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contemporâneo de duas grandes correntes de pensamento, o idealismo e o cientismo, recusou sempre assumir o Indivíduo somente como matéria ou como espírito. Desde o princípio que procurou conciliar essas correntes, deixando mesmo subjacente que a oposição era mais aparente que real. Não passavam em sua opinião de dois domínios complementares. Somente nesse contexto poderemos entender o caldeamento de ideias provenientes de Hegel, Proudhon, Hartmann, Vico, por um lado, Comte, Spencer, por outro.

O âmbito temático das suas produções não permite uma identificação rígida do nosso autor. Sociólogo, antropólogo, historiador, escritor, jornalista, filósofo, muitas poderão ser as classificações. Nessa medida, talvez seja mais correcto apresentá-lo como um ensaísta que, à maneira de Sérgio, também pretendeu exercer alguma pedagogia sobre a sociedade que o rodeava. Comum a todos os níveis de reflexão em que se colocava, a renovação do país era o seu grande desiderato. A via das ideias, apesar de ser essencialmente um homem de acção, era na sua perspectiva o melhor meio para atingir aquela meta. Nessa matéria um grande óbice o impedia. Considerava baixo o nível cultural da sociedade de que foi contemporâneo. Nesse sentido, não pode haver melhor evidência daquela preocupação que o seu projecto da Biblioteca das Ciências Sociais, destinado a vulgarizar conhecimentos que considerava essenciais para a modernização do nível intelectual da população. Diferentemente de Herculano, em que a preocupação pelo rigor era notória, o autor do Portugal Contemporâneo, quando se virava para o passado, pretendia muito mais o encontrar das linhas de compreensão e modernização do presente, que uma análise restrita e objectiva dessas épocas. Também neste domínio não deixou de ser filho da sua geração. Utilizar a memória histórica como forma de renovação. No entanto, o projecto não foi concluído, nem as obras publicadas obedeceram aos títulos projectados inicialmente l

.

No ideário político de Oliveira Martins a oposição ao liberalismo e à ideia de soberania popular são dois vectores essenciais. A primeira conduzia ao individualismo e a segunda não correspondia a uma justa representação do organismo social. Virá a defender um modelo orgânico e corporativo de representação social, em que os indivíduos estariam representados nos respectivos corpos sociais, que por sua vez tomariam assento numa "assembleia representativa da

I CALAFATE, P. (1991) 16.

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vontade do povo, entendido não como uma simples abstração algébrica, mas na sua dimensão concreta,,2. Recusou sempre admitir que a solução dos problemas nacionais passasse somente por uma questão de regime. Pelo contrário, com o desenrolar da sua experiência, tendeu inclusivamente a menosprezar a questão política em detrimento da questão social. Podemos considerar que em termos de matriz ideológica o seu pensamento evoluiu através de duas influências: Proudhon e Hegel. No primeiro caso, e especialmente na Teoria do Socialismo ou no Portugal e o Socialismo, a solução federativa é preconizada. No entanto, o seu progressivo encontro com Hegel "leva-Io-á a defender que o princípio federativo não se revelava capaz de realizar uma unidade essencial nas sociedades: para haver unidade é mister que pelo caminho da hegemonia se chegue à centralização,,3. Tal aproximação a Hegel não significará nesta matéria um afastamento em relação a Proudhon, pois o problema social continuará sempre presente no seu horizonte de preocupações. Ao mesmo tempo, se é verdade que com o autor francês o problema do estado era desvalorizado, não deixou no entanto de "sonhar com a possibilidade de um Príncipe,,4 vir salvar a França, o que nos permite concluir que a aproximação a Hegel não significou um puro afastamento em relação ao filósofo francês. É este contexto, conjuntamente com a desordem em que se encontrava a sociedade portuguesa, que o levará a defender um governo centralizado e forte através da via do socialismo catedrático. Vai atribuir ao estado um papel coordenador da economia, substituindo a anarquia liberal, proporcionando em simultâneo uma justa distribuição da riqueza nacional. Afastava-se assim do socialismo revolucionário e do liberalismo. Portanto, se no seu pensamento político há opções claras no que diz respeito à rejeição do liberalismo e da soberania popular, encontramos por outro lado diferentes caminhos para atingir um mesmo desiderato, isto é, o socialismo e particularmente a resolução da questão social. Assim, se numa primeira fase encontramos um Oliveira Martins defensor da solução federativa, apoiante da associação livre dos indivíduos, desvalorizador do papel do estado, numa segunda etapa, já o encontramos a defender a intervenção do estado na economia, coordenado por um líder que seria o catalizador das energias nacionais.

