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    Os partos distcicos em Amato Lusitano e em Rodrigo de Castro: fontes, doutrinas eterapias greco-romanas

    Autor(es): Pinheiro, Cristina Santos

    Publicado por: UA Editora - Universidade de Aveiro; Imprensa da Universidade deCoimbra; Annablume

    URLpersistente: URI:http://hdl.handle.net/10316.2/35700

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  • Humanismo e CinCia

    Aveiro CoimbrA So PAulo

    2015

    Antiguidade e Renascimento

    Antnio mAnuel loPeS AnDrADeCArloS De miGuel morAJoo mAnuel nuneS torro (CooRds.)

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  • Humanismo e CinCia: Antiguidade e Renascimento

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    vinicije b. lupis

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    Este volume financiado por fundos fEDER atravs do programa Operacional factores de competitividade cOMpETE e por fundos nacionais atravs da fcT fundao para a cincia e a Tecnologia no mbito do projecto de I&D com a referncia fcOMp-01-0124-fEDER-009102.

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  • obrA PubliCADA

    Com A CoorDenAo

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    cEnTRO DE lngUAs,

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  • 5

    sumRIo

    PreFCio .............................................................................................................................................................7

    1) Humanismo e CinCia ..................................................................................................................... 11

    1.1 Teofrasto, Tratado das plantas. no alvor de uma nova cincia .................................................... 13

    Maria de Ftima Silva

    1.2 francisco de Melo e os fragmentos de teoria ptica de pierre brissot .................................... 21

    Bernardo Mota

    1.3 Algumas reflexes sobre as pedras preciosas nos Colquios

    dos simples de garcia de Orta ............................................................................................................... 37

    Rui Manuel Loureiro

    1.4 Estratgias, patronos e favores em Colquios dos Simples de garcia de Orta ........................ 63

    Teresa Nobre de Carvalho

    1.5 As plantas na obra potica de cames (pica e lrica) .................................................................. 95

    Jorge Paiva

    1.6 nicols Monardes, John frampton and the Medical Wonders of the new World ................141

    Donald Beecher

    1.7 literatura e Medicina: alguns textos de Justo lpsio e de dois doutores lus nunes .........161

    Antnio Guimares Pinto

    1.8 Ontologias e idiossincrasias dos Amantes, luz da Archipathologia de filipe Montalto ......211

    Joana Mestre Costa & Adelino Cardoso

    1.9 gabriel da fonseca. A new christian doctor in berninis Rome ................................................227

    James W. Nelson Novoa

  • 2) DioSCriDeS e o HumAniSmo PortuGuS: os Comentrios De AmAto luSitAno ............................................................................249

    2.1 lxico cientfico portugus nos Comentrios de Amato: antecedentes e receo..............251

    Ana Margarida Borges

    2.2 Usos medicinais das plantas, em Amato lusitano: o blsamo ..................................................275

    Antnio Maria Martins Melo

    2.3 Amato lusitano e a importncia da ilustrao botnica no sculo xvi.

    Em torno das edies lionesas das Enarrationes (1558) ..............................................................303

    Carlos A. Martins de Jesus

    2.4 sobre la identificacin entre bano y guayaco en una entrada

    del Index Dioscoridis de Amato lusitano ..........................................................................................317

    Carlos de Miguel Mora

    2.5 Os partos distcicos em Amato lusitano e em Rodrigo de castro:

    fontes, doutrinas e terapias greco-romanas ...................................................................................353

    Cristina Santos Pinheiro

    2.6 Do carvalho ao castanheiro: usos e propriedades medicinais

    de fagceas nas Enarrationes de Amato lusitano ..........................................................................373

    Emlia Oliveira

    2.7 O mundo mineral nos Comentrios a Dioscrides de Amato lusitano ....................................387

    Isabel Malaquias & Virgnia Soares Pereira

    2.8 Alguns comentrios de Amato: entre a estranheza e a realidade ............................................413

    Joo Manuel Nunes Torro

    2.9 caracterizao e usos teraputicos de produtos de origem marinha

    nos Comentrios de Amato lusitano a Dioscrides ......................................................................425

    Jos Slvio Moreira Fernandes

    2.10 la mandrgora de Amato lusitano: edicin, traduccin y anotacin ...................................449

    Miguel ngel Gonzlez Manjarrs

    2.11 o vinho e os vinhos usos e virtudes de um dom dos deuses

    nas Enarrationes de Amato lusitano .................................................................................................467

    Telmo Corujo dos Reis

    2.12 Amatus lusitanus e Didaco pirro: due ebrei portoghesi

    e cerchia umanistica di Dubrovnik ....................................................................................................481

    Vinicije B. Lupis

    2.13 Estudos contemporneos sobre Amato lusitano .......................................................................513

    Joo Rui Pita & Ana Leonor Pereira

  • 2.5 Os partos distcicos em Amato Lusitano e em Rodrigo de Castro: fontes, doutrinas e terapias greco-romanas

    353

    os partos distcicos em Amato lusitano e em rodrigo de Castro: fontes, doutrinas e terapias greco-romanas

    cRIsTInA sAnTOs pInHEIRO1

    Resumo:

    configurando-se tradicionalmente o parto como um acontecimento conduzido por parteiras, em que s excepcionalmente e perante dificuldades extremas se apelava a um mdico, nos casos em que ambos estavam presentes manifestava-se uma distino fundamental entre as prticas m-dicas utilizadas por uns e outros. Tendo esta divergncia em mente, analisamos nas Curationum medicinalium centuriae de Amato lusitano e no De universa mulierum medicina de Rodrigo de castro lusitano, as fontes gregas e romanas que os autores referem ao descreverem os partos distcicos em especial, os tratados hipocrticos De mulierum affectibus e De superfetatione e os Gynaikeia de sorano e como o discurso de ambos refora a importncia do saber mdico no contexto das dificuldades que foroso enfrentar nestas circunstncias.

    PAlAvrAS-CHAve:

    Histria da Medicina; textos de ginecologia; medicina renascentista; obstetrcia; ginecologia.

    AbStrACt:

    by tradition, childbirth was an event conducted by midwives, when only exceptionally and in face of extreme difficulties a doctor was called for. When the midwife and the doctor attended, a fundamental distinction emerged between the medical practices used by one and by the other. Having this difference in mind, we analyze in Amatus lusitanus Curationum medicinalium centuriae and in Rodericus a castro lusitanus De universa mulierum medicina the greek and Roman sources that the authors use to treat dystocia in particular, the Hippocratic treatises De mulierum affectibus and De superfetatione, as well as soranos Gynaikeia and how the discourse of these authors reinforces the importance of medical knowledge in the context of the difficulties they must face under these circumstances.

    KeyworDS:

    history of medicine; gynaecological texts; Early Modern medicine; obstetrics; gynaecology.

