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    Terry Eagleton afirma que o termo cultura comumente considerado o mais

    complexo de todos e, embora esteja em moda considerar a natureza como um derivadoda cultura, o conceito de cultura, etimologicamente falando, um conceito derivado dode natureza. Um de seus significados originais lavoura ou cultivo agrcola epassou-se muito tempo at que a palavra viesse a denotar no uma atividade, mas umaentidade e foi com Matthew Arnold que a palavra desligou-se de adjetivos comomoral e intelectual e tornou-se apenas cultura, uma abstrao em si mesma.

    Cultura denotava de incio um processo completamente material, que foi depoismetaforicamente transferido para questes do esprito. Assim, a palavra mapeia amudana histrica da prpria humanidade da existncia rural para a urbana e, no

    linguajar marxista, ela rene em uma nica noo tanto a base como a superestrutura.Mas essa mudana semntica tambm paradoxal: so os habitantes urbanos que socultos, e aqueles que realmente vivem lavrando o solo no o so.

    A raiz latina da palavra cultura colere, o que pode significar qualquer coisa, desdecultivar e habitar a adorar e proteger. Seu significado de habitar evoluiu do latimcolonuspara o contemporneo colonialismo. Mas colere tambm desemboca, vialatim cultus, no termo religioso culto, assim como a prpria ideia de cultura vem naIdade Moderna a colocar-se no lugar de um sentido desvanecente de divindade etranscendncia. A cultura, ento, herda o manto imponente da autoridade religiosa, mas

    tambm tem afinidades desconfortveis com ocupao e invaso; e entre esses doispolos, positivo e negativo, que o conceito est localizado nos dias de hoje. Cultura uma ideia que tem sido to essencial para a esquerda poltica quanto vital para a direita,o que torna sua histria social confusa e ambivalente.

    A palavra cultura tambm codifica vrias questes filosficas fundamentais. Nestenico termo, entram em foco questes de liberdade e determinismo, o fazer e o sofrer,mudana e identidade, o dado e o criado. Se cultura significa cultivo daquilo que crescenaturalmente, o termo sugere uma dialtica entre o artificial e o natural. No sentido

    epistemolgico, uma noo realista j que implica a existncia de uma natureza oumatria prima alm de ns; mas tem tambm a dimenso construtivista, j que essamatria prima precisa ser elaborada de uma forma humanamente significativa.

    Numa outra virada dialtica, os meios culturais que usamos para transformar a naturezaso eles prprios derivados dela. A natureza produz cultura que transforma a natureza.Se a natureza sempre de alguma forma cultural, ento as culturas so construdas combase no incessante trfego com a natureza que chamamos trabalho. Como afirma ogegrafo David Harvey, no h nada de antinatural a respeito da cidade de NovaIorque e os povos tribais no podem ser considerados mais prximos da natureza que

    o Ocidente. A palavra manufatura originalmente significava habilidade manual e

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    assim orgnica, mas veio com o passardo tempo denotar produo mecnica emmassa, ganhando assim uma nuana pejorativa de artifcio.

    Se cultura originalmente significa cultivo agrcola, ela sugere tanto regulao comocrescimento espontneo. O cultural o que podemos mudar, mas o material a ser

    alterado tem sua prpria existncia autnoma, a qual ento lhe empresta algo darecalcitrncia da natureza. Mas cultura tambm uma questo de seguir regras, e issotambm envolve uma interao entre o regulado e o no regulado, sendo que seguirregras no similar a obedecer a uma lei fsica e implica uma aplicao criativa da regraem questo, no podendo haver regras para aplicar regras, sob pena de um regressoinfinito. Regras, como culturas, no so nem puramente aleatrias nem rigidamentedeterminadas assim, ambas envolvem a ideia de liberdade.

