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    Teoria e mtodo em

    Michel Foucault (im)possibilidades1

    Alfredo Veiga-Neto

    Resumo

    O artigo trata da pertinncia de aplicar os conceitos de mtodo e teoria no mbito do pensamento deMichel Foucault. A partir de um fragmento wittgensteiniano, feita uma rpida discussoepistemolgica e metodolgica de carter no-representacionista, no-essencialista e no-fundacionista sobre mtodo e teoria. Identificam-se duas tendncias maiores sobre tais conceitos: aprimeira mais estrita ou hard; a segunda mais ampla ou soft. A pertinncia e a impertinncia emusar ambos os conceitos em Foucault depender sempre da aderncia a uma dessas duastendncias. feita uma breve distino entre teoria e teorizao, de modo a mostrar a conveninciaem usar teorizao quando se trata dos Estudos Foucaultianos.

    Palavras-chave:

    Estudos Foucaultianos, Wittgenstein, Teorizao, Mtodo, Teoria

    Theory and method in Michel Foucault (im)possibilities

    Abst rac t

    The paper is about the relevance of using the concepts of method and theory over Michel Foucaultsthinking. A quick epistemological and methodological discussion is placed from a Wittgenstein pieceand the character of this argument is to be non-representational, non-foundation and non-essentialist.Two major tendencies are identified over such concepts: the first one is stricter or harder; the second

    one is broader or softer. The relevance or irrelevance of using both concepts in Foucault will alwaysdepend on the devotion to one of those tendencies. There is also a brief distinction between theoryand theorization aiming to show the convenience of using theorization when working with Foucaultoriented studies.

    Key-words: Foucault oriented studies, Wittgenstein, Theorization, Method, Theory.

    1 Este texto foi preparado por solicitao da Dr Madalena Klein e do Dr. Jarbas Vieira, da UFPel, emdezembro de 2009.

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    No basta aprender o que

    tem de se dizer em todos os casos

    sobre um objeto, mas tambm como

    devemos falar dele. Temos sempre de

    comear por aprender o mtodo de oabordar

    (Wittgenstein.Anotaes sobre as cores)

    Para muitos, parecer estranho ler, como epgrafe a um texto nocampo dos Estudos Foucaultianos, uma citao tomada de LudwigWittgenstein. Mas isso mesmo: comecemos com esta clebre passagem

    do filsofo austraco, em sua Anotaes sobre as cores (Wittgenstein,1987): no basta aprender o que tem de se dizer em todos os casos sobreum objeto, mas tambm como devemos falar dele. Temos sempre decomear por aprender o mtodo de o abordar (idem, III:431, p.61).

    Alm das implicaes epistemolgicas contidas nessefragmento, h tambm razes metodolgicas mais do que evidentesquando ele se refere ao mtodo de abordar um objeto. A estocontidos dois entendimentos. De um lado, Wittgenstein assume que noexistem objetos soltos no mundo, anteriores a qualquer abordagem que se

    faa deles, como se estivessem espera de serem capturados por ns pela nossa percepo e pelo nosso entendimento. Por outro lado, esttambm claro que no de qualquer maneira ou por qualquer caminhoque se chega aos objetos. Ou, se quisermos: que, sem um mtodo, no sechega a ter uma percepo ou um entendimento sobre as coisas. Sesabemos ou no sabemos que existe sempre um mtodo ou se sabemosou no sabemos que mtodo esse, pouco importa. Se ele j foi pensadoe construdo por outros, ele estar ali para ser trilhado; caso contrrio,teremos ns mesmos de invent-lo, constru-lo. Alis, um pouquinho deetimologia sempre ajuda: no esqueamos que a palavra mtodo derivadas palavras gregas meta para alm de e odos caminho,percurso; isso , um mtodo o caminho que nos leva para um lugar.

    No nosso caso, para uma abordagem, para um entendimento.