    1 Universidade da Madeira; Centro de Estudos Clssicos da Universidade de Lisboa: [email protected].

    http://dx.doi.org/10.14195/ 978-989-26-0941-6_14

  • Cristina Santos Pinheiro354

    As dificuldades que podiam surgir no decorrer do nascimento de uma criana so tema de exposies detalhadas nos textos gregos e romanos sobre medicina. J no Corpo Hipocrtico2, as referncias a fetos mortos ou em posio anormal in utero e a substncias e tcnicas que aceleram o parto () ou que provocam a expulso da criana so frequentes3. Se tiver-mos igualmente em considerao o pormenor com que se descrevem intervenes cirrgicas como a que tinha como finalidade desmembrar e extrair do ventre materno, parte por parte, um feto morto ou invivel, podemos com alguma legitimidade concluir que se tratava de uma situao frequente, que permitiu o desenvolvimento de um conjunto mais ou menos consistente de tcnicas e saberes. Nestas ocasies, em que, por alguma razo, o parto no se desenrolava / secundum naturam, alm da parteira e das mulheres da famlia que normalmente prestavam assistncia, apelava-se ao mdico.

    Nancy Demand considera que no sculo V a. C. os autores dos tratados hipocrticos de ginecologia retiraram do domnio exclusivo das mulheres as questes mdicas relacionadas com a gravidez e o parto: () childbirth was medicalized, and male doctors came to exercise a degree of control over female reproductivity as they created a Hippocratic gynecology.4. Afirmaes semelhantes a esta so frequentes para explicar o incremento notvel na publicao de obras sobre ginecologia a que se assistiu na Europa entre as ltimas dcadas do sculo xvi e o sculo xvii5. Este interesse masculino numa rea tradicionalmente associada s mulheres tem sido entendido como consequncia da divulgao dos tratados hipocrticos sobre estas

    2 O Corpo Hipocrtico constitudo por cerca de seis dezenas de tratados atribudos a Hipcrates, mas de autores incertos e com temticas diversas. No representa, portanto, uma colectnea uniforme ou um qualquer sistema de teorizao mdica coerente. Sobre doenas das mulheres, o Corpo Hipo-crtico inclui De mulierum affectibus 1 e 2 (Mul.); De sterilibus (Ster.); De natura muliebri (Nat. Mul.); De uirginum morbis (Virg.). Tm interesse tambm nesta matria os tratados: De semine (Genit.), De natura pueri (Nat. Puer.) , De septimestri partu (Septim.), De octimestri partu (Oct.), De foetus exsectione (Foet. Exsect.) e o De superfetatione (Superf.).

    3 Vejam-se, a ttulo de exemplo, alguns excertos que, no livro 1 do De mulierum affectibus, descrevem as propriedades de algumas substncias: , (Mul. 1.78.35) Remdio para purificar o tero, se, morto o feto, o sangue tiver ficado retido; (1.78.100) expulsa um feto malformado; , (1.78.140) Outro pessrio expulsivo, se o feto estiver morto; (Mul. 1.78.175) Para matar e expulsar um feto que no tem movimento; , (Mul. 1.91) Expulsivo, no caso de o feto estar morto. Todas as tradues dos textos gregos e latinos, quando no identificadas, so da nossa autoria.

    4 Nancy Demand, Monuments, midwives and gynaecology, in Ph. J. van der Eijk, H. F. Horstmanshoff, & P. H. Schrijvers (eds.), Ancient medicine in its sociocultural context . Amsterdam, Rodopi, 1992, pp. 285-287.

    5 Michael Stolberg, A woman down to her bones: the anatomy of sexual difference in the sixteenth and early seventeenth centuries, Isis 94 (2003), p. 288; Helen King, Midwifery, obstetrics and the rise of gynaecology: the uses of a sixteenthcentury compendium. Aldershot, Hants & Burlington, Ashgate Publishing, 2007, p. 29.

  • 2.5 Os partos distcicos em Amato Lusitano e em Rodrigo de Castro: fontes, doutrinas e terapias greco-romanas

    355

    matrias, especialmente porque Galeno, excepo de alguns tratados breves como o De uteri dissectione, no compusera um texto especificamente a elas dedicado6.

    Assim, se, por um lado, se apresenta nestes textos um nvel de conhecimento de ndole popular, fundamentado principalmente na transmisso de receitas e associado ao desempenho das mulheres parteiras e no s , por outro lado, parece-nos evidente, na exuberncia dos pormenores e numa certa tendncia para mostrar capacidades tcnicas alheias ao domnio feminino, a demons-trao da proeminncia do saber do mdico que, especialmente numa situao desesperada como um parto difcil, se apresenta como superior e imprescindvel. Recordemos que a presena do mdico s se tornaria necessria precisamente quando o parto se desenrolava de forma anormal.

    Os partos distcicos so tema recorrente nos tratados mdicos da antiguidade relacionados com as doenas femininas e, na nossa opinio, parecem ter-se configurado como um tpico de cariz mais ou menos estvel, que se repete quase sempre com as mesmas classificaes e caractersticas, mas que denota um interesse e uma sofisticao crescentes7. Nos tratados de ginecologia do sculo xvi, ttulos de captulos como Difficultas partus (Nicholas de la Roche, De morbis mulierum curandis liber, 1542), De praeceptis et medicaminibus partus moram et difficultatem allevantibus (Jakob Ruff, De conceptu et generatione hominis, 1554) ou Quibus praesidiis partum acceleremus et foetum mortuum pellamus (Luigi Bonacciuoli, Muliebrium liber, 1505) so indcio seguro de que se mantinha o entendimento dos partos distcicos como uma rea fundamental na medicina dedicada s doenas femininas.

    objectivo desta pesquisa a procura de traos comuns aos tratados mdicos antigos e a duas obras de autores portugueses as Curationum medicinalium centuriae de Amato Lusitano e o De universa mulierum medicina de Rodrigo de Castro Lusitano no que concerne definio e ao tratamento dos partos difceis. No se trata de uma pesquisa exaustiva nem diacrnica, mas apenas de uma identificao preliminar de tpicos comuns. Tomamos, assim, como ponto de partida para este estudo um corpus constitudo por textos gregos e romanos que se debruam sobre partos dis-tcicos, em especial os tratados hipocrticos De mulierum affectibus e De superfetatione8 e o tratado de ginecologia de Sorano de feso, os Gynaikeia. Este autor de origem grega ter exercido medicina em Roma nos principados de Trajano e Adriano e teve uma importncia notvel, ainda que indi-recta, na literatura acerca das doenas e condies femininas, uma vez que o seu tratado foi cedo

    6 Tambm por esta razo omitimos nesta pesquisa a obra galnica. O facto de circular sob o nome de Hipcrates um conjunto de tratados sobre condies femininas parece ter concedido uma certa auto-ridade aos autores que, especialmente por influncia da traduo latina de Calvi, publicada em 1525, invocavam o pai da medicina para legitimar as suas obras. Veja-se, a este respeito, Helen King, Hippocrates woman: reading the female body in ancient Greece. London & New York, Routledge, 1998, p. 13.

    7 Veja-se, por exemplo, Ann E. Hanson, A division of labor: roles for men in Greek and Roman births, Thamyris 1.2 (1994), pp. 157-202.