    A ideia de cultura, ento, significa uma dupla recusa: do determinismo orgnico, por umlado, e da autonomia do esprito, por outro. uma rejeio tanto do naturalismo comodo idealismo, insistindo, contra o primeiro, que existe algo na natureza que a excede e aanula, e, contra o idealismo, que mesmo o mais nobre agir humano tem suas razeshumildes em nossa biologia e no ambiente natural. Se o conceito se ope tenazmente aodeterminismo, igualmente cauteloso com relao ao voluntarismo. Os seres humanosno so meros produtos de seus ambientes, mas tampouco so esses ambientes puraargila para automoldagem arbitrria daqueles. Se a cultura transfigura a natureza, esse um projeto para o qual a natureza coloca limites rigorosos. Prpria palavra culturacompreende uma tenso entre fazer e ser feito, racionalidade e espontaneidade, e atalude ao contraste poltico entre evoluo e revoluo.

    H outro sentido em que a palavra cultura est voltada para duas direes opostas,pois ela pode tambm sugerir uma diviso dentro de ns mesmos, entre aquela parte dens que se cultiva e refina, e aquilo dentro de ns que constitui a matria prima paraesse refinamento. Uma vez que seja entendida como autocultura, ela postula umadualidade entre faculdades superiores e inferiores, vontade e desejo, razo e paixo,dualidade que ela ento, prope-se imediatamente a superar. A natureza agora no apenas a matria constitutiva do mundo, mas a matria constitutiva do eu. Assim, acultura uma questo de autossuperao quanto de autorrealizao. A natureza humanaprecisa ser cultivadade modo que, assim como a palavra cultura nos transfere do

    natural para o espiritual, tambm sugere uma afinidade entre eles.

    Nesse processo de automoldagem, unem-se mais uma vez ao e passividade, desta veznos mesmos indivduos. Assim como a natureza, temos de ser moldados fora, masdiferente dela podemos fazer isso a ns mesmos. Porm, deixada prpria conta, nossanatureza no vai se elevar espontaneamente graa da cultura; essa graa precisacooperar com as tendncias inatas da prpria natureza, a fim de induzi-la a transcender asi mesma e, assim como ela, a cultura j deve apresentar um potencial dentro danatureza humana, se for para que vingue.

    Cultivo, entretanto, pode no ser apenas algo que fazemos a ns mesmos. Tambm podeser algo feito a ns, em especial pelo Estado, pois para que floresa ele precisa incutir

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    de civilizao, no sentido de um processo geral de progresso intelectual, espiritual ematerial e pertencia ao esprito geral do iluminismo. Na qualidade de ideia, civilizaoequipara costumes e moral e a prpria palavra implica uma correlao dbia entreconduta polida e comportamento tico. Civilizao era uma noo francesa e nomeavatanto o processo gradual de refinamento social como o tlos utpico rumo ao qual seestava desenvolvendo. Todavia, ao passo que a civilizao francesa inclua a vida

    poltica, econmica e tcnica, a cultura germnica tinha uma referncia mais religiosa,artstica e intelectual. Assim, a civilizao minimizava as diferenas nacionais, ao

    passo que a cultura as realava e essa tenso teve relao muito forte com a rivalidadeentre Frana e Alemanha.

    Trs coisas sucedem a essa noo por volta da virada do sculo XIX. Em primeirolugar, ela comea a deixar de ser um sinnimo de civilizao para virar seu antnimo.Como cultura, a palavra civilizao em parte descritiva e em parte normativa: ela

    pode tanto designar neutramente uma forma de vida como recomendar implicitamenteuma forma de vida por sua humanidade, esclarecimento e refinamento. E se acivilizao no apenas um estgio de desenvolvimento em sim, mas um estgio queest constantemente evoluindo dentro de si mesmo, ento a palavra mais uma vezunifica fato e valor.

    O problema comea quando os aspectos descritivo e normativo da palavra comeam ase separar. A cultura uma questo do desenvolvimento total e harmonioso dapersonalidade, mas ningum pode realizar isso estando isolado; pessoal e social. Foiessa constatao de impossibilidade que ajudou a deslocar cultura de seu significado

    individual para o social e como ela exige certas condies sociais, que podem envolvero Estado, pode ser que ela tambm tenha uma dimenso poltica.

