VELHOS AMERÍNDIOS, NOVOS EUROPEUS: A (RE)INVENÇÃO DO ... · Revista Latino-Americana de...
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VELHOS AMERÍNDIOS, NOVOS EUROPEUS: A (RE)INVENÇÃO DO DISCURSO
DOS VIAJANTES NA AMÉRICA
OLD AMERINDIANS, NEW EUROPEANS: THE (RE)INVENTION OF THE
TRAVELERS DISCOURSE IN AMERICA
Bruno Campos Rodrigues
Resumo: A formação da identidade ocidental passou por um processo de construção discursiva
que moldou historicamente o modo de referir e se relacionar com seus não-semelhantes, e,
portanto, de projetar uma noção de alteridade. Ambas a identidade e a alteridade ocidental se
modificaram e se reinventaram através dos séculos para que fossem possíveis a apreensão de
novos elementos culturais e a expansão do repertório simbólico da cultura. A proposta do
presente artigo é realizar uma análise da construção destes discursos e categorias nos séculos
XV-XVI sob a luz de sujeitos que participaram ativamente de sua elaboração: os viajantes.
Pretendemos traçar uma linha de compreensão, utilizando a teoria dos contextos de Roy
Wagner, entre a invenção do discurso ocidental sobre a identidade e a sua reinvenção a partir
das novas relações estabelecidas na América. Pretendemos ilustrar o caso com uma análise da
relación de descubrimiento de Gaspar de Carvajal (1542) no Rio Amazonas. Nossa hipótese é
a de que o discurso sobre a identidade ocidental se reinventou em contato com as populações
ameríndias e que estes discursos colaboraram para configurar novas quadros e relações de
identidade e alteridade.
Palavras-chave: Viajantes. Alteridade. Discurso,
Abstract: The formation of Western identity has undergone a process of discursive
construction that historically shaped the way of referring and relating to its non-alike, and
therefore, projecting a notion of alterity. Both the identity and the alterity of the West have
changed and reinvented themselves through the centuries to make possible the apprehension of
new cultural elements and the expansion of the symbolic repertoire of culture. The purpose of
this article is to analyze the construction of these discourses and categories in the fifteenth and
sixteenth centuries in the light of subjects who participated actively in its elaboration: the
travelers. We intend to draw a line of understanding, using Roy Wagner's theory of contexts,
between the invention of Western discourse on identity and its reinvention from the new
relations established in America. We intend to illustrate that with an analysis of the relación de
Mestrando em História pela PUCRS, graduado bacharel pela mesma instituição, integra o Laboratório de
Pesquisas em Documentação Escrita (LAPDESC-PUCRS) e tem desenvolvido pesquisas nos seguintes temas:
discurso dos viajantes e missionários na América, mediação cultural, representação da alteridade, produção e
circulação de conhecimento no século XVIII e corpo e práticas corporais indígenas.
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descubrimiento of Gaspar de Carvajal (1542) in the Amazon River. Our hypothesis is that the
discourse about the western identity have been reinvented entering in contact with the
Amerindian people and that these discourses collaborated to configure new frame of epistemic
violence.
Keywords: Travelers. Alterity. Discourse.
Introdução
Lo favorable y lo adverso, lo blanco y lo negro, toda es una y la
misma cosa; todo es pábulo, nada es veneno, porque, dócil al
deseo, la realidad se transfigura para que brille suprema la verdad
creída.
(O’GORMAN, 1958, p. 33)
Em 1958, o historiador mexicano Edmundo O’Gorman desconstruía o mito do
“descobrimento” da América argumentando que o momento da chegada dos europeus à
América (e, inclusive, ou principalmente, o processo anterior ao evento) foi um processo de
invenção que representou a confluência de diversos universos simbólicos construídos
historicamente. A América dos séculos XV-XVI foi palco de um processo de construção
discursiva único porque caracterizou, em primeiro lugar, a verificação de um imaginário
europeu construído desde o medievo, seja de relatos de viajantes a terras recônditas ou resultado
da formação da mitologia cristã, mas também da recuperação de um repertório referencial da
antiguidade, trazida à tona com o Renascimento; e projetada no exterior, ou seja, na alteridade
ocidental, consolidada inicialmente no Oriente, nas Índias e, a partir do século XV, na América.
Em segundo lugar, este período caracteriza um espaço privilegiado de análise do contato e da
produção discursiva, pois evidencia um momento de reinvenção da identidade ocidental e suas
relações com a alteridade, apresentadas em um discurso que fala do outro para falar do nós
(AGNOLIN, 2007), como analisaremos mais adiante.
O discurso é uma invenção necessária para a projeção de uma cultura frente ao estranho.
É através dele que se expressam as formas de perceber e conhecer os outros e a si mesmo. O
discurso não pode ser tomado como uma retórica acabada onde são organizados os
conhecimentos e as percepções sobre diferentes temáticas, mas sim como um repertório em
constante mudança e expansão que se adapta e reinventa, mobilizando e incluindo elementos
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de acordo com a conjuntura e com as relações, tanto intra-cultural quanto inter-cultural, que são
os postulados, ou os pressupostos, do discurso. Isto é dizer que o discurso só existe em relação,
ele sempre se refere sobre algo ou alguém, e para algo ou alguém. Como então, o discurso de
representação da alteridade ocidental se transfigurou nas relações com os ameríndios, de
maneira a reconfigurar a própria ideia de assimilação e percepção de si mesmo a partir dessas
relações?