    Mesmo que no houvesse outras aproximaes e h muitasoutras...2 entre os pensamentos de Ludwig Wittgenstein e de Michel

    2 Para uma discusso sobre isso, vide: Selman (1988), Marshall (2001), Veiga-Neto (1996) e Veiga-Neto & Lopes (2007).

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    Foucault, o que comentei acima j seria motivo suficiente para colocar-mos o austraco ao lado do francs, como filsofos no-representa-cionistas, no-essencialistas e no-fundacionalistas. Ainda que herdeiros

    de tradies filosficas e acadmicas bastante distintas e tendo vivido emcenrios socio-culturais e acadmicos muito diferentes, cada vez meparece mais interessante e produtivo tentarmos articular um com o outroe descobrir suas possveis ressonncias. Mas no propriamente dissoque tratarei aqui. Meu objetivo outro: como o ttulo deste texto anuncia,quero explorar um pouco a questo do possvel ou impossvel uso dasexpresses mtodo foucaultiano e teoria foucaultiana.

    Mas, mesmo com essa rpida explicao, permanece a per-gunta: que tem a ver Wittgenstein com os (im)possveis usos dessas duas

    expresses usuais no campo dos Estudos Foucaultianos? Ora, a resposta fcil: justamente porque qualquer deciso sobre usar ou no usar taisexpresses depende de onde partimos para falar delas. E, aqui, chego auma formulao mais explcita dos meus objetivos neste texto: tentareiexplorar um pouco a adequabilidade das expresses mtodo(s)

    foucaultiano(s) e teoria(s) foucaultiana(s), a partir de posiesepistemolgicas mais estritas ou, se quisermos, hard ou maisamplas ou, se quisermos, soft.

    Mtodo, teoria, teorizao

    Neste movimento de afinar o foco deste texto, retomo a suaepgrafe para lembrar que ela funcionou at mesmo para descrever os

    processos iniciais da escrita deste texto. Para dizer de outra maneira: secomecei com uma referncia sobre a importncia de sabermos ouaprendermos sobre como abordar um objeto, sobre como comear a falardele ou sobre ele, porque, antes de comear a escrever, eu mesmo j

    antevia uma maneira de comear esse comeo. Afinal, mesmo que aocomear este texto eu ainda no tivesse traado o seu esquema completo

    ou seja, o mapa daquilo que viria a ser o texto, era preciso ter umaideia clara sobre aquilo que eu queria falar e sobre como eu deveriacomear a fazer isso. Dado que o meu interesse central era discutiralgumas questes relativas quilo que se costuma chamar de mtodos

    foucaultianos e teorias foucaultianas, logo me ocorreu a anotao III:431de Wittgenstein, que usei como epgrafe.

    E por que ela me ocorreu? Ora, simplesmente porque,dependendo do que se entenda por mtodo e por teoria, haver ou nohaver sentido nas expresses mtodos foucaultianos e teorias

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    foucaultianas. Em outras palavras, dependendo de onde se comea afalar sobre essas coisas, variar o contedo de verdade e,reciprocamente, o contedo de falsidade daquilo que dizemos sobre

    tais coisas. Ou ainda: tanto poderemos estar certos quanto poderemosestar errados ao usarmos essas duas expresses. Isso no quer dizer queambas so igualmente certas e erradas ao mesmo tampo, pois isso seria

    paradoxal. Quer dizer, apenas, que elas podem ser tanto certas, quantoerradas, dependendo sempre do que se entende pormtodo e porteoria,isto , dependendo sempre de onde se comea e como se comea a falar.

    Arrisco-me a dizer que boa parte das tradicionais discusses emtorno de mtodo e teoria saram da moda. Esforos para delimitar e fixaro que um mtodo e qual o melhor mtodo, bem como o que uma

    teoria e quais so os seus limites, mostraram-se to mais infrutferosquanto mais genricas e universais eram pensadas as abrangncias dessesconceitos. Mas abandonar um tratamento generalista e universalista detais questes no implicou negar a importncia de pens-las em mbitosregionais e at em mbitos bem especficos. Lembremos o quanto foramimportantes, para a desuniversalizao do mtodo e da teoria, a noo

    bachelardiana de regionalidade da epistemologia e o princpiokuhniano da inseparabilidade entre mtodo e teoria, na medida em que,respectivamente, mtodo e teoria so sempre referentes a um campo desaberes ou esto sempre circunscritos a algum paradigma. E no seriademais acrescentar, s contribuies de Bachelard e de Kuhn, oanarquismo epistemolgico de Paul Feyerabend.