    8 Os partos difceis so tambm referidos em tratados mdicos de carcter mais geral, como as Epidemias.

  • Cristina Santos Pinheiro356

    abreviado e traduzido em lngua latina9. Estas verses simplificadas, em especial a Genecia, de um autor desconhecido, identificado nos manuscritos como Muscio ou Mustio (? c. 500), foram muito divulgadas na Europa. Apesar da problemtica tradio manuscrita da obra de Sorano chegou at ns um nico manuscrito, e incompleto, dos Gynaikeia, encontrado j em pleno sculo xix10 , o livro IV dos seus Gynaikeia, dedicado s patologias ginecolgicas a serem tratadas pelo recurso a substncias medicinais ou a intervenes cirrgicas, constitui uma fonte importante acerca da tradio mdica dedicada aos partos distcicos. Autores de enciclopdias mdicas como Acio de Amida (sc. V-VI), ou Paulo de Egina (sc. VII), retomando a tradio, incluem tambm nas suas obras consideraes consistentes acerca deste assunto e por este motivo os inclumos tambm aqui.

    Constituem uma segunda componente do corpus em anlise as j referidas obras de Amato Lusitano e de Rodrigo de Castro Lusitano, ambas fundamentais na histria da medicina em Portugal: as Curationum medicinalium centuriae, publicadas em 1556, e o De universa mulierum medicina de Rodrigo de Castro. No contexto do presente volume, Amato dispensa apresentaes. Dele analisamos um conjunto de casos reais em que o autor descreve a terapia a que recorreu quando chamado a ajudar mulheres em sofrimento devido ao que ele designa de partus diffi-ciles. O De universa mulierum medicina um tratado de ginecologia, publicado pela primeira vez em 1603 e em 1604, em dois tomos, em Hamburgo, onde o seu autor se instalara para fugir da Inquisio, e que foi reeditado durante dcadas. Os dois volumes um, De natura mulierum, especialmente terico; o segundo, De morbis mulierum, de natureza prtica com quatro livros cada, tratam, de forma abrangente e documentada, condies femininas como a concepo, a menstruao, a gravidez, o parto, o aborto, a infertilidade, etc., e constituem um reportrio monumental acerca do estado da cincia do seu tempo, especialmente no dilogo que estabelece entre tradies dspares, como a clssica e a escolstica, mas tambm e no menos importante, pela proeminncia das novas ideias que por ento enformam a medicina.

    Abordamos hoje os elementos que nestas duas obras entroncam na tradio grega e romana acerca dos partos distcicos e como a reelaborao destes elementos no contexto da medicina dos sculos xvi e xvii permite distinguir e fundamentar o saber mdico numa rea maiorita-riamente reservada s mulheres.

    A definio de parto distcico que hoje em dia comummente aceite (parto difcil, causado por anomalias no feto ou na me11) no anda muito longe das definies antigas, que associam

    9 Sobre a pervivncia da obra de Sorano na medicina ocidental, cf. Ann E. Hanson & Monica H. Green, Soranus of Ephesus: Methodicorum princeps, ANRW II.37.2 (1994), pp. 968-1075, maxime pp. 1042 ss., e Yves Malinas, Modernit de Soranos, in P. Burguire, D. Gourevitch & Y. Malinas, Soranos dphse. Maladies des femmes I. Paris, Les Belles Lettres, 20032, pp. LXVII-LXXIV.

    10 Sobre a descoberta do Parisinus Graecus 2153 por Friedrich Dietz, cf. P. Burguire, Histoire du Texte, in P. Burguire, D. Gourevitch & Y. Malinas, Soranos dphse, op. cit., 20032, pp. XLVII-LXV.

    11 Veja-se, a ttulo de exemplo: Dystocia difficult birth, caused by abnormalities in the fetus or the mother (). Dystocia may arise due to uterine inertia, which is more common in a first labour; abnor-

  • 2.5 Os partos distcicos em Amato Lusitano e em Rodrigo de Castro: fontes, doutrinas e terapias greco-romanas

    357

    a difficultas pariendi a trs, por vezes a quatro causas. Nos tratados hipocrticos, de preferncia com as formas do verbo que se designa um parto anormal12. Sorano, tomando a defi-nio de Demtrio de Apameia, como o prprio Sorano seguidor de Herfilo de Alexandria e da escola metdica13, define distocia como um parto penoso () ou difcil ( ):

    . (4.1)

    Os seguidores de Herfilo e especialmente Demtrio dizem que parto distcico um

    parto penoso; para alguns, parto distcico dar luz entre dificuldades.

    E prossegue com uma longa recenso das causas propostas para os partos distcicos por autores que o precederam (Docles de Caristo, Cleofanto, Herfilo, Demtrio), que vai citando e comentando. Na Genecia, Mscio reduz todas as consideraes de Sorano acerca das causas propostas pelos seus antecessores, abreviando-as e organizando-as de forma mais simplificada e acessvel:

    Quot sunt enim causae quibus laboriosus vel difficilis partus efficitur?

    Plurimi duas causas esse dixerunt, unam apud eam quae parit, alteram apud ipsum

    infantem qui nasci habet. Alii vero iam tertiam causam addunt quae extrinsecus venire

    consuevit. Apud alios etiam quarta causa emergit, quae ex omnibus praedictis causis

    miscetur. (2.17.1)

    Quantas so as causas de um parto penoso ou difcil?

    A maioria dos autores disse que existem duas causas, uma relacionada com a parturiente,

    outra com a prpria criana que nasce. Outros, porm, acrescentam uma terceira causa

    mal fetal lie or presentation; absolute or relative cephalo-pelvic disproportion; (), Oxford Concise Medical Dictionary. Oxford University Press, 20108, s. v. Dystocia.

    12 Cf., por exemplo: , , , . (Superf. 2.4) A mulher a quem a criana saiu da placenta dentro do tero antes de comear a sair, tem um parto extremamente difcil e perigoso, se a cabea no sair frente.. Outra forma de identificar um parto difcil: , , . (Mul. 1.77) Se uma mulher grvida depois de muito tempo no capaz de dar luz, mas tem dores durante muitos dias, jovem e forte e tem muito sangue ().

    13 Sobre a obra de Demtrio de Apameia, cf. H. von Staden, Herophilus: the art of medicine in early Alexandria. Cambridge-New York, Cambridge University Press, 1989, pp. 506 ss.

  • Cristina Santos Pinheiro358

    que costuma vir do exterior. Na obra de outros surge ainda uma quarta causa, que

    composta por todas as causas referidas antes.

    Acio de Amida (Iatricorum liber 16.22) divide em trs tipos os factores que podem difi-cultar o parto: os que se relacionam com a sade fsica ou psicolgica da me ( () ou por a me ter fraqueza no corpo ou na alma ou em ambos); os que tm origem no feto ( ; um parto difcil acontece tambm devido ao que gerado ) e os factores de ordem externa ( ; um parto difcil acontece devido ao exterior). Paulo de Egina (Epitomae Medicae 3.76) apresenta quatro causas:

    Um parto distcico acontece ou devido parturiente, ou devido ao feto, ou devido placenta, ou devido a causas externas.14

    Nos textos em anlise, distinguem-se efectivamente e de um modo geral as causas relacio-nadas com a sade materna, as que so causadas pelo estado do feto e as condies externas que podem condicionar o decorrer normal do parto, como condies climatricas adversas ou mesmo a inexperincia da parteira ou do mdico que orienta o parto.

