Versão Preliminar - O Método Popperiano Aplicado ao Direito

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Versão Preliminar janeiro 2009 O Método Popperiano Aplicado ao Direito Por George Marmelstein, Doutorando pela Universidade de Coimbra - Portugal Mestre em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Ceará Brasil Professor de Direito Constitucional Juiz Federal “Os nossos sonhos e esperanças não têm necessariamente de comandar as nossas conclusões. Na procura da verdade, o nosso melhor plano pode ser o de começar por criticar as crenças que mais prezamos. É possível que este pareça a alguns um plano perverso. Mas não o parecerá àqueles que querem descobrir a verdade e não têm receio dela”. Karl Popper 1 “Boldness in conjectures on the one hand and austerity in refutations on the other: this is Popper's recipe”. Imre Lakatos 2 1 Introdução .............................................................................................................................................2 2 A Filosofia da Ciência de Karl Popper ....................................................................................................3 3 A Defesa do Método Científico .............................................................................................................3 4 A Busca da Objetividade Possível ..........................................................................................................6 5 O Falsificacionismo ................................................................................................................................7 6 O Critério de Demarcação Popperiano .................................................................................................8 7 Conjecturas e Refutações ......................................................................................................................9 8 O Jurista Popperiano: o “feeling” como ponto de partida ..................................................................11 9 A Suposta Arrogância do “Feeling” e a Humildade Judicial ................................................................15 10 A Reserva de Consistência .................................................................................................................17 11 As Fontes do Conhecimento Jurídico ................................................................................................19 12 Os Argumentos de Autoridade ..........................................................................................................22 13 Popper vs. Kelsen ..............................................................................................................................23 14 As Leis e os Precedentes como Meros Topoi Argumentativos .........................................................25 15 A Constituição Democrática como Limite .........................................................................................28 16 Conclusões.........................................................................................................................................29 Post-Scriptum .........................................................................................................................................30 Importante: este texto representa uma versão preliminar de um paper a ser apresentado no curso de doutoramento Direito, Justiça e Cidadania no Século XXI, da Universidade de Coimbra. Disponibilizo-o livremente para que seja objeto de críticas, comentários e sugestões, que podem ser enviadas para o meu e-mail: [email protected]. 1 POPPER, Karl. Conjecturas e Refutações. Coimbra: Almedina, 2006, p. 22. 2 LAKATOS, Irme. The methodology of scientific research programmes Philosophical Papers v. 1. Cambridge: Cambridge Press, 1978, p. 8. Tradução livre: “Ousadias nas conjecturas, de um lado, e austeridade nas refutações do outro lado: eis a receita de Popper”.

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Este texto representa uma versão preliminar de um paper a ser apresentado no curso de doutoramento “Direito, Justiça e Cidadania no Século XXI”, da Universidade de Coimbra. Disponibilizo-o livremente para que seja objeto de críticas, comentários e sugestões, que podem ser enviadas para o meu e-mail: [email protected].

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Versão Preliminar – janeiro 2009

O Método Popperiano Aplicado ao Direito

Por George Marmelstein, Doutorando pela Universidade de Coimbra - Portugal

Mestre em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Ceará – Brasil Professor de Direito Constitucional

Juiz Federal

“Os nossos sonhos e esperanças não têm necessariamente de comandar as nossas conclusões. Na procura da verdade, o nosso melhor plano pode ser o de começar por criticar as crenças que

mais prezamos. É possível que este pareça a alguns um plano perverso. Mas não o parecerá àqueles que querem descobrir a verdade e não têm receio dela”.

Karl Popper1

“Boldness in conjectures on the one hand and austerity in refutations on the other: this is Popper's recipe”.

Imre Lakatos2

1 Introdução ............................................................................................................................................. 2 2 A Filosofia da Ciência de Karl Popper .................................................................................................... 3 3 A Defesa do Método Científico ............................................................................................................. 3 4 A Busca da Objetividade Possível .......................................................................................................... 6 5 O Falsificacionismo ................................................................................................................................ 7 6 O Critério de Demarcação Popperiano ................................................................................................. 8 7 Conjecturas e Refutações ...................................................................................................................... 9 8 O Jurista Popperiano: o “feeling” como ponto de partida ..................................................................11 9 A Suposta Arrogância do “Feeling” e a Humildade Judicial ................................................................15 10 A Reserva de Consistência .................................................................................................................17 11 As Fontes do Conhecimento Jurídico ................................................................................................19 12 Os Argumentos de Autoridade ..........................................................................................................22 13 Popper vs. Kelsen ..............................................................................................................................23 14 As Leis e os Precedentes como Meros Topoi Argumentativos .........................................................25 15 A Constituição Democrática como Limite .........................................................................................28 16 Conclusões .........................................................................................................................................29 Post-Scriptum .........................................................................................................................................30

Importante: este texto representa uma versão preliminar de um paper

a ser apresentado no curso de doutoramento “Direito, Justiça e Cidadania no

Século XXI”, da Universidade de Coimbra. Disponibilizo-o livremente para que

seja objeto de críticas, comentários e sugestões, que podem ser enviadas

para o meu e-mail: [email protected]. 1 POPPER, Karl. Conjecturas e Refutações. Coimbra: Almedina, 2006, p. 22. 2 LAKATOS, Irme. The methodology of scientific research programmes – Philosophical Papers v. 1. Cambridge: Cambridge Press, 1978, p. 8. Tradução livre: “Ousadias nas conjecturas, de um lado, e austeridade nas refutações do outro lado: eis a receita de Popper”.

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1 Introdução

O pensador austríaco Karl Raimund Popper foi um dos mais conhecidos filósofos da ciência do século

XX3. Suas idéias revolucionaram a metodologia científica (ou pelo menos o estudo da metodologia científica),

pois permitiram que os cientistas refletissem criticamente sobre suas próprias teorias e, conseqüentemente,

aprimorassem suas técnicas de trabalho.

As teses principais defendidas por Popper giram em torno das chamadas ciências naturais,

especialmente da física. Portanto, ele não citou nenhum “cientista do direito” (!?) para justificar seus

argumentos, nem fez sugestões metodológicas voltadas especificamente para a atividade jurídica.

Apesar disso, é inegável que muitas idéias que ele apresenta podem ser utilizadas também por

juristas. Sua metodologia, como ele próprio reconhece, vale, em grande medida, para todas as áreas do

conhecimento e não apenas para as ciências exatas. Aliás, em algumas partes de sua obra, Popper costuma

reforçar seus pontos de vista utilizando metáforas, comparando a atividade dos cientistas com a atividade dos

juízes, o que reforça a idéia de que existe uma afinidade estrutural entre o raciocínio científico na descoberta

da verdade e o raciocínio judicial na busca de soluções justas para o caso concreto.

Foi nesse contexto que assumi o desafio de fazer um approach entre o direito e a filosofia da ciência,

no intuito de tentar trazer as mais importantes idéias epistemológicas e metodológicas desse pensador

austríaco para o mundo jurídico. Afinal, o que é que os juristas podem aprender com as sugestões

metodológicas recomendadas por Popper? Como fazer com que o raciocínio jurídico se aproxime, em termos

de confiabilidade e de prestígio social, do método científico? Tentar responder a essas indagações é o objetivo

deste paper4.

Para começar, nada mais razoável do que resumir os pontos principais defendidos por Popper e, a

partir daí, fazer a transposição para o direito daquilo que for compatível com a metodologia jurídica.

Tentarei aproveitar aquilo que o pensamento popperiano pode oferecer de útil para a construção de

um método jurídico melhor. Adianta-se, desde logo, que, na minha ótica, método jurídico melhor é aquele que,

em primeiro lugar, seja ético, democrático e comprometido com os direitos fundamentais. Esse aspecto

material é básico, e talvez a metodologia científica não ajude muito nesse aspecto (é o direito quem talvez

possa ajudar a delimitar os limites éticos das investigações científicas). Mas para além desse aspecto axiológico,

é preciso que o método jurídico seja mais racional, mais objetivo, mais consistente, mais coerente, mais

convincente e, porque não dizer, mais científico. E nesse ponto a metodologia popperiana pode contribuir

bastante.

Evitarei, na medida do possível, adentrar nos meandros do pensamento estritamente político de Karl

Popper, pois essa tarefa não me pareceu ser necessária para os fins ora pretendidos. Só se mencionará as suas

opiniões ideológicas quando isso for útil à compreensão do método lógico-científico por ele desenvolvido.

Também não é minha intenção seguir acriticamente todas as suas idéias, até porque isso seria uma postura

nitidamente anti-popperiana. Se há uma importante lição que Popper nos deixou foi a de que devemos ser

críticos em relação a tudo. Isso vale, logicamente, para a própria análise do seu ponto de vista. Por isso,

tomarei a liberdade de também realizar, em torno de seu pensamento, algumas conjecturas e refutações que

me pareçam pertinentes para os meus objetivos, tendo, naturalmente, o cuidado de esclarecer cada ponto de

atrito, a fim de que se perceba onde nossos pensamentos não coincidem.

3 Popper nasceu em Viena, em 28 de julho de 1902 e faleceu na Inglaterra em 17 de setembro de 1994. Suas principais idéias foram desenvolvidas antes da Segunda Guerra, embora seus livros mais conhecidos somente tenham sido publicados na segunda metade do século passado. 4 Obviamente, não se reivindica aqui qualquer pioneirismo ou originalidade nessa tentativa de utilizar as idéias de Popper no direito. Basta dizer, por exemplo, que o jusfilósofo alemão Arthur Kaufmann também aproveita inúmeras propostas popperianas na sua “Filosofia do Direito”, o que apenas reforça meu objetivo principal que é demonstrar as vantagens de se colocar os “óculos popperianos” na resolução de problemas jurídicos.

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Sendo assim, pode-se começar. De início, nada mais óbvio do que tentar contextualizar a filosofia

popperiana.

2 A Filosofia da Ciência de Karl Popper

Uma das principais preocupações de Karl Popper foi tentar compreender como o pensamento

científico evolui e como é possível (se é que é possível) chegar ao conhecimento verdadeiro. É, basicamente,

em torno desses temas que a sua filosofia da ciência gira.

Popper viveu em um período de grande exaltação do chamado positivismo lógico, que era o

movimento intelectual que supervalorizava a razão e o pensamento científico e empírico em detrimento das

especulações metafísicas e do conhecimento baseado no senso comum e na mera intuição. Basta dizer que

Popper foi contemporâneo do famoso Círculo de Viena, grupo informal de pensadores de diversas áreas do

conhecimento, capitaneado pelo filósofo e físico alemão Moritz Schlick, que costumava se reunir

semanalmente em Viena durante os anos de 1922 a 1936 justamente para debater e propagar esse tipo de

filosofia anti-metafísica5.

Popper jamais fez parte do Círculo de Viena, nem sequer foi convidado para qualquer reunião do

grupo, apesar de ser amigo de vários membros. Além disso, nunca assumiu uma vinculação filosófica com as

idéias do positivismo lógico. Aliás, ele foi até mesmo considerado por Otto Neurath como a “oposição oficial”

do Círculo de Viena, pois discordava dos principais pontos sustentados por aquele movimento6. De fato, é

possível encontrar na filosofia popperiana tanto uma defesa da metafísica quanto do senso comum, ainda que

ele não deixe de reconhecer também os méritos e a utilidade prática do conhecimento científico stricto sensu,

que transformou em seu principal objeto de estudo e de investigação. Portanto, Popper não pode ser

considerado como positivista, pelo menos se o sentido do termo for o mesmo da concepção científica de

mundo defendida pelo Círculo de Viena.

Karl Popper autodenomina a sua escola de pensamento de “racionalismo crítico”, cuja tradição

filosófica remonta aos primeiros filósofos gregos. É possível notar, por exemplo, uma grande admiração pela

humildade intelectual de Sócrates (“só sei que nada sei e nem isso eu sei”) e pela constante curiosidade dos

primeiros “amantes da sabedoria” de desejar descobrir a verdade e conhecer o mundo através da razão. Como

humanista, Popper acreditava no ser humano enquanto ser dotado de inteligência para tomar decisões com

sabedoria e com autonomia, tal como fora defendido, por exemplo, pelo filósofo Immanuel Kant. Desconfiava

daqueles que desconfiavam da razão. Também desconfiava daqueles que não acreditavam na liberdade e na

capacidade do indivíduo de se auto-determinar. Por isso, era contra qualquer opinião que levasse ao

determinismo histórico ou à prevalência do coletivo em detrimento do indivíduo, o que, na sua visão, iria

contra a sua idéia de sociedade aberta, uma das maiores conquistas da civilização ocidental. Era um otimista

epistemológico, sem perder o seu ceticismo crítico jamais.

3 A Defesa do Método Científico

Apesar de ser um grande admirador do método científico, Popper tinha plena consciência de que a

ciência, no fundo, não passa de um modo evoluído do pensamento mitológico desenvolvido pela criatividade

humana para tentar explicar os acontecimentos do mundo que nos cerca.

O ser humano, como se sabe, sempre almejou entender os fenômenos naturais, no intuito de

descobrir um liame lógico entre as causas e efeitos dos fatos observáveis. Quando não conseguia desenvolver

5 As idéias centrais do Círculo de Viena foram resumidas em um célebre texto de 1929 redigido por Hans Hahn, Otto Neurath e Rudolph Carnap, intitulado “A Concepção Científica do Mundo: o Círculo de Viena” (Wissenschaftliche Weltauffassung. Der Wiener Kreis), também conhecido como “Manifesto do Círculo de Viena”. No âmbito do direito, como se sabe, Hans Kelsen foi o jurista que mais simpatizou com o positivismo lógico defendido pelo Círculo de Viena. Mais à frente, serão analisadas as divergências (que são muitas) entre o pensamento kelseniano e o pensamento popperiano. 6 POPPER, Karl. Em Busca de um Mundo Melhor. 3ª Ed. Lisboa: Fragmentos, 1992, p. 160.

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(Versão Preliminar – Janeiro – 2009) 4 uma resposta mais simples e racional, apelava para os mitos, ou seja, para crenças sobrenaturais que

forneciam uma explicação da realidade com base na ação de criaturas sobre-humanas.

Essa tradição mitológica para explicação do mundo prevaleceu no ocidente até o surgimento da

filosofia grega, há mais de dois mil e quinhentos anos. A grande contribuição dada pelos filósofos gregos foi

justamente a idéia de que é possível discutir e questionar a explicação mitológica, desenvolvendo novas

versões mais convincentes para os mesmo fatos. O método científico nasce dessa crítica à explicação

mitológica, embora ele próprio também seja, em grande medida, meramente especulativo.

Como explica Popper, ao invés de se conformarem e aceitarem acriticamente a tradição religiosa, os

filósofos gregos desafiaram-na e, por vezes, inventaram um novo mito para substituir o antigo. Em seguida,

prossegue:

“Temos, creio eu, de admitir que as novas histórias que eles puseram no lugar das antigas eram fundamentalmente mitos – tal como as outras o eram. Mas há duas coisas acerca delas que convém realçar. Em primeiro lugar, essas histórias não eram meras repetições ou reformulações das antigas, mas continham novos elementos. Mas o segundo e mais importante aspecto é este: os filósofos gregos inventaram uma nova tradição – a tradição de adotar uma atitude crítica em relação aos mitos, a tradição de os discutir; a tradição de não apenas contar um mito, mas também de o ver posto em causa por aquele a quem foi contado. Ao narrar o seu mito, eles estavam, por seu turno, prontos para ouvir o que o seu interlocutor dele pensava – admitindo com isso a possibilidade de o outro ter, talvez, uma explicação melhor do que eles. Estava-se perante algo que nunca antes tinha acontecido. Nascera uma nova forma de interrogar. Juntamente com a explicação – o mito – surgia a pergunta: ‘Será que me pode dar uma explicação melhor?’. E outro filósofo podia responder: ‘Posso sim’. Ou então, podia dizer: ‘Não sei se lhe posso dar uma explicação melhor, mas posso dar-lhe uma muito diferente que serve igualmente bem. Estas duas explicações não podem ser ambas verdadeiras, por isso deve haver algo aqui que não está certo. Não podemos simplesmente aceitar estas duas explicações. Nem temos qualquer razão para aceitar apenas uma delas. Queremos realmente saber mais sobre esse assunto. Temos de o discutir melhor. Temos de ver se as nossas explicações justificam aquilo que já conhecemos, e até alguma outra coisa que nos tenha até aqui escapado’. A minha tese é a de que aquilo a que chamamos de ‘Ciência’ se distingue dos mitos mais antigos não por ser algo mais distinto de um mito, mas por surgir acompanhada por uma tradição de segunda ordem – a tradição de discutir criticamente o mito. (...) Esta atitude de segunda ordem era a atitude crítica ou argumentativa. Foi, segundo penso, uma coisa nova, e continua ainda a ser o aspecto fundamental da tradição científica. Se compreendermos isso, assumiremos uma atitude totalmente diferente em relação a um bom número de problemas do método científico. Compreenderemos que, num certo sentido, e tal como a religião, a Ciência é uma criadora de mitos. Dir-me-eis: ‘Mas os mitos científicos são tão diferentes dos mitos religiosos!’ Certamente que são diferentes. Mas por que é que o são? Porque, se adotarmos esta atitude crítica, os nossos mitos tornam-se realmente diferentes. Modificam-se; e modificam-se no sentido de nos ir dando uma explicação cada vez mais aperfeiçoada do mundo e das diferentes coisas que nele podemos observar”

7.