Este estudo foi dividido em quatro partes que pretendem desenvolver a hipótese de como
os discursos dos viajantes se reconfiguraram através do contato com as sociedades ameríndias,
que representaram uma alteridade muito semelhante (e, portanto, uma ameaça) à identidade
ocidental, traçando estratégias de apreensão (e dominação) dessa alteridade. A primeira parte
pretende realizar um panorama sobre os viajantes no Ocidente analisando a constituição dos
repertórios referenciais mobilizados por estes em seus relatos; a segunda parte é uma tentativa
de entender como se constroem estes discursos através da teoria dos contextos de Roy Wagner,
e de que maneira eles adaptam e expandem seus repertório necessariamente em relação com o
outro; a terceira parte pretende ilustrar o discurso dos viajantes na América a partir da relación
de descubrimiento de Gaspar de Carvajal (1542) e sua representação da alteridade; a quarta
parte é uma reflexão sobre como o exercício de narração e tradução dos viajantes se constituiu
como uma ferramenta da identidade predatória, que veio a ser o Ocidente. Nossa hipótese é a
de que o discurso ocidental sobre a identidade dos sujeitos do Velho Mundo se reinventou ao
inventar uma nova alteridade, que são as populações do Novo Mundo, que estes discursos
representam os conflitos nos repertórios referenciais da Europa na época, e que estas novas
relações consistiram nos instrumentos patentes de uma auto-percepção moderna do Ocidente.
Do discurso do viajante ao viajante do discurso
O viajante constitui, historicamente, um ator privilegiado e de grande importância para
a análise da matriz identidade/alteridade, devido, justamente, ao seu amplo trânsito por distintos
imaginários e pela construção de perspectivas intermédias entre estes imaginários e de
traduções culturais. Podemos considerá-los, portanto, peças chave na construção discursiva
identitária sobre uma cultura, assim como materializam os meios inter-relacionais dessa cultura
com outras. O imaginário “diz respeito ao processo pelo qual ocorre a percepção e a formação
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da totalidade das relações humanas” (ROSA, 2015, p. 259), ou seja, é o eixo através do qual se
organiza os discursos sobre o conhecimento, política, literatura, estética e a formação de
identidades.
Desde a Odisseia, de Homero (GIUCCI, 1992), o viajante é construído em cima de uma
alteridade representada por uma “natureza” selvagem a ser dominada. A viagem de retorno a
Ítaca simboliza o viajante exemplar que sai vitorioso contra os monstros e as adversidades
pertencentes a natureza devido a suas virtudes – inteligência, coragem e a perseverança para
retornar a casa –, porém não significa um mero retorno à pátria, mas também, e sobretudo, um
triunfo contra a natureza. No final da viagem o nome e os feitos de Ulisses estão gravados na
terra e, é claro, no papel (GIUCCI, 1992). Desde então, podemos verificar a criação de um
modelo de percepção dicotômica sobre o mundo, a cultura e a natureza em eterno contraste e
guerra.
Estas categorias, fundamentais para compreender como o Ocidente se apresenta e como
é representado textualmente, são manipuladas e mobilizadas historicamente de acordo com os
interesses de sua época. Podemos ver, por exemplo, essas mesmas ideias de natureza
contraposta à cultura no viajante da Divina comédia de Dante Alighieri (GIUCCI, 1992), que é
condenado ao Inferno por desafiar os limites da natureza impostos por Deus e atravessar os
pilares de Hércules. Neste caso, o viajante se inclui no discurso da mitologia bíblica que não
pode conceber um mundo alternativo ao universo cristão, natural. O mundo que se opõe a este
marco se configura no inumano, nos seres monstruosos de terras ignotas, esquecidas por Deus,1
e que assim devem permanecer para o bem da sociedade. Para assegurar a estabilidade do
mundo conhecido, bíblico e cristão, são estabelecidos marcos divinos que separam a cultura da
natureza e a necessidade do ocidente de impor limites ao viajante curioso se consolida na
danação de Dante no inferno (GIUCCI, 1992).
Ambas as narrativas criam um viajante que representa a aspiração humana por
conhecimento, por desbravar o desconhecido, por novas experiências – condições necessárias
para a construção da identidade – e que nos permitem observar através de seus discursos as
condições históricas de sua elaboração, ou seja, o repertório referencial do imaginário que os
inventa: “A Europa cria, assim, uma identidade cultural própria (o “nós”) pondo-se em contraste
1 Para um bestiário de monstros mitológicos na época das grandes navegações ver: DEL PRIORE, 2000.
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com todos aqueles não-europeus que assumem significado justamente em função dessa
hegemonia ocidental” (AGNOLIN, 2007, p. 526).
Propomos a observação dos séculos XV-XVI, recorte cronológico de nossa análise,
quando repertórios simbólicos distintos vão se chocar radicalmente, produzindo e modificando
estruturas das quais os viajantes e seus discursos participam ativamente. Antes de investigarmos
a reinvenção dos discursos ocidentais em si, frente a uma nova e assustadora alteridade
ameríndia, é importante que nos detenhamos em duas questões que permeiam as mudanças
operadas nas grandes navegações e que reconfiguram ideias e pensamentos no seio da Europa
da Renascença: uma, de caráter mais individual dos viajantes, que diz respeito aos seus
sentimentos e motivações, que está associada à segunda, referente a uma demanda da
conjuntura política e econômica do período das grandes navegações.