    Amato recorre principalmente ao vocabulrio associado difficultas ou ao labor para designar um parto demasiado longo e penoso15. Rodrigo de Castro, pelo contrrio, tem uma abordagem sistemtica e fundamentada na distino entre um parto natural, assunto que explora no primeiro captulo desta seco, e os seus opostos, que trata nos captulos subsequentes. Esta oposio apresentada logo no incio quando justifica a incluso de um captulo sobre partos normais no volume da obra que dedica s condies patolgicas. Para que um parto seja designado como um parto normal deve obedecer, segundo Castro, a cinco condies:

    14 Nas Definitiones Medicae 19.456, uma obra atribuda a Galeno, mas de autoria duvidosa, afirma-se algo semelhante: , , , . Os partos distcicos acontecem de trs maneiras: devido grvida, devido ao feto, devido a causas externas..

    15 Apenas alguns exemplos: () difficulter pariebat (Cent. VI, curas 51 e 86) refere-se em ambos os casos ao parto de fetos mortos; ut plerunque partum difficilem habentibus evenit (Cent. I, cura 93) cum per triduum in emittendo foetu, graviter laboraret (Cent. V, cura 34) designam o parto de gmeos.

  • 2.5 Os partos distcicos em Amato Lusitano e em Rodrigo de Castro: fontes, doutrinas e terapias greco-romanas

    359

    () ad naturalem partum quinque requiri conditiones. Prima est, ut fiat profecto iam

    foetu; Secunda ut debito tempore; Tertia ut debita figura; Quarta ut levibus symptoma-

    tibus; Quinta ut evacuationibus debitis. (2.4. cap. 1, pp. 445-446)

    () para um parto natural so necessrias cinco condies: a primeira, que acontea quando

    o feto est formado; a segunda, que acontea no tempo oportuno; a terceira na posio

    conveniente, a quarta com sintomas tolerveis; a quinta com evacuaes convenientes.

    Qualquer parto em que no se verifique uma destas situaes um parto que no natural: o nascimento de um feto morto ou um aborto (no se cumprem a primeira e a segunda), o parto de um feto em posio anormal (no se cumpre a terceira), um parto difcil e penoso (no se cumpre a quarta), e, por fim, um parto seguido de reteno da placenta (no se cumpre a quin-ta). Uma distino fundamental no De universa mulierum medicina, que no est presente em nenhuma das obras em anlise, a que o autor estabelece entre partus vitiosus e partus difficilis et laboriosus: o primeiro o nascimento de um feto em posio anormal, o segundo um parto com sofrimento prolongado e que representa um risco para a me:

    Dicitur autem difficilis partus ille, qui cum foetus vel matris periculo accidit, vel quia cum

    gravissimis fit symptomatibus, vel quia tardius procedit, ita ut longo tempore prematur

    mulier. (2.4. cap. 6, p. 478)

    Diz-se um parto difcil aquele que acontece envolvendo perigo para o feto ou para a me,

    quer porque se desenrola com sintomas muito graves, quer porque avana de forma muito

    lenta, de modo a que a mulher seja atormentada por muito tempo.

    Entre as causas relacionadas com a sade materna, os autores so mais ou menos un-nimes ao referir que no s a condio fsica da parturiente, mas tambm o seu estado psicolgico podem originar dificuldades no parto. Sorano, reproduzindo o pensamento do j citado Demtrio, reala efectivamente a importncia do equilbrio mental e emocional da paciente:

    , , , , , ,

    ( )

    (4.2)

    O parto difcil deve-se tambm fora psquica quando acontece a dor, a alegria, o medo,

    a timidez, a fraqueza, a ira, ou uma vida de luxo exagerado (pois algumas mulheres so

  • Cristina Santos Pinheiro360

    indulgentes e no fazem esforos). Acontece tambm por falta de experincia em dar

    luz: [a parturiente] no colabora no trabalho de parto.

    O bem-estar psicolgico da me factor essencial no momento em que se prepara o parto16, mas absolutamente determinante se este se complicar. Entre as causas de distocia relacionadas com a parturiente, Sorano adverte a parteira para que tenha sempre cuidado de modo a que os seus gestos, o seu olhar, as suas palavras no assustem a parturiente, com frequncia demasiado jovem para entender o que se passa sua volta. Esta falta de experincia , alis, enumerada entre os factores que podem condicionar o desenrolar do parto, por poder originar a retraco do corpo da me, que deixa de colaborar com a parteira. A primpara , normalmente, uma pa-ciente a ter sob vigilncia17. Veja-se, por exemplo a afirmao do tratado De mulierum affectibus:

    () .

    () Sofrem mais as primparas do que as que tm experincia no parto. (Mul. 1.72)

    Sorano refere tambm a falta de experincia das primparas como um obstculo a um parto fcil ( . (4.2) outras, por darem luz pela primeira vez, por terem medo e por falta de ex-perincia em colocar o corpo na posio certa), mas assinala igualmente as jovens que casam demasiado cedo, cujo corpo no est ainda preparado para o parto:

    . (4.2).

    Pois, casadas antes do tempo adequado, engravidam e do luz quando o tero ainda

    no atingiu o seu crescimento mximo nem o fundo da matriz se abriu.

    Entre os factores de ordem fsica, assumem relevo, alm das patologias do tero ou do colo do tero, que dificultam ou impossibilitam a passagem do feto, a extrema magreza ou, em

    16 Rodrigo de Castro, por exemplo, aconselha as parteiras que dem nimo parturiente consolando-a com a esperana de um parto de um rapaz: Parientem obstetrix () etiam verbis consoletur cum bona spe felicis ac masculi partus, eo enim mulieres sese gaudent (). Que a parteira () anime a parturiente com a esperana de um parto fecundo e de um rapaz, porque as mulheres alegram-se com isso. (II. 4. cap. 1, p. 448).

    17 Cf. tambm a observao de Rodrigo de Castro: parturiens puella () ob imperitiam corpus apte praeparare ignorat. A jovem parturiente () por falta de experincia no sabe como preparar convenientemente o corpo. (II. 4. cap. 6, p. 472).

  • 2.5 Os partos distcicos em Amato Lusitano e em Rodrigo de Castro: fontes, doutrinas e terapias greco-romanas

    361

    oposio, a obesidade da me. Os problemas relacionados com o peso so alis frequentemente assinalados como obstculo a todo o ciclo de procriao, j que tanto as mulheres obesas como as magras em demasia tm, de acordo com os tratados mdicos antigos, dificuldade em engra-vidar, ou, se engravidam, so incapazes de levar a gravidez a termo18. Sorano refere igualmente a obesidade da me entre as causas relacionadas com a condio fsica da parturiente19.

    tambm notado por estes autores que o facto de a mulher grvida ter uma vida sedentria e inactiva dificulta o parto, enquanto o exerccio benfico, no apenas porque favorece um parto normal, mas tambm porque contribui para a sade da criana.