Apesar de a citação acima ter sido mais longa do que o recomendável em um trabalho acadêmico,

acredito que não poderia ser diferente se quisermos compreender corretamente o pensamento popperiano. É

que o trecho acima reproduzido é o ponto-chave de toda a polêmica e de todos os ataques que o método

científico passou a sofrer após a segunda guerra mundial, especialmente vinda dos pensadores das chamadas

ciências sociais.

Essas mesmas idéias desenvolvidas por Karl Popper na década de 40 foram aproveitadas, alguns anos

depois, por alguns críticos do método científico, para desqualificar por completo qualquer superioridade

epistemológica desse método de pensamento. Thomas Kuhn e Paul Feyerabend são, no âmbito da filosofia da

ciência, os principais representantes dessa linha de pensamento, denominada de relativismo, que, partindo de

premissas praticamente idênticas àquelas formuladas por Popper, chegou a conclusões totalmente diferentes.

Enquanto Popper enalteceu e tentou aprimorar o método científico, mesmo reconhecendo as suas

imperfeições, os relevativistas debocharam desse método e tentaram esvaziar completamente a sua

importância8.

7 Esta passagem corresponde à transcrição de um trecho de uma palestra proferida por Karl Popper em 26 de julho de 1948, intitulada “Avançando para uma Teoria Racional da Tradição”, in: POPPER, Karl. Conjecturas e Refutações. Coimbra: Almedina, 2006, p. 177. 8 As idéias de Thomas Kuhn foram consultadas do livro: KUHN, Thomas. The Struture of Scientifc Revolutions. 3ª Ed. Chicago: University of Chicago Press, 1996. E as de Paul Feyrabend, do livro: FEYERABEND, Paul. Tratado contra el Metodo: esquema de una teoría anarquista del conocimiento. Madrid: Editorial Tecnos, 1986.

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A idéia dos relativistas era simples e convenceu muitos pensadores respeitáveis na segunda metade

do século passado e até hoje exerce grande influência fora das ciências naturais. Ei-la em síntese: uma vez que

a explicação científica não passa de um mito que obtém a adesão psicológica de um público especializado,

então não há nada que justifique a sua superioridade metodológica. No fundo, a ciência seria uma mera técnica

de dominação ideológica que deveria ser combatida, já que tantos males têm causado à sociedade e ao

planeta.

Entre os autores de língua portuguesa, Boaventura Sousa Santos chegou a seguir essa vertente. No seu

livro “Um Discurso sobre as Ciências”, defendeu expressamente que não há qualquer razão científica para

considerar a explicação científica melhor do que as explicações alternativas da metafísica, da astrologia, da

religião, da arte ou da poesia9. No livro “Introdução a uma Ciência Pós-Moderna”

10, publicado logo em seguida,

Boaventura abrandou as críticas ao método científico e acabou se aproximando mais do pensamento

popperiano, ainda que não assuma expressamente esse fato.

As críticas ao método científico formulada pelo chamado pós-modernismo já haviam sido identificadas

por vários filósofos da ciência, inclusive por Karl Popper. Argumenta-se, com razão, que (a) a ciência pode ser

manobrada para fins político-ideológicos, podendo resultar em conseqüências danosas para a humanidade; (b)

as teorias científicas são, por natureza, falíveis e limitadas quanto à descrição da realidade; (c) o método

científico não pode ser completamente neutro, pois os valores pessoais dos cientistas inevitavelmente afetam

a sua atividade; (d) a ciência não substitui a importância da metafísica nem da ética; (e) outras áreas do

conhecimento, mesmo que não possam ser enquadradas como “científicas”, merecem ser tratadas com

importância, pois podem ser úteis e verdadeiras, até porque muitas teorias científicas famosas foram

ridicularizadas assim que foram propostas; (f) a linguagem científica precisa se tornar compreensível para um

público mais amplo a fim de democratizar o conhecimento, etc.

Todas essas críticas são procedentes e merecem ser levadas em conta para que se reflita criticamente

sobre o papel da ciência na sociedade. Mas, a meu ver, não são suficientes para retirar a superioridade

epistemológica do método científico.

Creio que, nesse aspecto, os adeptos do relativismo fizeram uma opção que não se sustenta nem

lógica nem ideologicamente. Para começar, quase todas as críticas que foram por eles formuladas contra o

método científico foram apresentadas sob uma roupagem racional. Eles não atacaram a ciência com base na

religião ou no misticismo, mas seguindo os próprios critérios de cientificidade propostos pelo racionalismo

crítico. E talvez tenha sido isso que tenha feito com que suas idéias tenham sido seguidas por tantas pessoas

inteligentes. Mas é justamente aqui que está a maior contradição. Na verdade, não se combateu o método

científico em si mesmo, mas o uso que se fez dele ao longo da história. Essa contradição certamente foi

desenvolvida deliberadamente para revelar as fraquezas do próprio método científico, mas esbarra em um

paradoxo, qual seja, o de que o método mais eficaz para combater o método científico é o próprio método

científico!

O relativismo teve e ainda tem a finalidade de apontar as feridas do positivismo lógico que tanto

serviu para fins opressores e destruidores ao longo do século XX. O canto de sereia do discurso científico foi

utilizado como instrumento de marketing para justificar as maiores atrocidades, como, por exemplo, a defesa

da superioridade da raça ariana pelo regime de Hitler, a eugenia e a conseqüente manipulação do ser humano

para fins de melhorias genéticas, os experimentos médicos com seres humanos, tudo isso sem falar nas

bombas atômicas, armas químicas, biológicas e de destruição em massa, desenvolvimento de produtos

danosos à natureza e à saúde humana e os exemplos se seguem. Portanto, são nobres os objetivos do

relativismo e bem-intencionados os seus adeptos, já que criticam, com total razão, o uso da ciência para fins

bélicos, desumanos e anti-ecológicos. Porém, os relativistas, em meu modo de ver, estão apontando suas

armas argumentativas para o alvo errado. Não é o método científico – crítico, racional e objetivo – que deve

ser combatido. O que deve ser combatido é o uso opressor que dele é feito por algumas pessoas

9 SANTOS, Boaventura de Sousa. Um discurso sobre as ciências. Porto: Edições Afrontamento, 1987, p. 52. 10 SANTOS, Boaventura de Sousa. Introdução a uma Ciência Pós-Moderna. Porto: Edições Afrontamento, 1989.

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(Versão Preliminar – Janeiro – 2009) 6 inescrupulosas, que certamente cometeriam as mesmas barbaridades ainda que a ciência não existisse. Não é

preciso lutar contra a ciência, mas tão somente exigir que o método científico seja utilizado de forma

“prudente para uma vida decente”, como bem sugeriu Boaventura de Sousa Santos11

.

O potencial emancipatório do pensamento crítico-racional é muito maior do que o potencial

emancipatório do misticismo e da irracionalidade. Como bem disse Popper, os méritos da ciência não decorrem

apenas dos resultados práticos por ela alcançados, mas sobretudo “pelo seu conteúdo informativo e pela sua

capacidade de libertar as nossas mentes de velhas crenças, velhos preconceitos e velhas certezas, oferecendo-

nos, em seu lugar, novas conjecturas e audaciosas hipóteses”12

.

O melhor remédio contra a ciência má, destrutiva, dominadora, elitista e manipuladora não é a anti-

ciência, o obscurantismo ou o apelo ao misticismo. O melhor remédio é a ciência com ética, desenvolvida com

transparência e voltada para fins socialmente benéficos. É a mesma coisa com o direito. A história tem

demonstrado que a melhor arma contra o direito autoritário não é o anarquismo, mas o direito democrático,

elaborado com efetiva participação popular e destinado a proteger e promover os direitos fundamentais.

4 A Busca da Objetividade Possível

“Nós começamos confusos e terminamos confusos num nível mais elevado” Provérbio citado por A. F. Chalmers13

O método científico não busca uma verdade subjetiva, destinada a satisfazer os caprichos pessoais de

quem o utiliza, onde o mais importante é o auto-convencimento individual. O método científico deseja, pelo

contrário, alcançar um conhecimento objetivo, capaz de ser aceito conscientemente por pessoas racionais, que

se convençam da solução proposta e cheguem às mesmas conclusões de forma independente, observando

padrões consensuais básicos de demonstração lógica.

Desenvolver um conceito de verdade objetiva é um dos maiores desafios que os filósofos da ciência já

enfrentaram. Ainda hoje há tantas divergências quanto a esse assunto que apresentar um conceito objetivo de

verdade objetiva parece ser uma ilusão. Trata-se, na verdade, de um dos conceitos mais complexos do ponto

de vista filosófico e certamente não poderia ser abordado de forma completa nos estreitos limites deste

trabalho. Aqui, basta mencionar a solução extremamente simples encontrada por Popper.

Karl Popper invoca o filósofo Alfred Tarski para concluir que a verdade é aquilo que corresponde aos

fatos. Se alguém afirma que “a neve é branca”, essa afirmação será verdadeira se, de fato, a neve for branca.

Eis o conceito de verdade defendido por Popper.

Essa solução, embora seja engenhosamente simples, não responde, naturalmente, a todos os

problemas filosóficos que o conceito de verdade objetiva encerra. Mas é suficiente para os fins práticos que o

método científico popperiano deseja resolver. Ao invés de tentar descobrir o sentido de uma ilusória “verdade

objetiva absoluta”, Karl Popper se conforma com aquilo que se pode chamar de objetividade possível, que nada

mais é do que a busca da melhor explicação para os fatos. A melhor teoria científica, ainda que não seja

verdadeira, será aquela que melhor corresponde aos fatos. E ela corresponderá melhor aos fatos quando fizer

asserções mais precisas, resistir a testes mais rigorosos, explicar um maior número de fatos em mais detalhes,

passar em testes que a outra teoria não conseguiu ultrapassar, entre outros fatores capazes de obter uma

maior adesão da comunidade científica14

.

Popper, naturalmente, não admite que exista um critério verdadeiro, único e preciso para se

demonstrar que uma teoria corresponde melhor aos fatos do que a outra. Qualquer critério que se adote

“envolve interpretação à luz de teorias, sendo, nessa medida, incerto”15

. Logo, de fato, não há como garantir

11 SANTOS, Boaventura de Sousa (org.). Conhecimento prudente para uma vida decente: um discurso sobre as ciências revisitado. São Paulo: Cortez, 2004. 12 POPPER, Karl. Conjecturas e Refutações. Coimbra: Almedina, 2006, p. 145. 13 CHALMERS, A. F. O Que é Ciência Afinal? São Paulo: Brasiliense, 1993, p. 22. 14 POPPER, Karl. Conjecturas e Refutações. Coimbra: Almedina, 2006, p. 315. 15 POPPER, Karl. Conjecturas e Refutações. Coimbra: Almedina, 2006, p. 66.

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(Versão Preliminar – Janeiro – 2009) 7 um método cem por cento seguro e infalível, pois nunca se pode ter a certeza de que algum erro não foi

cometido nesse processo.

Alguns críticos mais radicais da ciência usam esse aspecto para desqualificar por completo utilidade do

método científico. Afinal, se a verdade é meramente uma questão de convicção psicológica, então não tem

qualquer sentido em procurá-la. A partir daí, numa regressão ao infinito, chegam à conclusão de que o método

científico é tão irracional quanto às crenças primitivas e que não deveria merecer tanta confiança e respeito

quanto o que é dado pela sociedade moderna. Numa versão extremada dessa concepção, alguns pensadores

chegam a negar a existência da própria realidade objetiva, como se todas as nossas experiências fossem ilusões

de nossa mente. Pode-se chamar essa linha de pensamento de “efeito Matrix”, em alusão ao famoso filme

hollywoodiano que abordou essa temática de forma bem interessante. Popper chamaria esse fenômeno de

"erro de Parmênides", o filósofo grego que negava a realidade de tudo o que era colorido, variado,

indeterminado e indescritível que existe em nosso mundo.

Não se pode concordar com esse ponto de vista que nega totalmente a importância do método

científico só porque as suas técnicas de descobrimento da verdade não são totalmente seguras. Ainda que a

metodologia científica se baseie, em grande medida, em convenções e em consensos psicológicos, ainda resta

sim um padrão de objetividade que deve ser aceito como critério válido até que não surja outro critério

melhor. Por mais que as pessoas tenham percepções diferentes da realidade, existe um núcleo básico de

experiências sensoriais comuns a todos os seres racionais que devem servir de alicerce para um entendimento

social.

Talvez vivamos mesmo na “caverna platônica” e jamais tenhamos consciência plena da "essência" das

coisas, mas ainda assim vemos sombras que servem para guiar nosso intelecto, pautar nossas condutas e

racionalizar as nossas escolhas. E essas sombras vão se tornando cada vez mais nítidas na medida em que o

"holofote da ciência" vai aumentando a sua intensidade e o seu espectro. Se não houvesse esse mínimo de

objetividade e de consenso sobre a realidade e os fenômenos naturais, as relações intersubjetivas seriam

inviáveis. Não é isso que ocorre na prática em que a sociabilidade e a comunicação racional entre pessoas

fazem parte do dia a dia humano.

Além disso, voltando para o pensamento popperiano, ainda que a verdade seja uma quimera

inalcançável, é possível, com alguma margem de certeza, reconhecer quando uma teoria é falsa. É aqui que

surge a idéia do falsificacionismo, que representa a espinha dorsal de toda a construção intelectual do filósofo

austríaco.

5 O Falsificacionismo

“Todos nós podemos errar, e freqüentemente o fazemos, quer individual, quer coletivamente”. Karl Popper16

Partindo da premissa da falibilidade humana, Popper conclui que a verdade objetiva e absoluta jamais

pode ser atingida, pois “o nosso conhecimento só pode ser finito, ao passo que a nossa ignorância tem,

necessariamente, de ser infinita”17

.

Isso não significa, contudo, que devemos desistir de tentar conhecer o mundo que nos cerca.

Devemos, pelo contrário, buscar a verdade, ainda que na maioria das vezes possamos falhar por uma larga

margem. A ciência tem como alvo a incessante procura de teorias verdadeiras, embora nunca possamos ter a

certeza de que uma determinada teoria é verdadeira. Para ser mais preciso: o objetivo da ciência seria o de

desenvolver teorias que estejam mais próximas da verdade do que outras, ou seja, que correspondam melhor

aos fatos. O problema é que, mesmo que nos deparemos com uma teoria verdadeira, estaremos, por via de

regra, meramente a conjecturar, pois nos é impossível saber se ela é verdadeira.

16 POPPER, Karl. Conjecturas e Refutações. Coimbra: Almedina, 2006, p. 34. 17 POPPER, Karl. Conjecturas e Refutações. Coimbra: Almedina, 2006, p. 50.

Page 8: Versão Preliminar - O Método Popperiano Aplicado ao Direito

(Versão Preliminar – Janeiro – 2009) 8

O importante, defende Popper, é que devemos ter humildade quanto às nossas limitações intelectuais

e, diante disso, sermos capazes de aprender com os nossos próprios erros, por meio de uma crítica – e auto-

crítica – racional. Só assim, diz ele, a ciência e o conhecimento progridem. E essa progressão da Ciência ocorre

por meio da invenção de teorias que, comparadas com outras anteriores, podem ser descritas como melhores

aproximações da verdade.

É dentro desse contexto que ele define que o papel do cientista deve ser o de formular conjecturas

para, em seguida, tentar refutá-las. Nas suas palavras, o cientista formula hipóteses meramente conjecturais

para a solução dos problemas que deve resolver e, num passo seguinte, submete-os a testes de falsificação,

tentando encontrar falhas que possam demonstrar a sua falsidade. As hipóteses que não passam pelo teste

devem ser descartadas. Já aquelas que vão “sobrevivendo” aos testes de falsificação devem ser consideradas

como provisoriamente verdadeiras até que surja uma nova prova do erro. O processo de justificação de

qualquer hipótese é, por natureza, contínuo e, portanto, nunca está plenamente acabado. Disso resulta o já

mencionado caráter essencialmente provisório da verdade científica.

Uma crítica que pode ser feita ao falsificacionismo de Popper é a idéia de que nem toda hipótese já

falsificada merece ser descartada de plano. Ou seja, uma determinada hipótese pode ser “falsificada” em um

determinado momento, mas depois pode se mostrar válida. A teoria heliocêntrica de Copérnico, por exemplo,

foi “falsificada” pela comunidade científica de sua época e, não fosse a persistência de outros astrônomos,

especialmente de Galileu, e a evolução das técnicas observacionais subseqüentes, sobretudo o

desenvolvimento do telescópio, ela teria sido descartada para sempre se o falsificacionismo fosse levado à

risca. O “erro”, no caso, não estava na hipótese copernicana propriamente dita, mas na insuficiência das

técnicas de observação disponíveis naquele dado momento histórico. Os falsificacionistas de Copérnico

estavam equivocados quando insistiram na idéia aristotélica e ptolomaica de que a Terra é o centro do

universo.

Essa crítica, sem dúvida relevante, não atinge em cheio a técnica proposta por Popper. É que, nesse

ponto, o próprio falsificacionismo é capaz de se auto-corrigir. Uma observação falsa pode ser refutada sem

maiores problemas. Explicando melhor: uma hipótese já falsificada pode voltar a ser considerada como válida

se a falsificação que a falsificou se mostrar, pela técnica do falsificacionismo, ela própria falsa.

