verbete modernização Norberto Bobbio - Dicionário de Política

9
768 MODERNIZAÇÃO modernista e rinnovamento cattolico in Italia. Il Mulino. Bologna I979 3 ; A. VIDLER, A variety of catholic modernists. University Press. Cambridge 1970. [LORENZO BEDESCHI] Modernização. I. DEFINIÇÃO. Entende-se por Modernização aquele conjunto de mudanças operadas nas esferas política, econômica e social que têm caracterizado os dois últimos séculos. Praticamente, a data do início do processo de Modernização poderia ser colocada na Revolução Francesa de 1789 e na quase contemporânea Revolução Industrial inglesa que provocaram uma série de mudanças de grande alcance, nomeadamente na esfera política e econômica, mudanças que estão intimamente inter-relacionadas. Naturalmente, o fermento dessas duas grandes transformações há de ser buscado nas condições e nos processos que vinham se desenvolvendo havia algumas décadas e que culminaram nas duas revoluções. Estes processos de transformações profundas e freqüentemente rápidas tiveram repercussões imediatas no sistema internacional e foram exportadas pelos europeus para toda a parte, mesmo que só vingassem lenta e parcialmente. É essa a razão por que o processo global foi designado com o nome de europeização, ocidentalização ou, enfim, com o termo mais abrangente e menos etnocêntrico de Modernização. Além disso, com o passar do tempo, se tomou consciência de que a Modernização não é apenas o processo de difusão de instituições, valores e técnicas européias, mas é um processo aberto e contínuo de interação entre as várias instituições, culturas e técnicas. Este processo envolve todas as esferas do sistema social de forma freqüentemente conjunta, se desenvolve segundo modelos alternativos que apresentam características semelhantes e peculiares, modelos que permitem, porém, identificar, no transcorrer da história, sistemas políticos, econômicos e sociais mais ou menos modernos do que outros, com base em categorias comparadas. O aspecto mais interessante do processo de Modernização se relaciona exatamente com o surgimento de formas políticas, econômicas e sociais distintas e diferenciadas. O estudo da Modernização pretende fornecer uma resposta aos questionamentos relacionados com os fatores que dão origem à extraordinária variedade de formas políticas, sociais e econômicas e elaborar instrumentos que permitam influir no desenrolar do processo de Modernização e controlar sua evolução, dirigindo-a para os fins desejados. II. MODERNIZAÇÃO POLÍTICA. Toda a definição de Modernização política há de ser tal que permita captar o processo no seu desenvolvimento dinâmico, sem assumir como modelo formas políticas existentes; deve também permitir enuclear as características de modernidade, tanto as relativas aos cidadãos como as relativas ao sistema político, e evitar a confusão entre modernidade e democraticidade. A definição até hoje mais satisfatória e que mais atende a estes requisitos acentua três características principais: a igualdade, a capacidade e a diferenciação. Existe, portanto, Modernização política quanto à população de uma comunidade política em seu conjunto, quando se verifica a transição de uma condição generalizada de súditos para um número crescente de cidadãos unidos entre si por vínculos de colaboração, passagem que é acompanhada pela expansão do direito de voto e da participação política, por uma maior sensibilidade e adesão aos princípios de igualdade, e por uma mais ampla aceitação do valor das leis erga omnes. Existe Modernização política quanto ao desempenho do Governo e do sistema na sua globalidade, quando se verifica um aumento da capacidade das autoridades em dirigir os negócios públicos, em controlar as tensões sociais e em enfrentar as exigências dos membros do sistema. Quanto à organização da esfera política Modernização, quando se verifica uma maior diferenciação estrutural, uma maior especificidade funcional e uma maior integração de todas as instituições e organizações que fazem parte da esfera política (Pye e Verba, 1965, 13). Esta definição que examina a Modernização política a três níveis a nível da população, à nível do sistema político e a nível dos subsistemas, particularmente do subsistema governamental é bastante eficaz, porque não exige somente um crescimento indefinido e inevitável no âmbito das três dimensões, mas permite detectar analiticamente incrementos numa dimensão e declínio noutras, além da incompatibilidade entre tipos diferentes de incrementos simultâneos. Trata-se, enfim, de uma definição estimuladora, porque aberta, não unilinear, multidimensional. III. ESTÁDIOS E CRISES DA MODERNIZAÇÃO. No estudo da Modernização recorreu-se a uma conceituação de uso bastante comum e consolidado nas ciências sociais, recentemente reapresentada com vigor em economia, que interpreta a evolução histórica segundo uma seqüência, mais ou menos rígida, de estádios. Após uma cuidadosa

Transcript of verbete modernização Norberto Bobbio - Dicionário de Política

Page 1: verbete modernização Norberto Bobbio - Dicionário de Política

768 MODERNIZAÇÃO

modernista e rinnovamento cattolico in Italia. Il Mulino. Bologna I9793; A. VIDLER, A variety of catholic modernists. University Press. Cambridge 1970.

[LORENZO BEDESCHI]

Modernização.

I. DEFINIÇÃO. — Entende-se por Modernização aquele conjunto de mudanças operadas nas esferas política, econômica e social que têm caracterizado os dois últimos séculos. Praticamente, a data do início do processo de Modernização poderia ser colocada na Revolução Francesa de 1789 e na quase contemporânea Revolução Industrial inglesa que provocaram uma série de mudanças de grande alcance, nomeadamente na esfera política e econômica, mudanças que estão intimamente inter-relacionadas. Naturalmente, o fermento dessas duas grandes transformações há de ser buscado nas condições e nos processos que vinham se desenvolvendo havia algumas décadas e que culminaram nas duas revoluções. Estes processos de transformações profundas e freqüentemente rápidas tiveram repercussões imediatas no sistema internacional e foram exportadas pelos europeus para toda a parte, mesmo que só vingassem lenta e parcialmente. É essa a razão por que o processo global foi designado com o nome de europeização, ocidentalização ou, enfim, com o termo mais abrangente e menos etnocêntrico de Modernização.