    Por volta do final do sculo XIX, civilizao, por sua vez, tinha tambm adquiridouma conotao inevitavelmente imperialista e, consequentemente, era necessrio outrapalavra para designar como a vida social deveria ser. Os alemes tomaram emprestado otermo francs culture para esse propsito e Kulturou cultura tornou-se o nome dacrtica romntica pr-marxista ao capitalismo industrial primitivo.

    Quanto mais predatria e envilecida parece ser a civilizao real, mais a ideia de cultura

    forada a uma atitude crtica e essa Kulturkritikest em guerra com a civilizao,estando a cultura cada vez mais em desacordo com o intercurso social. Entretanto, se acultura deve ser uma crtica efetiva ela precisa manter sua dimenso social e no podesimplesmente recair em seu antigo sentido de cultivo individual. Assim, nascido nocorao do iluminismo, o conceito de cultura lutava agora contra os seus progenitores eo conflito entre cultura e civilizao, assim, fazia parte de uma intensa querela entretradio e modernidade, que era, at certo ponto, fingida. Para Matthew Arnold e seusdiscpulos, o oposto de cultura era uma anarquia engendrada pela prpria civilizao.Uma sociedade materialista acabaria produzindo seus destruidores e ao refinar esses

    rebeldes a cultura encontrar-se-ia indo em socorro da prpria civilizao pela qual sentiadesprezo. Assim, embora os fios polticos entre os dois conceitos estivessem

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    emaranhados, a civilizao era no seu todo burguesa, enquanto a cultura era ao mesmotempo aristocrtica e populista.

    Essa virada do conceito o segundo elemento de desenvolvimento que Williamsdescobre. Para Herder, isso um ataque consciente contra o universalismo do

    iluminismo e a cultura significa uma diversidade de formas de vida especficas, cadauma com suas leis evolutivas prprias. De fato, como assinala Robert Young, oiluminismo no se opunha a essa perspectiva e podia estar aberto a culturas noeuropeias de formas que relativizavam perigosamente seus prprios valores. MasHerder associa a luta entre os dois sentidos da palavra cultura a um conflito entre aEuropa e seus Outros coloniais; tratava-se de impor uma cultura europeia ilusoriamentesuperior.

    Ainda no pensamento de Herder, a origem da ideia de cultura como um modo de vidacaracterstico est estreitamente ligada a um pendor romntico anticolonialista porsociedades exticas subjugadas. O exotismo ressurgir no sculo XX nos aspectosprimitivos do modernismo, que segue de mos dadas com o crescimento da modernaantropologia cultural, e aflorar bem mais tarde numa romantizao da cultura popular.

    Num gesto prfigurativo do ps-modernismo, Herder prope pluralizar o termocultura, falando das culturas de diferentes naes e perodos, bem como de diferentesculturas sociais e econmicas dentro da prpria nao. este sentido da palavra quecriar razes em meados do sculo XIX, mas que no se estabelecer decididamente ato incio do sculo XX. Cultura, ento, agora tambm quase o oposto de civilidade,

    mais um modo de descrever selvagens do que um termo para os civilizados, numainverso curiosa; agora os selvagens que so cultos. Para os romnticos radicais, acultura orgnica podia fornecer uma crtica da sociedade real; para o pensadorEdmund Burke, podia fornecer uma metfora para a sociedade real e proteg-la de talcrtica.

    A cultura como orgnica, assim como a cultura como civilidade, paira entre fato e valor.Em um sentido, ela no faz mais do que designar uma forma de vida tradicional, mas jque comunidade, tradio, ter razes e solidariedade so noes que se supe queaprovemos, poder-se-ia pensar haver algo positivo no simples fato da pluralidade de tais

    formas. essa fuso do descritivo e do normativo, conservada tanto de civilizaoquanto do sentido universalista de cultura, que despontar na nossa prpria poca soba roupagem de relativismo cultural. medida que a cultura como civilizao rigorosamente discriminativa, a cultura como forma de vida no o . Bom tudo o quesurge autenticamente das pessoas, no importa quem sejam elas. A cultura comocivilizao tinha tomado emprestadas suas distines entre elevado e baixo daantropologia, para quem algumas culturas eram superiores a outras; mas medida queos debates foram desenvolvendo-se, o sentido antropolgico da palavra tornou-se maisdescritivo do que valorativo e no fazia mais sentido elevar uma cultura acima de outra.