    Mas, na medida em que as discusses sobre mtodo e teoriadeslocaram-se do geral e universal para o especfico e regional,deslocou-se tambm boa parte do que estava em jogo em tais discusses.Foi parecendo cada vez menos importante e interessante buscar assupostas verdades sobre mtodo e teoria, e cada vez mais importante e

    interessante examinar como funciona, aqui e ali, um determinado mtodoou uma dada teoria, bem como eles se articulam entre si. Alm do mais,tal deslocamento possibilitou tambm separar o conceito de teoria como, digamos, um construto composto por um conjunto de leis e

    princpios racionais, hierrquica e solidamente sistematizados, de carterconclusivo, aplicado a uma determinada rea do conceito deteorizao como, digamos, uma ao de reflexo sistemtica, sempreaberta/inconclusa e contingente, sobre determinadas prticas,experincias, acontecimentos ou sobre aquilo que se considera ser a

    realidade do mundo.

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    No contexto desses deslocamentos, cabe fazer mais umcomentrio sobre os atuais estatutos comumente conferidos ao mtodo e teoria. Mesmo que, para algumas perspectivas epistemolgicas, mtodo

    e teoria ainda paream assumir um carter um tanto rgido, prescritivo eformal, no h dvida de que para muitas outras perspectivas, ocorreuuma flexibilizao e uma abertura em ambos. ao lado dessas outras

    perspectivas que este texto se alinha. Mas preciso no confundirabertura e flexibilizao com vale tudo, com a negao a quaisquerformalismos ou com a ausncia de rigor. Vrias vezes, tenho insistido emque se pode ser rigoroso sem ser rgido e que, em qualquer atividade,sempre preciso seguir alguns preceitos, normas ou regras previamenteestabelecidas por uma cultura que nos precedeu e na qual estamos

    mergulhados. Sem isso, no h como nos comunicarmos e nem mesmocomo pensarmos. Afinal, por mais bvio que parea, no devemosesquecer a lio arendtiana: no foi cada um de ns que inventou omundo; quando aqui chegamos, o mundo j estava a... E estava a comseus cdigos, suas gramticas, suas regras, seus smbolos etc.

    Aqui, dois lembretes: em primeiro lugar, seguir preceitos ouregras no implica adeso ao formalismo, aqui entendido tanto comoobedincia rgida a preceitos, normas ou regras quanto comocelebrao da forma em detrimento do contedo; em segundo lugar,estou usando cultura no seu sentido mais amplo possvel, o que inclui acultura acadmica, a cientfica, a escolar, a artstica, a da vida cotidianaetc.

    No caso de Foucault, tudo isso assaz interessante. Ao longo desua imensa e variada produo, observam-se claramente deslocamentosnos conceitos que ele usa e at mesmo nos que ele cria em suasdescries, anlises e problematizaes. s vezes, h apenasrefinamentos conceituais; mas outras vezes os conceitos parecem at

    mesmo mudar bastante. Sendo assim, se usarmos as palavras mtodo eteoria num sentido estrito/hard, chegaremos concluso correta...de que no h nem mtodos nem teorias foucaultianas. Mas, se usarmosmtodo e teoria num sentido amplo/soft, chegaremos concluso tambm correta... de que h mtodos e teorias foucaultianas.

    Para examinar tudo isso mais de perto, vou-me valer dosargumentos e de passagens de outros textos que escrevi nos ltimos anos

    em especial, o que est em minha tese de doutorado A ordem das

    disciplinas (Veiga-Neto, 1996) e no livro Foucault & a Educao(Veiga-Neto, 2003). Assim, boa parte do que segue contm ideias japresentadas e discutidas por mim mesmo; mas, seja porque se trata de

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    material prprio, seja porque quero facilitar a sua leitura, nodiferenciarei o que novo daquilo que to somente uma retomada do jdito. Seja como for, retornar a elas, mas agora de modos diferentes,

    acabou funcionando para mim como uma reativao de e nopropriamente como umasoluo para problemas que frequentementese colocam no campo dos Estudos Foucaultianos.