O importante é que não se deve desprezar, de plano e para sempre, todas as hipóteses que já foram,

de algum modo, falsificadas. É provável que o erro, como se disse, não esteja na hipótese em si, mas nas

técnicas de falsificação…

Nesse contexto, pode-se dizer que uma hipótese já falsificada somente deve “ressuscitar” se for

possível demonstrar que a sua falsificação foi, de fato, equivocada à luz das melhores técnicas observacionais

de que se disponha num dado momento histórico. Não adianta, por exemplo, defender que a terra é quadrada

só porque as observações hoje prevalecentes, que demonstram que a terra tem a forma circular, podem, no

futuro, ser falseadas. Até que se demonstre, objetivamente, que a terra não é redonda (ainda que não seja um

círculo perfeito), qualquer teoria que tente defender o contrário tem o ônus da prova. Hoje, a hipótese

científica prevalecente, que deve ser tida como provisoriamente verdadeira, é no sentido de que a Terra é

redonda. E se alguém disser o contrário, sem apresentar provas convincentes da falsidade da teoria circular da

Terra, estará defendendo uma idéia irracional, pelo menos até que a hipótese prevalecente seja efetivamente

falsificada com base em observações mais confiáveis do que das que hoje dispomos.

6 O Critério de Demarcação Popperiano

“Mas todo mundo explica... Explica Freud, o padre explica. (...) Tem Platão que explica, que explica tudo tão bem (...)

Que todo mundo, todo mundo explica O protestante, alto falante, zen-Budismo

Brahma, Skol, capitalismo (...) E com carimbo positivo da ciência que aprova e classifica

O que é que a ciência tem? Tem lápis de calcular.

Page 9: Versão Preliminar - O Método Popperiano Aplicado ao Direito

(Versão Preliminar – Janeiro – 2009) 9

Que é mais que a ciência tem? Borracha pra depois apagar...”

Raul Seixas, na música “Todo Mundo Explica”

Karl Popper usa o critério da possibilidade de falsificação para delimitar o que é ciência e o que é

pseudo-ciência. O estatuto científico de uma teoria seria, sob a ótica popperiana, a sua falsificabilidade, ou

refutabilidade, ou testabilidade. Uma teoria que não seja refutável por nenhum acontecimento concebível será

uma teoria não-científica. Sem isso, não se pode falar que se está diante de ciência.

Sob os “óculos popperianos”, a título ilustrativo, a tão propagada “lei da atração” não seria científica,

pois não pode ser falsificada. A lei da atração diz mais ou menos assim: "se você realmente quer alguma coisa e

realmente acredita que é possível, você vai consegui-la". Tal “lei” não seria falsificável, pois se a coisa imaginada

não acontecer é porque não se pensou o suficiente para que a lei da atração surtisse efeitos. Ou seja, ela nunca

será “falsa”, pois não é possível descrever qualquer tipo de resultado que, de algum modo, não esteja de

acordo com a “teoria”. É o que ocorre também com a astrologia. Como os astrólogos formulam as suas

interpretações e profecias em termos extremamente vagos, suas previsões dificilmente podem falhar, pois

qualquer que seja o resultado, ele poderá, de algum modo, ser “encaixado” na hipótese sugerida pelos

“astros”. E se os resultados previstos pelo astrólogo eventualmente não se realizarem, a culpa seria de uma má

interpretação dos dados e não dos astros em si. Os astros não mentem, dizem os astrólogos. Por isso, a

astrologia não pode ser considerada como científica. Trata-se, segundo Popper, de pseudo-ciência.

Nesse mesmo barco, Popper incluiu muitas teorias famosas, como a de Freud, de Adler, de Marx,

entre outras, o que lhe rendeu a maior parte das críticas contra seu conceito restrito de ciência, pois os

freudianos, adlerianos e marxistas se sentiram ofendidos ao serem tratados como pseudo-cientistas.

Talvez Popper exagere um pouco quando diz que tudo que não pode ser falsificado não é científico ou

não merece ser tratado com status científico. Nesse ponto, há um pouco de arrogância da parte dele em

querer dizer o que é científico e o que não é científico de forma taxativa, o que, inclusive, vai contra a

humildade intelectual por ele tão propagada, bem como vai contra o pluralismo de idéias que é tão salutar

para o desenvolvimento do conhecimento. Uma teoria não-refutável não é necessariamente irrelevante. Aliás,

o próprio Popper aceita a importância de argumentos não-científicos. Quando critica a psicologia, por exemplo,

admite que Freud e Adler talvez tenham razão em determinados pontos e reconhece, inclusive, que suas idéias

revestem-se de “uma importância considerável”, já que poderão, um dia, ter o seu papel numa ciência

psicológica passível de ser testada18

. Portanto, ainda que Popper adote um conceito restrito de ciência, é um

erro achar que ele considera que somente o que é falsificável mereceria ser levado a sério. Ele expressamente

diz que teorias não-científicas (dentro do seu conceito restrito de ciência) não teriam apenas por isso de ser

consideradas irrelevantes, insignificantes, “desprovida de significado” ou “sem sentido” 19

. Também diz que o

nosso conhecimento tem fontes de todo o gênero, mas nenhuma tem autoridade ou sentido definitivos. Todas

têm que ser verificadas20

. Por isso, mesmo as pseudo-ciências possuiriam, para Popper, algum valor. Só não

poderiam pretender ter o mesmo status metodológico das teorias científicas.

Aqui ouso fazer uma crítica pessoal ao critério de demarcação popperiano. Talvez Karl Popper evitasse

tanta resistência se tivesse classificado as teorias em “cientificamente refutáveis” e “cientificamente não-

refutáveis”, sem excluir a natureza científica destas últimas. Daria quase na mesma, já que o ponto principal do

seu pensamento não é tanto a refutação em si, mas a defesa do pensamento crítico. Logo, no meu entender,

todo conhecimento não-dogmático deveria ser considerado como científico, merecendo ser encarado com a

mesma seriedade metodológica do conhecimento passível de refutação.

7 Conjecturas e Refutações

“A verdade segura jamais algum a soube ou saberá.

18 POPPER, Karl. Conjecturas e Refutações. Coimbra: Almedina, 2006, p. 61. 19 POPPER, Karl. Conjecturas e Refutações. Coimbra: Almedina, 2006, p. 62. 20 POPPER, Karl. Conjecturas e Refutações. Coimbra: Almedina, 2006, p. 44/45.

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(Versão Preliminar – Janeiro – 2009) 10

Se alguém alguma vez proclamasse a mais perfeita das verdades Não o poderia saber: tudo está entretecido de conjecturas”.

Xenófanes21

Talvez um dos maiores méritos da metodologia defendida por Karl Popper foi haver concluído que o

raciocínio científico começa a partir de problemas e não de observações. A tarefa consciente que se coloca ao

cientista – diz ele – é sempre a da solução de um problema mediante a elaboração de uma teoria que o

resolva22

. Como conseqüência, ele refutou a idéia de que a ciência funciona de forma indutiva, como se

pensava tradicionalmente desde que Francis Bacon sugeriu que as soluções para os problemas científicos só

podem ser obtidas a partir das observações empíricas dos fenômenos da natureza. Popper não apenas

discordou dessa idéia como demonstrou que ela é completamente falsa. A crença de que podemos começar

pela pura observação apenas, sem nada que se pareça com uma teoria, é absurda, diz ele23

. Portanto, é um

mito achar que toda a ciência começa pela observação e só depois avança, lenta e cuidadosamente, para as

teorias. O raciocínio científico, na sua ótica, inicia-se com uma fase de descoberta subjetiva (que ele chama de

conjectura) que deve ser submetida a um processo de justificação (que ele chama de refutação). O cientista

deve ser ousado nas conjecturas e rigoroso na refutação, eis um resumo da receita popperiana formulada por

Imre Lakatos24

.

A idéia de que o pensamento científico se desenvolve dentro de um processo bifásico de descoberta e

justificação já era bem conhecido dos filósofos da ciência antes mesmo de Karl Popper publicar seu

pensamento. A fase de descoberta seria um momento intuitivo, de mera especulação subjetiva, onde a

criatividade, a imaginação, as observações e a experiência prévia do cientista levariam à solução do problema a

ser resolvido. Já a segunda fase – a justificação – seria o momento em que a suposta solução encontrada pelo

cientista seria colocada à prova perante o público externo, através de testes de verificabilidade ou de refutação

de caráter objetivo.

Nesse ponto, parece não haver maiores controvérsias entre os cientistas, nem entre os filósofos da

ciência. Todos estão de acordo que o raciocínio científico possui uma fase mais subjetiva de descoberta e outra

fase mais objetiva de justificação.

Existe, é certo, alguma divergência no que se refere à importância da fase de descoberta, pois, para

muitos, esse momento subjetivo não tem qualquer relevância para os demais membros da comunidade

científica e, portanto, não deve ser objeto de preocupação científica, exceto, talvez, para a psicologia. É essa a

opinião, por exemplo, do Círculo de Viena, cujos membros, embora aceitassem que a intuição possa fazer parte

do raciocínio científico, simplesmente esnobaram essa fase do pensamento por não ser objetivamente

controlável25

.

Karl Popper parece concordar, nesse ponto, com a visão defendida pelo Círculo de Viena na medida

em que sustenta que as experiências intelectuais meramente intuitivas, por mais importantes que possam ser

para os nossos empreendimentos científicos, “não podem servir para estabelecer a verdade de qualquer idéia

21 Cf. POPPER, Karl. Em Busca de um Mundo Melhor. 3ª Ed. Lisboa: Fragmentos, 1992, p. 48. 22 POPPER, Karl. Conjecturas e Refutações. Coimbra: Almedina, 2006, p. 302. 23 POPPER, Karl. Conjecturas e Refutações. Coimbra: Almedina, 2006, p. 72. 24 LAKATOS, Imre. Falsificação e Metodologia dos Programas de Investigação Científica. Lisboa: Edições 70, 1999, p. 10. 25 A esse respeito, eis um trecho interessante do “Manifesto do Círculo de Viena”: “La intuición, que es especialmente enfatizada por los metafísicos como fuente de conocimiento, no es rechazada como tal por la concepción científica del mundo. Sin embargo, se aspira a, y exige de, todo conocimiento intuitivo, una posterior justificación racional, paso a paso. Al que busca le están permitidos todos los medios; lo encontrado, sin embargo, debe resistir la contrastación. Se rechaza la concepción que ve en la intuición un tipo de conocimiento de valor más elevado y profundo, que puede conducirnos más allá de los contenidos de la experiencia sensible y que no debe estar unido mediante fuertes cadenas al pensamiento conceptual” (CARNAP, Rudolf; HAHN, Hans & NEURATH, Otto. La concepción científica del mundo: el Círculo de Viena. In: Revista de Estudios sobre la Ciencia y la Tecnología Vol. 9, Nº 18, Buenos Aires, junho de 2002, p. 115). E mais: “la intuición no constituye un fundamento de validez independiente, debido a que está condicionada subjetivamente y no posibilita ninguna decisión para resultados contradictorios. Puede cumplir sólo una función heurística y debe ser verificada recién a través de una demostración lógica (CARNAP, Rudolf; HAHN, Hans & NEURATH, Otto. La concepción científica del mundo: el Círculo de Viena. In: Revista de Estudios sobre la Ciencia y la Tecnología Vol. 9, Nº 18, Buenos Aires, junho de 2002, p. 131)

Page 11: Versão Preliminar - O Método Popperiano Aplicado ao Direito

(Versão Preliminar – Janeiro – 2009) 11 ou teoria, por maior que seja a força com que possamos sentir intuitivamente que ela deve ser verdadeira, ou

que é ‘evidente por si mesma’”26

. E vai ainda mais além:

“Tais intuições nem mesmo podem servir como argumento, embora nos possam encorajar a buscar argumentos. De fato, outra pessoa pode ter uma intuição igualmente forte de que a mesma teoria é falsa. O caminho da ciência é calçado de teorias abandonadas, que certa vez foram declaradas evidentes por si mesmas. (...) A intuição, indubitavelmente, desempenha grande parte na vida de um cientista, assim como o faz na vida de um poeta. Leva-o a suas descobertas. Mas pode também levá-lo a seus fracassos. E sempre permanece assunto privado seu, por assim dizer. A ciência não indaga como ele conseguiu suas idéias,

interessa-se apenas por argumentos que possam ser submetidas a provas de todos” 27

.

Em outro livro, Popper chega a uma conclusão semelhante:

“O importante numa teoria é o seu poder explicativo e a sua capacidade de resistência à critica e aos testes a que é submetida. A questão da sua origem, de como se chegou a ela – se por um ‘processo indutivo’, como alguns dizem, ou por um ato de intuição – pode ser extremamente interessante, em especial para o

biógrafo do inventor dessa teoria, mas tem pouco a ver com o seu estatuto ou caráter científico”28

.

Essa opinião de Karl Popper não deve ser lida como um repúdio à intuição, mas tão somente como um

alerta para que a intuição nunca venha desacompanhada da devida justificação racional e objetiva. De nada

adianta conjecturar sem tentar refutar rigorosamente todas as hipóteses formuladas na mente. É basicamente

isso que Popper está querendo defender. Popper, na verdade, exalta, estimula e reconhece a importância do

raciocínio meramente conjectural para a evolução do conhecimento científico.

Quando Paul Feyerabend, no seu célebre “Against Method”, destilou todo o seu veneno contra o

método científico, estava tentando justamente enfatizar que a melhor forma de permitir que o pensamento

evolua é libertar o cientista de qualquer método pré-estabelecido. Essa crítica, certamente, só atinge

parcialmente o método popperiano. É que Popper recomenda claramente uma ampla liberdade de

pensamento na fase de construção de conjecturas. Nessa fase, certamente Popper concordaria com

Feyerabend no sentido de que “vale tudo” para tentar solucionar o problema, ou seja, de que é preciso ousar,

ser criativo e audacioso no desenvolvimento imaginário de hipóteses. Já na fase da refutação, aí sim se

recomenda uma postura metodológica mais aprimorada, a fim de testá-la com grau de objetividade mais

rigoroso.

8 O Jurista Popperiano: o “feeling” como ponto de partida

“Our knowledge has made us cynical, our cleverness hard and unkind. We think too much and feel too little: More than machinery we need humanity; More than cleverness we need

kindness and gentleness. Without these qualities, life will be violent and all will be lost” – Charles Chaplin, no seu famoso discurso proferido no filme “The Great Dictator”29.

Até o presente momento, nada se falou sobre o fenômeno jurídico propriamente dito. É hora, pois, de

“vestir o paletó” para tentar descobrir como é que essas idéias de Karl Popper podem ser úteis à atividade

jurídica.

Como Karl Popper não desenvolveu o seu método pensando propriamente no dia a dia dos juristas,

esclareço desde logo que minha intenção não é simplesmente trocar a palavra “cientista” por “juiz” e, a partir

daí, construir um autêntico método jurídico popperiano. Pretendo, pelo contrário, desenvolver, sob inspiração

das idéias de Popper, um método jurídico próprio. Por isso, passo a chamar esse método de método do feeling,

até para deixar bem claro que a importância que dou à fase conjectural é um pouco maior do que a atribuída

por Popper.

De início, é preciso assinalar que o direito é instrumento de poder com forte conteúdo ideológico. Essa

constatação - polêmica para uns, óbvia para outros - dificulta a busca de uma explicação “científica” de muitas

26 POPPER, Karl. A Sociedade Aberta e Seus Inimigos. Tomo 2, São Paulo: Itatiaia, 1998, p. 22. 27 POPPER, Karl. A Sociedade Aberta e Seus Inimigos. Tomo 2, São Paulo: Itatiaia, 1998, p. 22/23. 28 POPPER, Karl. Conjecturas e Refutações. Coimbra: Almedina, 2006, p. 195. 29 Tradução livre: “Nossos conhecimentos transformaram-nos em céticos; nossas habilidades, duros e cruéis. Pensamos demais e sentimos tão pouco. Mais do que de máquinas, precisamos de humanidade; mais do que de técnica, precisamos de bondade e gentileza. Sem essas qualidades, a vida será de violência e tudo será perdido”.

Page 12: Versão Preliminar - O Método Popperiano Aplicado ao Direito

(Versão Preliminar – Janeiro – 2009) 12 soluções, leis e precedentes jurídicos. No final das contas, o direito é, em grande medida, um ato de força

(força aqui entendida no sentido de poder de influência e de persuasão e não de força física). Achar uma

“razão científica” em toda decisão judicial é, de certo modo, uma ilusão, até porque o direito está impregnado

de sentido axiológico.

O direito não é neutro, nem jamais será neutro, a não ser em um hipotético mundo governado por

máquinas. Enquanto os seres humanos ainda forem responsáveis pela elaboração, interpretação e aplicação

das normas jurídicas, o direito continuará a ser um instrumento ideológico a serviço de interesses e valores

específicos, nem sempre nobres. Aliás, até mesmo em um (ainda) fictício mundo governado por máquinas,

provavelmente os valores continuarão a fazer parte do fenômeno jurídico30

.