    Entre as causas relacionadas com o feto, todos os autores referem o seu tamanho, na totali-dade ou numa parte do corpo, um feto morto, o nascimento de gmeos ou a posio anormal no tero materno. Veja-se o que diz Sorano:

    , | ,

    , ()

    (

    ),

    ,

    . (4.2)

    Causas relacionadas com o feto: quando demasiado grande quer no corpo inteiro quer numa das partes, como quando tem a cabea ou o trax grandes ou o ventre inchado, como acontece nos hidrocfalos. () Ocorre tambm um parto distcico devido ao nmero (quando so dois e ambos se aproximam em conjunto do colo do tero causando uma obstruo), ou por o feto estar morto e no colaborar no parto ou por, visto estar morto, estar intumescido, ou por se apresentar numa posio anormal.20

    18 Cf., sobre mulheres magras, Hipp. Aph.5.44: , , . As mulheres grvidas que so anormalmente magras abortam enquanto no ficarem mais fortes.. Ideias semelhantes em Hipp. Ster. 237 e Nat. Mul. 19. Sobre mulheres obesas, cf. Aph. 5.46: , , , , . As mulheres que so anormalmente gordas no concebem no seu ventre, pois a estas a gordura pressiona-lhes a entrada do tero e, enquanto no emagrecerem, no engravidam.. Em Hipp. Ster. 229 e Nat. Mul. 20 fazem-se afirmaes idnticas.

    19 . (4.2) H ainda causas fsicas, internas ou externas, como a parturiente ser extremamente corpulenta e gorda.. Esta ideia repetida verbatim por Acio de Amida (Iat. 16.22).

    20 As causas relacionadas com o feto no so muito diferentes nos outros autores: , , , , . () , , , .

  • Cristina Santos Pinheiro362

    Rodrigo de Castro, repetindo uma ideia que remonta aos tratados hipocrticos, afirma que dificulta o parto um feto maior do que o normal ou, pelo contrrio, demasiado pequeno, porque este no consegue romper as membranas e quele o tero no consegue adaptar-se. A criana deste modo vista como incapaz de desencadear o parto e de fazer o seu prprio caminho em direco vida:

    Ex parte foetus causae sunt, si inusitatae magnitudinis existat, aut exiguus nimis, qui nec

    vincula disrumpere queat: nec uterus ei adaequetur. Aut si magni capitis, vel admodum

    exigui, hic enim non aperit vias, nec ab obstetrice apprehendi potest; ille difficulter egres-

    sum invenit. Similiter si parvi ponderis aut debilis sit, quia tunc seipsum adminiculantem

    non praestat. (2.4. cap. 6, p. 472)

    Da parte do feto as causas so: se tem um tamanho grande inusitado ou demasiado

    pequeno que nem consegue romper os vnculos nem o tero a ele se adequa. Ou se tem

    a cabea grande ou muito pequena, pois este no abre o caminho nem pode ser puxado

    pela parteira; aquele dificilmente encontra a sada. Do mesmo modo, se tiver pouco peso

    ou se for dbil, porque no capaz de se auxiliar a si prprio.

    , . (Hipp., Mul. 1.33) Se a uma mulher que est gr-vida passou j o momento do parto e sente dor, e depois de ter passado muito tempo a mulher no foi capaz de expulsar a criana, em geral est em posio lateral ou podlica, sendo necessrio que saia de cabea. () tambm causa de dificuldades se sair de ps, e muitas vezes morrem as mes ou as crianas ou ambos. Existe outra razo importante que o impede de sair facilmente: quando est morto, ou afectado por paralisia ou se so dois.; , (). (Mul. 1.68) No caso de, tendo ocorrido um aborto, no se poder expulsar o feto por ser demasiado grande no todo ou num dos membros, ou por ser pequeno, estar de lado e fraco (); Quomodo dicunt per infantem qui nasci habet difficilimum partum dari? Scilicet qui naturaliter grande caput habeat vel omne corpus, vel tres manus, aut certe hydropicus sit vel gibberosus vel languidus aut inflatus vel mortuus aut positione contra naturam. (Mscio, Genecia 17.3) Como dizem que o parto se torna muito difcil devido criana que vai nascer? Seguramente aquele que tem por natureza a cabea grande ou todo o corpo, ou trs mos, ou se hidrpico, corcovado, fraco, ou se estiver intumescido ou morto ou em posio anormal.; , , , . (Acio, Iatr. 16.22.25) Um parto distcico acontece tambm devido ao que gerado: ou por o feto ser todo ele grande, ou por ter alguma parte de tamanho considervel, como a cabea, o trax ou o ventre.; , , , , ( ) (Paulo de Egina, 3.76.1) As causas relacionadas com o feto incluem ser demasiado grande ou pequeno e leve, hidrocfalo ou monstruoso, como ter duas cabeas, ou estar morto ou ter ainda vida mas ser fraco e incapaz de avanar para o exterior, ou acontecer serem muitos fetos (Herfilo registou cinco) ou estar uma posio anormal..

  • 2.5 Os partos distcicos em Amato Lusitano e em Rodrigo de Castro: fontes, doutrinas e terapias greco-romanas

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    A gestao de um feto monstruoso igualmente uma das causas apontadas para um parto difcil21. Diga-se que este tema gerar grande interesse na literatura do perodo renascentista, com a publicao de vrios tratados, alguns com representaes de seres deformados e entendidos como nascimentos prodigiosos ou como uma punio divina22. Amato, por exemplo, descreve um monstro nascido no terceiro ou quarto ms de gestao de uma me habitante de Ancona. No certo se ele prprio o ter visto, mas descreve-o com pormenor:

    Mulier Anconitana monstrum quoddam peperit: nam tertio vel quarto mense impreg-

    nationis informe quoddam carneum corpusculum emisit, quod omnino hirsutum erat

    et pilosum, quatuor habens culos, duas nares, quatuor aures, labra vero deformia,

    ut omnibus esse admirationi. (Cent. III, cura 57)

    Uma mulher anconitana deu luz um monstro. No terceiro ou quarto ms da gravidao deitou fora um corpsculo carnoso, informe, totalmente hirsuto e cabeludo, com quatro olhos, dois narizes, quatro orelhas e lbios disformes. A todos causava espanto.23

    Diz ainda que enquanto escreve (cum haec scribo), chegou a Ancona um rapaz da Ilria, com seis anos, aparentemente normal, mas trazendo consigo (ou em si?) um monstro que lhe ocupava o espao entre o umbigo e o trax e tinha a forma de outro corpo de criana, sem cabea, mas com braos e pernas, ainda que imveis24.

    A morte do feto in utero deve ter sido muito frequente. Expresses com o significado de para expulsar um feto morto so repetidas exausto para introduzir uma panplia de receitas e te-raputicas que aparecem desde os textos hipocrticos a Plnio-o-Velho25 e se mantm na tradio. Nas curas 51 e 86 da Centria VI, Amato descreve precisamente dois casos em que fetos mortos no ventre materno originaram partos prolongados e dolorosos. Recordemos apenas a situao

    21 Veja-se, a ttulo de exemplo: . Ocorre um parto difcil tambm devido concepo de um monstro (Sorano 4.2); Paulo Egineta utiliza o adjectivo , que significa monstruoso ou prodigioso. Rodrigo de Castro refere-se a um foetus monstruosus como causa de dificuldades no parto.

    22 Veja-se Lorraine Daston & Katherine Park , Wonders and the order of nature, 1150-1750. New York, Cambridge, Mass., Zone Books, 1998.

    23 Amato Lusitano, Centrias de curas medicinais, vol. II (trad. Firmino Crespo). Lisboa, Universidade Nova de Lisboa, s. d., p. 267.