2 CATROGA, F. (1981) 367. 3 CALAFATE, P. (1990) 40. 4 CA1ROGA, F. (1981) 431.

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A partir da segunda metade da década de oitenta entramos no segundo ritmo da sua obra. Malogradas as tentativas de renovar a sociedade, que passaram pela sua incrição no Partido Progressista, pela eleição como deputado em 1886 pelo círculo de Viana do Castelo e pelo Porto em 1887, pela nomeação como Ministro das Finanças em 1892, refugia-se em si próprio, foge da realidade que se lhe apresenta como degradante. Retirar-se-á da actividade política, considerando, frustradamente, que a sociedade ainda não tinha atingido a idade adulta, pelo que as suas ideias seriam impossíveis de aplicar ainda naquela época. "As ilusões foram-se todas. Ditoso tempo em que os filósofos acreditavam na Ideia de Hegel e nas suas sucessivas revelações! A Ideia falhou. Ditoso tempo em que os juristas acreditavam no dogma da liberdade, e no advento da terra prometida aos povos! A Liberdade falhou. [ ... ] Ditoso tempo em que os filósofos acreditavam na Harmonia do trabalho e da riqueza!,,5. É desta forma que Oliveira Martins se apresenta descrente na sociedade contemporânea, mundo que assiste à progressão do "consumo do álcool e do tabaco, [ ... ] do ópio e da morfina, do éter, de todas as drogas anestesiantes que façam esquecer a amargura dilacerante duma vida em que o maior mal é o vazio absoluto e a falta completa de razão suficiente,,6. Surge-nos um Oliveira Martins descrente nas capacidades de evolução moral da sociedade onde o "individualismo gera o egoísmo, o egoísmo a anarquia, a anarquia a ditadura. Até hoje, apesar de todas as doutrinas, ainda se não pôde sair disto. Como não se há-de ser pessimista, pelo menos neste capítulo? Até hoje, não pode haver ainda ordem sem autoridade imposta à força, nem moral sem a fé piedosa num Deus bendito, ou sem o medo das penas infernais, paralelo ao desejo dos gozos do céu. Será tudo isto um sinal entre muitos da caducidade que também à espécie humana vem com os anos? Vivemos pouco, parafusamos de mais. Nada pedimos ao instinto, e tudo à razão. Levamos a vida a estudar-nos, para sabermos como havemos de ser; e por isso mesmo não fazemos senão ruminar e revolver-nos, pisando e repisando, como bois à nora, um chão calcado e sáfaro. Perderíamos toda a energia para as acções fecundas?,,7. Portugal apresenta-se-Ihe como um estado sem identidade nacional, sem consciência colectiva, que desvaloriza as suas características constitucionais, limitando-se a copiar os modelos estrangeiros,

5 MARTINS, O . (1955) 376. 6 Idem, 377. 7 Idem, 381-182.

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nomeadamente "o que vem cozinhado de Paris"s. O pessimismo de Martins liga-se directamente com a imagem decadente que tem da nação portuguesa. As referências à vitória da Justiça desaparecem. As leituras que fizera de Hartmann sofrem algumas alterações, desvalorizando a vitória da consciência a favor do "predomínio do Inconsciente irracional aliado ao pessimismo de Schopenhauer que o levou a encontrar apenas na Arte uma vaga e momentânea possibilidade de conforto pela fuga à realidade observável,,9. Após a sua filiação no partido progressista, após o seu empenhamento no governo, após o projecto da Vida Nova, a desilusão instala-se no seu espírito. A época em que vivia ainda não correspondia ao início da regeneração. Desiludido, não com os ideais mas com a realidade, dedica-se à actividade literária, fugindo à realidade, refugiando-se no sonho. Este pessimismo será coincidente com o de Antero no final da sua vida, em que o desencanto, já à semelhança de Herculano, produz a fuga.