Não há dúvida de que, na hermenêutica jurídica, será impossível afastar completamente os valores

pessoais do intérprete, pois sempre haverá uma margem de subjetividade no exercício da atividade

interpretativa. E justamente por isso, surge o fator emotivo e ideológico que, inevitavelmente, influenciará na

tomada da decisão. Afinal, o julgador não é uma máquina, mas um ser humano. Parafraseando Ortega y

Gasset, pode-se dizer que o juiz é ele e as suas circunstâncias. A visão de mundo do jurista, impregnada de

valores, crenças e preconceitos, fatalmente irá influenciar o processo de tomada de decisão.

Essa influência dos valores na atividade judicial tornou-se ainda mais intensa a partir do momento em

que várias sociedades, especialmente as ocidentais, assumiram um compromisso político-jurídico com os

direitos fundamentais, fenômeno intensificado após da segunda guerra.

Procurou-se, desde então, desenvolver uma teoria jurídica mais comprometida com os valores

humanitários como forma de recuperar a legitimidade da ciência do direito que havia sido profundamente

abalada em razão da “legalização do mal” levada a cabo pelo regime de Hitler. Foram criados alguns

instrumentos teóricos capazes de inserir na ciência jurídica os valores éticos indispensáveis para a proteção da

dignidade humana que foram suprimidos durante essa fase sombria da história da humanidade. Exemplo disso

foi o desenvolvimento da idéia de que a Constituição – e, em particular, os direitos fundamentais nela

positivados – representam uma ordem objetiva de valores que deve se irradiar por todo o ordenamento

jurídico, afetando a interpretação jurídica em todos os ramos do direto.

Sob o aspecto prático, o que muda para o operador do direito?

Muito simples: a atividade jurídica, em razão do aumento da importância dos valores constitucionais,

tornou-se centrada na Constituição. Os direitos fundamentais transformaram-se no fundamento de

legitimidade de todo o ordenamento jurídico, de modo que nenhum ato será conforme ao direito se for

incompatível com os direitos fundamentais. A preocupação do jurista não será mais com o formalismo, mas sim

com a busca pela solução mais justa e, ao mesmo tempo, mais compatível com os valores constitucionais. Os

princípios constitucionais passam a ter uma importância estratégia, servindo como autênticas fontes

normativas capazes de embasar diretamente as decisões judiciais.

A partir do momento em que se admite a aplicação direta e imediata dos direitos fundamentais, o

jurista obriga-se a sempre buscar argumentos na própria Constituição. Ou seja, a norma constitucional torna-se

o principal parâmetro da argumentação jurídica.

Ocorre que os termos utilizados pelos redatores constituintes costumam ser muito vagos e

imprecisos, deixando para o Judiciário e para o legislador ordinário a tarefa de solucionar os conflitos

resultantes das ambigüidades constitucionais. Não é tão simples definir o que é, por exemplo, igualdade,

dignidade da pessoa humana, devido processo, função social da propriedade etc. Conseguir extrair todo o

significado das normas constitucionais exige uma superação especial do intérprete, inclusive para buscar

30 Raymond Kurzweil, que é um dos grandes pensadores práticos contemporâneos, responsável pelo desenvolvimento de várias tecnologias que revolucionaram a era da computação, defendeu, no livro “A Era das Máquinas Espirituais”, que a inteligência artificial caminha para um mundo em que as máquinas terão sentimento e inteligência emocional semelhante ao dos seres humanos. As máquinas, segundo ele, serão capazes de compor sinfonias, músicas, pintar quadros tão belos e inspiradores quanto as obras de qualquer gênio do renascimento. A título provocativo, ele questiona: “Será que os computadores estão pensando, ou apenas calculando? E, de modo contrário, será que os seres humanos estão pensando, ou apenas calculando? O cérebro humano, presumivelmente, segue as leis da física, então deve ser uma máquina, ainda que muito complexa. Será que existe uma diferença inerente entre o pensamento humano e o pensamento de uma máquina?” (Kurzweil, Raymond. A Era as Máquinas Espirituais. São Paulo: editora Aleph, 2007, p. 23).

Page 13: Versão Preliminar - O Método Popperiano Aplicado ao Direito

(Versão Preliminar – Janeiro – 2009) 13 elementos fora do texto constitucional. “Para desvendar os significados vagos das frases constitucionais, os

juízes devem olhar além da Constituição”31

.

Além disso, e é isso que se deseja enfatizar neste momento, esses valores contêm uma forte carga

ideológica, dificultando ainda mais a busca da objetividade argumentativa, já que a influência emotiva no

processo decisório será inevitável.

Ao contrário do que possa parecer, a sensibilidade do juiz não é um aspecto negativo a ser afastado a

qualquer custo, mas uma virtude que humaniza a atividade jurisdicional, desde que utilizada com sabedoria. A

sentença judicial jamais deixará de ser um sentir, e o sentimento de fazer justiça nunca deve deixar de circular

nas veias de qualquer ser humano.

É preciso, contudo, saber mesclar o subjetivismo, que é inafastável, e o objetivismo necessário a

garantir a racionalidade exigida pelo direito. Afinal, é inegável que o direito não deve ser apenas ideologia,

política ou valor. Se assim fosse, a vontade pessoal do juiz – e, portanto, as suas próprias ideologias – seria o

mais importante e nada seria capaz de mudar isso. A norma, ao lado dos valores, também faz parte do

fenômeno jurídico. Portanto, o direito deve-se pautar não apenas pelas valorações subjetivas do intérprete,

mas também e principalmente por parâmetros normativos objetivos.

Um dos maiores desafios do jurista contemporâneo talvez seja tentar conciliar o caráter axiológico do

direito com a idéia de que o juiz deve seguir uma metodologia objetiva durante o processo decisório. Como

fazer com que a decisão judicial reflita não apenas os valores pessoais do juiz, mas, sobretudo, os valores

contidos no ordenamento jurídico e, portanto, aceitos pela sociedade?

Por mais que os valores façam parte indissociável do fenômeno jurídico, a atividade judicial deve

seguir uma metodologia racional, devendo o juiz buscar uma justificação plausível para as respostas por ele

encontradas. A solução deve ser capaz de convencer a um público minimamente inteligente de que aquela é a

melhor decisão possível. Isso se dá por meio da argumentação jurídica.

Para se chegar a uma argumentação jurídica “objetiva”, ou seja, baseada em valores compatíveis com

o ordenamento jurídico e não em meras preferências pessoais “subjetivas”, o jurista segue um caminho que

necessariamente começa com uma fase introspectiva, intuitiva, inconsciente, meio irracional mesmo… É o tal

do “sentimento de justiça” (sentença = sentire = sentimento). Parece-me justo que uma pessoa portadora de

deficiência que não tenha como sobreviver por conta própria receba uma ajuda financeira do Estado para

minorar seu sofrimento e melhorar sua qualidade de vida. Parece-me justo que o pai seja obrigado a cuidar do

filho. Parece-me justo que uma pessoa que, arbitrariamente, tira a vida da outra seja punida. Parece-me injusto

tratar de modo diferente duas pessoas que estão na mesma situação. Parece-me injusto maltratar outras

pessoas ou causar sofrimento desnecessário. Parece-me injusto não respeitar a opinião alheia. E por aí vai…

Aliás, qualquer pessoa é capaz de ter o mesmo sentimento de justiça. A diferença é que o jurista tem mais

prática e um maior “background” de informações específicas sobre a solução de conflitos jurídicos e, por isso,

desenvolveu um “feeling” mais aguçado (mas nem por isso melhor do que o dos não-juristas, diga-se de

passagem).

O sentimento de justiça é um sentimento meio abstrato e, por isso mesmo, difícil de explicar em

palavras. Afinal, “o coração tem razões que a própria razão desconhece”, como diria Pascal. E aí reside toda a

complexidade da tarefa jurídica, pois o papel do jurista é precisamente tentar transformar esse sentimento de

justiça (intuitivo/sensitivo/emocional) em um discurso racional, fundamentado em normas jurídicas

estabelecidas no ordenamento, que possa ser aceito pelo maior número de pessoas.

Essa fase inicial, em que a solução é descoberta intuitivamente com base no sentimento de justiça,

corresponde, de certo modo, à fase de conjectura de Karl Popper. Só não é exatamente igual, pois creio que a

experiência, as pré-compreensões, as vivências, as circunstâncias etc. do julgador terão uma influência muito

maior do que a mera intuição do cientista, que, muitas vezes, consegue descobrir a resposta correta para seus

problemas científicos mesmo sem conseguir se relacionar socialmente, o que seria complicado no mundo

31 DORF, Michael & TRIBE, Laurence. Hermenêutica Constitucional. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 88.

Page 14: Versão Preliminar - O Método Popperiano Aplicado ao Direito

(Versão Preliminar – Janeiro – 2009) 14 jurídico. Por isso, chamo esses fatores de descoberta de “feeling”, para reforçar a importância dos aspectos

emotivos (extra-normativos) na descoberta da solução jurídica.

Posso dizer que, até aqui, não estou propondo nenhuma metodologia específica, mas apenas

descrevendo o que já ocorre normalmente. Quer queiram quer não queiram, os juristas, quando estão diante

de um problema jurídico, tentam, ainda que involuntariamente, antecipar mentalmente uma solução que,

conforme a sua experiência prévia, lhes pareça mais adequada para aquele caso. Nesse ponto, as críticas que

Popper fez ao método indutivo vestem como luva. Do mesmo modo, pode-se invocar David Hume, que

também já dizia que todo raciocínio começa com impressões subjetivas32

.

Diante da constatação de que a resposta jurídica quase sempre é antecipada mentalmente pelo jurista

antes de colocar a sua opinião no papel, surgem duas opções de caminhos a serem seguidos na fase de

justificação. Ou o jurista tenta encontrar argumentos capazes de reforçar o seu ponto de vista inicial ou o

jurista tenta submeter o seu “feeling” a um processo de falsificação (refutação).

De um modo geral, os juristas seguem a primeira opção, ou seja, tentam encontrar, na lei ou nos

precedentes jurídicos, elementos que possam confirmar a sua convicção, elaborando sua solução com base nos

dados que estão de acordo com o seu sentimento de justiça. Qual não é a alegria de um jurista quando

encontra um precedente judicial que reproduz exatamente a mesma solução que ele havia antecipado!

É aqui que passo a propor um método substancialmente diferente. Penso que o jurista deveria colocar

os “óculos popperianos” sempre que estiver diante de um problema jurídico. Ou seja, deve tentar conjecturar a

resposta mais justa para o problema que tem que resolver e, a partir daí, adotar uma postura crítica em relação

ao seu ponto de vista, a fim de tentar refutá-lo com o rigor de um cientista.

Um aspecto prático relevante da atividade do jurista popperiano é que ele não estaria tão preocupado

em encontrar argumentos que possam reforçar a sua solução, embora talvez isso possa ser útil para fins

meramente estéticos e retóricos, já numa fase final da exteriorização de sua solução. O mais importante, na

ótica de Popper, seria buscar argumentos contrários à solução proposta e demonstrar que esses argumentos

não são suficientes para refutá-la: “sempre que propomos uma solução para um problema, devemos tentar,

tão intensamente quanto possível, pôr abaixo a mesma solução, ao invés de defendê-la. Infelizmente, poucos

de nós observamos esse preceito” 33

.

No âmbito do direito, também essa atitude não costuma ser observada. Aliás, pode-se dizer que é o

oposto do que os juristas comumente fazem. Em regra, os juristas procuram argumentos (doutrinários,

jurisprudenciais e legislativos) que coincidem com a sua solução e simplesmente omitem aqueles que não

“ajudam”.

O jurista popperiano certamente não agiria assim. Na fase de justificação, ele tentaria encontrar todos

os argumentos existentes e imagináveis que possam derrubar a sua hipótese inicial, colocando-se,

humildemente, na posição de quem pensa de forma diferente. Em seguida, submeteria o seu “feeling” a um

rigoroso teste de consistência e de falsificação, inclusive para verificar as possíveis conseqüências sociais,

econômicas e políticas decorrentes da solução adotada.

Para o juiz popperiano, as conjecturas seriam o ponto de partida, mas não necessariamente seriam o

ponto de chegada. Qualquer conjectura formulada mentalmente deve ser submetida a um rigoroso processo

de refutação que pode vir a demonstrar que ela é falsa. E nesse caso, o jurista deverá modestamente

reconhecer o erro e reformular a solução que havia antecipado em sua mente.

Eis as belas palavras utilizadas por Karl Popper para descrever essa idéia:

“Os nossos sonhos e esperanças não têm necessariamente de comandar as nossas conclusões. Na procura da verdade, o nosso melhor plano pode ser o de começar por criticar as crenças que mais prezamos. É possível que este pareça a alguns um plano perverso. Mas não o parecerá àqueles que querem descobrir a

verdade e não têm receio dela”34

.

32 HUME, David. Tratado da Natureza Humana. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001. 33 POPPER, Karl. A Sociedade Aberta e Seus Inimigos. Tomo 1, São Paulo: Itatiaia, 1998, p. 536. 34 POPPER, Karl. Conjecturas e Refutações. Coimbra: Almedina, 2006, p. 22.

Page 15: Versão Preliminar - O Método Popperiano Aplicado ao Direito

(Versão Preliminar – Janeiro – 2009) 15

O juiz não pode ser inconseqüente e julgar conforme suas preferências pessoais mesmo sabendo que

elas não se sustentam. O papel que lhe cabe é descobrir a solução mais justa possível para o caso concreto

mesmo que a solução encontrada não se ajuste ao seu sentimento pessoal de justiça conjecturado num

momento inicial. Isso não significa que ele precisa seguir como “carneirinho” tudo o que já está pacificado pela

comunidade jurídica. Se o juiz acha que possui argumentos suficientes para alterar a jurisprudência

consolidada, ou seja, se ele acredita que sua sentença irá ser confirmada nas instâncias recursais, ele deve

mesmo seguir sua consciência e aumentar a carga argumentativa de seu ponto de vista para tentar convencer

as outras pessoas de que aquela é a melhor solução. Se a intuição original prevalecer diante de todos os

argumentos contrários, ela deve ser mantida, hipótese em que o jurista terá muito mais elementos objetivos

para justificar para o público externo os motivos pelos quais aquela é a solução que melhor reflete a

“pretensão de correção”, para utilizar a expressão cunhada por Robert Alexy, ou a “idéia de justiça”, para ficar

com John Rawls.

É preciso reconhecer, contudo, que nem a decisão judicial nem a lei jamais serão “justas” no sentido

filosófico do termo, já que o conceito de justiça é um conceito utópico e jamais alcançável. É o mesmo conceito

de “verdade” utilizado pelos cientistas: ou seja, sempre uma meta a ser alcançada, mesmo sabendo que é

impossível. Parafraseando o poeta Vicente de Carvalho, pode-se dizer que a utópica justiça que supomos e que

sonhamos, existe sim; mas nós nunca a alcançamos, pois ela sempre está a um passo de onde nós estamos35

. O

máximo que o juiz pode e deve fazer é tentar se aproximar dessa justiça utópica.

A impossibilidade de ser absolutamente justo não significa que a injustiça não possa ser demonstrada

e evitada. O justo é utópico; mas a injustiça não. O método científico, acima recomendado, serve justamente

para afastar da decisão judicial todas as soluções que se distanciem do conceito de justiça. O juiz tem o dever

de tentar se aproximar da justiça ideal, mas tem uma obrigação muito maior de se afastar da injustiça concreta.

Então, pode-se dizer que o papel maior do juiz não é nem tanto alcançar a justiça, mas sobretudo evitar a

injustiça do caso concreto.

9 A Suposta Arrogância do “Feeling” e a Humildade Judicial

Vários juristas já perceberam que os juízes intuem a solução justa e depois tentam fundamentá-la com

base nas normas oferecidas pelo ordenamento jurídico. Na Alemanha, por exemplo, Josef Esser não apenas

identificou que esse método é utilizado por vários juízes como o defendeu abertamente.

Há, contudo, muitos juristas que não consideram legítimo agir assim.

Karl Larenz, por exemplo, defende há uma boa dose de arrogância nesse método36

. Na sua ótica, não é

aceitável que o sentimento de justiça seja o fundamento primário da decisão judicial, pois certamente o juiz

não é mais perspicaz e inteligente do que a lei e os precedentes consolidados durante anos e anos de

experiência forense. Isso sem falar que o juiz deve continuar vinculado à lei e ao direito como exigência do

Estado de Direito.

Para ele, as leis deveriam continuar a desempenhar na nossa vida jurídica, tal como dantes, um

enorme papel: os juízes ainda estão obrigados a elas recorrer sempre que a situação de fato se adequar ao seu

35 Na poesia original (“Velho Tema”), Vicente de Carvalho versava sobre a felicidade: “Essa felicidade que supomos/ Árvore milagrosa que sonhamos/ Toda arreada de dourados pomos/ Existe, sim: mas nós não a alcançamos / Porque está sempre apenas onde a pomos / E nunca a pomos onde nós estamos”. 36 O jurista alemão Karl Larenz nasceu em 23 de abril de 1903 e morreu em 24 de janeiro de 1993. Dos vários livros que escreveu, o mais influente foi o seu “Metodologia da Ciência do Direito”, de onde tirei os argumentos acima apresentados (LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. 3ª Ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997). Tinha trinta anos, em 1933, quando Hitler assumiu o poder. É fato conhecido que apoiou intelectualmente o nazismo, ajudando a construir o arcabouço jurídico do regime de Hitler. Foi um dos membros da chamada Escola de Kiel, que foi como se chamou o grupo de jovens juristas, conectados com o regime nazista, que assumiram as cátedras antes ocupadas pelos professores demitidos pelo Nacional-Socialismo. Larenz tomou a cátedra que pertencia até então ao judeu Gehrart Husserl. Esse fato é, sem dúvida, uma mancha no seu currículo, mas não deve ser motivo para desqualificar, por si só, os seus argumentos, especialmente no campo da ciência do direito. Talvez tire um pouco o peso da sinceridade da ética e dos valores por ele defendidos, mas não é capaz de destruir toda a construção teórica que ele desenvolveu com muita competência e conhecimento. Deve-se reconhecer que ele fez um excelente resumo das principais idéias defendidas pelos juristas alemães desde Savigny.