    24 Amato Lusitano, Centrias, op. cit., p. 268. Para dar veracidade ao seu relato Amato termina o texto com a data: Fuit autem hoc monstrum Anconae, anno 1552. Este monstro esteve em Ancona no ano de 1552..

    25 Cf. supra nota 2. De Plnio, vejam-se, por exemplo, Nat. 23.62; 24.22; 24.102; 26.152; 26.153; 26.154; 26.157; 26.158; 26.161; 27.30; 28.252.

  • Cristina Santos Pinheiro364

    desesperada de Alosia, a quem s depois de trs dias de sofrimentos atrozes e quando j todos a davam como morta, conseguiram extrair, em pedaos, o filho sem vida. Rodrigo de Castro, repetindo o que se escreve no De superfetatione, diz que um feto morto se identifica se a me se deitar de lado. Se o feto j no tiver vida, mover-se- como uma pedra26. A este assunto dedica todo um captulo nesta seco da sua obra, que faz seguir por outro acerca da prtica da cesa-riana, uma novidade do seu tempo, divulgada por Franois Rousset, na sua obra Trait nouveau de l hysterotomotokie ou enfantement Caesarien, publicada em Paris em 1581 e posteriormente traduzida para lngua latina e includa nos Gynaeciorum libri, um compndio monumental de obras dedicadas a doenas e condies femininas, muito divulgado na Europa.

    Tambm os partos mltiplos so enumerados entre os partos difceis. Herfilo, citado por Sorano e Paulo de Egina, teria descrito o caso de uma mulher que, em cada um de trs partos, tinha tido cinco filhos, ou seja, um total de quinze crianas27.

    De Amato citamos a cura 34 da Centria V, a das meninas amarelas, as puellae luteae, irms gmeas que nasceram amarelas devido ao aafro que era um dos ingredientes da medicao aconselhada por Amato, depois de um parto que se prolongou tambm por dias. Os partos

    26 Cognosces foetum in utero mortuum esse, si admota manu amplius moveri non percipitur, sed decumbente foemina in latus, in id devolvitutr etiam infans, veluti immobile quoddam saxum. Saber-se- que o feto est morto no tero se colocando a mo [i. e. no ventre] se perceber que j no se move, mas, deitando-se a mulher de lado, para esse lado vira-se tambm a criana, imvel como uma qualquer pedra.. Veja-se o texto do De superfetatione 10: , , , , . Avaliar-se- se a criana est morta, tanto por outros sinais como pedindo [ me] que se deite primeiro sobre o lado direito, depois que mude para o lado esquerdo, pois a criana no tero vai para a direco para a qual se virou a me, como uma pedra ou algo assim..

    27 Veja-se a verso de Sorano: . Herfilo, na sua obra Sobre os Partos afirma: acontecem partos difceis devido ao nmero [de fetos]: deu-se o caso da concubina de Smon da Magnsia que em trs vezes deu luz cinco filhos entre dificuldades.. Cf. o texto de Paulo de Egina , supra n. 17. Veja-se tambm o texto de Aristteles: Na maior parte dos casos e na generalidade dos pases, as mulheres do luz uma s criana; mas tambm frequente e ocorre por toda a parte que tenham duas, como o caso do Egipto. Podem at ter trs ou quatro gmeos, em certas regies bem definidas (). O mximo cinco, situao que j se verificou vrias vezes. Hou-ve um nico caso de uma mulher que, em quatro partos, deu luz vinte filhos; teve, de facto, cinco gmeos de cada vez, e conseguiu criar a maior parte. Aristteles, Histria dos Animais II (traduo de M. F. Sousa e Silva). Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2008, p. 215. De acordo com Aulo Glio, o imperador Augusto ter mandado erigir uma esttua a uma sua escrava que deu luz quntuplos: Sed et diuo Augusto imperante, qui temporum eius historiam scripserunt, ancillam Caesaris Augusti in agro Laurente peperisse quinque pueros dicunt eosque pauculos dies uixisse; matrem quoque eorum non multo, postquam peperit, mortuam, monumentumque ei factum iussu Augusti in uia Laurentina, inque eo scriptum esse numerum puerperii eius. (Gel. 10.2.2). Mas tambm no reinado do divino Augusto, dizem aqueles que escreveram a histria do seu tempo, uma escrava de Csar Augusto deu luz no campo de Laurento cinco rapazes e que eles viveram poucos dias; a me deles morreu tambm no muito depois do parto. Por ordem de Augusto, foi construdo em memria dela um monumento na via Laurentina, e nele estava escrito o nmero dos filhos dela..

  • 2.5 Os partos distcicos em Amato Lusitano e em Rodrigo de Castro: fontes, doutrinas e terapias greco-romanas

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    de gmeos suscitaram sempre alguma surpresa, ora acolhidos como sinal de fecundidade e prosperidade, ora interpretados como smbolo de crise e de carestia28.

    A causa de distocia mais comentada , todavia, a apresentao anormal do feto no ventre materno, o que Sorano designa por . Se a posio do feto no for a ceflica, unanimemente apresentada nestes textos como a posio natural e conveniente ao parto, ou a podlica, deve tentar-se corrigi-la, manipulando interna e externamente o corpo da criana29. No livro 1 do De mulierum affectibus explicam-se as dificuldades geradas por um feto em posio anormal recorrendo a uma imagem muito sugestiva: como acontece com um caroo de azeitona dentro de um lekytos, de um vaso de gargalo alto e estreito, que no se consegue tirar se no estiver alinhado com a abertura, o mesmo sucede com uma criana numa posio que no a ceflica ou a podlica30.

    As apresentaes que um feto podia assumir dentro do tero seriam tema de uma srie de gravuras que acompanhariam o texto de Sorano. Lamentavelmente, o nico manuscrito que o conserva, o Parisinus Graecus, apresenta os espaos correspondentes em branco. Os manus-critos da Genecia de Mscio, bem mais numerosos, apresentam estas ilustraes, que foram divulgadas na Europa desde muito cedo. De facto, circularam mesmo separadamente do texto e chegaram, por vezes, a ser includas como anexo em textos de autores posteriores31. Podemos observar estas imagens num manuscrito do sculo ix, que mostra as posies secundum naturam e depois as praeter naturam32.

    Amato Lusitano aconselha o seu leitor, especialmente se for Hispanicus e considerar sacrilgio cortar um cadver, a procurar informaes sobre as apresentaes do feto in utero nos modernos livros de anatomia. Esta referncia, entendida como uma aluso a Vesslio, pode, no entanto, remeter o leitor para as muitas verses das imagens da Genecia de Mscio que circulavam por ento tambm na obra de autores contemporneos como Eucharius Rsslin, uma vez que na obra de Vesslio no se representa o feto dentro do tero materno33. Rodrigo de Castro refere-se precisamente a estas imagens ao descrever as posies da criana:

    28 Sobre os nascimentos mltiplos, veja-se V. Dasen, Multiple Births in Graeco-Roman Antiquity, Oxford Journal of Archaeology 16.1 (1997), pp. 49-63.

    29 Para algumas descries destas manobras, cf., por exemplo, Sorano 4.4; Mscio, Genecia 2.18.11.

    30 , , , , . (Mul.1.33). O sofrimento acontece pelo seguinte: como se algum tivesse colocado dentro de um vaso de entrada pequena um caroo de azeitona, que no tem uma forma adequada para ser retirado de lado, assim tambm o feto, se estiver de lado, causa de grande sofrimento para a mulher, pois no sai..