2. Idealismo e Materialismo

Oliveira Martins foi contemporâneo do debate que opôs o idealismo ao materialismo, confonto que percorreu toda a segunda metade do século XIX e do qual não se alheou, pelo contrário, o seu ideário intelectual é reflexo dessa ambiência. Embora consideremos que Oliveira Martins atribui uma importância maior à vertente metafísica, inúmeras vezes deixará expressa a validade da vertente positiva do conhecimento. Assim, no lugar de um radicalismo posicional sobre estas matérias, encontraremos frequentemente o nosso autor a manifestar-se no sentido de estabelecer relações entre os dois domínios.

Em vários textos se referiu à importância do cientismo para as sociedades contemporâneas, nomeadamente o contributo do positivismo para a objectivação do pensamento e da ciência 10.

Influenciado pelo ambiente naturalista que se vivia no século XIX, Martins vai considerar a sociedade como uma totalidade orgânica, sujeita aos mecanismos de funcionamento dos organismos vivos, que nascem, crescem e morrem 11. Pela forma como formulou os seus

8 MARTINS, O . (1976) 20-2l. 9 CALAFATE, P. (1985) 49. 10 MARTINS, O. (1955) 322. 11 MARTINS, O. (1954) 204-205.

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mecanismos de funcionamento demonstrou alguma sensibilidade ao esquema de pensamento comteano. Nessa perspectiva, considera que as sociedades evoluem em função de elementos estáticos, como a raça e a propriedade do lugar escolhido, e em função de elementos dinâmicos, que eram o fruto dos resultados dos acasos da história12

Ao considerar a sociedade como organismo, a sua evolução é possível de observar num sistema de leis, sendo que as do organismo social possuem uma "complexidade crescente à medida que a massa de espírito consciente reage com intensidade cada vez maior contra a fatalidade natural" 13. A sociologia surgia então como a ciência indicada para estudar o sistema de leis por que os povos vão evoluindo, e aquela, devido à complexidade de factores que explicam os actos humanos, era de todas a mais complexa das ciências.

Apesar de considerar que o "espírito crítico e objectivo" era fundamental no processo do conhecimento, notava que era fundamental não irmos ao ponto de "matarmos em nós mesmos a mola íntima da nossa consciência. Se, à força de querermos entrar na natureza das coisas, nos esquecermos de nós mesmos, das nossas crenças, da nossa fé, e ainda das nossas próprias paixões, sucede-nos truncarmos essa natureza de que também fazemos parte,,14. Ciente da importância que as ciências positivas tinham para o avanço da sociedade, recusou-se no entanto a admitir que o homem fosse só matéria, atribuindo-lhe também algo que estava para além do entendimento físico-químico, domínio que só podia ser entendível através da metafísica 15. Reduzir a vida a meros actos mecânicos explicados por movimentos de átomos e moléculas, abandonando o caminho dos ideais, conduzia à tirania da natureza que é cega e imoral. Deste modo, apesar da importância conferida ao domínio positivo da realidade, considerava que era no domínio das ideias que se encontravam as realidades mais puras e era nestas que o homem se realizava plenamente. Assim, defendia que subjacente à história existia uma ideia finalista para a qual a humanidade caminhava. A ideia de evolução martiniana subordinava a evolução da realidade a uma teleologia de ordem metafísica, onde predominavam os imperativos éticos de Proudhon, conjuntamente com as influências de Hegel. O Homem enquanto ser moral e social tinha por principal meta