    Para os ps-modernistas, modos de vida totais devem ser louvados quando se trata dedissidentes ou grupos minoritrios, mas censurado quando se trata de maiorias. Como

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    teoria, o ps-modernismo aparece depois dos grandes movimentos de libertaonacional dos meados do sculo XX, e jovem demais para recordar-se de taiscataclismos polticos. Com efeito, o prprio termo ps-colonialismo significa uminteresse pelas sociedades do Terceiro Mundo que j passaram por suas lutasanticoloniais e que, portanto, tm pouca probabilidade de causar embaraos para ostericos ocidentais que apreciam os oprimidos, mas no mais cticos no que diz respeitoa conceitos como revoluo poltica.

    Pluralizar o conceito de cultura no facilmente compatvel com a manuteno de seucarter positivo. muito simples ter entusiasmo pela cultura comoautodesenvolvimento humanstico, mas to logo se comece a decompor a ideia decultura para abranger, por exemplo, culturas de tortura que fica menos evidente que essaseja uma forma cultural a ser aprovada simplesmente porque forma cultural. Os queconsideram a pluralidade como um valor em si mesmo so formalistas puros e no

    perceberam a variedade de formas que, por exemplo, pode assumir o racismo. Dequalquer modo, o pluralismo encontra-se cruzado com a auto-identidade; em vez dedissolver identidades distintas, ele as multiplica. Estritamente falando, s se podehibridizar uma cultura que pura; mas como Edward Said sugere, nenhuma cultura isolada e pura, todas esto envolvidas umas com as outras, so hbridas e o capitalismo a mais heterognea das culturas humanas.

    Se a primeira variante importante da palavra cultura a crtica anticapitalista, e asegunda um estreitamento e, concomitantemente, uma pluralizao da noo de vidatotal, a terceira sua gradual especializao s artes. Aqui, o significado da palavra

    pode incluir atividade intelectual em geral ou ser ainda mais limitada a atividadessupostamente mais imaginativas, como a Msica, a Pintura e a Literatura. Pessoascultas so pessoas que tm cultura nesse sentido. Sugere que a Cincia, a Filosofia, aPoltica e a Economia j no podem ser vistas como criativas ou imaginativas e quevalores civilizados s podem agora ser encontrados na fantasia e isso umcomentrio mordaz a respeito da realidade social.

    A histria das consequncias disso para as prprias artesna medida em que se atribuia elas uma importante significao social de que so por demais frgeis e delicadasfaz parte da narrativa do modernismo. o ps-modernismo que procura aliviar as artes

    dessa carga opressiva instigando-as a esquecer todos esses sonhos de profundidade,deixando-as livres para uma espcie de independncia. Bem antes disso, entretanto, oromantismo tentou buscar na cultura esttica tanto uma alternativa poltica como oprprio paradigma de uma ordem poltica transformadora. A arte podia agora modelar aboa vida no por meio de uma representao desta, mas sendo si mesma, oferecendo oescndalo de sua existncia como uma crtica silenciosa do valor de troca e daracionalidade instrumental. Essa elevao da arte a servio da humanidade, porm, eraautodestrutiva, j que conferia ao artista romntico o status transcendente em desacordocom a significao poltica desse artista e visto que a imagem da vida boa veio

    gradualmente a representar sua real inacessibilidade.

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    A cultura era autodestrutiva tambm em outro sentido. O que a tornava crtica docapitalismo industrial era a sua afirmao de totalidade, de simetria, dodesenvolvimento, a todos os respeitos, das capacidades humanas. Porm, de Schiller aRuskin, essa totalidade colocada em oposio aos efeitos assimtricos de uma divisodo trabalho que tolhe e diminui as capacidades humanas. O marxismo tambm temalgumas de suas fontes nessa tradio romntico-humanista. A cultura , tambm, umaideia que se posiciona firmemente contra o partidarismo; estar comprometido comalguma posio ser inculto. Assim, a cultura um antdoto poltica, moderando afantica estreiteza de mentalidade no seu apelo pelo equilbrio, pelo manter a menteserenamente imaculada de tudo que seja tendencioso, desequilibrado, sectrio. Acultura, ento, pode ser uma crtica do capitalismo, mas igualmente uma crtica dasposies que se opem a ele e exige dos que clamam por justia que olhem para alm deseus prprios interesses parciais, que olhem para o todo e, portanto, no importa queesses interesses sejam mutuamente contraditrios.

