Velho Terceira Idade Idoso Ou Aposentado Sobre Diversos Entendimentos Acerca Da Velhice

8
1/8 VELHO, TERCEIRA IDADE, IDOSO OU APOSENTADO? SOBRE DIVERSOS ENTENDIMENTOS ACERCA DA VELHICE Guita Grin Debert* Aposentado, terceira idade e idoso são modos de tratamento das pessoas em etapas mais avançadas da vida que apontam a relação da velhice com diferentes dimensões da experiência social, como o preconceito e a discriminação, a atribuição de status e prestígio, a conquista de direitos sociais, a definição de formas adequadas de consumo e a valorização de estilos de vida. Hoje, preferimos usar expressões como “idoso” ou “terceira idade”, em vez de “velho”, para evitar ofender ou melindrar nosso interlocutor. A “melhor idade” é uma nova fórmula de denominação, encontrada por clubes ou programas que reúnem pessoas com 60 anos ou mais. Falar da aposentadoria, por sua vez, é traçar a história do conjunto de transformações ocorridas na segunda metade do século 19, quando a indústria segrega os operários considerados velhos e esses são atendidos por um conjunto de instituições neste momento criadas para garantir a sua sobrevivência. A partir do fim do século 19, e com mais força nos países europeus, após o fim da 2ª Guerra Mundial, a aposentadoria entra na pauta das reivindicações operárias, fornecendo uma identidade a uma população até então associada à pobreza, invalidez e incapacidade de produzir e diferenciando-a de outros grupos alvos da assistência social. A expressão “Terceira Idade” surge na década de 1970, quando foi criada na França a primeira Universidade para a Terceira Idade, sinalizando mudanças no significado da velhice. Trata-se, agora, de celebrar a velhice como um momento privilegiado para o lazer e para as atividades livres dos constrangimentos da vida profissional e familiar: daí a ideia da “melhor idade”. A invenção da terceira idade indicaria, assim, uma experiência inusitada de envelhecimento, em que o prolongamento da vida nas sociedades contemporâneas ofereceria aos mais velhos a oportunidade de dispor de saúde, independência financeira e outros meios apropriados para tornar reais as expectativas de realização e satisfação pessoal próprias a essa etapa. A velhice, assim, perde a

description

Aposentado, terceira idade e idoso são modos de tratamento das pessoas em etapas mais avançadas da vida que apontam a relação da velhice com diferentes dimensões da experiência social, como o preconceito e a discriminação, a atribuição de status e prestígio, a conquista de direitos sociais, a definição de formas adequadas de consumo e a valorização de estilos de vida.

Transcript of Velho Terceira Idade Idoso Ou Aposentado Sobre Diversos Entendimentos Acerca Da Velhice

1/8 VELHO, TERCEIRA IDADE, IDOSO OU APOSENTADO? SOBRE DIVERSOS ENTENDIMENTOS ACERCA DA VELHICE Guita Grin Debert*

Aposentado,terceiraidadeeidososomodosdetratamentodas pessoas em etapas mais avanadas da vida que apontam a relao da velhice com diferentes dimenses da experincia social, como o preconceitoeadiscriminao,aatribuiode status eprestgio,a conquistadedireitossociais,adefiniodeformasadequadasde consumo e a valorizao de estilos de vida. Hoje,preferimos usar expresses comoidosoouterceiraidade, emvezdevelho,paraevitarofenderoumelindrarnosso interlocutor. A melhor idade uma nova frmula de denominao, encontradaporclubesouprogramas querenempessoascom60 anosoumais.Falardaaposentadoria,porsuavez,traara histriadoconjuntodetransformaesocorridasnasegunda metadedosculo19,quandoaindstriasegregaosoperrios consideradosvelhoseessessoatendidosporumconjuntode instituiesnestemomentocriadasparagarantirasua sobrevivncia.Apartirdofimdosculo19,ecommaisforanos pases europeus, aps o fim da 2 Guerra Mundial, a aposentadoria entranapautadasreivindicaesoperrias,fornecendouma identidadeaumapopulaoatentoassociadapobreza, invalidezeincapacidadedeproduzirediferenciando-adeoutros grupos alvos da assistncia social. A expresso Terceira Idade surge na dcada de 1970, quando foi criadanaFranaaprimeiraUniversidadeparaaTerceiraIdade, sinalizando mudanas no significado da velhice. Trata-se, agora, de celebraravelhicecomoummomentoprivilegiadoparaolazere