12 MARTINS, O. (1957) 1. J3 CALAFATE, P. (1990) 23. 14 MARTINS, O. (1955) 234. 15 Idem, ibidem.

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o atingir da liberdade e da justiça, pois eram proporcionadoras do equilíbrio, da harmonia e da igualdade, enquanto a natureza, por ser cega se regia somente pela lei da concorrência, conduzindo à desigualdade e ao domínio do mais fraco pelo mais forte. Logo, quanto mais o homem se conseguir libertar dos elementos naturais e se aproximar das realidades mais puras das ideias, maior será a liberdade que atinge. O fim último da história é atingir a revelação do Espírito no máximo da sua consciência. Quanto mais consciente o indivíduo for de si mais livre será, pois menos dependente fica dos elementos inconscientes '6• Os caminhos, maus ou bons, os avanços, os recuos, não interessam, pois independentemente desses factores, sempre passageiros, a realidade caminha continuamente para as realidades mais puras das ideias.

No ideário de Oliveira Martins podemos encontrar duas fases quanto à ideia metafísica que determina a evolução da realidade. Numa primeira fase, correspondente à Teoria do Socialisnw e ao Portugal e o Socialismo, a evolução era o progresso no sentido da Justiça Universal 17

• Subjacente aos homens e às sociedades humanas considerava existir uma "Justiça Universal em nome da qual se tomava inadmissível o domínio de um homem pelo outro ou de uma nação pela outra,,18. A Justiça, imperativo ético que residia na consciência dos indivíduos, era o fim a que conduziria a evolução da organização social, através da livre organização dos indivíduos, sem qualquer espécie de autoridade condutora a não ser a que emanava da consciência. Essa norma consciente existente nos indivíduos, quando transposta para fora do eu e assumida pela vida colectiva como orientadora e reguladora da vida social, dispensaria qualquer espécie de autoridade quer ela fosse transcendente ou terrena. A Justiça tomar-se-ia assim numa espécie de lei da evolução social que conduziria à progressiva igualdade entre todos os homens '9• A partir de 1878, em O Helenismo e a Civilização Cristã, começamos a notar a influência de Hegel. Acima da consciência individual surgirá o Espírito da Humanidade que se vai revelando de forma inconsciente nos homens. A história seria a progressiva materialização da ideia de liberdade, que atingiria a sua fase mais plena com a progressiva

16 MARTINS, O. (1951) 5-6. 17 CALAFATE, P. 1990) 27. 18 CALAFATE, P. (1985) 46; GENTIL, G. (1935) 51-52; SARAIVA, A (1946)

221-27. 19 SARAIVA, A (1946) 205-206.

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Império jaz por terra inerte, mas respira ainda. Só falta insuflar-lhe alento para que outra vez se erga à vida activa, a espantar de novo a História com a grandeza das suas façanhas,,163.

A regeneração do país passa pela renascimento ibérico, pela restauração daquilo que tomou os povos da península líderes no planeta. Daí que juntar essa comunidade rácica numa federação que abrace todo o hemisfério onde a língua portuguesa e castelhana fossem faladas, recuperando a heroicidade e o misticismo ingénitos e comuns, era a via para voltar à crista da maré que comanda o mundo. Essa recuperação da identidade perdida passava também pelo enfortalecimento do cabedal intelectual e industrial, denominadores comuns às restantes nações superiores da Europa. Portanto, a regeneração é possível, admitindo mesmo que já terá começado, para tanto basta que a península cure o corpo em cada uma das suas partes, que se enfortaleça nas letras, e, ao mesmo tempo recupere aquilo que constitucionalmente a distinguiu no passado. Desta forma, Portugal e os restantes povos irmãos, recuperariam a sua identidade, a confiança e a força comum para enfrentar a pressão e a vontade propagadora das restantes nações cultas da Europa. Na consciencialização do iberismo, nas suas diversas cambiantes, radicava a miragem da nossa regeneração. Tanto mais que Portugal e os povos peninsulares pertencem por assimilação à família ariana, pelo que a constitucionalidade dos seus dotes lhes permite o regresso ao lugar que de direito lhes cabe no concerto mundial das nações. Para tanto, somente é preciso rumar de novo no bom caminho, o da identidade ibérica, o do desenvolvimento cultural e tecnológico, o do heroísmo e do misticismo. A via da regeneração reside na invocação e recuperação da nossa memória histórica, aquela que nos tomou únicos no mundo.