A primeira diz respeito a uma categoria de análise que, para Leyla Perrone-Moises
(1994), foi negligenciada pela historiografia, predominantemente econômica, das grandes
navegações e da colonialidade, que é a da curiosidade. Este sentimento, tido como inato ao ser
humano desde Homero, que está presente em todas as narrativas dos viajantes ocidentais,
promove empresas das mais perigosas, inspira os relatos e as descrições do distante insólito e
fomenta, no imaginário europeu, a ideia do distante maravilhoso, raro, precioso, perigoso e
recompensador. Maravilhoso este que “se movimenta, fluidamente, entre a realidade e o mito,
apropriando-se de ambos. Mais que se alinhar com uma ou com o outro, funde ambas as
categorias: é uma forma de narrar e de absorver imagens” (GIUCCI, 1992, p. 14). Se as
aspirações econômicas e o desejo de enriquecimento motivaram as explorações e as conquistas,
a sede de conhecimento e a curiosidade são um eixo fundamental para compreendermos os
viajantes.2 Estes sujeitos consolidam as vontades de conhecer da sociedade que pertencem por
meio da experiência de se colocar em contraste com o outro.
Condenada pela Igreja Católica durante todo o medievo (recordamos o inferno de
Dante), a curiosidade no século XV se apresenta como um paradoxo perigoso para o Ocidente.
Inspirada pelas novas ciências e pela recuperação de repertórios da Antiguidade, a curiosidade,
na Renascença, será elevada a sentimento definidor do desenvolvimento e do progresso;
2 Exemplo figurativo da importância da curiosidade como categoria analítica é a criação de inúmeros “gabinetes
de curiosidades” no século XVI em toda Europa. A respeito dos gabinetes de curiosidade ver: PEREIRA, R. M.
A. Gabinetes de Curiosidades e os Primórdios da Ilustração científica. In: II Encontro de História da Arte, 2006,
Campinas/SP. Unicamp, 2006.
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todavia, a curiosidade é também um elemento contestador da ordem vigente, dominada pelo
cristianismo, e se configura em um desejo profano e herege, que contraria as regras de Deus, e
que pode encaminhar a todos ao mesmo destino de Dante. Esse paradoxo se apresenta
frequentemente nas construções discursivas dos viajantes, como vemos, por exemplo, em uma
das descrições dos indígenas por André Thevet:
Outra coisa a respeito dessas pobres criaturas é que elas demonstram grande
curiosidade em relação a novidades, apreciando-as enormemente. Afinal de
contas, diz o provérbio: a ignorância é a mãe da admiração. (THEVET apud
PERRONE-MOISES, 1994, p. 88, grifos no original)
Aqui, podemos propor a análise do paradoxo da curiosidade como um discurso que fala
do outro para falar do nós. Essa se apresenta como uma categoria mobilizada pela identidade
através da alteridade em paralipse. Se Thevet tinha consciência ou não de que a chegada à
América e os eventos que se desenrolaram no decorrer do processo foram motivados pela
curiosidade mórbida dos europeus, nós podemos apenas supor.
A segunda questão fundamental, que está relacionada à primeira, diz respeito ao
surgimento de um novo tipo de fonte narrativa, condensada em formatos inéditos e com
objetivos específicos. Maria Alzira Seixo (1994) chama a atenção para a diferença entre os
relatos medievais e os relatos na Renascença no que tange ao caráter excepcional que eles
tinham no medievo e o caráter sistemático que eles adquirem na Renascença. Primeiramente,
podemos pensar que os viajantes medievais, em geral, estavam diretamente relacionados à
igreja: os viajantes eram também guerreiros de Deus, expedicionários por terra, que se moviam
a cavalo ou em caravanas e tinham seus discursos filtrados e censurados pelo olho do clero.
Nos séculos XV e XVI, em que se constata o auge da economia mercantil, os relatos se
multiplicam na medida em que as viagens passam a ser sistemáticas e o Estado tem a
necessidade, mais do que nunca, de expandir sua influência e fazer-se presente no ultramar. O
personagem central que emerge nesse cenário é a do navegante mercador. Instrumentalizado
pelo Estado, e muitas vezes protegido pela igreja em seu discurso missionário, o navegante
mercador é aquele que vai se munir dos repertórios advindos da Antiguidade e da Idade Média,3
recriando-os em suas viagens de modo a comprová-los ou modificá-los em decorrência de uma
3 Consideramos pertinente a análise da Ars Dictaminis medieval e sua influência nos escritos da modernidade e
nas formas de escrita, porém, optamos por não explorar este ponto no presente trabalho. Para isto ver: PÉCORA,
1999; e SCABIN, 2010.
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percepção da natureza feita pelo deslumbramento do olhar, deslumbramento
esse que se vincula a motivos explícitos de estética, de surpresa ou de medo,
mas que, na sua formulação verbal, se apresenta condicionado pela expressão
de realidades culturais próximas e familiares, que fundamentam constantes
pontos de comparação entre o novo e o já conhecido. A fundamentação
epistemológica, como se vê, não é linear nem binária, dado que os paradigmas
de compreensão se entrecruzam: nem sempre ao novo se opõe o antigo, nem
sempre a surpresa se esclarece pelo habitual; a matriz perceptiva é complexa
e integra uma dinâmica de convergências e divergências que interfere no
sistema dos hábitos de apreensão vigentes, e situa-se justamente, também ela,
no transito de uma nova construção sistêmica. (SEIXO, 1994, p. 131)
Surgem, portanto, uma infinidade de crônicas, cartas, relaciones, que na maior parte das
vezes eram encomendadas pelas Coroas ou por outras autoridades administrativas. Outras
vezes, elas pertenciam a uma lógica estabelecida por instituições que sistematizavam e
organizavam minuciosamente seus registros e obras, como é o caso da Companhia de Jesus.4
Estes documentos adquiriam o status, na prática, de documento legal e, às vezes jurídico, pois
estavam associados à concepção de que, como se tratavam de documentos escritos por
testemunhas oculares dos fatos, adquiriam o caráter de veracidade inquestionável e, já que
atendiam aos imperativos das autoridades reais, constituíam uma autoridade legal de bases
ocidentais na região e legitimavam a conquista, bem como elaboravam uma memória e um novo
imaginário para a época (MARTINS, 2007, p. 34).