    Com essa recusa do partidarismo, a cultura aparenta ser uma noo politicamenteneutra, mas nesse compromisso formal com a multiformidade que ela maisclamorosamente partidria. A cultura insiste que as faculdades humanas devam serrealizadas harmoniosamente e insinua, por conseguinte, uma poltica no nvel de forma.Pede-se que acreditemos que a unidade inerentemente prefervel ao conflito, ou asimetria unilateralidade, e tambm que isso no em si uma posio poltica, masexiste, de fato, uma poltica implcita nessa no utilidade.

    Ser civilizado ou culto portar-se razovel e moderadamente, com uma sensibilidade

    inata para os interesses dos outros, exercitar a autodisciplina e estar preparado parasacrificar os prprios interesses egostas pelo bem do todo. Algumas dessas prescriescertamente no so politicamente inocentes. Ao contrrio, o indivduo culto parece-secom um liberal de tendncias conservadoras.

    A noo do estado esttico de Friedrich Schiller como um estado negativo decompleta ausncia de determinao. Na condio esttica estamos suspensos em umestado de possibilidade perptua. A cultura, porque no toma sob sua proteo nenhumafaculdade singular do homem excluso das outras... favorece cada uma e todas elassem distino e ao cultivar toda possibilidade at seu limite, arrisca a deixar-nos com os

    msculos imobilizados, tal o efeito paralisante da ironia romntica. Quandofinalmente passamos a agir, encerramos essa liberdade de ao com o especfico, masfazemos isso com a conscincia de outras possibilidades.

    Para Schiller, a cultura parecia ser ao mesmo tempo fonte da ao e negao dela. ParaMatthew Arnold, a cultura , ao mesmo tempo, um ideal de perfeio absoluta e oprocesso histrico imperfeito que trabalha para esse fim.

    A palavra cultura tambm o lugar de um conflito poltico e, como coloca RaymondWilliams, o complexo de sentidos dentro do termo indica um argumento complexo

    acerca das relaes entre desenvolvimento humano geral e um modo de vida particular,e entre ambos e as obras da arte e da inteligncia.

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    A corrente de pensamento da kulturphilosophie europeia poderia ser vista como umesforo para ligar vrios significados de cultura que esto gradualmente distanciando-se:cultura no sentido das artes, cultura como civilidade e cultura no sentido de vida social.O esttico e o antroplogo so reunidos e, dessa forma, o sentido mais amplo esocialmente responsvel de cultura mantido firmemente em atividade, mas s pode serdefinido por um sentido mais especializado do termo (cultura como as artes) queameaa constantemente substitu-lo. Arnold e Ruskin reconhecem que, sem mudanasocial, as artes e o bem viver esto em perigo mortal; entretanto, tambm acreditamque as artes esto entre os poucos instrumentos de tal transformao. Na Inglaterra, scom William Morris, que esse crculo vicioso semntico pode ser quebrado. A culturacomo crtica utpica, cultura como mode de vida e cultura como criao artstica so, dediferentes maneiras, reaes ao fracasso da cultura como civilizao realcomo agrande narrativa de autodesenvolvimento humano.

    A cultura pode sobreviver abjurando toda a abstrao e fazendo-se concreta, mas issocorre o risco de, ao emprestar-lhe uma especificidade de que muito necessita, faz-laperder proporcionalmente sua normatividade. Para os romnticos, esse sentido decultura mantm a sua fora normativa. O pensamento ps-moderno, ao contrrio, notoma esse rumo sentimentalista e acredita que p que valioso mais o fato formal dapluralidade dessas culturas do que o seu contedo intrnseco.

