingênuos. O nome de seus companheiros sempre ficava oculto por falta de
reconhecimento legal. (MATTOSO, 1992)
Em Conceição do Coité, no século XIX (1869-1888), foram encontradas 26
famílias formadas por mães e seus filhos que conviviam na mesma propriedade e os
filhos solteiros, sem prole. Alguns fatores podem ter contribuído para a formação destas
famílias matrifocais, como por exemplo, a estrutura econômica, na qual cada
proprietário possuía poucos escravos e se desfazia deles através de vendas em
momentos de crise e também por divisões de heranças. Em estudo sobre Santana do
Parnaíba Alida Metcalf afirmou que,
[...] a estrutura econômica da escravidão em Parnaíba e a
instabilidade da vida familiar dos escravos de pequenos proprietários
encorajaram a formação de famílias escravas matrifocais. Tais
famílias formaram-se como parte do ciclo familiar dos escravos,
surgindo em épocas de mudança econômica na vida dos proprietários-
quando escravos eram vendidos- ou após herança- quando famílias
eram separadas. Em tais épocas, o laço familiar mais provável de ser
reconhecido e mantido pelos senhores era o entre mãe e filhos. Por
razões bastante práticas conservavam-se frequentemente as mães junto
com seus filhos, especialmente os pequenos proprietários, para que
elas pudessem continuar a criá-los. O vínculo entre mães e filhos foi,
de certa forma, o menor denominador comum da família escrava, e
aquele com maior probabilidade de sobreviver aos deslocamentos
durante o ciclo familiar escravo causados por herança ou mudanças
econômicas na vida do proprietário. (METCALF apud LACERDA,
2008, p.102)
Assim, encontramos em Conceição do Coité, mães sendo vendidas na
companhia de seus filhos, como a escrava Francisca52
, preta, 31 anos, do domínio de
Antônio Estévão Mascarenhas, vendida sozinha em 09 de agosto de 1872, por 400$00.
Mas, seu senhor desfez a negociação porque ela tinha três filhos menores: Mathildes, 08
anos; Maurício 05 e Phillipa com apenas 02 anos de idade, que bem poderia ser de 52
LIVRO DE NOTAS nº 01 (1869-1875) p.70-71.
62
ventre livre, dependendo da data do nascimento. Como se sabe, os filhos menores de 12
anos, não deveriam ser separados das mães devido as prerrogativas da Lei do Ventre
Livre. Nesse sentido, o senhor Antônio Estévão Mascarenhas anulou a escritura de
compra e venda, e realizou a venda da escrava Francisca junto com seus três filhos em
uma nova escritura, vendendo a mãe e os três filhos juntos. No documento ele afirmou
que,
[...] disse mais o dito outorgante vendedor, que tendo primeiro feito
venda da escrava Francisca, ao dito comprador Manoel Joaquim d‟
Oliveira, pela quantia de quatrocentos mil-réis, e tendo este pago a
siza, e sendo nullo este contracto em virtude de não se poder separar
os filhos menores de doze annos de suas mães e nem esta dos filhos, e
tendo contractado com o mesmo comprador a venda das crias menores
de doze annos filhas da mesma escrava pela quantia de novecentos
mil-réis agora passa esta escritura nem só das três crias como também
da escrava ao mesmo comprador [...] 53
Esta maneira do vendedor desfazer a compra apenas da mãe dos menores,
quando faz referência a exigência do cumprimento da lei, evidencia que ele tinha
conhecimento das leis vigentes no Brasil relacionadas à escravidão. Neste caso, o receio
que afetava a comissão do governo ao aprovar a Lei de 1871 não se concretizou, pois
este senhor teve a “boa vontade” em cumprir esta prerrogativa, ou talvez tenha sido
conduzido a tal decisão.