Nesta conjuntura de crescimento da comunicação documental, outro paradoxo surge e
põe em xeque o seu discurso: o indivíduo europeu se depara com o indivíduo ameríndio,
humano como ele, mas reconhecido como socialmente primitivo e muito próximo de um estado
de natureza, que o tornava um cristão em potencial. Foi assim que a identidade ocidental se
encontrou confrontada por uma alteridade à sua altura.
A diferença que surge nesse contexto é de que a alteridade ocidental até então, os
monstros esquecidos por Deus, a natureza disforme e todo tipo de seres relegados a um plano
coadjuvante, não ameaçavam a hegemonia ocidental, pois estavam compreendidos no âmbito
de uma estranheza longínqua e quase imaterial. Ao se deparar com o indígena americano – que
4 A Companhia de Jesus tinha um sistema rigoroso de escrita e registro, criado por Santo Ignácio de Loyola e
difundido por todo o globo. Ver mais em: LONDOÑO, 2002.
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possui alma como o europeu –, o indivíduo ocidental moderno precisou adequar, ou melhor,
recriar seus repertórios e seu discurso em relação a esta nova alteridade.5
Podemos destacar a mudança que se opera em idas e vindas: a alteridade que no medievo
cristão era terrível, perigosa e distante, com a chegada à América torna-se maravilhosa, rica e
próxima. Porém, o discurso que se vê retificado nos documentos é duplo, na medida em que os
europeus adentram o continente, projetam suas expectativas de tesouros e riquezas, “ouvem
falar” das ditas maravilhas pelos índios, também possível notar nos relatos um modelo de
descrição de paisagens, animais, indivíduos, comportamentos que desconstroem o “paraíso na
terra”. Ou seja, ao mesmo tempo em que lemos sobre as potencialidades infinitas de riquezas
na América, chegamos a uma descrição cruel de “pobrezas” na mesma região, as projeções
ecumênicas e o universo mítico cristão se dissolvem para dar lugar a um tipo de “pesquisa de
campo”, o que significa que os europeus passaram, em efeito, a poder comprovar materialmente
através da experiência direta suas projeções do imaginário. Aqui, novamente, mais do tentarmos
identificar uma “verdade” no discurso, concentrar-nos-emos em questionar quais são as
esperanças e desesperanças que são mobilizadas nestes esforços de representação da alteridade,
porque é isto que eles projetam para seus leitores. As possibilidades de análise que se abrem
com esta proposta estão relacionadas com as descrições exaustivas que os viajantes que entram
em contato com os ameríndios passam a fazer, que surgem como relatos “proto-etnográficos”,
pois passam a tentar identificar, conhecer, categorizar e reificar esse indígena com o objetivo
de exercer o poder simbólico existente na prática de nomeação, fundamental para o poder
colonial.
Nestas descrições “proto-etnográficas” dos viajantes, de objetivo claro, mas de
julgamento duvidoso, é que entra nossa proposta de análise desses novos discursos que, além
produzir conhecimento sobre uma cultura e uma realidade alienígena ao Ocidente, “mobiliza
argumentos ou tópicas duradouras, de eficácias variadas, para lidar com o mundo novo
americano ou para lidar com a justificação de suas próprias crenças em relação ao mundo”
(PÉCORA, 2006, p. 12).
Recriando discursos, inventando contextos
5 Sobre as representações artísticas da alteridade do Novo Mundo ver LEITE, 1994.
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Para tentar compreender através de que mecanismos os discursos se criam e recriam,
sempre em relação com um outro, propomos realizar uma instrumentalização da teoria dos
contextos de Roy Wagner (1975). Um discurso é um contexto porque representa o conjunto de
elementos que significam alguma coisa para os implicados. Isso quer dizer que um contexto é
uma parcela coerente daquilo que se entende por realidade e que os elementos que o compõem
são comuns para os seus coetâneos. Neste caso os coetâneos são os viajantes, que materializam
seu discurso no relato de viagem; e os leitores europeus, que recebem e interpretam o discurso.
Para que este contexto seja possível, o discurso deve ser construído de uma retórica
convencional que dá sentido à comunicação:
Esses contextos definem e criam um significado para a existência e a
socialidade humanas ao fornecer uma base relacional coletiva, uma base que
pode ser atualizada explícita ou implicitamente por meio de uma infinita
variedade de expressões possíveis. Eles incluem coisas como linguagem,
“ideologia” social, aquilo que é chamado de “cosmologia” e todos os demais
conjuntos relacionais que os antropólogos se deliciam em chamar de
“sistemas” (WAGNER, 1975, p. 81).
A ideia que queremos desenvolver aqui é a de que o discurso é um contexto que implica
sempre três contextos: um contexto de controle, que constitui a intencionalidade do autor e
“controla o campo de percepção consciente” (Ibid. p. 87); um contexto implícito, que é
“contrainventado” a partir do primeiro e que pode ser lido, por um lado, como a causa e a
motivação de suas intenções, e por outro, como dados considerados “naturais” para os
envolvidos (Ibid. p. 95); e um contexto alienígena, que se manifesta em um ausente.
Neste caso, estamos considerando uma agência que não é a do autor, nem a do receptor:
“A questão será finalmente saber como o ‘eu-tu’ da interlocução pode exteriorizar-se num ‘ele’
sem perder a capacidade de se designar a si mesmo e como o ‘ele/ela’ da referência identificante
pode interiorizar-se num sujeito que se diz ele próprio” (RICOEUR, 1991, p. 56).