    A terceira resposta crise da cultura como civilizao , ento, reduzir a categoriainteira a um punhado de obras artsticas e, nesse sentido bastante recente da palavra, acultura ao mesmo tempo sintoma e soluo; se um osis de valor, apresenta uma

    espcie de soluo, mas se a erudio e as artes so os nicos enclaves sobreviventes decriatividade, ento um problema. Entretanto, essa ideia minoritria de cultura, emboraseja um importante sintoma de crise histrica, tambm uma espcie de soluo. Assimcomo a cultura como modo de vida, ela confere cor e textura abstrao iluminista dacultura como civilizao. Mas se a cultura, nesse sentido da palavra, tem a imediaosensvel da cultura como forma de vida, ela tambm herda o vis normativo da culturacomo civilizao. As artes podem refletir a vida refinada, mas so tambm a medidadela. Nesse sentido, unem o real e o desejvel maneira de uma poltica radical.

    Assim, os trs sentidos de cultura no so facilmente separveis. Ao absorver a cultura

    em outros sentidos, a cultura como crtica tenta evitar o modo puramente subjuntivo dem utopia, o qual consiste em uma espcie de anseio melanclico sem base alguma noreal e cujo equivalente poltico conhecido como radicalismo de esquerda. A boautopia, ao contrrio, descobre uma ponte entre o presente e o futuro nas foras dopresente que so potencialmente capazes de transform-lo, pois um futuro desejveldeve ser um futuro exequvel. Nesse sentido, tambm, a cultura pode unir fato e valor,sendo uma prestao de contas do real como uma antecipao do desejvel. Para osromnticos radicais,a arte, a imaginao, a cultura folclrica ou comunidadesprimitivas so sinais de uma energia criativa que deve ser estendida sociedade

    poltica como um todo. J para o marxismo, ela uma forma bem menos exaltada de

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    energia criativa, aquela da classe operria, que pode transfigurar a prpria ordem socialda qual produto.

    Nesse sentido a cultura desponta quando a civilizao comea a parecerautocontraditria. medida que a sociedade civilizada se expande, chega-se a um ponto

    em que ela impe uma forma de reflexo nova, conhecida como pensamento dialtico,que surge porque fica cada vez menos impossvel ignorar o fato de que a civilizao, noprprio ato de realizar alguns potenciais humanos, tambm suprime danosamenteoutros. a relao interna entre esses dois processos que engendra esse novo hbitointelectual. Pode-se racionalizar essa contradio limitando a palavra civilizao a umtermo valorativo e contrastando-a com a sociedade de hoje em dia, mas pode-se tambmchamar as capacidades reprimidas de cultura, e as repressivas, de civilizao, com avirtude de que a cultura pode agir como uma crtica do presente ao mesmo tempo queest solidamente baseada dentro dele e assim ela no nem o mero outro da sociedade

    nem idntica a ela, mas se move, simultaneamente, a favor e contra a corrente natural doprogresso histrico. Assim, a cultura no uma vaga fantasia de satisfao, mas umconjunto de potenciais produzidos pela histria e que trabalham dentro dela.

    preciso saber como revelar essas capacidades e Marx diz que a resposta para isso sero socialismo. Para ele, nada no futuro socialista pode ser autntico a menos que tomecomo exemplo algo no presente capitalista. Porm, se o fato de que os aspectospositivos e negativos da histria estejam ligados um pensamento incmodo, tambmanimador, pois a verdade que a represso no funcionaria a menos que houvesse sereshumanos razoavelmente autnomos para explorar ou serem explorados e verdade que

    as prticas culturais mais benignas que conhecemos como criao esto implcitas naprpria essncia da injustia. Assim, nenhuma cultura pode ser inteiramente negativa, jque s para atingir seus fins perversos ela tem de promover capacidades que sempreimplicam usos virtuosos e, nesse sentido, todas as culturas so autocontraditrias, o que motivo no s de cinismo, mas tambm de esperana, j que significa que elasprprias engendram as foras que devem transform-las.