Page 16: Versão Preliminar - O Método Popperiano Aplicado ao Direito

(Versão Preliminar – Janeiro – 2009) 16 comando. De outro modo, as leis deixariam de ser vinculantes, perdendo o caráter cogente e o papel

normativo que devem ter.

O juiz, na sua ótica, deveria ter humildade suficiente para, antes de pensar em qualquer solução,

procurar a resposta no próprio ordenamento jurídico, deixando o seu entendimento prévio de lado como

forma de permitir que a própria lei lhe revele a decisão juridicamente adequada. Se o juiz já partir do

pressuposto de que a sua intuição possui uma presunção de justeza, ele jamais deixará que o próprio

ordenamento lhe revele a solução correta. E o direito não passará de um instrumento de arbítrio sem qualquer

cientificidade. Na sua ótica direito positivo que deve embasar a decisão judicial e não o inverso.

Ele não nega que o juiz tem a suas valorações subjetivas e que essas valorações afetam o processo

decisório. E cita Gadamer para demonstrar que as pré-compreensões são inevitáveis no processo

hermenêutico. Mesmo assim, entende o juiz não pode deixar que seus pré-juízos afetem de tal modo a sua

atividade a ponto que o deixe cego, incapaz de enxergar a solução dada pelo próprio ordenamento jurídico.

Larenz defende que o método jurídico deve ser orientado por valores. Mas essas valorações devem ser

buscadas não na cabeça do juiz, mas no ordenamento. Só assim, diz ele, as decisões serão suscetíveis de

confirmação e passíveis de uma crítica racional, ainda que não alcancem o grau de segurança e precisão que

uma dedução matemática alcançaria. O que não se pode aceitar, no seu entender, é que o sentimento jurídico

se transforme em fonte de conhecimento do direito mais forte do que a própria norma jurídica.

Eis, em síntese, as críticas formuladas por Karl Larenz contra o método proposto por Josef Esser, que

tem alguns pontos de semelhança com o método do “feeling” ora desenvolvido.

Na minha ótica, entendo que essas críticas não são procedentes e passo a refutá-las.

De início, é preciso reconhecer que os juízes não são como a bailarina daquela famosa ciranda

composta por Chico Buarque, que não tem defeito algum37

. Procurando bem, todo mundo tem…, só a bailarina

que não tem. Juízes não são bailarinas; são falíveis; alguns caem em tentações; outros se corrompem; há os

que gostam do poder, do carreirismo e da bajulação; outros são preguiçosos; e muitos não estão minimamente

interessados na solução dos problemas sociais, nem estão nem um pouco comprometidos com os valores

constitucionais. Enfim, não há santos nem anjos.

A importância da função judicial não gera, por si só, qualquer aumento nas qualidades pessoais do

magistrado. Assumir o cargo de juiz não faz com que ninguém se torne automaticamente um ser humano

melhor. A toga só acrescenta, para o juiz, ônus e responsabilidades. Um tolo continuará a ser um tolo, ainda

que vestido com sua pomposa toga preta, tal como o “burro carregado de relíquias” da fábula de La Fontaine38

.

Qualquer método jurídico, no fundo, parte da premissa de que os juízes são minimamente capazes de

decidir com ética, bom senso e inteligência. E nenhum método jurídico, por mais brilhante que seja, será capaz

de resolver o problema do juiz ruim (aquele corrupto, ignorante e socialmente insensível). Para esse tipo de

juiz, não há método que dê jeito. Alguém já disse, com toda razão, que não existe maneira certa de fazer uma

coisa errada.

Por isso, não creio que o método do “feeling” estimule, por si só, qualquer arrogância por parte do

juiz. Pelo contrário. Parece-me que a arrogância maior não é do juiz que tenta encontrar uma resposta justa

antes mesmo de consultar o ordenamento jurídico. Penso que o juiz que se sente capaz de se despir de seus

valores prévios para tentar encontrar, no próprio ordenamento, uma resposta correta é, no fundo, muito mais

arrogante do que o juiz que assume expressamente suas pré-compreensões. Um juiz tão frio assim é um

fingidor, talvez diferente do poeta do Fernando Pessoa, mas ainda assim um fingidor. É humanamente

impossível estar diante de um conflito e não intuir uma solução com base nas informações até então

disponíveis. Os juízes precisam ter consciência desse fenômeno. Não dá para fugir disso. Ouso dizer que o

sentimento de justiça é da essência do ser humano, especialmente quando esse ser humano trabalha

37 Refiro-me, aqui, à música “Ciranda da Bailarina”, de autoria do músico brasileiro Francisco Buarque de Hollanda. 38 A fábula de La Fontaine, acima referida, diz o seguinte: “Um burro carregado de relíquias / Julgava-se adorado. / Nesse pensar se repimpava / Recebendo como seus o incenso e as cantigas. / Alguém se apercebeu do erro, e disse-lhe: / ‘Senhor Burro, suprimi do vosso espírito / Uma vaidade tão vã. / Não é a vós, mas sim ao ídolo / Que esta honra é prestada, / E a glória é devida’. / Num magistrado ignorante / É a toga que é saudada”.

Page 17: Versão Preliminar - O Método Popperiano Aplicado ao Direito

(Versão Preliminar – Janeiro – 2009) 17 diariamente com a solução de conflitos. Esse aspecto já foi percebido há mais de duzentos e cinqüenta anos

por David Hume, que, acertadamente, assinalou que “todas as opiniões e noções das coisas a que fomos

habituados desde a infância ganham raízes tão fundas que se nos torna impossível erradicá-las, mesmo com

todos os poderes da razão e da experiência”39

.

É nesse contexto que penso que o método do “feeling” pode ter um efeito positivo, já que trata o

sentimento jurídico com mais transparência, ao invés de tentar camuflá-lo. E obriga o juiz a “trabalhar” contra

o seu sentimento na fase da justificação, tentando encontrar argumentos que possam demonstrar que, afinal,

aquela resposta pode não ser a melhor. Na prática, o que tem ocorrido é o inverso. O juiz finge que não tem

sentimento algum sobre o problema que deve enfrentar, mas na hora de ”procurar a solução no ordenamento”

simplesmente só encontra aquilo que está de acordo com as suas convicções prévias, ainda que inconscientes.

No fundo, o que ele faz é uma leitura seletiva do ordenamento, a fim de atender aos seus caprichos pessoais.

Isso sim é arrogância e arbítrio.

As emoções subjetivas sempre foram consideradas como elementos negativos dentro do processo de

investigação científica. O sentimento é tratado pelos mais “puristas” como se fossem demônios a serem

exorcizados a todo custo de qualquer metodologia que queira ser digna de ser chamada de científica.

Muito melhor, a meu ver, é assumir deliberadamente que todo ser humano possui um sentimento de

justiça e usar esse sentimento como ponto de partida. Não que o juiz deva achar que seu “feeling” tem uma

presunção de justeza. É justamente o contrário. O juiz deve partir do princípio de que está errado e, por isso,

deve procurar argumentos contra a sua própria intuição, agindo como se fosse um “advogado do diabo” de

seus próprios sentimentos.

Por isso, numa fase posterior, após o juiz consultar as leis, a jurisprudência, a doutrina e outros dados

empíricos, ele pode até mudar de idéia, já que sua missão será tentar encontrar argumentos que possam

derrubar o seu “feeling”.

A idéia do “looping hermenêutico” – um upgrade do “círculo hermenêutico” – é bem interessante. O

sentimento do juiz é o ponto de partida. Depois ele consulta o ordenamento e volta para o seu sentimento e

assim sucessivamente, até desvendar a melhor solução.

Se ele intui uma solução que não guarda compatibilidade com a lei ou com a jurisprudência

consolidada, deve ter humildade para mudar seu ponto de vista inicial, especialmente se o seu “feeling” não

tiver consistência. Mas se ele conseguir reunir bons argumentos empíricos, com base nos valores

constitucionais e/ou no princípio da proporcionalidade, que dão sustentação ao seu “feeling”, então ele deve

colocar esses dados na sua sentença e tentar mudar a lei (ou a interpretação da lei), permitindo a evolução do

direito. Sobre isso falarei oportunamente.

Quanto à vinculação do juiz à lei, tratarei desse assunto em um tópico específico.

10 A Reserva de Consistência

Uma vez descoberta a solução jurídica para um determinado problema, inicia-se a fase da justificação,

onde se tem o raciocínio jurídico exteriorizado, que é, na prática, o mais importante. É o momento em que o

juiz, usando toda técnica argumentativa que é peculiar da atividade jurídica, irá tentar convencer o público de

que a solução por ele encontrada é a melhor possível, manifestando seus fundamentos de convicção na

sentença. Trata-se, portanto, de um momento crucial para permitir o controle da racionalidade da decisão

judicial e, portanto, a verificação da sua compatibilidade com o ordenamento jurídico.

Certamente, os habermasianos criticariam esse método alegando que nenhuma concepção de ética

pode ser desenvolvida individualmente. Só se poderia falar de norma ética quando se está diante de uma

relação intersubjetiva (duas pessoas ou mais). Logo, o conteúdo da norma ético-jurídica deveria ser produto de

39 HUME, David. Tratado da Natureza Humana. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001, p. 154.

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(Versão Preliminar – Janeiro – 2009) 18 uma ação comunicativa (diálogo) entre as pessoas que por ela serão afetadas. Qualquer imposição unilateral

de valores seria autoritária.

Concordo, em parte, com essa visão. Também acho que a norma ético-jurídica deve ser justificada

mediante uma ampla argumentação racional entre os envolvidos até chegar a um consenso. No entanto,

também acho que existe uma ética individual que deve servir de ponta-pé inicial para o debate.

Todo conceito de ética tem origem, em alguma medida, na mente dos indivíduos para somente depois

ganhar normatividade ou, para usar a expressão habermasiana, se transformar em ação comunicativa. Essa

“construção mental” prévia da ética, logicamente, é afetada pela convivência intersubjetiva, pelos valores

comunitários, por fatores exteriores ao indivíduo, inclusive pela argumentação de outros indivíduos. Mas, em

grande medida, já está “rascunhada” na cabeça do indivíduo antes do debate começar. É esse rascunho que vai

dar início à discussão. E é esse rascunho que chamo de “feeling”. Se todos os debatedores entrarem no debate

com a “mente limpa”, ou seja, livre de qualquer ideologia ou conteúdo ético pré-concebido, nenhum diálogo

sequer começa.

Pode parecer que o caminho que o juiz segue até a sentença é um caminho solitário, em que ele só

consulta a sua mente e os livros (hoje, a internet). Mas não é bem assim. Na verdade, esse processo segue

todas as diretrizes básicas da teoria do discurso. Trata-se, portanto, de um processo dialogal, comunicativo,

onde os argumentos serão construídos junto com as partes, seus advogados e, de preferência, com a

“sociedade aberta dos intérpretes da Constituição” 40

. Devem ser abertos os canais de participação popular no

debate judicial, a fim de pluralizar a discussão, garantindo, assim, uma maior efetividade e legitimidade à

decisão, que será enriquecida pelos elementos e pelo acervo de experiências que os participantes do processo

poderão fornecer.

É meio exagerado achar que a sentença seria uma espécie de “consenso institucionalizado”, mas a

tarefa do juiz não deixa de ser, no fundo, uma tentativa de mostrar para um “auditório universal imaginário”

que a sua solução é a mais racional e a mais compatível com o ordenamento jurídico41

. O juiz é uma pessoa

angustiada que, a toda hora, quer mostrar para o resto do mundo que está certo. E o ideal é que ele nunca

perca essa vontade de se auto-legitimar constantemente. O juiz que se acha o “dono da verdade” e que

fundamenta sua autoridade não nos argumentos que utiliza, mas na toga que veste, não passa de um

“ditadorzinho” de toga.

Todo juiz tem o dever de ser consistente, de convencer, de expor as razões de decidir e de dar

transparência ao processo decisório, através de uma hermenêutica democrática, plural e aberta. É o que se

pode chamar de dever ou reserva de consistência, para usar uma expressão desenvolvida por Peter Häberle.

A reserva de consistência terá algumas implicações práticas relevantes, como por exemplo:

(a) torna necessária a explicitação de todos os motivos que levaram o magistrado a tomar sua decisão,

inclusive, se possível, os fatores emotivos por trás do caso;

(b) exige a ampliação da possibilidade de participação dos diversos segmentos sociais interessados nos

resultados do julgamento (stakeholders42

), a fim de legitimar e democratizar cada vez mais o processo de

concretização constitucional. Afinal, quanto maior a participação de setores da sociedade no processo, maior

será a possibilidade de acerto da decisão;

(c) faz com que as razões de decidir deixem de ser meramente jurídicas, cabendo ao juiz buscar dados

40 Nesse sentido, Peter HÄBERLE, na obra “Hermenêutica Constitucional: a sociedade aberta dos intérpretes da constituição: uma contribuição para a interpretação pluralista e ‘procedimental’ da constituição”, defende que cidadãos e grupos de interesse, órgãos estatais, o sistema público e a opinião pública constituiriam valiosas forças produtivas da interpretação, cabendo aos juízes ampliar e aperfeiçoar os instrumentos de informação, especialmente no que se refere às formas gradativa de participação e à própria possibilidade de interpretação do processo constitucional (HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional: a sociedade aberta dos intérpretes da Constituição: contribuição para a interpretação pluralista e ‘procedimental’ da Constituição. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1997, pp. 9/10). 41 A idéia de “auditório universal”, como se sabe, foi bem desenvolvida por Chaim Perelman. 42 Os stakeholders, termo bastante utilizado pelos administradores de empresas, são todos os indivíduos ou grupos de indivíduos que podem afetar ou que são afetados pela tomada de uma determinada decisão. No âmbito do direito processual, esse tipo de participação ocorre através do amicus curiae, que são colaboradores informais do processo, contribuindo para a formação e descoberta da decisão judicial mais justa ao caso.

Page 19: Versão Preliminar - O Método Popperiano Aplicado ao Direito

(Versão Preliminar – Janeiro – 2009) 19 empíricos em outras ciências, inclusive requisitando informações de entidades públicas e privadas, no intuito de

decidir a matéria do modo mais correto e racional possível, já que, no desenvolvimento de normas de direitos

fundamentais, é insuficiente o emprego de técnicas jurídicas de interpretação assentadas no simples exame de

texto;

(d) exige uma profunda ponderação das vantagens e desvantagens que a decisão trará (princípio da

proporcionalidade), já que uma decisão precipitada, sem que sejam verificados todos os interesses em jogo,

pode causar a ruína de outros direitos fundamentais ou valores constitucionalmente relevantes;

(e) impõe o dever de coerência, pois, ao se exigir que o magistrado manifeste expressamente quais os

argumentos que o convenceram a tomar uma determinada decisão, pressupõe-se que, diante de um caso

semelhante, em que os mesmos argumentos podem ser adotados, a solução não será diferente.

Se não é assim que ocorre na realidade atual, deveria ser.

Creio que até aqui não se pode dizer que há grande originalidade no “método do feeling”. Ele

incorpora elementos já bastante repetidos pela filosofia do direito e pela filosofia da ciência há uns cinqüenta

anos, pelo menos.

O salto qualitativo que o “método do feeling” se propõe a fornecer é a busca da objetividade na fase

de justificação da sentença. Que tipos de argumentos podem ou devem ser utilizados pelo juiz na fase de

justificação? A lei não basta? Os precedentes não são suficientes?

É o que se verá a seguir.

11 As Fontes do Conhecimento Jurídico

No bem-humorado livro Gargântua e Pantagruel, do escritor francês François Rabelais, há uma

pitoresca história do juiz Bridoye, que julgava os processos com base na sorte dos dados. A técnica utilizada

pelo juiz Bridoye era a seguinte: primeiro, ele colocava na extremidade da mesa de seu gabinete toda a

papelada do réu e imediatamente jogava um dado. Depois, ele colocava os dados referentes ao autor na outra

extremidade e, do mesmo modo, jogava outro dado. Aquele que tirasse o número maior seria o vencedor da

causa43

.

Mais recentemente, foi divulgada pela imprensa a notícia de um juiz das Filipinas que fora afastado de

suas funções após confessar que julgava seus processos com a ajuda de duendes.