Seguindo essa linha de raciocínio, não podemos ignorar que há um ausente que também
fala através do discurso do viajante. Se registro escrito é “uma narrativa na qual se depositam
inúmeras vozes, em contraponto ou em uníssono, e em diferentes tempos” (MONTERO, 2006,
p. 13), a voz do ausente é, também, interlocutora, que no nosso caso, é a do ameríndio.
Se concordamos que os discursos são invenções que mobilizam significados, que eles
de fato significam para o autor e seus destinatários, criando a ideia de um nós e um outro,
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baseado em um repertório convencional, estamos falando de um processo complexo, jamais
operado em harmonia, que é o de tradução. A alteridade precisa ser constantemente traduzida
para ser apreendida e é, nesse sentido, que a prática da escrita é o elemento fundante da
representação da alteridade para o Ocidente. Entretanto, estamos falando, é claro, de uma
operação recíproca: se os viajantes europeus traduzem os indígenas, estes últimos também
traduzem os primeiros. Os discursos de ambas as partes aparecem como um contexto
configuracional onde convergem perspectivas e vozes realizando “uma construção do mundo
inter-relacional [que] se produz nos jogos de linguagem” (MONTERO, 2006, p. 26). A
“totalidade dos sistemas” em relação (o Ocidental e o ameríndio) permanece fora de interação,
pois apenas alguns elementos são mobilizados providencialmente nestas situações de contato e
convívio direto.
Ao focar nossa análise nos mecanismos e signos de tradução, mudando o eixo da
problemática de um enunciado (semântico) para o de uma enunciação (pragmática),
estabelecemos o ponto central da reflexão em torno do indivíduo interlocutor-tradutor, que é o
viajante. Sendo assim, se toda uma linguagem é mobilizada para dar conta dessa tradução e a
tomarmos como uma possibilidade real, como escrever o mundo que se conta para o mundo em
que se conta? (HARTOG, 1980).
François Hartog explora alguns meios de tradução da alteridade que “joga[m] o narrador
nas aguas da alteridade: o tamanho das malhas e a montagem da trama determinam o tipo de
peixe e a qualidade das presas, constituindo o próprio ato de puxar a rede um modo de
reconduzir o outro ao mesmo” (1980, p. 240).
O princípio da inversão aparece quase como uma estratégia “originária” de
representação da alteridade nas narrativas ocidentais (gregos/não-gregos). A partir dele se
estabelece uma distinção entre o que é e o que não é, a partir da simples inversão de elementos
que supostamente se conhece, traçando um primeiro limite da identidade: nós somos a, não
somos b. Outra tática de tradução é o princípio da comparação classificatória, que é também
um princípio da ciência ocidental que visa classificar semelhanças e diferenças, frequentemente
em escalas e graus, conscientes ou inconscientes, que dão sentido às diferenças: nosso a é como
o b deles. Quando as diferenças não podem ser apreendidas por comparação direta, a narrativa
pode apelar para uma comparação por analogia: nosso a é para o b deles como nosso c é para
nosso d (HARTOG, 1980, 245). De qualquer maneira o outro é sempre filtrado e reconduzido
para o nós, tornando-se concebível e compreensível.
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Estes modelos de tradução têm estatuto legítimo porque são calcados no
testemunhalismo, que torna o narrado verossímil e incontestável. São, portanto, princípios
heurísticos da cultura Ocidental: “ficção narrativa, que tem como garantia o olho do viajante
ou o saber do narrador, visa convencer o destinatário” (Idem), produzindo um “efeito sério”,
“efeito real”, “efeito de alteridade”.
Ora, se estamos falando de modelos de tradução, de uma retórica que conduz o outro ao
mesmo, esta mesma passou por transformações ao longo do tempo e em relação à diferentes
alteridades. A hipótese que estamos tentando desenvolver desde o começo deste texto é de que
os discursos passaram por um processo de reinvenção através dos viajantes que entraram em
contato com os ameríndios nos séculos XV-XVI. Já pontuamos que as bases referenciais para
a tradução do outro nesta época passam por um repertório da Antiguidade e da Idade Média,
com suas reconfigurações a partir da Renascença; e que as sociedades ameríndias representaram
uma nova alteridade temível “à altura” dos ocidentais, e, portanto, os meios de representar e se
relacionar com a alteridade se modificaram. O que não dissemos é que os elementos para
reinventar o outro, ou seja, para reinventar a si mesmo, não surgem internamente.
[...] seria a mais pura tautologia dizer que um contexto particular recebe suas
características de si mesmo ou das experiências que estrutura. Uma vez que
seus elementos articuladores guiam e canalizam nossas experiências de sua
realidade, os contextos não podem receber sua forma e seu caráter diretamente
desta experiência. Segue-se que essas características são dadas em grande
medida pelas outras associações dos elementos que articulam o contexto,
aquelas que eles obtêm com a participação em contextos externos àquele em
questão. Os vários contextos de uma cultura obtêm suas características
significativas uns dos outros, por meio da participação de elementos
simbólicos em mais de um contexto (WAGNER, 1975, p. 83).