    Existem outras maneiras nas quais esses trs sentidos de cultura interagem. A ideia decultura como modo de vida orgnico o produto de intelectuais cultos e pode revitalizaras suas prprias sociedades degeneradas. Quando algum manifesta admirao pelo

    selvagem uma pessoa sofisticada e foi Sigmund Freud que revelou quais desejosincestuosos podem estar escondidos em nossos sonhos de uma totalidade sensvel.Assim, a cultura, que ao mesmo tempo uma realidade concreta e uma viso enevoadada perfeio, apreende alguma coisa dessa dualidade e o excessivamente cultivado e osubdesenvolvido forjam estranhas alianas.

    Todavia, a cultura como as artes pode ser o arauto de uma nova existncia social, massem essa mudana social as prprias artes esto em risco. A imaginao artstica spode florescer em uma ordem social orgnica e no criar razes no solo raso da

    modernidade. Dessa forma, o cultivo individual agora depende mais e mais da culturano seu sentido social e apenas para as artes sobreviverem seria necessrio tornar-se um

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    reacionrio ou revolucionrio poltico, fazer o relgio voltar ordem corporativa dogtico feudal ou adiant-lo para um socialismo que deixou para trs a forma demercadoria.

    Cultura como modo de vida uma verso estetizada da sociedade, encontrando nela a

    unidade, imediao sensvel e independncia de conflito que associamos ao artefatoesttico. A palavra cultura, que se supe designar um tipo de sociedade, de fato umaforma normativa de imaginar essa sociedade e pode ser tambm uma forma de algumimaginar suas prprias condies sociais usando como modelo as de outras pessoas,quer no passado, na selva, ou no futuro poltico.

    Embora, cultura seja uma palavra popular no ps-modernismo, suas fontes maisimportantes permanecem pr-modernas. Como ideia, a cultura comea a ser importanteem quatro pontos de crise histrica: quando se torna a nica alternativa aparente a umasociedade degradada; quando parece que, sem uma mudana social profunda, a culturano sentido das artes e do bem viver no ser mais nem possvel; quando fornece ostermos nos quais um grupo ou povo busca sua emancipao poltica; e quando umapotncia imperialista forada a chegar a um acordo com o modo de vida daqueles quesubjuga. E, entre esses, foram prevalentemente os dois ltimos pontos que colocarammais decisivamente a ideia no sculo XX e, portanto, devemos nossa noo moderna decultura em grande parte ao nacionalismo e ao colonialismo, juntamente com odesenvolvimento de uma Antropologia a servio do poder imperialista.Aproximadamente no mesmo ponto da histria, a emergncia da cultura de massa noOcidente conferiu ao conceito uma urgncia adicional e aflora, pela primeira vez, a

    ideia de uma cultura tnica distinta, com direitos polticos simplesmente em virtudedessa peculiaridade tnica. Assim, medida que a nao pr-moderna d lugar aoEstado-nao moderno, a estrutura de papis tradicionais j no pode manter asociedade unida e a cultura que intervm como o princpio de unidade social; passa aser uma fora politicamente relevante.

    com o desenvolvimento do colonialismo do sculo XIX que o significadoantropolgico de cultura como um modo de vida singular comea a ganhar terreno e omodo de vida em questo geralmente aquele dos civilizados. Segundo GeoffreyHartman, Herder foi o primeiro a usar a palavra cultura no moderno sentido de uma

    cultura de identidade, que um modo de vida socivel, populista e tradicional,caracterizado por uma qualidade que tudo permeia e faz uma pessoa se sentir enraizada.Em resumo, cultura, como Fredric Jameson argumentou, sempre uma ideia do outro edefinir o prprio mundo da vida como uma cultura arriscar-se a relativiz-lo.

    Se a cincia da Antropologia marca o ponto em que o Ocidente comea a converteroutras sociedades em legtimos objetos de estudo, o verdadeiro sinal de crise poltica quando ele sente a necessidade de fazer isso consigo mesmo. O positivismo, a primeiraescola autoconscientemente cientfica da Sociologia, revela leis evolucionrias pela

    qual a sociedade industrial est se tornando mais corporativa e, um pouco mais tarde,

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    ser parte da tarefa da Antropologia conspirar contra a macia iluso pela qual oimperialismo nascente engendrou selvagens.