E para não ir tão longe, pode-se mencionar uma polêmica decisão proferida por um juiz brasileiro no

ano de 2007. Analisando uma lei federal que punia severamente a violência praticada por homens contra as

mulheres (conhecida como Lei Maria da Penha), o juiz deixou de aplicar a lei, alegando que seria

inconstitucional. Até aí, nada de tão grave, pois os juízes brasileiros são autorizados pela Constituição Federal a

exercer o controle de constitucionalidade das leis. O problema foi a fundamentação por ele utilizada para

justificar sua decisão. Invocando uma interpretação pessoal da Bíblia, o juiz argumentou que a referida lei seria

uma “heresia manifesta” porque “fere a lógica de Deus”. Para ele, a desgraça humana teria começado no Éden,

por causa da mulher. E o pior: “para não se ver eventualmente envolvido nas armadilhas dessa lei absurda, o

homem terá de se manter tolo, mole, no sentido de se ver na contingência de ter de ceder facilmente às

pressões”44

. Eis o nível da argumentação a que se chegou!

É lógico que os exemplos do juiz Bridoye, que julgava com base na sorte dos dados, do juiz filipino, que

consultava duendes para sentenciar, ou então do juiz brasileiro que invocou uma interpretação preconceituosa

da Bíblia com fundamento de decidir, são incompatíveis com a idéia de argumentação jurídica racionalmente

fundamentada que se exige de um operador do direito. Não pode haver, dentro do processo judicial, espaço

para decisões sem qualquer base racional. A justificativa do julgamento deve se guiar por parâmetros aceitos

pelo ordenamento jurídico, especialmente pelos valores constitucionais, e não por aspectos místicos ou

aleatórios. Afinal, a decisão judicial não pode ser como um caderno de colorir que o juiz preenche com as suas

43 RABELAIS, François. Gargântua e Pantagruel. Belo Horizonte: Editora Itatiaia Limitada, 2003, pp. 523/546. 44 A referida decisão judicial pode ser consultada no meu site pessoal: http://direitosfundamentais.net.

Page 20: Versão Preliminar - O Método Popperiano Aplicado ao Direito

(Versão Preliminar – Janeiro – 2009) 20 cores favoritas. A Constituição não deve ser simplesmente um espelho por meio do qual é possível enxergar

aquilo que se tem vontade45

, ou então uma bola de cristal com a qual podemos ver qualquer coisa que

queremos46

.

Creio que as fontes do conhecimento jurídico devem ser bastante amplas, mas não ao ponto de se

aceitar esse tipo de argumento sobrenatural.

Defendo que o juiz deve submeter o seu “feeling” a pesados testes de falseabilidade ou de refutação,

nos moldes propostos por Karl Popper. E nesse processo, vale todo tipo de argumento racional: psicológico,

sociológico, genético, médico, econômico, matemático, físico etc. Pode-se (e deve-se) invocar até mesmo o

senso comum, que, mesmo sem o refinamento retórico dos argumentos científicos, é compreendido por quase

todos os membros da comunidade. Só não vale apelar para os búzios, para os duendes, para os astros, para os

dados, para o cara ou coroa, para os espíritos ou para uma força divina qualquer. É preciso ser minimamente

racional, apresentando argumentos que sejam plausíveis e razoáveis.

O jurista também poderá aproveitar soluções de sucesso desenvolvidas por tribunais estrangeiros.

Defendo que os juízes não devem ter qualquer receio em imitar e aperfeiçoar as boas decisões e idéias

desenvolvidas por tribunais de outros países, desde que em benefício da progressiva e constante melhoria do

princípio da dignidade humana. Não podem, contudo, perder jamais o senso crítico para perceber que o direito

está impregnado de valor, e os valores não são uniformes em todas as sociedades, por mais que os textos

constitucionais sejam semelhantes. É o que se pode chamar de “benchmarking” jurisprudencial47

.

O que se deseja enfatizar é a pluralidade das fontes do conhecimento jurídico. É inconcebível que o

jurista pense que seu único instrumento de trabalho são os códigos e os repertórios de jurisprudência.

Qualquer solução possivelmente justa, venha de onde vier, pode servir como ponto de partida, desde que seja

submetida ao crivo crítico do processo de refutação.

Naturalmente, as conjecturas e refutações das idéias jurídicas possuem um nível ideológico e

axiológico muito maior do que, por exemplo, um problema matemático, e, em conseqüência, não possibilitam

um grau de precisão tão elevado e tão consensual quanto o que é obtido nas ciências naturais. Além disso, os

critérios para saber se uma solução científica é “melhor” do que a outra são mais objetivos. Popper, por

exemplo, afirma que uma teoria é melhor do que a outra quando corresponde melhor aos fatos, conforme já

visto. No direito, esse critério relativamente preciso não se aplica. O direito não busca uma “aproximação da

verdade”, mas sobretudo uma “aproximação da justiça”, cuja definição é muito mais complexa do que uma

mera “correspondência com os fatos”.

Mas isso, por si só, não retira a utilidade da técnica do falsificacionismo no âmbito jurídico. É que o

método funciona essencialmente como um sistema de tentativa e erro muito eficaz justamente para detectar

os erros (no caso do direito, as injustiças). As soluções injustas podem ser identificadas com mais facilidade e

assim podem ser refutadas. E mesmo as soluções aparentemente justas podem ser corrigidas se ocasionarem

resultados desastrosos não previstos inicialmente.

Popper, nesse ponto, usaria as seguintes palavras:

“A nossa tarefa *do cientista ou, aqui para nós, do jurista+ consiste em testar, em examinar criticamente, duas (ou mais) teorias rivais. Resolvemo-las, tentando refutá-las - a uma ou a outra - até chegarmos a uma

decisão. Na matemática (mas apenas na matemática), essas decisões são geralmente finais: é raro haver

provas inválidas não detectadas. Se olharmos agora para as ciências empíricas [creio que o direito é, em grande medida, uma ciência empírica], veremos que, regra geral, seguimos fundamentalmente o mesmo procedimento. Uma vez mais, testamos as nossas teorias: examinamo-las criticamente, tentamos refutá-las. A única diferença importante é que agora podemos utilizar também argumentos empíricos nas nossas análises críticas. Mas esses

45 DORF, Michael & TRIBE, Laurence. Hermenêutica Constitucional. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p.3. 46 DORF, Michael & TRIBE, Laurence. Hermenêutica Constitucional. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p.17. 47 O termo “benchmarking”, aqui utilizado um pouco fora do seu contexto original, mas dentro da mesma lógica, é uma técnica gerencial bastante utilizada no âmbito da administração de empresas que consiste em estimular a imitação de experiências de sucesso vivenciadas por outras organizações, para que sirvam como parâmetro de evolução dentro do espírito de melhoria contínua que qualquer empresa deve praticar. Afinal, “a imitação é o primeiro passo da inovação” (SHIBA, Shoji; GRAHAN, Alan; WALDEN, David. TQM – Quatro Revoluções na Gestão da Qualidade. Porto Alegre: Bookman, 1997, p. x.)

Page 21: Versão Preliminar - O Método Popperiano Aplicado ao Direito

(Versão Preliminar – Janeiro – 2009) 21

argumentos empíricos só se apresentam acompanhados por outras considerações críticas. O pensamento

crítico enquanto tal continua a ser o nosso principal instrumento” 48

.

Creio que, de um modo geral, o fenômeno jurídico já funciona, ainda que de forma inconsciente,

seguindo esse processo de tentativa e erro, dentro de uma lógica quase popperiana. Vou dar dois exemplos.

Durante muito tempo, o direito considerou que as mulheres eram emocional e intelectualmente

incapazes de praticarem diversos atos de natureza civil e política. Elas não podiam firmar contratos sem a

assistência dos seus maridos e não podiam exercer o direito de votar nem de serem votadas. O alicerce teórico

que dava suporte a esse tratamento era nitidamente machista e, ainda assim, prevaleceu (como se fosse algo

racional!) até o século passado.

Mas o certo é que essa hipótese, ao longo do século XX, foi “falsificada”. Conseguiu-se demonstrar

objetivamente que as mulheres são tão capazes do que os homens, de modo que nada justifica tratá-las de

forma discriminada. A discriminação, conforme a experiência prática confirmou, era infundada, sem sentido e,

portanto, injusta. Com isso, o direito evoluiu. A tese da incapacidade das mulheres foi substituída pelo princípio

da igualdade de gênero, que hoje é reconhecido expressamente por diversos ordenamentos jurídicos pelo

mundo afora.

Nesse caso, a evolução do direito não partiu propriamente dos juristas, mas da própria sociedade. Foi

o “feeling” do legislador, captando os anseios da sociedade, quem possibilitou a mudança de pensamento. Em

casos mais recentes, contudo, especialmente por conta do desenvolvimento da chamada jurisdição

constitucional, é possível apresentar diversos exemplos de evolução substancial do direito que partiu da

atuação de “juízes popperianos”.

O fim da segregação racial nas escolas norte-americanas talvez seja o maior exemplo, ainda que não

seja o único. Havia uma crença nos EUA, antes da decisão proferida pela Suprema Corte daquele país no caso

Brown vs. Board of Education (1954), de que a adoção de um regime educacional segregacionista entre negros

e brancos não violava a cláusula da igualdade, desde que fosse garantido aos negros o acesso a escolas públicas

iguais a dos brancos, ainda que separadas. Era uma hipótese que vinha sendo aceita desde a aprovação da

Emenda Constitucional 14, de 1868, que estabeleceu a cláusula da igualdade, e que foi reforçada com a decisão

proferida pela Suprema Corte em 1896, no caso Plessy vs. Ferguson, que reconheceu a constitucionalidade da

doutrina “equal but separate”.

Essa hipótese foi submetida a um rigoroso teste de falsificação pelos juízes da chamada “Corte

Warren”, durante a década de 50 do século passado, que resultou na conclusão de que a doutrina “iguais, mas

separados”, até então prevalecente, era uma farsa e, portanto, injusta. No fundo, conforme ficou

demonstrado, a desigualdade era gritante, em desfavor dos negros. O regime segregacionista, de acordo com a

decisão unânime daqueles juízes, além de não funcionar na prática, já que as escolas para os negros eram

nitidamente piores do que as escolas para os brancos, gerava um sentimento psicológico de inferioridade nos

estudantes negros que somente poderia ser corrigido e minorado com a integração racial. Com isso, a

segregação racial, que era um sistema previsto na lei e aceito pela jurisprudência até então consolidada, foi

considerada inconstitucional por violar a cláusula da igualdade. Eis um exemplo típico e louvável da adoção da

técnica popperiana aplicada ao direito, ainda que de forma inconsciente.

Esse exemplo demonstra claramente que é falsa a idéia de que os juízes primeiro consultam o

ordenamento jurídico para somente depois encontrarem a resposta justa, tal como defendido pela imensa

maioria de juristas. Se isso tivesse sido feito no caso “Brown”, os juízes necessariamente teriam que concluir

que o regime segregacionista era válido, pois era essa a resposta que as leis e a jurisprudência forneciam. O

que houve, na realidade, foi uma mudança substancial no “feeling” dos juízes daquela corte, certamente

influenciada pela própria mudança dos valores vindos da sociedade, que foi forte o suficiente para permitir e

justificar a refutação de uma teoria até então válida, qual seja, a doutrina do “equal but separate”. Os dados

objetivos apresentados no processo demonstraram a falsidade da doutrina do “equal but separate”, e o

“feeling” em prol da igualdade racial acabou prevalecendo.

48 POPPER, Karl. Conjecturas e Refutações. Coimbra: Almedina, 2006, p. 270.

Page 22: Versão Preliminar - O Método Popperiano Aplicado ao Direito

(Versão Preliminar – Janeiro – 2009) 22

É lógico que, nesse exemplo, o fato de os Estados Unidos seguirem o sistema do “common law”

também contribuiu para tornar mais claro esse tipo de raciocínio, já que o sistema anglo-saxão aceita mais

abertamente a criação judicial de direitos. Mas o sistema do “civil law” também tem se aproximado desse

modelo especialmente por força do desenvolvimento da chamada jurisdição constitucional, conforme se verá

mais à frente.

12 Os Argumentos de Autoridade

Para bem compreender o funcionamento da metodologia jurídica é preciso ter em mente a idéia de

proibição de “non liquet”.

A expressão latina “non liquet” é uma abreviatura da frase “iuravi mihi non liquere, atque ita iudicatu

illo solutus sum”, que significa mais ou menos isso: “jurei que o caso não estava claro o suficiente e, em

conseqüência, fiquei livre daquele julgamento”. Ao declarar o “non liquet”, o juiz romano se eximia da

obrigação de julgar os casos nos quais a resposta jurídica não era tão nítida. Assim, em caso de dúvida, o juiz

poderia deixar de julgar o caso.

Na atual fase de evolução do direito, vigora a regra da proibição do “non liquet”, ou seja, os juízes

devem julgar todos os conflitos que lhes são submetidos, mesmo que não estejam seguros sobre qual é a

melhor solução. Por isso, o juiz não pode ser como o “asno de Buridano”, que, apesar de estar com muita sede

e com muita fome, morreu indeciso diante da água e da comida que lhe forneceram49

. O sistema jurídico não

aceita mais esse tipo de indecisão por parte do juiz. Ele tem que proferir sua sentença de qualquer maneira,

ainda que não esteja convencido plenamente sobre a justeza do resultado.

A utilidade prática da proibição “non liquet” é inegável. Se o juiz se eximisse de proferir uma decisão

toda vez que estivesse em dúvida, haveria grande probabilidade de o sistema entrar em colapso, pois são

muitas as situações em que isso ocorre.

Mesmo assim, ouso conjecturar que, provavelmente, uma das principais causas da tradicional

arrogância e empáfia dos juízes decorre, em alguma medida, dessa obrigação a eles imposta de terem que

decidir tudo, de não poderem demonstrar ou confessar ignorância. A proibição “non liquet” não abre espaço

para que os juízes exercitem a humildade intelectual. Em conseqüência, o juiz, inconscientemente, transforma

essa obrigação de julgar tudo em uma falsa crença de que sabe tudo e que é, portanto, capaz de ser o senhor

onipresente e onisciente da verdade e da justiça.

Ao lado do “non liquet”, foram desenvolvidos, ao longo da história do direito, mecanismos para

reduzir o arbítrio que naturalmente resulta dessa arrogância intelectual. O mais importante, sem dúvida, é o

dever imposto aos juízes de fundamentar as decisões. O magistrado tem que apresentar, na sua sentença, as

razões do seu convencimento.

Ora, mas como justificar com objetividade as escolhas se muitas vezes os próprios juízes não sabem

com certeza o que motivou a sua decisão, nem possuem tempo nem estrutura material para elaborar uma

solução consistente?

De fato, a pergunta é embaraçosa para aqueles que defendem que os juízes sejam árbitros

onipresentes de todos os conflitos sociais. Não creio que seja necessário acabar com a proibição do “non

liquet”. Isso seria um retrocesso impensável. Um bom começo para minimizar esse problema seria estimular a

prática da auto-crítica entre os juízes, conforme recomenda o método ora proposto.

49 A fábula do “asno de Buridano” é mais ou menos assim: o dono de um asno resolveu fazer um experimento. Deixou o seu animal sem comer e sem beber por dois dias, parado exatamente no meio do estábulo. No terceiro dia, sabendo que o animal estava faminto e sedendo, colocou uma pilha de feno em um canto do estábulo e, no outro canto, colocou um balde de água, para ver qual dos dois o animal escolheria primeiro. Como a comida e a bebida foram colocadas em lugares eqüidistantes em relação ao ponto em que o animal estava, o asno ficou paralisado e indeciso sem saber se deveria primeiro matar a fome ou saciar a sede. No dia seguinte, ainda com fome e com sede, o pobre asno morreu.

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(Versão Preliminar – Janeiro – 2009) 23

O problema é que o método popperiano aplicado ao direito certamente esbarra em um problema

prático indiscutível: o juiz, em regra, não tem todo o tempo do mundo para testar todas as hipóteses possíveis

e imagináveis. Enquanto um cientista, muitas vezes, passa a sua vida toda testando uma única hipótese, os

juízes, em geral, devem solucionar centenas e até mesmo milhares de casos por ano.

O cientista dedica anos pesquisando um único assunto, obtendo todas as informações sobre ele

disponíveis e utilizando todas as técnicas mais avançadas para conhecê-lo profundamente. Os juízes, pelo

contrário, quase sempre só dispõem daquelas informações colhidas no processo judicial, que são muito

limitadas, já que as partes litigantes não seguem fielmente a ética do discurso e da argumentação. Os

advogados somente apresentam as informações que possam ser úteis aos seus clientes. Em razão disso, a

atividade decisória, no âmbito judicial, perde muito em qualidade, não chegando nem perto da colheita de

dados obtidas pela metodologia de pesquisa adotada pelos cientistas. Isso força o juiz a seguir o seu “feeling”

sem o necessário senso crítico.

Talvez isso explique o fato de os juristas se agarrarem com tanta força aos argumentos de autoridade,

prática abominada pelos cientistas. Para os juristas, é melhor e mais cômodo acreditar ou fingir acreditar no

que os grandes pensadores afirmaram no passado do que perder tempo elaborando uma solução diferente.

Esse tipo de raciocínio é tudo menos científico. Ao invés de se pensar criticamente, simplesmente aceitam-se,

sem questionamentos, as respostas encontradas por outras pessoas. O grande físico Isaac Newton afirmou

que, para enxergar mais longe, teve que subir nos ombros dos gigantes antes de formular a sua teoria científica

que revolucionou a física moderna. Nós, juristas, ao invés de subirmos nos ombros dos gigantes, simplesmente

nos curvamos e nos ajoelhamos servilmente diante daquilo que foi ditado pelos sábios pensadores do passado,

com reverência cega, incapazes de olhar para frente com nossos próprios olhos. O jurista popperiano não

aceitaria esse tipo de postura.