Além disso, com o passar do tempo, se tomou consciência de que a Modernização não é apenas o processo de difusão de instituições, valores e técnicas européias, mas é um processo aberto e contínuo de interação entre as várias instituições, culturas e técnicas. Este processo envolve todas as esferas do sistema social de forma freqüentemente conjunta, se desenvolve segundo modelos alternativos que apresentam características semelhantes e peculiares, modelos que permitem, porém, identificar, no transcorrer da história, sistemas políticos, econômicos e sociais mais ou menos modernos do que outros, com base em categorias comparadas. O aspecto mais interessante do processo de Modernização se relaciona exatamente com o surgimento de formas políticas, econômicas e sociais distintas e diferenciadas. O estudo da Modernização pretende fornecer uma resposta aos questionamentos relacionados com os fatores que dão origem à extraordinária variedade de formas políticas, sociais e econômicas e elaborar instrumentos que permitam influir no desenrolar do processo de Modernização e

controlar sua evolução, dirigindo-a para os fins desejados.

II. MODERNIZAÇÃO POLÍTICA. — Toda a definição de Modernização política há de ser tal que permita captar o processo no seu desenvolvimento dinâmico, sem assumir como modelo formas políticas existentes; deve também permitir enuclear as características de modernidade, tanto as relativas aos cidadãos como as relativas ao sistema político, e evitar a confusão entre modernidade e democraticidade. A definição até hoje mais satisfatória e que mais atende a estes requisitos acentua três características principais: a igualdade, a capacidade e a diferenciação.

Existe, portanto, Modernização política quanto à população de uma comunidade política em seu conjunto, quando se verifica a transição de uma condição generalizada de súditos para um número crescente de cidadãos unidos entre si por vínculos de colaboração, passagem que é acompanhada pela expansão do direito de voto e da participação política, por uma maior sensibilidade e adesão aos princípios de igualdade, e por uma mais ampla aceitação do valor das leis erga omnes. Existe Modernização política quanto ao desempenho do Governo e do sistema na sua globalidade, quando se verifica um aumento da capacidade das autoridades em dirigir os negócios públicos, em controlar as tensões sociais e em enfrentar as exigências dos membros do sistema. Quanto à organização da esfera política há Modernização, quando se verifica uma maior diferenciação estrutural, uma maior especificidade funcional e uma maior integração de todas as instituições e organizações que fazem parte da esfera política (Pye e Verba, 1965, 13). Esta definição que examina a Modernização política a três níveis — a nível da população, à nível do sistema político e a nível dos subsistemas, particularmente do subsistema governamental — é bastante eficaz, porque não exige somente um crescimento indefinido e inevitável no âmbito das três dimensões, mas permite detectar analiticamente incrementos numa dimensão e declínio noutras, além da incompatibilidade entre tipos diferentes de incrementos simultâneos. Trata-se, enfim, de uma definição estimuladora, porque aberta, não unilinear, multidimensional.

III. ESTÁDIOS E CRISES DA MODERNIZAÇÃO. — No estudo da Modernização recorreu-se a uma conceituação de uso bastante comum e consolidado nas ciências sociais, recentemente reapresentada com vigor em economia, que interpreta a evolução histórica segundo uma seqüência, mais ou menos rígida, de estádios. Após uma cuidadosa

Page 2: verbete modernização Norberto Bobbio - Dicionário de Política

MODERNIZAÇÃO 769

análise da história dos sistemas políticos ocidentais, alguns autores identificaram certos desafios fundamentais ou crises sistêmicas que, embora de modalidades e cursos diversos, todos os sistemas tinham aparentemente que enfrentar. Estas crises, sobre cujo número e sobre cujo melhor desenvolvimento não existe ainda um acordo completo, podem ser definidas e classificadas, segundo a tendência mais comum entre os autores como: crises de penetração, crises de integração, crises de identidade, crises de legitimidade, crises de participação e crises de distribuição. As crises de penetração e de integração se referem ao processo pelo qual surge um Estado mais ou menos centralizador. Este Estado procura expandir e reforçar a sua autoridade, penetrando nos vários setores da sociedade, exigindo e conseguindo para com o poder central a obediência anteriormente devida aos centros do poder local. As crises de penetração e de integração são dois desafios que poderíamos considerar de caráter estrutural, para os quais as respostas das autoridades centrais tendem a ser essencialmente estruturais. As autoridades centrais procurarão constituir uma burocracia estatal; recrutar um exército de provada lealdade e, especialmente, um corpo de polícia; unificar mercados e moedas e construir infra-estruturas viárias que facilitem as comunicações entre o centro e as periferias. As crises de identidade e de legitimidade se referem ao processo pelo qual os cidadãos chegam a obedecer às leis emanadas do Estado, a aceitá-las como justas e obrigatórias e a sentir-se parte da comunidade política. Estas duas crises dizem respeito, portanto, de um lado, e numa dimensão vertical, às relações dos cidadãos com as autoridades e, do outro lado, e numa dimensão horizontal, às relações entre os vários grupos sociais, econômicos, religiosos, étnicos e regionais. Foi através da solução destas duas crises que se chegou normalmente à formação do Estado-Nação. As crises de identidade e de legitimidade são desafios de caráter essencialmente cultural, para os quais as respostas das autoridades funcionalmente positivas tendem a ser de caráter cultural. A solução das crises de identidade será favorecida por uma política que vise à proteção dos direitos das minorias, pela igualdade no tratamento dos vários grupos (especialmente no que diz respeito ao recrutamento político) e por uma contínua produção de símbolos de caráter nacional. A solução da crise de legitimidade comportará a criação de mecanismos e dispositivos constitucionais adequados à representação dos vários grupos, mas concernentes sobretudo à consecução de um acordo fundamental sobre a natureza do Governo legítimo e sobre suas responsabilidades e

atribuições na superação das rupturas entre o centro e a periferia, entre Estado e Igreja, entre cidade e campo, entre indústria e agricultura. Mas, acima desses mecanismos, muitos autores frisam que aquilo que mais conta nesta fase é o estilo e o ethos do Governo.