    31 Cf. Hanson & Green, Soranus, op. cit., pp. 1023-1024, e Monica H. Green, The sources of Eucharius Rsslins Rosegarden for Pregnant Women and Midwives (1513), Medical History 53 (2009), pp. 167-192.

    32 As imagens podem ser visualizadas em http://wellcomeimages.org/indexplus/image/M0007236.html.

    33 Afirma Amato: Caeterum, quomodo gemini in utero ex adversa figura sedeant, et quo modo singulus singulis involucris et membranis circumvolvatur, ad anatomicos libros hodiernos, miris depictos figuris,

  • Cristina Santos Pinheiro366

    () quas omnes figuras Hippocrates posuit, eas vero, ac plures ad easdem reducendas

    depinxit Eucharius Rodion. (2.4. cap. 5, p. 468)

    () todas estas apresentaes foram expostas por Hipcrates, mas a estas e a muitas que

    podem ser resumidas a estas representou-as Eucharius Rsslin.

    A descrio das manobras necessrias para colocar o feto na posio indicada para nascer longa nestes textos34, mas acompanhada normalmente pela afirmao de que, se no se consegue extrair a criana de modo nenhum, deve recorrer-se a uma cirurgia, j descrita nos tratados hipocrticos e que consistia em desmembrar o feto morto, retirando-o posteriormente por partes35. Tambm Celso, que ter vivido na primeira metade do sculo I d. C., autor do De medicina, parte integrante da sua obra enciclopdica que abrangeria outros assuntos, descreve com pormenor esta cirurgia, desde as partes do corpo do feto que se devem ir amputando e extraindo at aos instrumentos mais indicados para o fazer (7.29). Trata-se, todavia, e todos os autores o afirmam, de uma cirurgia de riscos elevados para a me, cuja vida se pretende salvar, e que no deve ser realizada antes de a informar dos perigos que corre (4.9). No De superf. 7, recomenda-se que se cubra a cabea da parturiente, de modo a que esta no se atemorize. Na cura 51 da Centria VI, depois de dois dias de sofrimentos intolerveis, da aplicao, aconselhada por Amato perante a desistncia das parteiras, de fomentaes e de substncias esternutatrias, saiu do tero da jovem Alosia o brao enegrecido do seu filho morto. Depois de partido o brao, um dexter chirurgus introduziu as mos no ventre da me e extraiu a criana. Diz Amato que se isto no tivesse sido eficaz, teria de recorrer-se a um instrumento conhecido pela designao de espculo da matriz para retirar o feto, inteiro ou por pedaos36.

    recurrite, si modo vobis praesertim Hispanis, quibus piaculum est cadaver considere, non contingat aliter experire. (Cent. VI, cura 51) Como que os gmeos esto colocados no tero, em posio adversa, e como esto envolvidos cada um com as suas membranas ou invlucros recorra-se aos modernos livros de anatomia, com gravuras de admirvel desenho, se, no entanto (especialmente aos hispnicos, para quem crime retalhar um cadver) no calhar experimentar de outro modo. Amato Lusitano, Centrias, vol. IV, op. cit., p. 84.

    34 Sorano 4.4.

    35 Sorano 4.9-13; Mscio 2.18.26ss.; Acio 16.23. A embriotomia j descrita nos tratados hipocrticos, por exemplo em Mul. 1.68-70; Foet. Exsect. 1 e Superf. 7, o que atesta a antiguidade da sua prtica.

    36 Rodrigo de Castro, sobre a possibilidade de desmembrar um feto vivo no ventre materno afirma: ac etiamsi nulla medicamenta prosint, puer tamen vivus dissecari nulla ratione debet, quamvis Avicenna, Atius, & Moschio id praecipiant, non enim licet unum interficere, alterius vitae gratia, sed implorato divino auxilio medicamentis, insistendum. (2.4. cap. 6, p. 477) E ainda que nenhum medicamento seja eficaz, todavia por nenhuma razo se deve dilacerar uma criana viva, mesmo que Avicena, Acio e Mscio o aconselhem. que no lcito matar uma pessoa por causa da vida de outra, mas, depois de implorar a ajuda divina, deve-se continuar com o uso de medicamentos..

  • 2.5 Os partos distcicos em Amato Lusitano e em Rodrigo de Castro: fontes, doutrinas e terapias greco-romanas

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    No cabe no mbito desta pesquisa uma anlise das substncias cujo uso se recomenda para acelerar o parto. No podemos, porm, deixar de referir a utilizao de substncias que provocam o espirro, como o helboro e a pimenta, especialmente porque a utilizao destas substncias est relacionada com o muito citado Aforismo 5.35 de Hipcrates:

    , , , .

    A uma mulher afectada por patologias uterinas ou num parto difcil, se lhe sobrevier um

    espirro, bom.37.

    O espirro era uma forma de sacudir o corpo da paciente que poderia levar a uma mais fcil expulso do feto. No De mulierum affectibus afirma-se:

    ,

    , ,

    , . (1.68)

    e se [o feto] querendo avanar e estando em posio normal, no sai facilmente, nestas

    circunstncias aplicar algo que provoque o espirro, fechar o nariz e espirrar e fechar a

    boca para que o espirro seja o mais forte possvel.

    Amato defensor desta prtica, louvando mas nunca o bastante, segundo o prprio Hipcrates, senex ille, naturae verus minister, e citando o aforismo 5.35. Afirma ter ele prprio visto muitas vezes um espirro acelerar um parto difcil38.

    37 Veja-se a traduo de Celso: Quae locis laborat aut difficulter partum edit, sternumento leuatur. (Aquela que sofre devido aos rgos genitais ou que d luz num parto difcil aliviada por um espirro.). Sobre as referncias hipocrticas ao espirro como forma de facilitar o parto, cf. Ann Elis Hanson, Continuity and change: Three Case Studies in Hippocratic Gynaecological Therapy and Theory, in Sarah Pomeroy (ed.), Women s History and Ancient History. Chapel Hill, University of North Carolina Press, 1991, pp. 91ss..

    38 Porro interim haec agebamus, sternutationem ciebamus condiso, hoc est, struthio, sive lanaria dicta herba, helleboro, pipere, euphorbio, et similibus, prout, nos docuit agendum, nunquam satis laudatus senex ille, naturae verus minister, libro quinto suorum aphorismorum, aphor. 35. dicens mulieri, quae uterinis molestatur, aut difficulter parit, superveniens sternutatio, bonum. Vidimus autem nos difficulter parientes, a repetita sternutatione, brevi parere, quia vehementiore concussu, atque fervore, partim quidem naturam excitat, partim vero excernit, quae partibus corporis firmiter infixa adhaerent. (Cent. V, cura 34) Entretanto, enquanto trabalhvamos nisto, provocvamos o espirro com struthion, isto , saponria, a chamada erva-dos-pisoeiros (lanria), helboro, pimenta, eufrbio e semelhantes, conforme nos ensinou a fazer aquele nunca assaz louvado Ancio, verdadeiro ministro da natureza, no livro 5 dos seus Aforismos, aforismo 35, ao dizer: mulher que molestada por estrangulaes uterinas ou tem parto difcil, bom sinal o sobrevir-lhe espirro. Ns temos visto parturientes difceis darem luz

  • Cristina Santos Pinheiro368

    Se isto no for eficaz, torna-se necessria uma interveno mais violenta que consistia tambm em sacudir o corpo da paciente, mas de forma bem mais vigorosa. o que se afirma no mesmo tratado hipocrtico, logo de seguida: a paciente deve deitar-se numa cama slida a que ser atada, cama que ser sacudida por dois homens. Em Deexsect. 4, a parturiente deve ser colocada por cima de um lenol e, agarrada pelos ps e pelos braos por mulheres, deve ser sacudida pelo menos dez vezes. Depois ser sacudida alternadamente pelos braos e pelas pernas. Aqui as manobras tm como finalidade fazer com que o feto numa posio anormal tenha espao no tero para se reposicionar de forma adequada39.