Isto quer dizer, precisamente, que a identidade, além de necessitar da alteridade para se
inventar e se reproduzir, retira os elementos para se reinventar da própria relação com esta
alteridade. O discurso do viajante se reinventa no exercício de traduzir o ameríndio, tradução
esta que é sempre parcial e incompleta, e é justamente nessa incompletude que se pode
identificar a alteridade: elas se apresentam na narrativa “como ‘idiotismos’, cujo sentido não se
deixa capturar, constituindo uma espécie de meteoritos. É justamente a impossibilidade de
capturar seu sentido que lhes garante a alteridade (HARTOG, 1980, 232). São nestes
“idiotismos”, que se encontra o contexto alienígena que descrevemos acima: é neste que se abre
a possibilidade de ver o outro não traduzido.
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Para ilustrar esse discurso dos viajantes que tanto temos explorado teoricamente,
pretendemos analisar um documento de um viajante na América, a saber, a relación de
descubrimiento de Gaspar de Carvajal, que acompanhou o Capitão Francisco de Orellana na
expedição pelo Rio Amazonas. Pretendemos apontar brevemente aspectos do documento que
enfocam a questão da representação da alteridade, reforçando paradigmas já conhecidos sobre
a Alteridade ou criando novos a partir das experiências na América.
Gaspar de Carvajal e a representação da alteridade ameríndia
A expedição que partiu de Quito, Perú, em 1541, comandada por Gonzalo Pizarro, irmão
do conquistador do Perú, tinha como objetivo explorar a região conhecida como terras baixas
da América do Sul. Não se tratou de uma simples expedição de reconhecimento e mapeamento.
A intenção da empresa surgiu a partir de relatos de índios que diziam existir nas terras baixas
uma região rica em árvores de canela, especiaria muito cobiçada na época, e um senhor que se
banhava em pó de ouro, em uma cidade com muita prata e outras jóias (CARVAJAL, 1542, p.
35). A expedição, portanto, teve origem nos mitos a respeito do País de la Canela e do El
Dorado. As expectativas de encontrar civilizações ricas em metais preciosos e tesouros
perdidos rondava o imaginário dos viajantes europeus mesmo antes da chegada na América.
Pretendemos mostrar também como estes relatos de descobrimento ao mesmo tempo
desconstroem estes mitos, rachando a máscara do maravilhoso desconhecido (GIUCCI, 1992,
capítulo 3), ao mesmo tempo que reforçam estes imaginários e discursos, fomentando
mecanismos de exploração e dominação.
A primeira coisa que temos de ter em mente é a do tipo de fonte de que se trata esta
análise: uma relación de descubrimiento geralmente é um documento encomendado por
autoridades legais, pela Coroa, para registrar e cartografar uma região, explicitando os desafios
e os potenciais do ambiente e das populações. Por mais que este documento seja denominado
pelo próprio autor como uma relación, esta especificamente apresenta questões
significativamente distintas, como por exemplo, o fato de não ter sido encomendada ou
solicitada por nenhuma autoridade. Ainda que contenha aspectos que procuram identificar a
região, os fluxos de água, a fertilidade do solo e as posições estratégicas, elas são efêmeras no
relato. Se especula que este documento possa ter sido solicitado pelo Capitão Francisco de
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Orellana para justificar o abandono do resto dos expedicionários que estavam com Gonzalo
Pizarro devido à força da correnteza e dos grandes perigos e fome que passaram (MARTINS,
2007, p. 35). O fato é que a relación escrita por Gaspar de Carvajal é um documento que retrata
a todo tempo os perigos e intempéries da expedição, as experiências de quase morte, as atitudes
heroicas de seu capitão, a ferocidade dos nativos e alguns milagres divinos.
A análise do discurso contido nesta fonte parece-nos ter prós e contras: é, até onde se
conhece, a primeira expedição a explorar todo o curso do Amazonas e a entrar em contato com
as populações nativas da região. As descrições contidas no documento, portanto, são inéditas
para a época e podem nos revelar aspectos interessantes sobre a representação da alteridade
neste momento específico. Entretanto, justamente por se tratar de um documento de
descobrimento, com recursos muito limitados e contatos muito efêmeros, relatados com
simplicidade, como o próprio autor confessa (CARVAJAL, 1542, p. 33), o relato de Carvajal
peca nas descrições sobre os nativos e as relações estabelecidas. Ainda que este aspecto possa
comprometer uma análise mais detalhada e teórica sobre a documentação, ela ainda nos revela
um tipo discursivo interessante para pensar esta identidade ocidental em formação.
Buscamos retirar da documentação tanto acontecimentos relatados que são muito
frequentes e acompanham todo a viagem, quanto acontecimentos isolados, aqueles que nos
parecem estranhos e inusitados: lapsos na sintaxe (CERTEAU, 1982, p. 16) que identificam
um estranhamento do autor, ora relatado com espanto, ora relatado com normalidade – seja para
dar um efeito de um estranho incompreensível, quanto para dar o efeito da alteridade,
conduzindo-a para os moldes referenciais conhecidos: “Para produzir o efeito de alteridade,
pode-se descrever praticas abomináveis (para nós) de um modo completamente neutro,
empregando-se mesmo um vocabulário técnico, como se se tratasse das práticas mais simples
e corriqueiras do mundo” (HARTOG, 1999, p. 268).
Já comentamos que os relatos acerca das adversidades e perigos encontrados pelos
expedicionários povoam todo o relato do início ao fim. Um aspecto curioso do discurso de
Carvajal é o da figura heroica que o Capitão Francisco de Orellana parece assumir na expedição.
Em tempos de paz, Orellana maneja a situação com sensatez e esperteza, negociando e sendo
afável com os nativos, que de alguma maneira compreendia:
que los índios comenzaron de venir por el agua a ver qué cosa era, y así
andaban como bobos por el río; y visto esto por el capitán, púsose sobre la
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barranca del río, y em su lengua, que em alguna manera los entendia, comenzó
de hablar com ellos y decir que no tuviesen temor y llegasen que les quería
hablar; y así llegaron dos índios hasta donde estaba el capitán, y les halagó y
quitó el temor y les dió de lo que tenía, y dijo que fuesen a llamar al señor que
le quería hablar, y que ningún temor tuviese que le hiciese mal ninguno...