paraasatividades livresdosconstrangimentosdavidaprofissional efamiliar:daaideiadamelhoridade.Ainvenodaterceira idadeindicaria,assim,umaexperinciainusitadade envelhecimento,emqueoprolongamentodavidanassociedades contemporneasofereceriaaosmaisvelhosaoportunidadede dispordesade,independnciafinanceiraeoutrosmeios apropriadosparatornarreaisasexpectativasderealizaoe satisfao pessoal prprias a essa etapa. A velhice, assim, perde a 2/8 conotaonegativadeperdade status socialeganhaocarter positivodeetapaprivilegiadapelagarantiadeumrendimento mensal,aaposentadoriatantoempasesdecapitalismo avanadoquantoempasescomoBrasilepelasnovas experincias prprias a esse momento do curso da vida. Juntoterceiraidade,humconjuntodeprticas,instituiese agentesespecializadosencarregadosdedefinireatenderas necessidadesdosmaisvelhos,populaocaracterizadacomo vtimadamarginalizaoedasolido.Umanovalinguagem, empenhadaemalocarotempodosaposentados,ativana construodasetapasmaisavanadasdavidacomoumafase dinmica em oposio ideia da aposentadoria como um momento de desengajamento passivo de uma vida ativa. A velhice como construo histrica e social Asdiversasformasdenomearavelhiceeossignificadosquetais nomesganhamemdiferentesperodoshistricosdoopontode partidareflexosociolgicasobreaconstruohistricaesocial davelhice.Assim,estabelece-seumadistinoentreumfato universalenatural-o ciclobiolgico, queenvolveonascimento, o crescimentoeamorte-eumfatosocialehistrico,quea variabilidadedaformapelaqualoenvelhecimentoconcebidoe vivido.Asrepresentaessobreavelhice,aposiosocialdos velhos e o tratamento que lhes dado pelos mais jovens, portanto, ganhamsignificadosparticularesemcontextoshistricos,sociais e culturais distintos. Assimcomonocasodavelhice,osestudosantropolgicose histricossobreosperodosdavida,comoainfncia,a adolescncia e a juventude mostram como um processo biolgico elaboradosimbolicamentecomrituaisquedefinemfronteirasentre idadespelasquaisosindivduospassamequenoso necessariamenteasmesmasemtodasassociedades. Issoexige umrompimentocomospressupostosdapsicologiado desenvolvimento que concebe o curso da vida como uma sequncia unilineardeetapasevolutivasemquecadaetapa,apesardas particularidadessociaiseculturais,seriamestgiospelosquais todos os indivduos normais deveriam passar. 3/8 ComoressaltaosocilogofrancsPierreBourdieu,umreflexo profissionaldosocilogolembrarqueasidadesdavidasouma criaoarbitrria.Naproduodascategoriasdeidade,concluio autor,estenvolvidaumaverdadeiralutapolticapelaredefinio dospoderesligadosagrupossociaisdistintosemdiferentes momentos do ciclo da vida. Afirmar que as categorias de idade so construes culturais e que mudamhistoricamentenosignificadizerqueelasnotenham efetividade. Elas so constitutivas de realidades sociais especficas, uma vez que operam recortes no todo social, estabelecendo direitos edeveresdiferenciaisnointeriordeumapopulao,definindo relaes entre as geraes e distribuindo poder e privilgios. Assim, nanossasociedade,aidadecronolgicaqueumsistemade dataoausenteemmuitasoutrassociedadesummecanismo fundamentalnaorganizaosocial,porquedeterminaentreoutras coisasamaioridadecivil,oinciodavidaescolar,aentradaea sada do mercado de trabalho. A velhice, como as categorias etrias, tnicas, raciais ou de gnero, umaformadesegmentareclassificarumapopulao,mas tambmdeconstruirumahierarquiaentrediferentessegmentos assim constitudos. A Gerontologia e as mudanas na pirmide etria AGerontologiaacinciaqueestudaavelhice,easprimeiras perspectivasdessesestudosconsideravamqueosproblemas enfrentadospelosidososeramtoprementesesemelhantesque minimizavam as diferenas em termos de etnicidade, classe, gnero ereligio.Avelhiceeraentopensadaatravsdaideiade"roless role" a sociedade moderna no prev um papel especfico ou uma atividadeparaosvelhos,abandonando-osaumaexistnciasem significado.Essahiptese,queconsideravaavelhicecomouma experinciahomognea,foirevista,easpesquisassobreotema demonstravamqueasclivagenssocioeconmicaseoutras diferenasdavamexperinciadeenvelhecimentocontedos distintosquemereceriaminvestigao.Dissosurgirampesquisas preocupadas com a elaborao de mediadores sofisticados e com a definio de instrumentos capazes de avaliar a qualidade de vida e uma srie de outras dimenses da velhice. 