A crise de participação se verifica quando se amplia o âmbito dos indivíduos ou dos grupos que intentam participar das opções políticas. As exigências de participação acontecem normalmente junto com importantes mudanças nos setores econômico e social, que geram novas necessidades. As respostas das autoridades a estas exigências podem consistir na concessão do direito de voto, de reunião, de associação, de liberdade de imprensa, na abolição do voto público e na instauração do princípio "um homem-um voto", na extensão do sufrágio a toda a comunidade, com exclusões baseadas somente no requisito da idade, e, enfim, na legitimação completa da oposição, incluindo até o seu acesso ao Governo. No processo de solução da crise de participação aparecem as primeiras organizações políticas permanentes como os partidos políticos e, em seguida, os grupos de interesse. A crise de distribuição, enfim, diz respeito às modalidades de uso dos poderes governamentais para efetuar transferência de riqueza entre os cidadãos e para distribuir bens, serviços, valores e oportunidades. As soluções possíveis desta crise são todas as intervenções que visam tornar operante e efetivo o princípio da igualdade de oportunidades, e, portanto, de modo especial, a instituição de um sistema escolar universal e gratuito, a criação de um sistema assistencial de saúde e aposentadoria generalizado, a instauração de um sistema de tributação progressiva e qualquer outra medida de eqüidistribuição da renda nacional.

Estas crises representam os desafios; foi respondendo a eles que os sistemas políticos ocidentais se modernizaram; as respostas aqui delineadas constituem apenas algumas das respostas possíveis. De fato, de um lado, não se pode esquecer que as respostas a cada uma das crises são condicionadas pela ordem anterior do sistema, sendo a base de ulteriores condicionamentos para as respostas às crises vindouras. De outro lado, a capacidade inovadora do homo politicus é grande e, portanto, não se podem excluir a priori respostas originais por parte dos sistemas que ainda não resolveram suas crises, nem inovações surpreendentes nas respostas aos desafios, certamente exigidas numa época que terá de enfrentar os problemas da possibilidade do suicídio atômico coletivo, da corrida à conquista dos espaços, da superpopulação e do empobrecimento do Terceiro Mundo.

Page 3: verbete modernização Norberto Bobbio - Dicionário de Política

770 MODERNIZAÇÃO

De modo particular, quatro fatores influenciam e

têm historicamente influenciado o curso da Modernização política. Em primeiro lugar, o tipo de estruturas e de cultura política tradicionais; em segundo lugar, o momento histórico em que teve início o processo de Modernização; em terceiro lugar, as características da liderança modernizadora; enfim, a seqüência em que se apresentaram as várias crises. Ainda não é possível apresentar generalizações empíricas solidamente documentadas acerca dos tipos de estruturas e de cultura política tradicionais que teriam melhores condições de assimilar e gerar mudanças políticas. Em geral, o que mais se acentua são as características da legitimidade, da autonomia e da eficiência das instituições políticas, e a flexibilidade e capacidade imitativa da cultura tradicional.

A Modernização política é um processo que implica a transferência do poder de uns grupos para outros e o uso do poder na introdução de inovações nos diversos setores da sociedade. Alguns autores têm frisado que existe uma certa tensão entre duas exigências opostas mas também necessárias da Modernização política. Essa tensão se verifica entre a centralização do poder nas autoridades centrais e a difusão das inovações na sociedade. Temos assim, de um lado, sistemas políticos com uma forte autoridade central, capazes de impor as mudanças necessárias, conquanto também de as obstaculizar e de a elas se opor tenazmente, mas que não são aptos a encorajar a criação de inovações entre os membros do sistema; de outro, sistemas políticos descentralizados, com autoridades menos fortes, onde a capacidade, inovadora pode prosperar, mas onde a aceitação e difusão das inovações pelos vários setores da sociedade é difícil, desigual e lenta.

O período em que a Modernização política começou é de relativa importância, especialmente porque deu grande vantagem aos seus iniciadores, permitindo-lhes definir e resolver os primeiros problemas, freqüentemente de crucial interesse, com o mínimo de pressões externas e em conformidade com as suas tradições, sem necessidade de obedecer à imposição forçada de modelos elaborados e experimentados alhures e sem a ânsia da concorrência. O período do início da Modernização política foi de notável importância não só para a estrutura da sociedade tradicional, como também para as diversas classes sociais e para a escolha de diversos tipos de organização política estadual. Eis o que se tem observado; nos países que, como a Inglaterra, França e Estados Unidos, se modernizaram prematuramente, de qualquer modo por meados do século XIX, e em que o processo de transferência do poder político dos proprietários fundiários para os empresários

industriais se deu sem abalos, se optou pelo caminho da democracia burguesa; países, como a Alemanha, o Japão e a Itália, em que a Modernização começou no fim do século XIX sob pressões externas e foi levada adiante por uma difícil aliança entre elites agrícolas, burocráticas e industriais, com a exclusão das massas da participação política, enveredaram pelas vias do fascismo; países, enfim, como a União Soviética e a China, em que a Modernização teve início somente no século XX e precisou da mobilização das massas camponesas contra os proprietários fundiários e as classes parasitárias urbanas, abrínram o caminho das revoluções comunistas (Moore, 1969).

Este assunto leva inevitavelmente ao estudo das características das lideranças modernizadoras, características que constituem uma variável importante na explicação do processo de formação de certos tipos de Governo, não de todos. Tipicamente, nos primeiros países a se modernizarem e, em geral, na Europa ocidental, o papel de guia foi desempenhado, embora de modos diferentes em cada país, pela burguesia, isto é, por uma nascente classe comercial e empresarial, em luta, de um lado, contra a aristocracia latifundiária e, de outro, contra os camponeses e o primeiro proletariado urbano e industrial. Os intelectuais, como tais, não tiveram um lugar privilegiado neste processo, cujo impulso vinha do setor industrial. Boa parte do processo de Modernização política da Europa ocidental poderia até ser vista pela lente conceptual da luta da burguesia contra outros grupos sociais com o fim de obter o predomínio econômico e o controle dos meios do poder político. Não é, portanto, exagerado afirmar que houve uma fase deste processo em que o Estado constituía apenas o comitê executivo dos interesses da burguesia.