Entre as famílias matrifocais que foram encontradas, estava Apollinaria, de cor
preta, com 28 anos de idade, declarada como solteira com seus 06 filhos, todos do
domínio de José Joaquim de Santanna, no ano de 1877. Os filhos de Apollinaria eram:
Galdino, 09 anos; Martim, 08 anos; Antonio, 07; Severino, Hermenegildo e
Guilhermino que não houve especificação quanto a idade. Na procuração consta que o
senhor gostaria de vender toda família a um mesmo comprador, provavelmente por
causa da condição dos menores.54
A maior parte das famílias encontradas neste estudo era formada pela mãe e
poucos filhos, variando de 02 a 03. Contudo, não se pode tomar estes números como o
real devido a insuficiência de informações nas fontes consultadas e ainda ao número
reduzido de tipos de documentos consultados. Dessa forma, não se pode afirmar que as
famílias de Coité eram predominantemente pequenas. Esta realidade foi evidenciada em
Serrinha, onde foi encontrado vários exemplos de famílias matrifocais com um pequeno
número de filhos. Para Lacerda “as famílias eram menores talvez pela incerteza dessas
53
LIVRO DE NOTAS nº 01 (1869-1871) p. 44-45. 54
LIVRO DE NOTAS nº 03 (1884-1889) p. 46
63
mulheres numa difícil labuta diária para criar sozinhas seus filhos” (LACERDA, 2008,
p. 104).
Sobre esta situação, Elizângela Ferreira diz o seguinte,
[...] nos sertões da Bahia, sem poder contar com o apoio de uma
presença masculina, „tão necessária nessa sociedade em que o verbo
poder se conjugava no masculino‟, não raro as mulheres se viam
sobrecarregadas pela difícil tarefa de criar sozinhas suas proles
ilegítimas, sobretudo nos grupos menos favorecidos, incluindo as
escravas. (FERREIRA, 2008, p. 353-354)
As mães eram na verdade as protetoras e sonhavam com a libertação não apenas
para si, mas principalmente para sua prole. Um exemplo disso foi o ocorrido no dia
dezoito de agosto de 1866, quando a escrava Luiza compra a alforria de sua filha a
“mulatinha” Bernardina por setenta mil réis a seu senhor Francisco Lopes Guimaranes.
Não se sabe o porquê, mas, sua carta de alforria só foi registrada em 1869, fato que
ocorreu em muitos casos encontrados. O dinheiro pago por Luiza pode ter sido fruto de
economias resultantes de trabalhos extras em dias permitidos pelo senhor.55
Além de todos os pormenores sofridos no dia-a-dia com o jugo da escravidão, as
mães conviviam com a presença do fantasma da separação de seus filhos não
beneficiados com a Lei do Ventre Livre e até dos beneficiados que deveriam ficar sob a
tutela de seus senhores até 08 anos e dependendo da decisão destes, até completar os 21.
A escrava Francisca conviveu com esse sofrimento ao ver seus dois filhos afastados de
sua companhia por meio de vendas. O primeiro filho a ser vendido foi Anacleto com
apenas um ano de idade pelo seu senhor Bernardino José da Cunha ao Tenente Antonio
Manoel Mâncio. Oito dias após esta venda, o senhor de Francisca vendeu Marcolina, 09
anos de idade, filha da dita escrava ao mesmo senhor que comprou Anacleto, vendendo-
o logo em seguida a João Nunes Lopes Sobrinho.56
Assim, a família foi dividida e os
documentos silenciaram quanto a trajetória desta mãe e de seus filhos, nos impedindo
de descobrir se um dia eles conseguiram se reencontrar e refizeram os laços rompidos
pelo sistema escravista.
Segundo Elizângela Ferreir “a estabilidade era sem dúvida almejada com fervor,
mas algo com que os escravos nem sempre podiam contar” (FERREIRA, 2008, p. 348).
Esta autora traz em seu trabalho a história de vida de Maria que fugiu de Pernambuco
com toda sua família levando consigo um sonho de liberdade. Uma das hipóteses que
55
LIVRO DE NOTAS nº 02 ( 1876-1883) P. 11 56
LIVRO DE NOTAS nº 01 (1869-1875) p. 23, 25, 42, 43, 44.
64
pode ter motivado a fuga foi o medo de ter sua família separada por vendas a um
fazendeiro da região.