É preciso reconhecer que a argumentação jurídica exerce uma função muito mais importante do que a

justificação científica, pois é a única ferramenta de que dispomos para convencer. O cientista tem

experimentos e testes empíricos. Nós só temos a linguagem (e a força da sanção, é óbvio). O grande problema

da maioria dos juristas (e muitas vezes eu me vejo caindo nessa mesma armadilha) é que, na fase de

justificação, ao invés de se tentar demonstrar a falsidade de nosso “feeling”, nós apresentamos apenas os

argumentos favoráveis. A tendência natural de qualquer argumentação é selecionar os pontos que confirmem

nossa hipótese e simplesmente fingir que os argumentos contrários não existem. Mas isso é errado! O

pensamento científico não funciona ou não deveria funcionar assim. O pensamento científico impõe uma

constante autocrítica e humildade para reconhecer que é bastante possível que estejamos equivocados.

Por isso, mesmo que seja impossível realizar reflexões muito demoradas na busca de solução para os

problemas jurídicos, ainda assim o juiz não pode perder o seu senso crítico. O juiz deve estar constantemente

preparado para dialogar, ouvir e tentar compreender as idéias alheias, mesmo que não concorde com elas.

Antes de julgar um ponto de vista, deve-se colocar na posição daquelas pessoas que o defendem para entender

qual a sua razão de ser. E deve questionar tudo, não se conformando facilmente com os pontos de vista que

lhe são apresentados. O juiz deve ser particularmente cético em relação aos chamados “argumentos de

autoridade”, que são aquelas opiniões se sustentam tão só pelo nome da pessoa que o defende. Qualquer

argumento só merece ser levado em conta se tiver algum conteúdo, não importa quem o apresentou.

13 Popper vs. Kelsen

Pelo o que até aqui se falou, é possível perceber que há uma diferença substancial entre o jurista

popperiano e o jurista kelseniano. Como é sabido, Hans Kelsen também estava preocupado com a

cientificidade do estudo jurídico e, por isso, desenvolveu sua famosa teoria pura, onde tentou excluir da ciência

do direito qualquer fator extra-normativo. Os resultados obtidos por Kelsen geraram um modelo

substancialmente diverso do modelo que aqui se apresenta, que também tem pretensões de cientificidade.

Como pode isso?

Page 24: Versão Preliminar - O Método Popperiano Aplicado ao Direito

(Versão Preliminar – Janeiro – 2009) 24

Kelsen estava muito mais preocupado com a delimitação do objeto de estudo da ciência do direito do

que propriamente com o avanço do conhecimento jurídico ou com a busca da justiça e da verdade. Por isso,

escolheu a norma jurídica – e somente a norma jurídica – como objeto de análise do jurista, tratando-a como

se fosse algo que existe por si só, de forma independente e autônoma em relação à realidade social e histórica

em que está inserida. Popper critica essa delimitação epistemológica com as seguintes palavras (logicamente,

não tratando especificamente do Direito ou de Kelsen):

“A crença de que existe algo como a Física, a Biologia, ou a Arqueologia, *e aqui acrescento eu: o Direito ou a Norma+, e que esses ‘estudos’ ou ‘disciplinas’ são indistinguíveis pela matéria que investigam, parece-me um resquício da época em que se acreditava que uma teoria tinha de provir de uma definição da sua própria matéria temática. Mas matérias, ou espécies de coisas, não constituem, digo eu, uma base para distinguir disciplinas. As disciplinas são distinguidas, em parte, por razões históricas e razões de conveniência administrativa (como a organização do ensino e dos apontamentos); e, em parte, porque as teorias que elaboramos para resolver os nossos problemas têm tendência para se transformar em problemas

unificados”50

.

Em seguida, concluiu de forma magistral: “Nós não somos estudantes de uma matéria qualquer, mas

estudantes de problemas. E os problemas podem atravessar diretamente as fronteiras de qualquer matéria ou

disciplina específica”51

.

Essa conclusão é ainda mais óbvia quando se trata de problemas jurídicos. Quem bem percebeu isso

foi o jusfilósofo alemão Theodor Viehweg que, na década de 50 do século passado, redescobriu a Tópica

desenvolvida por Aristóteles.

Viehweg exerceu por um tempo a atividade judicante, o que certamente lhe deu uma visão

pragmática do fenômeno jurídico. Com isso, foi capaz de perceber que o pensamento jurídico é essencialmente

tópico, ou seja, se desenvolve a partir de problemas, é guiado por eles e se dirige em direção a eles, a fim de

solucioná-los52

.

Aqueles que conhecem a realidade forense sabem que a tarefa do jurista consiste, indiscutivelmente,

em resolver problemas jurídicos. E os problemas jurídicos são problemas essencialmente humanos e não

meramente normativos. Envolvem fatos, valores, normas (Miguel Reale) e, acrescentaria eu, seres humanos. O

método kelseniano “purificou” tanto o objeto de estudo do jurista que o direito se tornou uma abstração sem

sentido, já que perdeu a sua principal razão de ser que é resolver problemas humanos concretos ou pelo

menos fornecer argumentos capazes de ajudar os juristas a encontrarem a melhor solução para esses

problemas. O jurista que se preocupa em resolver problemas concretos sabe que jamais conseguirá ser neutro,

como pretendia Kelsen. Mesmo o conhecimento mais puro, diria Popper, não é tão puro quanto se pode

pensar, já que as idéias são, em grande medida, motivadas e inconscientemente inspiradas por esperanças

políticas e sonhos utópicos53

.

Para muitos, Kelsen seria o maior exemplo de como a atividade dos juristas pode ser “científica”,

apesar de tudo. A coerência da teoria pura seria o máximo que se poderia alcançar em termos metodológicos.

Não ouso negar a coerência da teoria pura do direito. Mesmo assim, penso que a doutrina kelseniana é muito

mais dogmática do que científica. A norma jurídica é tratada como um dogma, como se fosse um objeto

imaculado e como se nela estivesse a fonte de todo o conhecimento relevante para os “cientistas do direito”.

O que pode dar ao direito um caráter de cientificidade não é certamente o objeto de estudo bem

delimitado ou a busca da neutralidade do jurista ou a construção de um modelo que garanta uma ilusória

certeza jurídica. A possível cientificidade do direito deve ser encontrada nos métodos e nos argumentos

adotados pelos juristas para solucionarem os problemas que devem resolver.

Como defendeu o jurista alemão Robert Alexy, “qualquer pessoa que equipare racionalidade com

certeza terá de renunciar à idéia de uma teoria da argumentação jurídica racional”. E prossegue:

“Não existe, é claro, nenhuma razão para insistir nesta identificação. Mesmo nas ciências naturais, que muitas vezes são sustentadas em contraste com a jurisprudência como um paradigma da ciência autêntica,

50 POPPER, Karl. Conjecturas e Refutações. Coimbra: Almedina, 2006, p. 98. 51 POPPER, Karl. Conjecturas e Refutações. Coimbra: Almedina, 2006, p. 98. 52 VIEHWEG, Theodor. Tópica e Jurisprudência. Brasília: UnB, 1979 53 POPPER, Karl. Conjecturas e Refutações. Coimbra: Almedina, 2006, p. 21.

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(Versão Preliminar – Janeiro – 2009) 25

não pode haver questão de chegar à certeza conclusiva. O fato de a certeza ser inatingível não pode, portanto, em por si mesmo ser visto como uma razão suficiente para negar o caráter científico da jurisprudência ou sua natureza como uma atividade racional. Não é a geração de certeza que constitui o caráter racional da jurisprudência, porém muito mais sua conformidade a essas condições, critérios ou regras que constituem o caráter racional da argumentação jurídica”

54.

A argumentação jurídica deve seguir um padrão de objetividade e de racionalidade se quiser ser

chamada de científica. Se a solução dos problemas jurídicos se basear em meros argumentos dogmáticos,

então não se pode falar em “ciência do direito”. E na visão de Kelsen, a norma era um dogma.

Na ótica popperiana, as leis seriam vistas com um olhar crítico, que tanto poderia resultar numa

aceitação como numa rejeição. Seria preciso, antes de aplicar a lei, conhecer e compreender o seu significado e

a sua função e assim verificar a sua racionalidade. O jurista popperiano estaria sempre pronto a desafiar e a

criticar as leis de seu país, colocando pontos de interrogação em tudo, pelo menos na sua mente, não se

submetendo cegamente a nenhuma lei55

. Mas nem por isso seria necessariamente anti-legalista. Há

argumentos racionais muito fortes para reforçar a idéia de que a lei e os precedentes devam ser seguidos na

maioria das vezes, conforme se verá logo a seguir.

14 As Leis e os Precedentes como Meros Topoi Argumentativos

“Os métodos da ciência – com todas as imperfeições – podem ser usados para aperfeiçoar os sistemas sociais, políticos e econômicos, e isso vale, na minha opinião, para qualquer critério de aperfeiçoamento que se adotar. Mas como é possível, se a ciência se baseia em experimentos?

Os humanos não são elétrons, nem ratos de laboratório. Mas todas lei do congresso, toda decisão da Suprema Corte, toda diretriz presidencial de segurança nacional, toda mudança na

taxa de juro preferencial é um experimento”. Carl Sagan56

Conforme visto, o jurista popperiano não consideraria as leis e os precedentes como se fossem

dogmas a serem obedecidos cegamente. Afinal, “nenhuma autoridade humana pode estabelecer a verdade por

decreto”57

. As leis e os precedentes seriam meras conjecturas ou hipóteses experimentais passíveis de

refutação. Qualquer reposta oferecida pela lei, pela jurisprudência ou pela doutrina deveria ser submetida a

testes de falsificação antes de ser adotada acriticamente. Só assim, por meio de constantes refutações, se pode

esperar que o direito evolua. Não seria possível a evolução da jurisprudência se os juízes agissem sempre

dogmaticamente, ou seja, aceitando como absolutamente verdadeiras as conclusões fornecidas no passado,

seja por legisladores, seja por outros juízes, seja por autoridades acadêmicas.

Apesar disso, é inegável que a lei e os precedentes ocupam um papel especial dentro do esquema de

justificação de qualquer argumentação jurídica. Eles não são um mero tópico argumentativo (topos) como

outro qualquer. Eles são o principal topos jurídico. São os topoi jurídicos por excelência58

.

Na grande maioria das vezes, as leis e os precedentes serão suficientes para embasar a decisão

judicial. O juiz vai ser legalista/formalista na maior parte de sua vida, quer queira quer não queira. Isso porque

os precedentes e as leis se apresentam como soluções que já passaram por um processo de descoberta e

justificação anterior. Uma lei é, numa visão ideal, uma solução apresentada por um grupo de pessoas que, em

dado momento histórico e após um amplo debate democrático, intuíram que aquela norma era justa e

54 ALEXY, Robert. Teoria da Argumentação Jurídica. São Paulo: Landy, 2001, p. 272. 55 POPPER, Karl. Conjecturas e Refutações. Coimbra: Almedina, 2006, p. 172. Popper, no caso, estava tratando da tradição e não propriamente das leis, mas creio que a lógica é a mesma. Apesar disso, certamente, nesse tema, Popper não concordaria totalmente com esse ponto de vista acima defendido. Embora a base da sua filosofia seja a crítica constante, Popper tinha um particular respeito pelas tradições e, conseqüentemente, pela ordem normativa. É possível notar, ao longo de seus textos, um certo desconforto ao tentar conciliar a sua visão crítica com o seu tradicionalismo, de certo modo, conservador. 56

SAGAN, Carl. O Mundo Assombrado pelos Demônios: a ciência vista como uma vela no escuro. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 283. 57 POPPER, Karl. Conjecturas e Refutações. Coimbra: Almedina, 2006, p. 51. 58 A expressão “topos” vem, logicamente, da tópica. Um topos argumentativo representaria todos aqueles fatores que podem ser úteis à solução de um problema. Viehweg explica que são “lugares-comuns” utilizados na argumentação para permitir que, por meio da retórica, se chega à resolução de um problema (VIEHWEG, Theodor. Tópica e Jurisprudência. Brasília: UnB, 1979).

Page 26: Versão Preliminar - O Método Popperiano Aplicado ao Direito

(Versão Preliminar – Janeiro – 2009) 26 conseguiram convencer outras pessoas de que aquela regra mereceria se transformar em lei obrigatória para a

população em geral. O mesmo se pode dizer dos precedentes: eles corporificam soluções que já passaram por

um longo processo de descoberta e justificação. Por isso, merecem ser, em princípio, seguidos e obedecidos

pelos demais membros da comunidade (vale ressaltar: muito mais pelos argumentos neles contidos do que

pela “autoridade” do tribunal que os emanou).

A lei e os precedentes são argumentos tão fortes que, na maioria dos casos, são auto-suficientes para

justificar a decisão judicial. Aliás, no fundo, eles são instrumentos pragmáticos desenvolvidos para facilitar a

argumentação jurídica. Explico.

Na época do Império Romano, a atividade dos magistrados era excessivamente casuística, obrigando o

juiz a criar argumentos específicos para cada caso concreto. O jurista romano, explicou Viehweg, apresentava

um problema e tentava encontrar argumentos para resolvê-lo, seguindo a postura tradicional da tópica59

. Com

a Revolução Industrial e a conseqüente massificação da sociedade (e o positivismo teórico que lhe deu

suporte), essa busca da “solução específica para cada caso” tornou-se inviável. Daí a criação de códigos

minuciosos para mecanizar a atividade do juiz e acelerar a solução institucional dos conflitos60

. A lei, portanto,

não é apenas um instrumento de limitação da atividade judicial, mas, sobretudo, na perspectiva do juiz, uma

ferramenta para lhe ajudar a encontrar a melhor solução para o caso a ele submetido e facilitar a

fundamentação da sua decisão.

Creio que a aplicação mecânica da lei nunca vai perder a sua importância prática. Ela economiza o

tempo, possibilita uma estabilização das relações sociais e a previsibilidade dos resultados. Além disso, através

da aplicação isonômica da regra, favorece a Justiça. Daí porque o paradigma do positivismo clássico de que as

soluções para os problemas jurídicos devem ser encontradas na lei nunca vai ser totalmente superado.

Popper reforçaria meus argumentos dizendo que as pessoas precisam ter uma idéia clara do que

esperar e de como proceder na vida social. As leis teriam, portanto, a função de possibilitar alguma

previsibilidade no mundo social em que vivemos, a fim de que possamos ter consciência de como a sociedade

irá reagir às nossas ações61

. Daí porque, na análise crítica das leis, o jurista deveria ponderar os seus méritos e

deméritos, sem esquecer o mérito que lhes advém do fato de serem leis instituídas e, portanto, já terem

passado com sucesso por testes de falseabilidade anteriores.

O juiz deve ser (e é) legalista na maioria dos casos, mesmo quando se considera como um juiz

“alternativo”. Por exemplo, se o seu “feeling” coincidir com a resposta legal ou com a resposta dada por

precedentes judiciais, basta ele invocar esses argumentos para justificar a sua decisão. Essa situação é talvez a

mais comum de todas, já que o sentimento de justiça do juiz, em virtude de sua educação acadêmica e da

tradição da atividade que exerce, costuma estar intimamente conectado com os valores que emanam do

ordenamento jurídico. Do mesmo modo, quando ele não é capaz de “captar” qual a solução que, na sua ótica,

seria a mais justa (essa situação é mais freqüente do que se imagina), o juiz sabe que o melhor é seguir o que

diz as leis e os precedentes, pois certamente a sua observância trará mais vantagens do que desvantagens. No

mesmo sentido, quando o seu “feeling” não coincide com a solução dada pelo legislador ou pelos tribunais,

mas ele não consegue encontrar argumentos capazes de, objetivamente, justificar o seu ponto de vista, o

melhor é seguir a lei e os precedentes, pois são argumentos fortes que só podem deixar de ser observados

quando forem encontrados argumentos mais fortes ainda. Dito de outro modo: o juiz deve ter humildade para

deixar de observar o seu “feeling” quando não encontrar argumentos razoáveis capazes de sustentá-lo.

As situações acima são as mais freqüentes no dia a dia de um juiz. Em todas elas o juiz estará vinculado

à lei e aos precedentes e cumprirá o seu papel de “boca da lei” de muito bom grado.

Raras são as situações em que o “feeling” do juiz não coincide com o da lei ou dos precedentes e ele é

capaz de encontrar argumentos suficientemente fortes para deixar de segui-los. E o curioso é que, apesar de

59 VIEHWEG, Theodor. Tópica e Jurisprudência. Brasília: UnB, 1979, p. 48. 59 POPPER, Karl. Conjecturas e Refutações. Coimbra: Almedina, 2006, p. 51. 60 Sobre esse tema: HESPANHA, António Manuel. Cultura Jurídica Européia: síntese de um milénio. 3ª ed. Forum da História: Europa-América, 2003. 61 POPPER, Karl. Conjecturas e Refutações. Coimbra: Almedina, 2006, p. 182.

Page 27: Versão Preliminar - O Método Popperiano Aplicado ao Direito

(Versão Preliminar – Janeiro – 2009) 27 ser uma situação bem rara, é justamente sobre ela que a grande maioria dos teóricos se debruça. Afinal, o juiz

pode deixar de aplicar uma lei ou um precedente se não concordar com o seu resultado?