(CARVAJAL, 1542, p. 50).
E muito mais abaixo no curso do Amazonas, Orellana consegue compreender a língua
dos nativos o que os índios dizem “porque y alo entendia por um vocabulário que había hecho”
(CARVAJAL, 1542, p. 103). Assim como em momentos de guerra com os índios e desanimo,
Orellana maneja as situações come excelência e coragem, forjando estratégias para se defender
e atacar os índios e encorajando seus companheiros à luta, sempre com bons resultados:
Com esta fatiga dicha iban algunos compañeros muy desmayados, a los cuales
el capitán animaba y decía que se esforzasen y tuviesen confianza em Nuestro
Señor, que pues él nos había echado por aquel río, tendría por bien nos sacar
a buen puerto: de tal manera animó a los compañeros que recibiesen aquel
trabajo (CARVAJAL, 1542, p. 47).
As passagens referentes as atitudes corajosas e heroicas do capitão são frequentes em
todo o relato. Isso pode nos remeter à figura de um novo Ulisses, que agora é um viajante
mercador, que mesmo através de perigos infindáveis no desconhecido consegue superar as
situações por sua coragem e engenhosidade e voltar para casa. Outra coisa notável é a de que o
capitão é um herói homérico, mas também muito espirituoso, encorajando os companheiros
com as palavras de Deus, se agarrando na força do Senhor para ultrapassar os desafios,
agregando assim as virtudes heroicas da Antiguidade e do Medievo.
Um episódio muito destacado na relación de Carvajal, e que acaba dando nome ao Rio
navegado, são os relatos sobre as Amazonas, conhecido mito grego de mulheres guerreiras, e
que parecem residir no interior da floresta. Eles conseguem um relato de um índio capturado
que supostamente teria visitado a terra das Amazonas muitas vezes:
[...] el índio dijo que eran unas mujeres que residían la tierra adentro cuatro o
cinco jornadas de la costa del río [...]. El capitán tornó a preguntar que si estas
mujeres eran casadas y tenían marido; el índio dijo que no. [...] preguntó si
estas mujeres eran muchas; el índio dijo que sí y que él sabía por nombre
setenta pueblos y que em algunos había estado [...]. El capitán le dijo que si
estos pueblos eran de paja; el índio dijo que no, sino de piedra y com sus
puertas [...]. El capitán le preguntó que si estas mujeres parían [...] el índio
respondió que estas mujeres participaban com hombres a ciertos tiempos [...]
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que son blancos, excepto que no tienen barbas. [...]. Las que quedan preñadas
si paren hijo dicen que lo matan o lo envían a sus padres, y si hembra que la
crían com muy gran regocijo (CARVAJAL, 1542, p. 104-5).
Nos parece um retrato muito fiel das Amazonas da mitologia grega, informado por um
índio que viveu períodos entre elas. Neste sentido o relato de Carvajal é inusitado em outra
passagem, onde descreve que as Amazonas “peleando delante de todos los índios, como por
capitanes, y peleaban ellas tan animosamente que los índios no osaban volver las espaldas, y al
que las volvia, delante de nosotros le mataban a palos” (CARVAJAL, 1542, p. 97). Por mais
que o informe de terceiros seja valioso no sentido de orientações e reconhecimentos, o
testemunho ocular no discurso tem um valor excepcional: ele autoriza a verdade. (MARTINS,
2007, p. 43). Nos importa dois aspectos desta análise: em primeiro lugar, deslocando a pergunta
da realidade da presença das Amazonas na viagem ou não, elas estão presentes na relación,
identificando um repertório, um contexto convencional para o qual elas podem ser conduzidas
e que é coerente e plausível (ainda que incrível) para o autor e para os leitores na Europa. A
representação da alteridade sempre é um quadro mais ou menos fiel às estruturas já conhecidas,
que se modificam com o tempo. Isto nos remete ao segundo aspecto, o de que é patente no
discurso de Carvajal informações sobre as Amazonas, desde o início da viagem até seu encontro
com elas quase no final do relato. Podemos sugerir, devido à limitação de nossas análises, que
a existência, ou pelo menos a possibilidade de existência das Amazonas no discurso configure
um tipo de “mitologia paralela” (POMPA, 2006, p. 123), um paralelo entre crenças, mitos e
temporalidades distintas entre duas culturas, onde poderíamos investigar com mais afinco a
criação de contextos em que se evidenciem múltiplas vozes. (MONTERO, 2006, p. 13).