4/8 Apreocupaodasociedadecomoprocessodeenvelhecimento deve-se,semdvida,aofatodeosidososcorresponderemauma parceladapopulaocadavezmaisrepresentativadopontode vistanumrico.Talcomoocorreunospaseseuropeusena AmricadoNorte,temosnoBrasiltambmumcrescimento demogrficodapopulaomaisvelha.Falaremenvelhecimento populacionalchamaraatenoparaoprolongamentodavida humana e tambm para a reduo da taxa de natalidade, o que leva aumachatamentodapirmideetria,namedidaemquea proporo dos idosos se iguala ou aumenta em relao aos jovens e s crianas. Avisibilidadealcanadapelavelhiceno,contudo,uma consequnciaautomticadoenvelhecimentopopulacional.Requer tambm uma ateno para o duplo movimento que acompanha sua transformao em uma preocupao social. Assistimos, por um lado, a uma socializao progressiva da gesto davelhice;pormuitotempoconsideradacomoprpriadaesfera privadaefamiliar,umaquestodeprevidnciaindividualoude associaes filantrpicas,elase transformanumaquestopblica. Umconjuntodeorientaeseintervenes,muitasvezes contraditrio, definido e implementado pelo aparelho de Estado e outrasorganizaesprivadas.Agerontologiacomoumcampode saberespecficocriaprofissionaiseinstituiesencarregadosda formao de especialistas no envelhecimento. Como consequncia, umanovacategoriaculturalproduzida:osidosos,comoum conjunto autnomo e coerente que impe outro recorte geografia social, autorizando a colocao em prtica de modos especficos de gesto. Nesse movimento que surge no sculo 19, a viso da velhice como umprocessocontnuodeperdasededependnciaresponsvel porimagensnegativasquelhessoassociadas,mastambm elementofundamentalparaalegitimaodedireitossociais,como a universalizao da aposentadoria. Poroutrolado,fazpartedessemovimentodesocializaooque venho chamando de processos de reprivatizao, que transformam avelhiceemresponsabilidadeindividual-e,nestestermos,ela poderia desaparecer do nosso leque de preocupaes sociais. 5/8 Avelhicecomoproblemasocialeareprivatizaodo envelhecimento Atendnciacontemporneareverosesteretiposassociadosao envelhecimento.Aideiadeumprocessodeperdastemsido substituda pela considerao de que esse um momento propcio paranovasconquistas,guiadaspelabuscadoprazer.As experinciasvividaseossaberesacumuladossoganhosque oferecemoportunidadesdeexplorarnovasidentidades,realizar projetosantesabandonados,estabelecerrelaesmaisprofcuas com o mundo dos mais jovens e dos mais velhos. NoBrasilproliferaram,naltimadcada,programasvoltadospara osidosos,comoasescolasabertas,asuniversidadesparaa terceira idade e os grupos de convivncia de idosos. Encorajando abuscadaautoexpressoeaexploraodeidentidadesdeum modo que era exclusivo da juventude, eles abrem espaos para que umaexperinciainovadorapossaservividacoletivamente,e indicamqueasociedadebrasileirahojemaissensvelaos problemasdoenvelhecimento.Contudo,osucessodessas iniciativasproporcionalprecariedadedosmecanismosdeque dispomosparalidarcomavelhiceavanada.Anovaimagemdo idoso no oferece instrumentos capazes de enfrentar a decadncia dehabilidadescognitivasecontrolesfsicoseemocionaisqueso fundamentais,nanossasociedade,paraqueumindivduoseja reconhecidocomoumserautnomo,capazdeumexercciopleno dosdireitosdecidadania. Osproblemassoentodissolvidosnas novasrepresentaesdaterceiraidadeeoenvelhecimento reprivatizado, fechando-se o espao para situaes de abandono e dependncia,namedidaemqueosmaisvelhossetornam protagonistasdeexperinciasinovadorasebem-sucedidaseas perdas prprias do envelhecimento passam a ser vistas como maus resultados de suas escolhas quanto aos estilos de vida e consumo adotados. ,portanto,ilusriopensarqueessasmudanasso acompanhadas de uma atitude mais tolerante em relao s idades. marcantenesseprocessoajuventudecomovalor,emquea promessadaeternajuventudeummecanismofundamentalde 6/8 constituio de mercados de consumo e nele no h lugar para a velhice. Aofertaconstantedeoportunidadesparaarenovaodocorpo, das identidades e autoimagens encobre problemas como o declnio inevitveldocorpo,ocorpoingovernvelquenorespondes demandasdavontadeindividual,oqual,antes,percebidocomo frutodetransgressescomofumar,beber,nofazerexerccios, negligenciar