Hoje em dia, a teoria jurídica aceita dois hipóteses básicas capazes de justificar essa postura de não-

aplicação da lei: (a) o juiz pode deixar de aplicar a lei quando ela não é compatível com a Constituição; (b) o juiz

pode deixar de aplicar a lei quando ela não for proporcional.

Em qualquer situação, exige-se que a decisão judicial espelhe os mesmos valores previstos no

ordenamento jurídico, em especial na constituição, que é a lei suprema, contendo uma “ordem objetiva de

valores” a orientar a interpretação de toda e qualquer norma estatal.

Ocorre que, infelizmente, nem sempre o ordenamento jurídico-constitucional possui uma resposta

clara, precisa e previsível para os conflitos cada vez mais complexos que surgem nas sociedades pluralistas.

Aliás, o mais comum é que a solução seja fornecida por normas constitucionais muito vagas que oferecem uma

possibilidade decisória quase ilimitada para o juiz. Já se afirmou, ironicamente, que a Constituição é como um

grande supermercado, cujas prateleiras estão repletas de produtos para todos os gostos, a serem adquiridos

conforme as preferências de cada cliente. No fundo, o juiz, pelo menos potencialmente, pode decidir como

quiser, ainda que tenha que fundamentar a sua escolha no direito positivo, que, afinal de contas, aceita quase

tudo.

Essa ampla liberdade decisória dá margem àquilo que Daniel Sarmento, à luz da realidade brasileira,

chamou de “oba-oba constitucional”62

e que, em outra ocasião, tive a oportunidade de chamar de “katchanga”,

fazendo alusão a um fictício jogo de cartas em que os participantes não sabem quais são as regras; quem dá as

cartas define quem ganha, sem explicar os motivos63

.

Os juízes precisam justificar objetivamente a sua escolha, mas, muitas vezes, eles próprios não sabem

com certeza o que motivou a sua decisão, nem possuem tempo nem estrutura material para elaborar uma

solução consistente. Por causa disso, os juízes acabam desenvolvendo técnicas argumentativas que servem

para tudo, mas não dizem nada. É justamente isso que chamo de “katchanga”, que são as palavrinhas mágicas

que não passam de subterfúgio utilizado pela prática judicial para dar ao juiz uma possibilidade de

“fundamentar” o julgado sem apresentar argumentações consistentes. “Julgo de tal modo porque essa é a

solução mais razoável”. “Decido assim, pois é a solução mais compatível com interesse público”. “Determino

isso, em razão dos bons costumes”. Eis algumas “katchangas” bem conhecidas…

As “katchangas” são como as previsões dos astrólogos: explicam tudo, justificando todo e qualquer

resultado que se queira encontrar. E não há nada que possa refutá-las, já que seu conteúdo é aberto o

suficiente para se amoldar a todas as situações, conforme os interesses pessoais de quem as cita. No fundo, as

“katchangas” são meros placebos argumentativos auto-ministrados pelos juízes para aliviarem

psicologicamente a angústia de não serem capazes de encontrar argumentos racionais para tudo. O problema é

que, apesar de serem meros placebos, as “katchangas” infelizmente possuem efeitos colaterais sérios. O mais

grave é, sem dúvida, a transformação da argumentação jurídica em uma técnica irracional e, portanto,

arbitrária, tudo o que o direito historicamente combateu. Por isso, as “katchangas” também precisam ser

combatidas.

Aliás, esse não parece ser um problema exclusivo do Brasil. Já em 1956, J. D. March havia feito uma

crítica às decisões da Suprema Corte norte-america muito semelhante a ora formulada. Ao analisar a conhecida

norma constitucional que diz que “ninguém será privado da sua vida, liberdade ou propriedade sem o devido

processo legal”, March, com muita ironia, defendeu que o artigo é muito claro. Basicamente, ele significa que

62 SARMENTO, Daniel. Livres e Iguais: Estudos de Direito Constitucional. São Paulo: Lúmen Juris, 2006, p. 200. Eis suas palavras: “muitos juízes, deslumbrados diante dos princípios e da possibilidade de, através deles, buscarem a justiça – ou o que entendem por justiça -, passaram a negligenciar do seu dever de fundamentar racionalmente os seus julgamentos. Esta ‘euforia’ com os princípios abriu um espaço muito maior para o decisionismo judicial. Um decisionismo travestido sob as vestes do politicamente correto, orgulhoso com os seus jargões grandiloqüentes e com a sua retórica inflamada, mas sempre um decisionismo. Os princípios constitucionais, neste quadro, converteram-se em verdadeiras ‘varinhas de condão’: com eles, o julgador de plantão consegue fazer quase tudo o que quiser”. 63 A idéia da “katchanga” foi desenvolvida no texto “Alexy à Brasileira e o Jogo da Katchanga”, disponível em meu site pessoal: http://direitosfundamentais.net.

Page 28: Versão Preliminar - O Método Popperiano Aplicado ao Direito

(Versão Preliminar – Janeiro – 2009) 28 “nenhum W será X ou Y sem Z, sendo que W, X, Y e Z podem assumir quaisquer valores dentro de um extenso

conjunto”64

.

Como as normas constitucionais são muito abertas, no fundo, o juiz sempre será capaz de encontrar

na Constituição um argumento para deixar de aplicar uma lei ou um precedente que julgue injustos. Além

disso, essa abertura dada ao juiz decorre também, em grande medida, do uso deliberado de princípios vagos

pelo próprio legislador, que, ciente de que é incapaz de oferecer respostas minuciosas sobre cada conflito

possível e imaginável que possa acontecer, preferiu desenvolver princípios jurídicos para que o juiz decida com

maior liberdade o caso concreto em busca da solução mais justa. Boa-fé, função social, interesse público, bem

comum: eis alguns conceitos jurídicos bem flexíveis que o legislador costuma utilizar dando um poder decisório

bastante amplo para os juízes, que terá grande margem de criatividade para preencher o significado dessas

vagas palavras.

Os juristas lutam com unhas e dentes para defender a cientificidade do direito, mas esbarram

justamente em situações como as que acima foram narradas. Como assegurar a racionalidade de um processo

decisório que envolve, em grande medida, opções valorativas para as quais não há parâmetros seguros de

controle? Como garantir a previsibilidade do julgamento ou o mínimo de objetividade que qualquer

metodologia científica exige?

Se a sentença judicial for um mero ato de vontade, onde o desejo do juiz é o que mais importa, então

não há mesmo qualquer cientificidade na interpretação e na aplicação das normas jurídicas. A argumentação

judicial não passará de uma mera fachada a esconder os monstros produzidos pelo sono da razão a que se

referia Goya.

Não é isso que se espera do direito e de todas as instituições públicas e privadas que existem ao seu

redor, funcionando precisamente para garantir que o direito observe um padrão de racionalidade capaz de ser

compreendido, respeitado e aceito pela sociedade. Há uma expectativa geral de que as instituições jurídicas

produzam resultados eticamente legítimos e estruturalmente democráticos. Ainda que seja impossível obter

uma certeza matemática para uma enorme gama de problemas jurídicos, o direito possui uma pretensão de

objetividade e busca soluções que sejam, ao mesmo tempo, justas, consistentes e compatíveis com o

ordenamento jurídico.

É por isso que tento equiparar a atividade do juiz à atividade de um cientista.

Não é uma postura científica se conformar com argumentos meramente retóricos. Dizer que uma lei

viola a dignidade da pessoa humana ou a proporcionalidade e, por isso, é inconstitucional, não é suficiente. É

preciso apontar, objetivamente, qual o defeito grave da lei capaz de justificar a sua não-aplicação.

Esses argumentos devem ser essencialmente empíricos e, de preferência, devem ser encontrados fora

do estrito mundo das normas, já que o direito, hoje em dia, não oferece respostas precisas, até porque não

consegue acompanhar a evolução dos problemas sociais. O juiz deve ouvir argumentos de todos os lados

possíveis e imagináveis e utilizá-los tal como um cientista faria.

15 A Constituição Democrática como Limite

Embora o juiz possa ser criativo e ousado da descoberta de soluções justas para o caso concreto, é

óbvio que sua liberdade hermenêutica não é ilimitada, pois, do contrário, não se poderia falar em Estado

Democrático de Direito. É preciso que se recorde que o juiz age “em nome do povo”. Logo, não deve ser

indiferente às convicções daquele em nome de quem ele fala.

Não é possível aceitar uma decisão judicial que se afaste das diretrizes constitucionais. A Constituição

deu uma liberdade ampla de decisão, mas não uma margem decisória ilimitada. Existem limites constitucionais

e esses necessariamente devem ser observados. Trata-se aqui de uma opção ideológica e política e não

64 A citação foi extraída de HART, Herbert. O Conceito de Direito. Trad. Armindo Ribeiro Mendes, 5ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2007, p. 12.

Page 29: Versão Preliminar - O Método Popperiano Aplicado ao Direito

(Versão Preliminar – Janeiro – 2009) 29 propriamente científica. A racionalidade crítica a ser exercida pelo juiz não pode ir ao ponto de lhe permitir o

descumprimento da norma constitucional legitimamente instituída e aceita pela sociedade.

Nesse sentido, pode-se invocar a proposta de Imre Lakatos que desenvolveu, a partir das idéias

popperianas, uma metodologia científica um pouco mais aprimorada. Basicamente, Lakatos defendeu que a

atividade do cientista deve seguir um programa de pesquisa baseado em convenções metodológicas

previamente fixadas. Nesse programa, há balizas a orientar o cientista tanto para indicar o que ele pode fazer

(heurística positiva) quanto para indicar aquilo que ele não pode fazer, para não atingir o chamado “núcleo

irredutível” do programa de pesquisa (heurística negativa). A palavra “heurística” representa as balizas que

limitam a busca por soluções em domínios complexos. Desse modo, para um problema que não se conhece

qual é o melhor caminho em busca de uma solução, definem-se diretrizes heurísticas que possam conduzir à

melhor resposta. Essas balizas são determinadas por uma opção metodológica dos seus protagonistas, ainda

que implícitas, a fim de tornar a atividade do cientista um pouco mais objetiva65

.

Voltando para o direito, podíamos dizer que o respeito à constituição democrática e, sobretudo, aos

direitos fundamentais representaria o núcleo irredutível da atividade do jurista contemporâneo. O papel do juiz

é fazer conjecturas e refutações, dentro do que permite o ordenamento jurídico-constitucional, para encontrar

soluções que possam proporcionar o desenvolvimento humano. Fora das balizas delimitadas pela constituição

democrática não há solução legítima.

O juiz está indiscutivelmente vinculado à lei. Mas eu acrescentaria um dado importante: o juiz está

vinculado à lei, desde que a lei seja proporcional e constitucional. O desenvolvimento da proporcionalidade e

da idéia de “dimensão objetiva” dos direitos fundamentais transformou completamente a atividade jurídica. O

direito está mais impregnado de valores do que nunca. E esses valores devem impregnar também o “feeling”

do juiz. O juiz totalmente comprometido com os direitos fundamentais parte do princípio de que é a lei quem

deve girar ao redor dos direitos fundamentais e não o inverso. Logo, a lei deixou de ser o ponto de partida. O

ponto de partida, necessariamente, são os direitos fundamentais. Por isso, quando se fala em “feeling”, não se

está falando de valores pessoais, arbitrários e subjetivos, que dizem respeito tão somente às convicções

íntimas do juiz. O “feeling” do juiz tem que estar afinado com os direitos fundamentais para ter legitimidade. O

juiz descompromissado com os direitos fundamentais se encaixa no conceito de “juiz ruim” para o qual não há

método que dê jeito.

16 Conclusões

Procurou-se, nas páginas passadas, desenvolver um método de interpretação e aplicação do direito

compatível com a metodologia científica proposta por Karl Popper, no intuito de tentar demonstrar que a

atividade do juiz pode sim ser racional, sem deixar de ser também ideológica e até mesmo emotiva. Esse

método, que chamei de “método do feeling”, procura unir e conciliar o subjetivismo do juiz, que é inafastável,

com a necessária objetividade exigida pelo direito.

Não se trata de um método cem por cento original, até porque, pelo tanto que já se escreveu sobre o

assunto, seria contra-producente não “subir nos ombros dos gigantes” para aproveitar algumas boas idéias

desenvolvidas por outros pensadores. Mas é inovador em diversos pontos, sobretudo porque tenta fazer uma

aproximação do direito com o método defendido pelas autodenominadas “ciências nobres”, o que não

costuma ser muito valorizado pelos juristas, nem mesmo pelos filósofos do direito, com raras exceções.

Em poucas palavras, pode-se dizer que o jurista popperiano formula conjecturas audaciosas e criativas

para o problema que deve resolver e, logo em seguida, submete-as a um processo rigoroso de refutação, no

intuito sincero de encontrar argumentos que possam demonstrar o erro de sua hipótese. Nesse processo, ele

deve estar aberto ao diálogo, sempre disposto a ouvir todas as opiniões que possam ser úteis à solução do

problema e a mudar de opinião quando se convencer do seu equívoco. A fonte do conhecimento a ser utilizado

65 LAKATOS, Imre. Falsificação e Metodologia dos Programas de Investigação Científica. Lisboa: Edições 70, 1999.

Page 30: Versão Preliminar - O Método Popperiano Aplicado ao Direito

(Versão Preliminar – Janeiro – 2009) 30 na construção da solução não deve se limitar ao texto normativo ou aos argumentos estritamente jurídicos

formulados por profissionais do direito. É possível e recomendável que se busquem argumentos empíricos em

todas as áreas do saber.

As leis e os precedentes exercem uma função especial dentro desse processo, mas também podem e

devem ser objeto de análise crítica. Eles possuem um peso elevado dentro da argumentação, pois representam

conjecturas que, no passado, venceram um processo de refutação pelos parlamentares ou pelos tribunais. Por

isso, o juiz só pode deixar de segui-los quando estiver absolutamente seguro de que a solução por eles

oferecida não é a melhor possível diante de novas descobertas e de novas informações obtidas

posteriormente, devendo apresentar argumentos convincentes de sua decisão.

Eis, em síntese, o método proposto ao longo deste texto.

Apesar de todos os argumentos acima terem sido inspirados nas idéias de Karl Popper, não posso

garantir, logicamente, que ele chegasse às mesmas conclusões a que cheguei. Como foi uma interpretação “por

analogia”, há grande chance de distorções, já que, naturalmente, a atividade dos juízes e dos juristas não é

exatamente igual à atividade dos cientistas, sobretudo pela carga ideológica que impregna o direito. Enfim, o

texto não deve ser lido como se fosse uma reprodução fidedigna de um suposto “pensamento jurídico” de Karl

Popper, mas de como eu imagino que seria esse pensamento, à luz de minhas próprias teorias.

Confesso, por exemplo, que Popper dá uma ênfase maior ao respeito às tradições e às leis do que a

que eu deixei transparecer no texto. Creio que o jurista popperiano será mais legalista na medida em que o

sistema legal for mais justo. E o sistema legal será mais justo se se basear em consensos racionais e

democráticos e não apenas na força ou na tradição. Daí porque é preciso um ambiente jurídico sempre aberto

ao debate e às críticas, o que só pode ser obtido nos regimes democráticos. Mas aqui teríamos que entrar no

pensamento político de Karl Popper, o que fugiria aos propósitos do paper. Então melhor parar por aqui.

Post-Scriptum

O método do “feeling” surgiu e foi desenvolvido dentro das linhas básicas do próprio método do

“feeling”. Certamente influenciado por fatores externos mais ou menos inconscientes, especialmente pela

leitura de livros de divulgação científica e de filosofia da ciência e de alguns textos jurídicos propriamente ditos,

bem como pela observação de minha própria experiência profissional e de outros colegas magistrados, percebi

que a atividade do juiz muito se assemelha à atividade do cientista e que o processo mental que culmina com a

prolação da sentença segue um caminho que começa quase sempre na própria cabeça do juiz e só depois se

exterioriza com a fundamentação jurídica. O grande “insight” ocorreu quando me dei conta de que o juiz não

precisava lutar contra o seu “feeling” como se fosse possível se livrar a todo custo de seus valores pessoais, tal

como recomendava a imensa maioria de juristas que trataram sobre o assunto. Melhor do que fingir que é

possível ser neutro é assumir abertamente as próprias pré-compreensões e utilizá-las como ponto de partida,

criticando-as de forma consciente e honesta, assumindo o compromisso de modificá-las, corrigi-las e até

abandoná-las humildemente sempre que não possam ser consistentemente sustentadas.

Durante algum tempo, passei a agir assim em minha atividade judicial, utilizando minha própria

experiência como “cobaia” de minha hipótese. Os resultados que obtive, no meu modo de ver, foram positivos,

pois, a partir de então, passei a ser mais tolerante com as idéias alheias e, com isso, meu sentimento de justiça

passou a ser mais plural, heterogêneo e aberto a novas formas de ver o mundo. Talvez essa impressão não seja

tão fidedigna, dada as óbvias influências geradas pelo meu próprio “feeling”. Abstraindo isso, posso dizer que

tenho a sensação de que me tornei, desde que passei a auto-criticar, de forma objetiva, meus valores pessoais,

mais compreensivo em relação às idéias divergentes. Isso, por si só, já é motivo para reconhecer os méritos e

as vantagens desse método de pensamento, especialmente em um período em que tanto se critica, com toda

razão, a arrogância judicial.