Além desses casos citados, a historiografia registrou várias histórias de famílias
que empreendiam a fuga coletivamente por medo da separação e pelo desejo de alcançar
a liberdade para todos os membros. Sobre isto Isabel Cristina Reis informou que,
Um aspecto que nos interessa particularmente é o das fugas em
família. Um escravo podia buscar a liberdade sozinho ou
acompanhado de um ou mais parceiros. Temos notícias de fugas em
grupo de escravos pertencentes a um mesmo engenho. Porém, as fugas
empreendidas quer por membros de uma mesma família escrava- pai,
mãe, filhos, irmãos, parentes- quer por casais de escravos casados
legalmente ou que mantinham relação consensual- parceiros afetivos
frequentemente denominados como “amásios”, “camaradas”-, que
juntos decidiam conquistar a liberdade, tem um sentido muito
especial. Representam o desejo de viver em liberdade e a liberdade
incluía a companhia dos seus. (REIS, 2007, p. 32)
Dessa forma, vale afirmar que a existência da família escrava se deu em
Conceição do Coité de formas variadas e, mesmo que o número das famílias nucleares
encontradas tenha sido pequeno, não significa que as vivências familiares existiram em
pequena escala, pois as mães classificadas como “solteiras” poderiam ter uniões afetivas
não legalizadas pela igreja. Outra afirmação a acrescentar é que a família cativa de
Coité também esteve empenhada em alcançar a liberdade para todos os seus.
65
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao analisar os documentos encontrados, as escrituras de compras e vendas de
escravos, as cartas de alforrias e as procurações no período do 1869-1888, foi possível
identificar o perfil dos escravos, as situações que eram envolvidos e as conseqüências
que sofriam dentro das relações escravistas. Dessa forma, os cativos de Conceição do
Coité em finais do século XIX eram compostos por uma população em sua maioria
formada por pardos, pretos e crioulos evidenciando que eram nascidos no Brasil. No
tocante ao sexo dos escravos comercializados havia uma equivalência entre o número de
homens e de mulheres. O escravo era visto como uma mercadoria pelos senhores e por
isso eram avaliados seguindo alguns critérios, como o sexo e a idade que eram
diferenciais consideráveis. No período estudado (1869-1888), ficou perceptível que as
mulheres eram avaliadas em preços inferiores aos dos homens, mesmo considerando
que estas eram responsáveis também por procriar e aumentar o número de cativos de
seu senhor. No geral, eles eram comercializados entre os próprios moradores da
freguesia e, em sua maioria, eram destinados ao trabalho da lavoura.
Os escravos de Conceição do Coité não se comportavam de forma passiva diante
do sistema escravista. Foi possível perceber que eles se utilizavam de estratégias para
negociar com seus senhores a tão sonhada alforria. Foram escravos que conquistaram a
liberdade tanto pagando-a com o uso do pecúlio como também alcançando-a de forma
gratuita, possivelmente a partir do bom comportamento, que também era uma tática.
Foram ativos na investida de seus sonhos, como a escrava Martinha que conseguiu
comprar de volta os seus irmãos afastados dela ainda na infância; e de escravos como
Luiza que comprou a alforria de sua filha Bernardina, pagando ao seu senhor o valor
estipulado. Assim, as relações familiares foram de suma importância para que o escravo
se posicionasse como sujeito ativo que tomava as rédeas de sua vida e quando investia
nos sonhos de seus próximos, principalmente na busca pela liberdade.
Alguns documentos encontrados revelaram a existência de uma “Ação de
Liberdade” impetrada pelo escravo José contra sua senhora e outros revelando a
concretização da fuga de duas escravas, porém, não foi objetivo deste trabalho
problematizar estas questões nesse momento. Estas são uma outra história que poderá
ser contada em uma pesquisa futura.
66
Assim, esse espaço do sertão baiano foi palco de muitas “Franciscas”, Joanas,
Beneditos, Anacletos e tantos outros escravos que apontei no decorrer deste trabalho. É
impossível querer negar a existência da escravidão e as estratégias de resistência usadas
por esses escravos em Conceição do Coité, e mesmo que a população dominante de
séculos posteriores ao XIX tentasse apagar a memória escrava, estes vestígios ficaram
registrados no tempo em documentos cartoriais que durante longos anos ficaram
arquivados, silenciando a história daqueles que foram agentes de suas próprias histórias
e também de uma localidade com suas especificidades, agregando contribuições para a
historiografia nacional.
A contribuição deste trabalho se insere na tentativa de mostrar que a negação da
escravidão na Freguesia de Conceição do Coité não é legítima. A dinâmica apresentada
nos documentos apontaram para uma realidade escravocrata, com suas repressões e
resistências. Além das discussões trazidas nesta pesquisa há ainda uma gama de
possibilidades de estudos sobre a escravidão em Conceição do Coité e região.
67
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