    Mtodo(s) foucaultiano(s)? Teoria(s) foucaultiana(s)?

    Podemos comear esta ltima seco com o reconhecimento deque prprio da modernidade e principalmente do Iluminismo oentendimento de que existe uma perspectiva privilegiada, urea,

    perspectiva das perspectivas, a partir da qual se compreenda o que mesmo o mundo e se explique como ele funciona; em outras palavras,uma posio a partir da qual se chegue s ltimas verdades ou numaverso probabilstica se chegue cada vez mais perto das verdadesverdadeiramente verdadeiras. Decorre desse unitarismo epistemolgico

    um dos pilares das Cincias modernas a defesa que cada um faz desua prpria perspectiva como a perspectiva, na medida em que acreditana possibilidade de uma perspectiva de todas as perspectivas; decorre,tambm, o unitarismo metodolgico, de modo que cada um que acreditena existncia de um mtodo de todos os mtodos; e o unitarismoterico, que pode se manifestar tanto como a busca de teorias que seapliquem a todos e quaisquer fenmenos quanto como a busca de umateoria que unifique todas as outras que lhe seriam subordinadas.

    dessa tradio que Foucault se afasta. Junto com outros que oprecederam como, principalmente, Friedrich Nietzsche e MartinHeidegger, o que o filsofo coloca como problemtica, com relao aosentido cientificista moderno de mtodo, a ideia de um mtodo

    imutvel, sistemtico e universalmente aplicvel (Machado, 1990,p.28). por isso que, criticando a tentativa que faz Hacking (1992) deencontrar uma epistemologia que sustente uma metodologia foucaultiana,Rorty (1992) diz que tudo o que ele [Foucault] tem a oferecer soredescries brilhantes do passado, complementadas por sugestes queauxiliam sobre como evitar cair nas armadilhas das antigas suposieshistoriogrficas(ib., p.47). Essas sugestes, continua Rorty, so umasrie de mximas negativas que nem se originam de uma teoria nem seconstituem num mtodo (ib.).

    Para Foucault, o mtodo no o caminho seguro como queriamDescartes e Ramus, at porque nada mais seguro, previsvel: nem os

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    pontos de sada, nem o percurso, nem os pontos de chegada. E mais: noh um solo-base externo por onde caminhar, seno que, mais do que ocaminho, o prprio solo sobre o qual repousa esse caminho que

    construdo durante o ato de caminhar. porque se descartou da noo de sujeito fundante, ncleo e

    origem do cogito, que Foucault teve necessariamente de se descartar doconceito cartesiano de mtodo. Ento, j de incio, o filsofo rompe como sentido cannico moderno de mtodo esse sentido que, mais acima,chamei de hard... Mas, do ponto de vista mais formal, considero que oafastamento de Foucault em relao aos aspectos mais operacionais domtodo progressivo, ao longo de sua obra. Como cada livro seu noschega como um estimulante comeo em um novo mundo, a metodologia

    tem de ser adaptada, novos conceitos criados (Sheridan, 1981, p.205).No transcorrer de suas investigaes histricas absolutamente concretasseja buscando em fontes documentais at ento desconhecidas oudesprezadas porque tidas como insignificantes ou infames, ou sejacolocando um olhar diferente sobre o que todos j pensavam conhecer,

    parece-me haver como que um gradiente, ainda que descontnuo, que vaida arqueologia tica, passando pela genealogia. Ao longo dessegradiente, o que j no era grande, ou talvez at vestigial a saber, ocompromisso com o formalismo da tcnica, da definio, do

    procedimento, se reduz e quase desaparece. Simetricamente, acentua-se a leveza de um estilo de investigao que, mesmo rigorosa, se abre

    para suas prprias fronteiras na esperana de ultrapassar a si mesma e deconseguir ver nas regies de indecidibilidade que at ento estavam na

    penumbra.