É neste período e em decorrência da luta desencadeada pela burguesia que se verificam ou se agravam algumas rupturas no seio do sistema social. Uma tese influente e amplamente documentada faz remontar às discordâncias entre grupos sociais organizados a existência de quatro fissuras, ressaltando a incidência destas na institucionalização das estruturas políticas, no seu funcionamento, na expressão do conflito e na expressão do dissenso. Duas destas fissuras são conseqüência direta da revolução nacional e dizem respeito aos conflitos e às relações entre a cultura e as exigências do "centro" e entre a cultura e as reações de "periferia" — seja qual for o sentido em que se defina "periferia", tendo por base tanto as características étnicas, econômicas, religiosas e lingüísticas como geográficas — e ao conflito entre as tendências centralizadoras do

Page 4: verbete modernização Norberto Bobbio - Dicionário de Política

MODERNIZAÇÃO 771

Estado e a tentativa de preservação dos privilégios corporativistas por parte da Igreja. As outras duas são produto da Revolução Industrial e se referem ao conflito entre os interesses dos grandes proprietários fundiários e os interesses dos empresários, e ao conflito entre os proprietários e fornecedores de trabalho, de um lado, e os assalariados e oferecedores de mão-de-obra, do outro. O modo como estes conflitos são mediados e solucionados ou as fraturas sociais são recompostas, o modo como os conflitos se acumulam e sobrepõem ou as fraturas se agravam, se transformam em sistemas partidários que diferem substancialmente quer quanto ao papel desempenhado pela maioria, quer quanto à atividade e à legitimação da oposição.

Ainda através da lente conceptual da história da burguesia, a Modernização de tipo fascista pode ser vista como o tipo de Modernização que se verifica nos países onde a classe burguesa não dispõe de força suficiente para derrotar as elites agrárias tradicionais e tem de aliar-se a elas, aos burocratas e aos militares, para fazer prevalecer os próprios interesses. O elemento marcante deste tipo de Modernização é que ou se realiza do alto por obra de indivíduos unidos por um forte senso de sua missão e imbuídos por sentimentos de autoritarismo e de desprezo das massas, ou acaba por provocar um longo período de estagnação política, porque o conflito entre elites agrárias e elites industriais se resolve num compromisso prejudicial à população, usada como massa de manobra por ambos os grupos, mas substancialmente excluída da participação dos benefícios, embora mínimos, produzidos por este fraco ritmo de mobilização de recursos do país. Neste sistema, ou os intelectuais se conformam em desempenhar a tarefa de legitimar ideologicamente o regime, ou são simplesmente marginalizados. Com o sucesso das revoluções comunistas do século XX — a russa realizada predominantemente por uma união de intelectuais e operários da indústria, e a chinesa por intelectuais e camponeses — os intelectuais conquistam um papel dominante no processo de Modernização de seus países, embora com êxitos e fracassos, por entre humilhações e perseguições periódicas.

Hoje o debate sobre a classe ou o grupo que deve desempenhar as funções de lideranças nos países do Terceiro Mundo se concentra na possibilidade ou não de que ocorra o advento de uma classe média com forte espírito empresarial e impregnada de nacionalismo e populismo, que proceda, de um lado, à emancipação do país da dependência do capitalismo internacional e, do outro, saiba apelar para as massas operárias e camponesas, prometendo-lhes e realizando um

melhoramento substancial em suas condições de vida. Esta tese, vigorosamente contestada por muitos no plano da cultura da nova classe média e com base numa análise estrutural da sociedade em que ela atua, é contrabalançada pela tese que considera as revoluções camponesas, levadas a efeito mediante uma longa guerrilha, onde se temperam as energias e se formam os quadros dirigentes, a única via ainda aberta para a Modernização política econômica e social dos países do Terceiro Mundo. Além disso, pelo menos a julgar pela recente experiência da revolução cubana, parece que os intelectuais estão também destinados a assumir funções diretivas nas auspiciadas revoluções camponesas do fim do século XX.

Uma das vantagens dos primeiros países a se modernizarem foi a oportunidade que se lhes oferecia de poderem, em certo sentido, adiar as diversas crises e, especialmente, enfrentá-las numa seqüência não destrutiva. Convém frisar, a este respeito, a importância da emigração como válvula de segurança de alguns regimes, particularmente da Inglaterra, nos séculos XVIII e XIX; com a emigração, não somente se eliminava um certo surplus da população, mas se afastavam os dissidentes políticos, tornando mais homogênea a comunidade política e desativando alguns conflitos sócio-políticos de grande vulto. Hoje, ao invés, a emigração atua numa direção bem diferente e, sobretudo devido ao desnível de renda e de oportunidades, se resolve numa drenagem dos recursos intelectuais dos países do Terceiro Mundo para os países ocidentais. O chamado braindrain não só enriquece os países já mais avançados no setor da pesquisa científica, criando um novo círculo vicioso ao tornar ainda mais aliciantes as comunidades científicas dos países "maduros", essencialmente os Estados Unidos, mas empobrece, além disso, os países que mais precisariam de técnicos e de pesquisadores qualificados. Às vezes, porém, a fuga das camadas de técnicos e profissionais pode ser influenciada pelas próprias opções políticas dos líderes dos países do Terceiro Mundo, mas o aliciamento destes profissionais é, sem dúvida, uma forma sutil de manifestação do imperialismo. A conseqüência política relevante desta drenagem das energias intelectuais é que aos países do Terceiro Mundo vem a faltar aquela camada de indivíduos que, historicamente, têm sido os mais interessados na instauração de formas de organização política e econômica comumente definidas como modernas.