CONCLUSÕES

A civilização de Martins gira em tomo de alguns vectores fundamentais, mas nenhum tem a força do argumento étnico. Uma análise exclusiva daquele factor seria lacunar, na medida em que os restantes factores, apesar de não terem o peso que à raça é conferido, fazem parte de um todo orgânico e inter-relacional. Verificámos então que o seu conceito rácico se conexiona com todos os outros.

163 MARTINS, O. (1957) 301-303.

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1. Primeiro o acaso, os fenómenos cuja causa era desconhecida, tomavam-se determinantes na desenvolução das raças. Desde a simples tempestade ou terramoto, que por coincidência imprevista provocava um devir fora do comum, ou a queda súbita de um príncipe que podia alterar os destinos de um povo, todos eles eram factores do acaso. De forma significativa poderiam alterar por completo toda a evolução até aí construída. Provocar recuos, mesmo nas raças cultas, ou definhamentos, caso a capacidade constitucional da raça fosse pouco elevada. Oliveira Martins reconhece que a força do acaso é determinante, mesmo nos seres superiores, mas só os povos ingenitamente fortes tinham, pela sua constituição, mais armas para lutar contra essa adversidade.

2. Depois a mesologia, isto é, as características do meio ambiente, tinham também um peso próprio e significativo no devir civilizacional. As deficiências do habitat, por excesso ou por escassez, podiam contribuir para acelerar ou atrasar o crescimento de uma raça. O caso do ramo indo-europeu semita, que se fixou em África, foi exemplificativo. Mas, e é esta a diferença que toma a raça o vector mais determinante numa civilização, a influência do meio, se podia provocar o definhamento de uma raça ingenitamente inferior ou menos bem constituída, diminuía à medida que avançávamos para as raças superiores. A Europa, por ser o centro geográfico do mundo, verificável nas suas características climáticas e morfológicas, estava condenada a ser habitada pela raça que na sua marcha imparável viria a escolher o lugar mais eleito de todos.

3. A raça é o motor da história. Em função da força ingénita de cada uma, elas são diferentemente dotadas. A raça indo-europeia, pela sua superior capacidade ingénita, está destinada a dominar o mundo e a construir a história universal em tomo de si. O factor rácico é talvez aquele onde Oliveira Martins revela mais o seu pendor metafísico. A vida, a mola íntima que a explica, não tem uma origem físico-química, como pretendiam os naturalistas, mas metafísica, embora necessite de um corpo para se manifestar. Essa origem radica numa força que se revela de forma inconsciente no homem e cognoscível pela razão. Entre os arianos, porque as diferenças ingénitas também neles existem, a estirpe germânica é aquela que consegue subir mais alto e aproximar-se mais da luz. Esta capacidade metafísica, domínio onde se encontram as ideias mais puras, que já existiu também entre os gregos, é ao mesmo tempo completada por

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um braço e uma indústria que lhe permitem imperar e dominar, facto que os helenos não conseguiram conciliar e por isso definharam.

Esta relação entre raça e autoridade será também um dos fundamentos do seu socialismo catedrátito. A Alemanha só impera porque tem força ingénita para educar, produzir e comandar. A Alemanha é simultaneamente um modelo filosófico, pois aí radicam os cérebros que nos sabem aproximar das ideias mais sublimes; industrial, na medida em que tem um braço e uma inteligência criadora e propagadora; e político, pois o seu modelo cesarista é ao mesmo tempo centralizador e orgânico como era o que preconizava. Centralizador, porque Martins considera necessário que o estado concentre e unifique as energias nacionais que estão distribuídas pelos diversos corpos sociais. Numa palavra, esta capacidade para imperar na democracia, facto que os romanos não souberam concretizar depois de se expandirem com braço igualmente forte e dominador, só é possível porque a estirpe germânica reune num só corpo todas essas características ingénitas.