    Se tomarmos, ento, mtodo e teoria em seus sentidos maisamplos/soft, estaremos corretos ao dizermos que a arqueologia e agenealogia so mtodos foucaultianos. Mas, em parte para evitar as

    exigncias impostas pelos rigores conceituais da tradio moderna,Foucault geralmente evita falar em mtodo. Assim, por exemplo, ao sereferir genealogia, ele fala em uma atividade, uma maneira deentender, um modo de ver as coisas, (Foucault, sd). Vrias vezes, porexemplo, ele insistiu em que A arqueologia do saber no um livrometodolgico. No por outro motivo que tambm Abraham (sd) dizque a genealogia uma perspectiva de trabalho. Com isso, evita-selevar longe demais os muitos significados de mtodo, alargando demaisuma polissemia que, muitas vezes, traz mais problemas do que solues.

    Falar em uma atividade, uma maneira de entender, ummodo de ver as coisas remete noo de techn. Assim, a genealogia

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    pode ser entendida no como um conjunto de procedimentos tcnicospara executar descries, anlises e problematizaes, mas como umatechn de fundo, uma techn que informa para usar a expresso do

    filsofo um modo de ver as coisas que esto em determinadasprticas e suas relaes com outras prticas sejam elas discursivas ouno-discursivas. Trata-se, isso sim, de uma techn que consiste numaforma muito singular de escutar a histria.

    Se a alguns parece um tanto problemtico dizer que aarqueologia e a genealogia so mtodos, essa questo se agudiza nodomnio da tica. a que se torna mximo o afastamento do filsofo emrelao a qualquer formalismo, a qualquer prescrio metodolgica. Oque Foucault faz uma anlise das tcnicas de subjetivao (Morey,

    1991, p.16), tornando-se mxima a sua aproximao noo de mtodoenquanto perspectiva de trabalho.

    J no incio do segundo volume da Histria da sexualidade,Foucault (1994) nos fala daquilo que procura fazer nesse terceirodomnio:

    Da a opo de mtodo que fiz ao longo desse estudo sobre asmorais sexuais da Antiguidade pag e crist: manter em

    mente a distino entre os elementos de cdigo de uma morale os elementos de ascese; no esquecer sua coexistncia, suasrelaes, sua relativa autonomia; nem suas diferenas

    possveis de nfase; levar em conta tudo o que parece indicar,nessas morais, o privilgio das prticas de si, o interesse queelas podiam ter, o esforo que era feito para desenvolv-las,aperfeio-las e ensin-las, o debate que tinha lugar a seurespeito. [...] em vez de perguntar quais so os elementos decdigo que o cristianismo pde tomar emprestado ao

    pensamento antigo, e quais so os que acrescentou por suaprpria conta, [...] conviria perguntar de que maneira, nacontinuidade, transferncia ou modificao dos cdigos, asformas da relao para consigo (e as prticas de si que lhe soassociadas) foram definidas, modificadas, reelaboradas ediversificadas. (p.30-31).

    Nessa citao, est clara a noo de mtodo enquanto poucomais do que uma vigilncia epistemolgica (Santos, 1991) que

    permanece como umsubstratum mentis, que a prpria teoria em ato

    (ib.).

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    Retomemos os dois primeiros domnios foucaultianos, osterrenos prprios da arqueologia e da genealogia.

    O progressivo abrandamento do sentido que tradicionalmente se

    d ao mtodo, feito por Foucault no domnio da tica, no descarta osseus mtodos do primeiro e segundo domnios. Ao contrrio comohavia demonstrado Morey (1991), Davidson (1992) nos diz que atica nem desloca a genealogia e a arqueologia, nem as tornairrelevantes, porm altera as implicaes metodolgicas finais de ambas(ib., p.230). Liga-se a elas e com elas se articula num todometodolgico qual importante mais uma vez referir uma technde investigao. Essa me parece ser mais uma indicao de que, seFoucault silencia sobre a arqueologia j no segundo domnio, isto , se