No que diz respeito mais especificamente às crises, o problema central está na sua acumulação, nos modos como se apresentam, são enfrentadas e solucionadas. Sobretudo a acumulação das crises

Page 5: verbete modernização Norberto Bobbio - Dicionário de Política

772 MODERNIZAÇÃO

de identidade, legitimidade, participação e distribuição, cria situações muito complicadas. Se, de fato, a ampliação da participação política, entendida essencialmente como sufrágio universal, é exigida e concedida em sistemas políticos em que ainda não foi definido quem faz parte da comunidade política e quem está excluído, nem quais são os procedimentos aceitos para a solução das crises, as conseqüências prováveis são, de um lado, tendências separatistas dos grupos que se consideram prejudicados, de outro, mudanças contínuas e bruscas nos dispositivos constitucionais. Se, depois, a crise de distribuição se apresenta antes que se tenha verificado um desenvolvimento econômico bastante consistente, o atendimento prematuro às exigências de distribuição provocará graves desequilíbrios na formação dos investimentos e, conseqüentemente, nas sucessivas possibilidades de produzir desenvolvimento econômico e de distribuir os resultados. Entre as limitadas generalizações de uma certa validade, a que sustenta a necessidade de que a compressão dos consumos e um alto índice de investimentos sejam mantidos até se atingir o desenvolvimento autopropulsivo, e que, em conseqüência, subordina a solução da crise de distribuição à arrancada industrial, parece uma das mais fundadas. No que respeita, pelo contrário, à participação política, considerando que a Modernização é um processo de constante adaptação e de contínuas inovações, não é absolutamente ousado prever o aparecimento de novas formas de participação, especialmente em setores limitados e em matérias específicas pertinentes à distribuição do poder, ao seu exercício e ao seu controle.

A Modernização política não acontece e nem pode. acontecer in vacuo, isto é, sem entrar em contato com a Modernização dos outros setores e, em particular, com a Modernização econômica e social. Este aspecto do problema foi claramente percebido por quase todos os estudiosos, entre os quais, porém, surgiram tendências diferentes a respeito do papel específico da esfera política no processo global de Modernização. Existem a este propósito três posições. Há aqueles que defendem a autonomia da esfera política das esferas econômicas e social e que, portanto, analisam as mudanças no interior da esfera política, procurando descobrir os seus efeitos na Modernização sócio-econômica e os seus reflexos na estrutura e na cultura política das mudanças nas esferas econômica e social. Esta abordagem parece particularmente frutuosa, embora sua aplicação exija notáveis esforços analíticos para enuclear tão claramente quanto possível as variáveis em exame e não tenha sido muito usada até agora. Existem, em seguida, os que sustentam a dependência da

esfera política das esferas econômica e social. É a clássica posição marxista, adaptada e reformulada em formas variadas, que considera as mudanças na superestrutura política como determinadas ou condicionadas pelas mudanças nas relações sociais de produção. Paradoxalmente, verifica-se uma convergência da tese marxista, na sua forma mais extrema, com a posição fortemente conservadora e de defesa do status quo daqueles que ressaltam as "leis da economia" como algo que não pode nem deve ser contaminado por intervenções de natureza política. Esta é também a perspectiva de muitos estudiosos comportamentistas (v. COMPORTAMENTISMO) que examinam as instituições políticas através de lentes conceptuais provindas da economia, da psicologia e da sociologia. Útil em si, a abordagem neomarxista leva, porém, a acentuar e a privilegiar só um aspecto da mutável realidade dos países em via de Modernização e, na prática, dificilmente consegue dar conta das mudanças que acontecem em países tais como a China, onde é teorizada "a primazia da política". A terceira posição constitui a negação da perspectiva marxista e afirma, exatamente, o predomínio da esfera política sobre as outras esferas. Curiosamente, os antecedentes históricos e lógicos desta corrente de pensamento se encontram em alguns elementos da teoria leninista da conquista e do exercício do poder num país atrasado, segundo os quais para a Modernização da Rússia e a instauração do socialismo seriam suficientes "o poder dos sovietes mais a eletrificação", e na constante acentuação do poder político como meio de criação de novas relações sociais que constitui uma linha relevante do pensamento de Mao Tsé-Tung. A posição aqui assumida é que se deve partir para uma abordagem mais fecunda e, em conclusão, mais compreensiva, da autonomia da esfera política, e que é necessário analisar a Modernização de um sistema globalmente através das interações da esfera política com as esferas econômica e social.

IV. MODERNIZAÇÃO ECONÔMICA. — Define-se como Modernização econômica o processo pelo qual a organização da esfera econômica de um determinado sistema se torna mais racional e mais eficiente. A racionalidade é medida com base na correspondência dos meios usados em relação aos fins que se pretendem atingir. A eficiência é medida com base em três índices: o produto nacional bruto, a renda per capita e o índice de crescimento de produção per capita. Enquanto os primeiros dois índices retratam a situação de uma economia num determinado tempo e, portanto, são estáticos, o terceiro índice

Page 6: verbete modernização Norberto Bobbio - Dicionário de Política

MODERNIZAÇÃO 773

filma a situação e permite colher o próprio processo de desenvolvimento e do crescimento da economia, comparar várias economias e prever suas possibilidades de desenvolvimento sucessivo. Para obter a qualificação de moderna, uma economia tem que passar por várias fases. Embora a teoria dos estádios do desenvolvimento econômico (Rostow, 1962) tenha sido freqüentemente e sob diversas formas justamente criticada, ela fornece uma fácil e estimulante síntese do processo de Modernização econômica. Segundo Rostow este processo se desenvolve a partir da sociedade tradicional com a economia de subsistência, através da criação dos requisitos para a arrancada, dos quais o mais importante é a acumulação primitiva; a arrancada representa uma verdadeira viragem, um salto qualitativo centrado na industrialização implantada. Segue-se depois a passagem à maturidade, que é o estádio em que se consolidam as mudanças estruturais decorrentes da industrialização e se prove à eliminação dos desequilíbrios setoriais. Vem, enfim, a idade do consumo de massa em que o setor econômico, antes orientado somente para a expansão do setor produtivo, especialmente dos bens instrumentais, é ajustado à produção crescente de bens de consumo. Apesar de os estádios acusarem modalidades e tempos diferentes (seguindo, por exemplo, a lei do desenvolvimento combinado formulada por Trotski, que sustenta para os países subdesenvolvidos a necessidade e a possibilidade de superar alguns estádios, como, por exemplo, o estádio capitalista, graças ao aproveitamento dos conhecimentos já adquiridos em outros países), sobretudo no que se refere à adoção e à aplicação das inovações tecnológicas, a idéia central de que é preciso passar necessariamente de um estádio de forte compressão de consumos, de notáveis poupanças e de grandes investimentos, para uma fase de desenvolvimento econômico autopropulsivo e de expansão de consumos, não parece ser posta em dúvida.