a prpria sade - e por isso no merece piedade. O prolongamento da vida humana , claro, um ganho coletivo, mas tambm uma ameaa reproduo da vida social, num risco para o futurodasociedade.Asprojeessobreoscustosda aposentadoriaedacoberturamdicaeassistencialdoidososo apresentadoscomoumproblemanacional,indicadorda inviabilidadedeumsistemaqueemfuturoprximonopoder arcarcomosgastosdeatendimento.Nassituaesemqueo desempregoeosubempregoatingemcontingentescadavez maiores da populao mais jovem, os custos implicados na velhice, especialmenteaquelesenvolvidosnasfasesmaisavanadasda vida,crescemnamesmaproporodosavanostecnolgicos postosemaoparaprolongaravidahumana.Aimaginao dosexperts emcontabilidadepblicanovaialmdasugestode quequatrotiposdemedidasdevemsertomadossimultaneamente paragarantiraviabilidadedosistema:diminuiodosgastos pblicos,aumentodosimpostos,diminuiodosvencimentosdos aposentados e aumento da idade da aposentadoria. Como mostrou aantroplogaMaryDouglas,cadasociedadetemseuportfliode riscoseestabeleceumacombinaoespecficadeconfianae medo,enaseleodosperigosquemerecemsertemidosest sempre envolvida uma estratgia de proteo e excluso de valores e estilos de vida particulares. Cabe,portanto,perguntarseavelhicepermanecersendoum segredodesagradvelque,comoNorbertEliasmostrou,no queremosconhecereparaaqualencontramosformascadavez mais sofisticadas de negar a existncia. possvel, tambm, sugerir caminhos alternativos para enfrent-la. O sonho que os avanos na pesquisacientficaofereamsoluesparaoenvelhecimentodas clulashumanasouqueatecnologiaencontreformascapazesde minimizar os problemas da dependncia na velhice ganha cada vez mais concretude. 7/8 Ocrescimentodo nmerodeaposentadosfoi seguido doaumento doseupoderpoltico,desuacapacidadedeexigirmaise implementardemandaspolticas.Mastrabalhar,tertrabalhadoao longodavida-nomomentoemquedesenvolvimentoeconmico nosignificaaumentodademandapormodeobraeemquea engenharia empresarial impe que racionalizar reduzir empregos - podesetransformarnumprivilgioenomaisumdesgasteque merece compensao. Seroosvelhosvistoscomoseressedentrioseinativosque consomemdemaneiraavassaladoratantoasheranasque poderiamseralocadosparagruposmaisjovensnafamliaquanto osrecursospblicosquedeveriamserdistribudosparaoutros setoresdasociedade?Transformarosproblemasdavelhiceem responsabilidadeindividualeapontarainviabilidadedosistemade financiamentodoscustosdaidadeavanadarecusara solidariedade entre geraes. Certamenteonossolequedeescolhasdecomovivero envelhecimento foi ampliado com o conjunto de novas prticas que acompanhamainvenodaterceiraidade.precisoreconhecer, noentanto,quesearesponsabilidadeindividualpelaescolha igualmentedistribuda,osmeiosparaagirdeacordocomessa responsabilidadenooso.Aliberdadedeescolha,mostrao socilogoZygmuntBauman,comtodaarazo,umatributo graduado:acrescentarliberdadedeaodesigualdade fundamental da condio social, impondo o dever da liberdade sem osrecursosquepermitemumaescolhaverdadeiramentelivre, numasociedadealtamentehierarquizadacomoabrasileira,uma receitaparaumavidasemdignidade,repletadehumilhaoe autodepreciao. *ProfessoraTitulardoDepartamentodeAntropologiada UNICAMP, possui graduao em Cincias Sociais (1973), mestrado emCinciaPoltica(1977),doutoradoemCinciaPoltica(1986) pelaUniversidadedeSoPaulo,eestudosdeps-doutoradono DepartmentofAnthropology,UniversityofCalifornia,Berkeley (1989-1990).FoiVice-PresidentedaAssociaoBrasileirade Antropologia(2000-2002);membrodoComitAcadmicode Cincias Sociais (Antropologia) do CNPq (2001 a 2003); editora da 8/8 RevistaBrasileiradeCinciasSociais,secretriaadjuntada ANPOCS - Associao Nacional de Ps-Graduao e Pesquisa em CinciasSociais(1992-1996);membrodaCoordenaoda Cincias Humanas e Sociais da FAPESP - Fundao de Amparo Pesquisa do Estado de So Paulo (2007-2014); e coordenadora do PAGU-NcleodeEstudosdeGnerodaUNICAMP(2007-2009). Proferiu palestras e ministrou cursos em universidades estrangeiras entre elas Columbia University (EUA), Ecole des Hautes Etudes en SciencesSociales(Frana),UniversidadedeBologna(Itlia).Tem experincianareadeAntropologiaUrbana,atuando principalmente nos seguintes temas: velhice, famlia, curso da vida, gnero e violncia