    A verso romntica de cultura evoluiu com o passar do tempo para uma versocientfica, mas mesmo assim havia afinidades fundamentais e tanto o folclrico como

    os primitivos so seres curiosamente arcaicos que emergem como anomalias temporaisdentro do contemporneo. Assim, o organicismo romntico poderia ser remodeladocomo funcionalismo antropolgico, entendendo essas culturas primitivas comocoerentes e no contraditrias.

    Alm disso, a ideia de cultura com base em suas origens na lavoura, sempre havia sidouma forma de descentrar a conscincia. A cultura era um conceito quase determinista,significando as caractersticas da vida social que nos escolhem muito mais do queescolhemos a elas. Civilizao, ao contrrio, possui uma aura de projeo racional eplanejamento urbano. Parte do escndalo do marxismo foi tratar a civilizao como seela fosse cultura. Assim como com Freud, um pouco mais tarde, uma conscinciafinamente civilizada deslocada para reforar as foras ocultas que haviamestabelecido.

    A cultura, ento, o verso inconsciente cujo anverso a vida civilizada. Ela aquiloque surge instintivamente em vez de concebido na mente e, portanto, no surpreendente que o conceito tenha encontrado um lugar to acolhedor no estudo desociedades primitivas. Elas eram uma espcie de verso do direito consuetudinrioingls e da Cmara dos Lordes, vivendo em uma utopia burkeiana na qual instinto,

    costume, devoo e lei ancestral funcionavam por si mesmos, sem a interveno darazo analtica. Assim, a mente selvagem tinha uma importncia particular para omodernismo cultural que podia encontrar nela uma vaga crtica da racionalidade doiluminismo.

    Os hbitos de pensamento supostamente concretos e sensveis das culturas primitivasapresentavam-se como reprimenda razo do Ocidente e foi assim que a Antropologiaestrutural de Claude Lvi-Strauss pde apresentar tais primitivos tanto comoconfortavelmente similares como exoticamente diferentes de ns. Por conseguinte,tradio e modernidade podiam ser agradavelmente harmonizadas. Tendo chegado a um

    ponto de decadncia complexa, a civilizao podia refrescar-se somente na fonte dacultura, olhando para trs a fim de caminhar para frente e, dessa maneira, o modernismoengatou a marcha a r no tempo.

    O estruturalismo no foi o nico ramo da teoria literria que pde traar parte de suasorigens de volta ao imperialismo e a hermenutica certamente to relevante para oprojeto quanto a psicanlise. A crtica mitolgica ou arquetpica faz algo parecido, aopasso que o ps-estruturalismo pe em questo aquilo que considera ser uma metafsicaprofundamente eurocntrica, enquanto o ps-moderno e o pr-moderno compartilham orespeito elevado e por vezes extravagante que conferem cultura como tal. Portanto, o

    que liga as ordens pr-moderna e ps-moderna que para ambas, embora por razesbem diferentes, a cultura um nvel dominante da vida social.

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    Para a modernidade a cultura no o mais vital dos conceitos e significava aquelesapegos regressivos que nos impediam de ingressar em nossa cidadania do mundo. Adiferena era, em grande medida, uma doutrina reacionria que negava a igualdade qual todos os homens e mulheres tinham direito. A imaginao era uma doena damente que nos impedia de ver o mundo como ele era e, portanto, de agir paratransform-lo.

    A cultura tinha seu lugar, mas medida que a Idade Moderna se desenvolvia esse lugarera ou de oposio ou de complementao. A cultura no mais era uma descrio do queera, mas do que poderia ou costumava ser e, como assinala Andrew Milner, somentenas democracias industriais modernas que cultura e sociedade ficam excludas tantoda poltica como da economia. A sociedade moderna entendida como distinta eassocial, sua vida econmica e poltica caracteristicamente sem normas e semvalores, em resumo, inculta.

    Nossa prpria noo de cultura baseia-se, assim, em uma alienao peculiarmentemoderna do social em relao ao econmico, vida material.