    parece haver uma substituio dessa pela genealogia, a rigor no ocorreuum abandono do mtodo arqueolgico. O que se passa algo semelhantea uma incorporao metodolgica sucessiva e no, certamente, umasubstituio; e tambm no progressiva... que vai do primeiro aoterceiro domnio. Esses procedimentos metodolgicos englobam-se emcrculos cada vez mais amplos, mas no se substituem, absolutamente(Morey, 1991, p.16). Isso no significa que aquela que engloba (agenealogia) seja mais ampla, mais abrangente do que a englobada(arqueologia), pois nesse caso seria supor uma territorialidademetodolgica que no existe em Foucault. O que h, no mximo, umenglobamento temporal e at mesmo uma articulao entre ambas. Porisso, Cascais (1993) denomina arqueogenealogia o mtodo que Foucaultusa para analisar o que se designa como o sujeito, indaga as formas eas modalidades da relao a si pelas quais o indivduo se constitui e sereconhece como sujeito, nos dois ltimos volumes da Histria da

    sexualidade (p.78). De certa maneira, talvez seja melhor essa soluo doque a assumida por Davidson (1992) e outros que insistem em chamartica tanto ao campo quanto ao mtodo do terceiro domnio de Foucault.Penso que o uso dessa mesma palavra (tica) em planos to distintos ainda que dentro de um mesmo domnio pode levar a uma certadificuldade ou confuso conceitual.

    Isso tudo aponta no sentido de que a assim chamada teoriafoucaultiana do sujeito e suas correlatas metodologias so maisferramentas do que mquinas acabadas. Aqui cabe trazer o conceito deteorizao, talvez mais apropriado do que simplesmente teoria. Pareceque estamos diante de uma teoria que s a posteriori se revela como tal,

    ou seja, uma teoria que no estava antes l para guiar a investigao. Eestamos diante, tambm, de uma metodologia cuja invariante, ao longode toda a obra, pode ser sintetizada no permanente envolvimento com a

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    noo de problema: tanto problematizando enquanto atituderadicalmente crtica quanto perguntando por que algo se torna ou declarado problemtico para ns. Nesse sentido, mudando a maneira de

    problematizar e mudando os prprios problemas, pode-se dizer que ainvariante metodolgica e temtica em Foucault a prpria variao

    Por tudo isso, concordo com as crticas de Rorty a Hacking: noh uma epistemologia foucaultiana a sustentar a sua metodologia. Masno concordo com ele quando diz que as mximas de Foucault no seconstituem num mtodo (Rorty, 1992). Tomando constituirno sentido deformar, organizar, estabelecer, penso que as mximas foucaultianasconstituemuma teoria e apontam um mtodo ou, talvez melhor dizendo,constituem uma teorizao como um conjunto aberto/inacabado de

    prticas que se valem de diferentes mtodos. Mas lembro mais uma vez:teoria e mtodo tm de ser entendidos, aqui, numa perspectiva no-iluminista. E tm de ser entendidos como ponto de chegada de cada caso.O ponto de partida de Foucault jamais foi uma teoria que lhe dissesse oque ou como deve ser o sujeito, como deve ser uma instituio, comodeve ser uma moral e assim por diante. Jamais foi uma teoria-figurinoque ele depois viesse a usar como medida-padro-modelo-gabarito, namontagem de um mtodo, para identificar o quanto, oporqu, o como, oem que cada um se afastou daquilo que deveria ser como sujeito; ou cadainstituio, ou cada configurao social e poltica, ou cada cdigo moraletc. se afastou de um suposto modelo.

    No fim das contas, parece tambm estar sempre presente nessasquestes uma certa indomabilidade que to frequente no pensamentofoucaultiano. E, na busca de uma citao que possa resumir talindomabilidade metodolgica e terica, lembro como Pierre Bourdieuconclui o necrolgio elogioso que dedicou a Foucault: Nada mais

    perigoso que reduzir uma filosofia, principalmente to sutil, complexa,

    perversa, a uma frmula de manual (Bourdieu, apud Eribon, 1990,p.307). E, na busca de uma metfora, recordo o poeta para dizer queaquilo que a teoria foucaultiana do sujeito e suas metodologiasconseguem fazer, enfim, uma roupa melhor, que ficar bem cingida:como roupa feita medida (Melo Neto, 1995b, p.185).

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    E-mail: [email protected]

    Submetido em: outubro de 2009 | Aceito em: dezembro de 2009