Portugal está etnicamente integrado na raça ariana, embora sujeito a alguns particularismos, como sejam a sua origem semita e o facto de pertencer ao corpo peninsular. Esta origem semita é com certeza o factor determinante para entendermos o silêncio em tomo de uma questão que se começava a levantar com particular pertinência na Alemanha, que era a do anti-semitismo.

A raça conduz-nos igualmente para outra noção fundamental do ideário martiniano. Referimo-nos à ideia de eurocentrismo étnico. A Europa é a meta da história porque, tal como Herder e Hegel afirmaram, haveria de ser habitada pela raça que viria a dominar o mundo. Essa sintonia é verificável em Oliveira Martins na sua ideia de Europa descobridora, industrial e filosófica.

4. Prosseguindo o nosso balanço, debrucemo-nos sobre o seu pensamento orgânico à luz da ideia de raça. Desde a mais simples forma de vida, até aos homens, passando pelos povos e nações, e até o próprio planeta Terra, todos eles são organismos, sujeitos às leis de tudo o que tem vida. Cada molécula, isto é, plantas, homens, raças, planetas quem sabe, têm uma função nessa totalidade que depois de cumprida desaparece. Nessa perspectiva, o nosso planeta poderá não ser mais que um simples torrão, entre tantos outros que existem no universo e que nós desconhecemos. Nesse percurso, de que se desconhece o fim, embora se saiba que caminha e por isso tem uma finalidade, nem todos têm o direito de assistir à chegada, domínio

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onde mora o que é eterno. Somente as raças eleitas, as indo­europeias, e entre estas a mais dotada das estirpes, atingirão o domínio das ideias, que estão para além do que é físico, domínio onde reina a harmonia, a justiça, a liberdade. Como o mundo é um organismo que caminha, numa marcha de constante progresso, a evolução é a sua lei fundamental. Esse progredir está sujeito às leis da selecção, pelo que os mais fracos vão sendo eliminados à medida que cumprem o seu papel na história, e na qual somente os mais dotados conseguirão atingir as fases puras e verdadeiras do ser.

5. Porque o mundo é um organismo, justamente a defesa da ideia de federação é outro dos alicerces do pensamento martiniano. Não para unir mas para federar, isto é, conciliar na diversidade. A federação é a conjugação de todas as moléculas com afinidades entre si. Como o planeta está condenado a ser dominado pela raça ariana, aquela a que adequadamente se pode apelidar de civilização-tipo, a federação universal daquela raça será o corolário lógico da evolução das raças humanas. Portugal é uma das componentes desse concerto. Por todo um conjunto de factores, que vão desde a assimilação das características das raças europeias, até às suas origens semitas, as nações ibéricas formam um ramo integrado na raça ariana. Nesse sentido, a federação ibérica, torna-se uma espécie de apelo ao colectivo peninsular para se regenerar a si próprio. Messianismo rácico e federal é desse modo a receita de Oliveira Martins para o rejuvenescimento do país e da Espanha. Recuperar o corpo peninsular para as primeiras páginas da história, não só porque a sua constituição ingénita assim lho permite, mas também para que não fique esquecido na poeira da memória ante o domínio avassalador germano e saxão.

Parece-nos dispensável tecer qualquer juízo de valor sobre o pensamento étnico de Oliveira Martins. Não era esse o nosso propósito nem o será agorà. Essas ilações não devem ser feitas por quem tem o passado por objecto. Somente quisemos entender a importância do argumento étnico na filosofia da história de uma das mais eminentes personalidades da segunda metade do século XIX. Entender um pouco mais daquela época que também faz parte da nossa cultura. As ideias em si, enquanto finalidades, enquanto formas de expressão de um tempo, de uma mundividência. Se tal meta foi atingida, isso é matéria que já extravasa o domínio de quem escreve. No entanto, tal não significa que a memória que nos deixou não seja importante. A partir dela muito é possível compreender. Esses domínios da utilização e questionação da memória já não cabem aqui

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enquanto objecto em si, pertencem ao mundo, a todos nós, enquanto participantes da história. Será nessa medida que o estudo da nossa memória historiográfica terá também algum valor. Retirá-la, da penumbra do esquecimento e trazê-la para a luz do dia.

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