Por fim, destacamos como estes mitos, sobretudo àqueles referentes a riquezas e
tesouros perdidos, desmoronam e se reconstroem a partir destes relatos. Os expedicionários não
encontraram o País de la Canela nem tampouco o El Dorado. Gaspar de Carvajal menciona
brevemente em uma passagem que alguns índios “de estatura muy alta [...] muy blancos [...] y
muy enjoyados de oro y ropa” (CARVAJAL, 1542, p. 64) vieram até o capitão e logo foram
embora e nunca mais foram vistos. O fato de que os viajantes não encontrarem metais preciosos
ao longo de toda a expedição deveria ser, no mínimo, decepcionante, o que não ocorre, pois por
mais que Carvajal não mencione nunca a existência de artefatos em ouro ou prata,
frequentemente relata que os índios dizem que “todo lo que en esta casa había de barro, lo había
la tierra adentro de oro y de plata y que ellos nos llevarían allá, que era cerca” (CARVAJAL,
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1542, p. 81). Havendo ou não ouro e prata, havendo ou não os índios terem falado sobre ditos
metais, o que importa é que estas passagens fomentaram o imaginário do maravilhoso, ao
mesmo tempo que rompiam com ele, empolgaram novas expedições ao mesmo tempo que
distanciavam ainda mais os ditos tesouros. O mesmo ocorre com o retrato dos ameríndios, que
são relatados como bárbaros, violentos, perversos e cheios de “ruindade” em todo o documento
– e na última parte, Carvajal destaca que os índios encontrados são “de buena razón e muy vivos
e ingeniosos, porque las obras que hacen, ansí de bulto como debujos y pinturas de todas colores
son muy buenas, que es cosa maravillosa de ver” (CARVAJAL, 1542, p. 418). Esta
ambivalência do discurso flagra um discurso ocidental em reinvenção, reconfigurando as
fronteiras da identidade e da alteridade.
Tradução como predação
O que queremos ressaltar neste ponto é que as relações entre europeus e ameríndios
conceberam-se a partir de um jogo de forças díspares, bélica e simbolicamente, e supuseram,
sobretudo, uma disputa entre as partes, e não a simples imposição de um lado, que é exatamente
o que a leitura desatenta das fontes nos pode levar a crer.
Tratando-se de forças desiguais em relação, a escrita tem um papel fundamental neste
jogo através da prática de nomeação e da importância desta para a construção do poder
simbólico. “Impor um nome ou conhecer os nomes implica, pois, um certo poder: o nome é
sempre mais que a simples preterição sonora” (HARTOG, 1980, p. 256). A autodenominação
de um grupo representa uma parcela da construção simbólica deste que não pode ser traduzida
com a facilidade que se traduz objetos, ações e costumes. Os nomes próprios possuem um
caráter histórico e espacial específico que assinalam o momento em que o grupo e os indivíduos
estabelecem os primeiros limites de sua identidade.
Os nomes pelos quais as tribos chamam a si mesmas designam antes
pronomes do que substantivos, afirmando o ponto de vista do sujeito
que está falando, e não uma designação objetiva. Desta forma, os índios
não estavam atribuindo-se um nome como forma de se distinguir de
outros grupos, mas, sim, de se afirmar enquanto pertencentes a uma
espécie distinta (FELIPPE, 2014, p. 23).
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A autodenominação dos ameríndios carrega também a história e a identidade daquela
parcela, e que sua tradução e renomeação, justamente pela impossibilidade de tradução,
representa um ato de violência e dominação histórica.
Isto significa que os viajantes europeus, ao traduzirem os indígenas para seus
conterrâneos, estabelecem uma posição de domínio simbólico específico frente a estes através
de dois exercícios: o primeiro diz respeito à criação de uma memória sobre o outro que é
orientada por interesses de dominação; o segundo está relacionado aos esquemas de
classificação, típicos das ciências ocidentais, que ao interpretar, classificar e categorizar em
escalas verticais a alteridade, apaga conscientemente através do discurso traços que não são de
seu interesse. Ambas, tomadas na época como ações civilizatórias, podem ser interpretadas
como processos de violência epistêmica que caracterizam a identidade ocidental frente às
populações ameríndias.
Arjun Appadurai cunhou o conceito de identidade predatória que classificou como
“aquelas identidades cuja mobilização e construção social requerem a extinção de outras
categorias sociais próximas definidas como ameaças à própria existência de algum grupo,
definido como ‘nós’” (2009, p. 46). A partir desta reflexão podemos pensar que o Ocidente se
constituiu como identidade predatória frente à nova alteridade ameríndia que representava um
perigo pois estes discursos trazem “em seu interior a ideia de que a própria maioria poderia
virar minoria a menos que outra minoria desapareça” (Ibid. p. 47).
Tradução, nomeação e predação, são estas as características que redefinem o discurso
ocidental no século XV. O movimento de predação se dá através de inúmeros mecanismos, dos
quais um dos mais significativos é a religião cristã e a prática missionária, já que
Como religião potencialmente universal, o cristianismo está imbuído de
um horizonte simbólico que supõe uma igualdade estrutural entre
sujeitos sociais diversos por natureza e a capacidade de garantir a
inclusão social e a inteligibilidade simbólica de todo tipo de diversidade
(MONTERO, 2006, p. 55).
Conclusão
A análise do discurso deste tipo de agente, o viajante, possui um potencial enorme para
a análise das transformações no imaginário social e no estabelecimento de relações simbólicas
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e materiais. Pensamos que é possível abordar também questões a respeito das mediações
negociadas no discurso, e sobre o que os outros podem falar através do nosso discurso.
Acreditamos que pesquisas nas áreas da Antropologia e da Arqueologia podem ser
fundamentais na verificação e compreensão do discurso dos viajantes, na medida em que
podemos buscar nelas uma nova luz para compreender a criação das “mitologias paralelas”.
Por fim, acreditamos que a reflexão aplicada ao nosso objeto aqui, o discurso dos
viajantes, possa ser aplicada também ao próprio exercício histórico e antropológico. Na mesma
medida que os viajantes acionaram recursos de tradução, selecionando e manipulando
elementos, através de esquemas ou filtros, a História inventa métodos hermenêuticos para
compreender o passado através de esquemas ou filtros. Ambos operam em um esforço
heurístico que remete, sobretudo, à situação epistemológica de seus discursos que discorrem
sobre os fatos, enunciando sentidos, remetendo-se a um notado, inserido em uma concepção do
notável.
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