    Nos casos descritos nas Centrias, por exemplo, estas duas formas de terapia so constantes. O recurso a substncias esternutatrias constitui, a par da sucusso, o mtodo mais utilizado por Amato para acelerar um parto difcil. Na cura 21 da Centria VI, que se refere a uma mulher primpara em sofrimento, ordenou que se agarrasse a parturiente a uma corda suspensa do tecto e que fosse sacudida por um homem robusto. Receitou igualmente substncias para provocar o espirro, o que acabou por permitir que expulsasse a criana no espao de um dia.

    Amato parece at, por vezes, acreditar que estes mtodos causam uma certa impresso nas pessoas que assistem, incluindo nas parteiras. Veja-se por exemplo o parto antes citado das chamadas meninas amarelas:

    Pinta uxor Pharasii, musici insignis, cum per triduum in emittendo foetu, graviter

    laboraret, ad eam iuvandam accersiti sumus. Ac post multa ob obstetricibus adhibita,

    et machinata, hoc illi ebibendum dedimus medicamentum. () Hoc enim epoto et

    repetito medicamento, duas peperit puellas, omnino luteas, ob quem colorem assistentes

    mulieres admirabantur. Caeterum, nos colorem hunc, a croco ebibito contractum esse

    docuimus. (Cent. V, cura 34)

    A esposa do insigne msico Pharasi, de nome Pinta, h j trs dias que procurava dar luz uma criana com sofrimento e, para lhe darmos o nosso auxlio, cha-maram-nos. Depois de muitos tratamentos feitos e engendrados pelas parteiras, demos-lhe a beber o seguinte remdio (). Tendo tomado e repetido este medi-camento, deu luz duas meninas completamente amarelas. A cor causou grande admirao s mulheres assistentes. Por isso esclarecemos que esta cor tinha sido causada pelo croco bebido.40

    rapidamente aps repetidos espirros, visto que, pela sacudidela ou agitao mais veemente, por um lado se excita a natureza, por outro se desagrega aquilo que aderia com firmeza a partes do corpo. Amato Lusitano, Centrias, vol. III, op. cit., p. 224.

    39 A mesma interveno no texto de Rodrigo de Castro (2.4. cap. 5, p. 472).

    40 Amato Lusitano, Centrias, vol. III, op. cit., p. 225.

  • 2.5 Os partos distcicos em Amato Lusitano e em Rodrigo de Castro: fontes, doutrinas e terapias greco-romanas

    369

    Note-se que a relao entre o mdico e as parteiras que podemos reconstituir a partir destes textos denota, com frequncia, uma certa desconfiana dos mdicos em relao a estas. Ad-monies como cuida para que as parteiras no dilacerem o tero, ou que as parteiras no recorram a prticas supersticiosas so muito frequentes41. Tambm Amato mostra uma certa desconfiana em relao s prticas destas, que considera prejudiciais42. Rodrigo de Castro afirma que uma das medidas que a grvida deve tomar antes do parto precisamente a escolha de uma boa parteira, arte que, segundo afirma, no conveniente para os homens:

    Igitur ante partum eligenda obstetrix prudens, muliebrium affectionum docta, & obste-

    tricandi exercitatione perita, nam haec ars viros dedecet. (2.4. cap. 1, p. 447)

    Por esta razo antes do parto deves escolher-se uma parteira previdente, instruda acerca

    das condies femininas e versada no exerccio da obstetrcia, pois esta arte no convm

    aos homens.

    De facto, a impercia das parteiras algo pernicioso: torna os rapazes eunucos (1.2. cap. 6, pp. 63-64), leva-as a cortar antes do momento certo o cordo umbilical (2.4. cap. 7, p. 478); est associada a supersties absurdas (1.1. cap. 8, p. 32) O mesmo afirmara Sora-no, sculos antes. Se em toda a descrio de um partus naturalis a parteira que age e toma decises, acompanhada, quando muito por ajudantes com experincia e que deram luz muitas vezes ou o prprio marido da mulher [i. e. da parturiente](ministrae peritae et quae saepius pepererunt aut ipse foeminae maritus (2.4. cap. 1, p. 448)), quando o parto se complica o chirurgus quem desempenha as aces mais sensveis, na presena do mdico (accersitus chirurgus, praesente etiam medico).

    Quanto mais desesperada fosse a situao, podemos afirmar, tanto mais pessoas que no a parteira seriam necessrias para desempenhar toda uma srie de tarefas, das mais cientficas s mais braais: do mdico que orientava, a homens ou mulheres da famlia, robustos o suficiente

    41 Cf. Jean Le Bon, Therapia Puerperarum, in Gynaeciorum libri, 1586, vol. 2, p. 387: Dilaniari enim non paucas gravidas mulieres a chirurgis, obstetricibus et tonsoribus, multosque semivivos infantulos ab iisdem dilacerari, saepius quam voluissemus, vidimus. Vimos, mais vezes do que teramos desejado, serem dilaceradas no poucas mulheres grvidas por cirurgies, parteiras e barbeiros, e muitas criancitas mal vivas serem desmembradas por estes.

    42 Veja-se, por exemplo: () nec enim obstetrices permisimus unquam, manibus violentum aliquod tractarent, prout illis moris est, quando ex illa violenta attractione, multa vitia, et foedae affectiones oriuntur. (Cent. VI, cura 21) () e no permitimos nunca que as parteiras usassem de algo violento com as mos, conforme o seu costume, visto que por causa dessa violenta actuao se originam muitos males e afeces desfeantes. Amato Lusitano, Centrias, vol. IV, op. cit., p. 33. Curabis tu, sapiens medice, ut obstetrices omni ingenio ac arte in hanc naturalem figuram, hoc est, in caput, foetum deducant () Tu, mdico sabedor, procurars que as parteiras tirem o feto com o maior engenho e habilidade pela forma natural, isto , pela cabea (). Amato Lusitano, Centrias, vol. IV, op. cit., p. 84.

  • Cristina Santos Pinheiro370

    para segurarem a parturiente e a sacudirem, passando pelo cirurgio que operava e pela parteira que fazia a verso do feto e examinava o corpo da paciente. precisamente no meio desta mul-tido que sobressai o saber do mdico, baseado nas autoridades antigas que como um alicerce fundamentam e legitimam prticas e teraputicas.

    biblioGrAFiA

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