A Modernização econômica, pois, conduz à sociedade altamente industrializada, mas o processo que ela implica e as mudanças que instiga, são muito mais vastas do que as provocadas pela industrialização. O tema, porém, que interessa de modo especial os estudiosos da Modernização, se refere ao tipo de estruturas políticas que facilita este processo, às contribuições que estas estruturas podem trazer para a sua evolução rápida e equilibrada, e aos reflexos que a Modernização econômica tem na esfera política. Historicamente se verificaram três fases. A primeira caracterizada pelo laissez faire e por uma série de ajustamentos quase totalmente indepen-

dentes da intervenção do Estado na esfera econômica, e compendiada na experiência inglesa. Esta primeira fase caracteriza-se, além disso, pela ausência de organizações formais de operários. Com modalidades ligeiramente diferentes, que dependem da grande disponibilidade de terras e da imigração maciça — de grande importância para o mercado de trabalho e para as lutas operárias — se desenvolve a experiência estadunidense. Uma corrente revisionista de historiadores da economia pôs em relevo que, especialmente no setor do crédito bancário e dos investimentos, o Governo estadunidense desempenhou um papel bem mais importante do que o imaginado pela ideologia americana predominante, individualista e liberalista. Numa segunda fase, a Modernização econômica é favorecida e, freqüentemente, estimulada por intervenções conscientes do Estado, como na Alemanha de Bismarck e no Japão de Meiji. A potência econômica é considerada como um dos meios, o mais importante, do exercício da atividade política, tanto que se assiste a uma substancial subordinação da esfera econômica à esfera política, enquanto, nos casos inglês e estadunidense, se havia desenvolvido, entre poder político e poder econômico, uma longa série de interações de êxito variável, embora freqüentemente favorável aos interesses econômicos. Na terceira fase, representada não somente pelos regimes comunistas revolucionários, como a União Soviética e a China, mas também pela maior parte dos países em via de desenvolvimento, inclusive a Índia, o próprio poder político se torna empresário, quer por causa da fraqueza, corrupção ou inexistência de uma classe empresarial nacional, quer devido aos fins que ele se propõe, não somente de um rápido ritmo de desenvolvimento, mas também de um desenvolvimento programado segundo diretrizes de tipo socialista, em sentido lato. O Estado empresário, tanto na sua fase mais branda do fim do século XIX, como na sua fase mais forte nos países modernizantes do século XX, tende a controlar com dureza as organizações dos trabalhadores, negando-lhes autonomia e possibilidades de negociação e participação no processo decisório, acabando, assim, por impregnar de autoritarismo o funcionamento da máquina estatal.

Nos Estados ex-coloniais, a dialética entre as exigências da Modernização econômica — com a conseqüente compressão mais ou menos prolongada dos consumos à custa, principalmente, da classe operária e dos camponeses — e as exigências de participação política e de distribuição de bens e serviços, se apresenta numa forma aguda e até agora não encontrou uma solução

Page 7: verbete modernização Norberto Bobbio - Dicionário de Política

774 MODERNIZAÇÃO

adequada. Em geral, pois, o problema central da Modernização econômica se refere, para o politólogo, à contribuição que o poder político pode oferecer para uma melhor organização da esfera econômica, especialmente em cada um dos estádios do desenvolvimento, e à capacidade que as estruturas políticas têm de abrandar, mediar, ou resolver os contrastes entre as classes sociais, produzidos pela própria Modernização econômica (Holt e Turner, 1966).

V. MODERNIZAÇÃO SOCIAL. — A par das transformações que se originam na esfera econômica, influenciadas por elas e a elas ligadas, ocorrem também profundas transformações na esfera social. A Modernização econômica que visa a uma melhor organização das capacidades e das potencialidades produtivas de uma sociedade envolve, antes de tudo, um êxodo mais ou menos maciço de mão-de-obra excedente dos campos, mão-de-obra expulsa em parte pela mecanização do setor agrícola, em parte atraída pelas nascentes industriais urbanas. Criam-se, assim, enormes conglomerados urbanos. A necessidade de saber manejar máquinas complexas e de prover a administração de grandes empresas torna necessário o aumento da alfabetização para que se torne possível uma mais rápida, mais segura e mais ampla aquisição dos conhecimentos indispensáveis. Acrescente-se que a alfabetização adquire também um significado político próprio. "A exigência de uma instrução elementar é comum a todas as posições políticas: é apoiada pelos conservadores, que temem a indisciplina inata do povo, indisciplina que é preciso conter com a instrução sobre os fundamentos religiosos, inculcando, dessa forma, a fidelidade ao rei e à pátria; os liberais sustentam que o Estado nacional exige cidadãos educados pelos órgãos do Estado; os populistas afirmam que as massas populares que contribuem para a criação da riqueza do país deveriam participar das vantagens da civilização" (Bendix, 1969, 114).

O processo de alfabetização é acompanhado e favorecido pelo desenvolvimento dos meios de comunicação de massa, só que relativamente mais tardio nos países da Europa ocidental, pois que os primeiros exemplos de imprensa "popular" remontam, na Inglaterra, aos começos do século XIX. Em seguida, o uso dos meios de comunicação de massa constituiu uma resposta, por um lado, aos esforços dos governantes em comunicar as decisões políticas aos governados da maneira mais rápida e compreensível, e em conseguir captar os desiderata dos governados através da imprensa da oposição ou não; por

outro lado, ele foi ocasionado pela alfabetização generalizada e por um relativo aumento do tempo livre. As exigências funcionais da sociedade, especialmente no que diz respeito ao trabalho nas fábricas e a uma melhor utilização dos recursos humanos e materiais, facilitam paulatinamente os deslocamentos não só entre o campo e a cidade, mas também entre os diversos setores de atividades, estimulando consideravelmente a mobilidade geográfica. Um dos efeitos mais importantes desse aumento de mobilidade geográfica e das exigências do trabalhe nas fábricas está na ruptura dos esquemas tradicionais de estratificação e na revelação, embora com limitações por vezes impressionantes, de um notável grau de mobilidade social que parece ser já característica comum das sociedades industriais avançadas. No que concerne à estratificação, a Modernização sócio-econômica exige e provoca a passagem de uma estratificação rígida, baseada em vínculos de casta, para modelos de estratificação alicerçados inicialmente em ligames muito estreitos e firmes, tais como os das classes de tipo marxista, depois para modelos de estratificação nos quais os ligames entre as classes se tornam flexíveis e variados e, enfim, para uma estratificação que produz o agrupamento dos indivíduos segundo as funções que eles desempenham na sociedade. Este último modelo de estratificação, que assenta nas qualidades pessoais e na contribuição efetiva para o funcionamento da sociedade e que tem como legitimação uma ideologia da adequação dos meios aos fins, definida freqüentemente como ideologia da ciência, seria tão rígido quanto o da estratificação baseada nas castas, mas poderia ser mitigado, com a aplicação do princípio da igualdade de oportunidades da forma mais compreensível, não só incluindo todos os membros da sociedade, mas também concedendo uma vantagem inicial aos mais desfavorecidos.

As transformações ocorridas nos modelos de estratificação têm, naturalmente, uma alta incidência nas transformações que ocorrem nos vários tipos de representação política (Apter, 1968). Dessa forma, enquanto nos sistemas com estratificação de casta a representação política é muito limitada e reflete somente os interesses dos grupos restritos que giram ao redor dos governantes, à medida que se vai processando a erosão dos ligames rígidos das castas e das classes de tipo marxista, se chega a uma variada representação, baseada inicialmente no predomínio dos interesses econômicos, em seguida no princípio "um homem — um voto", depois, na era atual, numa mistura da representação popular

Page 8: verbete modernização Norberto Bobbio - Dicionário de Política

MODERNIZAÇÃO 775

com a representação funcional, fundada na primazia em certos setores, dos expertos da área (caso típico: os comitês para o planejamento econômico).

VI. VALORES E VARIÁVEIS ESTRUTURAIS. — Nenhuma reflexão sobre a Modernização pode fugir de uma análise dos valores, das tendências, das atitudes e das motivações de cada indivíduo e dos grupos que podem influir positiva ou negativamente na aceitação e na produção de novas formas de agir social. O ponto de partida obrigatório para tal reflexão é constituído pela análise que Weber fez da relação entre ética protestante e espírito do capitalismo, interpretada não como uma relação de causa e efeito, mas como identificação da correlação e do condicionamento de certos valores — o ascetismo individual, a procura do absoluto na atividade mundana, a ética do trabalho — no surgimento de um novo sistema social. De acordo com o espírito weberiano, a análise pode ser estendida à individualização das capacidades inovadoras e transformadoras que possuem algumas religiões e os sistemas culturais tradicionais. Do estudo weberiano da constelação de valores próprios do protestantismo pré-capitalista (e que outros encontraram, por exemplo, no xintoísmo japonês) se passou, em seguida, à procura de um único valor como mola de Modernização sócio-econômico e política. As explicações monofatoriais da Modernização, que tiveram maior ressonância recentemente, puseram em relevo a procura do sucesso, o achievement need (McClelland, 1961) e a empatia (Lerner, 1958), isto é, a capacidade psíquica de identificar-se com uma outra pessoa, de conseguir projetar-se nos papéis desempenhados por outros indivíduos. Afirma-se que a empatia é o pressuposto de mobilidade, porque somente quem consegue imaginar o próprio comportamento em papéis, circunstâncias e localidades diversas dos habituais se empenhará em atingir a posição imaginada, fazendo progredir com seus esforços a própria sociedade. Da descoberta da existência de valores correlatos à Modernização ou em relação de causa e efeito com ela, se passou ao estudo dos modos como esses valores são criados, transmitidos e modificados e, portanto, a uma investigação cada vez mais complexa e sofisticada dos processos de socialização primária que não excluem a priori o peso das estruturas políticas e sociais.

A maior parte dos estudos dedicados aos fenômenos de transição de sociedades tradicionais para sociedades modernas se serviu largamente da conhecida e difundida formulação de uma

teoria da ação social efetuada por Talcott Parsons na esteira da análise weberiana. A teoria parsoniana se apóia em cinco pares de variáveis estruturais apresentadas de forma dicotômica: adscrição-realização, particularismo-universalisrao, difusão-especificidade, afetividade-neutralidade afetiva, tendência para o eu-orientação para a coletividade: as primeiras indicam as características do comportamento nas sociedades tradicionais e as segundas, as características do comportamento nas sociedades modernas. Nas sociedades tradicionais, em particular, o status repousa em considerações adscritivas e hereditárias, nas sociedades modernas assenta em considerações de mérito; nas primeiras avalia-se pelo que a pessoa é, nas segundas pelo que a pessoa faz; nas primeiras, o sistema das relações de papel é funcionalmente difuso no sentido de que todos os aspectos do comportamento podem ser considerados relevantes para qualquer relação; nas segundas, estas relações são funcionalmente específicas, isto é, limitadas às considerações essenciais para manter a eficiência do sistema. A base normativa das relações sociais pode prever a consideração do objeto social sob um ponto de vista particular, nas primeiras, e com base em critérios gerais ou universais nas segundas. O sujeito age com base em considerações de afetividade, quando procura a satisfação imediata das próprias necessidades individuais; de neutralidade afetiva, quando exerce um autocontrole em vista de considerações de longo alcance. O sujeito pode perseguir exclusivamente o próprio interesse ou visar interesses do grupo a que pertence.

Estas variáveis estruturais dicotômicas foram objeto de várias críticas. De fato elas não devem ser consideradas como dicotomias mas como pólos de um continuum. É indispensável, além disso, acentuar o fato de que nenhuma sociedade é completamente moderna nem completamente tradicional e de que em todas as sociedades se encontram indivíduos que agem segundo considerações de tipo moderno e outros que agem segundo considerações de tipo tradicional; além disso, o mesmo indivíduo, em suas múltiplas relações sociais, pode comportar-se, de cada vez, baseando-se em considerações de tipo diferente. Tudo o que foi dito para a cultura política pode, portanto, ser estendido à análise da ação social: "todos os sistemas políticos são, do ponto de vista da cultura política, sistemas 'mistos'. Não existem culturas e estruturas 'totalmente modernas' no sentido da racionalidade, nem 'totalmente primitivas' no sentido da tradicional idade. Elas diferem, quer pelo relativo predomínio de uma sobre

Page 9: verbete modernização Norberto Bobbio - Dicionário de Política

776 MONARQUIA

a outra, quer pelo tipo de mistura dos dois componentes" (Almond e Coleman, 1960, 11).

VII. CONCLUSÃO. — Concluindo, a Modernização é um fenômeno complexo, de amplo fôlego e multidimensional, que acontece em períodos de tempo diferentes e em todos os setores do sistema social. Portanto, para que a sua compreensão seja completa e exata, exige-se uma atenção constante às interações entre os vários setores e o uso de métodos múltiplos e abordagens interdisciplinares. Os dois temas que emergem no estudo da Modernização são: de um lado, a tentativa do homem em controlar a natureza e sujeitá-la às suas necessidades, do outro, o esforço perene de ampliar o âmbito das opções sociais e políticas para o maior número de pessoas. A Modernização é a história destas tentativas e destes esforços.

BIBLIOGRAFIA. - The politics of the developing areas, ao cuidado de G. A. ALMOND e J. S. COLEMAN. Princeton University Press. Princeton 1960; Crisis, choice and change. Historical studies of political development. ao cuidado de G. A. ALMOND, S. C. FLANAGAN e R. J. MUNDT. Little. Brown. and Co.. Boston 1973; D. E. APTER, Some conceptual approaches to the study of modernization. Prentice Hall, Englewood Cliffs 1968; Id., The politics of modernization. University of Chicago Press. Chicago 1965; R. BENDIX. Stato nazionale e integrazione di classe (1964). Laterza, Bari 1969; L. BINDER ET AL., Crises and sequences in political development, Princeton University Press. Princeton 1971; C. E. BLACK, La dinamica della modernizzazione (1966), Istituto Librario Internazionale, Milano 1971; G. GERMANI, Sociologia della modernizzazione. Laterza. Bari 1971; Crises of political development in Europe and the United States, ao cuidado de R. GREW, Princeton University Press. Princeton 1978; R. T. HOLT e J. E. TURNER, The political basis of economic development. Van Nostrand, Princeton 1966; S. P. HUNTINGTON. Ordinamento politico e mutamento sociale (1968). Franco Angeli, Milano 1975; S. P. HUNTINGTON e J. I. DOMINGUEZ, Political development, in Handbook of political science, ao cuidado de F. I. GREENSTEIN e N. W. POLSBY, Addison-Wesley, Reading Mass. 1975, vol. 3, pp. 1-114; A. INKELES e D. H. SMITH. Becoming modern. Harvard University Press. Cambridge 1974; D. LERNER, The passing of iraditional society. Modernizing the Middle East. The Free Press. Glencoe 1958; D. MCCLELLAND, The archieving society. Van Nostrand, Princeton 1961; B. MOORE. Le origini sociali della dittatura e della democrazia (1966), Einaudi, Torino 1969; G. O'DONNELL. Modernización y autoritarismo. Paidós. Buenos Aires 1972; A. F. K. ORGANSKI, Le forme dello sviluppo político (1965). Laterza. Bari 1970; G. PASQUINO. Modernizzazione e sviluppo político, Il Mulino, Bologna 1970; Political culture and political development. ao cuidado de L. W. PYE e S. VERBA.

Princeton University Press. Princeton 1975; W. W. ROSTOW, Gli stadi dello sviluppo economico (1960), Einaudi, Torino 1962; The formation of national States in Western Europe. ao cuidado de C. TILLY. Princeton University Press. Princeton 1975.

[GIANFRANCO PASQUINO]

Monarquia.

I. INDICAÇÕES DE ESTRUTURAÇÃO GERAL. — Entende-se comumente por Monarquia aquele sistema de dirigir a res pubblica que se centraliza estavelmente numa só pessoa investida de poderes especialíssimos, exatamente monárquicos, que a colocam claramente acima de todo o conjunto dos governados. Obviamente, não é suficiente o Governo monocrático para se ter Monarquia, nem a posse da totalidade dos poderes do Estado: de fato, pode haver Governo monopessoal não monárquico (o chefe de um Estado republicano de regime "presidencial") e regime monárquico desprovido da efetividade dos poderes de Governo (a Monarquia "constitucional").

Por Monarquia, portanto, se entende — na complexa formação histórica deste instituto — um regime substancial mas não exclusivamente monopessoal, baseado no consenso, geralmente fundado em bases hereditárias e dotado daquelas atribuições que a tradição define com o termo de soberania. Um conjunto de características de origem histórica e tradicional modela a Monarquia nos diversos tempos e nas diversas experiências locais e territoriais: há, porém, uma linha de tendência comum a todos os fenômenos de Monarquia no tempo: a tendência a um progressivo crescimento e centralização do poder nas mãos do monarca.

A simplicidade e a efetiva eficácia histórica do instituto explicam o seu extraordinário sucesso no tempo, tanto que as experiências estatais européias que se conhecem, todas, tiveram praticamente como matriz e fundamento a Monarquia: de fato, onde o Governo se identificou com uma Monarquia nacional, realizou uma obra substancialmente definitiva até hoje.

A definição das características essenciais da Monarquia não é, portanto, única; para se ter um regime monárquico é necessário a existência de uma pessoa estável no vértice da organização estatal com as características de perpetuidade e de irrevocabilidade: o monarca é tal desde o momento de sua elevação ao trono até sua morte, exceto o caso de voluntária abdicação. Para expulsá-lo do poder é preciso uma verdadeira revolução.